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Na noite em que chegaram para cumprir sua santa missão estava tudo muito calmo.
Farid, que era o mais novo dos quatro homens, recordaria mais tarde que nem sequer os cães tinham emitido um som. Envoltos pela noite morna, quase não era perceptível a brisa que vinha em sopros fracos do deserto. Estavam à espera desde o anoitecer. O carro que os conduzira no longo caminho de Argel até ao ponto de encontro em Dar Aziza estava velho e com a suspensão em mau estado. Tiveram que interromper a viagem por duas vezes. A primeira para substituir o pneu furado da roda esquerda traseira. Nessa altura ainda não tinham completado metade do trajeto. Farid, que nunca saíra da capital, ficara à sombra de um penedo junto à estrada observando admirado as dramáticas variações da paisagem. O pneu, cuja borracha estava gasta e com fissuras, estourou na saída de Bou Saacla. Levara muito tempo desenroscando os parafusos enferrujados e colocando um pneu novo. Farid percebeu pela conversa em voz baixa dos outros que se atrasariam e por isso não teriam tempo para parar e comer. A viagem continuou. O motor parou antes mesmo de chegarem a El Qued. Só mais de uma hora depois é que conseguiram localizar e resolver razoavelmente a avaria.
O chefe, que era um homem pálido dos seus trinta anos, barba escura e olhos tão vivos que só podiam ter os que foram tocados pelo chamamento do Profeta, comandava com furiosos berros o motorista, que suava sobre o motor quente. Farid não sabia o nome dele. Por razões de segurança não sabia quem ele era ou de onde vinha.
Também não sabia como se chamavam os outros dois. Só sabia seu próprio nome.
Continuaram, a escuridão já os apanhara, e só tinham água para beber, nada para comer.
Quando finalmente chegaram a El Qued, a noite estava muito calma. Pararam, embrenhados num labirinto de ruas nas proximidades de uma praça. Assim que saíram do carro este desapareceu no escuro. De algum lugar das sombras surgiu um quinto homem que os guiou no caminho.
Foi somente nessa altura, quando se apressavam na escuridão, que Farid, na realidade, começara a pensar no que em breve aconteceria. Com a mão conseguia sentir a faca de gume ligeiramente curvo, que guardava num estojo, bem no fundo de um dos bolsos do caftã.
Seu seu irmão, Rachid Ben Mehidi, fora o primeiro a falar com ele sobre os estrangeiros. Durante as noites amenas ficavam no telhado da casa do pai observando as luzes de Argel. Farid nessa altura já sabia que Rachid Ben Mehidi estava profundamente envolvido na luta para transformar seu país num estado islâmico, que não seguiria outras leis que não fossem as ditadas pelo Profeta. Nessa altura falava todas as noites com Farid sobre a importância de expulsar os estrangeiros do país. No princípio Farid se sentia lisonjeado por querer o irmão lhe falar de política. Apesar de, no início, não entender tudo o que ele dizia. Mas mais tarde percebeu que Rachid tinha um motivo totalmente diferente para lhe dedicar tanto tempo. Ele queria que Farid participasse da expulsão dos estrangeiros.
Já se passara mais de um ano. E agora, ao acompanhar os outros homens vestidos de preto pelas ruas escuras e estreitas em que o ar quente da noite parecia parado, estava em vias de cumprir o desejo de Rachid. Os estrangeiros estavam prestes a ser expulsos. Mas não seriam escoltados para portos ou aeroportos. Seriam assassinados. Os que ainda não tinham entrado no país prefeririam ficar em sua terra.
A tua missão é sagrada, tinha Rachid repetido continuamente. O Profeta vai ficar contente. O teu futuro vai ser muito brilhante depois de termos mudado este país segundo a vontade dele.
Farid sentia a faca no bolso. Fora-lhe dada por Rachid na noite anterior, quando se despediram no telhado. Tinha um bonito punho de marfim.
Pararam quando chegaram à periferia da cidade. As ruas abriam-se para uma praça. O céu estrelado sobre as suas cabeças estava muito claro. Ficaram na sombra junto a uma casa comprida com estores descidos em frente de lojas fechadas. Do outro lado da rua havia uma grande moradia de pedra por trás de uma alta vedação de ferro. o homem que os tinha levado até lá desapareceu silenciosamente nas trevas. Eram novamente apenas quatro. Tudo estava muito calmo. Farid nunca tinha vivido nada semelhante, Argel nunca estava tão silenciosa. Durante os dezenove anos que vivera nunca tinha estado num silêncio como este.
Nem sequer os cães, pensou. Nem sequer consigo ouvir os cães quepor aí andam na escuridão.
Havia luz em algumas janelas da vivenda do outro lado da rua. Um autocarro com faróis partidos e luz intermitente passou com muito barulho pela rua. Depois tudo ficou novamente silencioso.
Uma das luzes apagou-se. Farid tentou calcular o tempo. Talvez tivessem esperado meia hora. Sentiu muita fome, porque não comia desde manhã cedo. A água das duas garrafas também acabara. Mas não queria pedir mais. O homem que mandava iria ficar muito zangado. Iam executar uma missão sagrada, e ele a pedir água.
Mais uma luz que se apagou e, logo a seguir, a última. A casa do outro lado da rua estava agora totalmente às escuras. Aguardaram. A um sinal do chefe apressaram-se a atravessar a rua. junto ao portão estava um velho guarda a dormir que tinha um pau na mão.
O chefe deu-lhe um pontapé e quando o guarda acordou, Farid viu o chefe segurar uma faca junto à cara dele e sussurrar-lhe alguma coisa ao ouvido. Apesar da iluminação pública ser fraca, Farid conseguiu ver o medo brilhar nos olhos do velho guarda. Depois levantou-se e afastou-se coxeando. O portão chiou ligeiramente quando o abriram e deslizaram para o jardim. Cheirava fortemente a jasmim e a alguma erva aromática, que Farid reconheceu, mas de cujo nome não se lembrava. Tudo continuava muito calmo. Numa placa Junto a porta de entrada havia uma inscrição: A Ordem das Irmãs Cristãs. Farid tentou entender o significado e, no mesmo instante, sentiu uma mão no ombro. Deu um pulo. Era o chefe que lhe tocava falando pela primeira vez baixinho, de maneira a que nem sequer a brisa noturna pudesse ouvir o que fora dito.
– Somos quatro – disse ele. – Dentro da casa também há quatro pessoas. Estão a dormir em quartos individuais situados nos dois lados de um corredor. São velhas e não vão oferecer resistência.
Farid olhou para os outros dois homens ao seu lado. Eram uns anos mais velhos do que ele e de repente Farid apercebeu-se de que eles tinham anteriormente participado em acções semelhantes. Só ele era novato. Apesar disso não sentiu qualquer ânsia. Rachid tinha-lhe afirmado que o que ele iria fazer era a vontade do Profeta.
O chefe olhou-o, como se tivesse lido os pensamentos dele.
– Nesta casa vivem quatro mulheres – disse em seguida. – São todas estrangeiras que se recusaram a deixar o nosso país voluntariamente. Por isso escolheram a morte. Além disso, são cristãs.
Vou matar uma mulher, pensou Farid subitamente. Sobre isso Rachid não tinha dito nada.
Para isso só podia haver uma explicação. Não significava nada. Não alterava nada.
Entraram na casa. A porta tinha uma fechadura fácil de abrir com uma faca. Lá dentro, num quente crepúsculo onde o ar estava completamente parado, acenderam as lanternas de bolso e procuraram cuidadosamente o caminho pela larga escada que atravessava a casa. No corredor do andar de cima estava pendurada uma lâmpada solitária no teto. Continuava tudo muito silencioso. À sua frente havia quatro portas fechadas. Tinham puxado pelas facas. O chefe apontou para as portas e acenou com a cabeça. Farid sabia que agora não podia hesitar. Rachid tinha dito que tudo tinha que ser feito muito depressa. Tinha que evitar olhar os olhos, só tinha que olhar para o pescoço e cortar, com força e determinação. Mais tarde também não conseguiria recordar o que tinha acontecido. A mulher deitada na cama com um lençol branco por cima, talvez tivesse cabelo branco. Tinha-a visto com pouca nitidez porque a luz que vinha da rua era muito fraca e ela acordou no mesmo instante em que ele puxou o lençol. Mas não teve tempo para gritar, nem entender o que estava a acontecer, antes de lhe cortar o pescoço com uma única incisão, e rapidamente dera um passo atrás para não apanhar salpicos de sangue. Deu meia volta e regressou ao corredor. Tudo se passou em menos de meio minuto. Algures dentro dele tinha sentido os segundos bater. No instante em que iam abandonar o corredor, um dos homens chamou em voz baixa. Momentaneamente o chefe ficou paralisado como se não soubesse o que fazer.
Havia mais uma mulher num dos quartos. Uma quinta mulher. Ela não devia estar lá, era de fora, talvez apenas uma visita.
Mas também era estrangeira. O homem que a descobriu conseguiu ver isso.
O chefe entrou no quarto e Farid, que estava atrás dele, viu que ela estava encolhida na cama. A expressão de medo fê-lo sentir-se agoniado. Na outra cama estava uma mulher morta. O lençol branco estava ensopado em sangue.
Num relâmpago o chefe puxou pela faca de bolso e também cortou o pescoço da quinta mulher.
Depois deixaram a casa tão sorrateiramente como tinham entrado. Algures na escuridão o carro aguardava-os. Ao amanhecer ja estavam longe de El Qued e das cinco mulheres mortas.
Era Maio de 1993.
A carta chegou a Ystad no dia 19 de agosto.
Como tinha sido carimbada na Argélia, tinha que ser da mãe. Esperara para a abrir. Queria ter calma e paz quando a lesse. Pelo volume do envelope sentira que continha muitas páginas. Também não tivera notícias da mãe há mais de três meses. Certamente tinha muito para contar. Deixara a carta ficar na mesa da sala e esperara pela noite. Sentia uma vaga curiosidade. Por que teria a mãe desta vez escrito o nome e endereço à máquina? Mas pensou que a resposta de certeza estaria na carta. Só perto da meia-noite abrira a porta da varanda e se sentara no cadeirão, que quase não cabia no meio de todos os vasos de plantas. Era uma bonita e quente noite de Agosto, talvez uma das últimas deste ano. O outono estava aí, numa espera invisível. Abrira a carta e começara a ler.
Só depois, quando acabara de ler a carta até o fim e a colocara de lado, começara a chorar.
Naquela altura sabia que a carta tinha sido escrita por uma mulher. Não foi apenas a caligrafia bonita que a convenceu. Também havia alguma coisa na escolha das palavras, como aquela mulher desconhecida hesitava e cautelosamente avançava para o mais suavemente possível contar a tragédia.
Mas não havia nada de suave, só existia o que acontecera. Nada mais.
A mulher que escrevera a carta chamava-se Françoise Bertrand e era policial. Sem ser totalmente evidente na carta, provavelmente era investigadora de crimes na comissão central de homicídios na Argélia. Fora nessa circunstância que entrara em contato com os acontecimentos que se tinham desenrolado numa noite de Maio, na cidade de El Qued, a sudoeste de Argel.
Aparentemente a relação era clara, perceptível e totalmente horrível. Quatro freiras, de cidadania francesa, tinham sido assassinadas por homens desconhecidos. Certamente pertenciam aos fundamentalistas que haviam decidido expulsar todos os estrangeiros do país. O Estado iria enfraquecer para a seguir se autodestruir. No vazio que surgira construir-se-ia um Estado fundamentalista. As quatro freiras tinham sido degoladas, não havia pistas dos executantes, apenas sangue, em todo o lado sangue denso e coagulado.
Mas também havia esta quinta mulher, uma turista sueca, que várias vezes tinha renovado a sua licença de permanência no país e, por coincidência, tinha feito uma visita às freiras naquela noite em que homens desconhecidos tinham aparecido com as suas facas. No seu passaporte, que estava na carteira, descobrira que ela se chamava Anna Ander, tinha 66 anos e estava no país legalmente com um visto de turismo. Também havia um bilhete de avião com regresso em aberto. Uma vez que o caso já era péssimo com as quatro freiras mortas e como Anna Ander parecia viajar sozinha, os investigadores do crime, por pressão política, tinham decidido ignorar esta quinta mulher. Simplesmente não existira no local naquela noite fatal. A cama dela estivera vazia. Optaram por deixá-la morrer num desastre de automóvel e enterrá-la como anónima, numa sepultura sem identificação. Todos os seus pertences tinham desaparecido e todas as pistas eliminadas. E foi aqui que Françoise Bertrand entrou no contexto. Uma manhã cedo tinha sido chamada ao gabinete do chefe, escreveu ela na extensa carta, e tinha sido incumbida de ir imediatamente a El Qued. Nessa altura a mulher já fora enterrada e a tarefa de Françoise Bertrand fora a de limpar os últimos vestígios de eventuais pistas e depois destruir o passaporte e outros pertences.
Anna Ander nunca teria entrado ou visitado a Argélia. Deixaria de existir como um assunto argelino – riscada de todos os registros. Fora nessa altura que Françoise Bertrand encontrara uma carteira, que os descuidados investigadores do crime não tinham descoberto, que se encontrava por detrás de um armário de roupa. Ou talvez tivesse estado em cima do armário alto e caído, isso não conseguiu determinar. Mas tinha encontrado uma carta que Anna Ander escrevera, ou pelo menos iniciara, e estava dirigida à filha que vivia numa cidade que se chamava Ystad, na longínqua Suécia. Françoise pedia desculpa por ter lido esses papéis privados. Tinha sido ajudada por um pintor sueco alcoolizado, que conhecia em Argel, e que tinha traduzido, sem ter a mínima ideia do que na realidade se tratava. Tinha anotado a tradução da carta e criado pouco a pouco uma imagem. Já nessa altura tinha sentido pesados remorsos sobre o que tinha acontecido com esta quinta mulher. Não só porque tinha sido assassinada de maneira tão brutal na Argélia, o país que Françoise tanto amava, mas um país tão atingido e lacerado por antagonismos internos. Tinha tentado esclarecer o que estava a acontecer no seu país e também falava de si mesma. Que o pai nascera em França e chegara à Argélia ainda criança com os pais. Lá crescera, lá se casara com uma argelina, e Françoise, que era a mais velha de todos os filhos que tiveram, durante muito tempo teve a sensação de ter uma perna em França e outra na Argélia. Mas agora já não tinha dúvidas. A Argélia era a sua pátria. E era por isso que ela sofria tanto, pelo antagonismo que estava a despedaçar o seu país. Era também por isso que ela não queria deixar-se corromper, e contribuir para ofender o seu país ainda mais, ignorando esta mulher, ao afogar toda a verdade num acidente fingido e depois nem sequer assumir a responsabilidade de Anna Ander ter, de fato, estado no país. Françoise Bertrand tinha sofrido de insônias, escrevia. Finalmente optara por escrever à filha desconhecida da mulher morta e contar a verdade. Forçou-se a pôr de lado a lealdade que sentia pela corporação da polícia e pediu para o nome dela não ser divulgado. É a verdade que escrevo, disse no fim da carta. Talvez cometa um erro ao contar o que aconteceu. Mas será que podia fazer outra coisa? Encontrei uma carteira com cartas que uma mulher tinha escrito à filha. Relato agora como chegaram às minhas mãos e apenas as mando à destinatária.
Françoise Bertrand incluiu as cartas inacabadas. E também o passaporte de Anna Ander.
Mas a filha não leu as cartas da mãe. Deixou-as no chão da varanda e chorou durante muito tempo. Só ao alvorecer se levantou e entrou na cozinha. Ficou muito tempo imóvel junto à mesa da cozinha. A sua cabeça estava completamente vazia. Mas depois começou a pensar e de repente parecia-lhe tudo muito simples. Chegou à conclusão de que tinha esperado durante anos. Anteriormente não o tinha percebido, nem que tinha esperado, nem o que esperava, mas agora sabia. Tinha uma tarefa e não precisava esperar mais para a executar. Chegara a altura. A mãe desaparecera. Uma porta abriu de par em par.
Ergueu-se e foi buscar a caixa com os pedaços de papéis cortados e o grande diário que estava no quarto numa caixa por baixo da cama. Espalhou os pedaços à sua frente na mesa. Ela sabia que eram exatamente quarenta e três pedaços. Num deles havia uma cruz preta. Depois começou a desdobrar os pedaços, um por um.
A cruz estava no pedaço 27. Abriu o diário e seguiu a fila de nomes até chegar à coluna 27. Observou o nome que ela própria escrevera e viu um rosto surgir lentamente.
Depois fechou o livro e colocou novamente os pedaços na caixa. A mãe dela estava morta, já não tinha dúvidas. Era irrevogável.
Para ultrapassar o desgosto e o luto iria deixar passar um ano e fazer todos os preparativos. Mas mais não.
Voltou a sair para a varanda. Fumou um cigarro e observou a cidade que estava agora acordada. Vinda do mar estava a caminho uma chuvarada.
Passava das sete quando se foi deitar. Era a manhã de 20 de agosto de 1993.
SCANIA
21 de setembro – 11 de outubro 1994
1
Já passava das dez da noite quando finalmente acabou o poema. As últimas estrofes foram difíceis de escrever e levaram muito tempo. Tinha procurado uma expressão melancólica, que fosse simultaneamente bonita. Muitas tentativas foram atiradas para o cesto de papéis. Por duas vezes esteve perto de desistir completamente. Mas agora aí estava o poema à sua frente na mesa. A sua canção de lamentos sobre o pica-pau médio, em vias de extinção na Suécia, e que não era visto desde os princípios dos anos 80. Mais um pássaro que estava a ser afastado pelo homem.
Levantou-se da secretária e endireitou as costas. Por cada ano que passava tornava-se cada vez mais difícil ficar debruçado sobre os seus escritos durante períodos mais longos.
Um velho como eu já não devia escrever poemas, pensou. Quando se tem 78 anos, as nossas reflexões praticamente não têm valor para ninguém a não ser para nós mesmos. Ao mesmo tempo sabia que não era assim. Só no mundo ocidental se olhava os velhos com condescendência ou desdenhosa compaixão. Noutras culturas a velhice era respeitada como a idade da sabedoria esclarecida. E tinha intenção de escrever poemas enquanto fosse vivo, enquanto tivesse forças para segurar uma caneta e a cabeça estivesse tão lúcida como agora. Não sabia fazer outra coisa. Agora já não. já passara o tempo em que fora um bom vendedor de automóveis, tão bom que tinha superado outros negociantes. Tivera uma fama justificada de ser duro nas negociações. É claro que tinha vendido automóveis. Ele tinha tido filiais tanto em Tomelilla como em Sjõbo. Durante os anos bons conseguira amealhar uma fortuna suficientemente grande para viver como vivia.
Apesar disso, eram os poemas que tinham importância, tudo o resto eram necessidades passageiras. Os versos em cima da mesa davam-lhe uma satisfação que raramente sentia.
Puxou as cortinas para tapar as grandes janelas que davam para os campos que se inclinavam em direção ao mar, algures além do horizonte. Depois dirigiu-se à estante. Tinha publicado nove coletâneas de poesia durante a sua vida. Lá estavam elas, lado a lado. Todas tinham sido vendidas em pequenas edições. Três centenas de exemplares, talvez um pouco mais. As sobras estavam em caixas na cave, mas não as tinha rejeitado ao pô-las lá. Continuavam a ser o seu orgulho. No entanto, há muito tempo decidira que um dia as queimaria. Levaria as caixas para o pátio e atirar-lhes-ia um fósforo. O dia em que ouvisse a sua sentença de morte, por um médico ou pelo seu próprio pressentimento de que a vida estava a aproximar-se do fim, seria a altura de se livrar das pesadas coletâneas que ninguém tinha desejado comprar. Não iria permitir que alguém as mandasse para a lixeira.
Olhou para os livros na prateleira. Toda a sua vida tinha lido poesia. Muita sabia-a de cor. Também não tinha ilusões. Os seus versos não eram os melhores que tinham sido escritos, mas também não eram os piores. Em cada coletânea que tinha produzido, com intervalos de aproximadamente cinco anos desde os fins da década de 40, havia estrofes isoladas que podiam competir com muitas outras. Mas tinha sido vendedor de automóveis toda a vida e não poeta. Os seus poemas não tinham sido mencionados nas páginas culturais. Não recebera qualquer prêmio literário e, além disso, ele próprio suportara os custos de impressão. Tinha enviado às grandes editoras em Estocolmo a primeira coletânea que completara. Ao fim de algum tempo tinha sido devolvida com comentários lacónicos em fichas impressas. Um redator de uma das editoras tinha, no entanto, feito o esforço de fazer um comentário pessoal e informado segundo o qual ninguém tinha paciência para ler poesia que parecia apenas tratar de pássaros. A vida espiritual das alvéolas não interessa, comentara.
A partir dessa altura deixou de se dirigir às editoras. Custeava ele próprio as publicações. Capas simples, texto preto em papel branco, nada dispendioso. As palavras entre as capas eram o que tinha importância. Apesar de tudo, muita gente lera os seus versos ao longo dos tempos e muitos até fizeram apreciações favoráveis.
E agora tinha escrito mais um, sobre o pica-pau médio, a bonita ave que já não se via na Suécia.
Poeta de aves, refletiu.
Quase tudo o que escrevera fora sobre aves, sobre batidas de asas, sussurros na noite, chamamentos solitários algures à distância. No mundo das aves conseguira entender os segredos mais íntimos da vida.
Regressou à secretária e pegou no papel. A última estrofe tinha finalmente saído bem. Deixou o papel cair na mesa. Ao atravessar a grande sala sentiu uma guinada nas costas. Será que estava a ficar doente? Todos os dias estava atento a sinais que o próprio corpo lhe transmitia. Toda a vida tivera boa condição física. Nunca fumara, fora moderado tanto no comer como no beber. O que lhe tinha de fato garantido uma boa saúde. Mas pouco faltava para fazer 80 anos. O fim do seu tempo aproximava-se cada vez mais. Foi para a cozinha e serviu-se de uma xícara de café da máquina, que estava sempre ligada. O poema que tinha acabado de escrever enchera-o de melancolia e alegria.
O outono da idade, pensou. Um título que fica bem. Tudo o que escrevo pode ser o último. E estamos em setembro. É outono. Tanto no calendário como na minha vida.
Levou a xícara de café quando regressou à sala. Cuidadosamente sentou-se num dos cadeirões de pele que o acompanhavam há mais de quarenta anos. Comprara-os para celebrar o sucesso de ter obtido a concessão da Volkswagen para o Sul da Suécia. Numa pequena mesa ao lado do braço da poltrona estava a fotografia de Werner, o pastor alemão, cuja falta sentia mais do que de todos os outros cães que o tinham acompanhado pela vida fora. Envelhecer significava solidão. As pessoas que nos preencheram a vida morreram. Por fim, até os cães desapareciam nas sombras, e em breve só restava ele. Numa certa altura da vida todo mundo está só no mundo. Sobre essa reflexão tentara recentemente escrever um poema, mas não conseguira. Talvez tentasse novamente agora, já que tinha acabado a canção de lamentos sobre o pica-pau médio? Mas era sobre aves que ele sabia escrever, não sobre seres humanos. Era possível entender as aves. Na maioria das vezes as pessoas eram incompreensíveis. Será que alguma vez se entendera a si próprio? Escrever poemas a respeito do que não entendia seria como infiltrar-se numa área proibida.
Fechou os olhos e relembrou de repente o concurso da televisão de 10.000 coroas nos fins dos anos 50, ou talvez no princípio dos anos 60. Naquela altura a televisão ainda era a preto e branco. Um jovem participara no tema sobre Aves. Um jovem de olhos tortos e cabelo penteado com gel, que tinha conseguido responder a todas as perguntas e recebera o cheque de 10.000 coroas, naquela altura uma quantia muito elevada.
Ele não tinha estado no estúdio da televisão, na cabina à prova de som com fonees nos ouvidos. Estivera sentado precisamente nesta cadeira. Mas ele também teria conseguido responder a todas as perguntas, nem sequer teria necessitado de tempo extra para pensar. Mas não recebera 10.000 coroas. Ninguém sabia dos seus grandes conhecimentos sobre aves. Tinha preferido escrever poemas sobre elas.
Despertou dos seus devaneios com um sobressalto. Um som chamara a sua atenção. Escutou com atenção na penumbra da sala. Estaria alguém lá fora no pátio? Afastou o pensamento, era só imaginação. Envelhecer significava, entre muitas outras coisas, uma certa ansiedade. Tinha boas fechaduras nas portas, guardava uma espingarda no quarto do piso superior, tinha uma pistola acessível numa gaveta da cozinha. Seria capaz de se defender se algum intruso viesse à sua isolada quinta à saída norte de Ystad. Também não hesitaria em o fazer.
Levantou-se da poltrona e sentiu outra guinada nas costas. A dor ia e vinha. Pousou a xícara de café em cima do lava-loiças e olhou para o relógio de pulso. Eram quase onze horas, horas de sair. Deu uma olhadela ao termômetro no lado de fora da janela da cozinha e viu que estavam sete graus. A pressão do ar estava em ascensão, um vento fraco de sudoeste chegava à Scania. Todas as condições eram ideais, pensou. Esta noite os bandos de aves iriam para sul. Os voadores de longo curso iriam passar com asas invisíveis sobre a sua cabeça aos milhares. Não conseguiria vê-los, mas lá fora na escuridão iria senti-los, lá no alto sobre a sua cabeça. Ao longo de cinquenta anos ele passava tantas noites de outono no campo, somente para viver a sensação dos bandos noturnos de aves passarem por cima dele.
Frequentemente tinha pensado que era como se todo o céu se fosse embora. Orquestras sinfônicas completas de aves silenciosas que partem com a aproximação do inverno e se dirigem para países mais quentes. No fundo dos seus genes situa-se o instinto de se irem embora. E as suas capacidades inultrapassáveis de navegar pelas estrelas e campos magnéticos conduzem-nas sempre bem. Procuram ventos favoráveis, acumularam camadas de gorduras, conseguem manter-se no ar horas a fio.
Um céu enorme, vibrando de asas, mete-se a caminho da peregrinação, todos os anos repetida. O caminho das aves para Meca.
O que é um homem, comparado com isso? Um velho solitário agarrado à terra? E lá em cima, no alto, um completo céu que se vai embora? Frequentemente pensara que era como praticar um ato sagrado. A sua missa de outono, estar lá na escuridão e sentir a partida das aves, para depois, ao chegar a Primavera, lá estar novamente para as receber.
A partida noturna era a sua religião.
Foi para o vestíbulo e ficou parado com uma mão no cabide. Depois voltou à sala e vestiu a camisola que estava em cima do banco junto a secretária.
Envelhecer significava, entre todos os padecimentos, que também se arrefecia mais depressa.
Mais uma vez observou o poema acabado em cima da mesa. A canção dos lamentos sobre o pica-pau médio. Finalmente tinha ficado como ele queria. Afinal, talvez acabasse por viver o suficiente para produzir poemas para uma décima e última coletânea? Já conseguia imaginar um título.
Missa noturna.
Regressou ao vestíbulo, vestiu o casaco e enfiou um boné pela cabeça abaixo. Depois abriu a porta da rua. O ar outonal estava impregnado do cheiro de lama úmida. Fechou a porta e esperou que os olhos se habituassem à escuridão. O jardim estava deserto e à distância vislumbrava um reflexo das luzes de Ystad. De resto vivia tão longe do vizinho mais próximo que apenas a escuridão o envolvia. O céu estrelado estava quase totalmente limpo. Uma e outra nuvem emergiam junto ao horizonte.
Era uma noite em que os bandos iriam passar sobre a sua cabeça. Começou a andar. A quinta onde vivia era velha, tinha três construções. A quarta tinha ardido no princípio do século. Tinha mantido a calçada no pátio e gasto muito dinheiro em renovações extensas e contínuas. Ao morrer iria oferecer tudo à Casa de Cultura de Lund. Nunca se casara, não tinha tido filhos. Tinha vendido automóveis e ficara rico. Tivera cães. E, além disso, as aves lá por cima da sua cabeça.
Não me arrependo de nada, pensou, enquanto seguia o caminho até a torre que ele próprio construíra e onde costumava ficar a espera daves noturnas. Não me arrependo de nada porque não faz sentido arrependermo-nos.
Estava uma bonita noite de setembro. Apesar disso, alguma coisa o preocupava.
Parou no caminho e escutou. Mas tudo o que se ouvia era a fraca brisa. Continuou a andar. Talvez fosse a dor que o preocupava? As guinadas repentinas nas costas? A preocupação era alguma coisa que tinha raízes dentro dele.
Parou novamente e virou-se, mas não viu nada. Estava sozinho.
O caminho descia. Depois chegaria a uma pequena elevação, mas antes havia uma valeta larga onde tinha colocado um pontão. No topo estava então a sua torre. Da porta da casa eram exatamente duzentos e quarenta e sete metros. Refletiu sobre quantas vezes teria feito esta caminhada. Conhecia cada curva, cada cavidade, mas apesar disso andou devagar e cautelosamente. Não queria correr o risco de cair e partir uma perna. O esqueleto dos velhos era frágil, ele sabia. Caso fosse parar num hospital com fratura de fêmur, morreria porque não suportaria estar inativo numa cama de hospital. Começaria a meditar sobre a sua vida. E nessa altura nada o poderia salvar.
De repente parou. Uma coruja piou e por perto partiu-se um ramo. O som veio do conjunto de árvores do lado de lá da elevação onde tinha a sua torre. Ficou imóvel com todos os sentidos atentos. A coruja piou novamente. O silêncio voltou. Ao prosseguir praguejou descontente.
Velho e preocupado, pensou. Com medo de fantasmas e da escuridão.
Já conseguia ver a torre, uma sombra preta que se desenhava no céu da noite. Mais vinte metros e estaria no pontão sobre a valeta funda. Continuou a andar. já não se ouvia a coruja. Uma coruja castanha, pensou.
Com certeza era uma coruja castanha.
De repente parou. Nessa altura já tinha chegado ao pontão sobre a valeta.
Havia alguma coisa estranha com a torre. Alguma coisa era diferente. Franziu os olhos para distinguir pormenores na escuridão. Não conseguiu determinar o que era, mas alguma coisa tinha sido mudada.
Estou imaginando coisas. Tudo está como de costume. A torre que construí há dez anos não mudou, são os meus olhos que se tornaram turvos. Nada mais. Deu mais um passo para passar no pontão e sentiu as tábuas por baixo dos pés. Continuou a observar a torre.
Não está certo, pensou. Se não soubesse, era capaz de jurar que aumentou um metro de ontem à noite para hoje. Ou que tudo é um sonho, que vejo a minha própria figura lá no cimo da torre.
No preciso instante em que o pensamento lhe surgiu percebeu que era verdade. Alguém estava lá em cima. Uma sombra imóvel. Um repentino sopro de medo passou no seu interior, como uma brisa solitária. Depois ficou zangado. Alguém invadira o seu território, subira à sua torre sem sequer pedir autorização. Provavelmente tratava-se de um caçador furtivo, a vigiar um dos veados que costumavam andar no meio do conjunto de árvores do lado de lá do morro. Tinha dificuldade em imaginar que poderia ser um outro observador de aves.
Gritou para a sombra na torre. Nenhuma resposta, nenhum movimento, mas mais uma vez teve dúvidas. Tinham que ser os olhos que estavam turvos e o atraiçoavam.
Gritou mais uma vez sem obter resposta. Depois começou a andar pelo pontão.
Quando as tábuas se partiram, caiu desamparado. A valeta tinha mais de dois metros de profundidade. Caiu de frente e não teve tempo de esticar os braços para se amparar.
Sentiu uma dor aguda. Não veio de lado nenhum mas atravessou-lhe o corpo. Era como se alguém lhe encostasse ferros em brasa em diferentes pontos do corpo. A dor era tão forte que nem sequer conseguiu gritar. Antes de morrer percebeu que nunca tinha chegado ao fundo da valeta, que ficara suspenso na sua própria agonia.
O seu último pensamento foi para as aves da noite que voavam algures por cima dele.
O céu que se movia para o sul.
Tentou uma última vez libertar-se da dor. Depois tudo acabou.
Passavam vinte minutos das onze, na noite de 21 de setembro de 1994. Precisamente nesta noite, grandes bandos de tordos voaram para sul. Vieram do norte e passavam num troço a sudoeste exatamente por cima de Falsterbo, a caminho do calor que lá longe os esperava.
Quando tudo ficou quieto, desceu cuidadosamente a escada da torre. Ela apontou a lanterna para dentro da valeta. O homem, de nome Holger Eriksson, estava morto.
Apagou a lanterna e ficou quieta na escuridão. Depois afastou-se rapidamente do local.
2
Na manhã de segunda feira, 26 de setembro, logo depois das cinco horas, Kurt Wallander acordou no seu apartamento da Mariagatan no centro de Ystad.
A primeira coisa que fez quando abriu os olhos foi olhar para as mãos. Estavam bronzeadas. Encostou-se novamente na almofada e ouviu a chuva de outono bater na janela do quarto. Uma sensação de bem-estar invadiu-o ao recordar a viagem que chegara ao fim há dois dias, no aeroporto de Kastrup. Estivera uma semana inteira com o pai em Roma. Tinha estado muito calor e tinha ficado bronzeado. Durante a tarde, quando o calor estava mais forte, procuravam um banco na Villa Borghese, onde o pai podia ficar à sombra, enquanto ele tirava a camisa e fechava os olhos virado para o sol. Tinha sido a única disputa durante a viagem, o pai não conseguia entender como podia ser tão fútil que desperdiçasse tempo a bronzear-se. Mas a divergência tinha sido insignificante, quase como se tivesse surgido para lhes dar sentido à viagem.
Que viagem feliz, pensou Wallander deitado na cama. Fomos a Roma, o meu pai e eu, e correu tudo bem. Correu melhor do que podia ter imaginado ou esperado.
Olhou para o relógio em cima da mesa ao lado da cama. Voltaria ao serviço naquela manhã, mas não tinha pressa. Podia ficar na cama muito mais tempo. Inclinou-se para cima do monte de jornais que tinha folheado na noite anterior, e começou a ler sobre o resultado das eleições legislativas. Como estivera em Roma no dia das eleições, votara pelo correio. Agora constatava que os social-democratas tinham alcançado pouco mais de 45 por cento. Mas o que significaria isso na realidade? Algumas alterações? Deixou o jornal cair ao chão, optando por regressar uma vez mais a Roma, em pensamento.
Tinham ficado num hotel barato nas proximidades de Campo dei Flori. De um terraço por cima dos seus quartos tinham uma bonita vista sobre toda a cidade. Lá tomavam o café da manhã e planeavam o programa do dia. Nunca tinham surgido discussões. O pai de Wallander soubera, o tempo todo, o que queria ver. Wallander, por vezes, preocupava-se, porque o pai queria demasiado e talvez não aguentasse. Também tinha estado permanentemente atento a sinais de o pai estar confuso ou ausente. A doença avançava, sorrateiramente, os dois sabiam, a doença com um nome estranho, a doença de Alzheimer. Mas durante toda essa semana, a viagem correu bem, o pai esteve muito bem-disposto. Wallander sentiu um nó na garganta por a viagem ja pertencer ao passado, tinha-se tornado passado e agora existia apenas como uma memória. Não tornariam a Roma, esta vez fora a única que tinham feito a viagem, ele e o pai que brevemente iria fazer oitenta anos.
Tinha havido momentos de grande intimidade entre ambos, pela primeira vez em quase quarenta anos.
Wallander pensou na descoberta que fizera, as semelhanças entre ambos, muito maiores do que ele teria tido vontade de admitir anteriormente. Não menos importante, eram duas pessoas definitivamente madrugadoras. Quando Wallander informou o pai de que o hotel não servia café da manhã antes das sete da manhã, este protestou. Levou Wallander à recepção e, numa mistura de dialeto, algumas palavras em inglês, eventualmente uma ou outra em alemão, para não falar de uma série de palavras soltas sem nexo em italiano, tinha conseguido esclarecer que queria breakfast presto. Não tardi. Absolutamente não tardi. Por alguma razão também tinha dito várias vezes passaggio a livello quando falava da necessidade de o hotel antecipar o serviço do pequeno-almoço, pelo menos uma hora, para as seis, a hora em que teriam que lhes servir o café ou seriam forçados a procurar outro hotel. Passaggio a livello, dizia o pai, e o pessoal do hotel olhara-o com espanto mas também com respeito.
Naturalmente passaram a tomar o café da manhã às seis. Wallander mais tarde vira no dicionário que passaggio a livello significava passagem de nível. Deduziu que o pai a tinha confundido com outra coisa, mas não percebeu com quê, e tinha suficiente bom senso para não perguntar.
Wallander ouvia a chuva. A viagem a Roma, uma curta e única semana, que na sua memória era uma experiência imensa e deslumbrante.
O pai não tinha somente decidido a que horas queria tomar o café da manhã, mas também tinha conduzido o filho com clarividência e autoconfiança pela cidade, e sabia o que queria ver. Nada tinha sido feito de improviso, Wallander percebera que o pai planejara esta viagem toda a vida. Era uma caminhada, uma peregrinação, na qual ele próprio se tinha permitido participar. Fazia parte da viagem do pai, como um ingrediente, um servo invisível mas constantemente presente. Havia um significado secreto na viagem, que nunca iria entender completamente.
O pai tinha ido a Roma para ver alguma coisa que, no seu íntimo, parecia já ter visto.
No terceiro dia tinham visitado a Capela Sistina. Durante quase uma hora o pai de Wallander ficara a contemplar o teto pintado por Miguel Ângelo. Tinha sido como ver um velho dirigir uma oração sem palavras diretamente para o céu. O próprio Wallander acabou por ficar com dores na nuca e ter que desistir. Entendeu que viu alguma coisa de extraordinariamente belo, mas percebeu que o pai tinha visto muito mais. Por breves instantes interrogara-se irreverentemente se o pai procurava um galo silvestre ou um pôr do Sol naquele enorme fresco, mas arrependeu-se. Não havia dúvida de que o pai, apesar de ser um pintor de feira, ficara a olhar uma obra de mestre com solenidade e entrega.
Wallander abriu os olhos. A chuva tamborilava.
Foi nessa mesma noite, a terceira na contagem das férias romanas, que teve um pressentimento que o pai estava a preparar algo que queria guardar em segredo. De onde vinha essa sensação não sabia. jantaram na Via Veneto, demasiado caro, achou Wallander, mas o pai teimava que podiam gastar. Era a primeira e última viagem a Roma, então podiam, ao menos, comer bem. Depois andaram devagar a pé pela cidade até ao hotel. A noite estava amena, em todo o lado estiveram rodeados por gente e o pai de Wallander falara do fresco do teto da Capela Sistina. Por duas vezes se enganaram no caminho antes de chegarem ao hotel.
O pai foi acolhido com grande respeito após a sua revolta a propósito do café da manhã, receberam as chaves, seguidos de vênias cordiais e subiram aos quartos. Despediram-se no corredor e fecharam as portas. Wallander deitou-se a ouvir os sons que se infiltravam vindos da rua. Talvez estivesse a pensar em Balba, talvez estivesse a adormecer.
Subitamente, porém, ficou completamente desperto, pois alguma coisa o preocupava. Passado uns instantes vestiu o roupão e desceu à 30 recepção. Estava tudo muito calmo, o porteiro da noite estava a olhar para uma pequena televisão, com o som baixo, na pequena sala atrás da recepção. Wallander comprou uma garrafa de água mineral. O recepcionista era um jovem que trabalhava de noite para financiar os seus estudos de teologia. Tinha contado isso a Wallander logo na primeira vez que ele descera à recepção para comprar água. Tinha cabelo escuro ondulado, nascera em Pádua, chamava-se Mário e falava um inglês excelente. Wallander estava com a garrafa de água na mão quando de repente ouviu a sua própria voz pedir ao jovem porteiro para subir ao quarto e O acordar, caso o pai surgisse na recepção durante a noite, e abandonasse o hotel. O recepcionista olhou para ele, talvez tivesse ficado surpreendido, mas talvez trabalhasse já há tempo suficiente para nenhum desejo noturno dos hóspedes o conseguir surpreender. Tinha acenado afirmativamente com a cabeça e dito, claro, caso o velho senhor Wallander saísse de noite, iria imediatamente bater à porta do quarto 32.
Na sexta noite aconteceu. Naquele dia tinham andado no Forum Romanum e tinham feito também uma visita à Galeria Doria Pamphili. À noite tinham andado pelas passagens escuras subterrâneas que conduziam da Villa Borghese à Escada de Espanha e jantado onde Wallander ficou de boca aberta ao ver a conta. Foi uma das últimas noites da viagem, que já nessa altura não poderia tornar-se noutra coisa senão numa viagem feliz, a aproximar-se do fim. O pai de Wallander demonstrou a mesma energia e curiosidade inquebrantáveis durante toda a semana. Tinham andado a pé pela cidade e pararam num café para beber um expresso e brindar com um cálice de grapa. No hotel deram-lhes as chaves, a noite estava tão amena como as outras durante essa semana de setembro, e Wallander adormeceu assim que se deitou.
Era uma e meia quando bateram à porta.
Primeiro não sabia onde estava, mas quando saltou da cama atordoado e abriu a porta lá estava o porteiro explicando no seu excelente inglês que o velho senhor, que era o pai de signor Wallander, tinha acabado de deixar o hotel. Wallander enfiou a roupa. Quando chegou à rua, viu o pai do outro lado a afastar-se com passos determinados. Wallander seguiu-o à distância, pensou que era a primeira vez que espiava o seu próprio pai, e percebeu que o seu pressentimento tinha batido certo. No princípio Wallander não estava seguro a respeito do caminho que levava. Depois quando as ruas estreitaram, percebera que estavam a caminho da Escada de Espanha. Mantivera a distância do pai. E depois, na amena noite romana, vira-o subir os muitos degraus da Escada de Espanha, até a igreja com as duas torres. Lá em cima, no alto, sentara-se, parecia um ponto preto, e Wallander permanecera escondido nas sombras. O pai ficara naquele lugar quase uma hora, depois levantara-se e descera a escada. Wallander continuara a segui-lo, tinha sido a tarefa mais secreta que alguma vez tinha executado, e em breve estavam junto a Fontana di Trevi, para onde o pai não atirou nenhuma moeda, mas ficou a contemplar a água que jorrava da grande fonte. Nessa altura a cara do pai estava tão bem iluminada por um candeeiro público que Wallander até tinha conseguido vislumbrar um brilho nos seus olhos.
Depois regressaram ao hotel.
No dia seguinte estavam sentados no avião da Alitália em direção a Copenhagen, o pai num lugar à janela tal como na viagem de ida, e Wallander reparava como as suas mãos tinham ficado bronzeadas. Somente no ferry de volta para Liinharan, Wallander tinha perguntado se o pai estava contente com a viagem. Ele acenara com a cabeça, murmurando algo imperceptível e Wallander sabia que não podia esperar mais entusiasmo do que isso. Gertrud esperava-os em Liinharan e levara-os a casa. Deixaram Wallander em Ystad e mais tarde, à noite, quando telefonara a perguntar se tudo estava bem, Gertrud respondera que o seu pai já estava no ateliê pintando o motivo constantemente repetido, o pôr do sol sobre uma paisagem serena sem vento.
Wallander levantou-se da cama e foi para a cozinha. Eram cinco e meia. Fez café. Por que é que tinha saído na noite? Por que ficara sentado na escada? O que justificava o brilho nos olhos do pai junto à fonte? Não tinha respostas, mas tinha tido uma súbita visão da paisagem interior secreta do seu pai. Também bom senso suficiente para ficar do lado de fora da cerca invisível. Também jamais lhe iria perguntar sobre o passeio solitário daquela noite em Roma.
Enquanto o café acabava de fazer, Wallander foi à casa de banho. Reparou satisfeito que tinha um ar saudável e enérgico. O sol tinha-lhe aclarado o cabelo e talvez todo aquele espaguete o tivesse engordado. Mas não quis saber da balança. Sentia-se revigorado, que era o mais importante, e contente por ter realizado a viagem.
A sensação de que brevemente, dentro de apenas aproximadamente uma hora, se tornaria novamente policial não lhe causava qualquer desconforto. Frequentemente, depois das férias, tinha tido dificuldade em regressar ao trabalho. Sobretudo nos últimos anos, sentira uma aversão muito grande e, também, periodicamente, tinha andado com sérias reflexões de deixar a polícia e procurar outro trabalho, talvez como responsável pela segurança de alguma empresa. Mas, afinal, ele era policial. Essa constatação tinha amadurecido lentamente, mas era irrevogável: nunca poderia exercer outra atividade.
Enquanto tomava banho pensou nos acontecimentos de há uns meses atrás, durante o verão quente, e no campeonato mundial de futebol que tanta sorte trouxera à Suécia. Pensou ainda angustiado na caça infrutífera ao assassínio em série que se verificara, por fim, tratar-se de um rapaz enlouquecido somente com catorze anos. Durante a semana em Roma tinham sido varridos da consciência todos os pensamentos dos acontecimentos revoltantes do verão anterior. Agora regressavam. Uma semana em Roma não alterara nada, visto que era a esse mundo que agora regressava.
Ficou sentado à mesa da cozinha até passar das sete. A chuva caía ininterruptamente, o calor italiano já era uma memória distante.
O outono tinha chegado a Scania.
Quando o relógio marcava sete e meia saiu do apartamento e conduziu o carro até a central. O seu colega Martinsson chegou ao mesmo tempo e estacionou ao lado dele. Cumprimentaram-se de passagem na chuva e apressaram-se a entrar na central .
– Como correu a viagem? – perguntou Martinsson. – A propósito, bem-vindo de volta.
– Meu pai estava muito contente – retorquiu Wallander.
– E tu?
– Foi uma viagem bonita. E quente.
Entraram. Ebba, que era recepcionista na Polícia de Ystad há mais de trinta anos, cumprimentou-o com um grande sorriso.
– Consegue-se ficar tão queimado em ltália em setembro? – perguntou espantada.
– Sim – respondeu Wallander. – Ao sol.
Passaram pelo corredor. Wallander pensou que devia ter comprado alguma coisa para Ebba. Ficou irritado pela sua falta de tato.
– Por cá, está tudo calmo – disse Martinsson. – Nada de sério. Quase mesmo nada, – Talvez possamos esperar um outono calmo – respondeu Wallander hesitante.
Martinsson desapareceu para ir buscar café. Wallander abriu a porta do seu gabinete. Tudo se encontrava como tinha deixado. A mesa estava vazia. Pendurou o casaco e abriu ligeiramente a janela. Num cesto de correio alguém tinha colocado uma série de memorandos da Direção Nacional da Polícia. Puxou pelo primeiro mas deixou-o cair em cima da mesa sem o ler.
Pensou na complicada investigação do contrabando de automóveis entre a Suécia e os países do leste, da qual se ocupava havia quase um ano. Caso não tivesse acontecido nada de especial durante a sua ausência, continuaria a dedicar-se a essa investigação.
Perguntou-se se seria forçado a dedicar tempo a isso nos quinze anos que ainda lhe faltavam para a reforma.
Às oito e 15 levantou-se e entrou na sala de reuniões. Quinze minutos mais tarde, os policiais criminais de Ystad reuniram-se para uma revisão do trabalho previsto para a semana. Deu uma volta à sala para os cumprimentar. Todos admiraram o seu bronzeado. Depois sentou-se no lugar do costume. Notou que o ambiente era o habitual numa segunda-feira de manhã de outono, cinzento e cansado, um pouco ausente. Por instantes refletiu sobre quantas segundas-feiras teria estado naquela sala. Uma vez que a nova chefe, Lisa Holgersson, estava em Estocolmo, Hansson dirigiu a reunião. Martinsson tinha razão, não tinha havido muitos acontecimentos na semana em que Wallander esteve fora.
– Suponho que possa regressar aos meus carros de contrabando – disse Wallander e não tentou ocultar a sua frustração.
– A não ser que queiras dedicar-te a um furto – retorquiu Hansson –numa loja de flores.
Wallander olhou para ele surpreendido.
– Furto numa loja de flores? O que roubaram? Tulipas?
– Nada que tenhamos conseguido descobrir – respondeu Svedberg e coçou a careca.
Nesse momento abriu a porta e Ann-Britt Höglund entrou apressada. Como o marido dela era mecânico e parecia estar sempre em viagem num país distante do qual ninguém sequer tinha ouvido falar, vivia sozinha com dois filhos. As suas manhãs eram caóticas e frequentemente chegava atrasada às reuniões. Ann-Britt Höglund estava na Polícia de Ystad há pouco mais de um ano. Era a agente criminal mais nova da central. No princípio alguns dos policiais mais velhos, tais como Svedberg e Hansson, mostraram abertamente o seu descontentamento de ficar com uma colega mulher. Mas Wallander, que muito cedo tinha percebido que ela tinha grande queda para a profissão, defendeu-a, e já ninguém comentava o fato de ela chegar frequentemente atrasada. Pelo menos quando ele estava por perto. Sentou-se num dos lados da mesa e acenou alegremente a Wallander, como se tivesse ficado surpreendida por ele ter regressado.
– Estamos falando sobre a loja de flores – anunciou Hansson depois de ela se sentar. – Pensamos que talvez Kurt pudesse ver o caso.
– O roubo aconteceu na noite de quinta-feira – disse ela. – A empregada da loja descobriu-o quando chegou na sexta-feira de manhã. Os ladrões tinham entrado por uma janela nas traseiras do prédio.
– O que roubaram? – perguntou Wallander.
– Nada.
Wallander fez uma careta.
– O que significa isso? Nada?
Ann-Britt Höglund encolheu os ombros.
– Nada significa nada.
– Havia manchas de sangue no chão – disse Svedberg. – E o dono está fora.
– Parece tudo muito esquisito – observou Wallander. – Será que vale realmente a pena perder tempo com isso?
– O caso é estranho – disse Ann-Britt Höglund. – Mas não sei se vale a pena perder tempo com ele.
Wallander pensou rapidamente que, de qualquer maneira, se livrava de ter que mergulhar na desesperada investigação sobre todos os automóveis que, num fluxo constante, eram levados ilegalmente para fora do país. Daria a si mesmo um dia para se habituar à ideia de que já não estava em Roma.
– Posso dar uma olhada – sugeriu.
– Sou eu quem está com o caso – disse Ann-Britt Höglund. – A loja é no centro.
A reunião acabou. A chuva continuava. Wallander foi buscar o casaco. Conduziu o seu automóvel até ao centro.
– Como correu a viagem? – perguntou-lhe ela quando pararam junto a um semáforo à frente do hospital.
– Vi a Capela Sistina e vivi com um pai bem-disposto uma semana inteira – respondeu Wallander enquanto olhava a chuva lá fora.
– Parece ter sido uma boa viagem – notou ela. O semáforo mudou para verde e continuaram. Ela indicava o caminho, uma vez que ele não sabia onde ficava a loja de flores.
– Como estão as coisas por cá? – inquiriu Wallander – Numa semana nada mudou – respondeu. – Tem estado calmo.
– E a nossa nova chefe?
– Está em Estocolmo discutindo as novas propostas de redução de custos. Provavelmente vai se sair-sebem. Pelo menos tão bem como Bjõrk.
Wallander lançou-lhe um rápido olhar.
– Pensei que nunca gostaste dele.
– Fazia o melhor que podia. O que se pode esperar mais?
– Nada – disse Wallander. – Absolutamente nada.
Pararam na Västra Vallgatan, na esquina de Pottmakargränd. A loja de flores chamava-se Cymbia. A tabuleta abanava ao vento. Ficaram no carro. Ann-Britt Höglund deu-lhe uns papéis dentro de uma capa de plástico e Wallander deu uma olhadela enquanto escutava.
– O dono da loja se chama Gösta Runfeldt e foi viajar. A empregada chegou à loja uns minutos antes das nove na manhã de sexta-feira. Descobriu que um vidro de uma janela dos fundos estava partido e havia cacos de vidro tanto dentro como fora da janela. No chão da loja havia manchas de sangue, mas nada parecia ter sido roubado. Também não guardavam dinheiro na loja durante a noite. Telefonou à Polícia, passavam três minutos das nove. Cheguei ao local logo a seguir às dez, estava tudo como ela dissera. Uma janela partida e manchas de sangue no chão. Nada roubado. Um pouco esquisito tudo aquilo. Wallander refletiu.
– Nem sequer uma única flor? – perguntou.
– Foi o que a empregada afirmou.
– Será que é possível saber o número exato de flores em cada jarro ? Devolveu-lhe os papéis.
– Podemos perguntar-lhe – disse Ann-Britt Höglund. – A loja está aberta.
Uma campainha antiquada soou quando Wallander abriu a porta. os cheiros dentro da loja faziam-lhe lembrar os jardins de Roma. Não havia clientes. Uma mulher dos seus cinquenta anos saiu de uma salinha de dentro. Ao vê-los, cumprimentou– os.
– Trouxe um colega – anunciou Ann-Britt Höglund. Wallander cumprimentou-a.
– Já li sobre si nos jornais – disse a mulher.
– Espero não ter sido nada negativo – observou Wallander.
– Ai não – respondeu a mulher. – Apenas palavras simpáticas. Wallander tinha reparado, nos papéis que Ann-Britt Höglund lhe mostrara no carro, que a mulher que trabalhava na loja se chamava Vanja Andersson e tinha 53 anos.
Wallander movia-se lentamente às voltas na loja. Via bem onde punha os pés, um velho e bem enraízado hábito. O ar úmido do cheiro a flores continuava a enchê-lo de memórias. Passou para trás do balcão e parou junto a uma porta que dava para as traseiras, cuja metade superior era constituída por uma janela de vidro. A massa de vidraceiro era fresca, fora por ali que o ladrão ou os ladrões entraram. Wallander observou o chão que tinha ladrilhos de plástico colados.
– Suponho que foi aqui que havia sangue – disse.
– Não – respondeu Ann-Britt Höglund. – As manchas de sangue estavam dentro da loja.
Wallander franziu a testa surpreendido. Depois acompanhou-a de volta por entre as flores. Ann-Britt ficou parada no meio da loja.
– Aqui – indicou. – Precisamente aqui.
– Mas nenhum sangue junto aos vidros partidos da janela?
– Nada. Agora entendes por que acho que é tudo muito esquisito? Por que sangue aqui? E nada junto à janela? Caso se admita, por princípio, que quem partiu o vidro se tenha cortado? – Quem poderia ter sido? – disse Wallander.
– É isso mesmo. Quem poderia ter sido? Wallander deu mais uma volta na loja, tentando imaginar como tudo se tinha passado. Alguém partira o vidro e entrara na loja, e no meio do chão havia sangue, mas nada fora roubado.
Cada crime obedecia a alguma espécie de plano ou direção, tirando OS Crimes puramente loucos. Sabia isso ao fim de muitos anos de experiência. Mas ninguém cometia a loucura de assaltar uma loja de flores para não roubar nada, pensou Wallander.
Simplesmente não fazia sentido.
– Suponho que tenha sido sangue que pingou – teorizou. Para sua surpresa, Ann-Britt abanou a cabeça.
– Era uma pequena poça – explicou. – Nada de pingos. Wallander pensou. Mas não disse nada. Não tinha nada para dizer. Depois virou-se para a empregada que estava à espera ao fundo.
– Portanto, não roubaram nada? – Nada.
– Nem sequer umas flores? – Não que tivesse descoberto.
– Sabe de fato exatamente quantas flores tem na loja em cada altura? -Sim.
A resposta veio rapidamente e com determinação. Wallander acenou com a cabeça.
– Tem alguma explicação para este assalto? – Não.
– Não é a proprietária do estabelecimento? – Não, o dono chama-se Gösta Runfeldt. Trabalho para ele.
– Se entendi bem, está fora? Tem estado em contato com ele? – Não é possível.
Wallander olhou para ela com atenção.
– Por que não é possível? – Ele está num safari de orquídeas em África. Wallander refletiu rapidamente no que ouviu.
– Pode explicar algo mais? Safari de orquídeas? – Gösta tem uma paixão por orquídeas – disse Vanja Andersson.
– Sabe tudo sobre orquídeas. Viaja pelo mundo para ver as espécies que existem. Está a escrever um livro sobre a história das orquídeas. Neste momento está em África, mas não sei onde. Só sei que regressa na quarta-feira da próxima semana.
Wallander acenou.
– Vamos ter que falar com ele quando regressar – disse Wallander. – Talvez possa pedir-lhe para nos contatar na central ? Vanja Andersson prometeu transmitir a informação. Um cliente entrou na loja e Ann-Britt Höglund e Wallander saíram para a chuva. Sentaram-se no carro. Wallander aguardou antes de ligar o motor.
– Evidentemente pode imaginar-se um ladrão que comete um erro – afirmou. – Um ladrão que parte a janela errada. Há uma loja de computadores logo ao lado.
– Mas a poça de sangue?
Wallander encolheu os ombros.
– O ladrão talvez não tenha notado que se cortou. Ficou parado com o braço caído a olhar à sua volta. O sangue pingava. E sangue que pinga no mesmo lugar forma mais cedo ou mais tarde uma poça.
Ela acenou. Wallander ligou o motor.
– Trata-se de um assunto para os seguros – disse Wallander. – Só isso.
Regressaram à central debaixo de chuva. O relógio marcava onze horas.
Segunda-feira, dia 26 de setembro de 1994.
3
Na cabeça de Wallander, a viagem a Roma começava a desaparecer, desvanecendo-se lentamente como uma miragem.
Na terça-feira, 27 de setembro, a chuva continuava a cair sobre a Scania. Os meteorologistas tinham prognosticado que o verão quente iria ser seguido por um outono chuvoso. Até agora nada acontecera que contradissesse aquelas previsões.
Na noite anterior, quando Wallander chegou a casa depois do seu primeiro dia de trabalho, após a viagem a Itália, preparou uma refeição rápida, que a seguir comeu com relutância, e fez várias tentativas para contatar a sua filha Linda que morava em Estocolmo. Tinha aberto a porta da varanda porque a chuva tinha feito um breve intervalo. Sentiu que tinha ficado irritado pelo fato de Linda não ter dado sinal de si para lhe perguntar como tinha sido a viagem. Tentou convencer-se, no entanto, mas sem grande sucesso, de que tal se devia ao fato de ela ter muito que fazer. Precisamente neste outono, conciliara os estudos numa escola privada de teatro com o trabalho de empregada de mesa num restaurante em Kungsholmen.
Pelas onze horas também telefonou para Balba em Riga. Nessa altura já tinha recomeçado a chover e o vento também voltara. Começava a sentir dificuldade em recordar os dias quentes de Roma.
Todavia, se por acaso fizera outra coisa em Roma que não fosse gozar o calor e servir de companhia ao pai, fora pensar em Balba. Pensar quando há uns meses, em pleno verão, num dos últimos dias da viagem que tinham feito à Dinamarca, e Wallander, esgotado e deprimido pela árdua caça ao assassino de 14 anos, lhe perguntara se ela queria casar com ele. Ela tinha respondido evasivamente, sem necessariamente fechar todas as portas à sua volta, mas também não tentou ocultar as razões da sua hesitação. Tinham passeado ao longo da extensa praia junto a Skagen onde os dois mares se encontram, e onde, de resto, Wallander muitos anos antes tinha passeado com a sua anterior mulher, Mona, e posteriormente, quando estava deprimido e ponderava seriamente deixar a Polícia. As noites tinham sido quase tropicais, com muito calor. Sentira que algures um campeonato mundial de futebol prendia as pessoas aos seus aparelhos de televisão e tornava as praias invulgarmente desertas. Vaguearam por lá, apanharam pedras e conchas e Balba disse que duvidava de que fosse capaz de viver outra vez com um policial – Karlis, o marido anterior, major da Polícia lituana, fora assassinado em 1992. Wallander conhecera-a nessa altura, numa época confusa e irreal em Riga. Em Roma Wallander tinha voltado a pôr a questão a si próprio, se na realidade queria voltar a casar-se. Tinha alguma necessidade de se casar? De se prender em laços complicados e formais que quase nem sequer tinham qualquer valor neste tempo que era o dele? Tinha vivido um longo matrimônio com a mãe de Linda, quando ela, havia cinco anos, um dia subitamente o confrontara com o fato de se querer divorciar. Tinha ficado totalmente perplexo. Somente agora julgava ser capaz de entender e até aceitar parcialmente as razões de ela querer começar uma nova vida. Agora conseguia entender por que acontecera o que tinha que acontecer. Foi capaz de observar o seu papel no desenlace, inclusivamente confessar que, devido à sua constante ausência e desinteresse crescente por aquilo que era importante na vida dela, carregava a parte mais pesada da culpa. Caso se pudesse falar de culpa, pois uma parte do caminho andava-se lado a lado. Depois os caminhos podiam dividir-se, tão lenta e impercetivelmente que só quando era demasiado tarde se tornava evidente, mas nessa altura já tudo estava fora de qualquer controle.
Tinha pensado neste assunto durante os dias em Roma, quando finalmente chegara à conclusão que, de fato, queria casar-se com Balba. Queria que ela mudasse para Ystad. E tinha também decidido que agora iria trocar o apartamento na Mariagatan por uma moradia. Algures fora da cidade, com um jardim já desenvolvido. Uma casa barata, mas num estado que permitisse que ele próprio conseguisse executar todas as reparações. Também pensara em arranjar um cão, o seu sonho de há muito tempo.
Tinha falado sobre tudo isso com Balba naquela segunda-feira à noite quando voltara a chover sobre Ystad. Era como uma continuação da conversa que tivera consigo mesmo em Roma. Naquela altura também falara com ela, apesar de não estar presente. Nalgumas ocasiões começara a falar alto sozinho. Evidentemente não escapara ao pai, que naquele calor avançava ao seu lado em passos pesados. O pai perguntara sarcasticamente, mas não sem um toque amoroso, qual dos dois estava na realidade a envelhecer e a ficar mentalmente confuso.
Ela atendeu imediatamente quando ele telefonou. Conseguiu perceber que parecia feliz. Ele falou da viagem e depois repetiu a pergunta do verão. Por curtos instantes o silêncio caminhava entre Riga e Ystad. Depois ela disse que também tinha andado a pensar. A sua hesitação prevalecia, não diminuíra, mas também não aumentara.
– Vem para cá – disse Wallander. – Não é assunto para ser tratado pelo telefone.
– OK – respondeu. – Vou aí.
Não combinaram quando, mas falariam disso mais tarde. Ela tinha o seu trabalho na Universidade de Riga e as folgas tinham que ser planeadas com muita antecedência.
Quando Wallander desligou, pareceu-lhe sentir uma certeza que agora estava a caminho de uma nova etapa na sua vida. Ela viria e casar-se-ia novamente.
Nessa noite levou tempo a adormecer. Levantou-se várias vezes da cama, ficando junto à janela da cozinha a olhar a chuva. Pensou que iria sentir falta do candeeiro público que lá fora abanava sozinho ao vento.
Apesar de ter dormido pouco levantou-se cedo na terça-feira de manhã. Passava das sete horas quando estacionou o carro junto a central e correu depressa fugindo da chuva e do vento. Ao entrar no seu gabinete ja tomara a decisão de pegar no extenso material sobre o furto de automóveis. Quanto mais adiava este trabalho, maior seria o peso da aversão e falta de inspiração. Para secar, pendurou o casaco na cadeira dos visitantes. Depois tirou duma prateleira a pilha de quase meio metro de altura com o material de investigação. Acabara de organizar as capas quando bateram à porta. Wallander ouviu que era Martinsson. Mandou-o entrar.
– Quando tu estás fora, sou sempre o primeiro de manhã – disse Martinsson. – Agora estou transformado novamente em segundo homem.
– Tive saudades dos meus automóveis – respondeu Wallander e apontou para as capas que enchiam a secretária.
Martinsson tinha um papel na mão.
– Esqueci de te dar isto ontem – disse. – Lisa Holgersson queria que visses.
– O que é?
– Lê com os teus próprios olhos. Como sabes, as pessoas entendem que nós, policiais, devemos pronunciar-nos sobre tudo e mais alguma coisa.
– Trata-se de emitir uma opinião?
– Mais ou menos.
Wallander olhou interrogativo para Martinsson, que raramente dava respostas efusivas. Havia uns anos este militara no partido liberal e certamente alimentara sonhos de uma carreira política. Segundo o que Wallander sabia, esse sonho tinha serenamente definhado ao mesmo ritmo a que todo o partido tinha diminuído. Optou por não comentar o resultado do partido nas eleições da semana anterior.
Martinsson foi embora. Wallander sentou-se na cadeira e leu o papel que lhe fora entregue. Depois de o ter lido duas vezes, ficou zangado. já não se lembrava da última vez que ficara tão revoltado. Saiu para o corredor e entrou no gabinete de Svedberg onde, como habitualmente, a porta estava ligeiramente entreaberta.
– Já viste isto? – perguntou Wallander sacudindo o papel que Martinsson lhe dera.
Svedberg abanou a cabeça.
– O que é?
– É de uma organização recém-criada que quer saber se a Polícia tem algo a objetar a respeito do nome.
– E qual é o nome?
–Os Amigos do Machado.
Svedberg olhou para Wallander perplexo.
– Os Amigos do Machado?
– Os Amigos do Machado. E agora querem saber, baseados no que aconteceu aqui no verão passado, se o nome pode ser eventualmente mal interpretado. Esta organização não tem como objetivo ir para a rua e escalpelar gente.
– Então qual é o objetivo?
– Se entendi bem, é uma espécie de organização local, que quer tentar criar um museu de velhas ferramentas.
– Parece OK. Por que estás tão furioso?
– Porque consideram que a Polícia tem tempo para se pronunciar sobre coisas assim. Pessoalmente talvez ache que Os Amigos do Machado seja um nome peculiar para uma organização deste tipo. Mas como policial, fico revoltado por termos que dedicar tempo a coisas deste tipo.
– Diz isso ao chefe.
– É isso mesmo que vou fazer.
– Provavelmente não vai estar de acordo contigo. Agora vamos todos ser policiais próximos dos cidadãos.
Wallander percebeu que o mais certo era Svedberg ter razão. Durante os longos anos em que tinha sido policial, a corporação tinha passado por enormes e radicais mudanças, já para não falar da relação sempre complicada com a sombra pouco nítida e ameaçadora que dá pelo nome de "a comunidade". Esta comunidade, que pairava como um pesadelo sobre a Direção Nacional da Polícia, bem como sobre o policial individual, apenas era identificada por uma coisa: Deslealdade. A última tentativa de satisfazer esta comunidade era agora transformar toda a corporação da polícia sueca num policial próximo do cidadão, mas ninguém sabia como isso se iria processar. O Comandante Nacional da Polícia afixara em todas as portas por onde passara as suas teses sobre como era importante que a Polícia estivesse visível. Mas uma vez que nunca ninguém tinha ouvido falar de uma Polícia invisível, também não se entendia como esta nova liturgia ia ser cumprida. já se faziam as patrulhas a pé. Atualmente os policiais também andavam alegremente às voltas de bicicleta em pequenos minicomandos. O Comandante Nacional falava provavelmente sobre uma presença espiritual. Daí ter-se limpado novamente o pó ao projeto da Polícia próxima do cidadão. Polícia próxima do cidadão parecia simpático, como uma almofada macia sob a cabeça. Porém, como na realidade se articularia isso com o fato de a criminalidade na Suécia estar a aumentar e a tornar-se mais violenta, ninguem conseguia explicar bem. No entanto, esta nova estratégia implicava certamente que se devia dedicar tempo a opinar sobre se era conveniente que uma organização local se chamasse Os Amigos do Machado.
Wallander deixou o gabinete e foi buscar uma xícara de café. Depois fechou-se no gabinete e mergulhou de novo no extenso material de investigação. Ao princípio teve dificuldades em se concentrar. Surgiam-lhe constantemente reflexões sobre a conversa que tivera com Balba na noite anterior. Mas esforçou-se por virar policial uma vez mais. Umas horas passadas fizera um retrocesso na investigação e voltara ao ponto onde tinha ficado antes de ir a Itália. Telefonou a um agente criminal em Gotemburgo com o qual colaborava. juntos conversaram sobre assuntos banais. Era meio-dia quando a conversa acabou. Wallander sentiu fome. Continuava a chover. Saiu de automóvel para o centro e almoçou num dos restaurantes. Era uma hora quando regressou à central. Acabava de se sentar na cadeira quando o telefone tocou. Era Ebba da recepção.
– Tens uma visita – informou.
– Quem?
– Um homem que se chama Tyrén. Quer falar contigo.
– Acerca de quê? – Sobre alguém que talvez tenha desaparecido.
– Não há ninguém que possa tomar conta disso?
– Ele diz que só quer falar contigo.
Wallander olhou para as capas abertas na secretária. Nada nelas era tão urgente que não pudesse receber uma participação sobre um desaparecimento.
– Manda-o entrar – respondeu e desligou.
Abriu a porta e começou a afastar as capas da secretária. Quando levantou o olhar, tinha um homem à porta. Wallander não o conhecia. Estava vestido de macacão, o que indicava que trabalhava para uma petrolífera, a OK. Quando entrou no gabinete Wallander sentiu o cheiro a óleo e a gasolina.
Wallander estendeu a mão e convidou-o a sentar-se. O homem tinha cerca de cinquenta anos, cabelo branco e a barba por fazer. Apresentou-se como Sven Tyrén.
– Queria falar comigo? – inquiriu Wallander.
– Segundo sei, é um bom policial – disse Sven Tyrén. O dialeto dele indicava que era natural da Scania Ocidental, a zona do próprio Wallander.
– Os policiais, na sua maioria, são bons – respondeu Wallander. A resposta de Sven Tyrén surpreendeu-o.
– Bem sabe que não é verdade – retorquiu Sven Tyrén. – Já estive preso por um motivo ou outro ao longo da minha vida. E cruzei com muitos policiais que eram francamente uns estupores.
As palavras dele foram ditas com tanta ênfase que Wallander perdeu o fio à meada. Optou por mudar de assunto.
– Suponho que não tenha vindo para dizer isso – comentou. Há algo sobre um desaparecimento?
Sven Tyrén rodava o seu boné da empresa OK entre os dedos.
– Em todo o caso é esquisito – disse.
Wallander tinha puxado por um bloco de apontamentos duma gaveta e procurou uma página limpa.
– Talvez pudéssemos começar pelo princípio – sugeriu. – Quem é que eventualmente desapareceu? O que é esquisito?
– Holger Eriksson.
– Quem é?
– Um cliente.
– Calculo que tem um posto de combustível. Sven Tyrén acenou negativamente com a cabeça.
– Eu transporto óleo para caldeiras – explicou. – Tenho o distrito a norte de Ystad. Holger Eriksson mora entre Hogestad e Lodinge. Telefonou para o escritório e disse que o depósito estava ficando vazio. Combinamos o fornecimento para quinta-feira de manhã, mas quando cheguei, não tinha ninguém.
Wallander tomava apontamentos.
– Está falando sobre a quinta-feira passada?
– Dia 22.
– E quando ele telefonou?
– Na segunda-feira.
Wallander refletiu.
– Não pode ter havido engano sobre o dia combinado?
– Forneço óleo a Holger Eriksson há mais de dez anos e nunca houve engano.
– Então, o que aconteceu a seguir? Quando descobriu que ele não estava em casa?
– A boca do depósito estava trancada, portanto fui embora, deixando uma nota na caixa do correio.
– E depois?
– Nada.
Wallander largou a caneta.
– Quando se fornece óleo como eu, repara-se nos hábitos das pessoas – prosseguiu Sven Tyrén. – Não consegui deixar de pensar em Holger Eriksson. Não batia que tivesse saído. Portanto, fui lá outra vez ontem à tarde depois do trabalho, com meu carro. A nota continuava na caixa do correio embaixo de todas as outras cartas que chegaram depois de quinta-feira. Entrei no pátio e bati na porta. Ninguém respondeu e o carro estava na garagem.
– Ele vive só?
– Holger Eriksson não é casado. Ficou rico vendendo automóveis. Além disso, escreve poesia. Uma vez me deu um livro.
De repente Wallander lembrou-se de que, numa visita à livraria de Ystad, tinha visto o nome de Holger Eriksson numa prateleira sob o título “literatura de diversos autores locais”. Tinha procurado algo que pudesse dar a Svedberg quando este fez 40 anos.
– Há mais uma coisa que não bate – acrescentou Sven Tyrén. – A porta não estava trancada, pelo que pensei que podia estar doente. É que tem quase 80 anos. Entrei na casa, estava vazia, mas a máquina de café na cozinha estava ligada. Cheirava. O café estava queimado no fundo, secara. Foi nessa altura que decidi vir aqui, pois não faz sentido.
Wallander percebeu que a preocupação de Sven Tyrén era totalmente genuína. No entanto, sabia por experiência que os desaparecimentos, na maioria, resolviam-se por si mesmos. Era muito raro que acontecesse algo realmente grave.
– Ele não tem vizinhos? – perguntou Wallander.
– A quinta é isolada.
– O que acha que possa ter acontecido?
A resposta de Sven Tyrén foi rápida e determinada.
– Acho que está morto. Acho que alguém deu cabo dele.
Wallander não disse nada. Esperou pelo que viria a seguir, mas o outro nada disse.
– Por que acha isso? n
– Porque não bate – insistiu Sven Tyrén. – Ele tinha encomendado óleo. Estava sempre em casa quando eu chegava e nunca deixaria a máquina de café ligada. Não teria saído sem trancar a porta, mesmo se fosse para um pequeno passeio na propriedade.
– Ficou com a impressão de que tinha havido um assalto na casa?
– Tudo parecia normal. Excetuando aquela máquina de café.
– Portanto, já tinha entrado na casa antes? – Todas as vezes que fornecia óleo. Costumava oferecer-me café. E ler alguns dos seus poemas. Como era uma pessoa bastante solitária, julgo que apreciava as minhas visitas.
Wallander refletiu.
– Disse achar que ele esteja morto. Mas também disse que achava que alguém deu cabo dele. Por que haveria alguém de fazer isso? Tinha inimigos?
– Não que eu saiba.
– Mas era rico?
– Sim.
– Como sabe?
– Todo mundo sabe.
Wallander parou com as perguntas. – Vamos investigar – afirmou. – Há certamente uma explicação natural para o desaparecimento. Costuma haver.
Wallander apontou o endereço. Para surpresa sua, a quinta se chamava "Refúgio".
Wallander acompanhou Sven Tyrén à recepção.
– Tenho certeza de que aconteceu alguma coisa – disse Sven Tyrén na despedida. – Não faz sentido que não estivesse em casa quando eu cheguei com o óleo.
– Entrarei em contato com você – informou Wallander. No mesmo instante Hansson entrou pela recepção.
– Quem diabo bloqueou todo o acesso com um camião-cisterna? – perguntou zangado.
– Fui eu – disse Sven Tyrén calmamente. – E vou-me embora agora.
– Queria participar um desaparecimento – esclareceu Wallander.
– Ouviste falar de um escritor chamado Holger Eriksson? – Um escritor? – Ou um vendedor de automóveis.
– Então em que ficamos? – Parece que foi as duas coisas. E, segundo este motorista de pesados, desapareceu.
Foram buscar café.
– Caso sério? – perguntou Hansson.
– Pelo menos o dono do camião parecia preocupado.
– Pareceu-me reconhecê-lo – disse Hansson.
Wallander tinha grande respeito pela boa memória de Hansson. Quando se esquecia de algum nome, era a Hansson que normalmente recorria.
– Chama-se Sven Tyrén – disse Wallander. – Afirmou ter estado preso por um motivo ou outro.
Hansson procurou na sua memória.
– Julgo ter estado envolvido numas histórias de maus tratos – adiantou passado uns instantes. – Há bastantes anos.
Wallander escutava pensativamente.
– Acho que vou à quinta de Eriksson – disse a seguir. – Vou inscrevê-lo na rotina das participações de desaparecidos.
Wallander foi ao gabinete buscar o casaco e meteu o endereço do "Refúgio" no bolso. Na realidade, devia ter começado por preencher um impresso onde devia ser registrada a participação do desaparecimento de uma pessoa, mas deixou isso pendente por enquanto. Eram duas e meia da tarde quando deixou a central. A chuva forte tinha diminuído e transformado em chuvisco. Arrepiou-se ao entrar no automóvel. Wallander seguiu o caminho em direção a norte e não teve nenhuma dificuldade em encontrar a quinta. Como o nome indicava, situava-se num sítio muito solitário, no alto de uma colina. Os campos castanhos desciam para o mar que, no entanto, não era visível. Um bando de corvos grasnava numa árvore. Wallander levantou a tampa da caixa do correio e verificou que esta estava vazia. Pressupôs que Sven Tyrén tivesse tirado o correio e levado para casa. Entrou no pátio calcetado. Tudo estava muito bem cuidado. Ficou parado a escutar o silêncio. A quinta era constituída por três construções que em tempos formaram um quadrado fechado. Ou tinham demolido uma construção ou então ardera. Wallander admirou o telhado coberto com palha. Sven Tyrén tinha razão. Quem tinha condições para ter um teto desses era um homem abastado. Tocou a campainha da porta. Depois bateu. Abriu a porta e entrou. Escutou. O correio estava em cima de um banco ao lado de uma chapeleira. Na parede estavam pendurados vários binóculos. Um dos estojos estava aberto e vazio. Wallander andou devagar pela casa. Ainda cheirava ao café que secara e queimara na máquina. junto à secretária na grande sala com as vigas do teto à vista, Wallander parou para observar um papel em cima da superfície castanha da mesa. Uma vez que a luz estava fraca, levou-o para junto da janela.
Era um poema sobre uma ave, um Pica-pau.
No fundo tinha uma data escrita. 21 de setembro de 1994. Às 22h12m.
Precisamente a noite em que Wallander e o pai tinham jantado num restaurante nas proximidades da Piazza del Popolo.
Naquela casa silenciosa isso agora parecia um sonho afastado e irreal.
Wallander colocou o papel em cima da secretária. Às dez horas na noite de quarta-feira escreveu um poema e apontou inclusivamente a hora. No dia seguinte Sven Tyrén fora lá fornecer óleo, E desde aí está desaparecido. Com a porta aberta.
Numa súbita inspiração Wallander saiu para procurar o depósito de óleo. O contador mostrava que o depósito estava quase vazio. Wallander regressou a casa. Sentou-se numa velha cadeira e olhou à sua volta.
Alguma coisa lhe confirmava que Sven Tyrén tinha razão.
Holger Eriksson tinha na realidade desaparecido. Não estava apenas fora de casa.
Momentos depois levantou-se e procurou em vários armários até encontrar umas chaves de reserva. Trancou a porta e deixou a casa. A chuva aumentara. Um pouco antes das cinco estava de volta a Ystad. Preencheu um impresso onde participou o desaparecimento de Holger Eriksson. No dia seguinte, de manhã Cedo, iriam começar a procurá-lo a sério.
Wallander foi para casa. No caminho parou para comprar uma piza. Depois sentou-se à frente da televisão a comer. Linda ainda não telefonara. Depois das onze deitou-se e adormeceu quase de imediato.
Eram quatro da manhã de quarta-feira quando acordou de repente por sentir necessidade de vomitar. Só conseguiu chegar a meio caminho do banheiro. Simultaneamente, também estava com diarreia e sentia-se mal do estômago. Não conseguia avaliar se fora provocado pela piza ou por alguma inflamação no estômago trazida de Itália. Pelas sete da manhã estava tão exausto que telefonou para dizer que iria faltar naquele dia. Apanhou Martinsson.
– É claro que não sabes o que aconteceu. – disse Martinsson.
– Eu só sei que vomito e me cago – respondeu Wallander.
– Um ferry naufragou esta noite – prosseguiu Martinsson. – Já fora de Tallin. Centenas de pessoas parecem ter morrido e a maioria é de suecos. Parece que havia muitos policiais a bordo.
Wallander sentiu que ia vomitar novamente, mas manteve-se ao telefone.
– Policiais de Ystad? – perguntou preocupado.
– Não dos nossos, mas é horrível o que aconteceu.
Wallander tinha dificuldades em acreditar no que Martinsson contava. Centenas de pessoas mortas numa catástrofe com um navio? Coisas dessas não acontecem, pelo menos aqui perto da Suécia.
– Acho que não consigo falar mais, tenho que vomitar outra vez. Mas há um papel na minha mesa sobre um homem que desapareceu e se chama Holger Eriksson. Um de vocês terá que tomar conta disso.
Atirou o fone e chegou à casa de banho mesmo a tempo de vomiitar. Quando se encaminhava para a cama, o telefone tocou de novo. Desta vez era Mona. A sua ex-mulher. Ficou logo preocupado.
Nunca telefonava para ele a não ser quando havia alguma coisa com Linda.
– Falei com a Linda – disse. – Não estava no ferry.
Levou uns instantes antes de Wallander entender do que estava a falar.
– Queres dizer o ferry que naufragou? – O que poderia ser? Quando centenas de pessoas morrem num acidente, pelo menos telefono à minha filha para saber se está bem.
– É claro que tens razão – respondeu Wallander. – Perdoa-me se a minha reação é lenta, mas estou doente. Vomito, dói-me o estômago. Talvez possamos falar num outro dia? – Só queria que não te preocupasses – replicou. Desligaram. Wallander regressou à cama.
Por curtos instantes pensou em Holger Eriksson e na catástrofe marítima que acontecera durante a noite.
Tinha febre. Adormeceu depressa.
A chuva parou mais ou menos ao mesmo tempo.
4
Já havia horas que tinha começado a roer as cordas.
A sensação de que iria enlouquecer tinha sido uma presença constante. Não conseguia ver, algo lhe tapava os olhos e tornava o mundo escuro. Também não conseguia ouvir. Alguma coisa fora-lhe enfiada nas orelhas e pressionava-lhe os tímpanos. Os sons estavam lá mas vinham de dentro. Um zumbir interno que queria forçar a saída, e não o contrário. Apesar de tudo, o que mais o torturava era não conseguir mexer-se. Isso estava a endoidecê-lo. Apesar de estar deitado totalmente esticado de costas, tinha incessantemente a impressão de estar a cair. Uma queda vertiginosa, sem fim, Talvez fosse apenas uma alucinação, uma imagem exterior do fato de se estar a quebrar por dentro. A loucura estava a partir o seu corpo e a mente em bocados que já não se podiam voltar a unir.
Tentou, contudo, agarrar-se à realidade. Forçou-se desesperadamente a pensar. Se mantivesse o bom senso e conservasse a calma, talvez compreendesse o que na realidade acontecera. Por que não conseguia mexer-se? Onde estava? E por quê? Até esta altura tinha tentado dominar o pânico e a sinuosa loucura procurando manter o controle do tempo. Contou minutos e horas, esforçou-se por agarrar uma rotina impossível, que não tinha nenhum começo nem nenhum fim. Uma vez que a luz não se alterava, estava sempre escuro, e ele acordara lá onde estava deitado, preso de costas – e como não tinha nenhuma memória da deslocação, não havia nenhum princípio. Podia ter nascido no local onde estava deitado.
Foi com este sentimento que a loucura teve o seu início. Durante os curtos momentos que conseguia afastar o pânico e pensar claramente, tentava agarrar-se ao que, apesar de tudo, parecia estar relacionado com a realidade.
Havia um ponto de partida.
Em cima do qual estava deitado. Não era imaginação, sabia que estava deitado de costas e que se tratava de uma superfície dura.
A camisa subira para cima da anca esquerda e a pele assentava diretamente na superfície. A superfície era áspera. Sentiu que arranhara a pele quando tentou mover-se. Estava em cima de um chão de cimento. Por que estava ali? Como tinha ido ali parar? Regressou ao último ponto de partida normal que tivera, antes de a repentina escuridão se ter lançado sobre ele. Mas logo aqui tudo começava a ficar obscuro. Sabia o que tinha acontecido, mas também não sabia. E foi quando começou a duvidar a respeito do que era imaginação e do que na realidade tinha acontecido, que o pânico o invadiu. Nesta altura era capaz de chorar. Porém, de imediato, Parava, como que compulsivamente, porque de qualquer maneira ninguém o conseguia ouvir. Nunca chorava quando ninguém o ouvia. Havia gente que só chorava quando estava fora do alcance auditivo de outros, mas ele não pertencia a esse grupo.
Na realidade, era a única certeza absoluta que tinha. Que ninguém conseguia ouvi-lo. Fosse qual fosse o local onde estava, estivesse onde estivesse, onde este pavoroso chão cimentado fora fundido, mesmo se bolasse livremente num universo para ele totalmente desconhecido, não havia ninguém por perto, ninguém que o conseguisse ouvir.
Fora da sinuosa loucura existiam os únicos pontos seguros que lhe restavam. De tudo o resto tinha sido privado, não só da sua identidade como também das calças.
Fora na noite antes de partir para Nairobi. Era quase meia-noite, fechara a mala, e sentara-se na cadeira junto à secretária para, pela última vez, dar uma olhada aos documentos da viagem. Ainda conseguia ver tudo muito nítido à sua frente. Sem o saber, naquela altura estava na sala de espera da morte, que uma pessoa desconhecida lhe tinha preparado.
O passaporte estava do lado esquerdo da mesa. Tivera o bilhete de avião na mão. Ao colo tivera a bolsa de plástico com notas de dólar, os cartões de crédito e os cheques de viagem à espera que também os fosse verificar. O telefone tocou. Largou tudo, levantou o fone e respondeu.
Como fora a última voz que tinha ouvido, agarrou-se a ela com todas as forças que tinha. Foi este o último elo de ligação àquela realidade que ainda mantinha a loucura à distância.
Era uma voz bonita, muito suave e agradável, e soube imediatamente que se tratava de uma mulher desconhecida com quem falou, uma mulher com quem nunca se cruzara em toda a sua vida.
Ela queria comprar rosas. Primeiro pediu desculpa por telefonar a incomodar tão tarde, mas tinha grande necessidade dessas rosas. Não explicou por quê. Mas acreditou imediatamente nela. Não era possível imaginar alguém que pudesse mentir sobre uma necessidade de adquirir rosas. Não se lembrava de lhe ter perguntado ou refletir sobre o que acontecera, por que é que de repente ela descobrira que não tinha as rosas de que precisava, apesar de ser tarde e nenhuma loja de flores estar aberta.
Mas não tinha hesitado. Morava perto da loja, ainda não era tão tarde que já estivesse deitado e levaria no máximo dez minutos a ajudá-la. Agora, deitado na escuridão, pensava no sucedido e apercebia-se de que havia um ponto que não era capaz de explicar. Ele sabia o tempo todo que ela telefonara das proximidades. Havia uma razão, desconhecia qual, que afez telefonar precisamente a ele.
Quem era ela? O que acontecera a seguir? Vestira o casaco e descera à rua. Tivera na mão as chaves da loja. Não havia vento, um ar fresco batia-lhe na cara quando caminhou ao longo da rua úmida. Durante a noite tinha chovido, uma tromba d'água que desapareceu tão rapidamente como tinha aparecido. Parara à frente da porta da loja que dava para a rua. Conseguia lembrar-se de que a destrancara e entrara. A seguir, o mundo explodiu.
Quantas vezes nos seus pensamentos tinha andado ao longo da rua, quando o pânico num abrir e fechar de olhos diminuíra, num momento de descanso na dor constante e oscilante, já não conseguia discernir. Alguém tinha que ter estado lá. Pensava que uma mulher teria estado à frente da loja, mas não vira lá nenhuma. Podia ter-se ido embora, ter ficado furioso porque alguém o sujeitara a uma brincadeira de mau gosto. Mas abrira a loja porque sabia que ela viria. Ela dissera que precisava realmente das rosas.
Ninguém mente sobre rosas.
A rua estava deserta. Disso tinha a certeza. Somente um pormenor o preocupava naquela imagem. Havia um carro estacionado com as luzes acesas. Quando se virara para a porta à procura do buraco da fechadura para a destrancar, o carro estava atrás dele com os faróis acesos. E a seguir o mundo tinha-se desmoronado numa intensa luz branca.
Só havia uma explicação e essa tornava-o histérico de pavor. Só podia ter sido assaltado. Na sombra por detrás dele estava alguém e não o vira. Mas, uma mulher que telefona numa noite suplicando por rosas? Não conseguiu avançar mais. Nessa altura cessou tudo o que fosse compreensível e possível de abranger com bom senso. E foi nessa altura que, com um esforço violento, tinha conseguido aproximar as mãos atadas da boca para poder começar a mastigar a corda. Ao princípio puxava e esticava na corda, como se fosse um animal voraz com fome que se lançava sobre um cadáver. Quase de imediato partiu um dente do maxilar inferior esquerdo. A dor foi inicialmente violenta para a seguir desaparecer rapidamente. Quando voltou a roer a corda – e, como tal, imaginava-se um animal capturado que comia a sua própria perna para escapar – fê-lo lentamente.
Roer as cordas secas e duras era como uma mão consoladora. Se não fosse capaz de se libertar, pelo menos conseguia afastar a loucura. Conseguia roer a corda e, em simultâneo, ter um pensamento relativamente lúcido de que fora assaltado. Estava preso, deitado num chão. Duas vezes por dia, ou talvez fosse por noite, ouvia-se um som a raspar perto de si. Uma mão com uma luva abria-lhe a boca e deitava água pela boca abaixo, nunca outra coisa. A mão que lhe agarrava à volta dos maxilares era mais determinada do que propriamente dura. Em seguida enfiavam-lhe um canudo na boca, por onde sugava uma sopa morna e depois ficava novamente só na escuridão e no silêncio.
Fora assaltado, estava amarrado. Por debaixo dele um chão de cimento. Alguém o mantinha vivo. Pensou que nessa altura fazia uma semana em que estivera deitado naquele local. Tentara entender por quê. Certamente havia um engano, mas que engano? Por que haveria uma pessoa de estar deitada e amarrada num chão de cimento na escuridão? Algo na sua cabeça pressentia que a loucura tinha tido o seu ponto de partida numa conclusão que simplesmente não se atrevia a admitir. Não houve engano. O horror que lhe acontecera estava destinado exatamente a ele, não a outra pessoa, como na realidade iria acabar? O pesadelo talvez fosse continuar eternamente, e ele sem saber por quê.
Duas vezes por dia ou por noite davam-lhe água e comida. Duas vezes era puxado pelos pés pelo chão até chegar a um buraco. Não estava de calças, tinham desaparecido. Só estava de camisa e era arrastado para a mesma posição onde estava antes, depois de se aliviar. Não tinha nada para se limpar. Além disso, as mãos estavam atadas. Ele sentia o cheiro à sua volta.
Não só sujeira, mas também perfume.
Seria um ser humano que estava nas proximidades? A mulher que queria comprar rosas? Ou apenas um par de mãos com luvas? Mãos que o arrastavam para o buraco puxando-o pelo chão. E um cheiro quase imperceptível de perfume, que ficava no ar depois das refeições e das visitas ao “banheiro". As mãos e o perfume tinham que vir de algum lado.
Naturalmente tinha tentado falar com as mãos. Tinha que existir uma boca e ouvidos. Quem fez o que fez com ele também tinha que ouvir o que ele tinha para dizer. Cada vez que sentia as mãos na sua cara e nos ombros tinha tentado falar de várias maneiras. Tinha suplicado, tinha ficado furioso, tinha tentado ser o seu próprio advogado de defesa e falar calma e ponderadamente.
Existia um direito, sustentara, alternativamente a soluçar ou furioso. Um direito que mesmo o acorrentado possui. O direito de saber por que se perdeu por completo o direito. Quando se priva o ser humano desse direito, o universo deixa de ter significado.
Nem sequer exigira ser libertado. Só queria, para começar, saber porque estava preso. Nada mais. Mas pelo menos isso.
Não tinha obtido resposta. As mãos não tinham corpo, nem boca, nem ouvidos. Finalmente gritara e rosnara em desespero extremo, mas nem sequer fora perceptível uma reação nas mãos. Apenas a palhinha na boca e o tênue cheiro de um perfume forte e acre.
Ele pressentia o seu próprio colapso. A única coisa que o mantinha era a insistência em roer a corda. Passado um tempo, que talvez correspondesse a uma semana, praticamente não tinha conseguido passar da superfície dura da corda. Todavia, era aí que se situava a única salvação possível. Ele sobrevivia roendo. Dentro de uma semana deveria regressar da viagem na qual deveria agora estar a meio, caso não tivesse ido à loja para buscar uma mão-cheia de rosas. Deveria estar numa profunda floresta de orquídeas no Quénia e a sua consciência estaria preenchida por cheiros mais maravilhosos. Dentro de uma semana estariam à espera do seu regresso. E quando não chegasse, Vanja Andersson iria começar a estranhar, talvez já estivesse a fazê-lo. Havia mais uma possibilidade que não podia ignorar. A agência de viagens devia ter controle sobre os seus clientes. Ele tinha pago o bilhete, mas nunca aparecera em Kastrup. Alguém deveria ter notado a sua falta. Vanja Andersson e a agência eram a sua única possibilidade de salvação. Entretanto iria roendo a corda para não perder o juízo. O que ainda restava.
Ele sabia que se encontrava no inferno. Mas não sabia por quê.
O medo estava nos seus dentes que abocanhavam a corda dura. o medo e a única salvação possível.
Continuava a roer.
Nos intervalos chorava. Ficava com cãibras. Apesar disso, continuava a roer.
Ela tinha arrumado o espaço como um altar de sacrifício. Ninguém podia desconfiar do seu segredo, ninguém que não soubesse, e esse conhecimento só ela tinha.
Em tempos a casa tinha sido constituída por várias pequenas divisões com tetos baixos, paredes tristes, iluminadas apenas pela luz tênue que entrava pelos postigos, cavados fundo nas grossas paredes. Era esse o aspecto quando ela fora lá pela primeira vez. Pelo menos nas suas mais remotas memórias. Ainda conseguia reviver o verão. Foi a última vez que vira a sua avó materna. O outono cedo morreu. Mas aquele verão ainda ficava à sombra das macieiras e ela própria estava transformada numa sombra. Tinha quase noventa anos e sofria de cancro. Passou o último verão sentada, imóvel, inacessível ao mundo, os netos tinham sido instruídos para não a incomodar. Não gritar próximo dela, apenas se aproximarem dela quando ela os chamasse.
Uma vez a avó levantou a mão e acenou para a chamar. Aproximou-se angustiada. A velhice era perigosa, havia doenças e morte, sepulturas escuras e medo. Mas a avó só tinha olhado para ela com o seu sorriso suave que o cancro nunca conseguiu destruir. Talvez tivesse dito alguma coisa, não conseguia recordar e muito menos o quê. Mas a voz estava lá e tinha sido um verão feliz. Deve ter sido em 1952 ou 1953, um tempo imensamente remoto. As catástrofes ainda estavam longe de acontecer.
Naquele tempo as divisões eram pequenas. Foi só quando ficou com a casa no fim dos anos 60 que começou a grande transformação. Demolira todas as paredes interiores que podiam ser sacrificadas sem pôr a casa em risco de ruir. Tivera ajuda de uns primos jovens, que queriam mostrar as suas forças. Mas ela também batera com a marreta com tanta força que toda a casa tremera e o reboco caíra. Do pó nasceu mais tarde este grande espaço e a única coisa que deixou ficar foi o grande forno que agora, como um rochedo esquecido, era um trono no meio da sala. Naquela altura todos os que entravam na sua casa tinham ficado parados e admirados ao ver como tinha ficado bonita após a grande transformação. Era a antiga casa, mas ao mesmo tempo totalmente diferente. A luz fluía pelas janelas que tinham sido alargadas. Se quisesse escuridão, fechava as portadas de carvalho maciço que tinha mandado fazer e colocado do lado exterior da casa. Tinha recuperado os soalhos e deixado o teto ficar aberto para se verem as vigas superiores.
Alguém tinha dito que parecia a nave de uma igreja.
A partir daí ela também começara a considerar a sala como o seu santuário privado. Quando estava lá sozinha, era como se estivesse no centro do mundo. Conseguia então sentir que estava completamente calma, longe dos perigos que normalmente nos ameaçam.
Houve tempos em que raramente visitava a sua catedral. O calendário da sua vida tinha sempre variado. Por várias vezes também se interrogara se não devia livrar-se da casa. Demasiadas memórias, que as marretas não tinham conseguido apagar. Mas não podia abandonar a sala com o grande forno adormecido, o rochedo branco que tinha conservado fechado, tornando-se uma parte da sua vida. Às vezes via nele o último reduto a defender na sua vida.
Depois veio a carta de Alger. A seguir tudo mudara.
Nunca mais pensou em deixar a casa.
Na quarta-feira, dia 28 de setembro, passava das três da tarde quando chegou a Vollsjö. Tinha dirigido de Hässleholm e antes de seguir para sua casa, que se situava na periferia da povoação, parara para fazer compras. Sabia o que queria comprar. A única coisa que a fazia hesitar era se tinha necessidade de completar o stock de palhinhas. Pelo sim pelo não, levou um pacote extra. A empregada cumprimentou-a, retribuiu o sorriso e disse umas palavras sobre o tempo. Depois falaram sobre o terrível acidente com o ferry. Pagou e continuou viagem. Os seus vizinhos mais próximos não estavam. Eles passavam um curto mês de verão em Vollsjö. Eram alemães, moravam em Hamburgo e só vinham à Scania em Julho. Cumprimentavam– se mas, de resto, não tinham qualquer contato.
Abriu a porta da rua. Dentro do vestíbulo ficou completamente parada a escutar. Entrou na sala grande e parou imóvel junto ao forno. Reinava o silêncio, tão silencioso como ela desejava que o mundo fosse.
Ele, que estava lá em baixo no forno, não a podia ouvir. Ela sabia que estava vivo mas não tinha que se sujeitar a ouvir a sua respiração nem o seu choro.
Pensou que tinha obedecido a uma inspiração oculta que a conduziu a este inesperado destino final. No princípio, quando se decidira a ficar com a casa, não a vender e depositar o dinheiro no banco. Depois, quando deixou ficar o velho forno. Foi só mais tarde, quando a carta de Alger chegou que percebeu o que tinha de fazer, e aí o forno revelou o seu verdadeiro papel.
Interrompeu os seus pensamentos quando soou o alarme do relógio de pulso. Dentro de uma hora chegariam os convidados, mas antes disso teria tempo para dar de comer ao homem que estava lá em baixo no forno. Estava lá há cinco dias e em breve estaria tão enfraquecido que não conseguiria oferecer resistência. Tirou a agenda da mala e viu que estava de folga a partir de domingo à tarde até terça-feira de manhã. Seria então a altura própria. Então tirá-lo-ia do forno e contar-lhe-ia o que tinha acontecido.
Ainda não tinha decidido a forma como o iria matar. Havia várias possibilidades, mas ainda tinha tempo. Iria refletir sobre o que ele tinha feito e nessa altura entenderia de que maneira teria de morrer.
Foi à cozinha aquecer a sopa. Uma vez que tinha cuidados higiénicos, lavou a caneca de plástico que utilizava para o alimentar. Numa outra caneca deitou água. Cada dia diminuíra a quantidade que lhe dava. Não iria obter mais do que o necessário para se manter vivo. Quando tinha a refeição pronta, colocou um par de luvas de borracha, borrifou-se com umas gotas de perfume por trás das orelhas e entrou na sala onde estava o forno. Na parte de trás havia uma portinhola escondida atrás de umas pedras soltas. Era mais como que um tubo de quase um Metro, que puxava com cuidado. Antes de o ter colocado lá dentro tinha ensaiado um potente amplificador e fechado a portinhola. Tinha tocado música com o som no máximo, mas nada tinha passado cá para fora.
Inclinou-se para o ver. Quando colocou uma das mãos em cima da perna dele, não se mexeu. Por curtos instantes receou que tivesse morrido, depois ouviu como ofegava. Está fraco, pensou. Em breve acaba o tempo de espera.
Depois de lhe ter dado comida, o ter deixado utilizar o buraco e o ter colocado novamente no lugar, fechou a portinhola, sentou-se à mesa e bebeu um café. Tirou da mala o jornal da empresa e folheou-o lentamente. Segundo a nova tabela de salários, iria receber mais 174 coroas por mês, retroativos a julho. Olhou novamente para o relógio. Raramente passava mais de dez minutos sem dar uma olhadela ao relógio. Era uma parte da sua identidade. A sua vida e trabalho estavam associados a planos minuciosamente elaborados. Também nada a magoava tanto como quando os horários não eram cumpridos. Então não havia justificação possível. De qualquer maneira, sempre sentira isso como uma responsabilidade pessoal e sabia que muitos dos seus colegas se riam dela, nas suas costas. Isso magoava-a, mas nunca dizia nada. O silêncio era uma parte dela, do seu próprio relógio interior, apesar de não ter sido sempre assim.
Conseguiu recordar a sua própria voz. Quando era criança. Era forte. Mas não estridente. A mudez tinha aparecido mais tarde. Quando viu todo o sangue. E a mãe que morria. Naquela vez não gritara. Escondera-se no seu próprio silêncio. Aí conseguira tornar-se invisível.
Foi então que aconteceu. Quando a mãe estava deitada em cima de uma mesa chorando e sangrando, privou-a da irmã pela qual tinha esperado tanto tempo.
Olhou novamente para o relógio. Em breve chegariam. Era quarta-feira, a noite em que se encontravam. Ela teria preferido que fosse sempre às quartas-feiras. Teria uma maior regularidade. Mas o seu esquema de trabalho não o permitia e também sabia que nunca poderia alterá-lo.
Tinha alinhado cinco cadeiras. Não queria ter na sua casa mais gente junta ao mesmo tempo. Podia perder-se a intimidade. já era suficientemente difícil criar uma confiança suficiente que fizesse estas mulheres silenciosas terem coragem para falar. Entrou no quarto e começou a tirar a farda. Por cada peça de roupa que tirava sussurrava uma reza. Começou a recordar o passado. Fora a sua mãe que tinha falado de António. O homem que uma vez, na sua juventude, muito antes da Segunda Guerra, tinha conhecido num comboio entre Colónia e Munique. Não tinham encontrado lugares sentados e acabaram 60 os dois no corredor cheio de fumo. As luzes dos barcos no Reno reluziam de passagem do lado de fora dos vidros sujos, tinham viajado de noite, e Antonio tinha contado que iria serpadre católico. Ele tinha dito que a missa começava assim que os padres trocavam a roupa. O ritual sagrado tinha um início que significava que os padres passavam por um processo de purificação. Por cada peça de roupa que tiravam ou vestiam tinham uma reza. Por cada peça aproximavam-se mais um passo da sua tarefa divina.
Ela nunca tinha conseguido esquecer da mãe, daquele encontro com Antônio no corredor do trem. E agora, quando ela própria percebera que também ela era uma pregadora, uma pessoa que assumira a grande tarefa de pregar que a justiça era sagrada, também ela tinha começado a interpretar as mudanças de roupa como sendo algo mais do que simplesmente troca de peças de vestuário. Mas as orações que rezava não faziam parte de um diálogo com Deus. Num mundo caótico e absurdo Deus era o mais absurdo de tudo. O retrato do mundo era de um Deus ausente. As orações eram dirigidas a si própria, como a que rezara quando era criança. Antes de tudo se ter desmoronado à sua volta, antes de a mãe a ter privado daquilo que mais desejava. Antes de os homens lúgubres terem surgido à sua frente com olhares que se assemelhavam a serpentes ameaçadoras e sinuosas.
Trocou de roupa e regressou à oração pela sua infância. Colocou a farda em cima da cama. Depois vestiu-se com tecidos macios de cores suaves. Algo aconteceu dentro dela. Era como se a sua pele se transformasse, também ela regressasse para se tornar uma parte da criança.
Por fim colocou a peruca e os óculos. A última oração desvanecia-se dentro dela. Rida, rida ranka, hãsten har inget namn, i inget namn, inget namn"* – Conseguiu ouvir o primeiro carro parar no pátio. Examinou a sua cara no grande espelho. Não era a Bela Adormecida que tinha acordado do seu pesadelo. Era a Gata Borralheira. *Cavalgar, cavalgar sem parar, o cavalo não tem nome, não tem nome... (tradução livre de lenga-lenga infantil). (NT)
Estava pronta. Agora era outra. Colocou o seu uniforme num saco de plástico, endireitou a colcha, e deixou o quarto. Apesar de ninguém, exceto ela, entrar lá, trancou a porta e verificou se ficara fechada.
Minutos antes das seis estavam reunidas, uma delas não tinha vindo. Uma delas contou que fora levada para o hospital na noite anterior porque tinha tido contrações. Ainda faltavam duas semanas, talvez a criança já tivesse nascido nesta altura.
Tomou imediatamente a decisão de a visitar no dia seguinte no hospital. Queria vê-la, queria ver seu rosto depois de tudo por que passara.
Depois esteve atenta às histórias delas. Volta e meia fazia gestos como se estivesse a anotar alguma coisa num bloco que segurava numa mão, mas só anotava números. Criava constantemente horários. Números, horas, distâncias. Era um jogo que sempre a acompanhava, um jogo que cada vez mais se transformava num sortilégio. Não tinha que anotar nada para recordar. Todas as palavras que vinham das vozes apavoradas, toda a agonia que agora se atreviam a expressar colavam-se na sua consciência. Ela conseguia notar que algo se libertava de cada uma delas, talvez só naquele instante. Mas o que era a vida senão um instante? O horário novamente. Badaladas que se cruzavam, uma a seguir à outra. A vida era como um pêndulo. Dava as suas badaladas entre dor e alívio. Sem interrupções, sempre.
Estava sentada de maneira que conseguia ver o grande forno por trás das mulheres. A iluminação era reduzida e a sala repousava numa suave penumbra. Ela interpretava a luz como algo feminino. O forno era como um rochedo, imóvel, mudo, no meio dum mar deserto.
Conversaram durante cerca de duas horas e depois beberam chá na cozinha. Todas sabiam quando se iriam encontrar na próxima vez. Nunca nenhuma precisava de duvidar das marcações que lhes dava.
Eram oito e meia quando as acompanhou à porta. Despediram-se com apertos de mão. E recebeu manifestações de gratidão. Quando o último carro desapareceu, regressou a casa, trocou de roupa no quarto, a peruca e os óculos. Pegou o saco de plástico com o uniforme e deixou o quarto. Na cozinha lavou as xícaras de chá. Depois apagou todas as luzes e pegou a carteira.
Um curto instante ficou parada na penumbra junto ao forno. Tudo estava silencioso.
Depois abandonou a casa. Chuviscava. Sentou-se no carro e meteu-se a caminho de Ystad.
Antes da meia-noite estava deitada dormindo.
5
Quando acordou na quinta-feira de manhã Wallander sentia-se repousado. As dores no estômago tinham passado. Levantou-se uns minutos depois das seis e viu no termômetro fora da janela da cozinha que estavam cinco graus positivos. O céu estava coberto por pesadas nuvens. As ruas estavam úmidas. Mas não chovia. Chegou à central pouco depois das sete. Ainda reinava a calma da manhã. Quando passou no corredor em direção ao seu gabinete, questionou-se sobre se teriam encontrado Holger Eriksson. Tirou o casaco e sentou-se na cadeira. Em cima da mesa estavam uns papéis com números de telefone. Ebba lembrava-lhe de que tinha uma marcação no oculista exatamente hoje. Tinha-se esquecido. Ao mesmo tempo sabia que era uma visita inevitável que tinha de enfrentar. Precisava de óculos para ler. Quando estava demasiado tempo debruçado sobre os papéis ficava com dores de cabeça e as letras começavam a dançar e tornavam-se desfocadas. Faria quarenta e sete anos em breve. Era inevitável. A idade fazia-se sentir. Num outro papel viu que Per Akeson queria entrar em contato com ele. Como Akeson era madrugador telefonou-lhe imediatamente para a Procuradoria que estava instalada numa outra área da central. Foi informado de que Akeson estaria em Malmö todo o dia. Wallander pôs o papel de lado e foi buscar um café. Depois reclinou-se para trás na sua cadeira e tentou formular uma estratégia para solucionar o contrabando de automóveis. Todos os crimes organizados tinham frequentemente um ponto fraco, um elo numa cadeia que podia ser quebrado caso fosse suficientemente pressionado. Para a Polícia poder ter a mínima esperança de caçar os contrabandistas, tinha que se concentrar em encontrar exatamente esse ponto.
Foi interrompido nas suas reflexões pelo toque do telefone. Era Lisa Holgersson, a nova chefe deles, que lhe desejava as boas-vindas de férias.
– Como correu a viagem? – perguntou.
– Um grande sucesso – respondeu Wallander.
– Descobrimos os nossos pais novamente – disse ela.
– E eles, por sua vez, talvez obtenham uma outra visão dos filhos – disse Wallander.
Desculpou-se rapidamente. Wallander ouviu que alguém entrara no gabinete dela e dissera alguma coisa . Pensou que BJõrk nunca teria perguntado sobre a sua viagem. Depois regressou ao telefone.
– Estive em Estocolmo uns dias – disse. – E foi menos divertido.
– O que inventaram agora?
– Estou pensando na Estônia. Em todos os policiais que morreram.
Wallander ficou calado. Também devia ter-se lembrado disso.
– Acho que compreendes qual o ambiente que reinava – continuou.
– Como seríamos capazes de discutir diferentes planos de cooperação entre os serviços criminais nacionais e os distritos policiais do país? – Provavelmente nós estamos tão vulneráveis perante a morte como todas as outras pessoas – disse Wallander. – Apesar de não dever ser assim. já que temos visto tanta coisa. Pensamos estar habituados. Mas não estamos.
– Um ferry afunda-se numa noite ventosa e de repente a morte torna-se novamente visível na Suécia. Depois de ter sido cada vez mais escondida e renegada.
– Certamente tens razão. Apesar de não ter pensado nisso desse modo.
Ele ouviu-a pigarrear. Após curtos instantes falou novamente.
– Discutimos questões de cooperação – continuou. – E a permanente questão sobre o que deve ter prioridade.
– Eu acho que devemos apanhar os criminosos – disse Wallander.
– Levá-los a Tribunal e tratar de assegurar de que temos provas suficientes para acabarem condenados.
– Se fosse assim tão simples – suspirou.
– Estou contente por não ser chefe – observou Wallander.
– De vez em quando faço a mesma observação – e deixou a continuação ficar no ar. Wallander pensava que ia finalizar a conversa, mas ela reatou-a.
– Prometi que irias à Escola Superior da Polícia no princípio de Dezembro – disse. – Querem que fales sobre a investigação que tivemos no verão. Se bem entendi, foram os próprios alunos que pediram.
Wallander ficou apavorado.
– Não sou capaz – respondeu. – Não consigo ficar na frente de um grupo de pessoas e fazer de conta que estou ensinando. Outra pessoa pode fazê-lo. Martinsson é bom falando. Esteve para entrar na política no passado.
– Prometi que irias – insisti e riu. – Com certeza vai correr bem.
– Vou para casa doente – redargiu Wallander.
– Falta muito para Dezembro – disse. – Podemos falar sobre isto mais tarde. Na realidade, só queria saber como tinha corrido a viagem. Agora sei que foi boa.
– E aqui está tudo calmo – observou Wallander. – Só temos um desaparecimento. Mas os outros encarregaram-se disso.
– Desaparecimento? Wallander relatou em poucas palavras a conversa que tinha tido na terça-feira com Sven Tyrén e a sua preocupação sobre o fato de Holger Eriksson não ter estado em casa para receber o óleo.
– Qual é a probabilidade de algo sério ter, de fato, acontecido? perguntou de seguida. – Quando pessoas desaparecem? O que diz a estatística? – O que ela diz não sei – respondeu Wallander. – Mas, por outro lado, sei que é muito raro acontecer um crime ou sequer um acidente. Quando se trata de idosos e senis, podem andar perdidos. Quando se trata de jovens, na maioria das vezes, trata-se de revolta contra os pais ou da procura de aventura. E muito raro suceder algo de grave.
Wallander recordou a última vez que acontecera. Pensou com desalento na mulher da imobiliária que desaparecera e mais tarde fora encontrada morta, escondida no fundo de um poço. Tinha acontecido há uns anos e pertencia às suas experiências mais desagradáveis como policial.
Acabara a conversa. Wallander estava decidido que não iria à Escola Superior da Polícia para fazer uma palestra. Evidentemente era lisonjeiro que o tivessem solicitado, mas a aversão era mais forte. Pensava que conseguiria convencer Martinsson a fazê-lo.
Voltou a pensar nos contrabandistas de automóveis. Dava voltas à procura do ponto que permitiria destruir a organização. Depois das oito foi buscar café e, uma vez que tinha fome, também levou umas tostas. O estômago ja não parecia estar revoltado. Acabava de se sentar quando Martinsson bateu a porta e entrou.
– Estás melhor? – perguntou – Estou bem – respondeu Wallander. – Como vai o caso Holger Eriksson? Martinsson olhou para ele com ar confuso.
– Quem? – Holger Eriksson. O homem sobre quem escrevi um relatório e que pode ter desaparecido. Não falei ao telefone contigo acerca disso? Martinsson abanou a cabeça.
– Quando me contaste isso? – Ontem de manhã. Quando estava doente – explicou Wallander.
– Se calhar, não percebi. Estava perturbado por causa do acidente do ferry.
Wallander levantou-se da cadeira.
– Hansson já chegou? – perguntou. – Temos que tratar disto imediatamente.
– Vi-o no corredor – respondeu Martinsson.
Foram ao gabinete dele. Hansson estava a observar uma raspadinha quando entraram. Depois rasgou-a e deixou os pedaços cair no cesto de papéis.
– Holger Eriksson – disse Wallander. – O homem que talvez tenha desaparecido. Lembras-te do camião-cisterna, que estava a bloquear o acesso à central ? Na terça-feira? Hansson acenou.
– O homem que se chama Sven Tyrén – continuou Wallander. De quem tu te lembravas ter estado envolvido em casos de maus tratos ? – Lembro-me – confirmou Hansson.
Wallander teve dificuldade em esconder a sua impaciência.
– Portanto, veio cá para participar o desaparecimento de uma pessoa. Fui à quinta onde mora Holger Eriksson e de onde supostamente pode ter desaparecido. Fiz um relatório a esse respeito. Depois telefonei para cá ontem de manhã quando estive doente e dei instruções para vocês se encarregarem do caso. Considerei o caso grave.
– Provavelmente ficou pendente – afirmou Martinsson. – Vou ter que assumir a responsabilidade.
Wallander chegou à conclusão de que não podia ficar zangado.
– Coisas destas não devem acontecer na realidade – disse. Mas podemos dizer que foi originado por circunstâncias infelizes.
Vou outra vez à quinta e se ele não estiver lá, temos que começar a procurá-lo. Espero não o ir encontrar morto algures, atendendo ao fato de que passou desnecessariamente um dia sem que nada acontecesse.
– Vamos convocar uma batida? – perguntou Martinsson.
– Ainda não – disse Wallander. – Vou lá primeiro. Depois digo alguma coisa .
Wallander foi ao gabinete procurar na lista telefônica o número da OK. Uma rapariga atendeu ao primeiro toque. Wallander apresentou-se e disse que precisava de entrar em contato com Sven Tyrén.
– Ele está fora na distribuição – disse a rapariga. – Mas tem telefone no camião.
Wallander apontou o numero na margem de uma das circulares da Direção Nacional da Polícia. Depois ligou. O fone zumbia quando Sven Tyrén respondeu.
– Eu acho que pode ter razão – disse Wallander. – Que Holger Eriksson está desaparecido.
– Caramba, pois claro que tenho – respondeu Tyrén. – Precisa de levar tanto tempo para chegar a essa conclusão? Wallander não respondeu à pergunta.
– Há mais alguma coisa que me devesse contar? – perguntou em vez de responder.
– O que poderia ser? – Sabe tão bem como eu. Não tem parentes que visite? Nunca viaja? Quem o conhece bem? Tudo que possa fornecer uma explicação plausível para estar fora.
– Não existe nenhuma explicação plausível – respondeu Tyrén. Já disse isso. Foi por isso que fui à Polícia.
Wallander refletiu. Não havia motivos para Sven Tyrén não falar verdade e a sua preocupação era totalmente genuína.
– Onde está? – perguntou Wallander.
– Estou a caminho de Malmö – respondeu Tyrén. – Estive a carregar óleo no terminal.
– Vou à quinta de Eriksson – disse Wallander. – Pode passar por lá? – Posso – respondeu Tyrén. – Dentro de uma hora estou lá. Só tenho que descarregar óleo num lar primeiro. Não queremos que os velhotes apanhem frio, não é verdade? Wallander finalizou a conversa. Depois saiu da central. Tinha começado a chuviscar.
Quando saiu de Ystad, sentiu-se maldisposto. Se não tivesse ficado com dores no estômago, a confusão nunca teria surgido.
Agora também estava convencido de que não tinha sido em vão a preocupação de Sven Tyrén. No seu íntimo, já sabia isso desde terça-feira. E ja era quinta-feira e nada tinha acontecido.
Quando chegou à quinta de Holger Eriksson, a chuva tinha aumentado. Calçou as botas que tinha no porta-bagagens. Quando abriu a caixa do correio viu que havia um jornal e umas cartas, entrou no pátio, tocou à porta e depois abriu com as chaves de reserva. Mas tudo estava como tinha deixado. O estojo dos binóculos na parede continuava vazio. O papel solitário estava em cima da mesa. Wallander saiu novamente para o pátio. Por instantes ficou parado e observou contemplativamente um canil vazio. Algures lá fora num campo um bando de corvos fazia barulho. Uma lebre morta, pensou inconscientemente. Depois foi ao carro buscar uma lanterna. Metodicamente começou a revistar toda a casa. Em todo o lado Holger Eriksson tinha tudo bem arrumado. Wallander ficou muito tempo a admirar uma Harley-Davidson, bem limpa e reluzente, que estava numa área de uma construção que era simultaneamente garagem e oficina. Ao mesmo tempo ouviu um camião aproximar-se. Saiu ao encontro de Sven Tyrén. Wallander abanou a cabeça quando Tyrén desceu da cabina e olhou para ele.
– Não está cá – disse Wallander.
Entraram em casa. Wallander levou Tyrén para a cozinha. Num dos bolsos do casaco encontrou uns papéis dobrados, mas nenhuma caneta. Foi buscar a que estava em cima da secretária ao lado do Poema sobre o pica-pau médio.
– Não tenho mais nada para dizer – disse Sven Tyrén. – Não seria melhor começar a procurá-lo? – Temos sempre mais para contar do que pensamos – insistiu Wallander, e não escondeu que ficara irritado com a atitude de Tyrén.
– O que há que não sei que sei? – Foi você mesmo quem falou com ele quando fez a encomenda de óleo? – Telefonou para o escritório. Temos lá uma rapariga. É ela quem faz as guias de remessa e sabe sempre onde estou. Falo com ela pelo telefone várias vezes ao dia.
– E era ele quem costumava telefonar? E a voz dele parecia-lhe como de costume? Parece-me que tem que lhe perguntar a ela. É o que vou fazer, como é que ela se chama? – Rut. Rut Eriksson.
Wallander anotou.
– Parei aqui um dia no princípio de Agosto – disse Tyrén. – Foi a última vez que o vi e nessa altura tudo estava normal. Ofereceu-me café e leu-me um par de novos poemas. Além disso, era um bom contador de histórias, das fortes.
– O que quer dizer com isso? Fortes? – Eu quase corava.
Wallander fitou-o. Depois reparou que de repente estava a pensar no pai, que também sabia contar histórias fortes.
– Nunca teve a impressão de que estava ficando senil?
– Tinha a cabeça tão fresca como eu e você juntos.
Wallander olhou Tyrén enquanto tentava decidir se tinha sido objeto de um insulto ou não. Deixou a reflexão pendurada no ar.
– Holger Eriksson não tinha parentes?
– Nunca foi casado. Não tinha filhos. Nenhuma amiga, que eu saiba.
– Outros parentes?
– Nunca falou de nenhum. Tinha decidido que era uma organização em Lund que iria herdar todos os seus bens.
– Que organização?
Tyrén encolheu os ombros. – Alguma associação local, sei lá.
Wallander pensou com aversão nos Amigos do Machado. Depois deduziu que Holger Eriksson pretendia deixar a Casa da Cultura de Lund herdar a sua quinta. Tomou apontamentos.
– Sabe se possuía mais alguma coisa?
– O quê?
– Talvez outra quinta? Um prédio na cidade? Talvez um apartamento?
Tyrén pensou antes de responder. – Não – concluiu em seguida. – Era esta quinta. O resto está no banco. No Handelsbanken.
– Como sabe?
– As faturas do óleo eram pagas através do banco.
Wallander assentiu e dobrou os seus papéis. Já não tinha mais perguntas para fazer. Agora estava convencido de que algo acontecera a Holger Eriksson.
– Volto a procurá-lo – disse Wallander e levantou-se.
– O que vai acontecer agora?
– A Polícia tem as suas rotinas – respondeu Wallander. Saíram para o pátio.
– Não me importo de ficar e ajudar na busca – disse Tyrén.
– De preferência não – respondeu Wallander. – Preferimos fazê-lo à nossa maneira.
Sven Tyrén não protestou. Subiu para a cabina do camião e demonstrou grande perícia quando deu a volta no pequeno espaço disponível. Wallander viu o camião desaparecer. Depois foi para a margem dos campos a olhar para um conjunto de árvores que vislumbrava à distância. O bando de corvos continuava a fazer barulho. Wallander tirou o celular do bolso, telefonou para a central e pediu para falar com Martinsson.
– Como vão as coisas? – perguntou Martinsson.
– Temos que fazer uma batida – respondeu Wallander. – Hansson ficou com o endereço. Quero começar o mais depressa possível. Começa por trazer um par de patrulhas de cães.
Wallander estava prestes a acabar a conversa quando Martinsson o impediu.
– Só mais uma coisa – disse. – Entrei no computador para procurar se tínhamos algo sobre Holger Eriksson. Apenas um controle de rotina. E temos.
Wallander pressionou o telefone contra a orelha. Simultaneamente mudou de posição para ficar sob uma árvore para se proteger da chuva.
– O quê? – perguntou.
– Há cerca de um ano, participou que tinha tido um assalto em casa. A propósito, é verdade que a quinta se chama "Refúgio"? É correto – confirmou Wallander. – Continua! A participação dele foi registrada no dia 19 de outubro de 1993. Foi Svedberg quem tomou conta do caso. Mas quando lhe perguntei, evidentemente já se tinha esquecido há muito.
– O que tinha acontecido? – perguntou Wallander.
– A participação de Holger Eriksson era um pouco esquisita – disse Martinsson com hesitação.
– Como esquisita? – perguntou Wallander impacientemente.
– Nada tinha sido furtado. Mas, mesmo assim, tinha a certeza de que alguém tinha forçado a entrada da casa.
– O que aconteceu a seguir? – Nada. Foi arquivado. Nem sequer mandamos lá ninguém, uma vez que nada tinha desaparecido. Mas a participação está cá e foi feita por Holger Eriksson.
– É estranho – observou Wallander. – Temos que ver melhor isso mais tarde. Trata de mandar as patrulhas de cães para ca o mais depressa possível.
Martinsson soltou uma risada ao telefone.
– Não te ocorre nada com a participação de Holger Eriksson? – perguntou.
– O quê? – Que é a segunda vez em poucos dias que falamos de assaltos onde nada foi roubado.
– Wallander registrou que Martinsson tinha razão. Nada tinha sido roubado da loja de flores na Vãstra Vallgatan.
– Acabam aí todas as semelhanças – disse Wallander.
– O dono da loja também está desaparecido – advertiu Martinsson.
– Não – respondeu Wallander. – Está numa viagem ao Quénia. Não desapareceu, que é o que parece ter acontecido com Holger Eriksson.
Wallander acabou a conversa e meteu o celular no bolso. Aconchegou o casaco à sua volta, voltou à garagem e continuou a procurar. Não sabia ao certo o que procurava. Nada de importante iria acontecer antes de os cães chegarem. Depois iriam organizar a batida e começar a falar com vários vizinhos. Passado um bocado interrompeu a busca e regressou à casa. Bebeu um copo de água na cozinha. Do cano saiu um barulho quando abriu a torneira, mais um sinal de que ninguém tinha estado em casa durante uns dias. Enquanto bebeu, observou distraidamente os corvos que faziam barulho lá longe. Pousou o copo e saiu. Chovia persistentemente. Os corvos faziam barulho. De repente Wallander parou. Pensou no estojo vazio dos binóculos na parede ao pé da porta. Olhou para o bando de corvos. Lá mais afastado, na elevação, havia uma torre. Ficou completamente imóvel e tentou pensar. Depois começou a andar devagar ao longo do campo. A lama acumulava-se por baixo das botas. Descobriu que havia um caminho no meio do campo. Seguiu-o com o olhar e descobriu que conduzia à elevação onde estava a torre. Calculou a distância em duzentos metros. Começou a andar no caminho, a lama aí estava mais firme, não se agarrava às botas. Os corvos mergulharam no campo, desapareceram e levantaram voo novamente. Wallander pensou que tinha que haver uma descida ou uma valeta. Continuou, a torre tornava-se mais nítida. Supôs que era utilizada para caça a lebres ou veados. Para lá da elevação no outro lado havia um pequeno bosque. Provavelmente também pertencia a propriedade de Holger Eriksson. Depois reparou que tinha uma valeta à sua frente. Umas tábuas grossas pareciam ter caído. Os corvos faziam cada vez mais barulho à medida que se aproximava. Depois levantaram voo, todos ao mesmo tempo e desapareceram. Wallander seguiu para a valeta e olhou para baixo.
Reagiu e deu um salto para trás. Ficou logo agoniado.
Mais tarde diria que foi das piores coisas que viu. E fora obrigado a ver muito que teria preferido não ter visto, durante os seus anos de policial.
Mas quando esteve lá, com a chuva a correr por dentro do casaco e da camisa, não entendeu logo o que estava vendo. Era algo estranho e irreal que tinha à sua frente, alguma coisa que nunca tinha visto.
A única coisa totalmente evidente é que havia um morto na valeta.
Cautelosamente inclinou-se. Reparou que teve que forçar o olhar. A valeta era funda, pelo menos dois metros. Uma quantidade de estacas afiadas estavam metidas no fundo da valeta. Nestas estacas estava um homem espetado. As estacas sangrentas com os seus bicos semelhantes a setas tinham, em alguns sítios, trespassado o corpo. O homem estava deitado de barriga para baixo e estava pendurado nas estacas. Os corvos tinham-lhe atacado a nuca. Wallander ergueu-se, sentia as pernas a tremer. Algures à distância conseguia ouvir carros a aproximarem-se. Deduziu que eram as primeiras patrulhas de cães.
Deu um passo para trás. As estacas pareciam ser de bambu. Como canas grossas de pesca, com bicos como setas. Depois contemplou as tábuas que tinham caído na valeta. Uma vez que o caminho continuava do outro lado da valeta, deviam ter funcionado como pontão. Por que teriam partido? Eram pranchas grossas que aguentavam grande carga. Além disso, a valeta não tinha mais do que dois metros de largura.
Quando ouviu um cão ladrar, deu meia volta e regressou à quinta. Agora estava muito mal disposto. Além disso, sentia medo. Uma coisa era ter descoberto um homem que tinha sido assassinado. Mas a maneira como tinha sido executado? Alguém tinha enfiado estacas afiadas na valeta. O homem tinha morrido empalado.
Parou no caminho e respirou fundo.
Imagens do verão passavam pela sua cabeça. Estava a acontecer novamente? Não havia limites para o que podia acontecer neste país? Quem inflige uma tal morte a um idoso? Continuou a andar, Dois policiais com cães estavam à espera junto à casa. Também viu Ann-Britt Höglund e Hansson.
Ambos traziam casacos de chuva com capuzes na cabeça. Quando chegou ao fim do caminho e entrou na calçada do pátio, viram logo nele que algo tinha acontecido.
Wallander limpou a chuva da cara e contou o que vira. Notou que a sua voz estava trémula. Virou-se e apontou para o bando de corvos que tinham regressado assím que ele se afastara da valeta.
– Está lá em baixo – anunciou. – Está morto. Trata-se de homicídio. Pede patrulha completa.
Esperaram que dissesse alguma coisa mais. Mas não disse.
6
Enquanto caía a escuridão naquela quinta-feira, 29 de setembro, os policiais tinham montado uma proteção para a chuva sobre a valeta no local onde Holger Eriksson estava suspenso, espetado em nove fortes estacas de bambu. A lama misturada com sangue no fundo da valeta tinha sido retirada. O trabalho macabro e a chuva persistente tornaram o lugar do homicídio num dos mais lúgubres e repugnantes em que Wallander e os seus colegas alguma vez tinham estado. A lama enlambuzava e colava-se às botas, tropeçavam sobre cabos eléctricos que se enrolavam na lama e a luz forte dos holofotes que tinham sido montados reforçava a impressão de irrealidade e desconforto. Nessa altura já tinha conseguido contatar Sven Tyrén que identificou o homem suspenso nas estacas como sendo Holger Eriksson. Sobre isso não havia qualquer dúvida. A procura do desaparecido tinha acabado sem sequer ter começado. Tyrén estava notavelmente calmo, como se na realidade não tivesse tomado consciência sobre o que vira à sua frente. Depois movimentou-se inquieto, durante horas, fora do cordão de segurança, sem dizer uma única palavra, antes de Wallander descobrir, subitamente, que ele tinha desaparecido.
Wallander sentiu-se como um rato caçado e encharcado lá no fundo da valeta. Tinha visto que só com grande dificuldade os seus colaboradores mais próximos suportavam o que estavam a fazer. Tanto Svedberg como Hansson tiveram que deixar a valeta várias vezes com fortes náuseas. Mas Ann-Britt Höglund, que ele tinha tido vontade de mandar para casa logo ao princípio da noite, parecia estranhamente imune àquilo que estava a fazer. Lisa Holgersson tinha chegado assim que Wallander encontrara o corpo. Ela tinha organizado o local do homicídio de maneira a que as pessoas não escorregassem e caíssem desnecessariamente umas por cima das outras. A certa altura um jovem aspirante tinha tropeçado na lama e caído na valeta. Ferira uma das mãos numa das estacas e teve que ser visto pelo médico que exatamente naquela altura tentava determinar como deveriam retirar o cadáver. Wallander calhou ver como o aspirante escorregou e, num rápido flash, vislumbrou o que acontecera quando Holger Eriksson caíra e ficara espetado. Das primeiras coisas que ele próprio fizera com Nyberg, que era o técnico, foi investigar as grossas pranchas. Sven Tyrén conseguiu confirmar que tinham funcionado como um pontão sobre a valeta. O próprio Holger Eriksson as tinha colocado no local. Uma vez tinha ido com ele à torre na elevação. Wallander apercebera-se de que Holger Eriksson era um observador apaixonado de aves. Não era uma torre para caça, mas sim uma torre de observação. Os binóculos que pertenciam ao estojo tinham sido encontrados pendurados ao pescoço de Eriksson. Não levou muitos minutos para Nyberg constatar que as tábuas tinham sido serradas até a profundidade onde a resistência praticamente seria nula. Depois dessa informação, Wallander tinha subido da valeta, afastando-se para pensar. Tinha tentado visualizar a cena à sua frente, mas não conseguira. Todavia, quando Nyberg constatou que os binóculos tinham focagem noturna, Wallander pensou conseguir perceber como tudo tinha acontecido, mas, ao mesmo tempo, tinha dificuldade em estar de acordo com a sua própria imaginação. Caso estivesse certo, tinham à sua frente um local de homicídio preparado e planeado com uma perfeição tão assustadora e brutal que quase parecia inverosímil.
Tarde na noite começaram o trabalho de retirar o corpo de Holger Eriksson da valeta. juntamente com o médico e Lisa Holgersson, foram forçados a decidir se haviam de desenterrar as estacas, serrá-las ou escolher a alternativa quase insuportável de puxar o corpo.
Escolheram a última, aconselhados por Wallander. Ele e os seus colaboradores precisavam ver o local do homicídio exatamente como tinha estado antes de Holger Eriksson pisar as tábuas e ter caído para a morte. Wallander sentiu-se obrigado a participar na desagradável cena final em que Holger Eriksson foi retirado e depois afastado do local. Passava da meia-noite quando acabaram, a chuva tinha diminuído sem mostrar sinais de querer cessar, e a única coisa que se ouvia era um gerador eléctrico e o som de pernas com botas que chapinhavam na lama.
Depois tiveram um momento de inatividade. Nada aconteceu. Alguém tinha trazido café. Rostos cansados reluziam como fantasmas na luz branca. Wallander pensou que tinha de se concentrar para fazer um balanço da situação. O que tinha na realidade acontecido? Como iriam continuar? Todos estavam exaustos e já a noite ia a meio. Estavam incomodados, molhados e famintos. Martinsson tinha o celular colado à orelha. Wallander refletiu distraído se ele estaria a falar com a sua sempre preocupada mulher. Mas depois de ele ter desligado e devolvido o telefone ao bolso, informou que um meteorologista de serviço tinha prometido que a chuva iria cessar durante a noite. No mesmo instante, Wallander decidiu que o melhor que agora podiam fazer era esperar pela alvorada. Ainda não tinham começado a caça a um possível assassino, procuravam ainda alguns pontos de partida à volta dos quais pudessem reunir-se, as patrulhas de cães que tinham chegado ao local para procurar Holger Eriksson não tinham descoberto qualquer pista. Em dado momento Wallander e Nyberg tinham subido à torre. Mas não tinham conseguido ver ou descobrir algo que os fizesse avançar. Uma vez que Lisa Holgersson ainda estava lá, Wallander dirigiu-se a ela.
– Não chegamos a lado nenhum neste momento – disse. – Proponho que nos reunamos aqui de madrugada. O melhor que podemos fazer é descansar.
Ninguém tinha nada a opor, todos queriam sair dali. Todos exceto Nyberg. Wallander sabia que ele iria ficar e que iria continuar o seu trabalho pela noite fora e encontrá-lo-iam quando regressassem. Quando os outros tinham começado a mexer-se na direção dos automóveis junto ao pátio, Wallander ficou no local.
– O que achas? – perguntou.
– Não acho nada – respondeu Nyberg. – A não ser que em toda a minha vida nunca vi algo que faça lembrar isto.
Wallander acenou em silêncio. Também nunca tinha participado em nada semelhante.
Olharam Para dentro da valeta. A tela de plástico estava levantada.
– O que estamos realmente a ver? – indagou Wallander.
– Uma cópia de uma armadilha asiática para animais selvagens – respondeu Nyberg. – Que também foi utilizada em tempo de guerra. Wallander acenou.
– Bambu forte como este não cresce na Suécia – continuou Nyberg. – É importado para canas de pesca e para material de decoração.
– Além disso, não há animais predadores na Scania – acrescentou Wallander pensativo. – E também não estamos em guerra. Portanto, o que significa o que estamos a ver? – Algo que não pertence aqui – disse Nyberg. – Algo que não bate certo, que me assusta.
Observou-o atentamente. Era raro Nyberg falar tanto. O fato de, além disso, expressar aversão pessoal e medo era decididamente raro.
– Não trabalhes até demasiado tarde – disse como despedida. Nyberg não respondeu.
Wallander passou por cima do cordão de segurança, acenou para os policiais que iriam guardar o local durante a noite e continuou em direção à quinta. No meio do caminho, Lisa Holgersson tinha parado à espera dele. Tinha uma lanterna na mão.
– Temos jornalistas lá em cima. O que podemos na realidade dizer? – Pouco – respondeu Wallander.
– Nem sequer podemos dar-lhes o nome de Holger Eriksson? – declarou.
Wallander refletiu antes de responder.
– Acho que podemos – disse a seguir. – Assumo a responsabilidade que aquele motorista de camião de fato sabe do que está a falar. Que Holger Eriksson não tinha parentes. Se não houver ninguém a quem participar a morte, podemos divulgar o nome, pode ser-nos útil.
Continuaram a andar. Lá longe atrás deles reluziam fantasmagoricamente os holofotes.
– Podemos dizer mais alguma coisa? – perguntou.
– Que se trata de homicídio – respondeu Wallander. – Isso em todo o caso podemos determinar com certeza. Mas não temos o motivo, nenhuma pista de algum assassino.
– Tens alguma ideia? Wallander sentiu como estava cansado. Cada pensamento, cada palavra que tinha de pronunciar causava-lhe um esforço quase multrapassável.
– Eu não vi nada que tu não tivesses visto – retorquiu. – Mas tudo estava muito bem planeado. Holger Eriksson entrou diretamente numa armadilha que o prendeu. Isto dá-nos, sem grande esforço, pelo menos três conclusões.
Pararam novamente. A chuva tinha diminuído significativamente.
– Em primeiro lugar, podemos partir do princípio de que quem o cometeu conhecia Holger Eriksson e pelo menos parte dos seus hábitos – começou Wallander. – Em segundo lugar, que o assassino tinha realmente decidido tirar-lhe a vida.
Wallander deu indícios de começar a andar novamente.
– Disseste que sabemos três coisas? Wallander olhou para a cara dela, pálida à luz da lanterna. Ele interrogou-se qual seria o seu próprio aspecto. Teria o bronzeado de Itália desaparecido com a chuva durante a noite? – O assassino não queria só roubar a vida de Holger Eriksson. Também queria fazê-lo sofrer. Holger Eriksson pode ter estado suspenso bastante tempo antes de morrer. Ninguém o ouviu. Apenas os corvos. Quanto tempo sofreu, talvez os médicos possam dizer-nos em breve.
Lisa Holgersson fez um esgar de relutância.
– Quem faz uma coisa dessas? – perguntou enquanto continuavam a andar.
– Não sei – disse Wallander. – Só sei que estou indisposto. Quando chegaram ao altoo do campo encontraram dois jornalistas gelados e um fotógrafo à espera deles. Wallander cumprimentou -os, já os conhecia a todos. Olhou para Lisa Holgersson que acenou com a cabeça. Wallander contou, o mais resumidamente possível, o que tinha acontecido. Quando quiseram fazer perguntas levantou a mão num gesto suplicante e os jornalistas desapareceram.
– És um agente criminal com boa reputação – disse Lisa Holgersson. – No verão passado apercebi-me das tuas capacidades. Não há nenhum distrito policial na Suécia que não te quisesse no quadro.
Pararam junto ao carro dela. Wallander percebeu que ela estava a ser sincera em tudo o que dizia. Mas estava demasiado cansado Para o assimilar.
– Organiza isto como considerares melhor – prosseguiu. – Diz-me como queres e trato disso.
Wallander acenou.
– Vamos ver dentro de umas horas – disse. – Neste momento temos que dormir, tanto tu como eu.
Eram duas horas quando Wallander chegou A Mariagatan. Fez sanduíches e comeu na mesa da cozinha. Depois no quarto deitou-se na cama. E marcou o despertador para as cinco e pouco.
Às sete, num alvorecer cinzento, estavam novamente reunidos. O meteorologista tinha razão, a chuva tinha parado. Em vez de chuva tinha-se levantado vento e estava mais frio. Os policiais que tinham ficado durante a noite tiveram que, juntamente com Nyberg, pôr fixações para evitar que a tela de plástico que cobria o local do crime voasse com o vento. Quando de repente deixara de chover, Nyberg tinha tido um ataque de fúria contra os caprichos dos deuses do tempo. Uma vez que não parecia provável que logo a seguir viesse uma nova chuvarada, tinham tirado a tela de plástico. Daí resultara que Nyberg e os outros técnicos estavam agora a trabalhar na valeta totalmente desprotegidos contra aquele vento cortante.
Wallander, no carro a caminho da quinta de Eriksson, tinha tentado refletir sobre como iria organizar a investigação. Não sabiam nada sobre Holger Eriksson, mas o fato de ele ser rico podia naturalmente constituir um possível motivo. Mas Wallander teve dúvidas desde o primeiro momento. As estacas afiadas na valeta falavam uma outra linguagem. Não a conseguia interpretar, não sabia para onde apontavam, mas já se sentia preocupado por se depararem com algo tão fora do normal.
Como habitualmente quando se sentia inseguro, os seus pensamentos regressavam a Rydberg, o velho policial que em tempos tinha sido o seu professor, e desconfiava que seria um investigador de crimes extremamente banal se não tivesse os conhecimentos que ele lhe transmitira. Rydberg morrera de cancro faria em breve quatro anos. Wallander arrepiou-se ao pensar como o tempo tinha passado depressa. Depois interrogou-se em pensamento sobre o que Rydberg teria feito. Paciência, pensou. Rydberg teria acertado diretamente no âmago do seu Sermão na montanha. Ter-me-ia dito que agora mais do que nunca vigorava a regra da paciência.
Instalaram um quartel-general provisório em casa de Eriksson. Wallander tentou definir as tarefas mais importantes e tratar de as distribUir tão eficientemente quanto possível.
No início da manhã, quando todos estavam cansados e abatidos, Wallander tentou executar a impossível tarefa de fazer um resumo. Na realidade só tinha uma coisa a dizer: Não tinham nenhum ponto de partida.
– Sabemos muito pouco – começou. – Um motorista de um caMião-cisterna, chamado Sven Tyrén, participa algo que ele desconfia ser um desaparecimento. Aconteceu na terça-feira. De acordo com o que Sven Tyrén disse e atendendo à data do poema, podemos partir do princípio de que o homicídio aconteceu nalgum momento após as dez da noite na quarta-feira da semana passada. Exatamente quando, não podemos saber, mas pelo menos não aconteceu antes disso. Temos que aguardar pelo resultado da investigação da medicina legal.
Wallander fez uma pausa. Ninguém tinha perguntas a fazer. Svedberg assoou-se, os seus olhos estavam brilhantes. Wallander pensou que provavelmente tinha febre e devia ter ficado em casa de cama. Por outro lado, tanto Svedberg como ele próprio sabiam que agora precisavam de todas as forças disponíveis.
– Sobre Holger Eriksson sabemos pouco – continuou Wallander.
– Um ex-vendedor de automóveis, rico, solteiro, sem filhos. Era uma espécie de poeta popular e, além disso, pelos vistos interessado em aves.
– Talvez saibamos um pouco mais – interrompeu Hansson. Holger Eriksson era uma pessoa conhecida, pelo menos nesta zona e há mais de dez, vinte anos. Talvez se possa dizer que tinha fama de vendedor astuto, duro a negociar. Não suportava sindicatos. Ganhou muito dinheiro e esteve envolvido em processos sobre impostos e era suspeito de bastantes ilegalidades. Mas nunca foi apanhado, segundo sei.
– Por outras palavras, estás a dizer que pode ter tido inimigos – disse Wallander.
– É muito provável que sim. O que não quer dizer que estivessem preparados para cometer um homicídio, principalmente da forma como foi feito.
Wallander decidiu esperar para entrar no assunto das estacas bicudas e das tábuas serradas. Queria avançar em sequência, e também arrumar todos os pormenores na sua cabeça cansada. Também isso era uma coisa que Rydberg frequentemente lhe tinha recomendado. A investigação de um crime é uma espécie de estaleiro. Tudo tem de serfeito na ordem certa para que possa funcionar.
– Em primeiro lugar temos que fazer um mapa sobre Holger Eriksson e a sua vida – afirmou Wallander. – Mas antes de distribuir o trabalho entre nós, quero traçar um quadro de como eu acho que o caso se passou.
Estavam sentados à volta da grande mesa redonda da cozinha. À distância conseguiam ver pela janela os cordões de segurança e a tela branca de plástico que ondulava ao vento. Nyberg parecia um espantalho amarelo na lama a abanar os braços. Wallander, no seu íntimo, conseguia ouvir a sua voz cansada e irritada, mas sabia que Nyberg era competente e minucioso. Se ele abanava os braços, era porque tinha motivo para isso.
Wallander reparou como a atenção gradualmente aumentava. Tinha tido esta mesma experiência muitas vezes. O grupo de investigação começava a farejar a pista.
– Eu penso que se desenrolou da seguinte maneira – começou Wallander, e agora falava lentamente e escolhia as palavras com cuidado. – Num determinado momento depois das dez na quarta-feira à noite, ou talvez cedo na manhã de quinta-feira, Holger Eriksson sai de casa. Deixa a porta destrancada porque tem intenção de regressar brevemente. Além disso, não ia abandonar a propriedade e leva uns binóculos. Nyberg constatou que têm focagem noturna. Caminhou pelo caminho em direção à valeta onde tinha colocado um pontão. Provavelmente estava a caminho da torre em cima da pequena elevação do outro lado da valeta. Holger Eriksson interessava-se por aves. Nesta altura, em setembro e outubro, as aves migratórias dirigem-se para sul. Não sei muito sobre como isso se processa e qual a ordem de partida delas, mas já ouvi dizer que a maioria, e talvez os bandos maiores, levantam voo e navegam de noite. O que pode explicar os binóculos noturnos e a hora, caso não tenha acontecido de manhã. Ele chegou e pisou o pontão, que se partiu porque as tábuas tinham sido antes quase totalmente serradas. Cai diretamente na valeta, de barriga para baixo e fica espetado nas estacas. Lá morre. Se pediu socorro, ninguém o ouviu. Não é sem razão que a quinta se chama "Refúgio".
Deitou café de um dos termos da Polícia antes de continuar. – Julgo que aconteceu assim – disse. – Levanta mais perguntas do que respostas, mas é por aqui que temos de começar. Temos que lidar com um homicídio bem planeado, brutal e horrendo. Não temos nenhum motivo evidente, nem sequer imaginável, e nem pistas a seguir.
Fez-se silêncio. Wallander passeou o olhar à volta da mesa. Por fim foi Ann-Britt Höglund que quebrou o silêncio.
– Mas uma coisa é importante. Quem o fez não pretendeu ocultar o crime.
Wallander concordou. Tencionava voltar precisamente a esse ponto.
– Eu julgo que há um risco de haver mais alguma coisa ainda – disse. – Se olharmos para esta armadilha brutal, poder-se-á compará-la com uma pura demonstração de monstruosidade.
– Calhou-nos um louco para procurar? – perguntou Svedberg. Todos à volta da mesa sabiam o que queria dizer. O verão não estava assim tão afastado.
– Não podemos ignorar esse risco – anuiu Wallander. – Aliás, não podemos pôr de parte absolutamente nada.
– É como uma armadilha de urso – disse Hansson. – Ou algo que se tenha visto num velho filme de guerra da Ásia. É uma combinação esquisita. Uma armadilha para urso e um observador de aves.
– Ou vendedor de automóveis – introduziu Martinsson que tinha estado calado.
– Ou poeta – acrescentou Ann-Britt Höglund. – Temos muito por onde escolher.
já passava das oito. A reunião acabou. Por enquanto iriam continuar a servir-se da cozinha de Holger Eriksson quando tivessem necessidade de se reunir. Svedberg foi embora para ter uma conversa séria com Sven Tyrén e com a rapariga da empresa de óleos que recebera o pedido de encomenda. Ann-Britt Höglund trataria de ver se todos os vizinhos na área eram contatados e entrevistados. Wallander lembrou-se do correio na caixa e pediu-lhe para falar com o carteiro. Hansson recorreria à ajuda de um dos técnicos de Nyberg para investigar dentro de casa, enquanto Lisa Holgersson e Martinsson iriam organizar todas as outras intervenções.
A roda da investigação tinha começado a rolar.
Wallander vestiu o casaco, meteu-se a caminho da valeta onde o plástico ondulava ao vento. Nuvens rasgadas corriam no céu. Encolheu-se ao vento. Subitamente ouviu o som caraterístico de gansos a voar. Parou e olhou para o céu. Levou um bocado até descobrir as aves. Era um pequeno bando muito alto, logo abaixo das nuvens, na direção sudoeste. Calculou que eles, como todas as outras aves migratórias sobre a Scania, deixavam o país pelo paul de Falsterbo.
Wallander ficou parado e pensativo a observar as aves. Pensou no poema que estava em cima da mesa. Depois continuou a andar, percebendo que a sua ansiedade aumentara continuamente.
Havia algo em toda esta ação brutal que o perturbava. Só podia tratar-se de uma manifestação cega de ódio ou de loucura. Porém, por detrás do homicídio, podia também haver muito planejamento e frieza. Não conseguiu determinar o que o assustava mais.
Nyberg e os seus técnicos tinham começado a tirar as estacas ensanguentadas da lama quando Wallander chegou à valeta. Cada estaca era enrolada num plástico e levada para um carro ali estacionado. Nyberg tinha manchas de lama na cara e movia-se pesadamente e aos solavancos dentro da valeta.
Wallander pensou que estava a olhar para uma sepultura.
– Como vai? – perguntou e tentava parecer encorajador. Nyberg murmurou algo imperceptível como resposta. Wallander decidiu que seria aconselhável não fazer perguntas, por enquanto. Nyberg estava irritado e caprichoso e não se inibiria de começar a discutir fosse com quem fosse. A opinião geral na central de Ystad era que Nyberg não hesitaria um instante em começar a gritar com o Comandante Nacional da Polícia se tivesse a mais pequena razão para o fazer.
A Polícia tinha construído uma ponte provisória sobre a valeta. Wallander foi para a elevação do outro lado. As rajadas de vento puxavam-lhe o casaco. Observou a torre que tinha cerca de três metros. Estava construída com o mesmo tipo de tábuas que Holger Eriksson tinha utilizado para o pontão. Uma escada estava inclinada contra a torre. Wallander subiu. A plataforma tinha pouco mais do que um metro quadrado. O vento batia-lhe na cara. Apesar de se encontrar apenas a uma altura de três metros, toda a paisagem mudou. Vislumbrou Nyberg na valeta. À distância viu a quinta de Eriksson. Baixou-se e começou a inspecionar a plataforma. Repentinamente arrependeu-se por ter subido à torre antes de Nyberg ter acabado a investigação e desceu com rapidez. Tentou colocar-se de forma a ficar protegido do vento junto à torre. Sentiu que estava muito cansado. Alguma coisa o magoava ainda mais profundamente. Tentou decidir o nome a dar a esse sentimento. Abatimento? A alegria foi muito curta. A viagem para Itália. A sua decisão pessoal de adquirir uma casa, eventualmente também um cão. E Balba que estava para vir.
Mas então surge um velho homem espetado numa valeta e o mundo começa a fugir-lhe sob os pés.
Refletiu sobre quanto tempo mais iria ainda aguentar. Esforçou-se por afastar tão tristes pensamentos. Tinham que encontrar, o mais depressa possível, quem tinha criado esta armadilha macabra para Holger Eriksson. Wallander desceu cuidadosamente a colina e à distância conseguiu ver Martinsson aproximar-se do caminho. Como habitualmente estava com pressa. Wallander foi ao encontro dele. Ainda se sentia atrapalhado e inseguro. Como iria atacar a investigação? Procurou uma primeira abordagem, mas não encontrava nenhuma.
Depois viu na cara de Martinsson que algo tinha acontecido.
– O que é? – perguntou.
– Tens que telefonar a alguém que se chama Vanja Andersson. Wallander teve que procurar na sua memória antes de se lembrar da loja de flores na Rua Vãstra Vallgatan.
– Vai ter que ficar pendente – disse surpreendido. – Que diabo, agora não temos tempo para isso.
– Não tenho tanta certeza – insistiu Martinsson, e parecia quase incomodado por ter de o contrariar.
– Porque assim? – Parece que aquele proprietário da loja nunca chegou a partir para Nairobi, Gösta Runfeldt.
Wallander continuava a não entender de que falava Martinsson.
– Pelos vistos, ela telefonou à agência de viagens para perguntar a hora exata do regresso dele. Então ficou a saber.
– A saber o quê? – Que Gösta Runfeld nunca chegou a Kastrup. Nunca foi para África. Apesar de ter levantado o bilhete.
Wallander fitou Martinsson.
– Significa portanto que há mais uma pessoa que parece desaparecida – disse Martinsson inseguro.
Wallander não respondeu.
7
Já eram nove horas da manhã de sexta-feira, 30 de setembro.
Wallander levou duas horas para perceber que, na realidade, Martinsson tivera razão. No caminho para Ystad, depois de ter decidido visitar Vanja Andersson sozinho, também se lembrara de algo que tinha sido dito anteriormente, que inclusivamente havia outra semelhança entre os dois casos. Um ano antes Holger Eriksson tinha participado um assalto à Polícia de Ystad, apesar de nada ter sido roubado. E Gösta Runfeldt também tivera um assalto na sua loja donde também nada parecia ter desaparecido. Wallander foi para Ystad sentindo uma inquietação crescente. O assassínio de Holger Eriksson era mais do que suficiente, não era necessário mais um desaparecimento. Pelo menos nenhum que se viesse a confirmar ter uma relação com Holger Eriksson. Não precisavam de mais uma valeta com estacas bicudas. Wallander conduzia demasiado depressa, como se tentasse deixar o pensamento para trás, o pensamento que mais uma vez na sua vida tomava a direção de um pesadelo. Volta e meia carregava com força no travão, como se desse ordens ao carro, e não a si mesmo, de ter calma e começar a pensar sensatamente. O que havia de fato que provasse que Gösta Runfeldt tinha realmente desaparecido? Podia existir uma explicação plausível. O que tinha acontecido a Holger Eriksson nunca acontecia na realidade, acima de tudo, não acontecia duas vezes. Pelo menos não na Scania e definitivamente não em Ystad. Teria que haver uma explicação, e essa, Vanja Andersson iria dar-lha.
Mas Wallander não conseguiu convencer-se. Parou na central antes de ir à loja de flores na Rua Vãstra Vallgatan. Cruzou-se no corredor com Ann-Britt Höglund e levou-a à cantina onde policiais de trânsito cansados dormitavam sobre os seus almoços. Foram buscar café, sentaram-se a uma mesa e Wallander falou da chamada telefônica que Martinsson tinha recebido. A reação dela foi igual à dele. Desconfiança. Tem que ser uma mera coincidência. Todavia, Wallander pediu a Ann-Britt Höglund para procurar uma cópia da participação de assalto que Holger Eriksson tinha feito no ano anterior. Também queria que ela fosse ver se existia outra relação entre Holger Eríksson e Gösta Runfeldt. Caso existisse, devia ser bastante fácil encontrá-la no computador. Sabia que ela tinha muito que fazer, mas era importante que isto fosse feito imediatamente. Era para arrumar a casa antes de os convidados chegarem. Ele próprio percebeu como o provérbio caía mal, de resto não sabia donde provinha. Ela olhou espantada para ele e esperou uma continuação que não veio.
– Temos que nos despachar – disse apenas. -Quanto menos energia tivermos de despender para constatar que não existe qualquer relação, tanto melhor.
Tinha pressa e estava prestes a levantar-se da mesa, mas ela travou-o com uma pergunta.
– Quem o poderá ter feito? – perguntou.
Wallander sentou-se. Viu as estacas ensanguentadas à sua frente. Uma imagem insuportável.
– Não sei – disse. – É tão sádico e macabro que não consigo imaginar algum motivo normal, se é que eles existem para tirar a vida a uma pessoa.
– Há – respondeu decididamente. – Tanto tu como eu temos sentido raiva suficiente para desejar a morte a alguém. Para alguns não existe o travão normal, esses matam.
– O que me assusta é que foi tão bem planeado – prosseguiu Wallander. – Quem o fez dedicou-lhe muito tempo, conhecia os hábitos de Holger Eriksson pormenorizadamente. Provavelmente registrou-os.
– Talvez haja uma entrada exatamente por aí – sugeriu. – Parece que Holger Eriksson não tinha amigos próximos, mas apesar disso quem o matou teve na mesma que ter estado na sua proximidade. De algum modo. Em todo o caso, teve que estar lá fora junto à valeta. Serrou as tábuas. Teve que ir para lá e teve que sair dali. Alguém o deve ter visto. Ou um carro que não fosse bem dali. As pessoas mantêm um olho nestes acontecimentos e a gente do campo é como os animais da floresta. Observam-nos. Mas nós não os descobrimos.
Wallander acenou por acenar. Não escutara tão concentrado como devia.
– Temos que falar mais tarde – disse. – Agora vou à loja das flores.
– Vou ver o que posso encontrar – afirmou ela.
Separaram-se à porta da cantina. À saída da central Ebba chamou-o para lhe dizer que o pai tinha telefonado.
Depois – respondeu Wallander com reprovação. – Agora não. É horroroso o que aconteceu – observou Ebba. – Wallander pensou que era quase como se ela sofresse um desgosto pessoal que, no entanto, o tivesse atingido a ele.
– Comprei-lhe um carro uma vez – disse. Um PV 444. Wallander levou uns instantes até perceber que ela se referia a Holger Eriksson.
– Sabes conduzir? – perguntou a seguir espantado. – Nem sequer sabia que tens carta de condução.
– Conduzo sem falhas há 39 anos. E ainda tenho o PV – Wallander chegou à conclusão de que durante anos volta e meio tinha visto um PV preto, bem cuidado, no estacionamento da Polícia sem nunca sequer ter refletido sobre de quem seria.
– Espero que tenhas feito um bom negócio – disse.
– Holger Eriksson fez um bom negócio – respondeu decidida. Paguei demasiado pelo carro. Mas como cuidei dele todos estes anos provavelmente sou quem, no fim, fez um bom negócio. Hoje em dia é considerado um carro antigo.
– Tenho que ir – disse Wallander. – Mas qualquer dia vais ter de me convidar para um passeio.
-Não te esqueças de telefonar ao teu pai – lembrou ela. Wallander parou e refletiu. Depois decidiu-se.
– Telefona-lhe – disse a Ebba. – Faz-me esse favor. Telefona e explica-lhe o que estou a fazer. Diz-lhe que lhe vou telefonar assim que puder. Suponho que não seja nada urgente? – Só queria falar sobre Itália – esclareceu ela. Wallander concordou.
– Vamos falar sobre Itália – disse. – Mas agora não. Diz-lhe isso. Wallander foi diretamente para a Vãstra Vallgatan. Estacionou mal, em cima de metade do estreito passeio, e entrou na loja. Havia clientes. Fez sinal a Vanja Andersson que podia esperar. Cerca de dez minutos depois a loja estava vazia. Vanja Andersson escreveu "Fechado" num papel que colou na porta e fechou-a. Foram para o pequeno e apertado escritório nas traseiras. O cheiro a flores fez com que Wallander quase se sentisse tonto. Uma vez que, como habitualmente, não tinha onde escrever, pegou fichas e começou a fazer anotações na parte de trás. Havia um relógio na parede. Cinco minutos para as onze.
– Vamos começar pelo princípio – disse Wallander. – Telefonou à agência de viagens. Por quê? Viu que ela estava confusa e preocupada. Ainda para mais na mesa estava o jornal de Ystad com uma grande reportagem sobre o assassínio de Holger Eriksson. Mas ela não sabe, pensou Wallander, que eu estou aqui e espero não ter que descobrir que haja uma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt.
– Gösta tinha anotado num papel o dia de chegada – começou. Devo tê-lo posto em algum lado. Fartei-me de procurar mas não o encontrei e então telefonei à agência de viagens. Disseram-me que devia ter ido no dia 23, mas que não chegou a aparecer no aeroporto de Kastrup.
– Como se chama a agência de viagens? – Viagens Especiais. Em Malmö.
– Com quem falou? – Com Anita Lagergren. Wallander tomava apontamentos.
– Quando telefonou? Ela informou-o.
– E o que tinha Anita Lagergren mais para contar? – Gösta não chegou a ir. Não apareceu no check-in em Kastrup. Telefonaram para o número de telefone que ele tinha dado, mas ninguém respondeu e o avião teve que partir sem ele.
– E depois não fizeram mais nada? – Anita Lagergren disse que tinham escrito uma carta onde explicavam que Gösta não podia contar com o reembolso dos custos da viagem.
Wallander notou que ia dizer mais alguma coisa. Mas ela deteve-se.
– Pensou em alguma coisa – encorajou-a num tom agradável.
– A viagem era muito cara – disse. – Anita Lagergren mencionou o preço.
– Quanto custou? – Quase 30.000 coroas. Por quinze dias.
Wallander concordou. A viagem era realmente cara. Ele nunca, por nada na vida, pensaria fazer uma viagem dessas. juntos, ele e o pai, durante a semana em Roma, tinham gasto cerca de um terço desse montante.
– Eu não entendo – disse de repente. – Gösta nunca faria isso. Wallander seguia as dicas dela.
– Há quanto tempo trabalha para ele? – Quase onze anos.
– E tem corrido bem? – Gösta é boa pessoa. Adora flores de verdade. Não só orquídeas.
– Vamos falar disso mais tarde. Como o descreveria? Refletiu.
– Simpático e– normal. Um pouco original. Um solitário. Wallander pensou com desagrado que era a descrição que provavelmente assentaria em Holger Eriksson, com a excepção de que Holger Eriksson não teria sido uma pessoa simpática.
– Não era casado? – Era viúvo.
– Tinha filhos? – Dois. São casados e têm filhos. Nenhum deles mora na Scania.
– Que idade tem Gösta Runfeldt?
– 49 anos.
Wallander olhou para as suas anotações.
– Viúvo – disse. – Então a mulher tinha que ser bastante nova quando morreu. Foi num acidente? – Não sei bem. Nunca falava disso. Mas julgo que foi afogamento. Wallander ficou com essa resposta. Viria tempo em que teriam de rever tudo pormenorizadamente. Caso viesse a ser necessário, que era o que não queria de todo.
Wallander colocou a caneta na mesa. O cheiro das flores era muito forte.
– Neste espaço de tempo deve ter refletido em duas coisas – disse. – Uma por que é que ele não foi para África, a outra onde estará ele em vez de Nairobi.
Ela anuiu. Num repente Wallander reparou que ela tinha lágrimas nos olhos.
– Deve ter acontecido alguma coisa – disse. – Assim que acabei de falar com a agência, fui ao apartamento dele que fica aqui perto. Tenho a chave porque vou lá regar as plantas. Como pensei que ele tinha ido viajar fui lá duas vezes. Coloquei o correio em cima da mesa. Agora fui lá outra vez, mas ele não estava lá, nem tem estado lá.
– Como sabe?
– Notaria.
– O que acha que possa ter acontecido?
– Não sei. Estava tão entusiasmado com esta viagem. No inverno vai acabar o seu livro sobre orquídeas. Wallander sentiu a sua própria preocupação aumentar. Reconheceu o alarme silencioso que às vezes disparava.
Juntou as fichas onde tinha feito as anotações.
– Preciso de ver o apartamento dele – informou. – E você tem que reabrir a loja. Eu julgo que tudo terá uma explicação natural. Ela procurou na cara dele confirmação de que realmente ele próprio acreditava nisso, mas Wallander sabia que ela não poderia encontrar essa confirmação.
Recebeu as chaves do apartamento que ficava na mesma rua, um quarteirão mais perto do centro.
– Entrego-as quando tiver acabado – disse.
Quando chegou à rua, um casal de idosos estava com grande dificuldade tentando passar pelo seu carro mal estacionado. Olharam para ele com reprovação. Fingiu não reparar e saiu simplesmente dali.
8
O apartamento situava-se no segundo andar dum prédio que Wallander calculou ter sido construído na passagem do século. Tinha elevador, mas Wallander preferiu a escada. Há uns anos tinha pensado em mudar para um apartamento num prédio semelhante. Agora já não sentia essa vontade. Se fosse trocar o apartamento da Mariagatan, tinha que ser por uma casa com jardim onde Balba iria morar e talvez também um cão. Abriu e entrou no apartamento. Pensou, de repente, quantas vezes na sua vida teria pisado terreno estranho que era o lar de pessoas desconhecidas. Parou assim que passou a porta e ficou quieto. Cada apartamento tinha o seu carácter. Wallander tinha durante anos treinado o hábito de auscultar vestígios das pessoas que lá viviam. Deu uma lenta volta ao apartamento, pois os primeiros passos eram frequentemente os mais importantes. A primeira impressão, à qual mais tarde iria regressar. Vivia aqui um homem chamado Gösta Runfeldt e que uma manhã não aparecera onde devia, no aeroporto de Kastrup. Wallander pensou no que Vanja Andersson tinha dito, sobre o entusiasmo por esta viagem, o que intensificou a sua preocupação.
Após ter passado pelas quatro divisões e cozinha, Wallander parou no meio da sala. Era um apartamento grande e com muita luz. Ficou com uma leve impressão de que estava mobilhado com desinteresse. A única divisão que tinha personalidade era a sala de trabalho. Lá reinava um caos acolhedor, livros, papéis, litografias com flores, mapas. Uma mesa atulhada e um computador desligado. Algumas fotografias no parapeito da janela de filhos e netos. Uma fotografia de Gösta Runfeldt algures numa paisagem asiática, cercado de orquídeas gigantes. Por trás estava escrito a tinta permanente que tinha sido tirada em Burma, 1972. Gösta Runfeldt sorria para o fotógrafo desconhecido. Um sorriso simpático de um homem bronzeado. As cores tinham empalidecido. Mas não o sorriso de Gösta Runfeldt. Wallander colocou a fotografia novamente no lugar e olhou para um mapa-múndi pendurado na parede. Com dificuldade procurou onde ficava Burma. Depois sentou-se à secretária. Gösta Runfeldt ia fazer uma viagem, mas nunca chegara a partir, pelo menos não para Nairóbi no voo fretado das Viagens Especiais. Wallander levantou-se da cadeira e entrou no quarto de dormir. A cama estava feita, uma cama estreita de pessoa só. Na mesa de cabeceira havia uma pilha de livros. Wallander verificou que os títulos eram de livros sobre flores. O único que se destacava era um livro sobre o comércio internacional de valores. Wallander repôs o livro. Procurava outra coisa. Abaixou-se para olhar sob da cama. Nada. Abriu as portas dos roupeiros. Numa prateleira no alto do armário havia duas malas de viagem. Pôs-se em bicos dos pés e tirou-as. Estavam vazias. Depois foi à cozinha buscar um banco. Olhou para a prateleira mais alta. Agora encontrara o que ele procurava. Um apartamento de um homem que vive sozinho, raramente está livre de pó. O apartamento de Gösta Runfeldt não era nenhuma exceção. A marca de pó era muito nítida. Tinha estado ali mais uma mala. Como as outras duas que tinha tirado eram velhas e, além disso, uma delas tinha um fecho estragado, Wallander concluiu que ele tinha usado a terceira mala. Se tivesse viajado. Caso ela não estivesse num outro lugar no apartamento. Tirou o casaco, pendurou-o nas costas duma cadeira e abriu todos os armários e lugares de arrumação onde poderia caber uma mala, mas não encontrou nada. Depois foi outra vez para o escritório. Se Gösta Runfeldt tivesse viajado, teria que levar o passaporte. Passou as gavetas da secretária, que não estavam fechadas à chave, a pente fino. Numa delas havia um velho herbário. Wallander abriu-o: Gösta Runfeldt 1955. Já no tempo da escola tinha colecionado plantas. Wallander contemplou uma centáurea de quarenta anos que ainda tinha a cor azul, pelo menos como uma memória empalidecida. Wallander nunca tinha secado plantas. Continuou a pesquisa, mas não encontrou nenhum passaporte. Franziu a testa. Tinha desaparecido uma mala de viagem e o passaporte. Também não encontrou os bilhetes. Deixou o escritório e sentou-se num sofá na sala. Às vezes mudar de cadeira ajudava-o a reformular os pensamentos. Havia muitos indícios de que, na realidade, Gösta Runfeldt tinha deixado o apartamento. Com passaporte, bilhetes e uma mala feita.
Prosseguiu os seus pensamentos. Poderia ter acontecido algo no caminho para Copenhagen? Poderia ter caído do barco à água? Nesse caso a mala tinha que estar nalgum lado. Tirou um dos cartões que trazia na algibeira. Num tinha anotado o número de telefone da loja. Foi à cozinha telefonar. Pela janela conseguia ver os depósitos altos no porto de Ystad. Mais além um dos ferries polacos no caminho de saída pelo molhe de pedra. Vanja Andersson respondeu.
– Continuo no apartamento – disse. – Tenho umas perguntas. Ele falou em como iria para Copenhagen? A resposta dela veio pronta e decidida.
– Ia sempre por Limhamn e Dragor. Mais uma questão esclarecida.
– Tenho mais uma pergunta. Sabe quantas malas de viagens ele tinha? – Não – disse. – Como podia saber? Wallander percebeu que devia colocar a pergunta de outro modo.
– Como era a mala dele? Talvez a tenha visto alguma vez?
– Raramente tinha muita bagagem – respondeu. – Ele tinha a arte de viajar. Tinha um saco a tiracolo e uma mala com rodas.
– De que cor? – perguntou Wallander.
– Era preta.
– Tem certeza?
– Sim – confirmou. – Tenho certeza. Fui algumas vezes ao seu encontro no regresso. À estação ou ao aeroporto de Sturup. Gösta nunca Jogavava nada fora sem justificação. Se tivesse sido obrigado a comprar uma mala nova, eu sabê-lo-ia. Então ter-se-ia queixado por ser muito cara. Às vezes era forreta.
Mas a viagem para Nairobi custa 30.000 coroas, pensou Wallander, e esse dinheiro jogarafora. O que não deve ter acontecido de livre vontade.
Sentiu que o desconforto se acentuava cada vez mais. Finalizou a conversa e anunciou que dentro de meia hora iria à loja com as chaves.
Só depois de ter desligado se lembrou que ela provavelmente fechava a loja à hora de almoço. A seguir pensou no que ela tinha dito, uma mala preta. As duas que tinha encontrado no armário do quarto eram cinzentas e também não tinha visto nenhum saco a tiracolo. Além disso, agora sabia que Gösta Runfeldt partia para o mundo via Limbarnti. Parou à janela e olhou por cima dos telhados. O ferry para a Polônia tinha desaparecido.
Não bate, pensou. Gösta Runfeldt não desapareceu voluntariamente. Pode ter acontecido um acidente. Mas também isso não era certo. Com vista a obter uma resposta imediata a uma das perguntas decisivas, telefonou às informações para saber o número de telefone da companhia que fazia o transporte entre Limhamn e Dragõr. Teve sorte, conseguiu imediatamente falar com a pessoa responsável pelos perdidos e achados nosferries. O homem falava dinamarquês. Wallander explicou quem era e perguntou pela mala preta. Informou a data e aguardou. Levou uns minutos antes de o dinamarquês, que se tinha apresentado como Mogensen, regressar.
– Nada – disse.
Wallander tentou pensar. Depois perguntou.
– Acontece gente desaparecer dos ses barcos? Que caiam na água?
– Muito raramente – respondeu Mogensen. – Wallander ficou com a impressão de que ele era convincente.
– Mas acontece?
– Acontece em todo o tipo de transporte de barco. Gente que acaba com a vida. Gente embriagada. Alguns são loucos e querem equilibrar-se nas balaustradas, mas é muito raro.
– Tem alguma estatística sobre se as pessoas que caem são reencontradas? Mortos ou vivos?
– Não tenho nenhuma estatística – respondeu Mogensen. – Mas ouve-se falar. A maioria dá à costa. Mortos. Alguns ficam presos em redes de pesca, outros desaparecem para sempre, mas não são muitos.
Wallander não tinha mais perguntas. Agradeceu a ajuda e desligou. Não sabia nada ao certo. Porém, agora estava mesmo convencido de que Gösta Runfeldt nunca tinha ido a Copenhagen. Tinha feito a mala, levado o passaporte e o bilhete e deixado o apartamento.
Depois desaparecera.
Wallander pensou na mancha de sangue na loja. O que significaria? Talvez estivessem enganados? Podia muito bem ser que o assalto nãotivesse sido um engano. Deu uma volta pelo apartamento tentando raciocinar. Era quase meio-dia e um quarto. O telefone tocou na cozinha, o primeiro toque fê-lo dar um salto. Depois respondeu prontamente. Era Hansson que telefonava do local do crime.
– Ouvi por Martinsson que Runfeldt desapareceu – disse. Como vão as coisas por aí? – Pelo menos não está aqui – respondeu Wallander.
– Formaste alguma opinião? – Não, mas penso que tinha intenção de viajar. Alguma coisa o impediu.
– Achas que há alguma relação? Com Holger Eriksson? Wallander refletiu. O que pensava na realidade? Não sabia. Foi também isso que lhe respondeu.
– Não podemos ignorar essa possibilidade – limitou-se a afirmar.
– Não podemos ignorar nada.
Depois mudou de assunto e perguntou se tinha acontecido alguma coisa. Hansson não tinha novidades a dar. Depois de desligarem, Wallander deu uma volta lenta pelo apartamento mais uma vez. Tinha a sensação de que havia algo lá dentro em que devia reparar. Finalmente desistiu. Folheou o correio na entrada. A carta da agência encontrava-se lá assim como uma conta de electricidade. Além disso, tinha chegado uma encomenda postal de uma empresa de Boras. A encomenda seria levantada contra pagamento. Wallander meteu o aviso na algibeira.
Vanja Andersson estava à sua espera na loja quando chegou com as chaves. Ele pediu-lhe para o contatar, caso se lembrasse de algo que considerasse ser importante.
Depois seguiu para a central. Entregou o aviso a Ebba e pediu-lhe para se encarregar de mandar levantar a encomenda.
À uma hora fechou a porta do escritório. Tinha fome.
A preocupação era, no entanto, maior. Reconheceu a sensação. Sabia o que significava.
Ele duvidava de que alguma vez fossem encontrar Gösta Runfeldt com vida.
9
À meia-noite, Ylva Brink conseguiu finalmente sentar-se e beber um café. Ela era uma das duas parteiras que trabalhavam na maternidade de Ystad na noite de 30 de setembro para 1º de outubro. A sua colega, que se chamava Lena Söderstrõm, estava numa sala onde uma mulher tinha começado com dores de parto. Até aquele momento tinha sido uma noite trabalhosa, sem dramas, mas com uma constante cadeia de tarefas necessárias a executar.
Tinham pouco pessoal. Duas parteiras e duas enfermeiras teriam que, sozinhas, conseguir resolver todas as tarefas da noite. Como apoio havia um médico que podiam chamar caso surgissem hemorragias sérias ou outras complicações. Todavia, anteriormente tinha sido pior, pensou Ylva Brink quando se sentou no sofá com a xícara de café na mão. Havia uns anos trabalhava sozinha como parteira durante as longas noites. Nalgumas ocasiões tinham surgido situações complicadas quando não podia estar em dois sítios ao mesmo tempo. Foi nessa altura que tinham conseguido convencer a direção do hospital a satisfazer a exigência de haver sempre, pelo menos, duas parteiras de serviço durante a noite.
O escritório onde estava situava-se no meio da grande divisão. As paredes de vidro permitiam que ela conseguisse ver o que se passava lá fora. Durante o dia havia um constante movimento nos corredores. Mas agora de noite era tudo diferente. Gostava de trabalhar de noite. Muitos dos seus colegas preferiam evitar isso. Tinham famílias, não conseguiam dormir o suficiente durante o dia. Mas Ylva Brink, que tinha filhos adultos e um marido que era chefe de máquinas num petroleiro que navegava entre portos do Médio Oriente e da Ásia, não tinha nada contra as noites. Para ela era apaziguador trabalhar enquanto os outros dormiam.
Bebeu com prazer o café e tirou uma fatia de pão-de-ló do prato. Uma das enfermeiras entrou e sentou-se, logo a seguir veio a outra.
Um rádio estava ligado baixinho a um canto. Começaram a conversar sobre o outono, sobre a chuva persistente. Uma das enfermeiras tinha sabido pela mãe, que tinha o dom de prever o clima, que o inverno iria ser frio e longo. Ylva Brink refletiu nas vezes em que a Scania tinha ficado isolada pela neve. Não acontecera com frequência, mas quando acontecia, podiam surgir situações dramáticas de parturientes que não conseguiam chegar ao hospital. Lembrou-se de uma vez ter apanhado muito frio num trator gelado, que procurava avançar através da tempestade pelas camadas de neve até uma quinta afastada no norte da cidade. A mulher tinha tido hemorragias fortes. Foi a única vez durante todos os anos em que trabalhara como parteira que verdadeiramente tinha tido receio de perder uma mulher e isso era algo que não podia acontecer. A Suécia era um país onde as mulheres simplesmente não morriam ao ter um filho.
Mas ainda era outono, a época das sorveiras. Ylva Brink, oriunda do norte do país, sentia às vezes saudades das florestas do norte. Nunca se tinha habituado a viver na paisagem da Scania, onde o vento dominava sem limites. Mas a vontade do marido tinha prevalecido. Ele tinha nascido em Trelleborg e não conseguia imaginar viver noutro sítio fora da Scania. Quando uma vez por outra, embora rara, tivesse tempo para estar em casa.
Foi interrompida nos seus pensamentos quando Lena Sõderstrõm entrou na sala. Tinha pouco mais de trinta anos. Podia ser minha filha, pensou Ylva, tenho exatamente o dobro, sessenta e dois anos.
– Provavelmente só nasce amanhã de manhã – anunciou Lena Söderström. – Depois de nós sairmos.
– É uma noite calma – observou Ylva. – Dorme um bocado se estiveres cansada.
As noites podiam ser longas. Dormir quinze minutos, talvez meia hora, podia fazer uma grande diferença. O cansaço agudo desaparecia, mas Ylva nunca dormia. Depois de fazer cinquenta e cinco anos reparara que a necessidade de dormir tinha diminuído gradualmente. Tinha pensado que era para lhe lembrar que a vida era curta e tinha um fim e que, portanto, não devia ser gasta a dormir desnecessariamente.
Uma enfermeira passou apressada lá fora no corredor. Lena Söderström estava a beber chá. As duas enfermeiras entretinham-se a fazer palavras cruzadas. Passavam dezenove minutos da meia-noite. já é outubro, pensou Ylva. O outono avança e brevemente chega o inverno. Em Dezembro, Harry tem férias. Um mês. Nessa altura vamos alterar a cozinha. Não é que necessite, mas é para ele ter alguma coisa que fazer. É um tempo de desassossego. Tocaram de um quarto. Uma das enfermeiras levantou-se e foi lá. Passado uns minutos regressou.
– Maria no quarto três tem dores de cabeça – disse e sentou-se para continuar as palavras cruzadas. Ylva continuou a beber o seu café. Apercebeu-se de repente de que estava a pensar em algo sem saber o quê. Depois descobriu.
A enfermeira que passou no corredor.
De repente havia algo que não batia certo. Não tinham estado todas aqui no escritório? Também não tinham tocado das urgências. Abanou a cabeça para os seus próprios pensamentos. Deve ter sido imaginação sua.
No entanto, ao mesmo tempo sabia que não era. Uma enfermeira que não devia existir tinha passado no corredor.
– Quem passou? – perguntou devagar. Observaram-na espantadas.
– Quem? – exclamou Lena Sõderstrõm.
– Passou uma enfermeira no corredor há uns minutos, quando estávamos todas aqui sentadas.
Não conseguiram entender o que ela estava a querer dizer. Ela própria não o entendia. A campainha soou novamente. Ylva largou depressa a xícara.
– Eu vou – disse.
Era a mulher no quarto dois que estava maldisposta. Estava à espera do seu terceiro filho. Ylva desconfiava de que a criança não tinha sido propriamente planeada. Depois de lhe dar de beber saiu para o corredor. Olhou à sua volta. As portas estavam fechadas. Porém, fora uma enfermeira que passara e não era imaginação sua. Subitamente sentiu-se indisposta, alguma coisa não batia certo. Ficou parada no corredor a escutar. Do escritório ouvia-se o rádio baixinho. Voltou e pegou na xícara de café.
– Não era nada – disse.
No mesmo instante passou a enfermeira estranha no corredor. Desta vez Lena Sõderstrõm também a viu. Foi tudo muito rápido. Ouviram o bater da porta ao fechar, a que dava para o grande corredor principal.
– Quem era? – perguntou Lena Sõderstrõm.
Ylva Brink abanou a cabeça. As duas enfermeiras que estavam a fazer palavras cruzadas levantaram a cabeça.
– De quem estão falando? – perguntou uma delas.
– Da enfermeira que passou.
A que estava com o lápis na mão e preenchia as palavras começou a rir.
– Estamos aqui, então. As duas.
Ylva levantou-se de repente. Quando abriu a porta para o corredor exterior, que ligava a maternidade ao resto do hospital, estava vazio. Escutou. Ao longe conseguiu ouvir uma porta fechar. Regressou à sala de estar e abanou a cabeça. Não tinha visto ninguém.
– O que faz uma enfermeira de uma outra seção aqui? – disse Lena Sõderstrõm. – Sem sequer nos cumprimentar? Ylva Brink não sabia. Por outro lado, percebeu que não tinha sido imaginação sua.
– Vamos ver os quartos todos – sugeriu –, para ver se está tudo como bem.
Lena observou-a com curiosidade.
– Por que não haveria de estar?
– Por causa da dúvida – replicou Ylva Brink. – Nada mais.
Entraram nos quartos. Tudo estava como devia. À uma hora, uma mulher começou a ter hemorragias. O resto da noite foi cheio de trabalho.
Às sete, depois de ter feito o relatório, Ylva Brink foi para casa. Morava perto do hospital. Quando chegou, começou novamente a pensar na enfermeira que vislumbrara no corredor. De súbito teve a certeza de que não se tratava de uma enfermeira apesar de ter uniforme. Uma enfermeira pura e simplesmente não tinha entrado no corredor da maternidade durante a noite, principalmente sem cumprimentar e explicar o que estava ali a fazer.
Ylva Brink continuou a refletir. Ela sentia que os acontecimentos da noite a preocupavam. A mulher tinha que ter um motivo. Tinha lá estado dez minutos e depois desaparecera novamente. dez minutos. Tinha estado num quarto e tinha visitado alguém. Quem? E por quê? Deitou-se e tentou dormir mas não conseguiu. A mulher estranha da noite andava sem parar na sua cabeça. Às onze desistiu. Saiu da cama e fez café. Pensou que devia falar com alguém. Tenho um primo que é policial, pensou, pelo menos pode me dizer se me preocupo em vão.
Pegou o telefone e ligou para a casa dele. A voz do gravador informava que estava de serviço. Como a central não era longe, decidiu ir lá a pé. Nuvens rasgadas passavam no céu. Pensou que a Polícia provavelmente não atendia ao sábado. Além disso, tinha lido nos jornais sobre o horror que parecia ter acontecido perto de Lõdinge. Um vendedor que tinha sido assassinado e atirado para uma valeta. A Polícia talvez não tivesse tempo para ela, nem sequer o seu primo.
Entrou na recepção e perguntou pelo inspector Svedberg. Estava lá, mas estava extremamente ocupado.
– Cumprimentos de Ylva – disse. – Sou prima dele.
Uns minutos mais tarde, Svedberg apareceu. Como era muito ligado à família e gostava muito da prima, não podia deixar de conceder-lhe uns minutos. Sentaram-se no seu gabinete. Tinha ido buscar café. Depois contou-lhe os acontecimentos da noite. Svedberg disse que naturalmente era esquisito, mas talvez nada de preocupante. Com isso sentiu-se satisfeita. Tinha três dias livres à sua frente e dentro em esqueceria da enfermeira que tinha passado pela maternidade entre 30 de setembro e 1º de outubro.
10
Wallander, já tarde na sexta-feira, tinha reunido os seus cansados colaboradores para uma reunião na central. Fecharam as portas às dez e a reunião continuou até muito depois da meia-noite. Tinha começado por falar em pormenor do fato de que agora tinham mais uma pessoa desaparecida com que se preocuparem, Martinsson e Ann-Britt Höglund tinham tido tempo para fazer um controle superficial nos registros que estavam acessíveis, mas o resultado até ao momento era negativo. Não havia nada na Polícia que apontasse para uma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. Vanja Andersson também não se lembrava de ter ouvido Gösta Runfeldi: falar de Holger Eriksson. Wallander esclareceu que a única coisa que podiam fazer era trabalhar sem pistas. Gösta Runfeldt podia aparecer a qualquer momento e ter uma explicação razoável para o seu desaparecimento, mas não podiam ignorar que havia sinais de mau agoiro. Wallander pediu a Ann-Britt Höglund para assumir a responsabilidade do trabalho à volta de Gösta Runfeldt. O que não significava que ficasse desligada do assassínio de Holger Eriksson. Wallander, que frequentemente era avesso a pedir reforços em situações complicadas de investigação de crimes, tinha desta vez a impressão que talvez o devessem fazer logo de princípio. Também o tinha dito a Hansson. Tinha combinado aguardar e não levantar a questão antes do princípio da semana seguinte. Apesar de tudo, podia acontecer que conseguissem um avanço na investigação mais cedo do que o esperado.
Estavam sentados à volta da mesa de reuniões a rever o que tinham conseguido fazer até aquele momento. Como sempre, Wallander começou por perguntar se havia alguém que tinha algo importante a relatar. Deixou o olhar percorrer a mesa. Todos abanaram a cabeça. Nyberg assoou-se silenciosamente na ponta da mesa, onde ele, como era habitual, estava sentado, à parte dos outros. Foi também a ele que Wallander deu a palavra em primeiro lugar.
– Nada por enquanto – disse Nyberg. – Vocês próprios viram o que viram. As tábuas foram serradas ao ponto de partirem. Ele caiu e ficou espetado. Não encontramos nada na valeta. Ainda não sabemos donde vêm as canas de bambu.
– E a torre? – perguntou Wallander.
– Não encontramos nada – disse Nyberg. – Mas evidentemente estamos longe de estar prontos. É claro que teríamos uma grande ajuda se fosses capaz de dizer o que devemos procurar.
– Não sei – disse Wallander. – Mas quem fez aquilo veio de algum lado. Temos o caminho que parte da casa de Holger Eriksson. À volta só há campos e por trás da colina começa uma pequena floresta.
– Há um caminho de tratores para a floresta – informou Ann-Britt Höglund. – Com marcas de pneus de automóvel, mas nenhum dos vizinhos parece ter notado algo de anormal.
– Pelos vistos Holger Eriksson possuía muito terreno – interveio Svedberg. – Falei com um agricultor de nome Lundberg. Há dez anos vendeu mais de cinquenta hectares a Eriksson. Como a propriedade era dele, não havia razão para outras pessoas lá estarem, o que significa que há poucos que tenham tido possibilidade de observar o que por lá se passava.
– Ainda temos muitos com quem falar – disse Martinsson enquanto folheava os seus papéis. – De resto tenho-me mantido em contato com o Serviço de Medicina Legal em Lund, eles acham que vão ter informações na próxima segunda-feira de manhã.
Wallander fez uma anotação. Depois virou-se para Nyberg mais uma vez.
– Como vão as coisas na casa de Eriksson? – perguntou.
– Não consegues ter tudo feito ao mesmo tempo – respondeu Nyberg reagindo. – Temos estado lá fora naquela lama uma vez que pode começar a chover a qualquer momento. Calculo que podemos começar a trabalhar dentro de casa amanhã de manhã.
– Está bem – acedeu Wallander com simpatia. – O que não queria de maneira nenhuma era provocar a ira de Nyberg. Podia criar mau ambiente e afectar toda a reunião. Ao mesmo tempo não conseguia livrar-se do fato de aquele constante mau humor o irritar. Também reparou que Lisa Holgersson, que estava sentada ao meio de um dos lados compridos da mesa, tinha registrado a rabugenta resposta de Nyberg.
Continuaram a revisão. Encontravam-se ainda numa fase incipiente do trabalho de investigação. Wallander tinha frequentemente pensado que era como um trabalho de arrumação. Mas avançavam com cuidado. Enquanto não tinham pistas a seguir, tudo era igualmente importante. Só quando algumas coisas parecessem ter menos significado do que outras é que eles iriam começar a seguir seriamente uma ou várias pistas.
Depois de passar a meia-noite e aproximar-se a uma hora da manhã Wallander percebeu que ainda estavam a tentear. As conversas com Rut Eriksson e Sven Tyrén não tinham levado a nada. Holger Eriksson tinha feito a encomenda de óleo. Quatro metros cúbicos. Nada parecia estranho ou preocupante. A participação enigmática de um assalto que tinha sido feito no ano anterior continuava inexplicável. A análise da vida de Holger Eriksson e do seu carácter era incompleta. Continuavam à deriva num barco cuja velocidade era reduzida e continha apenas as mais elementares medidas de rotina da investigação. O trabalho de investigaÇão ainda não tinha começado a ter vida própria. Os fatos que possuíam eram insuficientes. Num determinado momento, depois das dez na quarta-feira da noite de 21 de setembro, Eriksson tinha saído com os binóculos pendurados ao peito. Nessa altura, a armadilha estava preparada. Ele deu um passo para o pontão e caiu diretamente para a morte.
Quando ninguém tinha mais para dizer, Wallander tentou fazer um resumo. Durante a reunião tivera um pressentimento de ter visto algo no local do assassínio que poderia conduzir a uma interpretação. Tinha visto algo, cuja leitura não fora capaz de fazer. O modo, penSou. Alguma coisa com aquelas canas. Um assassino utiliza uma linguagem que escolhe conscientemente. Por que espeta uma pessoa? Por que se dá a esse trabalho?
No entanto, manteve as reflexões para si, por enquanto. Continuavam demasiado incertas para serem apresentadas aos outros.
Serviu-se de um copo de água mineral e afastou os papéis da sua frente.
– Continuamos na procura de uma entrada – começou. – O que temos é um homicídio que não tem semelhança com nenhum outro, Pode significar que o móbil do crime e o criminoso têm também caraterísticas que nunca trabalhamos antes. De certo modo, faz lembrar a situação em que nos encontramos no verão passado. O que nos fez solucionar esse caso foi não nos termos agarrado a nada específico. Também agora não nos devemos prender.
Depois dirigiu-se diretamente a Lisa Holgersson.
– Temos que trabalhar no duro – avisou ele. – já é sábado. Não importa. Todos continuam hoje e amanhã com o que tem em mãos. Não podemos esperar por segunda-feira.
Lisa Holger assentiu. Não fez qualquer comentário.
Acabaram a reunião. Estavam todos cansados. Lisa Holgersson ficou, assim como Ann-Britt Höglund. Depressa estavam sozinhos na sala de reuniões. Wallander pensou que as mulheres estavam agora, para variar, em maioria na sua vida.
– Per Akesson queria entrar em contato contigo – disse Lisa Holgersson. Wallander lembrou-se de que se tinha esquecido de telefonar. Abanou a cabeça para si mesmo exausto.
– Telefono-lhe amanhã – disse.
Lisa Holgersson vestiu o casaco. Mas Wallander notou que ela ainda queria dizer alguma coisa .
– Há na realidade alguma coisa que demonstra que o homicídio não possa ter sido executado por um louco? – perguntou. – EsPetar uma pessoa em estacas. Para mim é coisa da Idade Média.
– Não necessariamente – interveio Wallander. – Valas de espetos foram utilizadas durante a Segunda Guerra Mundial. Para mais, bestialidade e loucura não andam sempre de mãos dadas.
Lisa Holgersson não parecia satisfeita com a resposta. Encostou-se à ombreira da porta e observou-o.
– Seja como for, não estou convencida. Talvez nos pudéssemos servir daquele psicólogo criminal que esteve cá no verão passado? Se bem te entendi, foi-nos então muito útil.
Wallander não conseguiu negar que Mats Ekholm tinha tido importância para o êxito final da investigação. Tinha-os ajudado a encontrar um perfil provável do assassino. No entanto, Wallander achava cedo de mais para o chamar novamente. Acima de tudo tinha receio de comparar os dois casos.
– Talvez – disse com hesitação. – Mas acho que devemos esperar mais um pouco para isso.
Fitou-o com ar indagador.
– Não tens medo que possa vir a acontecer novamente? Uma nova sepultura com estacas bicudas? – Não.
– Gösta Runfeldt? O outro desaparecimento? Wallander sentiu-se de repente inseguro, se estaria a falar insensatamente. Mas negou com a cabeça. Ele não achava que se fosse repetir. Ou era apenas o seu desejo? Não sabia.
– O homicídio de Holger Eriksson exigiu grande preparação – disse.
– Algo que se faz uma única vez e que, além disso, baseia-se na existência de condições muito especiais. Por exemplo, uma valeta suficientemente funda. Além disso, um pontão e uma vítima predestinada que saia à noite ou de madrugada para observar pássaros. Tenho consciência de que sou eu próprio que tenho associado o desaparecimento de Gösta Runfeldt com o que aconteceu em Lõdinge. Mas tem mais a ver com medidas de segurança. Para liderar esta investigação tanto terei de usar cinto como suspensórios.
Ela reagiu com surpresa pela imagem utilizada. Ann-Britt Höglund riu baixinho. Depois Lisa Holgersson acenou com a cabeça. – Entendo o que queres dizer – concordou. – Mas pensa acerca de Ekholm.
– Está bem – assentiu Wallander. – Não excluo que possas ter razão, mas penso que é cedo de mais. O resultado da intervenção está frequentemente relacionado com o momento em que é efectuada.
Lisa Holgersson acenou e abotoou o casaco.
– Vocês também precisam de dormir – disse ela. – Não fiquem muito tempo.
– Suspensórios e cinto – disse Ann-Britt Höglund quando ficaram sozinhos. – Aprendeste isso com Rydberg? Wallander não se ofendeu. Apenas encolheu os ombros e começou a juntar os papéis.
– Temos que inventar alguma coisa por conta própria. Lembras-te quando vieste para cá? Disseste que achavas que tinhas muito para aprender comigo. Agora talvez compreendas como estavas errada.
Ela tinha-se sentado na mesa a observar as unhas. Wallander pensou que estava pálida e cansada e realmente não era bonita, mas era uma boa profissional. Algo tão raro como um policial dedicado. Neste ponto eram parecidos.
Deixou a pilha de papéis cair na mesa e encostou-se na cadeira.
– Conta-me o que vês – pediu ele.
– Algo que me assusta – respondeu.
– Por quê? – A brutalidade. Os cálculos. Além disso, não temos nenhum motivo.
– Holger Eriksson era rico. Todos testemunharam que era um negociante duro. Pode ter tido inimigos.
– Não explica que tenha que ser espetado em estacas bicudas.
– O ódio pode cegar. Do mesmo modo que a inveja. Ou os ciúmes. Ela abanou a cabeça.
– Quando lá cheguei, tive a sensação de haver algo mais para lá de um velho que tinha sido assassinado – insistiu. – Não consigo explicar melhor do que isto. Mas a sensação esteve presente e era forte.
Wallander despertou da canseira. Percebeu que ela tinha dito algo importante. Alguma coisa que de um modo difuso tocava os pensamentos que ele próprio tivera.
– Continua – limitou-se a dizer –, continua a refletir.
– Não há muito mais. O homem estava morto, ninguém que o tivesse visto iria esquecer como tinha acontecido. Era um homicídio e também era outra coisa.
– Cada assassino fala a sua linguagem – disse Wallander. – É isso que queres dizer? – Mais ou menos.
– Queres dizer que ele nos quer dizer alguma coisa? – Talvez.
Um código, pensou Wallander. Que ainda não somos capazes de decifrar.
– Podes ter razão – acedeu.
Ficaram silenciosos. Depois Wallander ergueu-se pesadamente da cadeira e continuou a juntar os papéis. Descobriu algo que não era dele.
– É teu? – perguntou.
Ela lançou um olhar no papel.
– É a caligrafia de Svedberg.
Wallander tentou decifrar o que estava escrito a lápis. Era alguma coisa sobre a maternidade. Sobre uma mulher desconhecida.
– Que merda é isto? – exclamou. – Svedberg vai ser pai? Nem sequer é casado. De resto, duvido que ande com alguém.
Ela tirou-lhe o papel das mãos e leu-o.
– Pelos vistos é alguém que informou que uma mulher desconhecida se passeou pela maternidade vestida de enfermeira – disse ela, e entregou-lhe o papel.
– Temos que esclarecer isto quando tivermos tempo – respondeu Wallander ironicamente. – Esteve quase para mandar o papel para o cesto dos papéis mas arrependeu-se. Dá-lo-ia a Svedberg no dia seguinte.
Separaram-se no corredor.
– Quem toma conta dos teus filhos? – perguntou. – O teu marido está cá? – Ele está no Mali – respondeu.
Wallander não sabia onde ficava o Mali. Mas não perguntou.
Ela desapareceu da central vazia. Wallander colocou o papel na mesa do seu gabinete e pegou no casaco. No caminho para a recepção parou junto à central de coordenação, onde um policial solitário estava a ler um jornal.
– Ninguém telefonou sobre Lõdlnge? – perguntou.
– Nada.
Wallander encaminhou-se para o carro. Estava vento. Pensou que não chegara a obter resposta sobre como Ann-Britt Höglund resolvia o problema de tomar conta dos filhos. Procurou demoradamente nos bolsos até encontrar as chaves do carro e foi para casa. Apesar de estar muito cansado, ficou sentado no sofá e pensou no que tinha acontecido durante o dia, principalmente ficou a remoer sobre o que Ann-Britt Höglund tinha dito pouco tempo antes de cada um ir para o seu lado, Que o assassínio de Holger Eriksson era algo mais. Outra coisa.
Mas poderia um homicídio ser outra coisa além de um homicídio? Eram perto das três horas da manhã quando se deitou. Antes de adormecer ainda pensou que tinha de telefonar ao pai e a Linda no dia Seguinte.
Acordou sobressaltado às seis horas. Tinha sonhado alguma coisa . Holger Eriksson estava vivo de pé no pontão por cima da valeta. Wallander acordou exatamente quando o pontão partia. Fez um esforço para sair da cama. Lá fora tinha recomeçado a chover. Na cozinha descobriu que não tinha café. Para compensar, procurou uns comprimidos para a dor de cabeça e depois ficou muito tempo à mesa com a cabeça apoiada numa mão.
Às sete e um quarto chegou à central. A caminho do gabinete foi buscar uma caneca de café.
Ao abrir a porta descobriu uma coisa que não tinha visto na noite anterior. Havia uma embalagem na cadeira junto à janela. Só quando olhou mais de perto, se lembrou do aviso que tinha trazido do apartamento de Gösta Runfeldt. Ebba tinha tratado de o mandar levantar. Tirou o casaco e começou a abrir o pacote, Subitamente refletiu sobre se na realidade tinha o direito de o abrir. Tirou o papel e observou o conteúdo com a testa franzida.
A porta do gabinete estava aberta. Martinsson passou. Wallander chamou-o.
Martinsson ficou parado à porta.
– Entra – disse Wallander. – Entra para veres isto.
Ficaram a olhar debruçados sobre o pacote de Gösta Runfeldt. Para Wallander aquilo parecia-lhe ser apenas uma quantidade de fios, relés de ligação, caixas pretas em miniatura que ele não conseguia perceber que finalidade teriam. Todavia, para Martinsson era evidente que Gösta Runfeldt os tinha encomendado e que, por enquanto, era a polícia que tinha pago.
– Isto é um equipamento sofisticado de escuta – explicou, e tirou uma das caixas.
Wallander olhou-o com ceticismo.
– É de fato possível comprar complicado equipamento electrónico por encomenda postal a uma empresa de Borâs de venda por catálogo? – perguntou.
– Podes comprar alguma coisa via encomenda postal – respondeu Martinsson. – já lá vai o tempo em que estas empresas vendiam produtos de segunda. Talvez ainda exista. Mas isto é material em condições. Devemos, no entanto, investigar se é totalmente legal. A importação de coisas deste tipo tem regulamentos rigorosos.
Colocaram as peças em cima da mesa de Wallander. Descobriram que não só havia equipamento para escuta, como para grande surpresa, uma embalagem que continha um pincel magnético e uma limalha de ferro. Só podia ter um único significado, ou seja, que Runfeldt tinha a intenção de procurar impressões digitais.
– Como devemos interpretar isto? – perguntou Wallander.
Martinsson abanou a cabeça.
– Parece muito esquisito – replicou.
– Para que quer um comerciante de flores um equipamento de escuta? Será que é para espiar os comerciantes de túlipas concorrentes? – As impressões digitais é ainda muito mais esquisito.
Wallander franziu a testa. Não entendia nada. O equipamento era caro. E era com certeza tecnicamente bom. Wallander confiava no discernimento de Martinsson. A empresa que tinha fornecido o material chamava-se Secur com morada na Getãngsvãgen, em Borâs.
– Vamos telefonar para lá para saber se Gösta Runfeldt também tem comprado outros produtos – disse Wallander.
– Desconfio que não tenham muita vontade de divulgar informação sobre os clientes – respondeu Martinsson. – Para mais é sábado de manhã.
– Têm atendimento de encomendas por telefone 24 horas – insistiu Wallander e apontou para a guia de remessa na embalagem.
– Provavelmente é apenas um atendedor – retorquiu Martinsson.
– Tenho comprado equipamento para o jardim de uma empresa, em Borâs. Sei como funciona, não há nenhum telefonista durante o dia todo, se é isso que se julga.
Wallander observou um dos pequenos microfones.
– Será realmente legal? Tens razão, temos de descobrir isso.
– Acho que posso responder já – disse Martinsson. – Tenho umas informações no meu gabinete exatamente a esse respeito.
Saiu para o corredor e voltou rapidamente com uns pequenos folhetos na mão.
– A unidade de informações da Direção Nacional da Polícia – anunciou. – Muito do que publicam é mesmo bom.
– Leio isso sempre que tenho tempo – disse Wallander. – Mas às vezes penso que enviam demasiado papel.
– Aqui temos uma coisa intitulada "Escuta como meio de prova em processos criminais" – disse Martinsson, e colocou outro folheto na secretária. – Mas talvez não seja isso que nos interessa em primeiro lugar. Por outro lado, este: "Circular sobre equipamento de escuta",..
Martinsson folheava. Parava e lia.
– Segundo a lei sueca, é ilegal possuir, vender e importar equipamento de escuta – disse. – O que logicamente devia significar que também é proibido fabricar.
– Significa que vamos pedir aos nossos colegas de Borâs para investigarem essa empresa de encomendas por catálogo – disse Wallander.
– Isto pode querer dizer que se dedicam a vendas ilegais. E também à importação ilegal.
– Empresas de venda por catálogo são normalmente muito sérias afirmou Martinsson. – Desconfio que esta é uma maçã podre, de que o próprio sector se quererá certamente livrar.
– Contata Borâs – disse Wallander. – Fá-lo o mais depressa possível. – Refletiu sobre a visita que fizera ao apartamento de Gösta Runfeldt. Não tinha visto qualquer equipamento técnico deste tipo quando passou as gavetas da secretária e os armários a pente fino.
– Acho que devemos pedir a Nyberg para dar uma vista de olhos nisto. Por enquanto, ficamos por aqui, mas parece-me muito estranho.
Martinsson concordou. Ele também não conseguia entender para quê um amante de orquídeas precisava de equipamento de escuta. Wallander voltou a pôr o material na caixa.
– Vou a Lõdlnge – anunciou.
– Descobri uma pessoa que vendia automóveis para Holger Eriksson há mais de vinte anos – informou Martinsson. – Vou ter com ele a Svarte dentro de meia hora. Se houver alguém que nos possa fazer um retrato de Holger Eriksson, deve ser ele.
Separaram-se na recepção. Wallander tinha a caixa electrónica de Gösta Runfeldt debaixo do braço. Parou junto a Ebba.
– O que disse o meu pai? – Mandou cumprimentos e disse que naturalmente só espera que lhe telefones se tiveres tempo.
Wallander ficou logo desconfiado.
– Parecia irónico? Ebba olhou séria para ele.
– O teu pai é um homem muito simpático. Tem grande respeito pelo teu trabalho.
Wallander, que sabia que a verdade era completamente diferente, abanou a cabeça. Ebba apontou para a embalagem.
– Paguei isso com o meu dinheiro – disse, – Como sabes, hoje em dia não há caixa acessível aqui na Polícia.
– Deixa o recibo no meu gabinete – disse Wallander. – Importas-te se receberes só na segunda? Ebba aceitou e Wallander deixou a central. Parara de chover e as nuvens tinham-se dissipado. Ia ser um dia de outono luminoso e bonito. Wallander pôs a caixa no banco de trás e deixou a cidade. Agora que o Sol brilhava, a paisagem era menos opressiva. Por breves momentos também conseguiu sentir-se menos preocupado. O homicídio de Holger Eriksson tinha-se tornado um pesadelo que, talvez, apesar de tudo, tivesse uma explicação minimamente razoável. O fato de também Gösta Runfeldt ter desaparecido não significava necessariamente que algo sério lhe tivesse acontecido. Mesmo se Wallander não fosse capaz de entender de todo por que tinha feito uma encomenda de aparelhos de escuta, esse fato podia talvez paradoxalmente ser interpretado como prova de que Gösta Runfeldt estava vivo. A hipótese de Runfeldt se ter suicidado tinha passado pela cabeça de Wallander, mas afastara essa ideia. A alegria de que Vanja Andersson tinha falado não fazia propriamente prever um desaparecimento dramático seguido de suicídio. Wallander passou pela paisagem límpida de outono e pensou que às vezes tinha facilidade de mais em começar a ceder perante os seus demónios interiores.
Virou para a quinta de Holger Eriksson e estacionou o carro. Um homem que Wallander reconheceu como jornalista do Arbetet veio ao seu encontro. Wallander tinha a caixa de Runfeldt debaixo do braço. Cumprimentaram-se e o jornalista apontou para a caixa.
– Vens carregado com a solução? – Nada disso.
– Francamente, em que pé estão? – Na segunda vai haver uma conferência de imprensa. Até lá não temos muito para dizer.
– Mas ele foi espetado em tubos de aço de bicos afiados? Wallander olhou espantado para ele.
– Quem te disse isso? – Um dos teus colegas.
Wallander tinha dificuldade em acreditar que tal fosse verdade.
– Tem que ser um mal-entendido. Não eram tubos de aço.
– Mas foi espetado? – Está certo.
– Soa como uma câmara de tortura num campo de Scania? – Não são as minhas palavras.
– Quais são as tuas palavras? – Que vai haver uma conferência de imprensa na segunda-feira.
O jornalista abanou a cabeça.
– Tens que ser capaz de me dar alguma coisa .
– Estamos apenas no princípio da investigação. Podemos constatar que um assassínio foi cometido, mas ainda não temos pistas a seguir.
– Nada?
– Por enquanto opto por não dizer mais nada.
O jornalista mostrou-se contrafeito, Wallander sabia que ele iria escrever o que lhe tinha dito. Era um dos poucos jornalistas que nunca tinham distorcido o que Wallander contava.
Entrou para a calçada do pátio. À distância ondulava o plástico abandonado Junto à valeta. Os cordões de segurança ainda lá estavam. Viu um policial junto à torre. Wallander pensou que certamente podiam reduzir a vigilância. Assim que chegou à casa, a porta abriu. Era Nyberg com proteç ões de plástico nos sapatos.
– Vi-te pela janela – anunciou.
Wallander reparou logo que Nyberg estava bem-disposto. Era um bom Presságio para o dia de trabalho.
– Trago uma caixa para ti – disse Wallander e entrou. – Quero que vejas estas coisas.
– Tem algo a haver com Holger Eriksson? – Com Runfeldt. O comerciante de flores.
Wallander pôs a caixa em cima da secretária. Nyberg empurrou o poema solitário para o lado para arranjar espaço e tirou o conteúdo da caixa. Os seus comentários foram iguais aos de Martinsson. Era na realidade um equipamento para escuta, de tipo sofisticado. Nyberg pôs os óculos e procurou o carimbo indicador da origem.
– Está escrito Singapura – disse. – Mas provavelmente fabricado num lugar totalmente diferente.
– Onde? – USA ou Israel.
– Então por que tem Singapura? – Alguns destes fabricantes são do mais discreto que se possa imaginar. São empresas que, de várias maneiras, constituem parte da indústria bélica secreta. E elas não desvendam desnecessariamente qualquer segredo umas às outras. Os componentes técnicos são fabricados em várias partes do mundo. A montagem é efectuada num outro lugar e outro país pode contribuir com o carimbo de origem.
Wallander apontou para o equipamento.
– O que se pode fazer com isto? – Podes pôr um apartamento sob escuta. Ou um carro. Wallander abanou a cabeça com ar vencido.
– Gösta Runfeldt é comerciante de flores – disse. – Para que quereria isto? – Encontra-o e pergunta-lhe – respondeu Nyberg.
Meteram os objetos novamente na caixa. Nyberg assoou-se. Wallander reparou que estava seriamente constipado.
– Tenta trabalhar com calma – aconselhou. – Tens que dormir de vez em quando.
– Foi a merda daquela lama – disse Nyberg. – Fico doente quando apanho mau tempo. Não consigo entender por que é tão difícil construir uma proteção móvel para a chuva que funcione, inclusive, nas condições climatéricas da Scania.
– Escreve um artigo sobre isso na revista da Polícia Sueca – propôs Wallander.
– Onde arranjaria tempo para isso? A pergunta ficou sem resposta. Passaram revista à casa.
– Não encontrei nada de notável – informou Nyberg. – Pelo menos por enquanto. Mas a casa tem muitas esquinas e cantinhos.
– Fico por aqui um tempo – disse Wallander. – Preciso de dar uma vista de olhos.
Nyberg regressou aos técnicos. Wallander sentou-se junto à janela. Um raio de sol aqueceu-lhe a mão que ainda estava bronzeada.
Deu uma volta na grande sala. Pensou no poema. Quem é que, na realidade, escreve poemas sobre um pica-pau? Foi buscar o papel e leu mais uma vez o que Holger Eriksson tinha escrito. Admitiu que havia passos bonitos. Ele próprio tinha escrito às vezes em cadernos de poesia de raparigas da escola quando era jovem. Mas nunca lia poesia. Linda queixava-se de que nunca houvera livros na casa onde crescera. Wallander não tinha podido contradizê-la. Deixou o olhar correr pelas paredes. Um comerciante de automóveis abastado. Com quase oitenta anos, que escreve poesia. E se interessa por aves. O suficiente para sair à noite, tarde, e observar bandos de aves invisíveis. Ou então cedo de madrugada. O olhar continuava a deslocar-se.
O raio de sol continuava a aquecer-lhe a mão esquerda. De repente lembrou-se de algo que tinha sido escrito na participação do assalto que tinham desenterrado do arquivo. Segundo Eriksson, a porta exterior tinha sido forçada com um pé-de-cabra ou semelhante. No entanto, ainda segundo Eriksson, este constatou que nada tinha sido furtado. Também havia mais alguma coisa escrita. Wallander procurou na memória. Depois lembrou-se do que era. Não tinham tocado no cofre. Levantou-se e foi ter com Nyberg que estava num dos quartos de dormir. Wallander parou a porta.
– Viste algum cofre? – perguntou.
– Não.
– Deve haver um – afirmou Wallander –, vamos procurar. Nyberg estava de joelhos junto à cama. Quando se levantou, Wallander viu que ele tinha posto protetores nos joelhos.
– Tens certeza? – perguntou Nyberg. – Devia ter visto.
– Tenho – insistiu Wallander. – Há um cofre.
Procuraram metodicamente por toda a casa. Levaram meia hora até o encontrar. Foi um colaborador de Nyberg que deu com ele por detrás de uma portinhola do forno na copa da cozinha. A portinhola escondia um cofre embutido na parede. Tinha uma fechadura de combinação.
– Acho que sei onde está a combinação – disse Nyberg. – Holger devia ter medo, apesar de tudo, que a memória pudesse falhar com o avançar da idade.
Wallander acompanhou Nyberg de volta à mesa. Numa das gavetas Nyberg tinha achado uma caixinha com uma série de números num papel. Quando os experimentaram no cofre este se abriu. Nyberg deu um passo para o lado e Wallander abriu-o.
Wallander olhou lá para dentro. Depois deu um salto para trás pisando o pé de Nyberg.
– O que é? – perguntou Nyberg.
Wallander fez-lhe sinal para ele ver com os seus próprios olhos. Nyberg aproximou a cabeça. Também ele deu um salto, embora menor do que o de Wallander.
– Parece uma cabeça humana – observou Nyberg.
Virou-se para um dos seus colaboradores que empalideceu quando ouviu o que fora dito. Nyberg pediu-lhe para ir buscar uma lanterna. Enquanto esperavam, permaneceram imóveis, Wallander sentiu-se tonto e respirou fundo. Nyberg observou-o interrogativamente. Chegou a lanterna e Nyberg iluminou o interior do cofre. Lá dentro havia efetivamente uma cabeça cortada pelo pescoço. Os olhos estavam abertos, mas não era uma cabeça vulgar. Estava ressequida e desidratada. Se se tratava de um macaco ou de uma pessoa, nem Nyberg nem Wallander conseguiram determinar. Além da cabeça, só havia agendas e cadernos de apontamentos. No mesmo instante entrou na sala Ann-Britt Höglund. Pelo aspecto tenso dos colegas, entendeu que algo tinha acontecido. Ela não perguntou o que, apenas se deteve na entrada.
– Chamamos o fotógrafo? – perguntou Nyberg.
– Tiras umas fotografias – respondeu Wallander. – O mais importante é tirá-la do cofre.
Depois virou-se para Ann-Britt Höglund.
– Há uma cabeça lá dentro – informou-a. – Uma cabeça ressequida de um ser humano, ou talvez de um macaco.
Ela inclinou-se para ver. Wallander reparou que ela não se manifestou. Para dar espaço a Nyberg e aos seus colaboradores trabalharem, saíram da copa. Wallander sentiu que estava a transpirar.
– Um cofre com uma cabeça – disse ela. – Ressequida ou não, macaco ou não. Como interpretar isso? – Holger Eriksson deve ter sido uma pessoa bastante mais complicada do que nós imaginamos – disse Wallander.
Esperaram até Nyberg e os colaboradores esvaziarem o cofre. Eram nove horas. Wallander falou sobre a encomenda postal de Borâs. Ann-Britt Höglund observou o conteúdo da caixa e interrogou-se sobre o que podia significar. Decidiram que alguém iria inspecionar o apartamento mais pormenorizadamente do que Wallander tivera tempo para fazer. O melhor era Nyberg prescindir de um dos colaboradores. Ann-Britt Höglund telefonou para a central e ficou a saber que a Polícia dinamarquesa, entretanto contatada, não podia adiantar nada sobre algum corpo humano que tivesse dado à costa nos últimos dias. A Polícia de Malmö e os Socorros Náuticos também não tinham informação sobre cadáveres na costa. Às nove e meia Nyberg chegou com a cabeça e os restantes objetos que tinha encontrado no cofre. Wallander afastou o poema sobre o pica-pau. Nyberg pousou a cabeça. Além desta também havia umas agendas velhas, um caderno de anotações e mais uma caixinha com uma medalha. Mas era a cabeça ressequida e encolhida que lhes tomou toda a atenção. A luz do dia ja não havia dúvidas de que se tratava da cabeça de um ser humano, preta, talvez de uma criança ou pelo menos de uma pessoa jovem. Quando Nyberg a observou com uma lupa conseguiu ver que tinha traças na pele. Wallander fez uma careta de nojo quando Nyberg se inclinou mais perto da cabeça e a cheirou.
– Quem pode saber algo sobre cabeças secas? – inquiriu Wallander.
– O Museu Etnográfico – respondeu Nyberg. – Bem, parece que se chama Museu dos Povos hoje em dia. A Direção Nacional da polícia publicou um pequeno folheto que é, de fato, excelente. Nele informam onde se pode ir buscar conhecimentos sobre fenómenos extraordinariamente raros.
– Então vamos contatá-los – disse Wallander. – Seria bom se conseguíssemos encontrar alguém que possa responder a perguntas ainda durante o fim-de-semana.
Nyberg começou a embalar a cabeça num saco de plástico. Wallander e Ann-Britt Höglund sentaram-se à mesa e começaram a inspecionar os outros objetos. A medalha, que estava sobre uma pequena almofada de seda, era estrangeira. Tinha uma inscrição em francês, mas ninguém entendeu o significado das palavras. Wallander sabia que não valia a pena perguntar a Nyberg. O inglês dele era mau, o seu francês certamente inexistente. Depois começaram a folhear os cadernos. As agendas eram dos primeiros anos da década de 60. Nas primeiras páginas conseguiram decifrar um nome: Harald Berggren. Wallander olhou surpreso para Ann-Britt Höglund. Ela abanou a cabeça. Aquele nome não tinha surgido na investigação até agora. Havia poucas anotações nas agendas. Uns horários. Iniciais. Num lugar estavam as letras HE. Era o dia 10 de fevereiro 1960. Havia mais de trinta anos.
Depois Wallander começou a folhear o caderno. Este, por seu lado, estava preenchido. Ele percebeu que se tratava de um diário e que a primeira anotação tinha sido feita em Novembro de 1960. A última em julho de 1961. A caligrafia era muito miúda e difícil de ler. Serviu para lhe lembrar que, evidentemente, se tinha esquecido de ir ao oculista, onde tivera consulta marcada. Pediu emprestada uma lupa a Nyberg. Folheava e lia uma linha aqui e outra ali.
– Trata-se do Congo Belga – afirmou. – Alguém que esteve lá como soldado durante uma guerra.
– Holger Eriksson ou Harald Berggren?
– Harald Berggren. Quem quer que seja.
Depois pôs o caderno de lado. Concluiu que podia ser importante e que tinha de o ler minuciosamente. Olharam uns para os outros. Wallander sabia que pensavam no mesmo.
– Uma cabeça humana ressequida – disse. – E um diário que fala de uma guerra em África.
– Uma sepultura com canas – disse Ann-Britt Höglund. – Memórias duma guerra. No meu mundo imaginário estão relacionadas cabeças ressequidas de seres humanos e pessoas espetadas.
– No meu também – assentiu Wallander. – A questão é se, apesar de tudo, encontraremos algumas pistas a seguir.
– Quem é Harald Berggren? – É uma das primeiras coisas a averiguar.
Wallander lembrou-se que nesse momento possivelmente Martinsson estaria em Svarte de visita a uma pessoa que havia muitos anos tinha conhecido Holger Eriksson. Pediu a Ann-Britt Höglund para lhe ligar para o telemóvel. A partir de agora o nome de Harald Berggren seria mencionado e investigado em todas as situações imagináveis. Ela marcou o número e esperou. Depois abanou com a cabeça.
– Não tem o celular ligado – anunciou. Wallander ficou irritado.
– Como podemos executar um trabalho de investigação criminal se nos tornarmos inacessíveis? Sabia que ele próprio pecava contra a regra da acessibilidade. Ele era certamente o mais difícil de encontrar. Pelo menos periodicamente. Mas ela não disse nada.
– Vou procurá-lo – disse, e levantou-se.
– Harald Berggren – acentuou Wallander – O nome e importante. Para todos.
– Encarrego-me de o divulgar – respondeu ela.
11
Quando ficou sozinho na sala, acendeu o abajur da mesa. Ia abrir o diário quando descobriu que alguma coisa estava enfiada dentro da capa de pele. Cuidadosamente tirou o que verificou ser uma fotografia. Era em preto e branco, muito manuseada e manchada. Um canto tinha sido rasgado e faltava um pedaço. Era a fotografia de três homens que posavam para um fotógrafo. Os homens eram jovens, riam para o fotógrafo, e estavam vestidos com um tipo de uniforme. Wallander lembrou-se da fotografia que tinha visto no apartamento de Gösta Runfeldt, onde ele estava numa paisagem tropical, cercado por orquídeas gigantes. Também neste caso a paisagem não era sueca. Estudou a fotografia com lupa. O sol devia ir alto quando a fotografia fora tirada. Não havia sombra. Os homens estavam bronzeados, as camisas desabotoadas, as mangas arregaçadas, junto às pernas tinham armas e estavam encostados contra uma pedra de forma invulgar. Por trás da pedra vislumbrava-se uma paisagem plana sem contornos. O solo estava coberto com brita ou areia. Contemplou os rostos. Os homens tinham entre vinte e vinte e cinco anos. Virou a fotografia. Nada. Calculou que a fotografia tivesse sido tirada mais ou menos na altura em que o diário fora escrito, no princípio dos anos 60. Bastava olhar os penteados dos homens, nenhum tinha cabelos compridos. A idade também contribuía para ele poder excluir Holger Eriksson que, em 1960, teria entre quarenta e cinquenta anos.
Wallander largou a fotografia e abriu uma das gavetas da mesa. Lembrou-se de já ter visto umas fotografias tipo passe soltas dentro de um envelope. Colocou uma das fotografias de Holger Eriksson na mesa. Tinha sido tirada recentemente. Por trás estava escrito 1989 a lápis. Holger Eriksson, 73 anos. Observou a cara. O nariz bicudo, os lábios finos. Tentou mentalmente eliminar as rugas para ver uma cara mais jovem. Depois voltou à fotografia dos três homens e estudou as caras deles, uma por uma. O homem mais a esquerda tinha certos traços que faziam lembrar Holger Eriksson. Wallander recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Holger Eriksson está morto numa valeta, No cofre dele encontramos uma cabeça humana ressequida, um diário e umafotografia. De repente endireitou-se na cadeira com olhos abertos. Pensou no arrombamento que Holger Eriksson tinha participado um ano antes. O cofre não tinha sido tocado. Suponhamos, pensou Wallander, que o arrombador tivesse tido tanta dificuldade em encontrar o cofre escondido como nós. Suponhamos ainda que o conteúdo era o mesmo que agora. E que era exatamente isso que o ladrão procurava. É mal sucedido e, provavelmente, não repete a tentativa. Por outro lado, Holger Eriksson morre um ano depois.
Admitiu que as reflexões estavam pelo menos parcialmente ligadas. Mas havia um ponto que, de uma maneira decisiva, contrariava a sua tentativa de encontrar uma relação entre os diferentes acontecimentos. Quando Holger Eriksson estivesse morto, o seu cofre iria ser descoberto mais cedo ou mais tarde. O ladrão teria que ter consciência disso. Pelo Menos pela pessoa ou pessoas que viriam a receber a herança.
Apesar disso, havia lá algo. Uma pista.
Observou a fotografia mais uma vez. Os homens sorriam. Tinham mostrado o mesmo sorriso nos últimos trinta anos. Interrogou-se de súbito se o fotógrafo teria sido Holger Eriksson. Mas Holger Eriksson tinha vendido automóveis com sucesso em Ystad, Tomelilla e Sjõbo. Não tinha participado em qualquer guerra africana. Ou teria? Ainda conheciam apenas uma fração da vida de Holger Eriksson.
Wallander contemplou pensativamente o diário que tinha à sua frente. Meteu a fotografia no bolso do casaco, agarrou no diário e foi ter com Nyberg, que estava a fazer uma investigação técnica da casa de banho.
Levo o diário – disse. – As agendas deixo ficar. – Dá alguma coisa? – perguntou Nyberg.
– Julgo que sim – respondeu Wallander. – Se alguém me procurar, estou em casa.
Quando chegou ao pátio viu que policiais tiravam os cordões de segurança junto à valeta. A proteção contra a chuva já tinha sido retirada.
Uma hora mais tarde estava sentado à mesa da cozinha. Lentamente começou a ler o diário.
A primeira anotação era de 20 de Novembro de 1960.
Levou quase seis horas para Wallander ler o diário de Harald Berggren de uma ponta a outra. Em todo o caso, foi interrompido várias vezes, o telefone tocou imensas vezes. Logo a seguir às quatro da tarde Ann-Britt Höglund também veio para uma visita breve. No entanto, Wallander tentou de cada vez encurtar as interrupções. O diário era uma das coisas mais fascinantes, mas também mais assustadora de que ele alguma vez tinha estado perto. Relatava alguns anos da vida de uma pessoa e, para Wallander, era como entrar num mundo totalmente desconhecido. Apesar de Harald Berggren, fosse ele quem fosse, não poder ser descrito como um mestre linguístico – expressava-se frequentemente com emotividade ou com uma insegurança que às vezes se transformava em desespero –, o conteúdo, as suas experiências, tinham uma força que era permanentemente mais forte do que as apertadas passagens linguísticas por onde deambulava. Wallander supôs que o diário fosse importante para poderem penetrar e entender o que tinha acontecido a Holger Eriksson. Contudo, em simultâneo, sentia nele um dedo levantado, um dedo de aviso. Talvez fosse também um caminho errado, que os orientasse mal, os afastasse da solução. Wallander sabia que grandes partes das verdades tanto eram, a um tempo, esperadas como inesperadas. Tratava-se apenas de saber como se deveria interpretar as ligações. Além disso, a investigação de um crime nunca se assemelhava a outra, pelo menos no essencial, quando começavam a penetrar para além das semelhanças superficiais.
O diário de Harald Berggren era um diário de guerra, Durante a leitura Wallander tinha conseguido identificar os dois outros homens da fotografia. Quem era quem, no entanto, não tinha sido capaz de determinar depois de ter chegado ao fim do diário. Mas Harald Berggren estava cercado por um irlandês, Terry O'Banion, e um francês, Smon Marchand. Tinha sido tirada por um homem de nacionalidade desconhecida, chamado Raul. Tinham participado juntos numa guerra africana durante pouco mais de um ano e todos tinham sido mercenários. No princípio do diário Harald Berggren descreve como ele, algures em Estocolmo, ouvira falar de um café em Bruxelas onde se podia estabelecer contatos com o mundo obscuro que era o dos mercenários. Ele escreve que já no fim do ano de 1958 tinha ouvido falar disso. Não comenta a razão que, uns anos mais tarde, o leva para lá, Harald Berggren entra no seu próprio diário a partir do nada. Não tem passado, nem pais, nenhuma experiência. No diário é protagonista num palco vazio. A única coisa que revela é que tem 23 anos e está desesperado por Hitler ter perdido a guerra que acabara quinze anos antes.
Wallander interrompeu a leitura neste ponto. Harald Berggren utiliza exatamente essa palavra, desesperada. Wallander leu a frase várias vezes. A desesperada derrota a que Hitler foi sujeito pelos seus traiçoeiros generais. Wallander tentou entender o que Harald Berggren revelava de si próprio ao utilizar a palavra desesperada. Expressava uma convicção política? Ou estava tenso e confuso? Wallander não conseguia encontrar fios condutores que tornassem possível uma conclusão. Berggren também não mais o volta a comentar. Em junho de 1960 deixa a Suécia de comboio e fica um dia em Copenhagen para ir ao Tivoli. Na noite morna dança com alguém de nome Irene. Ele escreve que ela é engraçada, mas demasiado alta. No dia seguinte está em Hamburgo e um dia depois, 12 de junho de 1960, encontra-se em Bruxelas. Ao fim de cerca de um mês alcança o seu objetivo, obter um contrato como mercenário. Escreve orgulhoso que agora tem salário e vai partir para a guerra. Para Wallander, o sentimento dele revela que nessa altura se situa perto do objetivo dos seus sonhos. Escreveu isso tudo mais tarde no diário, muito depois, no dia 20 de novembro de 1960. Neste primeiro apontamento, e também o mais extenso, do diário faz um resumo dos acontecimentos que o conduziram ao local onde se encontra. Está então em África. Quando Wallander leu o nome do local, Omerutu, levantou-se para procurar o seu velho atlas da escola no fundo duma caixa, enfiada bem no fundo de um roupeiro, mas evidentemente Omerutu não estava lá indicado. No entanto, deixou o mapa aberto na mesa da cozinha enquanto continuou a ler o diário. Juntamente com Terry O'Banion e Simon Marchand, Harald Berggren faz parte de uma unidade de combate que é constituída apenas por mercenários. O comandante deles, sobre quem Harald Berggren pouco escreve em todo o diário, é um canadiano que nunca é chamado por outra coisa senão Sam. Harald Berggren não parece ter nenhum interesse especial sobre de que guerra realmente se trata. O próprio Wallander tinha ideias extremamente vagas sobre a guerra no território que naquele tempo e, inclusivamente, no seu velho mapa, se chamava Congo Belga. Harald Berggren não parece ter necessidade de justificar a sua presença como soldado pago. Ele só escreve que lutam pela liberdade. A liberdade de quem? Nunca é revelado. Ele aponta em várias ocasiões, entre outras, no dia 11 de dezembro de 1960 e no dia 19 de janeiro 1961, em que não hesitará em utilizar a sua arma numa situação de combate tendo como adversários soldados suecos das Nações Unidas. Aponta ainda pontualmente cada vez que recebe o seu salário. Ele faz cálculos com minúcia no último dia de cada mês. Quanto recebeu, quanto gastou e quanto acumulou. Aponta também satisfeito cada despojo de guerra de que se consegue apoderar. Num trecho invulgarmente desagradável do diário, quando os mercenários chegaram a uma plantação abandonada e queimada, descreve como os cadáveres em estado de putrefação, cercados de nuvens pretas de moscas, continuavam dentro da casa. O proprietário e a sua mulher, dois belgas, estavam mortos na cama. Tinham as pernas e os braços decepados, o cheiro era horrível. Os mercenários, porém, revistaram a casa na mesma e encontraram uma série de diamantes e joias de ouro que um ourives libanês mais tarde avaliaria em mais de 20.000 coroas. Harald Berggren escreve então que a guerra se justifica porque o salário é bom. Numa reflexão pessoal, que não tem qualquer correspondência noutras passagens do diário, Harald Berggren interroga-se se teria alcançado o mesmo bem-estar material se tivesse ficado na Suécia a governar-se como mecânico de automóveis. A sua resposta é negativa. Com uma vida dessas nunca teria chegado a lado nenhum. Continuava a participar com grande entusiasmo na sua guerra.
Tirando a obsessão de ganhar dinheiro e registrar minuciosamente as contas, Harald Berggren também é minucioso quando faz outras contas.
Harald Berggren mata gente na sua guerra africana. Ele anota as horas e o número. Nas ocasiões em que é possível, aponta também se teve possibilidade de chegar perto de quem tinha acabado de matar. Aponta se é uma mulher, homem ou criança. Constata também friamente onde os tiros acertaram nas vítimas. Wallander leu estas partes regularmente repetidas com desconforto e fúria crescentes. Harald Berggren não tem nada a ver com esta guerra. Ele recebe um salário para matar, não se sabe quem lhe paga. E quem ele mata raramente são soldados, raramente homens de uniforme. Os mercenários fazem razias contra aldeias que foram consideradas resistentes à liberdade por que supostamente se luta. Matam e pilham e a seguir retiram-se, Constituem uma patrulha de matança, são todos europeus e não se pode dizer que considerem as pessoas que matam como seres semelhantes. Harald Berggren não oculta que olha os negros com desprezo. Ele escreve encantado que correm como cabras desorientadas quando nos aproximamos. Mas as balas voam mais depressa do que pessoas que pulam e saltitam. Quando leu essas linhas Wallander por pouco não mandou o diário contra a parede. Mas forçou-se a continuar a ler depois de fazer uma pausa e lavar os seus olhos irritados, Nessa altura, mais do que nunca, gostava de ter ido ao oculista para jà ter os óculos de que necessitava. Wallander repara que Harald Berggren, no caso de não mentir, mata uma média de dez pessoas por mês. Após sete meses fica doente e é transportado de avião para um hospital eni LeopoldvAle. Apanhou disenteria e, pelos vístos, fica muito doente durante várias semanas. Nessa altura interrompe totalmente os apontamentos no diário. Mas quando dá entrada no hospital, jà matou mais do que cinquenta pessoas nesta guerra em que combate em vez de ser mecânico de automóveis na Suécia. Depois de recuperado volta novamente à Companhia. No mês seguinte encontram-se em Omerutu. É aqui que se colocam à frente de uma pedra, que não é pedra mas sim um ninho de térmitas e o desconhecido Raul lhes tira a fotografia, a ele, Terry O'Banion e Simon Marchand. Willander foi para junto da janela com a fotografia. Nunca tinha visto um morro de térmitas na vida real. Mas percebeu que aquela passagem do diário era exatamente sobre esta fotografia. Regressou à leitura. Três semanas mais tarde caem numa emboscada e Terry O'Banion é morto. São obrigados a retirar sem conseguir organizar o retrocesso, Torna-se uma fuga em pânico. Wallander tenta descobrir medo em Harald Berggren. Está convencido de que o tem, mas Harald Berggren oculta-o. Só aponta que enterram os mortos dentro da mata e marcam as sepulturas com cruzes simples de madeira. A guerra continua. Numa ocasião atiram contra um grupo de macacos. Numa outra ocasião apanham ovos de crocodilo junto à margem de um rio. As suas poupanças atingiam agora quase 30.000 coroas.
Contudo, mais tarde, no verão de 1961, tudo acaba de repente. fim do diário chega inesperadamente. Wallander pensou que certamente foi assim também para Harald Berggren. Ele deve ter imaginado que esta guerra esquisita na selva iria durar sempre. Nos últimos apontamentos descreve como deixam o país precipitadamente durante a noite, num avião de transporte com luzes apagadas, como um dos motores começa a soluçar logo a seguir a levantar da pista que eles próprios tinham preparado na mata. O diário acaba abruptamente, como que se Harald Berggren estivesse cansado, ou não tivesse mais nada para contar. Acaba lá em cima no avião de transporte, de noite, e Wallander nem sequer ficou a saber qual era o destino do avião. Harald Berggren voa pela noite africana, o som do motor diminui e ele deixa de existir.
Entretanto jà eram cinco da tarde. Wallander endireitou as costas e saiu para a varanda. Vindas do mar nuvens estavam a caminho da terra. Iria chover novamente. Refletiu sobre o que tinha lido. Por que estava o diário no cofre de Holger Eriksson juntamente com uma cabeça humana ressequida? Se Harald Berggren ainda estiver vivo, terá hoje pouco mais do que cinquenta anos. Wallander sentiu frio na varanda. Entrou e fechou a porta. Depois sentou-se no sofá. Os olhos ardiam-lhe. Para quem tinha Harald Berggren escrito o diário? Para si mesmo ou para outra pessoa? Faltava ainda alguma coisa .
Wallander ainda não descobrira o que era. Um homem Jovem escreve um diário de uma guerra distante em África. Escreve frequentemente com muitos detalhes. Muito rico em Pormenores, mesmo sendo simultaneamente muito limitado. Mas faltava alguma coisa o tempo todo, algo que Wallander também não foi capaz de ler nas entrelinhas.
Só quando Ann-Britt Höglund tocou à porta pela segunda vez se lembrou o que era. Viu-a na porta e de repente sabia o que faltava no que Harald Berggren tinha escrito. No diário tinha entrado num Mundo totalmente dominado por homens. Sobre as mulheres que Harald Berggren escreveu, ou estão mortas ou em fuga apressada. Tirando Irene que conheceu no Tivoli de Copenhagen, aquela que era engraçada, mas demasiado alta. De resto não menciona quaisquer Mulheres. Escreve sobre licenças em diferentes cidades do Congo, sobre como se embriagava e entrava em lutas, mas não há mulheres. APenas Irene.
Wallander não conseguia deixar de pensar que devia ter alguma importância. Harald Berggren é um homem jovem quando vai para África. A guerra é uma aventura e do mundo de um jovem fazem parte mulheres como uma componente importante da aventura.
Começou a refletir mas, por enquanto, mantinha as reflexões para si mesmo.
Ann-Britt Höglund viera para contar que tinha analisado o apartamento de Gösta Runfeldt juntamente com um dos técnicos de Nyberg.
O resultado fora negativo. Não tinham encontrado nada que pudesse esclarecer por que é que ele tinha comprado equipamento de escuta.
– O mundo de Gösta Runfeldt é constituído por orquídeas – observou ela. – Fiquei com uma impressão de um viúvo simpático e entusiasmado.
– A mulher dele parece ter morrido afogada – disse Wallander.
– Ela era muito bonita – disse Ann-Britt Höglund. – Vi a fotografia do casamento.
– Talvez devêssemos averiguar o que aconteceu – sugeriu Wallander. – Lá mais para a frente.
– Martinsson e Svedberg estão à procura dos filhos dele – informou ela. – Mas a questão é se não temos que começar a olhar isto como um desaparecimento a ser levado a sério.
Wallander já tinha falado com Martinsson ao telefone. Entrara em contato com a filha de Gösta Runfeldt. Ela considerava completamente incompreensível a hipótese de o pai ter desaparecido voluntariamente. Ficara muito preocupada. Sabia que ia a Nairobi e tomara por certo que ele estivesse lá.
Wallander estava de acordo. A partir de agora o desaparecimento de Gösta Runfeldt era um assunto importante para a Polícia.
– Há coisas a mais que não batem – acrescentou. – Svedberg ficou de telefonar assim que encontrasse o filho. Parece que ele está no campo algures em Hälslngland, onde não há telefone.
Decidiram que teriam uma reunião sobre a investigação no domingo à tarde. Ann-Britt Höglund prometeu organizá-la. Depois Wallander contou-lhe acerca do conteúdo do diário. Levou tempo e tentou contar tudo em pormenor. Contar-lhe era também fazer um resumo para si Mesmo.
– Harald Berggren – disse ela quando Wallender terminou. – Pode ser ele?
– Em todo o caso, ele tem regularmente a troco de pagamento, ometido barbaridades – disse Wallander. – O diário é evidentemente uma leitura horrível. Talvez ele hoje viva uma vida que o leva a ter receio de o conteúdo vir a ser revelado? – Por outras palavras, temos que o procurar – disse ela. – A primeira coisa a fazer. A questão é apenas por onde começar.
Wallander aquiesceu com a cabeça.
– O diário estava no cofre de Eriksson. Por enquanto, é esta a pista mais evidente que temos. Apesar de não nos podermos esquecer de continuar a procurar sem restrições.
– Sabes que é impossível – replicou ela admirada. – Quando encontramos uma pista, já nada é sem restrições.
– É mais uma observação – respondeu evasivamente. – Que, apesar de tudo, podemos estar errados.
Estava mesmo para sair quando tocou o telefone. Era Svedberg que tinha contatado o filho de Gösta Runfeldt.
– Ficou muito perturbado – disse Svedberg. – Queria apanhar imediatamente um avião e vir cá.
– Quando foi a última vez que teve contato com o pai? – Uns dias antes de ir para Nairobi. Ou dever ter ido, talvez devesse dizer. Tudo correu como de costume. Segundo o filho, o pai andava sempre feliz antes de viajar.
Wallander acenou com a cabeça.
– Então ficamos a saber isso – disse ele.
Depois deu o fone a Ann-Britt Höglund que combinou a hora para a reunião do dia seguinte. Só depois de ela ter desligado é que Wallander se lembrou de que tinha um papel que pertencia a Svedberg. Com apontamentos sobre uma mulher que se portara de uma forma esquisita na maternidade de Ystad.
Ann-Britt apressou-se a ir para casa para junto dos filhos. Quando Wallander se encontrou sozinho, telefonou ao pai. Decidiram que iria ter com ele domingo de manhã. As fotografias que o pai de Wallander tinha tirado com a sua máquina antiquada estavam reveladas.
Wallander dedicou o resto da noite de sábado a fazer um resumo do assassínio de Holger Eriksson. Paralelamente, a sua cabeça analisava o desaparecimento de Gösta Runfeldt. Estava preocupado e irrequieto e tinha dificuldade em se concentrar.
O pressentimento de que ainda só se situavam na periferia de uma coisa muito grande tornava-se cada vez mais forte.
A preocupação não o deixava em paz.
Quando eram nove horas, sentia-se tão cansado que nem conseguia pensar. Empurrou o bloco para o lado e telefonou a Linda. Os toques ecoaram num vazio. Não estava em casa. Vestiu um dos casacos mais grossos e foi para o centro da cidade. Comeu no restaurante chinês junto a praça. Para variar, havia muitos clientes. Lembrou-se de que era sábado à noite. Achou que merecia um jarro de vinho branco mas ficou logo com dores de cabeça. Quando regressou a casa, tinha recomeçado a chover.
Durante a noite sonhou com o diário de Harald Berggren. Encontrava-se numa imensa escuridão, estava muito calor e algures na escuridão Harald Berggren apontava-lhe uma arma.
Acordou cedo.
Tinha parado de chover naquele momento e o céu estava novamente limpo.
Às sete e um quarto sentou-se no carro e foi visitar o pai a Lõderup. A luz da manhã os contornos da paisagem eram nítidos e definidos. Wallander pensou que iria tentar convencer o pai e Gertrud irem com ele à praia. Em breve estaria tão frio que ja não seria possível.
Pensou com repúdio no sonho que tivera. Enquanto guiava também pensava que tinham que começar a fazer uma tabela de prioridades na reunião da tarde, para estabelecer em que ordem necessitavam de respostas a diferentes questões. Localizar Harald Berggren era importante. Até porque podia concluir-se que seguiam uma pista que não conduzia a lado nenhum.
Quando virou para o pátio da casa do pai já ele estava na escada para o receber. Não se tinham visto desde que se separaram após a viagem a Roma. Entraram na cozinha onde Gertrud pusera a mesa para o pequeno-almoço. juntos viram as fotografias que o pai tinha tirado. Muitas delas estavam mal focadas. Nalguns casos o motivo ficara fora dos limites da fotografia. Mas como o pai estava contente e orgulhoso, Wallander acenou em jeito de elogio.
Havia uma que era diferente de todas as outras. Fora tirada por um empregado de mesa na última noite em Roma. Eles tinham acabado de jantar. Wallander e o seu pai aproximavam-se um do outro. Na toalha branca havia uma garrafa de vinho tinto meio cheia. Os dois sorriam para a máquina fotográfica.
Por um breve instante a fotografia esmorecida do diário de Harald Berggren passou-lhe à frente dos olhos. Mas ele afastou a imagem. "" Neste momento queria olhar para si e para o pai. Chegou à conclusão de que a fotografia definitivamente confirmava o que ele tinha descoberto durante a viagem.
Eram parecidos fisicamente. Eram mesmo muito parecidos.
– Gostava de ter uma cópia desta fotografia – disse Wallander.
– já tratei disso – respondeu o pai satisfeito. – Depois empurrou-lhe o envelope com a fotografia.
Depois de terem tomado o café da manhã foram para o ateliê do pai. Estava na parte final de uma paisagem que continha um galo silvestre. A ave era sempre a última coisa que pintava. quantos quadros já pintaste na tua vida? – perguntou Wallander. – Perguntas isso cada vez que cá vens – retorquiu o pai. – Como posso eu saber? E para quê? 0 mais importante é que tenham ficado iguais. Todos.
Wallander tinha entendido há muito tempo que só havia uma explicação possível para o pai pintar constantemente o mesmo motivo. Era a sua maneira de escamotear tudo que se alterasse à sua volta. Nos quadros ele dominava inclusivamente os movimentos solares. O sol estava lá, imóvel, preso, sempre à mesma altura sobre as colinas da floresta.
– Foi uma bonita viagem – comentou Wallander, enquanto observava o pai que estava a misturar cores.
– Então, não disse que iria ser – redarguiu o pai. – Sem ela, morrias sem visitar a Capela Sistina.
Wallander ponderou de repente se era agora que iria perguntar ao pai sobre o passeio solitário que ele tinha feito numa das últimas noites, Mas deixou-se ficar. Era um segredo que só ao pai dizia respeito.
Wallander propôs irem ver o mar. Para surpresa sua, o pai disse imediatamente que sim. Mas quando perguntaram a Gertrud, ela preferiu ficar em casa. Pouco depois das dez sentaram-se no carro de Wallander e foram para Sandhammaren. Quase não havia vento. Andaram a pé praia fora. O pai agarrou-lhe no braço quando iam a passar pelo último rochedo. A partir daí, o mar estendia-se à sua frente. A praia estava quase deserta, À distância viram umas pessoas a brincar com um cão. Era tudo.
– É bonito – disse o pai.
Wallander observou-o sorrateiramente. Era como se a viagem a Roma tivesse mudado a sua disposição. Talvez mostrasse que também tinha uma influência positiva na insidiosa doença que os médicos tinham diagnosticado ao pai. Mas também sabia que ele próprio nunca entenderia totalmente que significado aquela viagem tinha tido. Fora a viagem da sua vida e Wallander tivera o privilégio de o acompanhar. Roma tinha sido a sua Meca.
Deram um longo passeio pela praia. Wallander pensou que talvez agora fosse possível falar com ele sobre tempos passados. Mas não tinha pressa.
De repente o pai deteve-se.
– O que é? – perguntou Wallander.
– Há uns dias que ando maldisposto – respondeu. – Mas vai passar brevemente.
– Queres que regressemos? – Eu dísse que em breve passa.
Wallander reparou que o pai estava a regressar ao seu velho mau hábito de responder às perguntas de maneira arisca. Por isso, não disse mais nada.
Continuaram o passeio. Um bando de aves migratórias passou por cima das suas cabeças em direção a oeste. já estavam há mais de duas horas na praia quando o pai achou que era suficiente. Wallander, que se tinha esquecido do tempo, chegou à conclusão que tinha de se despachar para não chegar tarde à reunião na central .
Depois de deixar o pai em Lõderup, regressou a Ystad com um sentimento de alívio. Mesmo se o pai nunca pudesse evitar aquela doença insidiosa, a viagem a Roma tinha aparentemente significado muito para ele. Talvez fosse possível restabelecer novamente a relação que se perdera há muitos anos quando Wallander se decidira a ser policial? O pai nunca aceitara a sua escolha profissional, mas também nunca foi capaz de explicar por que estava contra. No caminho de regresso Wallander pensou que talvez agora pudesse, finalmente, obter resposta à pergunta sobre qual dedicara demasiado tempo da sua vida a refletir.
Às duas e meia fecharam as portas da sala de reuniões. Lisa Holgersson também estava presente. Quando Wallander a viu, lembrou-se de que ainda não tinha telefonado a Per Akesson. Para não se esquecer outra vez, fez um apontamento no seu caderno.
Depois falou sobre o achado da cabeça ressequida e do diário de Ilarald Berggren. Quando acabou reinava grande consenso de que aquilo na realidade era algo que parecia uma pista. Depois de terem distribuído diferentes tarefas entre si, Wallander passou a falar de Gösta Runfeldt.
– A partir de agora temos que partir do princípio de que aconteceu alguma coisa a Gösta Runfeldt – afirmou. – Não podemos excluir nem acidente nem crime. Evidentemente permanece sempre a possibilidade de, apesar de tudo, se tratar de um desaparecimento voluntário. Por outro lado, penso que podemos eliminar a hipótese da existência de alguma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. A situação é a mesma aqui. Pode haver, mas não é provável. Não há nada que aponte nesse sentido.
Wallander queria acabar a reunião o mais depressa possível. Apesar de tudo, era domingo. Sabia que todos os seus colaboradores dedicaram o melhor dos esforços para cumprir as suas tarefas. Mas também sabia que, às vezes, o descanso era fundamental para o desempenho de um bom trabalho. As horas que passou com o pai de manhã tinham-lhe dado forças renovadas. Quando deixou a central logo a seguir às quatro, sentiu-se mais relaxado do que tinha estado já há muitos dias. A sua preocupação interior também tinha momentaneamente diminuído.
Assim que encontrassem Harald Berggren talvez se aproximassem muito mais da solução da investigação. O homicídio fora muito bem preparado para não ter um executante muito especial.
Harald Berggren poderia ser exatamente esse executante.
A caminho de Mariagatan, Wallander parou e fez compras numa loja de conveniência. Também não conseguiu resistir ao impulso de alugar um vídeo. Era um filme clássico, Dimmornas bro. já o tinha visto no cinema em Malmö com Mona, um dia logo no início do casamento. Mas do filme só restava uma memória vaga.
Estava a meio do filme quando Linda telefonou. Quando ouviu que era ela disse que lhe ligava. Parou o filme, sentou-se na cozinha e falaram quase meia hora. Nem numa única palavra deixou transparecer a má consciência que sentia de não lhe ter ligado antes. Ele também não falou disso pois sabia que eram parecidos. Ambos podiam ser despistados, mas também concentrados caso tivessem uma tarefa para resolver. Ela disse que estava tudo bem, que estava a trabalhar num restaurante em Kungsholmen e que tinha aulas numa escola de teatro. Ele não perguntou como é que ela achava que as aulas corriam. Mesmo sem lhe perguntar tinha um pressentimento de que ela própria tinha sérias dúvidas sobre o seu talento.
Não terminou a conversa sem lhe contar sobre a sua manhã na praia.
– Parece que tiveram um dia agradável – observou-lhe.
– Sim – respondeu Wallander. – Parece que alguma coisa está diferente.
Depois de desligar, Wallander foi até a varanda. O tempo continuava totalmente calmo. E isso era raro acontecer na Scania.
Entretanto sentiu que as preocupações o tinham abandonado. Agora iria dormir. Amanhã deitaria de novo mãos ao trabalho.
Ao apagar a luz na cozinha viu novamente o diário.
Wallander interrogou-se sobre onde estaria Harald Berggren naquele preciso instante.
Quando acordou na segunda-feira de manhã, dia 3 de outubro, Wallander teve uma sensação de que deveria ter imediatamente uma nova conversa com Sven Tyrén. Não conseguiu avaliar se tomara consciência disso através de um sonho ou não, mas estava convencido. Por isso, não aguardou até chegar à central e, enquanto esperava pelo café, telefonou às informações e obteve o número de casa de Sven Tyrén. Foi a mulher quem atendeu. O marido já tinha saído, mas deu-lhe o número do telemóvel. Quando Sven Tyrén respondeu, a rede zumbia com grande ruído. Wallander conseguia ouvir o som abafado do motor do camião-cisterna. Sven Tyrén disse que estava na estrada à saída de Hõgestad. Tinha dois fornecimentos a fazer antes de ir para o terminal em Malmö. Wallander pediu-lhe para passar pela central o mais depressa possível. Quando Sven Tyrén perguntou se tinham apanhado o assassino de Holger Eriksson, respondeu-lhe que se tratava apenas de uma conversa de rotina. Que se encontravam ainda na fase inicial da investigação, explicou. Certamente iriam apanhar quem matou Holger Eriksson. Podia acontecer em breve, mas também podia levar muito tempo. Sven Tyrén prometeu estar na central cerca das nove horas.
– Agradeço que não estacione à frente da entrada – lembrou Wallander. – Pode provocar confusão.
Sven Tyrén murmurou algo imperceptível como resposta.
Eram sete e um quarto quando Wallander chegou à central. Antes de passar pelas portas de vidro arrependeu-se e virou à esquerda para a Procuradoria que tinha entrada própria. Sabia que a pessoa que queria ver costumava ser tão madrugadora como ele. Quando bateu à Porta mandaram-no entrar.
Per Akeson estava sentado atrás da sua secretária, cheia como sempre. Todo o gabinete era um caos de papéis e capas. Mas as aparências enganavam. Per Akeson era um procurador extraordinariamente eficiente e organizado, com quem Wallander gostava de trabalhar. Conheciam-se há muito e durante esses anos desenvolveram uma relação que se estendia para lá da esfera puramente profissional. Partilhavam confidências privadas, procuravam apoio ou conselho um do outro. Apesar disso, havia uma barreira invisível entre eles que nunca tinham ultrapassado. Nunca se tornariam verdadeiramente bons amigos, eram demasiado diferentes para isso. Per Akeson acenou contente quando Walander entrou no gabinete. Levantou-se e arranjou lugar numa cadeira onde estava uma caixa com documentos para um processo que iria para o tribunal nesse mesmo dia. Wallander sentou-se. Per Akeson bloqueou o telefone.
– Tenho estado à espera que desses sinal de vida – disse. – É verdade, obrigado pelo postal.
Wallander tinha-se esquecido de que tinha mandado um postal para Per Akeson. Salvo erro, o motivo era o Forum Romanum.
– Foi uma viagem bem sucedida – disse. – Tanto para o meu pai como para mim.
– Nunca estive em Roma – disse Per Akeson. – Como é o provérbio? Que se deve ver Roma e morrer? Ou é Nápoles? Wallander abanou a cabeça, não sabia – Esperava um outono calmo – observou. – E, afinal, regresso e encontra-se um velhote espetado numa valeta.
Per Akeson fez uma careta.
– já vi algumas das vossas fotografias – disse. – E Lisa Holgersson tem-me contado. Têm alguma pista? – Talvez – respondeu Wallander e contou resumidamente sobre o macabro achado no cofre de Holger Eriksson. Sabia que Per Akeson tinha respeito pela sua capacidade de conduzir uma investigação policial. Era muito raro que estivesse em desacordo com as suas conclusões ou de como programava o trabalho de investigação.
– É evidente que parece uma pura loucura que se coloquem estacas afiadas de bambu numa valeta – disse Per Àkeson. – Mas, por outro lado, vivemos num tempo onde a diferença entre loucura e normalidade se torna cada vez mais difícil de distinguir.
– Como vai o assunto de Uganda? – perguntou Wallander.
– Suponho que queres dizer Sudão – corrigiu Per Akeson. Wallander sabia que Per Akeson se tinha candidatado a um lugar junto ao Comissariado de Refugiados das Nações Unidas. Queria sair de Ystad por um período. Ver outras coisas antes que fosse tarde. per Ákeson era um pouco mais velho do que ele. Já passava dos cinquenta.
– Sudão – disse Wallander. – já falaste com a tua mulher? Per Akeson fez que sim com a cabeça.
– Arranjei coragem uma semana destas. Constatei que está muito mais compreensiva do que eu podia esperar. Fiquei com uma clara impressão de que gostaria que eu desaparecesse de casa por uma temporada. Ainda espero resposta, mas ficaria surpreendido se não me dessem o lugar. Como sabes, tenho os meus contatos.
Wallander aprendera ao longo dos anos que Per Àkeson tinha um talento invulgarmente desenvolvido para adquirir informações secretas. Wallander não fazia ideia como ele conseguia isso. Mas Akeson estava sempre bem informado, por exemplo, sobre o que se discutia nas diversas comissões do parlamento ou nas situações mais internas e fechadas da Direção Nacional da Polícia.
– Se tudo correr como previsto, desapareço pelo Ano Novo – disse.
– Fico fora pelo menos dois anos.
– Até lá esperamos ter resolvido isto do Holger Eriksson. Tens algumas diretivas que me queiras dar? – Digamos que és tu quem tem de vir com pedidos do que precisares.
Wallander refletiu antes de responder.
– Ainda não – respondeu. – Lisa Holgersson disse que devíamos chamar Mats Ekholm. Lembras-te dele, do verão passado? Aquele com os perfis psicológicos? Que caça loucos através da tentativa de os catalogar? De resto, penso que ele é muito bom.
Per Ákeson lembrava-se dele muito bem.
– Penso que devemos esperar – continuou Wallander. – É que não estou nada convencido de que o caso tenha a ver com um perturbado mental.
– Se consideras que devemos esperar, então esperamos – isse Per Akeson levantando-se. Apontou para a caixa. – Tenho um processo 'nvulgarmente complicado hoje – desculpou-se. – Tenho que me Preparar.
Wallander preparou-se para sair.
– Na realidade, o que é que vais fazer no Sudão? – perguntou. Será que os refugiados precisam mesmo de ajuda jurídica sueca? Refugiados precisam sempre de toda a ajuda que possam obter – rrespondeu Per Akeson e acompanhou Wallander até a recepção. – Não é só na Suécia. – Estive em Estocolmo uns dias quando tu estavas em Roma – disse de repente, – Cruzei-me com Anette Brolii, por mero acaso. Ela mandou cumprimentos a todos, mas especialmente para ti.
Wallander observou-o duvidoso. Mas não disse nada. Uns anos antes Anette Brolin tinha substituído Per Akeson. Apesar de ela ser casada, Wallander tinha feito uma aproximação pessoal da qual não se tinha saído muito bem. Era algo que preferia esquecer.
Foi embora da Procuradoria. O vento soprava em rajadas. O céu estava cinzento. Wallander calculou que estariam no máximo oito graus, No portão para a central cruzou-se com Svedberg que ia a sair. Lembrou-se de que tinha um papel que lhe pertencia.
– Por engano, levei alguns dos teus apontamentos depois de uma reunião no outro dia – disse. Svedberg pareceu não entender. – Não dei por faltar nada.
– Eram uns apontamentos sobre uma mulher que teve um comportamento esquisito na Maternidade.
– Podes deitar fora – disse Svedberg. – Era apenas alguém que tinha visto um fantasma.
És tu quem vai ter de o deitar fora – retorquiu Wallander. Ponho-o na tua mesa.
– Continuamos a falar com pessoas na zona da quinta de Eriksson – disse Svedberg. – Também vou ter uma conversa com o distribuidor de correio.
Wallander acenou e cada um foi para seu lado.
Ao chegar ao gabinete jà se tinha esquecido do papel de Svedberg. Tirou o diário de Harald Berggren do bolso interior do casaco e colocou-o numa gaveta da secretária. Deixou ficar sobre a mesa a fotoografia dos três homens à frente da termiteira. Enquanto esperava por Sven Tyrén, leu rapidamente uns papéis que o grupo da investigação tinha deixado lá. Marcava um quarto para as nove quando foi buscar café. Ann-Britt Höglund passou por ele e contou-lhe que o desaparecimento de Gösta Runfeldt estava agora registrado e passava a ser formalmente tratado como um assunto urgente.
– Falei com um vizinho de Runfeldt – disse. – Um professor de liceu que parecia de muita confiança. Afirmou-me que, na terça-feira à noite, tinha ouvido Gösta Runfeldt no apartamento. Mas não depois.
– O que significa que foi nessa altura que se foi embora – concluiu Wallander. – Mas não para Nairobi.
– Perguntei àquele vizinho se tinha notado alguma coisa de especial com Runfeldt – disse. – Mas parece que era um homem reservado de hábitos regulares, discretos, era educado mas nada mais. Além disso, era raro receber visitas. A única coisa notável era que Runfeldt volta e meia chegava a casa muito tarde. Este professor mora no apartamento por baixo de Runfeldt e o prédio tem um mau isolamento acústico. Eu julgo que se pode confiar no que diz.
Wallander ficou parado com a caneca na mão a pensar no que ela dissera.
– Temos que decifrar o conteúdo daquela caixa. Era bom que alguém telefonasse àquela empresa de venda por catálogo jà hoje. Além disso, espero que os colegas de Borâs estejam dentro do assunto. Como se chamava a empresa? Secur? Nyberg sabe. Temos que saber se Runfeldt jà tinha anteriormente mandado vir outras coisas. Fez a encomenda, naturalmente, para se servir dos produtos nalguma ocasião.
– Equipamento de escuta – disse ela. – Impressões digitais? Quem pode estar interessado? Quem utiliza coisas dessas? – Nós utilizamos.
– Mas quem mais? Wallander percebeu que ela estava a pensar em algo especial.
– Um equipamento de escuta pode evidentemente ser utilizado por pessoas que têm intenções ílícitas.
– Pensei mais nas impressões digitais. Wallander acenou, Agora entendia.
– Um investigador privado – aventou. – Um detetive privado. Já me passou pela cabeça. Mas Gösta Runfeldt é um comerciante de flores que se dedica a orquídeas.
– Era apenas uma ideia – disse ela. – Eu própria vou contatar aquela empresa de venda.
Wallander regressou ao seu gabinete. O telefone tocou, era Ebba. Sven Tyrén encontrava-se na recepção da central .
– Espero que não tenha estacionado o camião-cisterna aí fora? – perguntou Wallander. – Hanson fica furioso.
– Daqui não vejo nenhum carro – disse Ebba. – Vens buscá-lo? Martinson também queria falar contigo.
– Onde está? – No gabinete dele, suponho.
– Pede a Sven Tyrén para esperar uns minutos enquanto falo con, Martinson.
MartinSon estava ao telefone quando Wallander lhe entrou pelo gabinete. Acabou rapidamente a chamada. Wallander pressupôs que era a mulher que tinha telefonado. Ela falava uma data de vezes por dia. Ninguém sabia por quê.
– Tenho estado em contato com a Medicina Legal de Lund – disse. – Têm alguns resultados preliminares para relatar. O problema é que têm dificuldade em falar sobre aquilo que mais nos interessa.
– Quando morreu? Martinsson assentiu.
– Nenhuma daquelas canas trespassou diretamente o coração. Também não foi perfurada nenhuma artéria. O que significa que ele pode ter estado pendurado bastante tempo antes de morrer. A causa fundamental da morte pode ser atestada como afogamento.
– Como é possível? – perguntou Wallander surpreso. – Então ele não estava pendurado numa valeta? Aí não é póssível afogar-se.
– O médico com quem falei estava cheio de pormenores desagradáveis – disse Martinsson. – Ele disse que os pulmões estavam tão cheios de sangue que, em dada altura, Holger Eriksson já não devia conseguir respirar. Mais ou menos como se estivesse a afogar-se.
– Temos que saber quando morreu – disse Wallander. – Liga-lhes outra vez. Têm que ser capazes de dizer alguma coisa .
– Vou tomar providências para que os papéis te sejam entregues logo que cheguem, – Só acredito quando os vir. Há tanta coisa que desaparece aqui. Não foi sua intenção criticar Martinsson. Quando Wallander regressou ao corredor, percebeu que as suas palavras podiam ser mal interpretadas, mas nessa altura já era tarde para remediar. Foi à recepção ao encontro de Sven Tyrén, que estava sentado num sofá de plástico a fitar o chão. Estava com a barba por fazer e tinha olhos avermelhados.
O cheiro a óleo e combustível era muito forte. Foram para gabinete de Wallander.
– Por que é que ainda não apanharam quem matou Holger? – perguntou Sven Tyrén.
Wallander sentiu-se de novo irritado com a atitude de Tyrén.
– Se conseguir dizer-me aqui e agora quem foi, vou pessoalmente buscá-lo – disse.
– Não sou policial.
– Não precisa de mo dizer. Se fosse policial, não tinha feito uma pergunta tão parva.
Quando Tyrén abria a boca para protestar Wallander levantou um braço para o calar.
– Neste momento sou eu quem faz as perguntas – disse.
– Sou suspeito de alguma coisa? – Não. Mas as perguntas são minhas. E você tem que responder às perguntas que faço. Nada mais.
Sven Tyrén encolheu os ombros. Wallander teve a sensação de que ele estava na defensiva. Reparou como todos os seus instintos policiais se apuravam. A sua primeira pergunta era a única que já tinha preparada.
– Harald Berggren – pronunciou ele. – Esse nome diz-lhe alguma coisa? Sven Tyrén olhou-o.
– Não conheço ninguém chamado Harald Berggren. Devia conhecer? – Tem a certeza? – Sim.
– Pense bem! – Não preciso de pensar. Quando tenho a certeza, tenho e pronto. Wallander empurrou a fotografia e apontou. Sven Tyrén inclinou-se para a frente.
– Veja se conhece alguma das pessoas nesta fotografia. Olhe bem. Leve o tempo que precisar.
Sven Tyrén pegou na fotografia com os seus dedos cheios de óleo. Contemplou-a muito tempo. Wallander começara a ter esperança quando ele a colocou novamente na mesa.
– Nunca vi nenhum deles antes.
– Observou durante muito tempo. Acha que conhecia alguém?
– Parece-me que disse para eu demorar o tempo que quisesse? Quem são? Onde foi tirada? – Tem a certeza? – Nunca os vi.
Wallander percebeu que Tyrén estava a dizer a verdade.
– Esta fotografia representa três mercenários – explicou. – Foi tirada em África há trinta anos.
– A legião estrangeira – Não exatamente, mas quase. Soldados que lutam para quem lhes paga melhor.
– Tem que se fazer pela vida.
Wallander olhou admirado para ele. Mas não perguntou o que, na realidade, Sven Tyrén queria dizer com o comentário.
– Ouviu alguma vez dizer que Holger Eriksson tenha eventualmente tido contatos com mercenários? – Holger Eriksson vendia automóveis. Pensava que você já tinha percebido.
– Além disso, Holger Eriksson escrevia poemas e observava aves – retorquiu Wallander e não escondeu que estava irritado. – Ouviu ou não ouviu Holger Eriksson falar de mercenários? Ou sobre guerras em África.
Sven Tyrén fitava-o.
– Por que os policiais têm que ser tão desagradáveis? – perguntou.
– Porque nem sempre estamos lidando com coisas agradáveis – respondeu Wallander. – A partir de agora só quero que responda às minhas perguntas. Nada mais. Omita comentários pessoais que não tenham a ver com o assunto.
– O que acontece se não obedecer? Wallander pensou que estava prestes a cometer um erro profissional. Mas não se importou. Havia algo naquele homem do outro lado da secretária de que ele definitivamente não gostava.
– Então chamá-lo-ía para inquirição todos os dias nos tempos mais próximos. E pediria à Procuradoria um mandato de busca a sua casa.
O que acha que iria encontrar lá? Não interessa. Mas entendeu quais são as regras? Wallander sabia que estava a correr um grande risco. Sven Tyrén conseguiu notar. Mas pelos vistos preferiu agir como Wallander ordenara.
– Holger era uma pessoa pacífica. Apesar de ser duro quando se tratava de negócios. Mas nunca falou de mercenários. Certamente poderia tê-lo feito.
– O que quer dizer com isso? Que certamente o poderia ter feito? – Mercenários não lutam contra revolucionários e comunistas? pode dizer-se que Holger Eriksson era conservador. No mínimo.
– Como conservador? – Ele achava que todo o desenvolvimento da sociedade estava de pernas para o ar. Achava que se devia reintroduzir castigos corporais e enforcar os assassinos. Se ele pudesse decidir, colocariam uma corda ao pescoço de quem o matou.
– E falava sobre essas coisas com você ? – Sobre isso falava com toda a gente. Ele era firme nas suas convicções.
– Tinha contato com alguma organização conservadora? – Como Posso saber? – Se sabe uma coisa também pode saber a outra. Responda à pergunta! – Não sei.
– Neonazis? – Não sei.
– Ele próprio era nazi? – Não sei nada sobre eles. Ele achava que a sociedade se estava a afundar, não via quaisquer diferenças entre socialistas e comunistas.
O partido liberal era provavelmente o mais radical que era capaz de aceitar.
Wallander refletiu uns instantes sobre o que Tyrén dissera. Tanto aprofundara como mudara a imagem que Wallander tivera até agora de Holger Eriksson. Pelos vistos, tinha sido uma pessoa invulgar e contraditória. Poeta e ultraconservador, observador de aves e adeto da sentença de morte. Wallander lembrou-se da poesia na secretária, onde Holger Eriksson lamentava que estivesse em extinção no país uma espécie de aves. Mas criminosos graves deviam ser enforcados.
– Alguma vez lhe disse que tinha inimigos?
– Já me perguntou isso.
– Sei, mas agora pergunto outra vez.
– Nunca o disse abertamente. Mas trancava as portas à noite.
– Por quê?
– Porque tinha inimigos.
– Mas não sabe quais?
– Não.
– Ele disse por que tinha inimigos?
– Nunca disse que tinha inimigos. Sou eu que o digo. Quantas vezes tenho que o repetir? Wallander levantou o braço num sinal de aviso. – Se me apetecer posso fazer a mesma pergunta todos os dias nos próximos cinco anos. Nenhum inimigo, mas trancava tudo à sua volta à noite? -Sim.
– Como sabe?
– Ele me disse. Que diabo, como poderia saber? Não ia lá de noite para experimentar a porta! Na Suécia hoje em dia não se pode confiar em ninguém. Era o que ele dizia.
Wallander decidiu-se a interromper a conversa com Sven Tyrén, por agora. Quando fosse necessário voltaria a entrar em contato. Também tinha uma forte sensação de que Tyrén sabia mais do que deixava transparecer. Mas Wallander queria avançar lentamente. Se assustasse Tyrén, teria grandes dificuldades em tirar-lhe informações no futuro.
– Penso que nos satisfazemos com Isto, por enquanto – disse Wallander.
– Por enquanto? Isso significa que tenho de cá voltar? Quando vou ter tempo para trabalhar? – Contatá-lo-emos. Obrigado por ter vindo – disse Wallander e levantou-se. Estendeu a mão.
A cordialidade surpreendeu Tyrén. Ele tinha um aperto de mão forte, sentiu Wallander.
– Acho que encontra a saída – disse.
Depois de Tyrén ter desaparecido Wallander telefonou a Hansson. Teve sorte e apanhou-o logo.
– Sven Tyrén – disse. – O motorista do camião-cisterna. Que achas ter estado envolvido em alguns casos de maus tratos. Lembras-te? – Sim, lembro-me.
Vê o que podes encontrar sobre ele. É urgente? Não mais do que as outras coisas. Mas menos também não. Hansson prometeu encarregar-se disso.
Já eram dez horas. Wallander foi buscar café. Depois fez um relatório da conversa que tivera com Sven Tyrén. Na próxima vez que o grupo de investigação se reunisse iriam ter uma discussão minuciosa sobre o que tinha surgido durante essa conversa. Wallander estava convencido de que era importante.
Quando terminara o resumo e fechou o bloco, descobriu o papel com anotações a lápis que, por várias vezes, se tinha esquecido de devolver a Svedberg. Agora tinha de o fazer antes de iniciar outra coisa. Agarrou no papel e deixou o gabinete. No corredor ouviu o seu telefone a tocar. Hesitou por instantes. Depois voltou atrás e levantou o fone.
Era Gertrud. Ela estava a chorar.
– Tens que vir, choramingava. Wallander ficou completamente gelado.
– O que aconteceu? – perguntou.
– O teu pai morreu. Está lá fora entre os quadros.
Eram dez e um quarto, segunda-feira, 3 de outubro de 1994.
O pai de Kurt Wallander foi sepultado no cemitério novo em Ystad, no dia 11 de outubro. Um dia com ventos fortes e chuvaradas intensas que, volta e meia, eram interrompidos pelo sol. Nessa altura, uma semana depois de Wallander ter recebido o telefonema da morte do pai, ainda tinha dificuldade em entender o que tinha acontecido. A recusa, essa sentira-a no momento em que desligara o telefone. Era um pensamento impossível o de que o pai fosse morrer. Especialmente agora, logo a seguir à viagem a Roma. Quando tinha reencontrado um pouco da harmonia desaparecida havia tantos anos. Wallander deixou a central sem falar com ninguém. À partida estava convencido de que Gertrud se enganara. Porém, quando chegou a Löderup e correu pari o ateliê onde cheirava sempre a terebintina, confirmou logo que era de fato verdade o que Gertrud dissera ao telefone. O pai estava deitado, de barriga para baixo sobre um dos qUadros que estava a pintar. No momento da morte tinha fechado os olhos e segurado firmemente o pincel que tinha acabado de usar para fazer pequenos salpicos di],, branco no galo silvestre. Wallander percebeu que estava a acabar o quadro em que estivera a trabalhar no dia anterior, quando deram o longo passeio na praia junto a Sandliaininaren. A morte chegou de repente. Gertrud conseguiu, posteriormente, e depois de se acalmar o suficiente para poder falar coerentemente, explicar que ele tinha tomado o café da manhã como habitualmente. Tudo decorrera como de costume. Cerca das seis e meia tinha saído para o atellê. Como não voltou à cozinha às dez horas para beber o café habitual, ela foi lá chamá-lo. Nessa altura já estava morto. Wallander pensou que a morte, independentemente de quando acontece, vem sempre perturbar. A morte chega inoportunamente, quer se trate de uma xícara de café não bebida ou de qualquer outra coisa. Esperaram pela ambulância. Gertrud agarrara-se fortemente ao braço dele. Wallander sentiu-se completamente vazio por dentro. Nem tristeza conseguia sentir. Não conseguia sentir nada, a não ser uma sensação de injustiça. De fato, não podia lamentar o pai já morto. Mas podia lamentar-se por si próprio, o único sofrimento possível. Depois chegara a ambulância, Wallander conhecia o condutor. Chamava-se Prytz e percebeu logo que se tratava do pai de Wallander.
– Não estava doente – informou Wallander. – Ontem fomos passear na praia. Nessa altura queixou-se de uma qualquer indisposição, nada mais.
– Provavelmente foi uma trombose – respondeu Prytz com compreensão na voz. – Pode manifestar-se desse modo.
Foi também o que os médicos posteriormente disseram a Wallander. Tudo se tinha desenrolado muito depressa, o seu pai praticamente não tivera tempo para tomar consciência de que estava a morrer. Um vaso sanguíneo tinha rebentado no seu cérebro e morrera antes de a cabeça bater no quadro ainda não acabado. Para Gertrud, o luto e o choque misturava-se com o alívio de tudo ter decorrido muito depressa. E por ele não ter tido que morrer aos poucos, numa terra de ninguém.
Os pensamentos de Wallander eram totalmente diferentes. O pai estava sozinho quando morreu e ninguém devia estar só quando chegasse a sua hora. Tinha a consciência pesada por não ter reagido ao fato de o pai se sentir indisposto. Era algo que podia fazer antever um enfarte ou uma trombose. Mas o pior foi que tinha acontecido no momento errado. Apesar de ter oitenta anos, era cedo de mais, devia ter acontecido mais tarde, não agora. Não desta maneira. Quando Wallander chegou ao ateliê, tentara reanimá-lo, mas não havia nada que pudesse fazer. O galo silvestre nunca acabaria de ser pintado.
Contudo, no meio do caos, quer exterior quer interior, que a morte sempre traz, Wallander tinha mantido a capacidade de atuar calma e racionalmente. Gertrud fora na ambulância. Wallander tinha regressado ao ateliê, onde ficara em silêncio com o cheiro a terebintina, chorando ao pensar que o pai não teria gostado de deixar o galo silvestre por acabar. Com um gesto de entendimento acerca das fronteiras invisíveis da vida e da morte, Wallander agarrara no pincel e preenchera os dois pontos brancos que faltavam na plumagem do galo silvestre. Fora a primeira vez na sua vida que tocara com um pincel num quadro do pai. Depois limpara o pincel e colocara-o entre os outros num velho frasco de compota. Não entendera o que tinha acontecido, não previra qual o significado que iria adquirir para si mesmo. Nem sequer sabia como se comportar no luto.
Entrou na casa e telefonou a Ebba. Ela ficou comovida e triste e Wallander teve dificuldade em falar. Finalmente pediu-lhe apenas para dizer aos outros o que tinha acontecido. Mesmo sem ele deviam continuar como habitualmente. Bastava mantê-lo informado se eventualmente acontecesse algo decisivo na investigação. Nesse dia não iria voltar ao trabalho. Ainda não sabia o que iria fazer no dia seguinte. Depois telefonou à irmã Kristina a dar-lhe a notícia da morte do pai. Falaram durante muito tempo. A Wallander pareceu-lhe que ela se tinha preparado de uma maneira completamente diferente da dele para a possibilidade de o pai de repente falecer. Ela ficou de ajudar a localizar Linda porque ele não tinha o número de telefone do restaurante onde ela trabalhava. Depois telefonou a Mona. Ela trabalhava num cabeleireiro em Malmö, cujo nome ele não sabia ao certo. Mas uma simpática operadora das informações conseguira ajudá-lo quando ele disse do que se tratava. Ele notou que ela ficou surpreendida com o telefonema. Receara imediatamente que tivesse acontecido alguma coisa a Linda. Quando Wallander contou que fora o pai que morrera, notou que, pelo menos em parte, ela sentira alívio. Ficou perturbado com isso, mas não disse nada. Sabia que Mona e o seu pai se davam bem e era natural que se preocupasse com Linda. Lembrou-se da manhã em que o Estónia naufragou.
– Compreendo como te sentes – disse. – Toda a tua vida tens tido receio deste momento.
– Tínhamos tanto para falar – respondeu. – Agora que finalmente nos reencontráramos... agora é tarde de mais.
– É sempre tarde de mais – disse ela.
Ela prometeu ir ao funeral e ajudar caso fosse preciso. Depois de desligar sentiu um horrível vazio interior. Ligou o número de Balba em Riga, mas ninguém respondeu. Ligou várias vezes, mas nada.
Depois voltou ao atellê. Sentou-se no velho trenó onde sempre se sentava com uma xícara de café na mão. O telhado tamborilava ligeiramente. Recomeçara a chover. Wallander sentiu o medo da morte nas suas mãos. O ateliê já estava transformado numa sepultura. De repente, levantou-se e saiu dali. Voltou à cozinha. O telefone tocou. Era Linda. Chorava. Wallander também começou a chorar. Queria voltar para casa o mais depressa possível. Wallander perguntou-lhe se era necessário falar com o patrão dela. Mas Linda já tinha falado com o proprietário do restaurante e iria para Arlanda tentar apanhar um voo nessa mesma tarde. Ele prometeu ir ao seu encontro, mas ela disse-lhe para ficar com Gertrud que ela trataria de chegar a Ystad e Lõderup.
Mais tarde naquela noite estavam juntos na casa, em Lõderup. Wallander notou que Gertrud estava muito calma e Juntos começaram a falar do funeral. Wallander tinha dúvidas se o pai quereria um padre no funeral, mas foi Gertrud quem decidiu. Era ela a viúva dele.
– Ele nunca falava da morte – disse. – Se a receava ou não, não sei dizer. Também não disse onde queria ser sepultado. Mas eu quero um padre.
Acordaram que seria sepultado no cemitério novo em Ystad. Um funeral simples. O pai não tivera muitos amigos. Linda disse que queria ler um poema, Wallander prometeu não fazer nenhum discurso e estavam de acordo que "Härlig är Jorden" [Maravilhoso é o mundo. (NT)] era o salmo que iriam cantar juntos.
No dia seguinte chegou Kristina. Ela ficou com Gertrud enquanto Linda ficou com Wallander em Ystad. Foi uma semana em que a morte os uniu. Kristina disse que, agora que o pai tinha partido, eram eles a seguir. Wallander sentia permanentemente como aumentara o seu próprio receio da morte, mas não falava dele com ninguém. Nem com Linda, nem sequer com a irmã. Talvez um dia o conseguisse fazer com Balba. Quando finalmente conseguiu contatá-la para contar o que acontecera, ela reagiu intensamente. Falaram durante quase uma hora e ela contou-lhe o que sentira quando o seu pai tinha falecido há dez anos, e também falou sobre o que sentira quando o seu marido Karlis fora assassinado. A seguir Wallander sentiu-se aliviado. Ela existia e não iria desaparecer, No mesmo dia em que o anúncio da morte foi publicado na Ystads Allebanda Sten Widén telefonou da sua quinta de cavalos nos arredores de Skurup. Havia cerca de um ano que Wallander falara com ele pela última vez. Em tempos foram amigos íntimos. Tinham partilhado o interesse pela ópera e alimentado grandes sonhos comuns para o futuro. Sten Widén tinha uma voz bonita. Wallander iria ser o seu empresário, mas tudo mudara no dia em que o pai de Sten Widén repentinamente morrera, o que o obrigara a ficar com a quinta onde treinavam cavalos de corrida. Wallander tornou-se policial e a convivência diminuíra lentamente. Mas Sten Widén telefonara a exprimir o seu pesar. Depois da conversa Wallander interrogou-se se alguma vez Sten Widén teria visto o seu pai. Mas sentia gratidão por Sten Widén ter telefonado. Apesar de tudo, tinha havido alguém fora da família mais próxima que não o tinha esquecido.
No meio de tudo isto Wallander esforçou-se por continuar a ser policial. Na terça-feira, dia 4 de outubro, o dia seguinte ao falecimento do pai, regressou à central. Tinha passado uma noite de insónias. Linda tinha dormido no seu velho quarto. Até Mona tinha vindo o visitá-los e trouxera o jantar para, como disse, os fazer pensar por instantes noutras coisas. Wallander, pela primeira vez desde o desgastante divórcio de havia cinco anos, tinha conseguido perceber que o casamento estava agora definitivamente acabado. Durante muito tempo tinha-lhe implorado para voltar, e tinha sonhado, sonhos irrealistas, que tudo iria um dia ser como fora antes. Mas não houve nenhum caminho de regresso. E agora era Balba quem lhe era íntima. A parte boa que a morte do pai trouxera foi que não tinha dúvidas de que a vida que vivera com Mona tinha acabado.
O fato de dormir mal durante essa semana até ao funeral não era de admirar, mas aos colegas dava a impressão de que tudo era como de costume. Tinham lamentado a morte do pai e ele tinha agradecido. Em seguida imediatamente passaram a investigação em curso. Lisa Holgersson chamara-o de parte ao corredor e propusera-lhe tirar uns dias, mas ele recusara a oferta. As horas de trabalho diário aliviavam a dor que sentia pela morte do pai.
O fato é que a investigação avançara muito devagar durante a semana até ao funeral. Mas era difícil determinar se isso era por Wallander não estar lá permanentemente a empurrar o trabalho de investigação. Outra coisa em que se concentraram e que constantemente ensombrava o assassínio de Holger Eriksson, era o desaparecimento de Gösta Runfeldt. Ninguém entendia o que tinha acontecido. Tinha desaparecido sem deixar rasto. Nenhum dos policiais acreditava haver já uma explicação natural para o seu desaparecimento. Por outro lado, não tinham conseguido encontrar nada que indicasse uma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. A única coisa que parecia absolutamente evidente no que se referia a Gösta Runfeldt era o seu grande interesse por orquídeas.
– Devíamos investigar o que aconteceu quando a mulher dele se afogou – sugeriu Wallander, numa das reuniões em que participara na semana anterior ao funeral. – Ann-Britt Höglund prometeu encarregar-se do assunto.
– A empresa de vendas por catálogo em Borâs? – perguntara depois Wallander. – O que aconteceu com eles? O que dizem os colegas? – Eles trataram logo do caso – respondeu Svedberg. – Pelos vistos não é a primeira vez que aquela empresa se dedica à importação ilegal de equipamentos de escuta. Segundo a Polícia de Borâs, a empresa tem aparecido e desaparecido para a seguir surgir sob um novo nome e endereço e, às vezes, também com outros donos. Se entendi bem, já fizeram uma busca. Mas esperamos por um relatório escrito.
– O mais importante para nós é saber se Gösta Runfeldt fez compras anteriormente. O resto não precisamos de saber neste momento.
– O registro de clientes deles era muito incompleto. Mas a Polícia de Boràs, pelos vistos, encontrou equipamento proibido e muito sofisticado nas instalações deles. Se os interpretei bem, Runfeldt poderia ter sido alguma coisa como um espião.
Wallander pensou por instantes no que Svedberg acabara de dizer.
– Por que não? – replicou em seguida. – Não podemos excluir nada, Ele tinha que ter um objetivo para comprar aquele equipamento.
Assim, o desaparecimento de Gösta Runfeldt era levado muito a sério. Mas de resto estavam totalmente concentrados na caça ao assassino de Holger Eriksson. Procuraram Harald Berggren sem encontrar a mínima pista dele. O Museu de Estocolmo informara que a cabeça ressequida que tinham encontrado juntamente com o diário no cofre de Holger Eriksson era, muito provavelmente, do Congo, atual Zaire, e que era uma cabeça humana. Até aqui batia tudo certo. Mas quem era esse Harald Berggren? já tinham falado com muita gente que conhecera Holger Eriksson durante períodos da sua vida. Mas ninguém tinha alguma vez ouvido falar de Berggren. Também ninguém tinha ouvido falar que Holger Eriksson tivesse tido contato com o submundo, onde se movimentavam os mercenários como ratos temerosos e assinavam contratos com os diversos mensageiros do diabo.
Finalmente fora Wallander quem apresentara a ideia que fez com que a investigação começasse a mexer novamente.
– Há muita coisa esquisita a volta de Holger Eriksson – dissera.
– Para não falar do fato de não existir uma única mulher no círculo das suas relações. Em lado nenhum e vez alguma. Isso levou-me a pensar que pudesse haver uma relação homossexual entre Holger Eriksson e o homem chamado Harald Berggren. No diário dele também não há mulheres.
Fez-se silêncio na sala de reuniões. Ninguém parecia ter considerado a possibilidade agora apresentada por Wallander.
– Parece um pouco esquisito que homossexuais escolhessem uma atividade tão masculina como ser soldado – interveio Ann-Britt Höglund.
– Não de todo – respondeu Wallander. – Não é invulgar que homossexuais se tornem soldados. Pode ser para ocultar a sua tendência, ou por outras razões.
Martinsson estava a estudar a fotografia dos três homens junto a termiteira.
– Consegue ficar-se com a impressão de que tens razão – disse.
– Estes homens têm algo de feminino.
– O quê? – perguntou Ann-Britt Höglund curiosa.
– Não sei – respondeu MartInsson. – Talvez pela forma de se encostarem à termiteira. Pelo cabelo.
– Não vale a pena ficarmos aqui a adivinhar – interrompeu Wallander. – Apenas apontei mais uma possibilidade. Vamos tê-la em mente, como tudo o resto.
– Por outras palavras, procuramos um mercenário homossexual – concluiu Martinsson com desalento. – Onde se encontra um tipo destes? – É exatamente o que não devemos fazer – ripostou Wallander. Mas temos que avaliar essa possibilidade paralelamente com outros dados.
– Nenhuma das pessoas com quem falei tem sequer insinuado a possibilidade de Holger Eriksson ter sido homossexual – disse Hansson, que até aquele momento tinha estado calado.
– Não é propriamente algo de que se fale abertamente – lembrou Wallander. – Pelo menos homens duma geração mais velha. Se Holger Eriksson era homossexual, teria sido no tempo em que, neste país, se fazia chantagem com pessoas com essa tendência.
Queres dizer, portanto, que temos de começar a perguntar às ressoas se acham que Holger Eriksson era homossexual? – disse Svedberg que também não tinha dito nada durante a reunião.
– A maneira como vocês atuam é decisão vossa – redarguiu Wallander. – Nem sequer sei se estou certo. Mas não podemos ignorar esta possibilidade.
Wallander conseguiria, mais tarde, concluir muito claramente que fora nesse momento que a investigação entrara numa outra fase. Era como se todos se apercebessem de que não havia nada simples ou de fácil acesso no homicídio de Holger Eriksson. Tinham que lidar com um ou vários criminosos astutos, e agora podiam desconfiar que o motivo do homicídio talvez estivesse escondido no passado. Um passado bem protegido. Continuaram com o árduo trabalho de rotina e fizeram um levantamento de tudo o que era acessível a respeito da vida de Holger Eriksson. Svedberg até tinha ficado umas longas noites a ler ininuciosamente as nove coletâneas de poesia que Holger Eriksson tinha publicado. Para o fim, Svedberg pensava que estava a ficar maluco com as complicações espirituais que nitidamente existiam no mundo das aves. Mas não lhe parecia ficar a saber mais sobre Holger Eriksson. Martinsson levara a sua filha Terese ao cabo de FaIsterbo numa tarde ventosa para falar com vários observadores de aves que olhavam tensos para as nuvens cinzentas. A única coisa que concluiu da visita, tirando o convívio com a sua filha que tinha mostrado interesse em se tornar membro dos "Biólogos em Campo", foi que na noite em que Holger Eriksson foi assassinado, grandes bandos de tordos tinham deixado a Suécia. Martinsson conferenciara mais tarde com Svedberg que afirmara que não havia poemas sobre os tordos em nenhuma das nove coletâneas.
– Por outro lado, há três longos poemas sobre narcejas simples – disse Svedberg com hesitação. – Há algum que se chame narcejas duplo? Martinsson não sabia. E a investigação prosseguiu.
Finalmente chegou o dia do funeral. Iam encontrar-se no crematório. Uns dias antes Wallander soubera, com surpresa, que iriam ter um padre mulher na liturgia, que, além do mais, não era um padre qualquer. Ele já a conhecia duma ocasião, que lhe ficara na memória, no verão anterior. Mais tarde sentir-se-ia contente por ter sido ela. As suas palavras foram simples e nunca chegaram a tender para o grandioso ou patético. No dia anterior ao funeral tinha-lhe telefonado a perguntar se o seu pai fora religioso. Wallander respondera negativamente. Tinha falado com ela acerca da pintura e da viagem a Roma.
O funeral foi menos insuportável do que Wallander receara. A urna era de madeira castanha e tinha uma decoração simples de rosas. Quem mostrou abertamente os sentimentos de modo mais intenso foi Linda. Ninguém tinha dúvidas de que a tristeza dela era genuína. De todos, talvez fosse quem mais sentia a falta do homem que agora jazia morto.
Depois da cerimónia foram para Lõderup. Agora que terminara o funeral, Wallander sentia-se aliviado. Não fazia ideia, no entanto, de como os seus sentimentos se manifestariam mais tarde. Ainda era como se na realidade não entendesse o que acontecera. Pensou que pertencia a uma geração que estava invulgarmente mal preparada para o fato de a morte estar sempre nas proximidades. No caso dele, o sentimento de estranheza fortalecia-se pelo fato de, frequentemente, lidar com mortos no seu trabalho como policial. Mas verificou que ele próprio estava tão desprotegido como outra pessoa qualquer. Pensou na conversa que tinha tido com Lisa Holgersson na semana anterior.
À noite ele e Linda ficaram acordados conversando por muito tempo. Ela partiria para Estocolmo no dia seguinte de manhã cedo. Wallander perguntou-lhe cautelosamente se pensava visitá-lo com menos frequência, agora que o avô tinha desaparecido. Mas ela prometeu que, pelo contrário, o iria visitar com mais frequência. E Wallander prometeu que, por sua vez, não iria esquecer Gertrud.
Quando Wallander se deitou, sentiu que agora, imediatamente, tinha que regressar ao trabalho. Com a força toda, pois tinha estado fora uma semana. Só depois de ter passado algum tempo da morte do pai talvez viesse a entender o que ela representava. Para conseguir essa distância tinha que trabalhar. Não existia outra alternativa.
Nunca fiquei sabendo por que ele não queria que eu fosse policial, pensou antes de adormecer. E agora é tarde demais, agora nunca vou saber. Se existir um mundo dos espíritos, o que de certo modo duvido, meu pai e Rydberg podem começar a conviver. Mesmo que só muito raramente se tenham visto em vida, julgo que iriam encontrar muitos assuntos comuns de que falar.
12
Ela tinha feito um horário minucioso e pormenorizado dos últimos momentos da vida de Gösta Runfeldt. Percebera que nesse momento estaria demasiado fraco para poder oferecer resistência. Tinha-o quebrado ao mesmo tempo que ele próprio se tinha quebrado internamente. O verme escondido na flor anuncia a morte da flor, pensou, enquanto abria as portas da casa em Vollsjö. Tinha apontado no seu horário que iria chegar às quatro da tarde. Chegou três minutos antes do programado. Agora iria esperar que a noite caísse. Então iria puxá-lo para fora do forno. Por razões de segurança, tinha intenção de lhe colocar algemas, além de uma mordaça. Mas nada de tapar os olhos. Apesar de ele ir ter dificuldade em acostumar os olhos à luz após tantos dias passados em completa escuridão, começaria a ver novamente após umas horas. Nessa altura ela quereria na verdade que ele a visse assim como às fotografias que lhe ia mostrar. As imagens que lhe fariam entender o que estava acontecendo. E por quê.
Havia alguns pormenores que ela não conseguia ver totalmente e que podiam afetar seus planos. Entre outros havia o risco de ele estar tão fraco que não se aguentasse nas pernas. Por isso, tinha levado um carrinho de bagagem de fácil manuseamento, da Estação Central em Malmö. Ninguém reparara quando ela o pôs no carro. Ainda não tinha decidido se o iria devolver. Mas com ele conseguiria empurrá-lo para o carro, caso viesse a ser necessário.
O que restava no horário era muito simples. Um pouco antes das nove levá-lo-ia para a floresta, atá-lo-ia à árvore que já tinha escolhído. E mostrar-lhe-ia as fotografias.
Depois estrangulá-lo-ia e deixava-o onde estava. O mais tardar à meia-noite estaria de volta a casa na sua cama. O despertador tocaria às 5h15. Às 7h15 começava seu trabalho.
Ela adorava o horário. Estava completo, nada podia correr mal. Sentou-se na cadeira e observou o forno mudo entronizado, como um altar de sacrifício no meio da sala. A minha mãe teria entendido, pensou. O que ninguém faz, nunca fica feito. O mal combate-se com o mal. Onde não existe justiça, é necessário criá-la.
Tirou o horário do bolso e olhou para o relógio. Dentro de três horas e quinze minutos, Gösta Runfeldt iria morrer.
Lars Olsson não se sentia muito bem na noite de 11 de outubro, Até ao último momento hesitou se iria ao treino ou desistiria. Não era só por se sentir cansado. O Canal 2 transmitia precisamente nessa noite um filme que queria ver. Mas optou por dar a sua volta de treino depois do filme, apesar de se fazer tarde, Lars Olsson morava numa casa nas proximidades de Svarte. Nascera na quinta e continuava a morar com os pais apesar de ter mais de trinta anos. Ele era um dos donos de uma escavadora e também era quem melhor sabia utilizar a máquina, Precisamente esta semana, estava a escavar uma valeta para uma instalação de drenagem numa quinta em Skârby, Mas Lars Olsson também era um praticante de orientação apaixonado. Vivia para correr nas florestas suecas com mapa e bússola. Corria por uma equipa de Malmö que agora se estava a preparar para uma grande competição nacional de orientação noturna. Frequentemente tinha perguntado a si mesmo por que dedicava tanto tempo a orientação. Qual era a finalidade das voltas com mapa e bússola a procurar chapas escondidas? Frequentemente ficava cheio de frio e encharcado, o corpo dorido e nunca achava que tinha feito o suficiente, Valia realmente a pena dedicar a vida a isso? Por outro lado, sabia que era bom em orientação. Tinha uma boa percepção do terreno e era rápido e persistente. Nalgumas ocasiões tinha sido ele quem conduzira a sua equipa à vitória, através de uma forte intervenção no último trajeto. Situava-se logo abaixo aos da seleção nacional, E ainda não tinha perdido a esperança de alguma vez dar o passo fundamental e poder representar o país em competições internacionais.
Viu o filme na televisão, mas era pior do que pensava. Passava das onze quando saiu para dar a sua volta. Correu numa área florestal imediatamente ao norte da quinta, na fronteira das grandes propriedades de Marsvinsholm. A partir da porta exterior até regressar, podia optar entre correr oito ou cinco quilômetros, dependendo da volta que escolhesse. como se sentia cansado e ia sair com a escavadora no dia seguinte pela manhã optou pela volta mais curta. Colocou a lanterna na cabeça e foi embora. Tinha chovido durante o dia, chuvas fortes, seguidas de sol. Agora à noite estavam 6 graus positivos e cheirava a terra úmida. Correu pelo trilho dentro da floresta. Os troncos das árvores brilhavam com o reflexo da luz da lanterna. No meio da floresta havia uma pequena elevação. Se passasse para o outro lado da elevação, funcionava como um atalho. Decidiu-se a ir por aí. Saiu do trilho e correu em direção à elevação.
De repente parou bruscamente. À luz da lanterna descobriu uma pessoa. Primeiro não percebeu o que viu, mas depois verificou que era um homem seminu atado a uma árvore, dez metros à sua frente. Lars olsson ficou completamente imóvel. Respirou ofegantemente e sentiu muito medo. Olhou rapidamente à sua volta. A lanterna lançava luz sobre árvores e arbustos, mas estava sozinho naquele sítio. Cautelosamente deu uns passos em frente. O homem estava dobrado sobre as cordas que o prendiam à volta da árvore. O tronco estava nu.
Lars Olsson não teve que se aproximar mais. Viu que o homem atado à árvore estava morto. Sem, na realidade, saber por que olhou o relógio. Marcava dezenove minutos depois das onze.
Depois virou-se e correu para casa. Nunca tinha corrido tão depressa em toda a sua vida. Sem sequer se dar tempo a tirar a lanterna da cabeça telefonou à Polícia de Ystad, do telefone na parede da cozinha.
O policial que recebeu a chamada escutou com atenção.
Depois, sem refletir, marcou o nome de Kurt Wallander no computador e ligou para a casa dele.
Faltavam dez minutos para a meia-noite.
SCANIA
12-17 de outubro de 1994
13
Wallander ainda não tinha adormecido, estava deitado a pensar que o seu pai e Rydberg agora descansavam no mesmo cemitério, quando o telefone tocou. Agarrou imediatamente no fone ao lado da cama, com receio que Linda acordasse com o toque. Com um sentimento de impotência crescente escutou o que o policial de serviço tinha para lhe contar. As informações eram ainda escassas. A primeira patrulha policial ainda não tinha chegado ao local na floresta ao sul de Marsvinsholm. Havia evidentemente a possibilidade de o orientador noturno se ter enganado. Mas era pouco provável. O policial tomou-o por uma pessoa invulgarmente lúcida, apesar de estar naturalmente agitado. Wallander prometeu ir imediatamente. Tentou vestir-se tão silenciosamente quanto possível. Mas Linda apareceu em camisa de noite, quando estava à mesa da cozinha a escrever-lhe uma mensagem.
– O que aconteceu? – perguntou.
– Encontraram um homem morto na floresta – respondeu. – Daí terem-me telefonado.
Ela abanou a cabeça.
– Nunca ficas com medo? Olhou admirado para ela.
– Por que devia ter medo? – Por todos os que morrem.
Ele intuiu mais do que entendeu o que ela tentava dizer.
– Não posso – respondeu. – É o meu trabalho. Alguém tem que o fazer.
Prometeu estar de volta a tempo de a levar ao aeroporto na manhã seguinte. Ainda não era uma hora quando se sentou ao volante do automóvel. E foi só quando estava a caminho de Marsvinsholm que lhe Ocorreu que quem podia estar na floresta era Gösta Runfeldt. já deixara a cidade para trás quando o celular tocou, era da central .
A patrulha enviada tinha confirmado a informação, havia na realidade um homem morto na floresta.
– Está identificado? – perguntou Wallander.
– Parece que não tinha nenhum documento com ele. Parece que nem sequer tinha roupa. Tem mau aspecto.
Wallander sentiu um aperto no estômago, mas não disse mais nada.
– Vão ter contigo ao cruzamento, na primeira bifurcação para Marsvinsholm.
Wallander desligou e carregou no acelerador. já temia o espectáculo que o esperava.
Viu o carro da polícia à distância e travou. Um policial estava ao lado do carro. Reconheceu Peters. Wallander baixou a janela e olhou irterrogativamente para ele.
– Não tem nada bom aspecto – avisou Peters.
Wallander suspeitava o que isso significava. Peters era um policial com grande experiência que não iria utilizar expressões daquelas se não houvesse motivo para tal.
– Está identificado? – Por pouco nem roupa tinha no corpo. Vais ver com os teus próprios olhos.
– E o homem que o encontrou? – Está lá.
Peters entrou no outro carro e Wallander seguiu-o. Entraram numa área florestal ao sul do palácio. O caminho interrompia-se onde havia restos de corte de árvores.
– O último troço, temos que o fazer a pé – disse Peters. Wallander tirou as botas da bagageira. Peters e outro jovem policial que Wallander praticamente não conhecia, mas sabia que se chamava Bergruan, tinham lanternas fortes. Seguiram um trilho que conduzia a uma elevação dentro da floresta. Cheirava fortemente a outono e Wallander pensou que devia ter vestido uma camisola mais grossa. Se fosse obrigado a ficar a noite toda na floresta, teria frio.
– Em breve estaremos lá – disse Peters.
Wallander achou que disse aquilo para o avisar sobre o que o esperava.
Ainda assim, a visão surgiu repentinamente. As duas lanternas iluminavam com precisão macabra um homem seminu que estava preso a uma árvore. Os raios de luz tremeluziam. Wallander ficou imóvel.
Algures nas redondezas ouviu-se uma ave noturna. Aproximou-se com cautela do local enquanto Peters fazia incidir a luz da lanterna de maneira a ele ver onde punha os pés. A cabeça do homem estava inclinada sobre o tórax. Wallander ajoelhou-se para lhe poder ver a cara. Parecia ja saber. Quando viu a cara teve a confirmação. Apesar de as fotografias que vira no apartamento de Gösta Runfeldt terem uns anos, não havia dúvidas: Gösta Runfeldt nunca chegou a ir a Nairobi.
Pelo menos sabiam o que tinha acontecido. Estava morto, atado a uma árvore.
Wallander ergueu-se e deu um passo para trás. Na sua cabeça também não havia a menor dúvida a respeito de outra coisa. Que existia uma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. A linguagem do assassino era a mesma, mesmo tendo recorrido a um vocabulário diferente desta vez. Uma sepultura com canas e uma árvore. Simplesmente não podia ser uma coincidência.
Virou-se para Peters.
– Precisamos da patrulha completa – anunciou Wallander.
Peters assentiu. Wallander notou que se tinha esquecido do telefone no carro. Pediu a Berginan para o ir buscar e trazer a lanterna que tinha no porta-luvas.
– Onde está a pessoa que o encontrou? – perguntou a seguir. Peters desviou a lanterna para o lado. Um homem com fato de treino estava sentado numa pedra com a cabeça apoiada nas mãos.
– Chama-se Lars Olsson – disse Peters. – Mora numa quinta aqui perto.
– O que fazia ele na floresta no meio da noite? – Pelos vistos, pratica orientação.
Wallander acenou. Peters deu-lhe a sua lanterna. Wallander aproximou-se do homem que, de repente, levantou a cabeça e olhou para ele quando a luz atingiu a sua cara. Estava muito pálido. Wallander apresentou-se e sentou-se numa outra pedra ao lado dele. Sentiu que estava fria. Involuntariamente arrepiou-se.
– Foi você quem o encontrou – afirmou.
Lars Olsson contou-lhe sobre o mau filme na televisão e sobre os seus treinos noturnos. Como se decidira a ir por um atalho, como o homem de repente fora apanhado pelo feixe de luz da lanterna na sua testa.
– Deu uma indicação da hora muito exata – observou Wallander que se lembrou da chamada telefônica do policial de serviço.
– Olhei para o relógio – respondeu Lars Olsson. – É um hábito meu. Ou mau hábito. Quando acontece algo importante, olho para o relógio. Se tivesse sido possível, tinha olhado para o relógio quando, nasci.
Wallander percebeu.
– Se bem o entendi, corre quase todas as noites aqui – continuou.
– Quando treina à noite.
– Corri aqui ontem à noite, mas mais cedo. Corri duas voltas, Primeiro a comprida, depois a curta. Nessa optei pelo atalho.
– Então que horas eram nessa altura? – Entre nove e meia e dez.
– E então não descobriu nada? – Não.
– Podia ter estado aqui junto a árvore sem o ter visto? Lars Olsson refletiu. Depois abanou a cabeça.
– Passo sempre junto àquela árvore. Tê-lo-ia visto, Então, pelo menos sabemos isso, pensou Wallander. Durante quase três semanas Gösta Runfeldt esteve vivo noutro lugar. O assassínio foi efectuado nalgum momento durante as últimas 24 horas.
Wallander não tinha mais perguntas. Ergueu-se. As lanternas iluminavam o caminho pela floresta.
– Deixe o seu endereço e número de telefone – disse. – Entraremos em contato com você novamente.
– Quem consegue fazer uma coisa destas? – perguntou Lars Olsson.
– Também me faço a mesma pergunta – respondeu Wallander. Depois deixou Lars Olsson. Devolveu a lanterna a Peters quando recebeu a sua e o telefone. Enquanto Bergman anotava o nome e telefone de Lars Olsson, Peters estava a falar para a central. Wallander respirou fundo e aproximou-se do homem pendurado nas cordas. Surpreendeu-o por instantes que não pensasse no pai quando agora se encontrava novamente nas proximidades da morte, mas no fundo sabia por quê. Vivera estes momentos muitas vezes antes. Pessoas mortas não estavam apenas mortas, não lhes restava nada de humano. Era como aproximar-se de um objeto morto, assim que a relutância inicial passava. Wallander apalpou cuidadosamente o pescoço de Gösta Runfeldt. Todo o calor corporal tinha desaparecido, mas também não esperava que houvesse algum. Determinar a hora de uma morte no exterior, com temperaturas constantemente variáveis, era um processo complicado. Wallander observou o tronco despido do homem. A cor da pele também nada lhe dizia sobre quanto tempo tinha estado pendurado. Também não havia sinais de outros danos. Porém, quando Wallander iluminou e olhou para o pescoço, viu as manchas azuladas que podiam significar que Gösta Runfeldt tinha sido enforcado. Wallander observou depois as cordas que estavam enroladas à volta do corpo das coxas até ao cimo do tronco. O nó era simples e as cordas também não apertavam por aí além. Isso surpreendeu-o. Deu um passo para tras e iluminou o corpo todo. Depois deu uma volta à árvore. Durante todo esse tempo observou onde punha os pés. Só deu uma volta. Pressupôs que Peters tivesse dito a Berginan para não pisar o chão desnecessariamente. Lars Olsson já tinha desaparecido. Peters continuava ao telefone. Wallander sentiu a falta de uma camisola, devia ter sempre uma no carro, tal como tinha botas no porta-bagagens. A noite iria ser longa.
Tentou imaginar o que tinha acontecido. Os nós soltos intrigavam-no. Pensou em Holger Eriksson. Podia ser que o assassínio de Gösta Runfeldt lhes desse a solução. A investigação obrigá-los-ia daí em diante a estabelecer uma observação paralela. Iria seguir sempre duas direç ões. Mas Wallander também tinha consciência de que poderia ser exatamente ao contrário, que a confusão podia aumentar. Um centro cada vez mais difícil de determinar, a paisagem da investigação criminal cada vez mais complicada de dominar e interpretar.
Por instantes Wallander desligou a lanterna e pensou na escuridão. Peters ainda estava a conversar ao telefone e Berginan parecia uma sombra imóvel algures por perto, enquanto Gösta estava morto entre as cordas pouco apertadas.
Seria um princípio, um meio ou um fim?, pensou Wallander. Ou estamos tão mal que lidamos com mais um assassino em série? Uma cadeia de causas ainda mais difícil de desenvencilhar do que a do verão passado? Não tinha qualquer resposta, pura e simplesmente não sabia. Era cedo de mais, tudo era demasiado cedo.
Ouviram-se sons de automóveis à distância. Peters tinha-se afastado para receber os diferentes carros-patrulha que se aproximavam. PenSou por momentos em Linda e desejou que ela estivesse a dormir. Acontecesse o que acontecesse, iria levá-la ao aeroporto de manhã.
Uma tristeza violenta pela morte do pai surgiu-lhe repentinamente. Além de sentir saudades de Balba, estava cansado. Na verdade, sentia-se exausto. Toda a energia que sentira quando regressara de Roma tinha-se desvanecido. já nada restava.
Teve que reunir todas as suas forças para afastar os tristes pensamentos. Martinsson e Hansson vinham a pé pela floresta dentro, logo a seguir Ann-Britt Höglund e Nyberg. Atrás deles os homens da ambulância e os técnicos criminais. A seguir, Svedberg e, finalmente, também um médico. Davam a impressão de uma coluna mal organizada que andava perdida. Começou por juntar os seus colaboradores num círculo à sua volta. Um holofote ligado a um gerador portátil já dirigia a sua luz fantasmagórica contra o homem pendurado junto à árvore. Wallander pensou de repente na experiência macabra que tinham tido junto à valeta nas propriedades de Holger Eriksson. Agora estava a ser repetida, só que o cenário era outro. Mas apesar disso, semelhante. As cenografias do assassino estavam ligadas.
– É Gösta Runfeldt – disse Wallander. – Não há dúvidas a esse respeito. Temos que acordar Vanja Andersson e trazê-la cá. Paciência, porque temos de tratar de confirmar formalmente a identidade o mais depressa póssível. Mas podemos esperar até o ter tirado da árvore. Podemos poupá-la a isso.
Depois fez um relato resumido de como Lars Olsson tinha descoberto Gösta Runfeldt.
– Ele desaparecera há quase três semanas – continuou. – Mas se não me enganar completamente, e se Lars Olsson estiver certo, está morto há menos de vinte e quatro horas. Pelo menos não está atado à árvore há mais do que isso. A questão é onde esteve, entretanto.
Depois respondeu à pergunta que até agora ninguém tinha colocado, a única que era a única evidente.
– Tenho dificuldades em acreditar numa coincidência – disse.
– Tem que ser o mesmo criminoso que procuramos no caso Holger Eriksson. Agora temos de procurar o que estes dois homens tinham em comum. Na realidade, são três investigações que devem decorrer em simultâneo. Holger Eriksson, Gösta Runfeldt e os dois juntos.
– O que acontece se não encontrarmos alguma relação? – perguntou Svedberg.
– Vamos encontrar – respondeu Wallander determinado. <Mais cedo ou mais tarde. Ambos os assassínios dão a impressão de terem sido planeados de uma maneira que exclui uma escolha da vítima ao acaso. Não é um louco qualquer que atuou. Estes dois homens foram mortos com determinadas finalidades, por razões bem determinadas.
– Gösta Runfeldt não deve ter sido homossexual – disse Martisson. – É viúvo com dois filhos.
– Pode ter sido bissexual – objetou Wallander. – É demasiado cedo para esse tipo de perguntas. Temos outras tarefas que são mais urgentes.
O círculo desfez-se. Não precisavam de muitas palavras para organizar o trabalho. Wallander colocou-se ao lado de Nyberg que estava à espera que o médico acabasse.
– Então aconteceu mais uma vez – disse com voz cansada.
– Sim – respondeu Wallander. – E temos que aguentar por mais um POUCO.
– Exatamente ontem decidi tirar umas duas semanas de férias – disse Nyberg. – Depois de se descobrir quem matou Holger Eriksson pensei ir para as Canárias. Talvez seja pouco imaginativo, mas é mais quente.
Era raro Nyberg embarcar em conversas pessoais. Wallander compreendeu que exprimia a decepção por essa viagem provavelmente não poder ser efectuada dentro de um prazo razoável. Viu que Nyberg estava cansado e gasto, pois a sua carga de trabalho era muitas vezes absurda. Wallander decidiu levantar essa questão a Lisa Holgersson o mais breve possível. Não tinham o direito de continuar a desafiar a saúde de Nyberg.
No mesmo instante em que teve esta reflexão descobriu que ela chegara ao local do crime. Estava a falar com Hansson e Ann-Britt Höglund.
Na verdade, calhou muita coisa ao mesmo tempo logo do princípio a Lisa Holgersson, pensou Wallander. Com este homicídio os media vão dar conosco em doidos. Bjork nunca aguentava esta tensão, agora vamos ver se ela resiste.
Wallander sabia que Lisa Holgersson era casada com um homem que trabalhava para uma empresa estrangeira de importações na área de informática. Tinham dois filhos adultos. Depois da mudança para Ystad adquiriram uma moradia em Hedeskoga, ao norte da cidade. Mas ainda não tinha lá ido e também não conhecia o marido. Neste momento esperava que fosse um homem que lhe desse todo o apoio. Bem iria precisar.
O médico ergueu-se. Wallander já o conhecia de outra ocasião, mas de momento não se lembrava do nome dele.
– Parece que foi estrangulado – disse.
– Não foi enforcado? O médico estendeu as mãos.
– Estrangulado por duas mãos – explicou. – Produz danos completamente diferentes dos de uma corda. Os polegares notam-se perfeitamente.
Um homem forte, pensou Wallander de repente. Uma pessoa bem treinada que também não hesita em matar com as suas próprias mãos, – Há quanto tempo? – perguntou.
– Impossível responder. Nas últimas 24 horas. É pouco provável que tenha sido há mais tempo. Tens que esperar pelo veredicto do médico-legista.
– Podemos descê-lo? – perguntou Wallander.
– Acabei – respondeu o médico.
– E eu posso começar – murmurou Nyberg. Ann-Britt Höglund juntou-se-lhes.
– Vanja Andersson chegou – disse. – Espera dentro de um automóvel lá em baixo.
Como reagiu? – perguntou Wallander.
É evidente que é uma maneira terrível de se ser acordado. Mas fiquei com a impressão de que ela não ficou surpreendida, já devia recear que ele estivesse morto.
– Também eu – disse Wallander. – Suponho que tu também o receavas.
Ela acenou e não disse nada.
Nyberg tinha tirado as cordas. O corpo de Gösta Runfeldt estava deitado numa maca.
– Vai buscá-la – disse Wallander. – Logo a seguir pode voltar para casa.
Vanja Andersson estava muito pálida. Wallander reparou que estava vestida de preto. Teria tido a roupa à mão? Olhou para a cara do morto, inspirou intensamente o ar e acenou afirmativamente.
– Consegue identificá-lo como sendo Gösta Runfeldt? – perguntou Wallander. – Por dentro, repreendia-se pelo modo inapropriado com que se expressava.
– Ficou tão magro – murmurou ela. Wallander reagiu imediatamente.
– Como assim? – perguntou.
– Magro?
– Pois, o rosto dele está completamente seco. Não tinha este aspecto há três semanas.
Wallander sabia que a morte podia alterar drasticamente a cara de uma pessoa. Mas tinha a impressão de que Vanja Andersson estava a falar doutra coisa.
– Quer dizer que perdeu peso desde que o viu a última vez? – Sim, está muito magro.
Wallander reconheceu que o que ela dissera era importante, só que ainda não conseguia determinar como o interpretar.
– Não necessita de ficar mais tempo – disse. – Vamos levá-la a casa.
Olhou para ele com um expressão desesperada e perdida.
– O que vou fazer com a loja? – perguntou. – Com tantas flores? – Amanhã com certeza não precisa de abrir – disse Wallander. Comece por aí e não pense para lá disso.
Ela assentiu em silêncio. Ann-Britt Höglund acompanhou-a ao carro da Polícia que a ia levar a casa. Wallander ficou a pensar no que ela tinha dito. Gösta Runfeldt estivera desaparecido quase três semanas. Quando o encontram atado a uma árvore, e talvez estrangulado, está mais magro. Wallander sabia o que isso significava: Cativeiro.
Ficou completamente imóvel e seguiu atentamente o seu raciocínio interior. O cativeiro também podia ser associado a uma situação de guerra. Os soldados mantinham outros cativos.
Foi interrompido por Lisa Holgersson a tropeçar numa pedra e quase caindo ao caminhar na sua direção. Pensou que era melhor prepará-la desde já para o que os esperava.
– Pareces ter frio. – disse.
– Esqueci-me de trazer uma camisola mais grossa – respondeu Wallander. – Há certas coisas que nunca aprendemos na vida.
Ela apontou para a maca onde estavam os restos mortais de Gösta Rundfeldt. Era levada para o carro funerário que estava à espera algures onde tinham abatido árvores e o caminho acabava.
– O que achas disto? – O mesmo criminoso que tirou a vida a Holger Eriksson. Seria absurdo supor outra coisa.
– Então? Parece que foi estrangulado.
– Não tenho por hábito tirar conclusões precipitadas – disse Wallander. – Mas sou capaz de imaginar como aconteceu. Estava vivo quando o ataram à árvore. Talvez em estado inconsciente. Mas foi estrangulado aqui e depois abandonaram-no. Para mais, não ofereceu nenhuma resistência.
– Como podes saber? – A corda estava pouco apertada. Se tivesse querido, tinha conseguido libertar-se.
– A corda solta não pode ser sinal disso mesmo? – retorquiu. Que tenha feito esforço e tentado oferecer resistência? Boa pergunta – pensou Wallander. Lisa Holgersson é, sem dúvida, policial.
– Pode ser – disse. – Mas não acredito, por causa do que foi dito por Vanja Andersson. Que tinha emagrecido muito.
– Não entendo a relação.
– Penso somente que um emagrecimento rápido também representa um aumento de perda de força.
Ela entendeu.
– Fica pendurado na corda – continuou Wallander. – O criminoso não tem qualquer necessidade de esconder o seu ato, ou o cadáver. O que faz lembrar o que aconteceu a Holger Eriksson.
– Por que aqui? – perguntou. – Por que atar uma pessoa a uma árvore? Por que esta brutalidade?
– Quando entendermos, talvez também consigamos entender por que aconteceu – respondeu Wallander.
– Tens alguma ideia? – Tenho muitas – disse Wallander. – Penso que o melhor que podemos fazer neste momento é deixar Nyberg e os seus colaboradores trabalhar em paz. É mais importante uma reunião e uma revisão em Ystad do que andar aqui na floresta a cansarmo-nos. De qualquer maneira, neste momento, não há nada mais para ver aqui.
Ela não tinha objeções. Às duas horas deixaram Nyberg e os seus técnicos sozinhos na floresta. Nessa altura tinha começado a chuviscar e levantara-se vento. Wallander foi o último a deixar o lugar.
O que fazer agora? perguntou a si mesmo, como continuar? Não teinos O motivo, não temos suspeitos. Tudo que temos é um diário que pertenceu a um homem que se chama Harald Berggren. Foram assassinados um observador de aves e um apaixonado por flores. É crueldade premeditada. Quase demonstrativa.
Tentou lembrar-se do que Ann-Britt Höglund tinha dito. Era importante. Algo sobre a expressão masculina. O que a seguir o levou a imaginar cada vez mais um criminoso com um passado militar. Harald Berggren tinha certamente sido mercenário, fora mais que um militar. uma pessoa que não defendia um país ou uma causa, Era um homem que tinha morto pessoas por um salário mensal pago em dinheiro, Pelo menos temos um ponto de partida, pensou. Temos de nos agarrar a este até ele falhar.
Despediu-se de Nyberg.
– Queres que a gente procure algo de especial? – perguntou.
– Não, à exceção de tudo o que eventualmente se assemelhe ao que aconteceu a Holger Eriksson.
– Acho que tudo é semelhante – respondeu Nyberg. – Tirando eventualmente as canas de bambu.
– Quero cães aqui amanhã cedo – continuou Wallander.
– Provavelmente ainda estarei aqui amanhã – disse Nyberg com desalento.
– Vou discutir a tua situação de trabalho com Lisa – disse Wallander, e esperava que isso, pelo menos, pudesse servir como um estímulo simbólico.
– Não deve valer a pena – respondeu Nyberg.
– Em todo o caso, vale a pena não deixar de o fazer – rematou Wallander.
Faltava um quarto para as três da manhã quando se reuniram na central. Wallander foi o último a entrar na sala de reuniões. Viu caras cansadas e desanimadas à sua volta e percebeu que, acima de tudo, tinha que dar energia renovada ao grupo de investigação. Por experiência sabia que surgiam sempre momentos no decorrer de uma investigação em que se esgotava toda a autoconfiança. A única diferença agora era que esse momento tinha chegado invulgarmente cedo.
Devíamos ter tido um outono calmo, pensou Wallander. Todos continuam exaustos depois deste verão.
Sentou-se e Hansson serviu-lhe uma xícara de café.
– Isto não vai ser fácil – começou. – O que nós todos provavelmente mais receávamos lá bem no fundo, infelizmente confirmou-se ser verdade. Gösta Runfeldt foi assassinado, provavelmente pelo mesmo criminoso que tirou a vida a Holger Eriksson. Não sabemos o que isso significa. Por exemplo, não sabemos se estaremos sujeitos a mais surpresas desagradáveis, não sabemos se isto começa a assemelhar-se a algo daquilo por que passamos no verão passado. No entanto, quero avisar para não se tirarem conclusões paralelas, a não ser que aparentemente se trata de um e mesmo homem que também agora se manifestou mais do que uma vez. Também há muita coisa que distingue estes crimes, mais do que aquilo que os une.
Fez um intervalo para permitir eventuais comentários. Ninguém tinha nada para dizer.
– Temos que continuar em larga escala – continuou. – Sem pré-requisitos mas com determinação. Temos que encontrar Harald Berggren. Temos que descobrir por que Gösta Runfeldt não foi a Nairobi e temos que saber por que fez uma encomenda de um sofisticado equipamento de escuta dias antes de desaparecer, e a seguir morrer. Temos que achar uma relação entre estes dois homens que aparentemente viveram as suas vidas totalmente separados um do outro. Uma vez que as vítimas não foram escolhidas ao acaso tem de haver alguma relação.
Continuava a não ter comentários. Wallander achou que o melhor era acabar a reunião. O que precisavam acima de tudo era de umas horas de sono. De manhã cedo encontrar-se-iam novamente.
Separaram-se depressa quando Wallander já não tinha mais para dizer.
Lá fora o vento e a chuva tinham aumentado. Quando Wallander se apressou para o local de estacionamento do carro, pensou em Nyberg, e na sua equipa.
Mas também pensou no que Vanja tinha dito.
Que Gösta Runfeldt tinha emagrecido nas três semanas que estivera ausente.
Wallander sabia que era um pormenor importante.
Tinha dificuldade em imaginar outra causa que não fosse cativeiro. A questão era apenas onde tinha estado cativo.
Por quê? E de quem?
14
Nessa noite Wallander dormiu no sofá da sala de estar enrolado num cobertor, porque iria levantar-se em poucas horas. Ao chegar a casa, após a reunião noturna na central , tudo estava silencioso no quarto de Linda. Acordou sobressaltado, encharcado em suor, provocado por um pesadelo que conseguiu vagamente reavivar na memória.
Sonhou com o pai, estavam novamente em Roma e acontecera algo que o assustara. O que fora perdia-se na escuridão. Talvez a morte do sonho já os tivesse acompanhado na viagem para a Roma, como um presságio? Ergueu-se e ficou sentado no sofá com o cobertor à volta do corpo. Eram cinco horas e o despertador iria tocar em breve. Ficou sentado, pesado e imóvel, o cansaço era como que uma contínua dor no corpo. Teve que reunir energias para conseguir levantar-se e ir à casa de banho. Depois do banho sentiu-se um pouco melhor, preparou o café da manhã e acordou Linda a um quarto para as seis. Antes das seis e meia ja estavam a caminho do aeroporto. Ela estava meio a dormir e não disse quase nada durante a viagem. Só pareceu acordar ao sair da E65 e ao percorrerem os últimos quilómetros em direção a Sturup.
– O que aconteceu a noite passada? – perguntou. Alguém encontrou um homem morto na floresta.
– Não tens mais para contar? Era um homem que estava treinando. Quase tropeçou no morto.
– Quem era?
– O corredor ou o morto?
– O morto. Proprietário de uma loja de flores.
– Suicidou-se?
– Infelizmente não.
– O que quer dizer com isso? Infelizmente?
– Foi assassinado. O que signifíca uma monte de trabalho para nós todos.
Ficou calada por instantes. já se avistava o edifício amarelo do aeroporto.
– Não entendo como aguentas – disse.
– Eu também não – respondeu –, mas não tenho outro remédio. Tenho que aguentar. Alguém tem que aguentar.
Surpreendeu-o a pergunta seguinte.
– Achas que eu podia me tornar um bom policial?
– Pensava que tinhas planos completamente diferentes.
– E tenho. Responde à pergunta!
– Não sei, mas certamente serias capaz.
Não disseram mais nada. Wallander parou no estacionamento. Ela só tinha uma mochila, que ele tirou da bagageira. Quando ele a ia acompanhar, ela abanou a cabeça negativamente.
– Vai para a casa – disse. – Estás tão cansado que quase não te aguentas nas pernas.
– Tenho que trabalhar – respondeu. – Mas tens razão, estou cansado.
Depois seguiu-se um momento melancólico. Falaram do seu pai e avô dela, que já não pertencia aos vivos.
– É tão esquisito – observou. – Pensei nisso no carro, que se está morto por tanto tempo.
Ele murmurou algo como resposta. Depois despediram-se e ela prometeu comprar um atendedor de chamadas. Ele viu-a desaparecer através das portas de vidro e, por fim, deixou de a ver.
Ficou parado, sentado no carro, a pensar no que ela tinha dito. Seria isso mesmo que tornava a morte tão assustadora? Que se ficava morto por muito tempo? Ligou o motor e arrancou. A paisagem estava cinzenta e parecia tão desoladora como toda a investigação em curso. Wallander rememorou os acontecimentos das últimas semanas. Um homem espetado numa valeta, um outro atado a uma árvore. Poderia a morte ser mais revoltante? Também não tinha sido agradável ver o pai deitado no meio dos seus quadros, evidentemente. Pensou que precisava de ver Balba novamente. Telefonar-lhe-ia nessa mesma noite. já não aguentava, a solidão perseguia-o. já tinha durado tempo suficiente. Estava divorciado havia cinco anos, estava a caminho de se tornar um velho cão, desmazelado, a fugir dos que o rodeavam. E isso ele não queria.
Chegou à central logo a seguir das oito. A primeira coisa que fez, foi ir buscar café e telefonar a Gertrud. Inesperadamente a sua voz, parecia mais leve. A sua irmã Kristina continuava lá. Uma vez que, Wallander estava tão ocupado com a investigação em curso, tinham combinado que os dois juntos se iriam encarregar de fazer as partilhas dos parcos haveres que o pai lhes deixara. A herança era essencialmente constituída pela casa em Lõderup, e quase não havia dívidas. Gertrud perguntara se havia algo de especial que Wallander desejasse. Primeiro respondera que não, depois mudara de opinião repentinamente e procurara um quadro com um galo silvestre nos montes de telas pintadas empilhadas ao longo das paredes do ateliê. Por algum motivo, que ele próprio não conseguia compreender, não queria o quadro que o pai estava prestes a completar quando morreu. Por enquanto, guardara o quadro escolhido no seu gabinete na central. Ainda não tinha decidido onde o iria pendurar, ou se na realidade iria pendurá-lo.
Em seguida regressou ao trabalho policial.
Começou por fazer uma rápida leitura de um relatório de uma conversa que Ann-Britt Höglund tivera com a senhora que fazia a distribuição de correio na casa de Holger Eriksson. Reparou que ela redigia bem, sem frases excessivamente longas ou com pormenores irrelevantes. Pelo visto, os policiais da nova geração ao menos aprendiam a fazer melhores relatórios do que a sua geração.
Mas não havia nada que parecesse ter significado direto para a investigação. A última vez que Holger Eriksson tinha deixado sinal na caixa, de que tinha necessidade de falar com o correio, tinha sido há vários meses. Tanto quanto se lembrava tratava-se de uns simples pagamentos. Não tinha feito quaisquer observações durante os últimos tempos. Tudo dera a impressão de estar como de costume na quinta. Não tinha visto carros ou pessoas estranhas na área. Wallander arrumou o relatório. De seguida puxou pelo seu caderno de apontamentos e fez umas anotações sobre o que era importante fazer em primeiro lugar. Alguém devia ter uma conversa a sério com Anita Lagergren, da agência de viagens em Malmö. Quando fizera Gösta Runfeldt a reserva? De que se tratava esta viagem das orquídeas, na realidade? O processo era o mesmo que para Holger Eriksson. Tinham que fazer um levantamento da vida dele e necessidade de falar exaustivamente com os filhos. Além do mais, Wallander queria saber mais sobre o equipamento técnico que Gösta Runfeldt tinha comprado à Secur, em Borâs. Para que servia? Para que utilizaria um comerciante de flores coisas dessas? Estava convencido de que era um ponto decisivo para entender o que tinha acontecido. Wallander afastou o caderno e pousou hesitante a mão no fone do telefone. Eram oito e um quarto. Havia o risco de Nyberg estar a dormir. Mas paciência, ligou o número do seu telemóvel. Nyberg respondeu imediatamente. Ainda estava na floresta, longe da sua cama. Wallander perguntou como estava a correr a investigação no local do crime.
– Temos agora aqui os cães – respondeu Nyberg. – Eles identificaram o rastro da corda até o local das árvores cortadas. Mas não é nada de extraordinário, uma vez que é o único caminho para cá. Creio que podemos pressupor que Gösta Runfeldt não veio a pé até aqui. Houve também um carro envolvido, com certeza.
– Como estamos em relação a marcas de pneus? – Há bastantes. Mas o que corresponde a que, ainda não consigo responder, evidentemente.
– Mais alguma coisa? – Nem por isso. A corda é de uma fábrica na Dinamarca.
– Na Dinamarca? – julgo que possa ter sido comprada em qualquer sítio onde se vende cordas. Pelo menos parece totalmente nova, comprada para este fim.
Wallander reagiu com repulsa. Depois fez a pergunta que o tinha levado a telefonar a Nyberg.
– Conseguiste descobrir o menor sinal de ele ter tentado oferecer resistência quando foi atado à árvore? Ou que tenha tentado libertar-se? A resposta de Nyberg veio sem hesitação.
– Não – respondeu. – Não me parece. Em primeiro lugar, não descobri pistas de luta nas proximidades. O chão devia estar revolto, devia ser possível ver alguma coisa. Em segundo lugar, não se encontram marcas de fricção, nem na corda nem no tronco. Ele foi atado e ficou imóvel.
– Como interpretas isso?
– Bem, na realidade suponho que só há duas possibilidades – respondeu Nyberg. – Quando foi atado, ou jà estava morto ou pelo menos inconsciente. Ou então optou por não oferecer resistência, mas é pouco provável.
Wallander refletiu.
– Há uma terceira possibilidade – acrescentou em seguida. Que Gösta Runfeldt pura e simplesmente não tivesse força para oferecer resistência.
Nyberg concordou. Também era uma possibilidade, talvez a mais provável.
– Deixa-me perguntar mais uma coisa – continuou Wallander. Sei que não podes responder. Mas imaginamos sempre como algo se processou. Não há ninguém que elabore tantas e tão frequentes hipóteses como os policiais. Apesar de sempre e persistentemente o negarmos. Estaria presente mais do que uma pessoa? – Refleti sobre isso – disse Nyberg. – Há indicações de que deverá ter havido mais do que uma. Arrastar uma pessoa para a floresta e atá-la, não é muito fácil. Mas tenho dúvidas.
– Por quê?
– Não sei, honestamente.
– Regressemos à valeta de Lödinge. Qual foi a tua sensação lá? – A mesma. Deverá ter havido mais do que uma, mas tenho dúvidas.
– Partilho essa sensação – respondeu Wallander. – E incomoda-me.
– De qualquer maneira, julgo estarmos a lidar com uma pessoa com bastante força física – disse Nyberg – Há bastantes indícios disso. Wallander não tinha mais perguntas a fazer.
– De resto, nada? – Um par de velhas latas de cerveja e uma unha postiça. É tudo.
– Uma unha postiça? – As mulheres costumam usar essas coisas. Mas pode lá estar há muito tempo.
– Tenta dormir umas horas – aconselhou Wallander.
– Onde arranjaria tempo para isso? – perguntou Nyberg. – Wallander notou que de repente parecia irritado. Apressou-se a acabar a conversa. O telefone tocou logo a seguir. Era Martinsson.
– Posso ir ter contigo? – perguntou. – A que horas é a reunião? – Às nove. Temos tempo.
Wallander desligou. Percebeu que MartInsson descobrira alguma coisa , e sentiu a excitação aumentar. O que mais precisavam neste momento era de um grande empurrão na investigação.
Martinsson entrou e sentou-se na cadeira para visitas de Wallander. Foi diretamente ao assunto.
– Pensei na história dos mercenários – disse. – E no diário de Harald Berggren sobre o Congo. Esta manhã ao acordar lembrei-me que, de fato, conheço uma pessoa que esteve no Congo ao mesmo tempo que Harald Berggren.
– Como mercenário? – perguntou Wallander surpreendido.
– Não como mercenário, mas como Participante no batalhão sueco das Nações Unidas. Que iam desarmar as forças belgas na província do Catanga.
Wallander abanou a cabeça.
– Tinha doze, treze anos quando aquilo aconteceu – afirmou. Lembro-me muito pouco do caso. Praticamente nada, além da morte de Dag Hammarskjõld, vítima de um acidente de avião.
– Praticamente não era nascido – disse Martinsson. – Mas lembro-me de algumas coisas, da escola.
– Disseste que conhecias uma pessoa? – Há uns anos quando participava em reuniões do partido liberal – continuou Martinsson. – A seguir havia frequentemente uma espécie de convívio com café. Fiquei mal do estômago pela quantidade de café que bebia nesses tempos.
Wallander tamborilava impacientemente com os dedos na mesa.
– Numa dessas reuniões calhou ficar sentado ao lado de um homem que tinha cerca de sessenta anos. Não sei como entramos no assunto, mas contou-me então que fora capitão e adjunto do general Horn que era o responsável pela força sueca das Nações Unidas no Congo. E também me lembro de ele contar que houvera mercenários lá.
Wallander ouvia com redobrado interesse.
Assim que acordei esta manhã, fiz umas chamadas. E, com efeito, finalmente obtive uma resposta positiva. Um dos meus camaradas de partido sabia quem era aquele capitão. Chama-se Olof Hanzell, está reformado e mora em Nybrostrand.
– Ótimo – disse Wallander. – Vamos visitá-lo o mais breve possível.
– Já lhe telefonei – adiantou Martinsson. – Disse que estava disponível para falar com a Polícia, caso achássemos que nos podia ajudar. Parecia lúcido e sensato e afirmou ter uma excelente memória.
Martinsson pôs um papel com o número de telefone na secretária de Wallander.
– Temos que tentar tudo – disse Wallander. – E a reunião que vamos ter agora de manhã vai ser breve.
Martinsson ergueu-se para ir embora. Ficou parado à porta.
– Já viste os jornais? – perguntou.
– Quando teria tempo para isso? – Bjork teria ficado possesso. O povo de USdinge e de outras povoações pronunciou-se. Depois do acontecido com Holger Eriksson começaram a falar da necessidade de instaurar uma milícia popular.
Sempre o fizeram – respondeu Wallander com repulsa. – Não vale a pena dar irriportância a isso.
Não tenho tanta certeza – ripostou Martinsson. – O que está escrito nos jornais de hoje mostra uma nítida diferença.
– O quê? – Já não se expressam anonimamente, surgem com nomes e fotografÍas. Nunca aconteceu anteriormente. Começou a ser encarado como normal pensar em termos de milícia popular.
Wallander sentiu que Martinsson tinha razão. Contudo, tinha dificuldade em acreditar que significasse mais do que a usual reação de preocupação depois de um violento crime. Wallander entendia muito bem este tipo de reação.
– Amanhã vai aparecer mais – disse apenas. – Quando for do conhecimento geral o que aconteceu com Gösta Runfeldt. Talvez haja motivo para preparar Lisa Holgersson para o que está para acontecer. – Que impressão tens? – perguntou Martinsson.
De Lisa Holgersson? Parece-me extraordinária. – Martinsson tornou a entrar no gabinete. Wallander viu bem o seu cansaço. Pensou que Martinsson tinha envelhecido rapidamente nestes anos de polícia.
– Pensei que o que aconteceu no verão passado fosse uma excepÇão – comentou. – Agora entendo que não foi.
As semelhanças são poucas – disse Wallander. – Não podemos traçar paralelos onde não existem.
– Não estou a pensar nisso. É toda esta violência. Como se agora fosse necessário torturar as pessoas, escolhidas como vítimas, antes de as matar.
– Sei – anuiu Wallander. – Mas como alterar esta tendência, não sou homem para responder.
Martinsson deixou o gabinete. Wallander pensou no que ouvira. Optou por ele próprio ir falar nesse mesmo dia com o capitão reformado Olof Hanzell.
Conforme Wallander já tinha anunciado, a reunião foi breve. Apesar de ninguém ter dormido por aí além durante a noite, todos pareciam concentrados e enérgicos. Sabiam que se encontravam perante uma investigação complicada. Per Âkesson também marcava presença e ouvira o resumo de Wallander. Em seguida fizera umas poucas perguntas.
Distribuíram diversas tarefas e discutiram as prioridades. A questão de pedir reforço suplementar ficou pendente, por enquanto. Lisa Holgersson tinha libertado de outras tarefas um certo número de policiais para agora participarem na dupla investigação. Quando a reunião, após mais ou menos uma hora, se aproximava do fim, já todos tinham demasiadas tarefas para executar.
– Agora só há mais uma coisa – disse Wallander por fim. Temos que contar com muito espaço nos media a respeito destes homicídios. O que vimos até agora foi apenas o começo. Também ouvi dizer que as pessoas das povoações começaram a falar em organizar patrulhas noturnas e milícias populares. Temos que esperar para ver se irá ser como julgo. Por enquanto, é mais simples se Lisa e eu mantivermos o contato com a imprensa. Além disso, ficaria grato se Ann-Britt puder assistir aos nossos comunicados de imprensa.
A reunião acabou dez minutos depois das dez. Wallander conversou uns instantes com Lisa Holgersson. Decidiram fazer um comunicado à imprensa, às seis e meia. Em seguida Wallander saiu para o corredor à procura de Per Ákesson. Mas este já tinha desaparecido. Wallander regressou ao gabinete e ligou para o número que constava no papel de Martinsson. Ao mesmo tempo lembrou-se que ainda não tinha deixado as anotações de Svedberg na sua secretária. Nesse instante responderam. Era o próprio Olof Hanzell, tinha uma voz simpática. Wallander apresentou-se e perguntou se podia fazer-lhe uma visita ainda nessa mesma manhã. O capitão Hanzell desejou-lhe as boas-vindas e explicou como ir ter com ele. Ao deixar a central , verificou que o tempo tinha levantado. Fazia vento, mas o sol brilhava entre as nuvens que dispersavam. Lembrou-se de que devia, no entanto, por uma camisola no carro para futuros dias frios. Apesar de ter pressa de chegar a Nybrostrand, parou junto a uma empresa imobiliária, no centro da cidade, e ficou a olhar a montra. Estudava as diferentes propriedades para venda. pelo menos uma das casas podia ter interesse para ele. Se tivesse mais tempo, teria entrado para tirar fotocópias das informações. Decorou o número de venda e regressou ao carro. Refletiu sobre se Linda teria apanhado algum avião para Estocolmo ou se ainda estava em Sturup à espera.
Depois seguiu para leste em direção a Nybrostrand. Passou o desvio à esquerda que dava acesso ao campo de golfe, passado uns instantes virou à direita e começou à procura de Skrakvãgen, onde morava Olof Hanzell. Todos os caminhos na área tinham nomes de aves. Interrogou-se se seria uma mera coincidência, ou se tinha algum significado. Procurava alguém que tinha morto um observador de aves. Com um bocado de sorte morava ali alguém que o poderia ajudar a encontrar o criminoso que procurava.
Depois de se ter enganado várias vezes, chegou ao endereço certo. Estacionou o automóvel e entrou pelo portão de uma moradia que não devia ter mais que dez anos. Apesar disso, tinha um aspecto de algum modo decadente. Wallander pensou que era um tipo de casa onde ele próprio não se sentiria bem. Um homem vestido de roupa de treino abriu a porta. Tinha cabelo curto, grisalho, um bigode fino e parecia estar em boa forma física. Sorriu e estendeu a mão para o cumprimentar. Wallander apresentou-se.
– Minha mulher morreu há uns anos – disse Olof Hanzell. Desde então vivo sozinho. Talvez não esteja muito limpa. Mas entre! A primeira coisa em que Wallander reparou foi num grande tambor africano à entrada. Olof Hanzell seguiu o olhar dele.
– O ano em que estive no Congo foi a viagem da minha vida – explicou. – Nunca mais viajei. Os filhos eram pequenos, a minha mulher não queria e depois era tarde demais.
Mandou Wallander entrar na sala onde havia xícaras de café numa mesa. Também aqui se encontravam memórias africanas nas paredes.
Wallander sentou-se no sofá e aceitou o café. Na realidade, estava com fome e sentiu necessidade de comer alguma coisa . Olof Hanzell tinha servido um prato com biscoitos.
– Sou eu quem os faz – e apontou para os biscoitos. – Pode considerar-se uma atividade adequada para um velho militar.
Wallander pensou que não tinha tempo para falar de outras coisas a não ser do assunto essencial. Tirou do bolso a fotografia dos três homens e pô-la em cima da mesa.
– Queria começar por perguntar se conhece algum destes três homens. Como fio condutor posso dizer que a fotografia foi tirada no Congo durante o período em que o batalhão sueco das Nações Unidas esteve lá.
Olof Hanzell pegou a fotografia. Sem olhar para ela, levantou-se e foi buscar óculos de perto. Wallander lembrou-se da consulta que tinha que fazer a um oftalmologista. Hanzell levou a fotografia até a janela e observou-a longamente. Wallander ouvia o silêncio que enchia a casa. Aguardou até Hanzell regressar da janela. Sem dizer nada, colocou a fotografia na mesa e saiu da sala. Wallander comeu mais um biscoito. já se decidira ir ao encontro de Hanzell quando este apareceu com um álbum de fotografias na mão. Foi novamente para a janela e começou a folhear. Wallander continuou à espera. Finalmente Hanzell achou o que procurava. Foi até a mesa e estendeu o álbum aberto a Wallander.
– Olhe a fotografia em baixo à esquerda – disse Hanzell. – Não é nada bonita, infelizmente, mas penso que lhe interessa.
Wallander olhou. Por dentro sentiu um baque. Era a fotografia de soldados mortos. Estavam colocados em fila com caras ensanguentadas, braços dilacerados, peitos desfeitos. Os soldados eram negros. Por trás deles estavam dois homens de pé com armas na mão, ambos brancos. Em pose, como se se tratasse de uma fotografia de caça, e os soldados mortos eram as presas.
Wallander reconheceu imediatamente um dos dois brancos. Era o que estava à esquerda na fotografia que encontrara enfiada na capa do diário de Harald Berggren. Não havia a menor dúvida, era o mesmo homem.
– Pareceu-me reconhecê-lo – disse Hanzell. – Mas evidentemente não podia ter certeza. Levei um tempo para encontrar o álbum certo.
– Quem é ele? – perguntou Wallander.
– Terry O'Banion ou Simon Marchand?
Reparou que Olof Hanzell reagiu com surpresa. – Simon Marchand – respondeu Olof Hanzell.
– Tenho que confessar que fiquei curioso em saber como sabe o nome dele.
– Vou explicar daqui a pouco. Conte-me antes como conseguiu esta fotografia.
Olof Hanzell sentou-se.
– O que sabe sobre os acontecimentos no Congo daquela altura? – perguntou.
– Pouco, praticamente nada.
– Permita-me então relatar um pouco os antecedentes – sugeriu Olof Hanzell. – Penso ser necessário para poder entender.
– Leve o tempo que precisar – disse Wallander.
15
– Deixe-me começar em 1953 – Hanzell deu início ao seu relato.
– Naquela altura havia quatro estados independentes africanos que eram membros das Nações Unidas. Sete anos mais tarde este número aumentara para vinte e seis. Isto significa que todo o continente africano fervia naquele tempo. A descolonização entrara na sua fase mais dramática. Novos Estados proclamavam a independência em catadupa. O nascimento de novos estados era frequentemente difícil, mas nem sempre tão violento como no caso do Congo Belga. Em 1959 o governo belga elaborou um plano de como se devia processar a transição para a independência. A data para a passagem de poder foi estabelecida para 30 de junho de 1960. Quanto mais se aproximava o dia, mais aumentavam os distúrbios no país. As diferentes tribos puxavam para lados diferentes, e atos de violência por razões políticas aconteciam diariamente. Mas a independência chegou e um político experiente de nome Kasavubu tornou-se presidente, enquanto Lumumba se tornava primeiro-ministro. Lumumba é provavelmente um nome que já ouviu.
Wallander acenou com a cabeça sem qualquer convicção.
– Durante alguns dias até se conseguiu, apesar de tudo, acreditar que iria ser uma transição pacífica de uma colónia para um estado independente. Mas apenas umas semanas depois a Force Publique, que eram as forças armadas regulares do país, sublevaram-se contra os oficiais belgas. Foram enviados pára-quedistas belgas para salvar os seus próprios oficiais e o país caiu rapidamente num caos. A situação tornou-se incontrolável para Kasavubu e Lumumba. Simultaneamente o Catanga, a província mais ao sul e a mais rica, graças a todos os recursos naturais de minerais, proclamou unilateralmente a independência.
O líder chamava-se Tshombe. Naquela situação Kasavubu e Lumumba pediram auxílio às Nações Unidas. Dag Hammarskjõld, que era o secretário-geral naquela altura, conseguiu arranjar em pouco tempo uma intervenção de tropas das Nações Unidas, entre outras, da Suécia. A nossa função seria apenas ao nível policial. Os belgas que continuavam no Congo apoiaram Tshombe no Catanga. Com o dinheiro das grandes empresas mineiras alugavam-se tropas mercenárias. E é aqui que entra esta fotografia.
Hanzell fez uma pausa e bebeu um gole de café.
– Talvez dê uma ideia de como a situação estava tensa e complicada nessa altura – acrescentou a seguir.
– Imagino como a situação deve ter sido extremamente confusa – respondeu Wallander, e esperou impacientemente pela continuação.
– Durante os combates no Catanga estiveram envolvidos centenas de mercenários – retomou Hanzell. – Vieram de vários países. França, Bélgica, Argélia. Quinze anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial ainda havia muitos alemães que nunca aceitaram que a guerra tivesse acabado como acabou. Vingaram-se em africanos inocentes. Mas também havia um certo número de escandinavos. Alguns morreram e foram enterrados em sepulturas, que já ninguém sabe onde estão. Numa ocasião um africano chegou ao posto sueco das Nações Unidas. Trazia papéis e fotografias de um grupo de mercenários que tinham sucumbido. Mas nenhum era sueco.
– Por que então foi para o posto sueco? – Nós, os suecos, éramos conhecidos como sendo bondosos e generosos. Chegou com a caixa e queria vender o conteúdo. Só Deus sabe como tinha chegado às mãos dele.
– E você comprou-a? Hanzell acenou afirmativamente.
– Vamos antes dizer que fizemos um negócio de trocas. Julgo ter pago o correspondente a dez coroas pela caixa. Deitei fora a maior parte, mas guardei umas fotografias. Entre outras, esta.
Wallander decidiu-se por avançar um passo.
– Harald Berggren – disse. – Um dos homens na minha fotografia é sueco e tem este nome. Por exclusão de partes, tem que ser o do meio ou o da direita. O nome diz-lhe alguma coisa? Hanzell refletiu. Depois abanou negativamente a cabeça.
– Não – respondeu. – Mas por outro lado não tem grande sig-nificado.
– Por que não? – Muitos dos mercenários alteravam os nomes. Não se tratava apenas de suecos. Tomava-se um novo nome durante o contrato. Quando estava acabado, caso se tivesse conseguido sobreviver, podia retomar-se o nome original.
Wallander refletiu.
– Significa que Harald Berggren pode ter estado no Congo sob um nome completamente diferente? -Pois.
– Também significa que pode ter escrito o diário sob o seu verdadeiro nome. Que então tenha funcionado como pseudónimo? – sim.
– Também pode significar que Harald Berggren possa ter sido morto sob outro nome? – Pois.
Wallander olhou interrogativamente para Hanzell.
– Por outras palavras, significa que é quase impossível dizer se ele está vivo ou morto? Pode estar morto com um nome e vivo com outro? – Os mercenários são pessoas reservadas. Daquilo que se consegue entender.
– O que quer dizer que é quase impossível encontrá-lo, se ele próprio não quiser? Olof Hanzell acenou afirmativamente. Wallander observava o prato com biscoitos.
– Sei que muitos dos meus anteriores colegas tinham outra opinião – disse Hanzell. – Mas para mim, os mercenários foram sempre algo muito desprezível. Matavam por dinheiro, mesmo quando afirmavam que combatiam por uma ideologia. Pela liberdade e contra o comunismo. Mas a realidade era outra. Matavam sem critério. Seguiam ordens de quem na altura pagava melhor.
– Um mercenário deve ter muita dificuldade em regressar a uma vida normal – observou Wallander.
– Muitos nunca conseguiram. Tornaram-se no que se chama sombras à margem da sociedade. Ou então mataram-se a beber. Alguns deles estavam provavelmente perturbados antes de se alistarem.
– O que quer dizer?
A resposta de Olof Hanzell veio rápida e determinada.
– Sadistas e psicopatas.
Wallander anuiu em sinal de entendimento.
Harald Berggren era um homem que tanto podia existir como não. Era duvidosa a maneira como se podia encaixar isso no quadro da investigação.
A sensação era clara e evidente.
Estava num beco sem saída. Não sabia de todo como prosseguir.
16
Wallander ficou em Nybrostrand pela tarde fora. No entanto, não passou o tempo todo em casa de Olof Hanzell, em Skrakvãgen. Deixou a casa à uma hora. Após a longa conversa, sair e ser fustigado pelo ar do outono, fê-lo sentir-se perdido. Qual deveria ser o próximo passo? Em vez de regressar a Ystad foi até ao mar e estacionou o automóvel. Depois de uma certa hesitação decidiu-se a dar um passeio a pé. Talvez o ajudasse a fazer a síntese de que tanto precisava. Contudo, ao chegar à praia e ao sentir o vento do outono a morder-lhe o rosto, mudou de opinião e regressou ao automóvel. Sentou-se à frente, no assento do pendura e recostou o banco o mais possível. Depois fechou os olhos e começou a reavivar, na memória, todos os acontecimentos passados desde aquela manhã, há duas semanas, quando Sven Tyrén entrara no seu gabinete a contar que Holger Eriksson desaparecera. Hoje, 12 de outubro, tinham mais um homicídio, mais um assassino para procurar.
Wallander repassou de cabeça os acontecimentos e tentou examinar a sua cronologia. Entre tudo o que ao longo do tempo aprendera com Rydberg, um dos conhecimentos mais importantes era o de que os primeiros acontecimentos não se situavam necessariamente no início numa cadeia de causas e efeitos. Holger Eriksson e Gösta Runfeldt tinham sido ambos assassinados. Mas Wallander interrogava-se sobre o que na realidade acontecera. Tinham sido assassinados em resultado de uma vingança? Ou era um crime com algum proveito, apesar de não entender em que constava esse benefício? Abriu os olhos e olhou para uma haste com uma bandeira rasgada que batia ao sabor das rajadas de vento. Holger Eriksson tinha sido espetado numa sepultura de estacas minuciosamente preparada. Gösta Runfeldt tinha estado prisioneiro e depois fora estrangulado.
Havia demasiados pormenores que preocupavam Wallander. A crueldade demonstrada. E por que mantiveram Gösta Runfeldt preso antes de o matarem? Wallander tentou catalogar as condições mais básicas que o grupo de investigação tinha como ponto de partida. O criminoso que procuravam e tentavam identificar devia ter conhecido tanto Holger Eriksson como Gösta Runfeldt. Sobre isso não podia haver dúvidas.
Estava familiarizado com os hábitos de Holger Eriksson. Além disso, tinha de saber que Gösta Runfeldt ia a Nairobi. Tudo isto eram circunstâncias que podiam constituir pontos de partida. Outro fator era o assassino não se ter preocupado que os mortos fossem descobertos. Havia indícios que apontavam para exatamente o oposto.
Wallander interrompeu a sua análise. "Por que se demonstra algo?", interrogou-se. "Para que alguém repare no que se fez." Será que o assassino quis que os outros vissem o que tinha executado? Nesse caso, o que pretendia mostrar? Que justamente esses dois homens estavam mortos? Mas não apenas isso, pretendia também que ficasse bem claro como fora feito, que tinham sido mortos de maneira cruel e planeada.
"Era uma possibilidade", pensou com crescente relutância. Se fosse o caso, os homicídios de Holger Eriksson e Gösta Runfeldt constituíam partes de algo muito maior, cuja dimensão ainda não conseguia sequer vislumbrar. Não que necessariamente significasse que mais pessoas fossem morrer, mas significava de certeza que Holger Eriksson, Gösta Runfeldt e o assassino podiam ser procurados e identificados num grupo mais alargado. Alguma forma de comunhão. Como um grupo de mercenários numa distante guerra africana.
Wallander sentiu de repente ânsia de fumar. Apesar de ter sido invulgarmente fácil parar havia uns anos, depois de finalmente se ter decidido a deitar fora os cigarros, em ocasiões muito raras tinha saudades do vício. Neste preciso momento era isso que sentia. Saiu do carro e sentou-se no banco de trás. Mudar de assento era como mudar de perspectiva. Esqueceu-se rapidamente dos cigarros e continuou com os seus pensamentos. Principalmente tinham que procurar, e de preferência encontrar o mais depressa possível, uma ligação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. Havia a possibilidade de essa ligação não ser de nenhuma maneira evidente ou de dar nas vistas, mas estava convencido de que ela existia. Para encontrar esse elo de ligação tinham que saber mais sobre os homens. Numa observação superficial eram diferentes, muito diferentes. A diferença começava logo pela idade. Pertenciam a diferentes gerações, a diferença era de trinta anos. Holger Eriksson podia ser pai de Gösta Runfeldt. Mas algures havia um ponto onde os seus caminhos se cruzavam. A procura desse ponto teria que, a partir desse dia, constituir o núcleo da investigação. Wallander não conseguia ver outro caminho a seguir.
O telefone tocou, era Ann-Britt Höglund.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou.
– Tenho que confessar que telefonei por pura curiosidade – respondeu.
– A conversa com o capitão Hanzell foi produtiva – disse Wallander. – Entre as muitas coisas que tinha para contar, e que podem vir a ter importância, concluí que Harald Berggren pode perfeitamente viver hoje com um outro nome. Os mercenários utilizavam frequentemente nomes falsos quando celebravam os seus contratos ou faziam os seus acordos verbais.
– Vai-nos ser mais difícil encontrá-lo.
– Também foi a minha primeira reflexão. Era como deixar cair novamente a agulha no palheiro, mas talvez não seja necessariamente assim. Quantas pessoas mudam de nome durante a vida, na verdade? Mesmo sendo uma tarefa árdua, é possível solucioná-la.
– Onde estás? – Ao pé do mar. Em Nybrostrand.
– O que fazes aí? – Na verdade, estou no carro a refletir.
Reparou que aguçou a voz, como se tivesse necessidade de se defender. Interrogou-se por quê.
– Então não vou incomodar – disse.
– Não incomodas – respondeu. – Vou regressar a Ystad agora, mas vou passar por Lõdinge no caminho.
– Há alguma coisa especial? – Preciso refrescar a minha memória. Depois vou ao apartamento de Runfeldt. Calculo estar lá por volta das três, seria bom se Vanja Andersson pudesse lá ir ter comigo nessa altura.
– Vou tratar disso.
Desligaram. Wallander ligou o motor e partiu na direção de Lõdinge. Não tinha chegado ao fim das suas reflexões, mas tinha conseguido avançar. Tinha conseguido traçar, na sua cabeça, um esquema da investigação a utilizar como ponto de partida. Tinha começado a sondar uma profundidade que era maior do que tinha calculado.
Não era totalmente verdade, o que tinha afirmado a Ann-Britt Höglund, que o seu objetivo de fazer nova visita a casa de Holger Eriksson tivesse por razão uma necessidade geral de refrescar a memória. Wallander queria ver aquela casa antes de regressar ao apartamento de Runfeldt. Queria ver se havia semelhanças, queria saber onde se situavam as diferenças.
Ao virar para o acesso à casa de Holger Eriksson, já lá estavam dois automóveis. Interrogou-se surpreendido sobre quem seriam os visitantes. jornalistas que dedicavam um dia de outono a tirar imagens tristes num local de homicídio? Obteve a resposta assim que entrou no pátio. Lá estava um advogado de Ystad, que Wallander conhecia de ocasiões anteriores. Além dele havia duas mulheres, uma mais velha e uma na idade de Wallander. O advogado, chamado Bjurman, estendeu a mão e cumprimentou-o.
– Estou encarregue do testamento de Holger Eriksson – anunciou em tom esclarecedor. – Pensamos que os policiais tinham acabado as investigações aqui na quinta. Telefonei à central a perguntar.
– Não estamos prontos antes de apanhar o criminoso – respondeu Wallander. – Mas não temos nada contra vocês verem a casa. Wallander lembrou-se de que tinha visto no material da investigação, que Bjurman era o executor testamentário de Eriksson. Julgava lembrar-se também de que tinha sido Martinsson a contatá-lo.
O advogado Bjurman apresentou a Wallander as duas mulheres. A mais velha apertou-lhe a mão de maneira marcadamente reservada, como se fosse indigno dela relacionar-se com policiais. Wallander, que era extremamente sensível em se sujeitar à arrogância de outras pessoas, ficou imediatamente zangado, mas controleu-se. A outra mulher era cordial.
– As senhoras Mârtensson e von Fessler vêm da Casa da Cultura de Lund – explicou Bjurman. – Holger Eriksson deixou em testamento a maior parte dos seus bens à Associação. Holger Eriksson elaborou listas minuciosas dos bens móveis e estamos a iniciar o levantamento.
– Diga-me se faltar alguma coisa – disse Wallander. – De resto não pretendo incomodar. Vou ficar por pouco tempo.
– É verdade que a Polícia não encontrou o assassino? – perguntou a mulher mais velha, a que se chamava von Fessler. – Wallandef interpretou as suas palavras como uma constatação e uma crítica mal disfarçada.
– Não – disse Wallander. – A Polícia não encontrou.
Wallander entendeu que tinha que acabar o diálogo antes de ficar zangado. Virou-se e dirigiu-se para a casa, cuja porta se encontrava aberta. Para se isolar da conversa no pátio, fechou a porta. Um ratinho fugiu junto aos seus pés e desapareceu por trás de um velho baú encostado à parede. É outono, pensou Wallander. Agora os ratinhos do campo estão a meter-se nas paredes das casas. O inverno está a aproximar-se.
Deu uma volta pela casa, lentamente e com uma atenção redobrada. Não procurava nada de especial, queria lembrar-se da casa. Quando saiu, Bjurman e as duas mulheres encontravam-se num dos anexos. Wallander optou por se ir embora sem dizer nada. Olhou para os campos quando se dirigiu para o automóvel. Não havia corvos a fazer barulho junto à valeta. Parou ao chegar junto ao automóvel. Era alguma coisa que Bjurman tinha dito. Primeiro não conseguiu lembrar-se do que era. Levou uns instantes a recordar. Regressou a casa. Bjurman e as duas mulheres continuavam no anexo. Abriu o portão e acenou para Bjurman se aproximar.
– O que estava a dizer sobre o testamento? – perguntou.
– Holger Eriksson fez o testamento da maior parte dos seus bens, a favor da Casa da Cultura de Lund.
– A maior parte? Significa que não foi completamente tudo? – Existe um legado de 100.000 coroas que foi para outro lado. É tudo.
– Que lado? – Para uma igreja na paróquia de Berg. A igreja de Svenstavik. Uma dádiva a ser utilizada segundo as decisões da assembleia eclesiástica. Wallander nunca tinha ouvido falar do local.
– Svenstavik situa-se na Scania? – perguntou hesitante.
– Não, situa-se mais precisamente no sul de jãmtland – respondeu Bjurman. – A uns quilómetros da fronteira com Hãrj edalen.
– O que tinha Holger Eriksson a ver com Svenstavik? – pergun' tou Wallander admirado. – Pensei que tinha nascido em Ystad.
– Infelizmente trata-se de um assunto de que não tenho conhecimento – respondeu Bjurman. – Holger Eriksson era um homem muito reservado.
– Não deu qualquer explicação para a oferta? – O testamento de Eriksson é uma ata exemplar, resumida e exata explicou Bjurman. – Não constam quaisquer motivações de carácter sentimental. De acordo com a sua última vontade, a igreja de Svenstavik receberá 100.000 coroas e é o que vai acontecer.
Wallander não tinha mais perguntas a fazer. Depois de se sentar no automóvel, telefonou à central. Ebba respondeu. Também era com ela que queria falar.
– Queria que descobrisses o número dos serviços administrativos da igreja de Svenstavík. Que talvez se situe em Östersund. Suponho que seja a cidade mais próxima.
– Onde fica Svenstavik? – perguntou.
– Não sabes? – perguntou Wallander. – No Sul de Jãmtland.
– É fantástico o que sabes – respondeu.
Wallander percebeu que ela o tinha apanhado. Por isso, disse a verdade, que não sabia, antes de Bjurman lhe explicar.
– Quando tiveres o número, quero que me informes – disse. Agora vou a caminho do apartamento de Gösta Runfeldt.
– Lisa Holgersson quer falar contigo com urgência – informou Ebba. – jornalistas telefonam para cá a toda a hora, mas o comunicado à imprensa foi adiado para as seis e meia desta tarde.
– Serve-me perfeitamente – respondeu Wallander.
– A tua irmã também telefonou – prosseguiu Ebba. – Queria muito falar contigo antes de partir para Estocolmo.
O regresso à memória da morte do pai veio repentina e dolorosamente, mas não podia ceder perante os sentimentos. Pelo menos nesta altura.
– Vou telefonar-lhe – respondeu Wallander. – Porém, o mais inportante são os serviços administrativos da igreja de Svenstavik. Depois regressou a Ystad. Parou junto a um quiosque e comeu um hambúrguer sem qualquer sabor. Ia a caminho do automóvel quando voltou ao quiosque. Desta vez pediu uma salsicha. Comeu depressa, como se estivesse a cometer um ato ilegal e tivesse medo que alguém o apanhasse. Depois seguiu para Vãstra Vallgatan. O velho automóvel de Ann-Britt Höglund estava estacionado à frente da porta de Gösta Runfeldt.
O vento continuava de borrasca.
Wallander sentiu frio. Encolheu-se ao passar para o outro lado da rua.
Não foi Ann-Britt Höglund, mas sim Svedberg quem lhe abriu a porta do apartamento de Gösta Runfeldt quando Wallander tocou.
Teve que ir para a casa – respondeu Svedberg esclarecendo Wallander quando perguntou por ela. – Um dos miúdos está doente, o carro dela não arrancou, por isso levou o meu, mas disse que regressaria em breve.
Wallander entrou na sala de estar e olhou à sua volta.
– Nyberg já acabou? – perguntou admirado. Svedberg olhou-o sem entender.
– Não ouviste? – perguntou.
– Ouvi o quê? – O que aconteceu com Nyberg. Tem dores num pé.
– Não ouvi nada – disse Wallander. – O que foi? – Nyberg escorregou numa mancha de petróleo à frente da central. Caiu tão mal que lesionou um músculo ou um ligamento do pé esquerdo. Neste momento está no hospital. Telefonou a dizer que pode continuar a trabalhar, mas tem que utilizar uma bengala para andar. E estava evidente e manifestamente furioso.
Wallander pensou em Sven Tyrén, que tinha estacionado à frente do acesso à central. Optou por não dizer nada.
Foram interrompidos pelo som da campainha. Era Vanja Andersson. Estava muito pálida. Wallander acenou para Svedberg que desapareceu para o escritório de Gösta Runfeldt. Levou Vanja Andersson para a sala de estar. Parecia assustada por estar no apartamento. Hesitou quando lhe pediu para se sentar.
– Eu entendo que é desagradável – disse. – Mas não lhe teria pedido para cá vir se não fosse absolutamente necessário.
Ela anuiu. Mas Wallander tinha dúvidas se na realidade entendia. Tudo que estava a acontecer era tão incompreensível como o fato de Gösta Runfeldt nunca ter ido a Nairobi e, em vez disso, ter sido encontrado morto numa floresta nos arredores de Marsvinsholm.
– já esteve neste apartamento anteriormente – disse Wallander. E tem boa memória. Sei isso, por se ter lembrado da cor da mala dele.
– já a encontraram? – perguntou.
Wallander pensou que nem sequer tinham começado a procurá-la. Tinha desaparecido completamente dos seus pensamentos. Pediu desculpa e foi ter com Svedberg que metodicamente estava a analisar o conteúdo de uma estante.
– Sabes alguma coisa sobre a mala de viagem de Gösta Runfeldt?
– Tinha uma mala de viagem?
Wallander abanou a cabeça.
– Não é nada – respondeu. – Vou falar com Nyberg. Regressou à sala de estar. Vanja Andersson estava sentada imóvel no sofá. Wallander percebeu que ela queria sair dali o mais depressa possível, pois era como se fizesse um enorme esforço para respirar o ar do apartamento.
– Vamos tornar a falar da mala – disse. – O que agora lhe quero pedir é que dê uma volta ao apartamento e tente observar se falta alguma coisa.
Olhou assustada para ele.
– Como posso saber? Não estive cá muitas vezes.
– Eu sei – disse Wallander. – Mas pode acontecer que veja alguma coisa. Reparar que alguma coisa desapareceu. Pode ser importante. Neste momento, tudo é importante para podermos descobrir quem tenha feito isto. E certamente está tão interessada nisso como nós.
Wallander estava preparado para o que aconteceu a seguir. Apesar disso, foi uma surpresa. Ela desatou a chorar. Svedberg apareceu à porta do escritório. Wallander sentiu-se, como habitualmente em situações semelhantes, completamente embaraçado. Interrogou-se se os aspirantes a policial aprendiam durante a sua formação, hoje em dia, a consolar pessoas que choram. Teria que se lembrar de perguntar a Ann-Britt Höglund numa ocasião oportuna.
Svedberg regressou do banheiro com um lenço de papel na mão, que lhe estendeu. Parou de chorar tão rapidamente como começara.
– Peço desculpa – disse. – Mas é difícil.
– Sei isso – assentiu Wallander. – Não é caso para pedir desculpa. Penso que as pessoas choram, de uma maneira geral, raras vezes, demasiado raras vezes.
Ela olhou para ele.
– Também falo por mim – acrescentou Wallander.
Após breves instantes ergueu-se do sofá. Estava preparada para começar.
– Leve o tempo que quiser – disse Wallander. – Tente ver como era na última vez que cá esteve. Para regar as plantas. Esteja à vontade. Seguiu-a na sombra. Quando ouviu Svedberg praguejar no escritório, foi lá e colocou o dedo à frente dos lábios em sinal de silêncio.
Svedberg acenou, ele entendeu. Wallander sabia que momentos fundamentais numa investigação criminal importante surgiam durante conversas entre pessoas, ou num silêncio absoluto e concentrado. Tinha assistido às duas alternativas um sem-número de ocasiões. Neste momento era o silêncio que interessava. Conseguia ver que ela estava realmente a esforçar-se.
Mas não houve resultado. Regressaram ao ponto de partida, ao sofá na sala. Ela abanou a cabeça.
– Acho que está tudo como de costume – afirmou. – Não consigo ver nada que tenha desaparecido ou esteja alterado.
Não foi surpresa para Wallander. Teria reparado se tivesse parado durante a análise do apartamento.
– Não há outras coisas em que tenha pensado? – perguntou.
– Pensei que tivesse ido a Nairobi – disse. – Regava as flores e cuidava da loja.
– E fez as duas tarefas excelentemente – disse Wallander. – Obrigado por ter vindo. Certamente entraremos em contato com você . Acompanhou-a à porta. Svedberg saía do banheiro nesse momento.
– Não desapareceu nada – informou Wallander.
– Parece ter sido uma pessoa complexa – observou Svedberg pensativamente. – Uma curiosa mistura de caos e organização pedante carateriza o seu escritório. Quando se trata das flores a arrumação parece perfeita. Não fazia ideia de que havia tanta literatura sobre orquídeas. Todavia, quando se trata da sua vida privada, há papéis atirados de qualquer maneira. Na contabilidade da loja das flores de 1994, encontrei uma declaração de 1969. Naquele ano declarou, aliás, o fabuloso ordenado de 30.000 coroas.
– Pergunto-me o que ganhávamos nós naquela altura – disse Wallander. – Não muito mais, provavelmente muito menos. Tenho uma vaga ideia de que recebíamos cerca de 2.000 coroas por mês.
Pensaram, durante um curto silêncio, nos seus salários do passado.
– Continua a procurar – disse Wallander a seguir.
Svedberg regressou para a sua tarefa e Wallander colocou-se a janela e olhou para o porto de mar. Ouviu a porta bater. "Deve ser Ann-Britt Höglund uma vez que ela tem as chaves." Foi ao seu encontro na entrada.
– Nada sério, espero?
– Constipação de outono – respondeu. – O meu marido está naquilo que se costumava chamar índias Orientais. Mas a minha vizinha acode-me.
– Tenho frequentemente refletido sobre isso – disse Wallander.
– Pensava que vizinhas prestáveis era algo que tinha desaparecido em fins dos anos 50.
– E também é verdade, mas tive sorte. Ela tem à volta de cinquenta anos e não tem filhos. Mas claro não trabalha de graça. E sabe dizer não.
– Então o que fazes? Ela encolheu os ombros exausta.
– Improviso. Se for à noite talvez consiga arranjar uma baby-sitter. Frequentemente interrogo-me como me desenvencilho. Como sabes, também acontece não conseguir e nessas alturas chego tarde. Mas, na realidade, julgo que os homens não entendem as operações complicadas necessárias para solucionar as relações com o trabalho, por exemplo, quando um filho está doente.
– Provavelmente não sabem – respondeu Wallander. – Talvez devêssemos tratar de arranjar maneira da tua vizinha receber alguma distinção.
– Falou em mudar de casa – disse Ann-Britt Höglund com preocupação. – O que vai acontecer então, nem quero pensar.
A conversa morreu.
– Ela esteve aqui? – perguntou Ann-Britt Höglund.
– Vanja Andersson veio e partiu. Não parece ter desaparecido nada do apartamento. Mas fez-me lembrar algo completamente diferente. A mala de viagem de Gösta Runfeldt. Tenho que confessar que a tinha esquecido completamente.
– Eu também – anuiu. – Mas tanto quanto sei, não a encontraram na floresta. Falei com Nyberg antes de ele partir o pé.
– Foi assim tão grave? – Pelo menos está bem amachucado.
– Então vai estar muito maldisposto nos próximos tempos. O que não é nada bom.
– Vou convidá-lo para jantar – disse Ann-Britt Höglund bem-disposta. – Ele gosta de peixe cozido.
– Como sabes? – perguntou Wallander surpreendido.
– já o convidei antes – respondeu. – É um convidado muito simpático. Fala de tudo exceto do seu trabalho.
Wallander interrogou-se, de repente, se ele próprio podia ser considerado um convidado simpático. Pelo menos sabia que tentava não falar do seu trabalho. Mas quando, na realidade, tinha sido convidado para jantar, a última vez? Fora há tanto tempo que não conseguia recordar quando acontecera.
– Os filhos de Runfeldt chegaram – disse Ann-Britt Höglund. Hansson encarregou-se deles. Uma filha e um filho.
Tinham entrado para a sala de estar. Wallander contemplava a fotografia da mulher de Gösta Runfeldt.
– Devíamos tentar saber o que aconteceu – disse.
– Ela morreu afogada.
– Mais pormenores.
– Hansson já entendeu. Costuma tratar das conversas com cuidado. Ele vai questioná-los acerca da mãe.
Wallander sabia que ela tinha razão. Hansson tinha muitos lados fracos. No entanto, era um dos melhores a conversar com testemunhas, a colher informação. Entrevistar pais sobre os filhos, ou como agora, ao contrário.
Wallander falou da sua conversa com Olof Hanzell. Ela ouviu atentamente. Omitiu muitos pormenores. O mais importante era a conclusão final, que Harald Berggren podia muito bem viver hoje com outro nome. já tinha mencionado isso ao telefone. Ele reparou que ela tinha refletido sobre o assunto.
– Caso ele tenha registrado a mudança de nome, podemos descobrir através do Departamento de Patentes e Registros – disse.
– Duvido de que um mercenário utilize vias legais – retorquiu Wallander. – Mas evidentemente temos que investigar isso como tudo o resto. E vai ser demorado.
Depois falou do seu encontro com as senhoras de Lund e o advogado Bjurman, na quinta de Holger Eriksson.
– Uma vez o meu marido e eu fizemos uma viagem de automóvel pelo interior de– NorrIand – disse. – Lembro-me perfeitamente de que passamos por Svenstavik.
Ebba já me devia ter dado o número dos serviços administrativos da igreja – lembrou-se Wallander e tirou o telefone do bolso. Estava desligado. Praguejou sobre o seu descuido. Ela tentou disfarçar um sorriso mas não conseguiu. Wallander sabia que tivera um comportamento imaturo e infantil. Para salvar a situação ligou o número da central .
Ann-Britt deu-lhe uma caneta e ele anotou o número no canto de um jornal. Ebba tinha realmente tentado ligar-lhe várias vezes.
Nessa altura Svedberg entrou na sala com uma pilha de papéis na mão. Wallander viu que eram recibos.
– Isto talvez nos sirva para alguma coisa – disse Svedberg. – Parece que Gösta Runfeldt tem um apartamento na Harpegatan aqui na cidade. Paga a renda uma vez por mês e, segundo vejo, separa-a de todos os outros pagamentos que estão ligados ao comércio das flores.
– Harpegatan? – perguntou Ann-Britt Höglund. – Onde fica? – Perto da praça Nattmanstorg – respondeu Wallander. – No centro.
– Vanja Andersson contou que ele arrendava mais um apartamento? Falou disso? – A questão é se ela sabia – disse Wallander. – Vou investigar imediatamente.
Wallander deixou o apartamento e fez o curto caminho até a florista. O vento fazia agora sentir-se em fortes rajadas. Encolheu-se e susteve a respiração. Vanja Andersson estava sozinha na loja, o cheiro das flores continuava muito forte. Um breve instante de abandono passou por Wallander, ao pensar na viagem a Roma e no seu pai que já cá não estava, mas afastou os pensamentos. Era policial. A tristeza tinha que esperar para quando houvesse tempo. Agora não.
– Tenho uma pergunta – disse. – Provavelmente consegue responder sim ou não diretamente.
Ela olhou-o com a sua cara pálida e assustada. Wallander pensou que certas pessoas dão constantemente uma impressão de estarem preparadas para o pior lhes acontecer a cada momento. Vanja Andersson parecia ser uma dessas pessoas. Wallander também pensou que, dadas as circunstâncias, de fato não a podia censurar.
– Sabia que Gösta Runfeldt alugava um espaço na Harpegatan, aqui na cidade? – perguntou.
Ela abanou a cabeça.
– Tem certeza? – Gösta não tinha outro apartamento além deste. De repente Wallander sentiu pressa.
– Era só isso – concluiu. – Nada mais.
Ao chegar ao apartamento, Svedberg e Ann-Britt Höglund tinham juntado todas as chaves que encontraram. Foram para Harpegatan no carro de Svedberg. Era um prédio normal. Na entrada não consegui ,jran, ver o nome de Gösta Runfeldt no quadro.
– Nos recibos está escrito que se trata de um espaço na cave – disse svedberg Avançararri procurando a escada para o piso inferior. Wallander seritiu o cheiro ácido a maçã de inverno. Svedberg começou a experirrientar as chaves. A décima segunda era a certa. Entraram num corredor onde portões de ferro pintados de vermelho conduziam a diferentes arrecadações.
Foi Ann-Britt Höglund que acertou.
– Acho que é aqui – disse e apontou para a porta.
Wallander e Svedberg; colocaram-se ao lado dela. Havia um autocolante cujo motivo era uma flor.
– Uma orquídea – disse Svedberg.
– Um espaço secreto – replicou Wallander.
Svedberg continuou a experimentar as chaves. Wallander reparou que um fecho suplementar tinha sido montado na porta.
Finalmente houve um sinal numa das fechaduras. Wallander sentiu que a excitação aumentava. Svedberg continuou a experimentar chaves. Só lhe restavam duas quando olhou para os outros e acenou com a cabeça.
– Então entramos – disse Wallander. A seguir, Svedberg abriu a porta.
O medo perpassou por ele como uma seta.
17
Mas quando o pensamento surgiu já era demasiado tarde. Svedberg já tinha aberto a porta. No curto espaço de tempo em que o medo se apossou dele, Wallander esperou que a explosão detonasse. Mas tudo o que aconteceu foi Svedberg a apalpar ao longo da parede, sussurrando algo sobre o local do interruptor. Wallander sentiu-se, mais tarde, embaraçado pelo medo que sentira. Por que teria Runfeldt uma instalação explosiva no seu espaço na cave? Svedberg acendeu a luz. Entraram no local e olharam à volta. Uma vez que se situava debaixo de terra só havia uma fila estreita de janelas ao nível do terreno. A primeira coisa que Wallander notou era que as janelas tinham grades de ferro do lado interior. Era invulgar e devia ter sido uma despesa paga pelo próprio Gösta Runfeldt.
O espaço estava equipado como um escritório. Havia uma escrivaninha. Ao longo das paredes, armários para documentos. Numa pequena mesa junto a uma das paredes havia uma máquina de café e umas xícaras enroladas num pano e assim como um telefone, um fax e uma fotocopiadora.
– Entramos ou esperamos por Nyberg? – perguntou Svedberg. Wallander foi interrompido nas suas reflexões. Ouviu a pergunta, mas esperou para responder. Estava aínda a tentar entender o que lhe dizia a primeira impressão. Por que tinha Gösta Runfeldt alugado este espaço e separado os custos das outras contas na sua contabilidade? Por que é que Vanja Andersson não tinha conhecimento disto? E a mais importante pergunta: Qual era a função deste espaço? – Nenhuma cama – prosseguiu Svedberg. – Portanto, não parece ser nenhum ninho secreto de encontros amorosos.
– Nenhuma mulher ficaria romântica num local destes – disse Ann-Britt Höglund num tom céptico.
Wallander ainda não tinha respondido à pergunta de Svedberg. o mais importante era, sem dúvida, saber por que é que Gösta Runfeldt tinha mantido este escritório secreto, porque, com efeito, era de um escritório que se tratava. A respeito disso não havia dúvidas.
Wallander deixou o olhar circular ao longo das paredes. Havia outra porta. Acenou para Svedberg. Avançou e experimentou a maçaneta. A porta estava aberta. Espreitou.
– Parece uma câmara para revelação – disse Svedberg. – Com todo o equipamento necessário.
Wallander começou a pensar se, apesar de tudo, havia uma explicação simples e razoável para Runfeldt ter este espaço. Tirava muitas fotografias. Tinham reparado no apartamento dele. Tinha uma grande coleção de fotografias de orquídeas de todo o mundo. Raramente figuravam pessoas nas suas fotografias e frequentemente eram a preto e branco, apesar de as cores das orquídeas serem bonitas e deverem seduzir um homem com uma máquina fotográfica.
Wallander e Ann-Britt Höglund tinham avançado e olhavam por cima do ombro de Svedberg. Era, de fato, um pequeno estúdio de revelação. Wallander decidiu que não precisavam de Nyberg, pois eles podiam inspecionar o espaço.
A primeira coisa que procurou foi uma mala de viagem. Mas não havia lá nenhuma. Sentou-se na cadeira e começou a folhear os papéis que estavam em cima da secretária. Svedberg e Ann-Britt Höglund concentraram-se nos armários. Wallander lembrou-se vagamente de Rydberg. Uma vez, há muito tempo, numa das repetidas noites que passaram sentados na varanda dele a beber uísque, comentou que o trabalho de um policial e de um auditor era semelhante. Se for verdade, estou neste momento a fazer uma revisão de um homem morto, onde em termos contabilísticos, como numa conta secreta, existe um escritório com o endereço: Harpegatan em Ystad.
Wallander abriu as gavetas da secretária. Na gaveta de cima havia Um pequeno computador portátil. A capacidade de Wallander manusear computadores era limitada. Frequentemente tinha que pedir ajuda quando precisava de trabalhar com o computador que tinha no seu gabinete na central. Sabia que tanto Svedberg como Ann-Britt Höglund estavam habituados a computadores e a olhar para eles como evidentes instrumentos de trabalho.
– Vamos ver o que se esconde neste – disse e colocou o computador na secretária.
Levantou-se da cadeira, Ann-Britt Höglund sentou-se. Havia uma ficha na parede junto à secretária. Abriu a tampa e ligou o computador. Breves instantes depois o ecrã iluminou-se. Svedberg continuava a vasculhar num dos armários. Ela entrou no programa do computador.
– Não há códigos – murmurou. – Temos acesso.
Wallander inclinou-se para ver. Tão perto que conseguiu sentir o cheiro do perfume discreto dela. Pensou nos seus olhos, já não podia esperar mais. Tinha que arranjar óculos.
– É um registro – disse. – Diferentes nomes próprios.
– Experimenta se Harald Berggren consta – sugeriu Wallander. Olhou admirada para ele.
– Achas? – Não acho nada – respondeu Wallander. – Mas podemos tentar. Svedberg deixou o armário dos documentos e colocou-se ao lado de Wallander. Ela procurou no registro. Depois abanou negativamente a cabeça.
– Holger Eriksson ? – propôs Svedberg. Wallander acenou. Ela procurava e nada.
– Entra no registro ao acaso – disse Wallander.
– Temos um homem que se chama Lennart Skoglund – disse. – Vamos experimentá-lo? – Que diabo, é o "Nacka"! – exclamou Svedberg. Olharam para ele com uma expressão perplexa.
– Havia um jogador de futebol que se chamava Lennart Skoglund disse Svedberg. Chamavam-lhe "Nacka". Devem ter ouvido falar dele? Wallander acenou positivamente. No entanto, era desconhecido para Ann-Britt Höglund.
– Lennart Skoglund parece um nome vulgar – disse Wallander. Vamos analisá-lo.
Puxou o respectivo texto. Wallander franziu os olhos e conseguiu ler o texto que era muito curto.
– Lennart Skoglund. Iniciado em lº de junho 1994. Encerrado a 19 de agosto 1994. Sem informação. Assunto retirado.
– O que significa? – perguntou Svedberg. – O que quer dizer "assunto retirado"? Que assunto? Qualquer um de nós poderia ter escrito aquilo – disse ela.
No mesmo instante Wallander entendeu qual podia ser a explicação. Pensou no equipamento que Gösta Runfeldt tinha adquerido por encomenda postal em Borâs. No laboratório fotográfico. No escritório secreto. Tudo parecia inverosímil, e embora perfeitamente possível. Enquanto estavam debruçados sobre o registro do computador, até parecia ser verosímil.
Wallander endireitou as costas.
– A questão é se Gösta Runfeldt se interessou por outras coisas na sua vida para além de orquídeas – disse. – A questão é se Gösta Runfeldt não foi também o que se costuma chamar detetive privado.
Eram possíveis muitas conjecturas. Mas Wallander queria seguir a pista e queria fazê-lo imediatamente.
– julgo ter razão – prosseguiu. – Agora vocês os dois vão ter que tentar convencer-me de que estou errado. Analisam tudo o que aqui encontrarem. Mantenham os olhos abertos e não se esqueçam de Holger Eriksson. Além disso, quero que alguém contate Vanja Andersson. Sem saber, pode ter visto ou ouvido coisas que têm a ver com esta atividade. Eu vou à central falar com os filhos de Runfeldt.
– Como fazemos com o comunicado à imprensa às seis e meia? – perguntou ela. – Prometi participar.
– É melhor que fiques aqui.
Svedberg estendeu as chaves do seu carro a Wallander. Ele abanou a cabeça.
– Vou buscar o meu. Preciso de me mexer.
Depois de ter subido até a rua, arrependeu-se imediatamente.
O vento estava forte e parecia ficar cada vez mais frio. Wallander hesitou por instantes se devia começar por ir a casa buscar uma camisola mais grossa, mas abandonou essa ideia. Tinha pressa e, além disso, estava preocupado. Estavam a fazer novas descobertas que não se enquadravam no contexto. Por que teria Gösta Runfeldt sido detetive privado? Apressou o passo pela cidade e foi buscar o automóvel. Descobriu que o indicador de combustível estava em baixo, que a luz vermelha estava acesa. Mas não se preocupou em se abastecer de gasolina, já que a preocupação o tornava impaciente.
Eram quase quatro e meia quando chegou à central. Ebba estendeu-lhe uma pilha de papéis com números de telefone que meteu no bolso do casaco. Depois de entrar no gabinete começou por procurar Lisa Holgersson. Ela confirmou o comunicado à imprensa para as seis e meia. Wallander prometeu encarregar-se do assunto embora fosse algo que fazia com aversão. Irritava-se com demasiada facilidade sobre o que considerava perguntas indiscretas e insinuantes dos jornalistas. Por várias ocasiões tinham surgido queixas da sua relutância, até das instâncias policiais mais altas em Estocolmo. Nesses momentos Wallander tinha percebido que realmente era um policial conhecido fora do seu próprio círculo de colegas e amigos. Tinha-se tornado um policial a nível nacional, para o bem e para o mal.
Wallander contou rapidamente sobre a descoberta do espaço na cave de Harpegatan de Gösta Runfeldt. Todavia, por enquanto, não dissera nada sobre a possibilidade de Runfeldt poder ter utilizado parte do seu tempo como detetive privado. Wallander terminou a conversa e ligou a Hansson. A filha de Gösta Runfeldt estava com ele. Combinaram encontrar-se por instantes no corredor.
– Mandei o filho embora – anunciou Hansson. – Está no hotel Sekclgárden.
Wallander acenou com a cabeça. Sabia onde ficava.
– Deu algum resultado? – Pouco. Pode dizer-se que confirmou a imagem de que Gösta Runfeldt foi realmente um apaixonado por orquídeas.
– E a mãe? A mulher de Runfeldt? Um acidente trágico, Queres os pormenores?
– Agora não. O que diz a filha? – Estava mesmo começando a falar com ela. Levei tempo com o filho. Tento fazer isto exaustivamente. Aliás, o filho mora em Arvika e a filha em EskiIstuna.
Wallander olhou para o relógio. Um quarto para as cinco. Devia preparar o comunicado à imprensa. No entanto, podia falar com a filha de Runfeldt uns minutos.
– Importas-te que eu faça umas perguntas?
– Por que havia de me importar? – Não tenho tempo para esclarecer neste momento, ja que as perguntas provavelmente vão parecer esquisitas aos teus ouvidos. Entraram no gabinete de Hansson. Uma jovem mulher estava sentada na cadeira para visitas. Calculou que não teria mais do que 23 ou 24 anos. Wallander achou que era parecida com o pai. Levantou-se quando ele entrou. Wallander sorriu e apertou-lhe a mão. Hanson encostou-se à ombreira da porta enquanto Wallander se sentou na cadeira dele. Descobriu que a cadeira parecia completamente nova. Rapidamente pensou no que Hansson teria feito para conseguir uma cadeira nova. A dele próprio estava em muito mau estado.
Hansson tinha anotado um nome num papel, Lena Lönnerwall. Wallander lançou um breve olhar a Hansson que acenava com a cabeça. Depois tirou o casaco e colocou-o no chão ao lado da cadeira. Ela seguiu-o o tempo todo com o olhar.
– Tenho que começar por lamentar o sucedido – disse. – Os meus sentimentos.
– Obrigada.
Wallander notou que estava concentrada. Verificou, com um certo alívio, que não estava prestes a chorar.
– Chama-se Lena Lõnnerwall e mora em Eskllstuna? – prosseguiu Wallander. – É filha de Gösta Runfeldt? – sim.
– De todas as outras informações pessoais, que infelizmente são necessárias, encarregar-se-a o inspector Hansson. Tenho poucas perguntas. É casada? – Sim.
– Em que trabalha? – Sou treinadora de basquete. Wallander refletiu sobre a resposta.
– Significa que é professora de Educação Física? – Significa que sou treinadora de basquete.
Wallander acenou. Deixou as perguntas de sequência para Hansson. Mas nunca na sua vida tinha tido nenhum encontro com uma treinadora de basquete.
– O seu pai era um comerciante de flores?
– Sim.
– Durante toda a sua vida?
– Em jovem andou no mar. Quando se casou com a minha mãe, ficou em terra.
– Se entendi bem, a sua mãe morreu afogada.
– Sim.
O curto momento de hesitação que antecedeu a resposta não passou despercebido a Wallander. Aguçou-lhe a atenção.
– Há quanto tempo aconteceu?
– Há cerca de dez anos, tinha apenas treze anos na altura. Wallander reparou que ela estava tensa. Prosseguiu cautelosamente.
– Pode adiantar mais pormenores sobre o que aconteceu? Onde aconteceu?
– Têm realmente algo a ver com o meu pai?
– É uma rotina básica de policial fazer recuos cronológicos – explicou Wallander na tentativa de parecer autoritário. – Hansson, do seu lugar à porta, fitou-o com espanto.
– Não sei muito – respondeu.
Errado, pensou Wallander instantaneamente. Sabe, mas prefere não falar do assunto.
– Conte-me o que sabe – prosseguiu.
– Foi no inverno. Por alguma razão, foram dar um passeio a Älmhult num domingo. Ela caiu num buraco no gelo. O pai tentou salvá-la, mas não conseguiu.
Wallander estava imóvel. Pensou no que ela dissera, alguma coisa estava a tocar na investigação em curso. Depois descobriu o que tinha sido. Não se tratava de Gösta Runfeldt, mas sim de Holger Eriksson. Um homem que cai num buraco visível e fica espetado. A mãe de Lena Lõnnerwall cai num buraco no gelo. Todos os instintos policiais lhe diziam que aqui existia uma relação, mas não conseguia vislumbrar qual. Também não entendia a relutância dela, do outro lado da mesa, em falar sobre a morte da sua própria mãe.
Não falou mais sobre o acidente. Fez a pergunta fulcral diretamente.
– O seu pai era comerciante de flores. Além disso, tinha um interesse apaixonado por orquídeas.
– É a primeira lembrança que tenho dele. Como ele nos falava, a mim e ao meu irmão, sobre flores.
– Qual o motivo da sua paixão por orquídeas? – Por que é que nos apaixonamos? Será possível responder a isso? Wallander abanou cabeça sem responder.
– Sabia que o seu pai era detetive privado? Hansson mexeu-se lá ao pé da porta. Wallander manteve o olhar firme sobre a mulher sentada à sua frente. A sua surpresa parecia convincente.
– O meu pai, detetive privado?
– Sim, não sabia?
– Não pode ser verdade. Provavelmente nem sei o que quer dizer com detetive privado. Na realidade, existe disso na Suécia? Existem alguns na Suécia? – Isso é outra pergunta que se pode fazer – disse Wallander. Mas o seu pai dedicava certamente tempo a praticar atividades de detetive privado.
– Como Ture Sventon? É o único detetive sueco que conheço.
– Podemos ignorar as bandas desenhadas – disse Wallander. Estou a falar disto a sério.
– Eu também. Nunca ouvi falar que o meu pai se dedicasse a essas coisas. O que fazia? – É demasiado cedo para falar disso.
Wallander estava agora convencido de que, na verdade, ela desconhecia as atividades secretas do pai. Havia, claro está, uma possibilidade de Wallander estar enganado por completo, que as circunstâncias não eram um fato, mas sim um erro. Mas agora, no seu íntimo, julgava não estar enganado. A descoberta do espaço secreto de Gösta Runfeldt não significava para a investigação nenhum avanço que permitisse imediatamente vislumbrar todas as consequências. O local secreto em Harpegatan talvez os levasse apenas a outros locais secretos, mas Wallander tinha tido a sensação de que abalara toda a investigação. Tinha surgido um abalo imperceptível, tudo tinha começado a mover-se.
Ergueu-se da cadeira.
– É tudo – concluiu, e estendeu-lhe a mão. – Tornaremos a ver-nos certamente.
Ela olhou-o seriamente.
– Quem fez aquilo? – perguntou.
– Não sei – disse Wallander. – Mas estou convencido de que vamos apanhar a pessoa ou pessoas que mataram o seu pai.
Hansson acompanhou-o ao corredor.
– Detetive privado. Aquilo era mesmo brincadeira?
– Não – respondeu Wallander. – Encontramos um escritório secreto que pertencia a Runfeldt. Mais tarde vais saber mais sobre isso.
Hansson anuiu.
– Ture Sventon não era quadrinhos – disse a Seguir. – Era uma coleção de livros.
Nessa altura, Wallander já tinha ido embora. Foi buscar uma xícara de café e fechou a porta da sala. O telefone tocou. Levantou o fone sem responder. O que mais queria era fugir do comunicado à imprensa. Tinha demasiadas coisas em que pensar. Puxou pelo bloco de apontamentos fazendo uma careta e apontou os fatos principais que podia comunicar à imprensa.
Encostou-se na cadeira e olhou pela janela. Lá fora o vento soprava. Se o assassino falar uma linguagem podemos tentar responder-lhe, pensou Wallander. Se for como penso, que quis mostrar aos outros o que fez, então também podemos contar o que vimos, mas não permitimos que nos assustem.
Fez mais uns apontamentos. Depois levantou-se e foi para o gabinete de Lisa Holgersson. Relatou-lhe resumidamente o que tinha pensado. Ela ouviu-o atentamente e acenou com a cabeça a seguir. Fariam como ele propunha.
O comunicado à imprensa teve lugar na maior sala de reuniões da central. Wallander teve a sensação de ter sido transferido para o verão anterior e para a conferência tumultuosa que o tinha deixado em manifesta fúria. Conhecia muitas caras.
– Estou contente por te teres encarregue disto – sussurrou Lisa Holgersson.
– É como é – respondeu Wallander. – Alguém tem de fazer. Faço apenas a introdução – disse Lisa – O restante é teu. Subiram ao pódio junto a uma das paredes mais estreitas. Lisa Holgersson deu as boas-vindas e passou a palavra a Wallander que sentiu que ja tinha começado a transpirar.
Fez um levantamento minucioso dos homicídios de Holger Eriksson e Gösta Runfeldt. Relatou um número seleccionado de pormenores e o seu próprio ponto de vista, que era o de estarem perante crimes de enorme violência, os mais graves com que ele e os colegas alguma vez tinham lidado. A única informação essencial que não revelou era a descoberta de que Gösta Runfeldt, provavelmente, tinha exercido uma atividade secreta como detetive privado. Também não disse que procuravam um homem que escrevera um diário e que em tempos fora mercenário numa longínqua guerra africana, chamado Harald Berggren.
Por outro lado, disse uma coisa completamente diferente que tinha combinado com Lisa Holgersson.
Anunciou que a Polícia tinha pistas claras a seguir. Não podia fornecer pormenores. Mas havia pistas e indícios. A Polícia tinha delineado um procedimento, no entanto não podia ser revelado por razões técnicas decorrentes da investigação.
A ideia surgiu-lhe quando sentiu que a investigação tinha disparado, um sentimento profundo, quase impossível de registrar, mas no entanto... estava lá.
O pensamento que o atingiu era muito simples.
Quando há um terremoto, as pessoas fogem. Movimentam-se precipitadamente para fora do centro. O criminoso, ou criminosos, no caso de ser mais do que um, queria que o mundo visse que os homicídios tinham sido sádicos e bem preparados. Agora os analistas podiam confirmar que tinham visto. Mas também podiam dar uma resposta mais completa. Tinham visto mais do que eventualmente estava previsto.
Wallander queria obrigar o criminoso a se movimentar. O animal selvagem que se move é mais facilmente visível do que o que se mantém imóvel e se esconde na sua própria sombra.
Wallander tinha, evidentemente, consciência de que podia ser uma opção errada. O tão procurado criminoso podia tornar-se invisível. Apesar disso, achou que a tentativa podia valer a pena. Além disso, tinha obtido a aprovação de Lisa Holgersson para dizer algo que não era totalmente verdade.
Não tinham pistas. Tudo o que tinham eram conhecimentos fragmentados que não estavam interligados.
Quando Wallander parou de falar, vieram as perguntas. Estava preparado para a maioria delas. já as tinha ouvido noutras ocasiões e tinha respondido, e iria ouvi-las novamente, enquanto fosse policial.
Foi só no fim do comunicado à imprensa, quando Wallander começou a ficar impaciente e Lisa Holgersson lhe fizera sinal que era a altura de acabar, que tudo deu uma reviravolta numa direção totalmente diferente. O homem que ergueu o braço e depois se levantou tinha estado sentado ao fundo a um canto. Wallander não o viu e estava prestes a acabar quando Lisa Holgersson lhe chamou a atenção que, pelos vistos, havia mais uma pergunta.
– Venho do jornal Anmarkaren – informou o homem. – Tenho Uma pergunta que gostaria de colocar.
Wallander procurou na memória. Nunca tinha ouvido falar de um Jornal denominado Anmdrkaren. A sua impaciência aumentou.
– De que jornal disse que veio? – perguntou.
– Anmaerkaren.
Começou a notar-se uma inquietação na sala.
– Tenho que confessar que nunca ouvi falar desse jornal senão agora. Que pergunta queria fazer? – Anmarkaren tem velhas origens – respondeu o homem impassível. – Havia um jornal no princípio do século XIX com esse nome. Um jornal de crítica social. Contamos publicar o nosso primeiro número muito brevemente.
– Uma pergunta. – disse Wallander. – Quando tiverem publicado seu primeiro número, responderei a duas perguntas.
Um certo regozijo espalhou-se pela sala. Mas o homem lá no canto continuou impassível. Tinha alguma coisa de pregador. Wallander começou a interrogar-se se o ainda não publicado Anmarkaren não teria eventualmente um caráter religioso. Criptorreligioso, pensou. A nova espiritualidade também chegara a Ystad. SõdersIãtt já está conquistado, agora espera Osterlen.
– Como encara a Polícia de Ystad a decisão dos habitantes de Lodinge de instituir uma milícia popular? – perguntou o homem do canto. Wallander tinha dificuldade em ver o rosto dele.
– Não tenho informação de que os moradores de Lodinge tenham intenção de cometer alguma idiotice coletiva – respondeu Wallander.
– Não é só em Lödinge – prosseguiu o homem impassível. – Há planos para iniciar um movimento popular em todo o país. Uma espécie de organização central das milícias populares. Uma corporação policial popular que proteja os cidadãos, que faça tudo aquilo com que a Polícia não se preocupa, ou não consegue resolver. Um dos pontos de partida seria a área de Ystad.
De repente fez-se silêncio absoluto na sala.
– Por que se dá a Ystad essa honra? – perguntou Wallander. Ainda não estava seguro se deveria levar a sério o homem do jornal Anmarkaren.
– No decurso de poucos meses aconteceu um grande número de assassínios brutais. Temos de admitir que a Polícia conseguiu esclarecer o que aconteceu no verão passado. Mas agora parece ter começado novamente. As pessoas querem viver enquanto vivem, não como memórias na consciência de outros. A Polícia sueca baixou os braços perante a criminalidade que ressurge novamente dos seus esconderijospor isso a milícia popular é a única possibilidade de resolver o problema da segurança.
– Quando as pessoas tomam a lei nas suas mãos, nunca resolvem o problema – disse Wallander. – Da parte da Polícia de Ystad há apenas uma resposta. E é clara e tem apenas um significado. Todos conseguem compreendê-lo. Todas as iniciativas privadas de instaurar uma autoridade de segurança vão ser recebidas da nossa parte como ilegais e iremos interferir.
– Devo interpretar isso como sendo contra a milícia popular? – perguntou o homem no canto.
Wallander conseguiu agora ver a sua cara pálida e magra. Decidiu memorizá-la.
– Sim – respondeu. – Deve interpretar que nós somos contra todas as tentativas de se organizar uma milícia popular.
– Não se interroga sobre o que as pessoas de Lõdinge pensarão disso?
– Talvez me interrogue – respondeu Wallander. – Mas não tenho medo da resposta.
Depois acabou abruptamente a reunião com a imprensa.
– Achas que estava falando a sério? – perguntou Lisa Holgersson quando se encontravam sozinhos na sala.
– Talvez – respondeu Wallander. – Devemos estar atentos ao que vai acontecendo em Lödinge. Se se der o caso de haver pessoas que abertamente surgem a exigir uma milícia popular, a situação altera-se. Então podemos ter problemas.
Já eram sete horas. Wallander despediu-se de Lisa Holgersson e foi para o seu gabinete. Sentou-se na cadeira. Precisava de pensar. Não conseguia lembrar-se da última vez que tinha tido tão pouco tempo para a reflexão e revisão dos assuntos durante uma investigação.
O telefone tocou. Respondeu imediatamente. Era Svedberg.
– Como correu a reunião com a imprensa? – perguntou.
– Foi só um pouco pior do que habitualmente. Como correu com vocês? – Pensei que vinhas cá. Encontramos uma máquina fotográfica com um rolo. Nyberg está cá. Vamos revelá-lo.
– Podemos confirmar que levou uma vida dupla como detetive privado? – Julgamos que sim. Mas além disso, julgamos outra coisa.
Wallander esperou excitado pela continuação.
– Achamos que o rolo contém imagens do seu último cliente.
O derradeiro, pensou Wallander. Não o último. Mas sim o derradeiro.
– Vou aí – anunciou.
Deixou a central debaixo de uma borrasca. As nuvens enchiam o céu e corriam em alta velocidade. Enquanto se dirigia ao automóvel, interrogou-se sobre se as aves migratórias voariam de noite com um vento tão forte.
A caminho de Harpegatan parou para se abastecer de gasolina. Sentia-se cansado e vazio. Interrogou-se quando iria ter tempo para ver casas. E pensar no pai. Ainda se questionou quando viria Balba.
Olhou para o relógio. Era o tempo ou a sua vida que passava? Estava demasiado cansado para decidir qual.
Depois ligou o motor. O relógio marcava cinco minutos depois das sete e meia.
Logo a seguir, estacionou em Harpegatan e dirigiu-se a cave.
Foi com muita curiosidade que viram a imagem a surgir no banho da revelação. Wallander, que regressara da reunião com a imprensa, não sabia o que esperar, nem tão pouco o que ansiava quando se encontrou ao lado dos seus colegas na câmara escura. A luz vermelha deu-lhe a sensação de estarem à espera de que algo promíscuo surgisse. Nyberg encarregava-se do trabalho de revelação. Saltitava com a bengala, devido ao acidente à frente da central. Quando Wallander regressou a Harpegatan, Ann-Britt sussurrou-lhe que Nyberg estava invulgarmente rabugento.
Porém, durante o tempo que Wallander dedicara aos jornalistas tinham feito progressos. Já não havia dúvidas de que Gösta Runfeldt tinha exercido atividades como detetive privado. Nos vários registros de clientes que encontraram conseguiram ver que exercia há, pelo menos, dez anos. Os registros mais antigos eram de setembro de 1983.
– A atividade foi limitada – disse Ann-Britt Höglund. – Teria no máximo sete ou oito casos por ano. Poderíamos deduzir que foi algo com que se entreteve no tempo livre.
Svedberg tinha feito um resumo incompleto sobre os casos de que Runfeldt se tinha encarregue.
– Em cerca de metade dos casos tratava-se de suspeitas de infidelidade – disse, após ter consultado os seus apontamentos. – Curiosamente há mais homens que desconfiam das suas mulheres.
– Por que achas curioso? – perguntou Wallander.
Svedberg concluiu que não tinha nenhuma boa resposta para dar.
– Só achava que não era assim – disse, apenas. – Mas o que sei eu disso? Svedberg era solteiro e nunca tinha falado sobre alguma relação com uma mulher. Tinha mais de quarenta anos e parecia estar em paz com a sua vida de solteirão.
Wallander fez-lhe sinal para prosseguir.
– Há pelo menos dois casos por ano em que um empresário desconfia que o pessoal comete roubos – informou Svedberg. – Também nos temos deparado com alguns casos de vigilância pouco claros. Ao todo dá uma imagem relativamente repetitiva. Os seus registros não são muito pormenorizados, mas cobrava muito dinheiro.
– Então, temos pelo menos resposta de como podia fazer as suas caras viagens ao estrangeiro. Comprar a viagem para Nairobi custou-lhe 30.000 coroas, e nunca chegou a fazê-la.
– Tinha um trabalho na altura em que morreu – disse Ann-Britt Höglund.
Colocou um calendário na secretária. Wallander sentiu a falta dos óculos que ainda não tinha arranjado. Não se preocupou a olhar para o calendário.
– Parece ter sido um dos casos mais frequentes – prosseguiu. Uma pessoa que apenas é chamada "Senhora Svensson" desconfia de que o marido lhe é infiel.
– Aqui em Ystad? – perguntou Wallander. – Ou também trabalhava noutras áreas?
– Em 1987 tem um caso em Markaryd – disse Svedberg. – Não há nada mais ao norte. A seguir só se move na área da Scania. Em 1991 vai à Dinamarca duas vezes e uma vez a Kiel. Ainda não tive tempo de ver os pormenores, mas trata-se de um chefe de máquinas num ferry que parece ter tido um caso com uma empregada de mesa que também trabalhava no ferry. A mulher dele em Skanõr pelos vistos estava certa na sua desconfiança.
– Mas de resto só tem exercido na área de Ystad? – Não diria isso – replicou Svedberg. – Sul e leste da Scania é provavelmente uma resposta mais acertada.
– Holger Eriksson? – perguntou Wallander. – Encontraram o nome dele? Ann-Britt Höglund olhou para Svedberg que abanou a cabeça.
– Harald Berggren? – Também não.
– Encontraram alguma coisa que possa sugerir uma relação entre Holger Eriksson e Gösta Runfeldt? A resposta foi negativa. Não tinham encontrado nada. "Tem de haver", pensou Wallander. É absurdo que houvesse dois criminosos diferentes.
É igualmente absurdo que tenham sido vítimas por acaso. Há uma relação, só que ainda não a encontramos.
– Não entendo – disse Ann-Britt Höglund. – Não pode haver dúvidas de que é um apaixonado por flores e simultaneamente dedica tempo à atividade de detetive privado.
– As pessoas raramente são o que julgamos serem – respondeu Wallander, e interrogou-Se sobre se também seria o caso dele.
– Portanto, parece que ganhou bastante dinheiro com essa atividade – disse Svedberg. – Mas se bem me lembro, não relatou nenhum rendimento ao fazer as suas declarações. Poderá ser tão simplesmente que ele tenha mantido isso em segredo para que as Finanças não pudessem descobrir essa atividade.
– Duvido – disse Wallander. – Ser detetive privado é provavelmente, na opinião da maioria, alguma coisa bastante duvidosa.
– Ou infantil – disse Ann-Britt Höglund. – Uma brincadeira para homens que nunca cresceram.
Wallander sentiu uma ligeira vontade de se opor. Mas como não sabia o que dizer, não disse nada.
A imagem que surgiu representava um homem numa fotografia, tirada no exterior. Nenhum deles conseguiu identificar o local.
O homem, que rondava os seus cinquenta anos, tinha cabelo ralo e curto. Nyberg calculou que tinha sido tirada a grande distância. Alguns dos negativos eram pouco nítidos o que podia significar que Gösta Runfeldt tinha utilizado uma teleobjetiva sensível ao menor movimento.
– A senhora Svensson contata-o pela primeira vez no dia 9 de setembro – disse Ann-Britt Höglund. – Nos dias 14 e 17 de setembro, Runfeldt anotou que "estava a trabalhar no caso".
– É apenas uns dias antes da viagem para Nairobi – observou Wallander.
Saíram da câmara escura. Nyberg sentara-se à secretária e analisava um certo número de dossiês de documentos que continham fotografias.
– Quem é o cliente? – perguntou Wallander. – Senhora Svensson? – O registro de clientes e anotações é vago – disse Svedberg. – Parece ter sido um detetive de poucas escritas, pois nem sequer existe o endereço da senhora Svensson.
– Como se contrata um detetive privado? – perguntou Ann-Britt Höglund. – Tem que divulgar a sua atividade, não é? – Já vi anúncios em jornais – disse Wallander. – Talvez não no Allehanda de Ystad. Mas nos jornais nacionais. De alguma maneira, deve ser possível chegar a esta senhora Svensson.
– Falei com o porteiro – disse Svedberg. – Pensava que Runfeldt tinha uma espécie de armazém aqui. Nunca viu pessoas visitarem o local.
– Provavelmente encontrava-se com os seus clientes noutros locais – disse Wallander. – Este local foi o espaço secreto da sua vida. Analisaram em silêncio o que ele disse. Wallander tentou determinar o que era agora o mais importante. Simultaneamente reparou que o comunicado à imprensa não lhe saía da cabeça. O homem do jornal Anmãrkaren preocupava-o. Seria realmente verdade que se estava a formar uma organização nacional de milícia popular? Caso assim fosse, Wallander sabia que era muito curto o caminho para essas pessoas começarem a fazer justiça com as próprias mãos. Sentiu necessidade de contar a Ann-Britt Höglund e Svedberg o que tinha acontecido, mas deixou ficar pendente. Certamente seria melhor levantar a questão em conjunto durante a próxima reunião na central , porque, de fato, devia ser Lisa Holgersson a fazê-lo.
– Temos que encontrar a senhora Svensson – disse Svedberg. A questão é apenas, como? – Temos que a encontrar – assentiu Wallander. – E vamos encontrá-la. Temos que arranjar alguém para atender as chamadas e estudar de novo toda a papelada. Ela está em algum lado, disso estou convencido. Vou encarregá-los a vocês disso. Por mim, vou ter uma conversa com o filho de Runfeldt.
Deixou Harpegatan e foi para õsterleden. O vento continuava de borrasca e a cidade parecia abandonada. Virou para Harringatan e estacionou junto aos Correios. Depois saiu para o vento novamente. Olhou para si mesmo, como que uma figura patética, um policial com uma camia fina, lutando contra o vento numa cidade sueca deserta no outono. "A justiça sueca", pensou. Do que ainda resta, é assim o seu aspecto. Policiais com frio em camisas finas. Virou à esquerda junto ao Sparbanken e seguiu pela rua que o levava a Sekelgàrden. Tinha anotado que o homem que procurava se chamava Bo Runfeldt. Na recepção estava um jovem sentado a ler.
Wallander acenou com a cabeça.
– Olá – cumprimentou o jovem.
Wallander viu de repente que o conhecia. Levou uns instantes antes de se lembrar que se tratava do filho mais velho do anterior Chefe de polícia, Bjork – Há quanto tempo – disse Wallander. – Como está o pai? – Detesta Malmö.
Não detesta Malmö, pensou Wallander. Detesta ser chefe.
O que estás a ler? – perguntou Wallander.
– Sobre fracções. AL, – Fracções? – É um termo matemático. Estou na Universidade de Lund, isto é apenas trabalho extra.
– Muito bem – disse Wallander. – E não vim cá para alugar um quarto. Mas sim para falar com um dos teus hóspedes, Bo Runfeldt.
– Acaba de chegar.
– Há algum lugar onde possamos conversar sem sermos incomodados? – Esta noite quase não há hóspedes – disse o jovem. – Podem ficar na sala dos pequenos-almoços.
Apontou para o corredor.
– Aguardo lá – disse Wallander. – Liga-lhe para o quarto e diz-lhe quem o espera.
– Vi nos jornais – disse o jovem. – Como é possível que tudo tenha piorado tanto? Olhou para ele interessado.
– O que quer dizer com isso?
– Pior, Mais brutal. É possível querer dizer mais do que isso? – Não sei – respondeu Wallander. – Francamente não sei por que se deu este desenvolvimento. Ao mesmo tempo não acredito no que estou a dizer neste momento, pois na realidade, julgo saber. Na realidade, todos sabem por que se deu esta eclosão.
O filho de Bjork queria continuar a conversa. Mas Wallander levantou a mão em sinal de rejeição e apontou para o telefone. Depois foi até a sala dos pequenos-almoços, pensando na conversa inacabada. Por que é que tudo estava a ficar pior e mais brutal? Interrogou-se por que é que ele próprio tinha tão pouca vontade de responder, mas no fundo sabia muito bem qual era a explicação. Aquela Suécia que era a dele, onde tinha crescido, o país que fora construído depois da guerra, não tinha fundações tão solidamente implantadas como julgavam. Por baixo de tudo existia um lodaçal. já naquela altura a construção de novas zonas residenciais foi descrita como "desumana". Como se podia exigir que as pessoas que lá viviam mantivessem toda a sua "humanidade" intata? A comunidade tornara-se mais dura, as pessoas que se sentiam desnecessárias ou indesejadas no seu próprio país reagiam com agressividade e desprezo. Não havia violência fútil, Wallander sabia isso. Toda a violência tinha um sentido para quem a praticava e só quando se tivesse coragem para admitir essa verdade seria possível ter esperança de virar o desenvolvimento numa outra direção.
Também se interrogou como seria possível funcionar como policial no futuro. Sabia que muitos dos seus colegas ponderavam seriamente procurar outras atividades. Martinsson tinha falado disso várias vezes, Hansson mencionara-o uma vez na cafetaria. E o próprio Wallander tinha, há uns anos, recortado um anúncio no jornal sobre um lugar vago como responsável da segurança numa grande empresa em Trelleborg.
Refletiu sobre o que pensaria Ann-Britt Höglund, que ainda era jovem e seria policial pelo menos mais trinta anos. Pensou perguntar-lhe. Precisava de saber para entender como ele próprio iria aguentar.
Ao mesmo tempo, sabia que o quadro que estava a construir era incompleto, pois entre os jovens, o interesse pela profissão tinha aumentado fortemente nos últimos anos. O interesse parecia manter-se, Wallander estava cada vez mais convencido de que era tudo uma questão de gerações.
Carregava um sentimento vago de que há muito tempo tinha razão. já no princípio dos anos 90 tinha estado frequentemente sentado na varanda de Rydberg, durante as boas e quentes noites de verão, e tinham visionado como seria a polícia do futuro. Mais tarde, durante a doença de Rydberg, continuaram essas conversas. Não tinham posto ponto final nelas, pois nem sempre estavam de acordo. Mas tinham estado sempre de acordo de que a profissão tinha a ver fundamentalmente com a capacidade de conseguir interpretar os sinais do tempo, entender alterações, interpretar as movimentações numa comunidade.
Wallander já naquela altura pensava que, do mesmo modo como tinha razão, também estava errado num ponto fulcral: Não era mais difícil ser policial hoje do que ontem.
Era mais difícil para ele, o que não era a mesma coisa. Foi interrompido nas suas cogitações ao ouvir passos no corredor junto a recepção. Levantou-se e recebeu Bo Runfeldt de pé. Era um homem alto e bem constituído. Wallander avaliou-lhe a idade em 27 ou 28 anos. o aperto de mão era firme. Wallander convidou-o a sentar-se. Descobriu que, como habitualmente, se esquecera de trazer o bloco de apontamentos. Até tinha dúvidas se teria uma caneta com ele. Considerou se devia ir à recepção pedir papel e caneta ao filho de Bjõrk. Mas abandonou essa hipótese. Teria de tentar lembrar-se. Mas o descuido era imperdoável, o que o irritava.
– Tenho que começar por lamentar a sua perda – disse Wallander.
Bo Runfeldt anuiu, mas não disse nada. Os olhos eram intensamente azuis, o olhar um pouco franzido. Wallander pensou que póssívelmente era míope.
– Sei que teve uma longa conversa com o meu colega, o inspector Hansson – prosseguiu Wallander. – Mas também preciso fazer-lhe umas perguntas.
Bo Runfeldt continuava calado. Wallander reparou que o seu olhar era penetrante.
– Se bem entendi, mora em Arvika – disse Wallander. – E é auditor contabilista.
– Trabalho para a Price Waterhouse – respondeu Bo Runfeldt. A sua voz desvendava uma pessoa habituada a expressar-se bem.
– Não soa a sueco? – Também não é. Price Waterhouse é uma das maiores empresas de auditoria, até é mais fácil dar exemplos de países onde não exercemos atividade do que o contrário, – Mas trabalha na Suécia? – Nem sempre. Tenho frequentemente serviços em África e na Ásia.
– Eles precisam de auditores da Suécia? – Não exatamente da Suécia. Mas da Price Waterhouse. Controlarnos muitos projetos de cooperação. Verificamos se o dinheiro é realmente empregue no objetivo proposto.
– E é?
– Nem sempre. Isso tem, na realidade, algo a haver com o que aconteceu ao meu pai Wallander notou que o homem sentado à sua frente mal conseguia ocultar que considerava conversas com um policial muito abaixo da sua dignidade. Em circunstâncias normais Wallander teria ficado zangado. Além do mais, há apenas umas horas tinha sido sujeito a esse tipo de tratamento. Mas sentiu-se inseguro em relação a Runfeldt, havia alguma coisa que o fez retrair-se. Interrogou-se instantaneamente se teria herdado a humildade que o seu pai tantas vezes tinha demonstrado em vida, que fora bem visível em relação aos homens que chegavam nos seus brilhantes carros americanos para lhe comprar os quadros. Nunca tivera esta reflexão senão agora. Talvez fosse esta a herança que recebera do seu pai, um sentimento de valor inferior, oculto por baixo de uma fina camada de verniz democrático.
Observou o homem de olhos azuis.
– O seu pai foi assassinado – disse. – Neste momento sou eu que decido quais são as perguntas que têm interesse.
Bo Runfeldt encolheu os ombros.
– Devo confessar que não sei muito sobre o trabalho de um policial.
– Falei com a sua irmã durante o dia – prosseguiu Wallander. Fiz-lhe uma pergunta a que pode ser atribuída grande importância. Agora vou fazer-lha também. Sabia que o seu pai, além de ser comerciante de flores, também exercia a atividade de detetive privado? Bo Runfeldt ficou imóvel. Depois desatou a rir.
– Foi a coisa mais idiota que já ouvi desde há muito tempo – observou.
– Idiota ou não, é a verdade.
– Detetive privado? – Investigador privado, se preferir. Tinha um escritório e encarregava-se de vários tipos de tarefas de investigação. Exerceu pelo menos durante dez anos.
Bo Runfeldt percebeu que Wallander estava a falar a sério. A sua surpresa foi genuína.
– Deve ter começado a atividade sensivelmente na altura em que a sua mãe morreu afogada.
Wallander sentiu voltar novamente a sensação que tivera quando anteriormente falara com a irmã de Bo Runfeldt. Uma mudança quase imperceptível na sua expressão, como se Wallander tivesse pisado um terreno onde não devia entrar.
– Sabia que o seu pai iria viajar para Nairobi – prosseguiu. – Um dos meus colegas falou com você ao telefone e você não entendeu de todo que ele nunca chegasse a aparecer em Kastrup.
– Falei com ele um dia antes.
– Como parecia então? – Como habitualmente. Falou da viagem.
– Não deu nenhum sinal de preocupação? – Não.
– Deve ter meditado sobre o que teria acontecido. Será que tem alguma explicação póssível para que voluntariamente desistisse da viagem? Ou para vos enganar? – Não existe nenhuma explicação razoável para isso.
Parece que fez a mala e deixou o apartamento. Depois cessam todas as pistas.
Alguém deve ter esperado por ele.
Wallander aguardou um curto instante antes de fazer a próxima pergunta.
– Quem? Não sei.
-– O seu pai tinha inimigos? – Que saiba, não. Hoje em dia não. Wallander reagiu.
O que quer dizer com isso? Hoje em dia não? O que disse. julgo que hoje em dia jà não tinha inimigos. – Pode ser mais explícito? Bo Runfeldt tirou um maço de cigarros do bolso. Wallander reparou que a mão lhe tremia ligeiramente.
– Importa-se que fume? Está à vontade.
Wallander esperou. Sabia que iria prosseguir. Também tinha um pressentimento de que se estava a aproximar de algo importante.
– Não sei se o meu pai tinha inimigos – retomou. – Mas conheço uma pessoa que tinha razões para não gostar nada dele.
– Quem? – A minha mãe.
Bo Runfeldt esperou que Wallander fizesse uma pergunta, mas ele não a fez. Continuou à espera.
– O meu pai era um homem que amava sinceramente orquídeas – disse Bo Runfeldt. – Também era um homem culto. Pode dizer-se que era um investigador botânico autodidata. Mas também tinha outra coisa.
– O quê? – Era um homem bruto. Tratou mal a minha mãe durante os anos em que estiveram casados. Às vezes tão gravemente que necessitava de cuidados hospitalares. Tentamos fazer com que ela o deixasse, mas não foi possível. Batia-lhe, depois ficava ele próprio destruído e ela cedia. Era um pesadelo que parecia não ter fim e a brutalidade cessou apenas quando ela morreu afogada.
– Segundo entendi, caiu num buraco no gelo.
– Também é tudo que eu próprio sei. Foi o que Gösta disse.
– Não me parece que esteja totalmente convencido? Bo Runfeldt esmagou o cigarro meio fumado no cinzeiro.
– Talvez ela tivesse lá ido primeiro abrir um buraco no gelo? Talvez quisesse acabar com tudo? – Pode ser uma possibilidade? – Falava em suicidar-se. Algumas vezes, mas não com frequência, durante os últimos anos de vida. Mas nenhum de nós acreditava, não se acredita. Todos os suicídios são, no fundo, inexplicáveis para os que deviam ter visto e entendido o que estava para acontecer.
Wallander pensou na sepultura com estacas, nas tábuas serradas até meio. Gösta Runfeldt tinha sido um homem bruto, tinha sujeitado a mulher a maus tratos. Procurou intensivamente o significado daquilo que Bo Runfeldt contara.
– Não sinto pena pelo meu pai – prosseguiu Runfeldt. – Também não acho que a minha irmã o sinta pois ele era um homem bruto. E fez a minha mãe sofrer até ela perder a vida.
– Nunca foi bruto para vocês? – Nunca. Só para ela.
– Por que a tratava tão mal? – Ignoro, sei é que não se deve falar mal dos mortos, mas ele era um monstro.
Wallander refletiu.
– Alguma vez lhe ocorreu que o seu pai a poderia ter morto? Que não fora um acidente? A resposta de Bo Runfeldt foi rápida e decidida.
– muitas vezes. Mas evidentemente não é possível provar. Não havia testemunhas. Estavam sozinhos no lago naquele dia de inverno.
– Como se chama o lago?
– Stangsjön. Não é longe de Minhult, no sul da região de Smâland. Wallander refletiu. Será que tinha mais perguntas? Era como se a investigação em curso tivesse apertado o seu próprio pescoço. As perguntas deviam ser muitas. Eram, de fato. Mas não havia a quem perguntar.
– O nome Harald Berggren diz-lhe alguma coisa? Bo Runfeldt refletiu antes de responder.
– Não, nada. Mas posso estar errado. É um nome vulgar.
– O seu pai alguma vez teve contato com mercenários? – Não, que o saiba. Mas lembro-me de que falava frequentemente da Legião Estrangeira quando eu era pequeno. Não à minha irmã, mas a Mim.
– O que lhe contava? – Aventuras. Entrar na Legião Estrangeira talvez tivesse sido um sonho imaturo que tivera em tempos, mas tenho a certeza absoluta de que nunca teve nada com eles, ou com outros mercenários.
– Holger Eriksson? Ouviu falar nesse nome? – O homem que foi assassinado uma semana antes do meu pai? Vi nos jornais. Mas tanto quanto sei o meu pai nunca teve nada a ver com ele. As nossas relações não eram muito próximas.
Wallander assentiu. Não tinha mais perguntas.
– Quanto tempo fica aqui em Ystad? – Assim que tivermos tudo resolvido fazemos o funeral. Temos que decidir o que fazer com a loja.
– É muito possível que o contate novamente – disse Wallander, levantou-se.
Wallander deixou o hotel quando eram quase nove horas. Sentiu fome. O vento forte abria-lhe o casaco. Parou ao abrigo de uma esquina e tentou decidir o que fazer. Sabia que devia comer, mas também sentia que em breve tinha que se sentar e tentar arrumar as suas reflexões. As análises que se entrelaçavam tinham começado a rodar. Agora o risco de perder o norte era grande, pois continuava à procura do ponto onde as vidas de Holger Eriksson e Gösta Runfeldt se cruZavam. Estava algures num passado obscuro. Talvez já o tenha visto ou passado por ele sem o notar.
Foi buscar o automóvel e regressou à central. Já no carro telefonou a Ann-Britt Höglund. Ela informou-o de que ainda estavam a inspecionar o escritório, mas que tinham mandado Nyberg para casa porque estava com muitas dores no pé.
– Estou a caminho do meu gabinete após uma interessante conversa com o filho de Gösta Runfeldt – disse Wallander. – Necessito de tempo para a recapitular.
– Não basta que vasculhemos os nossos papéis – respondeu Ann-Britt Höglund. – Também precisamos de alguém que pare para pensar.
Não percebeu se ela tinha sido irónica com a última coisa que disse, mas afastou o pensamento. Não tinha tempo.
Hansson estava no gabinete a analisar parte do material que tinham começado a juntar. Wallander ficou parado à porta. Tinha uma caneca de café na mão.
– Onde estão os relatórios da Medicina Legal? – perguntou de repente. – Devem ter chegado. Pelo menos de Holger Eriksson.
– Provavelmente estão no gabinete de Martinsson. Tenho uma vaga ideia de ele ter mencionado algo sobre isso.
– Ainda está aqui?
– Foi para casa. Gravou um registro num disquete e vai continuar trabalhando em casa.
– Isso é efetivamente permitido? – perguntou Wallander distraído. – Levar material de investigação para casa?
– Não sei – respondeu Hansson. – Nunca o considerei. Nem sequer tenho um computador em casa. Mas isso, hoje em dia, pode ser uma falha profissional!
– O que seria uma falha profissional?
– Não ter um computador em casa.
– Neste caso, partilhamos essa falha profissional – disse Wallander. – Gostava muito de ver aqueles relatórios amanhã de manhã.
– Como foi com Bo Runfeldt?
– Vou fazer os meus apontamentos esta noite, pois, de fato, falou de coisas que podem ter importância. Mas sabemos agora com segurança que Gösta Runfeldt dedicava parte do seu tempo à tarefa de detetive privado.
– Svedberg telefonou e contou.
Wallander tirou o telefone do bolso.
– Como vivíamos antes sem ele? Quase já não me lembro.
– Precisamente como agora – respondeu Hansson –, mas levava mais tempo. Procurávamos cabinas telefônicas. Passávamos muito mais tempo no carro. Mas fazíamos exatamente as mesmas coisas de agora.
Wallander passou pelo corredor para o seu gabinete. Cumprimentou policiais da segurança pública que saíam da cafetaria. No gabinete sentou-se na sua cadeira sem desabotoar o casaco. Só o despiu passados dez minutos e então puxou de um caderno de apontamentos novo.
Demorou mais de duas horas para fazer um resumo minucioso dos dois homicídios. Tinha tentado orientar dois barcos ao mesmo tempo. Durante todo o tempo procurou o ponto de encontro que sabia ter que existir. Quando jà passava das onze horas, largou a caneta e recostou-se na cadeira. Tinha alcançado um ponto onde não conseguia ver mais além.
Mas tinha a certeza de que a relação existia, só que não a tinha descoberto.
Ainda havia outra coisa.
Repetitivamente regressava a observação que Ann-Britt Höglund tinha feito. Havia algo demonstrativo na execução. Tanto a respeito da morte de Holger Eriksson entre as estacas afiadas, como com Gösta Runfeldt, que fora estrangulado e abandonado atado a uma árvore. – Vejo algo, pensou, que não consigo penetrar. Meditava sobre o que poderia ser, mas não encontrou resposta.
Perto da meia-noite apagou a luz da sala. Ficou quieto na escuridão.
Por enquanto era apenas como um pressentimento, um vago receio no fundo do seu cérebro.
Acreditava que o criminoso atacaria novamente. Parecia-lhe ter detectado um único sinal durante a análise que fizera.
Faltava alguma coisa em tudo o que até agora tinha acontecido.
O que era não sabia.
No entanto, tinha a certeza.
18
Esperou até as duas e meia da madrugada. Ela sabia por experiência própria que o cansaço se aproximava furtivamente. Lembrava-se das noites em que ela própria tinha trabalhado à noite e sempre fora assim.
O risco de passar pelas brasas era maior entre as duas e as quatro. Estava à espera na rouparia desde as nove da noite. Da mesma maneira que da primeira vez, entrara pela porta principal do hospital, ninguém tinha reparado nela, numa enfermeira com pressa. Talvez tivesse saído para tratar de um assunto? Ou fora buscar algo esquecido no carro? Ninguém reparou nela porque não havia nada de estranho nela. Tinha considerado se deveria mascarar-se ou talvez pôr uma peruca? Mas seria uma manifestação de cautela exagerada. Na rouparia, que lhe lembrava vagamente a sua infância pelo cheiro a lençóis lavados e passados, tivera muito tempo para pensar. Ficara sentada na escuridão, apesar de não ter alguma importância se tivesse a luz acesa. Só depois da meia-noite tirou a lanterna de bolso, aquela que também usava no seu trabalho, e leu a última carta que a mãe lhe tinha escrito. Estava inacabada, tal como todas as outras que Françoise Bertrand lhe tinha enviado. Mas foi na última carta que a mãe tinha começado a falar de si própria. Sobre os acontecimentos que a fizeram tentar o suicídio. Compreendeu que a mãe nunca tinha ultrapassado a sua própria amargura. Como um barco à deriva ando pelo Mundo, escrevera. Sou um holandês voador de alma perdida, obrigada a apaziguar a culpa de outra pessoa. Julgava que a idade iria acrescentar distância às distâncias, as memórias tornar-se-iam cada vez mais vagas, empalideceriam e talvez mesmo desaparecessem. Mas agora entendo que não é assim. Só com a morte consigo pôr ponto final. E como não quero morrer, por enquanto, também escolho ter que recordar.
A data da carta era do dia anterior a se ter hospedado com as freiras francesas, o dia antes de sombras terem surgido na escuridão e a terem morto.
Depois de ler a carta, apagou a lanterna. Estava tudo muito silencioso. Por duas vezes alguém passou no corredor. A rouparia estava situada numa área só parcialmente em uso.
Tivera muito tempo para pensar. Na sua agenda tinha anotado três dias livres e só dentro de 49 horas entraria ao serviço, precisamente às 17h44. Tinha tempo e ia utilizá-lo. Até agora tudo tinha corrido como previsto. As mulheres só erravam quando pensavam como os homens, sabia isso há muito tempo. E achava que nesta altura já o tinha confirmado.
No entanto, havia algo que a perturbava. Que sabotava o seu plano. Seguira atentamente tudo o que se tinha escrito nos jornais. Ouvira as notícias da rádio e acompanhara as notícias nos diferentes canais de televisão.
Para ela, era óbvio que os policiais não entendiam nada. Também fora sua intenção não deixar qualquer pista, desviar os cães do trilho onde deviam procurar. Mas agora era como se sentisse impaciência perante tanta incapacidade. Os polícias nunca iriam entender o que tinha acontecido. Nas suas atuações tinha criado enigmas que iriam entrar na História. Mas na memória a Polícia teria sempre procurado um homem que tivesse cometido estes crimes. já não queria que fosse assim.
Estava na rouparia às escuras e traçava um plano. Daqui em diante iria fazer algumas alterações. Nada que alterasse o plano. Havia sempre uma margem de manobra, mesmo quando não era perceptível superficialmente.
Iria dar uma cara ao enigma.
Quando o relógio marcava duas e meia, saiu da rouparia. O corredor do hospital estava deserto. Compôs a roupa de trabalho branca e dirigiu-se à escada que conduzia à maternidade. Sabia que, como habitualmente, só se encontravam quatro pessoas de serviço. Durante o dia estivera no local e fingira perguntar por uma mulher que ela sabia que já tinha regressado a casa com o filho. Por cima do ombro da enfermeira viu no registro que todos os quartos estavam ocupados. Tinha dificuldade em entender por que as mulheres tinham filhos nesta altura do ano, quando o outono caminhava para o inverno. Mas sabia a resposta, que as mulheres continuavam a não escolher quando queriam ter filhos.
Quando chegou às portas de vidro que conduziam à maternidade, parou e espreitou cuidadosamente para o escritório. Segurou a porta entreaberta. Não se ouviam vozes, o que significava que a parteira e as enfermeiras estavam ocupadas. Iria levar menos do que quinze segundos a ir até ao quarto onde estava a mulher que queria visitar. Provavelmente não se iria cruzar com ninguém. Mas não podia ter a certeza. Tirou a luva do bolso que ela própria tinha feito e enchido as pontas dos dedos com chumbo que tinha enformado de maneira a seguir os contornos até a articulação. Calçou-a na mão direita, abriu a porta e entrou rapidamente no serviço. O escritório estava vazio, um rádio estava a tocar algures, andou com rapidez e sem se ouvir até ao quarto certo. Entrou e a porta fechou sem barulho.
A mulher deitada na cama estava acordada. Tirou a luva e meteu-a no bolso. No mesmo bolso da carta da sua mãe. Sentou-se na beira da cama. A mulher estava muito pálida e a sua barriga elevava-se sob o lençol. Agarrou a mão da mulher.
– Já te decidiste? – perguntou.
A mulher anuiu com a cabeça. Sentada na beira da cama não ficou surpreendida, mas sentiu uma espécie de triunfo. Mesmo as mulheres que eram mais espezinhadas podiam ser novamente devolvidas à vida.
– Eugen Blomberg – anunciou. – Mora em Lund. É pesquisador na universidade. Não sei como explicar mais em pormenor o que ele faz. Fez uma carícia na mão da mulher.
– Encarrego-me de saber – disse. – Não precisas pensar nisso.
– Detesto esse homem – observou a mulher deitada.
– Sim – disse a mulher sentada na beira. – E tens razão para isso.
– Se pudesse, o mataria.
– Sei, mas não podes. Pensa antes no teu filho.
Inclinou-se e acariciou a face da mulher. Depois ergueu-se e calçou a luva. Não esteve no quarto mais do que dois minutos. Cuidadosamente abriu a porta. Não se via nenhuma parteira ou enfermeira, e de novo caminhou na direção da porta de saída.
Precisamente quando estava passando pelo escritório, uma mulher saiu de lá. Foi azar, mas paciência. A mulher olhou para ela. Era uma mulher já de uma certa idade, provavelmente uma das duas parteiras.
Prosseguiu para a porta de saída. Mas a mulher a chamou, correu atrás dela e alcançou-a. Pensou apenas em continuar e desaparecer pela porta. Mas a mulher a agarrou pelo braço e perguntou-lhe quem era e o que estava fazendo. Era lamentável que as mulheres tivessem sempre que ser tão complicadas, pensou. Depois virou-se rapidamente e bateu-lhe com a luva. Não a queria ferir, não queria bater com força demais e teve cuidado em não atingir as fronte, podia ser fatal. Bateu numa das faces da mulher, com força bem medida, o suficiente para que ficasse estupefata e largasse seu braço. A mulher emitiu um gemido e caiu ao chão. Deu a volta para prosseguir quando sentiu duas mãos a volta da sua perna. Ao voltar-se percebeu que tinha batido com demasiada brandura. Simultaneamente ouviu uma porta abrir no fundo do corredor. Ia perdendo o controle da situação. Puxou a perna e inclinou-se para bater mais uma vez. Então a mulher arranhou-a na cara. Desta vez bateu sem pensar se era com excesso de força ou não, diretamente na fronte. A mulher largou sua perna e ficou estendida no chão. Fugiu pela porta de vidro, sentindo que as unhas lhe tinham feito arranhões no rosto. Correu.
Ninguém a chamou. Limpou o rosto. A manga branca ficou com manchas de sangue. Meteu a luva no bolso, tirou as socas para conseguir correr mais depressa. Interrogou-se se o hospital teria alguma espécie de alarme interno. Mas saiu do hospital sem se cruzar com ninguém e só quando jà estava sentada no carro e viu a cara no retrovisor, verificou que os arranhões não eram muitos, nem fundos.
Não tinha corrido exatamente como estava previsto. Tàmém não se podia contar com isso. O mais importante era, apesar de tudo, que agora tinha conseguido convencer a mulher que estava para, ter um filho a desvendar o nome do homem que lhe tinha causado tanto azar. Eugen Blomberg.
Ainda tinha dois dias para iniciar a investigação, fazer um plano e estabelecer um horário. Também não tinha pressa. Levaria o tempo que fosse necessário. Mas calculava que não precisaria mais do que uma semana.
O forno estava vazio. Estava à espera.
19
Pouco depois das oito da manhã de quinta-feira o grupo de investigação estava reunido na sala de reuniões. Wallander também tinha pedido a Per Akeson para assistir. No momento em que ia começar, descobriu que faltava alguém.
– Svedberg? – perguntou. – Ainda não veio?
– Veio e foi embora – respondeu Martinsson. – Pelos vistos houve um assalto no hospital a noite passada. Calculou que devia regressar em breve.
Uma imagem leve passou pela memória de Wallander sem que conseguisse captá-la. Estava relacionada com Svedberg e com o hospital.
– Isto confirma a necessidade de mais pessoal – disse Per Akeson.
– Provavelmente não podemos fugir dessa discussão por muito mais tempo. Infelizmente.
Wallander sabia o que ele queria dizer. Por várias vezes ele próprio e Per Akeson tinham discordado quando se tratava da avaliação sobre pedir mais pessoal ou não.
– Adiamos essa discussão para o fim – disse Wallander. – Vamos começar por tentar descobrir onde na realidade nos situamos neste emaranhado.
– Recebemos uns telefonemas de Estocolmo – informou Lisa Holgersson. – Penso que não é preciso dizer de quem. Estes acontecimentos violentos afetam a imagem de policiais simpáticos próximos da população.
Por instantes sentiu-se uma mistura de desconsolo e regozijo na sala, mas ninguém fez comentários ao que foi dito por Lisa Holgersson. Martinsson bocejou sonantemente e Wallander serviu-se disso como um sinal de arranque.
– Estamos todos cansados – comentou. – A maldição do policial é a falta de sono, pelo menos ocasionalmente.
Aqui foi interrompido pelo abrir da porta. Nyberg entrava e Wallander sabia que ele tinha estado ao telefone com o laboratório técnico criminal de Linkõping. Cambaleou até a mesa apoiado na sua bengala.
– Como vai o pé? – perguntou Wallander.
– Pelo menos é melhor do que ser espetado em estacas importadas da Tailândia – respondeu.
Wallander fitou-o com curiosidade.
– De certeza? Vêm mesmo de Tailândia? – Sim. Foram importadas como canas de pesca e material de decoração via uma empresa comercial de Bremen. Falamos com o representante sueco. Importam-se mais do que cem mil canas por ano. É impossível dizer onde foram compradas, acabo de falar com Linkõping, pelo menos podem ajudar-nos a saber há quanto tempo estão no país. O bambu é importado quando tem uma determinada idade.
Wallander acenou com a cabeça.
– Mais alguma coisa? – perguntou, ainda virado para Nyberg.
– No que se refere a Eriksson ou Runfeldt? – Ambos, por essa ordem.
Nyberg abriu o seu bloco de apontamentos.
– As tábuas do pontão vêm do armazém de material de construção de Ystad – começou. – Se isto nos serve para alguma coisa. o local do crime está limpo de objetos que eventualmente nos pudessem servir. Da parte de trás da encosta onde estava a torre de observação há um caminho pantanoso, podemos partir do princípio de que o assassino se tenha servido dele, no caso de ter ido de automóvel, o que provavelmente fez. Temos amostras de todas as marcas e pneus que encontramos, mas trata-se de um local de crime curiosamente limpo.
E a casa? O problema é que não sabemos o que procuramos. Tudo parece star em boas condições. O assalto que foi participado há cerca de um ano também é um enigma. A única coisa que pode valer a pena observar é que Holger Eriksson mandou instalar um par de fechaduras suplementares nas portas que conduzem diretamente à habitação, há poucos Meses.
– Pode interpretar-se que tenha começado a ter medo – disse Wallander.
– É o que calculo – respondeu Nyberg. – Por outro lado, hoje em dia provavelmente todo mundo instala fechaduras suplementares. Vivemos num tempo favorável a portas blindadas.
Wallander deixou Nyberg e olhou à volta da mesa.
– Vizinhos – disse. – Vários palpites. Quem era Holger Eriksson? Quem poderá ter tido motivos para o matar? Harald Berggren? já é altura de fazer uma análise minuciosa. Levem o tempo que for necessário.
Mais tarde Wallander lembrar-se-ia daquela manhã de quinta-feira como uma subida íngreme sem fim. Cada um apresentou o resultado do seu trabalho e tudo acabou sem se vislumbrar alguma pista. A tela do crime adensava-se. A vida de Holger Eriksson parecia impenetrável e quando finalmente conseguiam uma abertura, não encontravam lá nada. E continuavam, enquanto a subida só ficava mais longa e mais íngreme. Ninguém vira nada, ninguém parecia ter conhecido esse homem que vendia automóveis, observava pássaros e escrevia poemas. Wallander, às tantas, começou a pensar que, apesar de tudo, se tinha enganado, que Holger Eriksson afinal tinha sido vítima de um assassino casual, que por acaso teria escolhido precisamente a sua valeta e serrado precisamente o seu pontão, mas no seu íntimo) sabia que não podia ser assim. O assassino tinha falado uma linguagem, havia uma lógica e uma sequência na maneira de matar Holger Eriksson. Wallander não estava enganado, mas o seu problema era não saber o que, por outro lado, estaria certo.
Estavam completamente encurralados quando Svedberg chegou do hospital. Mais tarde Wallander pensara que naquele momento ele surgira realmente como o salvador do grande desespero, Porque foi quando Svedberg se sentou de um dos lados da mesa e após muito esforço ter conseguido arrumar os seus papeis, que finalmente alcançaram um ponto onde a investigação parecia encontrar uma porta entreaberta.
Svedberg pediu desculpa pela ausência. Wallander achou que devia perguntar o que tinha acontecido no hospital. – É tudo muito estranho – relatou Svedberg. – Pouco antes das três da manhã surgiu uma enfermeira na maternidade. Uma das parteiras, chamada Ylva Brink que, aliás, é minha prima, trabalhou esta noite. Como não reconheceu a enfermeira tentou saber o que ela ali fazia, tendo sido atacada por esta. Ainda para mais, parece que a enfermeira tinha chumbo ou algo semelhante na mão. Ylva desmaiou e quando acordou, a mulher tinha desaparecido. Houve naturalmente grande alarido. Ninguém sabe o que ela foi fazer ali. Perguntaram a todas as parturientes, mas ninguém a tinha visto. Estive lá e falei com o pessoal que trabalhou na noite passada. Estavam evidentemente muito exaltados.
– Como ficou a parteira? – perguntou Wallander. – A tua prima? – Teve um traumatismo craniano.
Wallander estava prestes a regressar a Holger Eriksson quando Svedberg retomou a palavra. Parecia preocupado e coçava nervosamente a careca.
– O que ainda é mais esquisito é que aquela enfermeira já lá tinha estado uma vez anteriormente, numa noite na semana passada. Por acaso, Ylva também trabalhou nessa vez. Ela tem a certeza de que, na realidade, não se trata de uma enfermeira. Ela disfarça-se com um uniforme.
Wallander franziu a testa. Em simultâneo lembrou-se do papel que durante uma semana tinha tido em cima da mesa.
– Falaste com Ylva Brink também daquela vez? – perguntou. fizeste uns apontamentos.
– Deitei fora o papel – disse Svedberg. – Como não aconteceu nada naquela vez, pensei que não valia a pena ligar. Temos coisas mais ímportantes para nos entretermos.
– Acho que parece bem desagradável – disse Ann-Britt Höglund. Uma falsa enfermeira que entra na maternidade de noite e não hesita em utilizar a violência deve significar alguma coisa .
– A minha prima não a reconheceu. Mas conseguiu dar uma descrição relativamente boa do seu aspecto. Tem uma constituição forte e decididamente tem muita força.
Wallander não disse nada do fato de ter o papel de Svedberg em cima da sua secretária.
– Parece estranho – limitou-se a observar. – Que medidas toma o hospital? – Por enquanto tem intenções de contratar uma empresa de segurança. Depois aguardam para ver se aquela falsa enfermeira aparece novamente ou não.
Deixaram os acontecimentos da noite. Wallander olhou para Svedeberg e pensou desolado que ele certamente só iria aumentar a sensação de que a investigação estava parada. Mas enganou-se, afinal Svediberg tinha notícias a dar.
– A semana passada falei com um dos funcionários de Holger Eriksson. Ture Karlhammar, 73 anos, residente em Svarte. Escrevi um relatório a respeito disso, que talvez tenham lido. Trabalhou como vendedor de automóveis para Holger Eriksson mais de trinta anos. "Começou por lamentar o sucedido, mas depois disse que Holger Eriksson tinha sido um homem do qual não se podia dizer nada senão bem. A mulher de Karlhammar estava a preparar café. A porta da cozinha estava aberta e de repente entrou, atirou o tabuleiro com o café de maneira que as natas me salpicaram e disse que Holger Eriksson era um sacana. Depois foi embora.
– O que aconteceu a seguir? – perguntou surpreendido Wallander.
– Evidentemente tornou-se um pouco embaraçoso. Mas Karlhammar manteve a sua versão. A seguir fui tentar falar com a mulher. Mas tinha desaparecido.
– O que queres dizer? Desaparecido? – Levou o carro e saiu de lá. Telefonei várias vezes posteriormente, mas ninguém respondia. Mas esta manhã recebi uma carta que li antes de ir ao hospital. Era da mulher de Karlhammar. E se o que ela escreve bater certo, torna-se uma leitura muito interessante.
– Resume – disse Wallander. – Depois podes entregar cópias, – Ela afirma que Holger Eriksson mostrara, muitas vezes na vida, sinais de sadismo. Tratava mal os funcionários e era capaz de perseguir os que optavam por deixar de trabalhar para ele. Repete constantemente que consegue fornecer exemplos sem limite de que o que escreve é verdade.
Svedberg consultou o texto. – Escreve que ele tinha muito pouco respeito pelos outros, era duro e ganancioso. No fim da carta insinua que fazia frequentes viagens à Polónia. Pelos vistos havia lá umas mulheres. Segundo a senhora Karlhammar, elas também seriam capazes de falar. Mas isso pode naturalmente ser intriguice. Como poderia ela saber o que ele fazia na Polónia? – Não insinua nada no sentido de ele poder ter sido homossexual? – perguntou Wallander.
– Estas viagens à Polónia não dão propriamente essa impressão.
– É claro que Karlhammar nunca tinha ouvido falar de um homem chamado Harald Berggren? – Não.
Wallander sentiu necessidade de se espreguiçar. O que Svedberg estava a contar sobre o conteúdo da carta era sem dúvida importante. Pensou que era a segunda vez num espaço de dois dias que lho tinham descrito como um homem brutal.
Propôs um breve intervalo para arejar. Per Akeson ficou na sala.
– Está tudo resolvido agora. Com o Sudão.
Wallander sentiu uma ponta de inveja. Per Akeson tinha tomado uma decisão e atrevera-se a uma ruptura. Por que não fazia a mesma coisa? Por que se satisfazia com a procura de uma casa nova? Agora que o pai tinha morrido, não tinha nada que o prendesse a Ystad. Linda sabia cuidar de si.
– Não precisam de policiais para manter a ordem nos refugiados Como tenho uma certa experiência desse tipo de trabalho daqui de Ystad...
Per Akeson riu.
– Posso perguntar – respondeu. – Os policiais suecos costumam ser integrados em várias brigadas estrangeiras das Nações Unidas. Nada impede que entregues um requerimento.
– Neste momento há uma investigação de homicídio que mo impede. Depois talvez. Quando vais – Depois do Natal. Entre o Natal e o Ano Novo.
– E a tua mulher? Per Akeson abriu os braços.
– Na realidade, julgo que está contente por não ter de me ver uma temporada.
– E tu? Também estás contente por não ter de a ver? Per Akeson hesitou na resposta.
– Sim – disse a seguir. – Acho que vai ser agradável ir-me em<bora. As vezes tenho a sensação de que nunca mais volto. Nunca irei – à índia Ocidental num veleiro feito por mim, nem nunca sonhei com isso. Mas vou ao Sudão e o que acontecerá depois disso, não sei.
– Todos os sonhos de fuga – disse Wallander. – Nós neste país estamos continuamente à caça de novos esconderijos paradisíacos. Às vezes penso que jà não reconheço o meu próprio país.
– Talvez também eu esteja a fugir? Mas o Sudão não parece propriamente um paraíso.
De qualquer maneira, fazes bem em experimentar – disse Wallander. – Espero que me escrevas. Vou sentir a tua falta.
– Há de fato uma coisa que tenho em perspectiva. Escrever cartas.
– Cartas que não façam parte do serviço, mas sim cartas particulares. Pensei que devia descobrir quantos amigos tenho. Os que responderem às cartas que, com um bocado de sorte, irei escrever.
A pequena pausa acabou. Martinsson, que permanentemente tinha receio de se constipar, fechou as janelas. Sentaram-se novamente.
– Vamos esperar para fazer o resumo no fim – disse Wallander. Vamos antes passar para Gösta Runfeldt.
Deixou Ann-Britt Höglund falar da descoberta do local na cave na Harpegatan e o fato de Runfeldt ser detetive privado. Quando nem ela, Svedberg ou Nyberg tinham mais para dizer, quando as fotografias que Nyberg tinha revelado e copiado tinham dado a volta à mesa, falou da sua conversa com o filho de Runfeldt. Reparou que o grupo de investigação mostrava agora uma concentração completamente diferente do que quando tinham começado a reunião que viria a ser prolongada.
– Não consigo afastar a ideia de que estamos nas proximidades de alguma coisa decisiva – finalizou Wallander. – Continuamos à procura de uma ligação. Por enquanto não a encontramos. Mas que significado pode ter o fato de tanto Holger Eriksson como Gösta Runfeldt serem descritos como pessoas brutais? Que significa só agora se desvendar isso? Fez uma interrupção para deixar lugar a comentários e perguntas. Ninguém disse nada.
– É altura de começarmos a intensificar a pesquisa ainda mais prosseguiu. – Há demasiadas coisas de que temos de saber mais. Todo o material recolhido relacionado com estes dois homens tem que ser analisado transversalmente. Vai ser trabalho para Martinsson executar. Depois há umas coisas que se revelam mais importantes do que outras para atacar. Penso no acidente em que morreu afogada a mulher de Runfeldt. A sensação de que pode ser decisivo não me larga. Depois temos a questão do dinheiro que Holger Eriksson doou à igreja de Svenstavik. Vou encarregar-me disso pessoalmente. Significa que pode vir a ser necessário fazer umas viagens. Por exemplo, ao lago lá em cima em Smâland, nos arredores de Älmhult, onde a mulher de Runfeldt morreu afogada. Há algo esquisito em tudo isso, como já disse. Admito que possa estar enganado, mas não podemos deixar o assunto sem tratar dele. Talvez também venha a ser necessário ir a Svenstavik.
– Onde fica? – perguntou Hansson.
– No Sul de Jãmtland. A uns quilómetros da fronteira com HãrJedalen.
– Como estava Holger relacionado com esse lugar? Ele não era de Scania? – É isso mesmo que temos de descobrir – disse Wallander. – Por que não oferece dinheiro a uma igreja aqui na área? Tem algum significado? O fato de ter escolhido uma determinada igreja? Quero saber por quê. Deve existir uma razão muito específica.
Calou-se. Ninguém tinha objeções a apresentar. Iriam continuar a vasculhar na palha. Nenhum deles esperava que a solução viesse de outro modo senão através de trabalho intenso e muita paciência.
já a reunião se arrastava há muitas horas quando o próprio Wallander se decidiu a levantar a questão da necessidade de pessoal. Também se lembrou de que devia dizer algo sobre a proposta que tinha surgido e solicitar ajuda do exterior, de um especialista em psicologia criminal.
– Não tenho nada a objetar contra o apoio na forma de reforço disse. – Temos muito para esclarecer e vai exigir tempo.
– Encarrego-me disso – respondeu Lisa Holgersson.
Per Ákeson acenou sem dizer nada. Durante os anos que Wallander tinha trabalhado com ele nunca acontecera Per Akeson alguma vez repetir o que tinha sido dito. Wallander imaginou vagamente que talvez fosse um mérito para o serviço que iria assumir no Sudão.
– Por outro lado, tenho muitas dúvidas se realmente precisamos de um psicólogo que passe por cima de nós – prosseguiu Wallander, após a questão sobre os reforços estar resolvida. – Sou o priineiro a concordar que Mats Ekholm, que esteve cá no verão passado, foi um bom parceiro de diálogo. Acrescentou argumentos e pontos de vista que nos serviram. Não eram fundamentais mas também não foram insignificantes. Hoje a situação é diferente. A minha proposta é que lhe enviemos os resumos do material de– investigação e ouçamos os seus comentários. E que nos contentemos com isso por enquanto. Se acontecer algo dramático, podemos avaliar novamente a situação.
Também desta vez as propostas de Wallander não foram alvo de obJeção.
Pararam quando já passava da uma. Wallander deixou depressa a central. A prolongada reunião fez-lhe sentir a cabeça pesada. Foi para um dos restaurantes do centro e, enquanto comia, tentou chegar à conclusão do que realmente tinha emergido durante a reunião. Uma vez que em pensamento regressava continuamente à questão sobre o que tinha acontecido naquele dia de inverno nas proximidades de Älmhult havia cerca de dez anos, decidiu seguir a sua intuição. Depois de comer telefonou para o Hotel Sekelgârden. Bo Runfeldt estava no quarto. Wallander pediu ao recepcionista para dar o recado de que iria chegar depois das duas horas. Em seguida foi para a central onde encontrou Martinsson e Hansson que levou para o seu gabinete. Pediu a Hansson para telefonar a Svenstavik.
– Afinal, o que vou perguntar? – Vai diretamente ao assunto. Por que fez Holger Eriksson esta única excepção no seu testamento? Por que quer dar dinheiro precisamente a essa paróquia? Procura o perdão dos seus pecados? Neste caso de quê? E caso haja alguém a murmurar algo sobre confidencialidade então diz que necessitamos das informações para tentar evitar que sejam cometidos mais homicídios deste gênero.
– Pergunto mesmo se ele procura o perdão dos pecados? Wallander desatou a rir.
– Mais ou menos – respondeu. – Descobre o que conseguires. Eu próprio tenho intenções de levar Bo Runfeldt a Ahnhult. Pede a Ebba para reservar quartos em algum hotel em Ãhnhult.
Martinsson parecia ter dúvidas.
– O que há na realidade que julgas que possas ficar a saber olhando para um lago? – perguntou.
– Não sei – respondeu Wallander honestamente. – Mas a viagem dá-me, tempo pelo menos, para falar com Bo Runfeldt. Tenho uma firme sensação de que há informações ocultas que são importantes para nós e que podemos descobrir desde que sejamos suficientemente persistentes. Temos que insistir conseguirmos atravessar para lá da superfície. Além disso, deve haver alguém que estava presente quando o acidente ocorreu. Quero que façam trabalho de campo. Telefona aos colegas em Älmhult. Um acontecimento de há dez anos. Conseguem dados exatos da filha que é treinadora de basquete. Um acidente de afogamento. Contato-vos quando chegar.
O vento ainda era de borrasca, quando Wallander se dirigiu para o carro. Seguiu para Sekelgârden e entrou na recepção. Bo Runfeldt estava sentado numa cadeira à sua espera.
– Vá vestir roupa para saírmos – disse Wallander. – Vamos dar um passeio.
Bo Runfeldt observou-o expectante.
– Para onde vamos?
– Quando estiver no carro, digo-lhe. Logo a seguir deixaram Ystad.
Só depois de passarem pela saída para Hõõr Wallander lhe contou onde iam.
Logo a seguir a ter passado pela vila de Hõõr, começou a chover. Naquela altura já dúvidas tinham assaltado o espírito de Wallander sobre o interesse da viagem, se valeria a pena, na realidade, o incômodo de ir a Älmhult? Que resultado julgava realmente conseguir alcançar? O que poderia ter relevância para a investigação dos crimes? A vaga suspeita de que algo não batia certo com um acidente por afogamento ocorrido dez anos antes? Em todo o caso, no seu íntimo não tinha dúvidas, não esperava uma solução, mas apenas dar mais um passo.
Quando contou a Bo Runfeldt aonde iam, este tinha ficado irritado e perguntado se era uma brincadeira. Que relação poderia ter a trágica morte da mãe com o homicídio do pai? Wallander estava nessa altura atrás de um caminhão que jogava lama em seu para-brisas tornando impossível a ultrapassagem. Respondeu depois de finalmente conseguir passar, numa das raras faixas de ultrapassagem existentes.
– Tanto você como sua irmã não querem falar sobre o que aconteceu – disse. – De certo modo, considero isso natural, pois não se fala desnecessariamente de um acidente trágico. Mas não consigo acreditar que a tragédia seja o motivo da vossa aversão em falar do assunto.
Se me der uma resposta satisfatória aqui e agora, voltamos já. Não se esqueça de que foi você quem falou da brutalidade do seu pai.
– E consequentemente já dei a resposta – retorquiu Bo Runfeldt. Wallander notou uma mudança quase imperceptível na sua voz, um vestígio de cansaço, uma defesa que começara a diminuir.
Escolheu cautelosamente as perguntas enquanto passavam pela paisagem monótona.
– Portanto, a sua mãe tinha falado em cometer suicídio? Levou tempo antes que o homem sentado ao seu lado respondesse.
– De fato, é estranho que não o tivesse feito. julgo que não consegue imaginar o inferno em que foi obrigada a viver. Você não, eu não. Ninguém.
– Por que é que nunca se divorciou? – Ele ameaçava matá-la se o deixasse e ela tinha realmente todos os motivos para acreditar nele. Por várias ocasiões, ficou tão maltratada, que teve de dar entrada no hospital. Naquela altura eu não sabia de nada, só posteriormente compreendi.
– Se os médicos desconfiassem que houvera violência tinham obrigação de participar o caso à Polícia.
– Ela tinha sempre explicações satisfatórias para dar e era convincente. Nem sequer se importava em se rebaixar quando o protegia. Era capaz de dizer que estivera embriagada e caíra, a minha mãe que nunca tocava em álcool. Mas isso os médicos não sabiam, evidentemente.
A conversa parou enquanto Wallander ultrapassou um autocarro. Reparou que Runfeldt estava tenso. Wallander não guiava depressa, mas o seu passageiro tinha um medo evidente de andar de automóvel.
– Acho que por nossa causa, as crianças, é que não se suicidou – acrescentou quando o autocarro já tinha ficado para trás.
– É natural – respondeu Wallander. – Vamos antes regressar ao que disse anteriormente. Que oseu pai teria ameaçado matar sua mãe. Quando um homem inflige maus tratos a uma mulher, não tem, na maioria das vezes, intenção de matar. Fz para controlá-la, mas às vezes bate com excesso de força. Os maus tratos conduzem à morte apesar de não ser essa a intenção. Mas matar realmente alguém tem, na maioria das vezes, outras origens. É um passo mais longe.
Bo Runfeldt respondeu com uma pergunta surpreendente.
– É casado?
– Não mais.
– Batia nela?
– Por que haveria de bater nela?
– Só queria saber.
– De fato, não é de mim que estamos a falar.
Bo Runfeldt ficou calado, como se quisesse dar tempo a Wallander para pensar, lembrar-se com um realismo horrível do seu casamento e daquela vez em que bateu em Mona, numa fúria absurda e descontrolada. Ela caíra, batera com a nuca contra uma ombreira e desmaiara por uns segundos. Nessa vez ela estivera muito perto de pegar numa mala e desaparecer. Mas Linda era ainda muito pequena e Wallander pediu e suplicou. Tinham conversado toda a noite. Ele suplicara. Acabou por ficar, mas o episódio não desapareceu da sua memória. Todavia, tinha dificuldade em se lembrar do que provocara a situação. Qual fora o desentendimento? De onde teria vindo a fúria? já não sabia. Chegou à conclusão de que o tinha bloqueado. Havia poucas coisas na vida de que sentisse mais vergonha do que o que acontecera naquela vez. Entendia bem a relutância em relembrar o caso, talvez até bem de mais.
– Vamos regressar àquele dia há dez anos – sugeriu Wallander passado uns instantes. – O que aconteceu? – Era uma manhã de domingo no inverno – respondeu Bo Runfeldt. – No princípio de fevereiro, exatamente o dia 5 de fevereiro de 1984. Era um frio mas bonito dia de inverno. Costumavam passear aos domingos pela floresta, ao longo de praias ou nos lagos gelados.
– Parece muito idílico – retorquiu Wallander. – Como vou conseguir que isso encaixe no que disse anteriormente? – Evidentemente não se tratava de nenhum idílio, era exatamente o contrário. A minha mãe estava sempre apavorada. Não exagero. Já há muito tinha passado a fronteira onde o medo prevalece e domina a vida. Devia estar mentalmente esgotada, mas se ele queria um passeio domingueiro, então faziam-no. A ameaça da mão fechada estava permanentemente lá. Estou convencido de que o meu pai nunca reparou nesse pavor. Pensava provavelmente que, de cada vez, tudo ficava perdoado e esquecido. Suponho que considerava os maus tratos como exaltações ocasionais, nada mais.
– Julgo entender. O que aconteceu então? – Por que foram para Smáland naquele domingo não sei. Estacionaram num caminho de floresta. Tinha nevado, mas não muito. Depois andaram ao longo do caminho florestal. Saíram para o lago gelado e de repente o gelo estalou e ela caiu. O meu pai não conseguiu tirá-la de lá. Correu para o carro e foi embora para arranjar ajuda, mas evidentemente estava morta quando a encontraram.
– Como teve conhecimento? – Foi ele próprio quem me telefonou, pois eu estava em Estocolmo na altura.
– O que é que se lembra dessa chamada?
– Naturalmente, ele estava muito perturbado.
– De que maneira? – É possível estar perturbado de mais do que uma maneira? – Chorou? Estava chocado? Tente descrever de maneira mais explícita.
– Não chorou. Do meu pai só consigo lembrar com lágrimas nos olhos quando falava de exemplares raros de orquídeas. Tive mais a sensação de querer me convencer de que tinha feito tudo ao seu alcance para salvá-la. O que não seria necessário. Se uma pessoa está em apuros, tenta-se ajudá-la, não é verdade?
– O que disse mais?
– Pediu para tentar encontrar minha irmã.
– Portanto, telefonou primeiro para você?
– Sim.
– O que aconteceu depois?
– Viemos para cá, para a Scania, como agora. O funeral realizou-se uma semana depois. Falei uma vez com um policial que me disse que o gelo devia estar inesperadamente fino. Ainda por cima, a minha mãe não era especialmente corpulenta.
– Disse isso? O policial com quem falou? Que o gelo devia ter estado "inesperadamente fino".
– Tenho boa memória para os pormenores, talvez por ser auditor. Wallander acenou com a cabeça. Passaram por uma placa que anunciava um café nas proximidades. Durante a curta paragem Wallander fez perguntas a Runfeldt sobre o seu trabalho como auditor internacional. Mas ouvia sem atenção de maior. Em vez disso, estava a refletir sobre a conversa que tinham tido no carro. Havia algo na conversa que era importante. No entanto, não tinha conseguido determinar o quê. Quando estava a sair do café, tocou o telemóvel. Era Martinsson. Bo Runfeldt afastou-se para deixar Wallander à vontade.
– Parece que tivemos um pouco de azar – disse Martinsson. Dos policiais que trabalhavam em Älmhult naquela altura, há dez anos, um morreu e o outro reformou-se e mudou-se para õrebro.
Wallander ficou decepcionado. Sem uma autoridade fidedigna a viagem iria perder muito do seu objetivo.
– Nem sequer sei como encontrar o lago – queixou-se. – Não haverá nenhum condutor da ambulância? Os bombeiros não estiveram lá para a tirar?
– Encontrei o homem que ajudou Gösta Runfeldt – disse Martinsson. – Sei como se chama e onde mora. O problema é que não tem telefone.
É possível que haja pessoas neste país que não tenham telefone? Pelo visto... Tem uma caneta? Wallander procurou nos bolsos. Como habitualmente não tinha caneta nem papel... Chamou Bo Runfeldt, que emprestou uma caneta com embutidos em ouro e um cartão de visita.
O homem chama-se Jacob Hoslowskí – disse Martinsson. Ele é uma espécie de excêntrico local e mora sozinho numa cabana não muito afastada do lago que se chama Stângsion e situa-se ao norte de Ãlnihult. Falei como uma pessoa simpática na Câmara Municipal. Contou que Stângs))n consta num painel de informação à entrada da localidade. No entanto, não me conseguiu explicar cabalmente como chegar a Hoslowski. Tens que entrar nalguma casa e perguntar.
– Temos algum sítio onde pernoitar?
– A IKEA tem um hotel onde temos quartos reservados.
– A IKEA não vende mobília?
– Vende. Mas também tem um hotel. A estalagem MEA.
– Aconteceu mais alguma coisa? Estão todos muito ocupados. Mas parece que Hamrén vem de Estocolmo para nos ajudar, Wallander lembrava-se dos dois policiais do foro criminal que os tinham apoiado no trabalho durante o verão. Não se importava nada de os encontrar novamente.
– Ludwigsson, não é?
– Foi vítima de um acidente automóvel e está no hospital. grave? – Vou informar-me. Mas não fiquei com essa impressão. Wallander desligou e devolveu a caneta.
– Parece cara – observou.
– Ser auditor numa empresa como Price Waterhouse é ter uma das melhores profissões existentes – respondeu Bo Runfeldt. – Pelo menos no que se refere ao ordenado e perspectivas futuras. Os pais sensatos aconselham hoje em dia os filhos a tornarem-se auditores.
– Quanto é a remuneração média? – perguntou Wallander.
– A maioria dos que atingiram o nível sénior tem contratos individuais. Que, além do mais, são confidenciais.
Wallander percebeu que isso significava que os ordenados eram muito altos. Ele era dos que também, como toda a gente, ficava estupefato ao tomar conhecimento de prêmios, pacotes salariais e acordos preestabelecidos. O seu ordenado como agente criminal, com muitos anos de experiência, era baixo. Se tivesse optado por escolher um posto no sector privado, poderia ganhar pelo menos o dobro. Ainda assim, não se tinha decidido. Continuava policial, pelo menos enquanto dava para sobreviver com o ordenado. Tinha frequentemente pensado, porém, que a imagem da Suécia podia ser desenhada como uma comparação entre diferentes contratos.
Chegaram a Älmhult às cinco horas. Bo Runfeldt tinha-lhe perguntado se realmente seria necessário pernoitar lá. Wallander não tinha, em concreto, uma resposta satisfatória. Na realidade, Bo Runfeldt poderia ter apanhado o comboio de regresso a Malmö, mas Wallander sustentava que apenas no dia seguinte poderiam visitar o lago porque dentro de pouco tempo estaria escuro. E queria levar Runfeldt até lá.
Depois de se instalarem no hotel Wallander saiu para tentar encontrar a casa de Jacob Hoslowski antes de ficar demasiado escuro. Tinham parado Junto ao painel de informação à entrada de Älmhult. Wallander registrara onde ficava Stângsjõn. Saiu da vila. já havia crepúsculo. Virou à esquerda e outra vez a esquerda. A floresta era densa. A paisagem da Scania já estava longe. Parou quando viu um homem a restaurar um portão junto à estrada, Esse mesmo homem explicou-lhe como devia fazer para chegar a casa de Hoslowski. Wallander prosseguiu. Começou a ouvir um barulho estranho no motor. Pensou que era altura de trocar novamente de carro. O seu Peugeot estava a ficar velho. Interrogou-se sobre como arranjar dinheiro para isso. O carro fora comprado quando o anterior ardera na estrada E65, numa noite acerca de um ano atrás. Também era um Peugeot. Suspeitava de que o próximo também iria ser da mesma marca. Quanto mais avançava na idade mais dificuldade sentia em alterar os seus hábitos.
Parou quando chegou ao cruzamento. Se tinha entendido bem as indicações, devia virar à direita e então chegaria a casa de Hoslowski ao fim de cerca de oitocentos metros adiante. A estrada estava mal conservada. Após cem metros Wallander parou e fez marcha atrás, pois receava ficar atolado. Deixou o carro e foi a pé. As folhas das árvores ao longo do estreito caminho florestal assobiavam. Andava depressa para se manter aquecido.
A casa situava-se junto à estrada, uma cabana velha. O pátio estava cheio de carros de sucata e um galo solitário empoleirado num tronco mirava-o. De uma única janela saía luz. Wallander percebeu que era um candeeiro a petróleo. Hesitou se deveria adiar a visita para o dia seguinte, mas tinha feito muitos quilómetros. A investigação exigia que não se desperdiçasse tempo. Avançou para a porta. O galo estava imóvel em cima do tronco. Bateu à porta e passado poucos instantes ouviu-se um som de arrastar. Abriu a porta. O homem, à luz crepuscular, era mais novo do que Wallander tinha imaginado, provavelmente nem sequer tinha quarenta anos. Wallander apresentou-se.
– Jacob Hoslowski – cumprimentou de volta o homem. Wallander conseguiu perceber um ligeiro, quase imperceptível, sotaque na voz. O homem não estava limpo, cheirava mal. O cabelo e a barba compridos, emaranhados e descuidados. Wallander começou a respirar pela boca.
– Queria saber se posso incomodar por uns minutos – perguntou. – Sou policial e venho de Ystad.
Hoslowski sorriu e deu um passo para o lado.
– Entre. Deixo sempre entrar os que batem à minha porta. Wallander entrou no vestíbulo escuro e logo quase pisou um gato. Depois descobriu que a casa estava cheia de gatos. Em toda a sua vida nunca tinha visto tantos gatos juntos num mesmo lugar. Lembrou-lhe o Forum Romanum em Roma. Contudo, por contraste ao ar livre em Roma, aqui o cheiro era nauseabundo. Abriu a boca para ser capaz de respirar. Depois seguiu Hoslowski para a divisão maior das duas que havia na velha casa. Quase não tinha mobílias na sala, apenas colchões e almofadas, pilhas de livros e um candeeiro solitário num banco. E gatos por todo o lado. Wallander ficou com a sensação desagradável de que todos o fitavam com olhos atentos e que iriam atirar-se a ele a qualquer momento.
– É raro entrar numa casa sem electricidade – comentou Wallander – Vivo fora do tempo – retorquiu Hoslowski simplesmente. Na minha próxima vida vou renascer como gato.
Wallander anuiu com um sinal de cabeça. – Estou vendo – disse sem convicção. – Se entendi bem, há já dez anos que mora aqui.
– Moro aqui desde que deixei o tempo.
Wallander entendeu quão dúbia ia ser a sua pergunta. Contudo a fez.
– Quando foi que deixou o tempo?
– Há muito tempo.
Wallander suspeitava que só podia contar com respostas evasivas. Com um certo esforço sentou-se numa das almofadas esperando que não estivesse cheia de urina de gato.
– Há dez anos uma mulher morreu afogada porque o gelo do lago Stångsjön, aqui perto, partiu quando ela o pisou – prosseguiu. Como não deve ser muito vulgar ocorrerem acidentes de afogamento talvez se consiga lembrar dessa ocorrência? Apesar de, como diz, viver fora do tempo.
Wallander reparou que Hoslowski ou era maluco ou perturbado por alguma espécie de ideias proféticas indefinidas e reagiu positivamente por Wallander aceitar a ideia da existência sem tempo.
– Um domingo de inverno, há dez anos – retomou Wallander. Segundo fui informado o marido veio até aqui à procura de ajuda. Hoslowski acenou com a cabeça, recordava-se.
– Sim, um homem veio bater à minha porta. Queria usar meu telefone.
Wallander olhou à volta.
– Mas não tem telefone? Wallander concordou.
– Então o que aconteceu?
– Indiquei-lhe o caminho para o vizinho mais próximo. Lá há telefone.
– Acompanhou-o?
– Fui ao lago para ver se conseguia tirá-la. Wallander parou e recuou um passo.
– O homem que bateu à porta? Suponho que estivesse muito perturbado?
– Talvez.
– O que quer dizer com "talvez"?
– Recordo-me dele calmo, de um modo inesperado.
– Reparou em mais alguma coisa?
– Não me recordo. Passou-se numa outra dimensão cósmica que foi alterada várias vezes desde então.
– Vamos prosseguir. Foi para o lago. O que aconteceu lá?
– O gelo fazia muito reflexo. Vi o buraco. Fui até lá. Mas não vi nada embaixo do gelo.
– Disse que foi a pé. Não tinha medo que o gelo partisse?
– Sei onde aguenta. Além disso, consigo levitar se for necessário.
Não se consegue falar sensatamente com um maluco, pensou Wallander derrotado. No entanto, prosseguiu com as perguntas.
– Consegue descrever o buraco?
– Foi certamente aberto por um pescador. Talvez tivesse gelado novamente. Mas não houve tempo para o gelo engrossar.
Wallander refletiu. – Os pescadores não abrem buracos menores?
– Este era quase quadrado. Talvez tivesse sido aberto com uma serra.
– Costuma haver pescadores no Stångsiön no inverno?
– É um lago rico em peixe. Também pesco lá, mas não no inverno.
– O que aconteceu a seguir? Ficou junto ao buraco. Não viu nada, então o que fez?
– Tirei a roupa e entrei na agua. Wallander fitou-o.
– Que diabo, por que fez uma coisa dessas?
– Pensei que pudesse sentir o corpo com os pés.
– Podia ter morrido de frio.
– Consigo tornar-me insensível ao frio ou ao calor, se for necessário.
Wallander sentiu que já devia ter previsto a resposta.
– Mas não a encontrou?
– Não. Subi à superfície e me vesti. Logo a seguir chegaram pessoas correndo. Um carro com escadas. Nessa altura saí de lá. Wallander começou a se esforçar para se levantar da desconfortável almofada. O cheiro na sala era insuportável. Não tinha mais perguntas e não queria ficar mais do que o necessário. Ao mesmo tempo não podia negar que Jacob Hoslowski tinha sido muito acessível e simpático.
Hoslowski acompanhou-o até ao pátio.
– Conseguiram tirá-la mais tarde – acrescentou. – Meu vizinho costuma parar e contar o que acha que devo saber sobre o mundo à volta. É um homem muito simpático mas acha que devo saber sobretudo aquilo que ocorre na Associação de Tiro local. Considera menos importante o que acontece em outras partes do mundo, por isso também sei muito poucsobre o que acontece. Talvez possa lhe perguntar se atualmente ocorre alguma guerra?
– Nenhuma grande – retorquiu Wallander – mas muitas pequenas.
Hoslowski acenou com a cabeça. Depois apontou.
– Meu vizinho mora muito perto – informou. – Não se vê a casa. Talvez sejam trezentos metros. As distâncias terrestres são difíceis de calcular.
Wallander agradeceu e foi embora. Estava agora muito escuro, Tinha trazido a lanterna e iluminou o caminho. Viu luz a brilhar entre as árvores. Pensava em Jacob Hoslowski e em todos os seus gatos.
Ao chegar à moradia notou que era de construção relativamente recente. À frente dela havia uma camioneta de caixa fechada onde, num dos lados estava escrito "Serviços de Canalização". Wallander tocou à campainha. Abriu-lhe a porta um homem descalço que vestia uma camisola interior branca. Abriu a porta bruscamente como se Wallander fosse o último de uma série incalculável de pessoas que tinham vindo incomodá-lo. Mas o homem tinha uma expressão franca e Simpática. Ao fundo ouviam-se gritos de crianças. Wallander explicou em poucas palavras ao que vinha.
– E foi Hoslowski quem o mandou para cá? – perguntou o homem sorrindo.
– Como sabe?
– Sente-se pelo cheiro – replicou o homem. – Mas entre. É senpre possível arejar.
Wallander acompanhou aquele indivíduo bem constituído até a cozinha. Gritos de crianças vinham do piso superior e também se ouvia uma televisão ligada algures. O homem disse chamar-se Rune Nilsson e era canalizador. Wallander agradeceu mas declinou a oferta de café e justificou a sua vinda.
– Não se esquece um acontecimento desses – comentou depois de Wallander se ter calado. – Na altura não era casado. Havia aqui uma casa velha que demoli para construir esta nova. É verdade que já passaram dez anos desde então? – São exatamente dez anos com uma diferença de poucos meses.
– veio um homem e deu pancadas na porta. Era cerca de meio-dia.
– Em que estado se encontrava ele?
– Estava perturbado, mas controlava-se. Depois ligou o número de emergência. Entretanto vesti-me. Fomos embora por um atalho pela floresta. Naquela altura costumava pescar bastante.
– Pareceu-lhe estar calmo todo o tempo? O que dizia ele? Como descreveu o acidente? – Que a mulher tinha caído num buraco no gelo. O gelo partira-se.
– Contudo, o gelo estava bastante grosso? – Nunca se pode confiar no gelo. Pode haver rachas invisíveis ou pontos frágeis, todavia foi um pouco estranho.
– jacob Hoslowski disse que o buraco era quadrado. Acha que podia ter sido aberto com uma serra.
– Se era quadrado não me lembro, contudo era grande.
– Mas o gelo à volta era forte. Você é um homem forte e não teve medo de andar em cima do gelo? Rune Nilsson acenou com a cabeça.
– Pensei bastante nisso depois – confessou. – Foi estranho surgir aquele buraco e a mulher ter desaparecido. Por que não terá conseguido tirá-la? – Qual foi a explicação dada?
– Afirmou que tentou, mas ela desapareceu rapidamente como que sugada para baixo do gelo.
– Foi assim?
– Encontraram-na a uns metros do buraco logo embaixo da camada de gelo. Não tinha ido para o fundo. Eu estava lá quando a tiraram. Não me esqueço, porque nunca consegui entender como podia ter tanto peso.
Wallander olhou-o com espanto.
– O que quer dizer com "ter tanto peso"?
– Conhecia Nygren, que era policial naquela altura. Já morreu. Disse uma vez que o homem tinha afirmado que ela pesava quase oitenta quilos. O que seria uma explicação para o gelo partir. Nunca entendi aquilo. Mas suponho que se medita sempre sobre acidentes. O que teria acontecido, como poderia ter sido evitado.
– É certamente verdade – respondeu Wallander e levantou-se. Obrigado pela sua disponibilidade. Gostaria que me mostrasse amanhã de manhã o sítio onde aconteceu.
– Vamos andar em cima da água?
Wallander sorriu. – Não vai será necessário, mas talvez Jacob Hoslowski tenha essa capacidade.
Rune Nilsson abanou com a cabeça.
– É simpático – comentou. – Ele e os seus gatos, mas é maluco.
20
Wallander regressou ao longo do caminho florestal. O candeeiro de petróleo brilhava na janela de Hoslowski. Rune Nilsson prometera estar em casa pelas oito da manhã no dia seguinte. Wallander ligou o motor e regressou a Älmhult. O barulho no motor ja tinha desaparecido. Sentiu fome e por isso pensou ser oportuno propor a Bo Runfeldt jantarem juntos. Wallander já não tinha a sensação de que a viagem fora em vão.
Mas quando Wallander chegou ao hotel, esperava-o uma mensagem na recepção. Bo Runfeldt tinha alugado um carro e ido a Växjö. Tinha amigos lá e pretendia passar a noite com eles. Prometeu regressar a Ãlnhult no dia seguinte de manhã cedo. Wallander ficou por instantes irritado pelo comportamento de Runfeldt. E se tivesse tido necessidade dele à noite? Runfeldt deixara um número de telefone de Växjö. Wallander não tinha, porém, nenhuma razão para lhe telefonar. Por outro lado, sentiu um certo alívio por dispor da noite só para si. Subiu ao quarto, tomou banho e descobriu que nem sequer trazia uma escova de dentes. Vestiu-se e foi procurar uma loja de conveniência onde podia comprar o que precisava. Em seguida jantou numa pizaria por onde calhou passar. Pensava constantemente no afogamento. Achava que agora era capaz de, lentamente, estar a conseguir montar um quadro. Depois da refeição regressou ao quarto do hotel. Pouco antes das nove, telefonou a Ann-Britt Höglund, na esperança de que os filhos dela já estivessem a dormir. Quando ela atendeu, contou em poucas palavras o que tinha acontecido. O que queria saber era se tinham conseguido descobrir a Senhora Svensson, a qual se podia supor ter sido a última cliente de Gösta Runfeldt.
– Ainda não – respondeu. – Mas vamos conseguir de algum modo.
Fez por a conversa ser breve. Em seguida ligou a televisão e ouviu, sem dar atenção, um programa de debate. Adormeceu quase sem dar por isso.
Acordou pouco depois das seis da manhã, sentindo-se revigorado. Às sete e meia já tinha tomado o café da manhã e pago o quarto.
A seguir sentou-se na recepção à espera. Passados uns minutos chegou Bo Runfeldt. Nenhum deles comentou o fato de ele ter passado a noite em Växjö.
– Vamos fazer uma excursão – propôs Wallander. – Ao lago onde morreu afogada sua mãe.
– A viagem compensou o incômodo? – indagou Bo Runfeldt. Wallander notou que ele estava irritado.
– Sim – respondeu. – E a sua presença foi de importância vital, quer acredite ou não.
Evidentemente não era verdade, mas Wallander expressou-se tão firmemente que conseguiu notar que Bo Runfeldt ficou, senão convencido, pelo menos circunspecto.
Rune Nilsson foi ao seu encontro e seguiram por um caminho de floresta. Não havia vento, a temperatura rondava os zero graus e o solo stava duro sob os pneus. A mancha de água estendia-se à frente deles.
O lago era sobre o comprido. Rune Nilsson apontou para um sítio algures no meio do lago. Wallander reparou que Bo Runfeldt denotava desconforto ao ver o local do acidente. Wallander deduziu que nunca tinha lá ido.
– É difícil imaginar este lago à nossa frente coberto de gelo – comentou Rune Nilsson. – Tudo muda quando chega o inverno, para não falar de que as distâncias nos influenciam. O que parece afastado no verão pode parecer muito perto no inverno, ou Vice-versa.
Wallander aproximou-se da margem. A água era escura. Pareceu-lhe vislumbrar o movimento de um pequeno peixe junto de uma pedra. Atrás dele ouviu Bo Runfeldt perguntar se o lago era fundo. No entanto não conseguiu ouvir a resposta de Rune Nilsson.
O que aconteceu? interrogou-se. Teria Gösta Runfeldt decidido antecipadamente? Que nesse preciso domingo iria tratar de afogar a mulher? Teve que ser assim, de alguma maneira tinha preparado o buraco, do mesmo modo que alguém tinha serrado as tábuas por cima da valeta de Holger Eriksson. E, além disso, mantivera Gösta Runfeldt em cativeiro.
Wallander observou um bom bocado o lago, que se estendia à sua frente. Contudo, o que queria ver encontrava-se no seu interior. Regressaram pela floresta e junto ao carro despediram-se de Rune Nilsson. Wallander calculou que estariam de volta a Ystad à vontade antes do meio-dia.
Porém, enganou-se, pois logo à saída de Minhult o carro parou.
O motor foi-se. Wallander telefonou ao representante local da empresa de reboque de que era associado. O homem após vinte minutos e concluiu rapidamente que se tratava de uma avaria séria que não podia ser reparada no local. Não havia outra possibilidade senão deixar o carro em Älmhult e irem de trem para Malmö. O serviço de reboque levou-os à estação. Bo Runfeldt ofereceu-se para comprar os bilhetes enquanto Wallander despachava as contas com o serviço de reboque. Mais tarde verificou que Bo Runfeldt tinha comprado bilhetes de primeira classe. Wallander não comentou. O comboio partia às 9h44 para Hãssleholm e Malmö. Entretanto Wallander telefonara à central a pedir que alguém os fosse buscar a Malmö. Não havia nenhuma ligação conveniente de comboio para Ystad, mas Ebba prometeu-lhe que estaria lá alguém.
– A Polícia não tem carros melhores? – perguntou Bo Runfeldt de repente depois de o comboio ter partido de Älmhult. – O que teria acontecido se se tratasse de uma emergência?
– É o meu carro particular – retorquiu Wallander. – Os nossos transportes de emergência estão em muito melhores condições.
A paisagem corria do outro lado da janela. Wallander pensou em Jacob Hoslowski e nos seus gatos, mas também pensou que provavelmente Gösta Runfeldt teria assassinado a mulher. O que isso representava não sabia, dado que agora o próprio Gösta Runfeldt também estava morto. Um homem brutal, que talvez tivesse cometido um homicídio, fora assassinado de maneira igualmente cruel.
Wallander pensou que o motivo mais natural seria vingança.
Mas quem se vingava de quê? Como entraria Holger Eriksson no esquema? Não sabia. Não tinha respostas.
Foi interrompido nos seus pensamentos pelo revisor. Era uma mulher. Sorriu e pediu os bilhetes num dialeto caraterístico da Scania. Wallander ficou com a impressão de que olhara para ele como se o reconhecesse. Talvez o tivesse visto nalguma fotografia no jornal.
– Quando chegamos a Malmö? – perguntou.
– Às 12h15 – respondeu. – A Hässleholm às 11h13. Depois seguiu. Sabia o horário de cabeça.
Peters esperava-os na estação central de Malmö. Bo Runfeldt desculpou-se à chegada e informou que ficaria umas horas em Malmö. Mas que voltaria a Ystad da parte da tarde para ele e a irmã darem uma volta à casa do pai e decidirem o que fazer com a loja das flores.
No trajeto de regresso a Ystad, Wallander sentou-se no banco de trás e aproveitou para fazer um memorando sobre a investigação em Minhult. Comprara uma caneta e um bloco de apontamentos na estação de Malmö e no caminho colocou-o num dos joelhos para escrever. Peters que já era uma pessoa de poucas palavras, não emitiu uma única em todo o percurso, porque viu que Wallander estava ocupado. O sol brilhava, mas o vento fazia-se sentir. já estavam a 14 de outubro. O seu pai ainda não estava sequer há uma semana debaixo da terra. Wallander suspeitava, ou talvez receasse, que o verdadeiro período de luto só agora iria começar.
Chegaram a Ystad e foram diretamente para a central. Wallander comera no trem sanduíches exageradamente caros e não sentia necessidade de almoçar. Parou na recepção e contou a Ebba o que tinha acontecido ao carro. O bem estimado Volvo PV dela estava no estacionamento, como habitualmente.
– Não me livro de comprar um carro novo, mas como arranjar o dinheiro? – Realmente é terrível que tenhamos salários tão baixos – respondeu. – Mas é melhor não pensar nisso.
– Não tenho tanta certeza a esse respeito – retorquiu Wallander. De certeza que não melhoram por não pensar neles de todo.
– Talvez tenhas um acordo secreto preestabelecido – replicou Ebba.
– Todo mundo tem acordos – respondeu Wallander –, exceto possivelmente tu e eu.
A caminho do gabinete, Wallander espreitou pelas portas dos colegas. Todos estavam fora. O único que conseguiu descobrir foi Nyberg, cujo gabinete se situava ao fundo do corredor. Era muito raro ele là estar. Encostada à secretária estava uma bengala.
– Como vai o pé? – perguntou Wallander.
– Está como está – respondeu mal-humorado.
– Por acaso não encontraram a mala de Gösta Runfeldt?
– Pelo menos não estava na floresta de Marsvinholm. Os cães tê-la-Iam descoberto.
– Encontraram outras coisas? – Encontra-se sempre. A questão é se tem algo a haver com o ato ou não. Estamos comparando trilhos de pneus no caminho pantanoso por detrás da elevação onde Holger Eriksson tinha a sua torre, com os que se encontraram na floresta. Duvido que consigamos confirmar algo com certeza, pois estava demasiado chuvoso e lamacento nos dois lugares.
– Há mais alguma coisa que aches que eu deva saber?
– A cabeça de macaco – informou Nyberg. – Aquilo que não era uma cabeça de macaco, mas sim a cabeça de um ser humano. Veio uma carta longa e esclarecedora do Museu Etnográfico de Estocolmo. Entendo cerca de metade do que escreveram, porém o mais importante é que têm a certeza de que veio do Congo Belga, ou Zaire como se chama agora. Calculam que possa ter entre quarenta e cinquenta anos.
– Bate com o tempo – concluiu Wallander.
– O museu mostrou interesse em ficar com a cabeça.
– Terão que ser os responsáveis a decidir depois da conclusão da investigação.
Nyberg olhou-o subitamente com ar interrogativo.
– Vamos apanhar os criminosos?
– Temos que apanhar.
Nyberg acenou sem dizer mais nada.
– Disseste "os". Anteriormente quando te perguntava dizias que provavelmente tinha havido apenas um criminoso.
– Disse "os"?
– Sim.
– Continuo achanddo que houve apenas uma pessoa, mas não consigo explicar por quê.
Wallander virou-se para ir embora. Nyberg deteve-o.
– Conseguimos extrair da empresa Secur de Borås o que Gösta Runfeldt realmente lhes comprou. Tirando o último equipamento de escuta e o pincel magnético, tinha feito antes três encomendas. A empresa não existe há muito tempo. Comprou binóculos noturnos, algumas lanternas de bolso e mais umas coisas sem importância. Nada ilegal, ainda por cima. As lanternas achámo-las em Harpegatan. Mas os binóculos não estavam lá nem em Vãstra Vallgatan.
Wallander refletiu.
– Será que os meteu na mala para os levar para Nairobi? Observam-se orquídeas secretamente de noite? -Bem, em todo o caso, não os encontramos – retorquiu Nyberg.
Wallander foi para sua sala, pensou em ir buscar um café, mas arrependeu-se. Sentou-se e leu o que tinha escrito no caminho de Malmö. Procurou semelhanças e diferenças nos dois casos de homicídios. Os dois homens tinham sido descritos, embora de maneira diferente, como brutais. Holger Eriksson tratava mal os seus funcionários, enquanto Gösta Runfeldt sujeitara a mulher a maus tratos. Aqui havia uma semelhança, os dois tinham sido mortos de uma forma planeada. Wallander estava ainda convencido de que Runfeldt tinha estado em cativeiro, dado não haver outra explicação razoável para a sua longa ausência. Eriksson, por outro lado, fora diretamente ao encontro da sua própria morte. Aqui havia uma diferença. Mas Wallander também achou que a semelhança estava lá, mesmo sendo difícil de identificar. Por que o tinham tido preso? Por que é que o criminoso tinha esperado para o matar? Por alguma razão o assassino quis esperar. O que por sua vez levantava novas questões. Seria que o assassino não teria tido possibilidade de o matar imediatamente? Nesse caso, por que não o fez? Ou seria que era parte do plano mantê-lo em cativeiro, fazê-lo passar fome até a exaustão? Wallander achava novamente que o único motivo que conseguia vislumbrar era a vingança. Mas vingança de quê? Ainda não tinham encontrado nenhuma pista segura.
Wallander voltou os seus pensamentos para o assassino. Tinham falado que se tratava certamente de um único homem com grande força física. Evidentemente podiam estar enganados, podia haver mais do que um, todavia Wallander não acreditava. Havia alguma coisa no planejamento que apontava na direção de um único criminoso.
O planejamento cuidadoso foi um dos requisitos, pensou. Se o criminoso não tivesse atuado sozinho, o planejamento podia ter sido muito menos pormenorizado.
Wallander recostou-se nas costas da cadeira tentando interpretar a ansiedade desgastante que constantemente sentia dentro de si. Havia algo no quadro que não via ou que interpretava mal. Só não lhe ocorria o que era.
Ao fim de uma hora foi buscar a xícara de café em que tinha pensado antes. Depois telefonou ao oftalmologista que esperara em vão a sua visita. Não lhe marcou outra consulta, podia ir quando quisesse, Depois de ter procurado duas vezes nos bolsos do casaco encontrou o número de telefone da oficina de automóveis de Minhult num dos bolsos das calças. A reparação iria ser dispendiosa, contudo Wallander não tinha outra alternativa, no caso de querer receber alguma coisa ao vendê-lo.
Acabou a conversa com o mecânico e telefonou a Martinsson.
– Não sabia que tinhas regressado. Como correu em Älmhult?
– Achei que devíamos falar sobre isso. Que colegas estão aqui neste momento?
– Vi Hansson agora mesmo – respondeu Martinsson. – Combinamos encontrar-nos às cinco.
– Então esperamos até lá.
Wallander pousou o fone e pensou subitamente em Jacob Hoslowski e nos gatos. Interrogou-se de quando iria ter tempo para procurar uma casa. Desolado, duvidou de que alguma vez isso acontecesse. A carga de trabalho dos policiais aumentava constantemente. Anteriormente sempre tinha havido momentos em que a intensidade de trabalho diminuía. Hoje em dia, tal coisa quase nunca acontecia. Também não havia indícios de que fosse acontecer, embora não soubesse se a criminalidade aumentava. Por outro lado, nalguns casos estava a tornar-se mais brutal e complexa. Além disso, cada vez menos polícias participavam no trabalho estritamente policial, pois um número cada vez maior se dedicava aos serviços administrativos. Cada vez mais policiais faziam planos para um menor número deles. Wallander não se conseguia imaginar sentado exclusivamente a uma secretária. Estar sentado aqui, como agora, tratava-se de uma interrupção das rotinas naturais e nunca iriam conseguir encontrar o assassino que procuravam, se ficassem somente entre as paredes da central. O desenvolvimento da técnica criminal avançava continuamente, mas nunca iria substituir o trabalho de campo.
Os seus pensamentos regressaram a Minhult. O que teria acontecido no gelo de Stångsjön naquele dia de inverno havia dez anos? Teria Gösta Runfeldt preparado o acidente e de fato assassinado a mulher? Existiam sinais que apontavam para isso, havia demasiados pormenores que não se enquadravam num cenário acidental. Num arquivo qualquer, tinha que ser possível, sem grande esforço, desenterrar a investigação policial da altura. Ainda que, com toda a probabilidade, tivesse sido malfeita, tinha dificuldade em criticar os policiais que a tinham executado, De que poderiam desconfiar, na realidade? Que razões teriam de todo para desconfiar? Wallander levantou o fone e ligou novamente para Martinsson. Pediu-lhe para contatar Alnhult e pedir uma cópia da investigação sobre o acidente do afogamento.
– Por que não trataste disso lá? – perguntou Martinsson com espanto.
– Não cheguei a falar com qualquer policial – replicou Wallander. Estive sentado no chão de uma casa onde havia um número incalculável de gatos e um homem capaz de levitar quando lhe dava jeito. Seria bom receber aquela cópia o mais depressa possível.
Terminou a chamada antes de Martinsson ter tempo para fazer perguntas. Eram três horas. Viu pela janela que o dia ainda estava bonito. Decidiu que era melhor fazer a visita ao oftalmologista imediatamente. Tinham um encontro às cinco e antes disso não iria conseguir fazer grande coisa. Além do mais, a cabeça acusava cansaço, tinha uma ligeira dor, persistente, nas fontes, Vestiu o casaco e deixou a central. Ebba estava ocupada ao telefone. Escreveu num papel que iria estar de volta às cinco e entregou-lho. Parou no estacionamento e procurou com o olhar o seu carro antes de se lembrar do que lhe acontecera. Levou dez minutos a chegar ao centro. O oculista tinha a loja em Stora õstergatan perto de Pilgrãnd. Disseram-lhe que tinha de aguardar alguns minutos. Folheou os jornais em cima da mesa e num havia uma fotografia dele, que devia ter sido tirada há mais de cinco anos. Por pouco não se reconheceu. O texto sobre os homicídios era extenso.
"A Polícia segue pistas seguras", era o que Wallander tinha dito. O que não era verdade. Interrogou-se se o assassino lia jornais, Acompanharia o trabalho da Polícia? Wallander continuou a folhear o jornal, Parou ao chegar a uma das páginas interiores e leu com um espanto crescente, observando a imagem. O jornalista do Arkaren, que ainda não tinha começado a ser publicado, tivera razão. Uma quantidade de pessoas de todo o país tinha-se reunido em Ystad para criar uma organização central para a milícia popular. Expressavam-se sem rodeios dizendo que se viesse a ser necessário, não hesitariam em cometer atos que se situavam fora da lei. Apoiavam o trabalho da Polícia, porém não aceitavam os cortes de pessoal, principalmente não aceitavam a falta de proteção dos seus direitos. Wallander leu com um misto de desconforto e tristeza crescentes. Realmente alguma coisa acontecera e os que eram favoráveis à criação de uma milícia popular organizada e armada já não se escondiam nas sombras. Apareciam abertamente, com nomes e caras reunidos em Ystad para criar uma organização central.
Wallander atirou com o jornal. Vamos ter que combater em duas frentes, pensou. Isto é muito mais sério do que todas as notícias sobre organizações neonazis cujo perigo é constantemente exagerado. Para não falar dos motoqueiros.
Chegou a sua vez. Sentado, com um aparelho esquisito à frente dos olhos a fitar letras pouco nítidas, começou subitamente a preocupar-se com a possibilidade de estar a cegar. Achou que não conseguia ver nada, mas depois de o técnico óptico lhe ter colocado um par de óculos e um jornal à frente, um jornal onde também havia um artigo sobre a milícia popular e a organização central em formação, conseguiu ler o texto sem esforçar a vista. Por um instante conseguiu ultrapassar o desalento provocado pelo conteúdo do jornal.
– Precisa de óculos para ler – explicou o oculista com simpatia.
– Nada de invulgar na sua idade, uma dioptria e meia deve ser suficiente. Pouco a pouco irá provavelmente precisar de aumentar a graduação, com espaço de alguns anos entre cada aumento.
Wallander foi depois escolher a armação. Assustou-se ao ouvir os preços. Quando descobriu que também as havia baratas em plástico, optou logo por essa alternativa.
– Quantos? – perguntou o óptico. – Dois? Para ter uns de reserva.
Wallander pensou em todas as canetas que perdia. Também não lhe agradava a ideia de ter óculos pendurados num fio à volta do pescoço. Cinco pares – retorquiu.
Depois de deixar o consultório verificou que eram apenas quatro horas e, embora não o tivesse decidido antecipadamente, foi à imobiliária em cuja montra parara uns dias antes para estudar as propriedades à venda. Desta vez entrou e sentou-se a uma mesa para estudar os dossiês com casas para venda. Seleccionou duas casas que o interessaram. Deram-lhe cópias e prometeu contatá-los caso tivesse interesse numa visita. Saiu novamente para a rua. Como ainda lhe sobrava tempo decidiu-se a aproveitá-lo para obter resposta a uma questão que tinha estado na sua mente desde a morte de Holger Eriksson. Foi até a livraria junto à Stortorget. Informaram-no de que o livreiro que conhecia de há muito tempo estava no armazém, na cave.
Desceu a pequena escada e encontrou o seu conhecido entre um sem-número de caixas com material escolar que estava a ser desempacotado. Cumprimentaram– se.
– Ainda me deves 19 coroas – disse o livreiro e sorriu.
– De quê?
– No verão passado me acordaram às seis da manhã porque a polícia precisava de um mapa da República Dominicana. O Policial que o veio buscar pagou 100 coroas, mas custava 119.
Wallander enfiou a mão no casaco para tirar a carteira. O livreiro levantou a mão em sinal de recusa.
– Oferta – exclamou. – Estava brincando.
– Os poemas de Holger Eriksson – perguntou Wallander. Aqueles de que ele próprio suportava os custos da impressão. Quem os lia?
– Naturalmente era amador – respondeu o livreiro. – Mas não escrevia mal. O problema era provavelmente que só escrevia sobre aves. Melhor dizendo, era o único assunto sobre o qual conseguia escrever pois quando tentava outros temas, era sempre um fracasso.
– Quem comprava os poemas dele? – Não vendia muito através de mim ou da livraria. Uma grande parte destes textos relacionados com a terra local naturalmente não dá lucros, mas têm importância de outra maneira.
– Quem os comprava?
– Sinceramente não sei, talvez um ou outro turista que nos visitasse aqui na Scania? Alguns observadores de aves penso terem tido conhecimento dos seus livros, talvez coleccionadores de literatura local.
– Aves – disse Wallander. – Significa que nunca escreveu nada que pudesse revoltar as pessoas.
– Claro está que não – respondeu o livreiro espantado. – Há alguém que afirme o contrário? – Só queria saber – respondeu Wallander.
Wallander deixou a livraria e regressou à central através da rua íngreme.
Depois de entrar na sala de reuniões e se ter sentado no seu lugar habitual, começou por colocar os óculos no nariz. Um certo regozijo perpassou pela sala, mas ninguém comentou coisa alguma.
– Quem não está aqui? – perguntou.
– Svedberg – respondeu Ann-Britt Höglund. – Não sei onde está.
Só teve tempo para acabar a frase antes de Svedberg escancarar a porta da sala. Wallander entendeu imediatamente que acontecera alguma coisa..
– Encontrei a Senhora Svensson – exclamou. – A última cliente de Gösta Runfeldt, se for como achamos.
– Ótimo – anuiu Wallander e sentiu a excitação aumentar.
– Pensei que talvez ela alguma vez tivesse entrado na loja das flores – prosseguiu Svedberg. – Podia ter procurado Runfeldt lá. Levei a fotografia que revelamos. Vanja Andersson lembrou-se de ter visto uma fotografia do mesmo homem em cima da mesa do escritório. Também sabia que uma senhora cujo apelido era Svensson aparecera na loja meia dúzia de vezes. Uma vez comprara flores para serem enviadas. – O resto era simples. O endereço e o número de telefone estavam anotados. Morava em Byabacksvägen em Sövcstad. – Fui lá. Tem um pequeno centro de jardinagem. Levei a fotografia e disse-lhe abertamente que julgávamos que tinha contratado Gösta Runfeldt como detetive privado. Respondeu imediatamente que era verdade.
– Ótimo – repetiu Wallander.
– Que mais disse?
– Vim embora. Estava ocupada porque tinha trabalhadores em casa e pensei que seria melhor prepararmos juntos a conversa com ela.
– Quero falar com ela já esta noite – declarou Wallander. – Vamos tornar esta reunião o mais curta possível.
Estiveram reunidos cerca de meia hora. Durante a reunião entrou Lisa Holgersson e sentou-se silenciosamente à mesa. Wallander relatou a viagem a Älmhult. Terminou dizendo o que pensava, que não podiam pôr de parte a possibilidade de Gösta Runfeldt ter assassinado a mulher. Aguardavam uma cópia da investigação que fora feita na altura, Depois decidiriam como avançar.
Quando Wallander parou de falar ninguém disse nada e todos tinham compreendido que podia ter razão. Todavia, ninguém tinha a certeza do que, na realidade, poderia significar.
– Esta viagem foi importante – prosseguiu Wallander após uns instantes. – Também julgo que a viagem a Svenstavik pode dar resultados.
– Com uma parada em GävIe – sugeriu Ann-Britt Höglund. Não sei se significa alguma coisa, mas pedi a um amigo em Estocolmo para ir a uma livraria especializada e arranjar-me uns exemplares de um Jornal que se chama Terminator. Chegaram hoje.
– Que tipo de jornal é esse? – perguntou Wallander que antes apenas vagamente tinha ouvido falar dele.
– É publicado nos Estados Unidos – prosseguiu, – Trata-se de um jornal especializado mal disfarçado, pode dizer-se. É dirigido a quem procura contratos como mercenário, guarda de segurança, ou, de uma maneira geral, serviço como soldado. É um jornal repugnante, muito racista. Porém, encontrei um pequeno anúncio que nos deve interessar. Há um homem em Gävie que anuncia trabalho para o que ele designa por "homens combativos e sem preconceitos". Telefonei aos colegas de GävIe, eles sabem quem é, mas nunca tiveram contato direto com ele. No entanto, acham que ele tem um contato profundo com os que na Suécia eventualmente tem um passado como mercenários.
– Pode ser importante – comentou Wallander. – Não podemos deixar de o contatar. Deve ser possível combinar uma viagem a Svenstavik e GävIe.
– Olhei para o mapa – prosseguiu Ann-Britt. – Pode ir-se de avião até Ostersund e depois alugar um automóvel, ou pedir ajuda aos colegas lá em cima.
Wallander fechou o seu caderno de apontamentos.
– Trata de me preparar uma viagem – pediu. – Se possível, quero partir amanhã.
– Apesar de ser sábado? – perguntou Martinsson.
– Quem eu pretendo contatar pode certamente ver-me apesar disso – replicou Wallander. – Não podemos desperdiçar tempo. Proponho que interrompamos a reunião agora. Quem vem a Sovcstad? Antes de alguém ter tempo para responder, Lisa Holgersson tamborilou na mesa com um lápis.
– Só um instante – exclamou. – Não sei se perceberam que estão ocorrendo reuniões aqui na cidade entre pessoas que se decidiram a criar uma organização nacional de milícias populares. Julgo que seria bom nós termos uma conversa sobre como lidar com a situação o mais brevemente possível.
– A Direção Nacional da Polícia tem enviado várias circulares sobre o que se designa milícia popular – observou Wallander. Penso que estão totalmente esclarecidos sobre o que a lei sueca diz a respeito de aplicação da justiça por privados.
– Certamente sabem – comentou Lisa Holgersson. – Mas tenho a sensação forte de que algo está mudando. Receio que muito em breve vamos assistir a um gatuno a apanhar um tiro mortal disparado por alguém pertencente a um grupo desses que a seguir se protegerão mutuamente.
Wallander sabia que ela tinha razão, porém neste momento sentiu que tinha dificuldades em envolver-se noutras coisas que não a investigação em curso do duplo assassínio.
– De qualquer maneira, vamos deixar o assunto para segunda-feira – sugeriu. – Concordo que é importante e num futuro próximo a questão é evidentemente decisiva se não queremos ficar inundados de pessoas brincando de polícia. Vamos falar disso na segunda-feira quando nos encontrarmos.
Lisa Holgersson deu-se por satisfeita. Acabou a reunião. Ann-Britt e Svedberg acompanhariam Wallander a Sövestad. já eram quase seis quando deixaram a central. Entretanto o céu enchera-se de nuvens, provavelmente viria chuva durante a noite. Foram no carro dela. Wallander sentara-se no banco de trás. Subitamente interrogou-se se ainda cheirava da visita à casa de gatos de Jacob Hoslowski.
21
– Maria Svensson – disse Svedberg. – Tem trinta e seis anos e é proprietária de um pequeno centro de jardinagem em Sövestad. Salvo erro, negoceia apenas com legumes ecológicos.
– Não lhe perguntaste por que é que contatou Runfeldt? – Depois de ter obtido a confirmação do relacionamento, não fiz mais perguntas.
– Vai ser muito interessante – comentou Wallander – Durante todos os meus anos como policial, nunca encontrei uma única pessoa que tivesse procurado ajuda junto de um detetive privado.
– A fotografia era de um homem – observou Ann-Britt Höglund
– É casada?
– Não sei – respondeu Svedberg. – Já disse tudo o que sei. A partir de agora sabem tanto como eu.
– Tão pouco como você – retorquiu Wallander. – Praticamente não sabemos nada.
Chegaram a Sövestad passados vinte minutos. Uma vez há muitos anos Wallander tinha lá estado para causa de um homem que se enforcara. Ficou na sua memória porque foi a primeira vez que foi confrontado com um suicídio. Lembrou-se do acontecimento com desconforto.
Svedberg travou o carro à frente de uma casa com estufas e uma loja anexas. Numa placa leu "Legumes Svensson. Saíram do carro.
– Ela mora na casa – informou Svedberg. – Suponho que tenha fechado a loja por hoje.
– Loja de flores e loja de legumes – comentou Wallander. – Será que significa alguma coisa? Ou será apenas uma coincidência? Não contava com resposta. Também não a teve. Ao chegarem mais ou menos a meio do caminho de brita que dava para a casa, abriu a porta.
– Maria Svensson – indicou Svedberg. – Ela espera-nos. Wallander observou a mulher no cimo das escadas. Vestia calças de ganga, uma blusa branca e calçava socas. Havia algo de indefinido no seu aspecto. Reparou que não usava qualquer maquilhagem. Svedberg apresentou-os. Maria Svensson convidou-os a entrar. Sentaram-se na sala de estar e Wallander constatou subitamente que também havia algo de indeterminado na atmosfera da casa. Como se, na realidade, estivesse desinteressada de como vivia.
– Ofereço café de boa vontade – sugeriu Maria Svensson. Os três declinaram.
– Como já entendeu, viemos para saber um pouco mais sobre a sua relação com Gösta Runfeldt. Olhou espantada para ele.
– Teria eu uma relação com ele? – Como detetive privado e cliente – esclareceu Wallander.
– Assim está correto.
– Gösta Runfeldt foi assassinado. Levou-nos algum tempo descobrir que era não só comerciante de flores como também exercia a atividade de detetive privado.
Wallander gemeu por dentro pela sua maneira de se expressar.
– A minha primeira pergunta é, então, como entrou em contato com ele? – Vi um anúncio no jornal Arbetet. Foi no verão passado.
– Como foi o primeiro contato com ele? – Visitei a loja de flores. Mais tarde, no mesmo dia, encontrãmo-nos num café em Ystad, que fica ao pé de Stortorget, mas não me lembro como se chama.
– Qual foi a razão de o contatar? – Prefiro não responder.
Estava muito determinada. Wallander ficou surpreendido porque até agora as respostas tinham sido tão diretas.
– Apesar disso, vai ter que responder – observou Wallander.
– Posso garantir que não tem nada a ver com a sua morte, Estou tão terrificada e chocada como todo mundo sobre o acontecido.
– Se tem ou não, é um assunto da Polícia – observou Wallander. Lamento mas terá que responder à pergunta. Pode optar por fazê-lo aqui e nesse caso, tudo que não tenha nenhuma ligação direta com a investigação fica entre nós. Se formos forçados a levá-la para interrogatório mais formal, pode tornar-se mais difícil evitar que pormenores transpirem para os media.
Ficou silenciosa por muito tempo. Aguardavam. Wallander mostrou-lhe a fotografia que fora revelada em Harpegatan. Fitou-a sem expressão.
– É o seu marido? – perguntou Wallander. Olhou para ele. Depois desatou a rir.
– Não – replicou. – Não é o meu marido. Mas roubou-me a minha amada.
Wallander não entendeu a relação. – Ann-Britt, por seu lado, entendera imediatamente.
– Como se chama ela?
– Annika.
– E este homem interpôs-se entre vocês? Estava novamente calma.
– Comecei a desconfiar e para o fim não sabia o que fazer. Foi nessa altura que me surgiu a ideia de contatar um detetive privado, pois tinha que saber se ela me estava a abandonar. Transformara– se, optar por um homem. Por fim, percebi que era o que acontecera. Gösta Runfeldt veio cá para me contar. No dia seguinte escrevi a Annika que nunca mais a queria ver.
– Quando foi? – perguntou Wallander. – Quando esteve ele cá para lhe contar?
– No dia 20 ou 21 de setembro.
– Depois disso não voltaram a entrar em contaco? – Não, paguei-lhe por vale postal.
– Que impressão teve dele? – Era muito simpático, Adorava orquídeas. Penso que nos entendemos bem porque ele parecia tão reservado como eu.
Wallander refletiu. – Só tenho mais uma pergunta. Consegue encontrar alguma razão para ele ter sido assassinado? Algo que tenha dito ou feito? Alguma coisa em que tenha reparado?
– Não – respondeu. – Nada. E realmente refleti sobre isso.
Wallander olhou para os seus colegas e levantou-se.
– Então não a incomodo mais – prosseguiu. – E nada disto será revelado. Prometo.
– Fico grata por isso – disse. – Não gostaria de perder meus clientes. Despediram-se à porta. Ela a fechou antes de chegarem à estrada.
– O que queria dizer com a última frase? – Perguntou Wallander.
– Que receava perder os clientes? As pessoas no campo são conservadoras – respondeu Ann-Britt Höglund. – Uma mulher lésbica continua para muitos a ser algo obsceno, pelo que julgo ter todos os motivos no mundo para não querer que seja divulgado.
Sentaram-se no automóvel. Wallander pensou que não tardaria muito para começar a chover.
– Então, qual foi o resultado? – perguntou Svedberg. Wallander sabia que a resposta só podia ser uma.
– Não nos levou nem para frente nem para trás – respondeu. A verdade sobre estas duas investigações de homicídio é muito simples. Não temos certezas nenhumas. Temos uma quantidade de fios soltos, mas não temos uma única pista sólida para seguir. Não temos nada.
Estavam silenciosos no carro. Por instantes Wallander sentiu remorsos. Era como se tivesse enfiado uma facada nas costas de toda a investigação. Todavia, sabia que o que dissera era verdade.
Não tinham pistas. Absolutamente nada.
Wallander teve um sonho esta noite.
Regressara a Roma. Andava numa rua com o pai, de repente o verão passara, estavam no outono, no outono romano. Falavam sobre alguma coisa de que não se lembrava e, subitamente, o pai desaparecera. Acontecera muito rapidamente. Andavam muito depressa. Num momento o pai estava ao seu lado e noutro desaparecera, engolido pela multidão na rua.
Sobressaltado, despertou do sonho. Na serenidade da noite o sonho fora transparente e real. A tristeza pela morte do pai, de nunca poder concluir o diálogo iniciado. Não podia lamentar o seu pai, podia apenas ter pena de si próprio.
Não conseguiu adormecer outra vez pois tinha que acordar cedo. Quando regressara à central na noite anterior, depois da visita a Maria Svensson em Sövestad, encontrara uma mensagem avisando que tinha reserva no dia seguinte no voo das 7h00 de Sturup, com chegada a Östersund às 9h50 com escala e mudança em Estocolmo. Estudara o plano de viagem e viu que podia escolher entre passar a noite de sábado em Svenstavik ou GävIe. Haveria um automóvel à sua espera no aeroporto de Frösön e ele próprio decidiria depois onde passar a noite. Observou o mapa da Suécia pendurado na parede, junto ao mapa ampliado da Scania. Isso deu-lhe uma ideia. Entrou no gabinete e telefonou a Linda. Agora havia, pela primeira vez, um atendedor de chamadas a responder para onde ditou a pergunta. Perguntava se ela poderia apanhar o comboio para GävIe, uma viagem que não chegava a duas horas, e passar a noite lá? De seguida procurou Svedberg que, por fim, encontrou no ginásio na cave. Svedberg costumava fazer uma sessão de sauna sozinho sexta-feira à noite. Pediu-lhe o favor de reservar dois quartos num bom hotel em GävIe para sábado à noite. No dia seguinte poderia contatá-lo pelo telemóvel.
Em seguida foi para casa. Adormeceu com o sonho sobre a rua da Roma outonal.
Às seis esperava pelo táxi pré-reservado. No aeroporto de Sturup levantou o bilhete. Por ser sábado de manhã, o avião para Estocolmo encontrava-se pouco mais do que meio ocupado. O avião para Östersund partiu pontualmente. Wallander nunca estivera em Östersund. Foram poucas as suas visitas à parte do país situada a norte de Estocolmo. Sentiu que estava a apreciar a viagem. Dava-lhe, entre outras Coisas, um distanciamento do sonho que tivera durante a noite.
A manhã estava fresca em Ostersund, o piloto dissera que a temperatura era positiva. O frio fazia pensar o contrário, pensou, enquanto caminhava para o edifício do aeroporto, Também não cheirava a lama. Passara na ponte de Frõsõn e achara a paisagem bonita. A cidade descansava suavemente na encosta do lago Storsjõn. Tomou o caminho na direção sul e foi uma sensação libertadora estar sentado num carro diferente e passar por uma paisagem desconhecida.
Chegou a Svenstavik às onze e meia. Durante a viagem obteve a informação de que deveria entrar em contato com um homem de nome Robert Melander. Era a pessoa que o advogado Bjurman contatara, na administração eclesiástica. Melander morava numa casa vermelha ao lado do velho tribunal de Svenstavik, que hoje em dia era utilizado, entre outros, pela ABF. Wallander estacionou o carro à frente dos mercados ICA – no centro da vila. Levou algum tempo primeiro que percebesse que o velho tribunal se situava do lado oposto do centro comercial, de construção recente. Deixou o carro e foi a pé. Estava enovoado mas não chovia. Entrou no pátio da casa que devia pertencer a Robert Melander. Um galgo estava preso por uma trela à sua casota. Wallander bateu à porta, que se encontrava aberta. Ninguém respondeu. Subitamente pareceu-lhe ouvir sons do outro lado da casa. Deu a volta à bem cuidada casa de madeira. O jardim era grande e havia uma área para plantação de batatas e arbustos de groselha. Wallander admirou-se de haver arbustos de groselha tão ao norte. Nas traseiras da casa estava um homem de botas cortando ramos de uma árvore deitada no chão. Quando descobriu Wallander, parou imediatamente e endireitou as costas. O homem tinha a idade de Wallander. Sorriu e largou a serra.
– Desconfio quem você é – disse, e estendeu a mão. – O policial de Ystad.
O seu dialeto era muito acentuado, pensou Wallander quando o cumprimentou.
– Quando partiu de lá? – perguntou Melander. – Ontem à noite? – O avião saiu às sete – respondeu Wallander. – Esta manhã.
– É espantoso como pode ser tão rápido – retorquiu Melander.
– Fui a Malmö uma vez na década de 60. Meti na cabeça que podia ser boa ideia mudar. E havia trabalho naquele grande estaleiro.
– Kockums – disse Wallander. – Hoje em dia, porém, quase não existe.
– Nada existe hoje em dia – retorquiu Melander filosoficamente.
– Naquela altura levava quatro dias para lá chegar de automóvel.
– Mas não ficou? – perguntou Wallander.
– Negativo – respondeu Melander alegremente. – Era bonito e agradável lá em baixo, mas não era a minha terra. Se algum dia viajar na minha vida tem que ser para cima, para baixo não. Vocês nem sequer neve têm por lá, ouvi dizer.
– Acontece de vez em quando – respondeu Wallander. – Mas quando vem, vem a sério.
– Há comida à nossa espera lá dentro – anunciou Melander. – A minha mulher trabalha no lar, mas preparou-a.
– Isto é muito bonito por cá – comentou Wallander.
– Muito – concordou Melander. – E a beleza mantém-se, ano após ano.
Sentaram-se à mesa da cozinha. Wallander comeu com apetite. Havia comida com fartura. Ainda para mais Melander era um bom conversador. Se Wallander bem entendia era um homem que, para se sustentar, combinava uma série de diferentes ocupações. Entre outras coisas orientava cursos de dança tradicional durante o inverno. Só quando chegaram ao café Wallander começou a falar sobre o que o levara ali.
– Naturalmente também para nós foi uma surpresa – observou Melander. – 100.000 coroas é muito dinheiro. Principalmente quando se trata de uma oferta de um desconhecido.
– Portanto, ninguém sabia quem era Holger Eriksson?
– Totalmente desconhecido. Um comerciante de automóveis da Scania que foi assassinado. Era muito estranho e nós, que estamos ligados à igreja, começamos a fazer perguntas por aí. Também tratamos de publicar um artigo nos jornais mencionando o nome dele. Os jornais noticiaram que procurávamos informações, porém ninguém Se manifestou.
Wallander lembrara-se de trazer uma fotografia de Holger Eriksson, uma que encontrara numa das gavetas da secretária. Robert Melander estudou a fotografia enquanto enchia o cachimbo de tabaco. Acendeu-o sem tirar os olhos da fotografia. Wallander começou a ter esperanças, mas logo Melander abanou a cabeça.
– O homem é mesmo desconhecido – respondeu. – Tenho uma boa memória para rostos, nunca vi essa cara. Talvez outra pessoa o reconheça, eu não.
– Quero mencionar-lhe mais dois nomes – prosseguiu Wallander.
– Um é Gösta Runfeldt. Este nome diz-lhe alguma coisa? Melander refletiu, mas não por muito tempo.
– Runfeldt não é nenhum nome daqui – observou. – Também não parece tratar-se de um nome adquirido ou inventado.
– Harald Berggren – prosseguiu Wallander.
– Mais um nome.
O cachimbo de Melander tinha apagado. Colocou-o em cima da mesa.
– Talvez – respondeu. – Deixe-me fazer uma chamada. – Havia um telefone na prateleira do vão largo da janela. Wallander sentiu a excitação crescer. O que acima de tudo queria era identificar o homem que tinha escrito o diário do Congo.
Melander falou com um homem chamado Nils.
– Tenho visitas da Scania – disse ao telefone. – Um homem que se chama Kurt e é policial. Pergunta por alguém que se chama Harald Berggren. Não devemos ter ninguem vivo com esse nome em Svenstavik, mas não temos um morto no cemitério?
O ânimo de Wallander diminuiu. Mas não totalmente. Um Harald Berggren, ainda que morto, podia ajudá-los a avançar.
Melander escutou a resposta. Terminou com uma pergunta sobre o estado de uma pessoa chamada Artur vítima de acidente. Wallander deduziu que não houvera alteração da condição de saúde. Melander regressou à mesa da cozinha.
– Nils Enman é o responsável pelo cemitério – informou. – E lá existe uma lápide com o nome Harald Berggren. Mas Nils é jovem. E o responsável antes dele também está sepultado lá. Talvez devêssemos ir ver? Wallander levantou-se da cadeira. Melander observou a sua pressa com surpresa.
– Alguém disse uma vez que o povo de Scania é lenta. Não é o seu caso.
– Tenho os meus maus hábitos – replicou Wallander. Caminharam por aquele ar limpo de outono. Robert Melander cumprimentava todo mundo com quem cruzavam. Chegaram ao cemitério.
– Parece que a lápide se encontra lá, junto da floresta – informou Melander.
Wallander passou entre as sepulturas atrás de Melander e pensou no sonho que tivera durante a noite. Parecia-lhe subitamente irreal que o pai estivesse morto, era como se ainda não tivesse compreendido.
Melander parou e apontou para a lápide que estava em pé e tinha uma inscrição amarelada. Wallander leu a inscrição e percebeu instantaneamente que não representava nenhum avanço. O homem que se chamava Harald Berggren e estava sepultado à sua frente morrera em 1949. Melander reparou na sua reação.
– Não é ele? – Não – respondeu Wallander. – Com toda a certeza, ele não é.
O homem que procuro estave vivo pelo menos até 1963.
– O homem que procura – perguntou Melander com curiosidade. – O homem que a Polícia procura não cometeu um crime?
– Não sei – respondeu Wallander. – Além do mais é complicado de explicar. Frequentemente a Polícia procura pessoas que não fizeram nada ilegal.
– Então veio até aqui em vão – comentou Melander. – Recebemos uma oferta para a igreja de muito dinheiro, não sabemos por que e não sabemos quem é este Eriksson.
– Tem que haver uma explicação – disse Wallander.
– Quer ver a igreja? – perguntou Melander subitamente, como se quisesse dar ânimo a Wallander.
Wallander anuiu.
– É bonita – afirmou Melander. – Casei lá.
Foram até a igreja e entraram. Wallander reparou que a porta não estava trancada e que a luz entrava pelas janelas laterais.
– É bonita – concordou Wallander.
– Acho que não é muito religioso – observou Melander e sorriu. Wallander não respondeu. Sentou-se num dos bancos de madeira. Melander ficou em pé no corredor central. Wallander procurou na sua mente uma via aberta, pois sabia que existia uma resposta. Holger Eriksson nunca faria uma oferta à igreja de Svenstavik sem motivo, um motivo forte.
– Holger Eriksson escrevia poemas – informou Wallander. – Era o que se costuma chamar um poeta popular.
– Desses também temos aqui – acrescentou Melander. – Para ser honesto, nem sempre é muito bom o que escrevem.
– Também era ornitólogo – prosseguiu Wallander. – De noite observava as aves na sua viagem para o sul. Não as via, mas sabia que passavam por cima dele. Talvez se consiga ouvir o zumbido de milhares de asas? – Sei de alguns que são columbófilos – disse Melander –, mas ornitólogo julgo só termos tido um.
– Tiveram? – indagou Wallander.
Melander sentou-se no banco do outro lado do corredor central.
– Foi uma história curiosa – prosseguiu. – Uma história sem fim. Soltou uma risada. – Quase como a sua – acrescentou. – A sua história também não tem fim.
– Vamos encontrar o criminoso – afirmou Wallander. – Costumamos conseguir. Que história era essa? – Uma vez, em meados dos anos 60, veio uma polaca para cá, não sei por que veio, provavelmente ninguém sabia. Trabalhava na pensão. Alugou um quarto e não convivia com ninguém. Apesar de ter aprendido sueco muito depressa, não devia ter amigos. Mais tarde comprou uma casa lá para os lados de Sveg. Na altura eu era bastante jovem, tão jovem que frequentemente pensava que ela era bonita. Mas ela andava sempre só. Ela era interessada em aves e no correio disseram que recebia cartas e postais ilustrados de toda a Suécia. Eram postais ilustrados com informações sobre águias marcadas e sabe Deus que mais. Também escrevia grande quantidade de cartas e postais. Depois da Câmara, era quem enviava mais correio. Na loja faziam stock extra de postais por causa dela. Qualquer motivo lhe servia.
– Como sabe tudo isso? – perguntou Wallander.
– Numa terra pequena fica a saber-se quer queiramos quer não – respondeu Melander. – É assim mesmo, – O que aconteceu a seguir? – Desapareceu.
– Desapareceu? – Como se costuma dizer, desapareceu como fumo. Sem deixar rasto.
Wallander tinha dúvidas se entendera bem.
– Foi embora daqui? – Ela viajava bastante, porém regressava sempre. Quando desapareceu, encontrava-se cá. Deu um passeio pela aldeia numa tarde de outubro. Andava muito, dava passeios. A partir desse dia nunca mais ninguém a viu. Na altura escreveu-se bastante sobre o seu desaparecimento, pois não tinha sequer as malas feitas. As pessoas começaram a estranhar quando não apareceu na pensão e foram procurá-la onde morava. Tinha desaparecido. Começaram a procurar, mas nunca apareceu. Aconteceu há cerca de vinte e cinco anos. Nunca se encontrou nada, mas houve rumores. Que fora vista na África do Sul ou em Alingsâs. Ou como um fantasma na floresta nos arredores de Rãtansbyn.
– Como se chamava? – perguntou Wallander.
– Krista. O apelido era Haberman.
Wallander descobriu que se lembrava do caso. Tinha havido muita especulação. Lembrava-se vagamente de uma rubrica num jornal "A polaca bonita".
Wallander refletiu.
– Portanto correspondia-se com outros ornitólogos – comentou.
– E às vezes visitava-os? – sim.
– Existem algumas cartas dessa correspondência? – Foi declarada morta há uns anos. Um parente da Polónia apareceu subitamente com exigências. Os pertences dela desapareceram. E mais tarde a casa foi demolida para novas construções.
Wallander anuiu. Era pedir de mais que as cartas e os postais ainda existissem.
– Lembro-me vagamente do caso – comentou. – Mas nunca houve desconfianças? Que se tivesse suicidado ou tivesse sido vítima de um crime?
– Naturalmente houve muitos rumores e julgo que os policiais que investigaram o caso fizeram um bom trabalho. Eram da área e capazes de distinguir entre rumores e palavras com conteúdo. Havia rumores de automóveis misteriosos, que teria tido visitas secretas de noite. Também ninguém sabia o que andara a fazer quando estava em viagem, nunca foi esclarecido. Desapareceu e continua desaparecida. Se estiver viva tem, portanto, mais vinte e cinco anos. Todos envelhecem, mesmo os que desaparecem.
Está a acontecer novamente, pensou Wallander. Algo do passado, regressa. Vim para cá para tentar saber por que é que Holger Eriksson deixou dinheiro para a igreja de Svenstavik, no seu testamento. Não tenho resposta a esta pergunta. Por outro lado, fico a saber que também aqui houve um ornitólogo, uma mulher que desapareceu há vinte e cinco anos. A questão é saber se, apesar de tudo, obtive a resposta à minha pergunta. Mesmo sem entender tudo, ou compreender o significado.
– O material de investigação deve estar em Östersund – acrescentou Melander. – De certeza que são muitos quilos de papel. Deixaram a igreja. Wallander observou uma ave empoleirada no muro da igreja.
– Alguma vez ouviu falar de uma ave que se chama pica-pau médio? – perguntou.
– É uma espécie de pica-pau – respondeu Melander. – Como diz o nome. Mas esse não está extinto? Pelo menos cá na Suécia? – Está em vias de extinção – comentou Wallander. – Aqui na Suécia não é visto há quinze anos.
– Talvez o tenha visto alguma vez – disse Melander com hesitação. – Mas os pica-paus são raros hoje em dia. Por causa dos cortes radicais de árvores em certas áreas, desapareceram as velhas árvores. Era essencialmente essas árvores que procuravam e, claro, os postes telefônicos.
Regressaram ao centro comercial e pararam junto ao automóvel de Wallander. Eram duas e meia.
– Vai seguir viagem? – perguntou Melander. – Ou regressa à Scania? -Vou a GävIe – informou Wallander, – Quanto tempo leva? Três, quatro horas? – Diria cinco. O piso está limpo, nada escorregadio e as estradas boas. Todavia, deve levar esse tempo, são quase quatrocentos quilómetros.
– Agradeço a sua ajuda – disse Wallander. – E a óptima refeição.
– Porém, não obteve resposta às suas perguntas.
– Talvez sim – respondeu Wallander. – Vamos ver.
– Foi um policial idoso que trabalhou na investigação do desaparecimento de Krista Haberman – prosseguiu Melander. – Começou já na meia-idade e continuou até chegar à reforma. Parece que foi sobre este caso que falou no leito da morte pois nunca conseguiu deixar de pensar no que teria acontecido à mulher.
– Esse perigo existe – observou Wallander. Despediram-se.
– Tem que nos visitar se for viajar para o sul – convidou Wallander. Melander sorriu. O cachimbo apagara-se.
– Os meus caminhos levam-me mais para o norte, mas nunca se sabe.
– Agradeço que me contate – prosseguiu Wallander por fim. Caso aconteça alguma coisa , que explique por que é que Holger Eriksson ofereceu dinheiro à igreja.
– É estranho – observou Melander. – Se ele tivesse visto a igreja, compreendia-se. É bonita.
– Tem razão – assentiu Wallander. – Se ele tivesse cá estado, compreendia-se.
– Talvez tenha passado por cá alguma vez? Sem ninguém saber? – Ou apenas uma única pessoa – retorquiu Wallander.
Melander olhou Para ele.
– Tem alguma ideia? – exclamou.
– Sim – respondeu Wallander. – Mas não sei o que significa. Apertaram a mão. Wallander sentou-se no carro e partiu. Viu pelo retrovisor Melander ficar a vê-lo partir.
Passou por florestas sem fim.
Ao chegar a Gävle já estava escuro. Procurou o hotel que Svedberg lhe tinha indicado. Quando perguntou por Linda na recepção, informaram-no de que já tinha chegado.
Encontraram um pequeno restaurante, calmo e sossegado, com poucos clientes, apesar de ser sábado à noite. Depois de ter verificado que Linda realmente chegara e se encontrarem neste local desconhecido para ambos, Wallander decidira, completamente sem planejar, falar sobre os planos que tinha para o futuro.
No entanto, naturalmente primeiro falaram sobre seu pai, avô dela, que já os deixara.
– Interroguei-me frequentemente sobre a sua boa relação com ele – confessou Wallander. – Talvez simplesmente tivesse ciúmes? Via-os juntos e descobri algo que me fazia lembrar a minha infância, que mais tarde desapareceu completamente.
– Talvez seja benéfica a diferença de uma geração – respondeu Linda. – Não é invulgar que avós e netos se entendam melhor do que os filhos com os pais.
– Como sabes?
– Basta olhar para mim mesma. E tenho amigos que dizem o mesmo.
– Apesar disso, sempre tive a sensação de que não havia nenhuma causa. Nunca entendi por que não foi capaz de aceitar o fato de me ter tornado policial. Se ao menos me tivesse explicado, ou me tivesse dado uma alternativa. Mas não.
– O avô era muito sui generis – comentou. – E instável. Mas o que dirias se subitamente aparecesse a dizer muito seriamente que queria ser policial? Wallander desatou a rir.
– Sinceramente não sei qual seria a minha reação. já tocamos nesse assunto anteriormente.
A seguir ao jantar, regressaram ao hotel. Wallander notou que um termômetro, no exterior de uma loja de ferragens, marcava dois graus negativos. Sentaram-se na sala do hotel, que tinha poucos clientes, e ficaram sozinhos. Wallander começou por perguntar como corriam as suas ambições de atriz. Reparou logo que ela não queria falar sobre o assunto Pelo menos naquela altura. Deixou a pergunta ficar pendente, todavia começou a sentir-se preocupado. No decurso de poucos anos Linda mudara várias vezes de caminho e de interesses. O que preocupava Wallander era que as mudanças surgiam subitamente e davam a impressão de resultarem de decisões repentinas.
Serviu-se de chá e de súbito perguntou por que era tão difícil viver na Suécia.
– Às vezes meto na cabeça que é por termos deixado de costurar meias – comentou Wallander.
Olhou-o com espanto.
– Falo a sério – prosseguiu. – A Suécia em que cresci ainda era um país onde se cosiam meias. Até aprendi na escola como se fazia. Depois um dia acabou, as meias rotas, deitavam-se fora. já ninguem cosia as grossas peúgas de lã. Toda a comunidade mudou. Usar e deitar fora era a única regra que realmente abrangia toda gente. Provavelmente havia quem persistisse em coser meias, mas esses não se ouviam nem se viam. Enquanto esta alteração só circulou à volta das meias, não teve grande importância. Mas espalhou-se. Por fim tornou-se uma espécie moral invisível, mas omnipresente. Julgo que mudou a nossa visão do que é certo e errado, do que se podia fazer às outras pessoas e do que não se pode fazer. Tudo se tornou muito mais duro. Cada vez mais pessoas, principalmente os jovens como tu, se sentem desnecessários ou inclusivamente pouco bem-vindos no seu próprio país. Como reagem? Com agressão e desprezo. O mais assustador é que ainda por cima julgo que estamos apenas no princípio de algo que ainda vai piorar. Atualmente cresce uma geração, os que são mais novos do que tu, que vão reagir com uma violência ainda maior. E não têm memórias nenhumas que, de fato, houve um tempo em que cosíamos as nossas meias. Quando não gastávamos nem deitávamos fora meias de lã ou pessoas.
Wallander não se lembrou de mais nada para dizer, apesar de perceber que ela esperava pela continuação.
– Talvez me expresse sem clareza – disse.
– Sim – concordou. – Contudo, julgo que entendo o que tentas dizer.
– Também é possível que esteja totalmente enganado. Talvez todas as épocas aparentem ser piores do que as anteriores? – Nunca ouvi o avô dizer alguma coisa sobre isso. Wallander abanou a cabeça.
– Provavelmente vivia muito no seu próprio mundo. Pintava os seus quadros onde podia determinar as posições do Sol. Colocava-se no mesmo sítio em cima do tronco, com ou sem galos silvestres, durante quase quinze anos. Às vezes penso que não sabia o que se passava fora da casa onde vivia. Tinha erguido um muro invisível de terebintina à sua volta.
– Estás enganado – retorquiu. – Sabia muito.
– Nesse caso, ocultava-o de mim.
– Até escrevia poemas de vez em quando.
Wallander olhou-a incrédulo.
– Terá escrito mesmo poemas? – uma vez mostrou-me alguns. Talvez os tivesse queimado a seguir. Mas escrevia poemas.
– Tu também escreves? – perguntou Wallander – Eventualmente – respondeu, – Não sei se são poemas. Mas por vezes escrevo, para mim. Tu não escreves? – Não – respondeu Wallander. – Nunca. Vivo num mundo de relatórios policiais mal escritos e protocolos de medicina legal desagradavelmente pormenorizados. Para não falar de todas as circulares da Direção Nacional da Polícia.
Ela mudou de assunto tão subitamente que ele posteriormente pensou que ela se tinha preparado muito bem.
– Como vai a relação com Balba? – Ela está bem. Como vai com nós os dois não sei, mas espero que ela venha para cá. Espero que queira viver cá.
– O que faria na Suécia? – Viveria comigo – respondeu Wallander espantado. Linda abanou lentamente a cabeça, – Por que não haveria de viver? – Não leves a mal, mas espero que entendas que não é fácil viver contigo.
– Por quê? – Lembra-te da mãe. Por quejulgas que quis viver uma outra vida? Wallander não respondeu. De uma maneira vaga sentiu-se injustiçado.
– Agora ficaste zangado – exclamou.
– Não – respondeu. – Zangado não.
– Então ficaste o quê? – Não sei, provavelmente estou cansado.
Ela levantou-se da cadeira e sentou-se no sofá ao lado dele, – Não se trata de não gostar de ti – retomou. – Trata-se de eu começar a ficar adulta. As nossas conversas vão ser diferentes.
Ele anuiu, – Talvez ainda não me tenha habituado – respondeu. – Deve ser tão simples como isso.
Depois, quando a conversa morreu, viram um filme na televisão. Linda tinha que voltar cedo para Estocolmo no dia seguinte. Wallander achou, porém, que tínha descoberto um pouco de como seria o futuro. Encontrar-se-iam quando os dois tivessem tempo. A partir de agora, ela iria poder dizer o que na realidade tinha em mente.
Pouco antes da uma separaram-se no corredor do hotel.
Depois Wallander ficou muito tempo a tentar determinar se tinha perdido ou ganho algo. A criança tinha desaparecido, Linda tinha-se tornado adulta.
Encontraram-se às sete na sala de pequenos-almoços.
De seguida acompanhou-a no curto trajecto para a estação. Quando chegaram à plataforma à espera do comboio, que estava uns minutos atrasado, ela começou subitamente a chorar. Wallander ficou atrapalhado. Um momento antes não tinha dado qualquer sinal de estar descontrolada.
– O que tens? – perguntou. – Aconteceu alguma coisa? – Tenho saudades do avô – respondeu. – Sonho com ele todas as noites.
Wallander abraçou-a.
– Eu também – confessou.
O comboio chegou. Ficou na plataforma até o comboio partir. A solidão na estação era muito grande e, por instantes, sentiu-se como uma pessoa esquecida ou perdida, totalmente sem força.
Interrogou-se sobre como iria aguentar.
Ao regressar ao hotel Wallander tinha uma mensagem a sua espera. Era de Robert Melander de Svenstavik. Subiu ao quarto e ligou o número. Respondeu-lhe a mulher de Melander. Wallander apresentou-se e aproveitou para agradecer o excelente almoço da véspera. Depois veio Melander ao telefone.
– Não consegui deixar de pensar sobre tudo e mais alguma coisa ontem à noite – comentou. – Também telefonei ao velho responsável do correio, chama-se Ture Emmanuelsson. Confirmou que Krista Haberman. recebia regularmente muitos postais da Scania. Tinha uma vaga ideia que vinham de FaIsterbo. Não sei se significa alguma coisa, mas queria informá-lo. A sua correspondência sobre aves era volumosa.
– Como soube onde estou? – perguntou Wallander.
– Telefonei à Polícia de Ystad e perguntei – respondeu Melander.
– Foi tão simples como isso.
– Skania e Falsterbo são lugares de encontro conhecidos dos ornitólogos – observou Wallander. – É a única explicação para que ela tenha recebido tantos postais de lá, obrigado por se ter incomodado a me ligar.
– Começa-se a refletir, não é? – acrescentou Melander. – Por que é que aquele comerciante de automóveis ofereceu dinheiro a nossa igreja.
– Mais cedo ou mais tarde vamos ficar a saber – retorquiu Wallander. – Porém, pode levar tempo. De qualquer maneira, obrigado por ter ligado.
22
Wallander ficou sentado na cadeira depois de desligar. Ainda não eram oito horas. Pensou na súbita falta de forças que sentira na estação. A sensação de ter algo intransponível à sua frente, Também pensou na conversa que tivera com Linda na noite anterior. Para não falar do que Melander acabara de contar e naquilo que tinha à sua frente. Encontrava-se em GävIe porque tinha uma tarefa. Faltavam seis horas para a partida do voo, deixaria o carro de aluguel no aeroporto. Foi buscar uns papéis da capa de plástico à mala. Amn-Britt Höglund escrevera que podia começar por contatar um inspetor de polícia chamado Sten Weringren. Estaria na sua residência durante o domingo e estava à espera que Wallander telefonasse. Tinha ainda apontado o nome do homem que colocara um anúncio no jornal das legiões. Chamava-se Johan Ekberg e tinha endereço de Brynãs. Wallander foi até a janela. O tempo estava muito triste, começara a chover, uma chuva fria de outono. Wallander interrogava-se se iria mudar para chuva misturada com neve. Também refletiu sobre se teria ou não pneus de inverno no automóvel. Todavia, interrogou-se principalmente sobre a razão por que na realidade viera a GävIe. Por cada passo que dava achava que se afastava cada vez mais de um centro que, apesar de lhe ser desconhecido, teria que existir algures.
A sensação de que havia algo que não conseguia descobrir, que se enganava ou interpretava mal no padrão básico dos crimes, regressou naquele momento junto à janela. Esse sentimento acabava na mesma pergunta: Por que esta brutalidade? O que pretendia o criminoso contar? A linguagem do assassino. Não conseguira quebrar o código. Abanou a cabeça, bocejou e fez a mala. Como não sabia de que falar com Sten Wenngren, decidiu-se por fazer uma aproximação direta a Johan Ekberg, nem que fosse para eventualmente obter um quadro do mundo obscuro onde soldados estão à venda para quem paga mais. Agarrou na mala e deixou o quarto, pagou a conta na recepção e informou-se sobre como chegar a Sõdra Fãltskãrsgatan, em Brynãs. Depois apanhou o elevador para a garagem, na cave. Sentado no carro foi novamente atingido pela falta de força. Ficou sentado sem ligar o motor. Será que estava a adoecer? Não se sentia doente, nem sequer muito cansado.
Em seguida descobriu que a fraqueza estava relacionada com o pai. Era uma reação a tudo o que acontecera, talvez uma parcela do luto. Tentar adaptar-se a uma nova vida que fora alterada de uma maneira dramática. Não havia outra explicação. Linda tinha a sua maneira de reagir e ele próprio reagia à falta do pai através de repetidos ataques de falta de força.
Ligou o motor e saiu da garagem. O recepcionista fizera uma descrição clara e explícita do trajeto. Mesmo assim Wallander enganou-se no caminho logo no princípio. Era domingo e, portanto, a cidade estava vazia. Parecia-lhe que andava perdido num labirinto. Demorou vinte minutos para encontrar o local certo. já eram nove e meia. Parou à frente de um prédio no que ele julgava ser a parte velha de Brynãs. Distraído, questionava-se se os mercenários dormiriam até tarde aos domingos. Nem sequer sabia se Johan Ekberg fora mercenário. O fato de pôr anúncios no Terminator não significava necessariamente que tivesse feito sequer o serviço militar obrigatório.
Wallander ficou no carro a observar o prédio. A chuva caía. outubro era o mês do desconsolo. A tonalidade era cinzenta. As cores outonais empalideciam.
Por um curto instante sentiu vontade de abandonar tudo e ir-se embora. Por que não regressar à Scania e pedir a alguém para telefonar a esse Johan Ekberg? Ou então ele mesmo telefonaria. Se deixasse GävIe agora, talvez conseguisse apanhar um voo mais cedo para Sturup.
Evidentemente não chegou a ir, Wallander nunca fora capaz de vencer o sargento simbólico que existia dentro dele e que assegurava que ele cumpria o seu dever. Não viajava a custa dos contribuintes para ficar no carro e olhar para a chuva lá fora. Saiu do carro e atravessou a rua.
Johan Ekberg morava no último piso e o prédio não tinha elevador. De dentro de um apartamento ouvia-se a música alegre de um acordeão. Alguém cantava. Wallander parou na escada para ouvir. Era uma polca. Sorriu e pensou que quem toca acordeão, não fica a olhar para a chuva triste até cegar.
A porta de Johan Ekberg tinha barras de ferro e uma fechadura suplementar. Tocou a campainha. Instintivamente sentiu que alguém o contemplava pelo ralo. Tocou mais uma vez, como se quisesse informar que não tinha intenção de desistir. A porta abriu. Tinha uma corrente de segurança. Estava escuro no vestíbulo. O homem que mal se distinguia lá dentro era muito alto.
– Procuro Johan Ekberg – informou Wallander. – Sou agente criminal e venho de Ystad. Preciso falar com você, no caso de você ser Ekberg. Não é suspeito de nada, só preciso de informações.
A voz que lhe respondeu era aguda, quase estridente.
– Não falo com policiais. Vindos de GävIe ou de outro lugar qualquer.
Instantaneamente a falta de força de há pouco desapareceu. Wallander reagiu imediatamente à atitude adversa. Não fizera uma viagem tão longa para ser recusado já à porta. Tirou a sua identificação e mostrou-lha.
– Estou a solucionar dois homicídios na Scania – informou. Provavelmente já leu sobre os casos nos jornais. Não fiz este caminho todo para ficar à sua porta a discutir. Está no seu direito de me mandar embora, mas se o fizer, regresso e nessa altura será obrigado a acompanhar-nos à central daqui de GävIe. Pode escolher como quiser.
– O que quer saber? – Ou me deixa entrar ou então sai cá para fora – disse Wallander.
– Não fico aqui a falar por uma porta entreaberta.
A porta fechou-se e abriu novamente. Tirara a corrente de segurança. Acendeu um candeeiro de luz forte no vestíbulo. Surpreendeu Wallander. Estava montado intencionalmente para bater diretamente nos olhos dum visitante. Wallander seguiu o homem, cuja cara ainda não vira, e entraram numa sala. Os cortinados tapavam as janelas, os candeeiros estavam acesos. Wallander ficou à porta. Era como entrar numa outra época. A sala parecia como um memorial aos anos 50. junto a uma parede havia uma Jukebox. As cores cintilantes de néon dançavam dentro da caixa de plástico. Um Wurlitzer. Nas paredes havia cartazes de filmes, num deles vislumbrava-se James Dean, mas a maioria era de diferentes filmes de guerra. Men in ation. Marinheiros americanos que combatiam em praias japonesas. Também havia armas nas paredes, baionetas, espadas, velhas pistolas da cavalaria, Via-se ainda um conjunto de sofás de pele preta.
O homem alto, Johan Ekberg, olhava para ele. Tinha cabelo curto e podia ter-se libertado de um dos cartazes da parede. Estava vestido com calções caqui e uma camisola interior branca. Tinha tatuagens nos braços com os músculos bem salientes. Wallander calculou que tinha um culturista à sua frente. Os olhos de Ekberg estavam muito atentos.
– O que quer? Wallander apontou interrogativamente para uma das cadeiras.
O homem assentiu. Wallander sentou-se enquanto Ekberg se manteve de pé. Interrogou-se sobre se Ekberg teria nascido quando Harald Berggren combatera na sua repugnante guerra, no Congo.
– Que idade tem? – perguntou.
– veio todo o caminho da Scania para mie perguntar isso? Wallander reparou que o homem o irritava. Não fez qualquer tentativa de o ocultar.
– Entre outras perguntas – retorquiu. – Se não responder às minhas perguntas, interrompemos aqui e agora. E vai ser levado à central .
– Sou suspeito de ter cometido algum crime? – Cometeu? – replicou Wallander. – Lembrou-se de que agora estava a infringir todas as regras vigentes de como devia exercer a sua profissão.
O homem não respondeu.
– Então começamos pelo princípio – prosseguiu Wallander. Que idade tem?
– Trinta e dois anos.
Wallander tinha razão, Quando Ekberg nascera, Hammarskold já tinha morrido num acidente de avião, um ano antes, nos arredores de Ndola.
– Vim aqui para falar com você sobre mercenários suecos – informou Wallander. – O fato de eu estar cá é o resultado de você abertamente ter mostrado a sua cara. Coloca anúncios no Terminator? – Não pode ser considerado ilegal. Também assino Combat & Survival e Soldier of Fortune.
– Também não afirmei que era proibido. A conversa decorrerá muito mais depressa se me der respostas e não fizer perguntas. Ekberg sentou-se e acendeu um cigarro. Wallander viu que o que ele fumava não tinha filtro. Acendeu o cigarro com isqueiro de petróleo do tipo que Wallander parecia lembrar-se de velhos filmes. Pensou que Ekberg vivia num tempo totalmente diferente.
– Mercenários suecos – repetiu Wallander. – Quando começou tudo? Com a guerra do Congo no princípio dos anos 60?
– Um pouco mais cedo – respondeu Ekberg.
– Quando? – Podemos experimentar com a Guerra dos Trinta Anos. Wallander interrogou-se se Ekberg estava a gozar com ele, mas depois percebeu que não se devia deixar influenciar pelo aspecto de Ekberg ou pela sua aparente fixação nos anos 50. Se havia investigadores apaixonados de orquídeas, então Ekberg podia muito bem ser uma pessoa que soubesse tudo sobre mercenários. Além disso, Wallander tinha uma vaga memória do tempo da escola, de que a Guerra dos Trinta Anos fora um combate entre forças armadas constituídas por soldados que combatiam mediante pagamento.
– Vamos ficar-nos pelo período pós Segunda Guerra Mundial – retornou Wallander.
– Então começa com a Segunda Guerra Mundial. Havia suecos que entraram como voluntários em todas as forças armadas e lutavam uns contra outros. Havia suecos em uniforme alemão, uniforme russo, Japonês, americano, inglês e italiano.
– Calculo que o recrutamento de voluntários não é o mesmo que ser mercenário? – Fato da vontade de ser guerreiro – retorquiu Ekberg. – Sempre houve suecos preparados para se armarem.
Wallander sentiu algo da efervescência desamparada que costumava identificar pessoas com falsos conceitos da grandeza sueca. Lançou um rápido olhar ao longo das paredes para ver se lhe tinham escapado alguns símbolos nazis. Porém, não viu nenhuns.
– Vamos ignorar o voluntariado – sugeriu a seguir. – Mercenários. Gente que se deixa alugar.
– A legião estrangeira – disse Ekberg. – É o ponto de partida clássico. Houve sempre suecos envolvidos e muitos estão enterrados no deserto.
– Congo – perguntou Wallander. – Começa outra coisa nessa altura. Está certo? – Não havia muitos suecos lá. Mas alguns combateram a guerra toda do lado do Catanga.
Quem eram? Ekberg olhou-o surpreendido.
– Procura nomes? – Ainda não. Quero saber que tipo de pessoas eram. Ex-militares. Alguns procuravam aventura. Outros estavam convencidos da verdadeira missão. Um ou outro policial que fora expulso pela corporação.
– Convencidos de quê? – Da luta contra o comunismo.
– Mas mataram africanos inocentes? Subitamente Ekberg ficou novamente na defensiva.
– Questões sobre opiniões políticas não tenho que responder. Conheço os meus direitos.
– Não procuro a sua opinião. Quero saber quem eram. E por que se tornaram mercenários.
Ekberg contemplou-o com os seus olhos atentos.
– Por que quer saber? – indagou. – Vamos dizer que é a minha única pergunta. E nesta quero resposta.
Wallander não tinha nada a perder em ir direto ao assunto.
– Pode ser que alguém com um passado como mercenário sueco tenha algo a ver com, pelo menos, um dos assassinatos. Por isso, faço estas perguntas. Por isso, as suas respostas podem ter importância. Ekberg acenou com a cabeça. Compreendera.
– Quer beber alguma coisa? – perguntou.
– Poderia ser o quê?
– Uísque? Cerveja? Wallander estava consciente de que eram só dez da manhã. Abanou a cabeça. Apesar de, na verdade, não dizer não a uma cerveja.
– Não, obrigado – respondeu.
Ekberg levantou-se e regressou passado um instante, com um copo de uísque.
– Qual é o seu trabalho? – indagou Wallander.
A resposta de Ekberg surpreendeu-o. Não sabia o que esperara. Mas não era certamente essa a resposta.
– Tenho uma empresa de consultoria que trabalha no sector adininistrativo de recursos humanos. Dedico-me a desenvolver métodos para a solução de conflitos.
– Parece interessante – comentou Wallander. – Continuava a não saber se Ekberg estava a gozar com ele.
– Além disso, tenho um portfóllo de acções que se portam bem. A minha liquidez é presentemente estável.
Wallander optou por acreditar que Ekberg estava a dizer a verdade. Regressou aos mercenários.
– Por que está tão interessado em mercenários? Representam muito do melhor da nossa cultura, que infelizmente está a desaparecer.
Wallander sentiu um arrepio imediato face à resposta de Ekberg.
O pior era que Ekberg parecia muito convencido. Wallander interrogou-se como podia ser possível. Também refletiu subitamente sobre se os homens da bolsa sueca tinham tatuagens do tipo das de Ekberg, Podia prever-se que os homens de finanças do futuro e da vida industrial e comercial seriam constituídos por culturistas com jukeboxes verdadeiras nas suas salas? Wallander regressou ao assunto.
– Como eram recrutadas as pessoas que partiram para o Congo?
– Havia certos bares em Bruxelas. E também em Paris. Tudo era efetuado muito discretamente, aliás, continua assim. Especialmente após o que aconteceu em Angola em 1975.
– O que aconteceu?
– Um certo número de mercenários não conseguiu sair a tempo. Foram presos quando a guerra acabou. O novo regime arranjou um julgamento, a maioria foi condenada à morte por fuzilamento. Foi tudo muito cruel e completamente desnecessário.
– Por que foram condenados à morte?
– Por terem sido soldados recrutados. Como se isso constituísse alguma diferença, os soldados são sempre recrutados de uma maneira ou de outra.
– Mas o que tinham a ver com essa guerra? Eram de fora. Participaram para ganhar dinheiro.
Ekberg ignorou o comentário de Wallander. Como se não fosse digno dele.
– Deviam ter saído da zona de conflito a tempo. Mas tinham perdido dois dos seus chefes de companhia nos combates. O avião que os ia buscar aterrou num aeroporto errado, dentro dos bosques. Houve muito azar no meio de tudo isso. Cerca de quinze foram capturados.
O grupo maior conseguiu escapar, mas a maioria prosseguiu para a Rodésia do Sul. Numa grande quinta nos arredores de Joanesburgo há hoje um monumento aos que foram executados em Angola. Mercenários de todo mundo foram lá por altura da inauguração do monumento.
– Havia suecos entre os que foram executados?
– A maioria era constituída de alemães e britânicos. Deram quarenta e oito horas aos familiares para irem buscar os corpos. Quase ninguém o fez.
Wallander pensou no memorial nos arredores de Joanesburgo.
– Por outras palavras, existia uma grande união entre mercenários de diferentes partes do mundo?
– Cada um é responsável por si. Todavia, a união existe. Tem que existir.
– Muitos talvez se tornem mercenários por essa razão? Por procurarem união.
– O dinheiro vem em primeiro lugar, em segundo vem a aventura, em terceiro a união. Nesta ordem.
– Portanto, a verdade é que os soldados matam por dinheiro? Ekberg anuiu.
– É claro que sim. Os mercenários não são monstros. São pessoas.
Wallander sentiu como a sua relutância aumentava. Mas percebeu que Ekberg falava a sério. Há muito tempo não encontrara uma pessoa com tantas certezas. Não havia nada de monstruoso nesses soldados que matavam qualquer pessoa pelo montante certo. Pelo contrário, era uma definição da sua humanidade, segundo Johan Ekberg.
Wallander puxou por uma cópia de uma fotografia e colocou-a na mesa de vidro à sua frente. Depois empurrou-a para o lado de Ekberg, Tem cartazes de filmes nas paredes – comentou. – Aqui dou-lhe uma imagem genuína. Tirada no que se chamava Congo Belga há mais de trinta anos. Antes de você nascer. Representa três mercenários, dos quais um é sueco.
Ekberg inclinou-se para apanhar a fotografia. Wallander aguardou. Reconhece algum desses três homens? – perguntou a seguir. Mencionou dois dos nomes. Terry O'Bamon e Simon Marchand. Ekberg abanou negativamente com a cabeça.
– Não corresponde necessariamente aos nomes verdadeiros, mas sim aos nomes como mercenários.
– Neste caso seriam nomes que eu conheceria – replicou Ekberg, – O homem do meio é sueco – prosseguiu Wallander.
Ekberg levantou-se e desapareceu para uma divisão anexa. Voltou com uma lupa na mão. Analisou a imagem novamente.
– Chama-se Harald Berggren – informou Wallander. – E ele é a causa de eu estar aqui.
Ekberg não disse nada, continuava a analisar a imagem.
– Harald Berggren – repetiu Wallander. – Escrevia um diário por guerra. Reconhece-o? Sabe quem é?
Ekberg pôs a fotografia e lupa na mesa. – Claro que sei quem é Harald Berggren – respondeu.
Wallander deu um pulo na cadeira. Não sabia qual a resposta que esperava, mas não a que obteve,
– Onde está agora?
– Morreu há sete anos.
Era uma possibilidade que Wallander tinha equacionado. Apesar disso, sentiu uma grande decepção por ter acontecido há tanto tempo.
– O que aconteceu?
– Suicidou-se. O que não é invulgar em pessoas de grande coragem e que têm experiência de combate em unidades armadas, sob condições difíceis.
– Por que se suicidou?
Ekberg encolheu os ombros. – Julgo que estava farto.
– Farto de quê?
– De que uma pessoa se farta quando se suicida? Da própria vida?
– De tédio. Atingido pelo cansaço de ver a sua cara no espelho todas as manhãs.
– O que aconteceu?
– Morava em Sollentuna ao norte de Estocolmo. Um domingo de manhã meteu a pistola no bolso, apanhou um ônibus até a última parada. Lá meteu-se na floresta e matou-se com um tiro.
– Como sabe tudo isso?
– Sei. E significa que é pouco provável que possa ter alguma ligação com um homicídio na Scania, a não ser que tenha ressuscitado ou que tenha colocado uma mina que só agora detonou.
Wallander deixara o diário na Scania. Pensou que fora um erro.
– Harald Berggren escrevia um diário no Congo. Encontramo-lo no cofre de um dos assassinados, um comerciante de automóveis de nome Holger Eriksson. Este nome diz-lhe alguma coisa? Ekberg abanou a cabeça.
– Tem certeza?
– A minha memória não falha.
– Consegue imaginar alguma explicação para o diário ter acabado lá? – Não.
– Consegue imaginar alguma explicação para estes dois homens se terem conhecido há sete anos?
– Só vi Harald Berggren uma vez, um ano antes de morrer. Vivia em Estocolmo na altura. veio a minha casa uma noite. Estava muito irrequieto. Contou que passava o tempo à espera de uma nova guerra, a viajar no país e a trabalhar um mês aqui e outro ali. Tinha uma profissão.
Wallander concluiu que tinha ignorado essa possibilidade. Apesar de constar no diário, numa das primeiras páginas.
– Refere-se a mecânico de automóveis? Pela primeira vez Ekberg ficou surpreendido.
– Como sabe isso? – Constava no diário.
– Penso que um comerciante de automóveis possa ter necessidade de um mecânico suplementar; que eventualmente Harald tivesse ido à Scania e entrado em contato com esse Eriksson.
Wallander anuiu. Evidentemente era uma possibilidade.
– Seria Harald Berggren homossexual? – perguntou Wallander, Ekberg sorriu.
Muito – afirmou.
É vulgar entre os mercenários? Não necessariamente. Mas também não é invulgar. Suponho que também haja casos na Polícia? Wallander não respondeu, – Existe entre mediadores de conflitos Jaboras? – optou por perguntar em vez de responder.
Ekberg levantou-se e ficou junto ao Jukebox. Sorriu para Wallander.
– Existe – admitiu.
– Anuncia no Terminator – observou. – Oferece os seus serviços, porém não indica que serviços são.
– Sou intermediário de contatos.
– Que tipo de contatos? – Contatos para guerras? – Ás vezes. Guarda-costas, guarda de transportes. Varia. Se quisesse, podia alimentar jornais suecos com histórias sensacionais.
– Porém não o faz? – Os meus clientes confiam em mim, Não pertenço ao mundo jornalístico.
Ekberg sentou-se novamente.
– Terre Blanche na África do Sul – disse Ekberg. – A cabeça do partido nazista entre os boers. Tem dois guarda-costas suecos. Só como exemplo. Todavia, se o afirmar publicamente, negá-lo-ei naturalmente.
– Não vou revelar nada – prometeu Wallander.
Já não tinha mais perguntas. Ainda não sabia o que as respostas que obtivera de Ekberg na realidade representavam. – Posso ficar com a fotografia? – pediu Ekberg. – Tenho uma pequena coleção. – Fique com ela – assentiu Wallander e levantou-se. – Temos o original. – Quem tem o negativo? – Também gostaria de saber. Wallander já passara pela porta quando se lembrou de que tinha mais uma pergunta. Por que faz tudo isso, realmente? – Recebo postais de todo o mundo – replicou. – Nada mais. Wallander percebeu que era a única resposta que iria ter. – Embora duvide, pode acontecer que telefone se tiver algo mais para perguntar. Ekberg anuiu. Depois fechou a porta.
Quando Wallander chegou à rua, a chuva caía misturada com neve. Eram onze horas. Não tinha mais nada para fazer em GävIe. Sentou-se no carro. Harald Berggren não matara Holger Eriksson e evidentemente Gösta Runfeldt também não. O que poderia eventualmente ter sido uma pista, dissolvera-se em nada.
Temos que recomeçar do princípio, pensou Wallander. Temos que regressar ao ponto de partida. Riscamos Harald Berggren, esquecemos cabeças ressequidas e diários. E então o que iremos descobrir? Tem que ser possível encontrar Harald Berggren entre os ex-empregados de Holger Eriksson. Também devíamos poder determinar se era homossexual, A camada superior da investigação não dera nada. Temos que cavar mais fundo.
Wallander arrancou, seguindo o caminho direto para Arlanda. À chegada teve dificuldade em encontrar o local onde devolver o carro de aluguel. Às duas estava sentado num sofá na porta de embarque à espera da partida do seu avião. Folheou distraidamente um vespertino que alguém ali deixara. A chuva misturada com neve cessara ao norte de Uppsala.
O avião partiu de Arlanda à hora prevista. Wallander ficou sentado na coxia. Adormeceu quase imediatamente após levantar voo. Quando começou a sentir nos ouvidos o início da descida para Sturup, acordou.
Ao seu lado estava uma mulher a coser meias. Wallander observou-a surpreso. Em seguida pensou que devia telefonar para Älmhult para saber como se encontrava o seu automóvel. Teria que apanhar um táxi para Ystad.
Porém, depois de ter deixado o avião, ao se encaminhar para a saída, descobriu subitamente Martinsson. Calculou que acontecera algo.
Mais um não, pensou. Tudo menos isso. Martinsson descobriu-o.
– O que aconteceu? – perguntou Wallander.
– Tens que ter o teu celular ligado – observou Martinsson. É impossível apanhar-te.
Wallander aguardou sem respirar.
– Encontramos a mala de Gösta Runfeldt – disse.
– Onde?
– Estava mal escondida ao longo da estrada para Hoor.
– Quem a encontrou?
– Alguém que parou para urinar. Viu a mala e abriu-a, tinha papéis com o nome Runfeldt. Lera sobre o homicídio. Telefonou imediatamente. Neste momento Nyberg está no local.
Ótimo, pensou Wallander. Apesar de tudo, é uma pista.
– Então vamos lá.
– Precisas ir em casa primeiro?
– Não, se há alguma coisa de que não preciso é ir para casa. Dirigiram-se ao automóvel de Martinsson.
Subitamente Wallander descobríu que tinha pressa.
A mala ainda estava no local onde fora encontrada.
Como era exatamente ao lado da da estrada, muitos motoristas tinham parado por curiosidade quando descobriram os dois carros da Polícia e um grupo de pessoas.
Nyberg estava a proteger as pistas do local, com um dos seus assistentes segurando a bengala enquanto ele estava ajoelhado mexendo em algo no chão. Quando Wallander chegou, levantou a cabeça.
– Como estava a Norrland? – perguntou.
– Não achei nenhuma mala – replicou Wallander. – É muito bonito por lá, mas frio.
– Com um bocado de sorte, vamos ser capazes de determinar há quanto tempo a mala se encontra aqui – disse Nyberg. – Suponho que possa ser uma informação importante.
A mala estava fechada. Wallander não viu nenhum cartão com endereço, também nenhuma publicidade de "Viagens Especiais". Falaram com Vanja Andersson? – perguntou Wallander.
Já esteve aqui – respondeu Martinsson. – Reconheceu a mala. Além disso, já a abrimos. Por cima estavam os binóculos desaparecidos 'de Gösta Runfeldt, pelo que é certamente a mala dele.
Wallander tentou refletir. Estavam na estrada 13, ao sul de Eneborg, antes havia o cruzamento onde, entre outros locais, era possível virar para Lõdinge. Do outro lado chegava-se ao sul do lago Kragcholm e não muito longe de Marsvinsholm. Wallander concluiu que se encontravam mais ou menos entre duas cenas de crime ou num canto de um ângulo do qual Ystad constituía o vértice.
Encontravam-se muito perto de tudo, pensou, no núcleo de um centro invisível.
A mala estava do lado leste da estrada e se fora colocada lá por alguém vindo de automóvel, esse alguém estava provavelmente a deslocar-se para o norte da área de Ystad. Mas também podia ter vindo de Marsvinsholm, desviado no cruzamento junto a Sövestad e depois seguido para norte. Wallander tentou avaliar as alternativas. Nyberg tinha razão em dizer que iriam ter uma grande ajuda ao saber quanto tempo a mala teria estado no local onde fora encontrada.
– Quando podemos tirá-la? – perguntou.
– Pode estar em Ystad dentro de uma hora – respondeu Nyberg, – Estou quase pronto daqui.
Wallander fez sinal a Martinsson. Foram para o carro. Durante o trajecto do aeroporto, Wallander contara-lhe que a sua viagem esclarecera uma circunstância importante. Porém, não os tinha aproximado. Outra questão que continuava a ser um mistério era por que é que Hol ger Eriksson deixara dinheiro à igreja de jãmtland. Por outro lado, agora sabiam que Harald Berggren estava morto. Wallander não tinha dúvidas a respeito da veracidade das palavras de Ekberg. Para ele, na realidade, Ekberg sabia do que falava. Berggren não podia ter nenhuma ligação direta com a morte de Holger Eriksson, por outro lado, ainda, tinham que descobrir se ele trabalhara para Eriksson. Não podiam, porém, contar que essa informação os fizesse progredir nas investigações. Certos passos no quebra-cabeças da investigação não tinham outro valor senão o de ter que estar ali para que se tornasse possível colocar as peças mais importantes no lugar. Harald Berggren era a partir de agora, uma peça desse tipo.
Sentaram-se no carro e regressaram a Ystad.
– Talvez Holger Eriksson tenha dado trabalho temporario a mercenários desempregados. Talvez alguém tenha vindo depois de Harald Berggren? Que não escrevia diários, mas que subitamente meteu na cabeça cavar uma sepultura com estacas para Eriksson. Por uma razão ou por outra.
– Naturalmente é uma possibilidade – comentou Wallander com hesitação. – Mas como explicamos o que aconteceu com Gösta Runfeldt? – Ainda não temos essa explicação. Talvez seja nele que nos devêssemos concentrar.
– Eriksson morreu primeiro – observou Wallander. – O que não significa necessariamente que esteja mais afastado na cadeia de causas e efeitos. O problema não é só o termos falta de motivos e explicações. Falta-nos um verdadeiro ponto de partida.
Martinsson ficou silencioso uns instantes. Passaram por Sõvcstad – Como é que a mala dele acaba ao longo desta estrada? – perguntou subitamente. – Quando Runfeldt ia para uma direção completamente diferente. Para Copenhagen. Marsvinsholm está no caminho certo quanto a Kastrup. O que terá acontecido de fato? – Também gostaria de saber – replicou Wallander.
– Investigamos o carro de Runfeldt – disse Martinsson. – Tinha um lugar de estacionamento nas traseiras do prédio onde morava. Era um Opel de 1993. Tudo parecia em ordem.
– As chaves do carro?
– Estavam no apartamento.
Wallander lembrou-se de que ainda não recebera resposta se Runfeldt pedira um táxi para a manhã em que iria partir.
– Hansson disse que falou com os serviços de táxi. Runfeldt reservara um táxi para as cinco da manhã para Malmö. Mas nos serviços foi posteriormente registrado como falsa chamada. O motorista esperara tendo depois telefonado a Runfeldt pensando que não acordara. Como ninguem respondeu, o motorista ter-se-á ido embora. Hansson disse que falou com uma pessoa que foi muito exata na descrição da ocorrência.
– Parece um assalto bem planejado – disse Wallander.
– Aponta para mais do que uma pessoa – comentou Martinsson.
– Que também conhecia os planos de Runfeldt, que iria viajar cedo nessa manhã. Quem poderia saber? – A lista é limitada, e de fato existe. Julgo que foi Ann-Britt Höglund quem a fez. Anita Lagergren da agência de viagens sabia, bem como os Runfeldt. No entanto, a filha só sabia que ele ia, mas não que era de manhã cedo. Praticamente mais ninguém.
– Vanja Andersson?
– Julguei que sabia. Mas não. Wallander abanou lentamente a cabeça.
– Houve mais alguém que sabia – disse. – Falta alguém nessa lista e essa é a pessoa que procuramos.
– Começamos a analisar o seu registro de clientes. Ao todo encontramos várias informações que apontam no sentido de ele ter tido, ao longo dos anos, cerca de quarenta serviços de espionagem, ou o que se quiser chamar. Por outras palavras, não são assim tantos, somente quatro por ano. Porém, não podemos ignorar a possibilidade de o indivíduo que procuramos se encontrar entre eles.
– Temos que o analisar bem – sugeriu Wallander. – Vai ser um trabalho moroso, mas podes ter toda a razão.
– Cada vez mais tenho a sensação de que este caso nos vai levar muito tempo.
Wallander colocou silenciosamente a pergunta a si mesmo, e chegou à conclusão de que partilhava a opinião de Martinsson.
– Podemos sempre ter esperança que estejas enganado, embora não seja muito provável.
Aproximavam-se de Ystad. Eram cinco e meia.
– Pelos vistos vão vender a loja de flores – informou Martinsson.
– Os filhos estão de acordo e já propuseram a Vanja Andersson a compra, só que há dúvidas de que tenha dinheiro para isso.
– Quem te contou?
– Bo Runfeldt telefonou. Perguntou se ele e a irmã podiam deixar Ystad após o funeral.
– Quando é?
– Na quarta-feira.
– Deixa-os ir embora – sugeriu Wallander. – Se for necessário, contatamo-los novamente.
Viraram para o estacionamento em frente da central .
– Falei com um mecânico de automóveis de Ãlinhult – disse Martinsson. – O teu carro está pronto em meados da próxima semana. Infelizmente parece que vai ser bastante caro. Se calhar já sabias? Todavia, prometeu tratar de entregar o carro aqui em Ystad.
Quando chegaram, Hansson estava no gabinete de Svedberg e Wallander aproveitou para fazer um relato resumido do resultado da sua viagem. Hansson estava com uma forte gripe. Wallander propôs-lhe ir embora para casa.
– Lisa Holgersson também está doente – disse Svedberg. – Parece que está com gripe.
– Já chegou a gripe? – perguntou Wallander. – Então podemos vir a ter grandes problemas.
– Estou apenas resfriado – garantiu Hansson. – Com sorte, amanhã estou bem.
– Os dois filhos de Ann-Britt Höglund estão doentes – acrescentou Martinsson. – Mas parece que o marido chega amanhã. Wallander deixou o gabinete, pedindo-lhes para o chamarem quando a mala chegasse. Planejara sentar-se e fazer um relatório sobre a viagem e, inclusivamente, juntar os recibos necessários para fazer a conta das despesas da viagem. Porém, no caminho para o gabinete mudou de opinião e voltou para trás.
– Emprestam-me um carro? – perguntou. – Regresso dentro de meia hora.
Foram-lhe oferecidas várias chaves. Levou as de Martinsson. Estava já escuro quando seguiu para Vãstra Vallgatan. O céu estava limpo. A noite seria fria, talvez com temperaturas negativas. Estacionou em frente da loja de flores e andou a pé ao longo da rua em direção ao prédio onde morara Rundfelt. Viu que havia luz nas janelas. Supôs que fossem os filhos de Runfeldt que estavam a dar volta ao apartamento. A Polícia entregara-lhes o apartamento para poderem começar a embalar ou jogar fora as coisas. O último resumo da vida de um morto. Subitamente pensou no pai; em Gertrud e na sua irmã Kristina. Ele não tinha estado em Lõderup para as ajudar a organizar os pertences do pai; mesmo não havendo muitos e a sua ajuda não ser necessária, devia ter aparecido. Não conseguiu determinar muito bem se não o fez porque se reprimiu por ser desagradável ou por falta de tempo.
23
Parou à frente da porta de Runfeldt. A rua estava deserta. Sentia necessidade de reconstituir a sequência de acontecimentos. Ficou à frente da porta e olhou à sua volta. Depois passou para o outro lado da rua e fez a mesma coisa. Runfeldt encontra-se na rua. A hora ainda é incerta. Pode ter saído ao princípio da noite ou em plena noite. Nessa altura não trazia a sua mala. Outra coisa fê-lo abandonar o apartamento. Se, por outro lado, passou pela porta de madrugada trazia a mala. A rua está deserta. Coloca a mala no passeio. De que lado vem o táxi? Espera à frente da porta ou passa para o outro lado da rua? Alguma coisa acontece. Runfeldt e a mala desaparecem. A mala é reencontrada na berma da estrada para Hoor. O próprio Runfeldt está morto agarrado a uma árvore nas proximidades do castelo de Marsvinsholm. Wallander observou as duas entradas em ambos os lados do prédio. Nenhuma era tão funda que alguém lá se pudesse esconder. Observou os candeeiros públicos, os que iluminavam a porta de Runfeldt estavam em boas condições. Um carro, pensou, esteve aqui um carro, precisamente junto a porta. Runfeldt chega à rua. Alguém sai do carro. Se Runfeldt se tivesse assustado, devia ter emitido um som, um vizinho atento teria ouvido. Se fosse uma pessoa desconhecida, talvez ficasse apenas surpreendido. O homem aproximou-se de Runfeldt. Derrubou-o? Ameaçou-o? Wallander pensou na reação de Vanja Andersson na floresta. Runfeldt emagreceu muito no curto período em que esteve desaparecido. Wallander estava convencido de que esse fato estava relacionado com o cativeiro. Fome. Runfeldt foi levado no carro à força, inconsciente ou sob ameaça. Depois desapareceu. A mala encontra-se na estrada para Hõõr. Logo junto à berma.
A primeira reação de Wallander quando chegara ao local onde fora encontrada a mala foi de que esta fora lá colocada para ser encontrada. Outra vez o momento demonstrativo.
Wallander regressou à porta. Recomeçou. Runfeldt chega à rua. Vai iniciar uma viagem por que muito ansiou. Vai visitar África para contemplar orquídeas.
Wallander foi interrompido nos seus pensamentos por um carro que passou.
Começou a andar de um lado para o outro junto à porta. Pensou na possibilidade de Runfeldt há dez anos ter morto a mulher. Preparado uma ratoeira e deixá-la cair nela. Era uma pessoa cruel que maltratava a mulher que era mãe dos seus filhos. Aparentemente é um comerciante de flores simpático, que tem uma paixão por orquídeas. E agora vai para Nairobi. Todos que falaram com ele, nos dias antes de partir, foram unânimes em reconhecer a sua alegria genuína. Um homem simpático que ao mesmo tempo era um monstro.
Wallander alargou o seu passeio a pé até a loja. Pensou no assalto. Na mancha de sangue no chão. Dois ou três dias após Runfeldt ter sido visto pela última vez, alguém forçara a entrada na loja. Nada fora roubado, nem sequer uma flor. No chão havia sangue.
Wallander abanou a cabeça com desespero. Havia algo que não vira. Uma superfície ocultava outra superfície. Gösta Runfeldt. Admirador de orquídeas e monstro. Holger Eriksson. Ornitólogo, poeta e comerciante de automóveis. Também ele famoso pela sua brutalidade para com outras pessoas.
A brutalidade une-os, pensou Wallander.
Melhor dizendo, a brutalidade oculta. No caso de Runfeldt mais evidente do que no de Eriksson. Mas há semelhanças.
Regressou novamente à porta. Runfeldt chega à rua. Coloca a mala no passeio. Se aconteceu de manhã. O que faz de seguida? Espera um táxi. Mas quando este chega já ele desapareceu. Wallander deteve-se.
Runfeldt espera um táxi. Poderá ter vindo outro táxi? Um falso táxi? Runfeldt só sabe que reservou um carro, não qual, também não sabe quem é o motorista. Entra no carro, o motorista ajuda-o com a mala.
Depois seguem em direção a Malmö. Mas só chegam a Marsvinsholm. Poderá ter acontecido desta maneira? Será que Runfeldt esteve em em cativeiro nas proximidades da floresta onde foi encontrado? A mala, encontrada no caminho para Hõõr. Numa direção completamente diferente. Para o lado de Holger Eriksson.
Wallander percebeu que não chegaria a mais lado nenhum. Ele próprio tinha dificuldade em acreditar que um outro táxi tivesse surgido. Por outro lado, não sabia em que acreditar, pois a única coisa que era totalmente evidente era que o que acontecera à frente da porta fora bem planeado, por alguém que sabia que ele ia partir para Nairobi.
Wallander regressou à central. Viu que o carro de Nyberg estava mal estacionado à frente da entrada. A mala chegara.
Uma toalha de plástico cobria a mesa de reuniões onde tinha sido colocada a mala. Continuava fechada. Nyberg estava a beber café com Svedberg e Hansson. Wallander percebeu que tinham estado à espera que ele regressasse. Martinsson estava ao telefone. Wallander conseguiu perceber que estava a falar com um dos filhos. Devolveu-lhe as chaves.
– Quanto tempo esteve a mala naquele sítio? – perguntou Wallander.
A resposta de Nyberg surpreendeu-o. Imaginara outra coisa.
– No máximo um par de dias – respondeu Nyberg. – No máximo três.
– Por outras palavras, foi guardada noutro local durante bastante tempo – concluiu Hansson.
– O que também levanta uma outra questão – acrescentou Wallander. – Por que é que o criminoso só agora se livra dela? Ninguém tinha respostas. Nyberg calçou luvas de plástico e abriu a mala. Estava prestes a tirar a peça de roupa do topo quando Wallander lhe pediu para esperar. Inclinou-se em cima da mesa. O que lhe chamara a atenção, não sabia.
– Temos alguma fotografia disto? – perguntou.
– Da mala aberta não – respondeu Nyberg.
– Trata disso – respondeu Wallander. Estava convencido de que havia alguma coisa na maneira como a mala estava feita que o fizera reagir, só que não conseguía dizer de imediato o que era.
Nyberg deixou a sala e voltou com uma máquina fotográfica. Como tinha dores na perna, pediu a Svedberg para subir a uma cadeira e tirar as fotografias.
De seguida tiraram o conteúdo da mala. Wallander viu à frente dele um homem que tivera intenções de viajar para África com bagagem leve. Na mala não havia objetos ou roupas inesperados. Nos bolsos laterais encontraram os documentos de viagem, assim como um largo montante de dinheiro em notas de dólar. No fundo da mala encontravam-se alguns cadernos de apontamentos, literatura sobre orquídeas e ainda uma máquina fotográfica. Contemplaram os diversos objetos em silêncio. Wallander deu voltas à cabeça quanto ao que tinha captado quando a tampa da mala fora aberta. Entretanto Nyberg abrira o estojo e verificava o nome de um frasco de comprimidos.
– Profilaxia da malária – leu. – Gösta Runfeldt: sabia do que necessitava lá em baixo, em África.
Wallander inspecionou a mala vazia. Descobriu que um objeto estava entalado no forro da tampa. Nyberg soltou-o. Era um crachá azul de plástico para identificação.
– Gösta Runfeldt talvez fosse a algum congresso – propôs Nyberg.
– Ia participar num safari fotográfico – informou Wallander. Evidentemente poderia ter ficado de alguma viagem anterior. Tirou um guardanapo de papel da mesa e segurou no alfinete atrás do crachá. Aproximou-o, dos olhos. Então sentiu o cheiro de um perfume. Ficou pensativo. Mostrou-o a Svedberg ao seu lado.
– Sentes o cheiro? – Loção de barba? Wallander abanou com a cabeça.
– Não, é perfume.
Cada um cheirou. Hansson, que estava constipado, absteve-se. Concordaram que cheirava a perfume de mulher. Wallander sentiu-se cada vez mais confundido. Também achou que reconhecia o crachá.
– Quem viu um crachá destes alguma vez? – perguntou. Martinsson tinha a resposta.
– Não são crachás destes que são utilizados pelos Serviços de Saúde da Comarca de Malmö? – perguntou. – Todos os que trabalham no hospital utilizam este tipo.
Wallander chegou à conclusão de que ele tinha razão.
– Isto não bate certo – disse. – Um crachá de plástico que cheira a perfume na mala de Gösta Runfeldt preparada para uma viagem a África.
No mesmo instante lembrou-se do que o confundira quando tinham aberto a tampa da mala.
– Gostaria que Ann-Britt Höglund viesse – disse. – Apesar de ter as crianças doentes. Talvez a sua fantástica vizinha possa ajudar por meia hora? A Polícia terá que pagar essa conta.
Martinsson marcou o número. A conversa foi muito curta.
– Ela vem – informou.
– Por que é que a queres cá? – perguntou Hansson.
– Só quero que faça uma coisa com esta mala – respondeu Wallander. – Nada mais.
– Vamos recolocar o conteúdo? – perguntou Nyberg.
– É exatamente o que não devemos fazer – respondeu Wallander. – É por isso que quero que ela venha cá, para fazer a mala. Contemplaram-no com espanto, mas ninguém disse nada. Hansson assoou-se. Nyberg sentou-se numa cadeira para descansar o pé dorido. Martinsson desapareceu em direção ao seu gabinete, provavelmente para telefonar para casa e Wallander deixou a sala de reuniões para ir ver um mapa sobre o distrito policial de Ystad. Seguiu as estradas entre Marsvinsholm, Lõdinge e Ystad. Algures há sempre um centro, pensou, um ponto fulcral entre diferentes ocorrências que também tem uma correspondência na realidade. Que um criminoso volte ao local do crime, raramente está correto. Pelo contrário, um criminoso passa frequentemente no mesmo ponto pelo menos duas vezes, ou mais.
Ann-Britt Höglund veio a correr pelo corredor. Como habitualmente, Wallander sentiu remorsos por lhe ter pedido para vir. Entendeu, agora melhor do que nunca, os problemas que tinha por tão frequentemente estar sozinha com as duas crianças. No entanto, desta vez achou que tinha um motivo justificado por a chamar.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou.
– Sabes que achamos a mala de Runfeldt?
– Já ouvi dizer.
Entraram na sala de reuniões.
– O que está nesta mesa encontrava-se na mala – disse Wallander.
– Quero que ponhas um par de luvas e metas tudo lá novamente.
– De alguma maneira especial? – Da maneira que achares ser natural. Contaste-me uma vez que fazias sempre a mala do teu marido. Por outras palavras, estás habituada.
Fez o que ele lhe pedira. Wallander estava grato por ela não ter feito perguntas. Observaram-na. Habituada e decidida escolheu os objetos e fez a mala. Depois recuou um passo.
– Fecho a tampa? – Não é necessário.
Estavam juntos à volta da mesa e contemplaram o resultado. Fora como Wallander tinha previsto.
– Como sabias a maneira como Runfeldt fez a mala? – perguntou Martinsson.
– Deixemos por agora os comentários – interrompeu Wallander.
– Vi que um policial de trânsito estava na cantina. Vá buscá-lo.
O policial de trânsito, que se chamava Laurin, entrou na sala. Entretanto vazaram a mala novamente. Laurin parecia cansado. Wallander tinha ouvido falar de uma grande operação noturna para controle de álcool nas estradas. Wallander pediu-lhe para calçar as luvas e colocar o conteúdo na mala. Laurin também não fez perguntas. Wallander observou que não era desleixado e que tratava a roupa com cuidado. Quando acabou, Wallander agradeceu-lhe e deixou a sala.
– Totalmente diferente – comentou Svedberg – Não procuro provar nada – disse Wallander. – Também não acho possível, mas quando Nyberg abriu a tampa fiquei com a impressão de que havia algo que não batia certo. Sempre tive uma experiência de que homens e mulheres fazem as malas de maneira diferente. Parecia-me que esta mala fora feita por uma mulher.
– Vanja Andersson? – propôs Hansson.
– Não – respondeu Wallander. – Não foi ela, foi o próprio Gösta Runfeldt que fez a mala. Podemos estar bastante seguros disso. Ann-Britt Höglund foi a primeira que percebeu onde ele queria chegar.
– Queres dizer portanto que posteriormente foi refeita? Por uma mulher?
– Não quero dizer nada de definitivo. Mas estou a tentar pensar alto. A mala esteve ao ar livre uns dias. Gösta Runfeldt estava desaparecido há bastante mais tempo. Onde esteve a mala entretanto? Também pode explicar umas falhas curiosas quanto ao conteúdo.
Mais ninguém a não ser Wallander pensara nisso anteriormente. Mas agora todos entenderam subitamente o que pretendia dizer.
– Não há roupa interior na mala – observou Wallander. – Parece-me estranho que Gösta Runfeldt se preparasse para uma viagem a África sem levar um único par de cuecas na mala.
– Não é provável – comentou Hansson.
– O que por sua vez significa que alguém refez a mala – respondeu Martinsson –, por exemplo uma mulher que, quando refaz a mala, faz desaparecer toda a roupa interior de Runfeldt.
Wallander sentiu a excitação na sala.
– Há mais uma coisa – prosseguiu devagar. – Desapareceram as cuecas de Runfeldt por alguma razão e simultaneamente apareceu um objeto estranho na mala.
Apontou para o crachá de plástico azul. Ann-Britt ainda tinha as luvas calçadas.
– Cheira-o – sugeriu Wallander. Ela fê-lo.
– Um perfume feminino discreto – foi a reação dela.
Houve silêncio na sala. Pela primeira vez todo o grupo de investigação ficou em suspense.
Por fim foi Nyberg quem quebrou o silêncio.
– Significa isso que existe uma mulher envolvida nestes atos hediondos.
– Pelo menos não o podemos excluir – respondeu Wallander. Apesar de nada o indicar diretamente, exceto esta mala.
Fez-se novamente silêncio. Por muito tempo. Eram sete e meia de domingo, 16 de outubro.
Ela chegou ao viaduto dos caminhos -de-ferro logo a seguir às sete. Estava frio. Mexia os pés constantemente para manter o calor. Ainda demoraria a chegar quem esperava. Pelo menos uma meia hora, talvez mais, mas ela estava sempre a tempo. Lembrou-se com um arrepio das vezes na vida em que chegara tarde. Permitir que as pessoas esperassem. Entrar em espaços diferentes onde as pessoas a fitavam.
Nunca mais na vida iria chegar tarde pois orientara a sua vida segundo horários que lhe concediam espaço de manobra.
Estava completamente calma. O homem que iria brevemente passar sob o viaduto era um homem que não merecia viver. Não conseguia odiá-lo. A mulher que tivera tão pouca sorte e que o podia odiar. Ela estava ali na escuridão apenas à espera de fazer o necessário.
A única dúvida que tivera era se devia esperar. O forno estava vazio. Porém, os horários de trabalho na semana seguinte eram complicados. Ela não queria arriscar a que ele morresse no forno. Chegara à conclusão de que tinha que ser feito imediatamente. Também não tivera dúvidas a respeito de como devia proceder. A mulher que lhe contara a sua vida, e que por fim também lhe tinha dado o nome dele, falara sobre uma banheira cheia de água. Sobre a sensação de ser pressionada para baixo de água e quase não aguentar sem respirar, rebentar por dentro.
Pensara na catequese. As chamas do inferno que esperavam pelo pecador. O medo continuava lá. Ninguém sabia como se media o pecado. Também ninguém sabia quando era aplicado o castigo. Sobre esse medo nunca fora capaz de falar com a sua mãe. E refletira sobre os últimos momentos da vida da sua mãe. A agente argeliana, que se chamava FrançoiSe Bertrand, tinha escrito que tudo acontecera muito depressa. Não podia ter sofrido. Provavelmente nem sequer tomara consciência do que lhe aconteceu. Mas como podia a polícia saber? Teria, apesar de tudo, tentado omitir parte da verdade demasiado insuportável? Um comboio passou por cima da sua cabeça. Contou as carruagens. Depois ficou tudo novamente calmo.
Com fogo não – pensou –, mas com água. O pecador irá sucumbir com água.
Olhou para o relógio. Reparou que os atacadores das sapatilhas de ginástica estavam a soltar-se. Baixou-se para os apertar, com força. Tinha força nas mãos. O homem de quem estava à espera e que tinha vigiado nos últimos dias era baixo e gordinho e não lhe iria criar problemas. Tudo se passaria num instante.
Um homem com um cão passou por baixo do viaduto dos caminhos-de-ferro do outro lado da rua. Os seus passos ecoavam contra o passeio, A situação fê-la pensar num velho filme a preto e branco. Optou por fazer o que era mais simples, fingir que esperava por alguém. Tinha a certeza de que posteriormente ele não iria lembrar-se dela. Em toda a sua vida aprendera a não se fazer notar, a tornar-se invisível. Só agora percebeu que fora uma preparação para algo de que antes não poderia ter conhecimento.
O homem com o cão desapareceu. O seu carro estava do outro lado do viaduto. Apesar de se encontrarem no centro de Lund, havia pouco trânsito, tendo o homem com o cão sido a única pessoa que passou, além de um ciclista. Sentiu que estava preparada e que nada podia correr mal.
Depois viu o homem que esperava. Vinha a pé no mesmo passeio onde ela estava. À distância ouvia-se um carro. Ela baixou-se como se tivesse dores de estômago. O homem parou ao seu lado e perguntou se estava doente. Em vez de responder, ajoelhou-se. Ele fez o que ela tinha calculado, colocou-se perto dela e inclinou-se para a frente. Disse que fora subitamente atingida por um mal-estar. Será que ele a poderia ajudar a chegar ao carro? Estava perto. Agarrou-a por baixo do braço e ela fez por se tornar pesada. Ele teve que se esforçar para a manter de pé, exatamente como tinha calculado, pois as suas forças físicas eram limitadas, Levou-a até ao carro, perguntou-lhe se precisaria de mais ajuda, mas ela declinou. Abriu-lhe a porta do carro e então ela estendeu rapidamente a mão para o sítio onde estava o trapo. Para que o éter não evaporasse, metera-o num saco de plástico. Levou apenas uns segundos para o tirar. A rua continuava deserta. Virou-se rapidamente, pressionou o trapo firmemente contra a cara dele. Tentou libertar-se, mas ela tinha mais força. Quando começou a deslizar para o chão, aguentou-o com um dos braços enquanto abriu a porta de trás. Foi fácil metê-lo lá dentro. Sentou-se no banco da frente. Passou um carro, logo a seguir mais um ciclista. Inclinou-se para o banco de trás e pressionou o trapo contra a cara. Depressa ficou inconsciente, já não iria acordar durante o tempo que levaria a chegar ao lago.
Seguiu a estrada por Svaneholm e Brodda para chegar ao lago. Virou junto ao pequeno parque de campismo abandonado, junto à beira do lago. Desligou as luzes e saiu do carro. Pôs-se à escuta. Estava tudo muito silencioso, as caravanas estavam desertas. Puxou o homem inconsciente para fora do carro e colocou-o no chão. Tirou o saco da bagageira. Os pesos bateram numas pedras. Levou mais tempo do que pensara a metê-lo no saco e a atá-lo.
Quando puxou o saco para cima do pequeno pontão que entrava na agua, ele continuava inconsciente. Uma ave passou no ar à distância. Colocou o saco na ponta do pontão. Só restava um curto momento. Acendeu um cigarro. Na luz da brasa contemplou a sua mão. Estava firme.
Cerca de vinte minutos depois o homem dentro do saco começou a acordar. Mexia-se lá dentro.
Pensou na casa do banho. A hístória da mulher. E lembrava-se dos gatos que se afogavam quando era criança. Desapareciam em sacos, ainda vivos, flutuando na água, lutando desesperadamente pela vida.
Ele começou a gritar e agora arranhava no saco. Apagou o cigarro contra o pontão.
Tentou pensar, mas a cabeça estava vazia.
Depois com um pé empurrou o saco para a água e foi embora.
Ficaram tanto tempo na central que o domingo passou a segunda-feira. Wallander mandara Hansson para casa, Nyberg também logo a seguir, tendo os outros ficado e começado a analisar novamente todo o material da investigação.
A mala de viagem obrigou-os a retroceder. Ficaram sentados na sala de reuniões com a mala na sua frente em cima da mesa até finalizarem a reunião. Nessa altura Martinsson fechou-a e levou-a para o seu gabinete.
Reviram tudo o que acontecera, sem menosprezar nada do trabalho já feito. Havia necessidade de lançar olhares para os lados, deter-se perante diferentes pormenores e esperar descobrir algo que anteriormente tivesse passado despercebido.
Porém, não encontraram nada que lhes indicasse terem, finalmente, encontrado uma saída. Os acontecimentos continuavam obscuros, as relações vagas, os motivos desconhecidos. O retrocesso conduzia-os ao ponto de partida, à morte cruel de dois homens às mãos de um único assassino.
já passava da meia-noite e um quarto quando Wallander pôs ponto final à reunião. Combinaram encontrar-se cedo na manhã seguinte para planejarem a continuação do trabalho de investigação. O que significava principalmente uma análise para ver se o planejamento da investigação deveria ser alterado em consequência da descoberta da mala.
Ann-Britt Höglund esteve sempre presente. Por duas vezes abandonou a sala só por uns instantes supondo Wallander que tivesse sido para telefonar e falar com a vizinha que estava a tomar conta dos filhos. Depois de a reunião acabar, Wallander pediu-lhe para ficar ainda uns minutos. Arrependeu-se imediatamente. Não devia, ou não podia retê-la por mais tempo. Todavia, ela sentou-se novamente e esperou que os outros saíssem.
– Quero que me faças uma coisa. Que analises todos estes acontecimentos e elabores uma perspectiva feminina. Quero que vejas todo o material de investigação e imagines que quem procuramos é uma criminosa e não um criminoso. Os pontos de partida têm que ser dois. Num caso partes do princípio de que agiste sozinha. No segundo de que pelo menos tenhas participado.
– Queres dizer que foram pelo menos dois? – Sim, dos quais um e, certamente, uma mulher, mas evidentemente também pode ter havido mais pessoas envolvidas.
Acenou com a cabeça.
– O mais depressa possível – prosseguiu Wallander. – De preferência durante o dia de amanhã. Quero que faças isso antes de mais nada. Se tiveres outras coisas que não possam esperar, entrega-as a outro colega.
– julgo que de Estocolmo, está cá amanhã. Também vêm um ou dois policiais de Malmö. Posso entregá-las a um deles. Wallander não tinha mais nada para acrescentar. Mas continuaram sentados.
– Acreditas mesmo que seja uma mulher? – perguntou.
– Não sei – retorquiu Wallander. – É óbvio que é perigoso permitir que esta mala e o cheiro a perfume obtenham uma importância maior do que na realidade têm. Todavia, não posso ignorar que toda esta investigação tem uma tendência para nos fugir das mãos. Há alguma coisa esquisita desde o início. já quando estávamos junto à valeta quando Eriksson estava suspenso nas estacas de bambu, disseste uma coisa em que tenho pensado frequentemente.
– Que tudo parecia tão demonstrativo? – A linguagem do assassino. Cheirava a guerra à volta do que vimos. Holger Eriksson fora chacinado numa armadilha.
– Talvez haja guerra – disse pensativamente. Wallander observou-a com atenção.
– O que queres dizer? – Não sei. Talvez devêssemos interpretar o que vimos exatamente como é. Em buracos com paus bicudos apanham-se predadores. Além de existirem em guerras, às vezes.
Wallander já tinha chegado à conclusão de que o que dissera podia ser importante.
– Continua – sugeriu.
Ela mordeu o lábio.
– Não posso – respondeu. – Quem está a tomar conta dos meus filhos tem que ir para casa, não a posso reter mais. A última vez que telefonei estava zangada e, quando é assim, não adianta que lhe pague bem pelo que faz.
Wallander não queria largar a conversa que iniciaram. Por um curto instante sentiu-se irritado por causa dos filhos. Ou talvez fosse por causa do marido que nunca estava em casa. Mas arrependeu-se de imediato.
– Podes vir para a minha casa – propôs ela. – Podemos continuar a falar lá. – Ele viu que ela estava muito pálida e muito cansada. Não a devia pressionar, mas, no entanto, aceitou. Passaram pela cidade deserta no carro dela. A ama estava à porta à espera. Ann-Britt Höglund morava numa casa de construção nova na entrada oeste da cidade. Wallander cumprimentou a ama e, desculpando-se, assumiu a responsabilidade de ela regressar tão tarde. Depois sentaram-se na sala de estar. Tinha lá estado poucas vezes mas conseguia-se depreender que morava um viajante na casa. Havia lembranças de vários países nas paredes. Porém, não se via que também lá vivia uma policial. Sentiu um conforto de lar que faltava totalmente na sua casa na Mariagatan. Ann-Britt perguntou-lhe se queria beber alguma coisa, porém ele declinou a oferta.
– Armadilha e guerra – começou Wallander. – Chegamos até aqui.
– São os homens que caçam, os homens que são soldados. Vimos o que vimos, além disso encontramos uma cabeça ressequida e um diário escrito por um mercenário. Vimos o que vimos e interpretamos o que vimos.
– Como é que o interpretamos? – Estamos a interpretar bem e se o assassino tem uma linguagem, então Podemos ler com clareza e evidência o que escreve.
Wallander lembrou-se subitamente de uma coisa que Linda dissera numa ocasião quando tentara explicar-lhe do que constava, na realidade, o trabalho de um ator. Ler nas entrelinhas, procurar o oculto. Relatou a sua reflexão, o que Linda dissera. Ela anuiu.
– Talvez me expresse mal – respondeu. – Mas é mais ou menos como eu penso. Vimos tudo e interpretamos tudo e, no entanto, estamos enganados.
– Vimos o que o assassino quer que vejamos?
– Talvez sejamos levados a olhar para o lado errado.
Wallander refletiu, Sentiu que agora que o cansaço desaparecera estava totalmente desperto. Seguiam uma pista que podia ser decisiva, uma pista que existira anteriormente na sua consciência, mas que nunca conseguira controlar.
– O que nos parece evidente é, portanto, uma manobra de diversão? – perguntou. – É isso que queres dizer? -SIM.
– Prossegue! – Talvez a verdade seja precisamente ao contrário. Como assim? – Não sei. Mas se julgarmos que pensamos bem e está errado, então o que é errado terá que, por fim, estar certo.
– Entendo – respondeu Wallander. – Entendo e concordo contigo.
– Uma mulher nunca espetaria um homem em estacas numa valeta disse. – Também não iria atar um homem a uma árvore e depois esganá-lo só com as próprias mãos.
Wallander não disse nada durante um bom bocado. Ela desapareceu para o primeiro andar e regressou passado uns minutos. Viu que calçara outros sapatos.
– Tivemos permanentemente a sensação de que tudo foi muito bem planeado – prosseguiu Wallander. – A questão é se foi bem planeado, de mais do que uma maneira? – Evidentemente não consigo imaginar que uma mulher pudesse ter feito isso – disse ela. – Mas agora verifico que talvez isso seja verdade.
– O teu trabalho vai ser importante – disse Wallander. – Acho que também devemos falar com Mats Ekholm a este respeito.
– Quem? – O psicólogo criminal que esteve cá o verão passado. Ela abanou com a cabeça num gesto de desespero.
– Provavelmente estou muito cansada. Esqueci-me do seu nome, Wallander levantou-se. Era uma hora.
– Vemo-nos amanhã – disse. – Podes chamar um táxi? – Podes levar o meu carro – respondeu. – Amanhã de manhã vou precisar de um longo passeio para desanuviar a cabeça. – Deu-lhe as chaves. – O meu marido regressa brevemente, Tudo ficará mais fácil.
– Provavelmente só agora entendi as dificuldades que tens – disse.
– Quando Linda era pequena, Mona estava sempre disponível. julgo que nunca tive que deixar de ir trabalhar durante a sua infância.
Acompanhou-o à porta. A noite estava clara e a temperatura descera abaixo de zero.
– Mas nunca me arrependi – disse ela subitamente.
– Arrepender de quê? – De me ter tornado policial.
– És uma boa policial – afirmou Wallander. – Uma excelente policial. Caso não o saibas.
Pressupôs que ela ficou contente. Despediu-se, sentou-se no carro dela e partiu.
No dia seguinte, segunda-feira, 17 de outubro, Wallander acordou com uma leve dor de cabeça. Ficou na cama e refletiu se estava a ficar constipado, mas não notou nenhum outro sintoma. Fez café e procurou uns comprimidos para as dores. Viu pela janela que se levantara vento. Durante a noite um grupo de nuvens tinham coberto a Scanía, a temperatura subira, o termômetro mostrava quatro graus positivos.
Às sete e um quarto estava na central. Foi buscar café e sentou~se no gabinete. Havia uma mensagem em cima da mesa, do policial de Gotemburgo com quem colaborava na investigação do contrabando de automóveis da Suécia para os países do antigo Bloco de Leste. Esteve sentado com o papel na mão uns instantes, antes de o meter numa gaveta. Puxou por um caderno de apontamentos e começou a procurar uma caneta. Numa das gavetas viu o papel de Svedberg. Interrogou-se sobre quantas vezes se teria esquecido de lho entregar.
Irritado, levantou-se e saiu para o corredor. A porta de Svedberg estava aberta. Entrou e colocou o papel na mesa, regressou ao gabinete, fechou a porta e dedicou a meia hora seguinte a anotar todas as questões que queria esclarecidas o mais rapidamente possível. Também decidira divulgar a conversa que tivera com Ann-Britt Höglund na noite anterior, já nesta manhã quando se encontrasse com o grupo de investigação.
A um quarto para as oito bateram à sua porta. Era Hamrén da seção criminal de Estocolmo que chegara. Cumprimentaram-se. Wallander gostava dele pois tinham tido uma excelente colaboração no verão anterior.
– Já cá estás ? – exclamou. – Pensei que só viesses durante o dia.
– Vim de automóvel ontem – respondeu Hamrén. – Não conseguia aguentar.
– como estão em Estocolmo? – como aqui. Mas em maior dimensão.
– Não sei onde te vais instalar – disse Wallander.
– No gabinete de Hansson. já está resolvido.
– Vamos ter um encontro dentro de cerca de meia hora.
– Tenho muito para estudar.
Hamrén deixou o gabinete. Wallander pôs a mão distraidamente no telefone para falar com o pai. Reagiu a uma tristeza grande e instantânea vinda sabe-se lá donde. já não existia nenhum pai a quem telefonar. Hoje não, amanhã também não, nunca mais.
Estava sentado imóvel na sua cadeira com medo de começar a sentir mágoa.
Depois inclinou-se e marcou o número. Gertrud respondeu quase imediatamente. Parecia cansada e começou a chorar quando Wallander subitamente perguntou como estava, tendo ele próprio ficado com um nó na garganta.
– Vou vivendo um dia de cada vez – respondeu, depois de se acalmar.
– Vou tentar ir aí um bocado esta tarde – disse Wallander. Não pode ser por muito tempo. Mas de qualquer maneira vou tentar.
– Tenho pensado em tanta coisa – disse. – Sobre ti e o teu pai. De quem sei tão pouco.
– Também eu. Mas podemos tentar preencher o que falta. Desligaram e sabia que provavelmente não teria tempo de ir a Lõderup durante o dia. Por que e que então dissera que iria tentar? Ela ficaria à espera dele.
Vivo uma vida que me faz desiludir as pessoas, pensou desolado. Zangado, quebrou o lápis que tinha na mão. Atirou os pedaços para o cesto de papéis. Um caiu no chão. Deu-lhe um pontapé. Houve um momento em que a sua vontade era fugir. Interrogou-se sobre quando falara a última vez com Balba. Ela também não tinha telefonado, seria que a sua relação estava num processo de desagregação? Quando iria arranjar tempo para ver casas? Comprar um cão? Havia momentos em que detestava a sua profissão. Precisamente agora era um momento desses.
Foi até a janela. Vento e nuvens outonais. Aves migratórias a caminho de países mais quentes. Pensou em Per Akeson que, finalmente, tinha optado por uma mudança, e decidira que a vida sempre podia conter mais alguma coisa.
Balba dissera numa ocasião durante o fim do verão, quando passeavam ao longo das praias de Skagen, que era como se todo o mundo rico ocidental partilhasse um sonho comum de um veleiro gigantesco que podia levar todo o continente para as Caraffias. Também disse que a queda dos Estados de Leste lhe tinha aberto os olhos. Na pobre Lituânia havia ilhas de riquezas, a alegria simples, mas descobrira que a pobreza nos países ricos que agora podia visitar também era muito grande. Havia um mar de descontentamento e vacuidade e era aqui que entrava o sonho do veleiro.
Wallander tentou pensar em si próprio como uma ave migratória esquecida ou talvez com vontades divididas, mas a reflexão pareceu-lhe tão idiota e sem sentido que fez por mudar de assunto.
Tomou um apontamento para se lembrar de telefonar a Balba nessa mesma noite. Depois viu que o relógio já indicava oito e– um quarto. Foi para a sala de reuniões, onde além de Hamrén, que acabara de chegar, também se encontravam dois policiais de Malmö. Wallander nunca os tinha visto anteriormente. Cumprimentou-os. Um deles chamava-se Augustsson e o outro Hartinan. Lisa Holgersson chegou e sentaram-se, tendo ela desejado boas-vindas aos recém-chegados. Não havia tempo para mais. Depois olhou para Wallander e fez sinal para começar.
Começou como tinha planejado. Com a conversa que tivera com Ann-Britt Höglund após a experiência com a mala. Viu imediatamente que a reação na sala se caraterizava por dúvidas. Já estava à espera, também partilhava as dúvidas.
– Não apresento isto senão como uma das muitas possibilidades. Como não sabemos nada também não podemos pôr nada de parte. Acenou para Ann-Britt Höglund.
– Pedi um resumo da investigação com cunho feminino – afirmou. – Nunca fizemos algo semelhante anteriormente, mas neste caso não se pode deixar nada por experimentar.
A discussão que se seguiu foi intensa. Wallander também contara com isso. Hansson, que esta manhã parecia estar melhor, foi quem a iniciou. Mais ao menos a meío da reunião chegou Nyberg, que esta manhã já se deslocava sem bengala.
O olhar de Wallander foi ao encontro do de Nyberg. Ficou com a impressão de que Nyberg tinha algo para dizer. Olhou-o interrogativamente. Porém, Nyberg abanou a cabeça.
Wallander ouviu a discussão sem participar muito ativamente. Reparou que Hansson se expressava de maneira clara e argumentava bem. já agora também era importante encontrar todos os contra-argumentos que pudessem apresentar.
Às nove horas fizeram uma curta pausa. Svedberg mostrou a Wallander uma fotografia do jornal da primeira milícia popular em Lõdinge. Muitas outras localidades na Scania pareciam seguir-lhe o exemplo. Lisa Holgersson vira uma intervenção numa das transmissões de notícias na noite anterior.
– Acabamos por ter milícias populares em todo o país brevemente – disse. – Imaginem uma situação com dez vezes mais policiais "faz-de-conta" do que nós, verdadeiros policiais.
– Provavelmente é inevitável – disse Hamrén. – Talvez o crime sempre tenha compensado? A diferença hoje é que é possível provar. Se recebêssemos dez por cento de todo o dinheiro que desaparece com a criminalidade econômica, poderíamos certamente empregar mais 3.000 policiais.
O número parecia absurdo para Wallander. Porém, Hamrén manteve a sua opinião.
– A questão é se queremos uma comunidade desse tipo – prosseguiu. – O médico de família é uma coisa. Mas o policial de família? Policiais em todo parte? Uma comunidade dividida em zonas vigiadas? Chaves e códigos para visitar os próprios pais? – Provavelmente não precisamos de tantos policiais novos – contrapôs Wallander. – Precisamos de polícias diferentes.
– Possivelmente precisamos de uma comunidade diferente – acrescentou Martinsson. – Com menor número de acordos preestabelecidos e uma maior partilha.
As suas palavras tomaram subitamente um tom político de discurso eleitoral. Todavia, Wallander julgava entender o que Martinsson pretendia dizer. Sabia que Martinsson se preocupava permanentemente com os filhos. Pelo risco de terem contato com drogas. Por alguma coisa que lhes pudesse acontecer.
Wallander sentou-se ao lado de Nyberg, que não chegara a deixar a mesa.
– Parecia que querias dizer alguma coisa.
– Era só um pequeno pormenor – respondeu. – Lembras-te de que encontrei uma unha postiça na floresta de Marsvinsholm? Wallander lembrava-se. – Aquela que pensavas que teria lá estado há muito tempo? – Não pensava nada. Mas não a pus de parte. Agora julgo que se pode determinar que não esteve no local por muito tempo. Wallander acenou com a cabeça. Chamou Ann-Britt Höglund.
– Utilizas unhas postiças? – perguntou.
– Não no dia-a-dia – respondeu. – Mas evidentemente já usei.
– Ficam bem fixas?
– Quebram com facilidade.
Wallander assentiu.
– Pensei que devias saber – prosseguiu Nyberg. Svedberg entrou na sala.
– Obrigado pelo papel com o apontamento – disse. – Mas podias tê-lo jogado fora.
– Rydberg costumava dizer que era um pecado imperdoável jogar fora apontamentos de um colega – replicou Wallander.
– Rydberg dizia muitas coisas.
– Frequentemente verificava-se que eram acertadas.
Wallander sabia que Svedberg nunca se dera bem com o seu colega mais velho. O que o surpreendia era que a aversão ainda persistisse, apesar de Rydberg estar morto há anos.
A reunião prosseguiu. Fizeram uma redistribuição das tarefas para que Hamrén e os dois policiais de Malmö pudessem integrar-se imediatamente na investigação. Quando faltava um quarto para as onze, Wallander decidiu que eram horas de acabar a reunião. Tocou o telefone. Martinsson, que estava mais perto, levantou o fone. Wallander começou a sentir fome. Apesar de tudo, talvez acabasse por ter tempo para ir a Lõderup visitar Gertrud mais tarde. Reparou nessa altura que Martinsson levantava o braço. Fez-se silêncio à volta da mesa. Martinsson escutava atentamente. Olhou para Wallander, que entendeu imediatamente que algo sério acontecera. Outra vez não, pensou. Não pode ser, não aguentamos mais.
Martinsson pousou o fone.
– Encontraram um cadáver no lago Krageholm – informou Martinsson.
Wallander pensou subitamente que não significava que o criminoso tivesse atuado novamente. Acidentes de afogamento não são invulgares.
– Onde? – perguntou Wallander.
– Há um pequeno parque de campismo do lado leste. O corpo estava no pontão.
Wallander percebeu depois que sentira alívio cedo demais. Martinsson tinha mais para dizer.
– Um cadáver dentro de um saco – acrescentou. – Um homem.
Então aconteceu mais uma vez, pensou Wallander. Reapareceu o nó no seu estômago.
– Quem telefonou? – perguntou Svedberg.
– Um campista. Telefonou do celular. Estava muito agitado. Parecia que estava vomitando diretamente no meu ouvido.
– Não deve haver ninguém fazendo campismo nesta altura – interveio Svedberg.
– Há caravanas que estão lá todo o ano – disse Hansson. – Sei onde é.
Subitamente Wallander sentiu-se incapaz de lidar com a situação. Desejou estar longe de tudo. Ann-Britt Höglund pareceu perceber. Pelo menos ajudou-o, levantando-se.
– É melhor irmos embora – sugeriu.
– Sim, é melhor irmos embora imediatamente – anuiu Wallander. Como Hansson sabia para onde iam, Wallander sentou-se no carro dele. Os outros seguiram-nos. Hansson conduziu depressa e de maneira descuidada. Wallander travava com os pés. O telefone do carro tocou. Era Per Akeson que queria falar com Wallander.
– O que ouve? – perguntou. – Aconteceu mais uma vez?
– É cedo para dar resposta. Mas o risco existe.
– Por que existe o risco? Se fosse um cadáver a flutuar, podia tratar-se de um acidente de afogamento ou suicídio. Um cadáver num saco é homicídio. Não pode ser outra coisa.
– Que diabo – exclamou Per Akeson.
– Bem podes dizer.
– Mantém-me informado. Onde estás?
– A caminho do lago Krageholm. Suponho que chegaremos em vinte minutos.
Desligaram. Wallander pensou que estavam no mesmo caminho onde encontraram a mala. O lago de Krageholm situava-se nas proximidades do triângulo com que anteriormente se tinha deparado.
Hansson parecia pensar a mesma coisa.
– O lago fica entre Usdinge e a floresta de Marsvinsholm – disse.
– Não são grandes distâncias.
Wallander pegou o telefone e ligou o número de Martinsson.
O carro estava mesmo atrás do deles. Martinsson respondeu. – O que disse mais? O fulano que telefonou? Como se chamava?
– Julgo que não se identificou, mas era de Scania.
– Um cadáver num saco. Como sabia que havia um cadáver no saco? Abriu-o?
– Um pé com um sapato estava do lado de fora.
Apesar de a ligação ser má, Wallander conseguiu perceber o desconforto de Martinsson. Deu por terminada a conversa.
Chegaram a Sövestad e viraram à esquerda. Wallander pensou na mulher que fora a última cliente de Gösta Runfeldt. Em todo o lado havia vestígios dos acontecimentos. Caso existisse um centro geográfico, então esse centro era Sivestad.
O lago vislumbrava-se por entre os troncos das árvores. Wallander procurou mentalizar-se para o que os esperava.
Quando viraram para o parque de campismo deserto, veio um homem a correr na direção deles. Wallander saltou do carro antes de Hansson ter parado totalmente.
– Lá em baixo – exclamou o homem. – A sua voz era trémula e gaguejava.
Wallander andou devagar pela encosta abaixo que conduzia ao pontão, já à distância vislumbrou alguma coisa na água, de um dos lados do pontão. Martinsson juntou-se a ele, mas parou na berma, enquanto os outros aguardavam atrás. Wallander entrou com cuidado no pontão que abanava por baixo dele. A água estava castanha e parecia estar fria. Arrepiou-se.
O saco só era parcialmente visível à superfície da água. Um pé estava fora do saco, mostrando um sapato marrom. Via-se a pele branca por um buraco nas calças.
Wallander olhou para terra e chamou Nyberg com a mão. Hansson falava com o homem que telefonara, Martinsson esperava mais acima, Ann-Britt estava afastada dos outros. Wallander pensou que parecia uma fotografia. A realidade congelada, presa no gelo. Nada mais poderia acontecer.
A contemplação foi interrompida quando Nyberg pôs os pés no pontão. Voltou a realidade. Wallander baixou-se. Nyberg fez a mesma coisa.
– Saco de serapilheira – disse Nyberg. – Costumam ser resistentes. Mesmo assim tinha um buraco, deve ser velho.
Wallander gostaria que Nyberg tivesse razão, mas jà sabia que não era o caso.
O saco não tinha nenhum buraco. Viu-se que o homem tinha dado pontapés e rompido o saco. As fibras do saco foram esticadas e a seguir partiram-se.
Wallander sabia o que isso significava.
O homem estava vivo quando fora metido no saco e atirado ao lago. Wallander inspirou impetuosamente. Sentiu-se maldisposto e tonto. Nyberg olhou-o expectante, mas não disse nada, aguardou. Wallander continuou a respirar fundo, uma vez atrás da outra.
Depois disse o que pensava, aquilo que sabia que era a verdade. -Ele fez o buraco aos pontapés. Quer dizer que estava vivo quando foi atirado ao lago.
– Matança? – perguntou Nyberg. – Ajuste entre diferentes grupos criminosos? – Talvez possamos ter esperança que seja – respondeu Wallander.
– Mas não acredito.
– O mesmo homem? Wallander anuiu.
– Parece.
Wallander ergueu-se com esforço sentindo os joelhos perros. Voltou para a berma do lago. Nyberg permaneceu na extremidade do pontão. Os técnicos policiais acabavam de chegar com o seu transporte. Wallander foi ter com Ann-Britt Höglund. Nesta altura estava na companhia de Lisa Holgersson. Os outros aproximaram-se, por firn encontravam-se todos juntos. O homem que descobrira o saco estava sentado numa pedra com a cabeça nas mãos.
– Pode ser o mesmo criminoso – comentou Wallander. – Se foi –, desta vez afogou uma pessoa num saco.
O desconforto perpassou o grupo como um empurrão.
– Temos que travar este louco – disse Lisa Holgersson. – O que está a acontecer neste país? – Uma sepultura de estacas – relembrou Wallander. – Um homem estrangulado e atado a uma árvore. E agora um homem afogado.
– Ainda acreditas que uma mulher fosse capaz de fazer coisas destas? – perguntou Hansson. – O seu tom era notoriamente agressivo. Wallander repetiu a pergunta em silêncio para si mesmo. O que pensava na realidade? No decorrer de poucos segundos todos os acontecimentos passaram-lhe pela mente.
-Não – disse a seguir. – Não acredito, porque não quero acreditar, mas, apesar de tudo, pode ser uma mulher que os tenha cometido, ou pelo menos esteja envolvida.
Olhou para Hansson.
– A pergunta está mal colocada – continuou. – Não se trata daquilo que eu acredito. Trata-se do que está a acontecer hoje em dia no país.
Wallander regressou à berma do lago. Um cisne solitário estava a caminho do pontão. Deslizava silenciosamente sobre a superfície escura da água.
Wallander observou-o por muito tempo.
Depois fechou o casaco e voltou para junto de Nyberg, que já começara a trabalhar lá no extremo do pontão.
SCANIA
17 de outubro – 3 de Novembro de 1994
24
Nyberg abriu cuidadosamente o saco com uma faca. Wallander, na companhia de um médico que acabara de chegar, aproximou-se para ver a cara do morto.
Não o reconheceu. Nunca o vira antes, o que também naturalmente não esperava que acontecesse.
Wallander estimou que o homem teria entre quarenta a cinquenta anos.
Olhou para o cadáver, que tinha sido tirado do saco em menos de um minuto. Pura e simplesmente não aguentava mais, a tontura martelava-lhe a cabeça.
Nyberg verificava as algibeiras do homem.
– Tem um fato caro – observou Nyberg. – Os sapatos também não são baratos.
Não encontraram nada nas algibeiras, logo concluíram que alguém se tinha dado ao trabalho de atrasar a identificação. Por outro lado, o criminoso deveria ter partido do princípio de que o cadáver iria ser rapidamente encontrado no lago Krageholm. A intenção não fora portanto de o ocultar.
O cadáver estava agora a descoberto, o saco em cima de um plástico. Nyberg chamou Wallander, que se tinha afastado uns passos para o lado.
– Foi tudo muito bem calculado – comentou. – Até se poderia pensar que o assassino utilizou uma balança. Ou então tem conhecimentos sobre distribuição de pesos e da resistência da água.
– Como assim? – perguntou Wallander.
Nyberg apontou para umas bainhas grossas no lado interior do saco.
– Está minuciosamente preparado. O saco tem pesos metidos por dentro, o que garantiu a quem o fez duas coisas. Uma delas é que o saco ficasse suspenso apenas com uma estreita bolsa de ar na superfície da água. A outra é que não tem tantos pesos que, adicionados ao peso do homem, fizessem o saco ir ao fundo. Uma vez que está tão bem calculado, quem preparou o saco devia saber o peso do morto, Pelo menos aproximadamente, com uma margem de erro de, talvez, quatro, cinco quilos.
Wallander esforçou-se por refletir, mas apesar disso agoniava-o constatar a forma como o homem fora morto.
– Portanto, a estreita bolsa de ar garantiria que o homem realmente morreria afogado? – Não sou médico – disse Nyberg. – Mas certamente este homem estava vivo quando o saco foi atirado à água. Trata-se, portanto, de um assassínio.
O médico que estava ajoelhado a analisar o cadáver ouvira a conversa. Ergueu-se e aproximou-se deles. O pontão abanava sob o peso deles.
– Evidentemente é demasiado cedo para me pronunciar definitivamente sobre seja o que for. Porém, temos que pressupor que se afogou.
– Não se afogou – comentou Wallander. – Afogaram-no.
– Compete à Polícia determinar se se trata de um acidente ou de um assassínio – retorquiu o médico. – Se se afogou ou o afogaram. Apenas posso dizer o que aconteceu ao seu corpo.
– Não há danos exteriores? Não há sinais de violência, ou feridas.
– Temos que lhe tirar a roupa para ter resposta a isso. Todavia, nas partes visíveis do corpo não descobri nada. Naturalmente a análise da medicina legal pode chegar a outros resultados.
Wallander concordou.
– Quero que me informes de imediato caso encontres alguns sinais de ter sido sujeito a violência.
o médico regressou ao trabalho. Apesar de já o ter visto várias vezes antes, Wallander não se lembrava do nome dele.
Wallander abandonou o pontão ejuntou os seus colaboradores mais próximos à sua volta na praia. Hansson acabara de falar com o homem que descobrira o saco.
– Não encontramos documentos de identificação – começou Wallander. – Não sabemos quem é. Neste momento é o fator mais importante. Temos que descobrir a sua identidade, antes disso não podemos fazer nada. Vão ter que investigar os registros de desaparecidos.
– Há um grande risco de ainda não ter sido dado como desaparecido – acrescentou Hansson. – Este homem que o encontrou, chamado Nils Gõransson, afirma que esteve aqui recentemente, ontem à tarde. Trabalha por turnos numa fábrica de máquinas em Svedala e costuma vir até aqui porque tem dificuldade em dormir. Começou há pouco tempo a trabalhar por turnos. Portanto, esteve cá ontem. Sai sempre para o pontão. E nessa altura não viu nenhum saco. Por conseguinte, o morto deve ter sido empurrado para a água durante a noite. Ou ontem ao fim da tarde.
– Ou hoje de manhã – sugeriu Wallander. – Quando chegou ele cá? Hansson procurou nos seus apontamentos.
– Eram oito e um quarto. Saiu de turno às sete e veio diretamente para cá. No caminho parou para tomar o pequeno-almoço.
– Então, sabemos mais uma coisa – disse Wallander. – Que não passou tanto tempo como isso. Pode dar-nos vantagens. A dificuldade maior vai ser portanto identíficá-lo.
– É evidente que o saco pode ter sido empurrado para o lago de um outro local – observou Nyberg.
Wallander abanou a cabeça.
– Não esteve muito tempo dentro de água. Também não há correntes significativas no lago.
Martinsson dava pontapés na areia de maneira nervosa como se tivesse frio.
-Tem que ser o mesmo homem? – perguntou. – Acho que apesar de tudo é diferente.
Wallander tinha a certeza absoluta.
– Não. É o mesmo criminoso. De qualquer maneira, o mais sensato é partir do princípio de que é. E, quando necessário, admitir outras hipóteses.
Depois incitou-os ao trabalho. já não estavam a fazer nada de útil ali fora à beira do lago de Krageholm.
Os carros partiram. Wallander olhou para a água. O cisne desaparecera. Olhava os homens que estavam a trabalhar no pontão. A ambulância, os carros da Polícia, os cordões de segurança. Tudo isso provocou-lhe subitamente um sentimento de grande irrealidade. Foi ao encontro da natureza rodeada de fitas de plástico esticadas que limitavam locais de crimes. Por todo o lado por onde passava havia gente morta. Com o olhar podia procurar um cisne à superfície da água, mas em primeiro plano encontrava-se uma pessoa morta que acabara de ser tirada de um saco.
Pensou que o seu trabalho não era outra coisa senão um emprego mal pago e insuportável. Era pago para aguentar. As fitas de plástico enrolavam-se como uma serpente através da sua vida.
Foi ter com Nyberg que endireitava as costas.
– Encontramos uma beata – informou. – É tudo, pelo menos aqui no pontão. Contudo, já fizemos uma investigação superficial da areia. Procuramos vestígios de arrastamento e não há. Quem levou o saco para o extremo do pontão, era forte. A não ser que tenha levado primeiro o corpo e então depois o tenha enfiado no saco.
Wallander abanou a cabeça.
– Vamos partir do princípio de que o saco foi carregado – sugeriu. – Carregado com o seu conteúdo.
– Achas que vale a pena dragar? Wallander hesitou.
– Acho que não – respondeu. – O homem estava inconsciente quando chegou cá. Teve que ser transportado de automóvel. Depois o saco foi empurrado para a água. E o carro foi embora.
– Então não avançamos com a dragagem – respondeu Nyberg.
– Relata-me o que vês – pediu Wallander.
Nyberg fez uma careta.
– Bem, pode tratar-se do mesmo homem – disse a seguir. – A violência, a brutalidade são semelhantes. Mesmo havendo variações.
– Achas que uma mulher podia executar isso? – Digo o mesmo que tu – respondeu Nyberg. – Prefiro pensar que não. Porém, também tenho que dizer que, caso contrário, foi capaz de carregar oitenta quilos sem problemas. Que tipo de mulheres conseguem isso? – Não conheço nenhuma – retorquiu Wallander. – Mas naturalmente existem.
Nyberg regressou ao trabalho. Wallander estava mesmo a deixar o pontão quando subitamente descobriu o cisne solitário mesmo ao lado. Gostaria de ter um pedaço de pão. O cisne tentava apanhar alguma coisa junto à praia. Wallander avançou um passo. O cisne zuniu e afastou-se para a água.
Foi até um dos carros da Polícia e pediu para o levarem a Ystad.
A caminho da cidade tentou pensar. Acontecera o que mais receava, o criminoso ainda não tinha acabado e não sabiam nada sobre ele. Estaria no princípio ou no fim do que pretendia fazer. Também não sabiam se cometia acções premeditadas ou se era um louco.
Tem que ser um homem, pensou Wallander. Tudo o resto é contrário ao bom senso. As mulheres raramente cometem homicídios, muito menos homicídios premeditados. Atos de violência estudados e horrendos.
Tem que ser um homem, talvez mais do que um. Nunca vamos conseguir solucionar isto sem encontrar a relação entre as vítimas. Agora são três, o que devia aumentar as nossas possibilidades. Mas não há garantias. Nada se revela por si.
Encostou a face ao vidro do carro. A paisagem estava castanha com uma tonalidade acizentada. No entanto, a relva ainda estava verde. No campo, era visível um trator solitário.
Wallander pensou na sepultura de estacas onde encontrara Holger Eriksson. A árvore onde Gösta Runfeldt estava atado e fora estrangulado. E agora uma pessoa enfiada viva num saco, atirada ao lago Krageholm para morrer afogada.
Subitamente pressentiu que o motivo só poderia ser vingança. Mas isto ultrapassava todos os limites da razoabilidade. De que se vingava o criminoso? Qual era a origem? Algo tão horrível que não chegava matar, pelo contrário, os que morriam tinham que ter consciência do que lhes estava a acontecer.
Não há acasos por trás destas ocorrências, pensou Wallander. Tudo está minuciosamente premeditado e escolhido.
Deteve-se nesta última reflexão.
O criminoso escolhia. Alguém fora escolhido. Escolhido de entre quem ou quais? Quando chegou à central , estava contemplativo e sentiu necessidade de se isolar antes de se reunir com os seus colegas, Tirou o fone do telefone, empurrou as mensagens recebidas em cima da mesa e colocou os pés numa pilha de memorandos da Direção Nacional da Polícia.
A pior reflexão era sobre a mulher, a que poderia estar envolvida nos acontecimentos. Fez uma tentativa para se relembrar das ocasiões em que tivera que lidar com criminosas violentas. Não tinha acontecído muitas vezes. Pareceu-lhe conseguir relembrar todas essas ocasiões vividas durante os seus anos como policial. Uma única vez, havia quase quinze anos, ele próprio capturara uma mulher que cometera um homicídio. Mais tarde o tribunal decidiu-se por bomicídio ínvoluntário. Tratava-se de uma mulher de meia idade que matara o irmão, que a perseguia e incomodava desde a infância. Por fim não aguentara mais e por isso dera-lhe um tiro com a caçadeira dele. De fato, não tivera intenções de acertar, queria apenas assustá-lo, mas era fraca atiradora. Acertou-lhe no meio do tórax e ele morreu imediatamente. Em todas as outras ocasiões, de que Wallander conseguia lembrar-se, as mulheres utilizaram a violência impulsivamente ou em autodefesa. Tratava-se de situações com os próprios maridos, ou com homens que, sem sucesso, tentavam afastar. Em muitos casos o álcool também estivera envolvido. Jamais tivera experiência com uma mulher que planejasse cometer um ato de violência, pelo menos nada que envolvesse um plano minuciosamente concebido.
Ergueu-se e foi até a janela.
Por que não conseguia abandonar a ideia de que, apesar de tudo, era de uma mulher que desta vez se tratava? Não foi capaz de encontrar resposta, nem sequer sabia se achava que se tratava de uma mulher sozinha ou de uma mulher na companhia de um homem.
Nada apontava nem num nem noutro sentido.
Acordou dos seus pensamentos quando Martinsson bateu à porta.
– A lista está quase pronta – informou.
Wallander não percebeu o que ele queria dizer. Estivera profundamente mergulhado nas suas reflexões.
– Que lista? – A lista sobre os desaparecidos – respondeu Martinsson surpreso.
Wallander anuiu.
– Então reunimo-nos – respondeu e levou Martinsson à sua frente para o corredor.
Depois de fecharem a porta da sala de reuniões sentiu que a anterior falta de força desaparecera. Ficou de pé junto a um dos lados mais estreitos da mesa, ao contrário do que era seu hábito. Normalmente sentava-se à mesa, mas agora era como se nem sequer tivesse tempo para isso.
– O que temos? – perguntou.
– Não há participação de desaparecidos em Ystad nas últimas semanas – comunicou Svedberg. – Os que estamos a procurar há mais tempo não se ajustam de maneira alguma ao que encontramos no lago Krageholm. São duas raparigas adolescentes e um rapaz que fugiram de uma instalação de refugiados. Provavelmente o rapaz saiu do país e está no caminho de volta ao Sudão.
Wallander pensou em Per Akeson.
– Então ficamos a saber isso – limitou-se a afirmar. – E os outros distritos? – Estamos a investigar duas pessoas em Malmö – anunciou Ann-Britt Höglund. – Mas também não bate certo. Num dos casos a idade, eventualmente, pode estar bem. Mas trata-se de um homem do Sul de Itália que desapareceu. O indivíduo que encontramos não tinha propriamente aspecto de italiano.
Analisaram as chamadas recebidas nos distritos mais próximos de Ystad. Wallander sabia que, sendo necessário, teriam que cobrir todo o país e também o resto da Escandinávia. Só podiam esperar que o homem habitasse nas proximidades de Ystad.
– A Polícia de Lund recebeu uma participação ontem à noite – disse Hansson. – Uma mulher telefonou e comunicou que o marido não regressara de um passeio noturno. A idade bate certo. É investigador na universidade.
Wallander abanou a cabeça em sinal de hesitação.
– Duvido – respondeu. – Todavia, temos que verificar, evidentemente.
– Ficaram de arranjar uma fotografia – prosseguiu Hansson. Logo que a tenham, enviam-na por fax.
Wallander ficara de pé todo o tempo. Agora sentou-se. No mesmo instante Per Akeson entrou na sala. Wallander preferia não o ter presente, pois nunca era fácil fazer um resumo sobre casos em estado estacionário. As rodas da investigação estavam presas em lama profunda. Não se moviam nem para a frente nem para trás.
E agora tinham mais uma vítima.
Wallander sentiu-se atingido, como se fosse sua responsabilidade pessoal o fato de não terem pistas, apesar de saber que trabalhavam tanto quanto era possível e com objetivos definidos. Os policiais presentes na sala eram bons profissionais e de uma entrega total.
Wallander esforçou-se por afastar a irritação que a presença de Per Akeson lhe causava.
– Chegaste em boa altura – preferiu dizer. – Tinha intenção de fazer um resumo do ponto em que se encontra a investigação.
– Existe na realidade algum ponto da investigação? – perguntou Per Akeson.
Wallander sabia que o comentário não fora intencionalmente malicioso ou crítico. Quem não conhecía Per Akeson podia reagir à sua postura petulante, porém Wallander que trabalhava com ele havia tantos anos, sabia que o que acabara de dizer era uma expressão de preocupação e uma vontade de ajudar caso pudesse ser útil.
Hamrén, que era novo, olhou para Per Akeson com desagrado. Wallander interrogou-se sobre como os procuradores públicos, com os quais lidava em Estocolmo, se costumavam afinal expressar.
– Há sempre um ponto em que uma investigação se encontra. E desta vez também o temos, mas é muito indefinido. Algumas pistas que encontramos já perderam atualidade. Julgo que alcançamos um ponto em que temos que regressar ao início. Ainda não podemos dizer o que significa este homicídio recente. Evidentemente, é demasiado cedo.
– Será o mesmo homem? – perguntou Per Akeson. – Imagino que sim – respondeu Wallander.
– Por quê?
– Pelo procedimento. A brutalidade, a crueldade. Naturalmente um saco não é a mesma coisa que estacas afiadas de bambu, mas talvez se possa dizer que é uma variação sobre um mesmo tema.
– O que aconteceu com a suspeita de que o mercenário poderia estar por detrás dos crimes? – Conduziu-nos à constatação de que Harald Berggren está morto há sete anos.
Per Akeson já não tinha mais perguntas.
A porta abriu ligeiramente. Uma escriturária entregou uma cópia da fotografia chegada por fax.
– É de Lund – disse a rapariga e fechou a porta.
Todos se levantaram em simultâneo e juntaram-se à volta de Martinsson, que ficara com a imagem na mão.
Wallander respirou fundo. Não havia dúvidas. Era o homem que encontraram no lago.
– óptimo – exclamou Wallander em voz baixa. – Aqui recuperamos grande parte do avanço do assassino.
Sentaram-se novamente.
– Quem é? – indagou Wallander.
Hansson tinha os seus papéis bem organizados.
– Eugen Blomberg, 51 anos. Assistente de investigação na universidade de Lund. Parece que se dedicava à investigação ligada ao leite.
– Leite? – exclamou Wallander com surpresa.
– É o que está aqui. "Sobre como a alergia ao leite se relaciona com várias doenças intestinais." – Quem participou o desaparecimento? – A mulher, Kristina Blomberg, Siriusgatan em Lund.
Wallander sentiu que agora tinham que aproveitar o tempo da melhor maneira. Queria reduzir ainda mais a distância invisível.
– Então vamos lá – sugeriu e levantou-se. – Informa os outros colegas de Lund de que o identificamos. Trata de os mandar procurar a mulher para eu poder falar com ela. Há um agente criminal em Lund que se chama Birch, Kalle Birch. Nós conhecemo-nos. Fala com ele. Vou lá.
– Achas que podes falar com ela sem termos uma identificação definitiva? – Outra pessoa terá que o identificar. Alguém da universidade, outro investigador do leite. E além do mais, agora todo o material sobre Eriksson e Runfeldt tem que ser novamente revisto. Eugen Blomberg. Estará ele algures metido nisto? Devemos avançar bastante ainda hoje.
Wallander virou-se para Per Akeson.
– Pode dizer-se que a situação da investigação se alterou. Per Akeson anuiu mas não disse nada.
Wallander foi buscar o casaco e as chaves de um dos carros da Polícia. Eram duas e um quarto quando deixou Ystad. Por instantes considerou se havia de ligar as luzes de alarme. Optou por não o fazer, de qualquer maneira não chegaria mais depressa.
Chegou a Lund pelas três e meia. Um carro da Polícia foi ao seu encontro à entrada da cidade e conduziu-o até SirJusgatan. Situava-se numa zona residencial a leste da cidade. À entrada da rua o carro da Polícia parou. Havia outro carro estacionado. Wallander viu Kalle Birch sair. Tinham-se conhecido há uns anos por altura de uma grande conferência, em Tylsand, nos arredores de Halmstad, organizada pela associação de policiais do Sul da Suécia. O objetivo fora melhorar a cooperação operacional na área. Wallander participara na conferência muito contrariado. O então chefe de Polícia, BJork, teve que obrigá-lo. À mesa do almoço calhou ficar com Birch, de Lund. Descobriram que partilhavam o interesse pela ópera. Ao longo dos anos tiveram contatos ocasionais, Wallander ouvira de vários lados que Birch era um policial excelente mas que as vezes era fortemente atingido por depressões. No entanto, agora, ao vir ao encontro de Wallander, parecia bem-disposto. Cumprimentaram-se.
– Acabo de ter conhecimento do caso – disse Birch. – Um colega de Blomberg está a caminho para identificar o corpo. Vamos saber por telefone.
– E a viúva? – Ainda não foi informada. Achamos que seria andar depressa de mais.
– Vai dificultar o interrogatório – comentou Wallander. – Evidentemente vai ficar chocada.
– Não podemos fazer grande coisa para evitar isso. Birch apontou para um café do outro lado da rua.
– Podemos esperar ali – disse. – Ainda por cima estou com fome. Wallander também não almoçara. Sentaram-se no café e comeram sanduíches acompanhadas com café. Wallander fez a Birch um resumo de tudo o que acontecera, – Faz lembrar o que tiveram em mãos no verão passado – respondeu depois de Wallander ter terminado.
– Só no aspecto de que o assassino mata mais do que uma pessoa acrescentou Wallander. – Os motivos parecem divergir.
– Que diferença há, na realidade, entre roubar cabeças ressequidas e afogar pessoas vivas? – Talvez não seja capaz de explicar – disse Wallander com hesitação –, mas a diferença é de fato grande.
Birch guardou para si a resposta, – Nunca podíamos imaginar coisas dessas quando nos tornamos policiais – preferiu dizer.
– Praticamente já não me lembro do que na realidade imaginei que fosse – observou Wallander.
– Lembro-me de um velho comissário – disse Birch. – já morreu há muito tempo. Karl Oscar Fredrick Wilhelra Sunesson. É um tanto ou quanto lendário, pelo menos aqui em Lund. Ele presenciou a chegada de tudo isto. Lembro-me de que costumava falar conosco, agentes criminais mais jovens, e avisar-nos de que tudo se iria tornar mais duro. A violência iria aumentar e ser mais brutal e também explicou por quê. Falou do bem-estar como um estaleiro bem camuflado. A podridão estava por dentro. De fato, ele dedicava algum tempo para fazer análises económicas e explicar a relação entre diferentes tipos de criminalidade. O que também me lembro dele é que era um caso raro, que nunca falava mal de uma única pessoa. Podia ser crítico dos políticos, era capaz de esmagar, com os seus argumentos, propostas de diferentes alterações na Polícia, mas nunca tinha dúvidas, que existia uma boa vontade, embora difusa, por trás. Costumava dizer que uma boa vontade que não estivesse revestida de bom senso conduzia a maiores catástrofes do que os atos que são baseados em má vontade ou estupidez. Naquela altura não devo ter percebido muito daquilo. Mas hoje percebo.
Wallander pensou em Rydberg, O que Birch dissera podia aplicar-Se-lhe.
– Contudo, não responde à pergunta – comentou Wallander. – O que na realidade pensamos quando optamos por ser policiais. Wallander não ficou a saber a opinião de Birch. O telefone tocou. Birch atendeu sem dizer nada.
– já foi identificado – comunicou. – É Eugen Blomberg, Não há dúvidas a esse respeito.
– Então vamos – sugeriu Wallander.
– Se quiseres, podes esperar enquanto informamos a mulher – disse Birch. – Costuma ser doloroso.
– Acompanho-os – declarou Wallander. – É preferível do que estar aqui parado. Além disso, pode dar uma indicação de como se relacionava com o marido.
Foram ao encontro de uma mulher, invulgarmente calma, que parecia entender de imediato a razão de estarem à sua porta. Wallander manteve-se atrás quando Birch lhe transmitiu a notícia. Ela sentou-se, na borda de uma cadeira, como se quisesse travar com os pés, e abanava a cabeça silenciosa. Wallander deduziu que tinha a idade do marido, mas parecia mais velha, como se tivesse envelhecido prematuramente. Era muito magra, pele esticada sobre as maçãs do rosto. Wallander contemplou-a disfarçadamente. Não dava sinal de que iria deixar-se abater, pelo menos por enquanto.
Birch fez sinal a Wallander, que se aproximou. Birch apenas dissera que o marido fora encontrado morto no lago Krageholm. Nada sobre o que acontecera, essa era a tarefa de Wallander.
– O lago Krageholm situa-se dentro do distrito policial de Ystad informou Birch. – Por isso veio um colega de lá. Chama-se Kurt Wallander.
Kristina Blomberg levantou a cabeça. Ela fez Wallander lembrar alguém, mas não conseguiu descobrir quem.
– Reconheço a sua cara – comentou ela. – Devo tê-lo visto nos jornais, – Não é impossível – respondeu Wallander, e sentou-se numa cadeira à sua frente. – Entretanto Birch tomara a posição atrás anteriormente ocupada por Wallander.
A calma reinava naquela casa. Mobilada com bom gosto. Mas também muito silenciosa. Wallander lembrou-se de que ainda não sabia se havia crianças na família, Acabou por ser a sua primeira pergunta.
– Não – respondeu. – Não tivemos filhos.
– De casamentos anteriores também não? Wallander notou imediatamente a sua insegurança. Impercetivelmente levou tempo a responder. Mas ele reparou.
– Não – respondeu. – Não que eu saiba. E da minha parte não houve.
Wallander trocou um olhar com Birch, que também reparara na hesitação perante uma pergunta que não devia ser difícil de responder. Wallander prosseguiu devagar, – Quando viu o seu marido pela última vez? – Foi dar um passeio ontem à noite. Como costumava fazer.
– Sabe que caminho tomava? Abanou negativamente a cabeça.
– Frequentemente passeava mais do que uma hora. Aonde andava não sei.
– Ontem à noite tudo estava como habitualmente?
– Sim.
Wallander notou novamente uma ligeira hesitação na sua resposta. Prosseguiu cuidadosamente.
– Portanto não regressou? Então o que fez?
– Quando o relógio marcava duas da manhã, telefonei à Polícia.
– Mas podia ter ido visitar alguém, ou não?
– Tinha poucos amigos. E a esses já tinha telefonado antes. Não estava em casa de ninguém.
Olhou para ele, continuava calma. Wallander achou que não podia esperar mais.
– O seu marido foi encontrado morto no lago Krageholm. Também conseguimos determinar que foi assassinado. Lamento o acontecido, mas tenho que contar a verdade.
Wallander contemplou o rosto dela. Não ficou admirada, pensou. Nem pelo fato de ter morrido, nem por ter sido assassinado.
– É obviamente importante que consigamos pegar quem cometeu este crime. Consegue imaginar alguém que o pudesse ter feito? Seu marido tinha inimigos?
– Não sei – respondeu. – Conhecia muito mal meu marido.
Wallander refletiu antes de responder. A resposta preocupou-o. – Não sei bem como interpretar a resposta – afirmou.
– É assim tão difícil? Conhecia muito mal meu marido. Em tempos que já lá se vão achava que sim, mas isso foi no passado.
– O que aconteceu? O que provocou a mudança?
Abanou a cabeça. Wallander sentiu algo que interpretou como amargura. Aguardou.
– Nada aconteceu – respondeu. – Nós deixamos de partilhar a vida. Moramos na mesma casa. Mas temos quartos separados. Vive a vida dele e eu vivo a minha.
Depois corrigiu. – Vivia a vida dele, eu vivo a minha.
– Se bem entendi, era investigador na universidade?
– Sim.
– Alergias provocadas por laticínios? Está certo?
– Sim.
– Também trabalha lá?
– Sou professora.
Wallander acenou com a cabeça.
– Portanto, não sabe se o seu marido tinha inimigos?
– Não.
– E poucos amigos?
– Sim.
– Portanto não consegue imaginar ninguém que quisesse matá-lo? Ou por quê? O rosto dela estava muito tenso. Wallander teve a sensação de que ela o estava trespassando com o olhar.
– Ninguem tirando eu – respondeu. – Mas não o matei. Wallander olhou-a sem dizer nada. Birch aproximara-se para o seu lado.
– Por que poderia tê-lo morto? – perguntou.
Levantou-se da cadeira e arrancou a blusa tão violentamente que rompeu os botões. Tudo aconteceu tão depressa que Wallander e Birch não perceberam o que estava acontecendo. Depois estendeu os braços. Estavam cheios de cicatrizes.
– Fez isso – disse. – E muitas outras coisas das quais nem sequer quero falar.
Deixou a sala com a blusa rasgada na mão. Wallander e Birch olharam-se mutuamente.
– Infligia-lhe maus tratos. – comentou Birch. – Acha que possa ter sido ela?
– Não – respondeu Wallander. – Não foi ela.
Esperaram em silêncio. Passado uns minutos regressou. Vestira uma camisa que caía sobre a saia.
– Não sinto pena – observou. – Não sei quem fez. Não quero saber. Mas compreendo que têm de pegá-lo.
– Sim, temos e precisamos de toda ajuda possível.
Olhou para Wallander e de súbito o seu rosto tinha uma expressão de total desespero.
– Já não sabia nada dele – informou. – Não posso ajudar.
Wallander pensou que de certeza dissera a verdade. Não os podia ajudar.
Mas era o que ela achava. Na verdade, já tinha ajudado. Quando Wallander vira seus braços, deixara de ter dúvidas. Agora sabia que era uma mulher que procuravam.
Quando abandonaram a casa na Siriusgatan, começou a chover. Pararam ao lado do carro de Wallander, que se sentia preocupado e tinha pressa.
– Acho que nunca vi uma mulher receber a notícia de ter ficado viúva com tanta facilidade – observou Birch com desagrado na voz.
– Ao mesmo tempo é um pormenor que não podemos esquecer – respondeu Wallander.
Não se preocupou em aprofundar a resposta, preferiu antes pensar nas próximas horas. A sensação mais premente, neste momento, era a de que tinham pressa.
– Temos que investigar os seus pertences, tanto em casa como na universidade – prosseguiu. – É tarefa vossa evidentemente. Mas gostaría de ter alguém de Ystad para os acompanhar. Não sabemos o que procuramos, mas pode ser que deste modo se descubra mais rapidamente algo que possa interessar.
Birch anuiu.
– Não ficas tu? – Não, vou pedir a MartInsson e Svedberg para virem cá. Vou tratar disso imediatamente.
Wallander tirou o celular do carro e ligou o número da Polícia de Ystad, onde pediram para falar com Martinsson. Explicou em poucas palavras de que se tratava. Martinsson prometeu que ele e Svedberg partiriam imediatamente. Wallander disse-lhe para contatarem Birch na central de Lund, tendo que soletrar o nome dele para Martinsson. Birch sorriu.
– Devia ficar – disse Wallander –, mas tenho que recuar na investigação. Tenho a sensação de que a solução do homicídio de Blomberg jà está aí à vista embora não a tenhamos descoberto. A solução dos três homicídios... é como se nos tivéssemos perdido num labirinto complicado de grutas.
– Seria ótimo que não houvesse mais mortos – exclamou Birch.
– Já chega o que temos.
Despediram-se, e Wallander regressou a Ystad. A chuva ia e vinha, Um avião estava a ponto de aterrar quando Wallander passou nos arredores de Sturup. Enquanto conduzia fez novamente uma revisão do material de investigação. Perdera a conta às vezes que o fizera. Também tomou decisões sobre como proceder ao chegar a Ystad.
A um quarto para as seis estacionou o carro. Na recepção parou para perguntar a Ebba se Ann-Britt Höglund estava, Ela e Hansson tinham regressado há uma hora.
Wallander seguiu apressado. Encontrou Ann-Britt Höglund no gabinete. Estava ao telefone. Wallander fez-lhe sinal para se deixar ficar a conversar à vontade e esperou no corredor. Assim que ouviu desligar, entrou novamente.
– Pensei que podíamos sentar-nos no meu gabinete – propôs. Temos que fazer uma análise exaustiva.
– Devo levar alguma coisa? – Apontou para todos os papéis e dossiês espalhados na mesa.
– Penso que não é necessário, se alguma coisa fizer falta, vens buscar. – Dirigiram-se para o seu gabinete. Wallander ligou à central telefônica a dizer que não queria ser interrompido. Não indicou limite de tempo, pois o que tinha planeado levaria o que fosse necessário.
– Lembras-te de te pedir para fazeres uma revisão de tudo o que aconteceu e procurar sinais femininos – começou.
– já o fiz – respondeu.
– Temos que rever novamente todo o material – prosseguiu. – É o que vamos fazer a partir de agora, pois estou Convencido de que existe algures um ponto onde podemos encontrar uma brecha. Só que ainda não a descobrimos. Passamos por ela, andamos para trás e para a frente, esteve e contínua a lá estar, só que olhamos para outro lado. E agora estou totalmente convencido de que tem de haver uma mulher envolvida.
– Por que pensas isso? Falou da conversa com Kristina Blomberg. Como arrancara a blusa e mostrara as cicatrizes, consequência dos maus tratos de que fora vítima.
– Falas de uma mulher maltratada, não de uma mulher assassina.
– Talvez seja a mesma coisa – respondeu Wallander. – Em todo o caso, vão ter que me convencer se por acaso me engano. – Onde começamos? – Do princípio, como no conto. E o que aconteceu em primeiro lugar foi que alguém andou a cavar dentro de uma valeta e preparou uma montagem de estacas para Holger Eriksson em Lõdinge. Imagina que tenha sido uma mulher. O que vês nesse caso? – Que evidentemente não se trata de uma impossibilidade. Nada era demasiado grande ou pesado.
– Por que escolheu precisamente este meio de proceder? – Para dar uma impressão de ter sido feito por um homem. Wallander refletiu muito tempo na resposta antes de prosseguir, – Portanto, quis conduzir-nos para uma pista errada.
– Não necessariamente. Também pode ter desejado demonstrar como a violência regressa. Como um bumerangue, Ou então, por que não as duas coisas? Wallander refletiu, a sua explicação não era inverosímil.
O motivo – prosseguiu. – Quem queria matar Holger Eriksson? É mais obscuro do que o caso de Gösta Runfeldt. No caso dele, há pelo menos várias possibilidades. Continuamos a saber muito pouco de Holger Eriksson, tão pouco que até é estranho. A vida dele parece quase totalmente impenetrável, como se fosse uma área de acesso interdito.
Wallander ponderou. A ideia dela não era inverosímil. Como assim? É o que digo, devíamos saber mais sobre um homem que viveu oitenta anos, toda a sua vida, na Scania. De uma pessoa que era conhecida, saber tão pouco não é normal.
– Qual é a explicação? – Não sei.
– Será que as pessoas têm medo de falar sobre ele? – Não.
– Então qual é a razão? – Procuramos um mercenário e encontramos um morto. Sabemos que estas pessoas frequentemente atuam com nomes falsos, pelo que me ocorreu a ideia de que podia ser o caso de Holger Eriksson – sugeriu ela.
– Que ele poderia ter sido mercenário? – Não acredito. Mas pode ter vivido sob um nome falso e pode não ter sido sempre Holger Eriksson. Talvez seja uma explicação para o fato de se saber tão pouco da sua vida privada. Por, volta e meia, ter sido outra pessoa.
Wallander lembrou-se de alguns dos primeiros poemas escritos por Holger Eriksson. Tinham sido publicados sob pseudónimo. Mais tarde usara o seu próprio nome.
– Tenho dificuldade em acreditar no que dizes – disse. – Principalmente por não ver nenhum motivo razoável. Por que usa uma pessoa um nome falso? – Porque faz algo que não quer que se saiba. Wallander olhou para ela.
– Queres dizer que adoptou outro nome por ser homossexual? Numa época em que se tinha que ser muito discreto? – Pode ser uma explicação.
Wallander acenou com a cabeça, mas tinha dúvidas.
– Temos a oferta à igreja de Järntland – lembrou, – Deve significar alguma coisa. Por que essa oferta? E a mulher polonesa que desapareceu. Há alguma coisa com ela que a torna especial. já refletiste sobre o que pode ser? Ann-Britt Höglund abanou a cabeça.
– Ela é a única mulher que aparece no material da investigação sobre Holger Eriksson. E temos que admitir que isso a torna muito especial.
– Vieram cópias de Östersund do material de investigação, relativo a ela – observou. – Porém, julgo que ninguém teve tempo para o analisar por enquanto. Além disso ela só se situa na periferia, não temos provas de que ela e Holger Eriksson se conhecessem.
De repente Wallander sentiu-se muito determinado.
– Está correto. Tem que ser feito o mais depressa possível, temos que averiguar se a relação existe.
– Quem vai fazer isso?
– Hansson. De todos nós é quem lê mais depressa e, na maioria das vezes, acerta logo no que é importante.
Ela fez um apontamento. em seguida deixaram por instantes Holger ErikSson.
– Gösta Runfeldt era um homem bruto – comentou Wallander.
– Disso temos certeza. Portanto, faz lembrar Holger Eriksson. Mas agora verificamos que isso também é válido para Eugen Blomberg. Gösta Runfeldt e Blomberg tratavam mal a mulher. Para onde estamos sendo conduzidos?
– Para o fato de termos três homens com tendências violentas, dos quais pelo menos dois maltrataram mulheres.
– Não – disse Wallander. – Não totalmente correto. Temos três homens, dos quais sabemos que dois maltrataram mulheres, mas também pode ser o caso do terceiro, Holger Eriksson. Só que ainda não sabemos.
– A polonesa, Krista Haberman?
– Por exemplo, ela. Ainda é possível que Gösta Runfeldt, com efeito, tenha assassinado a mulher. Preparou um buraco, onde ela foi obrigada a entrar e afogar-se.
Ambos sentiram algo se encaixando. Wallander recuou novamente na investigação.
– A sepultura das estacas. O que era?
– Preparada, bem planejada. Uma armadilha de morte.
– Mais do que isso. Uma maneira de tirar lentamente a vida de uma pessoa.
Wallander procurou um papel na sua mesa.
– Segundo o patologista da medicina legal de Lund, Holger Eriksson pode ter ficado empalado nas estacas de bambu durante muitas horas antes de morrer.
Largou o papel com uma expressão de repugnância. – Gösta Runfeldt – prosseguiu. – Emagrecido, estrangulado, atado a uma árvore. O que nos diz?
– Que esteve em cativeiro. Não foi fincado numa sepultura de estacas.
Wallander levantou a mão. Ela se calou. Ele pensou. Lembrou-se da visita a ao lago. Ela foi encontrada embaixo do gelo.
– Morrer afogado quando há gelo – disse. – Sempre imaginei isso como das coisas mais horríveis que podem acontecer a uma pessoa. Ficar embaixo do gelo, não conseguir sair e talvez notar a luz que trespassa o gelo.
– Um cativeiro sob o gelo – comentou ela.
– Exatamente, é precisamente isso que acho.
– Estás dizendo que este criminoso se vingou usando métodos que se assemelham àqueles que foram empregados pelas atuais vítimas.
– Mais ou menos. Pelo menos é uma possibilidade.
– Neste caso, o que aconteceu a Eugen Blomberg assemelha-se mais ao que aconteceu à mulher de Runfeldt.
– Exato – disse Wallander. – Talvez consigamos também entender isso se prosseguirmos mais um pouco.
Continuaram. Falaram da mala de viagem. Referiu novamente o achado da unha postiça que Nyberg encontrara na floresta de Marsvinsholm, Depois chegaram ao caso Blomberg. O padrão repetia-se.
– Tinha que morrer afogado, mas não muito depressa. Tinha que ter consciência do que estava lhe acontecendo.
Wallander recostou-se na cadeira e observou-a sentada do outro lado da mesa.
– Conta-me o que estás a visualizar.
– Um motivo de vingança toma forma, repete-se como um possível denominador comum. Homens que tratam mulheres com violência são vítimas de violência bem estudada e de caraterísticas masculinas, como se fosse para os obrigar a sentir as suas próprias mãos nos seus corpos.
É uma boa formulação – observou Wallander. – Continua. Também pode ser uma maneira de ocultar que uma mulher fez tudo isso. Levou-nos muito tempo até nos ocorrer que uma mulher pudesse estar envolvida. E quando nos ocorreu, afastamos a ideia.
– O que contradiz que uma mulher possa estar envolvida?
– Continuamos a saber muito pouco. Além disso, as mulheres praticamente só utilizam violência quando se defendem ou defendem os filhos. Não se trata de uma violência planejada. Apenas reflexos instintivos de proteção. Em condições normais, não prepara uma armadilha com estacas ou mantém um homem em cativeiro ou joga no lago um homem num saco.
Wallander observou-a com curiosidade.
– Em condições normais – disse a seguir. – As tuas palavras.
– Se estiver uma mulher envolvida nisto, terá que ser doente, evidentemente.
Wallander levantou-se e aproximou-se da janela.
– Há mais uma coisa – acrescentou. – Uma coisa que pode arrasar toda esta edificação que estamos tentandoconstruir. Ela não se vinga por conta própria, vinga-se por conta de outras. A mulher de Gösta Runfeldt está morta. A mulher de Eugen Blomberg não o fez, tenho certeza disso. Holger Eriksson não tem mulher. Se for vingança e se for uma mulher, então a vingança é por conta de outras. E não parece lógico. Se isso for assim, nunca assisti a nada do gênero.
– Pode haver mais do que uma – sugeriu Ann-Britt Höglund com hesitação.
– Um grupo de anjos de morte? Um grupo de mulheres? Uma seita?
– Não parece provável.
– Não – comentou Wallander. – Não parece. Sentou-se novamente na cadeira.
– Gostaria que fizesses exatamente ao contrário – prosseguiu. Ver novamente todo o material. E depois me dar todas as boas razões para que não seja uma mulher que tenha feito tudo isto.
– Não seria melhor esperar até termos eventualmente mais informação a respeito do que aconteceu a Blomberg?
– Talvez – respondeu Wallander. – Mas acho que não temos tempo.
– Achas que pode acontecer novamente?
Wallander, que queria dar-lhe uma resposta honesta, ficou por momentos calado antes de responder.
– Não há nenhum princípio – comentou. – Pelo menos tanto quanto conseguimos ver. O que também torna pouco provável que haja um fim. Pode acontecer novamente e não temos a mínima ideia para que lado olhar.
Não avançaram mais. Wallander sentiu-se impaciente por nem Martinsson nem Svedberg o contatarem. Depois lembrou-se de que o telefone estivera bloqueado. Ligou à central. Nenhum dos dois tinha tentado entrar em contato com ele. Informou que atendia as chamadas deles. Porém, apenas as deles.
– Os assaltos – disse ela subitamente. – Na loja das flores e em casa de Holger Eriksson. como se enquadram na história? – Não sei – respondeu. – A mancha de sangue no chão também não. Pensei que tinha uma explicação. Agora já não sei.
– Tenho estado a refletir – disse Ann-Britt.
Wallander notou que estava ansiosa. Acenou para ela continuar.
– Nós chegamos à conclusão de que é necessário distinguir o que na realidade vemos daquilo que aconteceu – começou. – Holger Eriksson participou um assalto apesar de nada ter sido roubado. Então por que fez a participação? – Também pensei nisso – respondeu Wallander. – Pode ter ficado preocupado por alguém lhe ter entrado em casa.
– Se for assim, corresponde ao padrão.
Wallander não entendeu de imediato o que ela pretendia dizer.
– Há uma possibilidade de que alguém tivesse forçado a entrada para o incomodar. Não para o roubar.
– Um primeiro aviso? – sugeriu, – É isso que queres dizer? Sim.
– E a loja das flores? – Gösta Runfeldt deixa o seu apartamento, ou é induzido a sair, ou então é madrugada. Sai para esperar por um táxi e aí desaparece sem deixar rasto. Talvez tenha ido à loja? Demora apenas uns minutos. Pode ter deixado a mala do lado de dentro da porta ou então levou-a consigo, pois não era pesada.
– Por que havia de ir à loja? – Não sei. Talvez se tenha esquecido de alguma coisa.
– Estás a dizer que pode ter sido atacado dentro da loja? – Sei que não é uma boa hipótese. Mas de qualquer maneira pensei nisso.
– Não é pior do que muitas outras – respondeu Wallander. Olhou para ela.
– Será que, de fato, se investigou se o sangue no chão poderia ser de Runfeldt? – Acho que nunca foi feito e, nesse caso, a culpa é minha.
– Se fôssemos questionar quem é responsável por todos os erros que se cometem na investigação de um crime, não se fazia outra coisa – afirmou Wallander. – Suponho que já não existem pistas? – Posso falar com Vanja Andersson.
– Faz isso. Podemos investigar, só por via das dúvidas.
Ela deixou a sala. Wallander estava cansado. Tiveram uma conversa produtiva, mas que só aumentara a sua preocupação. Estavam tão longe de um centro quanto possível. À investigação ainda faltava uma força de gravitação que os conduzisse na direção certa.
Uma voz irritada levantou-se no corredor. Começou a pensar em Balba, mas esforçou-se por regressar novamente à investigação. Nessa altura viu, na sua imaginação, o cão que gostaria de comprar. Levantou-se e foi buscar café. Alguém perguntou se ele tivera tempo para opinar sobre se era adequado que uma associação local se chamasse "Os Amigos do Machado". Respondeu negativamente. Voltou à . Parara de chover. As nuvens estavam imóveis por cima do depósito de água.
O telefone tocou. Era Martinsson. Wallander tentou descobrir sinais na voz dele de que acontsalaecera alguma coisa . Mas não conseguiu detectar nada.
– Svedberg acaba de chegar da universidade. Eugen Blomberg parece ter sido uma pessoa do tipo que, com maldade, se costuma dizer confundir-se com as paredes. Também parece que não era nenhum investigador brilhante no âmbito das alergias a produtos lácteos. De uma maneira aparentemente vaga, esteve ligado ao hospital pediátrico de Lund, mas parece ter desistido há muitos anos. O que estava em investigação pode considerar-se num nível muito elementar, pelo menos é o que Svedberg afirma. Por outro lado, o que sabe ele de alergias?
– Continua – pediu Wallander sem ocultar que estava impaciente.
– Tenho dificuldade em entender uma pessoa que consegue ser tão completamente falho de interesses – prosseguiu Martinsson. – Parece que se entretinha com a merda do seu leite. Tirando isso, nada, excetuando uma coisa.
Wallander aguardou.
– Parece que teve uma relação com uma mulher. Encontrei umas cartas com as iniciais KA. O que é interessante é que parece que estava grávida.
– Como soubeste?
– Pelas cartas. Na carta mais recente conclui-se que estava no fim da gravidez.
– Qual é a data da carta?
– Não tem data, mas escreve que vira um filme na televisão de que gostara. Salvo erro, foi passado há mais ou menos um mês. Temos que ver isso com exatidão.
– Ela tem algum endereço?
– Não se consegue concluir.
– Nem sequer se é em Lund?
– Não, mas provavelmente é daqui da Scania. Tem algumas caraterísticas na escrita que apontam para isso.
– Perguntaste à viúva a respeito disso?
– Era sobre isso que te queria falar. Se achas adequado ou se devo esperar.
– Pergunta – disse Wallander. – Não podemos esperar. Além do mais, tenho a sensação de que ela já sabe. Precisamos do nome e endereço dessa mulher. Depressa como um foguete, ainda para mais, Informa-me assim que souberes mais alguma coisa.
Ficou sentado com a mão no fone. Sentiu um arrepio. O que Martinsson lhe dissera fez-lhe lembrar uma coisa.
Tinha algo a ver com Svedberg.
Mas não conseguíu identificar o que era.
Ficou à espera de que Martinsson ligasse novamente. Hansson assomou à porta a dizer que iria nessa mesma noite tentar examinar parte do material vindo de Östersund.
– Trata-se de onze quilos, só para saberes.
– Pesaste-o? – perguntou Wallander surpreendido.
– Eu não – respondeu. – Mas a transportadora jetpak sim, 11,3 quilos da central de Ostersund. Queres saber quanto custou?
– Prefiro não saber.
Hansson desapareceu. Wallander limpava as unhas pensando num labrador preto a dormir ao lado da sua cama. Faltavam vinte minutos para as oito. Martinsson ainda não tinha dado notícias. Nyberg telefonou para informar de que tinha intenção de ir para casa.
Mais tarde Wallander interrogou-se sobre qual teria sido a intenção de o informar que ia para casa. Que o podia procurar em casa ou que não queria ser incomodado? Finalmente Martinsson telefonou.
– Ela estava dormindo. De fato, não queria acordar. Por isso levou tanto tempo.
Wallander não disse nada. Sabia que ele próprio teria acordado Kristina Blomberg sem hesitações.
– O que é que ela disse?
– Tinhas razão. Ela sabia que o marido tinha outras mulheres. Esta não era a primeira, houve outras antes. Porém, não sabia quem era, KA não lhe diz nada.
– Sabia onde morava?
– Negou que soubesse, e estou inclinado a acreditar.
– Mas tem que saber se ele viajava?
– Também perguntei. Disse que não, além disso, ele não tinha automóvel e nem sequer carteira de habilitação.
– Isso significa que essa mulher é das proximidades.
– Também é o que penso.
– Uma mulher com as iniciais KA, temos que a encontrar. Deixa tudo o resto para trás. Birch está aí? – Regressou à central há pouco.
– Onde está Svedberg? – Foi falar com uma pessoa que é supostamente quem melhor conhecia Eugen Blomberg.
– Ele que se concentre em tentar descobrir quem é a mulher com as iniciais KA.
– Não tenho a certeza de conseguir apanhá-lo – respondeu Martinsson, – Esqueceu-se do telefone aqui comigo.
Wallander praguejou.
– A viúva tem que saber quem era o melhor amigo do marido. É importante que Svedberg saiba.
– Vou ver o que consigo fazer.
Wallander pousou o fone. Quase conseguiu manter a chamada, mas era tarde de mais. Subitamente lembrara-se do que se esquecera. Procurou o número da central de Lund. Teve sorte em apanhar Birch quase de imediato.
– Talvez tenhamos descoberto uma coisa – disse Wallander.
– Martinsson falou com Ehrén que trabalha juntamente com ele em Siriusgatan – anunciou Birch. – Pelos vistos, segundo entendi, andamos à procura de uma mulher desconhecida com as eventuais iniciais KA.
– Eventuais não – retorquiu Wallander. – São essas mesmas. Karin Andersson, Katarina AIstrõm, temos que a encontrar, seja qual for o seu nome. Há um pormenor que é importante.
– A indicação numa das cartas de que brevemente iria ter um filho? Birch refletiu com rapidez.
– Exatamente – confirmou Wallander. – Portanto deveríamos contatar a maternidade de Lund para saber de mulheres que tiveram filhos nos últimos tempos, ou prestes a tê-los. Uma mulher com as iniciais KA.
– Encarrego-me disso pessoalmente – informou Birch. – Assuntos desses são sempre sensíveis.
Wallander acabou a conversa. Notou que estava a transpirar. Alguma coisa começara a mover-se. Saiu para o corredor. Estava vazio. Quando o telefone tocou, reagiu imidiatamente. Era Ann-Britt Höglund. Encontrava-se na loja das flores de Runfeldt.
– Já não resta nada do sangue – disse. – A própria Vanja Andersson limpou o chão.
– O esfregão – lembrou Wallander.
– Infelizmente deitou-o fora. Achou que a mancha de sangue era desagradável. E o lixo há muito tempo que foi despejado.
Wallander sabia que era preciso muito pouco para conseguir uma análise de sangue.
– Os sapatos – lembrou-se. – Quais foram os sapatos que utilizou naquele dia? Pode haver alguma mancha nas solas.
– Vou perguntar-lhe. Wallander esperou ao telefone.
– Estava com socas – respondeu Ann-Britt Höglund. – Mas neste momento estão na casa dela.
– Vai buscá-las – sugeriu Wallander. – Trá-las e telefona a Nyberg, que está em casa. Deve pelo menos poder descobrir se têm ou não sangue.
Durante a conversa Hamrén assomara à sua porta. Praticamente Wallander não o vira desde que viera para Ystad. Também se interrogou sobre o que estavam fazendo os dois policiais de Malmö.
– Encarreguei-me de analisar as ligações entre Eriksson e Runfeldt – informou Hamrén. – Agora que Martinsson está em Lund. Por enquanto, não obtive qualquer resultado. Os seus caminhos nunca se devem ter cruzado.
– Seja como for, é importante continuar a procura – respondeu Wallander. – Estas investigações terão que se encontrar e unir algures. Estou convencido disso.
– E Blomberg? – Também ele vai acabar por ter um lugar neste quadro. Não há outra hipótese.
– Desde quando trabalho da Polícia é questão racional? – perguntou Hamrén e sorriu.
– Naturalmente tens razão – comentou Wallander. – Porém, é preciso ter esperança.
Hamrén segurava o seu cachimbo na mão.
– Vou até lá fora para fumar – disse. – Refresca o cérebro.
Saiu. Passava um pouco das oito. Wallander esperou por notícias de Svedberg. Foi buscar café e biscoitos. Logo a seguir o telefone tocou. Uma chamada para a central telefônica fora mal encaminhada.
Às oito e meia colocou-se à porta da cantina e olhou distraidamente para a televisão. Bonitas imagens das ilhas Comores. Interrogou-se distraidamente onde ficariam essas ilhas. A um quarto para as nove estava novamente sentado na sua cadeira. Nessa altura Birch telefonou informando que agora estavam a investigar as mulheres que tinham tido filhos nos últimos dois meses, ou que iriam dar à luz nos próximos dois meses. Por enquanto não tinham encontrado ninguém com as iniciais KA. Depois de desligar Wallander achou que podia ir para casa pois, se fosse necessário, podiam contatá-lo pelo telemóvel. Tentou entrar em contato com Martinsson sem sucesso. Depois telefonou Svedberg. Nessa altura passavam dez minutos das nove.
– Não há nenhuma pessoa com as iniciais KA – disse. – Pelo menos que o homem, supostamente o melhor amigo de Blomberg, conheça.
– Pronto, ficamos a saber – concluiu Wallander, sem ocultar a sua decepção.
– Vou para casa agora – informou Svedberg.
Wallander só teve tempo para poisar o fone antes de receber uma chamada. Era Birch.
– Lamento – disse. – Não há ninguém com as iniciais KA e estas informações têm que ser consideradas de confiança.
– Merda – exclamou Wallander. Ambos refletiram por uns instantes.
– Pode ter tido o filho noutro lugar – prosseguiu Birch. – Não tem que ser em Lund.
– Tens razão – respondeu Wallander. – Temos que continuar com o assunto amanhã.
25
Desligou. Sabia agora o que estava relacionado a Svedberg. Um papel que caíra erradamente em cima da sua mesa, alguma coisa com uma ocorrência noturna na maternidade de Ystad. Teria sido um assalto? Alguma coisa com uma falsa enfermeira? Telefonou a Svedberg que respondeu do automóvel.
– Onde estás? – perguntou Wallander.
– Nem sequer cheguei a Staffanstorp.
– Vem para cá – disse Wallander. – Há uma coisa que temos de analisar.
– Está bem – respondeu Svedberg. – Estou indo.
Demorou exatamente quarenta e dois minutos.
O relógio ja marcava cinco para as dez quando Svedberg surgíu à porta do gabinete de Wallander. Altura em que Wallander já tinha muitas dúvidas a respeito das suas reflexões.
Era grande a probabilidade de ter levado longe demais a sua imaginação.
26
Só percebeu o que acontecera depois de a porta se ter fechado atrás de si. Andou uns poucos passos até a carro e sentou-se atrás do volante. Depois pronunciou o seu nome alto para si próprio: Âke Davidsson.
A partir de agora Âkc Davidsson iria tornar-se um homem muito solitário. Não esperara que isso lhe acontecesse. Que a mulher com quem tivera durante tantos anos uma relação, mesmo não vivendo na mesma casa, iria um dia dizer que não o queria mais e mandá-lo embora.
Começou a chorar, doía-lhe. Não entendia, mas ela fora determinada. Pediu-lhe para se afastar e nunca mais a procurar pois encontrara outro homem, que estava disposto a viver com ela.
Era quase meia-noite de segunda-feira, dia 17 de outubro. Observou a escuridão lá fora. Sabia que não devia conduzir depois do anoitecer, os olhos estavam demasiado fracos, e ele na realidade só podia conduzir com óculos especiais e com luz diurna. Espreitou pela janela. Distinguia os contornos da estrada com dificuldade, porém não aguentava ficar ali a noite toda. Tinha que regressar a Malmö.
Ligou o carro, estava muito triste e não entendia o que acontecera. Em seguida dirigiu-se para a estrada, sentindo realmente dificuldade em ver. Talvez se tornasse mais fácil depois de entrar na via principal. Agora, em primeiro lugar, tinha de encontrar a saída de Udinge.
Enganou-se. Os caminhos eram muitos, estreitos e aparentemente iguais na escuridão. À meia-noite e meia hora percebeu que estava completamente perdido. Nessa altura encontrava-se num pátio sem saída. Iniciou a manobra para sair de lá. Subitamente descobriu uma sombra a aproximar-se da luz do carro. Sentiu imediatamente um alívio. Havia alguém lá fora que o podia informar como sair dali. Abriu a porta do carro e saiu.
Em seguida ficou tudo escuro.
Svedberg levou um quarto de hora a encontrar o papel que Wallander queria ver. Wallander fora muito preciso quando Svedberg entrara no gabinete dele pouco antes das dez.
– Pode ser uma aposta em vão – disse Wallander. – Todavia, procuramos uma mulher com as iniciais KA que teve recentemente um filho ou está para ter, aqui na Scania. Julgávamos que seria em Lund, porém essa suposição estava errada, daí que deverá antes ser aqui em Ystad. Salvo erro, utilizam-se determinados métodos que tornaram a maternidade de Ystad famosa, inclusivamente fora das fronteiras do país. Numa noite aconteceu lá alguma coisa estranha e, mais tarde, uma segunda vez. Portanto, pode ser uma aposta de balde, mas em todo o caso quero saber o que aconteceu.
Svedberg encontrou o papel com o apontamento. Regressou ao gabinete de Wallander que o esperava com impaciência.
– Ylva Brink – disse Svedberg –, ela é minha prima. Ou melhor dizendo, prima afastada, e é parteira na maternidade. Veio cá comunicar que uma desconhecida apareceu uma noite na maternidade porque ficou preocupada.
– Por quê?
– Simplesmente não é normal que uma pessoa desconhecida surja de noite na maternidade.
– Temos que analisar o caso minuciosamente – sugeriu Wallander. – Quando aconteceu a primeira vez?
– Na noite de 30 de setembro para 1º de outubro.
– Quase três semanas. E ela ficou preocupada.
– Veio aqui no dia seguinte, um sábado. Falei uns instantes com ela. Foi nessa altura que tomei estes apontamentos.
– E depois aconteceu novamente?
– Na noite de 13 de outubro. Por mera coincidência, Ylva também estava no turno da noite. Foi nessa vez que foi derrubada. Chamaram-me de manhã.
– O que aconteceu?
– A tal mulher desconhecida aparecera mais uma vez. Quando Ylva tentou detê-la, foi atacada. Ylva disse que foi como levar um pontapé de um cavalo.
– Nunca vira a mulher antes?
– Não.
– Usava uniforme de enfermeira?
– Sim, mas Ylva tem acerteza de que não é funcionária de lá.
– Como pode ter certeza? Deve haver muita gente no hospital que ela não conhece.
– Tem certeza. Infelizmente não devo ter perguntado por quê.
Wallander refletiu.
– Esta mulher interessou-se pela maternidade entre o dia 30 de setembro e 13 de outubro – prosseguiu. – Fez duas visitas noturnas e também não teve relutância em atacar uma parteira. A questão é o que na realidade foi lá fazer?
– Também Ylva se interroga a esse respeito.
– Não tem resposta?
– Verificaram a seção nas duas vezes, mas tudo estava como de costume.
Wallander olhou para o relógio. Eram quase um quarto para as onze.
– Quero que telefones à tua prima. Lamento ter que, eventualmente, de a acordar.
Svedberg anuiu. Wallander apontou para o telefone. Sabia que Svedberg, que normalmente era esquecido, tinha uma memória apurada para números de telefone. Ligou o número, tocou várias vezes sem ninguém responder.
– Não estando em casa, significa que está trabalhando – comentou quando pôs o fone no descanso.
Wallander levantou-se subitamente.
– Ainda melhor – observou. – Não vou à maternidade desde que Linda nasceu.
– O velho edifício foi demolido – informou Svedberg. – É tudo novo.
Demoraram apenas alguns minutos, no carro de Svedberg, da central para os serviços de emergência do hospital. Wallander lembrou-se da noite, havia uns anos atrás, em que acordara com violentas dores no peito e pensara que estava a fazer um enfarte. Nessa altura os serviços de emergência situavam-se num outro lugar. Tudo parecia diferente no hospital. Tocaram à campainha e de imediato apareceu um guarda. Wallander mostrou a sua identificação de policial. Subiram as escadas para a maternidade. O guarda avisara que estavam a caminho e, assim, uma mulher aguardava-os à porta da seção.
– A minha prima, Ylva Brink – informou Svedberg.
Wallander cumprimentou-a. Ao fundo vislumbrava-se uma enfermeira. Ylva levou-os para um pequeno escritório.
– Neste momento está bem calmo – disse. – Mas pode mudar de um momento para outro.
– Vou diretamente ao assunto – afirmou Wallander. – Sei que todas as informações sobre pessoas que por diversas razões estão no hospital são confidenciais. Também não tenho intenção de desafiar essa regra, porque tudo o que pretendo saber, por enquanto, é se entre o dia 30 de setembro e 13 de outubro esteve alguém nesta seção, uma mulher para ter um filho cujas iniciais fossem KA, K de Karin e A de Andersson.
Uma nuvem de preocupação passou pela cara de Ylva Brink.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não – respondeu Wallander. – Só preciso de identificar uma pessoa, nada mais.
– Não posso responder – disse. É totalmente confidencial salvo se a parturiente tiver assinado um papel onde conste que se pode informar que tenha estado cá. Na minha perspectiva, também engloba as iniciais.
– Mais cedo ou mais tarde alguém terá que responder à minha pergunta – retorquiu Wallander. – O meu problema é que preciso saber agora.
– Mesmo assim não posso ajudar.
Svedberg ficara calado. Wallander viu que estava com uma ruga na testa.
– Há algum banheiro? – perguntou.
– Há, a seguir à esquina.
Svedberg acenou para Wallander.
– Disseste que precisavas ir ao banheiro. É melhor aproveitar.
Wallander entendeu, Levantou-se e deixou a sala.
Esperou cinco minutos no banheiro antes de regressar. Ylva Brink não estava, Svedberg estava inclinado sobre uns papéis na mesa.
– O que lhe disseste? – perguntou Wallander.
– Que não devia envergonhar a família – respondeu Svedberg, Mais, disse que podia apanhar um ano de prisão. – Por quê? – perguntou Wallander surpreso.
– Obstáculo ao exercício profissional.
– Mas não há nada com esse nome.
– Ela não sabe. Aqui estão todos os nomes. Melhor ler depressa.
Analisaram a lista. Nenhuma das mulheres tinha as iniciais KA. Wallander chegou à conclusão de que era como receava, uma aposta perdida.
– Talvez não fossem iniciais – disse Svedberg pensativo.
– KA talvez signifique outra coisa qualquer? O que poderia ser?
– Há uma Katarina Taxell aqui – comentou Svedberg e apontou.
– As letras KA talvez seja apenas uma abreviatura de Katarina. Wallander observou o nome. Passou pela lista novamente. Não havia mais ninguém com a combinação KA. Nenhuma Karin, nenhuma Karolina. Nem com K nem com C.
– Podes ter razão – disse com hesitação. – Anota o endereço.
– Não está aqui – respondeu. – Apenas o nome. É melhor esperar lá em baixo, enquanto falo com Ylva outra vez.
– Contenta-te com não envergonhar a família – aconselhou Wallander. – Não fales de nenhuma pena, pode acabar mal. Quero saber se Katarina Taxell continua cá, quero saber se teve visitas. Quero saber se existe algo de especial com ela, tipo relações familiares. Mas principalmente o endereço.
– Vai levar um tempo provavelmente – observou Svedberg. Ylva está ocupada com um parto.
– Espero – respondeu Wallander. – Toda a noite se for preciso. Tirou um biscoito de um prato e deixou a seção. Quando chegou à entrada da emergência, acabara de chegar uma ambulância com um homem embriagado e sujo de sangue. Wallander reconheceu-o. Chamava-se Niklasson e tinha um negócio de sucata nos arredores de Ystad. Normalmente era um tipo sóbrio, mas tinha os seus períodos e acabava em brigas.
Wallander cumprimentou os homens da ambulância, que conhecia.
– Está mal? – perguntou Wallander.
– Niklasson é forte – disse o homem mais velho. – Ele aguenta. Começaram a brigar numa cabana em Sandskogen.
Wallander dirigiu-se para o estacionamento, Estava frio. Pensou que também tinham que procurar se havia alguma Karin ou Katarina em Lund. Era um trabalho para Birch. Eram onze e meia, Experimentou as portas do carro de Svedberg. Estavam trancadas. Pensou se devia regressar e pedir as chaves. O tempo de espera poderia vir a ser longo, mas abandonou a ideia.
Começou a andar para trás e para a frente no estacionamento.
Subitamente estava de volta a Roma. À distância, à sua frente, andava o seu pai. No seu passeio noturno secreto, um filho segue e controla o pai. A Escada de Espanha, mais há frente uma fonte. Brilho nos seus olhos. Um velho sozinho em Roma. Saberia que em breve ia morrer? Que a viagem tinha que ser feita naquela altura antes que fosse tarde de mais? Wallander parou. Sentia um nó na garganta. Quando teria tempo afinal para viver o luto pelo seu pai? A vida atirava-o de um lado para o outro. Em breve faria cinquenta anos. Agora era outono e noite. E ele andava às voltas por detrás de um hospital a sentir frio. O que mais receava era que a vida se tornasse tão incompreensível que não a conseguisse controlar. Então o que sobraria? Reforma antecipada? Solicitar um trabalho mais leve? iria dedicar mais quinze anos a visitar escolas, falar de narcóticos e dos perigos de trânsito? A casa, pensou. E um cão. E talvez Balba também. Uma mudança exterior era necessária. Começo por essa, depois logo se vê o que acontece comigo mesmo. A minha carga de trabalho é sempre grande e não a aguento se ao mesmo tempo tiver que aguentar comigo mesmo.
Passava da meia-noite e continuava às voltas no estacionamento. A ambulância partira, tudo calmo. Sabia que tinha muitas coisas que devia rever mentalmente, mas sentia-se cansado. Só tinha forças para esperar e se mexer, caso contrário começaria a sentir muito frio.
Svedberg chegou à meia-noite e meia. Dava passadas rápidas. Wallander entendeu que trazia notícias.
– Katarína Taxell vem de Lund – disse. Wallander sentiu a agitação crescer.
– Continua no hospital?
– Teve o filho no dia 15 de outubro. Já regressou a casa.
– Tens o endereço?
– Tenho mais do que isso. É solteira e não havia indicação de nenhum pai. Além disso, nunca teve visitas.
Wallander susteve a respiração.
– Então pode ser ela – disse a seguir. – Tem que ser ela. A mulher a que Blomberg chamava KA.
Regressaram à central. Precisamente na entrada Svedberg freou fundo para evitar atropelar uma lebre que se desorientara e entrara na cidade.
Sentaram-se na cantina deserta. Havia um rádio ligado em algum lugar. O telefone tocava nas salas dos policiais de serviço. Wallander colocou café amargo numa caneca.
– Não me parece ser ela que meteu Blomberg num saco – disse Svedberg e coçou-se na careca com a colher de café. Tenho dificuldade em acreditar que uma mãe que acaba de ter um filho saia para matar gente.
– É uma intermediária – comentou Wallander. – Caso esteja certo o que penso. Ela está entre Blomberg e a pessoa que neste momento se afigura como a mais importante.
– A enfermeira que derrubou Ylva?
– Ela e mais ninguém.
Svedberg esforçou-se por acompanhar as reflexões de Wallander.
– Portanto estás dizendo que esta enfermeira desconhecida aparece na maternidade de Ystad para se encontrar com ela?
– sim.
– Mas por que de noite? Por que não vai durante o horário normal de visitas? Existe um horário de visitas. E ninguém registra quem vem ou quem recebe visitas.
Wallander entendeu que as questões de Svedberg eram decisivas. Tinha que ter respostas para poder continuar.
– Não queria ser vista – sugeriu. – É a única explicação razoável.
Svedberg teimava. – Vista por quem? Teria medo de ser reconhecida? Será que nem sequer queria ser vista por Katarina Taxell? Visitou o hospital de noite para ver uma mulher dormindo?
– Não sei – disse Wallander. – Concordo que é esquisito.
– Existe apenas uma explicação plausível – prosseguiu Svedberg. – Aparece de noite porque tem receio de ser reconhecida de dia.
Wallander deteve-se no comentário de Svedberg.
– Isso poderia significar, por exemplo, que alguém que trabalha de dia poderia reconhecê-la?
– Não se pode partir do princípio de que prefire visitar a maternidade à noite sem motivo, ainda por cima para se colocar numa situação onde se torna necessário atacar a minha prima que não fez mal a ninguém.
– Talvez haja uma explicação alternativa – sugeriu Wallander.
– Qual? Que só possa visitar a maternidade à noite?
Svedberg anuiu pensativamente. – É claro, mas por quê?
– Para isso pode haver muitas explicações. Onde mora, seu trabalho. Talvez queira fazer estas visitas em segredo.
Svedberg empurrou a caneca de café. – As suas visitas tiveram que ser importantes – prosseguiu. Apareceu duas vezes.
– Podemos elaborar um esquema temporal – disse Wallander. Na primeira vez aparece na noite de 1º de outubro. Naquele momento, quando todos que estão de serviço estão mais cansados e menos atentos. Fica poucos minutos antes de desaparecer. Duas semanas mais tarde volta a fazer o mesmo, à mesma hora. Desta vez é abordada por Ylva Brink, que derruba, e desaparece sem deixar pistas.
– O filho de Katarina Taxell nasce um dia ou dois depois.
– A mulher não torna a aparecer. Por outro lado, Eugen Blomberg é morto.
– Será que uma enfermeira está por trás disto tudo? Olharam um para o outro sem comentários.
Wallander lembrou-se subitamente de que se esquecera de pedir a Svedberg para perguntar a Ylva Brink um pormenor importante.
– Lembras-te do gancho de plástico que encontramos na mala de Gösta Runfeldt? – perguntou. – Daqueles que são usados pelo pessoal dos hospitais.
Svedberg anuiu, lembrava-se.
– Telefona à maternidade – pediu Wallander. – Pergunta a Ylva se ela se lembra de ter visto se a mulher tinha um crachá com o nome.
Svedberg levantou-se e usou o telefone da parede. Respondeu uma das colegas de Ylva Brink. Svedberg aguardou. Wallander bebeu um copo de água, enquanto Svedberg falava. A conversa foi curta.
– Tem certeza de que tinha um crachá – confirmou. – As duas vezes.
– Conseguiu ler o nome no crachá?
– Não tem certeza de que havia um nome.
Wallander refletiu.
– Podia ter perdido o primeiro. Arranjou roupa do hospital em algum lugar e nessa altura também pode ter arranjado uma nova identificação.
– Não me parece viável encontrarmos impressões digitais no hospital – disse Svedberg. – Lá se faz limpeza constantemente. Alêm do mais, não sabemos se de fato tocou em alguma coisa.
– Em todo caso não usava luvas – observou Wallander. – Ylva reparou nisso.
Svedberg bateu com a colher na testa.
– Talvez, apesar de tudo. Se bem entendi Ylva, a mulher ia agarrá-la quando a derrubou.
– Só agarrou a roupa – disse Wallander. – E nela não se encontra nada, não é? Por instantes sentiu faltar-lhe a coragem.
– De qualquer maneira temos que falar com Nyberg. Talvez tenha tocado na cama onde estava deitada Katarina Taxell? Temos que tentar. Se conseguirmos achar impressões digitais que correspondam a alguma coisa encontrada na mala de Gösta Runfeldt, esta investigação dá um grande passo em frente. Nessa altura podemos ir à caça de impressões digitais no caso de Holger Eríksson e no de Eugen Blomberg.
Svedberg empurrou o papel com o endereço de Katarina Taxell para Wallander, que constatou ter ela trinta e três anos e ser proprietária de uma empresa, sem que se mencionasse que tipo. O endereço era do centro de Lund.
– Amanhã às sete da manhã estaremos lá – disse. – Como nós dois trabalhamos juntos esta noite, é melhor continuarmos assim, sendo no entanto mais sensato dormir primeiro umas horas.
– É esquisito – comentou Svedberg. – Primeiro procuramos um mercenário. E agora procuramos uma enfermeira.
– Que provavelmente não é verdadeiramente uma enfermeira – interveio Wallander.
– Na realidade não sabemos – afirmou Svediberg. – O fato de Ylva não tê-la reconhecido não significa necessariamente que não seja de fato enfermeira.
– Tens razão. Não podemos ignorar essa possibilidade.
Wallander levantou-se da cadeira.
– Levo-te em casa – ofereceu-se Svedberg. – Como está teu carro?
– Devia comprar um novo, mas não sei onde arranjar dinheiro. Um dos policiais de serviço entrou de rompante pela cantina.
– Sabia que estavam aqui – exclamou. – Acho que aconteceu alguma coisa.
Wallander sentiu um nó no estômago. Outra vez não, pensou. Não aguentamos mais.
– Há um homem seriamente ferido na beira da estrada entre Sövestad e Lõdinge, foi um motorista de um caminhão que o descobriu. Se foi atropelado ou vítima de outra espécie de violência, não sabemos. Vai uma ambulância a caminho. Pensei que, como é nas proximidades de Lödinge...
Não chegou a concluir a frase. Svedberg e Wallander já estavam a caminho da saída.
Chegaram na mesma altura em que os homens da ambulância estavam deitando o homem ferido numa maca. Wallander reconheceu-os. Eram os mesmos que encontrara mais cedo à frente do hospital.
– Navios que se cruzam de noite – comentou o condutor.
– Foi um acidente de automóvel?
– Se foi, fugiram. Mas parece mais violência de outro tipo.
Wallander olhou em volta. A estrada estava deserta.
– Quem anda aqui à noite? – perguntou.
O homem tinha severos ferimentos no rosto. A respiração emitia um som fraco.
– Vamos partir agora – disse o condutor. – Creio que seja um caso urgente. Pode ter danos internos.
A ambulância desapareceu. Investigaram o local à luz dos faróis do carro de Svedberg. A seguir chegou uma patrulha noturna de Ystad.
Svedberg e Wallander não encontraram nada. Nem sequer marcas de pneus provocadas por freada de emergência. Svedberg contou aos policiais o que tinha acontecido. Depois ele e Wallander regressaram a Ystad. Ventava. Svedberg conseguiu ler no carro que a temperatura exterior era de três graus positivos.
– Isto é uma outra coisa – dísse Wallander. – Se me deixares no hospital, podes ir para casa dormir um pouco. Um de nós estará menos cansado amanhã cedo.
– Onde te apanho? – perguntou Svediberg.
– Na Mariagatan. Digamos, às seis horas. Martinsson levanta cedo. Telefona para contar o que aconteceu. Pede para falar com Nyberg sobre o gancho de plástico. Diz-lhe que vamos a Lund.
Pela segunda vez na mesma noite, Wallander encontrou-se à porta do serviço de urgência do hospital. Quando entrou, o homem estava sendo examinado. Wallander sentou-se à espera; devido ao cansaço, não conseguiu dominar-se e adormeceu. Quando acordou sobressaltado por alguém pronunciando seu nome, não sabia onde estava. Sonhara com Roma. Andara por ruas escuras à procura do pai sem o encontrar.
À sua frente estava um médico. De repente ficou completamente acordado.
– Está fora de perigo – informou o médico. – Mas foi muito maltratado.
– Portanto, não se trata de acidente de automóvel?
– Não. Foi atacado. No entanto, tanto quanto conseguimos avaliar, não tem danos internos.
– Alguma identificação com ele? O médico deu-lhe um envelope. Wallander tirou a carteira que, entre outras coisas, tinha uma carteira de motorista. O homem chamava-se Âke Davidsson. Wallander leu que precisava de óculos para dirigir.
– Posso falar com ele? É melhor esperar.
Wallander decidiu-se por pedir a Hansson ou Ann-Britt Höglund para se encarregarem do procedimento a seguir. Mesmo sendo uma história grave de VIOLÊNCIA, teria que ser relegada para segundo plano, por enquanto. Simplesmente não tinham tempo.
Wallander levantou-se para se ir embora.
– Encontramos uma coisa na roupa que penso que lhe possa interessar – disse o médico. Entregou-lhe um papel. Wallander leu o texto escrito com uma caligrafia irregular: "Um ladrão neutralizado pelos guardas-noturnos."
– Que guardas-noturnos? – perguntou.
– Veio nos jornais – respondeu o médico. – Sobre a milícia popular que foi criada, pelo que se pode deduzir que se autodesignam guardas-noturnos?
Wallander fitou o texto, cético.
– Há mais uma indicação – prosseguiu o médico. – O papel estava preso ao corpo. Com grampeador.
Wallander abanou a cabeça.
– Que diabo, isto é incrível.
– Pois é – respondeu o médico. – É incrível que tenha chegado tão longe.
Wallander optou por não chamar um táxi. Foi para casa a pé pela cidade vazia. Pensou em Katarina Taxell. E em Âke Davidsson, que teve uma mensagem grampeada ao corpo.
Quando chegou ao apartamento, na Mariagatan, só tirou os sapatos e o casaco e deitou-se no sofá com um cobertor por cima. O despertador estava preparado para tocar, mas não conseguia adormecer. Ainda por cima começou a sentir dor de cabeça. Foi à cozinha e jogou comprimidos num copo de água. O poste de luz balançava ao vento à frente da janela. Depois deitou-se, mas dormiu mal até o despertador tocar. Quando se sentou no sofá, sentiu-sc ainda mais cansado do que antes de se deitar. Foi à casa de banho e molhou a cara com água fria. Trocou de camisa e enquanto esperava que o café ficasse pronto, telefonou para casa de Hansson. Demorou muito tempo antes que atendessem. Wallander percebeu que o acordara.
– Ainda não acabei o trabalho com os papéis de Östersund – respondeu Hansson. – Fiquei a pé até as duas na noite passada. Restam-me cerca de quatro quilos.
– Tratamos disso mais tarde – interrompeu Wallander. – Só quero que vás ao hospital falar com um homem que se chama Âkc Davidsson, que foi atacado algures perto de Lõdinge ontem à noite. Por pessoas que provavelmente pertencem a alguma milícia popular. Quero que te encarregues disso.
– O que faço com os papéis de Ostersund?
– Terás que conseguir fazer as duas coisas, Svedberg e eu vamos para Lund. Depois dou notícias.
Desligou antes de Hansson ter tempo para fazer perguntas. Não teria força para lhe responder.
Às seis horas Svedberg parou à sua porta. Wallander estava à janela da cozinha com a xícara de café e viu-o chegar.
– Falei com Martinsson – disse Svedberg, quando Wallander se sentou no carro. – Vai pedir a Nyberg para tratar da questão do crachá de plástico.
– Percebeu quais foram as nossas conclusões?
– Penso que sim.
– Então vamos.
Wallander inclinou-se e fechou os olhos. O melhor que podia fazer no caminho para Lund era dormir.
27
A casa onde Katarina Taxell morava era um prédio junto a uma praça, cujo nome Wallander desconhecia.
– Talvez seja melhor telefonar a Birch – sugeriu Wallander. Para evitarmos sarilhos a seguir.
Svedberg apanbou-o em casa. Estendeu o fone a Wallander que rapidamente explicou o que acontecera. Birch prometeu estar no local dentro de vinte minutos. Ficaram à espera no carro. O céu estava cinzento, não chovia mas o vento intensificara-se. Birch estacionou o carro atrás do deles. Wallander explicou em pormenor as descobertas obtidas através da conversa com Ylva Brink. Birch ouviu atento, no entanto Wallander viu que estava hesitante.
Depois entraram. Katarina Taxell morava no segundo andar esquerdo.
– Vou ficar para trás – disse Birch. – Tratas da conversa. Svedberg tocou à porta. A porta abriu quase de imediato. À frente deles estava uma mulher em roupão. Tinha olheiras de cansaço. Wallander achou que fazia lembrar Ann-Britt Höglund.
Wallander cumprimentou-a e tentou parecer tão simpático quanto possível. Porém, quando disse que era policial e vinha de Ystad, reparou que ela reagiu. Entraram no apartamento que dava a impressão de ser pequeno e apertado, havendo em todo o lado sinais de ela ter tido um filho recentemente. Wallander lembrou-se de como tinha estado a sua casa quando Linda era recém-nascida. Entraram numa sala com mobília de madeira clara. Na mesa havia uma brochura que chamou a atenção de Wallander. "Produtos Taxell para o cabelo." Deu-lhe um provável esclarecimento a respeito da ocupação dela como proprietária de empresa.
– Lamento virmos tão cedo – comentou quando se sentou –, mas o nosso assunto não pode esperar.
Hesitou em relação a como continuar. Ela estava sentada à frente dele e fitava-o com insistência.
– Teve recentemente um filho na maternidade de Ystad – afirmou.
– Um rapaz, nasceu no dia 15, às três da tarde.
– Muitos parabéns – disse Wallander. – Svedberg e Birch acompanharam-no num murmúrio.
– Há cerca de duas semanas – prosseguiu Wallander –, para ser exato, na noite de 30 de setembro para 1º de outubro, pretendo saber se recebeu uma visita, inesperada ou não, por altura da meia-noite. Olhou para ele com ar de não entender.
– Quem poderia ser? – uma enfermeira que talvez nunca tivesse visto antes? – Conhecia todas as que trabalhavam de noite.
– Essa mulher regressou duas semanas mais tarde – prosseguiu.
– E julgamos que esteve lá para a visitar.
– De noite? – Sim, lá para depois das duas.
– Ninguém me visitou, além do mais dormia.
Wallander acenou lentamente com a cabeça. Birch estava por detrás do sofá, Svediberg estava sentado numa cadeira junto à parede. De repente fez-se silêncio.
Esperavam que Wallander continuasse, Também pretendia continuar, só queria concentrar-se mas sentia-se demasiado cansado. Na realidade devia perguntar por que estivera tanto tempo na maternidade. A gravidez fora complicada? Mas deixou ficar para depois.
Havia outra coisa mais importante.
Não lhe tinha escapado que ela não falara a verdade.
Estava convencido de que ela recebera visitas. E que sabia quem era a mulher.
De repente ouviu-se um bebê chorando.
Katarina Taxell levantou-se e deixou a sala. Wallander decidira nesse mesmo instante como iria continuar a conversa, pois estava convencido de que ela não falava verdade. Logo no princípio notara nela algo de indefinido e evasivo. A longa experiência como policial obrigara-o a desenvolver a capacidade de distinguir a diferença entre mentira e verdade. Levantou-se e foi até a janela onde estava Birch. Svedberg juntou-se-lhes. Inclinaram-se uns para os outros e Wallander falou em voz baixa ficando atento à porta por onde ela desaparecera.
– Não disse a verdade – disse.
Os outros pareciam não ter notado. Ou então estavam menos convencidos. Todavia não fizeram observações.
– É possível que isto vá demorar algum tempo – prosseguiu Wallander. – Mas como considero que ela tem uma importância decisiva para nós, não vou desistir. Ela sabe quem é aquela mulher, estou convencido mais do que nunca de que ela é vital.
Foi como se finalmente Birch entendesse a relação.
– Estás a insinuar que há uma mulher por detrás de tudo o que aconteceu? Que a criminosa é uma mulher? Quase parecia apavorado pelas suas próprias palavras.
– Não tem necessariamente que ser a assassina – contrapôs Wallander. – Mas existe uma mulher algures nas proximidades do âmago desta investigação. Estou convencido disso. Pelo menos perturba-me a ideia do que ela possa estar a ocultar. Eis a razão por que temos que a descobrir o mais depressa possível, temos que descobrir quem ela é.
O bebê parou de chorar. Svedberg e Wallander regressaram rapidamente aos seus anteriores lugares na sala. Demorou um minuto. A seguir Katarina Taxell regressou e sentou-se no sofá. Wallander reparou que estava muito mais atenta.
– Vamos regressar à maternidade de Ystad – disse Wallander de maneira simpática. – Diz que estava a dormir, que ninguém a visitou naquelas noites? – Não.
– Mora aqui em Lund. Apesar disso, optou por ter o filho em Ystad? – Agradam-me os métodos lá utilizados.
– Tenho conhecimento disso – anuiu Wallander. – A minha filha também nasceu em Ystad.
Não reagiu. Wallander percebeu que só queria responder às perguntas. À excepção disso, não iria dizer nada voluntariamente.
– Vou colocar-lhe umas perguntas de carácter pessoal – prosseguiu. – Como isto não é nenhum interrogatório pode optar por não responder. Todavia, se for o caso, pode vir a ser necessário levá-la à central e proceder a um interrogatório formal. Viemos cá porque procuramos informação a respeito de crimes muito graves.
Continuava a não reagir. O seu olhar estava fixo na cara dele. Era como se quisesse alcançar o interior da sua mente. Alguma coisa naqueles olhos o fez sentir indisposto.
– Entendeu o que disse?
– Entendi. Não sou burra.
– Aceita que coloque perguntas de caráter pessoal?
– Antes de ouvi-las não sei.
– Parece que mora sozinha no apartamento. Não é casada? – Não.
A resposta foi rápida e determinada. Dura, pensou Wallander. Parecia uma pancada.
– Posso perguntar quem é o pai da criança? – Não tenho intenção de responder. Não pode ter qualquer interesse para ninguém além de mim, E da criança.
– Se o pai da criança foi vítima de um crime violento, temos que considerar que interessa.
– Isso significaria que vocês sabem quem é o pai do meu filho. Mas não sabem, Portanto, a pergunta é absurda.
Wallander admitiu que ela tinha razão. A cabeça dela funcionava bem.
– Deixe-me fazer-lhe outra pergunta – prosseguiu, – Conhece um homem de nome Eugen Blomberg? – SIM.
– De que maneira o conhece?
– Conheço.
– Sabe que foi assassinado?
– Sei.
– Como sabe?
– Li no jornal desta manhã.
– É ele o pai do seu filho?
– Não.
Tem jeito para mentir, pensou Wallander. Mas não é suficientemente convincente.
– Não é verdade que você e Eugen Blomberg tinham uma relação? – Está certo.
– E, apesar disso, não é o pai do seu filho? – Não.
– Quanto tempo mantiveram essa relação? – Durante dois anos e meio.
– Deve ter sido às escondidas, uma vez que ele é casado.
– Ele mentiu-me. Soube isso muito tempo depois.
– O que aconteceu nessa altura?
– Rompi.
– Quando foi?
– Há cerca de um ano.
– Depois disso nunca mais se viram?
– Não.
Wallander agarrou a oportunidade e atacou.
– Encontramos cartas no espólio dele trocadas entre vocês há pouco tempo, cerca de dois meses.
Não se deixou atingir.
– Escrevemos cartas, mas não tivemos encontros.
– Parece tudo muito esquisito.
– Ele escrevia cartas, eu respondia. Ele queria novos encontros, eu não queria.
– Porque conheceu outro homem?
– Porque ia ter um filho.
– E o nome do pai, quer contar?
– Não.
Wallander lançou um olhar na direção de Svedberg, que fitava o chão. Birch olhava pela janela. Wallander sabia que os dois estavam totalmente expectantes.
– Quem acha que possa ter assassinado Blomberg? Wallander atirou a pergunta com toda a força. Birch mexeu-se no seu lugar. O chão rangeu sob o seu peso. Svedberg passou a olhar para as mãos.
– Não imagino quem o tenha querido matar, O filho emitiu um som. Levantou-se subitamente e desapareceu. Wallander olhou para os seus colegas. Birch abanava a cabeça. Wallander tentou avaliar a situação. Causaria grandes problemas convocar uma mulher com um filho de três dias para um interrogatório. Ainda por cima, não era acusada de nada. Tomou uma decisão rápida. juntaram-se novamente à janela.
– Interrompo aqui – afirmou Wallander. – Mas quero-a sob vigilância e quero saber tudo que for possível descobrir sobre ela. Parece ter uma empresa que vende produtos para cabelos. Quero saber tudo sobre os pais, amigos, o que fazia antes na sua vida. Passa-a por todos os registros existentes. Quero agarrá-la.
– Encarregamo-nos disso – disse Birch, – Svedberg fica cá em Lund. Precisamos de alguém que esteja por dentro dos assassínios anteriores.
– Para dizer a verdade, preferia ir para casa – comentou Svedberg.
– Como Sabes, não me sinto muito bem fora de Ystad.
– Sei – assentiu Wallander –, mas neste momento não temos outra hipótese. Vou pedir alguém para te substituir quando chegar a Ystad, mas não podemos ter gente que anda de um lado para outro desnecessaríamente.
Subitamente ela surgiu na porta. Com a criança ao colo. Wallander sorriu. Aproximaram-se para ver o rapaz. Svedberg, que gostava muito de crianças, apesar de não ter filhos, começou a cantarolar para o bebê.
De súbito Wallander reparou que havia alguma coisa que parecia estranho. Rememorou quando Linda era recém-nascida. Quando Mona andava com ela no colo e quando ele próprio a tinha no colo, constantemente receoso de deixá-la cair. Depois descobriu o que era diferente. Ela não segurava o bebê junto ao corpo dela. Era como se a criança fosse alguma coisa que na realidade não lhe pertencia.
Sentiu-se mal, mas não o mostrou. – Não vamos incomodar mais – disse. – Com toda a certeza iremos contatá-la novamente.
– Espero que peguem quem assassinou Eugen – disse. Wallander olhou para ela e concordou.
– Sim – anuiu. – Vamos solucionar o caso, prometo. Chegaram à rua. O vento aumentara de intensidade.
– O que achas dela? – perguntou Birch.
– Obviamente não fala verdade – respondeu Wallander. – Mas também não se pode dizer que tenha mentido.
Bírch olhou-o com curiosidade.
– Como devo interpretar isso? Como se mentisse e falasse verdade ao mesmo tempo? – Mais ou menos – respondeu Wallander. – Não sei o que isso significa exatamente.
– Reparei num pequeno pormenor – interveio Svedberg de repente. – Ela disse que esperava que apanhássemos "quem" matou Eugen Blomberg, não "o" assassino.
Wallander assentiu. Ele também tinha reparado. Ela esperava que encontrassem "quem" assassinou.
– Isso tem que significar alguma coisa? – perguntou Birch céptico.
– Não – disse Wallander. – Mas tanto Svedberg como eu reparamos nesse pormenor. E isso, por sua vez, pode significar alguma coisa .
Decidiram que Wallander regressaria a Ystad com o carro de Svedberg. Ele prometeu enviar alguém para o substituir em Lund o mais depressa possível.
– Isto é importante – disse mais uma vez a Birch. – Katarina Taxell teve a visita daquela mulher na maternidade. Temos que saber quem ela é. A parteira que ela derrubou descreveu-a bastante bem.
– Dá-me essas caraterísticas – pediu Birch. – Pode acontecer que também a venha visitar aqui.
– Era muito alta – informou Wallander. – A própria Ylva Brink tem 1,74m. Acha que devia ter cerca de um metro e oitenta. Cabelo escuro, liso, oo queixo. Olhos azuis, nariz pontiagudo, lábios finos. Era forte sem parecer gorda e não lhe pareceu particularmente atraente. A força com que bateu indica que tem força, pelo que possivelmente faz exercício físico. – Caraterísticas que assentam em muitas pessoas – comentou Birch.
– Todas as caraterísticas correspondem a várias pessoas – retorquiu Wallander, – Apesar disso, percebe-se imediatamente quando se encontra a pessoa certa, – Ela disse alguma coisa? Como era a sua voz?
– Não disse uma única palavra. Apenas a derrubou.
– Reparou nos dentes? Wallander olhou para Svedberg que abanava com a cabeça.
– Tinha maquilagem?
– Nada além do normal.
– Como eram as mãos? Tinha unhas postiças?
– Sabemos com certeza que não tinha. Ylva deu a entender que teria notado.
Birch fizera algumas anotações e acenou com a cabeça.
– Vamos ver o que conseguimos descobrir – disse. – A vigilância aqui fora tem que ser muito discreta. Ela vai estar muito atenta. Cada um foi para seu lado, Svedberg deu as suas chaves do carro a Wallander. No caminho para Ystad Wallander tentou perceber por que é que Katarina Taxell não queria revelar que recebera visitas por duas vezes durante as noites em que esteve na Maternidade de Ystad. Quem era aquela mulher? Como estava ligada a Katarina Taxell e Eugen Blomberg? Como foram tecidos os fios seguintes? Qual era o aspecto da teia que conduziu ao assassínio? Também sentia uma preocupação interior, e receava estar a ir Por um caminho totalmente errado. Podia estar a levar a investigação completamente para fora de rota, na direção de uma área de recifes invisíveis que, no fim, provocariam o naufrágio.
Não havia nada que o atormentasse mais, lhe tirasse o sono, lhe provocasse dores de estômago, do que a sensação de que estava a levar a investigação a afundar-se em grande velocidade. já acontecera antes com investigação de crimes que de súbito desmoronava ao ponto de estes ficarem irreconhecíveis. E não restava nada mais senão recomeçar do ponto de partida, reconhecendo que o erro fora dele.
Eram nove e meia quando estacionou à frente da central em Ystad. Ao chegar à recepção foi intercetado por Ebba.
– Aqui está um caos total – exclamou.
– O que aconteceu?
– Lisa Holgersson quer falar contigo imediatamente. É sobre o homem que tu e Svedberg encontraram esta noite junto a estrada.
– Vou falar com ela – disse Wallander.
– Vai imediatamente – pediu Ebba.
Wallander dirigiu-se Prontamente ao gabinete dela, a porta estava aberta. Hansson estava lá dentro e tinha um ar pálido. Também era evidente que Lisa Hogersson estava mais abalada do que alguma vez a vira. Ela apontou para uma cadeira.
– Penso que deves ouvir o que Hansson tem para contar. Wallander tirou o casaco e sentou-se.
– Âke Davidsson – disse Hansson. – Tive uma longa conversa com ele esta manhã.
– Como está ele? – perguntou Wallander.
– Parece pior do que na realidade está, mas por outro lado suficientemente mal. Pelo menos tão mal como a história que tinha para contar.
Mais tarde Wallander chegaria à conclusão de que Hansson não exagerara. Primeiro ouvira com espanto e depois com uma revolta crescente. Hansson foi conciso e esclarecedor, mas apesar disso a história passava dos limites. Wallander pensara que nesta manhã de outono ouvira algo que julgava nunca poder acontecer. No entanto, tinha de fato acontecido e teriam que ser forçados a viver com essa realidade. A Suécia passava por um processo de transformação contínuo. Frequentemente tratava-se de processos que apareciam sorrateiramente, apenas possíveis de identificar posteriormente. Porém, as vezes Wallander tinha a sensação de que toda a comunidade experimentava profundo abalo. Pelo menos era deste modo que, como policial, ele sentia e vivia este processo.
A história sobre Âkc Davidson era um desses abalos que agitavam a consciência de Wallander.
Âke Davidsson era funcionário na segurança social em Malmö, classificado como parcialmente incapaz para o trabalho por causa de visão deficiente. Após muitos anos de luta, no entanto, conseguira obter a carta de condução com condições que impunham limites à sua validade. Desde os finais dos anos 70 Âke Davidsson tivera uma relação com uma mulher de Lõdinge. Na noite anterior romperam. Em condições normais Âkc Davidsson costumava pernoitar em Lõdinge, porque de fato não tinha autorização de guiar depois do anoitecer, mas desta vez foi obrigado a fazê-lo. Enganou-se no caminho e, por fim, parou para perguntar a alguém. Nessa altura foi atacado por uma patrulha noturna constituída por vigilantes voluntários que se organizaram em Lõdinge. Eles consideraram-no um ladrão e recusaram aceitar as suas explicações. Os seus óculos desapareceram, talvez se tenham partido, e bateram nele até ficar inconsciente tendo só acordado quando os homens da ambulância o levantaram e puseram na maca.
Esta era história de Hansson sobre Âkc Davidsson. Mas havia mais.
– Âke Davidsson é um homem pacífico que, além da visão deficiente, sofre de pressão alta. Falei com colegas de trabalho dele em Malmö que estão muito revoltados. Um deles contou uma coisa que o próprio Âkc Davidsson não contara. Possivelmente por ser uma pessoa modesta. Wallander ouvia.
– Âke Davidsson é um membro dedicado e muito ativo da Amnistia Internacional – informou Hansson. – A questão é se essa organização a partir de agora não devia se interessar pela Suécia se este surto de vigilantes noturnos brutais e milícias populares não for travado.
Wallander ficou sem palavras. Sentia-se agoniado e estava furioso.
– Há um chefe destes caras – prosseguiu Hansson. – Chama-se Eskil Bengtsson e tem uma empresa de transportes em Lõdinge.
– Temos que acabar com isto – disse Lisa Holgersson. – Apesar de estarmos atolados em trabalho com a investigação dos assassínios temos que ter pelo menos um plano de atuação.
– Esse plano, já existe – disse Wallander e levantou-se. É muito simples. Trata-se de irmos buscar Eskil Bengtsson. E a seguir vamos convocar todas as pessoas envolvidas nessa guarda de proteção. Âkc Davidsson terá que os identificar, um após o outro.
– Mas ele não vê nada – observou Lisa Holgersson.
– Gente que vê mal tem frequentemente boa audição – retorquiu Wallander. – Se entendi bem, houve conversa ao mesmo tempo que o maltrataram.
– Tenho dúvidas se isso é sustentável – hesitou ela. – Que provas temos na realidade? – Para mim serve – afirmou Wallander. – Evidentemente poden, ordenar-me a ficar aqui na central .
Ela abanou com a cabeça.
– Vai, quanto mais depressa melhor.
Wallander fez sinal a Hansson. Pararam no corredor.
– Quero dois carros-patrulha – pediu Wallander e bateu vigorosamente com um dedo no ombro de Hansson. – E vão andar com sinal de emergência, luz azul e sirenes. Quando saírmos de Ystad e entrarmos em Udinge. Também não fazia mal informar os jornais a respeito do assunto.
– Não podemos fazer isso – retorquiu Hansson preocupado.
– Claro está que não podemos – respondeu Wallander. – Saímos dentro de dez minutos. Podemos falar no carro dos papéis vindos de Östersund.
– Ainda me falta um quilo de papel – disse Hansson. – É uma investigação incrível. Voltas e mais voltas. Até há o caso de um filho que seguiu a investigação que o pai fazia anteriormente.
– No carro – interrompeu Wallander –, aqui não, Depois de Hansson sair, Wallander seguiu para a recepção e falou em voz baixa com Ebba. Ela acenou com a cabeça e prometeu fazer o que ele pediu.
Passados cinco minutos estavam a caminho. Deixaram a cidade com a luz azul e as sirenes ligadas.
– Prendemo-lo com que acusação? – perguntou Hansson. Eskil Bengtsson? O proprietário da empresa de transportes? – É suspeito de maus tratos – respondeu Wallander. – Incitamento à violência. Davidsson deve ter sido transportado para a estrada. Então podemos tentar rapto, instigação à rebelião.
– Vais ter que aturar Per Akeson por causa disso.
– Não necessariamente – retorquiu Wallander.
– Sinto-me como se tivéssemos saído para apanhar umas pessoas muito perigosas – comentou Hansson.
– Sim, tens razão, estamos atrás de umas pessoas muito perigosas. Neste momento não consigo imaginar alguém que pudesse ser mais perigoso para a segurança deste país.
Frearam junto da quinta de Eskil Bengtsson, situada à entrada da vila. Estavam lá dois caminhões e uma escavadeira. Num canil um cão ladrava raivoso.
– Então, vamos prendê-lo – disse Wallander.
Assim que chegaram à porta, esta foi aberta por um homem forte com o estômago dilatado. Wallander lançou um olhar para Hansson, que anuiu.
– Sou o comissário Wallander da Polícia de Ystad – identificou-se Wallander. – Vista um casaco. Tem que nos acompanhar.
– Para onde? A arrogância do homem fez com que Wallander quase perdesse a cabeça. Hansson reparou e agarrou-lhe o braço.
– Vai acompanhar-nos a Ystad – respondeu Wallander com uma calma esforçada. – E sabe muito bem por quê.
– Não fiz nada – disse Eskil Bengtsson.
– Isso é que fez – respondeu Wallander. – Fez coisas demais e se não for buscar o casaco, vai sem ele.
Surgiu uma pequena e magra mulher ao seu lado.
– O que se passa? – gritou com voz alta e estridente. – O que fez ele? – Não te metas – disse o homem e empurrou-a para dentro de casa novamente.
– Coloca-lhe algemas – ordenou Wallander. Hansson olhou-o sem entender.
– Por quê? Wallander já tinha esgotado toda a paciência. Virou-se para um dos carros-patrulha para ir buscar algemas. Subiu a escada, mandou Eskil Bengtsson estender as mãos para colocar as algemas. Foi tudo tão rápido que Bengtsson não chegou a reagir. Ao mesmo tempo disparou umflash. Um fotógrafo que acabara de saltar dum carro tirou uma fotografia.
– Que diabo, como sabe a imprensa que estamos aqui? – perguntou Hansson.
– Sei lá – respondeu Wallander e pensou que Ebba não só era de confiança como também rápida. – Vamos embora.
A mulher que fora empurrada para dentro da casa saíra outra vez. Subitamente atirou-se a Hansson e começou a dar-lhe murros com os punhos. O fotógrafo tirou mais fotografias. Wallander levou Eskil Bengtsson para o carro.
– Vai ter que pagar por isto – disse Eskil Bengtsson. Wallander sorriu.
– Com certeza – respondeu –, mas não se compara com o que você vai ter que pagar. Vamos começar já com os nomes? Quem participou esta noite? Eskil Bengtsson não respondeu. Wallander empurrou-o agressivamente para o carro. Entretanto Hansson libertara-se da mulher histérica.
– Que porra, ela devia estar no canil. – Estava tão transtornado que tremia. Ela arranhara-o em profundidade na face.
– Vamos embora – disse Wallander. – Tu sentas-te no outro carro e vais para o hospital. Quero saber se Âke Davidsson ouviu alguns nomes, se viu alguém que poderia ser Eskil Bengtsson.
Hansson anuiu e foi embora. O fotógrafo aproximou-se de Wallander.
– Tivemos uma informação anónima – disse. – O que se passa? – Umas pessoas aqui da área atacaram e maltrataram um homem inocente ontem à noite. Parece que estão organizados numa espécie de milícia popular. O homem estava inocente de tudo, tirando o fato de se ter enganado no caminho. Eles afirmaram que ele era um ladrão e por pouco não o mataram.
– E o homem no carro? – Suspeito de participação – respondeu Wallander. – Além disso, sabemos que se trata de um dos que tomaram a iniciativa desta miséria. Não vamos ter milícia popular na Suécia, não aqui na Scania, nem em qualquer outro lugar.
O fotógrafo queria fazer mais uma pergunta. Wallander ergueu a mão em sinal de recusa.
– Vai haver um comunicado à imprensa – disse. – Agora vamos embora.
Wallander gritou que queria as sirenes ligadas também no regresso. Vários carros com curiosos tinham parado junto ao acesso a quinta. Wallander entrou para o assento de trás ao lado de Eskil Bengtsson empurrando-o.
– Vamos começar pelos nomes? – perguntou. – Assim poupamos tempo, tanto o seu como o meu.
Eskil Bengtsson não respondeu. Wallander sentiu que ele cheirava fortemente a suor.
28
Wallander demorou três horas até conseguir que Eskil Bengtsson confessasse que participara do ataque a Âkc Davidsson. Depois foi tudo muito rápido. Eskil Bengtsson denunciou os outros três homens que também tinham participado, tendo Wallander dado ordens imediatas para os irem buscar. O carro de Âke Davidsson, que fora levado para um armazém abandonado num descampado, já tinha sido trazido para a central. Logo depois das três da tarde Wallander convenceu Per Akeson a permitir que os quatro homens ficassem detidos. Passou diretamente da conversa com Per Akeson para a sala onde esperava uma quantidade de jornalistas. Lisa Holgersson já os informara sobre os acontecimentos da noite quando Wallander entrou. Na verdade, desta vez estava ansioso por enfrentar a imprensa e apesar de saber que Lisa Holgersson já fornecera a informação básica, relatou uma vez mais a sequência dos acontecimentos. Era como se não fosse possível repetir suficientes vezes.
– Quatro pessoas acabam de ser detidas pelo procurador público – acrescentou em seguida. – Não há a menor dúvida de que sejam culpados de infligir maus tratos, mas o que é ainda mais grave é que não era obrigatório que fossem necessariamente eles. Há ainda cinco ou seis pessoas envolvidas no grupo que constitui um comando de guarda privado lá em Udinge. Trata-se de pessoas que decidiram colocar-se acima da lei. O resultado podemos ver neste caso, onde um homem, com dificuldades visuais e pressão alta, quase é assassinado quando perde no caminho. A questão é se é assim que queremos viver. Que pode ser uma questão de vida ou morte virar para a direita ou pPara a esquerda? É isso que queremos? Que a partir de agora seremos ladrões uns dos outros aos olhos de todos, ladrões, violadores e assassinos? Não consigo dizer isto com suficiente empenho. Algumas pessoas que são levadas a participar nestas organizações de proteção ilegais e perigosas talvez não tenham percebido no que se meteram. Podem ser desculpadas caso se retirem imediatamente, porém as que entraram conscientes do que estavam fazendo, não podem ser desculpadas. Os quatro homens que prendemos hoje são, infelizmente, exemplos disso. Só se pode esperar que o castigo que vão receber venha a ser dissuasivo para outros.
Wallander foi muito convincente nas suas palavras. Notou-se nos jornalistas que não o bombardearam de imediato com perguntas. As perguntas apresentadas foram poucas e unicamente para obtenção de confirmação de alguns pormenores. Ann-Britt Höglund e Hansson tinham-se colocado ao fundo da sala. Wallander procurou entre os jornalistas o homem do jornal Anmdrkaren. Mas não estava presente. A conferência de imprensa acabou em quase meia hora.
– Trataste muito bem do assunto – disse Lisa Holgersson.
– Só havia uma maneira de o tratar – respondeu Wallander. Ann-Britt Höglund e Hansson aplaudiram quando Wallander se aproximou deles. Ele não achou piada. Além disso, tinha muita fome e precisava de ar fresco. Viu as horas.
– Dá-me uma hora – pediu. – Encontramo-nos às cinco. Svedberg já regressou?
– Está a caminho.
– Quem vai substituí-lo?
– Augustsson.
– Quem é? – perguntou Wallander surpreendido.
– Um dos policiais de Malmö.
Wallander esquecera o nome, mas anuiu.
– Às cinco horas – repetiu. – Temos muito que fazer. Parou na recepção e agradeceu a Ebba a ajuda. Ela sorriu. Wallander desceu até ao centro. Fazia vento. Sentou-se na pastelaria junto ao terminal de ônibus e comeu duas sanduíches que lhe atenuaram a fome. Tinha a cabeça vazia. Folheava uma velha revista de uma ponta à outra. No regresso à central parou e comprou um hambúrguer. Deitou o guardanapo no cesto de papéis e começou a pensar novamente em Katarina Taxelt. Para ele, Eskil Bengtsson já não existia. Porém, Wallander sabia que se iam confrontar com várias milícias populares locais mais vezes. O que acontecera a Âke Davidsson era apenas o princípio.
Ás dez para as cinco estavam reunidos na sala de reuniões. Wallander começou por fazer um levantamento sobre tudo que sabiam a respeito de Katarina Taxell. Reparou imediatamente que os presentes estavam a ouvir com muita atenção. Pela primeira vez desde o início da presente investigação sentiu que se aproximavam de algo que talvez viesse a demonstrar tratar-se duma brecha. Sensação que foi reforçada pelas palavras de Hansson.
– O material de investigação sobre Krista Haberman é imenso – afirmou. – Não tive tempo suficiente e é possível que me tenha escapado algo essencial. Mas encontrei uma coisa que pode ter interesse.
Folheou os apontamentos até encontrar o que queria.
– Nalguma altura nos meados dos anos 60, Krista Haberman visitou a Scania em três ocasiões. Tinha conseguido um contato com um ornitólogo que morava em FaIsterbo. Muitos anos mais tarde, depois de ela ter desaparecido há muito tempo, um policial que se chama Fredrik Nfisson faz a longa viagem desde Östersund para falar com esse homem em FaIsterbo. Aliás, registrou que foi de comboio todo o caminho. O homem de FaIsterbo chama-se Tancivali. Erik Gustav Tandvali. Ele relata sem reservas que teve visitas de Krista Haberman. Embora sem relação direta, presume-se que tiveram uma ligação, só que o policial Nilsson de Östersund não consegue encontrar razões para suspeitas. A relação entre Haberman e Tandvall já acabara muitos anos antes de ela desaparecer sem deixar rasto. Certamente Tandvall não tem nenhum relacionamento com o seu desaparecimento e, por isso, é retirado da investigação e não torna a aparecer.
Hansson terminou a leitura dos seus apontamentos. A seguir olhou para todos à volta da mesa.
– O nome Tandvall parecia algo familiar – disse. – Um nome invulgar. Tive a impressão de já me ter deparado com este nome. Levou um tempo até me lembrar. Foi numa lista de pessoas que trabalharam como vendedores de automóveis para Holger Eriksson.
Neste momento o silêncio era absoluto na sala. A tensão era enorme. Todos perceberam que Hansson descobrira uma relação muito importante.
– O vendedor de automóveis não se chamava Erik Tandvall – prosseguiu. – O seu primeiro nome era Gõte, Gõte Tandvall. Pouco antes desta reunião, consegui obter a confirmação de que se trata do filho de Erik Tandvall. Talvez deva acrescentar que Erik Tandvall morreu há um par de anos. Não consegui localizar o filho, por enquanto.
Hansson calou-se.
Ninguém disse nada por um longo instante.
– Em outras palavras, significa que há uma possibilidade de que Holger Eriksson se tenha encontrado com Krista Haberman – concluiu Wallander lentamente. – Uma mulher que a seguir desaparece sem deixar rasto. Uma mulher de Svenstavik onde há uma igreja que recebe uma doação segundo as instruções no testamento de Holger Eriksson.
Fez-se novamente silêncio na sala. Todos entenderam o que significava.
Finalmente era estabelecida a relação entre dois pontos.
Era quase meia-noite quando Wallander chegou à conclusão de que não tinham forças para continuar. Estavam reunidos desde as cinco horas, apenas com curtas interrupções para arejar a sala.
Hansson apresentara a pista de que estavam a precisar, finalmente tinham conseguido estabelecer uma ligação. Tinham começado a emergir os contornos de uma pessoa que se movia como uma sombra entre os três homens assassinados. Ainda que apenas com grande cautela dessem o motivo por certo, tinham na mesma a firme sensação de que se moviam na periferia de uma série de ocorrências cujo denominador comum seria vingança.
Wallander reunira-os para uma caminhada comum num terreno difícil. Hansson apareceu para lhes dar a direção, porém continuavam sem mapa para os orientar.
Também havia uma certa dúvida no grupo da investigação. Será que tudo aquilo podia estar certo? Que um desaparecimento envolto em mistério há muitos anos, em Jamtland, registrado por policiais já falecidos em quilos de papelada de investigação, poderia ajudá-los a descobrir um criminoso que, entre outras coisas, colocava estacas afiadas de bambu numa valeta na Scania? A dúvida só se dissipou depois das seis quando a porta se abriu e Nyberg chegou. Este nem sequer se deu ao trabalho de se sentar no seu lugar habitual ao fundo da mesa. Para variar mostrava sinais de agitação, algo de que ninguém conseguia lembrar-se ter acontecido antes.
– Havia uma guimba no pontão – disse. – Conseguimos identificar uma impressão digital nela.
Wallander olhou-o, espantado, – Isso é possível? Impressões digitais numa beata?
– Tivemos sorte – disse Nyberg. – Tens razão em dizer que normalmente não é possível. Todavia há uma exceção, quando o cigarro é enrolado à mão. E foi o caso.
Fez-se silêncio absoluto na sala. Em primeiro lugar Hansson encontrara uma possível ligação entre uma mulher polonesa há anos desaparecida e Holger Eriksson. E agora vinha Nyberg dizer que descobrira impressões digitais, tanto na mala de Runfeldt, como no local onde Blonmberg fora encontrado num saco.
Era como se fosse demais para assimilar em tão pouco tempo, A investigação criminal, que até aí se arrastara sem grandes desenvolvimentos, dava agora sinais de estar a avançar rapidamente.
Depois de apresentar a sua novidade, Nyberg sentou-se.
– Um criminoso que fuma – observou Martinsson. – É mais fácil encontrar hoje do que há vinte anos, lembrando que há cada vez menos fumantes.
Wallander anuiu distraído – Temos que cruzar os dados destes homicídios mais vezes – disse. Com três pessoas assassinadas, necessitamos de, pelo menos, nove combinações. Impressões digitais, horários, tudo o que possa mostrar que há um denominador comum definitivo.
Olhou em volta.
– Precisamos elaborar um calendário como deve ser. Sabemos que a ou as pessoas que estão por trás disto tudo avançam com uma brutalidade temível. Identificamos um elemento demonstrativo do modo como estas pessoas foram mortas, mas ainda não conseguimos interpretar a linguagem do assassino. Temos apenas uma vaga ideia de que ela nos é dirigida. Mas o que pretendem dizer? Não sabemos. A questão agora é saber se existe mais algum padrão que não descobrimos.
– Queres dizer se o criminoso atua na Lua cheia? – perguntou Svedberg.
– Exatamente. A lua cheia simbólica. Qual é o aspecto da lua neste caso? Existe? Gostaria que alguém fizesse um calendário. Poderá haver alguma coisa nesse calendário que nos possa fornecer mais uma ajuda? Martinsson prometeu organizar as informações que detinham. Wallander ouvira dizer que ele arranjara, por iniciativa própria, programas de informática que teriam sido elaborados na sede do FBI, em Washington, e pressupôs que Martinsson via agora uma oportunidade de utilizar algum.
Depois começaram a falar sobre a hipótese de, na realidade, existir um centro. Ann-Britt Höglund colocou um recorte de um mapa militar num projetor. Wallander colocou-se ao lado da imagem projectada.
– Começa em Lödinge – apontou. – De algum lado vem uma pessoa e começa a vigiar a quinta de Holger Eriksson. Podemos supor que veio de automóvel e que utilizou o caminho do outro lado do monte onde Holger Eriksson tinha a sua torre de observação. Um ano antes, a mesma pessoa terá eventualmente assaltado a casa sem roubar nada, possivelmente para o avisar, como um prenúncio. Não sabemos. Também pode não se tratar necessariamente da mesma pessoa.
Wallander apontou para Ystad.
– Gösta Runfeldt aguardava a viagem para Nairobi com grande expectativa, onde iria estudar orquídeas raras. Tudo estava pronto, a mala feita, dinheiro trocado e o bilhete marcado. Até reservou um táxi para a madrugada do dia em que iria partir. Mas acaba por não fazer nenhuma viagem e desaparecer sem deixar rastro durante três semanas, até reaparecer.
Deslocou o dedo novamente, agora para a floresta de Marsvinshohm a oeste da cidade.
– Um indivíduo que treina orientação noturna o encontra. Atado a uma árvore, estrangulado, magro e sem forças. De alguma forma, teve que estar em cativeiro durante o tempo em que esteve desaparecido. Até aqui temos dois assassínios em dois lugares diferentes com Ystad como uma espécie de ponto central.
O dedo regressou a nordeste.
– Encontramos uma mala na estrada para Sjöbo, não muito longe do ponto do desvio para a quinta de Holger Eriksson. A mala é visível da berma da estrada, pelo que pensamos imediatamente que foi colocada no local para ser encontrada. justifica fazer a pergunta a nós próprios: Por que precisamente ali? Porque é o caminho adequado para o criminoso? Não sabemos, mas a questão é talvez mais importante do que na realidade pensemos.
Wallander moveu novamente a mão, para sudoeste, para o lago Kragcholm.
– Aqui encontramos Eugen Blomberg. Significa que temos uma área delimitada que não é propriamente grande, trinta, quarenta quilómetros a separar os extremos. Entre os diversos lugares não se demora mais do que meia hora de automóvel.
Sentou-se.
– Vamos tirar algumas conclusões cautelosas e provisórias – prosseguiu. – Que indicador temos? – Bons conhecimentos dos locais – sugeriu Ann-Britt Höglund, – O lugar na floresta de Marsvinshohn foi bem escolhido. A mala foi colocada onde não há casas de onde se possa ver um automobilista que pára e larga um objeto.
– Como sabes? – perguntou Martinsson.
– Porque verifiquei pessoalmente. Martinsson não disse mais nada.
– Conhecimentos da localidade arranjam-se ou já se têm – prosseguiu Wallander. – Para qual das duas alternativas aponta este caso? Não estavam de acordo. Hansson era de opinião que um estranho facilmente conseguia aprender a orientar-se nos lugares em causa, Svedberg achava o contrário. Especialmente a escolha do lugar onde foi encontrado Gösta Runfeldt apontava para um conhecimento profundo do local por parte do criminoso.
O próprio Wallander tinha dúvidas. Até então tinha imaginado uma pessoa que viera do exterior. Neste momento não tinha tanta certeza. Também não chegaram a nenhuma conclusão unânime. Pois ambas eram plausíveis e as duas tinham que ser consideradas, por enquanto. Também não conseguiram descobrir um centro evidente. Com uma régua e compasso iam calhar algures na proximidade do local onde encontraram a mala de Gösta Runfeldt. Isso, porém, não os fazia avançar.
Naquela noite regressavam constantemente à mala. Por que é que fora colocada à beira da estrada? E por que fora refeita por uma pessoa que provavelmente era uma mulher? Também não conseguiram encontrar uma explicação razoável para a mala não conter roupa interior, Hansson propôs que Runfeldt fosse eventualmente uma pessoa excêntrica que nunca vestia nada por baixo, porém ninguém o levou a sério, como é óbvio. Tinha que haver outra explicação.
Às nove da noite fizeram um intervalo e arejaram a sala. Martinsson desapareceu para o gabinete dele para telefonar para casa, Svedberg, vestiu o casaco e foi dar um pequeno passeio e Wallander dirigiu-se à casa de banho para refrescar a cara com água. Observou-se ao espelho. De súbito ficou com a sensação de que o seu aspecto mudara desde que o pai morrera. No entanto, não conseguiu determinar qual era a diferença. Abanou a cabeça para a sua própria imagem no espelho.
Brevemente tinha que arranjar tempo para refletir sobre o sucedido.
O pai já estava morto há várias semanas e continuava sem ter interiorizado bem esse fato. Isso fê-lo sentir-se de alguma maneira culpado. Também pensou em Balba. Nela, de quem tanto gostava e a quem nunca telefonava.
Frequentemente duvidava de que um policial pudesse combinar a sua profissão com mais alguma coisa, o que evidentemente não correspondia à verdade. Martinsson tinha uma óptima relação com a família. Ann-Britt estava mais ou menos sozinha com dois filhos sob a sua responsabilidade. Era ele, Wallander, na sua qualidade de pessoa privada, que não aguentava a combinação, não na qualidade de policial.
Bocejou para o seu reflexo no espelho. Do corredor conseguiu ouvir que ja tinham novamente começado a reunir-se. Tomou a decisão de que agora era necessário começar a falar da mulher que vislumbravam nos bastidores dos crimes. Tinham que tentar visualizá-la e descobrir qual o papel que na realidade desempenhava.
A primeira coisa que disse depois de fechar a porta foi isso mesmo.
– Nos bastidores dos crimes, vislumbra-se uma mulher – afirmou.
– No que resta da noite e enquanto aguentamos temos que analisar estes antecedentes. Falamos de uma vingança como motivo, mas não somos especialmente esclarecedores. Será que significa que estamos a pensar mal? Que olhamos para a direção errada? Que possa haver uma explicação totalmente diferente? Esperaram em silêncio que ele prosseguisse. Apesar de a atmosfera se caraterizar por abatimento e cansaço notou que continuavam concentrados.
Começou por dar um passo para trás. Regressou a Katarina Taxell de Lund.
– Teve um filho aqui em Ystad – disse. – Em duas noites recebeu visitas. Apesar de o negar, estou convencido de que a tal mulher desconhecida foi visitar precisamente Katarina. Portanto, mente. A questão é por quê? Quem era aquela mulher? Por que não quer Katarina revelar a sua identidade? De todas as mulheres que surgem nesta investigação, Katarina Taxell e a mulher vestida com uniforme de enfermeira são as principais. julgo ainda que podemos partir do princípio de que Eugen Blomberg é o pai da criança que nunca chegou a ver. Julgo que Katarina Taxell mente a respeito da paternidade. Quando estivémos em Lund, fiquei com a impressão de que praticamente não disse uma única palavra que correspondesse à verdade. Todavia, porque mentiu? Não sei. Mas podemos estar certos de que ela tem uma chave importante em relação a toda esta confusão.
– Por que não a vamos buscar? – perguntou Hansson com uma certa excitação.
– Por que motivo faríamos isso? – perguntou Wallander. – Ainda por cima acaba de ter um filho, não a podemos tratar de qualquer maneira. Além do mais, se a sentássemos numa cadeira na central de Lund, não acredito que fosse dizer algo mais ou diferente do que disse até agora. Temos que tentar contorná-la, procurar nas suas proximidades, forçar a revelação da verdade de outra maneira.
Hansson anuiu contrariado.
– A terceira mulher nas proximidades de Eugen Blomberg é a viúva – prosseguiu Wallander, após a troca de palavras com Hansson. Ela deu algumas informações importantes. Contudo, é provavelmente decisivo o fato de não parecer sofrer com a morte dele. Ele tratou-a mal e, a julgar pelo aspecto das cicatrizes, fê-lo durante muito tempo, além do mais com gravidade. Também confirma indiretamente a história de Katarína Taxell, visto ter afirmado que ele sempre teve relações extraconjugais.
Quando acabou de pronunciar as últimas palavras, pensou que falara como um antiquado pastor de alguma seita. Interrogou-se sobre que tipo de expressão teria utilizado Ann-Britt Höglund.
– Vamos imaginar que os pormenores à volta de Blomberg constituem um molde ao qual voltaremos – prosseguiu.
Passou a falar de Runfeldt. Continuava a procurar no passado, na direção do acontecimento mais afastado no tempo.
– Gösta Runfeldt era um homem bruto, confirmado por testemunhas – prosseguiu. – Tanto o filho como a filha corroboraram essa versão. Por detrás de um admirador de orquídeas escondia-se uma pessoa totalmente diferente. Além do mais, era um detetive privado, para o que não encontramos realmente um motivo compreensível. Será que procurava emoção? Não bastavam as orquídeas? Não sabemos, contudo deixa transparecer uma natureza complexa.
Depois passou a falar da mulher de Runfeldt.
– Fiz uma viagem até ao lago nos arredores de Älinhult sem ter realmente a certeza do que Ia encontrar. Não tenho nenhuma prova, mas certamente consigo imaginar que Runfeldt tenha, de fato morto, a sua mulher. o que aconteceu lá fora no gelo, provavelmente nunca o iremos saber. Os intervenientes principais estão mortos e não há testemunhas. Apesar disso, tenho a sensação de que alguém fora da família sabia. Na falta de melhor, temos que admitir a possibilidade de a morte da mulher estar de algum modo relacionada com o destino de Runfeldt. Wallander recapitulou o relato dos acontecimentos.
– Ia a África, mas não foi. Algo se mete no seu caminho. Não sabemos como desaparece. Por outro lado, podemos determinar o momento com relativa precisão. No entanto, não temos nenhuma explicação para o assalto à loja e também não sabemos onde esteve em cativeiro. Evidentemente pode considerar-se que a mala dá uma vaga pista geográfica, pelo que julgo, também, que podemos ter o atrevimento de tirar a conclusão cautelosa de que a mala de algum modo foi arrumada uma segunda vez por uma mulher. Pela mesma mulher que fumou um cigarro enrolado à mão no pontão onde o saco com Blomberg foi empurrado para a água.
– Pode tratar-se de duas pessoas – interveio Ann-Britt Höglund. Uma pessoa que fumou o cigarro e deixou impressões digitais na mala. Outra que tirou a roupa da mala.
– Tens razão – admitiu Wallander. – Mudo a minha opinião para dizer que uma pessoa, pelo menos, esteve presente.
O seu olhar deteve-se em Nyberg.
– Procuramos – disse Nyberg. – Procuramos na quinta de Holger Eriksson. Encontramos grande quantidade de impressões digitais. Todavia, nada que coincida, por enquanto.
Wallander lembrou-se subitamente de um pormenor.
– A chapa de identificação – sugeriu. – Aquela que encontramos na mala de Runfeldt. Tinha alguma impressão digital? Nyberg; abanou a cabeça negativamente.
– Devia ter – disse Wallander surpreso. – Certamente utilizam-se os dedos para tirar e por uma chapa de identificação? Ninguém tinha uma explicação lógica para lhe dar. Wallander prosseguiu.
– Até agora aproximamo-nos de uma série de mulheres, das quais uma emerge várias vezes – resumiu. – Temos ainda maus tratos infligidos a mulheres e talvez um homicídio não esclarecido. A questão que temos que levantar é quem poderia saber? Quem pode ter tido motivos de vingança? No caso de o motivo ser vingança.
– Talvez tenhamos mais uma coisa – interveio Svcdberg, e coçou a nuca. – Temos duas velhas investigações policiais que foram anexadas aos nossos documentos. Investigações que não foram conclusivas, uma em Östersund e outra em Älmhult.
Wallander anuiu.
– Resta Holger Eriksson – prosseguiu. – Mais um homem brutal. Após muito esforço, ou talvez dizendo melhor, muita sorte, também nos antecedentes dele encontramos uma mulher. Uma polonesa desaparecida há trinta anos.
Olhou em redor da mesa antes de dar o resumo por concluído. – Em outras palavras, há, portanto, um padrão. Homens brutais e mulheres maltratadas, desaparecidas e talvez assassinadas. E mais um passo atrás, uma sombra, que segue no trilho destes acontecimentos, uma sombra que talvez seja uma mulher fumante.
Hansson deixou cair o seu lápis na mesa e abanou a cabeça. – Não parece razoável, contudo – redarguiu. – Se pensarmos agora que há uma mulher envolvida, que parece ter uma força física colossal e uma fantasia macabra no que se refere à elaboração de métodos de homicídio. Que espécie de interesse poderia ter naquilo que acontecera a outras mulheres? Será uma amiga delas? Como se terão cruzado todas estas pessoas? – A questão não só é importante – disse Wallander. – Provavelmente é totalmente decisiva. Como entraram estas pessoas em contato umas com as outras? Onde começar a procurar? Entre os homens ou entre as mulheres? Um comerciante de automóveis, poeta popular e ornitólogo, um admirador de orquídeas, detetive privado e comerciante de flores e, finalmente, um investigador de alergias. Pelo menos parece que Blomberg não tinha interesses paralelos. Parece não ter tido interesses de espécie nenhuma. Ou devemos começar pelas mulheres? Uma mãe que acaba de ter um filho, que mente sobre quem é o pai da criança recém-nascida? Uma mulher que morreu afogada no lago Stângsjõn nos arredores de Minhult há dez anos? Uma mulher oriunda da Polónia, que morava em jãmtland, e se interessava por aves? Desaparecida há quase trinta anos? E por fim esta mulher que anda sorrateiramente pela maternidade de Ystad de noite e agride parteiras? Onde estão os pontos de ligação? O silêncio prolongou-se por bastante tempo. Todos procuravam encontrar a resposta. Wallander aguardou. Era um momento importante.
O que mais desejava era que alguém tirasse uma conclusão inesperada. Rydberg dissera várias vezes que a tarefa mais importante do responsável da investigação era estimular os colaboradores a pensar o inesperado e a questão agora era saber se tinha conseguido. Por fim, foi Ann-Britt Höglund quem quebrou o silêncio.
– Há locais de trabalho onde as mulheres dominam – disse. – Se procurarmos ainda por cima por uma enfermeira, falsa ou não, parece que os serviços de saúde constituem o lugar indicado.
– Ainda por cima, os pacientes vêm de vários lados – prosseguiu Martinsson. – Se supusermos que a mulher que procuramos trabalhou nos serviços de urgência, deve ter visto muitas mulheres mal tratadas passarem por lá, mulheres que não conheciam. Mas acabou por conhecê-las, saber os seus nomes, os relatórios dos médicos.
Wallander percebeu que Ann-Britt Höglund e Martinsson juntos disseram uma coisa que podia bater.
– Portanto, não sabemos se, realmente, é enfermeira – disse. Só sabemos que não trabalha na maternidade de Ystad.
– Por que não trabalhar noutra seção do hospital? – propôs Svedberg.
Wallander acenou lentamente com a cabeça. Será que podia ser tão simples? Uma enfermeira do hospital de Ystad?
– Devia ser relativamente fácil de descobrir – retorquiu Hansson.
– Mesmo sendo as fichas dos pacientes objeto sagrado, que não podem ser tocadas ou abertas, devia ser possível descobrir se a mulher de Gösta Runfeldt deu entrada por maus tratos. E por que não também Krista Haberman? Wallander propôs outra via.
– Será que Runfeldt e Eriksson alguma vez foram acusados de maus tratos? Devia ser possível procurar no passado. Se for esse o caso, parece que temos um caminho possível a seguir.
– Simultaneamente há outras possibilidades – prosseguiu AnnBritt Höglund como se sentisse necessidade de questionar a sua proposta anterior. – Há outros postos de trabalho onde as mulheres dominam. Há grupos de crise para mulheres. Até as mulheres policiais da Scania têm uma rede própria.
– Temos que investigar todas as alternativas – disse Wallander. Vai levar muito tempo. Mas acho que temos de aceitar que esta investigação se disperse em várias direções diferentes ao mesmo tempo. Para não falar de recuarmos no tempo. A análise de papéis antigos é sempre exaustiva, porém não vejo outra hipótese.
29
As últimas duas horas antes da meia-noite foram preenchidas com a elaboração de diferentes estratégias a serem seguidas em paralelo. Uma vez que Martinsson, até esta altura, ao procurar nos dados do computador não encontrara qualquer nova ligação entre as três vítimas, não tinham outra alternativa senão optar por procurar ao longo de muitas vias em simultâneo.
Pela meia-noite não tinham conseguido mais progressos.
Hansson colocou a última pergunta, aquela por que todos esperaram durante a longa noite.
– Vai acontecer novamente?
– Não sei – respondeu Wallander. – Infelizmente receio que seja possível, pois sinto alguma coisa incompleta em tudo o que aconteceu. Não me perguntem por quê. É exatamente como digo, é uma coisa tão antipolicial como um pressentimento. Talvez intuição.
– Também sinto alguma coisa – assentiu Svedberg.
Foi dito com uma força tal que todos ficaram surpreendidos.
– Pode ser que tenhamos de contar com homicídios em série. Se houver quem aponte o dedo de vingança a homens que se portaram mal com as mulheres, então a série é interminável.
Wallander sabia que Svedberg podia muito bem ter razão. Ele próprio tentara afastar essa reflexão durante toda a noite.
– O risco existe – respondeu. – O que por sua vez significa que temos de apanhar quem fez tudo isto, o mais depressa possível.
– Reforços – disse Nyberg, que praticamente não tinha dito nada nas últimas duas horas. – Senão não é possível.
– Sim – anuiu Wallander. – Cheguei à conclusão de que vamos precisar deles. Ainda mais depois do que foi dito hoje. Não conseguimos trabalhar mais do que já fazemos.
Hamrén levantou a mão em sinal de querer dizer alguma coisa . Estava sentado com os outros dois policiais de Malmö, ao fundo de um dos lados compridos da mesa.
– Quero sublinhar a última frase. Raramente, eventualmente nunca, assisti a um trabalho policial tão eficiente com tão poucas pessoas como aqui. Como estive cá no verão passado, também posso constatar que, pelos vistos, não se trata de uma excepção. Se exigirem reforços, então nenhuma pessoa sensata vos pode recusar dar.
Os dois políciias de Malmö acenaram em concordância.
– Vou levantar a questão amanhã com a Lisa Holgersson – informou Wallander. – Penso tentar conseguir mais duas mulheres. Entre outras coisas, talvez possam levantar o ânimo.
A atmosfera de cansaço aliviou por instantes. Wallander aproveitou a oportunidade para se levantar. Era importante saber quando uma reunião devia acabar. Era a altura, já não chegariam a mais lado nenhum. Precisavam de dormir.
Wallander foi buscar o casaco ao seu gabinete. Deu uma vista de olhos na pilha de mensagens telefônicas que crescia continuamente. Em vez de vestir o casaco sentou-se na cadeira. Passos desapareciam lá fora no corredor. Logo a seguir fez-se silêncio. Desviou o candeeiro para fazer a luz incidir sobre o tampo da mesa. O gabinete ficou na penumbra.
Era meia-noite e meia. Sem pensar agarrou no telefone e ligou o número de Balba em Riga. Ela tinha hábitos irregulares de sono, precisamente como ele próprio. Às vezes deitava-se cedo, mas com a mesma frequência estava acordada pela noite dentro. Ele nunca sabia antecipadamente. Desta vez respondeu quase de imediato, estava acordada. Como habitualmente tentou perceber pela voz dela se ficara contente por ele lhe telefonar, pois nunca se sentia confiante antes de lhe ligar. Desta vez ficou com a sensação de alguma reserva da parte dela. Fê-lo imediatamente sentir-se inseguro. Queria garantias de que tudo estava como devia. Perguntou como estava, falou da investigação trabalhosa. Fez umas perguntas. Depois não sabia como havia de continuar. O silêncio oscilava entre Ystad e Riga.
– Quando vens? – perguntou por fim.
A reação dela surpreendeu-o, apesar de não dever.
– Queres realmente que vá para aí? – Por que não havia de querer? – Nunca telefonas. E quando telefonas, explicas que realmente não tens tempo para falar comigo e eu pergunto-me então como vais ter tempo para me veres se for ter contigo.
– Não é assim.
– Como é então? Não sabia de onde lhe veio a reação. Nem na altura e nem depois. Tentou impedir o seu impulso. Mas não conseguiu. Desligou atirando o fone com força para o telefone. Ficou a fitar o telefone. Depois levantou-se e saiu. já se tinha arrependido mesmo antes de passar a central de coordenação. Mas conhecia Balba tão bem que sabia que não iria responder se lhe tornasse a telefonar.
Saiu para o ar da noite. Um carro da Polícia passou e acabou por desaparecer junto ao depósito da água.
A noite estava serena, sem vento, com ar fresco e céu limpo. Era terça-feira, dia 19 de outubro, Não compreendia a sua própria reação. O que teria acontecido se ela estivesse perto dele? Pensou nos homens assassinados. Era como se de repente visse algo que nunca vira antes. Parte dele encontrava-se escondida em toda essa brutalidade que o circundava. Era parte dele.
Apenas a intensidade era diferente, nada mais.
Abanou a cabeça. Tinha a certeza de que iria telefonar a Balba de manhã cedo. Nessa altura ela íria responder. Não tinha que ser tão grave, ela entendia. O cansaço também conseguia torná-la irritadiça. E então seria a vez dele de compreender.
Era uma hora, devia ir para casa e dormir, ou pedir a uma das patrulhas noturnas para o levar. A cidade estava deserta. Algures ouviu-se um carro em derrapagem e pneus a chiar. Silêncio novamente. Desceu em direção ao hospital, O grupo de investigação estivera reunido quase sete horas. Nada acontecera na realidade. A noite, porém, fora rica em acontecimentos. Nos intervalos surge a clareza, dissera Rydberg uma vez quando estava bastante embriagado. Todavia, Wallander, que estava pelo menos tão embriagado quanto Rydberg, entendera, Ainda por cima não se esquecera. Estavam sentados na varanda de Rydberg. Havia cinco, talvez seis anos. Rydberg ainda não tinha adoecido. Numa noite de junho, mesmo antes do solestício. Celebravam alguma coisa, já se esquecera o que fora.
Nos intervalos surge a clareza.
Chegara junto ao hospital e parara. Hesitou, mas só por instantes. Depois deu volta à empena do hospital e chegou às urgências. Tocou à campainha. Quando uma voz respondeu, identificou-se e perguntou se a parteira Ylva Brink estava de serviço. Estava, pediu para o deixarem entrar, Ela veio ao seu encontro através das portas de vidro. Viu pela sua cxpressão que estava preocupada. Ele sorriu, o que não lhe diminuiu a preocupação. Talvez o seu sorriso não fosse um sorriso? Ou a luz fosse fraca.
Entraram, perguntou se queria café. Declinou a oferta.
– Vou ficar pouco tempo – disse. – Talvez tenha muito que fazer? – Sim – respondeu. – Mas posso dispensar uns instantes, caso o assunto não possa esperar para amanhã? – Provavelmente até pode – respondeu –, mas parei porque estava a caminho de casa.
Entraram no escritório. Uma enfermeira prestes a entrar parou ao descobrir Wallander.
– Pode esperar – disse, e desapareceu, Wallander inclinou-se sobre a secretária. Ylva sentara-se numa cadeira.
– Deve ter refletido – começou. – Quem seria aquela mulher que a agrediu? Por que é que se encontrava aqui? Por que é que fez o que fez. Deve ter pensado várias vezes no assunto. Fez uma excelente descrição da fisionomia dela, mas talvez haja mais algum pormenor de que se tenha lembrado posteriormente.
– Tem razão em dizer que tenho pensado, porém já contei tudo de que me consigo lembrar da aparência dela.
– Mas não a cor dos olhos? – Porque não os cheguei a ver.
– Costumamos lembrar-nos dos olhos das pessoas.
– Foi tudo tão rápido.
Acreditou nela.
– Não precisa de ser o rosto dela. Pode ter tido uma determinada maneira de se mover, ou uma cicatriz numa mão. uma pessoa é composta por tantos pormenores diferentes. Pensamos que nos lembramos em grande velocidade. Como se a memória voasse. Na realidade, é ao contrário. Imagine um objeto que quase tem poder para flutuar. Que é submerso pela água, com extrema lentidão. A memória funciona assim. Ela abanou a cabeça.
– Foi tão rápido. Não me lembro de mais nada a não ser o que ja contei. E tentei realmente.
Wallander entendeu, também não esperara outra coisa. – O que é que ela fez? – Agrediu-a. Procuramo-la porque acreditamos que tem informações importantes para nos dar. Não posso dizer mais.
Um relógio de parede marcava uma e vinte sete minutos, Estendeu a mão para se despedir. Saíram do escritório.
De súbito ela parou.
– Afinal, talvez haja mais uma coisa – disse com hesitação.
– O quê?
– Não pensei nisso naquela altura, quando fui contra ela e me derrubou. Foi só depois.
– O quê?
– Tinha um perfume que era especial.
– De que maneira?
Olhou para ele quase suplicante. – Não sei. Como se descreve um cheiro?
– Sei que é das coisas mais complicadas que há. Mas tente na mesma.
Viu que realmente se esforçava.
– Não – disse. – Não encontro palavras. Só sei que era especial. Talvez se possa descrevê-lo como acre?
– Mais como loção pós-barba? Olhou para ele com cara de espanto.
– Isso mesmo, como sabia?
– Foi só uma ideia.
– Talvez não o devesse ter mencionado. Uma vez que não consigo expressar-me de maneira mais esclarecedora.
– Não – respondeu. – Pode vir a ter importância. Só se sabe depois.
Separaram-se junto às portas de vidro. Wallander desceu no elevador e deixou o hospital. Andou depressa, tinha que dormir.
Pensou no que ela dissera. – Se houvesse alguns vestígios do perfume na chapa de identificação, dariam a Ylva Brink para cheirar amanhã cedo. Apesar de já saber que se tratava do mesmo.
Procuravam uma mulher. Seu perfume era especial. Interrogou-se se a encontrariam. Às 7h35 o turno da noite acabou. Tinha pressa, empurrada por uma súbita preocupação. Malmun amanhecia fria e úmida. Apressou-se em direção ao parque de estacionamento onde tinha o carro, quando, em condições normais, teria ido imediatamente para casa dormir. Agora sabia que tinha que ir diretamente para Lund. Atirou a mala para o assento de trás e sentou-se no lugar do condutor. Quando agarrou no volante notou que as suas mãos estavam úmidas de suor. Nunca conseguira confiar totalmente em Katarina Taxell. Ela era demasiado fraca, pelo que havia sempre o risco de ceder. Pensou que Katarina Taxell era uma pessoa que ficava com nódoas negras com demasiada facilidade, caso fosse apertada.
Tivera sempre a preocupação de ela poder ceder, apesar de considerar que o domínio que tinha sobre ela seria suficiente. Agora já não tinha tanta certeza.
Tenho que tirá-la dali, pensara durante a noite, pelo menos até ela começar a ter um certo distanciamento dos acontecimentos, Também não ia ser muito difícil tirá-la do apartamento onde morava, pois não era nada invulgar uma mulher ser atingida por problemas psíquicos na altura dum parto ou logo a seguir.
Chegou a Lund ao mesmo tempo que começava a chover. Com a preocupação sempre presente, estacionou numa das ruas laterais e dirigiu-se para o largo onde se situava o prédio de Katarina Taxell. Subitamente parou e, de imediato, recuou alguns passos lentamente, como se um predador tivesse aparecido de repente à sua frente. Ficou Junto a uma parede e observou a porta do prédio de Katarina Taxell.
Um carro estava estacionado à frente da porta, onde um, talvez dois homens estavam sentados. Imediatamente teve a certeza de que eram dois policiais. Katarina Taxell estava sendo vigiada.
O pânico surgiu do nada. Ainda que não o pudesse ver sabia que tinha o rosto corado. Sentia o coração a bater desordenadamente. Os pensamentos corriam às voltas como animais notívagos desorientados num espaço onde se acende a luz de repente. O que teria dito Katarina Taxell? Por que estavam ali ao pé da porta a vigiá-la? Ou era apenas imaginação sua? Ficou imóvel e tentou pensar. Achava que a primeira coisa em que podia confiar era que Katarina Taxell, apesar de tudo, não tinha revelado nada. Se tivesse, não a vigiariam, tê-la-iam tirado de lá. Portanto, não era demasiado tarde. Provavelmente não tinha muito tempo, mas também não precisava pois sabia o que fazer.
Acendeu um cigarro que enrolara durante a noite. Segundo o seu horário, estava pelo menos uma hora adiantada. Mas desta vez não lhe obedeceu. O dia iria ser muito especial, ja não se podia mudar nada.
Ficou mais uns minutos no lugar e observou o carro à frente da porta.
Depois apagou o cigarro e foi embora com pressa.
Quando Wallander acordou, logo a seguir às seis, naquela manhã de quarta-feira, continuava muito cansado. O seu défice acumulado de sono era grande. A falta de força era como chumbo bem no fundo da sua consciência. Ficou imóvel na cama com os olhos abertos. O ser humano é um animal que vive para aguentar, pensou. Neste momento sinto-me esgotado.
Sentou-se na beira da cama sentindo o chão frio por baixo dos pés. Olhou para as unhas dos pés. Precisava cortá-las. Todo ele precisava de uma espécie de restauro. Um mês antes estivera em Roma e acumulara forças que agora já estavam gastas. Esgotaram-se em menos de um mês. Forçou-se a levantar-se e ir até a casa de banho. A água fria era como um estalo na cara. Pensou que um dia também iria acabar com isso, a água fria que o obrigava a começar a funcionar. Secou-se, vestiu o roupão e foi à cozinha. Sempre a mesma rotina. A água para o café, depois a janela, o termômetro. Chovia, estavam quatro graus positivos, o frio do outono já se tinha instalado. Alguém na central comentara que vinha a caminho um longo e rigoroso inverno. Receava-o.
Com o café pronto, sentou-se à mesa da cozinha. Entretanto procurara o matutino, onde na primeira página havia uma imagem de Lõdinge. Bebeu uns golos de café. já tinha vencido o primeiro e o maior pico do sono. As suas manhãs podiam ser como uma complicada pista de obstáculos. Olhou para o relógio e verificou que ainda tinha tempo para telefonar a Balba.
Respondeu quando tocou o segundo sinal. Foi tal como tinha pensado na noite passada. Agora era diferente.
– Estou cansado – desculpou-se.
– Eu sei – respondeu. – Mas a minha pergunta continua de pé.
– Se eu quero que venhas? -Sim? – Não há nada que mais queira.
Ela acreditou nele ao responder que talvez pudesse ir passadas umas semanas. No princípio de Novembro. Iria estudar a possibilidade nesse mesmo dia.
Não necessitaram falar por muito tempo, nenhum deles gostava do telefone. Depois, quando Wallander regressara à sua xícara de café, pensou que desta vez tinha que falar com ela a sério, sobre ela vir viver para a Suécia, sobre a nova casa que queria arranjar e até talvez também falasse do cão.
Ficou sentado muito tempo. Não chegou a abrir o jornal. Só quando o relógio chegou às sete e meia se foi vestir. Teve que procurar muito tempo no roupeiro antes de encontrar uma camisa lavada. Como era a última, tinha que arranjar tempo para lavagens, nesse mesmo dia. Precisamente quando estava a deixar o apartamento, o telefone tocou. Era o mecânico de automóveis de Älmhult. Doeu-lhe saber quanto a reparação acabara por custar, mas não disse nada. O mecânico prometeu que o carro chegaria nesse mesmo dia a Ystad. Tinha um irmão que o podia levar a Ystad e depois regressar de comboio, só lhe custaria o preço do bilhete de comboio.
Quando chegou à rua, Wallander notou que a chuva era mais forte do que se apercebera da janela. Regressou para o abrigo da porta e do seu celular ligou o número da central. Ebba prometeu mandar imediatamente um carro da Polícia para buscá-lo. Não demorou mais do que cinco minutos. Às oito estava em sua sala.
Mal teve tempo de tirar o casaco quando subitamente tudo parecia acontecer ao mesmo tempo à sua volta.
Ann-Britt Höglund assomou à porta, estava muito pálida.
– Ouviste? – perguntou.
Wallander deu um pulo, Aconteceu outra vez? Mais um homem assassinado? – Acabo de chegar – respondeu. – O que se passa? – A filha de Martinsson foi atacada.
– Terese? – sim.
– O que aconteceu? – Foi atacadajunto à escola. Martinsson acaba de ir para lá. Se bem entendi o que Svedberg disse, tem algo a ver com o fato de Martinsson ser policial.
Wallander olhou-a sem compreender.
– É grave? – Empurraram-na e bateram-lhe com os punhos na cabeça. Pelos vistos, também lhe deram pontapés. Não tem lesões físicas, mas evidentemente está chocada.
– Quem foi? – Outros alunos, mais velhos do que ela. Wallander sentou-se na cadeira.
É o cúmulo! Mas por quê? Não sei tudo o que aconteceu. Mas aparentemente os alunos também discutiram essa questão da milícia popular. Que a Polícia não faz nada, que desistimos.
– E então atiram-se à filha de Martinsson! – sim.
Wallander sentiu um nó formar-se na garganta. Terese tinha treze anos e Martinsson falava constantemente dela.
– Por quê atacar uma criança inocente? – perguntou.
– Viste os jornais? – perguntou.
– Não? – Devias ver. As pessoas pronunciaram-se sobre Eskil Bengtsson e os outros. As detenções são consideradas usurpação de direitos. Afirma-se que Ake Davidsson protestou. Há grandes reportagens, fotografias e editoriais. "De que lado está, na realidade, a Polícia?" – Não preciso de ler isso – disse Wallander com aversão. – O que se está a passar na escola? – Hansson foi para lá. Martinsson levou a filha para a casa.
– Portanto foram rapazes da escola quem fez aquilo? – Sim, tanto quanto sabemos.
– Vai para lá – decidiu Wallander de repente. – Descobre tudo o que é possível saber. Fala com os rapazes. julgo que é melhor evitar ser eu a fazê-lo. Corro o risco de ficar demasiado furioso.
– Hansson jà lá está, Não deve ser preciso mais ninguém.
– É sim – retorquiu Wallander. – Quero que também vás lá. Certamente Hansson chega, Mas, no entanto, quero que tu, à tua maneira, tentes descobrir o que na realidade aconteceu e por quê. Se formos mais para lá, mostramos que levamos o caso muito a sério. Tenho intenções de ir a casa de Martinsson, tudo o resto vai ter que esperar, por enquanto. O pior que se pode fazer neste país, como em qualquer lado, é matar um policial. Em segundo lugar, é atacar um filho de um policial.
– Parece que os outros alunos se puseram à volta a rir – disse. Wallander estendeu as mãos num gesto de repulsa, não queria ouvir mais.
Levantou-se da cadeira e agarrou no casaco.
– Eskil Bengtsson e os outros vão ser libertados hoje – anunciou ela quando passaram pelo corredor. – Mas Per Akeson vai condená-los.
– Qual vai ser a sentença? – Gente da área já fala em juntar dinheiro se vierem a ter de pagar muitas. Porém, sempre se pode esperar que seja prisão, pelo menos para alguns deles.
– Como está Âke Davidsson? – Está de volta à sua casa em Malmö, com baixa. Wallander parou e olhou para ela.
– O que teria acontecido, se tivessem acabado por o matar? Seriam multados na mesma? Não esperou nenhuma resposta.
Wallander foi conduzido por um carro da Polícia até a casa de Martinsson, que se situava numa área residencial, na saída leste da cidade. Wallander não fora lá muitas vezes. A casa era banal. Porém, Martinsson e a mulher tinham dedicado muito amor ao jardim. Tocou à campainha. Quem abríu foi Maria, a mulher de Martinsson e Wallander reparou como ela tinha os olhos avermelhados. Terese era a única rapariga e a mais velha. Também tinham dois rapazes. Um deles, chamado Rickard, estava atrás dela. Wallander sorriu e acariciou-o na cabeça.
– Como estão as coisas? – perguntou. – Soube agora mesmo, vim logo de seguida.
– Está sentada na cama a chorar. Só quer falar com o pai. Wallander entrou e tirou o casaco e os sapatos. Uma das peúgas estava rota. Ela perguntou-lhe se queria café e ele aceitou agradecido. No mesmo instante Martinsson desceu a escada. Normalmente era um homem sorridente. Agora Wallander viu uma máscara cinzenta de desespero. E também medo.
– Soube o que aconteceu – disse Wallander. – Vim logo. Sentaram-se na sala.
– Como está ela? – perguntou Wallander.
Martinsson apenas abanava a cabeça. Wallander pensou que iria desatar a chorar. Se fosse o caso, seria a primeira vez que o via chorar.
– Demito-me – disse Martinsson. – Vou falar com Lisa já hoje. Wallander não sabia o que responder. Martinsson tinha razão para estar perturbado. Era fácil imaginar que reagiria da mesma maneira se Linda tivesse sido atacada.
Apesar disso, tinha que o contrariar nessa reação, pois o que não podia acontecer de maneira nenhuma era que Martinsson desistisse. Achou que o único que podia convencê-lo a pensar de outro modo era ele.
No entanto, por enquanto, era cedo de mais. Martinsson estava chocado.
Maria apareceu com o café. Martinsson fez sinal que não queria.
– Não vale a pena – disse. – Quando a família começa a ser vítima.
– Não – assentiu Wallander. – Não vale a pena.
Martinsson não disse mais nada. Wallander também não. Logo a seguir Martinsson levantou-se e desapareceu escada acima. Wallander chegou à conclusão de que não havia nada que pudesse fazer naquele momento.
A mulher de Martinsson acompanhou-o à porta.
– Dá cumprimentos meus à tua filha – disse Wallander.
– Vão meter-se conosco outra vez? – Não – respondeu Wallander. – Sei que o que digo, agora parece estranho. Como se tentasse converter o sucedido num acontecimento insignificante. Mas tencionava dizer uma coisa totalmente diferente. É só que não podemos perder a noção das proporções e começar a tirar conclusões erradas. Foram rapazes que talvez apenas tenham uns anos mais do que Terese. Não têm intenções assim tão maldosas. Na realidade não sabem o que fazem. A causa são tipos como Eskil Bengtsson e outros lá em Lõdinge que organizam uma milícia popular e a incitam contra a Polícia.
– Sei – respondeu. – Ouvi dizer que se fala disso também aqui na área.
– Compreendo que é difícil pensar friamente quando os nossos próprios filhos são expostos – afirmou Wallander. – Porém, temos que nos tentar agarrar a alguma espécie de bom senso. – Toda esta violência – disse. – De onde vem?
– Praticamente não existem pessoas más. Pelo menos penso que são raras. Por outro lado, há circunstâncias perversas, que libertam toda esta violência e são precisamente essas circunstâncias que temos que atacar.
– Não estará a tornar-se cada vez pior? – Talvez – respondeu Wallander com hesitação. – Mas se for assim, são as circunstâncias que mudam, não são mais pessoas más que surgem.
– O país tornou-se tão duro.
– Sim – anuiu Wallander. – Endureceu muito.
Apertou-lhe a mão e seguiu para o carro da Polícia que ficara a espera.
– Como vai Terese? – perguntou o policial que conduzia o carro.
– Acima de tudo, deve estar triste – respondeu Wallander. Assim como os pais.
– Não é de uma pessoa ficar furiosa? – Sim – respondeu Wallander. – É impossível não ficar. Wallander regressou à central. Hansson e Ann-Britt Höglund continuavam na escola onde Terese fora atacada. Wallander ficou a saber que Lisa Holgersson estava em Estocolmo. O que o irritou por curtos instantes. Ela, porém, fora informada sobre o que acontecera e regressaria essa tarde a Ystad. Wallander procurou Svedeberg e Hamrén. Nyberg encontrava-se na quinta de Holger Eriksson à procura de impressões digitais. Os dois policiais de Malmö estavam ausentes. Sentou-se com Svedberg e Hamrén na sala de reuniões. Todos estavam perturbados com o que acontecera à filha de Martinsson, conversaram por breves instantes, e a seguir cada um foi para seu lado. Na noite anterior tinham distribuído minuciosamente diferentes tarefas entre si. Wallander telefonou a Nyberg pelo seu telemóvel.
– Como vai isso por aí? – perguntou – Está difícil – respondeu Nyberg. – Mas pensamos ter talvez encontrado uma impressão digital pouco nítida na torre de observação, por baixo da vedação. Pode acontecer que não lhe pertença. Continuamos a procurar.
Wallander refletiu.
– Estás a dizer que quem o matou teria subido à torre? – Não é totalmente irracional, pois não? – És capaz de ter razão. Neste caso, também devia haver beatas de cigarros.
– Se houvesse, teríamos encontrado da primeira vez. Agora é definitivamente tarde de mais.
Wallander passou a falar do seu encontro noturno com Ylva Brink no hospital.
– A chapa de identificação está num saco de plástico – disse Nyberg. – Se ela tiver bom olfato, talvez consiga sentir algum cheiro.
– Quero que ela experimente o mais depressa possível. Tu próprio podes telefonar-lhe. Svedberg tem o número de casa dela.
Nyberg prometeu tratar do assunto. Wallander descobriu que alguém colocara um papel na sua mesa. Era uma carta do Departamento de Patentes e Registros que informava que nenhuma pessoa com o nome Harald Berggren mudara oficialmente de outro para esse nome ou vice-versa. Wallander pô-lo de lado. Eram dez horas. Continuava a chover. Pensou na reunião da noite anterior. Sentiu-se novamente preocupado. Estariam de fato na pista certa? Ou estariam a seguir um trilho que os conduzia diretamente ao vazio? Foi até a janela. O depósito da água veio ao encontro do seu olhar. Katarina Taxell é a nossa pista fundamental. Ela encontrou-se com a mulher. E o que poderia ela querer na maternidade de noite? Regressou à secretária e telefonou a Birch em Lund. Demorou quase dez minutos até o localizar.
– Está tudo calmo à frente do prédio dela. Nenhuma visita, além de uma mulher da qual temos a identificação confirmada como sendo a mãe dela. Katarina saiu uma vez para fazer compras. Foi quando a mãe esteve lá a tomar conta do filho. Há um supermercado perto, a única coisa singular é que comprou muitos jornais.
– Provavelmente queria ler sobre o assassínio. Parece desconfiar de que estamos nas suas proximidades? – Penso que não. Ela está tensa, mas nunca olha à sua volta. Continuo a pensar que não desconfia que estamos a vigiá-la.
É importante que não o descubra. Mudamos constantemente de pessoal.
Wallander inclinou-se para a secretária e abriu o seu bloco de apontamentos.
– Como vai a identificação? Quem é ela? – Tem trinta e três anos – disse Birch. – Dá uma diferença de idade em relação a Blomberg de dezoito anos.
– É o seu primeiro filho – disse Wallander. – Estava um pouco atrasada. Mulheres apressadas podem não olhar tanto para a diferença de idades? Bem, mas são assuntos de que sei muito pouco de fato.
Segundo ela, Blomberg também não é o pai da criança, não é?
– É mentira – afirmou Wallander e interrogou-se como na realidade se atrevia a ter tanta certeza. – Que tens mais? – Katarina Taxell nasceu em ArIõv – prosseguiu Birch. – O pai era engenheiro numa refinaria de açúcar. Morreu quando ela era pequena. O seu carro foi abalroado por um comboio à saída de Landskrona. Não tem irmãos. Cresceu com a mãe e foram morar para Lund depois da morte do pai. A mãe trabalhava a tempo parcial na Biblioteca Municipal. Katarina Taxell tinha boas notas na escola e foi para a universidade. Estudou geografia e línguas, uma combinação um tanto ou quanto invulgar. Fez também a Escola Superior de Professores e desde então dedicou-se ao ensino. Simultaneamente tem uma pequena empresa que comercializa vários produtos capilares. Portanto, deve ser bastante dinâmica. Naturalmente, não a encontramos nos nossos próprios registros. Dá a impressão de ser uma pessoa bastante normal.
– Isso andou depressa – disse Wallander, elogiando.
– Fiz como disseste – respondeu Birch. – Coloquei muita gente nesta tarefa.
– Pelo visto, ela ainda não sabe. Se soubesse, provavelmente tinha começado a olhar por cima do ombro. Se soubesse que estávamos a investigá-la.
– Vamos ver quanto tempo isso aguenta. A questão também é se não devíamos pressioná-la um pouco.
– Também pensei o mesmo – respondeu Wallander.
– Vamos buscá-la?
– Não, mas penso em ir a Lund. Depois tu e eu podemos ir falar com ela mais uma vez.
– Sobre o quê? Se não tiveres alguma pergunta importante vai ficar desconfiada.
– Vou pensar em alguma coisa pelo caminho – disse Wallander. Encontramo-nos à frente do prédio ao meio-dia? Wallander requisitou um carro e deixou Ystad. Parou no aeroporto de Sturup para comer uma sanduíche. Como habitualmente irritou-se por causa do preço. Ao mesmo tempo tentou formular umas perguntas que poderia pôr a Katarina Taxel. Não bastava chegar e repetir as mesmas coisas da primeira vez.
Determinou que o ponto de partida teria que ser Eugen Blomberg, pois era ele a vítima. Precisavam de todas as informações possíveis sobre ele. Katarina Taxell era apenas uma entre muitos a quem colocavam perguntas.
Era um quarto para o meio-dia quando Wallander conseguiu encontrar, depois de muito esforço, um lugar para estacionar no centro de Lund. Quando caminhava pela cidade a chuva já tinha parado. Na cabeça começara a formular as perguntas para fazer a Katarina Taxell. Viu Birch à distância.
– Ouvi as notícias – disse.
– Sobre Martinsson e a sua filha. Coisas horríveis.
– O que há que não seja horrível? – perguntou Wallander.
– Como vai a menina?
– Só podemos ter esperança de que se esqueça. Porém, Martinsson manifestou a intenção de deixar a profissão. É isso que tenho de tentar impedir.
– Se for essa a sua verdadeira intenção, ninguém o conseguirá impedir.
– Acho que não vai fazer – disse Wallander. – Pelo menos quero ter a garantia absoluta de que ele tem consciência do que faz.
– Levei uma pedra na cabeça uma vez – contou Birch. Fiquei tão furioso que corri até apanhar quem a tinha atirado. Constatei que tinha prendido o irmão dele uma vez. Então ele achou que tinha todo o direito de mandar uma pedra à minha cabeça.
– Um policial é sempre policial – disse Wallander. – Pelo menos a acreditar nos que atiram as pedras.
Birch mudou de assunto.
– De que vais falar? – De Eugen Blomberg. Como se conheceram. Para que ela tenha a sensação de que lhe faço as mesmas perguntas que faço a muitas outras pessoas. Como perguntas de rotina.
O que esperas alcançar? Não sei. Mas julgo, no entanto, que é importante. Entretanto pode surgir alguma coisa.
Entraram no prédio. Wallander sentiu subitamente que alguma coisa não estava como devia. Parou na escada. Birch olhou para ele.
– O que é? – Não sei, Provavelmente nada.
Continuaram para o segundo piso. Birch tocou a porta. Aguardaram. Tocou novamente. O som da campainha ecoava dentro do apartamento. Olharam um para o outro. Wallander baixou-se e levantou a tampa da caixa do correio. Estava tudo muito silencioso.
Birch tocou novamente. Sinais longos e repetidos. Ninguém veio abrir a porta.
– Tem que estar em casa – disse. – Ninguém informou de que tenha saído.
– Então desapareceu pela chaminé – sugeriu Wallander. – Aqui não está.
Correram pelas escadas abaixo. Birch abriu a porta do carro da Polícia com um puxão. O homem ao volante estava a ler um jornal.
– Ela saiu? – perguntou Birch.
– Está em casa.
É exatamente onde não está.
Há alguma porta nas traseiras? – perguntou Wallander. Birch fez a mesma pergunta ao homem Por trás do volante.
– Não que a gente saiba.
– Isso não é resposta – respondeu Birch irritado. – Ou há uma saída nas traseiras ou não há.
Entraram novamente no prédio. Desceram por uma pequena escada, A porta para a cave estava trancada.
– Há algum porteiro? – perguntou Wallander.
– Não temos tempo para isso – disse Birch.
Verificou as dobradiças da porta. Estavam ferrugentas.
– Podemos tentar – murmurou para si mesmo.
Recuou para ganhar força e atirou-se contra a porta. Soltou-se das dobradiças.
– Sabes o que significa quebrar as regras – disse.
Wallander notou que não existia nenhuma ironia no comentário de Bírch. Entraram. O corredor ladeado por despensas fechadas com grades conduzia a uma porta. Birch abriu-a. Entraram na parte inferior de uma escada nas traseiras.
– Portanto saiu pela porta de trás – concluiu. – E ninguém se preocupou em investigar se havia uma.
– Pode ainda estar no apartamento – sugeriu Wallander. Birch entendeu.
– Suicídio? – Não sei. Mas temos que entrar. E não temos tempo para esperar por um serralheiro.
– Costumo ser capaz de forçar fechaduras – disse Birch, – Só tenho que ir buscar ferramenta.
Não demorou nem cinco minutos. Quando chegou, estava ofegante. Entretanto Wallander voltara à porta de Katarina Taxell e continuava a tocar. Um homem idoso abrira a porta a perguntar o que se estava a passar. Wallander ficou irritado. Puxou pela sua identificação de policial e mostrou-a muito perto da cara do homem.
– Agradecia que mantivesse a sua porta fechada – ordenou. Agora, e mantenha-a fechada até darmos outras instruções.
O homem desapareceu. Wallander ouviu-o colocar a corrente de segurança.
Bírch abriu a fechadura em apenas alguns minutos. Entraram.
O apartamento estava vazio. Katarina Taxell levara o filho. A porta de trás conduzia a uma rua transversal. Birch abanava a cabeça.
– Alguém vai ser responsabilizado por isto – avisou.
– Faz-me lembrar Bergling – disse Wallander. – Não saiu pelas traseiras enquanto toda a vigilância estava concentrada à frente? Deram uma volta ao apartamento. Wallander ficou com a impressão de que a fuga fora precipitada. Parou em frente de um carrinho e de uma cadeira articulada na cozinha.
– Vieram buscá-la de automóvel – observou. – Há uma estação de serviço do outro lado da rua. Talvez alguém tenha visto uma mulher com uma criança deixar o prédio.
Birch desapareceu. Wallander deu mais uma volta pelo apartamento. Tentou imaginar o que teria acontecido. Por que deixa uma mulher o seu apartamento com uma criança recém-nascida? A saída pelos fundos significava que queria desaparecer em segredo. O que também queria dizer que sabia que o prédio estava sob vigilância, Ela ou outra pessoa qualquer, pensou Wallander.
Alguém pode ter descoberto a vigilância do exterior, alguém que depois lhe telefonou e organizou a fuga.
Sentou-se numa cadeira na cozinha. Para ele, era importante responder a mais uma pergunta. Será que Katarina Taxell e o seu filho estavam em perigo? Ou teria a partida do apartamento sido voluntária? Alguém devia ter notado se tivesse apresentado resistência, pensou depois. Portanto, partira voluntariamente e para isso havia na realidade apenas uma razão. Não queria responder às perguntas da Polícia.
Levantou-se e foi até a janela. Viu como Birch estava a falar com um dos empregados na estação de serviço. Nesse momento tocou o telefone. Wallander deu um pulo. Foi à sala. Tocou mais uma vez e ele levantou o fone.
– Katarina? – perguntou uma voz de mulher.
– Não está – respondeu. – Quem fala? – Quem é você? – perguntou a mulher. – Sou a mãe da Katarina.
– O meu nome é Kurt Wallander, sou policial. Não aconteceu nada. É só que Katarina não está cá. Nem ela nem o filho.
É impossível.
Pode parecer, mas é verdade. Por acaso não sabe para onde possa ter ido? – Não teria ido embora sem me avisar. Wallander decidiu rapidamente.
– Seria bom se pudesse cá vir. Salvo erro mora aqui perto.
– Demoro menos do que dez minutos – respondeu. – O que aconteceu? Conseguiu perceber que estava com medo.
– De certeza que há uma explicação razoável. Podemos falar disso quando vier.
Ouviu Birch à porta quando pousou o fone.
– Temos sorte – anunciou Birch. – Falei com um homem na estação de serviço. Um rapaz espevitado com os olhos abertos. Ele fizera alguns apontamentos num papel manchado de óleo.
– Esta manhã um Golf vermelho parou aqui. Devia ser entre as nove e as dez. Provavelmente mais perto das dez do que das nove. Uma mulher saiu pela porta de trás com uma criança ao colo. Sentaram-se no carro que partiu de seguida.
Wallander sentiu a excitação a crescer.
– Reparou na pessoa que estava ao volante? – O condutor não chegou a sair.
– Portanto não sabe se era uma mulher ou um homem? – Perguntei-lhe. Deu uma resposta interessante. Disse que o carro arrancou de uma maneira que indicava que estava um homem ao volante.
Wallander ficou surpreendido.
– Em que se baseava para dizer isso? – Que o carro arrancou com uma derrapagem. Partiu com velocidade. As mulheres raramente conduzem assim.
Wallander entendeu.
– Reparou em mais alguma coisa? – Não, mas é possível que consiga lembrar-se com um pouco de ajuda. Como disse, parecia ter os olhos abertos.
Wallander contou que a mãe de Katarina Taxell estava a caminho. Depois ficaram calados.
– O que terá acontecido? – perguntou Birch.
– Não sei.
– Pode estar em perigo? – Já pensei nisso. Mas penso que não. Mas naturalmente posso estar errado.
Entraram na sala, Uma peúga de bebê estava caída no chão. Wallander olhou à sua volta na sala. Birch seguiu o seu olhar.
– Aqui algures tem que estar a solução – disse Wallander. – Neste apartamento existe algo que nos vai levar à mulher que procuramos. Quando a tivermos, também encontramos Katarina Taxell. Há aqui alguma coisa que nos conta em que direção devemos seguir. Temos que a encontrar para poder abrir caminho.
Birch não disse nada.
30
Ouviram barulho na fechadura. Portanto, ela tinha uma chave. A mãe de Katarina Taxell entrou na sala.
Wallander ficou em Lund o resto do dia. Cada hora que passava reforçava a sua opinião de que era via Katarina Taxell que tinham as maiores probabilidades de encontrar a solução de quem matara os três homens. Procuravam uma mulher e não havia dúvidas de que ela estava de algum modo profundamente envolvida. Mas não sabiam se atuava sozinha e também não sabiam qual o motivo que a movia.
A conversa com a mãe de Katarina Taxell não conduziu a lado nenhum. Começou a correr às voltas no apartamento, a procurar de maneira histérica pela filha e neto desaparecidos. Por fim, estava tão perturbada que tiveram que chamar a assistência e tratar que ela fosse assistida pelos serviços de saúde. Porém, naquela altura, Wallander estava convencido de que ela não sabia para onde a filha tinha ido. As poucas amigas que a mãe conseguiu imaginar que pudessem tê-la vindo buscar foram contatadas imediatamente. Todas pareciam igualmente surpreendidas. Wallander, contudo, não confiava no que ouvira pelo telefone. A seu pedido Birch seguiu de perto as pistas e foi pessoalmente às casas das pessoas que Wallander tinha contatado. Katarina Taxell continuava desaparecida. Wallander ficou com a certeza de que a mãe tinha um bom conhecimento das amizades da filha. Ainda por cima, a preocupação da mãe era genuína, se ela soubesse teria dito para onde Katarina tinha ido.
Wallander desceu as escadas e atravessou a rua em direção à estação de serviço. Perguntou pela testemunha, que se chamava Jonas Hader e tinha vinte e quatro anos, e pediu-lhe para contar mais uma vez o que tinha observado. Para Wallander foi como encontrar a testemunha perfeita, pois jonas Hader parecia observar constantemente o seu meio envolvente como se as suas observações em qualquer altura pudessem ser convertidas num testemunho decisivo. O Golf vermelho parara à frente do prédio no momento em que um carro de carga com jornais deixava a estação de serviço. Conseguiram contatar o motorista que, por sua vez, tinha a certeza de que deixara o local precisamente às nove e meia. Jonas Hader reparara em muitos pormenores, entre outras coisas que havia um grande autocolante no vidro de trás do carro. No entanto, a distância era demasiado grande para ver o desenho ou o que tinha escrito. Confirmou que o carro arrancara com pressa, que fora conduzido de um modo que ele considerava masculino. A única coisa que não conseguira ver fora o condutor, pois chovia e os limpadores de para-brisas estavam ligados. Ainda que tivesse feito um esforço não podia ter visto. Por outro lado, estava convicto de que Katarina Taxell estava vestida com um casaco verde-claro, que tinha um saco grande da marca Adidas e que o bebê que carregava estava enrolado num cobertor azul. Tudo acontecera muito depressa. Saíra pelo pontão ao mesmo tempo que o carro parara. Alguém abriu a porta de trás pelo lado de dentro. Colocou a criança e pôs depois o saco no porta-bagagens. Depois abriu a porta de trás do lado da rua e entrou no carro. O condutor arrancou bruscamente antes de ela ter fechado totalmente a porta. Jonas Hader não registrou a matrícula do carro. Mas Wallander ficou com uma impressão de que, de fato, tentara e Jonas Hader sustentava que fora a única vez que vira o carro parar ali junto ao portão dos fundos.
Wallander regressara ao prédio com a sensação de ter obtido uma confirmação, sem saber exatamente de quê. Que fora uma fuga repentina? Há quanto tempo teria sido planeada? E por quê? Entretanto, Birch falara com os policiais que faziam a vigilância do prédio por turnos. Wallander pedira-lhes especialmente para se lembrarem se tinham visto alguma mulher nas proximidades do prédio, que tivesse vindo e partido, talvez mais do que uma vez. Todavia, ao contrário de Jonas Hader, os policiais tinham feito poucas observações. Tinham-se concentrado na porta, quem entrara e saíra e só tinha sido gente do prédio. Wallander teimou em querer identificar cada pessoa que viram. Uma vez que moravam catorze famílias no prédio, toda a tarde foi preenchida com policiais correndo escada acima escada abaixo para falar com os moradores. Foi assim que Birch encontrou alguém que eventualmente fizera uma observação importante. Era um músico reformado que morava dois pisos acima de Katarina Taxell. Segundo Birch, o homem descreveu sua existência como "horas a fio na janela, olhando para a chuva e ouvindo no imaginário a música que nunca mais tocaria. Tocava fagote na orquestra sinfônica de Helsingborg e parecia – ainda segundo Birch – ser uma pessoa melancólica e triste que vivia em grande solidão. Precisamente naquela manhã lembrava-se de ter visto uma mulher do outro lado do largo. Uma mulher que caminhava, subitamente parara, recuara uns passos e depois ficara imóvel observando prédio, antes de se virar e desaparecer. Quando Birch chegou com a informação, Wallander pensou imediatamente que podia ser a mulher que procuravam. Alguém chegara e descobrira o carro que evidentemente não devia ter estado estacionado precisamente naquela porta. Alguém tinha vindo visitar Katarina Taxell da mesma maneira que ela tinha tido visitas no hospital.
Wallander desenvolvera, neste dia, uma grande e enérgica teimosia. Pediu a Bírch para contatar novamente as amigas de Katarina Taxell e perguntar se alguma delas se teria metido a caminho para a visitar e ao filho recém-nascido naquela manhã. Todas as respostas eram idênticas. Nenhuma tinha vindo visitá-la e depois voltado para trás. Birch tentou pressionar o músico reformado para fazer uma descrição da mulher, mas a única coisa que ele conseguiu dizer com segurança era que vira uma mulher. Acontecera cerca das oito horas. No entanto, a informação era vaga, uma vez que os três relógios que existiam no apartamento, inclusive o de pulso, marcavam horas diferentes.
A energia de Wallander neste dia era inesgotável. Mandou Birch, que não parecia levar a mal que Wallander lhe desse ordens como se fosse seu superior, executar diversas tarefas, e entretanto começara a investigar metodicamente o apartamento de Katarina Taxell. A primeira coisa que pediu a Birch foi para arranjar alguns especialistas de detecção de impressões digitais no apartamento para as comparar com as que Nyberg encontrara, Esteve também em permanente contato telefônico com Ystad. Falara precisamente com Nyberg em quatro ocasiões diferentes. Ylva Brink tinha cheirado a chapa de identificação que ainda emanava um tênue vestígio do perfume. Ela tivera muitas dúvidas. Podia ser o mesmo que sentiu naquela noite na maternidade quando foi agredida, mas não tinha a certeza. Tudo permanecia vago.
Também por duas vezes falou com Martinsson, que continuava em casa. Terese ainda estava assustada e evidentemente triste. Martinsson ainda estava decidido a demitir-se, deixar de ser policial, mas Wallander tinha conseguido fazê-lo prometer que iria esperar pelo menos até ao dia seguinte antes de escrever a carta de demissão. Apesar de Martinsson apenas conseguir pensar na filha, Wallander contou-lhe detalhadamente os acontecimentos. Tinha a certeza de que Martinsson o escutava, apesar dos seus comentários serem parcos e ausentes. Mas Wallander sabia que tinha de assegurar a participação de Martinsson na investigação e não queria arriscar que ele se precipitasse numa decisão de que depois se poderia arrepender. Também falou em várias ocasiões com Lisa Holgersson. Hansson e Ann-Britt Höglund atuaram com grande determinação na escola onde Terese fora agredida. Falaram com os três rapazes envolvidos, um de cada vez, no gabinete do diretor da escola. Contataram os pais e professores. Segundo Ann-Britt Höglund, com quem Wallander também arranjou tempo para falar nesse dia, Hansson tivera um excelente desempenho quando juntaram todos os alunos da escola para lhes contar o que tinha acontecido. Os alunos mostraram-se revoltados, os três rapazes aparentemente muito isolados, e julgava que não era provável que se repetisse.
Eskil Bengtsson e os outros homens foram libertados, porém Per Akeson tinha intenção de os condenar. O que acontecera com a filha de Martinsson poderia eventualmente significar que algumas pessoas repensassem o assunto. Pelo menos era o que Ann-Britt Höglund esperava. Contudo, Wallander tinha dúvidas. Achava que iriam ser obrigados a dedicar muitos esforços no futuro a combater diferentes milícias populares.
A informação mais importante nesse dia veio, no entanto, via Hamrén que se encarregara de parte das tarefas de Hansson. Depois das três da tarde conseguira localizar Gõte Tandval. Telefonou imediatamente a Wallander.
– Tem uma loja de antiguidades em Slmrishamn – disse Hamrén.
– Salvo erro, também viaja e compra antiguidades que exporta para a Noruega, entre outros países.
– Isso é legal? – Julgo que não é totalmente ilegal – respondeu Hamrén. – Provavelmente é porque os preços são mais elevados lá, mas obviamente depende de que tipo de antiguidades se trata.
– Quero que o visites – disse Wallander. – Não temos tempo a perder. Além do mais, já estamos suficientemente dispersos. Vai para Slmrlshamn. Aquilo que mais importa confirmar é se na realidade existia uma relação entre Holger Eriksson e Krista Haberman. O que não significa, evidentemente, que Göta Tandivall não tenha outras informações que nos interessem.
Três horas mais tarde Hamrén telefonou novamente. Nessa altura estava sentado no seu carro na saída de Slmrlshamn. Tinha estado com Göta Tandivall. Wallander aguardou empolgado.
– Göta Tandvall é uma pessoa muito determinada – disse Hamrén. – Parecia ter uma memória muito complexa. Algumas coisas não conseguia relembrar e doutras estava muito lúcido.
– Krista Haberman?
– Lembrava-se dela. Fiquei com a impressão de que teria sido muito bonita e com a certeza de que Holger Eriksson a conheceu. Pelo menos encontraram-se uma ou duas vezes. Entre outras coisas parecia lembrar-se de uma manhã cedo no promontório de FaIsterbo onde foram ver os gansos ou garças que regressavam. Não pode, contudo, garantir isso.
– Também é ornitólogo?
– O pai levava-o contra a vontade dele.
– De qualquer maneira, sabemos o mais importante – disse Wallander.
– Parece que, de fato, temos um elo. Krista Haberman e Holger Eriksson.
Wallander sentiu que uma má disposição o invadiu de súbito. Viu com uma clareza assustadora o quadro que agora se começava a desenhar.
– Quero que regresses a Ystad – disse. – E que te sentes e analises todas as informações da investigação relativas ao desaparecimento dela. Quando e onde alguém a viu pela última vez? Quero que faças um resumo dessa parte da investigação. A última vez que foi vista, etc.
– Parece que tens uma ideia – aventou Hamrén.
– Ela desapareceu – disse Wallander. – Nunca foi encontrada.
– O que faz pensar? – Que está morta.
– Mais do que isso. Não te esqueças que nos movemos na periferia de uma investigação criminal onde tanto homens como mulheres foram sujeitos à violência mais extrema que possamos imaginar.
– Estás a dizer que foi assassinada?
– Hansson deu-me uma visão geral da investigação relacionada com o seu desaparecimento. O espectro de homicídio esteve sempre presente, mas como não foi possível provar nada não se privilegiou essa possibilidade em detrimento de outras explicações possíveis para o seu desaparecimento. É um pensamento verdadeiramente policial. Nenhuma conclusão precipitada, todas as portas abertas até ser possível fechar alguma. Talvez agora nos aproximemos da tal porta.
– Seria Holger Eriksson quem a matou? Wallander sentiu na voz de Hamrén que era a primeira vez que essa ideia lhe ocorria.
– Não sei – disse Wallander. – Mas a partir de agora não vamos ignorar a possibilidade.
Hamrén prometeu fazer o resumo. Avisá-lo-ia quando estivesse pronto.
Após a conversa Wallander deixou o apartamento de Katarina Taxell. Tinha que comer alguma coisa . Encontrou uma pizaria nas proximidades do prédio. Comeu demasiado depressa e ficou com dores de estômago. Mais tarde nem sequer conseguia lembrar-se do sabor da comida.
Tinha pressa, pois preocupava-o a sensação de que alguma coisa iria acontecer. Como nada indicava que a sequência de assassínios tivesse parado, trabalhavam contra o tempo. Também não sabiam com quanto tempo podiam contar. Lembrou-se de que Martinsson prometera compor um calendário sobre tudo que acontecera até então. Era o que estava previsto para este dia se Terese não tivesse sido agredida. De regresso ao apartamento de Katarina Taxell, decidiu que não podia esperar. Entrou numa cabina de paragem de ônibus para telefonar a Ystad. Teve sorte, Ann-Britt Höglund estava lá. já tinha falado com Hamrén e tomado conhecimento da confirmação de que Krista Haberman e Holger Eriksson se conheciam. Wallander pediu-lhe para fazer o calendário sobre os acontecimentos, aquele que Martinsson prometera fazer.
– Não tenho a mínima ideia se é importante – disse. – Mas sabemos muito pouco de como ela se move. Talvez a imagem de um centro geográfico se torne mais evidente, se elaborarmos um esquema de horários, um calendário.
– Agora estás a dizer "ela" – observou Ann-Britt Höglund.
– Sim – respondeu Wallander. – Digo, mas não sabemos se está sozinha. Também não sabemos qual é o papel dela.
– O que achas que aconteceu a Katarina Taxell?
– Foi embora. Foi tudo muito rápido. Alguém descobriu que o prédio estava sob vigilância. Foi embora porque tem alguma coisa a ocultar.
– Poderá ser possível que tenha assassinado Eugen Blomberg? – Katarina Taxell é um elo da cadeia. Se é que existem elos que se possam unir. Ela não representa um princípio nem um fim. Tenho dificuldade em imaginar que tenha morto alguém. Provavelmente faz parte do grupo de mulheres que foram sujeitas a maus tratos.
Ann-Britt Höglund parecia manifestar franca surpresa.
– Também foi maltratada? Não sabia.
– Talvez não lhe tenham batido ou a tenham ferido com uma faca – disse Wallander. – Mas desconfio que possa ter sofrido de outra maneira.
– Psicologicamente? – Mais ou menos.
– Blomberg? – Sim.
– Apesar disso, carregou um filho dele? Se for verdade o que julgas a respeito da paternidade.
– Quando vi como ela segurava o filho, não parecia especialmente contente. Mas claro que há muitas falhas – confessou Wallander. – O trabalho do policial é sempre uma questão de juntar peças para soluções provisórias. Temos que fazer o silêncio falar e as palavras contarem coisas com significados ocultos. Temos que tentar ver por dentro dos acontecimentos, virá-los de pernas para o ar para a seguir os levar a assentar os pés no chão.
– Ninguém na Escola Superior da Polícia disse isso. Tu não recebeste um convite para dar palestras? – Nunca – disse Wallander. – Não consigo falar perante muita gente.
– Isso é que consegues – respondeu. – Mas recusas-te a confessá-lo. Acho até que realmente tens vontade de o fazer.
– De qualquer maneira, não vem a propósito neste momento – finalizou Wallander.
Mais tarde refletiu sobre o que ela dissera. Seria verdade que afinal tinha vontade de falar perante futuros policiais? Anteriormente estivera sempre convencido de que a sua relutância era genuína, agora começava a ter dúvidas se seria mesmo assim.
Deixou a parada de ônibus e apressou-se através da chuva. Começava um vento. Depois continuou a investigar metodicamente o apartamento de Katarina Taxell. No fundo de um roupeiro, dentro de uma caixa, encontrou uma quantidade de diários, que remontavam a tempos há muito passados. O primeiro começara a escrevê-lo quando tinha doze anos. Wallander reparou espantado que tinha uma bonita orquídea na capa. Ela continuou, com uma energia ininterrupta, a escrever esses diários pela adolescência até a idade adulta. O último diário que encontrou no roupeiro era de 1993. Mas não havia apontamentos depois de setembro. Prosseguiu a procura sem encontrar continuação. Porém, estava certo de que ela existia. Serviu-se da ajuda de Birch que acabara de percorrer o prédio em busca de testemunhos.
Birch encontrou as chaves da arrecadação da cave de Katarina Taxell. Demorou uma hora a inspecioná-la. Também não encontraram lá os diários. Wallander convenceu-se de que os levara com ela. Estavam naquele saco Adidas que Jonas Hader vira colocar no porta-bagagens do Golf vermelho.
Por fim, só faltava a mesa. Já tinha passado rapidamente em revista as gavetas, mas agora iria fazê-lo minuciosamente. Sentou-se na velha cadeira que tinha cabeças de dragão talhadas nos braços. A escrivaninha era uma espécie de cômoda onde a tampa podia funcionar simultaneamente como uma porta articulada. Na prateleira superior havia fotografias emolduradas de Katarina Taxell em Pequena, sentada na relva. Mobília branca de jardim ao fundo. Figuras pouco nítidas. Alguém com um chapéu branco, Katarina Taxell sentada ao lado de um grande cão olha diretamente para a câmara. Tem uma grande fita com laço no cabelo. O sol incide do lado esquerdo. Ao lado uma outra fotografia: Katarina Taxell com a mãe e o pai. O engenheiro da refinaria de açúcar. Tem bigode e dá a impressão de grande autoconfiança. Katarina Taxell é mais parecida com o pai do que com a mãe. Wallander tirou a fotografia e olhou a parte de trás. Não tinha o ano em que fora tirada. Fora tirada num ateliê de Lund. A próxima fotografia era do final do liceu. Boina branca e flores penduradas à volta do pescoço, estava mais magra e pálida. O cão e a relva estão distantes. Katarina Taxell vive noutro mundo. A última fotografia na ponta da prateleira era uma fotografia velha com os contornos esbatidos. Uma paisagem agreste junto ao mar, um velho casal com olhar fixo na câmara. Afastado, ao fundo, um barco com três mastros, ancorado sem as velas içadas. Wallander pensou que podia ter sido tirada em Öland, no fim do século passado. Os avós de Katarina Taxell. Também nesta fotografia não havia nada escrito na parte de trás. Voltou a pôr a fotografia no respectivo lugar. Nenhum homem, pensou. Blomberg não existe. Tem a sua explicação, mas também não existe nenhum outro homem. O pai que tem de existir. Será que significava alguma coisa? Tudo significava alguma coisa, a questão era apenas o quê? Puxou as pequenas gavetas que constituíam a parte superior da cômoda, uma por uma. Cartas, documentos e faturas. Numa gaveta velhos certificados escolares. Tivera a nota mais alta em Geografia. Por outro lado, fora fraca em Física e Matemática. Na gaveta seguinte fotografias tiradas com uma máquina automática. Três caras de raparigas jovens, juntas a fazer caretas. Uma outra de Ströget em Copenhagen. Estão sentadas num banco, riem-se. Katarina Taxell está sentada à direita na ponta. Também se ri. Mais uma gaveta com cartas. Algumas de há tanto tempo como 1972. Um selo representa o barco Wasa. Se a cômoda esconder os segredos mais íntimos, então não se pode dizer que tenha alguns – pensou Wallander. Uma vida impessoal. Nenhuma paixão, nenhuma aventura de verão em ilhas gregas. Porém, uma nota alta em Geografia. Prosseguiu a investigação das gavetas sem que nada captasse a sua atenção. Depois passou para as três gavetas grandes da parte de baixo do móvel. Também lá não havia diários nem agendas. Wallander sentiu desconforto ao mexer em camadas de lembranças impessoais. A vida de Katarina Taxell não deixava nenhuma pista, não a conseguia visionar. Será que ela própria conseguia? Empurrou a cadeira para trás. Fechou a última gaveta. Nada, não sabia mais agora do que antes. Franziu a testa. Havia alguma coisa que não batia certo. Se a decisão de se ir embora fora precipitada, como estava convencido, não tivera muito tempo para levar tudo, eventualmente coisas que não quisesse desvendar. Os diários estavam certamente num lugar acessível. Esses tinha que conseguir salvar caso se desse um incêndio. Existe, porém, quase sempre um lado desorganizado da vida do ser humano. Aqui não havia nada. Levantou-se e com cuidado afastou o móvel da parede. Não havia nada agarrado na parte de trás. Pensativo, sentou-se novamente na cadeira. Era algo que tinha visto. Alguma coisa de que só agora se lembrava. Ficou imóvel na cadeira e tentou provocar o aparecimento da imagem. As fotografias não, as cartas também não. Então o que era? As notas escolares? O contrato de arrendamento? As contas dos cartões de crédito? Nada disso. O que restava então? Então só sobra o móvel, pensou. De súbito, lembrou-se do que era. Alguma coisa com as gavetas pequenas. Puxou uma delas novamente. Depois a próxima e comparou-as. Depois puxou-as para fora e espreitou para dentro do próprio móvel. Também nada. Meteu as gavetas novamente. Puxou a gaveta superior do lado esquerdo depois a outra a seguir. Então descobriu. As gavetas não tinham o mesmo comprimento. Puxou para fora a que era mais curta e virou-a. Nesse lado também havia uma entrada. A gaveta era dupla. Tinha um compartimento falso por trás. Abriu. Só havia um único objeto. Tirou-o e colocou-o à sua frente na mesa.
Um horário dos trens. Para a Primavera de 1991. Os trens entre Malmö e Estocolmo.
Puxou as outras gavetas, uma por uma. Encontrou mais uma gaveta com fundo falso, estava vazia.
Inclinou-se na cadeira e contemplou o horário. Não conseguia entender por que teria tanta importância. E ainda mais difícil era entender por que teria sido posto num compartimento falso. Estava convencido de que não fora posto lá por engano.
Birch entrou na sala.
– Olha para isto! – exclamou Wallander.
Birch colocou-se por detrás das costas dele. Wallander apontou para o horário dos comboios.
– Estava escondido no espaço mais secreto de Katarina Taxell.
– Um horário? Wallander abanou a cabeça.
– Não entendo – disse.
Folheou-o, página por página. Birch puxou por uma cadeira e sentou-se ao lado dele. Wallander virava folhas. Não havia nada escrito, nenhuma página estava gasta ou se abria por si. Mas, finalmente, quando virou a penúltima página, deteve-se. Birch também reparou. Uma partida de Nässjö estava sublinhada. De Nässjö para Malmö, partida às 16h00. Chegada a Lund às 18h42, Malmö às 18h57.
Nässjö 16h00. Alguém sublinhara todas as partidas àquela hora. Wallander olhou Para Birch.
– Isto te diz alguma coisa?
– Nada.
Wallander pousou o horário.
– Será que Katarina Taxell pode ter tido alguma relação com Nässjö? – perguntou Birch.
– Não que eu saiba – disse Wallander. – Mas evidentemente é possível. A nossa maior dificuldade neste momento é que tudo infelizmente parece ser tanto admissível como possível. Não conseguimos distinguir pormenores ou conexões que de imediato possam ser eliminadas como irrelevantes.
O especialista de técnica criminal, que durante o dia investigara o apartamento à caça de impressões digitais pertencentes a Katarina Taxell ou da mãe, tinha-lhe dado uns sacos de plástico. Colocou o horário num deles.
– Levo-o – disse. – Se não te importas. Birch encolheu os ombros.
– Nem sequer o podes utilizar para saber quando partem os comboios – disse. – Está desatualizado há quase três anos e meio.
– É tão raro andar de comboio – disse Wallander.
– Pode ser tranquilizador – comentou Birch. – Prefiro comboios a aviões. Temos tempo para nós mesmos.
Wallander pensou na sua última viagem de comboio. Quando esteve em Minhult. Birch tinha razão. De fato, dormira uns instantes na viagem.
– Neste momento não avançamos mais. Acho que são horas de voltar a Ystad.
– Não vamos anunciar o desaparecimento de Katarina Taxell e do filho? – Ainda não.
Abandonaram o apartamento. Birch fechou a porta. A chuva lá fora praticamente parara. O vento vinha em rajadas e estava frio. já era um quarto para as nove. Separaram-se junto ao carro de Wallander.
– Como vamos fazer com a vigilância do prédio? – perguntou Birch.
Wallander refletiu.
– Deixa ficar por enquanto. Desta vez não se esqueçam dos fundos.
– O que julgas poder acontecer? – Não sei, Mas pessoas que desaparecem podem optar por regressar.
Saiu da cidade. O outono rodeava o carro, ligou o aquecimento. Apesar disso, sentiu frio.
Como avançamos agora? interrogou-se. Katarina Taxell desapareceu. Após um longo dia em Lund regresso a Ystad com um velho horário dos caminhos-de-ferro num saco de plástico.
Apesar de tudo, tinham dado um importante passo em frente nesse dia. Holger Eriksson conhecera Krista Haberman e tinham chegado à conclusão de que havia pontos de contato entre os três homens que foram assassinados. Carregou sem querer no acelerador, queria saber o mais depressa possível como tinha corrido para Hamrén. Quando chegou ao desvio para o aeroporto de Sturup, parou na paragem de ônibus e telefonou para Ystad. Apanhou Svedberg na linha. A primeira coisa que quis saber era como estava Terese.
– Recebe muito apoio da escola – disse Svedberg. – Principalmente dos outros alunos, mas evidentemente leva o seu tempo.
– E Martinsson? – Está deprimido. Fala em deixar de ser policial.
– Sei, mas não acredito que vá acabar assim.
– Provavelmente só tu consegues convencê-lo. – Também é o que vou fazer.
Depois perguntou se tinha acontecido algo importante. Svedberg estava mal informado. Acabara de chegar à central depois de estar numa reunião com Per Akeson para obter ajuda na obtenção do material de investigação relacionado com a mulher de Gösta Runfeldt., morta em Älmhult.
Wallander pediu-lhe para convocar o grupo de investigação para uma reunião às dez.
– Por acaso viste Hamrén? – perguntou por fim.
– Está com Hansson a analisar o material a respeito de Krista Haberman. Parece que disseste que tinha pressa.
– dez horas – repetiu Wallander. – Se conseguirem até lá, ficaria grato.
– Terão que encontrar Krista Haberman até lá? – perguntou Svedberg.
– Não é bem assim, mas quase.
Wallander colocou o telefone no assento do lado. Ficou parado na escuridão. Pensou na gaveta falsa. A gaveta secreta de Katarina Taxell que continha um velho horário.
Não entendia de todo. Mesmo nada.
Às dez horas estavam reunidos. O único que faltava era Martinsson. Começaram por falar sobre o que acontecera de manhã. Todos sabiam que Martinsson se decidira deixar imediatamente a Polícia.
– Vou falar com ele – anunciou Wallander. – Quero saber se realmente mantém a sua decisão. Se o fizer, ninguém o deve impedir, evidentemente.
Não se falou mais disso. Wallander relatou resumidamente o que se tinha passado em Lund. Experimentaram várias explicações alternativas sobre o porquê do desaparecimento de Katarina Taxell. Também se questionaram se seria possível procurar o carro vermelho. Quantos Golfs vermelhos haveria, de fato, na Suécia? – Uma mulher com um filho recém-nascido não pode desaparecer sem rasto – disse Wallander por fim, – Julgo que neste momento o melhor que podemos fazer é obrigarmo-nos a ter paciência. Temos que prosseguir o trabalho com o que nos rodeia.
Olhou para Hansson e Hamrén.
– O desaparecimento de Krista Haberman – disse. – É um acontecimento que tem vinte e sete anos.
Hansson acenou com a cabeça a Hamrén.
– Quanto aos pormenores a respeito do desaparecimento dela – adiantou. – A última vez que alguém a viu foi em Svenstavik, terça-feira, dia 22 de outubro de 1967. Deu um passeio pela vila. Como já estiveste lá, podes visualizar o cenário. Apesar de o centro da vila ter sido reconstruído desde então. Não era nada invulgar que andasse a passear. O último a vê-la foi um trabalhador florestal, de bicicleta no caminho da estação. Nessa altura o relógio marcava um quarto para as cinco da tarde. já estava escuro. Porém, ela passeia onde o caminho está iluminado. Tem a certeza de que é ela e depois disso não há ninguém que a tornasse a ver. No entanto, há várias testemunhas que falaram de um carro desconhecido que passou pela vila naquela noite. É tudo, Wallander estava calado.
– Alguém se pronunciou sobre a marca do automóvel? – perguntou então.
Hamrén procurou nos papéis. Depois abanou a cabeça e deixou a sala, Quando regressou, tinha mais um monte de papéis na mão. Ninguém falou. Por fim encontrou o que queria.
– Uma das testemunhas, um agricultor de nome Johansson, afirma que era um Chevrolet. Um Chevrolet azul-escuro. Tinha a certeza. Anteriormente havia um táxi em Svenstavik que era da mesma marca. Mas esse era azul-claro.
Wallander anuiu.
– Há uma grande distância entre Svenstavik e Lödinge – disse com lentidão. – Salvo erro, Holger Eriksson vendia automóveis Chevrolet naquela altura.
Fez-se silêncio na sala.
– Gostaria de saber se Holger Eriksson teria feito a longa viagem para Svenstavik – prosseguiu. – E se Krista Haberman o acompanhou no regresso.
Wallander virou-se para Svedberg.
– Será que Eriksson era já naquela altura o proprietário da quinta? Svedberg acenou afirmativamente com a cabeça.
Wallander olhou à sua volta na sala.
– Holger Eriksson acabou empalado numa valeta – disse.
– Se bater o que julgamos, isto é, que o assassino tira a vida das suas vítimas de uma maneira que reflete feitos cometidos anteriormente, penso que podemos contar com uma conclusão muito desagradável.
Desejaria estar errado. Mas já não acreditava.
– Acho que vamos começar a procurar na propriedade de Holger Eriksson – disse. – Interrogo-me se Krista Haberman não está enterrada lá.
O relógio marcava dez minutos para as onze, de quarta-feira, dia 19 de outubro.
Iam para a quinta madrugada.
31
Acompanharam Wallander Nyberg, Hamrén e Hansson. Cada um levou o seu carro, Wallander no seu, que já viera de volta de Ãlmbult, e pararam junto ao acesso a casa vazia, que estava como um navio solitário de velas desfraldadas, lá fora no nevoeiro.
Precisamente nesta manhã, quinta-feira, dia 20 de outubro, o nevoeiro estava muito denso, viera do mar no fim da noite e agora detinha-se imóvel sobre a paisagem da Scania. Tinham combinado de se encontrarem às seis e meia, porém estavam todos atrasados porque a visibilidade era praticamente nula, Wallander foi o último a chegar. Quando saiu do carro, pensou que pareciam uma equipa de caçadores, a única coisa que faltava eram as armas. Pensou com relutância na tarefa que os esperava. Desconfiava de que uma mulher assassinada fora enterrada algures na propriedade de Holger Eriksson. Fosse o que fosse que encontrassem, se é que viessem a encontrar algo, seriam partes de um esqueleto. Nada mais, vinte e sete anos era muito tempo.
Também podia muito bem estar enganado. A sua ideia sobre o que acontecera a Krista Haberman talvez não fosse ousada, mas também não era absurda. Porém, o passo que levaria à confirmação encontrava-se ainda muito distante.
Cumprimentaram-se tremendo de frio. Hansson trouxera uma carta topográfica da quinta e terrenos pertencentes. Wallander interrogou-se subitamente o que a Casa da Cultura de Lund iria dizer se realmente encontrassem enterrados os restos de um velho cadáver. Pensamento lúgubre, os visitantes à quinta iriam provavelmente aumentar. Praticamente não havia atrações turísticas que se pudessem comparar aos locais de crimes.
Desdobraram a carta em cima do capô do carro de Nyberg e juntaram-se em redor.
– Em 1967 o terreno tinha outro aspecto – disse Hansson e apontou para a carta. – Foi só em meados dos anos 70 que Holger comprou toda a área que se situa a sul.
Wallander reparou que isso reduzia a área a pesquisar em um terço, mas a que restava era ainda muito vasta. Concluiu que nunca poderiam cavar toda essa área, pelo que tinham que tentar com outros métodos.
– O nevoeiro dificulta-nos o trabalho – disse. – Pensei que iríamos conseguir uma vista geral do terreno. Parece-me que deve ser possível eliminar certas áreas. Parto do princípio que se escolhe com cuidado onde se enterra alguém que se matou.
– Provavelmente escolhe-se o lugar que se julga menos óbvio para alguém ir procurar – disse Nyberg. – Há um estudo sobre isso, feito nos Estados Unidos naturalmente, mas que parece razoável.
A área é grande – observou Hamrén.
É por isso que temos que a reduzir imediatamente – respondeu Wallander. – É como diz Nyberg. Duvido que Holger Eriksson, se tiver assassinado Krista Haberman, a tenha enterrado num sítio qualquer. Imagino, por exemplo, que ninguém quer ter um cadáver por baixo da terra, precisamente à frente da porta da casa. A não ser que a pessoa seja completamente louca e nada indica que Holger Eriksson o fosse.
– Ainda por cima, naquele local há calçada – acrescentou Hansson, – A área do pátio podemos provavelmente excluir.
Entraram na quinta. Wallander ponderou se deviam regressar a Ystad e voltar depois do nevoeiro se dissipar. Contudo, como não havia vento, este poderia manter-se durante todo o dia. Decidiu-se por, apesar de tudo, dedicar uma hora a tentar obter uma perspectiva global.
Foram até ao grande jardim por trás da casa. O chão molhado estava cheio de maçãs caídas e podres. Uma pega levantou voo de uma árvore. Pararam e olharam à sua volta. Aqui também não – pensou Wallander. – Um homem que comete um assassínio na cidade e que apenas tem o seu jardim talvez enterre o cadáver entre árvores de fruto e arbustos de bagas, mas um homem que vive no campo não.
Disse o que pensava, ninguém apresentou objeções.
Meteram-se a caminho para os terrenos circundantes. O nevoeiro continuava muito denso. Vislumbravam-se lebres contra todo o fundo branco que desapareciam logo a seguir. Primeiro dirigiram-se para o limite norte da propriedade.
– Um cão não iria encontrar nada, evidentemente? – perguntou Hamrén.
– Não, depois de vinte e sete anos – respondeu Nyberg.
A lama agarrava-se às botas e tinham que tentar manter o equilíbrio na estreita tira de relva que não estava lavrada e constituía o limite da propriedade de Holger Eriksson. Um arador enferrujado estava meio enterrado. Wallander não só se sentiu mal disposto pela tarefa como também o nevoeiro e a terra cinzenta e úmida o deprimiam. Gostava da paisagem onde nascera e onde morava, mas passava bem sem os outonos, pelo menos em dias como este.
Chegaram a um pequeno lago, num vale. Hansson apontou na carta onde estavam. Observaram que o lago tinha cerca de cem metros de circunferência.
– Este tem água todo o ano – disse Nyberg. – No meio tem de certeza entre um a dois metros de profundidade.
– Evidentemente que é uma possibilidade – disse Wallander. Que se mergulhe um corpo carregado de pesos.
– Ou num saco – acrescentou Hansson. – Como no caso Eugen Blomberg.
Wallander anuiu. Surgiu novamente o reflexo do espelho. Porém, tinha dúvidas e apressou-se a expressá-las.
– Um corpo pode subir à superfície. Será que Holger Eriksson escolhe mergulhar um cadáver num lago quando tem milhares de metros quadrados de terra onde fazer uma sepultura? Tenho dificuldade em acreditar em tal coisa.
– Quem lavrava toda esta terra? – perguntou Hansson. – Não é provável que tenha sido ele próprio. Não a tinha arrendada, mas a terra precisa de ser lavrada, senão é invadida por ervas e esta terra está bem cuidada.
Hansson crescera numa quinta nos arredores de Ystad e sabia do que falava.
– É uma questão importante – assentiu Wallander. – Temos que arranjar resposta.
– Também pode responder-nos a outra pergunta – interveio Hamrén. – Se houve alguma alteração no terreno, por exemplo, uma elevação que tenha surgido de repente. Quando se cava num local eleva-se outro. Não estou a pensar numa sepultura, mas, por exemplo, numa criação de uma valeta ou outra coisa qualquer.
– Estamos a falar de acontecimentos ocorridos há quase trinta anos – disse Nyberg. – Quem se lembra passado tanto tempo?
– Pode ser – disse Wallander. – Mas evidentemente temos que investigar. Portanto quem lavrava a terra de Holger Eriksson?
– Trinta anos é muito tempo – disse Hansson. – Pode ter sido mais do que uma pessoa.
– Então teremos que falar com todos – respondeu Wallander. Caso os encontremos e se ainda estiverem vivos.
Prosseguiram. Wallander lembrou-se subitamente de que vira umas velhas fotografias aéreas da quinta, dentro da casa. Wallander pediu a Hansson para telefonar à Casa da Cultura em Lund e pedir a alguém para trazer as chaves.
– É pouco provável que haja alguém lá às sete e um quarto da manhã.
– Telefona a Ann-Britt Höglund – disse Wallander. – Pede-lhe para contatar o advogado que tratou do testamento de Holger Eriksson. Talvez ainda tenha alguma chave.
– Os advogados talvez sejam madrugadores – alvitrou Hansson com hesitação e ligou o número.
– Quero ver aquelas fotografias tiradas do ar – disse Wallander.
– O mais depressa possível.
Continuaram a andar. Hansson falou com Ann-Britt Höglund.
O terreno inclinava-se agora para baixo. O nevoeiro continuava denso. Ouviu-se um trator ao longe. O som do motor morreu enquanto o telefone de Hansson zumbia. Ann-Britt falou com o advogado, que já entregara as suas chaves. Tentou encontrar alguém em Lund que os pudesse ajudar, mas sem sucesso. Prometeu contatar novamente. Wallander pensou nas duas mulheres que conhecera há uma semana lembrando-se com desagrado da senhora aristocrática arrogante.
Demoraram quase vinte minutos para chegar ao outro limite da propriedade. Hansson apontou para a carta. Encontravam-se agora no limite sudoeste. A propriedade estendia-se mais 500 metros para sul. Porém, Holger Eriksson comprara essa área em 1976. Foram para a zona leste, aproximaram-se da valeta e da elevação com a torre de observação. Wallander sentiu a repulsa aumentar. Parecia-lhe notar a mesma reação silenciosa nos outros.
Tornara-se uma imagem da sua vida, pensou. A minha vida como policial durante a última parte do século XX sueco. Uma manhã cedo, madrugada de outono com nevoeiro e frio úmido. Quatro homens a chapinhar na lama. Aproximam-se de uma armadilha incompreensível onde um homem fora espetado em estacas de bambu exótico. Em simultâneo, procuravam uma eventual sepultura de uma mulher polaca desaparecida há vinte e sete anos.
Vou acabar por andar nesta lama até cair morto. Noutros lugares, no nevoeiro, as pessoas inclinam-se sobre as mesas de cozinha para planejar a organização de diferentes grupos de proteção. Quem se engana no caminho através do nevoeiro, arrisca-se a ser agredido até a morte.
Reparou que estava a desenvolver um diálogo mental com Rydberg, sem palavras mas contudo muito vivo. Rydberg estava na sua varanda durante o último período da doença. A varanda rolava à sua frente como uma nave flutuante no nevoeiro. Mas Rydberg não respondia, escutava com o seu sorriso torto. O seu rosto denotava as marcas da doença.
Chegaram depressa. Wallander era o último. A valeta encontrava-se ao lado deles. Chegaram à sepultura de estacas. Um pequeno pedaço de fita rasgada dos cordões de segurança da Polícia estava preso por baixo de uma das tábuas caídas. Um local de crime pouco arrumado, pensou Wallander. As estacas de bambu tinham sido retiradas. Refletiu sobre onde poderiam estar. Na cave da central ? No SKL em Linköplng? A torre de observação estava à direita, quase não se via no nevoeiro.
Wallander sentiu uma ideia nascer na sua cabeça. Deu uns passos para o lado e por pouco não escorregou na lama. Nyberg estava a olhar para o fundo da valeta. Hamrén e Hansson discutiam em voz baixa um pormenor da carta topográfica.
Alguém vigia Holger Eriksson e a sua quinta, pensou Wallander. Alguém que sabe o que aconteceu a Krista Haberman. Uma mulher, desaparecida há vinte e sete anos, considerada morta que está enterrada algures num pasto. O prazo de vida de Holger Eriksson é estabelecido. Prepara-se uma outra sepultura, com estacas afiadas, outra sepultura na lama.
Foi ver Hamrén e Hansson. Nyberg desaparecera no nevoeiro. Informou-os do que acabara de pensar. Mais tarde repetiria a Nyberg.
– Se o criminoso está tão bem informado como julgamos, também sabia onde Krista Haberman foi enterrada. já observamos em várias ocasiões que o assassino tem uma linguagem. Ele ou ela tenta contar-nos alguma coisa. Só conseguimos interpretar parcialmente o código, Holger Eriksson foi morto de uma maneira que pode ser descrita como brutalidade demonstrativa, uma vez que pretendia que o corpo fosse encontrado. Também existe uma possibilidade de o lugar ter sido escolhido por outra razão. Um incitamento para nós continuarmos à procura, aqui mesmo. E se o fizermos, encontraremos também o corpo de Krista Haberman, Nyberg surgiu do nevoeiro. Wallander repetiu o que acabara de dizer. Todos achavam que podia ter razão. Passaram por cima da valeta e subiram à torre. O arvoredo mais em baixo estava coberto pelo nevoeiro.
– Muitas raízes – disse Nyberg. – Não acredito naquele arvoredo.
Regressaram e continuaram na direção leste até chegarem ao ponto de partida. Eram quase oito horas. O nevoeiro continuava denso. Ann-Britt Höglund telefonara a informar que as chaves estavam a caminho. Estavam gelados e molhados. Wallander não os queria reter desnecessariamente. Hansson iria dedicar as próximas horas a tentar descobrir quem tinha cultivado a terra.
– Uma mudança inesperada há vinte e sete anos – sublinhou Wallander. – É o que queremos saber, mas não contes que pensamos que exista um cadáver enterrado aqui. Então teríamos uma invasão.
Hansson anuiu. Entendera.
– Temos que analisar tudo isto quando não houver nevoeiro -prosseguiu. – Mas julgo que é bom que tenhamos já esta visão global. Foram-se embora. Wallander ficou alí sozinho. Sentou-se no carro e ligou o aquecimento, mas este não funcionava. A reparação custara um montante incrível de dinheiro, mas pelos vistos não abrangera o sistema de aquecimento. Interrogou-se quando iria ter tempo para trocar de carro. Será que este iria avariar outra vez antes de o trocar? Aguardou, pensou nas mulheres. Krista Haberman, Eva Runfeldt e Katarina Taxell. E ainda a quarta que não tinha nome. Qual era o ponto tangencial em comum? Tinha a sensação de que estava tão perto que devia vê-lo. Estava mesmo ali. Via-o sem o ver.
Regressou às reflexões novamente. Mulheres maltratadas, talvez assassinadas. Trata-se de acontecimentos abrangidos por um período de tempo longo.
Ali onde estava, sentado no carro, verificou que havia mais uma conclusão a tirar. Não viram tudo. As ocorrências que tentavam entender faziam parte de uma coisa maior, pelo que era importante encontrar a relação entre as mulheres. Porém, também tinha que ter em mente a possibilidade de a relação ser uma mera coincidência. Alguém escolheu, mas em que se baseava a escolha? Nas circunstâncias? Nas coincidências, talvez nas oportunidades de acessibilidade? Holger Eriksson vivia sozinho numa quinta. Não convivia com ninguém e observava aves de noite, sendo uma vítima facilmente acessível. Gösta Runfeldt ia fazer um safári para observar orquídeas. Estaria fora duas semanas, o que constituía uma oportunidade. Também ele vivia sozinho. Eugen Blomberg dava passeios regulares solitários à noite sem outra companhia que não a dele mesmo.
Wallander abanou a cabeça confuso. Não conseguia avançar. Estava a refletir na direção certa ou errada? Não sabia.
Estava frio no carro. Saiu para poder mexer-se. As chaves deviam estar a chegar. Avançou para o pátio. Lembrou-se da primeira vez que estivera no local, dos bandos de corvos junto à valeta. Olhou para as suas mãos, já não estava bronzeado. A recordação do sol sobre a Villa Borghese tinha definitivamente desaparecido, assim como o seu pai.
Olhou para o espaço no nevoeiro. Deixou o olhar passear sobre a área do pátio. A casa estava realmente bem cuidada. Lá dentro morou -um homem chamado Holger Eriksson que escrevia poemas sobre aves, sobre a fuga solitária das narcejas, sobre o pica-pau médio e que desapareceu. Um dia senta-se num Chevrolet azul-escuro e faz uma longa viagem para Jãmtland. Levado por uma paixão? Ou por outra coisa qualquer? Krista Haberman era uma mulher bonita. No volumoso material de investigação de Ustersund havia uma fotografia dela. Será que o acompanhou voluntariamente? Teve que ser. Vão para a Scania e depois ela desaparece. Holger Eriksson vive sozinho, cava uma sepultura e ela desaparece definitivamente. A investigação não chega até ele pelo menos até aquele momento. Agora que Hansson encontra o nome Tandvall e se torna possível estabelecer uma relação, não descoberta anteriormente.
Wallander verificou que estava a observar o canil vazio. Primeiro não se apercebeu do que estava a pensar. A imagem de Krista Haberman desvaneceu-se lentamente. Franziu a testa. Por que não havia nenhum cão? Ninguém fizera essa pergunta. Muito menos ele. Quando desaparecera o cão? Afinal, teria alguma importância? Eram questões que queria respondidas.
Um carro parou à frente da casa. Logo a seguir apareceu um jovem que não podia ter mais do que vinte anos. Foi ter com Wallander.
– É o policial que quer as chaves?
– Sou eu.
O jovem olhou-o desconfiado.
– Como vou saber? Pode ser qualquer um.
Wallander ficou irritado. Ao mesmo tempo percebeu que a dúvida do jovem tinha uma certa justificação. Tinha lama nas calças até aos joelhos. Mostrou a sua identificação. O rapaz confirmou e deu-lhe um molho de chaves.
– Encarrego-me de as devolver a Lund – disse Wallander.
O jovem anuiu. Tinha pressa. Wallander ouviu o carro arrancar rapidamente quando estava à procura entre as chaves junto a porta da casa. Pensou subitamente no que Jonas Harder dissera a respeito do Golf vermelho à frente da casa de Katarina Taxell. Será que as mulheres não arrancavam assim? – pensou. Mona guiava mais depressa do que eu. Balba carrega sempre com força no acelerador. Mas talvez nenhuma delas arranque assim com os pneus chiando...
Abriu a porta e entrou. Acendeu a luz no grande vestíbulo. Cheirava a casa fechada. Sentou-se num banco e tirou as botas enlameadas. Ao chegar à sala grande descobriu, para sua surpresa, que o poema sobre o pica-pau médio continuava em cima da mesa. A noite do dia 21 de setembro. Amanhã faz um mês. Teriam na realidade chegado mais perto de uma solução? Tinham mais dois homicídios para resolver. Uma mulher que desaparecera e uma outra talvez enterrada no terreno de Holger Eriksson.
Ficou imóvel no silêncio. O nevoeiro lá fora, do outro lado da janela, continuava muito denso. Sentiu-se indisposto. Os objetos da sala observavam-no. Foi até a parede onde as duas fotografias aéreas estavam penduradas nas suas molduras. Procurou os óculos nos bolsos. Precisamente esta manhã lembrara-se de os trazer. Colocou-os e inclinou-se para a frente. Uma das fotografias era a preto e branco, a outra a cores empalidecidas. A fotografia de 1949, tirada dois anos antes de Holger Eriksson comprar a quinta, era a preto e branco. A fotografia colorida de 1965. Wallander afastou um cortinado para permitir a entrada de mais luz e subitamente descobriu um veado solitário que andava a pastar entre as árvores no jardim e que se deteve por completo. O veado levantou a cabeça e olhou para ele. Depois continuou a alimentar-se calmamente. Wallander ficou onde estava. Teve a impressão de que nunca mais se esqueceria deste veado. Não fez ideia quanto tempo o ficou a observar. Um som que ele próprio não notou alertou o animal que deu um pulo e desapareceu. Wallander continuou a olhar para fora da janela. O veado desaparecera. Regressou às duas fotografias que tinham sido tiradas pela mesma empresa, "Flygfoto", com dezesseis anos de intervalo. O avião com a máquina fotográfica tinha-se aproximado de sul. Todos os pormenores estavam muito nítidos. Em 1965 ainda não tinha construído a torre. Mas a elevação já lá estava, assim como a valeta. Wallander estreitava os olhos. Não conseguiu ver nenhum pontão. Seguiu os contornos dos pastos. As fotografias foram tiradas no princípio da Primavera. Os campos estavam lavrados, mas ainda não estavam verdes e o lago via-se muito bem na fotografia. Havia um arvoredo junto a um caminho que separava dois campos. Franziu a testa. Não se lembrava de ter visto as árvores. Esta manhã não as podia ter visto por causa do nevoeiro. Mas também não se lembrava delas de visitas anteriores. As árvores pareciam muito altas pelo que devia ter reparado nelas. Sozinhas no meio dos campos. Passou a observar a casa, que constituía o centro da imagem. Entre 1949 e 1965 fora posto um telhado novo. Um anexo, que talvez tivesse servido como pocilga, fora demolido. O caminho de acesso à casa fora alargado, mas de resto era tudo muito parecido. Tirou os óculos e olhou pela janela. O veado continuava fora de vista. Sentou-se num sofá forrado a pele. O silêncio circundava-o. Um Chevrolet vai a Svenstavik, uma mulher acompanha-o até a Scania. Depois desaparece. Vinte e sete anos mais tarde morre o homem que eventualmente terá ido a Svenstavik buscá-la.
Ficou sentado em silêncio uma meia hora. Mais uma vez, procurou ordenar os seus pensamentos. Pensou que neste momento procuravam três mulheres diferentes. Krista Haberman, Katarina Taxell e uma sem nome, que dava voltas com um Golf vermelho e que as vezes usava unhas postiças e fumava cigarros enrolados com as suas próprias mãos.
Refletiu se na realidade procuravam duas mulheres. Se duas delas podiam ser uma e a mesma pessoa. Se Krista Haberman, apesar de tudo, ainda estava viva. Se fosse o caso, teria sessenta e cinco anos. A mulher que derrubara Ylva Brink era bastante mais nova.
Não batia certo. Tão pouco como a maior parte do restante. Olhou para o relógio. Um quarto para as nove. Ergueu-se e deixou a casa. O nevoeiro continuava denso como antes. Pensou no canil vazio. A seguir fechou a porta e foi embora.
Às dez Wallander conseguira juntar todos que faziam parte do grupo de investigação para uma reunião. O único que faltava era Martinsson. Prometera aparecer durante a tarde. Durante a manhã visitara a escola onde Terese estudava. Ann-Britt contou que ele lhe telefonara tarde na noite anterior. Achou que estava embriagado, algo que praticamente nunca acontecia, Wallander sentiu uma ligeira inveja. Por que telefonara Martinsson a ela e não a ele? Afinal, eram eles, os dois, que trabalhavam juntos havia tantos anos.
– Parece continuar decidido a demitir-se – disse. – Todavia, também fiquei com a impressão de que desejava que o contrariasse.
– Vou falar com ele – disse Wallander.
Fecharam as portas da sala de reuniões. Per Akeson e Lisa Holgersson foram os últimos a chegar. Wallander teve a ligeira sensação de que tinham acabado de estar os dois reunidos.
Lisa Holgersson tomou a palavra assim que se fez silêncio na sala.
– Todo o país discute sobre a milícia popular – comunicou. – Lõdinge é a partir de agora uma localidade famosa. Recebemos um pedido para Kurt participar num debate na televisão esta noite, em Gotemburgo.
– Nunca – respondeu Wallander assustado. – O que iria lá fazer? – Já declinei por tua conta – respondeu e sorriu. – Mas brevemente tenciono pedir alguma coisa como compensação.
Wallander percebeu imediatamente que se referia às palestras na Escola Superior da Polícia.
– O debate é inflamado e violento – prosseguiu. – Só podemos esperar que saia algo de bom pelo fato de que realmente se discute este sentimento crescente de insegurança.
– Na melhor das hipóteses, talvez possa obrigar a autoridade policial do país a um pouco de autocrítica – disse Hansson. – A própria Polícia não se pode considerar inocente por termos chegado a esta situação.
– Em que pensas? – perguntou Wallander. – Como Hansson raramente se metia em discussões sobre a corporação, a sua opinião era importante.
– Penso em todos os escândalos – disse Hansson. – Em que policiais têm estado ativamente envolvidos. Talvez tenham existido sempre, mas não com tanta frequência como agora.
– Não devemos empolar nem ignorar o assunto – disse Per Akeson. – O grande problema é a despenalização gradual do que a Polícia e os tribunais consideram crime. O que ontem se condenava, hoje em dia pode ser considerado uma bagatela, que a Polícia nem sequer precisa de se preocupar em desvendar. E penso que é ofensivo para a consciência de justiça da população que neste país sempre foi muito forte.
– Uma coisa está ligada à outra – concordou Wallander. – E a minha posição é de dúvida sobre se um debate em torno da milícia popular venha a afectar a evolução. Apesar de, naturalmente, gostar que acontecesse.
– De qualquer maneira tenho intenção de condenar tanto quanto possível – disse Per Akeson, depois de Wallander se ter calado. – Os maus tratos foram graves. Tenho que poder confirmar isso, eram quatro. Calculo que, pelo menos, três deles possam vir a ser condenados.
O quarto é mais incerto. Talvez vos deva contar que o procurador-geral pediu para ser informado, o que considero muito surpreendente. Porém, significa que pelo menos alguns lá em cima levam a ocorrência a sério.
– Âke Davidsson expressa-se de maneira inteligente e sensata numa entrevista ao jornal O Trabalho – disse Svedberg. – Além do mais, escapou sem consequências físicas significativas.
– Então faltam Terese e o seu pai – disse Wallander. – E os rapazes na escola.
– Martinsson. tem intenção de se demitir? – perguntou Per Akeson. – Ouvi um rumor.
– Foi a sua primeira reação – respondeu Wallander. – Deve ser considerado tanto razoável como natural. Todavia, não tenho a certeza de que se vá concretizar.
– É um bom policial – disse Hansson. – Será que na realidade o sabe?
– Sim – assentiu Wallander. – A questão é se chega. Pode haver outras coisas que surgem quando acontecem situações deste tipo. Para não falar da nossa carga desmesurada de trabalho.
– Sei – disse Lisa Holgersson, – E, ainda por cima, vai ficar pior. Wallander lembrou-se de que ainda não tinha feito o que prometera a Nyberg, isto é, falar da carga de trabalho dele a Lisa Holgersson. Apontou-o no seu caderno de apontamentos.
– Temos que prosseguir esta discussão mais tarde – afirmou.
– Só queria informá-los – disse Lisa Holgersson. – Pronto, era tudo. Tirando que o vosso chefe anterior, Bjõrk, contatou-nos e deseja-vos boa sorte. Lamentou o que aconteceu com a filha de Martinsson.
– Ele teve o bom senso de acabar a tempo – comentou Svedberg.
– O que lhe demos de presente de despedida? Uma cana de pesca? Se tivesse continuado aqui, nunca teria tempo para a usar.
– Provavelmente tem muito que fazer agora também – interveio Lisa Holgersson.
– Bjõrk era bom – disse Wallander. – Mas penso que temos de avançar.
Começaram com o calendário de Ann-Britt Höglund. Ao lado do seu caderno de apontamentos Wallander colocara o saco de plástico com o horário dos caminhos-de-ferro que encontrara no móvel de Katarina Taxell.
Ann-Brítt Höglund tinha feito um trabalho minucioso, como habitualmente. Todos os momentos, que de algum modo tinham algo a haver com os diferentes acontecimentos, estavam identificados e registrados uns em relação aos outros. Enquanto escutava, Wallander pensou que era uma tarefa que ele próprio não teria cumprido com muito sucesso. Com toda a certeza ter-se-ia desleixado. Nenhum policial é igual a outro, pensou. É só quando podemos fazer o que desafia os nossos talentos que na realidade conseguimos ser verdadeiramente úteis.
– De fato não vejo nenhum padrão evidenciar-se – disse Ann-Britt Höglund quando começou a aproximar-se do fim do seu relato.
– A medicina legal de Lund conseguiu determinar a hora da morte de Holger Eriksson para o final da noite de 21 de setembro. Como chegaram a essa conclusão não sei responder ao certo, mas têm a certeza. Gösta Runfeldt também é morto de noite. Aqui coincide o momento sem que seja possível tirar conclusões sensatas, Também não há coincidências quanto aos dias da semana. Se acrescentarmos as duas visitas à maternidade de Ystad e o assassínio de Eugen Blomberg, conségue-se eventualmente vislumbrar fragmentos de um padrão.
Ela interrompeu e olhou à volta da mesa. Nem Wallander, nem nenhum dos outros parecia ter entendido o que pretendia dizer.
– É quase matemática pura – disse. – Porém, parece que o nosso criminoso atua segundo um padrão que é tão irregular que acaba por tornar-se interessante. No dia 21 de setembro morre Holger Eriksson. Na noite de 30 de setembro para 1º de outubro Katarina Taxell recebe uma visita na maternidade de Ystad. No dia 11 de outubro morre Gösta Runfeldt. Na noite de 13 de outubro a mulher regressa à maternidade e agride a prima de Svedberg. No dia 17 de outubro morre finalmente Eugen Blomberg. Evidentemente pode acrescentar-se também o dia em que Gösta Runfeldt provavelmente desapareceu. O padrão que vejo é que não existe qualquer tipo de regularidade, o que talvez possa ser surpreendente. Porque tudo o resto parece tão minuciosamente planeado e preparado. Um criminoso que tem tempo para coser bolsos para pesos num saco e calcular o peso com o da vítima? Portanto, podemos optar entre interpretar tudo como se não existissem intervalos que nos possam desvendar alguma coisa, ou então determinamos que a irregularidade é provocada por alguma coisa. E então temos que perguntar por quê.
Wallander sentiu que não conseguiu acompanhar totalmente o raciocínio.
– Mais uma vez – pediu. – Devagar.
Ela repetiu o que dissera. Desta vez Wallander entendeu o que ela pretendia dizer.
– Talvez se possa dizer que não é necessariamente uma coincidência – finalizou. – Não quero avançar mais do que isso. Pode ser uma regularidade que se repete. Mas não o é necessariamente.
Wallander começou agora a ver uma imagem relativamente clara.
– Vamos supor que apesar de tudo há um padrão – disse. Como se afigura então a tua interpretação? Que forças exteriores regulam o calendário do criminoso? – Pode haver várias explicações. O criminoso não mora na Scania, mas vem em visitas regulares, Ele ou ela tem uma profissão que segue um certo ritmo. Ou outra coisa qualquer que não consegui descobrir.
– Estás a dizer que estes dias podiam ser dias de folga acumulados que se repetem com regularidade? Se tivesse sido possível acompanhar mais um mês, tornar-se-ia mais evidente? – Pode ser uma possibilidade. O criminoso tem um trabalho que segue um esquema móvel. Por outras palavras, significa que as folgas não coincidem unicamente com os sábados e domingos.
– Pode vir a revelar-se importante – hesitou Wallander. – Porém, tenho dificuldade em acreditar nisso.
– Fora isso não há muita coisa que consiga decifrar deste calendário – disse Ann-Britt. – O suspeito escapa-me constantemente.
– O que não se consegue determinar, também e uma espécie de sabedoria – comentou Wallander e levantou o saco de plástico. Como de qualquer maneira estamos a falar de calendário, este encontrei-o numa gaveta falsa na secretária de Katarina Taxell. Se quis esconder do mundo o seu pertence mais importante, então terá que ser este. Um horário dos comboios Intercidades dos Caminhos-de-Ferro. Da Primavera de 1991. Com uma partida sublinhada: Nässjö às 16h00, horário válido para todos os dias.
Empurrou o saco de plástico para Nyberg.
– Impressões digitais – pediu.
Depois passou a falar de Krista Haberman. Contou as suas reflexões. Falou da visita que fizeram no nevoeiro da manhã. A seriedade na sala não enganava ninguém.
– O que estou a dizer é que vamos começar a cavar – concluiu o seu resumo. – Depois do nevoeiro se dissipar e Hansson ter possibilidade de descobrir quem cultivava a terra e saber se houve algumas alterações drásticas depois de 1967.
Fez-se um silêncio total por um longo instante. Todos estavam a avaliar o que fora dito por Wallander. Por fim, foi Per Akeson quem falou.
– Parece incrível e ao mesmo tempo curiosamente insidioso – comentou. – Suponho que temos que levar esta possibilidade a sério.
– Seria bom que não fosse divulgado – pediu Lisa Holgersson. Não há nada que as pessoas gostem mais do que quando desaparecimentos não esclarecidos no passado surgem à superfície.
A decisão foi tomada.
Nesse momento Wallander quis acabar a reunião o mais depressa possível, porque todos tinham muito trabalho à espera.
– Katarina Taxell – afirmou. – Portanto, desapareceu, deixou o seu apartamento num Golf vermelho com um condutor desconhecido. Devemos considerar a sua partida como precipitada. Birch em Lund espera provavelmente que nós lhe digamos alguma coisa . A mãe dela acha que devemos denunciar o desaparecimento, o que dificilmente podemos recusar uma vez que é a parente mais próxima, mas julgo que devemos esperar. Pelo menos mais um dia.
– Por quê? – perguntou Per Akeson – Desconfio de que nos vai contatar, não a nós naturalmente mas a mãe. Katarina compreende que ela está preocupada e vai telefonar para a acalmar. Porém, não é provável que conte onde se encontra ou com quem.
Wallander dirigiu-se agora diretamente para Per Akeson.
– Assim, quero alguém na casa da mãe de Katarina Taxell, alguém que grave a conversa porque, mais cedo ou mais tarde, ela vai telefonar.
– Se não aconteceu já – disse Hansson e levantou-se. – Dá-me o número de Birch.
Ann-Britt Höglund deu-lho e ele deixou a sala imediatamente.
– Neste momento julgo que não há mais nada – rematou Wallander. – Vamos encontrar-nos aqui as cinco, caso não aconteça nada de especial até então.
Quando Wallander entrou no seu gabinete, o telefone tocou. Era Martinsson. Queria saber se Wallander podia ir ter com ele a sua casa às duas. Wallander prometeu estar lá. A seguir saiu da central. Almoçou no Continental. Na verdade, achava que não se podia dar a esse luxo, mas estava com fome e tinha pouco tempo. Ficou numa mesa a janela sozinho. Cumprimentou pessoas que passavam pela sua mesa. Ficou surpreso e ofendido por ninguém parar e lamentar a morte do seu pai. Tinha saído nos jornais. Notícias de falecimentos espalhavam-se depressa. Ystad era uma cidade pequena. Comeu pregado e bebeu uma cerveja sem álcool. A empregada era jovem e corava cada vez que Wallander olhava para ela. Interrogou-se com compaixão como iria ela aguentar a sua profissão.
Às duas tocou à porta de Martinsson. Ele próprio abriu-a. Sentaram-se na cozinha, reinava silêncio na casa, ele estava sozinho. Wallander perguntou por Terese, que regressara à escola. Martinsson estava pálido e reservado. Wallander nunca o vira tão abatido.
– O que devo fazer? – perguntou Martinsson.
– O que diz a tua mulher? O que diz Terese? – Que é evidente que devo continuar. Não são elas que querem que me demita, sou eu próprio.
Wallander aguardou, mas Martinsson não acrescentou mais nada.
– Lembras-te de há uns anos – iniciou Wallander. – Quando dei um tiro mortal a uma pessoa no nevoeiro perto de Kâseberga, E quando atropelei uma outra mortalmente na ponte de õland. Retirei-me por quase um ano, vocês até julgaram que me tinha demitido. Depois houve aquilo com os advogados Torstensson. E, de repente tudo se alterou. Estava prestes a assinar o meu pedido de demissão, mas pelo contrário regressei ao serviço.
Martinsson anuiu, lembrava-se.
– Agora passado muito tempo estou contente por ter feito o que fiz. O único conselho que te quero dar é que não faças nada precipitado. Espera antes de tomares uma decisão. Trabalha por mais uns tempos e decide depois. Não te peço para esqueceres, peço-te paciência. Todos sentem a tua falta, todos sabem que és um bom policial. Nota-se quando não estás.
Martinsson abriu os braços em sinal de desaprovação.
– Não sou assim tão importante. Sei bastante, mas não metas na tua cabeça que de alguma maneira seria insubstituível.
– Ninguém te pode substituir, exatamente a tua pessoa – insistiu Wallander. – É disso que falo.
Wallander calculara que a conversa poderia tornar-se muito longa. Martinsson ficou calado uns minutos. Depois ergueu-se e abandonou a cozinha. Quando regressou, tinha o casaco vestido.
– Vamos embora? – perguntou.
– Claro – disse Wallander. – Temos muito que fazer.
No carro, a caminho da central , Wallander fez-lhe um resumo breve sobre os acontecimentos dos últimos dias. Martinsson escutou sem fazer comentários.
Quando entraram na recepção foram intercetados por Ebba. Como não teve tempo de desejar boas-vindas a Martinsson, Wallander percebeu imediatamente que tinha acontecido alguma coisa.
– Ann-Britt Höglund quer contatar-vos. É muito importante.
– O que aconteceu? – Alguém que se chama Katarina Taxell telefonou à mãe. Wallander olhou para Martinsson.
Portanto, acertara, mas acontecera mais cedo que previra.
Não chegaram tarde de mais.
Birch chegara a tempo com um gravador e, pouco mais de uma hora depois, a fita estava em Ystad, vinda de Lund. Juntaram-se no gabinete de Wallander onde Svedberg colocara o gravador.
Escutaram, sob grande tensão, a conversa de Katarina Taxell com a mãe. A conversa durou pouco e a primeira coisa em que Wallander pensou foi que Katarina Taxell não queria falar mais do que o necessário.
Escutaram uma vez, depois outra. Svedberg entregou os fonees para Wallander chegar mais perto das duas vozes.
– Mamã? Sou eu.
– Por amor de Deus, onde estás? O que aconteceu? – Não aconteceu nada. Estamos bem.
– Onde estás? – Com uma boa amiga.
– Com quem? – Uma boa amiga. Só queria telefonar-te e dizer que está tudo bem.
– O que aconteceu? Por que desapareceste? – Explico noutra altura.
– Estás com quem? – Não conheces.
– Não desligues. Qual é o teu número de telefone? – Desligo agora. Só queria telefonar para não ficares preocupada. A mãe tentou dizer mais alguma coisa , mas Katarina Taxell desligou. O diálogo era constituído por catorze réplicas, tendo a última sido interrompida.
Ouviram a fita pelo menos vinte vezes. Svedberg apontou as réplicas num papel.
– É a décima primeira frase que nos interessa – disse Wallander. "Não conheces". O que quer ela dizer com isto?
– A verdade – disse Ann-Britt Höglund.
– Não é bem isso que eu dizia, esclareceu Wallander – Não conheces" pode significar duas coisas. Que a mãe nunca esteve com ela, ou a mãe não entendeu o que ela representa para Katarina Taxell.
– A primeira alternativa é a mais provável, não é? – comentou Ann-Britt Höglund.
– Espero que te enganes – respondeu Wallander. – Facilitar-nos-Ia imenso identificá-la.
Enquanto conversavam, Nyberg estava a ouvir com os fonees postos. O som que passava para fora significava que tinha o volume no máximo.
– Ouve-se uma coisa ao fundo – disse Nyberg. – Algo que bate. Wallander colocou os fonees e viu que Nyberg tinha razão. Apareciam regularmente pancadas surdas na periferia da conversa. Cada um deles passava ao outro para todos ouvirem, mas ninguém conseguia identificar com segurança o que era.
– Onde está? – perguntou Wallander. – Foi para algum lado, deve estar em casa daquela mulher que a foi buscar e algures nas proximidades há algo que bate.
– Poderá ser próximo de um local de construção? – propôs Martinsson.
Foi a primeira coisa que disse depois de ter decidido começar a trabalhar.
– É uma hipótese – respondeu Wallander.
Escutaram novamente. Lá estavam as pancadas. Wallander tomou uma decisão.
– Manda a fita para Linkõping – disse. – Pede uma análise. Se conseguirem identificar o som, pode ajudar-nos.
– Quantos locais de construção existem, só na Scania? – perguntou Hamrén.
– Pode ser outra coisa qualquer – disse Wallander. – Algo que talvez nos dê uma ideia sobre onde se encontra.
Nyberg desapareceu com a fita. Ficaram no gabinete de Wallander, uns encostados às paredes e outros à secretária.
– Há três coisas importantes a partir de agora – afirmou Wallander. – Temos de nos concentrar. Alguns aspectos da investigação temos que deixar de parte, por enquanto. É preciso continuar a investigar a vida de Katarina Taxell. Quem é ela? Quem tem sido? Os seus amigos? Mudanças na vida dela? É a primeira coisa. A segunda está relacionada: Está em casa de quem? Fez uma curta pausa antes de prosseguir.
– Aguardamos até Hansson regressar de Udinge, mas calculo que a nossa terceira tarefa vai ser começar a cavar nos terrenos de Holger Eriksson.
Ninguém contestou. Separaram-se. Wallander ia a Lund e tencionava levar Ann-Britt Höglund. A tarde já ia avançada.
– Tens quem tome conta dos teus filhos? – perguntou quando estavam sozinhos no gabinete.
– Sim tenho, nesta altura a minha vizinha precisa de dinheiro, graças a Deus.
– E tu como arranjas dinheiro? – perguntou Wallander. – A tua remuneração não é assim tão elevada.
– Não tenho – respondeu. – Mas o meu marido ganha bem, é o que nos vale. Faz de nós uma família invejável hoje em dia. Wallander telefonou a Birch a dizer que estavam a caminho. Deixou Ann-Britt Höglund conduzir. já não confiava no seu próprio carro, apesar da dispendiosa reparação.
A paisagem desaparecia lentamente no crepúsculo. O vento soprava frio sobre os campos.
– Começamos pela casa da mãe de Katarina Taxell – propôs. Depois voltamos ao apartamento dela.
– O que julgas que vais encontrar? já examinaste o apartamento. E costumas ser minucioso.
– Eventualmente nada de novo. Mas talvez uma relação entre dois pormenores que ainda não tenha descoberto.
Ela conduzia depressa.
– Costumas arrancar com o acelerador a fundo? – perguntou Wallander subitamente.
Deitou-lhe um olhar de soslaio.
– Acontece – disse, – Por que perguntas? – Porque gostaria de saber se era uma mulher quem conduzia o Golf vermelho, aquela que foi buscar Katarina Taxell.
– Não temos a certeza? – Não – disse Wallander com determinação. – Não temos a certeza, praticamente não temos certeza de nada.
Ficou a olhar pela janela. Nesse momento passavam o palácio de Marsvinsholm.
– Há mais uma coisa que não sabemos ao certo – disse, passado uns instantes. – Porém, estou cada vez mais convencido.
– De quê? – Que está sozinha. Que não há nenhum homem nas suas proximidades, que não existe mais ninguém. Não procuramos uma mulher que nos leve eventualmente mais além. Ela não tem passado, atrás dela não há nada. Só ela, mais ninguém.
– Portanto é ela quem cometeu os crimes? Cavou a sepultura das estacas. Estrangulou Gösta Runfeldt depois de o ter em cativeiro? Atirou Blomberg para o lago, vivo dentro de um saco? Wallander respondeu colocando outra pergunta.
– Lembras-te de que falamos da linguagem do criminoso no princípio da investigação? Que ele ou ela queria contar-nos algo? Sobre o procedimento demonstrativo.
Lembrava-se. – Ocorre-me agora que logo no princípio avaliamos bem, mas pensamos mal.
– Que uma mulher se podia comportar como um homem? – Talvez não propriamente o comportamento. Mas executava acções que nos levavam a pensar em homens brutais.
– Nessa altura devíamos ter pensado nas vítimas, uma vez que eles eram brutais? – Exatamente. Não no criminoso. Nós enganámo-nos na leitura do que vimos.
– Apesar de tudo, é exatamente aqui que surgem as dificuldades – disse. – Que uma mulher seja realmente capaz disto. Não falo da força física. Eu, por exemplo, sou tão forte como o meu marido. Ele tem grandes dificuldades em me vencer no braço de ferro.
Wallander olhou-a surpreendido. Ela reparou e soltou uma gargalhada.
– As pessoas divertem-se de maneiras diferentes. Wallander anuiu.
– Lembro-me dos braços de ferro com a minha mãe quando era pequeno – disse. – Mas julgo que era eu quem ganhava.
– Talvez ela te deixasse ganhar. Viraram para Sturup.
– Não sei como esta mulher justifica as suas acções – refletiu Wallander. – Porém, se a encontrarmos, julgo que iremos estar perante uma pessoa que não se assemelha a ninguém de quem alguma vez estivemos sequer perto.
– Um monstro feminino? – Talvez. Mas nem sequer disso temos a certeza.
O celular interrompeu a conversa. Wallander atendeu, era Birch. Informou-os do que deviam fazer para chegar a casa da mãe de Katarina Taxell.
– Qual é o seu primeiro nome? – perguntou Wallander.
– Hedwig, Hedwig Taxell.
Birch prometeu avisar que estavam a caminho. Wallander calculou que iriam chegar aproximadamente dentro de meia hora.
O crepúsculo cercava-os.
Birch estava na escada para os receber. Hedwig Taxell morava no extremo de um conjunto de moradias em banda nos arredores de Lund. Wallander calculou que as casas tinham sido construídas no princípio dos anos 60. Telhados planos, caixas quadradas com pequenos jardins nas traseiras. Tinha uma vaga ideia de ter lido que às vezes os telhados desabavam a seguir a fortes quedas de neve. Birch esperara por eles enquanto procuravam o endereço certo.
– Por pouco o telefonema chegava antes de conseguir colocar o gravador no devido lugar – disse.
– Não podemos dizer que tenhamos tido excesso de sorte – respondeu Wallander.
– Qual é a tua impressão de Hedwig Taxell? – Está muito preocupada com a filha e o neto. Mas, apesar de tudo, parece mais calma do que da última vez.
– Será que nos vai ajudar? Ou protege a filha? – Simplesmente julgo que quer saber onde ela está.
Birch levou-os até a sala. Sem ser capaz de dizer o que era, Wallander teve a sensação de que se assemelhava ao apartamento de Katarina. Hedwig Taxell aproximou-se para os cumprimentar. Birch manteve-se, como habitualmente, à parte. Wallander observou-a, estava pálida, os seus olhos moviam-se de um lado para o outro, irrequietos. Wallander não se surpreendeu. Ouvira pela sua voz na gravação que estava preocupada e tensa até ao limite. Foi por isso que quis trazer Ann-Britt Höglund. A sua capacidade de acalmar pessoas preocupadas era muito grande. Hedwig Taxell não parecia estar desconfiada. Ficou com a impressão de que estava contente por não estar sozinha. Sentaram-se. Wallander tinha preparado as suas primeiras perguntas.
– Senhora Taxell. Vamos precisar da sua ajuda para obter resposta a algumas perguntas respeitantes a Katarina.
– De que maneira poderia ela saber alguma coisa sobre os horríveis homicídios? Acontece que teve um filho há pouco tempo.
– Não julgamos que esteja de qualquer forma envolvida – disse Wallander de maneira simpática. – Mas temos que procurar informações de diferentes lados.
O que poderia ela saber? É a isso que esperava que me pudesse responder.
E se fossem procurá-la em vez disto? Não entendo o que aconteceu.
– Não creio de maneira nenhuma que se encontre em perigo – disse Wallander, sem conseguir ocultar totalmente a sua própria dúvida.
– Ela nunca se portou desta maneira.
– Senhora Taxell, não faz ideia onde ela possa estar? – Eu chamo-me Hedwig.
– Hedwig, faz alguma ideia de onde possa estar a sua filha? – Não. Não consigo compreender.
– Katarína talvez tenha muitos amigos? – Não, não tem, mas os que tem são-lhe muito próximos. Não entendo onde esteja.
– Talvez haja alguém com quem ela não tenha convivido com frequência? Alguém que tenha conhecido recentemente? – Quem poderia ser? – Ou talvez alguém que tenha conhecido há mais tempo e com quem reatou o relacionamento? – Teria tido conhecimento. Nós temos uma boa relação. Muito melhor do que a maioria das mães e filhas costumam ter.
– Também não acredito que tenha havido segredos entre vocês disse Wallander pacientemente. – Porém é muito raro que se saiba tudo sobre outra pessoa. Por exemplo, sabe quem é o pai do filho? Wallander não pretendia que a pergunta a chocasse, mas ela vacilou.
– Tentei levá-la a falar do assunto – disse –, mas ela recusou.
– Portanto, não sabe quem é? Nem sequer consegue adivinhar?
– Nem sequer sabia que se relacionava com um homem.
– Mas sabia que teve uma ligação com Eugen Blomberg? – Sabia. Mas não gostava dele.
– Por que não? Por ele ser casado? – Não sabia até ler a necrologia no jornal. Surgiu como um choque.
– Por que não gostava dele? – Não sei. Era desagradável.
– Sabe que ele maltratava Katarina? O seu pavor era totalmente genuíno. Por instantes Wallander sentiu pena dela. O seu mundo estava prestes a desmoronar. Agora estava a ser obrigada a ficar a saber que havia muito que não sabia a respeito da filha. Que a cumplicidade que julgava existir pouco mais era do que uma fachada, ou pelo menos muito superficial.
– Será que lhe batia? – Pior ainda. Maltratava-a de diversas maneiras.
Olhou para ele com uma expressão incrédula, mas entendeu que ele estava a dizer-lhe a verdade. Não conseguia defender-se.
– Também julgo que há uma possibilidade de Eugen Blomberg ser o pai do filho dela. Apesar de terem rompido a relação.
Ela abanou lentamente a cabeça, mas não disse nada. Wallander sentiu-se inseguro, iria ela sentir-se mal novamente? Olhou para Ann-Britt Höglund, que anuiu. Interpretou o gesto como sinal de que podia prosseguir. Birch continuava atrás imóvel.
– Os amigos dela – continuou Wallander. – Temos que os visitar e falar com eles.
– Já disse quem são. E já falaram com eles. Mencionou três nomes. Birch acenava com a cabeça.
– Mais ninguém? – Não.
– Faz parte de alguma associação? – Não.
– Tem feito viagens ao estrangeiro? – Costumamos ir juntas uma vez por ano. Na maioria das vezes, nas férias escolares, em Fevereiro. Para a Madeira, Marrocos, Tunísia.
– Não tem nenhuma atividade de tempo livre? – Lê muito. Gosta de ouvir música. Porém, a sua empresa de produtos capilares ocupa muito do seu tempo. Trabalha muito.
– Mais nada?
– Às vezes jogava badmínton.
– Com quem? Com alguma das três amigas? – Com uma professora. Acho que se chamava Carlinan. Mas nunca a vi.
Wallander não sabia se viria a ser importante, mas de qualquer maneira era um nome novo.
– Trabalham na mesma escola? – Agora já não. Antes, há uns anos.
– Não se lembra do primeiro nome? – Nunca a vi.
– Onde costumava jogar? – No estádio Victória. Situa-se tão perto do seu apartamento que pode ir a pé.
Birch saiu do seu lugar discretamente e foi até ao vestíbulo. Wallander sabia que iria investigar a mulher chamada Carlinan. Demorou menos de cinco minutos.
Birch fez sinal a Wallander que se levantou e foi ter com ele. Ann-Britt Höglund tentou, entretanto, obter esclarecimento sobre o que Hedwig Taxell na realidade sabia relativamente à relação da sua filha com Eugen Blomberg.
– Foi fácil – anunciou Birch. – Annika Carliman. O campo era reservado e pago por ela. Tenho o endereço, não é longe daqui. Lund continua a ser um a pequena cidade.
– Então vamos lá – disse Wallander. Regressou à sala.
– Anika Carliman – declarou. – Mora em Bankgatan.
– Nunca ouvi o primeiro nome – disse Hedwig Taxell.
– Vamos deixá-las sozinhas um pouco – prosseguiu Wallander. Temos que falar com ela já.
Deixaram a casa e seguiram no carro de Birch. A viagem não demorou dez minutos. Eram seis e meia. Anika Carliman morava num prédio de apartamentos do princípio do século. Birch tocou a campainha à entrada do prédio. Uma voz de homem respondeu. Birch apresentou-se. A porta abriu. No segundo andar havia uma porta aberta. Um homem estava à espera deles, e apresentou-se.
– Sou casado com Anika – explicou. – O que aconteceu? – Nada – respondeu Birch. – Só precisamos de fazer umas perguntas.
Convidou-os a entrar. O apartamento era grande e luxuoso. Vindas não se sabe donde, ouvia-se música e vozes de crianças. Logo a seguir apareceu Anika Carliman. Era alta e vestia roupa desportiva.
– São policiais que querem falar contigo, mas parece que não houve nada.
– Precisamos colocar umas perguntas sobre Katarina Taxell – comunicou Wallander.
Sentaram-se numa divisão que tinha as paredes forradas com livros. Wallander refletiu se o marido de Annika Carliman também seria professor.
Foi diretamente ao assunto.
– Até que ponto conhece Katarina Taxell?
– Jogávamos badminton. Mas não convivíamos.
– É claro que está ao corrente de que teve um filho? – Por isso mesmo não jogamos badminton há cinco meses.
– Vão recomeçar agora novamente? – Combinamos que me contataria.
Wallander mencionou os nomes das três amigas.
– Não as conheço. Nós só jogávamos badminton.
– Quando começaram essa atividade?
– Há cerca de cinco anos. Éramos professoras na mesma escola.
– Será realmente possível jogar badminton regularmente com uma pessoa durante cinco anos sem a acabar por conhecer?
– É totalmente possível.
Wallander refletiu sobre como iria prosseguir. Anika Carliman dera respostas claras e explícitas. Apesar disso, sentiu que se estavam a afastar.
– Nunca a viu com outra pessoa? – Homem ou mulher? – Vamos começar por um homem, – Não.
– Nem sequer quando trabalharam juntas? – Andava muito sozinha. Havia um professor que parecia interessado nela, mas ela tratava-o friamente. Para não dizer diretamente que lhe era avessa. Mas tinha jeito para os alunos, era aplicada, persistente e dedicada.
– Alguma vez a viu com alguma mulher? Wallander já abandonara a esperança de que a pergunta o levasse a algum lado, mesmo antes de a fazer. Todavia, precipitara-se na resignação.
– Sim, de fato – respondeu. – Há cerca de três anos.
– Quem era? – Não sei como se chama, mas sei o que faz. Foi uma coincidência curiosa.
– O que faz? – O que faz agora não sei. Mas nessa altura era empregada de mesa nos caminhos -de– ferro.
Wallander franziu a testa.
– Cruzou-se com Katarina Taxell num comboio? – Vi -a por mero acaso no centro com uma outra mulher. Eu estava do outro lado da rua, nem sequer nos cumprimentamos. Uns dias depois fui a Estocolmo de comboio, dirigi-me ao vagão-restaurante algures depois de passar Alvesta. Quando ia pagar, reconheci a mulher que lá trabalhava. Era a mesma que vira com Katarina.
– Evidentemente não sabe o nome dela? – Não.
– Porém, contou mais tarde o acontecido a Katarina.
– De fato, não. Provavelmente esqueci-o. Poderá ser importante? Wallander pensou de repente no horário que encontrara no móvel de Katarina Taxell.
– Talvez. Que dia foi? Que comboio? – Como posso lembrar-me? – disse espantada. – Foi há três anos.
– Talvez tenha algum calendário velho? Gostaríamos muito de que tentasse lembrar-se.
O marido que estivera calado a ouvir, levantou-se.
– Vou buscar o calendário. Foi em 1991 ou 1992? Refletiu.
– 1991. Em fevereiro ou março.
Passaram uns minutos de espera em silêncio. A música oriunda do interior do apartamento fora substituída pelo som de uma televisão.
O marido voltou e deu-lhe um velho calendário preto. Ela folheou-o e rapidamente encontrou o mês.
– Fui a Estocolmo no dia 19 de fevereiro 1991, num comboio que partiu às 7h12. Passados três dias regressei. Fui visitar a minha irmã.
– Não viu a mulher no regresso?– Nunca mais a vi.
– Porém, tem a certeza de que era ela? A que viu na rua aqui em Lund? Com Katarina? – Tenho sim.
Wallander olhou-a contemplativamente.
– Não há outra coisa que pense Ser importante para nós? Abanou com a cabeça.
– Agora compreendo que realmente não sei nada sobre Katarina. Mas joga bem badminton.
– Como a descreveria como pessoa? – É difícil, e talvez isso explique tudo. Uma pessoa difícil de descrever. Tem um temperamento inconstante. Pode estar deprimida. Mas naquela vez em que a vi na rua com a empregada de mesa, estava a rir.
– Tem certeza?
– Sim.
– Não há mais nada que pense poder ser importante? Wallander viu que ela se esforçava por ajudar.
– Acho que sente a falta do pai – disse passado uns instantes.
– Por que julga isso? – É difícil responder, é mais uma impressão que tenho. Da maneira como se comportava com homens que tinham idade para serem pais dela.
– Como se comportava?
– Perdia algo da sua maneira natural de estar. Como se ficasse insegura.
Wallander refletiu um pouco sobre o que ela dissera. Pensou no pai de Katarina Taxell, que morrera ainda novo, e também se o que Annika Carlinari disse podia explicar a relação que Katarina tivera com Eugen Blomberg.
Olhou para ela novamente.
– Nada mais? – Não.
Wallander fez sinal a Birch e levantou-se.
– Então não vamos incomodar mais – concluiu.
– Evidentemente fico curiosa – disse. – Por que a Polícia faz perguntas, se não aconteceu nada?
– Aconteceu muita coisa – respondeu Wallander. – Embora não com Katarina. Infelizmente é a única resposta que posso dar. Deixaram o apartamento. Depois ficaram parados nas escadas.
Temos que encontrar aquela empregada de mesa – disse Wallander. – Tirando uma fotografia de quando era jovem e da visita a Copenhagen, ninguém descreveu Katarina como uma pessoa alegre, A Companhia dos Caminhos – de-Ferro deve ter listas dos funcionários – sugeriu Birch. – Mas duvido que seja possível esclarecer agora a esta hora do dia. Apesar de tudo foi há três anos.
Temos que tentar – insistiu Wallander, – Evidentemente não posso exigir que trates disso. Podemos fazê-lo de Ystad.
– Vocês têm trabalho que chegue – respondeu Birch. – Encarrego-me disso.
i Wallander reparou que Birch estava a ser honesto. Não se tratava de um sacrifício.
Voltaram à casa de Hedwig Taxel]. Birch deixou Wallander e seguiu para a central para começar a procurar a empregada de mesa do comboio. Wallander tinha dúvidas se a tarefa seria viável.
Quando ia tocar à porta, o telefone tocou. Era Martinsson. Wallander percebeu pela sua voz que ele estava a ultrapassar a depressão. Pelos vistos recuperava mais depressa do que se atrevera a acreditar.
Como correm as coisas? – perguntou Martinsson. – Ainda estás em Lund? – Estamos a tentar descobrir uma empregada de mesa – respondeu Wallander.
Martinsson teve o bom senso de não fazer mais perguntas. Aqui aconteceram bastantes coisas – prosseguiu Martinsson. – Em primeiro lugar, Svediberg conseguiu contatar o homem encarregue da impressão das coletâneas de poemas de Holger Eriksson. Parece que era muito velho. Mas totalmente lúcido. Além do mais, não se importou de dar a sua opinião a respeito de Holger Eriksson. Pelos vistos, teve sempre dificuldade em conseguir a cobrança pelo seu trabalho.
– Disse alguma coisa que não saibamos já? – Parece que Holger Eriksson fez viagens constantes e regulares à Polônia desde a guerra. Aproveitava a miséria de lá para comprar mulheres. Depois de regressar, gabava-se das suas conquistas. Este velho gráfico deu realmente a sua opinião.
Wallander lembrou-se do que Sven Tyrén lhe mencionara numa das primeiras conversas. Agora estava confirmado. Krista Haberman não era, portanto, a única polaca na vida de Holger Eriksson.
– Svedberg queria saber se valeria o esforço contatar a Polícia polonesa – disse Martinsson.
– Talvez – respondeu Wallander. – Contudo, por enquanto, é melhor aguardar.
– Há mais – disse Martinsson. – Vou passar o Hansson.
– O telefone rangeu. Depois ouviu a voz de Hansson.
– Acho que tenho um quadro bastante claro sobre quem cultivava a terra de Holger Eriksson – iniciou. – Tudo parece ter uma única característica.
– O quê?
– Constantes rixas. A acreditar nas minhas fontes, Holger Eriksson tinha um talento incrível para se tornar inimigo das pessoas. Dá para pensar que era a sua única paixão na vida, constantemente a arranjar novos inimigos.
– Os campos – disse Wallander impacientemente.
Ouviu como a voz de Hansson se alterou ao responder. Tornou-se subitamente mais séria.
– A valeta – disse Hansson – onde encontramos Holger Eriksson suspenso nas estacas.
– O que tem? – Foi aberta há uns anos. Não está desde o princípio. Na realidade, ninguem percebeu por que Eriksson precisou de a fazer, Não foi necessária para a drenagem. A lama foi afastada e tornou a elevação mais alta. Lá onde está a torre.
– Uma valeta não era o que tinha imaginado – disse Wallander. Não parece crível que estivesse relacionada com uma eventual sepultura.
– Também foi a minha primeira reação – anuiu Hansson. – Mas depois surgiu outra coisa que me fez mudar de opinião.
Wallander susteve a respiração.
– A valeta foi aberta em 1967. O agricultor com quem falei tinha a certeza. Foi feita no fim do outono de 1967, Wallander entendeu imediatamente a importância do que Hansson dissera.
– Significa portanto que a valeta foi feita na altura em que Krista Haberman desapareceu – comentou Wallander.
– O meu agricultor foi mais preciso do que isso. Tem a certeza de que a valeta foi feita em fins de outubro. Lembrava-se por causa do casamento que houve em Lõdinge no último dia de outubro de 1967.
Se partirmos da data em que Krista Haberman foi vista pela última vez com vida, então as datas batem exatamente certas. Uma viagem de carro de Svenstavik. Mata-a e enterra-a. Aparece uma valeta que ainda por cima não é necessária.
– Óptimo – congratulou-se Wallander. – Isso tem algum significado.
– Se está lá, sei onde devemos começar a cavar – prosseguiu Hansson. – O agricultor afirmou que começaram a cavar a valeta a sudeste da elevação. Eriksson alugara uma escavadora. Nos primeíros dias ele próprio se encarregara da escavação. O restante da valeta deixou para outros fazerem.
– Então é nesse local que vamos começar – disse Wallander e sentiu como a relutância crescia dentro de si. O que mais desejava era que se tivesse enganado. Agora tinha a certeza de que Krista Haberman estava nalgum lugar nas proximidades do local indicado por Hansson.
– Começamos amanhã – prosseguiu Wallander. – Quero que prepares tudo.
– Vai ser impossível manter isto em segredo – avisou Hansson.
– De qualquer maneira, temos que tentar – insistiu Wallander, Quero que fales com Lisa Holgersson, com Per Akeson e os outros sobre o assunto.
– Há uma coisa sobre a qual me questiono – disse Hansson com hesitação. – Se a encontrarmos, o que provamos na realidade? Que Holger Eriksson a matou? Podemos partir desse princípio mesmo que nunca possamos provar a culpa de um homem morto. Neste caso, não. Mas o que vai isso contribuir na realidade para a investigação em curso? A pergunta era mais do que justificada.
– Fundamentalmente ficamos esclarecidos de que estamos no caminho certo – explicou Wallander. – Que o motivo que liga estes homicídios é a vingança. Ou ódio.
– E continuas a achar que é uma mulher que está por trás.
– Sim acho – respondeu Wallander. – Agora mais do que nunca. Depois de desligar Wallander ficou parado, lá fora, na noite outonal. O céu estava limpo e sem nuvens. Uma tênue brisa passou-lhe pelo rosto, Pensou que agora estavam a aproximar-se de alguma coisa . O tal centro de que andava à procura há precisamente um mês.
Porém, continuava a não saber o que iriam encontrar.
A mulher que tentava ver lhe escapava constantemente.
Ao mesmo tempo pensava que de algum modo poderia compreendê-la.
Bateu à porta e entrou.
32
Abriu a porta devagar porque estavam dormindo. A criança estava deitada de costas no berço que comprara nesse mesmo dia. Katarina Taxell estava na cama ao lado, encolhida em posição fetal. Ficou imóvel a olhar para elas. Era como se estivesse a olhar para si mesma. Ou talvez fosse a sua irmã na cama pequena.
Subitamente não conseguia ver com clareza. Por todo lado à sua volta, havia sangue. Não era apenas uma criança que nascera do sangue. A própria vida tinha a sua origem no sangue que fluía quando se dava um golpe na pele. Sangue que tinha as suas próprias memórias das artérias por onde uma vez correra. Conseguiu ver a cena com muita nitidez, a sua mãe que gritava deitada numa mesa com as pernas abertas e o homem inclinado sobre ela. Apesar de ter ocorrido há mais de quarenta anos, o momento do passado lançou-se sobre ela. Tentara toda a vida escapar, mas não conseguira, as memórias apanhavam-na sempre.
Porém, agora sabia que já não precisava de recear essas memórias. Agora que a sua mãe morrera e tinha a liberdade de fazer o que queria. Tinha que o fazer para manter essas memórias à distância.
A sensação de tontura passou tão depressa como aparecera. Aproximou-se da cama cuidadosamente e olhou para a criança que dormia, Não era a sua irmã, esta criança já tinha um rosto. A sua irmã não vivera o suficiente para ter um. Era o filho recém-nascido de Katarina Taxell, não da sua mãe. O filho de Katarina Taxell, que para sempre iria escapar ao sofrimento, escapar da perseguição de memórias.
Agora sentia-se completamente calma. As imagens da memória dissiparam-se. Já não se lançavam sobre ela.
O que estava a fazer era correto. Impedia que pessoas sofressem da maneira como ela sofrera. Aos homens que cometeram violências e que não foram castigados pela sociedade, obrigou-os a passar pelo caminho mais duro de todos. Pelo menos imaginava que assim era. Que um homem, que fosse privado da sua vida por uma mulher, nunca chegaria a entender o que na realidade lhe acontecera.
Tudo estava tranquilo. Era isso o mais importante. A decisão de ir buscá-la mais à criança fora correcta. Falar com calma, escutar e dizer que tudo o que acontecera fora para o melhor. Eugen Blomberg morrera afogado. O que se lia nos jornais sobre um saco eram só rumores e exageros dramáticos. Eugen Blomberg desaparecera, se tropeçou ou caiu e depois rnorreu afogado não foi por culpa de ninguém. O destino tratara do assunto e o destino era justo. Eram frases que repetira constantemente e agora parecia que Katarina Taxell começava a entender.
A decisão de ir buscá-la fora correcta, apesar de a ter obrigado ontem a informar as mulheres que queriam visitá-la, que tinham que cancelar o encontro desta semana. Fugir ao seu calendário criava-lhe desorganização e dificultava-lhe o sono. Todavia foi necessário, também não era possível planejar tudo. Apesar de preferir não o admitir.
Enquanto Katarina e o filho estivessem com ela, ficava na casa de Vollsjö. Só tinha trazido o mais importante do apartamento de Ystad. As suas fardas e a pequena caixa onde guardava os pedaços de papel e o caderno com os nomes. Agora que Katarina e o seu filho estavam a dormir não precisava de esperar mais tempo. Dispersou os pedaços de papel em cima do forno, misturou-os e começou a tirar.
O nono papel que desdobrou tinha a cruz preta. Abriu o caderno e seguiu lentamente a fila de nomes. Parou no número 9 e leu o nome Tore Grundén. Ficou completamente imóvel olhando para o ar. A imagem dele surgiu devagar, primeiro como uma sombra vaga com contornos pouco distintos. Depois uma cara, uma identidade. Agora lembrava-se dele, quem ele era e o que tinha feito.
Fora há mais de dez anos. Naquela altura ela trabalhava no hospital em Malmö. Uma noite antes do Natal quando estava de serviço nas urgências. A mulher que chegara de ambulância já estava morta, morrera num acidente de automóvel. O marido dela acompanhara-a, estava perturbado mas controlado. Ficou logo desconfiada, já vira situações dessas antes. Como a mulher estava morta, não podiam fazer mais nada. Então levou um dos policiais presentes para o lado para perguntar o que acontecera. Fora um acidente trágico. O marido tirara o carro em marcha atrás da garagem e não reparara que ela estava atrás do carro. Passou por cima dela que ficou com a cabeça esmagada por uma das rodos fundos. Ainda para mais, o carro estava carregado. Era um acidente que não devia acontecer. Mas defato acontecia. Num instante, sem ser vista, levantou o lençol e olhou para a mulher morta. Mesmo não sendo médica, parecia-lhe ver que o carro passara mais do que uma vez por cima do corpo. Depois começou a investigar o caso. A mulher que, nesse momento, estava morta na maca estivera internada várias vezes no hospital. Uma vez caíra de uma escada, uma outra vez tropeçara na cave e batera com força com a cabeça no chão de cimento. Escreveu uma carta anônima à Polícia e disse que se tratava de um homicídio. Falou com o médico que analisara o corpo. Mas nada aconteceu. O marido foi condenado a pagar multa, ou ficou eventualmente em liberdade condicional para o que se pode considerar negligência grave. Depois não se falou mais do caso. Mas aquela mulher foi assassinada.
Nada acontecera até então, agora tudo seria corrigido. Tudo menos a vida da mulher morta, que não era possível recuperar.
Começou a planejar como iria ser efectuado.
Mas havia algo que a perturbava. Os homens que vigiavam o prédio de Katarina Taxell tinham aparecido para a impedir. Através de Katarina iriam tentar aproximar-se dela. Talvez já tivessem começado a desconfiar de que uma mulher estava por trás dos acontecimentos? Contara com isso. Primeiro iriam pensar que era um homem. Depois iriam hesitar. Por fim, tudo iria dar uma volta à roda do seu próprio eixo e tornar-se o oposto.
Porém, é evidente que nunca a iriam apanhar. Nunca, jamais. Olhou para o forno. Pensou em Tore Grundéri, que morava em Hãssleholm e trabalhava em Malmö.
Subitamente sabia como devia proceder. Era tão simples que quase se tornava embaraçoso.
O que tinha de fazer podia executar no serviço. No tempo de trabalho, a ser remunerada.
Começaram a cavar logo de manhã, na sexta-feira, dia 21 de outubro. Havia ainda muito pouca luz. Wallander e Hansson isolaram o primeiro quadrado com cordões de segurança. Os policiais, nos seus fatos-macaco e botas de borracha, sabiam o que procuravam. Uma aversão mal contida misturava-se com o ar fresco da manhã e, para Wallander, a sensação era como estar num cemitério. Algures debaixo da terra talvez viessem a encontrar os restos de um cadáver. Informou Hansson que teria de assumir a responsabilidade pela escavação, uma vez que ele próprio tinha que trabalhar com Birch para tentar descobrir o mais depressa possível a empregada de mesa que fizera Katarina Taxell rir uma vez numa rua de Lund.
Wallander ficou meia hora lá fora na lama onde os policiais começaram a cavar. Depois seguiu o caminho na direção da casa onde tinha o carro estacionado. Telefonou a Birch e apanhou-o em casa, em Lund. Na noite anterior Birch só conseguira descobrir que seria em Malmö que eventualmente iriam conseguir desvendar o nome da empregada de mesa que procuravam. Bírch estava a tomar um café quando Wallander telefonou; combinaram encontrar-se na estação central de Malmö.
– Falei ontem à noite com o responsável do pessoal da empresa que gere os restaurantes dos caminhos-de-ferro – disse Birch, e riu. Fiquei com a impressão de que o incomodei numa altura muito inadequada.
Wallander não percebeu logo o que pretendia insinuar.
– No meio de um ato de amor – casquinou Birch. – Às vezes ser policial entretém bastante, Wallander dirigiu-se para Malmö. Interrogou-se como Birch conseguia saber que incomodara o outro no meio de um ato de amor. Depois pensou na empregada de mesa que procuravam, que era a quarta mulher que surgia na investigação em curso há precisamente um mês. As outras eram Krista Haberman, Eva Runfeldt e Katarina Taxell. A empregada desconhecida era a quarta mulher. Interrogava-se sobre se haveria mais uma mulher, uma quinta mulher. Era ela quem procuravam? Ou alcançariam o objetivo ao localizar a empregada Seria ela quem fizera as visitas noturnas à maternidade de Ystad? Sem ser capaz de saber por que, tinha dúvidas acerca disso. Talvez ela os levasse mais longe? Pouco mais poderia esperar além disso.
Passou pela paisagem outonal tingida de cinzento no seu velho carro e, distraído, imaginou como seria o próximo inverno. Quando fora a última vez que vivera um natal branco? Fora há tanto tempo que já não se lembrava.
Quando chegou a Malmö, teve a sorte de encontrar um lugar de estacionamento mesmo junto a porta principal da estação. Por um curto instante sentiu-se tentado a beber um café antes de Birch chegar, mas abandonou a ideia. O tempo era demasiado escasso.
Viu Birch do outro lado do canal. Estava a passar a ponte. Provavelmente estacionara no largo. Cumprimentaram-se. Birch tinha um gorro demasiado pequeno na cabeça, barba por fazer e parecia ter dormido pouco.
– Começaram a cavar? – perguntou.
– Às sete – respondeu Wallander.
– Vão encontrá-la? – É difícil responder, mas existe essa possibilidade.
Birch anuiu com ar triste. Depois apontou para o interior da estação.
– Vamos ter com um homem que se chama Karl-Henrik Bergstrand – disse. – Em condições normais não chega ao trabalho a esta hora. Prometeu vir hoje mais cedo para nos poder receber.
– Foi este quem interrompeste no momento inadequado? – Podes ter a certeza, Entraram na seção administrativa dos Caminhos-de-Ferro Nacionais e foram recebidos por Karl-Henrik Bergstrand. Wallander observou-o com curiosidade e tentou imaginar o momento de que Birch falara. Depois chegou à conclusão de que era a sua própria vida sexual inexistente que o perturbava.
Afastou o pensamento envergonhado. Karl-Henrik Bergstrand era um homem jovem dos seus trinta anos. Wallander pressupôs que representava o novo perfil jovem dos Caminhos-de-Ferro. Cumprimentaram-se e fizeram as apresentações.
– O vosso assunto é pouco comum – comentou Bergstrand e sorriu. – Mas vamos ver se podemos ajudar.
Convidou-os a entrar no seu espaçoso gabinete. Wallander achou notável a sua autoconfiança. Aos trinta anos, fora ainda muito inseguro a respeito de quase tudo na vida.
Bergstrand sentou-se atrás da grande secretária. Wallander observou os móveis no gabinete. Talvez neles residisse a explicação para o preço dos bilhetes de comboio ser tão elevado.
– Procuramos uma empregada de uma carruagem-restaurante – começou Birch. – Não sabemos muito mais tirando de que se trata de uma mulher.
– A esmagadora maioria dos empregados nos "Serviços em Comboios" são mulheres – respondeu Bergstrand. – Provavelmente seria mais fácil encontrar um homem.
Wallander levantou a mão.
– Como se chama de fato? "Restaurantes dos Caminhos-de-Ferro" ou "Serviços em Comboios"? – Qualquer das designações serve.
Wallander satisfez-se com a resposta. Olhou para Birch.
– Não sabemos como se chama – disse. – Também não sabemos qual o aspecto dela.
Bergstrand olhou-o com ar de espanto.
– É realmente necessário encontrar alguém de quem se sabe tão pouco? – As vezes é necessário – interveio Wallander.
– Sabemos em que comboio trabalhou – disse Birch.
Deu os dados fornecidos por Annika Carliman a Bergstrand. Este abanava a cabeça.
– São dados de há três anos – observou.
– Isso sabemos nós – disse Wallander. – Mas suponho que a Companhia tem registros dos seus funcionários? – Na realidade, não sei responder a esse assunto – disse Bergstrand com ar doutoral. – Os Caminhos-de-Ferro são uma empresa dividida em muitas empresas. A área dos restaurantes é uma filial. Eles têm a sua própria administração, pelo que são eles que podem responder às vossas perguntas. Nós não. Porém, cooperamos quando necessário, evidentemente.
Wallander sentiu que estava a ficar impaciente e irritado. -Vamos esclarecer desde já a situação – interrompeu. – Não procuramos esta empregada para nos entretermos. Queremos contatá-la porque pode ter informações importantes relativas a uma complicada investigação de homicídios. Portanto, não queremos saber quem responde às nossas Perguntas, mas temos todo o empenho em obter as respostas o mais depressa possível.
As palavras tiveram o efeito desejado. Bergstrand parecia ter entendido. Birch lançou um olhar encorajador a Wallander, que prosseguiu.
– Suponho que consiga contatar a pessoa que nos pode dar resposta – disse. – Enquanto ficamos aqui a espera.
– São os homicídios na região de Ystad? – perguntou Bergstrand curioso.
– Exatamente esses. E esta empregada pode saber alguma coisa importante.
É suspeita? Não – respondeu Wallander. – Não é suspeita. Nenhuma nódoa irá cair nos comboios nem nas sanduíches.
Bergstrand levantou-se e deixou o gabinete.
– Parece um pouco convencido – comentou Birch. – Foi bom apertares com ele.
– Seria ainda melhor se viesse com uma resposta – disse Wallander. – E o mais depressa possível.
Enquanto esperavam por Bergstrand, Wallander telefonou a Hansson em Lõdinge. A resposta era negativa. Estavam a cavar em direção ao centro do primeiro quadrado, mas ainda não tinham encontrado nada.
– Infelizmente a notícia já se espalhou. Tivemos bastantes curiosos lá em cima ao pé da casa.
– Mantém-os à distância – disse Wallander. – É tudo quanto podemos fazer.
– Nyberg queria falar contigo. Era sobre aquela gravação do telefonema de Katarina Taxell à mãe.
– Conseguiram identificar as pancadas de fundo? – Se entendi bem o que Nyberg disse, o resultado foi negativo. Mas é melhor falares com ele.
– Não conseguiram adiantar mesmo nada? – Sugeriram que se tratava de alguém perto do telefone a bater no chão ou numa parede. Mas o que é que isso nos adianta? Wallander percebeu que tinha criado expectativas antes do tempo.
– Não faz sentido ser o filho recém-nascido de Katarina – prosseguiu Hansson.
– Pelos vistos precisamos da ajuda de um especialista que possa filtrar frequências ou alguma coisa do gênero. Talvez consiga averiguar se se tratou dum telefonema de longa distância, ou se era daqui da área de Lund. Mas parece que é um processo muito complicado. Nyberg disse que levaria no mínimo alguns dias.
– Temos que nos contentar com isso – respondeu Wallander. Nesse instante entrou Bergstrand. Wallander apressou-se a acabar a conversa com Hansson.
– Vai levar um bocado – anunciou. – Um dos problemas é que vocês querem uma lista dos funcionários de há três anos, um outro é que a empresa-mãe passou por várias mudanças desde então. Contudo, expliquei que era importante. "Restaurantes dos Caminhos-de-Ferro" trabalha a todo o vapor.
– Aguardamos – disse Wallander.
Bergstrand não parecia inteiramente encantado por ter os dois policiais no seu gabinete, porém não disse nada.
– Café – disse Birch. – Uma das especialidades da empresa. Também servem café fora das cafetarias dos comboios? Bergstrand desapareceu do gabinete.
– Duvido que esteja habituado a ir buscar café – disse Birch satisfeito.
Wallander não respondeu.
Bergstrand regressou com um tabuleiro. Depois desculpou-se dizendo que tinha uma reunião urgente. Ficaram no gabinete. À medida que Wallander bebia o café sentia a impaciência aumentar. Pensou em Hansson. Estava a ponderar se não devia deixar Birch sozinho à espera da identificação da empregada de mesa. Optou por esperar meia hora, mais não.
– Tenho andado a tentar inteirar-me de tudo o que aconteceu – disse Birch de súbito. – Confesso que nunca tive nenhum caso semelhante. Pode realmente ser possível que seja uma mulher por trás disto tudo? – Não podemos ignorar aquilo que já descobrimos – respondeu Wallander.
Ao mesmo tempo regressava aquela sensação que constantemente o atormentava. O receio de ter levado toda a investigação para um terreno onde só existiam armadilhas. Em qualquer altura o alçapão podia abrir-se debaixo dos seus pés.
Birch ficou silencioso.
– Assassinos em série femininos praticamente não tem havido neste país – disse a seguir.
– Se alguma vez os houve – disse Wallander. – Além do mais, não sabemos se é ela quem executou os atos. Ou as nossas pistas nos levam somente a ela, ou se se encontra alguém na sua retaguarda.
– E julgas que, em condições normais, serve café nos comboios entre Estocolmo e Malm,.
A dúvida de Birch não enganava ninguém.
– Não – respondeu Wallander. – Não acredito que sirva cafés, Ela é provavelmente apenas um elo da cadeia.
Birch deixou de fazer perguntas. Wallander olhou para o relógio e refletiu se devia telefonar novamente a Hansson. Aproximava-se a meia hora. Bergstrand ainda estava ocupado na reunião. Birch estava a ler uma brochura sobre a excelência dos Cami nhos-de– Ferro Nacionais.
Passou a meia hora. A impaciência de Wallander começava a ser penosa.
Bergstrand regressou.
– Parece que solucionamos o assunto – disse com ar animador. Mas vai levar mais um pouco.
– Quanto tempo? Wallander não ocultou a sua impaciência e irritação. Percebeu que provavelmente não tinha justificação, mas nada podia fazer contra isso.
– Talvez mais meia hora? Estão a imprimir os dados e essas coisas levam o seu tempo.
Wallander acenou com a cabeça sem comentários.
Continuaram à espera. Birch largou a brochura e fechou os olhos. Wallander foi até uma janela e olhou para a cidade. À direita vislumbrava o terminal dos jetfoiles. Pensou nas vezes em que esteve à espera de Balba nesse local. Quantas vezes até agora? Duas vezes. Tinha a sensação de terem sido mais. Sentou-se novamente e telefonou para Hansson. Ainda não tinham encontrado nada. As escavações iam levar tempo, Hansson adiantou ainda que começara a chover, Wallander pensou, abatido, na dimensão que aquele trabalho deprimente poderia vir a alcançar.
Isto é uma loucura total, pensou subitamente. Conduzi esta investigação diretamente para a ruina.
Birch começou a ressonar. Wallander olhava constantemente para o relógio.
Bergstrand regressou e Birch acordou com um sobressalto. Bergstrand trazia um papel na mão.
– Margareta Nystedt – disse. É provavelmente a pessoa que procuram. Ela estava sozinha nesse serviço exatamente nesse dia e na viagem em causa.
Wallander deu um pulo da cadeira.
– Onde está agora? – Não sei de fato. Ela foi embora, deixou de trabalhar há cerca de um ano.
– Merda – exclamou Wallander.
– Todavia, temos o endereço dela – prosseguiu Bergstrand. – Não mudou necessariamente de casa por deixar de trabalhar para a empresa. Wallander puxou o papel. Era um endereço em Malmö.
– Rua Carl Gustaf – leu Wallander. – Onde fica essa rua? – Junto ao Pildammsparken – respondeu Bergstrand.
Wallander viu que também havia um número de telefone, mas optou por não telefonar. Queria ir imediatamente a casa dela, Agradeceu a Bergstrand pela ajuda. – Pressuponho que esta informação esteja correcta? Que era ela quem estava de serviço naquele dia.
– A Companhia dos Caminhos-de-Ferro Nacionais é famosa pela sua segurança – afirmou Bergstrand. – Isso também diz respeito a organização dos nossos funcionários. Tanto na empresa-mãe como nas filiais.
Wallander não entendeu a relação. Mas não ffispunha de tempo para perguntar.
– Então vamos embora – disse a Birch.
Deixaram a estação. Birch deixou ficar o carro dele e foi no de Wallander. Demoraram menos de dez minutos a encontrar o local. Era um prédio de cinco pisos. Margareta Nystedt morava no quarto andar. Subiram de elevador. Ainda Birch não tinha saído do elevador já Wallander tocava à campainha. Aguardaram, tocou outra vez. Ninguém abriu. Praguejava por dentro. Depois, de súbito, resolveu tentar a porta ao lado. Esta abriu quase imediatamente. Um homem de idade olhou com ar severo para Wallander. Tinha a camisa desabotoada na barriga e um talão de jogo meio preenchido na mão. Wallander pensou que tinha a ver com corridas de cavalos. Mostrou a sua identificação.
– Procuramos Margareta Nystedt – anunciou.
– O que fez ela? – perguntou o homem. – É uma jovem muito simpática. O marido também.
– Necessitamos apenas de umas informações – respondeu Wallander. – Não está em casa, ninguém abre a porta. Por acaso não sabe onde a podemos encontrar? – Trabalha nos barcos – respondeu o homem. – É empregada de mesa.
Wallander olhou para Birch.
– Obrigado pela ajuda – disse Wallander. – Boa sorte com os cavalos.
dez minutos mais tarde pararam junto ao terminal dos jetfbiles.
– Acho que não podemos estacionar aqui – disse Birch.
– Quero lá saber – respondeu Wallander.
Tinha a impressão de que estava a correr e que se parasse tudo se desmoronaria.
Levou apenas uns minutos para saber que Margareta Nystedt, naquela manhã, trabalhava no "Springaren". Acabara de deixar Copenhagen e deveria entrar no cais dentro de meia hora. Wallander aproveitou esse tempo para estacionar correctamente o carro. Birch estava sentado num banco na sala das partidas a ler um jornal rasgado. O responsável pelo terminal disse-lhes que podiam esperar na sala do pessoal. Perguntou se queriam que ele contatasse o barco.
– Quanto tempo vai ela ter de intervalo? – perguntou Wallander.
– Na realidade, regressa a Copenhagen na próxima ida.
– Isso não Pode ser.
O homem era prestável e prometeu arranjar maneira de Margareta Nystedt poder ficar em terra. Wallander assegurou que ela não era suspeita de ter cometido qualquer crime.
Quando o barco atracou, Wallander dirigiu-se para o cais. Os passageiros lutavam contra o vento que soprava de frente. Wallander surpreendeu-se por ver tanta gente passar o canal num dia da semana e esperou impaciente. O último passageiro era um homem com canadianas. Logo a seguir uma mulher fardada apareceu no tombadilho.
O homem que falara antes com Wallander estava ao seu lado a apontar. Margareta Nystedt, desceu a rampa. Era loura com cabelo muito curto, e mais nova do que Wallander imaginara. Parou à sua frente e cruzou os braços sobre o peito. Tinha frio.
– Queria falar comigo? – perguntou.
– Margareta Nystedt? Sou eu.
É melhor entrarmos. Não temos que estar aqui a apanhar frio. Não tenho muito tempo.
Mais do que pensa. Não vai fazer a próxima viagem. Parou surpreendida.
– Por que não? Quem decidiu isso? – Tenho que falar com você. Mas não precisa de se preocupar.
De repente ficou com a impressão de que ela estava assustada. Por um curto instante pensou que se enganara. Que era dela que estavam à espera. Que já tinha a quinta mulher ao seu lado sem ter que se encontrar com a quarta.
Depois, com igual rapidez, percebeu que não podia ser. Margareta Nystedt era uma mulher jovem e frágil. Nunca teria sido capaz de praticar aqueles crimes. Na sua maneira de estar havia algo que lhe dizia não ser ela quem procuravam.
Chegaram às instalações do terminal onde Birch os esperava. O pessoal tinha uma sala de estar. Sentaram-se num velho sofá de plástico. A sala estava vazia. Bírch apresentou-se. Ela apertou-lhe a mão. A mão dela era frágil, como uma pata de pássaro, pensou Wallander confuso.
Observou a sua cara. Calculou que devia ter cerca de vinte e oito anos. A saia era curta e tinha pernas bonitas. A cara estava muito maquilhada, Ficou com a impressão de que escondia alguma coisa de que não gostava no rosto. Estava preocupada.
– Lamento ter que a contatar deste modo – disse Wallander. Porém, às vezes, há coisas que não podem esperar.
– Como, por exemplo, o meu barco – respondeu. – A sua voz tinha um som peculiarmente duro, que Wallander não esperava. Na realidade não sabia o que esperara.
– Não há problema. já falei com um dos seus superiores.
– O que fiz? Wallander observou-a contemplativo. Ela não fazia sequer ideia do motivo por que ele e Birch ali estavam, a respeito disso não havia dúvida.
A tampa da armadilha rangia sob os seus pés. Ela repetiu a pergunta. O que tinha feito? Wallander lançou um olhar a Birch que mirava sorrateiramente as pernas dela.
– Katarina Taxell – disse Wallander. – Conhece-a? – Sei quem é, conhecer é outra coisa.
– De que maneira se conheceram? Conviveu com ela? Ergueu-se de sobressalto do sofá preto.
– Aconteceu-lhe alguma coisa? – Não, responda às minhas perguntas! – Responda à minha! Só tenho uma. Por que me faz perguntas sobre ela? Wallander percebeu que estava a ser impaciente, andava depressa de mais. A agressividade dela era justificada.
– Não aconteceu nada a Katarina e também não é suspeita de ter cometido qualquer crime. Tão pouco você, mas precisamos de várias informações a respeito dela. É tudo o que posso dizer. Depois de responder às minhas perguntas, vou-me embora, e pode regressar ao seu trabalho.
Ela examinava-lhe o rosto. Reparou que agora começara a acreditar nele.
– Há cerca de três anos dava-se com ela. Naquela altura trabalhava como empregada de mesa nas carruagens-restaurante dos comboios. Era funcionária da empresa "Restaurantes dos Caminhos-de-Ferro".
Parecia surpreendida por ele conhecer o seu passado. Wallander ficou com a impressão de que ela estava atenta, o que por sua vez, fez com que ele próprio intensificasse a sua atenção.
Está certo? – prosseguiu.
É claro que está certo. Porque havia de negar? E conhecia Katarina Taxell? -Sim.
– Como a conheceu? – Trabalhamos juntas.
Wallander olhou-a espantado antes de prosseguir.
– Katarina Taxell não é professora? – Fez uma interrupção na profissão. Durante uma temporada trabalhou nos comboios.
Wallander olhou para Birch, que abanou a cabeça. Também ele nunca tinha ouvido falar disso.
– Quando foi? – Na Primavera de 1991. Não consigo ser mais exata do que isso.
– E trabalharam juntas? – Nem sempre, mas frequentemente.
– E ainda se davam no tempo livre? – Às vezes. Mas não éramos amigas do peito. Divertíamo-nos. Mais nada.
– Quando foi a última vez que esteve com ela? – Deixamos de nos dar quando ela deixou de trabalhar como empregada de mesa. A amizade não era mais profunda do que isso. Wallander sentiu que falava verdade. A sua vigilância também se atenuava.
– Katarina tinha algum namorado naquele tempo? – De fato, não sei – respondeu.
– Se trabalharam juntas e ainda por cima se relacionavam, devia ter tomado conhecimento disso? – Nunca falava de ninguém.
– Nunca a viu na companhia de um homem? – Nunca.
– Tinha outras amigas com quem se dava? Margareta Nystedt refletiu. Depois deu três nomes a Wallander. Os mesmos nomes que Wallander conhecia.
– Mais ninguém? – Não que eu saiba.
– Alguma vez ouviu o nome Eugen Blomberg? Pensou.
– Não foi esse que foi assassinado? – Exatamente. Lembra-se se Katarina Taxell alguma vez falou dele? Subitamente olhou-o seriamente.
– Foi ela quem o matou? Wallander aproveitou a pergunta.
– Acha que ela seria capaz de matar alguém? – Não, Katarina era muito pacífica. Wallander não sabia como continuar.
– Vocês viajavam entre Malmö e Estocolmo. Naturalmente tinham muito trabalho, mas com certeza falavam uma com a outra. Tem a certeza de que nunca mencionou outra amiga? É muito importante.
Viu que se esforçava.
– Não – disse. – Não me lembro de nada do gênero.
Wallander notou uma hesitação de segundos. Ela apercebeu-se de que ele reparou.
– Talvez, mas tenho dificuldade em recordar.
– O quê? – Deve ter sido logo antes de se despedir. Estive doente com gripe uma semana.
– O que aconteceu então? – Quando regressei, estava diferente.
Wallander escutava então com a máxima atenção. Mesmo Birch compreendeu que algo estava a acontecer.
– Como assim diferente? – Não sei como explicar. Era capaz de alternar entre tristeza e alegria. Era como se tivesse mudado.
– Tente descrever a mudança. Pode ser muito importante.
– Em condições normais quando não tínhamos nada que fazer, costumávamos estar sentadas na pequena cozinha que há nas carruagens-restaurante, conversávamos e folheávamos revistas, mas quando regressei nunca mais o fizemos.
– O que fazia então? – Afastava-se.
Wallander esperou que continuasse. Mas não disse mais nada.
– Deixava a carruagem? Não podia deixar o comboio, não é? O que dizia que ia fazer? – Não dizia nada.
– Mas deve ter-lhe perguntado? Era diferente. já não se sentava a conversar.
– Talvez tenha perguntado. Não me lembro. Mas não respondia nada. Só se afastava.
– Acontecia sempre isso? – Não, só no fim, antes de deixar de trabalhar, é que ficou diferente. Era como se se isolasse.
– Acha que encontrou alguém no comboio? Um passageiro que fazia sempre esse trajecto? Parece muito estranho.
– Não sei se encontrou alguém.
Wallander não tinha mais perguntas. Olhou para Birch, que também não tinha nada para acrescentar.
O barco estava mesmo a deixar o porto.
– Agora fica com uma pausa – disse Wallander. – Gostava que me contatasse caso se lembre de mais alguma coisa.
Apontou o seu nome e telefone num papel e deu-lho.
– Não me lembro de mais nada – disse. Levantou-se e foi embora.
– Quem encontra Katarina num comboio? – perguntou Birch. Um passageiro que constantemente faz viagens de ida e volta entre Mamõ e Estocolmo? Ainda por cima, não devem trabalhar sempre no mesmo horário. Parece totalmente irracional.
Wallander só vagamente ouviu o que Birch dissera. Ficara preso a uma reflexão que não queria perder. Não podia ser um passageiro, portanto tinha que ser outra pessoa que se encontrava no comboio pelas mesmas razões que ela. Alguém que trabalhava lá.
Wallander olhou para Birch.
– Quem trabalha num comboio? – perguntou.
– Suponho que há um maquinista.
– E mais.
– O "pica bilhetes". Um ou mais. Parece que se chamam revisores hoje em dia.
Wallander anuiu. Pensou nas conclusões de Ann-Britt Höglund. Os vestígios vagos de um padrão. Uma pessoa cujas folgas eram irregulares, mas repetidas, tal e qual como as pessoas que trabalham nos comboios, Levantou-se. Também aqui se enquadrava o horário encontrado no falso compartimento de uma gaveta.
– Acho que vamos visitar Karl-Henrik Bergstrand outra vez – disse Wallander, – Procuras mais empregadas de mesa? Wallander não respondeu. já se encontrava na saída das instalações do terminal.
Karl-Henrik Bergstrand parecia tudo menos contente quando viu Wallander e Birch. Wallander foi diretamente ao assunto, quase que o empurrando pela porta do gabinete para a sua cadeira.
– O mesmo período – disse. – Primavera 1991. Nessa altura tinham uma funcionária chamada Katarina Taxell a trabalhar para vocês ou para a empresa que vende cafés. Agora quero que arranje os nomes de todos os "pica bilhetes" ou revisores e maquinistas, que trabalharam nas mesmas viagens de Katarina Taxell. Estou particularmente interessado numa semana durante a primavera de 1991, quando Margareta Nystedt esteve com baixa. Entendeu o que disse? – Não pode estar a falar a sério – disse Karl-Henrik Bergstrand.
– É um empreendimento impossível juntar todos esses dados. Vai levar meses.
– Digamos que tem cerca de duas horas – respondeu Wallander com simpatia. – Se vier a ser necessário telefonarei ao Comandante Nacional da Polícia a pedir-lhe para falar com o Diretor Geral da Ferrovia. E apresentar-lhe queixa da lentidão de um funcionário de Malmö de nome Bergstrand.
O homem atrás da secretária entendeu. Parecia ter aceitado o desafio.
– Vamos tentar fazer o impossível – disse. – Mas vai levar várias horas.
– Se o fizer o mais depressa que puder, pode levar tanto quanto necessário – respondeu Wallander.
– Podem pernoitar num dos quartos da empresa, junto à estação das locomotivas – disse Bergstrand. – Ou no hotel Prize com o qual temos um acordo.
– Não – disse Wallander. – Quando tiver os dados que pedi, mande-os por fax para a central de Ystad.
– DeiXe-me só lembrar que não se trata de "pica bilhetes" ou revisores – disse Bergstrand. – Chamam-se revisores. Outra coisa não. Funciona como oficial superior do comboio. O nosso sistema é, de fato, baseado nas hierarquias militares.
Wallander anuiu, mas não disse nada.
Quando saíram da estação eram perto das dez e meia.
– Então julgas que é alguém que trabalhava nos Caminhos-de-Ferro Nacionais naquela altura.
– Tem que ser. Não existe nenhuma outra explicação razoável. Birch pôs o gorro na cabeça.
– O que quer dizer que só nos resta aguardar.
– Tu em Lund e eu em Ystad. O gravador tem que continuar na casa de Hedwig Taxell. Katarina pode telefonar outra vez. Separaram-se à saída da estação. Wallander sentou-se no carro e saiu da cidade. Interrogava-se se já chegara à última das caixas chinesas.
O que iria encontrar? Um vazio? Não sabia, A sua preocupação era grande.
Antes de chegar à última rotunda e ao desvio da estrada para Ystad, parou numa estação de serviço. Encheu o depósito e entrou para pagar. Quando saiu ouviu tocar o telefone, que deixara no carro. Puxou a porta do carro violentamente e agarrou no telefone.
Era Hansson.
– Onde estás? – perguntou.
– A caminho de Ystad.
– Acho melhor que venhas cá.
Wallander sentiu um baque. Por pouco não deixou cair o telefone.
– Já a encontraram?
– Acho que sim.
Wallander não disse nada.
Seguiu diretamente para Lödinge.
O vento soprava agora de norte e sua intensidade aumentara.
33
Tinham encontrado um fêmur, nada mais.
Demorou ainda várias horas até acharem outros ossos. O vento soprava em rajadas frias, um vento cortante que trespassava as roupas e intensificava o desconforto e a repugnância.
O fêmur estava em cima de uma tela de plástico. Wallander pensou que, apesar de tudo, tinha corrido depressa; mal tinham cavado mais do que 20 m. e ainda por cima apenas à superfície, quando uma pá acertou no osso.
Um médico chegou e ficou a observá-lo, enquanto tremia de frio. É evidente que só conseguia dizer que o osso pertencia a um ser humano. Wallander, porém, não precisava de mais confirmações. Na sua mente não restavam dúvidas de que se tratava de uma parte dos restos de Krista Haberman. Iriam continuar a cavar, talvez encontrassem o resto do seu esqueleto e a seguir seriam eventualmente capazes de determinar a causa da morte. Será que Holger Eriksson a estrangulara? Tê-la-ia morto a tiro? Na realidade o que teria acontecido naquela altura, havia tanto tempo? Wallander sentiu-se cansado e triste nesta prolongada tarde. Não o ajudava o fato de ficar a saber que tinha acertado. Era como se estivesse a olhar diretamente para uma história de que teria preferido não se encarregar. Contudo, durante todo este tempo, também esperava empolgado pelos dados elaborados por Karl-Henrik Bergstrand. Depois de ter gasto cerca de duas horas na lama a cavar com Hansson e outros policiais, regressou à central. Nessa altura já informara Hansson sobre o que acontecera em Lund, sobre o encontro com Margareta Nystedt e a descoberta que Katarina Taxell, durante um curto período da sua vida, trabalhara nos comboios entre Malmö e Estocolmo. Uma vez durante a viagem encontrara uma pessoa desconhecida que a afectara profundamente. O que lhe aconteceu não sabiam. Mas a pessoa desconhecida que ela encontrara tinha de alguma forma acabado por ter uma importância determinante para ela. Wallander nem sequer sabia se se tratava de um homem ou uma mulher. Só tinha a certeza de que quando, por fim, acertassem teriam também dado um grande passo em direção ao âmago da investigação, que há demasiado tempo lhes escapava.
Quando chegou à central, juntou os colaboradores que conseguiu encontrar e repetiu o que contara meia hora antes a Hansson. Agora só podiam esperar que começassem a sair faxes da máquina.
Quando estavam sentados na sala de reuniões, Hansson telefonou a dizer que também tinham encontrado uma tíbia. O ambiente à mesa era pesado. Wallander pensou que todos esperavam que o crânio aparecesse na lama.
A tarde prolongou-se. Preparava-se a primeira tempestade outonal sobre a Scania. As folhas rodopiavam no parque de estacionamento à frente da central. Ficaram sentados na sala de reuniões apesar de não terem nada que forçosamente tivesse que ser discutido em grupo. Ainda por cima, tinham todos muitas outras tarefas em cima das suas secretárias. Porém, Wallander achava que o que mais precisavam nesse momento era de reunir forças. Se conseguissem abrir uma brecha na investigação com a ajuda das informações que chegassem de Malmö, tinham que contar com muito trabalho para executar em pouco tempo. Eis a razão por que ficaram sentados ou recostados nas cadeiras à volta da mesa para relaxar. Durante a tarde Birch telefonou para dizer que Hedwig Taxell nunca ouvira falar de Margareta Nystedt. Também não entendia como se esquecera por completo que a sua filha Katarina trabalhara nos Caminhos-de-Ferro durante um período da sua vida. Birch sublinhou que achava que ela estava a dizer a verdade. Martinsson abandonava frequentemente a sala para telefonar para casa. Wallander aproveitou para falar em voz baixa com Ann-Britt Höglund, que o informou que Terese estava bastante melhor. Martinsson nunca mais falara em se demitir da polícia. Também a esse respeito teriam que aguardar, por enquanto, pensou Wallander. Investigar crimes graves significa deixar todo o resto da vida para trás.
As quatro horas da tarde Hansson telefonou a dizer que tinham encontrado um dedo médio. Logo a seguir voltou a ligar para dizer que o crânio fora descoberto. Wallander perguntou-lhe, nessa altura, se queria ser substituído. Mas ele dissera que podia muito bem ficar.
Bastava um deles apanhar uma constipação.
Um arrepio de repulsa perpassou pela sala quando Wallander informou que partia do princípio que o crânio que tinha sido encontrado era o de Krista Haberman. Com rapidez Svedberg largou a sanduíche meio comida que tinha na mão.
Wallander já tivera em tempos a mesma experiência.
Um esqueleto não representava nada enquanto não surgisse o crânio. Só nessa altura era possível vislumbrar o ser humano que uma vez estivera no local.
Neste ambiente, caraterizado por uma espera cansativa, onde os membros do grupo de investigação estavam espalhados como pequenas ilhas isoladas ao redor da mesa, surgiam volta e meia curtos diálogos. Diferentes pormenores foram levantados. Alguém colocava uma pergunta, uma resposta era dada, algo era esclarecido e a seguir reinava novamente o silêncio.
De repente Svedberg começou a falar de Svenstavik.
– Holger Eriksson deve ter sido um homem estranho. Primeiro convence uma mulher polaca a vir para cá, para a Scania. Sabe Deus o que lhe prometeu. Casamento? Riqueza? De se tornar a baronesa de um comerciante de automóveis? Depois mata-a quase de imediato. Aconteceu há quase trinta anos. Porém, quando ele próprio sente a aproximação da morte compra uma carta de indulgência, doando dinheiro à igreja de jãmtland.
– Li os poemas – disse Martinsson. – Bem, pelo menos alguns. Não se pode negar que, volta e meia, mostra uma certa sensibilidade.
– Para animais – corrigiu Ann-Britt Höglund. – Para aves, mas não em relação às pessoas.
Wallander lembrou-se do canil abandonado. Queria saber há quanto tempo estava vazio. Hamrén alcançou um telefone e conseguiu apanhar Sven Tyrén no seu camião-cisterna. Obtiveram a resposta. O último cão de Holger Eriksson fora encontrado morto na sua casota numa manhã. Acontecera umas semanas antes de o próprio Holger Eriksson cair na sepultura de estacas. Tyrén soube pela mulher que, por sua vez soube pelo distribuidor do correio. A causa da morte do cão não conhecia, mas ele era bastante velho. Wallander pensou no seu íntimo que devia ter sido alguém que matara o cão para não ser denunciado. E essa pessoa só podia ser aquela que presentemente procuravam.
Tinham, portanto, conseguido arranjar mais uma explicação. Mas continuavam a ter falta de uma interligação abrangente. Ainda nada se tinha tornado verdadeiramente claro.
As quatro e meia, Wallander telefonou a Malmö. Karl-Henrik Bergstrand veio ao telefone. Estavam a trabalhar no assunto, respondeu. Dentro em breve iriam enviar todos os nomes e outros dados exigidos por Wallander.
A sua espera continuava. Telefonou um jornalista e perguntou o que procuravam na quinta de Holger Eriksson. Wallander alegou razões técnicas relacionadas com a investigação, para não ter de revelar nada. Mas não adoptou uma atitude agressiva. Expressou-se com tanta simpatia quanto lhe era possível. Lisa Holgersson esteve presente durante grande parte da longa espera. Também foi a Lõdinge com Per Akeson. Todavia, ao contrário do seu chefe anterior, Bjõrk, não disse muitas palavras. Wallander pensou quão diferentes eles eram. Bjõrk teria aproveitado a ocasião para se queixar da última circular recebida da Direção Nacional da Polícia. De alguma maneira conseguiria relacioná-la com a investigação em curso. Lisa Holgersson era diferente. Wallander decidiu, abstraído, considerar os dois bons, cada um à sua maneira.
Hamrén estava a jogar batalha naval consigo mesmo, Svedberg procurava os últimos cabelos na careca e Ann-Britt Höglund estava sentada com os olhos fechados. De vez em quando Wallander levantava-se para dar uns passos no corredor. Sentia-se muito cansado. Refletiu sobre se o fato de Katarina Taxell ainda não ter dado sinal, teria algum significado. Será que apesar de tudo deviam anunciar o seu desaparecimento? Tinha dúvidas porque receava afugentar a mulher que a fora buscar. Ouviu o telefone tocar na sala de reuniões. Apressou-se a ir para lá mas deteve-se à porta. Svedberg atendeu, Wallander formou a palavra "Malmö" com os lábios sem emitir som. Svedberg abanou negativamente a cabeça. Era Hansson mais uma vez.
– Uma costela desta vez – disse depois Svedberg. – Talvez seja desnecessário telefonar para cá cada vez que encontram um osso. Wallander sentou-se à mesa. O telefone tocou novamente. Svedberg mais uma vez agarrou no fone. Depois de escutar por um instante estendeu-o a Wallander.
– Dentro de minutos aparece no vosso fax – disse Karl-Henrik Bergstrand. – julgo que conseguimos todos os dados que queria.
– Então fizeram um bom trabalho – respondeu Wallander. Se precisarmos de alguma explicação ou esclarecimento, contatar-vos-ei.
– Estou certo de que o fará – respondeu Karl-Henrik Bergstrand.
– Fiquei com a impressão de que não é daqueles que desistem. juntaram-se à volta do fax e após uns minutos os papeis começaram a sair. Wallander viu que eram muito mais nomes do que imaginara. Depois da transmissão parar, tiraram os papéis e fizeram cópias. De regresso à sala de reuniões estudaram os papéis em silêncio. Wallander contou trinta e dois nomes, sendo que, dos revisores, dezessete eram mulheres. Não reconheceu nenhum dos nomes. As listas dos funcionários e as diferentes combinações eram intermináveis. Procurou muito tempo antes de encontrar a semana onde o nome de Margareta Nystedt não constava. Naqueles dias em que Katarina Taxell trabalhara na cafetaria tinham estado onze revisores mulheres em serviço. Também não tinha bem a certeza se entendia todas as abreviaturas e códigos das diferentes pessoas e os seus horários de serviço.
Por um breve instante Wallander sentiu a impotência a regressar. Depois afastou-a e bateu com um lápis na mesa.
– Há aqui uma quantidade enorme de pessoas – disse. – Se não me engano, temos que nos concentrar em primeiro lugar em onze revisoras e superintendentes. Acrescentamos ainda catorze homens. Porém, quero que comecemos pelas mulheres. Algum de vocês reconhece algum nome? Inclinaram as cabeças para os papéis. Ninguém conseguia lembrar-se de algum nome ligado a outras partes da investigação. Wallander sentiu a falta da presença de Hansson. Ele era quem tinha a melhor memória. Pediu a um dos policiais de Malmö para tirar uma cópia e tratar de assegurar que chegasse às mãos de Hansson.
– Então vamos começar – disse, depois de o colega de Malmö deixar a sala. – Onze mulheres. Temos que analisar uma por uma e, com um pouco de sorte, encontraremos algures um ponto onde seja possível estabelecer uma relação com esta investigação. Vamos distribuí-las entre nós, e vamos começar já, a noite vai ser longa.
Fizeram a distribuição e deixaram a sala. O breve instante de impotência que Wallander sentira já se dissipara. Sentiu que a caça começara. O tempo de espera acabara finalmente. Muitas horas depois, já perto das onze horas, Wallander começou novamente a sentir-se desalentado. Tinham concluído que podiam riscar apenas dois nomes. Uma das mulheres morrera em consequência de um acidente de automóvel muito antes de encontrarem o corpo de Holger Eriksson na valeta. A outra calhara na lista por engano, porque naquela altura já passara para trabalho administrativo em Malmö. Foi Karl-Henrik Bergstrand quem descobriu o erro e telefonou imediatamente a Wallander.
Procuraram em vão pontos tangenciais. Ann-Britt Höglund entrou no gabinete de Wallander.
– O que faço com esta? – perguntou e abanava um papel na mão.
– O que tem? – Anneli OIsson, trinta e nove anos, casada, quatro filhos. Residente em Ãngelholm. O marido é pastor numa igreja evangélica. No passado trabalhou como empregada de mesa num hotel em Ãngelholm. Depois fez formação profissional embora não se saiba por quê. Se entendi bem, é muito religiosa, trabalha em comboios, toma conta da família e utiliza o pouco tempo livre que tem para fazer trabalhos manuais para diferentes acções missionárias. O que faço com ela? Chamá-la para interrogatório e perguntar se matou três homens durante o último mês? Se sabe por onde anda Katarina Taxell e o seu filho recém-nascido? – Põe de lado – disse Wallander. – Isso também é um passo na direção certa.
Hansson chegou de Lõdinge pelas oito horas quando a chuva e o vento tornaram impossível a continuação do trabalho. Informou-os de que precisava de ter mais pessoas para cavar. Depois integrou-se no levantamento das nove mulheres que restavam. Wallander tentou sem resultado mandá-lo para casa para, pelo menos, mudar as suas roupas molhadas. Mas Hansson não queria. Wallander desconfiou de que ele queria livrar-se da desagradável experiência de cavar na lama à procura dos restos de Krista Haberman, o mais depressa possível.
Pouco passava das onze e Wallander estava ao telefone a tentar contatar um parente de uma revisora de nome Wedin. Mudara de endereço cinco vezes no último ano. Passara por um divórcio complicado e durante esse tempo estivera com baixa a maior parte do tempo. Estava a ligar o número da central de informações quando Martinsson surgiu à porta. Wallander desligou logo. Verificou pela cara de Martinsson que tinha acontecido alguma coisa .
– Acho que a encontrei – disse devagar. – Yvonne Ander, quarenta e sete anos.
– Por que achas que é ela?
– Para começar, mora aqui em Ystad. O endereço é em Liregatan.
– O que tens mais? – Ela parece esquisita de várias maneiras. Evasiva, como toda esta investigação. Porém, tem um passado que nos devia interessar porque já foi enfermeira auxiliar e também trabalhou no serviço de ambulâncias.
Wallander olhou-o por instantes em silêncio. Depois levantou-se subitamente.
– Vai buscar os outros. Agora, imediatamente.
Uns breves minutos e estavam reunidos na sala de reuniões.
– Talvez Martinsson a tenha encontrado – disse Wallander. – E mora aqui em Ystad.
Martinsson relatou tudo o que tinha conseguido descobrir sobre Yvonne Ander.
– Tem quarenta e sete anos – começou. – Nasceu em Estocolmo. Parece que veio para a Scania há quinze anos. Nos primeiros anos morou em Malmö, mas depois mudou-se para Ystad. Trabalhou para os Caminhos-de-Ferro Nacionais durante os últimos dez anos, e antes disso, provavelmente ainda jovem, formou-se como enfermeira auxiliar e trabalhou muitos anos nos serviços de saúde. Por que, de repente, iniciou outra atividade, não sei evidentemente dizer. Também foi assistente no serviço de ambulâncias. Mais, verificamos que parece não ter trabalhado em lado nenhum por longos períodos.
– Então o que fazia nesses períodos? – perguntou Wallander.
– São grandes vazios.
É casada? Vive só. Divorciada? Não sei. Não há crianças neste quadro. Acho que nunca esteve casada. Todavia, o seu horário de serviço coincide com o de Katarina Taxell.
Martinsson terminou a leitura do seu, deixando-o em seguida cair na mesa.
– Há mais uma coisa, que foi a primeira que me fez reagir. É membro ativo na Associação de Atividades Lúdicas dos Caminhos-de-Ferro, na seção de Malmö. Há muitos que são. Mas o que me surpreendeu é que faz musculação.
O ambiente tornou-se muito sério.
– Por outras palavras, é provavelmente forte – prosseguiu Martinsson. – E não é verdade que procuramos uma mulher com grande força física? Wallander fez uma rápida avaliação da situação. Será que podia ser ela? Depois tomou uma decisão.
– Vamos pôr todos os outros nomes de lado, por enquanto – disse. – Agora vamos concentrar-nos em Yvonne Ander. Repete tudo do princípio. Devagar.
Martinsson repetiu o que acabara de dizer. Seguiram-se muitas perguntas. Faltavam ainda muitas respostas. Wallander olhou para o relógio. Um quarto para a meia-noite.
– Acho que devemos falar com ela já esta noite.
– Se não estiver a trabalhar – disse Ann-Britt Höglund. – Segundo as listas, tem o comboio da noite de vez em quando. O que parece estranho. O normal é que revisores e superintendentes trabalhem de dia ou de noite, não nos dois turnos, mas posso estar enganada.
– Bem, ou está ou não está em casa – disse Wallander.
– Qual é a conversa que vamos ter com ela? A pergunta veio de Harnrén e era justificada.
– Não considero inverosímil que Katarina Taxell lá esteja – disse Wallander. – Em caso de necessidade, podemos utilizar isso como pretexto. A preocupação da mãe. Não temos provas contra ela, não temos nada, porém, quero conseguir impressões digitais.
– Portanto, não se trata de uma abordagem policial com recursos completos – observou Svedberg.
Wallander fez sinal a Ann-Britt Höglund.
– Pensei que nós os dois podíamos visitá-la. Podemos ter um carro de apoio para o caso de acontecer alguma coisa.
– O que poderá acontecer? – perguntou Martinsson.
– Não sei.
– Não será um pouco irresponsável? – perguntou Svediberg. – Ao fim e ao cabo, suspeitamos dela por participação em homicídios graves.
– É evidente que levamos armas – respondeu Wallander.
Foram interrompidos por um homem da central de coordenação a bater à porta, que estava entreaberta.
– Chegou uma mensagem de um médico de Lund – anunciou. Fez uma apreciação preliminar dos restos do esqueleto que desenterraram. Pensa que é de uma mulher e que estão enterrados há muito tempo.
– Então ficamos a saber – disse Wallander. – Pelo menos estamos a solucionar um desaparecimento de há vinte e sete anos.
O policial deixou a sala. Wallander reatou a conversa anterior. – Não vai acontecer nada – repetiu.
– Que explicação damos se Katarina Taxell não estiver lá? É que pretendemos bater à sua porta a meio da noite.
– Vamos perguntar por Katarina – disse Wallander. – Procuramo-la, nada mais.
– E se não estiver em casa? Wallander não precisou pensar.
– Então entramos – disse. – E o carro de apoio vigia se ela está a caminho da casa. Temos os telefones ligados. Entretanto quero que vocês esperem aqui. Sei que é tarde, mas não temos outro remédio. Ninguém acrescentou nada.
Deixaram a central logo a seguir à meia-noite. Nessa altura o vento já tinha força de temporal. Wallander e Ann-Britt Höglund foram no carro dela. Martinsson e Svedberg constituíam a patrulha de apoio. Liregatan situava-se no centro da cidade. Estacionaram à distância de um quarteirão. A cidade estava deserta. Cruzaram-se com um único carro, uma das patrulhas noturnas da Polícia. Wallander refletiu sobre se as patrulhas de bicicleta prestes a serem introduzidas iriam ser capazes de sair numa tempestade como esta.
Yvonne Ander morava num prédio antigo restaurado que tinha porta diretamente para a rua. Havia três apartamentos e o dela era o do meio. Passaram para o outro lado da rua e observaram a fachada. Tirando uma janela iluminada no lado esquerdo, a casa estava às escuras.
– Ou dorme – disse Wallander – ou então não está em casa. Mas temos que partir do princípio de que está em casa.
já era meia-noite e vinte. O vento soprava forte.
– Será ela a assassina? – perguntou Ann-Britt Höglund. Wallander reparou que ela tinha frio e parecia maldisposta. Seria porque agora se encontrava no trilho de uma mulher?
– Sim – respondeu. – É claro que é ela.
Passaram para o outro lado da rua. A esquerda estava o carro, com os faróis desligados, de Martinsson e Svedberg. Ann-Britt Höglund tocou à porta. Wallander encostou o ouvido à porta e ouviu a campainha tocar lá dentro. Esperaram sob tensão. Fez-lhe sinal para tocar outra vez. Nada aconteceu. Uma terceira vez com o mesmo resultado.
– Será que dorme?
– Não – respondeu Wallander. – Não acredito que esteja em casa.
– A porta estava trancada. Deu um passo na direção do passeio e fez sinal para o carro de apoio. Martinsson aproximou-se. Ele era o melhor a abrir portas trancadas sem utilizar força física. Tinha trazido uma lanterna e um molho de chaves mestras. Wallander segurou a lanterna enquanto Martinsson trabalhava. Após cerca de dez minutos, conseguiu por fim abrir. Agarrou na lanterna e regressou ao carro. Wallander olhou à sua volta, a rua estava deserta. Ele e Ann-Britt Höglund entraram. Pararam na calmaria para ouvir. O vestíbulo parecia não ter janela. Wallander acendeu uma luz. À esquerda havia uma sala com teto baixo, à direita a cozinha. À frente uma escada estreita que conduzia ao piso de cima. O chão rangia sob os seus pés. No piso superior havia três quartos, todos vazios. Não estava ninguém no apartamento.
Tentou avaliar a situação. Era quase uma hora, poderiam contar que a mulher que vivia ali regressasse durante a noite? Havia muitos indícios que apontavam para uma resposta em contrário e na realidade nenhum que apontasse para o sim, considerando, entre outras coisas, que estaria na companhia de Katarina Taxell e de uma criança recém-nascida. Será que andava a levá-las de um lado para o outro de noite? Wallander aproximou-se duma porta de vidro num dos quartos e descobriu que havia uma varanda do lado exterior, Grandes vasos de plantas enchiam praticamente todo o espaço, mas os vasos estavam vazios, não havia plantas, apenas terra.
A imagem da varanda e dos vasos vazios provocaram-lhe uma súbita má disposição. Abandonara imediatamente o quarto. Regressaram ao vestíbulo.
– Vai buscar Martinsson – pediu. – E pede a Svedberg que regresse à central. Têm que continuar a procurar. Julgo que Yvonne Ander tem mais alguma casa além deste apartamento, provavelmente uma moradia.
– Não devemos ter vigilância na rua?
– Não regressa esta noite. Mas é claro que vamos ter um carro lá fora. Pede a Svedberg para tratar disso.
Ann-Britt Höglund estava prestes a sair quando ele a reteve. Depois olhou à sua volta. Foi à cozinha e acendeu a luz sobre o lava-loiça. Lá estavam duas xícaras sujas. Enrolou-as num pano de cozinha e entregou-lhas.
– Impressões digitais – disse. – Dá as xícaras a Svedberg, para as dar a Nyberg. Pode ser decisivo.
Subiu a escada novamente. Ouviu-a levantar o fecho da porta. Ficou parado na penumbra. Depois fez algo que o surpreendeu a si próprio. Entrou na casa de banho, agarrou numa toalha e cheirou-a. Sentiu um cheiro tênue de um perfume especial.
No entanto o cheiro também lhe fazia lembrar outra coisa qualquer. Tentou captar a imagem na memória, a imagem de um cheiro, cheirou novamente, mas não o identificou, apesar de sentir que estava muito próximo.
Reconhecia aquele cheiro de um outro lugar, de uma outra ocasião, só não descobria de onde ou quando, mas sabia que fora recentemente.
Deu um pulo quando ouviu a porta do rés-do-chão abrir. Logo a seguir Martinsson e Ann-Britt Höglund apareceram na escada.
– Agora temos que começar a procurar – disse Wallander. – Não procuramos apenas sinais que possam relacioná-la com os homicídios, também procuramos algo que aponte no sentido de realmente ter uma segunda habitação. Quero saber onde se situa.
– Por que havia de ter outra casa? – perguntou Martinsson. Falavam baixo, como se a pessoa que procuravam estivesse, apesar de tudo, nas proximidades e conseguisse ouvi-los.
– Katarina Taxell – disse Wallander. – O filho dela. Além do mais, partimos sempre do princípio que Gösta Runfeldt esteve em cativeiro durante três semanas. Tenho uma forte impressão de que não foi aqui, no centro de Ystad.
Martinsson e Ann-Britt Höglund ficaram no piso superior, Wallander desceu. Fechou os cortinados da sala e acendeu alguns candeeiros. Depois parou no meio da sala e rodou lentamente enquanto observava o espaço, achando a mobília bonita. Fumava. Observou um cinzeiro numa pequena mesa junto a um sofá de pele. Não tinha beatas, mas leves vestígios de cinza. Nas paredes estavam quadros e fotografias. Aproximou-se para observar os quadros. Havia naturezas-mortas, vasos com flores, não especialmente bem feitos. No canto direito, uma assinatura, Anna Ander –, portanto uma parente. Pensou que Ander era um nome invulgar, mas constava na história criminal sueca, sem que ele se conseguisse lembrar em que contexto. Observou uma das fotografias emolduradas, uma quinta na Scania, a fotografia fora tirada de lado e de cima. Wallander calculou que o fotógrafo teria estado num telhado ou num escadote alto. Deu uma volta à sala, tentou sentir a presença dela, interrogando-se porque era tão difícil senti-la. Tudo dava uma impressão de abandono, um abandono asseado e pedante. Não está cá com frequência, passa a maior parte do tempo noutro lugar.
Foi até a pequena secretária ao pé da parede. Na fresta junto ao cortinado vislumbrou um pequeno pátio. A janela não estava bem vedada, o vento frio penetrava na sala. Puxou a cadeira e sentou-se. Experimentou a gaveta grande. Não estava fechada à chave. Um carro passou na rua, Wallander vislumbrou as luzes dos faróis que se refletiram numa janela e desapareceram. Depois só ficou o vento. Havia maços de cartas atadas. Tirou os óculos e puxou pela primeira.
O remetente era A. Ander. Desta vez com um endereço de Espanha. Tirou a carta do envelope e leu por alto. Anna Ander era a mãe. Deduziu imediatamente. Descrevia uma viagem. Na última página escreveu que estava a caminho da Argélia. A carta estava datada de abril de 1993. Repôs a carta no topo do maço. Do piso superior rangiam as tábuas do chão. Apalpou o fundo da gaveta. Nada, passou para as outras gavetas. Até papéis podem dar uma sensação de abandono, pensou. Não encontrou nada que o alertasse. Estava demasiado vazio para ser natural. Nesse momento estava totalmente convencido de que ela morava noutro lugar. Prosseguiu com a inspeção das gavetas.
O chão de cima rangia. Eram duas e meia.
34
Dirigiu noite afora e sentiu-se muito cansada. Katarina estava muito preocupada. Fora obrigada a ouvi-la horas a fio. Frequentemente admirava-se da fraqueza dessas mulheres. Permitiam que as torturassem, maltratassem e assassinassem. Nos casos em que sobreviviam, ficavam noites seguidas a lamentar-se. Não as entendia. Agora ao passar pela noite escura pensou que na realidade as desprezava, porque não ofereciam resistência.
Era uma hora. Em condições normais estaria dormindo e trabalharia cedo no dia seguinte. Ainda por cima decidira dormir em Vollsjö. No entanto, agora atrevia-se a deixar Katarina sozinha com o filho. Convenceu-a a ficar onde estava mais uns dias, talvez uma semana. No dia seguinte, telefonariam novamente a sua mãe. Katarina telefonaria e ela ficaria ao lado. Não acreditava que Katarina revelasse algo que não devia, mas preferia estar por perto.
Passavam dez minutos da uma quando chegou a Ystad. Instintivamente pressentiu o perigo quando entrou na Liregatan.
O carro estacionado, faróis apagados. Não podia fazer inversão de marcha, tinha que continuar. Quando passou, lançou um rápido olhar na direção do carro. Havia dois homens lá dentro. Desconfiou também que havia luz no apartamento. A raiva fê-la carregar no acelerador. O carro deu um esticão. Assim que deu a volta à esquina, freou com a mesma força com que acelerara. Tinham-na encontrado. Os que vigiavam o prédio de Katarina Taxell estavam agora na casa dela. Reparou que estava atordoada, mas não era medo. Não tinha nada em casa que pudesse levá-los a Vollsjö. Nada que dissesse quem ela era, nada além do seu nome.
Ficou imóvel. O vento rondava o carro. Desligou o motor e os faróis. Tinha que regressar a Vollsjö. Agora entendia por que saíra de lá, para ver se os homens que a seguiam entravam na sua casa. Continuava a estar muito à frente deles, nunca a iriam apanhar. Continuaria a desdobrar os seus papéis até que não restasse um único nome no caderno.
Ligou o motor optando por passar à frente da casa mais uma vez.
O carro continuava lá. Freou vinte metros depois sem desligar o motor. Apesar de a distância ser grande e o ângulo difícil viu que os cortinados do seu apartamento estavam fechados. Quem estava lá acendera as luzes. Agora andavam à procura, mas não iriam encontrar nada.
Foi embora. Esforçou-se por arrancar sem dar na vista, ao contrário do que costumava fazer.
Quando regressou a Vollsjö, Katarina Taxell e o filho estavam dormindo. Nada aconteceria e tudo prosseguiria de acordo com os planos.
35
Wallander regressara ao maço de cartas quando ouviu passos rápidos na escada. Levantou-se da cadeira. Era Martinsson, logo seguido por Ann-Britt Höglund.
– Acho melhor que vejas isto – disse Martinsson. – Estava pálido e com voz trémula.
Pôs um caderno gasto com capa preta em cima da mesa. Estava aberto. Wallander inclinou-se sobre o caderno e colocou os óculos. Tinha uma lista de nomes. Na margem todos tinham um número. Franziu a testa.
– Passa uma página ou duas – disse Martinsson.
Wallander obedeceu. A lista de nomes estava repetida. Como havia setas, nomes riscados e alterações ficou com a impressão de que tinha um caderno de rascunhos à sua frente.
– Continua a folhear – disse Martinsson. Wallander percebeu que ele estava perturbado.
A lista dos nomes repetia-se mais uma vez. Desta vez as alterações e mudanças de lugar eram menos frequentes.
Então viu. O primeiro nome que reconheceu foi Gösta Runfeldt. Depois viu os outros, Holger Eriksson e Eugen Blomberg. Na parte exterior da coluna havia datas. Os dias das mortes.
Wallander levantou a cabeça e olhou para Martinsson e Ann-Britt Höglund. Os dois estavam muito pálidos.
já não havia dúvidas. Acertaram no alvo.
– Há quarenta nomes neste caderno – disse Wallander. – Será que tenciona acabar com a vida de todos? – Pelo menos sabemos quem provavelmente e o próximo – disse Ann-Britt Höglund. – Apontou. Tore Grundén. À frente do nome havia um ponto de exclamação vermelho, mas na margem direita não constava nenhuma data.
– No fim do caderno há um papel solto – acrescentou Ann-Britt Höglund.
Wallander tirou-o com cuidado. Eram apontamentos escritos com muito rigor. Wallander pensou de imediato que a caligrafia fazia lembrar a da sua ex-mulher Mona. As letras eram redondas, as linhas dirertas e regulares, sem riscos nem oscilações. Mas o que estava escrito era difícil de interpretar. O que significariam os apontamentos? Havia números, o nome Hãssleholn, uma data, algo que podia ser uma hora tirada de um horário, 7h50. A data do dia seguinte, sábado dia 22 de outubro.
– Que diabo significa? – exclamou Wallander. – Será que Tore Grundén vai apear-se às 7h50 em Hassleholm? – Talvez vá apanhar um comboio – sugeriu Ann-Britt Höglund. Wallander entendeu. Não precisava pensar.
– Telefona a Birch em Lund. Ele tem o número de telefone de uma pessoa chamada Karl-Henrik Bergstrand de Malmö. Tem que acordálo, para responder a uma pergunta. Se Yvonne Ander trabalha no comboio que pára ou parte de Hãssleholm amanhã de manhã às 7h50? Martinsson tirou o telemóvel. Wallander fitou o caderno aberto.
– Onde estará? – indagou Ann-Britt Höglund. – Neste momento? Sabemos onde provavelmente estará amanhã de manhã.
Wallander olhou para ela. Ao fundo vislumbravam-se os quadros e as fotografias. De repente sabia, devia ter percebido logo. Foi até a parede e tirou a fotografia da casa. Virou-a, Hansgarden i Vollsjö. 1965, tinha alguém escrito a tinta permanente.
– É aqui que mora, e provavelmente é aqui que se encontra neste momento.
– O que fazemos? – perguntou Ann-Britt.
– Vamos lá buscá-la – respondeu Wallander.
Martinsson falou com Birch, esperaram. A conversa foi curta.
– Vai tirar Bergstrand da cama – disse Martinsson. Wallander tinha o caderno de apontamentos na mão.
– Então vamos embora. Apanhamos os outros no caminho.
– Sabemos onde fica Hansgârden? – perguntou ela.
– Encontramos nos nossos registros de propriedade – disse Martinsson. – Leva-me no máximo dez minutos.
Estavam agora com muita pressa. Às duas e cinco encontravam-se de regresso à central. Reuniram os exaustos colegas. Martinsson procurou Hansgârden no seu computador. Levou mais tempo do que pensava. Eram perto das três horas quando encontrou. Procuraram no mapa. Hansgârden situava-se nos arredores de Vollsjö.
– Vamos armados? – perguntou Svedberg.
– Sim – respondeu Wallander. – Mas não se esqueçam de que Katarina Taxell está lá com o filho recém-nascido.
Nyberg entrou na sala de reuniões. Tinha o cabelo no ar e os olhos avermelhados.
– Numa das xícaras encontramos o que procuramos – informou. – A impressão digital coincide com a da mala e a da guimba, mas como não se trata de um polegar, não consigo dizer se é igual à que encontramos embaixo do corrimão da torre de observação. O que é estranho é que a impressão digital da torre parece ter aparecido posteriormente, como se tivesse ido lá outra vez. Se for dela, mas deve ser. Quem é ela?
– Yvonne Ander – disse Wallander. – E agora vamos buscá-la. Assim que Bergstrand nos contatar.
– Temos mesmo que esperar por ele? – perguntou Martinsson.
– Meia hora – respondeu Wallander –, mais não.
Esperaram. Martinsson deixou a sala para se certificar de que a vigilância do apartamento em Liregatan se mantinha.
Quando chegou a chamada de Bergstrand, tinham passado vinte e dois minutos.
– Yvonne Ander trabalha no trem de Malmö que vai para o norte amanhã de manhã – informou.
– Então ficamos sabendo – disse Wallander simplesmente.
36
Às quinze para as quatro deixaram Ystad. Nessa altura a tempestade alcançara sua força máxima.
Antes de sair Wallander ainda fez duas chamadas. Uma para Lisa Holgersson e outra para Per Akeson.
Nenhum deles tinha alguma objeção relativamente à intervenção. Deviam apanhá-la o mais depressa possível.
Pouco depois das cinco da manhã estavam agrupados em torno da casa de nome Hansgârden. O vento soprava forte em rajadas. Todos estavam enregelados a cercar a casa como sombras. Após curto diálogo decidiram que Wallander e Ann-Britt Höglund entrariam. Os outros permaneciam nas suas posições onde tinham contato próximo pelo menos com um dos outros colegas.
Deixaram os carros fora do alcance visual da casa e aproximaram-se a pé. Wallander viu imediatamente o Golf vermelho estacionado à frente do edifício. Durante a viagem para Vollsjö tinha estado preocupado a pensar que ela já podia ter saído, mas se o carro estava lá, então encontrava-se em casa. As luzes estavam apagadas e reinava o sossego. Não se notava qualquer movimento e Wallander também não conseguiu descobrir cães de guarda.
Tudo correu muito depressa. Cada um tomou a sua posição. Depois Wallander pediu a Ann-Britt Höglund para informar via walkie-talkie que iam esperar ainda uns minutos antes de entrar.
Esperar por quê? Ela não entendeu, Wallander também não esclareceu. Talvez fosse porque ele próprio precisava de se preparar, de concretizar uma adaptação interior que ainda não estava resolvida? Ou teria necessidade de um momento só para si onde podia tornar a analisar durante uns minutos tudo o que acontecera? Sentia muito frio e tudo lhe parecia irreal. Durante um mês tinham andado atrás de uma sombra estranha e evasiva, finalmente agora atingiam o alvo. No Ponto onde a batida iria agarrar a caça. Era como se tivesse que libertar-se do sentimento surrealista que rodeava o que acontecera, já para não falar da mulher que iam agora capturar. Para tudo isso precisava de fôlego, por isso decidiu que iriam esperar.
Estava com Ann-Britt Höglund, ambos protegidos do vento junto a um velho celeiro degradado a uma distância de cerca de vinte e cinco metros da porta da entrada. O tempo passava. Brevemente iria amanhecer, não podiam esperar mais.
Wallander tinha-lhes dito para irem armados, mas queria que tudo se processasse com calma. Por várias razões, mas principalmente porque Katarina Taxell estava lá dentro com o filho.
Nada devia correr mal. Manter a calma era o mais importante.
– Vamos embora – disse. – Informa! Ela falou baixo no walkie-talkie e recebeu várias confirmações que tinha sido ouvida. Puxou pela pistola. Wallander abanou a cabeça.
– Guarda-a no bolso, mas não te esqueças qual – disse.
Na casa, nenhuma movimentação. Aproximaram-se, à frente Wallander, Ann-Britt ao lado, ligeiramente atrás. O vento continuava forte com rajadas. Wallander olhou mais uma vez para o relógio. Passavam dezenove minutos das cinco. Yvonne Ander já devia ter-se levantado para chegar a tempo ao trabalho no primeiro comboio da manhã. Pararam à frente da porta. Wallander respirou fundo. Bateu à porta e deu um passo para trás. Tinha a mão na pistola no bolso direito do casaco. Nada aconteceu. Andou um passo para a frente e bateu outra vez, experimentando a fechadura. A porta estava trancada, bateu novamente, subitamente ficou preocupado. Bateu com o punho, sem efeito. Alguma coisa não estava certa.
– Forçamos a entrada – disse. – Informa! Quem trouxe o pé-de-cabra? Por que não somos nós que o temos? Ann-Britt Höglund colocada numa posição em que o vento lhe batia pelas costas, falou com voz firme no walkie-talkie, Wallander permaneceu atento às janelas de ambos os lados da porta. Svedberg veio a correr com o pé-de-cabra. Wallander pediu-lhe para regressar à sua posição. Depois enfiou o pé-de-cabra e começou a torcer com toda a força. A porta soltou-se da fechadura. A luz estava acesa no vestíbulo. Sem refletir, puxou pela arma. Ann-Britt seguia-o de perto. Wallander agachou-se e entrou. Ela por trás ao lado protegia-o com a sua pistola. Tudo estava calmo.
– Polícia! – exclamou Wallander. – Procuramos Yvone Ander. Nada aconteceu. Voltou a gritar. Cuidadosamente aproximou-se da divisão em frente. Ann-Britt seguia-o de perto. A irrealidade regressou. De repente entrou numa sala ampla. Com a pistola em punho varreu a sala. Estava vazia. Deixou o braço cair. Ann-Britt Höglund estava do outro lado da porta. A sala era grande, tinha candeeiros acesos. Um forno com uma forma estranha encontrava-se ao longo de uma das paredes mais largas.
Subitamente abriu uma porta do outro lado da sala. Wallander estremeceu e levantou novamente a arma, Ann-Britt Höglund baixou-se e apoiou um dos joelhos no chão. Katarina Taxell entrou pela porta. Estava em camisa de noite, parecia assustada.
Wallander baixou a arma e Ann-Britt fez o mesmo.
Nesse momento Wallander tirou a conclusão de que Yvonne Ander não estava em casa.
– O que está a acontecer? – perguntou Katarina Taxell. Wallander aproximou-se dela.
– Onde está Yvonne Ander? – Não está cá.
– Onde está? – Suponho que está a caminho do trabalho. Agora Wallander sentia a pressa a aumentar.
– Quem a veio buscar? – Leva sempre o carro.
– Mas o carro está à frente da casa.
– Tem dois carros.
Assim tão simples. Pensou Wallander. Não era só o Golf vermelho.
– Você está bem, e o seu filho? – perguntou a seguir.
– Por que não haveríamos de estar? Wallander olhou rapidamente à volta da sala. Depois pediu a Ann-Britt Höglund para chamar os outros. Tinham falta de tempo e era necessário prosseguir.
– Manda vir Nyberg – pediu. – Esta casa vai ser passada a pente fino do sótão à cave.
Os policiais enregelados juntaram-se na grande sala branca.
– Foi embora – disse Wallander. – Está a caminho de Hässleholm. Pelo menos, não há razão para se achar outra coisa. Vai trabalhar a partir de lá e nesse local também entra um passageiro que se chama Tore Grundéri. que está apontado como a próxima vítima, na sua lista de mortes.
– Vai realmente matá-lo no comboio? – indagou Martinsson, céptico.
– Não sabemos – disse Wallander. – Mas se não queremos mais homicídios, temos que a apanhar.
– Temos que avisar os colegas em Hãssleholm – lembrou Hansson.
– Fazemos isso no caminho – disse Wallander. – Pensei que Hansson e Martinsson me podiam acompanhar. Vocês vão ter que começar com esta casa. E falar com Katarína Taxell.
Fez-lhe sinal. Estava junto a uma das paredes, a luminosidade era cinzenta. Era como se ela se fundisse com a parede, se dissolvesse, se tornasse pouco nítida. Era realmente póssível uma pessoa ficar tão pálida que deixasse de ser visível? Partiram. Hansson conduzia. Martinsson ia telefonar para Hássleholm quando Wallander lhe pediu para esperar.
– É melhor tratarmos disto sozinhos – disse. – Se entrar em pânico, não sabemos o que pode acontecer. Pode ser perigosa. Agora percebo isso, perigosa também para nós.
– O que poderia ela ser senão perigosa? – perguntou Hansson admirado. Se já matou três pessoas? Enfiou estacas num? Estrangulou outro e afogou mais outro? Se uma pessoa assim não é perigosa, então não sei.
– Nem sequer sabemos qual o aspecto de Grundéri – disse Martinsson. – Vamos chamá-lo pelo altifalante na estação? Quanto a ela, pelo menos deve estar de farda.
– Talvez – respondeu Wallander. – Vamos ver quando lá chegarmos. Coloca a luz de emergência. Temos pressa.
Hansson guiou depressa. O tempo era escasso. Quando faltavam vinte minutos, Wallander sabia que, porém, chegariam a tempo.
Foi então que tiveram um furo. Hansson soltou um palavrão e travou. Quando se aperceberam que a roda esquerda de trás teria que ser substituída, Martinsson queria novamente telefonar aos colegas de Hãssleholm, pelo menos para lhes pedir um carro, mas Wallander não deixou. Tomou a decisão de que chegariam a tempo de qualquer maneira. Trocaram a roda o mais depressa possível, enquanto o vento trespassava e puxava as suas roupas. Depois meteram-se novamente a caminho e agora Hansson guiava extremamente depressa, o tempo esgotava-se e Wallander tentava elaborar uma estratégia. Tinha dificuldade em imaginar que Yvonne Ander tirasse a vida de Tore Grundén à frente dos olhos de passageiros a espera ou a entrar em diferentes comboios. Não correspondia ao procedimento anterior dela. Chegou à conclusão de que teriam que se esquecer de Tore Grundéri por enquanto e era ela quem tinham de procurar, uma mulher fardada, Tentariam capturá-la o mais discretamente possível.
Chegaram a Hãssleholm. Hansson começou nervosamente por se enganar no caminho apesar de ter afirmado que o conhecia. Nessa altura até Wallander ficou irritado e quando chegaram à estação por pouco não estavam a gritar um com o outro. Saltaram do carro com a luz de emergência ligada. Três homens, pensou Wallander. Nos seus melhores anos, que pareciam estar a caminho de roubar a caixa da estação ou então apanhar um comboio prestes a partir. O relógio indicava que lhes restavam exatamente três minutos, 7h47. Os alto-falantes anunciaram o trem, porém Wallander não conseguiu perceber se estava a chegar ou já lá estava. Avisou Martinsson e Hansson para se acalmarem. Teriam de ir para a plataforma, separados mas mantendo o contato visual. Quando finalmente a encontrassem, Juntar-se-iam à sua volta e pedir-lhe-iam para os acompanhar. Wallander desconfiou que iria ser o momento crítico. Não podia ter a certeza de como reagiria, estariam preparados, não com armas mas com os braços. Sublinhou esse pormenor várias vezes. Yvone Ander não utilizava armas. Estariam preparados mas teriam que conseguir apanhá-la sem disparar tiros.
Depois avançaram. O vento continuava forte e com rajadas, o comboio ainda não chegara à estação. Os passageiros procuravam proteger-se como podiam. Havia uma quantidade considerável de passageiros a viajar para o norte neste sábado de manhã. Dirigiram-se à plataforma, Wallander à frente, Hansson logo a seguir e Martinsson mais perto da linha. Wallander descobriu imediatamente um revisor que estava a fumar um cigarro. Sentiu que a tensão o fazia suar. Não conseguiu ver Yvone Ander, nem alguma mulher fardada. Rapidamente procurou com o olhar um homem que pudesse ser Tore Grundéri, mas evidentemente era impossível identificá-lo. O homem não tinha rosto, era apenas um nome marcado num caderno macabro. Trocou olhares com Hansson e Martinsson. Depois olhou na direção da estação para ver se ela estava a caminho por esse lado. O comboio estava a entrar na estação. Percebeu que algo estava a correr mal. Continuava a recusar-se a acreditar que ela tivesse intenção de matar Tore Grundéri na plataforma, porém não podia ter a certeza absoluta. Demasiadas vezes tinha lidado com pessoas calculistas que subitamente perdiam o controle e começavam a atuar impulsivamente contrariando os seus hábitos. Com a aproximação do comboio, os passageiros começaram a pegar nas suas malas. O revisor deitou fora o cigarro. Wallander apercebeu-se de que não tinha outra alternativa, tinha que falar com ele. Perguntar se Yvonne Ander já estava no comboio, ou se tinha havido alterações no esquema de trabalho. O comboio parou. Wallander teve que forçar a passagem entre os passageiros, que tinham pressa de fugir do vento e entrar. Subitamente Wallander viu um homem sozinho mais afastado na plataforma. Estava prestes a pegar na mala e aproximava-se dele uma mulher, vestida com um casaco comprido que o vento fazia esvoaçar. Do outro lado chegava um comboio. Wallander não chegou a ter a certeza se na realidade se apercebeu do quadro mas, apesar disso, reagiu como se tudo fosse óbvio. Empurrou os passageiros que estavam no seu caminho. Algures atrás dele Hansson e Martinsson seguiam-no, sem saberem para onde iam. Wallander viu como a mulher de repente agarrara o homem por trás. Parecia ter muita força e quase o levantou do chão. Foi mais um impulso do que uma percepção que fez Wallander sentir que ela pretendia atirá-lo contra o comboio na outra linha e, como não tinha tempo para lá chegar, gritou. Apesar do barulho da locomotiva, ela devia tê-lo ouvido. Um curto instante de hesitação foi o suficiente. Ela olhou para Wallander. Ao mesmo tempo surgiram Martinsson e Hansson ao seu lado. Correram para a mulher que nesse momento já largara o homem. O vento abrira-lhe o casaco comprido e Wallander conseguiu ver que por baixo vestia uma farda. De súbito levantou a mão e fez algo que, por instantes, fez Hansson e Martinsson deterem-se. Arrancou a peruca, que apanhada pelo vento desapareceu ao longo da plataforma. Por baixo da peruca tinha cabelo curto. Começaram a correr novamente. Parecia que Tore Grundén ainda não percebera o que estivera prestes a acontecer.
– Yvonne Ander! – exclamou Wallander. – Polícia.
37
Nessa altura Martinsson chegou ao lado dela. Wallander viu como ele estendeu o braço para segurá-las. A seguir foi tudo muito rápido. Ela esticou o punho direito com força e determinação acertando um murro na bochecha esquerda de Martinsson, que caiu sem barulho na plataforma. Atrás de Wallander alguém deu um grito, um passageiro tinha apercebido do que se estava a passar. Hansson parou quando viu o que aconteceu a Martinsson, fez um gesto para puxar pela pistola, mas já era tarde. Ela agarrara no casaco de Hansson e acertou-lhe com os joelhos e muita força entre as pernas. Por um curto instante inclinou-se por cima dele. Depois desatou a correr ao longo da plataforma, despiu o casaco comprido e atirou-o. O casaco esvoaçou e desapareceu com uma rajada de vento. Wallander parou junto a Martinsson e Hansson para ver como estavam. Martinsson estava inconsciente, Hansson gemia e estava branco como a cal da parede. Quando Wallander levantou a cabeça, ela desaparecera. Começou a correr ao longo da plataforma. Vislumbrou-a quando ela se dirigia para lá dos carris. Chegou à conclusão de que não a apanharia. Além disso não sabia como Martinsson na realidade estava. Regressou e notou que Tore Grundén desaparecera. Vários funcionários dos caminhos-de-ferro vieram a correr. Ninguém entendia naquela confusão o que realmente se tinha passado.
Mais tarde Wallander recordaria a hora seguinte como um caos que parecia não ter fim, Tinha tentado executar muitas coisas ao mesmo tempo, mas ninguém entendia as suas ordens. Ainda por cima, andavam passageiros à sua volta o tempo todo. No meio da incrível confusão, Hansson estava a começar a recuperar. Porém, Martinsson continuava inconsciente, Wallander praguejava por a ambulância levar tanto tempo a chegar e foi só quando alguns policiais de Hãssleholm, desorientados, surgiram na plataforma, que ao menos minimamente, conseguiu uma visão geral da situação. Martinsson tinha levado um valente murro, mas a sua respiração era regular. Quando os assistentes da ambulância o levaram, Hansson estava novamente de pé e acompanhou-o ao hospital. Wallander explicou aos policiais que queriam capturar uma revisora da Ferrovia, que no entanto conseguira escapar. Nesse momento Wallander também reparou que o trem partira. Interrogou-se se Tore Grundén teria embarcado. Teria entendido de todo como estivera Perto da morte? Wallander reparou que na realidade ninguém entendia do que falava, apenas a sua identificação e autoridade de polícia fez com que, apesar de tudo, aceitassem que não se tratava dum louco.
A única coisa que lhe interessava, para além da condição de Martinsson, era saber onde Yvonne Ander se metera. Durante os tumultuosos minutos na plataforma, telefonou a Ann-Britt Höglund para lhe contar o que acontecera. Ela prometeu assegurar uma patrulha no local, caso aparecesse em Vollsjon, Também o apartamento em Ystad foi imediatamente posto sob vigilância. Porém, Wallander duvidava, não acreditava que ela se dirigisse para lá. Agora não só sabia que estava sendo vigiada e a seguiam, como também não desistiriam até a captura. Para onde poderia ter fugido? Uma fuga sem planos? Não podia ignorar essa possibilidade, ao mesmo tempo havia algo que lhe dizia que essa alternativa não era provável. Ela fazia sempre planos, era uma pessoa que procurava saídas refletidas. Wallander telefonou novamente a Ann-Britt Höglund. Pediu-lhe para falar com Katarina Taxell para fazer uma única pergunta. Se Yvonne Ander tinha mais algum esconderijo. As outras questões podiam esperar.
– Acho que tem sempre uma saída de reserva – disse Wallander.
– Pode ter mencionado um endereço ou um local sem que Katarina Taxell o tenha interpretado como um esconderijo.
– Talvez opte pelo apartamento de Katarina Taxell em Lund? Wallander concluiu que podia ser.
– Telefona a Birch – disse. – Pede-lhe para se encarregar disso.
– Tem as chaves da casa dela – disse Ann-Britt Höglund –, informou-nos Katarina.
Wallander foi levado ao hospital num carro da Polícia. Hansson estava deitado numa maca, agoniado, com os testículos inchados e iria ficar em observação. Martinsson continuava inconsciente. Um médico falou num grave traumatismo craniano.
– O homem que lhe bateu era muito forte – disse o médico.
– Sim – respondeu Wallander. – Tirando o fato de que o homem era uma mulher.
Deixou o hospital. Para onde poderia ela ter ido? Algo atormentava o subconsciente de Wallander, alguma coisa que podia dar a resposta de onde ela se encontrava ou pelo menos para onde estava a deslocar-se.
Depois lembrou-se do que era. Ficou parado à frente do hospital. Nyberg tinha sido muito esclarecedor quanto a isso. "A impressão digital da torre parece ter aparecido lá posteriormente." A possibilidade existia embora não sendo grande. Yvonne Ander podia ser uma pessoa que se assemelhasse a ele próprio. Em situações de pressão podia procurar refúgio num local de onde tinha uma visão ampla, onde seria capaz de tomar uma decisão. Todas as suas acções davam a impressão de obedecer a um planejamento pormenorizado e a horários rigorosos. Agora a sua existência desmoronava-se à sua volta.
No entanto, decidiu que apesar de tudo valia a tentativa.
O local estava evidentemente isolado com cordões de segurança, mas Hansson tinha dito que o trabalho só se reiniciaria quando tivessem o reforço exigido. Wallander também pressupôs que a vigilância fosse feita por patrulhas-automóvel. Podia chegar ao local pelo caminho anteriormente utilizado.
Wallander despediu-se dos policiais que o ajudaram. Continuavam a não entender muito bem o que acontecera na estação, porém Wallander prometeu que iriam ser informados durante o dia. Fora apenas uma captura de rotina que lhes tinha escapado. Todavia, não acontecera nada de grave na realidade. Os policiais que tiveram que ficar no hospital estariam brevemente recuperados.
Wallander sentou-se no carro e telefonou pela terceira vez a Ann-Britt Höglund. Não esclareceu do que se tratava, apenas que queria que ela fosse ter com ele junto ao desvio para a quinta de Holger Eriksson.
Já passava das dez horas quando Wallander chegou a Udinge. Ann-Britt Höglund estava à espera ao lado do carro. No último trajecto foram no carro de Wallander até a quinta. Parou a cem metros da casa. Até esse momento não esclarecera nada. Ela olhou para ele admirada.
– Posso muito bem estar enganado – disse. – Mas talvez haja uma possibilidade de que regresse aqui. À torre. já cá esteve antes. Relembrou-lhe o que Nyberg dissera sobre as impressões digitais.
– O que podia Yvone Ander fazer aqui? – perguntou.
– Não sei, mas é perseguida. Precisa de tomar decisões e, ainda para mais, esteve cá anteriormente.
Saíram do carro. O vento empurrava-os.
– Encontramos um uniforme de enfermagem – disse Ann-Britt Höglund. – E mais um saco de plástico com cuecas de homem. Provavelmente podemos partir do princípio de que foi em Vollsi, que Gösta Runfeldt esteve em cativeiro.
Foram até a casa.
– O que fazemos se ela estiver lá em cima na torre? – Capturamo-la. Dou a volta à elevação pelo outro lado. Se vier, é lá que deixa o carro. Depois desces pelo caminho. Desta vez levamos as armas prontas.
– Duvido que venha – disse Ann-Britt Höglund.
Wallander não respondeu. Sabia que a hipótese de ela ter razão era grande.
Colocaram-se num local abrigado dentro do pátio. Os cordões de segurança junto à valeta onde andavam a procura dos restos de Krista Haberman tinham sido rasgados pelo vento forte. A torre estava abandonada. Delineava-se com nitidez na luz outonal.
– Esperamos um bocado – sugeriu Wallander. – Se vier, provavelmente será em breve.
– Foi lançado o alarme de alerta na zona – disse ela.
– Caso não a encontremos, em breve será perseguida por todo o país.
– Ficaram silenciosos por momentos. O vento puxava-lhes a roupa.
– O que a motiva? – perguntou.
– Provavelmente só ela pode responder – disse Wallander. – Mas não se pode partir do princípio de que ela própria tenha sido maltratada? Ann-Britt Höglund não respondeu.
– Acho que é uma pessoa muito só – adiantou Wallander. – E encontrou o sentido da sua vida na missão de matar pelos outros.
– Em tempos pensávamos que andávamos atrás de um mercenário – disse. – E agora estamos à espera que uma revisora dos Caminhos-de-Ferro apareça numa torre de observação abandonada.
– A parte do mercenário talvez não tenha sido tão despropositada – disse Wallander pensatívamente. – Tirando o fato de ser uma mulher e não levar dinheiro, tanto quanto sabemos. Apesar disso, há alguma coisa aqui que faz lembrar o nosso ponto de partida errado.
– Katarina Taxell disse que a conhecera através de um grupo de mulheres que costumam encontrar-se em Vollsjö. No entanto, o primeiro encontro fora num comboio. Nesse ponto estavas certo. Pelos vistos fez perguntas a respeito de uma nódoa negra que Katarina Taxell tinha na testa. Ela descobríu os seus subterfúgios. Tinha sido Eugen Blomberg que a maltratara. Não cheguei a perceber bem como tinha acontecido, mas confirmou que Yvonne Ander trabalhara anteriormente em hospitais e ainda por cima como assistente de transporte em ambulâncias. Nesse posto viu muitas mulheres maltratadas. A seguir contatava-as e convidava-as a irem a Vollsjö. Talvez se possa dizer que se tratava de um grupo de crise extremamente informal. Investigava quem eram os homens que maltratavam aquelas mulheres. E depois aconteceu alguma coisa. Katarina também confessou que era óbvio que fora Yvonne Ander que a visitara no hospital. Na última visita deu-lhe o nome do pai da criança, Eugen. Blomberg.
– E com isso assinou a sentença de morte dele – conclui Wallander. – Penso ainda que andou muito tempo a preparar-se para isto. Aconteceu alguma coisa que desencadeou tudo isto, mas o que foi nem tu nem eu sabemos.
– Será que ela própria o sabe? – Partimos do princípio de que sabe. Caso não seja completamente louca.
Continuavam à espera, o vento ia e vinha em rajadas fortes. Um carro da Polícia aproximou-se do acesso a quinta. Wallander pediu-lhes para não entrarem. Não deu qualquer explicação mas foi muito firme.
Continuaram à espera. Nenhum deles tinha nada para dizer.
Era um quarto para as onze. Wallander pôs a sua mão devagar no ombro da colega.
– Lá está ela – disse em voz baixa.
Viu uma pessoa surgir na elevação. Não podia ser outra senão Yvonne Ander. Ficou parada olhando à sua volta. Depois começou a subir à torre.
– Demoro vinte minutos a dar a volta – disse Wallander. – Nessa altura começas a andar. Estou no lado de trás caso ela tente fugir.
– O que acontece se me atacar? Então vou ter que disparar.
– Vou impedir que isso aconteça. Estou lá.
Correu para o carro e foi o mais depressa possível para o caminho que conduzia à parte de trás da elevação. No entanto, não se atreveu a ir até ao fim. Ficou sem fôlego por causa da corrida. Levara mais tempo do que esperava. Havia um carro estacionado no caminho. Também um Golf, mas preto. O telefone tocou no bolso de Wallander. Parou. Podia ser Ann-Britt Höglund, atendeu e continuou a andar ao mesmo tempo ao longo do caminho.
Era Svedberg.
– Onde estás? Que diabo está a acontecer? – Neste momento não posso entrar em pormenores, mas estamos na quinta de Holger Eriksson. Seria bom se tu e mais alguém pudessem cá vir, por exemplo Hamrén. Não posso falar mais agora.
– Telefonei porque tinha um recado – disse Svedberg. – Hansson ligou de Hãssleholm, tanto ele como Martinsson estão melhores. De qualquer maneira Martinsson voltou a si. Hansson queria saber se tomaste conta da pistola dele. – Wallander parou imediatamente.
– A pistola dele? – Disse que tinha desaparecido.
– Não a tenho.
– Não deve ter ficado na plataforma? No mesmo instante Wallander viu a sequência claramente à sua frente. Agarrara no casaco de Hansson e deu-lhe com os joelhos e muita força entre as pernas. Depois inclinou-se por cima dele. Foi nessa altura que lhe tirou a pistola.
– Merda! – exclamou Wallander.
Antes de Svedberg ter tempo para responder, interrompeu a chamada e meteu o telefone no bolso. Estava a pôr em perigo a vida de Ann-Britt Höglund. A mulher lá em cima na torre estava armada.
Wallander correu. O seu coração batia como um martelo no peito. Viu no relógio que ela já devia estar a caminho ao longo do caminho. Parou e ligou o seu número de telemóvel. Não conseguiu contato. Provavelmente deixara o telefone no carro.
Começou a correr novamente. A sua única possibilidade era chegar primeiro. Ann-Britt Höglund não sabia que Yvone Ander estava armada.
O medo obrigou-o a correr ainda mais depressa. Chegou ao lado de trás da elevação. já devia agora estar perto da valeta. Anda devagar, pensou. Cai, escorrega, ou alguma coisa . Não te apresses, anda devagar. Puxou pela arma, rastejou e tropeçou pela elevação acima da parte de trás da torre. Quando chegou ao cimo, viu que Ann-Britt jà chegara à valeta. Tinha a arma na mão. A mulher lá em cima na torre ainda não o descobrira. Gritou a avisar que ela estava armada, e que Ann-Britt Höglund tinha que se afastar dali.
Ao mesmo tempo apontou a pistola para a mulher que estava de costas viradas para si no cimo da torre.
Nesse mesmo instante soou um tiro. Wallander viu como Ann-Britt Höglund estremeceu e caiu de costas na lama. Era como se alguém lhe tivesse passado uma espada pelo próprio corpo. Fitou o corpo imóvel na lama e pressentiu que a mulher na torre subitamente se virara. Depois atirou-se para o lado e começou a atirar na direção da torre. Ao terceiro tiro acertou. Ela estremeceu e ao mesmo tempo deixou cair a arma de Hansson. Wallander correu para o outro lado da torre, para a lama. Escorregou para dentro da valeta e subiu do outro lado, e foi então que viu Ann-Britt Höglund de costas na lama. Pensou que estava morta, que fora abatida com a arma de Hansson e tudo por culpa dele.
Por segundos não viu outra saída senão atirar em si mesmo, ali mesmo, a uns metros dela.
Depois reparou que ela se mexeu ligeiramente. Caiu de joelhos ao seu lado. Toda a frente do seu casaco estava cheia de sangue. Estava muito pálida e fitou-o com olhos de medo.
– Vai correr tudo bem – disse –, vai correr tudo bem.
– Estava armada – murmurou. – Porque não sabíamos? Wallander sentiu as lágrimas correr. Depois telefonou e chamou uma ambulância.
Mais tarde lembrar-se-ia que tinha rezado uma oração ininterrupta e confusa a um Deus em quem na realidade não acreditava. Como que envolto por uma neblina apercebera-se de que Svedberg e Hamrén tinham chegado. Logo a seguir Ann-Britt Höglund foi levada numa maca. Wallander estava sentado na lama. Não conseguiram fazê-lo levantar-se. Um fotógrafo, que tinha vindo com a ambulância de Ystad, tirou uma fotografia de Wallander onde estava sentado, sujo, abandonado e desesperado. O fotógrafo conseguiu captar a imagem antes de Svedberg, furioso, correr com ele. Por pressão de Lisa Holgersson a fotografia não chegou a ser publicada.
Entretanto Svedberg e Hamrén tiraram Yvone Ander da torre. Wallander acertara-lhe numa perna. Sangrava muito mas não estava em perigo de vida. Também foi levada de ambulância. Finalmente Svedberg e Hamrén conseguiram tirar Wallander da lama e arrastá-lo para a quinta. Nessa altura chegou o primeiro relato do hospital de Ystad.
Ann-Britt fora atingida no estômago. A ferida era grave e encontrava-se em estado crítico.
Wallander apanhou boleia de Svedberg para ir buscar o seu carro. Svedberg hesitou muito se havia de deixar Wallander conduzir sozinho para Ystad. Contudo, Wallander assegurou-lhe que não havia perigo. Foi diretamente para o hospital onde ficou sentado no corredor à espera de informações a respeito do estado de Ann-Britt Höglund. Ainda não tinha tido tempo para se lavar. Só quando os médicos ao fim de muitas horas acharam que podiam garantir que o seu estado estabilizara, Wallander deixou o hospital.
Subitamente, simplesmente desapareceu. Ninguém reparou que já lá não estava. Svedberg começou a preocupar-se, mas achava que conhecia Wallander o suficiente para saber que neste momento só queria estar sozinho.
Wallander deixou o hospital pouco antes da meia-noite. O vento continuava em rajadas e era de esperar uma noite fria. Sentou-se no carro e foi ao cemitério onde o pai estava enterrado. Procurou a sepultura na escuridão e ficou parado junto dela sentindo-se completamente vazio; ainda não tinha tirado a lama do corpo. Pela uma hora chegou a casa, fez uma chamada e teve uma longa conversa com Balba, de Riga. Só a seguir tirou a roupa e se enfiou na banheira.
Depois vestiu-se e foi ao hospital. Foi nessa altura, logo a seguir às três da madrugada que foi ver Yvonne Ander, que se encontrava sob vigilância rigorosa. Estava a dormir quando entrou cuidadosamente no quarto. Ficou a olhar-lhe a cara durante muito tempo. Depois saiu de lá sem dizer uma única palavra.
Porém, passado uma hora voltou. Ao amanhecer Lisa Holgersson chegou ao hospital e disse que tinha conseguido contatar o marido de Ann-Britt Höglund que estava no Dubai. Chegaria a Kastrup mais tarde durante o dia.
Ninguém sabia se Wallander registava o que lhe diziam. Estava sentado imóvel numa cadeira, ou então em pé junto a uma janela com um olhar vazio dirigido para o vento forte lá fora. Quando uma enfermeira lhe quis dar um café, desatou subitamente a chorar e fechou-se numa casa de banho. Mas a maior parte do tempo esteve imóvel numa cadeira a olhar para as mãos.
Mais ou menos na mesma altura em que o marido de Ann-Britt Höglund aterrou no aeroporto de Kastrup, um médico já podia dar a notícia que todos esperavam. Iria sobreviver. Provavelmente também não ficaria com sequelas no futuro, contudo a convalescença iria ser longa.
Wallander levantou-se para ouvir o médico, como se tivesse recebido uma condenação. A seguir deixou o hospital e desapareceu algures no vento.
Na segunda feira, 24 de outubro, Yvonne Ander foi acusada de homicídio. Continuava no hospital. Até aquela altura não tinha dito uma única palavra, nem sequer ao advogado que lhe fora atribuído. Wallander tentara interrogá-la à tarde. Ela fitara-o sem responder, no entanto, às perguntas, Quando ia a sair do quarto virou-se e disse-lhe que Ann-Britt estava a recuperar. Naquela altura pensou ter vislumbrado uma reação, um alívio, até eventualmente alegria.
Martinsson teve baixa por traumatismo craniano. Hansson regressou ao serviço, apesar de ter dificuldade durante várias semanas tanto em andar como estar sentado.
Todavia e acima de tudo, dedicaram-se à tarefa exaustiva de entender o que na realidade acontecera. A única coisa que nunca conseguiram encontrar foi uma prova definitiva se o esqueleto que desenterraram por completo, com a misteriosa excepção de uma tíbia nunca encontrada, nos terrenos de Holger Eriksson, se tratava realmente ou não dos restos mortais de Krista Haberman. Nada apontava para o contrário, mas não foi possível confirmar.
Uma fratura no crânio também deu a indicação como Holger Eriksson a teria morto havia mais de vinte e cinco anos. Todavia, tudo o resto se foi esclarecendo, embora lentamente e com interrogações que não foi possível esclarecer de todo. Gösta Runfeldt assassinara a mulher? Ou teria sido um acidente? A única que poderia responder era Yvorme Ander que continuava a não dizer nada. Fizeram uma análise da sua vida e chegaram a uma história que apenas parcialmente desvendava quem era e a razão por que teria agido como atuou. Uma tarde, quando estavam numa demorada reunião, Wallander finalizou-a subitamente ao dizer uma coisa na qual parecia ter andado muito tempo a pensar.
– Yvonne Ander é a primeira pessoa que conheci que tanto era sensata como louca ao mesmo tempo.
Não explicou o significado, mas também ninguém tinha dúvidas de que realmente se tratava da expressão da sua muito determinada opinião.
Wallander também visitava Ann-Britt Höglund todos os dias no hospital durante este período. Não conseguia livrar-se da culpa que sentia. O que os outros diziam não surtia qualquer efeito. Considerava que a responsabilidade do acontecido era dele e ponto final. Tinha que viver com isso.
Yvone Ander mantinha-se silenciosa. Uma noite, tarde, Wallander estava sozinho no seu gabinete a ler novamente a enorme coleção de cartas que ela trocara com a mãe.
No dia seguinte visitou-a na prisão. Foi o dia em que ela começou a falar. Era 3 de novembro de 1994.
Nessa precisa manhã havia geada na paisagem de Ystad.
SCANIA
4-5 de dezembro de 1994
EPÍLOGO
Na tarde do dia 4 de dezembro Kurt Wallander falou com Yvonne Ander pela última vez. Que essa iria ser a última vez, no entanto, não podia saber embora não tivessem acordado qualquer reencontro.
No dia 4 de dezembro alcançaram um ponto final provisório, já não havia nada a acrescentar, nada a perguntar, nada a responder. E foi apenas nessa altura que a longa e complicada investigação começou a dissipar-se da sua consciência. Apesar de ter passado mais de um mês desde que a capturaram, a investigação continuara a dominar a vida dele. Nunca antes durante os seus muitos anos como investigador criminal tinha sentido uma necessidade tão grande de realmente compreender. Acções criminosas constituíam sempre apenas uma superfície, superfície frequentemente entrelaçada com as suas próprias raízes. A superfície e o fundo tinham uma relação direta. Porém, às vezes, quando finalmente se conseguia penetrar essa superfície do crime, abriam-se fossos que antes não se conseguiam imaginar. Foi o que aconteceu no caso de Yvonne Ander. Wallander rompera uma superfície e percebeu imediatamente que tinha perante si um fosso. Nessa altura decidira-se por atar uma corda simbólica à cintura e começar a descida sem saber aonde iria ser levado, nem para ela nem para ele.
O primeiro passo foi conseguir que ela quebrasse o silêncio e começasse a falar. Conseguiu depois de ter lido pela segunda vez as cartas que durante toda a sua vida adulta tinha trocado com a mãe e a seguir guardado cuidadosamente. Nessa altura Wallander percebeu intuitivamente que era nesse ponto que podia começar a quebrar a sua inacessibilidade. E tinha razão. Foi no dia 3 de novembro, mais de um mês depois, quando Wallander continuava deprimido por causa de Ann-Britt Höglund ter sido atingida. já sabia que iria sobreviver, recuperar a saúde e também não ficar com qualquer sequela à excepção de uma cicatriz do lado esquerdo da barriga. Contudo, a culpa pesava-lhe tanto que ameaçava sufocá-lo e foi Linda quem lhe deu o maior apoio durante essa temporada. veio a Ystad, apesar de na realidade não ter tempo, e acabou por tomar conta dele. Todavia, também o pressionou, obrigando-o a admitir que a culpa de fato não fora dele, mas sim das circunstâncias. Conseguiu aguentar e passar aquelas primeiras horríveis semanas de novembro graças à sua ajuda. Paralelamente ao esforço de se manter de pé, dedicara todo o tempo a Yvone Ander. Fora ela quem disparara, fora ela quem podia ter morto Ann-Britt Höglund se o acaso assim tivesse desejado. Porém, foi apenas no princípio que teve ataques de agressividade e vontade de lhe bater. Depois tornou-se mais importante tentar entender quem na realidade ela era. Também foi ele quem por fim conseguira penetrar o silêncio, quem conseguiu fazê-la falar. Atou a corda à sua volta e começou a descida. O que encontrou lá em baixo? Durante muito tempo tinha dúvidas se, apesar de tudo, não se trataria duma louca, se tudo o que dissera de si mesma eram sonhos perturbados, era imaginação doentiamente deformada? Durante esse período também não confiava na sua própria avaliação, mal conseguia ocultar sua desconfiança nela. Contudo, sentia permanentemente que de fato ela não fazia outra coisa senão dizer como as coisas eram. Ela falava a verdade.
Em certa altura, em meados de novembro, a perspectiva de Wallander começou a dar uma reviravolta total. Quando regressou ao ponto de partida era como se tivesse novos olhos. Já não tinha dúvida de que ela falava a verdade. Até acabou por concluir que Yvonne Ander era algo tão invulgar como pessoa, com efeito, em circunstância alguma mentia.
Tinha lido as cartas da mãe dela. Entre as últimas que abrira encontrara uma estranha carta de uma policial argelina chamada Françoise Bertrand. De início não conseguiu entender todo o conteúdo da carta. Estava num grupo de cartas inacabadas da mãe, cartas que nunca haviam sido enviadas e todas escritas na Argélia, no ano anterior. Françoise Bertrand escrevera a carta a Yvonne Ander em agosto de 1993. Demorou várias horas, numa noite de meditação, para chegar a uma resposta. Depois entendeu. A mãe de Yvone Ander, que se chamava Anna Ander, fora assassinada por engano, num acaso sem sentido, e a polícia argelina tinha ocultado tudo. Aparentemente havia um motivo político, uma ação de terror, mas Wallander não foi capaz de entender do que se tratava. No entanto, Françoise Bertrand tinha escrito e contado com confiança absoluta o que na realidade acontecera. Sem até essa altura ter recebido qualquer ajuda de Yvonne Ander, levantou a questão com Lisa Holgersson sobre o que acontecera à mãe dela. Lisa Holgersson escutou e a seguir contatou os serviços criminais nacionais. Nessa altura esse assunto desapareceu temporariamente do horizonte de Wallander. Ele próprio leu todas as cartas mais uma vez.
Wallander visitava Yvone Ander na prisão preventiva. Lentamente ela entendera que ele não a perseguia. Era diferente dos outros, os homens que povoavam o mundo, ele mergulhava no seu próprio ser, ele parecia dormir pouco e ainda por cima era castigado pela preocupação. Pela primeira vez na vida, Yvone Ander descobriu que realmente podia confiar num homem. Também lhe disse isso num dos seus últimos encontros.
Ela nunca perguntou diretamente, mas acreditava que sabia a resposta. Provavelmente ele nunca batera numa mulher. E, caso o tivesse feito, teria sido uma única vez. Nunca mais.
Foi no dia 3 de novembro que a descida começou. O mesmo dia em que Ann-Britt Höglund foi operada na última das três cirurgias a que teve de se submeter. Tudo correu bem e a convalescença definitiva podia começar. Wallander introduziu uma rotina durante esse mês de novembro. Após as conversas com Yvonne Ander ia diretamente ao hospital. Raramente ficava por muito tempo, mas contava sobre Yvonne. Ann-Britt Höglund tornou-se a parceira de diálogo que precisava para entender como continuaria a penetrar no fosso que já começara a vislumbrar.
A primeira pergunta a Yvone Ander tratou do que havia acontecido na Argélia. Quem era Françoise Bertrand? O que acontecera realmente? Uma tênue luz entrava pela janela no espaço onde se encontravam. Estavam sentados a uma mesa frente a frente. À distância ouvia-se um rádio e alguém que perfurava uma parede. Não chegou a captar as primeiras frases dela. Tinha sido como que um barulho violento quando finalmente o silêncio se quebrou. Só teve a percepção da sua voz, a voz que até então nunca ouvira, apenas tinha imaginado.
Depois começou a escutar o que ela dizia. Raramente tomava apontamentos durante os encontros e também não tinha nenhum gravador ligado.
– Um homem matou minha mãe. Quem o procura?
– Eu não – respondeu. – Mas se contar o que aconteceu, e se um cidadão sueco for assassinado no estrangeiro, evidentemente temos que reagir.
Não falou da conversa que tinha tido com Lisa Holgersson uns dias antes. Sobre a morte da mãe já estar sendo investigada.
– Ninguém sabe quem matou minha mãe – prosseguiu. – Foi o mero acaso que a escolheu como vítima. Os que a mataram não a conheciam. Eles se sentiam absolvidos, consideravam que podiam matar quem quisessem. Mesmo uma mulher inocente que utilizava o seu tempo de velhice para fazer todas aquelas viagens que nunca antes tivera tempo e dinheiro para fazer.
Ele compreendeu sua amarga revolta, mas ela não fazia qualquer esforço para tentar contê-la.
– Por que ficou com as freiras? – perguntou.
Subitamente levantou a cabeça e olhou-o diretamente nos olhos.
– Afinal quem lhe deu o direito de ler as minhas cartas?
– Ninguém. Porém, são suas. São de uma pessoa que cometeu vários homicídios graves. Se não tivesse sido esse o caso, evidentemente não as teria lido.
Desviou o olhar novamente.
– As freiras – repetiu Wallander. – Por que estava com elas?
– Não tinha muito dinheiro. Ficava onde era barato. Não podia imaginar que isso a levaria à morte.
– Aconteceu há mais de um ano. Como reagiu quando a carta chegou?
– Já não havia motivo para esperar mais. Como justificaria não fazer nada? Quando mais ninguém parecia se preocupar.
– Preocupar-se com quê?
Não respondeu. Ele aguardou e depois reformulou a pergunta. – Esperar o quê?
Respondeu sem olhar para ele. – Matá-los.
– Quem?
– Os que estavam livres apesar de tudo o que tinham feito.
Foi nessa altura que percebeu que as suas reflexões tinham caminhado na direção certa. Foi quando recebera a carta de Françoise Bertrand que uma força até então contida se soltara dentro dela. Tinha pensado em vingança, porém até então conseguira controlar-se. Depois as inibições se soltaram e começou a fazer justiça com as próprias mãos.
Mais tarde Wallander pensou que realmente não havia grande diferença no que acontecera em Lõdinge. Ela foi sua própria milícia popular. Colocou-se fora de tudo e aplicou sua própria justiça.
– Foi assim? – perguntou. – Queria fazer justiça? Queria castigar os que indevidamente nunca foram levados perante a justiça?
– Quem procura o homem que matou a minha mãe? – retorquiu. – Quem?
A seguir mergulhou novamente no silêncio. Wallander pensou em como tudo começara. Uns meses depois da chegada da carta da Argélia assaltou a casa de Holger Eriksson. Foi o primeiro passo. Quando perguntou diretamente se foi assim, não pareceu minimamente surpreendida. Estava convencida de que ele sabia.
– Ouvi falar de Krista Haberman – disse. – Que aquele comerciante de automóveis a matara.
– Por quem?
– Uma polonesa hospitalizada em Malmö. foi há muitos anos.
– Trabalhava no hospital naquela altura?
– Trabalhei lá em várias fases. Falava frequentemente com mulheres maltratadas. Ela tivera uma amiga que tinha conhecido Krista Haberman.
– Por que entrou em casa de Holger Eriksson?
– Queria provar a mim mesma que era possível. Além do mais, procurei sinais de que Krista Haberman lá tivesse estado.
– Por que preparou a sepultura? Por que as estacas? Por que as tábuas serradas? A mulher que conheceu Krista Haberman suspeitava que o corpo estivesse enterrado naquela valeta?
Não respondeu, contudo Wallander entendeu. Apesar da investigação ter sido difícil de esquematizar, Wallander e os colegas estiveram permanentemente nas pistas certas sem o saberem com clareza. Yvonne Ander tinha, de fato, caraterizado a brutalidade dos homens na maneira como lhes tirava a vida.
Durante os cinco ou seis primeiros encontros que Wallander teve com Yvonne Ander, fez um levantamento metódico dos três homicídios, esclareceu pormenores difusos e juntou as imagens e relações que anteriormente pareciam vagas. Continuou a encontrar-se com ela sem gravador. Depois dos encontros ficava sentado no carro e fazia anotações de memória. Estas eram depois passadas a limpo. Uma cópia era entregue a Per Akeson, que estava a preparar uma acusação que não poderia conduzir a outra coisa que não fosse uma condenação por triplo homicídio. Porém, Wallander sabia que estava apenas a raspar a superfície. A verdadeira descida mal tinha começado. A camada superior, formada pelas provas, levá-la-ia à prisão. Mas a verdade que realmente procurava iria encontrá-la mais tarde ao chegar bem ao fundo do fosso. Se é que alguma vez a encontraria.
Evidentemente, ela tinha que se sujeitar a um exame de psiquiatria criminal. Wallander sabia que era inevitável, mas insistiu para que fosse adiado. Neste momento era mais importante falar com ela em paz e sossego. Ninguém se opôs. Wallander tinha um argumento que ninguém podia ignorar. Todos compreenderam que provavelmente regressaria ao silêncio se a perturbassem.
Era com ele e mais ninguém que admitia falar.
Avançaram, devagar, passo a passo, dia a dia. Fora do local de detenção, o outono adensava-se transformando-se gradualmente em inverno. Wallander não conseguiu esclarecer por que motivo Holger Eriksson tinha ido buscar Krista Haberman a Svenstavik e depois quase imediatamente a ter morto. Provavelmente ela tinha-se recusado a algo que ele costumava exigir. Talvez uma discussão tivesse acabado em violência.
Depois passaram para Gösta Runfeldt. Ela estava convencida de que Gösta Runfeldt matara a mulher, a tinha afogado no lago Stângsjõn. E mesmo se não o tivesse feito, merecia o seu destino. Tinha-a sujeitado a maus tratos com tanta gravidade que na realidade ela não desejava outra coisa senão morrer. Ann-Britt Höglund tinha razão quando achava que Gösta Runfeldt fora atacado dentro da loja. Ela tinha descoberto que iria viajar para Nairobi e convenceu-o a ir à loja com a desculpa de que precisava de comprar flores para uma recepção cedo no dia seguinte. Depois derrubou-o, o sangue no chão tinha realmente sido dele. A janela partida foi uma manobra de diversão para levar a polícia a pensar que se tratava de um assalto.
Depois seguiu-se uma descrição que constituiu para Wallander o momento mais hediondo. Até aàquela altura tentara compreendê-la sem permitir que as reacções de ordem emocional o dominassem. Mas a partir daí não conseguiu. Contou, completamente serena, como despira Gösta Runfeldt, o acorrentara e forçara a entrar para dentro do velho forno. Depois, quando ele já não conseguia controlar as necessidades, tirou-lhe a roupa interior e colocou-o em cima de uma tela de plástico.
Mais tarde levou-o para a floresta, nessa altura estava completamente exausto, atou-o a uma árvore e a seguir estrangulou-o. Foi só naquela altura, nesse instante, que ela se transformou em selvagem aos olhos de Wallander. Ser homem ou mulher era indiferente. Tornara-se um monstro, e ele estava contente por ter conseguido pará-la antes de ter tempo para matar Tore Grundéri ou outro dos nomes da macabra lista que elaborara.
Também foi o único erro que cometeu. Não ter queimado o caderno onde fizera os seus rascunhos antes de passar os nomes para o caderno principal. Aquele que não tinha em Ystad, mas que guardava em Vollsjö. Wallander não chegou a perguntar-lhe, mas ela confessou esse erro. Era o único dos seus atos que ela não conseguia entender.
Wallander refletiu posteriormente se significava que realmente queria que houvesse uma pista, que bem no fundo tivera o desejo de ser descoberta e impedida de continuar.
Contudo, vacilava. Às vezes pensava que era assim, outras não. Nunca chegou a ter uma ideia clara relativamente a este ponto. Sobre Eugen Blomberg não tinha muito para contar. Descreveu como misturava pedaços de papel onde só um tinha uma cruz. Depois era o acaso que decidia quem era escolhido. Exatamente do mesmo modo como o acaso matara a sua mãe.
Foi uma das poucas vezes em que ele interrompeu o relato. Em condições normais deixava-a falar livremente, encorajava-a somente com perguntas quando ela própria não encontrava nenhuma continuação. Mas nessa altura interrompeu-a.
– Portanto fez a mesma coisa que aqueles que mataram a sua mãe – disse. – Deixou que o acaso escolhesse as suas vítimas. Foi o acaso que reinou.
– Não se pode comparar – respondera. – Todos os nomes que eu tinha mereciam o seu destino. Com os meus pedaços de papel apenas lhes dei tempo, prolonguei-lhes a vida.
Ele não avançou mais porque chegou à conclusão de que, de algum modo obscuro, ela tinha razão. Contrariado, pensou que ela tinha a sua própria verdade, dificilmente questionável.
Também pensou, quando leu os relatos baseados nos seus apontamentos feitos de memória, que o que tinham entre mãos era certamente uma confissão. Contudo, também era uma história que ainda estava extremamente incompleta. A história que podia explicar o verdadeiro significado da confissão.
Alguma vez iria alcançar os seus objetivos? A partir daí Wallander foi sempre muito reservado quando falava de Yvonne Ander. Reportava-se aos apontamentos tirados de memória. Mas nesses não constava sempre tudo evidentemente. A secretária que os passava a limpo queixava-se aos colegas de que frequentemente eram de leitura extremamente difícil.
Porém, o que sobressaía, o que acabou por ser o testamento de Yvonne Ander, era a história de um destino de uma vida com experiências horríveis na infância. Wallander pensou várias vezes que o tempo em que ele vivia, o tempo que praticamente partilhava com Yvone Ander, tratava de uma questão determinante: O que fazemos na realidade com os nossos filhos? Ela contara de como a sua mãe tinha sido constantemente maltratada pelo padrasto que veio substituir o seu pai biológico, que por sua vez apenas desapareceu e empalideceu na sua memória como uma fotografia pouco nítida e sem alma. Mas o pior tinha sido obrigar a mãe a fazer um aborto. Nunca chegou a conhecer a irmã que a mãe carregara. Ela não podia saber se na realidade era uma irmã, talvez fosse um irmão, mas para ela era uma irmã, que fora morta de maneira brutal, contra a vontade da mãe, no seu apartamento, numa noite no princípio dos anos 50. Lembrava-se daquela noite como um inferno sangrento e quando contou sobre isso a Wallander, levantou o olhar da mesa e fixou-o nos olhos. A mãe estivera deitada num lençol na mesa da cozinha, o médico que efectuou o aborto estava embriagado, o padrasto fechado na cave, provavelmente embriagado também, e ali foi privada da sua irmã e para sempre passara a olhar o futuro como uma escuridão, homens ameaçadores esperavam em todas as esquinas, a violência ocultava-se sorrateiramente por detrás de cada sorriso simpático, de cada fôlego.
Depois barricou as suas memórias num espaço secreto. Formou-se, tornou-se enfermeira e sempre carregou a ideia pouco clara de que era sua obrigação vingar a irmã que nunca chegara a ter, e a mãe a quem não fora dada a oportunidade de dar à luz. Coleccionara histórias de mulheres maltratadas, procurara mulheres mortas em campos lamacentos e em lagos de Sinaland, desenhara os seus padrões, introduzira nomes num caderno, brincara com pedaços de papel.
E por fim a sua mãe fora assassinada.
Quase o descreveu poeticamente a Wallander. Como uma onda serena de um rio, dissera. Era só isso. Concluí que o tempo chegara, depois passou um ano. Planeei, completei o calendário que me fez sobreviver todos estes anos. Depois cavava uma sepultura de noite.
Depois cavava uma sepultura de noite. Exatamente essas palavras. Depois cavava uma sepultura de noite. Talvez fossem essas as palavras que melhor resumiam as experiências de Wallander com Yvonne Ander, sob prisão preventiva naquele outono.
Pensou que era um reflexo do tempo em que vivia. Que sepultura andava ele próprio a cavar? Uma única questão não teve resposta. Por que é que subitamente, nos meados dos anos 80, frequentou um curso para mudar de profissão para revisora. Wallander entendeu que ela vivia de acordo com um ritual que seguia um horário, uma rotina precisa. Porém, não viu realmente nenhum motivo para avançar mais nesse ponto. Os comboios ficaram para o seu próprio mundo. Talvez o único e o último.
Será que se sentia culpada? Per Akeson perguntara-lhe isso muitas vezes, Lisa Holgersson menos vezes, os colegas quase nunca. A única, além de Akeson que insistia em saber era Ann-Britt Höglund. Wallander disse a verdade, que não sabia.
– Yvonne Ander é uma pessoa que faz lembrar uma mola retraída – respondeu a Ann-Britt Höglund. – Não consigo expressar-me melhor. Se sente ou não culpa, não sei.
No dia 4 de dezembro acabou. Wallander não tinha mais perguntas, Yvone Ander não tinha mais para contar. O documento da confissão estava pronto. Wallander chegara ao fim da longa descida. Agora podia puxar a corda invisível que tinha à volta da cintura e regressar a superfície. A investigação psiquiátrica iria ser iniciada, o advogado que farejava a publicidade que o caso contra Yvonne Ander ia receber começou a afiar o seu lápis; apenas Wallander calculava qual seria o desfecho.
Yvone Ander iria começar a fechar-se no silêncio. Com a vontade determinada que apenas quem não tem nada para dizer pode ter.
Antes de partir falou-lhe em duas coisas para as quais ainda não tinha resposta. Uma dizia respeito a um pormenor que ja não tinha qualquer importância, era mais uma curiosidade.
– Quando Katarina Taxell telefonou à mãe da casa de Vollsjö, ouvia-se um barulho como pancadas – disse. – Nunca entendemos de onde vinha o som.
Olhou para ele sem compreender. Depois a sua cara séria abriu num sorriso que foi o único que Wallander viu durante todas as conversas que teve com ela.
– Um agricultor tinha o trator avariado no campo ao lado. Estava a bater com um grande martelo para conseguir soltar alguma coisa no fundo do trator. Conseguiu-se realmente ouvir aquilo ao telefone? Wallander acenou com a cabeça.
já estava a pensar no último comentário.
– Na realidade, julgo que nós já nos vimos uma vez – disse. Num comboio.
Ela anuiu.
– Ao sul de Älmhult? Perguntei-lhe quando iríamos chegar a Malmö.
– Reconheci-o. Dos jornais do verão passado.
– Percebeu já naquela altura que a iríamos capturar? – Por que havia de pensar isso? -Um policial que entra num comboio em Älmhult. O que faz naquele lugar? Senão for a seguir as pistas daquilo que uma vez aconteceu à mulher de Gösta Runfeldt? Abanou a cabeça.
– Nunca pensei nisso – respondeu. – Porém, devia tê-lo feito. Wallander não tinha mais perguntas para fazer, já sabia o que queria. Levantou-se, murmurou uma despedida e saiu de lá.
À tarde, Wallander visitou o hospital como habitualmente. Quando chegou, Ann-Britt Höglund estava na sala de observações após a última operação e ainda não acordara. Porém, Wallander obteve a confirmação que ansiava, dum médico simpático. Tudo correra bem. Dentro de meio ano poderia regressar ao trabalho.
Wallander deixou o hospital logo depois das cinco. já era noite, deviam estar um ou dois graus negativos, sem vento. Foi até ao cemitério visitar a sepultura do pai. Flores murchas estavam presas ao chão no gelo. Ainda não passara três meses desde que tinham deixado Roma.
A viagem aproximou-o dele, ali junto a sepultura. Interrogou-se sobre o que o pai, com um brilho nos olhos, na realidade, pensara ao fazer o passeio solitário noturno até a Escada de Espanha, aos fontanários.
Era como se Yvone Ander e o seu pai pudessem estar cada um do seu lado dum rio a acenar um ao outro. Apesar de não terem nada a ver um com o outro, ou teriam? Wallander interrogou-se sobre o que ele próprio tinha em comum com Yvonne Ander. Evidentemente, não tinha qualquer resposta.
Aquela noite, junto a sepultura no cemitério escuro, acabou também a investigação. Ainda iria haver papéis para ler e assinar. Mas já não havia nada para investigar. O caso estava completo, terminado.
O exame da psiquiatria criminal considerá-la-ia totalmente consciente em pleno uso das facultades mentais, no caso de conseguirem que falasse. A seguir iria ser condenada e recolhida na prisão de Hinseberg. A investigação do que acontecera quando a sua mãe morrera na Argélia também iria continuar. Mas não dizia respeito ao trabalho dele.
Na noite de 5 de dezembro dormiu muito mal. No dia seguinte decidiu-se a ver uma casa ao norte da cidade. Ainda foi visitar um criador de cães em Sjõbo que tinha uns cachorros labradores pretos à venda. No dia 7 de dezembro iria a Estocolmo para no dia seguinte fazer uma palestra sobre a sua visão do trabalho de polícia na Escola Superior da Polícia. Por que subitamente tinha cedido quando Lisa Holgersson pediu novamente, não sabia. E agora que estava acordado na cama se perguntando que diabo diria não entendia como conseguira convencê-lo.
Porém, pensava fundamentalmente em Balba naquela noite irrequieta de 5 de dezembro. Levantou-se várias vezes e pôs-se junto à janela da cozinha a fitar a lanterna exterior a baloiçar.
Assim que voltara de Roma, nos fins de setembro, decidiram que ela viria, ainda por cima rapidamente, o mais tardar em Novembro. Nessa altura iriam tomar uma atitude séria quanto a mudar de Riga para a Suécia. Mas um imprevisto surgiu e não podia vir, a viagem foi adiada, primeiro uma vez e depois uma segunda. Encontrava sempre razões, inclusivamente razões excelentes para não vir, ainda não. Wallander acreditava nela, evidentemente. Porém, surgiu também uma incerteza. Será que já existia antes, invisível entre eles? Uma brecha que não tinha notado? Se era esse o caso, por que não tinha notado? Por que não queria notar? Em todo o caso, agora, finalmente, viria. Iriam encontrar-se no dia 8 de dezembro em Estocolmo. Iria diretamente ao seu encontro da Escola Superior da Polícia para o aeroporto de Arlanda. Aí encontrariam Linda à noite e no dia seguinte viajariam para Scania. Ele não sabia por quanto tempo ela podia ficar. Todavia, desta vez iriam falar seriamente sobre o futuro, não apenas sobre o próximo encontro.
A noite de 5 de dezembro tornou-se uma longa e extensa noite de vigília. O tempo estava novamente mais ameno. Porem, os meteorologistas previam neve. Wallander caminhava como uma alma perdida entre a cama e a janela da cozinha. Volta e meia Sentava-Se à janela, fazia alguns apontamentos numa tentativa fútil de encontrar um começo da palestra que iria dar em Estocolmo. Em simultâneo pensava ininterruptamente em Yvone Ander e nas suas revelações. Ela estava muito perto dele, na sua consciência, permanentemente, e até ofuscava os Pensamentos sobre Balba.
No entanto, pensava muito pouco no pai. Já estava longe. Wallander descobriu que às vezes tinha dificuldade em fazer reaparecer os pormenores da sua cara rugosa. Nessas alturas tinha que recorrer a uma fotografia para que a imagem não desaparecesse de todo da memória. Durante Novembro fora visitar Gertrud à noite algumas vezes. A casa em Lõderup estava muito vazia. O atellê, frio e pouco convidativo. Gertrud dava sempre a impressão de estar calma. Mas só. Parecia que se tinha conformado com o fato de se tratar de um homem idoso que morrera e que ainda por cima tivera uma morte que era preferível a um lento desvanecer numa doença que gradualmente esvaziava a consciência.
Talvez tivesse dormido umas horas de madrugada. Talvez tivesse estado sempre acordado. De qualquer maneira, às sete já estava vestido. Às sete e meia levou o seu carro, que andava suspeitosamente aos soluços, para a central. Esta manhã estava tudo muito calmo. Martinsson estava constipado, Svedberg encontrava-se, contrariado, de serviço em Malmö. O corredor estava vazio. Sentou-se no gabinete e leu o relato dos apontamentos tirados de memória da última conversa que teve com Yvonne Ander. Também havia na sua mesa um relato de um interrogatório que Hansson tivera com o homem, Tore Grundéri, que ela decidira empurrar à frente do comboio na estação de Hãssleholm. Do seu passado constavam os mesmos ingredientes dos outros nomes naquele macabro caderno da morte. Tore Grundéri, que era bancário, até já tinha sido condenado por maus tratos a uma mulher. Quando Wallander leu os papéis de Hansson, reparou que este enfatizara muito o fato de ter estado muito perto de ser desfeito Pelo comboio que se aproximava.
Wallander reparou que havia uma compreensão taciturna entre os colegas pelos atos de Yvone Ander. Um fato que o sufpreendeu era que essa compreensão existisse de todo. Apesar de ter dado um tiro em Ann-Britt Höglund, apesar de ter atacado e morto homens. Ele tinha uma certa dificuldade em entender por quê. Em condições normais um grupo de policiais não era fã incondicional de uma mulher como Yvone Ander. Até era caso para colocar a questão se O corpo policial teria uma atitude simpática para com as mulheres em geral. A não ser que tivessem o poder de resistência que Ann-Britt Höglund e Lisa Holgersson possuíam.
Pôs a sua assinatura nos papéis e afastou-os. já eram nove e um quarto.
A casa que iria ver estava situada logo ao norte da cidade. No dia anterior tinha ido buscar as chaves à imobiliária. Era uma casa de pedra com dois pisos que se erguia no meio de um grande e velho jardim. A casa tinha muitos ângulos e anexos. Do piso superior tinha vista para o mar. Abriu a porta e entrou. O anterior dono tinha levado os móveis. As divisões estavam vazias. Deu voltas pela casa serena, abriu as portas para o terraço e jardim e tentou imaginar que já lá morava.
Para grande surpresa sua, foi mais fácil do que pensava. Pelos vistos não estava tão preso à casa na Mariagatan como receava. Também se interrogou sobre se Balba iria gostar de morar ali. Ela, falara da sua vontade de deixar Riga, ir para o campo, mas não para demasiado longe, não para um sítio demasiado isolado.
Não demorou muito tempo naquela manhã a decidir-se. Compraria a casa se Balba se mostrasse interessada. O preço também lhe permitia aguentar os necessários empréstimos.
Passava das dez horas quando deixou a casa. Foi diretamente para a imobiliária e prometeu dar uma resposta definitiva dentro de uma semana.
Depois de ter visto a casa, continuou a viagem para, ver um cão.
O canil situava-se ao longo do caminho para Hõõr, imidiatamente a seguir de Sjöbo. Quando entrou na área, ouviu cães que ladravam de várias casotas. A proprietária era uma jovem mulher que, para sua surpresa, falava o dialeto caraterístico de Gotemburgo.
– Gostava de ver labradores pretos – disse Wallander. Mostrou-lhos. Os cachorros ainda eram pequenos e estavam com a mãe.
– Tem filhos? – perguntou ela.
– Infelizmente nenhum que ainda more em casa. É obrigatório para comprar um cachorro? – De maneira nenhuma, mas não há cães que se dêem melhor com crianças do que estes.
Wallander disse a verdade. Que talvez viesse a comprar uma casa nos arredores de Ystad. Caso se concretizasse, também podia ter um cão, uma coisa estava ligada a outra, porém a casa era a condição principal.
– Leve o tempo que precisar – respondeu. – Reservo-lhe um cachorro. Leve o seu tempo, mas não infinitamente pois tenho sempre compradores para os labradores. Há sempre um dia que tenho que os vender.
Wallander prometeu, como na imobiliária, de a informar dentro de uma semana. Ficou chocado com o preço, poderia realmente um cachorro custar tanto? Mas não disse nada porque já sabia que iria comprar o cachorro caso fizesse o negócio da casa.
Deixou o canil ao meio-dia. Ao chegar à via principal subitamente reparou não saber para onde ia. Se é que estava a caminho de algum lado. Não ia ter com Yvone Ander. De momento não tinham nada para dizer um ao outro. Iriam encontrar-se novamente, mas agora não.
O ponto final provisório era válido por enquanto. Talvez Per Akeson lhe pedisse para completar pormenores, embora duvidasse. A acusação estava mais do que fundamentada.
A verdade é que não tinha aonde ir. Precisamente nesse dia, 5 de dezembro, não havia ninguém que seriamente precisasse dele.
Sem saber bem por que, acabou por ir a Vollsjö. Parou à frente de Hansgârden. O que iria acontecer com Hansegården era incerto. Yvorme Ander era proprietária e provavelmente continuaria a sê-lo durante os anos que iria passar na prisão. Não tinha parentes próximos, apenas a sua irmã e a sua mãe mortas. A questão era se sequer tinha amigos.
Katarina Taxell estivera dependente dela, recebera o seu apoio assim como as outras mulheres. Mas amigos? A contemplação dessa ideia deixou-o arrepiado. Yvone Ander não tinha uma única pessoa que realmente lhe fosse próxima. Ela surgia do vazio e matava pessoas.
Wallander saiu do carro. A casa respirava abandono. Ao dar uma volta por fora reparou que uma janela estava entreaberta. Não era recomendável, facilmente podia haver um furto. A casa de Yvonne Ander podia facilmente ser objeto de assalto de caçadores de trofeus. Wallander foi buscar um banco de madeira e pô-lo por baixo da janela. Depois entrou e olhou à sua volta. Nada dava a entender que se tratasse de um assalto, por enquanto. A janela fora deixada aberta por descuido. Deu uma volta à casa. Olhou para o forno com relutância. Aqui havia um limite invisível. Além desse limite, nunca a iria entender.
Pensou novamente que a investigação estava finalizada. Tinham posto um ponto final na lista macabra, tinham interpretado a linguagem da assassina e, por fim, encontraram o caminho certo.
Foi por isso que se sentiu supérfluo. já não precisavam dele. Depois de regressar de Estocolmo iria novamente agarrar-se à investigação dos carros que eram contrabandeados para os antigos países de Leste.
Só naquela altura se voltaria, verdadeiramente, para si próprio.
O telefone interrompeu o silêncio. Somente ao segundo sinal percebeu que tocava no bolso do seu casaco. Atendeu, era Per Akeson.
– Incomodo? – perguntou. – Onde estás? Wallander não queria revelar onde estava.
– Estou no carro – disse –, mas estou estacionado.
– Suponho que não sabes – adiantou Per Akeson. – Não vai haver julgamento.
Wallander não percebeu, nem sequer lhe ocorreu a hipótese, apesar de ser tão óbvia. Devia estar preparado.
– Yvonne Ander se suicidou – acrescentou Per Akeson. – À noite; de manhã a encontraram morta.
Wallander suspendeu a respiração. Continuava a haver algo que o contrariava, que se recusava a revelar-se.
– Parece que teve acesso a comprimidos. O que não devia ter acontecido. Pelo menos não tantos que desse para pôr termo à vida. Pessoas muito mal intencionadas vão naturalmente se interrogar se foste tu que os deste.
Wallander percebeu que não se tratava de nenhuma pergunta encoberta. Todavia, respondeu.
– Não a ajudei.
– Tudo deu uma impressão de paz, pelo visto. Tudo estava em ordem. Parece que se decidiu e o fez. Adormeceu para sempre. Consegue-se entendê-la.
– Consegue-se? – perguntou Wallander.
– Deixou uma carta para ti. Tenho-a aqui à minha frente na mesa.
Wallander anuiu silenciosamente ao telefone.
– Vou aí – disse. – Estou aí dentro de meia hora.
Ficou parado com o telefone silencioso na mão. Tentou perceber o que na realidade sentia. Um vazio, talvez um tênue traço de injustiça. Outra coisa? Não conseguiu vislumbrar qualquer clareza.
Certificou-se de que a janela ficava bem fechada e deixou seguidamente a casa pela porta, que estava no trinco.
Esse dia de dezembro estava límpido. O inverno já estava escondido nas proximidades.
Foi a Ystad buscar a carta.
Per Akeson não estava, mas a secretária estava a par. Wallander entrou no gabinete, a carta estava na mesa.
Levou a carta e foi ao porto. Andou até o edifício vermelho da Proteção Marítima e sentou-se no banco.
A carta era muito curta.
Em algum lugar na Argélia há um homem desconhecido que matou minha mãe. Quem o procura?
Era tudo. Tinha uma caligrafia bonita. Quem o procura? Assinara a carta com o nome completo. No canto superior direito escrevera data e hora.
5 de dezembro de 1994. 2h44.
O penúltimo registro de horário, pensou.
O último não é ela quem escreve. É o médico que registra o que ele acha corresponder à hora da morte. Depois não há mais nada.
Um calendário selado, a vida terminada.
A despedida foi formulada como uma pergunta ou como uma acusação. Ou ambas as coisas? Quem o procura? Não ficou sentado no banco por muito tempo porque estava frio. Rasgou a carta lentamente em pedaços e lançou-os ao mar. Recordou que uma vez anos antes rasgara uma carta inacabada para Balba no mesmo local. Também lançada ao mar.
No entanto, havia uma grande diferença. Ele a encontraria muito em breve.
Ficou em pé olhaando os pedaços de papel desaparecerem na superfície da água. Depois deixou o porto e foi ao hospital visitar Ann-Britt Höglund.
Talvez algo estivesse finalmente ultrapassado.
O outono em Scania encaminhava-se para o inverno.
Henning Mankell
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