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A sra. Pena me olhou por sobre o banco e ergueu as mãos num gesto suplicante. Ela falou com um sotaque pesado, escolhendo o inglês para lançar seu último apelo diretamente a mim.
- Por favor, você ajuda eu, senhor Mickey?
Olhei para Rojas, que estava virado no banco da frente, mesmo sem que eu precisasse da sua tradução. Então olhei mais adiante, por cima do ombro da sra. Pena, através da janela do carro, para o lar ao qual ela queria tão desesperadamente se agarrar. Era uma casa em um tom desbotado de rosa, dois dormitórios, com um quintal abandonado atrás do alambrado da cerca. O degrau de concreto para a varanda da frente estava pichado com uns sinais indecifráveis, a não ser pelo número 13. Não era o endereço.
Era um juramento de lealdade.
Meus olhos finalmente voltaram a ela. Era uma mulher de 44 anos, atraente de um jeito um pouco abatido. Uma mãe solteira com três filhos adolescentes que não pagava a hipoteca havia nove meses. Agora o banco executara o imóvel e tomava as medidas para vender a casa.
O leilão aconteceria em três dias. Não fazia diferença que o imóvel valesse pouco nem que ficasse num bairro infestado de gangues, no sul de Los Angeles. Alguém apareceria para comprar, e a sra. Pena passaria a ser uma inquilina, em vez de uma proprietária - quer dizer, se o novo proprietário não a expulsasse. Por anos ela contara com a proteção do Florencia 13, a maior gangue hispânica de Los Angeles. Mas os tempos eram outros. Agora, nenhuma lealdade a gangues poderia ajudá-la. O que ela precisava era de um advogado. Precisava de mim.
- Fala pra ela que vou fazer o melhor que puder - eu disse. - Explica que eu tenho quase certeza que consigo impedir o leilão e impugnar a validade da execução.
Pelo menos isso vai atrasar um pouco as coisas. A gente ganha tempo pra pensar num plano de longo prazo. Quem sabe ajudar ela a se reerguer.
Acenei com a cabeça e esperei enquanto Rojas traduzia. Eu vinha usando Rojas como meu motorista e intérprete desde que comprara o pacote de anúncios das rádios hispânicas.
Senti o celular vibrando no meu bolso. A parte superior de minha coxa interpretou o sinal como uma mensagem de texto, não como uma ligação telefônica, que vibrava
por mais tempo. Fosse como fosse, ignorei. Quando Rojas completou a tradução, falei antes que a sra. Pena pudesse responder.
- Fala aí que ela precisa entender que isso não é uma solução para os problemas dela. Eu posso adiar as coisas e a gente pode negociar com o banco. Mas não estou
prometendo que nós não vamos perder a casa. Na verdade, ela já perdeu. Eu vou conseguir de volta, mas, depois, ela ainda tem que brigar com o banco.
Rojas traduziu, fazendo gestos com as mãos, quando eu não tinha feito. A verdade era que a sra. Pena teria de ir embora da casa mais cedo ou mais tarde. Era só questão
de saber até onde queria que eu fosse com o caso. A falência pessoal acrescentaria mais um ano para a defesa, na execução da hipoteca. Mas ela não precisava decidir
imediatamente.
- Agora fala pra ela que eu também preciso receber pelo meu trabalho. Explica como é o procedimento. Mil adiantados e o pagamento mensal.
- Quanto por mês e por quanto tempo?
Olhei para a casa outra vez. A sra. Pena me convidara para entrar, mas preferi fazer a reunião no carro. Aquele era um território para passar sem parar e eu estava
em meu Lincoln Town Car BPS. As letras querem dizer Ballistic Protection Series. Eu comprei usado da viúva de um agente morto pelo cartel de Sinaloa. As portas eram
blindadas e as janelas foram construídas com três camadas de vidro laminado. Eram à prova de bala. As janelas na casa cor-de-rosa da sra. Pena não eram. A lição
que o sujeito de Sinaloa tinha aprendido era que você não sai do carro a menos que seja obrigado.
A sra. Pena explicara antes que as parcelas da hipoteca que ela havia parado de pagar nove meses atrás eram de setecentos por mês. Ela continuaria sem entregar esse
dinheiro ao banco enquanto eu trabalhasse no caso. Iria morar de graça contanto que eu mantivesse o banco enrolado, então dava para receber alguma coisa ali.
- Vamos combinar 250 por mês. É o plano mais em conta que eu tenho. Explica direito pra ter certeza que ela entendeu que é muito barato e diz que o pagamento nunca
pode atrasar. A gente pode fazer no cartão, se ela tiver algum funcionando. Só precisa ter certeza que não vence pelo menos até 2012.
Rojas traduziu, com mais gestos e palavras do que eu havia usado, enquanto eu pegava meu celular. A mensagem era de Lorna Taylor.
ME LIGA.
Eu só podia retornar a ligação depois da reunião com minha cliente. Um advogado normal teria uma gerente de escritório e uma recepcionista. Mas o único escritório
que eu tinha era o banco traseiro do meu Lincoln, de modo que Lorna cuidava da parte financeira do negócio e atendia as ligações no apartamento de West Hollywood
onde ela morava com meu investigador-chefe.
Minha mãe era natural do México e eu entendia a língua nativa dela melhor do que deixava transparecer. Quando a sra. Pena respondia, eu sabia o que ela dizia - o
sentido geral, pelo menos. Mas permiti que Rojas traduzisse tudo de volta para mim, de um jeito ou de outro. Ela prometeu que iria na casa buscar os mil dólares
em dinheiro do adiantamento e que não atrasaria nenhum pagamento mensal. Para mim, não para o banco. Pensei que se eu conseguisse aumentar a permanência dela na
casa por um ano minha parte seria 4 mil no total. Nada mal para o que eu ia ter de trabalhar. Provavelmente, nunca mais veria a sra. Pena outra vez. Eu entraria
com uma ação contestando a execução da hipoteca e retardaria o processo. Possivelmente nem precisaria aparecer diante de um juiz. Minha jovem sócia cuidaria de todas
as idas e vindas em um tribunal. A sra. Pena ficaria feliz e eu também. No fim, porém, o martelinho iria descer. Como sempre faz.
Eu imaginava ter um caso praticável mesmo que a sra. Pena não se mostrasse uma cliente muito prestativa. A maioria de meus clientes parava de pagar ao banco depois
de perder o emprego ou passar por alguma catástrofe médica. A sra. Pena parou quando seus três filhos foram para a cadeia por vender drogas e o sustento financeiro
semanal deles secou de uma hora para outra. Não é uma história das mais edificantes. Mas o banco tinha jogado sujo. Eu havia dado uma olhada no arquivo dela em meu
laptop. Estava tudo ali: um histórico de notificações exigindo pagamento e depois a execução. Só que a sra. Pena afirmava nunca ter recebido as notificações. E eu
acreditava nela. Não era o tipo de bairro em que oficiais de justiça podiam andar à vontade. Eu suspeitava que os documentos tinham ido parar no lixo e que o oficial
encarregado simplesmente mentira a respeito. Se conseguisse montar minha base legal nesse caso, então eu conseguiria fazer o banco recuar com a alavancagem que obteria
com isso.
Minha defesa seria esta: que a pobre mulher nunca fora advertida sobre o perigo que estava correndo. O banco tirou vantagem dela, executou sua hipoteca sem lhe dar
a devida oportunidade de pôr os pagamentos em dia e deveria ser repreendido pelo tribunal por fazer isso.
- Ok, estamos combinados - disse eu. - Fala pra ela entrar e pegar o dinheiro enquanto eu imprimo um contrato e um recibo. Vamos dar andamento nisso hoje mesmo.
Sorri e balancei a cabeça para a sra. Pena. Rojas traduziu e depois saiu para contornar o carro e abrir a porta para ela.
Assim que a sra. Pena saiu, abri o formulário eletrônico de contrato em espanhol no meu laptop e digitei os nomes e números necessários. Mandei para a impressora
que havia na bancada de aparelhos no banco da frente. Depois comecei a preencher o recibo do dinheiro a ser depositado em minha conta jurídica. Tudo dentro dos conformes.
Sempre. Era a melhor maneira de manter a ordem da Califórnia longe do meu pé. Eu podia ter um carro à prova de balas, mas era a ordem dos advogados que com mais
frequência me fazia olhar por cima do ombro.
Tinha sido um ano difícil para a Michael Haller e Associados. A defesa criminal virtualmente secara com a crise econômica. Claro que o crime não estava em crise.
Em Los Angeles, a criminalidade vai de vento em popa esteja a economia como estiver. Mas os clientes pagantes eram poucos e entre um e outro havia uma longa espera.
Era como se ninguém mais tivesse dinheiro para gastar com um advogado. Consequentemente, o gabinete da defensoria pública tinha casos e clientes saindo pelo ladrão,
enquanto caras como eu estávamos quase passando fome.
Eu tinha minhas contas para pagar e uma filha de 14 anos que falava na University of Southern California toda vez que o assunto de uma universidade vinha à baila.
Eu precisava tomar alguma atitude e desse modo fiz o que antes imaginava ser impensável. Passei às causas civis. A única indústria em crescimento no ramo do direito
era a defesa contra execução de hipotecas. Frequentei alguns cursos da ordem, me atualizei o mais rápido que pude e passei a publicar anúncios em duas línguas. Montei
alguns sites na internet e comecei a comprar as listas de arquivos de execução hipotecária com o gabinete de escrituração do condado. Foi assim que consegui a sra.
Pena como cliente. Mala-direta. Seu nome constava da lista e lhe mandei uma correspondência - em espanhol - oferecendo meus serviços. Ela me contou que foi por minha
carta que ficou sabendo pela primeira vez da execução hipotecária.
É como diz no filme, se você construir, eles virão. E era verdade. Eu tinha mais trabalho do que conseguia tocar - mais seis compromissos só nesse dia - e chegara
até a contratar um sócio de verdade para a Michael Haller e Associados pela primeira vez na vida. A epidemia nacional de execuções de imóveis estava diminuindo,
mas longe de terminar. No condado de Los Angeles, eu podia continuar a tirar meu sustento disso ainda por muitos anos.
Cada caso dava no máximo uns quatro ou 5 mil, mas esse era um período de minha vida profissional em que a quantidade superava a qualidade. No presente momento, minha
carteira somava mais de noventa clientes por execução de hipoteca. Sem dúvida minha filha já podia começar a fazer seus planos para a USC. E que o diabo me carregue
se eu não podia começar a pensar até no mestrado.
Sempre tinha esses que acreditavam que eu era parte do problema, que eu estava meramente ajudando um bando de caloteiros a engambelar o sistema enquanto atrasava
a recuperação da economia como um todo. Essa descrição certamente era adequada para alguns de meus clientes. Mas eu via a maioria deles como duas vezes vítimas.
Primeiro, iludidos com o sonho americano da casa própria ao serem atraídos a contrair uma hipoteca que nem trabalho para se qualificar a pagar eles tinham. E depois
vitimados uma segunda vez, quando a bolha estourou e as financeiras inescrupulosas caíram matando em cima deles no frenesi de execuções hipotecárias que se seguiu.
A maioria desses outrora orgulhosos donos de casa própria não tinha a menor chance contra a bem azeitada regulamentação hipotecária da Califórnia. Um banco não precisava
nem da aprovação de um juiz para retomar o imóvel de alguém. Os grandes cérebros das finanças achavam que esse era o jeito certo de fazer as coisas. Simplesmente
manter a máquina funcionando. Quanto antes a crise chegasse no fundo do poço, antes a recuperação começaria. Expliquem isso para a sra. Pena, é o que eu tenho a
dizer.
Corria a teoria por aí de que isso era tudo parte de uma conspiração entre os principais bancos do país para solapar as leis da propriedade, sabotar o sistema judicial
e criar um ciclo perpétuo de indústria da execução hipotecária que os fizesse lucrar nas duas pontas do processo. Quanto a mim, eu não engolia muito essa. Mas durante
meu breve período naquela área do direito, eu presenciara suficientes atos predatórios e antiéticos perpetuados pelos assim chamados empresários legítimos para sentir
falta do bom e velho exercício do direito criminal.
Rojas esperava fora do carro até que a sra. Pena voltasse com o dinheiro. Olhei meu relógio e notei que ia chegar atrasado em meu compromisso seguinte - a execução
hipotecária de um estabelecimento comercial em Compton. Eu tentava agrupar as reuniões com novos clientes geograficamente para poupar tempo, gasolina e quilômetros
rodados. Hoje eu estava na zona sul. No dia seguinte estaria na zona leste de Los Angeles. Dois dias por semana eram dentro do carro, fechando com os novos clientes.
O resto do tempo eu trabalhava nos casos.
- Vamos logo, senhora Pena - disse eu. - A gente precisa ir.
Decidi usar o tempo de espera para ligar para Lorna. Três meses antes eu começara a bloquear a identificação no meu celular. Nunca fiz isso quando era um advogado
criminal, mas no admirável mundo novo da defesa hipotecária geralmente eu não queria as pessoas com acesso a meu número direto. E isso incluía tanto os advogados
das financeiras como meus próprios clientes.
- Escritório da Michael Haller e Associados - disse Lorna quando atendeu. - Como poss...
- Sou eu. O que foi?
- Mickey, você precisa ir pra Divisão Van Nuys agora mesmo.
Havia uma forte urgência em sua voz. A Divisão Van Nuys era o comando central do DPLA para as operações no imenso vale de San Fernando, na parte norte da cidade.
- Estou trabalhando na região sul hoje. Qual o problema?
- Eles estão com Lisa Trammel por lá. Ela ligou.
Lisa Trammel era minha cliente. Na verdade, foi minha primeira cliente de execução hipotecária. Eu conseguira mantê-la em sua casa já por oito meses e estava confiante
de obter mais um ano antes de jogarmos a bomba da falência. Mas ela foi consumida pelas frustrações e desigualdades de sua vida e não tinha como ser acalmada ou
controlada. Passara a marchar diante do banco com um cartaz denunciando as práticas fraudulentas e atitudes desumanas da instituição. Isso até o banco obter uma
ordem de restrição temporária contra ela.
- Ela violou a ordem de restrição? Ela foi detida?
- Mickey, ela está sendo detida por homicídio.
Não era bem isso que eu estava esperando ouvir.
- Homicídio? Quem é a vítima?
- Ela disse que estava sendo acusada de matar Mitchell Bondurant.
Isso me fez ficar em silêncio outra vez por um longo tempo. Olhei pela janela e vi a sra. Pena aparecendo na porta de entrada de sua casa. Trazia um punhado de dinheiro
na mão.
- Tudo bem, pega o telefone e começa a remarcar todos os compromissos agendados para hoje. E diga ao Cisco para ir até Van Nuys. Eu encontro ele por lá.
- Pode deixar. Quer que a Bullocks cuide das reuniões da tarde?
“Bullocks” era como chamávamos Jennifer Aronson, a sócia que eu contratara na Southwestern, uma faculdade de direito que ficava no edifício da velha loja de departamentos
Bullocks, em Wilshire.
- Não, não quero ela fechando contratos. Só marca pra outro dia. E escuta, acho que estou com o arquivo da Trammel aqui comigo, mas a lista de telefones está com
você. Acha a irmã dela. Lisa tem um filho. Ele provavelmente está na escola e alguém precisa ir buscar ele, se Lisa não puder.
Fazíamos todos os clientes preencher uma extensa lista de contatos, porque às vezes era difícil encontrar a pessoa para uma audiência no tribunal - e para fazer
com que pagasse por meu trabalho.
- Vou começar a trabalhar nisso - disse Lorna. - Boa sorte, Mickey.
- O mesmo pra você.
Fechei o celular e pensei em Lisa Trammel. De algum modo eu não estava surpreso por ela estar presa pelo assassinato do sujeito que tentava retomar sua casa. Não
que eu tivesse imaginado que chegaria a tanto. Nem perto disso. Mas lá no fundo eu sempre soubera que isso não ia terminar bem.
Dois
Peguei rapidamente o dinheiro da sra. Pena e lhe dei um recibo. Nós dois assinamos o contrato e ela pegou uma cópia para guardar. Anotei o número de um cartão de
crédito e ela prometeu manter o pagamento de 250 dólares enquanto eu estivesse trabalhando para ela. Depois agradeci, apertei sua mão e pedi para Rojas acompanhá-la
até a porta de sua casa.
Enquanto ele fazia isso, abri o porta-malas com o controle remoto que estava no meu bolso e desci. O porta-malas do Lincoln era suficientemente espaçoso para conter
três caixas-arquivos de papelão, além do meu material de escritório. Encontrei as pastas sobre Trammel na terceira caixa e peguei. Peguei também a pasta 007 que
costumava usar para visitas às centrais de polícia. Quando fechei o porta-malas vi o 13 estilizado pintado com spray prateado sobre a pintura preta da tampa.
- Filho da puta.
Olhei em volta. Três quintais adiante, umas crianças brincavam no chão de terra, mas pareciam pequenos demais para serem pichadores. O resto da rua estava deserto.
Fiquei pasmo. Não só eu não tinha escutado nem notado o ataque ao meu carro acontecendo no momento em que fazia uma reunião com um cliente ali dentro, como também
mal passava da uma da tarde, e eu sabia que a maioria dos membros de gangue só saía da cama para aproveitar o dia em todas as suas infinitas possibilidades no fim
da tarde. Eram criaturas da noite.
Comecei a voltar para minha porta aberta com a papelada. Notei que Rojas estava no degrau da varanda, conversando com a sra. Pena. Assobiei e sinalizei que voltasse
ao carro. A gente precisava ir andando.
Entrei. Recado recebido, Rojas trotou de volta até o carro e entrou rapidamente.
- Compton? - perguntou.
- Não, mudança de planos. A gente precisa ir para Van Nuys agora mesmo.
- Ok, chefe.
Ele deu partida, saiu e começou a tomar o rumo da 110 Freeway. Não tinha uma via expressa direta até Van Nuys. A gente precisava pegar a 110, passar pelo centro
e tomar a 101 norte. Não tinha como ter partido de um ponto pior da cidade.
- O que ela estava dizendo pra você lá na entrada da casa? - perguntei a Rojas.
- Estava perguntando sobre você.
- Como assim?
- Ela disse que você não parecia que precisava de tradutor, entendeu?
Fiz que sim. Eu vivia escutando isso. Os genes maternos tinham me feito parecer mais com o sul do que com o norte da fronteira.
- Ela queria saber também se você era casado, chefe. Falei pra ela que sim. Mas, se você quiser voltar lá e pegar a mulher, a oferta está feita. Só que provavelmente
ela vai querer um desconto nos seus honorários.
- Obrigado, Rojas - eu disse secamente. - Ela já ganhou um desconto, mas vou pensar.
Antes de abrir a pasta percorri a lista de contatos no meu celular. Estava procurando o nome de alguém no esquadrão de detetives de Van Nuys que pudesse me fornecer
alguma informação. Mas não achei ninguém. Eu ia entrar às cegas num caso de assassinato. Isso também não era um ponto de partida nada bom.
Fechei o aparelho e pus para carregar, depois abri a pasta. Lisa Trammel havia se tornado minha cliente após responder à carta-padrão que eu enviava para todo proprietário
que sofria uma execução. Eu presumia não ser o único advogado em Los Angeles a fazer tal coisa. Mas por algum motivo Lisa respondeu à minha carta, não a de outro.
Como um advogado representando particulares, você precisa escolher os clientes, na maior parte do tempo. Às vezes você escolhe errado. Com Lisa foi um desses casos.
Eu estava ansioso em começar a atuar nessa área. Estava procurando clientes que estivessem em apuros ou que haviam sofrido algum tipo de exploração. Pessoas ingênuas
demais para conhecer os próprios direitos ou saber de suas opções. Meu alvo era o povão mais humilde e eu achei que Lisa era uma dessas pessoas. Sem dúvida se encaixava
no papel. Ela ia perder sua casa devido a uma série de circunstâncias que haviam escapado a seu controle como uma fileira de dominós. E o banco que financiou a hipoteca
entregara a execução na mão de um escritório de cobrança que queimou etapas e até violou regras. Fechei contrato com Lisa, combinamos um plano de pagamento e fui
para o pau em seu nome. Era um caso promissor e fiquei empolgado. Só depois disso é que Lisa se tornou uma cliente incômoda.
Lisa Trammel estava com 35 anos. Era casada e mãe de um menino de 9 anos chamado Tyler, e sua casa ficava em Melba, em Woodland Hills. Na época em que ela e o marido,
Jeffrey, compraram o imóvel, em 2005, Lisa era professora de estudos sociais na Grant High, enquanto Jeffrey vendia BMWs numa concessionária de Calabasas.
Sua residência de três dormitórios tinha uma hipoteca de 750 mil dólares e estava avaliada em 900 mil. O mercado estava forte nesses dias e as oportunidades de financiamento
eram muitas e fáceis de obter. Eles recorreram a um corretor hipotecário independente que pôs a documentação debaixo do braço e saiu por algumas financeiras até
conseguir para eles um empréstimo com taxa de juros baixa, mas sem amortização, com o principal, um “pagamento balão”, a ser quitado em cinco anos. O empréstimo
foi depois dobrado em um bloco de hipotecas de investimento e transferido de financiadora por duas vezes antes de ir parar definitivamente na WestLand Financial,
uma subsidiária do WestLand National, o banco de Los Angeles com sede em Sherman Oaks.
Tudo ia muito bem para os três até Jeff Trammel decidir que não queria mais brincar de marido e pai de família. Alguns meses antes de vencer o contrato de 750 mil
sobre a casa, Jeff se mandou, deixando sua BMW M3 demo no estacionamento da Union Station e o pagamento balão nas mãos de Lisa.
Reduzida a uma única renda e com um filho para cuidar, Lisa olhou para a realidade de sua situação e fez escolhas. A essa altura a economia estagnara como um avião
rateando no céu sem propulsão suficiente. Considerando seu rendimento de professora, nenhuma instituição iria refinanciar o balão. Ela parou de pagar as parcelas
do empréstimo e ignorou todos os comunicados enviados pelo banco. Quando o contrato venceu, a propriedade entrou em execução e foi aí que eu entrei em cena. Mandei
uma carta para Jeff e Lisa, sem ter ideia de que Jeff não estava mais na jogada.
Lisa respondeu.
Defino um cliente como um aborrecimento quando a pessoa não entende os limites de nossa relação, mesmo após eu delineá-los claramente e às vezes reiteradamente.
Lisa chegou para mim com sua primeira notificação de execução da hipoteca. Eu peguei o caso e lhe disse para voltar para casa e esperar enquanto eu cuidava do assunto.
Mas Lisa não se aguentou. Foi incapaz de esperar. Ela me ligava todo santo dia. Depois que entrei com a ação para submeter a execução a um juiz, aparecia no tribunal
para audiências de rotina e adiamentos. Ela tinha de estar presente e tinha de se manter a par de cada movimento meu, ver cada carta que eu mandava e ser informada
cada vez que o tribunal me convocava. Vivia me ligando e ficava histérica quando percebia que eu não estava dedicando toda a minha atenção ao caso dela. Comecei
a entender por que o marido tinha pulado fora. Para fugir da mulher.
Comecei a me perguntar sobre a saúde mental de Lisa e suspeitei que pudesse ser bipolar. As ligações incessantes e as atitudes eram cíclicas. Semanas se passavam
sem que eu tivesse notícia alguma, alternando com semanas em que ela ligava todos os dias e repetidas vezes até conseguir falar comigo.
Três meses após eu pegar o caso, ela me contou que perdera o emprego com o L.A. County School District por faltar sem justificativa. Foi então que começou a falar
em tentar obter indenizações com o banco que executava sua hipoteca. Seu discurso vinha impregnado com a ideia de que ela era a parte lesada. O banco era responsável
por tudo: o abandono do marido, a perda do emprego, a execução do imóvel.
Cometi a besteira de lhe revelar parte das minhas informações e estratégia. Fiz isso para vez se sossegava, se largava do meu pé. Nossa análise dos procedimentos
do empréstimo revelou haver inconsistências e outros problemas nas repetidas transferências para diversas holdings. Havia indicativos de fraude que achei que eu
poderia usar para conseguir uma vantagem para o lado de Lisa quando chegasse o momento de negociar um acordo.
Mas a informação só serviu para reacender a crença de Lisa em sua vitimização nas mãos do banco. Em nenhum momento ela admitiu o fato de que assinara um contrato
de empréstimo e que era obrigada a honrá-lo. Ela via o banco como a fonte exclusiva de suas aflições.
A primeira coisa que ela fez foi registrar um website. Ela usou o www.californiaforeclosurefighters.com para fundar uma organização chamada Foreclosure Litigants
Against Greed. Funcionava melhor como um acrônimo - FLAG - e ela efetivamente passou a usar a bandeira americana em seu emblema de protesto. A mensagem de que o
combate à execução hipotecária era tão americano quanto a torta de maçã.
Depois ela passou a marchar na frente da sede corporativa do WestLand, no Ventura Boulevard. Às vezes sozinha, às vezes com o filho e às vezes com pessoas que atraíra
para a causa. Ela carregava cartazes denunciando o envolvimento do banco em execuções ilegais e por tirar famílias de suas casas e jogá-las na rua.
Lisa não demorou em alertar os veículos da mídia local sobre suas atividades. Ela aparecia com frequência na tevê e sempre tinha uma frase de efeito na ponta da
língua para dar voz às pessoas na mesma situação que a sua, retratando-as como vítimas da epidemia de execuções hipotecárias, não como caloteiros do tipo mais ordinário.
Eu havia notado que no Channel 5 ela até se tornara parte das imagens de arquivo usadas na tela toda vez que davam alguma notícia sobre questões ou estatísticas
envolvendo execuções. O estado da Califórnia estava em terceiro lugar no país todo na execução de hipotecas e Los Angeles era o foco principal. Quando esses fatos
eram noticiados, lá estaria Lisa e seu grupo na tela carregando cartazes - NÃO LEVEM MINHA CASA! PAREM COM AS EXECUÇÕES ILEGAIS JÁ!
Alegando que os protestos eram manifestações ilegais que prejudicavam o trânsito e punham os pedestres em perigo, o WestLand pleiteou e obteve uma ordem de restrição
para manter Lisa a 90 metros de distância de qualquer edifício do banco e seus empregados. Sem se abater, ela levou seus cartazes e seus colegas de protesto para
o fórum do condado, onde as execuções eram contestadas diariamente.
Mitchell Bondurant era vice-presidente sênior no WestLand. Era o chefe da divisão de empréstimos hipotecários. Seu nome aparecia nos documentos de empréstimo relativos
à casa de Lisa Trammel. De modo que seu nome aparecia em todos os meus arquivos. Eu também lhe escrevera uma carta, delineando o que descrevi como indícios de práticas
fraudulentas efetuadas pelo escritório de cobrança que a WestLand contratara para executar o trabalho sujo de tirar as casas e outros bens de seus clientes à revelia.
Lisa estava autorizada a ver todos os documentos originados em seu caso. Estava copiada na carta e tudo o mais. Apesar de ser o rosto humano no esforço de retomar
seu imóvel, Bondurant permanecia longe da briga, escondendo-se atrás da equipe legal do banco. Nunca respondeu à minha carta e nunca me encontrei com ele. Ao que
eu saiba, Lisa Trammel tampouco se encontrou ou conversou com ele algum dia. Mas agora ele estava morto e a polícia mantinha Lisa sob custódia.
Saímos da 101 em Van Nuys Boulevard e seguimos para o norte. O centro cívico era uma praça cercada por dois fóruns, uma biblioteca, a City Hall North e o complexo
policial de Valley Bureau, que incluía a Divisão Van Nuys. Diversas outras agências e prédios do governo agrupavam-se em volta do aglomerado principal. Estacionar
era sempre uma dificuldade, mas isso não era problema meu. Peguei meu celular e liguei para meu investigador, Dennis Wojciechowski.
- Cisco, sou eu. Você está perto?
Nos velhos tempos Wojciechowski era ligado ao clube de motociclistas Road Saints, mas sempre havia um membro chamado Dennis. Ninguém conseguia pronunciar Wojciechowski,
então ele ganhou o apelido de Cisco Kid, por causa de sua pele morena e seu bigode. O bigode não estava mais lá, mas o nome pegara.
- Já cheguei. A gente se encontra no banco, na frente da escadaria do DP.
- Daqui a cinco minutos estou lá. Você já conversou com alguém? Eu não consegui nada.
- Já, seu velho amigo, Kurlen, está chefiando o caso. Encontraram a vítima, Mitchell Bondurant, no estacionamento do WestLand, no Ventura, umas nove horas, hoje
de manhã. Ele estava caído no chão, entre dois carros. Não se sabe bem quanto tempo fazia, mas já estava morto no local.
- A gente ainda não sabe a causa?
- Aí a coisa fica um pouco esquisita. No começo disseram que ele tinha levado um tiro, porque uma funcionária que estava em outro andar da garagem contou para a
polícia que tinha escutado dois sons de estouro, tipo tiros. Mas quando examinaram o corpo no local parecia que tinha sido morto com uma pancada. Alguém bateu nele
com alguma coisa.
- Lisa Trammel foi presa no local?
- Não, pelo que entendi, foram buscar ela na casa dela, em Woodland Hills. Ainda estou esperando uns caras ligarem, mas isso é tudo que sei até agora. Lamento, Mick.
- Não esquenta com isso. A gente vai ficar sabendo de tudo daqui a pouco. Kurlen tá na cena ou com a suspeita?
- Me informaram que ele e a parceira pegaram Trammel e foram com ela lá pra dentro. O nome da parceira é Cynthia Longstreth. Ela é uma D-1. Nunca ouvi falar dela.
Eu também nunca tinha ouvido falar, mas como era uma detetive 1, meu palpite era que seria uma novata na área de homicídios e que estava fazendo dupla com Kurlen,
um D-3, para ganhar alguma bagagem. Olhei pela janela. Estávamos passando por uma concessionária de BMW e isso me levou a pensar no marido desaparecido que costumava
vender carros antes de jogar o casamento para o alto e cair no mundo. Fiquei pensando se Jeff Trammel iria aparecer, agora que sua esposa estava presa por assassinato.
Será que iria assumir a custódia do filho que tinha abandonado?
- Quer que eu traga Valenzuela pra cá? - perguntou Cisco. - Ele está só a uma quadra daqui.
Fernando Valenzuela era um fiador profissional que eu usava para os casos em Valley. Mas eu sabia que ele não seria necessário dessa vez.
- Melhor esperar um pouco. Se ela for fichada por homicídio, não vai ter fiança.
- Certo, claro.
- Você sabe me dizer se já indicaram alguém na promotoria?
Eu estava pensando na minha ex, que trabalhava para o Gabinete da Promotoria em Van Nuys. Ela podia ser uma fonte útil de informação paralela - a menos que tivesse
sido designada para aquilo. Nesse caso haveria conflito de interesses. Já acontecera antes. Maggie McPherson não ia gostar disso.
- Não sei nada sobre isso.
Considerei o pouco que sabíamos e qual deveria ser a melhor maneira de proceder. Minha sensação era que, assim que a polícia entendesse o que tinha nas mãos - uma
assassina que podia chamar ampla atenção para uma das maiores catástrofes financeiras de nossos dias -, ela seria trancada na mesma hora, e todas as fontes de informação,
silenciadas. O momento de agir era agora.
- Cisco, mudei de ideia. Não espera por mim, não. Vai até a cena do crime e vê o que você consegue descobrir. Fale com as pessoas antes que eles tentem tapar os
vazamentos.
- Tem certeza?
- Tenho. Eu cuido do DP e ligo se precisar de alguma coisa.
- Fechado. Boa sorte.
- Idem.
Fechei o celular e olhei para a nuca do meu motorista.
- Rojas, pega a direita na Delano e me leva até Sylmar.
- Sem problema.
- Não sei quanto tempo vou demorar. Quero que você me deixe lá e depois volte para o Van Nuys Boulevard e procure uma oficina de funilaria. Veja se conseguem tirar
aquela tinta do porta-malas.
Rojas me olhou pelo retrovisor.
- Que tinta?
Três
Oprédio da polícia de Van Nuys é uma estrutura de quatro andares que serve a inúmeros propósitos. Abriga tanto a divisão policial de Van Nuys como os escritórios
de comando do Valley Bureau e a cadeia principal que atende a parte norte da cidade. Eu já estivera ali antes em alguns casos e sabia que assim como na maioria das
centrais do DPLA, pequenas ou grandes, haveria inúmeros obstáculos se interpondo entre mim e minha cliente.
Sempre desconfiei que os policiais destacados para atender no balcão da recepção das centrais são escolhidos por supervisores espertos com base em sua capacidade
de ocultar a verdade e desinformar. Se você duvida disso, entre numa central de polícia na cidade e diga ao sujeito atrás do balcão que você deseja fazer uma queixa
com um oficial de polícia. Veja quanto tempo leva para encontrar o formulário apropriado. Os policiais que atendem são normalmente novos, estúpidos e involuntariamente
ignorantes, ou velhos, teimosos e completamente mal-intencionados em suas ações.
No balcão da recepção na central de Van Nuys fui atendido por um policial com o nome CRIMMINS escrito em seu uniforme engomado. Era um veterano de cabelo grisalho
e desse modo altamente calejado na técnica de fazer cara de paisagem. Fui recebido assim quando me identifiquei como advogado de defesa com uma cliente à minha espera
no esquadrão de detetives. Sua resposta consistiu em franzir o lábio e apontar uma fileira de cadeiras de plástico onde eu deveria humildemente esperar até ele julgar
que era o momento oportuno de ligar para o andar de cima.
Sujeitos como Crimmins estão acostumados com cidadãos que abaixam a cabeça: pessoas que fazem exatamente o que ele diz porque estão intimidadas demais para fazer
qualquer outra coisa. Eu não era um deles.
- Não, não é assim que vai ser - eu disse.
Crimmins estreitou os olhos. Não fora desafiado por ninguém o dia todo, muito menos um advogado de defesa criminal - ênfase no criminal. Sua primeira reação foi
rebater minha insolência com sarcasmo.
- Tem certeza?
- É, tenho certeza. Pega o telefone e chama o detetive Kurlen. Fala pra ele que Mickey Haller está subindo e que se eu não estiver com minha cliente dentro de dez
minutos vou cruzar a praça até o fórum para falar com o juiz Mills.
Parei e esperei o nome entrar em sua cabeça dura.
- Tenho certeza de que você conhece o juiz Roger Mills. Pra minha sorte, antes de ser eleito para o tribunal, ele era advogado criminal. Ele não gostava muito de
ser enrolado pela polícia naquele tempo e não fica muito feliz quando ouve a mesma história hoje em dia. Ele vai chamar tanto você como o Kurlen para comparecer
no tribunal e se explicar por que estão fazendo esse mesmo joguinho de impedir um cidadão de exercer seus direitos constitucionais de consultar um advogado de defesa.
Da última vez que isso aconteceu, o juiz Mills não gostou das respostas que recebeu e multou o cara que ficava sentado aí onde você está em quinhentos paus.
Crimmins me olhou como se estivesse tendo dificuldade de acompanhar o que eu dizia. Era um homem de frases curtas, imaginei. Piscou algumas vezes e pegou o telefone.
Escutei-o conversando diretamente com Kurlen. Depois ele desligou.
- Conhece o caminho, sabichão?
- Conheço. Obrigado pela ajuda, policial Crimmins.
- Depois a gente acerta.
Ele apontou o dedo para mim como uma arma, só para poder dizer que tivera a última palavra com o filho da puta do advogado. Afastei-me do balcão e segui na direção
do elevador.
No terceiro andar o detetive Howard Kurlen esperava por mim com um sorriso no rosto. Não era um sorriso amigável. Ele parecia o gato que comeu o canário.
- Foi divertido lá embaixo, doutor?
- Ah, foi.
- Bom, chegou tarde demais aqui.
- Como assim? Ela já foi fichada?
Ele abriu as mãos num gesto fingido de Lamento por isso.
- Engraçado. Meu parceiro levou ela daqui pouco antes de me ligarem da recepção.
- Uau, que coincidência. Mesmo assim, eu quero falar com ela.
- Vai ter que solicitar na cadeia.
Isso provavelmente me tomaria mais uma hora de espera. E era por isso que Kurlen estava sorrindo.
- Tem certeza que não dá pra pedir para o seu parceiro voltar e trazer ela aqui? Não pretendo demorar.
Disse isso mesmo achando que fosse um tiro n’água. Mas Kurlen me surpreendeu e pegou o telefone em sua cintura. Ele apertou um botão de discagem rápida. Ou aquilo
tudo era uma farsa elaborada, ou realmente estava fazendo o que lhe pedi. Kurlen e eu éramos velhos conhecidos. Já havíamos nos estranhado em casos anteriores. Em
mais de uma ocasião eu tentara destruir sua credibilidade no banco das testemunhas. Nunca me saí muito bem na empreitada, mas mesmo assim a experiência tornava difícil
qualquer cordialidade depois disso. Só que agora ele estava me dando um refresco e eu não tinha muita certeza sobre o motivo.
- Sou eu - disse Kurlen ao telefone. - Traz ela de volta pra cá.
Ele escutou por um momento.
- Porque eu estou mandando. Agora traz ela aqui.
Ele fechou o celular sem dizer mais uma palavra ao parceiro e olhou para mim.
- Você me deve uma, Haller. Eu podia ter segurado você por algumas horas. Antigamente, é o que eu teria feito.
- Eu sei. Agradeço.
Ele começou a voltar para a sala do esquadrão e sinalizou que o seguisse. Falou casualmente conforme andava.
- Então, quando ela pediu pra gente ligar para você, disse que você estava cuidando da execução da hipoteca dela.
- Isso mesmo.
- Minha irmã se divorciou e agora está enrolada numa coisa assim.
Era isso. O toma lá dá cá.
- Quer que eu fale com ela?
- Não, eu só queria saber se é melhor tentar a justiça nesses casos ou simplesmente deixar pra lá.
A sala do esquadrão parecia algo saído do túnel do tempo. Estilo anos 1970, com piso de linóleo, paredes em dois tons de amarelo e mesas cinza de repartição pública,
com tiras de borracha nas quinas. Kurlen esperou de pé enquanto seu parceiro voltava com a minha cliente.
Tirei um cartão do bolso e dei a ele.
- Você está conversando com um cara que gosta de briga, então essa é minha resposta. O caso dela eu não posso pegar, porque haveria conflito de interesses entre
mim e você. Mas fala pra ela ligar para o meu escritório que a gente arruma alguém bom. Fala pra ela não esquecer de dar seu nome.
Kurlen balançou a cabeça, pegou uma caixa acrílica com um DVD em sua mesa e passou para mim.
- Você já pode ficar com isso, agora.
Olhei para o disco.
- O que é isso?
- O interrogatório com a sua cliente. Você vai ver claramente que a gente parou de conversar assim que ela disse as palavras mágicas: eu quero um advogado.
- Pode deixar que eu vou olhar, detetive. Pode me dizer por que ela é sua suspeita?
- Claro. Ela é nossa suspeita e está sendo acusada porque foi ela, e ela admitiu isso antes de pedir para chamar seu advogado. Lamento informar, doutor, mas a gente
agiu dentro das regras.
Segurei o disco no alto como se ele fosse meu cliente.
- Você tá me dizendo que ela admitiu ter matado Bondurant?
- Não com essas palavras. Mas ela admitiu umas coisas e se contradisse em outras. Pra mim é o suficiente.
- E por acaso ela teria dito de algum modo por que fez isso?
- Não precisou. A vítima estava prestes a tirar sua casa. Tem motivação de sobra aí. Pra nós, motivo vale ouro.
Eu poderia ter dito a ele que estava enganado, que eu estava prestes a interromper a execução. Mas fiquei de bico fechado. Meu trabalho ali era juntar informação,
não entregá-la.
- O que mais vocês têm, detetive?
- Nada que valha a pena discutir nesse momento. Você vai ter que esperar até receber a publicação compulsória.
- Vou fazer isso. Já designaram o promotor para o caso?
- Não que eu saiba.
Kurlen gesticulou em direção ao fundo da sala e quando virei vi Lisa Trammel sendo conduzida pela porta de uma sala de interrogatório. Estava com o clássico olhar
de quem foi pego no flagra em seu rosto.
- Você tem 15 minutos - disse Kurlen. - E só porque estou sendo bonzinho. Acho que não tem necessidade de começar uma guerra.
Pelo menos não por enquanto, pensei quando me dirigia à sala.
- Ei, espera um minuto - chamou Kurlen às minhas costas. - Preciso checar sua pasta. Regras, você sabe.
Ele estava se referindo à valise de alumínio revestida em couro na minha mão. Eu podia ter criado caso e dizer que isso infringia a prerrogativa de sigilo entre
cliente e advogado, mas queria conversar logo com minha cliente. Voltei até ele e pus a maleta em cima de um balcão, depois abri. Tudo que havia ali dentro era a
pasta de Lisa Trammel, um bloco de anotações amarelo, os contratos novos e o formulário de procuração legal que eu tinha impresso quando vinha no carro. Imaginei
que Lisa precisava voltar a assinar, já que minha representação passaria do âmbito civil para o criminal.
Kurlen passeou os olhos superficialmente e sinalizou para que eu fechasse.
- Couro italiano artesanal - ele disse. - Mais parece uma maleta chique de traficante. Você não tem andado em más companhias, tem, Haller?
Ele voltou a exibir o sorrisinho do canário. Senso de humor de tira é algo sem igual no mundo todo.
- Pra falar a verdade, era mesmo de um avião - eu disse. - Cliente. Mas ele não ia mais precisar disso no lugar pra onde tava indo, então fiquei com ela numa troca.
Quer ver o compartimento secreto? É um pé no saco pra abrir.
- Acho que fica pra outra vez. Tudo limpo.
Fechei a pasta e comecei a me dirigir à sala de interrogatório.
- E é couro colombiano - falei.
A parceira de Kurlen esperava na porta. Eu não a conhecia, mas nem me dei ao trabalho de me apresentar. Nunca iríamos ser amigos e imaginei que era do tipo que me
daria uma gelada no aperto de mão, a fim de impressionar Kurlen.
Ela segurou a porta aberta e parei no limiar.
- Todos os dispositivos de escuta e gravação da sala estão desligados, correto?
- Perfeito.
- Se não estiverem, isso vai ser uma violação dos direito de minha cl...
- A gente conhece o procedimento.
- É, mas às vezes esquece por conveniência, não é?
- O senhor tem 14 minutos agora. Quer continuar conversando comigo ou conversar com ela?
- Certo.
Entrei e a porta se fechou atrás de mim. Era uma salinha de três metros por dois. Olhei para Lisa e pus um dedo nos lábios.
- O que foi? - ela disse.
- Isso significa que não é para dizer nenhuma palavra, Lisa, até eu mandar.
A reação dela foi explodir numa enxurrada de lágrimas e numa lamúria alta e prolongada que emendou numa frase absolutamente ininteligível. Ela estava sentada atrás
de uma mesa quadrada com uma cadeira vazia do outro lado. Sentei rapidamente e pus a pasta sobre a mesa. Eu sabia que ela estaria posicionada de frente para a câmera
oculta da sala, então não me dei ao trabalho de virar e procurar onde ficava. Abri a pasta e puxei para perto do corpo, esperando que minhas costas funcionassem
como proteção contra a câmera. Eu presumia que Kurlen e sua parceira certamente estariam ouvindo e vendo. Mais um motivo para a “gentileza” dele.
Enquanto tirava o bloco de anotações e os documentos da pasta com a mão direita, uma coisa de cada vez, usei a mão esquerda para abrir o compartimento secreto da
valise. Apertei o botão de interferência acústica do Paquin 2000. O dispositivo emitia um sinal RF de baixa frequência que entupia qualquer dispositivo de escuta
num raio de 8 metros com desinformação eletrônica. Se Kurlen e sua parceira estivessem escutando ilegalmente, só pegariam ruído branco, agora.
A pasta e o aparelho oculto tinham quase dez anos de idade e, pelo que eu sabia, o dono original continuava na prisão federal. Eu a recebera como parte do pagamento
havia pelo menos sete anos, na época em que casos envolvendo drogas eram meu ganha-pão. Eu sabia que a lei estava sempre tentando construir uma ratoeira melhor,
e no período de dez anos o negócio da escuta eletrônica devia ter passado por pelo menos duas revoluções. De modo que não me sentia inteiramente à vontade. Eu ainda
precisava usar de cautela no que dissesse e esperava que minha cliente fizesse o mesmo.
- Lisa, a gente não vai conversar muito aqui porque não sabe quem pode estar escutando. Você entendeu?
- Acho que sim. Mas o que está acontecendo? Não entendo o que está acontecendo!
Sua voz subira de tom gradativamente ao longo da frase, até chegar ao ponto de gritar a última palavra. Isso era um padrão emocional de conversa que costumara usar
várias vezes ao telefone comigo, quando eu lidava com a execução de sua hipoteca. Agora havia mais coisas em jogo e eu tinha de impor limites.
- Não quero saber disso, Lisa - disse com firmeza. - Nada de gritar comigo. Tá entendendo? Se quer que eu seja seu advogado nesse negócio, melhor não gritar comigo.
- Tudo bem, desculpe, mas estão dizendo que eu fiz uma coisa que eu não fiz.
- Eu sei, e a gente vai brigar contra isso. Mas nada de gritar.
Como haviam trazido ela de volta antes que o procedimento de autuação começasse, Lisa continuava usando suas próprias roupas. Ela estava com uma camiseta branca
com um padrão floral na frente. Não vi sangue ali nem em lugar algum. Seu rosto estava manchado pelo choro e o cabelo castanho e crespo estava despenteado. Era uma
mulher pequena e parecia ainda menor à luz fria da sala.
- Preciso fazer umas perguntas - eu disse. - Onde você estava quando foi encontrada pela polícia?
- Eu estava em casa. Por que estão fazendo isso comigo?
- Olha, Lisa, me escuta. Você precisa se acalmar e deixar que eu faça as perguntas. Isso é muito importante.
- Mas o que está acontecendo? Ninguém me conta nada. Disseram que eu estava sendo presa pelo assassinato de Mitchell Bondurant. Quando? Como? Eu nunca cheguei perto
daquele homem. Eu não desrespeitei a ordem de restrição.
Percebi que teria sido melhor se eu tivesse assistido ao DVD de Kurlen antes de conversar com ela. Mas estava dentro das expectativas entrar num caso em desvantagem.
- Lisa, você realmente está detida pelo homicídio de Mitchell Bondurant. O detetive Kurlen me contou que você admitiu algumas coisas quando...
Ela gritou e levou as mãos ao rosto. Vi que estava algemada. Uma nova onda de lágrimas começou.
- Eu não admiti nada! Eu não fiz nada!
- Fica calma, Lisa. É por isso que eu estou aqui. Para defender você. Mas a gente não tem muito tempo agora. Eles me deram dez minutos e depois vão terminar a autuação.
Preciso q...
- Eu vou pra cadeia?
Fiz que sim, relutante.
- Mas e a fiança?
- É muito difícil conseguir fiança numa acusação de homicídio. E mesmo que eu conseguisse um acordo, você não ia ter o d...
Outro gemido agudo encheu a pequena sala. Perdi a paciência.
- Lisa! Para com isso já! Agora escuta, sua vida está em jogo, entendeu? Você precisa se acalmar e escutar o que eu vou dizer. Sou seu advogado e vou fazer o melhor
possível para te tirar daqui, mas isso vai levar algum tempo. Agora escuta o que eu vou perguntar e responde sem todo esse...
- E o meu filho? E Tyler?
- Tem uma pessoa do meu escritório fazendo contato com sua irmã e vamos providenciar para que ela fique com ele até a gente conseguir tirar você dessa.
Tomei o maior cuidado em não ser muito específico sobre sua soltura. Até a gente conseguir tirar você dessa. No que me dizia respeito, isso podia levar dias, semanas
ou até anos. Podia nunca acontecer. Mas eu não precisava entrar em detalhes.
Lisa balançou a cabeça, como que aliviada em saber que seu filho estaria com sua irmã.
- E quanto a seu marido? Você tem um número para entrar em contato com ele?
- Não, não sei onde ele está e de qualquer jeito não quero que você entre em contato com ele.
- Nem pelo seu filho?
- Principalmente por meu filho. Minha irmã vai cuidar dele.
Balancei a cabeça e deixei isso pra lá. Agora não era o momento de falar sobre seu casamento fracassado.
- Certo, com calma, agora, vamos falar sobre hoje de manhã. Estou com o disco que recebi dos detetives, mas quero repassar isso eu mesmo. Você disse que estava em
casa quando o detetive Kurlen e sua parceira chegaram. O que estava fazendo?
- Eu estava... estava no computador. Mandando e-mails.
- Certo, para quem?
- Para amigos meus. Para pessoas na FLAG. Eu estava falando para eles que íamos nos encontrar amanhã no fórum às dez e que era para levar os cartazes.
- Ok, e quando os detetives chegaram, o que exatamente disseram?
- Só o homem falou. Ele...
- Kurlen.
- Isso. Eles entraram e ele perguntou algumas coisas. Daí ele me perguntou se eu não me importava de ir até a central de polícia para responder a algumas perguntas.
Eu quis saber sobre o que era e ele disse Mitch Bondurant. Não disse nada sobre ele ter morrido ou sido assassinado. Então eu disse tudo bem. Achei que talvez finalmente
estivessem investigando ele. Não sabia que eu estava sendo investigada.
- Bom, ele informou que você tinha certos direitos de não falar com ele e de contatar um advogado?
- Sim, como na tevê. Ele mencionou meus direitos.
- Quando, exatamente?
- Depois que a gente chegou aqui, quando disse que eu estava sendo presa.
- Você veio no carro com ele pra cá?
- Isso.
- E no carro, você disse alguma coisa?
- Não, ele ficou no celular quase o tempo todo. Ouvi ele dizer umas coisas do tipo “Estou com ela aqui” e coisas assim.
- Você estava algemada?
- No carro? Não.
Jogada esperta do Kurlen. Havia se arriscado a levar no carro uma suspeita de homicídio sem algemas a fim de manter sua guarda baixa e acalmá-la, para que concordasse
em conversar com ele. Não dá para construir uma ratoeira melhor do que essa. Isso poderia permitir à promotoria também argumentar que Lisa não estava sob voz de
prisão e que desse modo suas declarações foram voluntárias.
- Então você foi trazida aqui e concordou em conversar com ele?
- É. Eu não fazia a menor ideia de que iam me prender. Achei que estava ajudando em um caso.
- Mas Kurlen não informou sobre qual era o caso?
- Não, de jeito nenhum. Só depois que ele falou que eu estava sendo presa e que podia dar um telefonema. E foi nessa hora que me algemaram também.
Kurlen havia usado alguns dos truques mais velhos da cartilha, mas se eles continuavam na cartilha era porque ainda funcionavam. Eu tinha de assistir ao DVD para
saber exatamente o que Lisa admitira, se é que admitira alguma coisa. Perguntar-lhe sobre isso enquanto estava transtornada não era a melhor forma de usar meu tempo
limitado. Como que para enfatizar isso, escutei uma batida súbita e forte na porta, seguida de uma voz abafada informando que me restavam dois minutos.
- Ok, vou começar a trabalhar nisso. Mas antes vou precisar que assine alguns documentos. Esse primeiro aqui é um contrato novo que cobre a defesa criminal.
Empurrei o documento de uma página por sobre a mesa até ela e pus uma caneta em cima. Ela começou a ler.
- Todos esses honorários - ela disse. - Cento e cinquenta mil dólares por um julgamento? Não posso pagar isso. Não tenho esse dinheiro.
- Isso é um emolumento padrão e é só para o caso de chegarmos a um julgamento. E quanto ao que você pode pagar ou não, é pra isso que tenho esses outros documentos.
Esse aqui me dá poderes de procuração, permitindo que eu solicite acordos para livro e filme, coisas desse tipo, que surgirem do caso. Tenho um agente trabalhando
nesse negócio. Se aparecer algum acordo nesse sentido, ele vai atrás. O último documento cria um penhor em cima de todos esses fundos, de modo que a defesa possa
ser paga.
Eu sabia que o caso dela ia chamar a atenção. A epidemia de execuções era a catástrofe financeira do momento, no país. Podia sair um livro daquilo, talvez até um
filme, e no final quem sabe eu recebesse meu pagamento.
Ela pegou a caneta e assinou os documentos sem ler mais. Peguei tudo de volta e guardei.
- Ok, Lisa, o que vou dizer agora é o melhor conselho do mundo. Então quero que escute e depois me diga se entendeu.
- Tudo bem.
- Não conversa sobre o caso com nenhuma outra pessoa além de mim. Não converse com detetives, carcereiros, outros internos da prisão, não converse nem com sua irmã
ou com seu irmão sobre isso. Sempre que alguém perguntar, e pode acreditar que vão, você simplesmente diz que não pode falar sobre o caso.
- Mas eu não fiz nada errado. Sou inocente! Uma pessoa culpada é que não fala.
Ergui o dedo em sinal de advertência.
- Não, você está errada, e pelo jeito você não está levando a sério o que eu estou dizendo, Lisa.
- Não, estou, estou.
- Então faça como eu disse. Não conversa com ninguém. E isso inclui o telefone da cadeia. Todas as ligações são gravadas, Lisa. Não conversa no telefone sobre seu
caso com ninguém, nem mesmo comigo.
- Certo, certo. Entendi.
- Se isso fizer você se sentir melhor, pode responder a todas as perguntas dizendo: “Sou inocente da acusação, mas por conselho do meu advogado não vou falar sobre
o caso.” Então, que tal?
- Está bom, eu acho.
A porta abriu e Kurlen estava de pé ali. Ele me olhava desconfiado, o que me levou a pensar que tinha sido uma boa precaução ter levado o aparelho de interferência
comigo. Olhei para Lisa outra vez.
- Ok, Lisa, as coisas parecem muito ruins agora, mas vão melhorar. Aguenta firme e não esquece da regra de ouro: não conversa com ninguém.
Fiquei de pé.
- Da próxima vez que a gente se encontrar, vai ser o primeiro comparecimento perante o tribunal, e daí a gente pode conversar. Agora acompanha o detetive Kurlen.
Quatro
Na manhã seguinte, Lisa Trammel compareceu pela primeira vez no Tribunal Superior de Los Angeles, por homicídio em primeiro grau. Uma acusação de circunstâncias
especiais de emboscada foi acrescentada pelo Gabinete da Promotoria, qualificando-a para perpétua sem condicional, e até para a pena de morte. Isso significava uma
futura chance de barganha, para a promotoria. Pude perceber que o promotor queria que o caso fosse resolvido com uma declaração de culpada e um acordo, antes que
as simpatias do público pendessem pela acusada. Que melhor maneira de conseguir esse resultado do que uma perpétua sem condicional ou uma pena de morte pairando
sobre a cabeça da ré?
A sala do tribunal estava lotada com gente da mídia e recrutas e simpatizantes da FLAG, só havia espaço em pé. Da noite para o dia, a história fora divulgada de
forma exponencial, conforme se espalhou a notícia sobre a teoria da polícia e da promotoria de que uma execução de hipoteca podia ter levado ao assassinato de um
funcionário de banco. Isso deu um toque sanguinolento à epidemia financeira nacional, o que, por sua vez, esgotou a lotação do lugar.
Lisa se acalmara consideravelmente após quase 24 horas na cadeia. Parecia um zumbi aguardando na gaiola da custódia por sua audiência de dois minutos. Garanti a
ela, antes de mais nada, que seu filho estava em segurança aos cuidados de sua irmã e depois que a Haller e Associados faria todo o possível para provê-la com a
melhor e mais rigorosa defesa possível. Sua preocupação imediata era sair da cadeia para tomar conta de seu filho e ajudar sua equipe legal.
Embora a audiência de primeiro comparecimento fosse principalmente nada mais que uma declaração das acusações e o ponto de partida do processo judicial, também haveria
oportunidade para um requerimento e argumentação pela fiança. Eu planejava fazer exatamente isso, já que minha filosofia geral era não deixar nenhuma pedra sem virar
e nenhuma questão sem debater. Mas eu estava pessimista acerca do resultado. Por lei, uma fiança seria determinada. Mas, na realidade, a fiança em casos de homicídio
era geralmente fixada na casa dos milhões, desse modo tornando-a inacessível para as pessoas comuns. Minha cliente era uma mãe solteira, desempregada, prestes a
perder a casa. Uma fiança de sete dígitos significava que Lisa não deixaria a cadeia.
O juiz Stephen Fluharty pôs o caso Trammel no topo da agenda, em um esforço de sossegar a mídia. Andrea Freeman, a promotora indicada para o caso, leu as acusações
e o juiz programou a denúncia para a semana seguinte. Trammel só entraria com uma contestação nesse ponto. Esses procedimentos de rotina foram feitos rapidamente.
Fluharty estava para chamar um breve intervalo, de modo que a mídia pudesse guardar o equipamento e ir embora, quando interrompi e fiz um pedido de que ele fixasse
uma fiança para minha cliente. O segundo motivo para fazer isso era ver como a promotoria iria reagir. De vez em quando, eu dava sorte e um promotor revelava prova
ou estratégia quando discutia uma fiança muito alta.
Mas Freeman era cautelosa demais para cometer um deslize desses. Ela argumentou que Lisa Trammel era um perigo para a comunidade e que deveria continuar a ser mantida
sem fiança durante o processo. Observou que a vítima do crime não era o único indivíduo envolvido na execução hipotecária da residência de Lisa, mas apenas um elo
na cadeia. Outras pessoas e instituições nessa cadeia podiam ficar em perigo se Trammel fosse posta em liberdade.
Nenhuma novidade nisso tudo. Parecia óbvio desde o início que a promotoria iria usar a execução como motivo do assassinato de Mitchell Bondurant. Freeman dissera
apenas o suficiente para produzir uma argumentação convincente contra a fiança, mas mencionara pouca coisa sobre o caso de homicídio que estava construindo. Ela
era boa e já havíamos nos enfrentado antes, em outros casos. Até onde me lembrava, eu perdera todos.
Quando chegou minha vez, argumentei que não havia qualquer indicação, tampouco prova, de que Trammel fosse um perigo para a comunidade ou um risco de evasão. Sem
contar com essa prova, o juiz não podia negar uma fiança.
Fluharty cortou sua decisão bem no meio, propiciando uma vitória para a defesa ao determinar que uma fiança devia ser fixada, e propiciando uma vitória para a promotoria
ao determinar a fiança em dois milhões de dólares. O resultado era que Lisa não iria a lugar algum. Ela precisaria de dois milhões como caução ou de um fiador judicial.
Uma fiança de dez por cento custaria a ela 200 mil dólares em dinheiro e isso estava fora de questão. Ela continuaria na cadeia.
O juiz finalmente chamou o intervalo e isso me concedeu mais alguns minutos com Lisa antes que ela fosse retirada pelos assistentes do tribunal. Quando o pessoal
da imprensa saía, eu rapidamente a adverti mais uma vez para ficar de boca fechada.
- É ainda mais importante agora, Lisa, com toda a mídia em cima do caso. Eles podem tentar se aproximar de você na cadeia, seja diretamente, por outros internos
ou com visitas em quem você acha que pode confiar. Então não esquece...
- Não conversar com ninguém, já entendi.
- Ótimo. Bom, quero que você saiba também que toda a minha equipe vai se reunir hoje à tarde para revisar o caso e montar algumas estratégias. Consegue pensar em
alguma coisa que gostaria de propor para discutirmos? Algo que possa ajudar a gente?
- Só tenho uma pergunta e é pra você.
- O que foi?
- Por que você não me perguntou se fui eu?
Vi um dos assistentes do tribunal entrar na cela e se aproximar de Lisa, pronto para levá-la de volta.
- Não preciso perguntar, Lisa - eu disse. - Não preciso saber a resposta para fazer meu trabalho.
- Então nossa justiça é uma porcaria. Não sei se quero ser defendida por um advogado que não acredita em mim.
- Bom, sem dúvida a escolha é sua e tenho certeza de que haveria uma fila de advogados do lado de fora do tribunal que adorariam pegar seu caso. Mas ninguém conhece
as circunstâncias dele ou da execução da hipoteca tão bem quanto eu, e só porque alguém diz que acredita em você não quer dizer que acredita mesmo. Comigo não tem
essa enrolação, Lisa. Comigo é sem perguntas, sem respostas. E isso funciona dos dois lados. Não me pergunta se eu acredito em você e eu não respondo.
Fiz uma pausa para ver se ela queria dizer mais alguma coisa. Mas não.
- Então estamos combinados? Não quero ficar perdendo meu tempo nisso se você vai procurar alguém que fala manso pra ficar no meu lugar.
- Estamos combinados, eu acho.
- Certo, então eu apareço amanhã para discutir o caso e que direção vamos tomar. Estou esperando meu investigador trazer uma pesquisa preliminar sobre o que as provas
estarão mostrando até lá. Ele...
- Posso fazer uma pergunta, Mickey?
- Claro que pode.
- Você teria como me emprestar dinheiro para a fiança?
Isso não me pegou de surpresa. Já perdi a conta de quantos clientes me pediram dinheiro para a fiança. Essa podia ser a maior quantia, até então, mas eu duvidava
que seria a última vez que me pediriam.
- Não posso fazer isso, Lisa. Número um, não tenho toda essa grana, e número dois, é um conflito de interesses o advogado fornecer a fiança de seu próprio cliente.
Então não posso ajudar. O que eu acho que você precisa fazer é se acostumar com a ideia de que vai ficar presa pelo menos durante o julgamento. A fiança foi estabelecida
em dois milhões e isso significa que você precisaria de pelo menos 200 mil só para uma caução com um fiador judicial. É muito dinheiro, Lisa, e se você tivesse,
eu ia pedir metade disso para pagar a defesa. Então de qualquer maneira você continuaria na cadeia.
Sorri, mas ela não achou a menor graça no que eu disse.
- Quando você paga uma caução dessas, você recebe de volta depois do julgamento? - ela quis saber.
- Não, isso fica com o fiador, para cobrir o risco que ele corre, porque ele é que fica responsável pelos dois milhões, se você fugir.
Lisa pareceu exasperada.
- Eu não vou fugir! Vou ficar bem aqui e brigar contra esse negócio. Só quero ficar com meu filho. Ele precisa da mãe dele.
- Lisa, não estou me referindo a você especificamente. Só estava explicando como funciona esse negócio da fiança e da caução do fiador. Bom, o oficial do tribunal
aí atrás de você já foi muito paciente. Você precisa ir com ele e eu preciso ir embora para trabalhar na sua defesa. A gente conversa amanhã.
Balancei a cabeça para o policial e ele se aproximou para levar Lisa de volta à cela do tribunal. Quando passavam pela porta de aço na lateral da gaiola de custódia,
Lisa olhou para trás com uma expressão assustada. Não havia nenhuma maneira de ela saber o que a aguardava, que isso era apenas o início do que seria a provação
mais angustiante de sua vida.
Andrea Freeman havia parado de conversar com um colega de promotoria e isso possibilitou que eu me aproximasse para conversar com ela quando estava saindo da sala
do tribunal.
- Quer tomar um café pra gente conversar um pouco? - perguntei quando fiquei ao seu lado.
- Você não precisa conversar com a sua turma?
- Minha turma?
- A turma das câmeras. Eles vão estar esperando do lado de fora.
- Prefiro conversar com você, e a gente pode até discutir uns procedimentos com a mídia, se quiser.
- Acho que tenho alguns minutos. Você prefere passar na cafeteria do subsolo ou quer subir comigo para tomar um café no Gabinete?
- Vamos até o subsolo. Eu não ia ficar à vontade no Gabinete.
- Sua ex-esposa?
- Entre outras coisas, embora eu e ela estejamos numa fase tranquila agora.
- Fico feliz em saber.
- Você conhece a Maggie?
Havia pelo menos oito promotores trabalhando para o promotor-geral no Gabinete em Van Nuys.
- De vista.
A gente saiu da sala e parou lado a lado na frente da imprensa reunida para anunciar que não haveria comentários sobre o caso nesse estágio inicial. Quando íamos
para os elevadores, pelo menos meia dúzia de repórteres, a maioria de outras cidades, enfiou cartões de visita em minha mão - New York Times, CNN, Dateline, Salon
e o santo graal deles todos, o 60 Minutes. Em menos de 24 horas, eu passara dos miseráveis 250 dólares por mês em execuções hipotecárias no sul de Los Angeles para
a condição de principal advogado de defesa num caso que tinha tudo para ser a história mais marcante desses tempos financeiros.
E estava adorando.
- Eles já foram - disse Freeman assim que entramos no elevador. - Pode tirar esse sorrisinho idiota do rosto.
Olhei para ela e sorri de verdade.
- Muito óbvio, hein?
- Ah, é. Só o que eu posso dizer é: aproveita enquanto pode.
Isso era um lembrete não muito sutil do que eu ia enfrentar naquele caso. Freeman estava galgando rapidamente os degraus do poder no Gabinete da Promotoria e alguns
diziam que um dia chegaria ao topo. As pessoas gostavam de atribuir sua ascensão e reputação na promotoria à cor de sua pele e à política interna. De sugerir que
pegava os casos bons porque pertencia a uma minoria que era protegida de outra minoria. Mas eu sabia que isso era um terrível equívoco. Andrea Freeman era muito
boa no que fazia e tinha o histórico de nunca ter perdido uma, para provar. Quando fiquei sabendo na noite anterior que ela fora incumbida do caso Trammel, foi como
um cutucão nas costelas. Doeu, mas não havia nada que eu pudesse fazer a respeito.
Na cafeteria do subsolo nós nos servimos de duas xícaras e fomos para uma mesa em um canto tranquilo. Ela pegou a cadeira que lhe permitia ver a entrada. Coisa de
gente da lei, desde policiais de patrulha a detetives e promotores. Nunca dê as costas a um potencial ponto de ataque.
- Então... - eu disse. - Aqui estamos. Você está em posição de ter de processar uma potencial heroína americana.
Freeman riu como se eu estivesse louco.
- É, tá bom. Pelo que eu sei, a gente não transforma assassinos em heróis.
Lembrei na hora de um infame caso local que contradizia essa afirmação, mas deixei passar.
- Talvez isso seja forçar um pouco a mão - falei. - Vamos dizer apenas que acho que a simpatia do público vai tender fortemente para o lado da acusada, dessa vez.
E acho que pôr lenha na fogueira da mídia só vai aumentar isso ainda mais.
- Por enquanto, com certeza. Mas quando a prova for divulgada e os detalhes ficarem conhecidos, acho que a simpatia do público não vai mais ser um problema. Pelo
menos, não do meu ponto de vista. Mas o que você está dizendo, Haller? Quer negociar a alegação de culpa num caso que não tem ainda nem um dia de idade?
Balancei a cabeça.
- Não, nada disso. Não quero nada do gênero. Minha cliente diz que é inocente. Só mencionei a questão da simpatia devido à atenção que o caso já está recebendo.
Acabei de pegar um cartão de um produtor do 60 Minutes. Então eu queria estabelecer uns parâmetros e combinar algumas coisas sobre os procedimentos com a mídia.
Você acabou de mencionar a prova e como ela chega no domínio público. Espero que você esteja falando da prova apresentada no tribunal, e não da prova seletiva que
é passada para o L.A. Times ou qualquer outro do quarto poder.
- Ei, por mim vamos chamar de zona de exclusão aérea, no momento. Ninguém fala com a mídia sob nenhuma circunstância.
Franzi o rosto.
- Não estou preparado para chegar a esse ponto, ainda.
Ela balançou a cabeça com ar deliberado.
- Não achei que estivesse. Então só o que eu vou dizer é para tomar cuidado. Vale para os dois. De minha parte não vou hesitar em falar com o juiz se achar que você
está tentando contaminar o júri.
- Eu digo o mesmo.
- Ótimo. Então estamos acertados por enquanto. O que mais?
- Quando vou começar a ver alguma publicação compulsória?
Ela deu um longo gole no café antes de responder.
- Você sabe de outros casos como eu trabalho. Não vou entrar nessa de Eu mostro o meu se você mostrar o seu. Essa é sempre uma rua de mão única, porque a defesa
nunca mostra merda nenhuma. Então prefiro deixar as coisas em compasso de espera.
- Acho que precisamos chegar num acordo, doutora.
- Bom, quando tivermos um juiz, você pode falar com o juiz. Mas não vou bancar a boazinha com uma assassina, seja quem for o advogado dela. E, só para o seu conhecimento,
já dei uma dura em seu coleguinha, Kurlen, por dar aquele disco ontem. Isso não devia ter acontecido e ele tem sorte que eu não o tenha tirado do caso. Considere
um presente da promotoria. Mas é o único que você vai ganhar... doutor.
Era a resposta que eu estava esperando. Freeman era uma ótima promotora, mas na minha opinião não jogava limpo. Um julgamento deveria ser uma disputa franca de fatos
e prova. Ambos os lados com igual sustentação na lei e nas regras do jogo. Mas usar as regras para ocultar ou negacear fatos e provas era a rotina com Freeman. Ela
gostava de um jogo desigual. Não levava adiante a luz da profissão. Nem mesmo via a luz.
- Andrea, deixa disso. Os policiais pegaram o computador da minha cliente e toda a papelada dela. São as coisas da mulher e eu preciso disso para pelo menos começar
a construir a defesa. Você não pode tratar essas coisas como se fossem material de publicação compulsória.
Freeman torceu a boca para o lado e por sua postura parecia de fato estar levando em consideração uma atitude mais conciliatória. Pude perceber pelo gesto que era
mesmo.
- Vou dizer o que farei - disse. - Assim que um juiz for indicado, você vai e pergunta sobre isso. Se o juiz me mandar entregar, eu entrego tudo. Se não, é tudo
meu, e não vou entregar.
- Agradeço muito.
Ela sorriu.
- Não tem de quê.
Sua resposta para meu pedido de cooperação e seu modo sorridente de fazê-lo só serviram para enfatizar um pensamento que vinha ganhando corpo desde que eu soubera
que seria ela no caso. Eu tinha de encontrar um modo de fazer Freeman ver a luz.
Cinco
A Michael Haller e Associados tinha uma reunião de equipe no apartamento de Lorna Taylor em West Hollywood, à tarde. Presentes estavam Lorna, é claro, e meu investigador,
Cisco Wojciechowski - era a casa dele, também -, além da sócia júnior da firma, Jennifer Aronson. Notei que Aronson parecia constrangida no ambiente e tive de admitir
que não era nada profissional. Eu alugara um escritório temporário no ano anterior, quando estava envolvido no caso Jason Jessup, e funcionara bem. Eu sabia que
para o caso Trammel também seria melhor ter um escritório de verdade, em vez de a sala de estar de dois membros da firma. O único problema era que isso seria mais
uma despesa pessoal até eu conseguir tirar algum dinheiro dos direitos para filme e livro no caso - se desse mesmo para conseguir tal coisa. Isso me deixava relutante
em pôr a mão no bolso, mas ao ver a cara de decepção de Aronson, tomei uma decisão.
- Ok, vamos começar - eu disse depois de Lorna ter servido refrigerante e chá gelado para todo mundo. - Sei que esse não é o jeito mais profissional de tocar uma
firma de advocacia, e vamos começar a procurar um escritório assim que pudermos. Nesse meio-t...
- Sério? - disse Lorna, claramente surpreendida por minha informação.
- Isso, eu meio que acabei de decidir.
- Ah, certo, estou feliz que você goste tanto assim da minha casa.
- Não é nada disso, Lorna. É só que eu andei pensando ultimamente, sabe, depois que a Bullocks aqui entrou para a equipe, é como se a gente fosse uma firma de advocacia
de verdade, e talvez fosse melhor a gente ter um endereço legítimo. Sabe, para os clientes virem até a gente, em vez de a gente visitar os clientes.
- Por mim está ótimo. Contanto que eu não tenha que abrir as portas até as dez e possa usar roupão e pantufas para trabalhar. Eu meio que me acostumei com isso.
Dava para perceber que tinha ficado ofendida. Fôramos casados por um curto período e eu conhecia os sinais. Mas eu teria de lidar com isso mais tarde. Era hora de
pôr o foco na defesa de Lisa Trammel.
- Bom, continuando, vamos voltar a Lisa Trammel. Tive uma primeira conversa com a promotoria depois do primeiro comparecimento hoje de manhã e a coisa não foi muito
bem. Já tive uma experiência com Andrea Freeman antes e é o tipo de promotora que não dá trégua. Se tem alguma coisa pra questionar, ela vai questionar. Se for material
de publicação compulsória que ela puder segurar até o juiz mandar entregar, então é isso que ela vai fazer, também. Até certo ponto, eu admiro o que ela faz, mas
não quando estamos no mesmo caso. Em resumo, arrancar a publicação das mãos dela vai ser como arrancar os dentes.
- Bom, mas será que vai ter mesmo um julgamento? - perguntou Lorna.
- A gente tem que presumir que sim - respondi. - Nas breves reuniões que tive com a cliente, ela expressou seu desejo de comprar essa briga. Diz que não fez nada.
Então, por enquanto, nada de alegação de culpa nem acordo. A gente vai se planejar para o julgamento, mas permanecendo aberto a outras possibilidades.
- Espera aí um minuto - disse Aronson. - No e-mail que você me mandou ontem à noite você queria que eu desse uma olhada no vídeo que recebeu do interrogatório. Isso
é publicação compulsória. Não veio da promotoria?
Aronson tinha 24 anos de idade, um tipo mignon de cabelos curtos cuidadosamente cortados para parecer desarrumados, mas com classe. Usava óculos estilo retrô que
escondiam parcialmente seus brilhantes olhos verdes. Vinha de uma faculdade de direito meia-boca que não arrancava suspiros das grandes firmas de advocacia do centro,
mas quando a entrevistei percebi que essa motivação negativa servia de estímulo. Estava ali para provar que aqueles babacas estavam errados. Contratei-a na hora.
- O disco de vídeo veio do detetive principal, e a promotora não ficou nem um pouco feliz. Então não espere mais nada. Se a gente quiser alguma coisa, vai precisar
falar com o juiz e conseguir por conta própria. O que nos leva a Cisco. O que você conseguiu, meu velho.
Todos os olhos se voltaram para meu investigador, que estava sentado em uma cadeira de couro giratória junto à lareira inativa, cheia de vasos com plantas. Havia
se vestido adequadamente para a ocasião, o que significava que sua camiseta tinha mangas. Mesmo assim, a camiseta não ajudava muito a esconder as tatuagens e a arma.
Seus bíceps enormes faziam com que parecesse mais um segurança de boate de strip-tease do que um investigador tarimbado cheio de habilidades na manga.
Levou um longo tempo para eu me acostumar com a ideia daquele monstro tomando meu lugar com Lorna. Mas acabei me conformando e, além do mais, eu não conhecia um
investigador melhor. No passado, quando andava com os Road Saints, os tiras haviam tentado armar para ele duas vezes por porte de drogas. Isso resultou numa desconfiança
permanente em relação à polícia. A maioria das pessoas concede aos policiais o benefício da dúvida. Cisco não, e isso o tornava muito bom no que fazia.
- Certo, vou dividir meu relatório em duas partes - disse. - A cena do crime e a casa do cliente, onde a polícia deu uma busca por várias horas, ontem. Primeiro
a cena do crime.
Sem usar qualquer anotação, ele procedeu aos detalhes do que descobrira na sede do WestLand National. Mitchell Bondurant fora surpreendido pela pessoa que o atacara
quando saía do carro, chegando para trabalhar. Foi golpeado pelo menos duas vezes na cabeça com um objeto desconhecido. Mais provavelmente, atacado por trás. Não
havia ferimentos de defesa em suas mãos ou braços, indicando que ficou fora de combate quase na mesma hora. Um copo de café Joe’s Joe foi encontrado caído no chão
perto dele, junto com sua pasta executiva, que estava aberta, ao lado da roda traseira do carro.
- E sobre os tiros que alguém disse ter escutado? - perguntei.
Cisco deu de ombros.
- Acho que estão considerando como estouro de escapamento.
- Duas vezes?
- Ou uma vez e depois o eco. De qualquer jeito, não teve arma de fogo envolvida.
Ele voltou ao seu relatório. Os resultados da autópsia ainda não haviam saído, mas Cisco apostava que a causa da morte fora o trauma com um objeto rombudo. No momento,
a hora da morte estava listada como entre 8h30 e 8h50. Havia um recibo no bolso de Bondurant que era do Joe’s Joe, a quatro quadras dali. O registro dizia 8h21,
e os investigadores imaginaram que o mais rápido que ele poderia ter ido da cafeteria até sua vaga na garagem do banco eram nove minutos. A ligação para o 911 do
funcionário que encontrou o corpo foi registrada às 8h52.
De modo que a hora estimada para a morte tinha aproximadamente uma janela de vinte minutos. Não era tempo de sobra, mas, quando se trata de coisas como documentar
os movimentos de um réu para fins de álibi, era uma eternidade.
A polícia entrevistou todo mundo que guardava seu carro naquele piso, bem como todo mundo que trabalhava no mesmo departamento de Bondurant, no banco. O nome de
Lisa Trammel não demorou a surgir, e com frequência, nesses depoimentos. Era lembrada como uma pessoa que Bondurant afirmara temer. Seu departamento mantinha um
arquivo de avaliações de ameaça e ela estava relacionada como número um da lista. Como todos sabiam, fora intimada com uma ordem de restrição para manter distância
do banco.
A polícia ganhou na loteria quando uma funcionária do banco afirmou ter visto Lisa Trammel se afastando a pé do prédio na calçada do Ventura Boulevard alguns minutos
após o assassinato.
- Quem é essa testemunha? - perguntei, concentrando-me na parte mais delicada de seu relatório.
- O nome é Margo Schafer. É caixa do banco. Segundo minhas fontes, nunca teve contato com Trammel. Ela trabalha no banco, não no setor de financiamentos. Mas a foto
de Trammel tinha circulado para todos os funcionários depois que o banco obteve a ordem de restrição contra ela. Todo mundo foi informado para se precaver e informar,
caso fosse vista. Então a mulher a reconheceu.
- E isso foi nas dependências do banco?
- Não, foi na rua, a meia quadra dali. A mulher alegou que ela caminhava na direção leste por Ventura, na direção oposta à do banco.
- A gente sabe de alguma coisa sobre essa Margo Schafer?
- Ainda não, mas vamos saber.
Balancei a cabeça. Em geral era desnecessário que eu dissesse a Cisco o que era para investigar. Ele passou à segunda parte do relatório, a busca na casa de Lisa
Trammel. Dessa vez consultou um documento que tirou de uma pasta.
- Lisa Trammel se dispôs voluntariamente, palavras dela, a acompanhar os detetives à Divisão Van Nuys cerca de duas horas após o assassinato. Eles estão alegando
que só foi dada voz de prisão no fim do interrogatório na central. Usando declarações dadas durante esse depoimento, além do relato da testemunha ocular, Margo Schafer,
os detetives obtiveram um mandado de busca para a casa de Trammel. Passaram mais ou menos umas seis horas lá, procurando provas, incluindo a possível arma do crime,
além de qualquer informação digital ou física indicando um plano de assassinar Bondurant.
Mandados de busca determinam uma janela de tempo específica durante a qual a busca deve ter lugar. Depois disso, junto ao tribunal, a polícia deve dar entrada oportunamente
em um documento chamado relação de mandado de busca, que lista exatamente o que foi apreendido. Passa então a ser responsabilidade do juiz revisar a apreensão para
ter certeza de que a polícia agiu dentro dos parâmetros do mandado. Cisco disse que os detetives Kurlen e Longstreth haviam dado entrada na relação da busca nessa
manhã e ele conseguira uma cópia com o escrivão. Era uma peça-chave do caso a essa altura, pois a polícia e a promotoria não estavam fornecendo informações à defesa.
Andrea Freeman cortara esse canal. Mas a petição do mandado de busca e a relação eram documentos públicos. Freeman não podia impedir a liberação. E eles me forneciam
o melhor panorama sobre como o estado estava montando seu caso.
- Comenta só os pontos principais - eu disse. - Mas depois eu quero uma cópia de tudo.
- Aqui está sua cópia - disse Cisco. - No que diz...
- Será que eu posso receber uma cópia também? - perguntou Aronson.
Cisco olhou para mim pedindo permissão. Foi esquisito. Ele estava tacitamente perguntando se ela era de verdade um membro da equipe e não um mero auxílio de atendimento
ao cliente que eu arranjara em uma faculdade de direito qualquer.
- Com certeza - eu disse.
- Pode deixar - disse Cisco. - Agora, os pontos principais. No que diz respeito a uma arma, parece que os detetives entraram na garagem e pegaram todas as ferramentas
de mão que puderam encontrar na bancada de trabalho.
- Então eles não sabem qual era a arma do crime - eu disse.
- Ainda não tem autópsia - disse Cisco. - Vão ter que fazer comparações de ferimentos. Isso vai levar tempo, mas estou com o escritório do legista grampeado. Quando
eles souberem, eu vou saber.
- Ok, o que mais?
- Pegaram o laptop dela, um MacBook Pro de três anos, e uma variedade de documentos relativos à execução da casa em Melba. É nisso que podem deixar o juiz puto da
vida. Eles não listam especificamente os documentos, provavelmente porque eram muitos. Eles mencionam só três pastas. Estão marcadas FLAG, EXECUÇÃO UM e EXECUÇÃO
DOIS.
Eu presumia que quaisquer documentos de execução que Lisa tivesse em casa seriam os que eu dera a ela. A pasta FLAG assim como o computador podiam ter nomes dos
membros do grupo de Lisa¸ um indício de que a polícia estava possivelmente procurando coautores.
- Ok, o que mais?
- Eles pegaram o celular dela, um par de sapatos da garagem e o mais importante de tudo: encontraram um diário pessoal. Eles não descrevem nada mais que isso nem
dizem o que está escrito. Mas acho que se tiver palavras muito duras contra o banco ou contra a vítima em particular, daí a gente vai estar encrencado.
- Vou perguntar sobre isso quando a vir amanhã - eu disse. - Volta a fita um pouquinho. O celular. Estava declarado especificamente no requerimento do mandado que
eles queriam o aparelho? Será que querem sugerir uma coautoria, que ela teve ajuda para assassinar Bondurant?
- Não, nada sobre uma coautoria no requerimento. Eles provavelmente só queriam ter certeza de cobrir todas as possibilidades.
Balancei a cabeça. Ver os movimentos que os investigadores estavam fazendo contra a minha cliente era uma grande ajuda.
- Provavelmente deram entrada em um mandado de busca separado para pedir registros de chamadas da operadora dela - eu disse.
- Vou checar - disse Cisco.
- Ok, mais alguma coisa sobre o mandado?
- Os sapatos. A relação do mandado lista um par de sapatos tirado da garagem. Não diz por que, só diz que eram sapatos de jardinagem. Sapatos femininos.
- Nenhum outro sapato encontrado?
- Nada que tenham assumido o crédito por achar. Só esses.
- Você não ficou sabendo de nada sobre marcas de sapatos na cena do crime, ficou?
- Nada nesse sentido.
- Perfeito.
Eu tinha certeza de que o motivo para a apreensão dos sapatos viria à tona logo. Em um mandado de busca a polícia joga a rede mais larga que a justiça permite. Melhor
pegar o que for possível do que deixar alguma coisa para trás. Às vezes, isso significa pegar itens que no fim das contas não tem nada a ver com o caso.
- A propósito - disse Cisco -, se tiver oportunidade, o requerimento é uma leitura interessante, se você conseguir ignorar os erros de ortografia e gramática. Eles
usaram o interrogatório dela extensamente, mas a gente já viu todo ele no disco que o Kurlen deu pra você.
- Sei, as assim chamadas admissões e exageros dela.
Fiquei de pé e comecei a andar de um lado para outro no meio da sala. Lorna também se levantou e pegou o mandado de busca com Cisco, para tirar uma cópia. Depois
desapareceu num recanto onde ficava seu escritório e onde havia uma fotocopiadora.
Esperei até que voltasse e desse uma cópia dos documentos para Aronson antes de começar.
- Ok, é assim que vamos fazer isso. Antes de mais nada, precisamos seguir firme nesse negócio de achar um escritório de verdade. Algum lugar perto do fórum de Van
Nuys, onde possamos montar nosso QG.
- Quer que eu cuide disso, Mick? - perguntou Lorna.
- Quero.
- Vou procurar um com vaga para estacionar e lugares bons para comer por perto.
- Seria agradável poder ir a pé até o tribunal.
- Pode deixar. Contrato curto?
Fiz uma pausa. Eu gostava de trabalhar no banco traseiro do Lincoln. Havia uma liberdade nisso que ajudava muito em meu processo mental.
- Vamos alugar por um ano. Ver o que acontece.
Em seguida, olhei para Aronson. Estava de cabeça baixa e escrevendo anotações em um bloco legal.
- Bullocks, preciso que atenda nossos atuais clientes e responda com o básico para os novos que vierem nos procurar. O anúncio da rádio dura o mês inteiro, então
a gente não espera nenhuma diminuição na procura. Também vou precisar da sua ajuda com Trammel.
Ela olhou para mim e seus olhos cintilaram com a perspectiva de estar em um caso de assassinato em menos de um ano após ser admitida pela ordem.
- Não fique empolgada demais - eu disse. - Não vou tornar você minha assistente para o tribunal, ainda não. Vai sobrar um bocado de trabalho tedioso na sua mão.
Como você se saía em causa provável naquela faculdade meia-boca?
- Eu era a melhor da classe.
- Obrigação sua. Bom, sabe este documento aí na sua mão? Quero que pegue o mandado de busca e analise cada pedacinho dele. A gente está procurando omissões ou falsidade
ideológica de algum tipo, qualquer coisa que a gente possa usar numa petição para anular. Quero que todas as provas colhidas na casa de Lisa Trammel fiquem de fora.
Aronson engoliu em seco, perceptivelmente. Isso porque eu estava lhe passando uma incumbência quase impossível. Era mais do que trabalho tedioso, porque a tarefa
provavelmente significaria muito esforço para pouco resultado. Dificilmente essa prova era afastada por inteiro de um caso. Eu estava simplesmente cobrindo todos
os ângulos e usando Aronson num deles. Ela era suficientemente inteligente para perceber que esse era um dos motivos para que eu a tivesse contratado.
- Não se esqueça que você está trabalhando num caso de homicídio - eu disse. - Quantos colegas seus da faculdade podem dizer que já fizeram isso?
- Provavelmente nenhum.
- Pode apostar. Então depois eu quero que você pegue o disco do interrogatório de Lisa na polícia e faça a mesma coisa. Procure algum passo em falso dos detetives,
qualquer coisa que a gente possa usar para derrubar esse depoimento também. Acho que pode ter alguma coisa aqui, considerando a determinação do Supremo no ano passado.
Você está familiarizada com a questão?
- Ahn... esse é o meu primeiro caso criminal.
- Então procure se familiarizar. Kurlen fez muita força para fazer parecer que isso veio de um depoimento voluntário. Mas se a gente puder provar que ele a mantinha
sob seu poder, com ou sem algemas, podemos montar nosso caso baseado em que ela foi detida desde o início. A gente faz isso e tudo que ela disse antes da advertência
de Miranda vai pro lixo.
- Ok.
Aronson não ergueu o rosto de suas anotações.
- Está entendendo suas tarefas?
- Estou.
- Ótimo, mas não esquece do resto dos clientes. São eles que pagam as contas. Por enquanto.
Virei de novo para Lorna.
- O que me lembra, Lorna, preciso que faça contato com Joel Gotler e tente conseguir alguma coisa para essa história. O caso todo pode acabar se sair algum acordo,
então vamos tentar fechar um negócio já. Fala pra ele que a gente está disposta a pegar leve nos direitos depois se conseguir uma grana decente adiantada. Estamos
precisando de fundos para a defesa.
Gotler era o agente em Hollywood que me representava. Eu recorria a ele sempre que Hollywood me procurava. Dessa vez, éramos nós que iríamos atrás de Hollywood em
busca de um contrato.
- Faz ele comprar a ideia - disse para Lorna. - Estou com um cartão de visitas no carro, de um produtor do 60 Minutes. A história pode ficar grande.
- Vou ligar para Joel - ela disse. - Sei o que dizer.
Parei de andar de um lado para outro para pensar sobre o que faltava e qual seria minha parte. Olhei para Cisco.
- Quer que eu cuide da testemunha? - ele perguntou.
- Isso mesmo. E da vítima, também. Quero um perfil completo dela e dele.
Minha instrução foi pontuada por um desagradável som de cigarra vindo do interfone na parede junto à porta da cozinha.
- Desculpa, é lá da entrada - disse Lorna.
Ela não fez menção de atender.
- Não vai atender? - perguntei.
- Não, não estou esperando ninguém e os caras da entrega já sabem como proceder. Provavelmente é só alguém pedindo alguma coisa. Nesse bairro aqui mais parece uma
invasão de zumbis.
- Ok - eu disse -, então vamos seguir em frente. O próximo passo é pensar num assassino alternativo.
Isso captou a completa atenção de todo mundo.
- A gente precisa de um “testa de ferro”, alguém para apontar como o real culpado - eu disse. - Se vamos avançar com esse negócio até um julgamento, não vai ser
suficiente só derrubar os argumentos do estado. A gente precisa de uma defesa agressiva. Precisamos fazer o júri olhar numa direção diferente de Lisa. Nesse caso,
vamos precisar de uma teoria alternativa.
Percebi que Aronson me observava enquanto eu falava. Me senti como um professor numa escola de direito.
- O que a gente precisa é de uma hipótese de inocência. Se a gente elaborar uma, a gente ganha o caso.
A cigarra do interfone tocou outra vez. Depois foram mais dois toques longos e insistentes.
- Que droga - disse Lorna.
Irritada, ela se levantou e foi até o interfone. Apertou o botão de comunicação.
- Pois não, quem é?
- É o escritório de Mickey Haller?
Era uma voz de mulher e soava familiar, mas não consegui me situar imediatamente. O alto-falante não era grande e o volume estava baixo. Lorna virou para olhar para
nós e balançou a cabeça como se estivesse confusa. Seu endereço não constava de nenhum de nossos anúncios. Como aquela pessoa estava em seu portão?
- É, mas aqui é só com hora marcada - respondeu Lorna. - Posso dar o número para ligar, se quiser encontrar o doutor Haller.
- Por favor! Preciso falar com ele agora mesmo. Aqui é Lisa Trammel, eu já sou uma cliente. Preciso falar com ele o mais rápido possível.
Fiquei olhando para o interfone como que acreditando que houvesse um canal direto com a cadeia feminina de Van Nuys - onde Lisa deveria estar. Então olhei para Lorna.
- Acho que é melhor você abrir.
Seis
Lisa Trammel não estava sozinha. Quando Lorna atendeu a porta, minha cliente entrou acompanhada de um sujeito que reconheci da sala do tribunal, durante o primeiro
comparecimento de Lisa. Ele ficara na primeira fileira da plateia e chamou minha atenção porque não parecia advogado ou jornalista. Tinha cara de Hollywood. Não
da Hollywood glamourosa, confiante. A outra Hollywood. A dos que aspiravam a ser. Talvez fosse o topete ou o cabelo tingido amadoristicamente, a infalível barbicha
combinando, no queixo, as pelancas no pescoço... parecia um homem de 60 anos tentando se passar por 40, sem muito sucesso. Havia uma corrente de ouro com um símbolo
da paz em seu pescoço. Fosse quem fosse, eu só podia desconfiar que era o motivo de Lisa estar em liberdade.
- Bom, ou você fugiu da cadeia de Van Nuys, ou pagou a fiança - eu disse. - Estou achando que de algum modo foi essa última alternativa.
- Achou certo - disse Lisa. - Oi, todo mundo, este é Herbert Dahl, meu amigo e benfeitor.
- É D-A-H-L - disse o sorridente benfeitor.
- Benfeitor? - eu perguntei. - Isso quer dizer que o senhor bancou a fiança de Lisa?
- A caução, na verdade - disse Dahl.
- Usou quem?
- Um sujeito chamado Valenzuela. O escritório fica ao lado da cadeia. Muito conveniente, e ele afirmou que o conhece.
- Certo.
Parei por um momento, pensando em como prosseguir, e Lisa veio preencher o silêncio.
- Herb é um verdadeiro herói, me resgatando daquele lugar horroroso - disse ela. - Agora que estou livre vou poder ajudar nossa equipe a desmentir todas aquelas
falsas acusações.
Lisa trabalhara previamente com Aronson, mas não diretamente com Lorna ou Cisco. Ela avançou um passo e os cumprimentou, apresentando-se e apertando as mãos como
se aquilo tudo fosse parte de um dia rotineiro e houvesse chegado a hora de começar a trabalhar. Cisco olhou para mim com uma expressão de Que merda é essa?. Encolhi
os ombros. Eu não sabia.
Lisa nunca mencionara Herb Dahl para mim, o amigo querido e benfeitor que estava disposto a empatar duzentos paus numa caução. Isso e o fato de que ela não aproveitara
toda aquela generosidade para pagar sua defesa não me surpreendiam. Sua intromissão em plena reunião de planejamento, pronta para entrar para a equipe, tampouco.
Eu acreditava que com estranhos Lisa era muito habilidosa em manter seus problemas pessoais e emocionais longe da superfície. Ela sabia seduzir quando queria e eu
fiquei imaginando se Herb Dahl fazia alguma ideia de onde estava se metendo. Presumi que também tivesse seus interesses por trás, mas talvez não entendesse que ele
também podia ser objeto de fins interesseiros.
- Lisa - eu disse -, podemos ir até o escritório de Lorna para conversar um minuto em particular?
- Acho que Herb deve escutar qualquer coisa que você tem pra dizer. Ele vai registrar o caso por escrito.
- Bom, ele não vai registrar nossa conversa porque qualquer informação entre um advogado e seu cliente é particular e confidencial. Ele pode ser obrigado a testemunhar
no tribunal sobre qualquer coisa que ouvir ou ver.
- Ah... puxa, não tem um jeito de nomear ele ou qualquer coisa assim para ele poder participar da equipe?
- Lisa, vamos conversar ali dentro um minuto.
Apontei o escritório e Lisa finalmente começou a ir nessa direção.
- Lorna, por que não serve alguma coisa para o senhor Dahl beber?
Conduzi Lisa para o escritório e fechei a porta. Havia duas mesas. Uma para Lorna e outra para Cisco. Puxei uma cadeira encostada na parede para diante da mesa de
Lorna e disse a Lisa para sentar. Depois dei a volta na mesa e sentei de frente para ela.
- Que lugar estranho para um escritório - ela disse. - Parece mais a casa de alguém ou qualquer coisa assim.
- É temporário. Vamos falar sobre seu herói ali, Lisa. Quanto tempo faz que você o conhece?
- Só alguns meses ou algo assim.
- Como foi que você o conheceu?
- Na escadaria do fórum. Ele apareceu num dos protestos da FLAG. Disse que estava interessado em nós da perspectiva de um cineasta.
- Sério? Então ele é cineasta? Onde está a câmera?
- Bom, na verdade ele é um realizador. Muito bem-sucedido. Ele faz, tipo, acordos para livros e filmes. Vai cuidar dessas coisas todas. Esse caso vai ganhar atenção
maciça, Mickey. Na cadeia me disseram que eu tinha pedidos de entrevistas de 36 repórteres. Claro que não me deixaram conversar com nenhum, só Herb.
- Herb conseguiu chegar até você na cadeia, foi? Ele deve ser incansável.
- Ele disse que, quando vê uma história, não para por nada. Lembra daquela garotinha que ficou vivendo uma semana na encosta da montanha com o pai morto depois que
ele sofreu um acidente na estrada? Ele conseguiu um filme televisivo para ela.
- Isso é impressionante.
- Eu sei. Ele é muito bem-sucedido.
- Certo, você já disse isso. Então, você fez algum tipo de acordo com ele?
- Fiz. Ele vai arranjar todos os negócios e a gente racha tudo meio a meio tirando as despesas dele, e ele pega o dinheiro da fiança de volta. Quer dizer, nada mais
justo. Mas ele está falando de muito dinheiro. Acho que eu consigo salvar minha casa, Mickey!
- Você assinou alguma coisa? Um contrato ou qualquer tipo de acordo?
- Ah, já, tudo legal e formalizado. Ele tem que dar minha parte.
- Você sabe disso porque mostrou para o seu advogado?
- Ahn... não, mas Herb disse que era um contrato padrão. Sabe como é, lenga-lenga legal. Mas eu li.
Claro que leu. Exatamente como havia lido quando assinou comigo.
- Posso ver o contrato, Lisa?
- Está com o Herb. Pode pedir pra ele.
- Vou pedir. Mas agora, por acaso, você falou sobre nossos combinados?
- Nossos combinados?
- É, você assinou contratos comigo ontem, na central de polícia, lembra? Um deles era para que eu a representasse criminalmente, e os outros me garantindo poderes
de procuração para representar você e negociar uma possível venda dos direitos da história de modo que pudéssemos financiar sua defesa. Lembra que assinou um documento
de penhor?
Ela não respondeu.
- Você viu que tenho três pessoas ali, Lisa? Estamos todos trabalhando no seu caso. E você ainda não pagou um centavo pra gente, até agora. Isso quer dizer que eu
tenho que arcar com o salário deles todos, com todas as despesas deles. Todas as semanas. É por isso que nos acordos que você assinou ontem você transferia para
mim a autoridade para fechar acordos para livro e filme.
- Ah... eu não li essa parte.
- Deixa eu perguntar uma coisa. O que é mais importante para você, Lisa, que você tenha a melhor defesa possível e tente desafiar as probabilidades e vencer este
caso, ou conseguir um acordo para um livro ou um filme?
Lisa fez uma expressão amuada e depois prontamente desviou da pergunta.
- Mas você não está entendendo. Eu sou inocente. Eu não...
- Não, quem não está entendendo é você. Se você é inocente ou não, não tem nada a ver com o que está em jogo aqui. O importante é o que podemos provar ou contestar
no tribunal. E quando eu digo “nós”, me refiro na verdade a “mim”, Lisa. Eu. Eu sou seu herói, não o tal do Herb Dahl ali, com seu casaco de couro e símbolo da paz
estilo Hollywood. E quero dizer isso como em uma fatia do bolo.
Ela parou por um longo momento antes de responder.
- Não posso, Mickey. Ele acabou de pagar minha fiança. Custou 200 mil dólares. Ele tem que conseguir esse dinheiro de volta.
- Enquanto sua equipe de defesa passa fome.
- Não, você vai receber sua parte, Mickey. Prometo. Eu consigo metade de tudo. Eu vou pagar você.
- Depois que ele conseguir seus 200 mil de volta, mais despesas. Despesas que podem ser qualquer coisa, pelo que parece.
- Ele disse que conseguiu meio milhão para um dos médicos de Michael Jackson. E isso só por uma matéria de tabloide. A gente pode conseguir um filme!
Eu estava muito perto de perder a paciência com ela. Lorna tinha um brinquedinho de aliviar o estresse em cima da mesa. Era um martelinho de juiz, amostra de um
brinde que ela vinha considerando para fins promocionais e de marketing. O nome e o número da firma podiam ir impressos na lateral. Peguei aquilo e apertei o cabo
com força, imaginando que podia ser a traqueia de Herb. Depois de alguns instantes a raiva passou. O negócio funcionava de verdade. Tomei nota mentalmente para mandar
Lorna fechar a compra. A gente podia distribuir o brinde nos escritórios de fiança e nas feiras comemorativas dos bairros.
- Certo - eu disse. - A gente conversa sobre isso depois. Vamos voltar para a sala, agora. Mesmo assim, pode mandar o Herb embora, porque vamos falar sobre seu caso
e a gente não faz isso na frente de pessoas que não estão dentro do círculo de confidencialidade. Mais tarde, você vai ligar pra ele e dizer que não é para ele fazer
nenhum acordo nem tomar nenhuma decisão sem que eu aprove. Está me entendendo, Lisa?
- Estou.
Parecia devidamente conformada e submissa.
- Você quer que eu diga para ele ir ou quer cuidar disso você mesma?
- Pode cuidar disso, Mickey?
- Sem problema. Acho que encerramos por aqui.
Voltamos à sala de estar e pegamos Dahl encerrando uma história.
- ... e isso foi antes dele fazer Titanic!
Ele riu com o desfecho, mas os outros em volta não conseguiram captar a mesma graça em seu senso de humor hollywoodiano.
- Ok, Herb, precisamos voltar a trabalhar no caso, e temos de conversar com Lisa - eu disse. - Eu acompanho você até lá fora.
- Mas como ela vai voltar para casa?
- Eu tenho um motorista. A gente cuida disso.
Ele hesitou e lançou um olhar pedindo socorro para Lisa.
- Tudo bem, Herb - ela disse. - A gente precisa conversar sobre o caso. Eu ligo assim que chegar em casa.
- Promete?
- Prometo.
- Mick, eu posso acompanhá-lo - ofereceu-se Lorna.
- Não, tudo bem. Preciso pegar uma coisa no carro, de qualquer jeito.
Todos se despediram do sujeito com o símbolo da paz no pescoço, e Dahl e eu saímos do condomínio. Todas as unidades no prédio tinham uma saída para a parte externa.
Andamos por uma calçada até o portão de entrada na Kings Road. Vi uma remessa de listas telefônicas entregue junto à caixa do correio e usei uma pilha delas para
manter o portão aberto de modo que eu pudesse entrar de novo.
Fomos até meu carro, estacionado num local proibido na frente do prédio. Rojas estava apoiado no para-choque dianteiro, fumando um cigarro. Eu deixara meu controle
remoto no porta-copos, então o chamei.
- Rojas, o porta-malas.
Ele pegou suas chaves e acionou a tampa lá atrás. Eu disse a Dahl que havia um negócio que eu queria lhe passar e ele me seguiu.
- Você não vai me enfiar ali, vai?
- De jeito nenhum, Herb. Só quero dar uma coisa pra você.
Nós nos curvamos atrás do carro e abri o porta-malas até o fim.
- Meu Deus, você guarda tudo aí dentro, hein - disse ele ao ver as caixas-arquivo.
Não respondi. Peguei a pasta dos contratos e tirei os termos que Lisa assinara no dia anterior. Dei a volta no carro e copiei os documentos na máquina multiuso do
banco da frente. Estendi as cópias para Dahl e fiquei com os originais.
- Aqui, dá uma lida nisso quando tiver um minuto.
- O que é isso?
- É meu contrato de representação com Lisa. A lenga-lenga padrão. Tem também uma procuração e um instrumento de penhor sobre qualquer rendimento derivado do caso.
Você vai ver que ela assinou e datou todos os documentos ontem. Isso quer dizer que eles invalidam o seu contrato, Herb. Olha só as letras pequenininhas. Isso me
dá o controle sobre todos os direitos da história: livros, filmes, televisão, tudo.
Vi sua expressão se endurecendo.
- Espera aí um min...
- Não, Herb, espera um minuto você. Sei muito bem que acabou de desembolsar duzentos paus na fiança, fora tudo que gastou pra conseguir chegar até ela dentro da
cadeia. Sei disso, você tem um investimento enorme nesse negócio. Vou cuidar para que receba de volta. Mais tarde. Mas você vem em segundo nessa história, meu amigo.
Aceita o fato e sai da porra da frente. Você não vai fazer nenhum movimento e nenhum acordo sem conversar comigo primeiro.
Bati no contrato que ele encarava fixamente.
- Se resolver ignorar o que estou dizendo, pode procurar um advogado. E dos bons. Vou manter você de mãos amarradas por dois anos e nunca mais vai ver de volta um
centavo dos seus 200 mil.
Bati a porta do carro, como que para pontuar o argumento.
- Tenha um bom dia.
Deixei-o ali e fui até o porta-malas para devolver os originais à caixa-arquivo. Quando fechei a tampa percebi que ainda dava para notar a sombra da pichação. A
tinta spray fora removida, mas danificara permanentemente a pintura do carro. O Florencia 13 ainda tinha sua marca em mim. Olhei para a placa no para-choque.
IWALKEM
I walk ’em. “Eu levo eles pra passear.” Mas ia ser mais fácil dizer do que fazer, dessa vez. Passei por Dahl, que continuava de pé na calçada olhando para os contratos.
De volta ao portão do condomínio, peguei uma das listas de páginas amarelas na pilha que eu deixara segurando o portão aberto. Abri numa página aleatória do fundo.
Meu anúncio estava lá. Meu rosto sorridente num canto.
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Chequei mais algumas páginas para ter certeza de que o anúncio estava em todas, como eu pagara para ser, e depois larguei a lista de volta na pilha. Eu não tinha
muita certeza nem se alguém ainda consultava listas telefônicas, mas pus meu anúncio ali, de um jeito ou de outro.
Os demais esperavam por mim em silêncio quando voltei. O aparecimento de Lisa com seu benfeitor deixara uma atmosfera de constrangimento no ambiente. Tentei fazer
a reunião recomeçar de um modo que promovesse a unidade da equipe.
- Muito bem, então todo mundo já conhece todo mundo. Lisa, a gente estava no meio de uma discussão sobre como vamos proceder e o que precisamos saber para seguir
em frente. Não contávamos com a vantagem de ter sua presença conosco porque, francamente, eu tinha certeza absoluta que você não deixaria a prisão até conseguirmos
a absolvição no fim. Mas agora você está aqui e sem dúvida quero incluí-la em nossas estratégias. Tem alguma coisa que gostaria de dizer para o grupo?
Fiquei com a sensação de ser o orientador de uma sessão de terapia em grupo na clínica The Oaks. Mas Lisa ficou empolgada com a chance de ter a palavra.
- Tenho, primeiro eu queria dizer que estou muito agradecida por todo seu empenho em me ajudar. Sei que na justiça coisas como culpado e inocente não importam de
verdade. É o que você pode provar. Eu entendo isso, mas achei que talvez vocês gostassem de escutar, nem que fosse só dessa vez. Sou inocente das acusações. Não
matei o senhor Bondurant. Espero que acreditem em mim e que o julgamento prove isso. Tenho um filho pequeno e ele precisa muito da mãe.
Ninguém falou nada, mas todos balançaram a cabeça gravemente.
- Ok - eu disse -, antes de você aparecer a gente estava cuidando da divisão de tarefas. Quem cuida do quê, quem precisa fazer o quê, esse tipo de coisa. Eu gostaria
de incluí-la na programação também.
- No que eu puder ajudar.
Ela estava sentada muito ereta na ponta da cadeira.
- A polícia passou várias horas em sua casa após sua detenção. Deram uma busca de alto a baixo e, aproveitando a autoridade que o mandado de busca dava a eles, levaram
diversos itens que podiam ser uma prova no caso. Temos uma lista, que você é bem-vinda para olhar. Inclusos estão seu laptop e três pastas marcadas como FLAG e EXECUÇÃO
UM e DOIS. É aqui que você entra. No minuto em que formos designados para um tribunal e um juiz, vamos dar entrada num requerimento para pedir permissão imediata
para examinar o laptop e as pastas, mas até lá preciso que você lembre o máximo que puder o que havia nas pastas e no computador. Em outras palavras, Lisa, o que
há nesses documentos que levaria os policiais a apreendê-los? Está entendendo?
- Claro, e sem dúvida eu posso fazer isso. Vou começar hoje à noite.
- Obrigado. Tem mais uma coisa que eu quero perguntar. Sabe, se esse negócio for a julgamento, não vou querer nenhuma ponta solta. Não quero ninguém aparecendo das
trevas ou...
- Por que você disse se?
- Como é?
- Você disse se. Se esse negócio for a julgamento. Não tem se nenhum.
- Desculpe. Ato falho. Mas só para que você fique sabendo, um bom advogado sempre escuta o que a promotoria tem a oferecer. Porque muitas vezes essas negociações
permitem dar uma espiada no processo que o estado está montando. Então se eu disser pra você que estou conversando com a promotoria sobre um acordo, lembre-se que
eu tenho segundas intenções, ok?
- Ok, mas já tô avisando, não vou me alegar culpada de coisa nenhuma que eu não fiz. Tem um assassino à solta por aí enquanto estão tentando me prender por isso.
Ontem à noite eu não consegui dormir naquele lugar horrível. Não conseguia parar de pensar no meu filho... Eu nunca mais ia poder olhar no rosto dele se eu dissesse
ser culpada de alguma coisa que não sou.
Achei que fosse abrir a torneira, mas ela se conteve.
- Entendo - eu disse suavemente. - Agora, Lisa, essa outra coisa que eu quero perguntar é sobre o seu marido.
- Por quê?
Percebi na mesma hora os sinais de advertência acendendo. Estávamos pisando em terreno perigoso.
- Ele é uma dessas pontas soltas. Quando foi a última vez que você teve notícia dele? Será que vai aparecer para nos trazer problemas? Ele pode testemunhar sobre
você, sobre algum ato anterior de retaliação ou vingança? Precisamos saber o que vem por aí, Lisa. Se isso nunca acontecer não tem importância. Se houver uma ameaça,
preciso saber a respeito.
- Eu pensava que um cônjuge não podia testemunhar contra o outro.
- Existe mesmo um privilégio que você pode invocar nesse sentido, mas pode ser uma coisa nebulosa, principalmente com vocês dois não mais vivendo juntos. Então eu
não quero deixar essa ponta solta. Você faz alguma ideia de onde esteja seu marido nesse momento?
Eu não estava sendo cem por cento preciso acerca da lei, mas precisava chegar no marido para compreender melhor a dinâmica do casamento deles e como isso poderia
influenciar ou não na defesa. Cônjuges desaparecidos eram trunfos. Você podia conseguir impedi-los de testemunhar contra o seu cliente, mas isso não significava
que podia impedi-los de cooperar com o estado fora do tribunal.
- Não, ninguém - ela respondeu. - Mas imagino que ele vai aparecer mais cedo ou mais tarde.
- Por quê?
Lisa virou a palma das mãos para cima, como se a resposta fosse fácil.
- Tem dinheiro na jogada. Se ele estiver em algum lugar perto de uma tevê ou dos jornais e ficar sabendo do que aconteceu, ele vai aparecer. Pode contar com isso.
Parecia uma resposta estranha, como se houvesse antecedentes de seu marido sendo um sujeito ganancioso, quando eu sabia que, onde quer que estivesse, estava vivendo
com muito pouco luxo.
- Você me disse que ele estourou o cartão de crédito no México.
- Isso mesmo. Rosarito Beach. Ele passou 4.400 no Visa e excedeu o limite. Tive de cancelar o cartão e esse era o único que tinha sobrado. Mas não me toquei que
cancelando eu ia perder a possibilidade de achar seu paradeiro. Então a resposta é que eu não sei onde ele está agora.
Cisco limpou a garganta e entrou na conversa.
- Fez alguma forma de contato? Telefone, e-mail, carta?
- No início teve alguns e-mails. Depois mais nada, até que ele ligou no aniversário do nosso filho. Isso foi há seis semanas.
- Seu filho perguntou onde ele estava?
Lisa hesitou e depois disse não. Não era uma boa mentirosa. Dava para perceber que havia alguma coisa a mais, ali.
- O que foi, Lisa? - perguntei.
Ela fez uma pausa e então cedeu.
- Vocês vão achar que eu sou uma mãe horrível, mas não deixei ele conversar com o Tyler. A gente começou a discutir e eu... bati o telefone. Depois me senti mal,
mas não dava para ligar de volta, porque o número tinha sido bloqueado.
- Mas ele não tem um celular? - perguntei.
- Não. Tinha, mas o número está fora de serviço faz um tempinho. Ele não ligou do celular. Ou ele pegou um celular emprestado, ou está com um número novo, que não
deu pra mim.
- Pode ser um aparelho descartável - disse Cisco. - Você compra um em qualquer loja de conveniência.
Balancei a cabeça. A história da degradação conjugal deixou todo mundo com expressão grave. Finalmente, eu falei.
- Lisa, se ele voltar a entrar em contato, quero ser informado imediatamente.
- Pode deixar.
Olhei dela para meu investigador. Ficamos nos encarando e na comunicação silenciosa falei para ele checar tudo que podia sobre o marido desaparecido de Lisa. Não
queria o sujeito aparecendo do nada no meio do julgamento.
Cisco balançou a cabeça. Ia cuidar disso.
- Mais algumas coisas, Lisa, e teremos o suficiente para começar.
- Ok.
- Quando a polícia deu uma busca em sua casa ontem eles levaram algumas outras coisas das quais a gente não falou. Uma delas foi descrita como um diário. Você sabe
do que se trata?
- Sei, eu estava escrevendo um livro. Um livro sobre minha jornada.
- Sua jornada?
- É, minha jornada de autodescobrimento com a causa. O movimento. Ajudar as pessoas a salvar suas casas.
- Certo, então era tipo um diário dos protestos e coisas assim?
- Isso mesmo.
- Lembra de em algum momento ter mencionado o nome de Mitchell Bondurant no diário?
Ela olhou para o chão enquanto tentava lembrar.
- Acho que não. Mas posso ter feito isso. Sabe como é, dizer que era o homem por trás de tudo.
- Nada sobre machucá-lo?
- Não, nada do tipo. E eu não fiz nada de mal pra ele! Não fui eu!
- Não é o que estou perguntando, Lisa. Estou tentando descobrir que provas eles podem ter contra você. Então você está me dizendo que o seu diário não vai ser um
problema para nós, certo?
- Isso mesmo. Não vai ser nenhum problema. Não tem nada ruim ali.
- Certo, ótimo.
Olhei para os outros membros da minha equipe. A inquirição com Lisa me fizera esquecer minha próxima pergunta. Cisco me ajudou.
- A testemunha?
- Certo. Lisa, ontem de manhã, na hora do assassinato, você estava em algum lugar perto do edifício do WestLand National, em Sherman Oaks?
Ela não respondeu na mesma hora, o que me levou a pensar que tínhamos um problema.
- Lisa?
- A escola do meu filho é em Sherman Oaks. Eu levo ele de manhã e passo bem perto do prédio.
- Sem problema. Então você passou por lá ontem. Que horário deve ter sido isso?
- Hum, lá pelas 15 pras oito.
- Foi quando levou seu filho para a escola, certo?
- Isso mesmo.
- E depois que você deixa ele lá? Volta pelo mesmo caminho?
- Volto, quase sempre.
- E ontem? Estamos querendo saber sobre ontem. Você passou por lá, na volta?
- Acho que sim, foi.
- Você não lembra?
- Não, não lembro. Eu pego o Ventura para Van Nuys e depois sigo até a via expressa.
- Então você passou na volta depois de deixar Tyler ou fez alguma outra coisa?
- Parei para tomar um café e depois fui para casa. Então eu passei por lá.
- Que horas foi isso?
- Não tenho certeza. Não fico olhando o relógio. Acho que foi lá pelas oito e meia.
- Alguma vez você desceu do carro nas imediações do WestLand National?
- Não, claro que não.
- Tem certeza?
- Claro que tenho certeza. Eu ia lembrar de uma coisa dessas, você não acha?
- Ok. Onde você parou para tomar seu café?
- No Joe’s Joe, no Ventura com Woodman. Sempre vou lá.
Fiz uma pausa. Olhei para Cisco e depois para Aronson. Cisco já me informara antes que Mitchell Bondurant carregava um copo do Joe’s Joe quando foi atacado. Decidi
não fazer a pergunta óbvia por enquanto, a saber, se Lisa vira ou interagira com Bondurant quando estivera na cafeteria. Como advogado de defesa de Lisa, eu estaria
comprometido pelo que sabia. Eu nunca poderia ajudar em um perjúrio. Se Lisa me dissesse que vira Bondurant e até que trocara algumas palavras com ele, seria inadmissível
que eu a fizesse contar uma história diferente no julgamento, se ela fosse testemunhar.
Eu tinha de ser cuidadoso em obter informação que restringiria meus movimentos já numa etapa tão inicial do processo. Eu sabia que isso era uma contradição. Minha
missão era saber tudo que eu podia e mesmo assim havia coisas que eu não queria saber imediatamente. Às vezes, saber coisas limita você. Não saber dá maior margem
de manobra na elaboração de uma defesa.
Aronson estava me encarando, obviamente se perguntando por que eu não fazia a pergunta óbvia. Apenas balancei a cabeça negativamente para ela. Eu lhe explicaria
meus motivos mais tarde - mais uma lição que não ensinavam na faculdade de direito.
Fiquei de pé.
- Lisa, acho que é o suficiente por hoje. Você deu bastante informação pra gente e vamos trabalhar no caso. Meu motorista vai levá-la para casa, agora.
Sete
Ela estava com 14 anos e ainda gostava de comer panqueca no jantar. Minha filha e eu ocupávamos um reservado no Du-par’s, em Studio City. Nosso ritual noturno de
quarta-feira. Fui pegá-la na casa de sua mãe e paramos para umas panquecas quando voltávamos para minha casa. Ela fazia sua lição e eu cuidava de meu caso. Era minha
rotina preferida.
O combinado oficial de guarda era que eu ficava com Hayley toda quarta à noite e em fins de semana alternados. Também alternávamos os Natais e Ações de Graças e
ela ainda podia passar duas semanas comigo nas férias de verão. Mas isso era a determinação da justiça. As coisas tinham melhorado muito desde o ano anterior e com
frequência nós três fazíamos coisas juntos. No Natal, jantamos como uma família. Às vezes minha ex-esposa se juntava a nós para as panquecas. E isso era um desses
meus momentos prediletos, também.
Mas nessa noite eram apenas Hayley e eu. Meu trabalho com o caso envolvia a revisão do registro da autópsia de Mitchell Bondurant. Isso incluía fotos tanto do procedimento
como do corpo no lugar onde foi encontrado, na garagem do banco. De modo que eu me recostava no reservado e tentava me precaver para que nem Hayley nem ninguém mais
no restaurante pudesse relancear as imagens repulsivas. Elas não desciam muito bem com panquecas.
Nesse meio-tempo, Hayley fazia sua lição de ciências, estudando alterações da matéria e os elementos de combustão.
Cisco tinha razão. A autópsia concluía que Bondurant morrera de hemorragia cerebral causada por pontos múltiplos de trauma com algum instrumento cego na cabeça.
Três pontos, para ser exato. O registro compreendia um desenho do topo da cabeça da vítima. Três pontos de impacto estavam delineados no cocuruto, agrupados tão
estreitamente que todos juntos podiam ser cobertos por uma xícara de chá.
Ver o desenho fez minha adrenalina subir. Folheei a página inicial do relatório, onde havia a descrição do corpo examinado. Mitchell Bondurant era descrito como
tendo 1,86 metro e pesando quase 82 quilos. Eu não estava com as medidas de Lisa Trammel à mão, então chamei o número do celular que Cisco deixara com ela nessa
manhã - já que seu próprio aparelho fora apreendido pela polícia. Era sempre uma prioridade assegurar o contato com o cliente a qualquer momento.
- Lisa, é o Mickey. Bem rápido, quanto você mede?
- O quê? Mickey, estou no meio do jantar com...
- Apenas me diga qual sua altura e eu libero você. Não minta. O que diz na sua carteira de motorista?
- Hum, um metro e 61, eu acho.
- Isso está certo?
- Está. O que...
- Ok, isso é tudo que eu precisava. Pode voltar a jantar. Boa noite.
- O qu...
Desliguei e anotei sua altura no bloco sobre a mesa. Ao lado escrevi a altura de Bondurant. O que mexera comigo foi que ele era 25 centímetros mais alto que a pessoa
suspeita de assassiná-lo e ainda por cima os impactos que marcaram seu crânio e o mataram haviam sido desferidos no topo de sua cabeça. Isso originava o que eu chamava
de uma questão de física. O tipo de questão sobre a qual um júri pode deliberar e decidir por si mesmo. O tipo de questão que um bom advogado de defesa pode usar.
O velho clichê: se a luva não serve, então o réu deve ser inocente. A questão aqui era: como a pequena Lisa Trammel acertou Mitchell Bondurant, com seu 1,86 metro,
no alto da cabeça?
Claro, a resposta dependia das dimensões da arma, bem como de algumas outras coisas, como a posição em que a vítima se encontrava. Se ele estava caído no chão quando
foi atacado, nada disso faria diferença. Mas era algo em que se agarrar, no momento. Rapidamente abri uma das pastas sobre a mesa e tirei a relação do mandado de
busca.
- Com quem você estava falando? - perguntou Hayley.
- Minha cliente. Eu precisava saber quanto ela tem de altura.
- Pra quê?
- Porque pode ter alguma coisa a ver com ela ser capaz de fazer o que estão dizendo que ela fez.
Verifiquei a lista dos itens apreendidos. Como informara Cisco, um único par de sapatos estava relacionado ali, e eram descritos como sapatos de jardinagem, encontrados
na garagem. Nada de sapatos de salto alto, sandálias plataforma nem qualquer outro tipo de calçado. Claro, os detetives empreenderam a busca anteriormente à autópsia
e antes de saberem o que ela revelaria. Considerei tudo isso e concluí que sapatos de jardinagem provavelmente não tinham muita coisa, em termos de salto. Se eles
estavam sugerindo que foram usados no assassinato, então Bondurant continuava provavelmente 25 centímetros mais alto que minha cliente - se estava de pé ao ser atacado.
Isso era bom. Sublinhei as observações sobre altura três vezes em meu bloco de anotações. Mas também comecei a pensar na apreensão de um único par de sapatos. A
relação do mandado de busca não dizia por que os sapatos de jardinagem foram levados, mas o mandado dava autoridade à polícia para apreender qualquer coisa que pudesse
ter sido usada para cometer o crime. Eles se concentraram nos sapatos de jardinagem e eu não fazia a menor ideia do motivo.
- A mamãe disse que você tem um caso bem grande agora.
Olhei para minha filha. Ela raramente falava comigo sobre meu trabalho. Eu acreditava que isso era porque na sua idade ela ainda via as coisas muito preto no branco
e sem áreas nebulosas. As pessoas eram boas ou más, e eu ganhava a vida representando gente ruim. De modo que não havia nada sobre o que conversar.
- Disse? Bom, o caso está atraindo bastante atenção.
- É a mulher que matou o cara que ia tirar a casa dela, certo? Foi com ela que você acabou de falar?
- Ela é acusada de matar o homem. Não foi condenada por coisa nenhuma. Mas, sim, era ela.
- Pra que você precisa saber a altura dela?
- Você quer mesmo saber?
- Ahn-ahn.
- Bom, estão dizendo que matou um homem que era bem mais alto do que ela acertando o alto de sua cabeça com algum tipo de instrumento ou qualquer coisa assim. Então
eu só estou pensando se é suficientemente alta para ter feito isso.
- Então Andy vai ter que provar que foi ela, certo?
- Andy?
- A amiga da mamãe. Ela é a promotora do seu caso, a mamãe falou.
- Você quer dizer Andrea Freeman? Uma mulher negra, alta, com cabelo bem curto?
- É.
Então agora era “Andy”, pensei. Andy que disse conhecer minha ex-esposa só de vista.
- Então ela e a mamãe são boas amigas? Eu não sabia disso.
- Elas fazem ioga juntas e às vezes Andy vem quando eu estou com a Gina, e elas saem. Ela mora em Sherman Oaks, também.
Gina era a babá que minha ex usava quando eu não estava disponível ou quando ela não queria que eu soubesse de suas atividades sociais. Ou quando saíamos juntos.
- Bom, faz um favor pra mim, Hay. Não conta pra ninguém sobre o que a gente está conversando ou o que você me escutou falando no telefone. É meio que coisa particular
e não quero que chegue aos ouvidos de Andy. Eu provavelmente não devia ter telefonado na sua frente.
- Tá certo, pode deixar.
- Obrigado, querida.
Esperei para ver se diria mais coisas sobre o caso, mas ela voltou ao seu livro de ciências.
Voltei ao relatório da autópsia e às fotos dos ferimentos fatais na cabeça de Bondurant. O legista raspara a cabeça da vítima em torno dos ferimentos. Uma régua
fora colocada na foto para dar a dimensão. Na pele, os impactos eram rosados e circulares. A pele se rompera, mas o sangue fora lavado para mostrar os ferimentos.
Dois deles se sobrepunham, e o terceiro era a uns três centímetros de distância.
O formato circular da superfície de impacto da arma levou-me a pensar que Bondurant fora atacado com um martelo. Não sou muito do tipo faz-tudo, mas entendo o suficiente
de caixas de ferramentas para saber que a superfície de batida de muitos martelos era circular, às vezes com um formato parecido com ovo. Eu tinha certeza de que
isso seria confirmado pelo especialista em marcas de instrumentos da perícia, mas sempre era bom estar um passo à frente e antecipar seus movimentos. Notei que havia
um pequeno chanfro em forma de V em cada uma das marcas de impacto e não tinha certeza do que aquilo significava.
Chequei a relação do mandado outra vez e vi que a polícia não listara um martelo entre as ferramentas apreendidas na garagem de Lisa Trammel. Isso era curioso, pois
várias outras ferramentas, menos comuns, tinham sido apreendidas. Aqui, outra vez, isso talvez fosse porque a busca fora empreendida antes da condução da autópsia
e antes que tais fatos fossem conhecidos. A polícia pegou todas as ferramentas, em vez de uma ferramenta específica. Mas ainda restava a questão.
Onde estava o martelo?
Havia de fato um martelo?
Isso, é claro, era a primeira faca de dois gumes do caso. A promotoria argumentaria que a falta de um martelo em uma bancada de ferramentas completamente suprida
era indicativo de culpabilidade. A acusada usou o martelo para golpear e matar a vítima, depois se livrou da ferramenta para ocultar seu envolvimento no crime.
O lado da defesa desse argumento era de que o martelo faltando era prova de inocência do réu. Sem arma do crime, você não tem qualquer conexão com o réu, e não tem
um caso.
Na teoria, era pau a pau. Mas nem sempre era assim. Os jurados tipicamente pendiam pela promotoria em tais questões. Pode chamar de vantagem do time da casa. A promotoria
sempre é o time da casa.
Mesmo assim, fiz uma anotação para dizer a Cisco que procurasse o martelo de todos os modos possíveis. Conversar com Lisa Trammel, ver o que ela sabia. Ir atrás
do marido, nem que fosse para perguntar se algum dia houvera um martelo e o que acontecera com ele.
As fotos seguintes da autópsia eram do próprio crânio rachado após o couro cabeludo ter sido puxado. Os danos foram extensos, o osso perfurado em todos os três golpes,
com fraturas em um padrão quase ondulado emanando das áreas de impacto. Os ferimentos eram descritos como impossíveis de sobreviver e as fotos respaldavam totalmente
essa conclusão.
A autópsia listava várias outras lacerações e escoriações no corpo e até uma fratura, além de três dentes quebrados, mas o legista interpretou tudo isso como ferimentos
ocorridos quando Bondurant caiu de frente no chão durante o ataque. Ele estava inconsciente, quando não já morto, ao atingir o piso da garagem. Não havia ferimentos
defensivos relacionados.
Parte do protocolo da autópsia continha fotocópias coloridas de fotos da cena do crime fornecidas ao legista pelo DPLA. Não era uma sequência completa, mas apenas
seis fotos mostrando a orientação do corpo no local - ou seja, do modo como fora encontrado. Eu teria preferido uma série completa das verdadeiras fotos impressas,
mas só conseguiria isso depois que o juiz derrubasse o embargo da publicação compulsória lançado sobre o caso por Andy Freeman.
As fotos da cena do crime mostravam o corpo de Bondurant de inúmeros ângulos. Ele estava esparramado entre dois carros na garagem. A porta do motorista de um SUV
Lexus estava aberta. Havia um copo de café Joe’s Joe no chão e uma poça de café derramado. Perto havia uma maleta aberta.
Bondurant caíra de bruços, a parte de trás e o topo de sua cabeça encrostados de sangue. Seus olhos estavam abertos e ele parecia fitar o concreto.
Nas fotos havia marcadores de prova junto aos respingos de sangue no concreto. Não houve análise para determinar se aquilo era sangue salpicado do ataque ou gotas
da arma do crime.
Considerei a pasta do executivo uma coisa curiosa. Por que estava aberta? Alguma coisa fora tirada? Será que o assassino se detivera para vasculhar a maleta depois
de assassinar Bondurant? Nesse caso, teria parecido um gesto frio e calculado. A garagem estava cheia de funcionários chegando para trabalhar no banco. Perder tempo
olhando dentro de uma pasta enquanto o corpo de sua vítima jaz ao lado parecia um risco extremo, mas não o tipo de gesto que um assassino impelido pela emoção e
vingança faria. Isso não era ação de um amador.
Fiz mais algumas anotações relativas a essas questões e depois um lembrete final. Eu precisaria que Cisco descobrisse se as vagas na garagem eram privativas. O nome
de Bondurant constava da parede à frente do carro? A classificação de emboscada acrescentada à acusação de homicídio indicava que a promotoria acreditava que Trammel
sabia onde Bondurant estaria, e quando. Teriam de provar isso no julgamento.
Fechei as pastas de Trammel e passei um elástico em torno delas e do bloco de anotações.
- Está tudo bem aí? - perguntei a Hayley.
- Claro.
- Já está quase terminando?
- Minha comida ou minha lição de casa?
- As duas coisas.
- Já terminei de comer, mas ainda tenho estudos sociais e inglês. Mas a gente pode ir, se você quiser.
- Ainda tenho algumas pastas para olhar. Preciso estar no tribunal amanhã.
- Para o caso do assassinato?
- Não, outros casos.
- Como aqueles em que você está tentando impedir que as pessoas fiquem sem as casas delas?
- Isso mesmo.
- Como podem ter tantos casos assim?
Isso na boca de uma criança!
- Cobiça, meu bem. Tudo se reduz à cobiça geral das pessoas.
Olhei para ela para ver se isso seria suficiente, mas ela não voltou à sua lição de casa. Olhou para mim esperando mais, uma menina de 14 anos interessada no que
a maior parte do país não estava.
- Bom, o que acontece é que quase sempre é preciso muito dinheiro para comprar uma casa ou um apartamento. Por isso que em vez de comprar muita gente aluga. A maioria
das pessoas que compra uma casa própria precisa dar uma quantia muito grande de dinheiro, mas elas quase nunca têm suficiente para comprar a casa de uma vez, então
pedem um empréstimo para o banco. O banco decide se elas têm dinheiro suficiente e se ganham o suficiente para pagar o empréstimo de volta, depois, e isso se chama
hipoteca. Então, se tudo parece ok, as pessoas compram a casa que escolheram e vão devolvendo o dinheiro da hipoteca com pagamentos mensais que duram anos. Está
entendendo?
- Você diz que é como pagar aluguel para o banco?
- Mais ou menos. Mas quando você dá dinheiro para um senhorio você não tem direito algum à propriedade. Já com a hipoteca supostamente você é em parte o proprietário.
O imóvel é seu e, como dizem, o sonho americano é ter uma casa própria.
- A sua é assim?
- É. E a da sua mãe também.
Ela balançou a cabeça, mas eu não tinha certeza se estávamos conversando num nível compreensível para uma garota de 14 anos. Não era um grande exemplo do sonho americano
ela ver seus pais com hipotecas separadas para pagar suas moradias separadas.
- Ok, então faz um certo tempo começaram a facilitar a compra de uma casa. E não demorou para que praticamente qualquer um que entrasse num banco ou em um escritório
de financiamento de hipotecas conseguisse um empréstimo para a casa própria. Aconteceu um monte de fraude e corrupção e muitos empréstimos foram dados para pessoas
que não deveriam ter recebido um. Algumas pessoas mentiam para conseguir o dinheiro e às vezes eram as financiadoras que mentiam. Foram milhões de empréstimos, Hay,
e, quando você tem tanto dinheiro assim circulando, não existem pessoas ou regras suficientes para controlar.
- Foi como se ninguém fizesse o outro pagar?
- Teve um pouco disso, mas foi principalmente que as pessoas estavam pegando mais do que podiam pagar. E os empréstimos tinham taxas de juros que mudavam. Essas
taxas determinavam quanto o proprietário da casa tinha de pagar a cada mês e elas podiam subir muito. Às vezes, vinham com o que a gente chama de pagamento balão,
em que você precisa pagar o total do financiamento no fim de cinco anos. Resumindo, porque a história é muito longa e complicada, a economia do país começou a ir
mal e o valor dos imóveis caiu junto com ela. Virou uma crise porque milhões de pessoas no país não conseguiam pagar as casas que compraram e não podiam vender porque
as casas valiam menos do que a dívida que incidia sobre elas. Mas os bancos e outras financeiras, e esses grupos de investimento que detinham todas as hipotecas,
não estavam nem aí pra isso. Eles só queriam o dinheiro de volta. Então, quando as pessoas não puderam pagar, eles começaram a tomar as casas delas.
- Então essas pessoas contratam você.
- Algumas, sim. Mas existem milhões de execuções em andamento. Quem emprestou quer o dinheiro de volta, e alguns fazem coisas ruins, outros contratam gente para
fazer coisas ruins. Eles mentem e enganam e levam embora o imóvel da pessoa sem fazer isso de maneira justa e dentro da lei. E é aí que eu entro.
Olhei para ela. Provavelmente já não estava mais acompanhando meu raciocínio. Puxei para mais perto a segunda pilha de pastas que estava sobre a mesa e abri a de
cima. Falei enquanto lia.
- Ok, aqui tem um caso. Essa família comprou uma casa há seis anos e o pagamento mensal era de novecentos dólares. Dois anos depois, quando a merda começou a bater
no vent...
- Pai!
- Desculpa. Dois anos depois, quando as coisas começaram a dar errado nesse país, a taxa de juros deles subiu e, assim, as parcelas também subiram. Ao mesmo tempo,
o marido perdeu o emprego como motorista do ônibus escolar, porque ele sofreu um acidente. Então o marido e a esposa foram até o banco e disseram: “Ei, a gente está
com um problema. Será que dá para mudar ou renegociar nosso empréstimo, assim a gente continua pagando pela casa?” Isso se chama alteração de empréstimo e está mais
para uma grande piada. Essas pessoas fizeram o certo, indo lá cuidar disso, mas o banco enrolou o casal e disse: “Tá, a gente vai dar um jeito. Vocês continuam pagando
o que conseguirem enquanto a gente dá um jeito nisso.” Então eles pagaram o que puderam, mas não foi suficiente. Eles esperaram muito, mas não tiveram mais notícia
do banco. Quer dizer, até receberem a notificação pelo correio de que estavam sofrendo a execução da hipoteca. Então esse é o tipo de coisa que está errada, e eu
tento fazer alguma coisa a respeito disso. É Davi contra Golias, filha. As instituições financeiras gigantes passam que nem um rolo compressor por cima das pessoas
e não tem muitos caras como eu por aí ajudando a defendê-las.
Foi durante minha explicação para minha jovem filha que finalmente me dei conta do motivo pelo qual eu fora atraído para esse campo da lei em particular. Sem dúvida,
parte de meus clientes estava apenas tentando se aproveitar do sistema. Eram uns malandros, em nada melhores do que os bancos aos quais haviam recorrido. Mas parte
dos meus clientes era gente oprimida e desfavorecida. Eram a verdadeira camada mais frágil da sociedade, e meu desejo era ajudá-los a manter suas casas o máximo
que eu conseguisse.
Hayley erguera o lápis e parecia ansiosa para retomar sua lição de casa assim que eu a liberasse. Era educada a esse ponto e devia ter puxado isso de sua mãe.
- Bom, então, é assim que funciona. Pode voltar para sua lição agora. Quer mais alguma coisa para beber ou alguma sobremesa?
- Pai, panquecas já são tipo uma sobremesa.
Ela usava aparelho e escolhera elásticos verde-limão. Quando falava, minha atenção era constantemente atraída para seus dentes.
- Ah, certo, claro. Então quer outra coisa para tomar? Mais leite?
- Não, tô de boa.
- Beleza.
Voltei ao trabalho e separei as três pastas de execução na minha frente. Eu vinha conseguindo tantos clientes com os anúncios de rádio que estava acumulando comparecimentos
no tribunal. Ou seja, tentando programar as audiências e comparecimentos conjuntamente em todos os casos que eu tinha perante um determinado juiz. De manhã eu tinha
três audiências com o juiz Alfred Byrne no fórum do condado, no centro. Todas as três eram defesas baseadas em queixas de execução ilegal e fraude perpetradas pela
própria instituição financeira ou pelos escritórios de cobrança empregados pela instituição.
Em todos esses casos eu protelara a execução com minhas ações na justiça. Meus clientes continuavam em seus imóveis e sem a exigência de fazer os pagamentos mensais.
O outro lado via isso como um esquema de iguais proporções à epidemia de execuções hipotecárias. Eu era objeto de desprezo dos meus colegas no lado adversário por
participar da perpetuação de uma fraude e por adiar o resultado inevitável.
Por mim, tudo bem. Quando se sai do campo de defesa criminal, a pessoa está acostumada a ser desprezada.
- Cheguei tarde demais para as panquecas?
Ergui o rosto e vi minha ex-esposa deslizando no reservado ao lado de minha filha. Ela deu um beijo na bochecha de Hayley antes que a menina pudesse ficar na defensiva.
Estava na idade para isso. Desejei que Maggie viesse sentar do meu lado do reservado e dar um beijo na minha bochecha. Mas eu podia esperar.
Sorri para ela enquanto começava a recolher todas as pastas sobre a mesa para dar espaço.
- Nunca é tarde demais para panquecas - eu disse.
Oito
Lisa Trammel foi denunciada formalmente em Van Nuys na terça-feira seguinte. Era uma audiência de rotina destinada a fazer constar dos autos sua declaração de culpada
ou inocente e dar partida na contagem para atender a exigência de um julgamento rápido do estado. Contudo, como minha cliente estava em liberdade sob fiança, provavelmente
abriríamos mão do julgamento rápido. Não havia motivo para pressa, já que ela respirava os ares da liberdade. O caso iria ganhar corpo lentamente como uma tempestade
de verão e começar quando a defesa estivesse plenamente preparada.
Mas a audiência de denúncia serviu efetivamente ao propósito de anunciar a alegação franca e confiante de Lisa de “inocente” perante o tribunal e as câmeras da mídia
presente. Embora o público fosse menor do que por ocasião de seu primeiro comparecimento (a mídia nacional tende a se desinteressar dos procedimentos mais comuns
de um caso conforme ele transita pelo sistema de justiça), ainda assim a mídia local apareceu em peso e a audiência de 15 minutos foi bem documentada.
O caso havia sido designado para o juiz Dario Morales, da Suprema Corte, para a denúncia e audiência preliminar. Esta última seria uma apresentação perfunctória
das acusações. Lisa sem dúvida seria considerada apta a responder perante a justiça e o caso seria então designado a outro juiz para o evento principal, o julgamento.
Embora eu tivesse conversado com ela pelo telefone quase diariamente desde sua prisão, fazia mais de uma semana que eu não via Lisa. Ela declinara meus convites
para nos encontrarmos pessoalmente e agora eu sabia por quê. Parecia uma outra mulher quando a vi no tribunal. Exibia um moderno corte de cabelo ondulado e seu rosto
parecia mais corado e mais cheio. O diz que diz na sala do tribunal dava a entender que Lisa passara por um tratamento facial com Botox, para dar uma levantada no
visual.
Eu acreditava que essas mudanças na aparência, bem como o elegante traje novo que Lisa estava usando, eram obra de Herb Dahl. Ele e Lisa pareciam unha e carne, e
o envolvimento de Dahl começava a se tornar cada vez mais incômodo. Ele passara a mandar produtores e roteiristas ligar sem trégua para meu número comercial. Isso
obrigava Lorna a rechaçar constantemente suas tentativas de obter uma parte da história de Lisa Trammel. Rápidas checagens no Internet Movie Database normalmente
revelavam que esses conhecidos de Herb Dahl eram os usuais picaretas e sanguessugas hollywoodianos do pior calibre. Não que seria mal recebida uma bela injeção de
dinheiro de Hollywood para bancar nossos custos crescentes, mas essas pessoas eram todas do tipo que fechavam negócio primeiro e vinham cobrar depois, e a coisa
não ia funcionar. Nesse meio-tempo, meu próprio agente estava à caça de algum negócio capaz de fornecer um adiantamento para cobrir alguns salários e o aluguel de
um escritório, deixando ainda restar o suficiente para pagar Dahl e tirá-lo do nosso pé.
Em quase todas as audiências de tribunal, a informação e as ações mais importantes não são as que terminam nos termos do processo. Assim, igualmente, se deu com
a denúncia formal de Lisa. Depois que sua declaração foi rotineiramente registrada nos autos e Morales agendou uma audiência de status para dali a duas semanas,
eu disse ao juiz que a defesa tinha vários requerimentos para submeter à consideração do tribunal. Ele os acolheu, eu me aproximei e entreguei ao seu auxiliar cinco
requerimentos separados. Passei cópias para Andrea Freeman, também.
Os três primeiros requerimentos foram preparados por Aronson após sua cuidadosa revisão do mandado de busca do DPLA, do vídeo do detetive Kurlen entrevistando Lisa
Trammel e das questões da advertência de Miranda e de quando efetivamente foi dada voz de prisão a Lisa. Aronson encontrara inconsistências, erros de procedimento
e exageros dos fatos. Ela esboçou requerimentos para anular, pleiteando que o interrogatório gravado fosse descartado do caso e que toda prova coletada na busca
da residência da acusada também fosse excluída.
Os requerimentos foram bem-pensados e estavam redigidos de forma convincente. Fiquei orgulhoso de Aronson e satisfeito comigo mesmo por identificar nela um diamante
bruto quando seu currículo foi parar sobre minha mesa. Mas na verdade eu sabia que seus requerimentos não tinham grande chance. Nenhum juiz eleito para o tribunal
vai querer jogar fora a prova num caso de homicídio. Não se ele espera que seu eleitor o mantenha no cargo. De modo que o magistrado irá procurar maneiras de conservar
o status quo e submeter as decisões sobre prova perante um júri.
Mesmo assim, os requerimentos de Aronson desempenharam importante papel na estratégia da defesa. Porque acompanhando-os havia dois outros requerimentos. Um deles
visava pôr em marcha o processo de publicação compulsória requisitando acesso da defesa a todos os documentos e memorandos internos pertencentes a Lisa Trammel e
Mitchell Bondurant em posse do WestLand Financial. O outro era uma petição obrigando a promotoria a permitir que a defesa examinasse o laptop, o celular e todos
os papéis pessoais de Trammel apreendidos na busca dada em sua residência.
Como Morales iria querer agir de modo equitativo tanto em relação à defesa como à promotoria, minha estratégia era forçar o juiz a tomar uma decisão salomônica.
Cortar o bebê ao meio. Descartar os requerimentos para anulação, mas conceder à defesa o acesso pedido aos dois outros requerimentos.
Claro, tanto Morales como Freeman já estavam nessa vida havia muito tempo e perceberiam a estratégia a uma légua de distância. Mesmo assim, só porque sabiam o que
eu estava fazendo não queria dizer que podiam me deter. Além do mais, eu estava com um sexto requerimento em meu bolso que ainda não submetera ao tribunal e este
seria meu ás na manga.
Morales deu a Freeman dez dias para responder aos requerimentos e protelou a audiência, passando rapidamente ao caso seguinte. Um bom juiz sempre mantém os casos
andando. Virei para Lisa e disse-lhe para me esperar no corredor, porque eu tinha de conversar com a promotora. Percebi que Dahl a esperava no portão da balaustrada.
Ele teria o maior prazer em acompanhá-la. Decidi deixar para cuidar dele depois e fui até a mesa da promotoria. Freeman estava de cabeça baixa, anotando alguma coisa
em um bloco amarelo.
- Ei, Andy.
Ela ergueu o rosto para mim. Esboçava um sorriso, esperando ver algum amigo que costumasse chamá-la de Andy. Quando viu quem era, seu sorriso desapareceu num instante.
Pus o sexto requerimento sobre a mesa diante dela.
- Dê uma olhada nisto aqui quando tiver um minuto. Vou dar entrada amanhã de manhã. Não queria sobrecarregar o tribunal com um monte de papelada hoje, sabe? Amanhã
de manhã serve, mas pensei em deixá-la de sobreaviso, já que envolve você.
- Eu? Do que você está falando?
Não respondi. Afastei-me da mesa, passei pelo portão e deixei a sala do tribunal. Quando passava pelas portas duplas vi minha cliente e Herb Dahl já posando diante
de um grosso semicírculo de repórteres e câmeras. Aproximei-me rapidamente por trás de Lisa, agarrei seu braço e a puxei no meio de uma frase.
- I-i-isso é t-t-tudo, p-p-pessoal! - eu disse, na minha melhor imitação de Gaguinho.
Lisa tentou se libertar de meu aperto, mas mesmo assim eu consegui tirá-la do aglomerado e começar a andar com ela pelo corredor.
- O que você está fazendo? - ela protestou. - Você está me fazendo passar vergonha!
- Passar vergonha? Lisa, você mesma está se fazendo passar vergonha do lado daquele cara. Eu falei pra sair de perto dele. Agora olha só pra isso, você está toda
produzida, está se achando uma estrela de cinema. Isso é um julgamento, Lisa, não o Entertainment Tonight.
- Eu estava contando minha história para eles.
Parei de andar quando ficamos longe o suficiente dos repórteres para não sermos escutados.
- Lisa, você não pode conversar abertamente com a mídia desse jeito. Esse negócio vai se voltar contra você.
- Do que você tá falando? Foi uma oportunidade perfeita para dar meu lado da história. Está acontecendo uma tremenda injustiça comigo e chegou a hora de falar a
verdade. Já disse, é gente culpada que não fala.
- O problema é que o Gabinete da Promotoria tem uma unidade de mídia e eles copiam e registram toda matéria sobre você que aparece nos jornais, na tevê e tudo o
mais. Eles vão ter uma cópia de tudo que você disser. E se você algum dia mudar sua versão, nem que seja em um mínimo detalhe, entre uma declaração e outra, você
está na mão deles. Eles vão crucificar você na frente do júri. O que estou tentando dizer é que não vale o risco, Lisa. Você precisa deixar que eu fale em seu nome.
Mas se não consegue fazer isso, e você quer muito contar sua própria história, então a gente prepara alguma coisa e ensaia, depois planeja os contatos estratégicos
com a mídia.
- Mas é aí que o Herb entra. Ele toma cuidado pra que eu não...
- Deixa eu explicar isso outra vez, Lisa. Herb Dahl não é seu advogado e os seus interesses não são a prioridade número um dele. A prioridade dele é ele mesmo. Entendeu?
Parece que você não consegue enfiar o que eu estou dizendo na cabeça. Você precisa se livrar dele. Ele...
- Não! Não vou fazer isso! Eu não quero! Ele é o único que liga pra mim de verdade.
- Ah, isso é mesmo muito comovente, Lisa. Se ele é mesmo o único que liga pra você, por que continua ali conversando com aquela gente?
Apontei o bolo de repórteres e fotógrafos. Como o previsto, Dahl não parava de falar, dando a eles tudo que queriam.
- O que ele está dizendo para eles, Lisa? Você faz ideia? Porque pode ter certeza que eu não sei, e isso é meio que gozado, já que você é acusada e eu sou o advogado
de defesa. Quem é ele?
- Ele fala por mim - disse Lisa.
Observando Dahl apontar o dedo para chamar os repórteres, vi a porta da sala do tribunal sendo aberta bruscamente. Andrea Freeman saiu marchando, segurando o sexto
requerimento na mão, os olhos esquadrinhando o corredor. Primeiro, ela focalizou o bolo da mídia, mas logo percebeu que não era eu ali no centro. Quando seu radar
me captou, corrigiu o curso e veio em linha reta na minha direção. Alguns repórteres a chamaram, mas ela rapidamente os dispensou gesticulando com o documento.
- Lisa, vai até um daqueles bancos, fica sentada e espera por mim. E não conversa com nenhum repórter.
- Do que v...
- Vai logo!
Quando Lisa se afastava, Freeman veio até onde eu estava. Parecia louca da vida e percebi que seus olhos chispavam.
- Que porra é essa, Haller?
Ela ergueu o papel. Mantive uma postura calma, mesmo com ela invadindo meu espaço pessoal.
- Bom - eu disse -, acho que está bem óbvio o que é isso. É um requerimento para afastá-la do caso com base em seu conflito de interesses.
- Meu conflito de interesses? Que conflito?
- Olha, Andy... posso chamar você de Andy, certo? Quer dizer, minha filha chama, então acho que eu também devo, não acha?
- Corta o papo furado, Haller.
- Certo, pode deixar. O conflito que provocou minha objeção é que você andou discutindo o caso com minha ex-esposa e...
- Que por acaso é uma promotora trabalhando no mesmo lugar que eu.
- Isso é verdade, mas essas conversas não aconteceram exclusivamente no trabalho. Na verdade, aconteceram na ioga e também na frente da minha filha, e provavelmente
por toda a cidade, até onde eu sei.
- Ah, para com isso. Quanta besteira.
- Sério? Então por que você mentiu pra mim?
- Nunca menti. Do que você est...
- Perguntei se você conhecia minha ex-mulher e você disse de vista. Isso não é bem verdade, é?
- Eu só não queria entrar nesse assunto com você.
- Então mentiu. Não mencionei isso no requerimento, mas posso acrescentar antes de dar entrada. O juiz vai decidir se é importante.
Ela deu uma bufada agitada, sinalizando que se rendia.
- O que você quer?
Olhei em volta. Ninguém podia escutar a gente.
- O que eu quero? Quero mostrar pra você que sei jogar esse jogo, também. Quer bancar a durona pra cima de mim, posso dar o troco.
- E isso quer dizer o quê, Haller? Qual é o toma lá dá cá?
Balancei a cabeça. Estávamos chegando a um acordo, agora.
- Você sabe que se eu der entrada nisso você já era. O juiz vai pender pelo lado da defesa. Ele vai querer evitar qualquer coisa que possa levar a uma revogação
de sentença. Além do mais, ele sabe que existem trezentos promotores capazes no Gabinete. É só mandar um substituto.
Apontei o bando de repórteres reunido no corredor, a maioria ainda cercando Herb Dahl.
- Está vendo todos aqueles repórteres e toda aquela atenção? Tudo isso já era. Provavelmente o maior caso da sua carreira e você vai perder tudo. Nenhuma coletiva
de imprensa, nenhuma manchete, nenhum holofote. Tudo caindo no colo de seja lá quem vier a ocupar seu lugar.
- Pra começo de conversa, eu não vou acatar esse negócio sem brigar, e você não tem garantia de que o juiz Morales vai cair nessa sua conversa mole. Vou dizer a
ele exatamente o que você está fazendo. Tentando escolher seu promotor. Tentando se livrar de um que está fazendo você se cagar de medo.
- Pode falar pra ele o que você bem entender, mas mesmo assim você vai precisar explicar para o juiz, em plena sessão, como foi acontecer de minha filha de 14 anos
comentar fatos desse caso para mim no jantar da semana passada.
- Isso é besteira. Você devia ter vergonha de usar sua f...
- Como é, você está dizendo que eu sou um mentiroso ou que minha filha é? Porque a gente pode levar isso até o tribunal, também. Não tenho certeza se os seus chefes
vão gostar do espetáculo que ia ser, nem das manchetes. Sabe, o Gabinete interrogando uma menina de 14 anos, chamando a menina de mentirosa. Meio que baixaria, não
é mesmo?
Freeman me deu as costas e fez menção de ir embora, mas depois parou. Eu sabia que a tinha na palma da mão. Ela devia se afastar de mim e do caso, mas não conseguia.
Ela queria aquele caso e tudo o que o caso lhe traria.
Virou outra vez para mim. Fitou-me como se eu nem estivesse ali, como se eu estivesse morto.
- De novo, o que você quer?
- Prefiro não dar entrada nisso aqui amanhã. Preciso simplesmente retirar os requerimentos que fui obrigado a apresentar para conseguir de volta as posses de minha
cliente e ver os documentos do WestLand. Só estou pedindo um pouco de cooperação. Um vaivém amigável na publicação compulsória. Quero que comece a fluir já, não
mais tarde. Não quero procurar o juiz toda vez que quiser exigir meu direito.
- Eu podia apresentar uma queixa contra você na ordem.
- Ótimo, a gente pode entregar nossas queixas juntos. Eles vão investigar nós dois e descobrir que só você agiu indevidamente ao discutir o caso com a ex-esposa
e a filha do advogado de defesa.
- Eu não discuti com sua filha. Ela estava perto, simplesmente.
- Tenho certeza de que a ordem vai fazer essa distinção.
Deixei-a se remoendo por um momento. Era a deixa dela, mas precisava de um empurrãozinho final.
- Ah, a propósito, se eu der entrada no requerimento amanhã, não vou esquecer de dar um toque para o Times. Quem é mesmo que cobre tribunal para eles? Salters? Acho
que ela ia achar a matéria bem interessante. Uma bela exclusiva.
Ela balançou a cabeça como se seu aperto houvesse acabado de ficar nítido bem diante de seus olhos.
- Retire seus requerimentos - ela disse. - Você vai ter tudo o que me pediu até o fim do dia na sexta.
- Amanhã.
- Não dá tempo. Preciso juntar tudo e mandar xerocar. O xerox está sempre lotado.
- Então quinta até o meio-dia ou eu entro com o requerimento.
- Certo, seu babaca.
- Ótimo. Depois que eu tiver visto tudo, quem sabe a gente pode começar a conversar sobre um acordo. Obrigado, Andy.
- Vai se foder, Haller. Não vai ter acordo nenhum. A gente pegou ela de jeito e eu vou ficar de olho em você, não nela, quando o veredicto sair.
Ela girou e começou a se afastar, mas depois voltou a virar em minha direção.
- E não me chame de Andy. Você não é nada meu pra me chamar assim.
Então saiu pisando duro, com largas passadas furiosas rumo ao saguão dos elevadores, ignorando totalmente um repórter que se aproximou e tentou obter alguma declaração.
Eu sabia que não haveria acordo algum. Minha cliente não permitiria. Mas deixei a brecha para Freeman para que pudesse jogar aquilo na minha cara. Eu queria que
ela fosse embora furiosa, mas não tão furiosa. Eu queria que ela pensasse que havia resguardado alguma coisa. Seria mais fácil lidar com ela desse jeito.
Olhei em volta e vi Lisa esperando obedientemente no banco, como eu lhe dissera para fazer. Gesticulei para que levantasse.
- Ok, Lisa, vamos dar o fora daqui.
- Mas e o Herb? A gente veio junto de carro.
- No seu ou no dele?
- O dele.
- Então ele está legal. Meu motorista leva você pra casa.
Fomos para a área dos elevadores. Felizmente Andrea Freeman já entrara em um e subira para o Gabinete da Promotoria, no segundo andar. Apertei o botão, mas o elevador
demorou mais do que devia. Fomos alcançados por Dahl.
- O que, estão indo embora sem mim?
Não respondi à sua pergunta e rapidamente abri mão de qualquer pretensão de civilidade.
- Sabe que você está fodendo comigo conversando com a imprensa daquele jeito. Você acha que está ajudando a causa, mas não está, a menos que Herbert Dahl seja a
causa.
- Opa, que linguajar é esse? Estamos num tribunal.
- Não me interessa onde estamos. Não fale em nome da minha cliente. Está entendendo? Se você fizer isso de novo vou convocar uma coletiva de imprensa e você não
vai gostar nem um pouco do que terei a dizer sobre você.
- Ótimo. Parei por aqui. Minha última coletiva. Mas agora tenho uma pergunta. O que está acontecendo com todas aquelas pessoas que mandei falar com você? Alguns
deles me ligaram de volta e disseram que foram tratados com a maior grosseria por sua equipe.
- É, continua mandando eles que nós vamos continuar tratando desse jeito.
- Ei, eu estou por dentro do negócio e esse pessoal é legítimo.
- The Grind Side.
Dahl pareceu confuso. Olhou para Lisa e depois de novo para mim.
- O que ele quer dizer?
- The Grind Side. Vamos lá, está me dizendo que não ouviu falar de The Grind Side?
- Você quer dizer Um Sonho Possível?1 Aquele filme sobre a mulher que adota um jogador de futebol?
- Não, estou falando de The Grind Side. O filme feito por um dos produtores que você mandou para nós. É sobre uma mulher que adota um jogador de futebol e faz sexo
com ele três ou quatro vezes por dia. Depois que isso fica chato ela convida o time inteiro de futebol para participar. Acho que não fez tanto dinheiro quanto Um
Sonho Possível.
Lisa estava ficando pálida. Fiquei com a impressão de que o que eu estava dizendo sobre as conexões de Dahl em Hollywood não estavam batendo com o que Dahl vinha
falando na sua orelha por várias semanas.
- É, é isso que ele está fazendo por você, Lisa. É com esse tipo de gente que ele quer envolver você.
- Olha - disse Dahl -, você faz alguma ideia de como é difícil emplacar alguma coisa nesta cidade? Um projeto? Tem gente que consegue e tem gente que não consegue.
Não me interessa o que o cara fez antes, contanto que ele consiga fechar alguma coisa agora. Está entendendo? Esse pessoal é legítimo e empatei muito dinheiro nesse
lance, Haller.
Um elevador finalmente chegou. Fiz Lisa entrar, mas pus minha mão no peito de Dahl e lentamente o afastei da porta.
- Fica longe, Dahl. Você vai receber seu dinheiro e um pouco mais. Mas fica longe.
Entrei no elevador e virei para ter certeza de que Dahl não tentava entrar no último instante. Ele não tentou, mas também não saiu do lugar. Fiquei olhando sua expressão
de ódio até as portas se fecharem.
1 O título original do filme é The Blind Side. (N. do E.)
Nove
Mudamos para o novo escritório no sábado de manhã. Era um apartamento de três cômodos em um prédio na esquina dos bulevares Victory com Van Nuys. O lugar até mesmo
se chamava Victory Building, do que eu gostei. Também viera inteiramente mobiliado e ficava a apenas duas quadras do fórum onde Lisa Trammel seria julgada.
Todo mundo se prontificou para ajudar com a mudança. Incluindo Rojas, que usava uma camiseta e bermuda de surfe, exibindo as tatuagens que cobriam completamente
seus braços e pernas. Eu não sabia o que era mais chocante, ver as tatuagens ou ver Rojas em alguma outra coisa que não o terno que ele sempre usava como meu motorista.
O arranjo no novo lugar foi que eu fiquei com minha própria sala, enquanto Cisco e Aronson dividiam a outra, a maior, e Lorna cravava a recepção entre as duas. Passar
da traseira de um Lincoln para um escritório com pé-direito de 3 metros, mesa e sofá para um cochilo era uma tremenda mudança. A primeira coisa que fiz quando me
acomodei foi usar o espaço amplo e o assoalho de madeira encerada para espalhar as oitocentas páginas de documentos de publicação compulsória que eu recebera de
Andrea Freeman.
A maior parte vinha do WestLand e muita coisa era pura encheção de linguiça. Era a reação passivo-agressiva de Freeman ao fato de que fora manipulada pela defesa.
Havia dúzias de páginas e calhamaços de apólices e normas do banco e outros formulários de que eu não precisava. Isso tudo ia numa pilha. Havia ainda cópias de todos
os comunicados que foram diretamente para Lisa Trammel, muitos dos quais já estavam comigo e com os quais eu já estava familiarizado. Esses ficavam numa segunda
pilha. E finalmente havia cópias de comunicados internos do banco, além de comunicados entre a vítima, Mitchell Bondurant, e a empresa terceirizada que o banco utilizava
para empreender suas execuções.
Essa empresa chamava-se ALOFT e eu também já estava bem familiarizado com ela porque haviam sido meus adversários em pelo menos um terço dos casos de execução. A
ALOFT era um escritório de cobrança, uma empresa que arquivava e rastreava toda a documentação exigida no prolongado processo de uma execução hipotecária. Era um
intermediário que permitia aos banqueiros e outras financeiras continuar de mãos limpas no negócio sujo de tomar os imóveis das pessoas. Empresas como a ALOFT davam
conta do recado sem que o banco sequer precisasse mandar uma carta para o cliente enfrentando a execução.
Era nessa pilha de correspondência que eu estava mais interessado e foi aí que encontrei o documento que mudaria os rumos do caso.
Dei a volta em minha mesa, sentei e examinei o telefone. Eu jamais teria uso para a quantidade de botões que havia nele. Finalmente encontrei o botão do interfone
para a outra sala e apertei.
- Alô?
Nada. Apertei outra vez.
- Cisco? Bullocks? Alguém aí?
Nada. Levantei e comecei a me dirigir para a porta, na intenção de me comunicar com minha equipe do modo tradicional, quando uma resposta finalmente apareceu no
alto-falante do aparelho.
- Mickey, é você?
Era a voz de Cisco. Voltei rapidamente até a mesa e apertei o botão.
- É, sou eu. Pode dar um pulo aqui? E traz a Bullocks.
- Já estou indo.
Minutos depois meu investigador e minha advogada auxiliar entraram.
- Ei, chefe? - perguntou Cisco, olhando para as pilhas de documentos sobre o chão. - A função de um escritório é pôr as coisas nas gavetas, nos arquivos e nas prateleiras.
- Eu chego lá - eu disse. - Fecha a porta e senta.
Assim que todo mundo se acomodou, olhei para os dois de minha grande mesa alugada e ri.
- Isso é estranho.
- Eu acho que consigo me acostumar com esse negócio de ter uma sala - disse Cisco. - Mas Bullocks não ia saber a diferença.
- Sei sim - protestou Bullocks. - No verão passado estagiei na Shandler, Massey and Ortiz e eu tinha minha própria sala.
- Bom, quem sabe da próxima vez você vai ter uma sala com a gente - eu disse. - Agora, vamos trabalhar. Cisco, você levou o laptop para aquele cara?
- Levei, deixei lá ontem de manhã. Falei que tinha pressa.
Estávamos falando do laptop de Lisa, que fora devolvido pelo Gabinete da Promotoria, junto com o celular e as quatro caixas de documentos.
- E ele vai ser capaz de dizer pra gente o que a promotoria estava procurando?
- Ele disse que consegue fornecer uma lista dos arquivos que eles abriram e por quanto tempo ficaram abertos. Com isso a gente pode ter uma ideia do que chamou mais
a atenção deles. Mas não espere muita coisa.
- Por quê?
- Porque Freeman abriu mão dele muito fácil. Acho que não teria entregado o computador pra gente se fosse importante para ela.
- Talvez.
Nem ele nem Aronson estavam sabendo do negócio que eu combinara com Freeman ou do recurso que eu utilizara. Voltei minha atenção para Aronson. Depois que ela terminou
os requerimentos de anulação no começo da semana eu lhe pedira para fazer um levantamento sobre a vítima. Isso após Cisco ter encontrado alguns indícios preliminares
em sua investigação de que nem tudo ia bem na vida pessoal de Mitchell Bondurant.
- Bullocks, o que você tem sobre nossa vítima?
- Bom, ainda preciso checar muita coisa, mas não resta dúvida de que ele estava perto de se estrepar. Financeiramente, quer dizer.
- Como assim?
- Bom, quando o mar estava para peixe e os financiamentos saíam com facilidade, ele apostou pesado no mercado imobiliário. Entre 2002 e 2007 comprou e passou para
a frente 21 propriedades, a maior parte imóveis residenciais. Ele ganhou uma grana preta e voltou a aplicar em negócios ainda maiores. Daí a economia estagnou e
ele ficou com o abacaxi.
- A coisa inverteu?
- Exatamente. No momento do assassinato ele era dono de cinco propriedades grandes que de uma hora para outra não valiam mais o que ele tinha pagado por elas. Parece
que estava tentando vender fazia mais de um ano. Ninguém queria. E todas tinham balões que iam estourar este ano. No total, a dívida chegaria em mais de 2 milhões
de dólares.
Fiquei de pé e dei a volta na mesa. Comecei a andar de um lado para outro. O relatório de Aronson era animador. Eu não sabia exatamente como tudo se encaixava, mas
estava confiante de que conseguiria fazer se encaixar. Só precisávamos conversar um pouco mais a respeito.
- Certo, então Bondurant, o vice-presidente sênior encarregado dos financiamentos residenciais do WestLand, era uma vítima do mesmo tipo de situação de tanta gente
que estava sofrendo a execução nas mãos dele. Quando o dinheiro entrava fácil ele assumiu hipotecas com pagamento balão de cinco anos, achando como todo mundo que
conseguiria passar os imóveis para a frente ou refinanciar bem antes do prazo de cinco anos.
- Só que daí a economia foi pra cucuia - disse Aronson. - Ele não conseguiu vender e não conseguiu refinanciar os imóveis porque não valiam mais o que ele pagara
por eles. Nenhum banco ia querer alguma coisa com isso, nem mesmo o próprio banco dele.
Aronson estava com uma expressão sombria.
- Isso tudo foi um bom trabalho, Bullocks. Qual o problema?
- Bom, eu só queria saber o que isso tudo tem a ver com o assassinato.
- Pode ser que nada. Pode ser que tudo.
Voltei à mesa e sentei. Passei a ela o documento de três páginas que eu encontrara no material entregue pela promotoria. Ela pegou e segurou de modo que Cisco pudesse
ver junto.
- O que é isso? - ela perguntou.
- Acho que é nosso cano fumegante.
- Esqueci meus óculos na outra sala - disse Cisco.
- Leia, Bullocks.
- É uma cópia de uma carta registrada de Bondurant para Louis Opparizio, da A. Louis Opparizio Financial Technologies, ou ALOFT, pra simplificar. Diz: “Caro Louis,
anexa o senhor encontrará correspondência de um advogado chamado Michael Haller que está representando o proprietário do imóvel em um dos casos de execução hipotecária
que seu escritório administra para o WestLand.” Fornece o nome de Lisa, número do empréstimo e endereço da casa. Depois prossegue: “Em sua carta, o sr. Haller faz
alegações de que a pasta está repleta de atos fraudulentos perpetrados no caso. O senhor vai notar que ele lista exemplos específicos, todos os quais foram empreendidos
pela ALOFT. Como o senhor deve estar ciente, e já discutimos, tem havido outras queixas. Essas novas alegações contra a ALOFT, se verdadeiras, deixam o WestLand
numa posição vulnerável, especialmente considerando o recente interesse do governo nesse aspecto do negócio das hipotecas. A menos que cheguemos a alguma espécie
de acordo e acomodação com relação a esse assunto, recomendarei à diretoria que o WestLand rescinda o contrato com sua firma e que quaisquer negociações em andamento
sejam encerradas. Essa ação exigiria também que o banco impetrasse um SAR junto às autoridades competentes. Queira ter a gentileza de entrar em contato comigo assim
que possível para discutirmos o assunto mais datalhadamente.” É isso. Uma cópia de sua carta original está anexada e uma cópia do formulário de reenvio do correio.
A carta foi assinada por alguém chamada Natalie e não consigo ler o sobrenome. Começa com L.
Recostei em minha cadeira executiva de couro e sorri para eles enquanto passava um clipe de papel entre os dedos, como um mágico. Aronson, ansiosa em impressionar,
falou primeiro.
- Então Bondurant queria tirar o dele da reta. Não tinha como ele não saber o que a ALOFT estava fazendo. Os bancos e esses escritórios de cobrança hipotecária são
assim, assim. Eles não estão nem aí para como é feito, só querem que seja feito. Mas enviando essa carta ele estava se distanciando da ALOFT e dos procedimentos
por baixo dos panos deles.
Dei de ombros, em sinal de talvez.
- “Acordo e acomodação” - eu disse.
Ambos olharam para mim sem entender.
- Isso é o que dizia na carta. “A menos que cheguemos a alguma espécie de acordo e acomodação...”
- Ok, o que isso quer dizer? - perguntou Aronson.
- Leia nas entrelinhas. Eu não acho que ele estava se distanciando. Acho que a carta era uma ameaça. Acho que significa que ele queria uma fatia do negócio feito
pela ALOFT. Ele queria isso e também estava tirando o dele da reta, sem dúvida, mandando a carta, mas acho que havia outro recado. Ele queria uma parte da maracutaia
ou ia tirar o negócio da Opparizio. Ameaçou até com um SAR.
- O que exatamente é um SAR? - quis saber Aronson.
- Relatório de atividade suspeita - explicou Cisco. - Uma formalidade rotineira. Os bancos dão entrada por qualquer motivo.
- Com quem?
- Federal Trade Commission, FBI, Serviço Secreto, quem eles quiserem, na verdade.
Dava para perceber que eles ainda não estavam botando fé em nada do que eu dizia.
- Vocês fazem alguma ideia de quanto dinheiro a ALOFT está faturando? - perguntei. - Eles estão envolvidos em um terço dos nossos casos, fácil, fácil. Sei que não
é científico, mas se você extrapola isso e calcula que a ALOFT pega um terço dos casos no condado de L.A., então estamos falando de muitos milhões de dólares, só
neste condado. Dizem que só na Califórnia vai haver 3 milhões de execuções antes que esse negócio acabe, nos próximos anos.
- Além disso, tem a aquisição.
- Que aquisição? - perguntou Aronson.
- Você precisa ler os jornais. Opparizio está no processo de vender a ALOFT para um grande fundo de investimento, uma empresa chamada LeMure. É uma empresa de capital
aberto e qualquer tipo de controvérsia relacionada a uma de suas aquisições satélites pode afetar o negócio, sem falar no preço das ações. Então não se engane. Se
Bondurant estava suficientemente desesperado, ele podia criar alguma turbulência. Talvez até mais do que estava imaginando que fosse capaz.
Cisco balançou a cabeça, o primeiro a comprar minha teoria.
- Ok, então temos o Bondurant enfrentando um desastre financeiro pessoal - disse ele. - Três balões prestes a estourar. Daí ele pega e tenta atravessar a Opparizio,
o negócio da LeMure e toda essa grana fácil da execução. E morre assassinado?
- É isso aí.
Cisco estava dentro. Então girei a cadeira e olhei diretamente para Aronson.
- Não sei - respondeu. - É um grande salto. E vai ser duro de provar.
- Quem disse que a gente vai ter de provar? A gente só precisa pensar num jeito de mostrar isso perante o júri.
A realidade era que não precisávamos provar porra nenhuma. Só tínhamos de sugerir e deixar que o júri fizesse o resto. Meu trabalho era apenas lançar as sementes
da dúvida razoável. Construir a hipótese de inocência. Curvei-me para a frente em minha enorme mesa de madeira e olhei para minha equipe.
- Essa é nossa teoria da defesa. Opparizio vai ser nosso bode expiatório. É nele que a gente vai vestir a carapuça de culpado. O júri aponta o dedo para ele e nossa
cliente fica livre.
Olhei para o rosto dos dois e não obtive reação. Continuei.
- Cisco, quero que você se concentre em Louis Opparizio e na empresa dele. Me consiga tudo que tem pra saber. Histórico, sócios conhecidos, tudo. Todos os detalhes
da fusão. Quero saber mais sobre essa transação e sobre esse sujeito do que ele mesmo sabe. Até o fim da semana que vem quero uma intimação para apresentação de
documentos da ALOFT. Eles vão contestar, mas quero agitar um pouco as coisas.
Aronson balançou a cabeça.
- Mas espera aí um minuto - interrompeu ela. - Vocês estão dizendo que isso tudo é só enrolação? Só uma estratégia da defesa, e que esse tal de Opparizio não é culpado
de verdade? E se a gente está com a razão sobre Opparizio e errado sobre Lisa Trammel? E se ela for inocente?
Ela olhou para mim com uma expressão de ingenuidade esperançosa. Sorri e olhei para Cisco.
- Explica pra ela.
Meu investigador virou de frente para minha jovem sócia.
- Minha jovem, você é nova nisso, então vou dar um desconto. Mas nunca pergunte isso. Não interessa se o cliente é culpado ou inocente. Todo mundo recebe o mesmo
serviço pelo dinheiro.
- Sei, mas...
- Não tem mas nem meio mas - disse. - Estamos falando de caminhos para a defesa, aqui. Maneiras de fornecer a melhor defesa possível para o nosso cliente. São estratégias
que a gente vai seguir independentemente de culpa ou inocência. Você quer trabalhar com defesa criminal, então é isso que precisa entender. Nunca pergunte ao seu
cliente se foi ele. Sendo ou não, a resposta é só uma distração. Então você nem precisa saber.
Ela enrijeceu os lábios numa linha fina, reta.
- Como anda o seu Tennyson? - perguntei. - “A Carga da Brigada Ligeira”?
- O que isso tem a ver c...
- “Não lhes cabe perguntar o porquê, só lhes cabe agir ou morrer.” Somos a Brigada Ligeira, Bullocks. Lutamos contra um exército que tem mais homens, mais armas,
mais tudo. Na maior parte das vezes a coisa se resume praticamente a um ataque suicida. Sem chance de sobreviver. Sem chance de vencer. Mas às vezes você tem um
caso se consegue acertar alguma coisa. Pode ser um tiro no escuro, mas é um tiro, de qualquer jeito. E você aproveita. Ataca... e não faz perguntas como essa.
- Na verdade, acho que é “agir e morrer”. É disso que trata o poema. Eles não tinham escolha entre agir ou morrer. Eles têm de agir e morrer.
- Então você está com seu Tennyson em dia. Eu prefiro “agir ou morrer”. A questão é, será que Lisa Trammel matou Mitchell Bondurant? Realmente eu não sei. Ela diz
que não, e pra mim isso basta. Se não bastar pra você, eu posso tirar você do caso e pôr de volta nas execuções em período integral.
- Não - disse Aronson rapidamente. - Quero continuar. Estou dentro.
- Isso é ótimo. Não é normal um advogado conseguir virar assistente num caso de homicídio dez meses depois de sair da faculdade de direito.
Ela me encarou, os olhos arregalados.
- Assistente, sério?
Fiz que sim.
- Você mereceu. Trabalhou muito bem mesmo nisso aqui.
Mas a animação desapareceu rápido.
- O que foi?
- Só não entendo por que a gente não pode fazer as duas coisas. Sabe, se empenhar ao máximo na defesa e ao mesmo tempo mostrar consciência pelo trabalho. Tentar
o melhor resultado.
- O melhor resultado para quem? Seu cliente? A sociedade? Ou você mesma? Sua responsabilidade é com seu cliente e com a lei, Bullocks. Só isso.
Fiquei encarando-a por um longo momento antes de prosseguir.
- Não me venha com essa história de consciência pra cima de mim - eu disse. - Dessa água eu já bebi. Posso dizer que não faz nenhum bem.
Dez
Depois de passar a maior parte do dia arrumando o escritório, só cheguei em casa lá pelas oito da noite. Encontrei minha ex-esposa sentada nos degraus da varanda.
Minha filha não estava junto. No ano anterior, houvera inúmeros encontros entre nós que não incluíam Hayley e fiquei animado com a perspectiva de mais um. Eu estava
morto com todo o esforço físico e mental do trabalho, mas seria fácil me reanimar para Maggie McFierce.
- Ei, Mags. Esqueceu a chave?
Ela se levantou e só pela sua postura rígida e pelo modo como limpou a traseira do jeans, toda formal, percebi que havia alguma coisa errada. Quando cheguei no último
degrau fiz menção de lhe dar um beijo - no rosto, só isso. Mas ela fez uma manobra na mesma hora e minha suspeita se confirmou.
- Foi daí que Hayley tirou - eu disse. - A velha evasiva, sempre que vou beijá-la.
- Bom, não vim aqui pra isso, Haller. Não usei minha chave porque achei que você podia considerar um conflito de interesses ter uma promotora na sua casa.
Então era isso.
- Aula de ioga, hoje? Encontrou Andrea Freeman?
- Isso mesmo.
De repente, meu ânimo renovado foi todo embora. Destranquei a porta como um prisioneiro condenado com a indignidade de ter de abrir a sala de sua própria execução.
- Vamos entrando. Acho que alguém vai encher minha orelha.
Ela entrou rápido, meu último comentário só serviu para jogar mais lenha na fogueira.
- O que você fez foi desprezível. Usar nossa filha desse jeito tão sujo.
Virei para confrontá-la.
- Usar nossa filha? Não fiz nada disso. Nossa filha foi jogada no meio dessa coisa e descobri por acidente.
- Não faz diferença. Você é revoltante.
- Não, eu sou um advogado de defesa. E sua amiguinha Andy estava falando sobre mim e sobre o meu caso com minha ex-mulher na frente da minha filha. E depois mentiu
claramente pra mim.
- Do que você está falando? Ela não é de mentir.
- Não estou falando sobre a Hayley. Estou falando sobre a Andy. Perguntei para ela no primeiro dia do caso se ela conhecia você, e ela disse que conhecia só de vista.
Acho que a gente pode concordar que não é bem assim. E eu não sei dizer com certeza, mas acho que se a gente descrevesse a situação para dez juízes diferentes, todos
os dez iam ver um conflito de interesses aí.
- Olha, a gente não estava conversando sobre você ou sobre o caso. O assunto surgiu na hora do almoço. Hayley por acaso estava junto. O que eu devo fazer, ficar
longe das minhas amigas por sua causa? Não é assim que funciona.
- Se não tinha nada de mais, por que ela mentiu para mim?
- Não foi uma mentira direta. Não é como se a gente fosse melhor amiga nem nada assim. Além do mais, ela provavelmente não queria que você se metesse nisso, como
você acabou fazendo de qualquer jeito.
- Ah, então agora a gente classifica as mentiras numa tabela. Algumas são indiretas e tudo bem. Com essas a gente não se preocupa.
- Haller, não seja tão babaca.
- Olha, você quer beber alguma coisa?
- Não quero nada. Vim aqui pra dizer que você não só envergonhou a mim e a nossa filha, mas também a si mesmo. Isso foi baixo, Haller. Você usou uma coisa inocente
vinda da sua própria filha pra ganhar uma vantagem. Foi realmente baixo.
Eu continuava segurando minha pasta. Pus sobre a mesa de jantar. Apoiei as mãos no espaldar de uma das cadeiras e me curvei para a frente enquanto pensava como retrucar.
- Vamos lá - disse Maggie, provocando. - Você sempre tem uma resposta pronta pra tudo. O grande defensor. Vamos ouvir dessa vez.
Dei uma risada e balancei a cabeça. Ela ficava tão linda quando estava nervosa. Isso me desarmava. E o lado ruim é que eu acho que ela sabia disso.
- Ah, então é engraçado. Você ameaça arruinar a carreira de uma pessoa e depois dá risada disso.
- Não ameacei arruinar a carreira dela. Ameacei chutar ela pra fora do caso. E não é engraçado. É só que...
- O que, Haller? É só o quê? Fiquei sentada duas horas ali fora esperando para ver se você ia chegar porque eu quero saber como teve coragem de fazer isso.
Afastei-me da mesa e parti para a ofensiva, indo em sua direção conforme falava. Fazendo-a recuar e depois encurralando-a no canto, terminando minhas palavras com
o dedo apontado a dois palmos de seu peito.
- Eu fiz isso porque sou advogado de defesa e como advogado de defesa fiz um juramento de defender meus clientes com todas as minhas capacidades. Então, é isso mesmo,
eu vi uma vantagem aqui. Sua grande amiga Andy, e você, visivelmente ultrapassaram um limite. Nenhum estrago foi feito, é verdade, até onde eu sei. Mas isso não
significa que não passaram desse limite. Se você pula uma cerca com uma placa dizendo PROIBIDA A ENTRADA, cometeu um delito mesmo que tenha pulado de volta. Então
eu fiquei sabendo desse delito e usei em meu benefício para conseguir algo que eu precisava para defender minha cliente. Algo que aliás já devia ter sido entregue
para mim, mas que sua amiga não entregou simplesmente porque podia não fazer. Ela agiu dentro das regras? Agiu. Era justo? Não. E um dos motivos pra você ficar tão
nervosa e incomodada com isso é que você sabe que não era justo e que eu tomei a atitude certa. Você teria feito a mesma coisa.
- Nem em um milhão de anos. Eu nunca teria descido tão baixo.
- Mentira.
Afastei-me dela. Ela continuou no canto.
- O que você veio fazer aqui, Maggie?
- Como assim? Acabei de dizer por que estou aqui.
- É, mas você podia ter pego o telefone ou mandado um e-mail. Por que veio aqui?
- Queria ver sua cara quando me desse uma explicação.
Dei as costas para ela. Tudo aquilo não passava de jogo de cena. Aproximei-me dela e pus a mão na parede ao lado de sua cabeça.
- Foram discussões estúpidas como essa que arruinaram nosso casamento - eu disse.
- Eu sei.
- Você sabe que já faz oito anos? Estamos divorciados tanto tempo quanto fomos casados.
Oito anos e eu ainda não conseguia tirá-la da cabeça.
- Oito anos e aqui estamos nós.
- É, aqui estamos nós.
- Sabe, você é que abusa dos limites, Haller. Você abusa dos limites com todo mundo. Entra e sai de nossas vidas sempre que quer. E a gente deixa e não faz nada.
Lentamente me curvei mais perto dela até que estivéssemos respirando o mesmo ar. Beijei-a levemente e depois com mais força, quando ela tentou dizer alguma coisa.
Não queria escutar mais nem uma palavra. Eu estava de saco cheio das palavras.
PARTE DOIS
A Hipótese de Inocência
Onze
Oescritório estava fechado e encerrara as atividades do dia, mas eu continuava em minha mesa, preparando-me para a audiência preliminar. Era uma terça-feira no começo
de março e eu gostaria de ter aberto alguma janela para deixar entrar o ar fresco da noite. Mas o escritório estava hermeticamente fechado pelas janelas verticais
que não abriam. Lorna não observara isso quando inspecionara o lugar e assinara o contrato. Isso me fazia sentir falta de trabalhar no banco traseiro do Lincoln,
onde eu podia baixar o vidro e tomar ar sempre que queria.
A audiência preliminar era dali a uma semana. Com preparação eu quero dizer que estava tentando antecipar o que minha oponente Andrea Freeman iria se dispor a partilhar
conosco quando apresentasse seu caso diante do juiz.
Uma audiência preliminar é um passo rotineiro a caminho de um julgamento. O show é cem por cento da promotoria. O estado fica incumbido de seu caso perante o tribunal
e o juiz então determina se há prova suficiente para seguir adiante e realizar um julgamento com júri. Isso não é o limiar da dúvida razoável. Nem chega perto. O
juiz tem apenas de decidir se uma preponderância da prova dá apoio às acusações. Em caso afirmativo, o próximo passo é um julgamento completo.
O macete para Freeman seria parcelar prova suficiente apenas para ultrapassar essa linha de preponderância e conseguir a aprovação do juiz sem entregar toda a mercadoria.
Porque ela sabia que eu iria usar tudo que ela me desse.
Não existe dúvida de que o ônus da promotoria não é ônus coisa nenhuma. Embora a ideia de uma audiência preliminar seja criar uma forma de controle sobre o sistema
e assegurar que o governo não passe o rolo compressor em cima do indivíduo, ainda assim é um jogo de cartas marcadas. A assembleia legislativa do estado da Califórnia
tomou as providências necessárias para isso.
Frustrados com a duração aparentemente interminável dos casos criminais que se desenrolavam lentamente pelo sistema de justiça, os políticos em Sacramento tomaram
uma atitude. A visão prevalecente era de que justiça protelada era justiça negada, independentemente de esse sentimento estar em conflito com um componente básico
do sistema acusatório - uma defesa forte e vigorosa. A assembleia driblou esse inconveniente menor e votou pela mudança, incorporando medidas para aperfeiçoar o
processo. A audiência preliminar passou de uma apresentação completa da prova da promotoria ao que é essencialmente um jogo de esconde-esconde. Poucas testemunhas
tinham de ser convocadas além do chefe de investigação, testemunhos indiretos eram antes aprovados do que desencorajados e a promotoria não precisava oferecer nem
metade de sua prova. Só o suficiente para constar.
Como resultado era muito raro que um caso não atingisse o nível da preponderância e a audiência preliminar se tornasse um procedimento de rotina para apresentação
das acusações a caminho do julgamento.
Mesmo assim havia alguma coisa de valor para a defesa nesse procedimento. Seria de todo modo uma oportunidade de vislumbrar o que estava por vir e de questionar
as testemunhas e provas que seriam apresentadas. E aí entrava o trabalho de preparação. Eu precisava antecipar as cartas que Freeman iria mostrar e decidir quais
eu iria usar contra elas.
Já havíamos ultrapassado em muito qualquer ideia de um acordo. Freeman ainda não estava disposta a ceder e minha cliente não estava disposta a aceitar. Estávamos
em curso direto de um julgamento em abril ou maio e não posso dizer que isso me deixava infeliz. Nossas chances eram reais e se Lisa Trammel queria comprar a briga
era melhor eu estar preparado.
Nas últimas semanas havíamos recebido tanto boas notícias como notícias ruins no que dizia respeito às provas. Como esperado, o juiz Morales indeferiu nossos requerimentos
para anular o interrogatório policial e a busca na residência de Lisa. Isso limpou o caminho para a promotoria construir seu caso nos alicerces da motivação, da
oportunidade e do depoimento de uma única testemunha ocular. Eles tinham a ação de execução hipotecária. Eles tinham o passado de Lisa protestando contra o banco.
Eles tinham suas admissões incriminadoras durante o interrogatório. E, acima de tudo, tinham a testemunha, Margo Schafer, que alegava ter visto Lisa a apenas uma
quadra do banco e a poucos minutos da cena do crime.
Mas estávamos construindo um caso para a defesa que atacava esses alicerces e compreendia muitas provas que efetivamente inocentavam minha cliente.
Nenhuma arma do crime fora identificada nem encontrada ainda, e o zelo do estado em provar que uma minúscula mancha de sangue encontrada em uma chave de grifo tirada
de uma bancada de ferramentas na garagem de Lisa saíra pela culatra quando os testes concluíram não se tratar do sangue de Mitchell Bondurant. Claro, a promotoria
não tocaria nesse ponto nem na audiência preliminar, nem no julgamento, mas eu podia e iria. É trabalho da defesa aproveitar as falhas de provas e os equívocos da
investigação e enfiá-los pela goela do estado. Eu não ia deixar passar.
Adicionalmente, meu investigador recolhera informação que iria pôr em dúvida as observações da testemunha-chave do estado, mesmo que não tivéssemos a oportunidade
até o julgamento. E contávamos também com a hipótese da inocência. A teoria alternativa estava lindamente montada. Entregamos intimações para Louis Opparizio e sua
empresa ALOFT, o escritório de execução hipotecária no centro da estratégia de defesa.
Eu previa que nenhuma tática da defesa ou prova seria discutida durante a audiência preliminar. Freeman iria pôr o detetive Kurlen no banco das testemunhas e ele
iria conduzir o juiz por todo o caso, providenciando evasivas para quaisquer pontos fracos na prova. Ela também convocaria o legista e possivelmente um técnico forense.
Schafer, a testemunha, era a única questão. Meu primeiro pensamento foi que Freeman iria segurá-la um pouco mais. Ela podia se apoiar em Kurlen para apresentar informação
de sua inquirição da mulher, desse modo apresentando o que Schafer acabaria testemunhando no julgamento. Nada mais era necessário para uma preliminar. Por outro
lado, Freeman talvez pusesse Schafer no banco numa tentativa de ver o que eu tinha. Se eu revelasse durante minha contrainquirição como planejava levar a testemunha,
isso ajudaria Freeman a se preparar para o que a esperava no julgamento.
Tudo eram estratégias e estratagemas nessa altura do jogo e eu tinha de admitir que essa era a melhor parte de um julgamento. Os movimentos executados fora do tribunal
eram sempre mais significativos do que os que eram feitos dentro. Estes eram todos ensaiados e coreografados. Eu preferia a improvisação feita longe da sala do tribunal.
Eu estava sublinhando o nome Schafer em meu bloco amarelo quando escutei o telefone tocar na recepção. Eu podia ter puxado a ligação, mas não me dei ao trabalho.
Já passava muito do horário comercial e eu sabia que o número do anúncio nas páginas amarelas fora redirecionado para o novo número do escritório. Qualquer um ligando
tão tarde assim provavelmente estava atrás de um advogado para cuidar de sua execução da hipoteca. Fosse quem fosse, que deixasse recado.
Peguei a pasta com a análise do sangue e pus no centro da mesa. Ela continha o relatório de comparação do DNA que fora colhido de uma ranhura no cabo da chave de
grifo tirada da garagem de Lisa. O serviço fora feito nas coxas, com a promotoria encomendando a cara análise de uma empresa terceirizada, em vez de esperar que
o laboratório regional cuidasse do assunto. Eu imaginava a decepção que Freeman devia ter sentido quando o resultado deu negativo. Não era sangue de Mitchell Bondurant.
Isso não era só um revés para a promotoria - um resultado positivo teria eliminado qualquer chance de Lisa ser inocentada e a teria forçado a um acordo. Mas agora
Freeman sabia que eu podia sacudir o relatório na frente do júri e dizer: “Estão vendo, este caso está cheio de desdobramentos errados e provas equivocadas.”
Também marcamos um ponto quando as imagens das câmeras de vídeo do prédio do banco e na entrada da garagem deixaram de mostrar Lisa Trammel antes e depois do assassinato.
As câmeras não cobriam toda a área, mas isso não vinha ao caso. Era uma prova inocentadora.
Agora meu celular começava a vibrar. Tirei o aparelho do bolso e olhei para o identificador. Era meu agente, Joel Gotler. Hesitei por um instante, mas depois atendi.
- Está trabalhando até tarde - eu disse, a título de alô.
- É, você não lê mais seus e-mails? - respondeu Gotler. - Estou tentando entrar em contato com você.
- Desculpe, meu computador está bem aqui, mas ando muito ocupado. O que anda acontecendo?
- A gente está com um problemão. Você costuma ler o Deadline Hollywood?
- Não, o que é?
- É um blog. Dá uma olhada aí no seu computador.
- Agora?
- É, agora. Já.
Fechei a pasta do exame sanguíneo e empurrei para o lado. Puxei meu laptop e abri. Acessei a internet e abri a página do Deadline Hollywood. Comecei a rolar a página
para baixo. Parecia uma lista de clippings sobre negociações feitas em Hollywood, estimativas de bilheteria e as atividades dos estúdios. Quem comprou e quem vendeu
o quê, quem saiu de qual agência, quem estava em baixa e quem estava em alta, esse tipo de coisa.
- Certo, o que é pra ver aqui?
- Rola pra baixo, em 15 para as quatro da tarde de hoje.
Os posts no blog eram encabeçados pelos horários. Fiz como ele me instruiu e cheguei ao post do fim da tarde que Gotler queria que eu visse. Só a chamada do texto
já foi como um chute em minha virilha.
Archway Consegue Mistério de Homicídio na Vida Real
Dahl/McReynolds produzirão
Fontes me informaram que a Archway Pictures empatou seis dígitos esperando retorno de sete dígitos para adquirir os direitos da vingança contra execução hipotecária
atualmente rolando pelos meandros do sistema de justiça aqui em LaLaLand. A acusada, Lisa Trammel, foi representada por Herb Dahl no negócio e ele vai produzir em
parceria com Clegg McReynolds, da Archway. O acordo conjunto inclui direitos de TV e documentário. O final da história, porém, ainda está por ser escrito, já que
Trammel vai enfrentar o julgamento pelo assassinato do bancário que tentava tomar sua casa. Em um press release, McReynolds disse que a história de Trammel será
usada para pôr uma lente de aumento na epidemia de execuções hipotecárias que está varrendo o país nos últimos anos. Espera-se que ela seja julgada dentro de dois
meses.
- Aquele filho da puta - eu disse.
- É, isso mesmo - disse Gotler. - Que merda tá acontecendo? Eu aqui tentando vender esse negócio e bem perto de fechar com a Lakeshore quando de repente aparece
isto! Cê tá de sacanagem comigo, Haller? Me dando uma facada nas costas desse jeito?
- Olha, não sei exatamente o que está acontecendo aqui, mas eu tenho um contrato com Lisa Trammel e...
- Você conhece esse cara, esse Dahl? Eu conheço, e ele é um tremendo aproveitador.
- Sei, sei. Ele tentou avançar o sinal e eu mandei ele se catar. Ele fez Lisa assinar uma coisa, mas...
- Ai, putz, ela assinou com esse cara?
- Não. Quer dizer, assinou, mas depois de ter assinado comigo. Eu tenho um contrato. E fui o pr...
Parei bem aí. Os contratos. Eu lembrava de ter feito cópias e passado para Dahl. Depois eu pus os originais de volta na pasta no porta-malas do Lincoln. Dahl presenciou
a coisa toda.
- Filho da puta!
- O que foi?
Olhei para a pilha de pastas no canto da minha mesa. Era tudo material ligado ao caso de Lisa Trammel. Mas eu não havia trazido as pastas do porta-malas do Lincoln
porque fora preguiçoso. Pensei que eram só contratos antigos e velhos casos e que talvez eu não tivesse certeza se acabaria me adaptando a trabalhar num escritório
de verdade, feito de tijolos e cimento. A pasta dos contratos continuava no porta-malas.
- Joel, eu ligo de volta daqui a pouco.
- Ei, o que...
Fechei o celular e corri para a porta. O Victory Building tinha seu próprio estacionamento de dois pisos, mas sem acesso direto. Eu tive de sair do edifício e andar
até a garagem ao lado. Subi a rampa trotando e no segundo andar fui até meu carro, abrindo a traseira com o controle remoto quando me aproximei. Meu Lincoln era
o único veículo que restara no andar de cima. Tirei a pasta dos contratos e me curvei sob a luz da tampa do porta-malas para olhar o contrato que Lisa Trammel assinara.
Não estava lá.
Dizer que fiquei furioso seria pouco. Enfiei a pasta de volta no lugar e bati a tampa do porta-malas. Peguei o celular e liguei para Lisa a caminho da rampa. A ligação
caiu na caixa de recados.
- Lisa, aqui é seu advogado. Pensei que a gente tinha combinado de você atender sempre que eu ligasse. Independentemente do horário ou do que você estiver fazendo.
Mas estou ligando agora e nada de você atender. Me... liga... urgente. Quero conversar sobre seu amiguinho Herb e o negócio que ele acaba de fazer. Tenho certeza
de que você sabe. Mas o que você talvez não saiba é que vou meter esse cara no pau por causa desse golpe. Eu vou acabar com a carreira desse sujeito, Lisa. Então
me liga! Já!
Fechei o telefone e fiquei segurando o aparelho com força conforme ia para a rampa. Mal notei os dois sujeitos que vinham subindo por ela até que um deles me chamou.
- Ei, você é aquele cara, certo?
Parei, confuso com a pergunta, minha cabeça ainda concentrada demais no negócio de Herb Dahl e Lisa Trammel.
- Como é?
- O advogado. Você é o advogado famoso da tevê.
Os dois vieram em minha direção. Eram caras novos com jaquetas estilo aviador, as mãos nos bolsos. Eu não estava a fim de parar e ficar de conversa fiada.
- Ahn, não, acho que vocês se engan...
- Não, cara, é você mesmo. Eu vi você na tevê, não foi?
Desisti.
- É, eu tenho um caso. Foi notícia na tevê.
- Certo, certo, certo... e como é mesmo seu nome?
- Mickey Haller.
Assim que eu disse meu nome, vi que o outro que não abrira a boca tirava as mãos do bolso e posicionava os ombros na minha direção. Estava usando luvas pretas sem
dedos. Não estava frio suficiente para luvas e num instante eu me dei conta de que, como não havia carros no nível de cima, aqueles caras não estavam subindo para
lá. Estavam atrás de mim.
- O que vocês q...
O sujeito calado levou o punho esquerdo à minha barriga. Eu me dobrei em dois bem a tempo de sentir seu punho direito esmagar três de minhas costelas. Lembro de
deixar cair o celular nesse ponto, mas lembro de pouca coisa mais. Sei que tentei correr, mas o sujeito da conversa bloqueou meu caminho e então me girou, segurando
meus cotovelos na lateral do corpo.
Ele também usava luvas pretas.
Doze
Não encostaram a mão em meu rosto, mas era talvez a única coisa que não tinha hematomas nem fraturas quando acordei na UTI do Holy Cross. A contagem final incluía
38 pontos no couro cabeludo, nove costelas fraturadas, quatro dedos quebrados, os dois rins contundidos e um testículo torcido em 180 graus que os médicos puseram
de volta no lugar. Meu torso estava da cor de um picolé de uva e minha urina ficou escura como Coca-Cola.
Da última vez que eu passara pelo hospital eu me viciara em oxicodona, um problema que quase me custara minha filha e minha carreira. Dessa vez, disse a eles que
iria aguentar sem a ajuda química. E isso sem dúvida foi um erro doloroso. Duas horas após tomar minha resolução eu implorava às enfermeiras, aos auxiliares de enfermagem
e a qualquer um que estivesse por perto para me dar logo o analgésico. Isso finalmente aliviou a dor, mas me deixou flutuando perto demais do teto. Levou ainda alguns
dias para encontrar o equilíbrio correto entre alívio da dor e consciência. Foi nesse momento que comecei a aceitar visitas.
Entre os primeiros a aparecer estavam dois detetives da Unidade de Crimes contra Pessoas da Divisão Van Nuys. Seus nomes eram Stilwell e Eyman. Fizeram-me algumas
perguntas básicas de modo a preencher sua papelada. Demonstraram tanto entusiasmo em descobrir quem me atacara como tinham com a ideia de trabalhar na hora do almoço.
Eu era, afinal de contas, o advogado de defesa de uma suposta assassina que seus colegas de divisão haviam prendido. Em outras palavras, ninguém ia torcer as próprias
bolas para solucionar meu problema.
Quando Stilwell fechou o caderninho de notas, percebi que a inquirição - e a investigação - chegara ao fim. Ele me informou que voltaria a me procurar se alguma
coisa surgisse.
- Você esqueceu uma coisa, não foi? - disse eu.
Falei sem mover o maxilar, porque alguma coisa solta em meu queixo acionava os receptores de dor em minha caixa torácica.
- O que é? - perguntou Stilwell.
- Em nenhum momento você me pediu para descrever quem me atacou. Nem perguntou de que cor eles eram.
- A gente pode fazer isso na próxima visita. O médico disse pra gente que o senhor precisa descansar.
- Vamos marcar uma hora para a próxima visita?
Nenhum dos detetives respondeu. Não pretendiam voltar.
- Acho que não - eu disse. - Até logo, detetives. Estou feliz em ver a Crimes contra Pessoas cuidando disso. Me sinto mais seguro.
- Olha - disse Stilwell. - O mais provável é que foi uma coisa aleatória. Dois vagabundos procurando um alvo fácil. As chances de a gente...
- Eles sabiam quem eu era.
- Você disse que o reconheceram da tevê e dos jornais.
- Não disse nada disso. Disse que me reconheceram e que fizeram parecer que era por causa da tevê ou qualquer coisa assim. Se vocês realmente se importassem com
isso, teriam feito essa distinção.
- Está acusando a gente de não investigar um ato de violência aleatório em nossa comunidade?
- Pra ser sincero, estou. E quem disse que foi aleatório?
- O senhor disse que não conhecia nem reconheceu quem o atacou. Então, a menos que tenha mudado de ideia a respeito, não há qualquer prova de que isso tenha sido
outra coisa que não um ato aleatório. Ou na melhor das hipóteses um crime de gente que odeia advogados. Eles o reconheceram e não gostaram do fato de que o senhor
defende assassinos e vagabundos, e decidiram aliviar as frustrações em cima de você. Pode ter sido um monte de coisa.
Meu corpo todo latejava de dor com a raiva pela indiferença deles. Mas eu também estava cansado e queria que fossem embora.
- Deixa pra lá, detetives - eu disse. - Podem voltar para sua unidade e preencher sua papelada. Esqueçam isso. Eu cuido, daqui pra frente.
Fechei os olhos e os ignorei. Era só o que me restava fazer.
Quando meus olhos voltaram a abrir, vi Cisco sentado em uma cadeira num canto do quarto, me encarando.
- Ei, chefe - disse ele, suavemente, como se sua usual voz trovejante pudesse me machucar. - Como estão as coisas?
Tossi quando acordei de vez e isso provocou um paroxismo de dor em meus testículos.
- Parece que estão 180º para a esquerda.
Ele sorriu porque achou que eu estivesse delirando. Mas eu estava suficientemente lúcido para saber que essa era sua segunda visita e que eu lhe pedira para dar
uma investigada quando viera da primeira vez.
- Que horas são? Estou perdendo a noção, tenho dormido demais.
- Dez e dez.
- Quinta?
- Não, sexta de manhã, Mick.
Eu dormira mais do que me dava conta. Tentei sentar, mas o movimento lançou uma onda de dor pelo meu lado esquerdo.
- Jesus Cristo!
- Tudo bem, chefe?
- O que você tem pra mim, Cisco?
Ele se levantou e veio para perto da cama.
- Não muita coisa, mas ainda estou trabalhando. Mas dei uma olhada no relatório da polícia. Não diz muito, mas parece que você foi encontrado pela turma da limpeza
que chegou lá pelas nove horas para trabalhar no prédio. Encontraram você desacordado na rampa da garagem e chamaram a polícia.
- Nove horas não foi muito depois. Eles viram mais alguma coisa?
- Não, não viram. De acordo com o relatório. Estou planejando ir lá eu mesmo hoje à noite para falar com eles pessoalmente.
- Perfeito. E o escritório?
- Eu e a Lorna olhamos o melhor que deu. Parece que ninguém entrou lá. Não tem nada faltando, pelo que a gente percebeu. E ficou destrancado a noite toda. Acho que
o alvo era você, Mick. Não o escritório.
O soro com a medicação era regulado por um sistema de alimentação que pingava as doces gotas de alívio segundo os impulsos enviados de um computador em outra sala,
e programado por alguém que eu nunca vira. Mas nesse momento aquele nerd de computador era meu herói. Eu sentia o gotejar frio do ânimo movendo-se ao longo de meu
braço e por meu peito. Fiquei em silêncio e esperei que minhas terminações nervosas sensíveis se acalmassem.
- O que você está pensando, Mick?
- Minha mente é um branco. Já falei para você que não reconheci os dois.
- Não estou falando deles. Estou falando de quem mandou eles. O que seu sexto sentido está dizendo? Opparizio?
- Certamente seria minha escolha. Ele sabe que a gente está na cola dele. Além disso, quem mais?
- E o que acha de Dahl?
Balancei a cabeça.
- Pra quê? Ele já roubou meu contrato e fez o negócio. Por que a surra depois?
- Talvez a ideia seja só fazer você sossegar. Ou quem sabe aumentar a intriga do projeto. Dar uma nova dimensão pra coisa toda. Uma parte da história.
- Isso parece um pouco forçado. Sou mais Opparizio.
- Mas pra que ele ia fazer isso?
- O mesmo motivo. Me fazer sossegar. Mandar um recado. Ele não quer ser uma testemunha e não quer ser arrastado nessa merda que sabe que a gente vai jogar em cima
dele.
Cisco deu de ombros.
- Ainda não estou convencido.
- Bom, seja lá quem foi, não faz diferença. Isso não vai me fazer sossegar.
- O que exatamente você vai fazer sobre Dahl? Ele roubou o contrato.
- Estou trabalhando nisso. Vou pensar em alguma coisa para aquele bosta quando eu sair daqui.
- E quando deve ser isso?
- Estão esperando se vou me curar direito. Se não, pode ser que tirem minha bola esquerda.
Cisco encolheu como se fosse a dele.
- É, estou tentando não pensar - eu disse.
- Ok, então continuando. E os dois agressores? Tenho dois caras brancos, 30 e poucos anos, jaquetas aviador de couro, luvas. Lembra de mais alguma coisa dessa vez?
- Nada.
- Sotaque de alguma região, de estrangeiro?
- Não que eu me lembre.
- Cicatriz, alguém mancando, tatuagem?
- Não que eu me lembre. Apaguei muito rápido.
- Eu sei. Você acha que consegue apontar os dois no meio de um pacote de seis?
Ele estava falando de fotos de suspeitos.
- Um deles sim. O que conversou comigo. Não olhei muito para o outro. Depois que me acertou, não vi mais nada.
- Certo. Bom, vou continuar trabalhando nisso.
- O que mais, Cisco? Estou ficando cansado.
Fechei os olhos para enfatizar o que disse.
- Bom, era para ter chamado a Maggie assim que você acordasse. Ela não está dando sorte. Toda vez que vem aqui com a Hayley, você está apagado.
- Pode chamar. Avisa que é para me acordar se eu estiver dormindo. Quero ver minha filha.
- Ok, vou falar que é para trazer ela depois da escola. Enquanto isso, Bullocks quer trazer o requerimento para adiar o julgamento para você aprovar e assinar antes
de ela dar entrada até o fim do dia.
Abri os olhos. Cisco estava do outro lado da cama.
- Que adiamento?
- Da audiência preliminar. Ela vai pedir ao juiz para adiar algumas semanas, por causa da sua hospitalização.
- Não.
- Mick, hoje é sexta-feira. A preliminar é na terça. Mesmo que você receba alta até lá, não vai estar em condições de...
- Ela pode cuidar disso.
- Quem, Bullocks?
- É. Ela é boa. Ela dá conta do recado.
- Ela é boa, mas verde. Tem certeza que quer alguém recém-saído da faculdade cuidando da preliminar de um julgamento de homicídio?
- É só uma preliminar. Trammel vai enfrentar um julgamento com ou sem a minha presença por lá. O melhor que podemos esperar é vislumbrar alguma coisa da estratégia
da promotoria para o caso e a Aronson tem capacidade para fazer um relatório sobre isso.
- Você está achando que o juiz vai permitir uma coisa dessas? Ele pode encarar como armação para uma futura alegação de representação legal desqualificada e a tentativa
de invalidar o julgamento, se ela for condenada.
- Se Lisa assinar, não tem problema. Eu ligo para ela e vou dizer que é parte da estratégia do caso. Bullocks pode passar algum tempo comigo aqui no fim de semana
e eu preparo ela.
- Mas qual é a estratégia do caso, Mick? Por que não esperar até você ficar bom?
- Porque eu quero que eles pensem que conseguiram.
- Quem?
- Opparizio. Seja lá quem foi que fez isso comigo. Deixa eles pensarem que estou incapacitado ou com medo. O que for. Aronson cuida da preliminar e depois a gente
vai para o julgamento.
Cisco fez que sim.
- Tudo bem.
- Ótimo. Agora vai avisar a Maggie. Diz pra ela que é para me acordar independente do que a enfermeira disser, principalmente se ela vier com a Hayley.
- Pode deixar, chefe. Mas, ahn, tem mais uma coisa.
- O quê?
- Rojas está sentado lá fora, na sala de espera. Ele queria ver você, mas eu falei que era para esperar lá fora. Ele veio ontem também, mas você estava dormindo.
Balancei a cabeça. Rojas.
- Você checou o porta-malas do carro?
- Chequei. Não vi nenhum sinal de arrombamento. Nenhum arranhão na fechadura.
- Ok. Quando você for, manda ele entrar.
- Você quer ver ele sozinho?
- É. Sozinho.
- Entendido.
Ele saiu e eu peguei o controle remoto da cama. Devagar e com muita dor, ergui o leito a cerca de 45 graus, de modo a esperar um pouco mais ereto pela minha visita
seguinte. A mudança de posição provocou outra dor lancinante em minha caixa torácica, que queimou como um incêndio no mês da seca.
Rojas entrou no quarto, hesitante, acenando e gesticulando para mim.
- Ei, senhor Haller, como está indo?
- Já tive dias melhores, Rojas. E você, como vai?
- Beleza, beleza. Só quis dar uma passada pra dizer um oi, essas coisas.
Ele estava mais nervoso que um gato do mato. E eu achava que sabia por quê.
- Foi gentileza sua aparecer. Por que não senta naquela cadeira ali.
- Tudo bem.
Ele pegou a cadeira no canto. Isso me permitia uma visão completa dele. Eu seria capaz de perceber todos os movimentos corporais enquanto o examinava. Ele já mostrava
os sinais clássicos da dissimulação - evitando contato olho no olho, sorrindo fora de hora, mexendo a mão constantemente.
- Os médicos disseram quanto tempo o senhor fica aqui? - ele perguntou.
- Mais alguns dias, eu acho. Pelo menos até eu parar de mijar sangue.
- Cara, que merda foi essa! Eles vão pegar quem fez isso?
- Não parece que estão dando muito duro pra conseguir.
Rojas balançou a cabeça. Eu não disse mais nada. O silêncio muitas vezes é uma ferramenta de interrogatório muito útil. Meu motorista então esfregou a palma das
mãos algumas vezes em suas coxas e ficou de pé.
- Bom, eu não queria atrapalhar. O senhor provavelmente vai precisar dormir um pouco ou qualquer coisa.
- Não, de dia vou ficar acordado, Rojas. Dói demais dormir. Você pode ficar. Qual a pressa? Não está dirigindo para outra pessoa, está?
- Ah, não, não, nada disso.
Relutantemente ele voltou a sentar. Rojas tinha sido meu cliente antes de ser meu motorista. Ele fora detido por uma queixa de posse de propriedade roubada e além
disso tinha antecedentes criminais. A promotoria queria que fosse para a cadeia, mas consegui o sursis. Ele me devia três paus por meu trabalho, mas perdera o emprego,
já que era também a vítima do roubo. Disse a ele que podia pagar com seus serviços para mim, dirigindo e traduzindo espanhol, e ele aceitou. Comecei pagando quinhentos
dólares por semana e contei um adicional de 250 para abater a dívida. Depois de três meses a dívida fora quitada, mas ele continuou, recebendo os 750 na íntegra,
agora. Achei que estivesse satisfeito e que tivesse se endireitado, mas uma vez bandido sempre bandido.
- Só quero que saiba, senhor Haller, que assim que o senhor sair daqui, vou trabalhar 24 horas por dia. Não vou deixar o senhor dirigir pra lugar nenhum. Nem que
seja só pra ir até a esquina tomar um café no Starbucks, eu levo o senhor.
- Obrigado, Rojas. Afinal, acho que é o mínimo que você pode fazer, certo?
- Ahn...
Ele pareceu confuso, mas não tão confuso. Ele já sabia para onde aquela conversa estava caminhando. Decidi parar com o jogo de gato e rato.
- Quanto ele pagou pra você?
Ele enrijeceu na cadeira.
- Quem? Pelo quê?
- Vamos, Rojas. Não começa com isso. É ridículo.
- Não sei do que o senhor está falando, não mesmo. Acho que é melhor eu ir andando.
Ele se levantou.
- A gente não tem papel assinado, Rojas. Não temos contrato, nenhuma promessa verbal, nada. Você sai desse quarto e eu te mando embora. É o que você está querendo?
- Não interessa se a gente não assinou nada. Não pode me mandar embora sem motivo.
- Mas eu tenho uma justa causa, Rojas. Herb Dahl me contou. Você devia saber que não existe honra entre bandidos. O Herb disse que você o chamou e disse que era
pra ele pegar qualquer coisa que quisesse.
O blefe funcionou. Vi a raiva explodindo nos olhos de Rojas. Eu estava com o dedo no botão de emergência para chamar a enfermagem, caso acontecesse alguma coisa.
- Aquele veado fresco do caralho.
Balancei a cabeça.
- Boa descrição. Como...
- Eu não fui atrás dele. Ele é que veio falar comigo. Disse que só queria olhar o porta-malas por 15 segundos. Eu devia saber que esse negócio ia estourar na minha
mão.
- Achei que você fosse mais esperto que isso, Rojas. Quanto ele te pagou?
- Quatrocentos.
- Não dá nem o salário de uma semana, e agora você não vai mais ter salário nenhum.
Rojas se aproximou da cama. Eu mantinha o dedo no botão de emergência. Imaginei que ia me atacar ou tentar um acordo.
- Senhor Haller... eu... preciso do emprego. Meus filhos...
- Isso é a última vez, Rojas. Você não aprendeu uma lição sobre roubar seu empregador?
- Aprendi, aprendi sim. Dahl me disse que só queria dar uma olhada, mas depois ele pegou alguma coisa e quando eu tentei impedir ele disse: “O que você vai fazer
a respeito?” Eu fiquei na mão dele. Não tinha como impedir.
- Você continua com os quatrocentos dólares?
- Continuo, não gastei um centavo. Quatro notas de cem. E pra mim parecem autênticas.
Apontei para que voltasse à cadeira. Não o queria tão perto.
- Ok, hora de fazer uma escolha, Rojas. Você pode se mandar por aquela porta com seus quatrocentos e nunca mais aparecer na minha frente. Ou eu posso dar uma segunda
chan...
- Eu quero uma segunda chance. Por favor, me desculpe.
- Bom, você vai ter que fazer por merecer. Vai ter que ajudar a desfazer o mal que causou. Eu vou processar o Dahl por pegar aquele documento e vou precisar de você
como minha testemunha para explicar exatamente o que aconteceu.
- Eu aceito, mas quem vai acreditar em mim?
- É aí que entram os quatrocentos dólares. Quero que você vá até sua casa ou seja lá onde deixou e...
- Estou com eles bem aqui. Na minha carteira.
Ele ficou de pé e tirou a carteira do bolso.
- Tira as notas desse jeito.
Fiz uma pinça com o polegar e o indicador.
- Eles conseguem achar digital em dinheiro?
- Pode apostar que sim, e se a gente conseguir tirar as digitais de Dahl aí, não interessa o que ele vai dizer. Ele dançou.
Abri a gaveta do criado-mudo junto à cama. Havia um saco Ziploc contendo minha carteira, chaves, moedas e dinheiro ali. Fora tudo guardado pelos paramédicos que
atenderam o chamado na garagem do Victory Building. Cisco havia guardado com ele e acabara de me devolver. Despejei o conteúdo na gaveta e então estendi o saco plástico
para Rojas.
- Ok, põe o dinheiro aí dentro e lacra.
Ele fez conforme instruído e então acenei para que me passasse o plástico. As notas de cem pareciam estalando de novas. Quanto menos manuseio tivessem, maior a chance
de encontrar as impressões.
- Cisco cuida disso daqui pra frente. Vou ligar pra ele e dizer para vir buscar. Depois a gente vai precisar das suas digitais.
- Ahn...
Os olhos de Rojas estavam fixos no plástico com o dinheiro.
- O que foi?
- Será que eu consigo esse dinheiro de volta?
Pus o plástico na gaveta e fechei com força.
- Pelo amor de Deus, Rojas, some da minha frente antes que eu mude de ideia e ponha você no pau.
- Tá, tá, eu peço desculpas, viu?
- Você só pede desculpas porque foi pego no flagra. Vai logo embora! Não acredito que estou te dando uma segunda chance. Eu devo ser um puta idiota!
Rojas saiu como um cachorro com o rabo entre as pernas. Depois que ele foi, baixei a cama lentamente e tentei não pensar em sua traição, nem em quem mandara dois
caras de luvas pretas, nem em qualquer coisa que tivesse a ver com o caso. Fiquei olhando para o saco de líquido claro pendurado mais acima e esperei pelo abençoado
alívio que traria ao menos a uma parte do meu sofrimento.
Treze
Como esperado, Lisa Trammel foi considerada apta a responder perante a justiça e determinada a aguardar o julgamento por homicídio pelo juiz Dario Morales ao fim
de uma audiência preliminar que durou o dia todo no Tribunal Superior de Van Nuys. Usando o detetive Howard Kurlen como seu portador primário de prova, a promotora
Andrea Freeman apresentou habilmente uma rede de provas circunstanciais que rapidamente se fechou sobre Lisa. Freeman levou o caso para o limiar da preponderância
com a rapidez de uma corredora de 100 metros rasos e o juiz foi igualmente célere em emitir sua determinação. Tudo rotina. Os procedimentos de sempre e Lisa podia
se preparar para responder perante a justiça.
Minha cliente estava lá na mesa da defesa para a audiência, mas eu não. Jennifer Aronson aguentou firme pelo lado da defesa o melhor que pôde num jogo de um time
só. O juiz permitira que a audiência prosseguisse apenas depois de questionar Lisa exaustivamente para se certificar de que a decisão dela de prosseguir sem minha
presença ali era consciente, voluntária e estratégica. Lisa admitiu em sessão aberta que estava ciente da falta de experiência de Aronson em uma sala de tribunal
e repudiou qualquer reivindicação ao argumento de acompanhamento jurídico inadequado como base para uma apelação contra uma eventual conclusão do julgamento.
Assisti a boa parte disso tudo confinado em minha casa, onde continuava o processo de recuperação de meus ferimentos. O KTLA Channel 5 transmitira a sessão matutina
ao vivo, em lugar da programação local, antes de voltar à usual grade insípida de talk shows vespertinos. Isso correspondia apenas às duas últimas horas da audiência
preliminar em tribunal. Mas por mim tudo bem, pois àquela altura eu já sabia onde as coisas iam terminar. Não houve surpresas e a única decepção foi não obter nenhuma
brecha na estratégia da promotoria para o julgamento, quando então as coisas seriam para valer.
Como decidido durante nossas sessões de preparação em meu quarto no Holy Cross, Aronson não apresentou testemunha alguma nem qualquer defesa afirmativa. Optamos
por reservar qualquer indicação de nossa hipótese de inocência para o julgamento, quando o limiar de culpa além da dúvida razoável elevava o jogo a uma disputa quase
pau a pau. Aronson usou sua contrainquirição das testemunhas do estado com parcimônia. Aqueles eram todos veteranos calejados de testemunhos em tribunal - Kurlen,
um perito forense e o legista entre eles. Freeman preferiu não chamar Margo Schafer ao banco das testemunhas, utilizando Kurlen para contar seu interrogatório com
a testemunha que punha Lisa Trammel a uma quadra do homicídio. Não havia muito que tirar dos procedimentos da promotoria, de modo que nossa estratégia foi observar
e esperar. Aguardar o momento mais propício. Simplesmente ir para cima deles no julgamento, onde nossas chances seriam melhores.
Ao final da audiência Lisa foi encaminhada para julgamento com o juiz Coleman Perry, no sexto andar do fórum. Perry era mais um diante de quem eu nunca estivera
antes. Mas como eu sabia que seu tribunal era uma dentre quatro destinações possíveis para minha cliente, eu andara consultando alguns colegas de defesa criminal.
O relatório geral que recebi foi de que Perry era um sujeito franco e direto, mas com pavio curto. Ele era justo até você tirá-lo do sério e a partir daí tendia
a pegar uma bronca que podia durar até o fim do julgamento. Era uma boa informação a se ter em mente conforme o caso progredisse rumo ao seu estágio final.
Dois dias depois, finalmente me senti pronto para entrar novamente na batalha. Meus dedos quebrados estavam fortemente encasulados em sua forma de gesso e meu tronco
dolorido começava a perder os matizes de azul-escuro e roxo e passar a um doentio tom de amarelo. Os pontos em meu couro cabeludo haviam sido tirados e eu podia
pentear o cabelo delicadamente sobre o ferimento depilado como se estivesse disfarçando um foco de calvície.
O melhor de tudo, meu testículo antes torcido, que o médico acabara decidindo não retirar, melhorava um pouco a cada dia, segundo o médico e sua capacidade de observação
e suas apalpadelas. Foi decidido que era para esperar se voltaria à atividade e função normais ou se murcharia no pé como um tomate italiano não colhido.
Como previamente combinado, Rojas esperava com o Lincoln na entrada pontualmente às 11. Desci os degraus vagarosamente, segurando a bengala com firmeza. Rojas estava
lá para me ajudar a entrar na traseira do carro. Fizemos tudo devagar e logo eu estava em meu lugar de costume, pronto para ir. Rojas sentou atrás do volante e partiu
abruptamente ladeira abaixo.
- Calma aí, Rojas. Dói demais usar um cinto de segurança. Então não quero ir parar no banco da frente.
- Desculpa, chefe. Vou tomar mais cuidado. Aonde vamos hoje? Para o escritório?
Ele pegara esse negócio de “chefe” com Cisco. Eu odiava ser chamado de chefe, mesmo sabendo que era exatamente isso.
- O escritório fica para mais tarde. Primeiro vamos para a Archway Pictures, na Melrose.
- Pode deixar.
A Archway era um estúdio de segundo escalão na avenida Melrose, diante de uma das gigantes, a Paramount Pictures. Tendo começado como um estúdio de aluguel para
absorver o excesso de demanda por galpões e equipamentos, o lugar cresceu e se tornou um estúdio maior sob a batuta do falecido Walter Elliot. Eles agora produziam
sua própria fornada de filmes todo ano e criaram por sua vez seu próprio excesso de demanda. Coincidentemente, acontecera de Elliot ter sido um cliente meu no passado.
Rojas levou vinte minutos para chegar de minha casa no alto de Laurel Canyon até o estúdio. Ele parou na guarita da segurança sob o arco característico que cobria
a entrada do lugar. Baixei o vidro e disse ao sujeito uniformizado que se aproximou que eu estava ali para ver Clegg McReynolds. Ele pediu meu nome e identidade
e eu lhe passei minha carteira de motorista. O homem voltou à guarita e consultou uma tela de computador. Ele franziu o rosto.
- Lamento, mas o senhor não está na lista do pessoal autorizado. Tem hora marcada?
- Não tenho, mas sei que ele vai querer me ver.
Eu não deixara McReynolds exatamente de sobreaviso.
- Bom, não posso deixá-lo entrar sem hora marcada.
- Pode ligar pra ele e lhe dizer que estou aqui? Ele vai querer me ver. Você sabe quem ele é, não sabe?
A implicação era clara. Você não vai querer fazer merda com esse aí.
O segurança deslizou a porta para fechar, enquanto ligava para McReynolds. Dava para vê-lo falar através do vidro. A pessoa do outro lado devia estar perguntando
um monte. Então ele voltou a abrir a porta e passou o telefone para mim. O fio era comprido. Peguei o fone e fechei o vidro na cara do homem. Na mesma moeda.
- Aqui é Michael Haller. É o senhor McReynolds?
- Não, aqui quem fala é a assistente pessoal do senhor McReynolds. Como posso ajudá-lo, senhor Haller? Não estou vendo nenhuma hora marcada aqui na agenda e, francamente,
não sei quem é o senhor.
Era a voz de uma mulher jovem e confiante.
- Eu sou o cara que vai tornar a vida de seu chefe um inferno se você não puser ele para falar comigo.
Houve uma bolha de silêncio antes que a voz respondesse.
- Acho que não gostei de ser ameaçada. O senhor McReynolds está no set e...
- Não foi uma ameaça. Eu não ameaço. Só estou falando a verdade. Onde fica o set?
- Não vou dizer onde é. O senhor não chega perto de Clegg enquanto não me disser do que se trata.
Notei que tratou o próprio chefe pelo primeiro nome. Uma buzina tocou atrás de mim. Os carros começavam a formar uma fila. O guarda bateu em meu vidro com os nós
dos dedos, depois se curvou para tentar ver através do vidro escurecido. Eu o ignorei. Uma segunda buzina tocou atrás de mim.
- Trata-se de poupar muita dor de cabeça pro seu chefe. Você está sabendo do acordo que ele anunciou na semana passada relacionado à mulher acusada de matar o banqueiro
que executava a hipoteca da casa dela?
- Sim, estou.
- Bom, seu chefe comprou esses direitos ilegalmente. Eu presumo que não seja culpa dele e que fez isso sem qualquer conhecimento da situação. Se eu estiver correto,
ele é vítima de um golpe e eu estou aqui para ajudar. Essa é uma oportunidade única. Depois disso Clegg McReynolds vai ter que se virar sozinho pra sair dessa areia
movediça.
A ameaça final foi pontuada por outro prolongado toque de buzina vindo do carro logo atrás de mim, e de uma forte batida na janela.
- Fale com o guarda - eu disse. - Diga se é sim ou não.
Baixei o vidro e passei o fone para o segurança enfurecido. Ele o levou ao ouvido.
- O que é para fazer? Estou com uma fila de carros até a Melrose aqui.
Ele escutou, voltou para sua guarita e desligou. Depois olhou para mim enquanto apertava o botão para abrir o portão.
- Galpão nove - ele disse. - Segue reto e vira à esquerda no fim. Não tem como errar.
Lancei para ele um sorriso de “eu não disse” conforme erguia a janela, e Rojas passava sob o portão que subia.
O Galpão 9 era um estúdio de filmagem grande o suficiente para abrigar um porta-aviões. Estava cercado por caminhões de equipamento, trailers de atores e furgões
de marceneiros e outros serviços. Quatro limusines longas estavam estacionadas em fila de um lado, seus motores ligados e os motoristas à espera de que a filmagem
terminasse e os ungidos saíssem.
Parecia uma produção das grandes, mas eu não ia ter a oportunidade de ver do que se tratava. Vindo pela passagem entre os Galpões 9 e 10 havia um homem mais velho
e uma mulher jovem. A mulher usava um headset, o que segundo presumi fazia dela uma secretária pessoal. Ela apontou o dedo para o meu carro.
- Ok, deixa eu descer aqui.
Rojas parou e eu já ia abrindo a porta quando meu celular tocou. Tirei do bolso e olhei para o visor.
CHAMADA NÃO IDENTIFICADA
Era o que dizia nas ligações que eu costumava receber de meus clientes envolvidos com o tráfico. Eles usavam celulares descartáveis para evitar escutas e investigações
de históricos de números chamados. Ignorei a ligação e deixei o aparelho no banco. Se alguém espera que eu atenda, precisa dizer quem é.
Saí devagar, deixando também a bengala dentro do carro. Por que anunciar uma fraqueza?, dizia sempre meu pai, o grande advogado. Lentamente fui na direção do produtor
e sua assistente.
- Haller é o senhor? - chamou o homem.
- Isso mesmo.
- Quero que saiba que essa produção de onde o senhor acaba de me tirar está saindo a um quarto de milhão de dólares a hora. Eles interromperam tudo ali dentro só
pra que eu pudesse vir aqui fora conversar com o senhor.
- Agradeço muito e prometo ser rápido.
- Ótimo. Agora que diabos é esse negócio de ser vítima de um golpe? Ninguém me passa a perna!
Olhei para ele, esperei e não disse nada. Levou apenas mais cinco segundos para que McReynolds tivesse outra explosão.
- Bom, vai me dizer ou não? Não tenho o dia todo.
Olhei para sua assistente pessoal e depois de volta para ele. Ele entendeu o recado.
- Ah-ah, quero uma testemunha para tudo que eu disser aqui. A garota fica.
Dei de ombros e tirei um gravador compacto do meu bolso, e liguei. Segurei-o no ar, sua luz vermelha piscando.
- Então quero ter certeza de ter tudo gravado, também.
McReynolds baixou os olhos para o aparelho e pude ver a preocupação em seu olhar. Sua voz, suas palavras preservadas numa gravação. Isso seria perigoso num lugar
como Hollywood. Visões de Mel Gibson dançaram em sua cabeça.
- Ok, desliga esse negócio e a Jenny vai embora.
- Clegg! - protestou Jenny.
McReynolds baixou o braço e deu um tapa em sua bunda.
- Eu disse pra ir.
Humilhada, a jovem saiu rapidamente, como uma colegial.
- Às vezes você precisa tratá-las desse jeito - explicou McReynolds.
- Tenho certeza que assim elas aprendem.
McReynolds balançou a cabeça concordando, não percebendo o sarcasmo em minha voz.
- Então mais uma vez, Haller, qual é o assunto?
- O assunto é você, Clegg, sendo feito de otário por um tal de Herb Dahl, seu parceiro no negócio de Lisa Trammel.
McReynolds balançou a cabeça enfaticamente.
- De jeito nenhum. O jurídico viu tudo direitinho. O negócio é perfeitamente limpo. Até a mulher assinou. Trammel. Se eu quiser, eu posso fazer ela ser uma puta
de 130 quilos que gosta de pau preto no filme, e ela não vai poder fazer nada a respeito. O negócio é limpo, cem por cento.
- É, bom, o que o jurídico não sabe é que nenhum dos dois tem os direitos sobre a história para vender pra você, para começo de conversa. Acontece que os direitos
estão comigo. Trammel assinou antes de Dahl aparecer na jogada e ficar em segundo plano. Ele achou que podia passar por cima de mim roubando os contratos originais
no meu arquivo. Só que não vai funcionar. Tenho uma testemunha do roubo e as digitais de Dahl. Ele vai dançar por fraude e roubo, e sua escolha aqui é decidir se
quer dançar junto com ele, Clegg.
- Você está me ameaçando? Isso é algum tipo de extorsão? Ninguém me ameaça de extorsão.
- Não, extorsão nenhuma. Só quero o que é meu. Então você pode continuar tendo Dahl como seu sócio ou pode fazer o mesmo negócio comigo.
- Tarde demais. Já assinei. Todo mundo assinou. O negócio está fechado.
Ele virou para ir.
- Você já pagou?
Ele virou de novo para mim.
- Você está brincando? Isso é Hollywood.
- E você provavelmente só assinou cartas de intenções, não é?
- Isso mesmo, só acordos. Os contratos saem em quatro semanas.
- Então seu negócio foi anunciado, mas não está fechado. É assim que funciona em Hollywood. Mas, se quiser mudar alguma coisa, você pode. Se você quiser encontrar
uma brecha pra invalidar o acordo, é fácil.
- Não quero nada disso. Gostei do projeto. Dahl me trouxe. Eu fiz um trato com ele.
Balancei a cabeça, compreendendo seu dilema.
- Faça como achar melhor. Mas vou prestar queixa na polícia amanhã de manhã, e vou dar entrada no processo à tarde. Seu nome vai constar como um dos acusados. Como
alguém que conspirou na perpetração da fraude.
- Não fiz nada disso! Eu nem mesmo fazia ideia dessa coisa toda até você me contar.
- Isso mesmo. Eu contei e você não fez nada a respeito. Preferiu seguir em frente no negócio com um ladrão, apesar de estar ciente dos fatos. Isso é conivência com
fraude e é nisso que meu caso vai se basear.
Levei a mão ao bolso e tirei o gravador. Segurei no alto para que ele pudesse ver a luz vermelha piscando.
- Vou deixar esse filme empacado tanto tempo que essa garota que levou um tapa na bunda vai ser a dona do estúdio quando tudo terminar.
Dessa vez eu me virei e ele me chamou de volta.
- Espera um minuto, Haller.
Virei mais uma vez. Ele olhou na direção norte, para o letreiro no alto da colina que atraía todo mundo para este lugar.
- O que eu preciso fazer? - ele perguntou.
- Você precisa fechar o mesmo acordo comigo. Eu cuido de Dahl. Ele merece alguma coisa e vai ter.
- Preciso de um número de telefone para o jurídico.
Puxei um cartão e dei para ele.
- Não esqueça: preciso ter notícia ainda hoje.
- Você vai ter.
- A propósito, de que valores estamos falando nesse negócio?
- Duzentos e cinquenta, depois um milhão. Mais 250 para produzir.
Balancei a cabeça. Um quarto de milhão de dólares de adiantamento certamente custearia a defesa de Lisa Trammel. Talvez até sobrasse um pouco para Herb Dahl. Tudo
dependeria de como eu ia lidar com a questão e até onde estava disposto a ser justo com um ladrão. Para ser franco, eu havia apreciado a puxada de tapete que dei
no sujeito, mas de todo modo ele encontrara um destino legítimo para o projeto.
- Vamos fazer o seguinte, eu sou o único cara nesta cidade que vai dizer isto pra você, mas não quero me meter com produção. Essa parte do negócio você trata com
o Dahl. Aí que ele entra.
- Contanto que ele não esteja na cadeia.
- Põe uma cláusula de “nome limpo na praça” no contrato.
- Isso vai ser inédito por aqui. Vou ver se o jurídico consegue cuidar do assunto.
- Foi um prazer fazer negócio com você, Clegg.
Dei meia-volta mais uma vez e comecei a ir na direção do carro. Dessa vez Clegg veio atrás e me acompanhou.
- A gente consegue entrar em contato com você? Vamos precisar de um consultor técnico. Principalmente no roteiro.
- Você tem meu cartão.
Quando me aproximei do Lincoln, Rojas segurava a porta aberta para mim. Entrei com todo o cuidado novamente, atenção especial aos cojones, e olhei para McReynolds.
- Tem mais uma coisa - disse o produtor. - Eu estava pensando em levar esse projeto pro Matthew McConaughey. Ele ia ser excelente. Mas quem você acha que pode fazer
você?
Sorri para ele ao levar a mão ao puxador da porta.
- Está olhando pra ele, Clegg.
Fechei a porta e pelo vidro escuro pude ver a confusão dominando seu rosto.
Disse a Rojas para me levar a Van Nuys.
Catorze
Rojas me contou que meu telefone tocara repetidamente enquanto eu conversava com McReynolds. Olhei e não vi nenhum recado. Então abri o registro de chamadas e vi
que um total de quatro ligações de um número não identificado ocorrera nos dez minutos em que fiquei fora do carro. Os intervalos de tempo eram díspares demais para
ter sido alguma chamada de fax repetindo a ligação automaticamente. Alguém estivera tentando entrar em contato comigo, mas ao que parecia não era urgente o bastante
para justificar deixar um recado.
Liguei para Lorna e disse-lhe que estava a caminho. Deixei-a a par do acordo que acabara de fazer com McReynolds e disse-lhe para esperar uma ligação do departamento
jurídico da Archway até o final do dia. Ela ficou empolgada com a perspectiva de ver dinheiro entrando no caso, em vez de apenas saindo.
- O que mais?
- Andrea Freeman ligou duas vezes.
Pensei nas ligações em meu celular.
- Você deu meu celular pra ela?
- Dei.
- Acho que ligou quando não pude atender, mas ela não deixou recado. Alguma coisa deve estar acontecendo.
Lorna me deu o número que Andrea deixara com ela.
- Talvez você consiga falar com ela se ligar agora mesmo. Vou desligar.
- Ok, mas onde está todo mundo agora, aí ou saíram?
- Jennifer está aqui na sala dela e acabei de saber do Cisco. Ele está voltando de alguma investigação.
- Que investigação?
- Ele não disse.
- Ok, então eu vejo todo mundo quando voltar.
Desliguei e liguei para o número de Freeman. Eu não tivera notícias dela desde o ataque dos sujeitos de luva preta. Até mesmo Kurlen aparecera para uma visita. Mas
nem sequer um cartão de “desejo melhoras” de minha valorosa oponente. Agora seis ligações em uma manhã, mas nenhum recado. Eu certamente estava curioso.
Ela atendeu ao primeiro toque e foi direto ao assunto.
- Quando você pode dar um pulo aqui? - ela disse. - Eu queria propor uma coisa antes que a gente dê o tiro de largada.
Era a maneira dela de dizer que estava aberta à possibilidade de encerrar o processo com um acordo antes que todo o maquinário de um julgamento começasse a funcionar.
- Pensei ter ouvido você dizer que não haveria nenhuma oferta.
- Bom, vamos dizer apenas que a cabeça fria prevaleceu. Não estou voltando atrás do que penso sobre suas atitudes no caso, mas não vejo por que sua cliente deva
pagar por isso.
Alguma coisa estava acontecendo. Dava para sentir. Algum tipo de problema com seu caso viera à tona. Alguma prova perdida ou alguma testemunha que mudara o relato.
Pensei em Margo Schafer. Podia ser um problema com a testemunha ocular. Afinal, Freeman não a convocara durante a audiência preliminar.
- Não quero ir no Gabinete da Promotoria. Você pode ir ao meu escritório ou a gente se encontra em campo neutro.
- Não tenho medo de entrar no campo do inimigo. Onde fica seu escritório?
Dei-lhe o endereço e combinamos de nos encontrar em uma hora. Desliguei e tentei me concentrar no que poderia ter dado errado com o caso do estado nessa altura do
campeonato. Voltei a pensar em Schafer. Só podia ser ela.
Meu celular vibrou em minha mão e olhei para o visor.
CHAMADA NÃO IDENTIFICADA
Era Freeman, ligando de volta, provavelmente para cancelar a reunião e revelar que a coisa toda era uma farsa, só mais uma manobra saída do manual de joguinhos psicológicos
da promotoria. Apertei o botão e atendi.
- Pois não?
Silêncio.
- Alô?
- É Michael Haller?
Uma voz de homem que eu não reconhecia.
- Isso mesmo, quem fala?
- Aqui é Jeff Trammel.
Por algum motivo levou um instante para eu me situar em relação ao nome, e então de repente caiu a ficha. O marido pródigo.
- Jeff Trammel, sei, como vai?
- Tudo bem, eu acho.
- Como conseguiu este número?
- Eu estava conversando com a Lisa hoje de manhã. Liguei para saber como estavam as coisas. Ela disse para ligar pra você.
- Bom, fico feliz que tenha feito isso. Jeff, você faz ideia da situação em que sua esposa está envolvida?
- Sei, ela me falou.
- Você não viu no noticiário?
- Não tem tevê nem nada assim por aqui. Eu não sei ler espanhol.
- Onde exatamente você está, Jeff?
- Prefiro não dizer. Você provavelmente ia contar para a Lisa e no momento eu prefiro que ela não saiba.
- Você vai aparecer para o julgamento?
- Não sei. Estou sem grana nenhuma.
- A gente pode conseguir algum dinheiro para você viajar. Você pode voltar para cá e ficar junto de sua esposa e seu filho nessa hora difícil. Você também podia
ser testemunha, Jeff. Testemunhar sobre a casa e o banco, e todas essas pressões.
- Hum... não, não posso. Não quero me expor dessa forma, senhor Haller. Tudo que eu fiz de errado. Não ia parecer bom.
- Nem mesmo para salvar sua esposa?
- Está mais pra ex-mulher. A gente só não legalizou, ainda.
- Jeff, o que você quer? Você quer dinheiro?
Houve uma longa pausa. Agora iríamos entrar no assunto. Mas então ele me surpreendeu.
- Não quero nada, senhor Haller.
- Tem certeza sobre isso?
- Só quero ficar fora disso. Não é mais minha vida.
- Onde você está, Jeff? Onde é sua vida, agora?
- Isso eu não vou dizer.
Abanei a cabeça de frustração. Eu queria mantê-lo na linha como um tira tentando rastrear uma ligação, só que não havia nenhum equipamento para triangular.
- Olha, Jeff, odeio tocar no assunto, mas meu trabalho é cobrir todos os ângulos, entende o que eu quero dizer? E se a gente perde esse caso e acontece uma condenação,
daí Lisa vai ser sentenciada. Vai ter uma hora no julgamento em que os entes queridos e os amigos vão poder se dirigir ao tribunal e dizer coisas boas sobre ela.
A gente vai ser capaz de trazer à tona o que chamamos de fatores atenuantes. A luta pra continuar com a casa, por exemplo. Eu gostaria de poder contar com você para
aparecer e testemunhar.
- Então você está achando que vai perder?
- Não, acho que a gente tem uma boa chance de ganhar isso. Acho mesmo. O caso é totalmente circunstancial, com uma testemunha que eu acho que a gente consegue detonar
completamente. Mas preciso estar preparado para o resultado oposto. Tem certeza que não quer dizer onde você está, Jeff? Eu posso manter o sigilo. Quer dizer, eu
vou precisar saber onde você está se a gente vai mandar algum dinheiro.
- Preciso desligar.
- E sobre o dinheiro, Jeff?
- Eu ligo depois.
- Jeff?
Ele desligou.
- Quase consegui, Rojas.
- Que pena, chefe.
Pus o telefone no apoio lateral por um momento e olhei lá fora para ver onde estávamos. A 101 pelo desfiladeiro de Cahuenga. Eu ainda estava a vinte minutos de chegar.
Jeff Trammel não dissera “não” para o dinheiro da última vez em que mencionei.
Minha ligação seguinte foi para minha cliente. Quando ela atendeu, escutei o barulho da TV no fundo.
- Lisa, é o Mickey. A gente precisa conversar.
- Tá.
- Dá pra desligar a tevê?
- Ah, claro. Desculpa.
Esperei e logo ficou silencioso na outra ponta.
- Ok.
- Antes de mais nada, seu marido acabou de me ligar. Você deu meu número pra ele?
- Dei, você me falou para fazer isso, lembra?
- Muito bem, ótimo. Só queria saber. A conversa não foi boa. Parece que ele quer manter distância.
- Foi o que ele me disse.
- Ele falou onde está? Se eu soubesse eu podia mandar o Cisco para convencê-lo a nos ajudar.
- Ele não quis dizer.
- Acho que continua no México. Disse que estava sem dinheiro.
- Ele disse a mesma coisa pra mim. Quer que eu mande uma parte do dinheiro do filme pra ele.
- Você contou sobre isso?
- Vai ter um filme, Mickey. Ele precisa ficar sabendo.
Ou talvez o que ela quisesse dizer era que precisava esfregar na cara dele.
- Para onde você ia mandar o dinheiro?
- Ele disse que eu podia depositar na Western Union e ele poderia pegar numa das agências deles.
Eu sabia que existiam agências da Western Union por toda Tijuana e outros locais no sul. Já mandara dinheiro para clientes antes. Podíamos enviar o dinheiro e então
afunilar um pouco a busca vendo em qual agência Jeff Trammel fez a retirada. Mas se ele fosse esperto o bastante não iria para a agência mais próxima de onde estava
morando e a gente estaria de volta à estaca zero.
- Ok - eu disse. - Vamos deixar para pensar no Jeff mais tarde. Eu queria contar para você também que o acordo que Herb Dahl fez com a Archway mudou.
- Como assim?
- O negócio está comigo agora. Acabei de sair da Archway. Herb ainda pode produzir, se chegarem a fazer um filme. E ele não vai pra cadeia. Então ele sai no lucro.
Você sai no lucro, porque sua equipe de defesa vai receber pelo trabalho e você fica com o resto, que a propósito é bem mais do que podia sonhar em receber de Herb.
- Mickey, não pode fazer isso! Ele fechou esse negócio!
- Acabei de desfechar, Lisa. Clegg McReynolds não estava interessado em se ver enroscado na rede legal que eu estava disposto a jogar em cima da cabeça de Herb.
Pode contar isso para o Herb ou pode pedir para ele me ligar, se ele quiser.
Ela ficou em silêncio.
- Tem mais uma coisa e isso é importante. Está escutando?
- Estou, estou aqui.
- Estou a caminho do meu escritório para uma reunião com a promotora. Ela marcou. Acho que tem alguma coisa rolando. Alguma coisa deu errado para o lado deles. Ela
quer conversar sobre acordo e nunca teria concordado em ir ao meu escritório a menos que fosse obrigada. Eu só queria que você soubesse. Eu ligo depois da reunião.
- Sem acordo, Mickey, a menos que ela esteja se oferecendo para fazer um pronunciamento à CNN e à Fox na escadaria do fórum e dizer que eu sou inocente.
Senti o carro saindo da rota e olhei pela janela. Rojas estava saindo antes da via expressa para evitar o trânsito.
- Bom, acho que não é bem isso que ela vai oferecer, mas é meu dever mantê-la informada sobre suas opções. Não quero que você se torne alguma espécie de mártir dessa...
dessa sua causa. Você deve escutar todas as ofertas, Lisa.
- Não vou me declarar culpada. Ponto final. Tem mais alguma coisa que você quer falar?
- Por enquanto é só. Eu ligo mais tarde.
Pus o celular no apoio de braço da porta. Já bastava de conversa, por ora. Fechei os olhos para descansar por alguns minutos. Tentei mexer os dedos dentro do gesso
e o esforço doeu, mas foi bem-sucedido. O médico que examinou os raios X disse acreditar que a fratura ocorrera depois de alguém pisar na minha mão quando eu estava
caído e já inconsciente. Sorte minha, imagino. Ele previa uma recuperação completa para os dedos.
No mundo escuro atrás de minhas pálpebras eu vi os homens de luvas pretas vindo em minha direção. A cena se repetia num looping incessante. Vi a expressão impassível
de seus olhos quando se aproximaram de mim. Eram só negócios, para eles. Não havia nada mais em jogo. Para mim, eram quatro décadas de autoconfiança e autoestima
esmigalhadas como ossinhos na calçada.
Depois de algum tempo escutei Rojas no banco da frente.
- Ei, chefe, chegamos.
Quinze
Quando entrei na recepção, Lorna, em sua mesa, gesticulou um sinal de aviso para mim. Depois indicou a porta da minha sala. Estava me dizendo que Andrea Freeman
já me aguardava ali dentro. Fiz um rápido desvio para a outra sala, bati uma vez e abri a porta. Cisco e Bullocks estavam atrás de suas mesas. Fui até Cisco e pus
meu celular na frente dele.
- O marido da Lisa ligou. Na verdade, ligou várias vezes. Sem identificação da chamada. Você vê o que dá pra fazer?
Ele esfregou um dedo sobre a boca enquanto considerava o pedido.
- Nossa operadora tem um serviço de rastreamento de ameaça. Eu digo a hora exata das ligações e eles veem o que dá para descobrir. Leva alguns dias, mas só o que
eles vão conseguir fazer é identificar o número, não a localização. Você precisa das autoridades se quiser triangular a localização desse cara.
- Só quero o número. Da próxima vez quero ser eu a ligar, não o contrário.
- Deixa comigo.
Quando me virei para ir, olhei para Aronson.
- Bullocks, o que acha de ir comigo e ver o que a promotoria tem a dizer?
- É pra já.
Atravessamos o escritório até minha sala. Freeman estava sentada em uma cadeira diante de minha mesa, lendo e-mails em seu celular. Estava usando roupas do dia a
dia. Calça jeans e suéter. Devia ter sido trabalho interno o dia todo, hoje. Fechei a porta e ela ergueu o rosto.
- Andrea, aceita alguma coisa?
- Não, obrigada.
- E você conhece Jennifer, da preliminar.
- Jennifer silenciosa, claro. Não deu um pio na audiência.
Conforme contornava minha mesa, olhei para Aronson e vi seu rosto e seu pescoço começando a ficar vermelhos de vergonha. Tentei levantar a bola dela.
- Ah, ela bem que queria dar uns pios, mas estava obedecendo a ordens minhas. Estratégia, sabe. Jennifer, puxa aquela cadeira ali.
Aronson pegou uma cadeira do canto, trouxe até a mesa e sentou.
- Bom, aqui estamos - eu disse. - O que traz o Gabinete da Promotoria ao meu humilde local de trabalho?
- Bom, estava chegando a hora e eu pensei, sabe. Imaginei que você cobre o condado inteiro e talvez não esteja tão familiarizado com o juiz Perry quanto eu estou.
- Você está sendo boazinha. Nunca vi mais gordo.
- Bom, ele gosta de manter a agenda desimpedida. Não dá a mínima para manchetes e publicidade. Só o que ele quer é saber que houve de fato algum esforço para encerrar
o caso com um acordo. Então achei que talvez fosse melhor ter mais uma conversa a respeito antes de partir para um julgamento completo.
- Mais uma? Não me lembro da primeira.
- Quer conversar ou não quer?
Recostei na cadeira e girei, como que ruminando sobre a questão. Isso tudo não passava de uma pequena dança, e nós dois sabíamos. Não era nenhum desejo de agradar
ao juiz Perry que impelia Freeman a agir daquele jeito. Havia mais alguma coisa ali naquela sala. Alguma coisa dera errado, e isso era uma brecha para a defesa.
Mexi os dedos dentro do gesso, tentando aliviar a coceira na palma da mão.
- Bom... - eu disse. - Não sei se entendo o que você está pensando. Toda vez que eu toco no assunto de um acordo com minha cliente, ela diz que é para eu me catar.
Que quer um julgamento. Claro, já vi isso antes. O velho padrão sem acordo, sem acordo, sem acordo... quero acordo.
- Certo.
- Mas minhas mãos estão meio que atadas aqui, Andrea. Minha cliente já me proibiu duas vezes de me aproximar de vocês com alguma oferta. Ela nunca ia me permitir
tomar iniciativa. Então aqui estamos, você veio até mim, então está funcionando. Mas você precisa abrir as negociações. Tem que me dizer o que está pensando.
Freeman balançou a cabeça.
- É justo. Fui eu quem procurou você, afinal. Estamos combinados que isso tudo é extraoficialmente? Nada sai daqui se o acordo acabar não vingando.
- Claro.
Aronson balançou a cabeça junto comigo.
- Ok, então, o que estou pensando é o seguinte. E isso já conta com a aprovação de cima. A gente baixa pra culposo e recomenda o meio-termo.
Balancei a cabeça, projetando o lábio inferior de modo a sugerir que era um oferecimento digno do nome. Mas eu sabia que se ela começasse com homicídio culposo e
uma recomendação de sentença na faixa média, a coisa só tinha a melhorar para minha cliente. Eu sabia também que meus instintos estavam corretos. Não tinha como
o Gabinete da Promotoria ventilar uma oferta dessas a menos que houvesse alguma coisa terrivelmente errada. Do meu ponto de vista, o caso deles era fraco desde o
instante em que puseram as algemas em minha cliente. Mas agora alguma coisa saíra do lugar. Algo grande, e eu tinha de descobrir o que era.
- Essa é uma boa oferta - eu disse.
- Pode apostar que é. Estamos derrubando a premeditação e a emboscada.
- Presumo que estejamos falando de homicídio voluntário?
- Seria difícil até mesmo pra você argumentar que foi involuntário. Não dá para dizer que ela estava passando por acaso na garagem. Você acha que ela vai aceitar?
- Não sei. Ela está dizendo desde o começo: sem acordo. Ela quer o julgamento. Posso tentar vender esse peixe. É só que...
- Só que o quê?
- Estou curioso, sabe? Por que uma oferta tão boa? Por que vocês estão baixando a expectativa desse jeito? O que deu errado na sua estratégia legal para fazer vocês
baterem em retirada?
- Isso não tem nada a ver com bater em retirada. Ela ainda vai para a prisão e a justiça será feita. Não há nada errado com nossa estratégia legal, mas julgamentos
são caros e demorados. O Gabinete da Promotoria tem optado por preferir sempre um acordo em vez do julgamento em qualquer caso. Mas acordos que tenham cabimento.
Esse é um deles. Se não está interessado, vou embora.
Ergui as mãos em um gesto de rendição. Pude perceber seus olhos fixos no gesso em minha mão esquerda.
- Não é o que eu quero. A escolha é da minha cliente, e tenho de fornecer a ela toda informação que eu puder, só isso. Já estive nessa situação antes. Geralmente
um acordo bom como esse é bom demais pra ser verdade. Você pega e acaba descobrindo depois que a principal testemunha ia dar pra trás ou que a promotoria tinha acabado
de descobrir alguma prova inocentando o réu, que você ia acabar descobrindo na publicação compulsória, se ao menos tivesse esperado um pouquinho mais.
- Sei, bom, não dessa vez. É o que está aí. Você tem 24 horas e depois a gente tira da mesa.
- E que tal fechar na faixa baixa?
- Como?
Foi quase um grito.
- Vamos lá, você veio até aqui e ainda não me fez sua melhor e última oferta. Nada funciona assim. Você tem mais um cartucho pra queimar e a gente sabe disso. Homicídio
voluntário, recomendação de sentença na faixa média. Ela cumpre cinco a sete, no máximo.
- Assim não dá. A mídia vai cair matando em cima de mim.
- Talvez, mas eu sei que seu chefe não mandou você aqui com uma oferta só, Andrea.
Ela recostou na cadeira e observou Aronson e o resto da sala, passeando os olhos pelas prateleiras de livros que vieram junto com o escritório.
- Lamento por sua mão - disse Freeman. - Deve ter doído.
- Na verdade, não. Eu já tinha ido a nocaute quando fizeram isso. Não senti nada.
Ergui a mão no ar e movi os dedos, as pontas mexendo na extremidade do gesso.
- Agora já estou conseguindo mexer bem mais.
- Ok, faixa baixa. Ainda assim vou precisar de uma resposta em 24 horas. E isso é tudo extraoficial. Tirando sua cliente, ninguém fora desta sala pode ficar sabendo
se não fechar.
- Já falamos sobre isso.
- Ok, então acho que já terminamos. Tô indo.
Ela se levantou, e Aronson e eu fizemos o mesmo. Passamos à conversa fiada que quase sempre se segue a uma reunião de grande importância.
- Então, quem vai ser o próximo chefe da promotoria? - perguntei.
- Seu palpite é tão bom quanto o meu - disse Freeman. - Ninguém saiu na frente ainda, posso dizer com certeza.
O Gabinete atualmente operava com um interino, depois que o anterior fora designado a um cargo de alto escalão na Procuradoria-Geral dos Estados Unidos, em Washington,
D.C. Uma eleição especial teria lugar no outono, para preencher a vaga, e até o momento o cenário de candidatos era desalentador.
Encerradas as amenidades, apertamos as mãos e Freeman deixou o escritório. Voltando a sentar, olhei para Aronson.
- Então, o que achou?
- Acho que você tem razão. A oferta era boa demais, e depois ela fez uma melhor ainda. Alguma coisa deu errado com o caso dela.
- É, mas o quê? Não tem como a gente explorar se não souber o que é.
Curvei-me para perto do telefone e apertei o interfone. Pedi a Cisco para entrar. Fiquei girando na cadeira em silêncio enquanto esperávamos. Cisco entrou, pôs meu
celular sobre a mesa e depois sentou na cadeira deixada por Freeman.
- Já pedi o rastreamento. Imagino uns três dias. Eles não fazem isso muito rápido.
- Obrigado.
- O que está rolando com a promotora?
- Ela está fugindo do pau e a gente não sabe por quê. Sei que você examinou com lupa tudo que ela deu pra gente e checou as testemunhas. Quero que faça isso de novo.
Alguma coisa mudou. Alguma coisa que eles achavam que tinham, mas que não têm mais. A gente precisa descobrir o que é.
- Margo Schafer, provavelmente.
- Por quê?
Cisco deu de ombros.
- Falo por experiência, só isso. Testemunhas oculares não são confiáveis. Schafer é uma parte importante de um caso muito circunstancial. Se perderem a mulher ou
se ela amarelar, vão ter um problemão. A gente já sabe que vai ser dureza convencer um júri de que ela viu o que diz ter visto.
- Mas nós ainda não conversamos com ela?
- Ela se recusou a conversar, e não tem obrigação nenhuma de fazer isso.
Abri a gaveta do meio da mesa e peguei um lápis. Enfiei a ponta na abertura do gesso e desci entre os dedos, então mexi o lápis para cima e para baixo, coçando a
palma da mão.
- O que você está fazendo? - perguntou Cisco.
- O que parece? Coçando a mão. Essa coceira me deixou maluco a reunião toda.
- Você sabe o que dizem sobre coceira na palma da mão - disse Aronson.
Olhei para ela, imaginando se havia alguma insinuação maliciosa na resposta.
- Não, o quê?
- Se for a mão direita você vai ganhar dinheiro. Se for a esquerda, você vai gastar dinheiro. Se você coça, impede que aconteça.
- Você aprendeu isso na faculdade de direito, Bullocks?
- Não, minha mãe sempre dizia. Ela era supersticiosa. Achava que era verdade.
- Bom, se for, acabei de economizar uma grana preta.
Tirei o lápis e voltei a guardá-lo na gaveta.
- Cisco, dá mais uma tentada com a Schafer. Tenta pegar ela com a guarda baixa. Aparece em algum lugar em que ela não estejá esperando. Veja como ela reage. Se fala
alguma coisa.
- Pode deixar.
- Se ela não falar, dá mais uma conferida no passado dela. Talvez tenha alguma ligação sobre a qual a gente ainda não saiba.
- Se tiver eu vou descobrir.
- Estou contando com isso.
Dezesseis
Como eu esperava, Lisa Trammel não queria tomar parte em um acordo que a mandaria para a prisão por até sete anos, mesmo diante da possibilidade de enfrentar quatro
vezes isso caso fosse condenada no julgamento. Ela preferia tentar a absolvição, e eu não podia culpá-la. Embora eu continuasse no escuro para explicar a mudança
de intenção do estado, a oferta de um acordo propício à defesa me fazia pensar que a promotoria estava morrendo de medo e que tínhamos uma chance legítima de brigar.
Se minha cliente queria rolar os dados, então que fosse. Não era minha liberdade que estava em jogo.
Eu estava no carro a caminho de casa depois do trabalho, no dia seguinte, quando liguei para Andrea Freeman a fim de lhe dar a notícia. Ela deixara vários recados
mais cedo nesse dia e eu estrategicamente me abstivera de responder, esperando fazê-la suar. Aconteceu que eu podia ter feito tudo, menos ter lhe deixado esperar.
Quando disse que minha cliente ia rejeitar a proposta, ela simplesmente riu.
- Ah, Haller, talvez você queira começar a responder a seus recados um pouco mais cedo. Tentei diversas vezes entrar em contato. A oferta foi permanentemente tirada
da mesa às dez horas. Ela deveria ter aceitado ontem à noite, e provavelmente se poupado de passar vinte anos na prisão.
- Quem tirou a oferta, seu chefe?
- Eu mesma. Mudei de ideia e pronto.
Eu não conseguia pensar no que podia ter causado uma mudança tão dramática em menos de 24 horas. A única atividade no caso nessa manhã, que eu soubesse, fora o advogado
de Louis Opparizio entrando com uma ação para anular a intimação que havíamos mandado para ele. Mas eu não via ligação entre isso e a abrupta mudança de direção
de Freeman na apelação.
Como demorei para responder, Freeman resolveu encerrar a ligação.
- Bom, doutor, acho que vejo você no tribunal.
- Certo, e só para que você saiba, eu vou descobrir, Andrea.
- Descobrir o quê?
- O que você está escondendo, seja o que for. O negócio que deu errado ontem, que fez você me trazer aquela oferta. Tanto faz se acha que já está tudo certo agora,
eu vou descobrir. E quando a gente estiver no tribunal, vou andar com isso no bolso de trás.
Ela riu no telefone de um modo que minou imediatamente a confiança de minha ameaça.
- Como eu disse, a gente se vê no tribunal - ela disse.
- É, eu apareço por lá - respondi.
Pus o telefone no apoio do braço e tentei intuir o que estava acontecendo. Então me dei conta. Eu podia já estar carregando o segredo de Freeman no meu bolso de
trás.
A carta de Bondurant para Opparizio havia estado escondida na pilha de documentos que Freeman entregara nas minhas mãos. Talvez só recentemente ela mesma tivesse
descoberto a carta e percebido o que eu podia fazer com aquilo, como eu podia elaborar um caso para a defesa em torno dela. Às vezes isso acontece. Um promotor recebe
um caso cujas provas parecem esmagadoras e se deixa tomar pela soberba. Você trabalha em cima do que tem e outras provas potenciais só são descobertas mais tarde.
Às vezes, tarde demais.
Fiquei convencido. Tinha de ser a carta. Um dia antes, ela estava amarelando. Agora estava confiante. Por quê? A única diferença entre ontem e hoje era o requerimento
para anular a intimação de Opparizio. De repente compreendi sua estratégia. A promotoria iria apoiar a rejeição da intimação. Se Opparizio não testemunhasse, talvez
eu não fosse capaz de apresentar a carta diante do júri.
Decidi pôr o celular no bolso. Nada mais de telefonemas. Era sexta-feira à noite. Melhor esquecer o caso e retomar o trabalho na manhã seguinte. Tudo poderia esperar
até lá.
- Rojas, põe um som aí. É fim de semana, cara!
Rojas apertou o botão do painel para tocar um CD. Eu esquecera o que havia ali dentro, mas logo identifiquei a música como sendo a versão de Ry Cooder para Teardrops
Will Fall, um clássico dos anos 60 que ele incluiu em seu disco de antologia. Parecia bom e adequado. Uma canção sobre perda do amor e solidão.
O julgamento começaria em menos de três semanas. Descobrindo ou não o que Freeman estava escondendo, a equipe da defesa estava a postos e preparada para começar.
Ainda havia algumas intimações pendentes para enviar, mas de resto estávamos prontos para a batalha e minha confiança crescia a cada dia.
Na próxima segunda-feira eu me enfiaria no escritório e começaria a coreografar a estratégia legal da defesa. A hipótese de inocência seria cuidadosamente revelada
de prova em prova e testemunha em testemunha até formar uma onda arrasadora de dúvida razoável.
Mas eu ainda tinha um fim de semana pela frente antes disso e queria ficar o mais distante possível de Lisa Trammel e tudo o mais. Ry Cooder agora cantava Poor Man’s
Shangri-La, a canção sobre OVNIs e mexicanos espaciais na Chávez Ravina antes que se apropriassem do lugar para construir o Dodger Stadium.
What’s that sound, what’s that light?
Streaking down through the night
Pedi a Rojas para aumentar o volume. Baixei as janelas traseiras e deixei o vento e a música soprarem por meu cabelo e em meus ouvidos.
UFO got a radio
Little Julian singing soft and low
Los Angeles down below
DJ says, we gotta go
To El Monte, to El Monte, pa El Monte
Na, na, na, na, na
Livin’ in a poor man’s Shangri-La
Fechei os olhos enquanto rodávamos.
Dezessete
Rojas me deixou diante dos degraus de minha casa e subi vagarosamente enquanto ele guardava o Lincoln na garagem. O carro dele ficava estacionado na rua. Ele ia
embora para sua casa e voltava na segunda, a rotina normal.
Antes de abrir a porta fui até a ponta do deque e observei a vista da cidade. O sol ainda brilharia por mais algumas horas, depois começaria uma nova semana. Dali
de cima a cidade emitia um som parecido com um apito de trem. A surda sibilação de um milhão de sonhos em disputa.
- Tudo bem?
Virei. Era Rojas, no alto da escada.
- Estou, tudo bem. Qual o problema?
- Sei lá. Vi o senhor parado aí em cima e achei que podia ter alguma coisa errada, como se tivesse perdido a chave ou qualquer coisa assim.
- Não, só estou dando uma olhada na cidade.
Fui até a porta e tirei minha chave de casa.
- Bom fim de semana, Rojas.
- Pra você também, chefe.
- Sabe, acho que eu preferia que você parasse de me chamar de chefe.
- Certo, chefe.
- Esquece.
Girei a fechadura e abri a porta. Fui imediatamente recebido com um coro alto de inúmeras vozes cantarolando: “Surpresa!”
Houve uma vez que levei um tiro na barriga abrindo a mesma porta. Essa surpresa foi bem melhor. Minha filha correu em minha direção para me abraçar. Olhei em torno
da sala e vi todo mundo: Cisco, Lorna, Bullocks. Meu meio-irmão Harry Bosch e sua filha, Maddie. E Maggie estava lá, também. Ela se aproximou de Hayley e me deu
um beijo no rosto.
- Hum - eu disse. - Preciso contar uma coisa. Hoje não é meu aniversário. Pelo jeito vocês todos foram tapeados por alguém com algum plano maligno de comer bolo.
Maggie bateu em meu ombro.
- Seu aniversário é domingo. Não é um bom dia para uma festa surpresa.
- É, exatamente o que eu estava planejando.
- Vamos lá, sai da frente da porta e deixa o Rojas entrar. Ninguém vai demorar muito. A gente só queria dar parabéns.
Curvei-me para a frente, beijei seu rosto e sussurrei em seu ouvido.
- E você? Tem certeza que não quer demorar um pouco mais?
- A gente conversa.
Ela me conduziu pelo corredor polonês de apertos de mão, beijos e tapinhas nas costas. Foi uma coisa legal e totalmente inesperada. Puseram-me no lugar de honra
e me serviram uma limonada.
A festa durou mais uma hora e tive tempo de bater um papo com todo mundo. Fazia meses que eu não via Harry Bosch. Eu sabia que ele fora me visitar no hospital, mas
eu não estava acordado no momento. Tínhamos participado juntos de um caso no ano anterior, em que fui promotor por um breve período. Gostei de estarmos do mesmo
lado e achei que a experiência nos aproximaria. Mas não funcionara desse jeito de fato. Bosch continuou tão distante quanto antes e a situação continuou a me entristecer
tanto quanto antes.
Quando vi uma oportunidade, fui até ele e ficamos lado a lado e de frente para a janela panorâmica com a melhor vista da cidade.
- Desse ângulo é difícil não se apaixonar por ela, não é? - ele perguntou.
Virei para ele e depois voltei a olhar a vista. Ele também estava tomando uma limonada. Havia me contado que parara de beber quando sua filha adolescente fora morar
com ele.
- Entendo o que quer dizer - eu disse.
Ele esvaziou o copo e me agradeceu pela festa. Falei para ele que podia deixar Maddie com a gente se ela quisesse ficar um pouco mais com a Hayley. Mas ele disse
que já planejara ir com a filha a um estande de tiro pela manhã.
- Um estande de tiro? Você leva sua filha para um estande de tiro?
- Tenho armas na casa. Ela precisa saber como usar.
Encolhi os ombros. Acho que havia uma certa lógica nisso.
Bosch e sua filha foram os primeiros a ir, e logo depois disso a festa acabou. Todo mundo foi embora, exceto Maggie e Hayley. Haviam decidido passar a noite comigo.
Exausto com o dia, com a semana, com o mês, tomei uma ducha demorada e fui deitar cedo. Logo Maggie veio também, depois de dizer a Hayley para dormir em seu quarto.
Ela fechou a porta e foi então que vi que o verdadeiro presente de aniversário estava vindo.
Ela não trouxera nenhuma roupa de dormir. Deitado de costas, observei-a se despir e depois entrar sob as cobertas comigo.
- Você não tem jeito mesmo, Haller - sussurrou ela.
- O que foi que eu fiz dessa vez?
- Você acabou de abusar totalmente dos limites.
Ela se aproximou e depois ficou em cima de mim. Curvando o tronco, roçou meu rosto com os cabelos. Deu-me um beijo e começou lentamente a mexer os quadris, então
encostou os lábios em meu ouvido.
- Então - disse. - Atividades e hábitos normais, não foi isso que o médico falou?
- Foi isso mesmo.
- Vamos ver.
PARTE TRÊS
O Bolero de Ravel
Dezoito
Louis Opparizio era um homem que não queria ser intimado oficialmente. Como advogado, sabia que o único modo de se ver arrastado para o julgamento de Lisa Trammel
era recebendo a intimação para testemunhar. Evitar ser intimado significava evitar prestar depoimento. Fosse por ter sido alertado para a estratégia da defesa, fosse
por simplesmente ser esperto bastante para compreender por conta própria, ele aparentemente sumiu assim que começamos a procurá-lo. Seu paradeiro era desconhecido
e todos os truques rotineiros para rastreá-lo e pegá-lo fracassaram. Não sabíamos se Opparizio estava no país, muito menos em Los Angeles.
Opparizio tinha uma grande vantagem a seu favor no esforço por se esconder. Dinheiro. Com dinheiro suficiente, você pode se esconder de qualquer um nesse mundo e
Opparizio sabia disso. Ele possuía diversas residências em diversos estados, inúmeros veículos e até um jato particular para ajudá-lo a se transportar rapidamente
de um lugar a outro. Quando estava em trânsito, fosse de um estado para outro ou de sua casa em Beverly Hills para seu escritório em Beverly Hills, andava com um
exército de seguranças.
Ele também tinha uma grande desvantagem contra. Dinheiro. A vasta riqueza que acumulara executando as determinações de bancos e outras financeiras também lhe rendera
um calcanhar de aquiles. Havia adquirido os gostos e desejos dos miliardários.
E foi assim que acabamos por pegá-lo.
No decorrer de seus esforços por localizar Opparizio, Cisco Wojciechowski reuniu uma tremenda quantidade de informação sobre o perfil de sua presa. Com base nesses
dados uma armadilha foi cuidadosamente planejada e executada à perfeição. Um luxuoso pacote de apresentação anunciando o leilão de lance fechado para uma pintura
de Aldo Tinto foi enviado para o escritório de Opparizio em Beverly Hills. O pacote informava que a tela estaria sendo exibida para os interessados durante apenas
duas horas, iniciando às 19 horas, dali a duas noites no Studio Z, em Bergamot Station, em Santa Monica. Os lances seriam depois aceitos até a meia-noite.
A apresentação parecia profissional e legítima. A descrição da pintura fora copiada de um catálogo de arte on-line que mostrava coleções privadas. Sabíamos de um
perfil de Opparizio feito há dois anos em um jornal da ordem que ele se tornara um colecionador de pintores menores e que o mestre italiano tardio Tinto era sua
obsessão. Quando um homem ligou para o número de telefone do portfólio, identificou-se como representante de Louis Opparizio e agendou uma visita particular para
ver a tela, a isca fora mordida.
Precisamente na hora marcada, o grupo de Opparizio entrou na antiga estação dos bondes, transformada em um sofisticado complexo de galerias. Enquanto três seguranças
de óculos escuros posicionavam-se em cantos opostos do local, outros dois percorriam o Studio Z antes de dar o sinal de que estava tudo limpo. Somente então Opparizio
emergiu de seu Mercedes alongado.
Dentro da galeria, Opparizio foi recebido por duas mulheres que o desarmaram com seus sorrisos e empolgação com a arte e a pintura que ele estava prestes a ver.
Uma delas serviu-lhe uma taça de Cristal para celebrar o momento. A outra lhe entregou um grosso pacote de documentos sobre a procedência do quadro e o histórico
de exposições. Como segurava a champanhe com uma mão, ele não pôde abrir os documentos. Disseram-lhe que podia ler mais tarde, pois ele tinha de ver a pintura imediatamente,
devido a um compromisso posterior. Ele foi levado à sala de exposição onde a tela fora montada num cavalete ornamentado coberto com uma cortina de cetim. Um holofote
isolado iluminava o centro do ambiente. As mulheres lhe disseram para que ele mesmo removesse o tecido e uma delas pegou sua taça de champanhe. Ela vestia luvas
longas.
Opparizio avançou, sua mão erguida de expectativa ansiosa. Cuidadosamente removeu o cetim da moldura. E ali, pregada na superfície, estava a intimação. Confuso,
ele se curvou para olhar mais de perto, talvez ainda pensando se tratar da obra do mestre italiano.
- O senhor foi intimado, senhor Opparizio - disse Jennifer Aronson. - O original está em sua mão.
- Não estou entendendo - ele disse, mas estava.
- E a coisa toda foi filmada, desde a chegada do Mercedes - disse Lorna.
Ela foi até a parede e acionou um interruptor, inundando de luz o ambiente. Apontou as duas câmeras no alto. Jennifer ergueu a taça de champanhe, como num brinde.
- Temos suas digitais também, se for necessário.
Ela virou e fez um brinde para as câmeras.
- Não - disse Opparizio.
- Sim - disse Lorna.
- A gente se vê no tribunal - disse Jennifer.
As mulheres se dirigiram à porta lateral da galeria, onde um Lincoln dirigido por Cisco aguardava. Missão cumprida.
Mas isso tudo já ficou para trás. Agora eu estava no tribunal do juiz Coleman Perry, preparando-me para defender a citação e a validade da intimação de Opparizio,
bem como a própria argumentação de minha estratégia legal de defesa. Minha advogada assistente, Jennifer Aronson, sentava ao meu lado na mesa da defesa e ao seu
lado estava nossa cliente, Lisa Trammel. Na mesa oposta estavam Louis Opparizio e seus dois advogados, Martin Zimmer e Landon Cross. Andrea Freeman sentava-se numa
cadeira junto à balaustrada. Como promotora do processo criminal do qual esta audiência se originava, era uma parte interessada, mas sem que sua participação direta
se justificasse. Presente também na sala do tribunal estava o detetive Kurlen, sentado três fileiras para trás, na plateia. Sua presença era um mistério para mim.
O motivo da ação era Opparizio. Ele e sua equipe jurídica estavam ali para anular a intimação e impedir sua participação no julgamento. Ao montar a estratégia para
isso, haviam julgado prudente avisar Freeman para comparecer à audiência, caso a promotoria também visse mérito em manter Opparizio longe do júri. Embora em grande
parte uma mera espectadora, Freeman podia entrar na disputa a qualquer momento que desejasse e ela sabia que, quer fizesse isso, quer não, a audiência seria uma
boa oportunidade de conferir a estratégia da defesa.
Era a primeira vez que eu via Opparizio pessoalmente. O sujeito era gigante, de certo modo parecendo tão largo quanto alto. A pele em seu rosto fora esticada pelo
bisturi ou por anos de um temperamento irascível. Pelo corte de seu cabelo e de seu terno, tinha cara de dinheiro. E para mim era o testa de ferro perfeito, pois
também parecia alguém capaz de matar, ou pelo menos de dar uma ordem para matar.
Os advogados de Opparizio haviam solicitado ao juiz que a audiência fosse in camera - a portas fechadas, em sua sala no tribunal -, de modo que os detalhes a serem
revelados não chegassem à imprensa e possivelmente contaminassem o júri que seria reunido no dia seguinte. Eleito para o cargo, Perry era muito cioso da percepção
pública. Ele concordou comigo e declarou que a audiência seria aberta ao público. Foi um grande ponto a meu favor. Minha vitória nessa única disputa provavelmente
salvou todo o caso para a defesa.
Não havia muita gente da mídia presente, mas o suficiente para minhas necessidades. Repórteres do Los Angeles Business Journal e do L.A. Times estavam na primeira
fileira. Um câmera freelance que vendia suas imagens para todas as redes estava na bancada do júri vazia, com sua câmera. Fora eu quem lhe dera um toque da audiência
e lhe dissera para estar ali. Imaginei que entre a mídia impressa e a solitária câmera de tevê, haveria pressão suficiente sobre Opparizio para forçar o resultado
que ele estava buscando.
Depois de rejeitar o pedido de uma sessão a portas fechadas, o juiz iniciou os trabalhos.
- Doutor Zimmer, o senhor entrou com um requerimento para anular a intimação de Louis Opparizio no processo California versus Trammel. Pode por favor fazer seu discurso
de defesa, doutor?
Zimmer parecia um advogado já bastante calejado em tribunais e acostumado a liquidar seus inimigos. Ele se levantou para responder ao juiz.
- Gostaríamos muito de expor essa questão ao tribunal, Meritíssimo. Vou falar inicialmente sobre a entrega da intimação em si, depois meu colega, o doutor Cross,
irá discutir a outra questão para a qual solicitamos reparação.
Zimmer prosseguiu afirmando que minha firma incorrera em fraude postal ao elaborar a armadilha que resultou na intimação entregue a Opparizio. Disse que o folder
luxuoso que servira de isca para seu cliente era um instrumento de fraude e que o envio pelo correio dos Estados Unidos constituía um crime que invalidava qualquer
ação conseguinte, como a entrega da intimação. Pediu ainda que a defesa fosse penalizada com a proibição de qualquer esforço subsequente de intimar Opparizio a testemunhar.
Não precisei sequer ficar de pé para responder - o que era ótimo, porque o simples ato de levantar ou sentar disparava ondas de dor por meu peito. O juiz ergueu
a mão em minha direção num sinal de que eu aguardasse e em seguida descartou sumariamente o argumento de Zimmer, dizendo que era uma novidade, mas chamando-o de
ridículo e sem mérito.
- Vamos, doutor Zimmer, aqui é briga de cachorro grande - disse Perry. - O senhor tem alguma coisa com mais carne no osso?
Devidamente intimidado, Zimmer passou a bola para seu colega e sentou. Landon Cross ficou de pé e se dirigiu ao juiz.
- Excelência - disse -, Louis Opparizio é um homem de posses e posição na comunidade. Ele não teve qualquer ligação com esse crime ou com esse julgamento e objeta
a que seu nome e reputação sejam manchados com a inclusão nele. Permita-me repetir enfaticamente, ele não teve qualquer ligação com esse crime, não é um suspeito
e não tem qualquer conhecimento sobre o caso. Ele não possui qualquer informação comprobatória ou absolvente para fornecer. Ele objeta a que o advogado de defesa
o ponha no banco das testemunhas para dar tiros no escuro e objeta a ser usado pelo advogado de defesa como um instrumento para desviar a atenção do caso em questão.
Que o doutor Haller aponte sua metralhadora giratória em outra direção.
Cross virou e fez um gesto para Andrea Freeman.
- Devo acrescentar, Excelência, que a promotoria se une a mim no requerimento para a anulação pelos mesmos motivos expostos.
O juiz girou na cadeira e olhou para mim.
- Doutor Haller, quer responder a tudo isso?
Fiquei de pé. Lentamente. Eu segurava o martelo de espuma que peguei em minha mesa, e exercitava os dedos, recém-liberados do gesso, mas ainda duros.
- Sim, Meritíssimo. Primeiro gostaria de dizer que o doutor Cross tem razão em se referir a metralhadoras e tiros. O testemunho do senhor Opparizio no julgamento,
caso Vossa Excelência assim o consinta, constitui um importante alvo desse caso em mais de um aspecto. Talvez não o único, note bem, mas ainda assim merecedor de
nossa mira. Só que tudo isso, Excelência, chegou nesse ponto porque o senhor Opparizio e sua equipe legal tornaram virtualmente impossível para a defesa conduzir
uma investigação completa do assassinato de Mitchell Bondurant. O senhor Opparizio e seus comparsas vêm frustrando todas as...
Zimmer se pôs de pé e protestou veementemente.
- Excelência! Mas o que é isso? Comparsas? O doutor está claramente empenhado em atuar para a mídia presente neste tribunal às custas do senhor Opparizio. Sou obrigado
a insistir mais uma vez na realização desta audiência a portas fechadas, antes de prosseguirmos.
- Isso não vai acontecer - disse Perry. - Mas, doutor Haller, não permitirei que convoque a testemunha só para dar um show pessoal diante do júri. Qual a ligação
dele? O que ele tem a nos dizer?
Balancei a cabeça como se já estivesse com a resposta pronta.
- O senhor Opparizio é fundador e diretor de uma firma que atua como intermediária no processo de execuções hipotecárias. Quando a vítima neste caso decidiu entrar
com a execução da residência da acusada, ele procurou o senhor Opparizio para fazer o trabalho. Isso, na minha opinião, Excelência, deixa o senhor Opparizio na linha
de frente deste caso e eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas a respeito, porque a promotoria declarou à imprensa que o processo de execução foi o motivo do
homicídio.
Zimmer interveio antes que o juiz pudesse responder.
- Isso é uma afirmação ridícula! A empresa do senhor Opparizio conta com 185 empregados. Ela funciona em um edifício com três andares. Para...
- Executar a hipoteca das pessoas é um grande negócio - retruquei.
- Doutor - advertiu o juiz.
- O senhor Opparizio não tem absolutamente nenhuma relação com o processo de execução hipotecária da ré, a não ser pelo fato de ser conduzido por sua firma, junto
com mais cem mil casos semelhantes neste ano - disse Zimmer.
- Cem mil casos, doutor Zimmer? - perguntou o juiz.
- Exatamente, Meritíssimo. Em média, a empresa vem lidando com 2 mil casos de execução por semana ao longo de mais de dois anos. Isso inclui o processo envolvendo
a acusada. O senhor Opparizio não detém qualquer conhecimento específico relativo ao caso dela. É apenas um dentre muitos, que em nenhum momento mereceu sua atenção.
O juiz mergulhou em pensamentos e ao que parecia já ouvira o bastante. Minha esperança era não ter de revelar meu ás na manga, principalmente na frente da promotora.
Mas eu só podia presumir que Freeman já tinha ciência da carta de Bondurant e quanto ela valia.
Levei a mão à pasta diante de mim sobre a mesa e a abri. Lá estavam a carta e quatro cópias, prontas para mostrar.
- Senhor Haller, estou inclinado a...
- Excelência, se o tribunal me permite, gostaria de pedir permissão para perguntar ao senhor Opparizio o nome de sua secretária pessoal.
Isso fez Perry se deter outra vez e ele entortou a boca, confuso.
- O senhor quer saber quem é a secretária dele?
- A secretária pessoal dele, isso mesmo.
- E por que o senhor gostaria de saber isso, doutor?
- Peço ao tribunal que me permita.
- Muito bem. Senhor Opparizio? O doutor Haller gostaria de saber o nome de sua secretária pessoal.
Opparizio curvou-se para a frente e olhou para Zimmer, como que precisando de sua aprovação. Zimmer sinalizou para que fosse em frente e respondesse à pergunta.
- Hum, Excelência, tenho duas, na verdade. Uma é Carmen Esposito, a outra é Natalie Lazarra.
Então voltou a recostar na cadeira. O juiz olhou para mim. Era hora de mostrar meu ás.
- Meritíssimo, tenho aqui cópias de uma carta registrada que foi escrita por Mitchell Bondurant, a vítima do homicídio, e enviada ao senhor Opparizio. Foi recebida
e assinada por sua secretária pessoal, Natalie Lazarra. A carta foi entregue a mim pela promotoria como publicação compulsória. Gostaria que o senhor Opparizio testemunhasse
no julgamento para que eu pudesse questioná-lo a respeito.
- Me deixa dar uma olhada - disse Perry.
Afastei-me da mesa e entreguei cópias da carta para o juiz e depois para Zimmer. Quando voltava, passei por Freeman e lhe ofereci uma cópia.
- Não, obrigada. Eu já tenho.
Balancei a cabeça e voltei à mesa, mas continuei de pé.
- Excelência? - disse Zimmer. - Podemos fazer um breve recesso para examiná-la? Não tínhamos conhecimento disto aqui.
- Quinze minutos - disse Perry.
O juiz desceu do banco e se dirigiu a seu gabinete pessoal. Esperei para ver se a equipe de Opparizio iria sair com aquilo para o corredor. Quando ficaram onde estavam,
também fiquei. Queria deixá-los preocupados de que eu pudesse escutar alguma coisa.
Confabulei com Aronson e Trammel.
- O que eles estão fazendo? - sussurrou Aronson. - É impossível que já não soubessem da carta.
- Tenho certeza de que a promotoria deu uma cópia para eles - disse eu. - Opparizio está bancando o mais esperto da sala. Agora vamos ver se é mesmo o mais esperto
da sala.
- Como assim?
- A gente fez ele ficar entre a cruz e a espada. Ele sabe que precisa dizer ao juiz que se eu perguntar sobre essa carta ele vai invocar a Quinta Emenda e assim
a intimação vai pro lixo. Mas ele sabe que se invocar a Quinta diante da mídia aqui presente vai estar encrencado. Vai manchar a água com sangue.
- Então o que você acha que ele vai fazer? - perguntou Trammel.
- Bancar o mais esperto.
Recuei a cadeira e me levantei. Comecei a andar despreocupadamente entre as mesas. Zimmer olhou por cima do ombro para mim e depois se curvou para mais perto de
seu cliente. Então voltei a me aproximar de Freeman, ainda em seu lugar.
- Quando você entra?
- Hum, acho que não vou precisar.
- Eles já têm essa carta, não tem? Você deu pra eles.
Ela encolheu os ombros, mas não respondeu. Olhei mais para trás, onde Kurlen estava sentado, a três fileiras dali.
- O que o Kurlen está fazendo aqui?
- Ah... pode ser que precisem dele.
Isso não me ajudou nem um pouco.
- Na semana passada, quando você fez a oferta, foi porque encontrou a carta, não foi? Você achou que seu caso estava com sérios problemas.
Ela ergueu o rosto para mim e sorriu, sem entregar nada.
- O que mudou? Por que retirou a oferta?
Mais uma vez, ela não respondeu.
- Você está achando que ele vai invocar a Quinta, não é?
Ela encolheu os ombros outra vez.
- Eu faria isso - eu disse. - Mas ele...?
- A gente vai descobrir logo - disse ela, pondo um ponto final na conversa.
Voltei para a mesa e sentei. Trammel sussurrou para mim que ainda não estava entendendo aquilo tudo.
- Queremos que Opparizio testemunhe no tribunal. Ele não quer fazer isso, mas o único jeito de o juiz isentá-lo da intimação é se ele disser que vai invocar a Quinta
Emenda, que o protege de se autoincriminar. Se ele fizer isso, estamos ferrados. Ele é nosso testa de ferro. A gente precisa dele no banco das testemunhas.
- Você acha que ele vai invocar a Quinta?
- Estou apostando que não. Tem muita coisa em jogo, com a mídia aqui. Ele está dando os últimos retoques numa fusão importante e sabe que se optar pelo silêncio
a mídia vai cair matando em cima. Acho que é esperto o suficiente apenas pra achar que consegue se safar quando tiver que subir no banco das testemunhas. É com isso
que eu estou contando. Com ele se achando mais esperto que todo mundo.
- E se...
Ela foi interrompida pela volta do juiz à sua cadeira. Ele reiniciou a sessão rapidamente e Zimmer pediu para se dirigir ao tribunal.
- Excelência, gostaria que constasse dos autos que contra o aconselhamento de seus advogados meu cliente me instruiu a retirar o requerimento de anulação.
O juiz balançou a cabeça e franziu os lábios. Olhou para Opparizio.
- Então seu cliente vai testemunhar perante o júri? - perguntou.
- Sim, Excelência - disse Zimmer. - Ele tomou essa decisão.
- Tem certeza disso, senhor Opparizio? O senhor conta com anos de experiência ao seu lado nessa mesa.
- Tenho, Excelência - disse Opparizio. - Tenho certeza.
- Então, requerimento revogado. Mais alguma coisa a ser apresentada a este tribunal antes de iniciarmos a seleção do júri amanhã de manhã?
Perry olhou para Freeman, atrás das mesas. Era uma deixa. Ele sabia que havia mais coisas a discutir. Freeman se levantou, pasta na mão.
- Sim, Excelência, posso me aproximar?
- Por favor, doutora Freeman.
Freeman saiu de onde estava, mas depois aguardou até que a equipe de Opparizio terminasse de arrumar suas coisas e deixasse a mesa da promotoria. O juiz esperou
pacientemente. Finalmente, ela foi para junto da mesa, mas continuou de pé.
- Deixe-me adivinhar - disse Perry. - A doutora quer falar sobre a lista de testemunhas atualizada do doutor Haller.
- Isso mesmo, Meritíssimo, quero. Tenho também uma questão da prova para apresentar. Qual o senhor gostaria de ouvir primeiro?
Questão da prova. De repente eu soube por que Kurlen estava na sala.
- Vamos começar pela lista das testemunhas - disse o juiz. - Essa eu já previa.
- Certo, Excelência. O doutor Haller incluiu sua advogada assistente na lista de testemunhas e creio que, antes de mais nada, ele precisa escolher entre ter a doutora
Aronson ao seu lado na mesa da defesa ou chamá-la para testemunhar. Mas, segundo, e mais importante, a doutora Aronson já cuidou da audiência preliminar para a defesa,
bem como de outras tarefas, de modo que o estado objeta a essa súbita medida de torná-la uma testemunha no julgamento.
Freeman sentou e o juiz olhou para mim.
- Um pouco tarde demais para uma jogada como essa, não acha, doutor Haller?
Fiquei de pé.
- Sim, Excelência, a não ser pelo fato de que isso não é nenhum jogo e que é da liberdade da minha cliente que estamos falando. A defesa gostaria de solicitar ao
tribunal uma margem de ação mais ampla nesse aspecto. A doutora Aronson envolveu-se intimamente na defesa contra os processos de execução hipotecária contra a minha
cliente e a defesa chegou à conclusão de que sua presença no banco será necessária para explicar aos jurados sobre o contexto e os acontecimentos no momento do assassinato
do senhor Bondurant.
- E o senhor planejava tê-la em dupla função, como testemunha e como advogada de defesa? Isso não vai acontecer em meu tribunal, doutor, de modo algum.
- Excelência, quando inseri o nome da doutora Aronson na lista final, presumi que isso seria discutido com a doutora Freeman. A defesa está aberta à decisão do tribunal
com respeito à questão.
Perry olhou para Freeman à espera de mais algum argumento. Ela ficou quieta.
- Muito bem, então - disse. - O senhor acaba de perder sua assistente, doutor Haller. Vou permitir que a doutora Aronson permaneça na lista de testemunhas, mas amanhã,
quando começarmos a escolher o júri, o senhor estará por conta própria. A doutora Aronson não deve aparecer em meu tribunal até o momento de testemunhar.
- Obrigado, Excelência - eu disse. - Ela vai estar autorizada a se juntar a mim na defesa após a conclusão de seu testemunho?
- Não vejo problema nisso. - Então Perry perguntou: - Doutora Freeman, tem uma segunda questão para trazer ao tribunal?
Freeman voltou a levantar. Eu me sentei e me curvei para a frente, segurando a caneta, pronto para fazer anotações. O movimento provocou uma dor excruciante em meu
tronco, e quase gemi em voz alta.
- Excelência, o estado quer repelir os protestos que sem dúvida serão objetados pela defesa. Ontem à tarde, recebemos um relatório da análise de DNA de um vestígio
muito pequeno de sangue encontrado em um sapato pertencente à acusada e apreendido durante a busca em sua residência e sua garagem no dia do assassinato.
Senti um soco invisível na barriga que fez a dor em minhas costelas desaparecer num instante. Instintivamente percebi que isso ia mudar os rumos do jogo.
- A análise revelou que o sangue no sapato bate com o sangue da vítima, Mitchell Bondurant. Antes que o advogado da defesa proteste, devo informar ao tribunal que
a análise do sangue foi adiada devido ao acúmulo de trabalho no laboratório e porque a amostra trabalhada era bem minúscula. A dificuldade foi acentuada pela necessidade
de preservar uma porção da amostra para a defesa.
Joguei minha caneta. Ela rebateu na mesa e depois caiu ruidosamente no chão. Fiquei de pé.
- Excelência, isso é simplesmente uma afronta. Na véspera da seleção do júri? Aparecer com isso? Ah, minha nossa, foi mesmo muita gentileza deixar um pouco para
a defesa. Assim que sairmos daqui vamos mandar analisar antes que a seleção do júri comece, amanhã. Isso é simplesm...
- Argumento entendido, doutor - interrompeu o juiz. - Me incomoda também, doutora Freeman, a doutora está com a prova desde o início do caso. Como isso pode aparecer
tão convenientemente um dia antes da seleção do júri?
- Excelência - disse Freeman -, compreendo plenamente o fardo que isso põe sobre a defesa e sobre o tribunal. Mas é como é. Fui informada do resultado às oito horas
da manhã de hoje, quando recebi o laudo do laboratório. É a primeira oportunidade que tive de trazer perante o tribunal. Quanto ao motivo para só ter sido entregue
agora, bem, há mais de um. Tenho certeza de que o tribunal está ciente dos atrasos em análises de DNA no laboratório da Cal State. Há milhares de pedidos. Embora
a investigação de homicídios certamente tenha prioridade, isso não ocorre em detrimento de todos os demais pedidos. Preferimos não procurar um laboratório particular
que pudesse entregar o resultado mais rapidamente devido à preocupação com o tamanho da amostra. Sabíamos que se alguma coisa desse errado com um serviço terceirizado,
teríamos perdido completamente a oportunidade de testar o sangue, e preservar uma parte para a defesa.
Balancei a cabeça de frustração enquanto esperava uma oportunidade para falar outra vez. Isso definitivamente mudava tudo. Até ali fora um caso completamente circunstancial.
Agora era um caso envolvendo prova direta ligando a acusada ao crime.
- Doutor Haller? - disse o juiz. - O senhor quer responder?
- Certamente sim, Meritíssimo. Acho que isso está mais para jogo sujo e nem por um segundo acredito na coincidência que está sendo alegada. Solicito que o tribunal
informe à promotoria que é tarde demais para aparecer com isso. Proponho que essa assim chamada prova seja excluída do julgamento.
- E quanto a postergar o julgamento? - disse o juiz. - E se o senhor tivesse tempo para mandar fazer a análise e se atualizar nisso aqui?
- Atualizar? Meritíssimo, isso não tem relação com obter nossa própria análise. Significa uma completa mudança de estratégia para a defesa. A promotoria está tentando
mudar as regras, de um caso circunstancial para um caso baseado em ciência, às vésperas do julgamento. Não preciso de tempo apenas para um exame de DNA. Depois de
dois meses, preciso repensar o caso todo, agora. Isso é uma bomba, Excelência, e não deveria ser permitido baseado na simples questão do fair play.
Freeman queria sua réplica, mas o juiz não autorizou. Tomei isso como um bom sinal, até ver que ele olhava para o calendário pendurado na parede atrás do cercado
da estenógrafa. Isso me fez perceber que só pretendia atenuar a situação me dando mais tempo. Ele ia admitir o DNA como prova e apenas me concederia algum tempo
extra para eu me preparar.
Voltei a sentar, com ar de derrota. Lisa Trammel se curvou para mim e sussurrou desesperada: “Mickey, não pode ser. É uma armação. Não tem como o sangue dele estar
nos sapatos. Você precisa acreditar em mim.”
Ergui a mão para fazê-la ficar quieta. Eu não precisava acreditar numa só palavra do que estava me dizendo e, além do mais, isso não vinha ao caso. A realidade era
que o caso estava mudando. Não era de admirar que Freeman tivesse recuperado toda a sua confiança.
De repente me dei conta de algo. Rapidamente fiquei de pé. Rápido demais. A dor percorreu meu torso e desceu por minha virilha, e me curvei sobre a mesa da defesa.
- Exc... Excelência?
- Está tudo bem, doutor Haller?
Lentamente endireitei o corpo.
- Sim, Excelência, mas preciso acrescentar uma coisa para os autos, se o senhor me permite.
- Vá em frente.
- Excelência, a defesa questiona a veracidade da alegação da promotoria sobre ficar sabendo do resultado desse exame de DNA apenas esta manhã. Três semanas atrás
a doutora Freeman ofereceu para minha cliente um acordo muito favorável, dando à senhora Trammel 24 horas para decidir. Depois...
- Excelência? - disse Freeman.
- Não interrompa - ordenou o juiz. - Continue, doutor Haller.
Não tive o menor pudor de quebrar minha promessa feita a Freeman de não revelar as negociações de um acordo. O momento da diplomacia havia passado, a essa altura.
- Obrigado, Excelência. Então recebemos o oferecimento de acordo numa quinta-feira à noite e na sexta-feira pela manhã a doutora Freeman retira a proposta da mesa
sem maiores explicações. Bom, acho que agora temos a explicação, Meritíssimo. Ela sabia na época, três semanas atrás, sobre essa suposta prova de DNA, mas decidiu
guardar na gaveta para surpreender a defesa na véspera do julgamento. E eu...
- Obrigado, doutor Haller. E quanto à senhora, doutora Freeman?
Pude ver que a pele em torno dos olhos do juiz se retesara. Ele estava irritado. O que eu acabara de dizer cheirava a verdade.
- Excelência - disse Freeman, expressando indignação. - Nada poderia estar mais longe da verdade. Estou com o detetive Kurlen presente aqui na plateia para testemunhar
de bom grado sob juramento que o relatório do DNA foi entregue no fim de semana em sua sala e aberto por ele pouco depois de sua chegada para trabalhar, às sete
e meia desta manhã. Ele então me ligou e o trouxe ao tribunal. O Gabinete da Promotoria não guardou coisa alguma na gaveta e repudio a difamação pessoalmente dirigida
contra mim pelo advogado de defesa.
O juiz relanceou as fileiras da plateia e olhou para Kurlen, depois voltou a olhar para Freeman.
- Por que a senhora retirou a oferta de acordo um dia depois de fazê-la? - quis saber.
A pergunta que não quer calar. Freeman pareceu nervosa em ver o juiz levando a inquirição adiante.
- Meritíssimo, essa decisão envolveu questões internas que talvez seja melhor não expor em um tribunal.
- Quero entender isso, doutora. Se faz questão dessa prova, melhor acalmar minhas preocupações, problemas internos ou não.
Freeman balançou a cabeça.
- Certo, Excelência. Como o senhor está ciente, temos um promotor interino desde que o senhor Williams passou a trabalhar na Procuradoria-Geral, em Washington. Isso
resultou numa situação em que nem sempre contamos com linhas de comunicação e de comando muito claras. Para resumir, naquela quinta-feira recebi a aprovação de meu
supervisor para a oferta feita ao doutor Haller. Mas na sexta de manhã fui informada por uma autoridade maior no gabinete que a oferta não recebera aprovação interna,
então a retirei.
Era tudo papo furado, mas ela mentira bem, e eu não tinha como contradizê-la. Mas, quando me contou que a oferta não estava mais de pé naquela sexta-feira, eu percebi
pelo tom de sua voz que havia alguma coisa nova, alguma outra coisa, e que sua decisão não tinha nada a ver com comunicações internas e direção.
O juiz tomou sua decisão.
- Vou postergar a seleção do júri em dez dias úteis. Isso deve dar tempo à defesa para obter um teste completo do DNA, se assim decidirem. Também dá bastante tempo
para considerar que mudanças de estratégia essa nova informação implica. Considero o estado como responsável por mostrar total cooperação no assunto e entregar o
material biológico à defesa sem demora. Todas as partes devem estar preparadas para iniciar a seleção do júri daqui a duas semanas. O tribunal está em recesso.
O juiz deixou sua bancada rapidamente. Baixei os olhos para a página vazia em meu bloco amarelo. Eu acabara de ser estripado.
Comecei lentamente a arrumar minha pasta.
- O que a gente vai fazer? - perguntou Aronson.
- Ainda não sei - eu disse.
- Faz o teste - disse Lisa Trammel, com insistência. - O outro deu errado. Não pode ser o sangue dele nos meus sapatos. Isso é absurdo.
Olhei para ela. Seus olhos castanhos febris e crédulos.
- Não se preocupe. A gente pensa em alguma coisa.
O otimismo teve um gosto amargo em minha boca. Olhei para Freeman. Ela mexia em umas pastas na sua maleta. Aproximei-me e ela não deu atenção. Não estava interessada
em escutar minha choradeira.
- Pelo jeito as coisas saíram exatamente como você queria - eu disse.
Ela não demonstrou qualquer emoção. Fechou a pasta e foi na direção do portão. Antes de passar, virou para mim.
- Você quer jogar pesado, Haller? - disse. - Então precisa estar preparado para rebater.
Dezenove
As duas semanas seguintes passaram rapidamente, mas não sem progressos. A defesa repensou sua estratégia e se reorganizou. Recebi o laudo de um laboratório independente
confirmando a alegação do estado - a uma taxa de urgência de quatro paus - e assim incorporei a prova devastadora dentro de uma visão do caso que possibilitava tanto
a ciência estar correta como minha cliente ser possivelmente, quando não provavelmente, inocente. A clássica defesa da armação. Seria uma dimensão extra e natural
para a manobra do testa de ferro. Comecei a crer que funcionaria e minha confiança estava voltando. Quando enfim chegou a hora da seleção do júri, meu pique voltara
e me empenhei na tarefa, procurando ativamente os jurados que poderiam se deixar convencer pela nova história que eu pretendia contar para eles.
Foi apenas no quarto dia da seleção do júri que mais uma bola rápida de Freeman veio sibilando na minha direção. Estávamos quase completando o júri e era uma dessas
raras vezes em que tanto a promotoria como a defesa estavam felizes com a composição, embora por motivos diferentes. O júri estava bem municiado da classe trabalhadora.
Proprietários de casas que vinham de famílias com duas rendas. Poucos tinham formação superior e nenhum fizera mestrado ou doutorado. Gente realmente do povo, e
isso era uma composição perfeita para mim. Eu queria pessoas que vivessem no limite de seus rendimentos, nesses tempos econômicos difíceis, que sentissem a ameaça
da execução hipotecária o tempo todo e tivessem muita dificuldade para enxergar num banqueiro uma vítima que desperte solidariedade.
Por outro lado, a promotoria pediu informações financeiras detalhadas de cada possível jurado e estava à procura de gente trabalhadora que não visse alguém que parava
de pagar sua hipoteca como uma vítima, tampouco. O resultado, até a manhã do quarto dia, foi um júri composto de pessoas a quem nenhuma das partes objetava e as
quais ambos julgávamos ser capazes de moldar em um paladino da justiça a nosso serviço.
A bola rápida veio quando o juiz Perry convocou o intervalo do meio da manhã. Freeman se levantou imediatamente e perguntou ao juiz se todos poderiam fazer uma reunião
a portas fechadas em seu gabinete para discutir uma questão de prova que acabara de surgir. Ela perguntou se o detetive Kurlen podia participar da reunião. Perry
aquiesceu ao pedido e dobrou o tempo de intervalo para meia hora. Então segui Freeman, que seguiu a estenógrafa e o juiz para a sala dele. Kurlen veio por último
e notei que estava carregando um grande envelope papel-manilha lacrado com fita de prova vermelha. Era maciço e parecia ter alguma coisa pesada dentro. Mas o envelope
de papel entregava o conteúdo. Prova biológica sempre vinha embrulhada em papel. Sacos plásticos de prova prendiam ar e umidade e podiam danificar conteúdo biológico.
De modo que eu sabia que, ao entrar ali, Freeman estava prestes a jogar outra bomba de DNA em mim.
- Lá vamos nós outra vez - eu disse entre dentes ao entrar na sala.
O juiz foi para trás de sua mesa e sentou, de costas para uma janela com vista para o sul, na direção das colinas acima de Sherman Oaks. Freeman e eu sentamos lado
a lado nas cadeiras do outro lado da mesa. Kurlen puxou uma cadeira de uma mesa próxima e a estenógrafa sentou em um banquinho à direita do juiz. Sua máquina apoiava-se
em um tripé diante dela.
- Constando dos autos - disse o juiz. - Doutora Freeman?
- Excelência, solicitei esta reunião com o senhor e o advogado da defesa o quanto antes, pois prevejo que mais uma vez o doutor Haller vai perder a calma quando
souber do que tenho para dizer e mostrar.
- Então vamos em frente - disse Perry.
Freeman balançou a cabeça para Kurlen e ele começou a tirar a fita no envelope de prova. Eu não disse nada. Notei que ele tinha uma luva vermelha na mão direita.
- A promotoria entrou de posse da arma do crime - afirmou Freeman casualmente - e planeja introduzi-la como prova, bem como disponibilizá-la para que a defesa a
examine.
Kurlen abriu o envelope, enfiou a mão ali e tirou um martelo. Era um martelo comum, com cabeça de ferro escovado e a superfície de impacto circular. O cabo era de
madeira vermelha polida, com uma borracha preta na base. Notei um chanfro na parte superior da área de impacto e vi que provavelmente correspondia às impressões
no crânio catalogadas durante a autópsia.
Fiquei de pé, furioso, e me afastei da mesa.
- Ah, o que é isso? - eu disse, completamente indignado. - Só pode ser brincadeira.
Olhei para a parede forrada de códigos do lado oposto da sala de Perry, pus as mãos no quadril, injuriado, e então virei para a mesa.
- Excelência, perdoe meu linguajar, mas isso é uma grande sacanagem. Ela não pode agir assim outra vez. Aparecer com isto... o que, quatro dias antes da seleção
do júri e um dia antes dos comentários preliminares? Já escolhemos a maior parte da bancada, possivelmente vamos começar amanhã, e ela vem com a suposta arma do
crime para cima de mim?
O juiz recostou em sua cadeira, como que se distanciando do martelo que Kurlen segurava.
- Acho bom ter uma história convincente, doutora Freeman - ele disse.
- E tenho, Excelência. Eu não pude apresentar isso a não ser esta manhã e estou mais do que disposta a explicar o motivo se...
- O senhor permitiu isso! - eu disse, interrompendo e apontando um dedo para o juiz.
- Com licença, doutor Haller, mas não ouse apontar o dedo para mim - disse ele, contido.
- Lamento, Excelência, mas isso tudo é sua culpa. O senhor permitiu que ela se safasse com aquela conversa mole sobre o DNA, e depois disso não tem motivo pra que
ela não...
- Com licença, doutor, mas é melhor o senhor proceder com cautela. O senhor está a cinco segundos de ser apresentado à cela do tribunal. Nunca aponte seu dedo ou
se dirija a um juiz do supremo dessa maneira. O senhor está compreendendo?
Virei para as prateleiras de livros e respirei fundo. Eu sabia que precisava tirar algum lucro da situação. Eu tinha de deixar aquela sala com o juiz me devendo
alguma coisa.
- Compreendo - eu disse finalmente.
- Ótimo - disse Perry. - Agora volte aqui e sente-se. Vamos escutar o que a doutora Freeman e o detetive Kurlen têm a dizer e é melhor que seja bom.
Relutante, voltei como uma criança castigada e afundei em minha cadeira.
- Doutora Freeman, por favor.
- Certo, Excelência. A arma foi entregue para nós na segunda à tarde. Um jard...
- Perfeito! - eu disse. - Eu sabia. Então você espera até quatro dias depois de começar a seleção do júri antes de decidir...
- Doutor Haller! - vociferou o juiz. - Perdi toda a paciência com o senhor. Não interrompa outra vez. Continue, doutora Freeman. Por favor.
- Claro, Excelência. Como eu disse, recebemos isto na Divisão Van Nuys do DPLA no fim da tarde de segunda-feira. Acho que seria melhor o detetive Kurlen relatar
a cadeia de custódia.
Perry gesticulou para que o detetive começasse.
- O que aconteceu foi que um jardineiro trabalhando em um quintal na Dickens Street, perto da Kester Avenue, encontrou isto na parte da manhã, preso em uma cerca
próximo à frente da casa de seu cliente. Isso fica na rua que passa atrás do WestLand National. A casa fica aproximadamente a duas quadras da parte de trás do banco.
O jardineiro que encontrou o martelo é de Gardenia, e não fazia ideia do crime. Mas, achando que a ferramenta pertencia a seu cliente, deixou na varanda para ele.
O dono da casa, um homem chamado Donald Meyers, só viu o martelo quando chegou do trabalho, lá pelas cinco da tarde. Ele ficou confuso porque sabia que não era seu
martelo. Mas depois lembrou de ler nos jornais sobre o assassinato de Bondurant, sendo que pelo menos um deles mencionava que arma do crime talvez fosse um martelo
e que a ferramenta ainda não fora encontrada. Ele ligou para o jardineiro e ficou sabendo da história, depois ligou para a polícia.
- Bem, o senhor nos contou como obtiveram - disse Perry. - Ainda não me explicaram por que só estamos sendo informados três dias depois.
Freeman balançou a cabeça. Estava pronta para isso, e assumiu o relato.
- Excelência, obviamente fomos obrigados a confirmar o que tínhamos em mãos e checar a cadeia de custódia. Entregamos isto imediatamente para a Divisão de Investigação
Científica para proceder a um exame e recebemos os laudos do laboratório somente ontem no fim do dia, após a sessão no tribunal.
- E o que os laudos concluíram?
- As únicas digitais na arma pertenciam a...
- Um momento - eu disse, arriscando-me a suscitar a ira do juiz outra vez. - Podemos nos referir a isto exclusivamente como o martelo? Chamar de “a arma” para que
conste dos autos é um pouco de liberdade excessiva, neste ponto.
- Muito bem - disse Freeman antes que o juiz pudesse responder. - O martelo. As únicas digitais no martelo pertenciam ao senhor Meyers e a seu jardineiro, Antonio
Ladera. Porém, duas coisas o ligam solidamente ao caso. Uma pequena mancha de sangue encontrada no cabo do martelo foi conclusivamente equiparada por meio de teste
de DNA ao sangue de Mitchell Bondurant. Encomendamos o teste a um fornecedor terceirizado devido aos protestos feitos pelo advogado de defesa contra as precauções
tomadas no outro teste. O martelo foi entregue também à equipe do legista para comparação com os padrões de ferimento na vítima. Mais uma vez, o resultado foi positivo.
Doutor Haller, o senhor pode se referir a isto como martelo, ferramenta ou como bem entender. Mas para mim é arma do crime. E tenho cópias dos laudos laboratoriais
para lhe entregar neste exato instante.
Ela levou a mão ao envelope de manilha, tirou dois documentos presos por clipes e os passou para mim com um sorriso satisfeito no rosto.
- Puxa, isso é muito gentil da sua parte - eu disse, sem esconder o sarcasmo. - Muitíssimo obrigado.
- Ah, e tem também isto.
Ela voltou a enfiar a mão no envelope e puxou duas fotos de 20x25, dando uma para o juiz e uma para mim. Era a foto de uma bancada de trabalho com ferramentas penduradas
em um painel de furos, na parede atrás. Eu sabia que era a bancada de trabalho na garagem de Lisa Trammel. Eu estivera lá.
- Isso é da garagem de Lisa Trammel. Foi tirada no dia do assassinato, durante uma busca no local, autorizada por um mandado de busca expedido pelo tribunal. Podem
ver que falta uma ferramenta num dos ganchos do painel. O espaço vago deixado aí corresponde às dimensões de um martelo deste tipo.
- Isso é absurdo.
- A DIS identificou o martelo recuperado como um modelo Craftsman, comercializado pela Sears. Esse martelo em particular não é vendido separadamente. Ele vem apenas
como parte do Estojo de Ferramentas de Carpinteiro com 239 peças. Por essa fotografia identificamos mais de cem outras ferramentas desse pacote. Mas não o martelo.
Não está aí porque Lisa Trammel jogou nos arbustos depois de deixar a cena do crime.
Minha mente estava acelerada. Mesmo com uma defesa baseada na teoria de que a acusada era vítima de uma armação, havia uma lei dos rendimentos decrescentes. Explicar
a gota de sangue no sapato era uma coisa. Explicar como sua cliente era dona da arma do crime e qual sua ligação com ela não era outra, apenas. Há um crescimento
exponencial nas probabilidades contra uma armação conforme cada nova prova é revelada. Pela segunda vez em três semanas a defesa sofria um golpe devastador e quase
fiquei sem fala. O juiz virou para mim. Chegara a hora de responder, mas eu não tinha uma réplica à altura.
- Essa é uma prova muito contundente, doutor Haller - afirmou ele. - Tem alguma coisa a dizer?
Eu não tinha nada, mas me ergui da lona antes que ele terminasse a contagem.
- Excelência, essa assim chamada prova que bem convenientemente acaba de cair do céu deveria ter sido anunciada para o tribunal e a defesa no momento em que foi
encontrada. Não três dias depois, nem mesmo um dia depois. Nem que fosse para simplesmente permitir à defesa inspecionar da maneira apropriada a prova, conduzir
seus próprios testes e observar os da promotoria. Isso foi supostamente encontrado nos arbustos, sem que ninguém tivesse visto, depois de quanto: três meses? E então...
voilà!... temos o DNA para ligar com a vítima. Esse negócio todo cheira a armação. E é tarde demais, Excelência. O trem já saiu da estação. Pode ser que os comentários
preliminares sejam apresentados amanhã. A promotoria teve a semana toda para pensar como mencionar o martelo nos dela. O que eu vou poder fazer a essa altura?
- O senhor estava planejando fazer seus comentários no início ou reservá-los para a fase da defesa? - perguntou o juiz.
- Eu planejava fazer amanhã - menti. - Já estou com tudo escrito. Mas isso também é informação que eu podia ter usado quando estava escolhendo o júri que agora já
está finalizado. Meritíssimo, essa coisa toda... olhe, só o que eu sei é que cinco semanas atrás a promotoria estava desesperada. A doutora Freeman veio ao meu escritório
para oferecer um acordo para minha cliente. Se ela vai admitir eu não sei, mas estava com medo da derrota, e me concedeu tudo que eu pedi. E daí, de repente, aparece
o DNA no sapato. Agora, surpresa, aparece o martelo, e é claro que ninguém mais fala num acordo. A coincidência disso tudo põe o caso todo em dúvida. Mas só esse
ato de prevaricação de parte da promotoria já deveria ser suficiente para fazer com que o senhor se recusasse a admitir isso como prova.
- Excelência - disse Freeman assim que terminei. - Permita-me responder à alegação do doutor Haller de q...
- Não há necessidade, doutora Freeman. Como eu já disse, isso é prova contundente. O momento é inoportuno, mas é claramente prova que o júri deve considerar. Vou
permitir, mas novamente darei à defesa tempo extra para se preparar. Vamos voltar lá e terminar a escolha do júri. Depois vou conceder a eles um fim de semana prolongado
e convocar todo mundo de volta na segunda-feira para os comentários preliminares e o início do julgamento. Isso lhe dá três dias extras para preparar seu discurso,
doutor Haller. Deve ser tempo suficiente. Nesse meio-tempo, sua equipe, incluindo aquela jovem de ascensão meteórica que o senhor contratou junto a minha alma mater,
pode trabalhar na procura de quaisquer peritos e testes que o senhor precisar para o martelo.
Balancei a cabeça. Não era bom o bastante. Eu estava indo rapidamente para o buraco, ali.
- Excelência, proponho que o julgamento seja suspenso enquanto entro com o pedido de apelação.
- Pode entrar com o pedido de apelação, doutor Haller. Está no seu direito. Mas isso não vai impedir o julgamento. Começamos na segunda.
Fez um pequeno aceno com a cabeça que tomei como uma ameaça. Se eu entrasse com uma apelação contra o seu tribunal, ele não iria esquecer durante o julgamento.
- Temos mais alguma coisa para discutir? - perguntou Perry.
- Eu terminei - disse Freeman.
- Doutor Haller?
Balancei a cabeça, pois ficara sem voz.
- Então vamos voltar lá e terminar a escolha do júri.
Lisa Trammel me esperava preocupada na mesa da defesa.
- O que aconteceu? - ela perguntou num sussurro urgente.
- O que aconteceu foi que acabaram de pôr na nossa bunda outra vez. Só que agora foi pra valer.
- Como assim?
- Como assim que encontraram a porra do martelo que você jogou nos arbustos depois que matou Mitchell Bondurant.
- Mas isso é ridículo. Eu...
- Não tem nada de ridículo. Eles conseguem ligar o martelo diretamente com Bondurant e com você. Veio direto da porra da sua garagem. Não sei como você pôde ser
tão burra, mas isso não vem ao caso. Faz com que os sapatos com sangue guardados em casa pareçam uma ideia inteligente, por comparação. Agora eu tenho que bolar
um jeito de conseguir um acordo com Freeman quando ela não tem absolutamente necessidade alguma de fazer um acordo. O caso da promotoria ficou mais sólido que uma
rocha, então por que ela ia querer um acordo?
Lisa ergueu a mão e agarrou a gola esquerda de meu paletó. Ela me puxou. Então sussurrou entre dentes.
- Escuta bem. Como eu posso ter sido tão burra? A pergunta foi essa e a resposta é que eu não fui. Você sabe que eu posso ser tudo, menos burra. Estou dizendo desde
o começo, isso é uma armação. Eles queriam se livrar de mim e foi isso que fizeram. Mas eu não cometi esse crime. Você tinha razão. Louis Opparizio. Ele precisava
se livrar do Mitchell Bondurant e me usou como bode expiatório. Bondurant mandou sua carta pra ele. Isso começou tudo. Eu não...
Ela vacilou e as lágrimas começaram a sair. Pus a mão nela para acalmá-la e para que soltasse meu paletó. Percebi que os jurados entravam na bancada e não queria
que vissem um advogado em conflito com sua cliente.
- Não fui eu - ela disse. - Está me escutando? Não quero acordo nenhum. Não vou admitir uma coisa que eu não fiz. Se isso é o melhor que você pode fazer, então vou
procurar outro advogado.
Parei de olhar para ela e olhei para a cadeira do juiz. Perry nos observava.
- Pronto para prosseguir, doutor Haller?
Olhei para minha cliente e depois de novo para o juiz.
- Sim, Excelência. Pronto para prosseguir.
Vinte
Era como estar no vestiário dos perdedores, mas o jogo ainda nem havia acontecido. Uma tarde de domingo, 18 horas antes dos comentários preliminares para o júri,
eu me reunia com minha equipe, já admitindo a derrota. Era o amargo fim antes mesmo de o julgamento começar.
- Não estou entendendo - disse Aronson no vácuo de silêncio que envolvia minha sala. - Segundo você, a gente precisava de uma hipótese de inocência. Uma teoria alternativa.
A gente tinha isso com Opparizio. De sobra. Onde está o problema?
Olhei para Cisco Wojciechowski. Estávamos apenas nós três. Eu usando bermuda e uma camiseta. Cisco com sua roupa de andar de moto, uma regata verde-oliva e jeans
pretos. E Aronson vestida para um dia no tribunal. Ela não recebeu a circular informando que era domingo.
- O problema é que não vamos ter Opparizio no julgamento - eu disse.
- Mas ele retirou o requerimento de anulação - protestou Aronson.
- Isso não faz diferença. O julgamento é sobre a prova do estado contra Trammel. Não é sobre quem mais poderia ter cometido o crime. As possibilidades não contam.
Eu posso pôr Opparizio no banco das testemunhas como especialista na execução hipotecária de Trammel e na epidemia de execuções. Mas não consigo chegar nem perto
dele como um suspeito alternativo. O juiz não vai deixar, a menos que eu consiga provar que é relevante. Então a gente chegou até aqui e ainda não conseguiu mostrar
a relevância. Ainda não temos alguma coisa que mostre sujeira nas mãos de Opparizio.
Aronson estava determinada a não desistir.
- A 14a Emenda garante uma “oportunidade significativa de apresentar uma defesa completa” para Lisa Trammel. Uma teoria alternativa é parte de uma defesa completa.
Então ela sabia citar a Constituição. Ela podia conhecer os códigos, mas ainda era inexperiente.
- Califórnia versus Hall, 1986. Dá uma olhada.
Apontei para seu laptop, que estava aberto num canto de minha mesa. Ela se curvou e começou a digitar.
- Você sabe a citação?
- Tenta 41.
Ela digitou, abriu a determinação na tela e começou a ler. Olhei para Cisco, que não fazia ideia sobre o que eu estava fazendo.
- Leia em voz alta - eu disse. - As partes pertinentes.
- Hum... “Prova de que outra pessoa tenha motivo ou oportunidade para cometer o crime acusado, ou tenha alguma ligação remota com a vítima ou a cena do crime, é
insuficiente para suscitar a necessária dúvida razoável... Prova de culpabilidade de uma parte alternativa é relevante e admissível apenas se liga essa parte alternativa
ao verdadeiro perpetrador do crime...” Certo, estamos ferrados.
Balancei a cabeça.
- Se não conseguirmos pôr Opparizio ou um de seus capangas naquele estacionamento, então vamos estar mesmo ferrados.
- A carta não serve pra isso? - perguntou Cisco.
- Não - eu disse. - Não tem como. Freeman vai me pôr pra correr se eu disser que a carta abre essa porta. É verdade que dá um motivo para Opparizio. Mas não o liga
diretamente ao crime.
- Merda.
- Isso mesmo. Neste preciso momento, ele está fora do nosso alcance. De modo que não temos uma defesa. E o DNA e o martelo... bom, isso serve como uma luva para
o estado. Sem trocadilho.
- Nossos laudos laboratoriais dizem que não há ligação biológica com Lisa - disse Aronson. - Tenho também um especialista da Craftsman que vai testemunhar ser impossível
dizer que o martelo da prova veio desse conjunto de ferramentas específico. Além do mais, a gente sabe que a porta da garagem estava destrancada. Mesmo se for o
martelo dela, qualquer um podia ter pego. E qualquer um podia ter plantado o sangue nos sapatos.
- Sei, sei, já sei disso tudo. Não basta dizer o que poderia ter acontecido. A gente vai ter que dizer que foi o que aconteceu e vai ter que embasar o que disser.
Se não formos capazes disso, não dá nem pra tocar no assunto. Opparizio é a chave. A gente precisa conseguir chegar nele sem deixar que a Freeman fique de pé a cada
pergunta e diga: “Qual a relevância?”
Aronson não dava o braço a torcer.
- Deve ter alguma coisa - ela disse.
- Sempre tem. É só que a gente ainda não encontrou.
Girei na cadeira até olhar diretamente para Cisco. Ele franziu o rosto e balançou a cabeça em sinal de positivo. Já sabia o que vinha pela frente.
- Meu, é com você - eu disse. - Você precisa descobrir alguma coisa pra mim. Freeman vai levar mais ou menos uma semana para apresentar o caso do estado. Esse é
o tempo que você tem. Mas se eu partir para a ofensiva e jogar os dados amanhã, dizendo que vou provar que foi alguma outra pessoa, então preciso fazer isso.
- Vou começar - disse Cisco. - A partir do zero. Eu acho alguma coisa. Faz o que você tiver que fazer amanhã.
Balancei a cabeça, mais por gratidão do que por ter fé em que ele encontraria alguma coisa. Eu não acreditava de fato que havia alguma coisa para achar. Minha cliente
era culpada e a justiça seria feita. Fim da história.
Baixei os olhos para minha mesa. Espalhados em cima havia fotos da cena do crime e relatórios. Peguei a foto de 20x25 da maleta da vítima aberta no chão da garagem.
Era nisso que eu estava me prendendo desde o início, o que me dera esperança de que talvez minha cliente não fosse a autora do crime. Isso até as duas últimas provas
terem sido admitidas pelo juiz.
- Então, nada ainda sobre o conteúdo da pasta e se tem alguma coisa faltando? - perguntei.
- Não que a gente tenha descoberto - disse Aronson.
Eu a deixara encarregada do primeiro exame da publicação compulsória assim que o material chegara.
- Quer dizer que a pasta foi deixada aberta desse jeito e ninguém tentou descobrir se estava faltando alguma coisa?
- Fizeram um inventário do conteúdo. A gente está com ele. Só acho que o Kurlen não ia fazer um relatório sobre o que possivelmente não estava nela. Kurlen é cuidadoso.
Ele não ia criar uma brecha para nós.
- É, bom, ele pode andar por aí com a pasta enfiada no cu depois que eu terminar a inquirição com ele no banco das testemunhas.
Aronson corou. Apontei para meu investigador.
- Cisco, a pasta. Estamos com a lista do conteúdo. Conversa com a secretária do Bondurant. Descobre se levaram alguma coisa.
- Já tentei. Ela não quer saber de conversa.
- Tenta outra vez. Mostra os músculos pra ela. Joga seu charme.
Ele flexionou os bíceps. Aronson continuava vermelha. Fiquei de pé.
- Vou para casa trabalhar no discurso preliminar.
- Tem certeza que quer fazer isso amanhã? - perguntou Aronson. - Se adiar até a fase da defesa, vai estar por dentro do que Cisco pode descobrir.
Balancei a cabeça.
- Tenho o fim de semana porque falei para o juiz que ia fazer isso no começo do julgamento. Se voltar atrás, ele vai pôr a culpa em mim de ter perdido a sexta-feira.
Ele já está de cara feia comigo porque eu saí do sério com ele, na sala dele.
Contornei a mesa até onde eles estavam. Entreguei a foto da pasta para Cisco.
- Não esqueçam de trancar o escritório.
Nada de Rojas aos domingos. Voltei para casa sozinho dirigindo o Lincoln. Havia pouco trânsito e cheguei rápido, mesmo parando para pegar uma pizza na cantina italiana
sob o mercado, na parte baixa do Laurel Canyon. Quando cheguei, não me dei ao trabalho de embicar o enorme Lincoln na garagem ao lado de seus irmãos gêmeos. Estacionei
no pé da escada, tranquei e me dirigi à porta da frente. Só quando pisei no deque me toquei de que havia alguém ali à minha espera.
Infelizmente, não era Maggie McFierce. Na verdade, um sujeito que eu nunca vira antes estava sentado numa das cadeiras estilo diretor na ponta da varanda. O homem
tinha constituição leve e parecia desalinhado, com barba por fazer de uma semana, pelo menos. Estava com os olhos fechados e a cabeça jogada para trás. Dormindo.
Não fiquei preocupado com minha segurança. Ele estava sozinho e não usava luvas pretas. Mesmo assim enfiei a chave cuidadosamente na fechadura e abri a porta sem
um ruído. Entrei, fechei a porta em silêncio e deixei a pizza em cima do balcão da cozinha. Depois me dirigi a meu quarto e entrei no closet. Na prateleira superior
- alto demais para minha filha alcançar - estava a caixa de madeira onde eu guardava o Colt Woodsman que herdara de meu pai. Havia uma história trágica por trás
da arma e eu esperava não acrescentar mais um capítulo a ela. Enfiei um pente totalmente carregado na pistola e voltei à porta da frente.
Sentei na outra cadeira de diretor e puxei-a para ficar de frente para o sujeito dormindo. Só depois de me acomodar, pondo a arma casualmente em meu colo, estiquei
o pé e o cutuquei no joelho.
Ele acordou assustado, os olhos arregalados e olhando em torno, até que finalmente parou me encarando e depois viu a arma.
- Opa, espera aí um minuto, cara!
- Não, espera você um minuto. Quem é você e o que quer?
Não apontei a arma. Mantive minha postura de casualidade. Ele ergueu as mãos, em sinal de rendição.
- É o doutor Haller, certo? Sou o Jeff, cara. Jeff Trammel. A gente conversou pelo telefone, lembra?
Fiquei encarando o homem por um momento e me dei conta de que não o reconhecera porque nunca vira uma fotografia sua. Nas vezes em que estive na casa de Lisa Trammel
não vi nenhum retrato seu emoldurado. Ela extirpara sua presença da casa depois que ele decidira se mandar.
Agora lá estava ele. A expressão de gato assustado e a aparência de cão sem dono. Imaginei saber exatamente do que estava atrás.
- Como soube onde eu morava? Quem lhe disse para vir aqui?
- Ninguém me disse. Eu vim e pronto. Olhei seu nome no site da Ordem dos Advogados da Califórnia. Não tinha endereço comercial, mas aqui era o endereço para correspondência.
Cheguei, vi que era uma casa e imaginei que você devia morar aqui. Não tive nenhuma intenção fazendo isso. Precisava conversar com você.
- Podia ter ligado.
- Aquele celular já era. Preciso comprar outro.
Decidi fazer um pequeno teste em Jeff Trammel.
- Daquela vez que você me ligou, onde estava?
Ele deu de ombros, como se não tivesse a menor importância passar a informação agora.
- Lá em Rosarito. Tenho andado por lá.
Isso era mentira. Cisco rastreara sua ligação. Eu tinha o número do celular e a torre de onde a ligação fora originada. Ficava em Venice Beach, quase a 3 mil quilômetros
de Rosarito Beach, no México.
- Sobre o que você quer conversar, Jeff?
- Eu posso ajudar, cara.
- Ajudar? Como?
- Eu estava conversando com Lisa. Ela me contou do martelo que encontraram. Não é dela, nosso, quer dizer. Eu sei onde o nosso está. Posso levar você até lá.
- Ok, então onde está?
Ele balançou a cabeça e olhou para a direita, observando a cidade abaixo e ao longe. O ruído incessante do trânsito chegava até nós através do ar.
- O problema é o seguinte, doutor Haller. Preciso de dinheiro. Quero voltar para o México. Não precisa ser muita grana pra viver por lá, mas que dê para começar,
se entende o que eu quero dizer.
- Então de quanto estamos falando, para começar?
Ele virou e olhou diretamente para mim, porque eu estava falando sua língua.
- Só dez paus, cara. Você tem toda essa grana do filme entrando e dez paus não vai fazer muita falta. Me dá isso que eu te dou o martelo.
- E é isso?
- É, cara, e eu largo do seu pé.
- E quanto a testemunhar em favor de Lisa no tribunal? Lembra que a gente conversou?
Ele abanou a cabeça.
- Não, não dá pra ser. Não faço o gênero da testemunha. Mas posso ajudar você do lado de fora, como agora. Sabe? Mostrar o martelo para você, esse tipo de coisa.
Herb disse que o martelo é a melhor prova que eles têm, e isso é papo furado, porque eu sei onde está o verdadeiro.
- Então você também está conversando com Herb Dahl.
Pude ver pelo seu sorriso que havia cometido um deslize. Era para ele ter mantido Dahl fora da conversa.
- Ahn, não, não, foi a Lisa quem disse que ele falou isso. Eu nem conheço ele.
- Deixa eu perguntar uma coisa, Jeff. Como eu vou saber que esse é o martelo de verdade e não algum outro que você está tentando me empurrar, junto com Lisa e com
Herb?
- Porque eu estou falando pra você. Eu sei. Fui eu que deixei lá. Eu!
- Mas se você não vai testemunhar, então só o que eu tenho é um martelo e história nenhuma. Você sabe o que “fungível” quer dizer, Jeff?
- Fung... ahn, não.
- Quer dizer que é mutuamente intercambiável. Para a justiça, um objeto é fungível se ele pode ser substituído por um objeto idêntico. E isso é o que a gente tem
aqui, Jeff. Seu martelo é inútil para mim sem a história que vem com ele. Se for a sua história, então você tem que testemunhar. Se você não testemunhar, então não
faz diferença.
- Hum...
Ele pareceu decepcionado.
- Onde está o martelo, Jeff?
- Não vou dizer. É tudo que eu tenho.
- Não vou pagar um centavo a você, Jeff. Mesmo que eu acreditasse que tenha um martelo... o martelo de verdade... não ia pagar um centavo. Não é assim que funciona.
Então pensa direito no que você quer fazer e me diz, ok?
- Ok.
- Agora some da minha varanda.
Segurei a arma na lateral do corpo e entrei novamente na casa, trancando a porta atrás de mim. Peguei a chave do carro sobre a caixa da pizza e corri para a porta
dos fundos. Saí por ela e me esgueirei pela lateral da casa até um portão de madeira que dava para a rua. Abri um pouco e procurei por Jeff Trammel.
Não o vi, mas escutei um motor sendo acionado. Esperei e logo um carro se moveu. Passei pelo portão e tentei dar uma olhada na placa, mas era tarde demais. O carro
desceu a ladeira. Era um sedã azul, mas eu estava concentrado demais na placa para identificar a marca e o modelo. Assim que ele dobrou a primeira curva, corri até
meu carro.
Se era para segui-lo, eu teria de descer a colina a tempo de ver se ele pegava a esquerda ou a direita no Laurel Canyon Boulevard. Caso contrário havia uma chance
de meio a meio de perdê-lo.
Mas cheguei tarde demais. No momento em que o Lincoln conseguiu transpor as curvas muito fechadas e o cruzamento em Laurel Canyon ficou à vista, o sedã azul havia
desaparecido. Diminuí no sinal de pare, mas não hesitei. Virei à direita, tomando o rumo norte na direção do Valley. Cisco rastreara a ligação de Jeff Trammel em
Venice, mas tudo o mais sobre o caso estava no Valley. Fui nessa direção.
Era uma faixa única na subida norte da rodovia que cortava pelas Hollywood Hills. Depois abria para duas faixas descendentes na encosta que dava no Valley. Mas não
alcancei Trammel e logo percebi que escolhera o caminho errado. Venice. Eu devia ter pego o sul.
Não sendo um grande fã de pizza fria ou requentada, encostei para comer no Daily Grill, na Laurel com Ventura. Estacionei na garagem subterrânea e estava perto do
elevador quando lembrei que continuava com a Woodsman enfiada no meu bolso de trás. Nada bom. Voltei até o carro e pus a arma sob o banco, depois chequei cuidadosamente
se o carro estava trancado.
Era cedo, mas mesmo assim o restaurante estava lotado. Sentei no balcão em vez de esperar uma mesa e pedi um chá gelado e uma torta de frango com legumes. Então
abri o celular e liguei para a minha cliente. Ela atendeu na mesma hora.
- Lisa, é seu advogado. Você mandou seu marido falar comigo?
- Bom, eu falei que ele devia procurar você, falei.
- E foi ideia sua ou de Herb Dahl?
- Não, foi minha. Quer dizer, Herb estava aqui, mas a ideia foi minha. Você conversou com ele?
- Conversei.
- Ele mostrou onde está o martelo?
- Não, não mostrou. Ele queria 10 mil dólares para fazer isso.
Houve uma pausa, mas esperei.
- Mickey, não parece muito por algo que vai destruir a prova do estado.
- Você não paga por uma prova, Lisa. Se faz isso, a invalida. Onde seu marido tem andado ultimamente?
- Ele não diz.
- Você falou com ele pessoalmente?
- Falei, ele veio aqui. Parecia em péssimo estado.
- Preciso saber onde ele está para intimá-lo. Você tem alg...
- Ele não vai testemunhar. Ele me contou. Aconteça o que acontecer. Ele só quer o dinheiro e me ver sofrendo. Não liga nem para o filho dele. Nem me pediu para ver
o menino quando passou aqui.
Minha comida fora colocada na minha frente e o atendente servira meu chá. Cortei a crosta de cima com o garfo, para deixar sair um pouco do vapor. Ia levar uns bons
dez minutos até a torta esfriar o suficiente para eu comer.
- Lisa, me escuta, isso é importante. Você faz alguma ideia de onde ele pode estar morando ou se hospedando?
- Não. Ele disse que veio do México.
- Isso é mentira. Ele esteve aqui o tempo todo.
Ela pareceu surpresa.
- Como você sabe disso?
- Registro telefônico. Olha, não interessa. Se ele ligar ou aparecer, descobre onde está. Promete que tem dinheiro na parada ou sei lá o que você vai precisar fazer
para me conseguir a localização. Se a gente conseguir levar ele para o tribunal, ele vai ter que contar sobre o martelo.
- Vou tentar.
- Tentar, não, Lisa. Fazer. É da sua vida que a gente está falando aqui.
- Tá, tá.
- Mas ele chegou a mencionar alguma coisa sobre o paradeiro do martelo quando conversou com você?
- Na verdade, não. Só disse: “Lembra como eu sempre andava com o martelo no meu carro quando saía a serviço numa reintegração?” Quando ele trabalhava na concessionária
ele tinha de fazer a reintegração de posse de algum carro, às vezes. Eles se revezavam. Acho que ele ficava com o martelo para se proteger, ou se tivesse que quebrar
um vidro ou qualquer coisa assim.
- Então ele estava dizendo que o martelo original da bancada na sua garagem ficava no carro dele?
- Acho que sim. O bê-eme-vê. Mas vieram buscar o carro depois que ele o abandonou e desapareceu.
Balancei a cabeça. Eu podia mandar Cisco verificar isso, fazer com que tentasse confirmar a história vendo se encontrava o martelo no porta-malas do BMW deixado
para trás por Jeff Trammel.
- Ok, Lisa, quem são os amigos de Jeff? Aqui na cidade.
- Sei lá. Ele tinha amigos na loja, mas não trazia ninguém em casa. A gente não tinha amigos, na verdade.
- Você sabe o nome de alguma dessas pessoas na concessionária?
- Na verdade, não.
- Lisa, você precisa me ajudar aqui.
- Desculpa. Não consigo pensar em ninguém. Eu não gostava dos amigos dele. Falava pra ele que não queria ver ninguém aqui.
Balancei a cabeça e então pensei em mim mesmo. Quem eram meus amigos fora do trabalho? Será que Maggie poderia responder a essas mesmas perguntas sobre mim?
- Tudo bem, Lisa, já chega por enquanto. Quero que pense em como vai ser amanhã. Lembra do que a gente conversou. Como você age e reage na frente do júri. Muita
coisa vai ser em função disso.
- Sei. Estou pronta.
Ótimo, pensei. Quem dera eu também estivesse.
Vinte e um
O juiz Perry queria compensar parte do tempo de tribunal perdido na sexta anterior, então na segunda de manhã ele arbitrariamente limitou os comentários preliminares
perante o júri a trinta minutos cada. A determinação foi dada mesmo tendo tanto a promotoria como a defesa ostensivamente se preparado durante todo o fim de semana
para comentários previamente programados para uma hora de duração. A verdade era que por mim tudo bem. Eu duvidava que levaria quando muito dez minutos. Pelo lado
da defesa, quanto mais você fala, mais fornece munição para a promotoria nos argumentos de encerramento. Menos sempre é mais quando se trata da defesa. Porém, o
capricho da determinação do juiz era outra coisa a ser levada em consideração. Ele claramente mandava um recado. O juiz estava dizendo para nós, meros advogados,
que era o encarregado do tribunal e do julgamento, e ponto final. Nós éramos apenas as visitas.
Freeman foi primeiro e, como é minha prática usual, em nenhum momento tirei os olhos do júri enquanto a promotora falava. Escutei atentamente, pronto para protestar
quase de imediato, mas nem por um segundo olhei para ela. Eu queria ver como os jurados a olhavam. Queria ver se meus palpites a respeito deles iriam se confirmar.
Freeman falou com clareza e eloquência. Sem palhaçadas, sem exibicionismo. Palavras diretas, focadas, inequívocas.
- Estamos aqui hoje por um único motivo - disse, postando-se firmemente no centro do espaço aberto diretamente diante da bancada do júri. - Estamos aqui por causa
da raiva de uma pessoa. Devido à sua necessidade de descarregar sua frustração com seus próprios fracassos e traições.
Claro que ela passou a maior parte do tempo advertindo os jurados contra o que chamou de cortina de fumaça da defesa. Confiante em seu próprio caso, tentava mostrar
que o meu não passava de um subterfúgio com o propósito de ocultar a verdade.
- A defesa vai dourar a pílula para vocês. Tentar vender grandes conspirações e acontecimentos dramáticos. Esse assassinato é terrível, mas a história por trás dele
é simples. Não se deixem iludir. Observem atentamente. Escutem com atenção. Vejam se tudo que vai ser dito aqui hoje é respaldado por provas durante o julgamento.
Provas reais. Este foi um crime bem planejado. A assassina conhecia a rotina de Mitchell Bondurant. A assassina seguiu Mitchell Bondurant. A assassina emboscou Mitchell
Bondurant e então o atacou rápido e com absoluta maldade. Essa assassina é Lisa Trammel e durante este julgamento ela será levada à justiça.
Freeman apontou o dedo acusador para minha cliente. Lisa, como previamente instruída por mim, devolveu seu olhar sem pestanejar.
Concentrei-me no jurado número três, sentado no meio da fileira dianteira da bancada. Leander Lee Furlong Jr. era meu trunfo. Era minha garantia, o único jurado
com que eu estava contando para votar a meu favor sempre. Mesmo que travasse o veredicto do júri e obrigasse a um novo julgamento.
Cerca de meia hora antes que o processo de seleção do júri começasse, a estenógrafa me passou a lista de oitenta nomes compondo a primeira reserva de jurados. Mostrei
a lista para o meu investigador, que saiu para o corredor, abriu seu laptop e começou a trabalhar.
A internet fornece inúmeras possibilidades para pesquisar o histórico de potenciais jurados, particularmente quando o julgamento vai girar em torno de uma transação
financeira, como uma execução hipotecária. Todo mundo na reserva de jurados preenchia um questionário, respondendo a perguntas básicas: Você ou alguém próximo de
sua família imediata já esteve envolvido em uma execução hipotecária? Alguma vez sofreu reintegração de posse de um veículo? Alguma vez pediu falência? Eram questões
pensadas para separar elementos indesejados. Qualquer um que respondesse sim a essas questões seria dispensado pelo juiz ou pela promotoria. Uma pessoa que respondesse
afirmativamente seria considerada parcial e desse modo incapaz de pesar a prova com justiça.
Mas a seleção era muito geral e havia áreas cinzentas e espaços nas entrelinhas. Era aí que Cisco entrava. No momento em que o juiz obteve o primeiro grupo de 12
possíveis jurados e revisava seus questionários, Cisco voltava até mim com anotações sobre a vida pessoal de 17 dos oitenta jurados. Eu estava procurando pessoas
que haviam passado por experiências ruins, e talvez até alimentassem algum rancor contra bancos ou instituições do governo. Os 17 eram uma gama ampla que ia de pessoas
que mentiram descaradamente em seus questionários sobre as falências ou devoluções de veículos até queixosos em ações civis contra bancos, e havia Leander Furlong.
Leander Lee Furlong Jr. era um subgerente de 29 anos no supermercado Ralph’s, em Chatsworth. Ele havia respondido não à pergunta sobre execução hipotecária. Em sua
investigação digital, Cisco foi um pouco além e pesquisou sites nacionais de bancos de dados. Encontrou referência ao leilão de um imóvel hipotecado de 1994, em
Nashville, Tennessee, em que Leander Lee Furlong aparecia como proprietário. O peticionário da ação era o First National Bank, do Tennessee.
O nome parecia único e as duas ocorrências só podiam estar relacionadas. Meu possível jurado devia estar com 13 anos na época da execução. Presumi que fosse seu
pai que perdera a casa para o banco. E Leander Lee Furlong Jr. deixara de mencionar o fato no questionário.
À medida que a seleção do júri se arrastava por dois dias, eu nervosamente aguardava que Furlong fosse aleatoriamente selecionado e passasse à bancada para ser questionado
pelo juiz e os advogados. Durante o processo eu passara adiante um punhado de bons candidatos possíveis, usando minhas recusas peremptórias para deixar lugares vagos
no júri.
Finalmente, na quarta manhã, o número de Furlong foi chamado e ele sentou para ser entrevistado. Quando percebi que falava com sotaque sulista, tive certeza de que
era meu trunfo. Era impossível que não alimentasse algum rancor contra o banco que levou a casa de seus pais. Ele estava ocultando o fato para conseguir chegar ao
júri.
Furlong passou tranquilamente pelas perguntas do juiz e da promotora, dizendo exatamente o que queriam ouvir e se apresentando como um homem temente a Deus, trabalhador,
de valores tradicionais e mente aberta. Quando chegou minha vez, enrolei um pouco e lhe fiz algumas perguntas gerais, depois bati um pouco duro. Eu queria que parecesse
aceitável para mim. Perguntei-lhe se achava que pessoas sofrendo execução hipotecária deviam ser vistas com reprovação ou se era possível haver razões legítimas
para que as pessoas às vezes não pagassem por sua casa. Em sua cantarolada fala sulista, Furlong disse que cada caso era um caso e que seria errado generalizar sobre
todo mundo que sofria com uma execução.
Alguns minutos e algumas perguntas mais tarde, Freeman deu sua aprovação e eu concordei. Ele estava no júri. Agora só me restava esperar que seu histórico familiar
não fosse descoberto pela promotoria. Se isso acontecesse, ele seria removido do júri mais rapidamente que um Crip em uma cela cheia de Bloods.
Eu estava sendo antiético ou agindo contra as regras ao não informar o segredo de Furlong para o tribunal? Isso depende do que se define por imediata - como em “família
imediata”. O significado de quem e o que constitui a família imediata muda conforme sua vida passa. A ficha de Furlong dizia que ele era casado e tinha um filho
pequeno. Sua esposa e filho eram sua família imediata agora. Até onde eu sabia, seu pai podia nem estar mais vivo. A pergunta que foi feita era: “Você ou alguém
de sua família imediata já se envolveu em uma execução hipotecária?” A pergunta não incluía todos os familiares da pessoa ao longo da vida inteira.
De modo que essa ambiguidade era uma área cinzenta, e não achei que tivesse a menor obrigação de ajudar a promotoria mostrando o que fora omitido da questão. Freeman
possuía a mesma lista de nomes e todo o poder do Gabinete da Promotoria e do DPLA à sua disposição. Tinha de haver alguém nessas burocracias que fosse tão esperto
quanto meu investigador. Eles que procurassem e encontrassem por si mesmos. Caso contrário, azar deles.
Observei Furlong conforme Freeman ia listando os blocos de construção de sua estratégia: a arma do crime, a testemunha ocular, o sangue no sapato da vítima e seus
antecedentes de dirigir sua raiva contra o banco. Ele ouvia com os dois cotovelos pousados nos braços da cadeira, os dedos unidos em um V invertido diante da boca.
Era como se estivesse ocultando o rosto, espiando a promotora por trás de suas mãos. Sua postura me dizia que eu acertara sobre ele. Era o meu trunfo, com certeza.
A pessoa que impediria a unanimidade do júri.
Freeman teve de quebrar o ritmo ao explicar apressada e truncadamente de que maneira todas as provas se encaixavam para delinear a culpa além da dúvida razoável.
Esse ponto era obviamente onde ela cortara trechos de seus comentários para obedecer à arbitrária restrição de tempo feita pelo juiz. Ela sabia que podia contar
com os argumentos finais para resumir os detalhes, de modo que passou por cima de um monte de coisas e foi logo à conclusão.
- Senhoras e senhores, o sangue vai contar essa história - disse ela. - Sigam a prova e ela vai conduzi-los, sem sombra de dúvida, até Lisa Trammel. Ela tirou a
vida de Mitchell Bondurant. Tirou tudo que ele possuía. E agora chegou o momento de fazer justiça.
Ela agradeceu aos jurados e voltou a seu lugar. Era minha vez. Pus a mão sob a mesa para verificar o zíper. Basta ter estado uma vez de braguilha aberta perante
o júri para que isso nunca mais aconteça.
Fiquei de pé e me dirigi ao mesmo ponto onde Freeman estivera. Mais uma vez tentei disfarçar meus ferimentos, ainda não completamente curados. E comecei.
- Senhoras e senhores, quero iniciar fazendo algumas apresentações. Meu nome é Michael Haller. Sou o advogado de defesa. Meu trabalho é defender Lisa Trammel dessas
acusações muito graves. Nossa Constituição assegura que qualquer pessoa acusada de um crime neste país tem direito a uma defesa plena e sólida, e isso é exatamente
o que pretendo fornecer ao longo deste julgamento. Se eu vier a incomodá-los de algum modo ao fazer isso, peço desculpas de antemão. Mas por favor não se esqueçam
de que minhas ações não devem se refletir sobre Lisa.
Virei para a mesa da defesa e ergui a mão, como que dando a Trammel minhas boas-vindas ao julgamento.
- Lisa, pode se levantar um minuto?
Trammel ficou de pé e virou lentamente para o júri, os olhos percorrendo lentamente os 12 rostos. Parecia decidida, imperturbável. Exatamente como eu dissera que
devia ser.
- E esta é Lisa Trammel, a acusada. A doutora Freeman espera que acreditem que ela cometeu este crime. Ela tem um 1,61 metro de altura, pesa 49 quilos, se tanto,
e é professora. Obrigado, Lisa. Pode sentar, agora.
Trammel voltou a sentar e virei outra vez para o júri, passando os olhos de rosto em rosto conforme falava.
- Concordamos com a doutora Freeman que esse crime foi brutal, violento e a sangue-frio. Ninguém tinha o direito de tirar a vida de Mitchell Bondurant e quem quer
que tenha feito isso deve ser levado perante a justiça. Mas nunca devemos ter pressa em fazer um julgamento. E isso é o que as provas vão mostrar que foi feito aqui.
Os investigadores deste caso enxergaram o cenário mais estreito e tiraram a conclusão mais fácil. Eles deixaram escapar o cenário mais amplo. Deixaram escapar o
verdadeiro assassino.
Atrás de mim, escutei a voz de Freeman.
- Excelência, podemos por favor nos aproximar um instante?
Perry franziu o rosto, mas então sinalizou que fôssemos falar com ele. Segui Freeman até a lateral da bancada, já preparando minha resposta para o que eu sabia que
seria sua objeção. O juiz acionou um ventilador para distorcer o som, de modo que os jurados não ouvissem nada que não deveriam, e nos reunimos para conferenciar
rapidamente.
- Meritíssimo - começou Freeman -, odeio interromper um comentário preliminar, mas isso não está parecendo nem um pouco com um comentário preliminar. Será que o
advogado de defesa vai nos apresentar os fatos que a defesa consegue provar e as provas que ela possui, ou ele vai se limitar a dizer generalidades sobre algum assassino
misterioso que ninguém viu?
O juiz olhou para mim para uma resposta. Olhei meu relógio.
- Meritíssimo, protesto contra o protesto. Estou com menos de cinco minutos numa alocação de tempo de meia hora e ela já está protestando porque não apresentei nada?
Vamos, meritíssimo, ela está tentando me expor diante do júri e gostaria que o senhor indeferisse o protesto e a proibisse de me interromper outra vez.
- Acho que ele tem razão, doutora Freeman - disse o juiz. - É cedo demais para protestar. O protesto contra essa linha de argumentação ficará registrado e vou interromper
se houver necessidade. Volte para a mesa da promotoria e permaneça sentada.
Ele desligou o ventilador e rolou sua cadeira para o centro da bancada. Freeman e eu voltamos a nossas posições.
- Como eu estava dizendo antes de ser interrompido, existe um cenário mais amplo para esse caso e a defesa vai mostrar a vocês. A promotoria gostaria que acreditassem
que isso é um simples caso de vingança. Mas um homicídio nunca é simples, e se a pessoa procura atalhos numa investigação ou numa promotoria, acaba deixando escapar
coisas. Incluindo um assassino. Lisa Trammel nem sequer conhecia Mitchell Bondurant. Nunca o viu antes. Não tinha qualquer motivo para matá-lo, porque o motivo que
a promotoria vai dar a vocês é falso. Eles vão dizer que ela matou Mitchell Bondurant porque ele ia tirar sua casa. A verdade era que ele não ia fazer isso, e vamos
provar. Um motivo é como um remo em um barco. Você o tira e o barco se move ao sabor do vento. E isso é que é o caso da promotoria. Um monte de vento.
Pus as mãos nos bolsos e olhei para meus pés. Contei mentalmente até três e quando ergui o rosto estava olhando diretamente para Furlong.
- Este caso é na realidade sobre dinheiro. Sobre a epidemia de execuções que vem varrendo nosso país. Não foi um simples ato de vingança. Isso foi o homicídio frio
e calculado de um homem que ameaçava expor a corrupção de nossos bancos e seus agentes nas execuções hipotecárias. Esse caso é sobre dinheiro e sobre pessoas que
têm dinheiro e se recusam a reparti-lo a qualquer custo... até mesmo valendo-se de assassinato.
Fiz outra pausa, mudando de posição e passeando os olhos por toda a bancada. Eles pousaram sobre uma jurada chamada Esther Marks, e permaneceram sobre ela. Eu sabia
que era mãe solteira, trabalhando como gerente de escritório no bairro de lojas de roupas. Provavelmente ganhava menos que os homens em seu mesmo cargo e eu a identificara
como alguém que mostraria simpatia pela minha cliente.
- Lisa Trammel serviu de bode expiatório para um crime que não cometeu. Ela foi usada em uma armação. Ela protestava contra as práticas cruéis e fraudulentas de
execução hipotecária feitas pelo banco. Lutou contra isso e por esse motivo sofria uma ordem judicial de restrição. Exatamente o que a tornou uma suspeita para investigadores
preguiçosos também a tornou um bode expiatório perfeito. E vamos provar isso.
Todos os olhos estavam fixos em mim. Eu capturara sua completa atenção.
- As provas do estado não se sustentam - eu disse. - Vamos derrubá-las, uma após outra. A medida pela qual vocês estão obrigados a tomar sua decisão nesse caso é
a de uma culpa além da dúvida razoável. Insisto que prestem bastante atenção e pensem por si mesmos. Façam isso e garanto que terão dúvida razoável de sobra. E a
única pergunta que ainda estará em suas cabeças é a seguinte: Por quê? Por que esta mulher foi acusada deste crime? Por que a fizeram passar por isso?
Uma última pausa e então balancei a cabeça e agradeci a atenção. Voltei rapidamente para minha cadeira e sentei. Lisa pousou sua mão em meu braço, como que agradecida
por tê-la defendido. Era um de nossos gestos coreografados. Podia ser uma encenação, mas mesmo assim me senti bem.
O juiz ordenou um intervalo de 15 minutos antes de começarmos com as testemunhas. Conforme o tribunal esvaziava, continuei onde estava, na mesa da defesa. Meu comentário
preliminar prolongou minha sensação de domínio da situação. A promotoria assumiria o controle ao longo dos próximos dias, mas Freeman agora estava advertida de que
eu iria atrás dela.
- Obrigada, Mickey - disse Lisa Trammel assim que se levantou para conversar no corredor com Herb Dahl, que viera buscá-la.
Olhei para ele e depois olhei para ela.
- Não me agradeça ainda - eu disse.
Vinte e dois
Após o intervalo, Andrea Freeman passou pelo portão acompanhada do que eu chamava de testemunhas determinantes de cena, para a promotoria. O depoimento delas era
geralmente dramático, mas não estabelecia a culpa ou inocência de um réu. Elas eram convocadas meramente como parte da arquitetura legal para o caso do estado, montar
o palco para a prova que viria depois.
A primeira testemunha do julgamento era uma recepcionista do banco chamada Riki Sanchez. Foi a mulher que encontrou o corpo da vítima na garagem. Ela servia para
ajudar a determinar a hora da morte e transmitir o choque do crime para as pessoas comuns presentes no júri.
Sanchez precisava ir do Santa Clarita Valley para o trabalho diariamente e desse modo mantinha uma rotina matinal à qual aderia estritamente. Declarou que entrava
na garagem do banco regularmente às 8h45, o que lhe dava dez minutos para estacionar, chegar à entrada dos funcionários e estar em sua mesa às 8h55 para se preparar
para a abertura das portas do banco ao público, às nove horas.
Declarou que no dia do assassinato seguira sua rotina e encontrara um lugar para estacionar aproximadamente a dez vagas da vaga pessoal de Mitchell Durant. Depois
de descer e trancar o carro, dirigiu-se à passarela que ligava a garagem ao prédio do banco. Foi então que descobriu o corpo. A primeira coisa que viu foi o café
derramado, depois a pasta aberta no chão e finalmente Mitchell Bondurant caído de frente, ensanguentado.
Sanchez ajoelhou ao lado do corpo e verificou os sinais vitais, depois pegou o celular em sua bolsa e ligou para o 911.
É raro a defesa ganhar alguma coisa com os testemunhos determinantes de cena. Esses depoimentos são geralmente muito prescritos e dificilmente contribuem para a
questão da culpa ou da inocência. Mesmo assim, nunca se sabe. Na minha contrainquirição, me levantei e fiz algumas perguntas para Sanchez, só para ver se pegava
algo.
- Bem, senhora Sanchez, você descreveu sua rotina matinal muito precisamente aqui, mas não existe de fato uma rotina assim que entra na garagem do banco, correto?
- Não tenho certeza do que o senhor quer dizer.
- Quero dizer que a senhora não possui uma vaga fixa de garagem, então não existe rotina nesse aspecto. A senhora chega na garagem e precisa começar a procurar por
uma vaga, certo?
- Bom, mais ou menos. O banco ainda não abriu, então sempre tem vaga sobrando. Normalmente eu vou para o segundo andar e estaciono perto de onde estacionei naquele
dia.
- Tudo bem. Antes disso, a senhora alguma vez teve a companhia do senhor Bondurant quando caminhava para o trabalho?
- Não, normalmente ele chegava mais cedo do que eu.
- Bem, no dia em que a senhora encontrou o corpo de Bondurant, onde foi que viu a acusada, Lisa Trammel, na garagem?
Ela parou como se a pergunta fosse capciosa. E era.
- Eu não... quer dizer, eu não a vi.
- Obrigado, senhora Sanchez.
A próxima pessoa a sentar no banco das testemunhas era a telefonista do 911 que atendeu a chamada de emergência de Sanchez às 8h52. Seu nome era LeShonda Gaines
e seu depoimento foi usado principalmente para apresentar a gravação da ligação feita por Sanchez. A apresentação dessa gravação era uma manobra dramática e desnecessária,
mas o juiz indeferira minha objeção feita antes do julgamento. Freeman tocou os quarenta segundos da gravação após entregar transcrições para os jurados, para o
juiz e para a defesa.
GAINES: Nove-um-um, qual é sua emergência?
SANCHEZ: Tem um homem aqui. Acho que está morto! Está cheio de sangue e ele não se mexe.
GAINES: Qual é o seu nome, senhora?
SANCHEZ: Riki Sanchez. Estou no estacionamento do WestLand National, em Sherman Oaks.
(pausa)
GAINES: Isso fica no Ventura Boulevard?
SANCHEZ: Isso mesmo, vocês estão mandando alguém?
GAINES: A polícia e os paramédicos já estão a caminho.
SANCHEZ: Acho que ele já morreu. Tem muito sangue.
GAINES: A senhora sabe quem é?
SANCHEZ: Acho que é o senhor Bondurant, mas não tenho certeza. Quer que eu vire ele?
GAINES: Não, apenas espere pela polícia. A senhora corre algum perigo, senhora Sanchez?
(pausa)
SANCHEZ: Ahn, acho que não. Não estou vendo ninguém por perto.
GAINES: Ok, espere pela chegada da polícia e mantenha a linha desocupada.
Não me dei ao trabalho de fazer qualquer pergunta na contrainquirição. Não havia nada ali para a defesa.
Freeman lançou sua primeira bola depois que Gaines recebeu licença para se retirar. Eu esperava que fosse chamar o primeiro policial no local, em seguida. Colher
seu depoimento sobre como chegou à cena do crime e a isolou, e mostrar as fotos da cena para o júri. Mas em vez disso ela chamou Margo Schafer, a testemunha que
punha Lisa Trammel perto da cena do crime. Percebi imediatamente a estratégia que Freeman ia empregar. Em vez de permitir que o júri saísse para o almoço com fotos
terríveis na lembrança, ela os mandava com o primeiro momento ah-ah do julgamento. A primeira prova a ligar Trammel ao crime.
Era um bom plano, mas Freeman não sabia o que eu sabia sobre sua testemunha. Eu só esperava ter acesso a ela antes do intervalo.
Schafer era uma mulher pequena que parecia nervosa e pálida quando sentou no banco das testemunhas. Teve de torcer a haste do microfone para baixo, após a posição
em que Gaines o deixara.
Conduzindo sua inquirição direta, Freeman extraiu de Schafer a informação de que era uma caixa de banco que voltara a trabalhar havia quatro anos, depois de criar
a família. Não tinha aspirações na empresa. Apenas apreciava a responsabilidade que vinha com sua função e a interação com o público.
Após mais algumas perguntas pessoais planejadas para criar uma relação entre Schafer e o júri, Freeman passou ao cerne de seu depoimento, perguntando à testemunha
sobre a manhã do homicídio.
- Eu estava atrasada - disse Schafer. - Preciso estar em meu caixa às nove. Primeiro passo no cofre para pegar o dinheiro e assinar o registro. Então normalmente
estou pronta faltando uns 15 minutos. Só que nesse dia peguei trânsito no Ventura Boulevard, por causa de um acidente, e eu estava bem atrasada.
- A senhora se lembra exatamente quanto tempo atrasada, senhora Schafer? - perguntou Freeman.
- Sim, exatamente dez minutos. Eu ficava olhando para o relógio no painel. Eu estava exatamente dez minutos atrasada.
- Ok, e quando a senhora chegou perto do banco, viu alguma coisa fora do normal ou que a deixasse preocupada?
- Sim, eu vi.
- E o que era?
- Vi Lisa Trammel na calçada vindo do banco.
Levantei e protestei, dizendo que não havia como a testemunha saber de onde a pessoa que ela alegava ser Trammel estava vindo. O juiz concordou e deferiu.
- De que direção a senhora Trammel vinha? - perguntou Freeman.
- Leste.
- E onde ela estava em relação ao banco?
- Estava meia quadra a leste do banco, e andando para a direção leste, também.
- Então estava em direção contrária ao banco, correto?
- É, correto.
- E qual era sua proximidade quando a avistou?
- Eu seguia pelo Ventura e estava na faixa da esquerda, para poder pegar a conversão e pegar a entrada para a garagem do banco. Então tinha três faixas de distância.
- A senhora estava prestando atenção na rua, não estava?
- Não, eu tinha parado no semáforo quando a vi.
- Então ela estava em ângulo reto quando a senhora a avistou?
- Isso, do outro lado da rua, em ângulo reto.
- E como a senhora sabia que essa mulher era a acusada, Lisa Trammel?
- Porque a foto dela estava pendurada na sala de descanso dos funcionários e no cofre. Além disso a foto tinha sido mostrada para os empregados do banco uns três
meses antes.
- Por que fizeram isso?
- Porque o banco tinha obtido uma ordem de restrição proibindo-a de se aproximar até 30 metros do banco. Mostraram a foto para nós e disseram que era para informarmos
imediatamente para nossos supervisores se víssemos qualquer sinal dela nas dependências do banco.
- Pode dizer ao júri que horas eram quando viu Lisa Trammel andando na direção leste pela calçada?
- Sim, sei exatamente o horário porque eu estava atrasada. Eram cinco para as nove.
- Então às cinco para as nove Lisa Trammel caminhava em direção contrária à do banco, correto?
- Isso mesmo, correto.
Freeman fez mais algumas perguntas destinadas a extrair respostas que indicavam que Lisa Trammel estava a apenas meia quadra do banco poucos minutos depois da ligação
para o 911 que informou sobre o crime. Finalmente, encerrou com a testemunha às 11h30 e o juiz perguntou se eu queria iniciar o intervalo para almoço mais cedo e
começar minha contrainquirição depois.
- Meritíssimo, acho que vai levar apenas meia hora para cuidar disso. Prefiro começar já. Estou pronto.
- Então muito bem, doutor Haller. Prossiga.
Fiquei de pé e fui até o atril localizado entre a mesa da promotoria e a bancada do júri. Levei um bloco de anotações comigo e dois cartazes de apresentação. Segurei
os cartazes de modo que ficassem de frente um para o outro e ninguém pudesse ver do que se tratava. Deixei-os apoiados na lateral do atril.
- Bom dia, senhora Schafer.
- Bom dia.
- A senhora mencionou em seu depoimento que estava atrasada devido a um acidente de trânsito, correto?
- Sim.
- Por acaso a senhora passou pelo local do acidente quando estava a caminho do trabalho?
- Passei, foi logo a oeste do Van Nuys Boulevard. Assim que passei, o trânsito começou a andar.
- Em que lado do Ventura aconteceu?
- O problema foi esse. Aconteceu nas faixas para leste, mas todo mundo do meu lado tinha diminuído para olhar.
Fiz uma anotação em meu bloco amarelo e mudei de rumo.
- Senhora Schafer, notei que a promotora se esqueceu de perguntar se a senhora Trammel estava carregando um martelo quando a senhora a avistou. A senhora não viu
nada como isso, viu?
- Não, não vi. Mas ela estava carregando uma sacola de compras grande o bastante para guardar um martelo.
Essa era a primeira vez que eu ouvia falar de uma sacola de compras. Não havia menção a isso na publicação compulsória. Schafer, a sempre prestativa testemunha,
estava introduzindo novos elementos. Ou assim pensei.
- Uma sacola de compras? Por acaso a senhora mencionou essa sacola de compras em algum depoimento para a polícia ou a promotoria desse caso?
Schafer pensou um pouco.
- Não tenho certeza. Pode ser que não.
- Então até onde a senhora se lembra, a polícia não perguntou se a acusada carregava alguma coisa.
- Acho que isso está correto.
Eu não sabia o que isso significava, se é que significava alguma coisa. Mas decidi manter distância da sacola de compras por ora e mudar mais uma vez de direção.
Você nunca deve permitir que a testemunha perceba que rumo está tomando.
- Bom, senhora Schafer, quando deu seu depoimento, há poucos minutos, de que estava a três faixas da calçada onde supostamente avistou a acusada, a senhora errou
o cálculo, não foi?
A segunda mudança abrupta de assunto e a pergunta fizeram com que hesitasse por um momento.
- Ahn... não, eu não.
- Bem, em que rua transversal a senhora estava quando a avistou?
- Na Cedros Avenue.
- Existem duas faixas de tráfego no sentido leste do Ventura, aí, não é?
- Sim.
- E então tem uma faixa de conversão na Cedros, não é?
- Isso mesmo, certo. São três.
- E quanto à faixa de estacionar, perto da calçada?
Ela exibiu uma expressão de Ah, qual é?, no rosto.
- Isso não é uma faixa de verdade.
- Bom, é um espaço entre a senhora e a mulher que afirma ser Lisa Trammel, não é?
- Se é o que o senhor diz. Eu acho que está sendo rigoroso demais.
- Sério? Eu chamaria de preciso, não acha?
- Acho que a maioria diria que são três faixas entre mim e ela.
- Bom, a área de estacionar, vamos chamar assim, tem pelo menos a largura de um carro, e na verdade é mais larga, correto?
- Certo, se quer procurar pelo em ovo. Pode chamar de quarta faixa. Me enganei.
Era uma concessão amarga e feita a contragosto e eu tinha certeza de que o júri estava vendo quem realmente procurava pelo em ovo ali.
- Então a senhora agora está dizendo que quando supostamente viu a senhora Trammel, estaria a umas quatro faixas de distância dela, não três, como testemunhou previamente,
correto?
- Correto. Já disse, me enganei.
Fiz uma anotação em meu bloco que na verdade não significava nada, mas queria dar a entender aos jurados que estava mantendo uma espécie de contagem. Então me curvei
para os cartazes, separei-os e escolhi um.
- Excelência, gostaria de mostrar para a testemunha uma fotografia do local de que estamos falando aqui.
- A promotoria já viu isso?
- Meritíssimo, estava no CD de provas entregue na publicação compulsória. Não forneci especificamente o cartaz para a doutora Freeman e ela não pediu para ver.
Freeman não protestou e o juiz me disse para prosseguir, chamando o primeiro cartaz de Prova da Defesa 1A. Montei um cavalete dobrável no espaço entre a bancada
do júri e o banco da testemunha. A promotoria planejava usar as telas no teto para apresentar suas provas e mais tarde eu faria o mesmo, mas para essa demonstração
eu preferia seguir o modo mais tradicional. Ajeitei o cartaz e então voltei ao atril.
- Senhora Schafer, reconhece a foto que estou expondo aí?
Era uma vista aérea de 76 por 130 centímetros do trecho de duas quadras do Ventura Boulevard em questão. Bullocks pegara no Google Earth e só nos custara mandar
fazer a ampliação e montar no papel-cartão.
- Sim. Parece uma vista de cima do Ventura Boulevard, dá para ver o banco e também o cruzamento com a Cedros Avenue, a mais ou menos uma quadra de distância.
- Sim, é uma vista aérea. Pode por favor sair por um minuto e usar a caneta no suporte do cavalete para circular o ponto onde acredita ter visto Lisa Trammel?
Schafer olhou para o juiz, como que pedindo permissão. Ele balançou a cabeça em sinal de aprovação e ela desceu do banco das testemunhas. Pegou a caneta marcadora
preta e circulou uma área na calçada, a meia quadra da entrada do banco.
- Obrigado, senhora Schafer. Será que pode agora assinalar para o júri onde seu carro se localizava quando a senhora olhou pela janela e supostamente avistou Lisa
Trammel?
Ela marcou um lugar na faixa do meio que parecia estar a pelo menos três carros de distância da calçada.
- Obrigado, senhora Schafer. Pode voltar ao banco das testemunhas, agora.
Schafer pôs a caneta de volta no lugar e voltou para sua cadeira.
- Quantos carros havia na frente do seu no semáforo, a senhora diria?
- Pelo menos dois. Talvez três.
- E quanto à faixa de conversão imediatamente à sua esquerda, havia algum carro esperando para entrar?
Ela estava preparada para a pergunta e não ia permitir que eu a pegasse nessa.
- Não, não tinha nada impedindo minha visão da calçada.
- Então era hora do rush e a senhora está nos dizendo que não havia ninguém esperando na faixa de conversão para chegar ao trabalho.
- Na minha frente não, mas eu estava só dois ou três carros atrás. Talvez tivesse alguém esperando para entrar, mas não perto de mim.
Perguntei ao juiz se eu poderia pôr o segundo cartaz, a Prova da Defesa 1B, no cavalete nesse momento, e ele me mandou seguir em frente. Era outra ampliação fotográfica,
mas dessa vez no nível do chão. Era uma foto tirada por Cisco da janela de um carro, parado no semáforo na faixa intermediária sentido oeste do Ventura Boulevard
com a Cedros Avenue às 8h55 de uma segunda-feira, um mês após o assassinato. Havia o horário impresso no canto inferior direito da imagem.
De volta ao atril, pedi a Schafer para descrever o que ele via.
- É uma foto da mesma quadra, vista do chão. Ali está o Danny’s Deli. A gente almoça lá, de vez em quando.
- Certo, e a senhora sabe se o Danny fica aberto para o café da manhã?
- Sei, fica.
- A senhora já tomou o café da manhã ali?
Freeman se levantou para protestar.
- Excelência, não consigo entender o que isso tem a ver com o depoimento da testemunha ou com os elementos deste julgamento.
Perry olhou para mim.
- Se me permitir um minuto, Meritíssimo, a relevância vai ficar muito clara.
- Prossiga, mas seja rápido.
Voltei a me concentrar em Schafer.
- A senhora teve oportunidade de tomar café da manhã no Danny’s, senhora Schafer?
- Não, café da manhã, não.
- Mas sabe que é um lugar popular para o café, correto?
- Eu não saberia dizer, de verdade.
Não era a resposta que eu queria, mas ajudava. Era a primeira vez que Schafer estava sendo claramente evasiva, evitando deliberadamente a óbvia confissão. Os jurados
que percebessem isso começariam a ver alguém que não estava sendo uma testemunha imparcial, mas uma mulher que se recusava a se afastar da linha da promotoria.
- Então deixe eu te perguntar o seguinte: que outro comércio nessa quadra está aberto antes das nove horas da manhã?
- A maioria são lojas, que não estariam abertas. Dá para ver as placas na foto.
- Então o que a senhora acha que explica o fato de que cada metro quadrado nesta foto está tomado? Seriam clientes da lanchonete?
Freeman protestou outra vez, dizendo que a testemunha não estava qualificada para responder a essa questão. O juiz concordou e deferiu a objeção, dizendo-me que
passasse à pergunta seguinte.
- Na segunda de manhã, às cinco para as nove, quando a senhora alega ter visto Lisa Trammel a quatro faixas de distância, lembra-se de quantos carros estavam estacionados
na frente da lanchonete e ao longo da calçada?
- Não, não lembro.
- A senhora testemunhou apenas alguns momentos atrás, e também posso ler seu depoimento, se preferir, que a senhora tinha uma visão desimpedida de Lisa Trammel.
A senhora está testemunhando que não havia veículos na faixa de estacionar?
- Pode ser que tivesse alguns carros lá, mas eu a vi claramente.
- E quanto às faixas do tráfego, estavam desimpedidas, também?
- Estavam. Eu conseguia vê-la.
- A senhora disse que estava atrasada porque o trânsito no sentido oeste estava andando muito devagar, devido a um acidente, correto?
- Isso.
- Um acidente nas faixas no sentido leste, correto?
- Isso.
- Então até onde havia trânsito nas faixas no sentido leste se as faixas no sentido oeste estavam congestionadas o suficiente para fazer a senhora se atrasar dez
minutos para o trabalho?
- Não lembro realmente.
Resposta perfeita. Para mim. Uma testemunha dissimulada sempre marca pontos para a defesa.
- Não é verdade, senhora Schafer, que a senhora teve de olhar através de duas faixas de tráfego congestionado, mais uma faixa de vagas para estacionar, cheia de
carros, de modo a enxergar a acusada andando na calçada?
- Só sei que eu a vi. Ela estava lá.
- E até carregava uma grande sacola de compras, é o que está dizendo, correto?
- Isso mesmo.
- Que tipo de sacola de compras?
- Do tipo com alças, dessas que a gente recebe em lojas de departamentos.
- De que cor era?
- Vermelha.
- E dava para dizer se estava cheia ou vazia?
- Não sei dizer.
- E ela carregava ao lado do corpo ou na frente?
- Do lado, embaixo. Com uma mão.
- A senhora parece ter notado bem essa sacola. Estava olhando para a sacola ou para o rosto da mulher que a carregava?
- Deu tempo de ver as duas coisas.
Balancei a cabeça enquanto olhava minhas anotações.
- Senhora Schafer, sabe qual é a altura da senhora Trammel?
Virei para minha cliente e sinalizei que ficasse de pé. Provavelmente eu deveria ter pedido a permissão do juiz primeiro, mas eu estava no embalo e não queria que
alguma coisa atrapalhasse meu ritmo. Perry não disse nada.
- Não faço ideia - disse Schafer.
- Você ficaria surpresa em saber que ela tem apenas 1,61 metro?
Fiz um sinal de cabeça para Lisa e ela voltou a sentar.
- Não, acho que isso não me surpreenderia.
- Um metro e 61, e mesmo assim a senhora conseguiu avistá-la do outro lado de uma rua cheia de carros.
Freeman protestou, como eu sabia que faria. Perry deferiu a objeção, mas eu não precisava da resposta para demonstrar o que estava pretendendo. Olhei o relógio e
vi que faltavam dois minutos para o meio-dia. Gastei minha última bala.
- Senhora Schafer, consegue olhar para a fotografia e apontar onde viu a acusada na calçada?
Todos os olhos se voltaram à ampliação fotográfica. Devido à fila de carros estacionados, os pedestres na calçada não podiam ser identificados na imagem. Freeman
ficou de pé imediatamente e protestou, alegando que a defesa tentava ridicularizar a testemunha e o tribunal. Perry nos chamou à parte. Quando nos aproximamos, tinha
duras palavras para mim.
- Doutor Haller, diga sim ou não, a acusada está nesta foto?
- Não, Excelência.
- Então o senhor está tentando enganar a testemunha. Isso não vai acontecer no meu tribunal. Tire sua foto dali.
- Meritíssimo, não estou tentando enganar ninguém. Ela pode simplesmente dizer que a acusada não está na foto. Mas está claro que ela não consegue enxergar os pedestres
do lado de lá dos carros, e o que eu estou tentando deixar claro é q...
- Não me interessa o que o senhor está tentando fazer. Tire sua foto dali e se tentar mais uma jogada dessas vai enfrentar uma audiência por desacato ao final desse
processo. Entendido?
- Sim, senhor.
- Excelência - disse Freeman. - O júri deve ser informado de que a acusada não está na foto.
- De acordo. Podem voltar.
Quando passava de volta, tirei os cartazes do cavalete.
- Senhoras e senhores - disse o juiz. - Que fique registrado que a acusada não estava na foto que o advogado de defesa exibiu para todos.
Não havia problema algum com essa instrução do júri. Eu havia provado o que queria, de qualquer maneira. O fato de ser necessário informar os jurados de que Lisa
não estava na foto enfatizava como teria sido difícil ver e identificar alguém na calçada.
O juiz pediu que eu continuasse com a minha contrainquirição e me curvei para o microfone.
- Não tenho mais perguntas.
Sentei e pus os cartazes com as fotos sob a mesa. Haviam servido bem a seu propósito. Levei um puxão de orelha do juiz, mas valera a pena. Sempre vale a pena quando
você consegue mostrar o que pretende.
Vinte e três
Lisa Trammel ficou em êxtase com minha contrainquirição de Margo Schafer. Nem Dahl conseguiu se conter e veio me dar os parabéns quando chegou o recesso do almoço.
Aconselhei os dois a não ficarem excessivamente animados. O julgamento ainda estava no começo e testemunhas como Schafer normalmente eram as mais fáceis de lidar
e atingir no banco das testemunhas. Haveria testemunhas duras e dias ainda mais duros pela frente. Eles podiam contar com isso.
- Não me importo - disse Lisa. - Você foi maravilhoso e aquela vadia mentirosa teve o que mereceu.
A invectiva destilava ódio e me fez parar por um momento antes de responder.
- A promotora ainda vai ter uma oportunidade de reabilitá-la após o almoço, quando voltar a inquiri-la.
- E depois você pode acabar com ela outra vez na contrainquirição.
- Bom... não sei quanto a acabar com alguém. Não é assim q...
- Quer almoçar conosco, Mickey?
Ela pontuou o pedido passando o braço em torno de Dahl, mostrando claramente o que eu viera presumindo, que estavam juntos em mais do que apenas negócios.
- Não tem nenhum lugar bom aqui perto - ela continuou. - Vamos até o Ventura Boulevard procurar um lugar. Talvez tentar o Danny’s Deli.
- Obrigado, mas não. Preciso voltar para o escritório e me encontrar com a minha equipe. Eles não estão aqui porque não podem. Estão trabalhando e eu preciso dar
uma olhada.
Lisa me olhou com expressão de que não acreditava. Não fazia grande diferença para mim. Eu a representava no tribunal. Não queria dizer que tinha de almoçar com
ela e o sujeito que eu tinha certeza que planejava tirar todo o seu dinheiro, com ou sem envolvimento amoroso - se é que tinha alguma coisa de amor. Fui embora sozinho
e voltei para o meu escritório, no Victory Building.
Lorna já passara na lanchonete concorrente e muito melhor, Jerry’s Famous Deli, em Studio City, e trouxera sanduíches de peru com salada de repolho. Comi em minha
mesa enquanto contava para Cisco e Bullocks o que acontecera de manhã no tribunal. Tirando as reservas que mostrara diante da minha cliente, eu me sentia muito bem
em relação a minhas perguntas para Schafer. Agradeci a Bullocks pelos cartazes com as fotos, que acreditei terem impressionado o júri. Nada como uma ajuda visual
para lançar alguma dúvida sobre uma suposta testemunha ocular.
Quando terminei de relatar os depoimentos das testemunhas, perguntei no que estavam trabalhando. Cisco disse que continuava revisando a investigação policial, procurando
por erros e pressuposições feitas pelos detetives que pudessem ser usados com Kurlen durante as contrainquirições.
- Ótimo, vou precisar de toda munição de que puder dispor - eu disse. - Bullocks, alguma novidade do seu lado?
- Passei a manhã quase toda com os documentos da execução. Quero estar bem protegida quando chegar minha vez.
- Ok, ótimo, mas ainda tem algum tempo até lá. Meu palpite é que a defesa só começa na semana que vem. Parece que a Freeman está tentando não quebrar o ritmo, mas
tem um monte de testemunhas na lista dela e não está com cara de que vai tentar fazer muita fumaça.
É comum os promotores e advogados de defesa encherem suas listas de testemunhas para manter o outro lado no escuro sobre quem de fato vai ser convocado para depor
e quem é importante em termos de testemunho. Para mim não parecia que Freeman recorrera a esse tipo de pretexto. A lista dela era fina e todos os nomes ali tinham
alguma coisa a acrescentar ao caso.
Molhei meu sanduíche em um pouco do molho Thousand Island que vazara para o papel do embrulho. Aronson apontou um dos cartazes que eu trouxera comigo de volta do
tribunal. Era a foto do nível do chão com que eu tentara tapear Margo Schafer.
- Isso não foi arriscado? E se Freeman não tivesse protestado?
- Eu tinha certeza que ia. E se não tivesse, o juiz teria. Eles não gostam que você tente engambelar as testemunhas desse jeito.
- É, mas agora o júri sabe que você estava mentindo.
- Eu não estava mentindo. Fiz uma pergunta à testemunha. Será que ela era capaz de apontar onde estava Lisa na foto? Eu não disse que Lisa estava na foto. Se tivesse
tido oportunidade de responder, a resposta dela teria sido não. Só isso.
Aronson franziu o rosto.
- Lembra do que eu disse, Bullocks. Deixa a consciência de lado. Estamos jogando pra valer, aqui. Eu passei a perna na Freeman e ela está tentando passar a perna
em mim. Pode ser até que já tenha me passado a perna de um jeito que eu ainda nem percebi. Eu assumi um risco e levei um puxão de orelha do juiz. Mas todo mundo
no júri estava olhando para essa foto enquanto a gente conferenciava e todos eles estavam pensando como teria sido difícil para Margo Schafer ver o que ela dizia
que tinha visto. É assim que funciona. O negócio é frio e calculado. Às vezes você ganha um ponto, mas na maioria das vezes, não.
- Sei - ela disse, dando de ombros. - Isso não quer dizer que eu tenha que gostar.
- Não, não quer.
Vinte e quatro
Freeman me surpreendeu após o almoço ao não chamar Margo Schafer de volta ao banco das testemunhas para tentar reparar o dano que eu lhe infligira em minha contrainquirição.
Meu palpite era que tinha alguma outra coisa planejada para mais tarde que ajudaria a salvar o testemunho de Schafer. Em vez disso, ela convocou o sargento David
Covington, do DPLA, que foi o primeiro oficial a comparecer ao WestLand National após a ligação para o 911 feita por Riki Sanchez.
Covington era um veterano calejado e uma testemunha sólida para a promotoria. Falando da forma precisa, quando não bem-humorada, de alguém que vira mais cadáveres
e testemunhara a respeito mais vezes do que era capaz de lembrar, ele descrevia sua chegada à cena e como determinara que a vítima morrera por meio de algum ato
violento. Depois descreveu como fechou o acesso para toda a garagem, segurando Riki Sanchez e outras possíveis testemunhas, e lacrando com fitas a área do segundo
andar, onde o corpo estava localizado.
Por intermédio de Covington, as fotografias da cena do crime foram apresentadas e expostas em toda a sua glória sanguinolenta nas duas telas planas acima. Isso,
mais do que qualquer depoimento de Covington, estabeleceu o crime de homicídio, a exigência de uma condenação.
Eu obtivera um triunfo parcial durante um desacordo pré-julgamento envolvendo as fotos de cena do crime. Eu protestara contra a sua apresentação, particularmente
contra o plano da promotoria de exibir ampliações de quase um metro quadrado em cavaletes perante a bancada do júri. Argumentara que eram prejudiciais à minha cliente.
Fotos de vítimas reais de homicídio são sempre chocantes e provocam fortes emoções. É da natureza humana punir duramente os responsáveis. Fotos podem facilmente
lançar o júri contra um réu, independentemente das provas que o liguem ao crime. Perry tentou cortar o bebê em dois. Ele limitou a quatro o número de fotos que a
promotoria teria permissão de apresentar e disse a Freeman que ela iria usar os monitores de tevê no alto, limitando desse modo também o tamanho das fotos. Eu ganhara
alguns pontos nessa, mas sabia que a determinação do juiz não limitaria a resposta visceral dos jurados. Continuava sendo uma vitória para a promotoria.
Freeman escolheu as quatro fotos que mostravam mais sangue e o ângulo lamentável em que Bondurant caíra de bruços sobre o piso de concreto da garagem.
Na contrainquirição do policial, concentrei-me em uma única foto e tentei deixar o júri pensando em outra coisa que não vingar a morte da vítima. O melhor modo de
fazer isso é plantando questões. Se eles ficam com interrogações na cabeça e nenhuma resposta, então fiz meu trabalho direito.
Com a permissão do juiz, usei o controle remoto dos monitores para eliminar três fotos nas telas, deixando restar apenas uma.
- Sargento Covington, gostaria de chamar sua atenção para a foto que mantive ali na tela. Acredito que está marcada como sendo Prova do Povo número Três. Pode me
dizer o que estamos vendo no primeiro plano da foto?
- Sim, é uma pasta executiva aberta.
- Ok, e foi isso que o senhor encontrou quando chegou à cena do crime?
- Sim, foi isso.
- Ok, e o senhor colheu o depoimento de alguma testemunha ou de alguma outra pessoa a fim de determinar se a pasta fora aberta depois que a vítima foi encontrada?
- Perguntei à mulher que tinha ligado para o 911 se foi ela que abriu e ela disse que não. Minha investigação só foi até aí. Deixei o caso para os detetives.
- Ok, e o senhor testemunhou aqui que vem trabalhando na patrulha durante toda a sua carreira por 22 anos, está correto?
- Sim, correto.
- O senhor já atendeu muitas denúncias pelo 911?
- Já.
- O que a pasta aberta significava para o senhor?
- Na verdade, nada. Era só parte da cena do crime.
- Por sua experiência, o senhor chegou a pensar que possa ter havido um roubo envolvido nesse crime?
- Na verdade não pensei nisso. Não sou detetive.
- Se um roubo não foi a motivação desse crime, por que o assassino teria perdido tempo em abrir a pasta da vítima?
Freeman protestou antes que Covington pudesse responder. Ela afirmou que a pergunta ia além do escopo de conhecimento e experiência da testemunha.
- O sargento Covington trabalhou em patrulha sua vida inteira. Ele não é detetive. Nunca investigou um roubo.
O juiz balançou a cabeça.
- Estou inclinado a concordar com a doutora Freeman, doutor Haller.
- Excelência, o sargento Covington pode nunca ter sido um detetive, mas acho seguro dizer que atendeu chamadas de roubos e conduziu investigações preliminares. Acho
que certamente está capacitado a responder a uma pergunta sobre suas impressões iniciais da cena do crime.
- A objeção continua deferida. Passe à próxima pergunta.
Derrotado nesse ponto, baixei os olhos para as anotações que havia feito previamente para Covington. Eu me sentia confiante de que havia plantado firmemente na cabeça
dos jurados a questão do roubo e do motivo para o assassinato, mas não queria parar por aí. Decidi tentar um blefe.
- Sargento, depois que o senhor chegou em resposta à ligação do 911 e supervisionou a cena do crime, o senhor chamou os investigadores, o legista e a perícia?
- Isso, eu entrei em contato com a central, confirmando a ocorrência de um homicídio e requisitando os procedimentos normais da Divisão Van Nuys.
- E o senhor manteve o controle da cena do crime até a chegada dessas pessoas?
- Isso, é assim que funciona. Transferi a custódia da cena para os investigadores. O detetive Kurlen, para ser mais exato.
- Ok, e em algum momento durante esse processo o senhor discutiu com Kurlen ou com qualquer outra autoridade sobre a possibilidade de que o assassinato tivesse sido
uma tentativa de roubo?
- Não, não fiz isso.
- Tem certeza, sargento?
- Absoluta.
Escrevi qualquer coisa em meu bloco de anotações. Apenas rabiscos sem sentido, feitos para o júri.
- Não tenho mais perguntas.
Covington desceu e foi a vez de um dos paramédicos que haviam atendido à ligação para nove-um-um testemunhar sua confirmação de que a vítima estava morta no local.
Ele subiu e desceu do banco em cinco minutos, já que o único interesse de Freeman era confirmar a morte e eu novamente não tinha nada a ganhar com uma contrainquirição.
O próximo a falar foi o irmão da vítima, Nathan Bondurant. Ele foi usado para confirmar a identificação da vítima, outra exigência para a condenação. Freeman também
o usou muito ao modo como fez com as fotos da cena do crime, para mexer com as emoções do júri. Às lágrimas, ele descreveu como foi levado pelos detetives à sala
do legista, onde identificou o corpo do irmão mais novo. Freeman perguntou quando vira seu irmão com vida pela última vez, e a resposta provocou outra torrente de
lágrimas conforme ele descrevia a ida a um jogo de basquete dos Lakers apenas uma semana antes do assassinato.
Regra geral, um homem chorando deve ser deixado em paz. Normalmente não há o que se ganhar com a contrainquirição de um ente querido da vítima, mas Freeman abrira
uma porta e eu decidi passar por ela. O risco que corri era de que os jurados pudessem me ver como uma pessoa cruel se eu fosse longe demais nas perguntas a um parente
enlutado.
- Senhor Bondurant, meus sentimentos pela perda em sua família. Tenho apenas algumas perguntas rápidas. O senhor mencionou que foi com seu irmão a um jogo dos Lakers
uma semana antes da ocorrência desse crime horrível. Sobre o que conversaram na ocasião?
- Ahn, conversamos sobre muitas coisas. Não vou conseguir me lembrar muito bem.
- Apenas sobre esportes e os Lakers?
- Não, claro que não. A gente era irmão. Falamos sobre uma porção de coisas. Ele me perguntou sobre meus filhos. Eu perguntei se ele estava namorando. Esse tipo
de coisa.
- Ele estava namorando?
- Não, não na ocasião. Disse que andava ocupado demais com o trabalho.
- O que mais ele falou sobre o trabalho?
- Só disse que estava ocupado demais. Cuidando de financiamentos para casa própria, e que os tempos não andavam bons. Muitas execuções de hipoteca e esse tipo de
coisa. Ele não chegou a entrar no assunto, de verdade.
- Ele falou sobre as propriedades dele e o que estava acontecendo com elas?
Freeman protestou com base na relevância. Pedi para me aproximar do juiz e ele permitiu. Junto à sua bancada argumentei que eu já deixara o júri de sobreaviso que
não apenas exporia a falácia do caso do estado como também apresentaria um caso da defesa que incluía a prova de uma teoria alternativa para o crime.
- Isso é a teoria alternativa, Meritíssimo. De que Bondurant estava encrencado financeiramente e que seus esforços para sair do buraco levaram à sua morte. Preciso
de margem de ação para ir atrás disso com qualquer testemunha que a promotoria ponha diante do júri.
- Excelência - contra-argumentou Freeman -, só porque o doutor diz que algo é relevante não significa que seja mesmo. O irmão da vítima não tem conhecimento direto
da situação financeira ou dos investimentos de Mitchell Bondurant.
- Se for esse o caso, Meritíssimo, Nathan Bondurant pode me dizer, e vou seguir em frente.
- Muito bem, indeferido. Faça sua pergunta, doutor Haller.
De volta ao atril fiz a pergunta outra vez à testemunha.
- Ele falou muito rapidamente e sem entrar em muitos detalhes - respondeu o irmão.
- O que exatamente ele disse?
- Disse apenas que seu investimento com propriedades saíra pela culatra. Não disse quantas delas eram ou quanto dinheiro estava envolvido. Foi só isso.
- O que ele quis dizer quando falou que saíra pela culatra?
- Que devia mais dinheiro pelas propriedades do que elas valiam.
- Ele disse se estava tentando vendê-las?
- Disse que não podia vender sem tomar prejuízo.
- Obrigado, senhor Bondurant. Não tenho mais perguntas.
Freeman completou seu roteiro de personagens menores convocando uma testemunha chamada Gladys Pickett, que se identificou como chefe dos caixas na agência central
do WestLand National, em Sherman Oaks. Depois de ouvir de Pickett quais eram suas funções no banco, Freeman passou ao testemunho.
- Como funcionária encarregada dos caixas no banco, quantas pessoas estão sob suas ordens, senhora Pickett?
- Cerca de quarenta.
- Entre essas pessoas, existe uma funcionária chamada Margo Schafer?
- Sim, Margo é uma das minhas caixas.
- Gostaria de voltar a chamar sua atenção para a manhã do assassinato de Mitchell Bondurant. Margo Schafer chegou com alguma preocupação particular?
- Sim, chegou.
- Pode por favor dizer ao júri com que a senhora Schafer estava preocupada?
- Ela me procurou e informou que vira Lisa Trammel a apenas meia quadra do prédio, andando pela calçada e indo em direção contrária ao banco.
- E por que isso constituiria motivo de preocupação?
- Bom, temos a fotografia de Lisa Trammel na sala de descanso dos funcionários e dentro do cofre e fomos instruídos a relatar qualquer notícia de Lisa Trammel para
nossos supervisores.
- Sabe por que divulgaram essa instrução?
- Sei, o banco tinha uma ordem de restrição para que ela mantivesse distância do prédio.
- Pode dizer ao júri que horas eram quando Margo Schafer lhe contou sobre ter visto a senhora Trammel perto do banco?
- Claro: assim que chegou para trabalhar naquele dia. Foi a primeira coisa que ela fez.
- A senhora possui algum registro de quando os caixas chegam para trabalhar?
- Eu mantenho uma lista de retirada no cofre onde o horário é anotado.
- Isso é para quando os caixas vão ao cofre e pegam suas cotas de dinheiro para levar para seus postos de trabalho?
- É, isso mesmo.
- No dia em questão, em que horário aparece o nome de Margo Schafer fazendo a retirada?
- Eram nove e nove. Ela foi a última a chegar. Estava atrasada.
- E teria sido nessa hora que contou sobre ter visto Lisa Trammel?
- Sim, exatamente.
- Bom, e nesse momento, a senhora sabia que Mitchell Bondurant fora assassinado na garagem do banco?
- Não, ninguém sabia ainda, porque Riki Sanchez tinha ficado na garagem até a polícia chegar e eles a seguraram lá para fazer perguntas. A gente não sabia o que
estava acontecendo.
- Então a ideia de que Margo Schafer teria inventado a história sobre ter visto Lisa Trammel depois de ficar sabendo do assassinato do senhor Bondurant não é possível,
correto?
- Correto. Ela me contou sobre ter visto antes que ela ou eu ou qualquer um no banco soubesse sobre o senhor Bondurant.
- Então em que momento a senhora foi notificada sobre o assassinato do senhor Bondurant na garagem e forneceu a informação que havia recebido de Margo Schafer?
- Isso foi cerca de meia hora mais tarde. Foi quando a gente ficou sabendo e eu obviamente achei que a polícia precisava ser informada de que aquela mulher tinha
sido avistada nas imediações.
- Obrigada, senhora Pickett. Não tenho mais perguntas.
Era a maior bola dentro de Freeman até ali. Pickett conseguira desfazer a maior parte do que eu conseguira conquistar com Schafer no banco das testemunhas. Agora
eu tinha de decidir se deixava passar batido ou me arriscava a piorar ainda mais as coisas.
Decidi diminuir o prejuízo e seguir em frente. Dizem que nunca se deve perguntar se você já não sabe a resposta de antemão. A regra se aplicava aqui. Pickett se
recusara a conversar com meu investigador. Freeman podia estar preparando uma armadilha, entregando-a para mim com mais alguma informação com a qual eu podia topar
fazendo uma pergunta desavisada.
- Sem perguntas para a testemunha - disse eu de meu lugar na mesa da defesa.
O juiz Perry dispensou Pickett e anunciou o intervalo da tarde de 15 minutos. Quando as pessoas deixavam a sala do tribunal, minha cliente se curvou em minha direção
ali na mesa.
- Por que você não apertou ela? - sussurrou.
- Quem? Pickett? Eu não queria deixar as coisas piores perguntando alguma coisa errada.
- Você tá brincando comigo? Era para acabar com ela, como você fez com a Schafer.
- A diferença é que eu tinha algo para ser trabalhado com Schafer. Com Pickett eu não tinha nada e tentar apertar alguém se você não tem nenhum argumento para pôr
a pessoa contra a parede é a receita do desastre. Deixei pra lá.
Pude ver a raiva turvando seus olhos.
- Bom, você devia ter arranjado alguma coisa para pôr ela contra a parede.
Isso foi dito de forma sibilante, no que me pareceu ser entre dentes.
- Olha, Lisa, eu sou seu advogado e eu decido...
- Deixa pra lá. Preciso ir.
Ela se levantou e passou apressada pelo portão na direção da saída. Dei uma olhada em Freeman para ver se pegara a exibição de discordância advogado-cliente. Ela
sorriu maliciosamente, dando a entender que sim.
Decidi sair no corredor para ver por que minha cliente tivera uma necessidade tão abrupta de sair. Passei pelas portas e vi na mesma hora as câmeras apontando para
um dos bancos que havia encostados nas paredes, entre uma sala de tribunal e outra. O foco era Lisa, que sentava abraçando seu filho, Tyler. O menino parecia extremamente
desconfortável sob as luzes das câmeras.
- Jesus Cristo - sussurrei.
Vi a irmã de Lisa na periferia do grupo e fui até lá.
- O que está acontecendo, Jodie? Ela sabe muito bem que o juiz determinou que não pode trazer o filho para o tribunal.
- Eu sei. Ele não vai entrar na sala. Passou metade do dia na escola e ela me pediu para trazê-lo. Achou que se a mídia visse ela com Ty isso podia ajudar as coisas,
eu acho.
- É, bom, a mídia não tem nada a ver com isso. Não traz ele outra vez. Não me interessa o que ela vai dizer, não traz mais ele aqui.
Olhei em volta à procura de Herb Dahl. Aquilo só podia ser coisa sua e eu queria dizer as mesmas coisas para ele. Mas não havia nem sinal do ex-agente de Hollywood.
Provavelmente fora esperto o suficiente para ficar longe de mim.
Voltei para a sala do tribunal. Ainda me restavam dez minutos do intervalo e eu planejava usá-los para refletir sobre o fato de estar trabalhando para uma cliente
de quem não gostava e que começava a desprezar.
Vinte e cinco
Após o intervalo, Freeman passou ao que chamo de estágio caça-coleta do caso da promotoria. Os técnicos da cena do crime. O depoimento deles seria a plataforma sobre
a qual ela apresentaria o detetive Howard Kurlen, o investigador-chefe.
O primeiro caçador-coletor foi um investigador forense chamado William Abbott, que havia comparecido à cena do crime e ficara encarregado da documentação e transporte
do corpo para o departamento do legista, onde a autópsia seria realizada.
Seu depoimento cobriu as observações da cena do crime, os ferimentos na cabeça sofridos pela vítima e os objetos pessoais encontrados com o corpo. Isso incluía a
carteira de Bondurant, o relógio, dinheiro trocado e um maço preso por clipe somando 183 dólares. Havia também o recibo do Joe’s Joe que ajudara os investigadores
a determinar a hora da morte.
Abbott, como Covington antes dele, foi bastante prático em seu testemunho. Presenciar uma cena de crime era algo rotineiro para ele. Quando chegou minha vez de fazer
as perguntas, concentrei-me no seguinte.
- Senhor Abbott, há quanto tempo é investigador forense?
- Vou completar 29 anos em breve.
- Sempre para o condado de L.A.?
- Isso mesmo.
- Em quantas cenas de crime o senhor calcula ter estado nesse período?
- Ah, puxa, provavelmente milhares. Muitas.
- Aposto que sim. E presumo que muitas eram cenas em que havia grande violência envolvida.
- É a natureza humana.
- E quanto a essa cena? O senhor examinou e fotografou os ferimentos na vítima, correto?
- Isso, fotografei. É parte do protocolo que a gente segue antes de transportar o corpo.
- O senhor está com um relatório da cena do crime na sua frente que foi admitido como prova de comum acordo antes do julgamento. Pode ler o segundo parágrafo do
laudo para o júri?
Abbott virou a página de seu relatório e encontrou o parágrafo.
- “Há três ferimentos de impacto distintos no topo da cabeça, notados por sua violência e estragos. A posição do corpo indica imediata perda de consciência antes
que tocasse o chão.” Depois, entre parênteses, escrevi “overkill”.
- Certo, estou curioso sobre isso. O que o senhor quis dizer pondo a palavra “overkill” no sumário?
- É só que me pareceu que apenas um dos impactos teria dado conta do recado. A vítima estava inconsciente e possivelmente morta antes de chegar ao chão. A primeira
pancada a matou. Isso pode indicar que os dois outros impactos foram feitos quando ele estava caído de bruços no chão. É o que se chama overkill. Alguém estava com
muita raiva dele, foi como vi a situação.
Abbott provavelmente achou que estava sendo esperto em me dar a resposta que eu menos queria ouvir. Freeman também. Mas os dois estavam errados.
- Então o senhor está indicando em seu laudo que detectou haver algum tipo de envolvimento emocional nesse assassinato, correto?
- É, foi isso que eu pensei.
- Que tipo de treinamento o senhor teve em termos de investigação de homicídio?
- Bom, eu treinei durante seis meses antes de começar a trabalhar nisso, faz uns trinta anos. E a gente recebe treinamento durante o serviço algumas vezes todo ano.
Para aprender as técnicas de investigação mais recentes e coisas assim.
- É específico para investigações de homicídio?
- Nem tudo, mas muita coisa é.
- Não é um princípio básico do homicídio que um crime de overkill em geral indica que a vítima conhecia seu assassino? Que existia um relacionamento pessoal?
- Ahn...
Freeman finalmente percebeu. Ficou de pé e protestou, dizendo que Abbott não era um investigador de homicídios e que a pergunta exigia uma perícia que ele não tinha.
Nem precisei rebater. O juiz ergueu a mão para me impedir de falar e disse a Freeman que eu acabara de levar Abbott por esse caminho sem nenhuma objeção do estado.
O investigador depusera a respeito de sua experiência e treinamento na área de homicídio sem um pio vindo de Freeman.
- A senhora fez uma aposta, doutora Freeman. Achou que estava indo na direção que queria. Agora não pode mais voltar atrás. A testemunha vai responder à pergunta.
- Pode continuar, senhor Abbott - eu disse.
Abbott tentou se esquivar pedindo que a pergunta fosse lida outra vez pela estenógrafa. Até que o juiz teve de voltar a pedir que respondesse.
- Tem isso a considerar - ele disse, finalmente.
- Considerar? - eu perguntei. - Como assim?
- Quando você tem um crime de alta violência, deve ser considerado que a vítima conhecia pessoalmente seu atacante. Seu assassino.
- Quando o senhor diz crime de alta violência, está querendo dizer overkill?
- Pode ser um aspecto do crime, é.
- Obrigado, senhor Abbott. Agora, e quanto às outras observações que o senhor fez da cena do crime? O senhor formou alguma opinião quanto ao tipo de força necessária
para provocar essas três pancadas brutais no alto da cabeça do senhor Bondurant?
Freeman protestou novamente, afirmando que Abbott não era um médico-legista e não estava credenciado a responder à pergunta. Dessa vez Perry deferiu sua objeção,
concedendo-lhe uma pequena vitória.
Decidi me contentar com o que tinha e dar por encerrado.
- Não tenho mais perguntas - falei.
O seguinte a subir no banco foi Paul Roberts, o principal criminalista dentre os três membros que compunham a unidade de cena do crime do DPLA encarregada desse
homicídio. Seu depoimento foi menos interessante que o de Abbott porque Freeman o manteve na rédea curta. Ele falou apenas dos procedimentos e do que coletou na
cena e depois processou no laboratório da Divisão de Investigação Científica. Na contrainquirição, pude usar a escassez de prova física em benefício de minha cliente.
- Pode dizer ao júri onde estavam as impressões digitais colhidas na cena do crime que mais tarde foram identificadas como sendo da acusada?
- Não encontramos nenhuma.
- Pode dizer ao júri que amostras de sangue coletadas na cena do crime vieram da acusada?
- Não encontramos nenhuma.
- Bem, e quanto às provas de fibras e cabelos? Sem dúvida os senhores ligaram a acusada à cena do crime por meio da prova de fibras e cabelos, correto?
- Não, nada disso.
Afastei-me alguns passos do atril, como que para aliviar minha frustração, e depois voltei.
- Doutor Haller - disse o juiz. - Vamos deixar o teatro de lado, por favor.
- Obrigada, Excelência - disse Freeman.
- Não me dirigi à senhora, doutora Freeman.
Fitei o júri por um longo momento antes de fazer minha próxima pergunta, a última.
- Em seu laudo, o senhor e sua equipe colheram alguma prova naquela garagem que ligue Lisa Trammel à cena do crime?
- Na garagem? Não, não colhemos.
- Obrigado, então não tenho mais perguntas.
Eu sabia que Freeman podia contra-atacar perguntando a Roberts sobre o martelo com o sangue de Bondurant e sobre o sapato com o mesmo sangue encontrado na garagem
de minha cliente. Ele tomou parte em ambas as equipes de perícia que cobriram os dois lugares. Mas meu palpite era que não ia fazer isso. Ela havia coreografado
o desenvolvimento de seu caso até a apresentação da última prova, e mudar as coisas agora significaria quebrar o ritmo, ameaçando o andamento de sua estratégia e
o impacto final que viria quando todas as peças se encaixassem. Era boa demais para se arriscar a tanto. Ia absorver os golpes, por ora, sabendo que podia desferir
o nocaute no julgamento.
- Doutora Freeman, contrainquirição? - quis saber o juiz, assim que voltei ao meu lugar.
- Não, Excelência. Sem perguntas.
- A testemunha está liberada.
Eu estava com a lista de testemunhas de Freeman presa na parte interna de uma pasta sobre a mesa, diante de mim. Risquei os nomes de Abbott e Roberts e passei os
olhos pelos outros nomes. O primeiro dia do julgamento ainda nem terminara e ela já reduzira consideravelmente suas opções. Percorri os nomes restantes e concluí
que o detetive Kurlen era muito provavelmente o próximo a ser chamado. Mas isso seria um problema para a promotoria. Olhei o relógio. Eram 4h25 e o tribunal estava
programado para encerrar às cinco horas. Se Freeman pusesse Kurlen no banco das testemunhas, mal começaria quando o juiz decretasse o recesso do dia. Era possível
que conseguisse conduzi-lo a uma revelação que fosse vantajosa em deixar para a consideração do júri de um dia para outro, mas isso talvez acarretasse embaralhar
os fatos de seu depoimento e nisso também achei que Freeman iria considerar que o negócio não valia a pena.
Olhei a lista outra vez para procurar algum possível flutuante, uma testemunha que pudesse entrar em qualquer ponto do caso da promotoria. Não vi ninguém assim e
olhei para a promotora do outro lado, sem imaginar seu próximo movimento.
- Doutora Freeman - insistiu o juiz. - Chame sua próxima testemunha, por favor.
Freeman se levantou da cadeira e se dirigiu ao juiz Perry.
- Excelência, é esperado que a testemunha planejada para ser chamada a seguir forneça um depoimento prolongado tanto na inquirição como na contrainquirição. Gostaria
de solicitar a indulgência do tribunal em permitir que eu convoque a testemunha amanhã de manhã, de modo que o júri não presencie a interrupção do testemunho.
O juiz olhou sobre a cabeça de Freeman para o relógio na parede do fundo, na sala do tribunal. Lentamente balançou a cabeça.
- Não - disse. - Não posso fazer isso. Temos mais de meia hora de julgamento restante e vamos usar. Pode chamar sua próxima testemunha, doutora Freeman.
- Certo, Excelência - disse Freeman. - O Povo chama Gilbert Modesto.
Eu me enganara quanto ao flutuante. Modesto era chefe da segurança corporativa do WestLand National e Freeman aparentemente julgara que seu depoimento podia ser
feito a qualquer hora do julgamento sem prejudicar o ritmo e a força de sua estratégia.
Depois de fazer o juramento e sentar no banco das testemunhas, Modesto passou a relatar sua experiência profissional no cumprimento da lei e seus atuais deveres
no WestLand National. Freeman então passou às perguntas sobre suas atividades na manhã em que Mitchell Bondurant foi assassinado.
- Quando soube que era o Mitch, a primeira coisa que fiz foi pegar a pasta de ameaças para dar à polícia - ele disse.
- O que é a pasta de ameaças? - perguntou Freeman.
- É um arquivo que mantemos contendo todas as ameaças mandadas por carta ou e-mail para o banco ou para os funcionários. Contém também anotações sobre qualquer outro
tipo de ameaça que tenha chegado pelo telefone, por informação de terceiros ou pela polícia. Temos um protocolo para pesar a gravidade da ameaça e os nomes que divulgamos
em alerta e coisas assim.
- E o senhor está pessoalmente familiarizado com a pasta de ameaças?
- Muito familiarizado. Eu estudo aquilo. É meu trabalho.
- Quantos nomes havia naquela pasta na manhã em que Mitchell Bondurant foi assassinado?
- Não contei, mas eu diria que uma dúzia.
- E essas eram consideradas todas ameaças legítimas para o banco e os funcionários?
- Não, o procedimento é que, se recebemos uma ameaça, ela vai para o arquivo. Não interessa até que ponto é legítima. Vai tudo para a pasta. Então a maior parte
nem é considerada séria, só alguém dando vazão à própria raiva ou frustração.
- Na pasta nessa manhã, que nome ocupava o topo da lista em termos de gravidade de ameaça?
- A acusada, Lisa Trammel.
Freeman fez uma pausa para aumentar o efeito. Eu observei o júri. Quase todos os olhares estavam voltados para minha cliente.
- Por que isso, senhor Modesto? Ela fez alguma ameaça específica contra o banco ou algum empregado do banco?
- Não, não fez. Mas estava envolvida num litígio de execução hipotecária com o banco e tinha um histórico de protestos diante do prédio até nossos advogados conseguirem
uma ordem de restrição temporária para que mantivesse distância. As atitudes dela foram vistas como ameaça e parece que a gente acertou nisso.
Fiquei de pé e objetei, pedindo ao juiz para desconsiderar o fim da resposta de Modesto por ser inflamatória e prejudicial à minha cliente. O juiz concordou e advertiu
Modesto a guardar suas opiniões para si mesmo.
- Sabe nos dizer, senhor Modesto - disse Freeman -, se Lisa Trammel fizera alguma ameaça direta contra alguém do banco, incluindo Mitchell Bondurant?
Regra número um, transforme todas as fraquezas em vantagens. Freeman estava fazendo minhas perguntas, agora, privando-me da oportunidade de fazê-las eu mesmo com
minha própria inflexão de indignação.
- Não, não especificamente. Mas, na nossa percepção de estimativa de ameaça, ela era alguém em quem devíamos ficar de olho.
- Obrigada, senhor Modesto. Para quem o senhor entregou a pasta dentro do DPLA?
- Para o detetive Kurlen, que estava chefiando a investigação. Fui direto até ele com as informações.
- E o senhor teve oportunidade de voltar a conversar com o detetive Kurlen, mais tarde nesse dia?
- Bom, conversamos algumas vezes conforme davam prosseguimento à investigação. Ele tinha perguntas sobre as câmeras de vigilância na garagem e outras coisas.
- Houve uma segunda vez em que o senhor o contatou?
- Sim, quando fiquei sabendo que uma de nossas funcionárias, caixa do banco, informara sua supervisora de que acreditava ter visto Lisa Trammel perto ou nas dependências
do banco naquela manhã. Achei que a polícia devia ter a informação, então liguei para o detetive Kurlen e marquei uma entrevista para ele com essa pessoa.
- E essa pessoa era Margo Schafer?
- Sim, isso mesmo.
Freeman encerrou sua inquirição aí e passou a testemunha para mim. Resolvi que seria melhor tentar um jogo rápido, lançar algumas sementes e voltar para colher os
frutos mais tarde.
- Senhor Modesto, como chefe da segurança corporativa na WestLand, o senhor teve acesso à ação de execução que o banco estava movendo contra Lisa Trammel?
Modesto balançou enfaticamente a cabeça.
- Não, isso era assunto legal, de modo que não me dizia respeito.
- Então quando o senhor deu ao detetive Kurlen essa pasta com o nome de Lisa Trammel no topo da lista, o senhor não tinha como saber que ela estava prestes a perder
a casa, correto?
- Correto.
- O senhor não teria como saber que o banco estava em processo de retirar a execução porque empregaram uma empresa envolvida em atividades fraudulentas, estou...
- Protesto! - gritou Freeman. - Presume fatos que não estão na prova.
- Mantido - disse Perry. - Doutor Haller, melhor tomar cuidado.
- Claro, Excelência. Senhor Modesto, na ocasião em que o senhor deu a pasta das ameaças para o detetive Kurlen, o senhor mencionou Lisa Trammel especificamente ou
simplesmente lhe deu a pasta e deixou que olhasse por conta própria?
- Comentei com ele que ela estava no topo de nossa lista.
- Ele perguntou por quê?
- Não lembro de verdade. Só me lembro de contar sobre ela, mas não sei dizer com certeza se a iniciativa partiu de mim ou se ele me perguntou especificamente.
- E no momento que o senhor conversou com o detetive Kurlen sobre Lisa Trammel ser uma ameaça, o senhor não fazia a menor ideia de como andava o processo de execução
hipotecária dela, correto?
- Isso mesmo, está correto.
- Então o detetive Kurlen também não tinha essa informação, estou correto?
- Não posso falar pelo detetive Kurlen. O senhor vai ter que perguntar para ele.
- Não se preocupe, eu pergunto. Sem mais questões, no momento.
Olhei para a parede do fundo quando voltava para o meu lugar. Eram cinco para as cinco e eu sabia que o dia estava encerrado. Sempre havia muita coisa a ser feita
na preparação para um julgamento. O final do primeiro dia normalmente vinha acompanhado de uma onda de fadiga. Eu começava a sentir o cansaço me pegar de jeito.
O juiz exortou os jurados a manter a mente aberta sobre o que haviam escutado e visto durante o dia. Disse-lhes para evitar as notícias sobre o julgamento e a não
discutir o caso entre si ou com outras pessoas. Depois disse que podiam ir embora.
Minha cliente partiu com Herb Dahl, que voltara ao fórum, e eu acompanhei Freeman pelo portão.
- Belo começo - eu lhe disse.
- Você também não se saiu mal.
- Bom, a gente sabe que é melhor pegar logo a fruta no galho mais baixo quando o julgamento começa. Depois não tem mais e fica difícil.
- É, vai ficar difícil. Boa sorte, Haller.
No corredor, seguimos caminhos separados. Freeman na direção da escada para o Gabinete da Promotoria e eu para o elevador e depois de volta ao meu escritório. Não
fazia diferença se estava cansado ou não. Ainda tinha trabalho a fazer. Kurlen muito provavelmente daria seu testemunho no dia seguinte. Eu precisava estar pronto.
Vinte e seis
- O Povo chama o detetive Howard Kurlen.
Andrea Freeman virou em seu lugar na mesa da promotoria e sorriu para o detetive quando ele veio pelo corredor central, dois fichários azuis, os murder books, de
grossura impressionante debaixo de seu braço. Ele passou pelo portão e foi na direção do banco das testemunhas. Parecia à vontade. Isso era rotineiro para ele. Pôs
os murder books sobre a prateleira diante da cadeira da testemunha e ergueu a mão para fazer o juramento. Lançou-me um olhar de esguelha nesse momento. Por fora,
Kurlen parecia frio, calmo e composto, mas já havíamos passado por essa situação antes e ele devia estar se perguntando o que eu pretendia aprontar para ele dessa
vez.
Kurlen vestia um terno azul-marinho de bom corte, com gravata laranja. Os detetives sempre usam sua melhor roupa para testemunhar. Então percebi uma coisa. Não havia
um fio branco na cabeça de Kurlen. Ele estava perto dos 60 e não tinha cabelos grisalhos. Ele tingira o cabelo para aparecer diante das câmeras.
Vaidade. Imaginei se era algo que eu poderia usar como vantagem quando fosse minha vez de fazer perguntas.
Depois que Kurlen fez o juramento, sentou no banco das testemunhas e se acomodou. Provavelmente, ia passar o dia todo ali, talvez até mais que isso. Ele se serviu
de um copo d’água de uma jarra trazida pelo assistente do juiz, bebeu um gole e olhou para Freeman. Estava pronto para começar.
- Bom dia, detetive Kurlen. Gostaria de começar nesta manhã com o senhor contando ao júri um pouco sobre sua experiência e história.
- Será um prazer - disse Kurlen, com um sorriso cordial. - Estou com 56 anos de idade e entrei para o DPLA há 24 anos, depois de passar dez com os fuzileiros. Faz
nove anos que trabalho como detetive de homicídio na Divisão Van Nuys. Antes disso, passei três anos trabalhando com homicídios na Divisão Foothill.
- Em quantas investigações de homicídio o senhor já trabalhou?
- Este caso é meu 61o homicídio. Fui um detetive designado para investigação de outros crimes... roubos e assaltos em geral, roubo domiciliar e de carros, essas
coisas... durante seis anos antes de passar para homicídio.
Freeman estava parada no atril. Ela virou uma folha em seu bloco amarelo, pronta para passar ao que realmente interessava.
- Detetive, vamos começar na manhã do assassinato de Mitchell Bondurant. Pode relatar para nós os estágios iniciais do caso?
Uma jogada esperta dizer “nós”, dando a entender que o júri e a promotoria eram parte de um mesmo time. Eu não tinha dúvidas sobre as capacidades de Freeman e ela
daria o máximo com seu detetive-chefe ali no banco das testemunhas. Ela sabia que, se eu pudesse atingir Kurlen, o castelo todo poderia desabar.
- Eu estava em minha mesa lá pelas 9h15 quando o tenente detetive se aproximou de mim e de minha parceira, a detetive Cynthia Longstreth, e disse que havia ocorrido
um homicídio na garagem do banco WestLand National, em Ventura Boulevard. A detetive Longstreth e eu começamos na hora.
- Vocês foram para a cena do crime?
- Isso, imediatamente. Chegamos às nove e meia e assumimos o controle da cena.
- O que isso implica?
- Bom, a prioridade número um é preservar e coletar a prova na cena do crime. Os policiais de patrulha já haviam passado a fita amarela na área e estavam mantendo
as pessoas a distância. Assim que a gente se deu por satisfeito de que estava tudo coberto por ali, dividimos as responsabilidades. Deixei minha parceira encarregada
de supervisionar a investigação da cena e avisei que eu ia conduzir os depoimentos preliminares das testemunhas que os policiais estavam segurando.
- A detetive Longstreth tem menos experiência que o senhor, correto?
- Isso, ela trabalha em investigações de homicídio comigo faz três anos.
- Por que o senhor atribuiu para o membro mais novo de sua equipe o trabalho muito importante de supervisionar a investigação da cena do crime?
- Fiz isso porque eu sabia que o pessoal na cena do crime e o investigador forense que estavam no local eram todos veteranos com muitos anos na função e que Cynthia
estaria em boas mãos, entre gente experiente.
Freeman a seguir conduziu Kurlen por uma série de questões sobre suas entrevistas com as testemunhas reunidas, começando por Riki Sanchez, que havia descoberto o
corpo e ligado para o 911. Kurlen parecia à vontade no banco e quase afável em seu depoimento. A palavra que me vinha à mente era encantador.
Esse encanto todo não me descia, mas eu tinha de esperar minha vez. Eu sabia que o dia podia terminar antes que tivesse chance de ir atrás de Kurlen. Nesse meio-tempo,
só podia esperar que o júri não ficasse perdidamente apaixonado por ele.
Freeman era suficientemente esperta para saber que você não pode prender a atenção de um júri só com charme. Finalmente, deixou de lado as preliminares determinantes
da cena do crime e começou a montar o caso contra Lisa Trammel.
- Detetive, em algum momento durante a investigação o nome da acusada chegou ao seu conhecimento?
- Sim, chegou. O chefe de segurança do banco veio até a garagem e perguntou por mim ou minha parceira. Eu falei com ele rapidamente e então o acompanhei até sua
sala, onde nós assistimos ao vídeo das câmeras localizadas na entrada e nas saídas de veículos para a garagem e nos elevadores.
- E assistir a esses vídeos forneceu alguma pista para a investigação?
- Inicialmente nada. Não vi ninguém carregando uma arma ou agindo de forma suspeita antes ou depois da hora aproximada do assassinato. Ninguém correndo da garagem.
Não havia nada suspeito nos veículos entrando ou saindo. Claro, ainda precisávamos checar todas as placas. Mas não havia nada gravado nessas imagens iniciais que
nos ajudasse e, claro, o próprio assassinato não foi capturado por nenhuma câmera. Esse era mais um detalhe de que o perpetrador do crime parecia estar ciente.
Fiquei de pé e objetei à última frase de Kurlen, e o juiz mandou apagar dos autos e disse ao júri para ignorá-la.
- Detetive - continuou Freeman -, creio que o senhor estava para nos contar como o nome de Lisa Trammel surgiu pela primeira vez na investigação.
- Isso, correto. Bom, o senhor Modesto, chefe de segurança do banco, também me forneceu uma pasta. Era o que ele chamava de pasta de avaliação de ameaças. Ele a
entregou para mim e ali continha diversos nomes, incluindo o nome da acusada. Então, um pouco depois disso, o senhor Modesto me chamou e informou que Lisa Trammel,
uma das pessoas listadas naquela pasta, tinha sido vista naquela manhã nas imediações do banco.
- A acusada. E foi assim que o nome dela surgiu pela primeira vez na investigação, correto?
- Correto.
- O que o senhor fez com essa informação, detetive?
- Primeiro voltei à cena do crime. Depois mandei minha parceira entrevistar a testemunha que afirmou ter visto Lisa Trammel perto do banco. Era importante para nós
confirmar essa informação e obter mais detalhes. Depois comecei a verificar a pasta de ameaças para examinar todos os nomes e os detalhes das possíveis ameaças.
- E o senhor chegou a alguma conclusão imediata?
- Não me parecia haver ali nenhum indivíduo listado que pudesse constituir o nível de pessoa de interesse, com base apenas no que estava registrado no arquivo sobre
eles e suas disputas com o banco. Obviamente, todos teriam de ser checados com cuidado. Mas Lisa Trammel de fato se destacou como pessoa de interesse porque eu sabia
pelo senhor Modesto que ela supostamente fora vista nas imediações do banco no momento do assassinato.
- Então o momento e a proximidade geográfica de Lisa Trammel com o assassinato foram chaves para o seu raciocínio nesse ponto?
- É, porque proximidade talvez significasse acesso. Pela cena do crime, parecia que alguém emboscara a vítima. O senhor Bondurant tinha uma vaga de estacionamento
fixa, com seu nome na parede. Havia uma grande coluna de sustentação perto da vaga. Nossa teoria inicial foi de que o assassino tinha se escondido atrás da coluna
e esperado até que o senhor Bondurant chegasse e estacionasse. Parecia que o primeiro golpe fora dado por trás, assim que ele desceu do carro.
- Obrigada, detetive.
Freeman conduziu sua testemunha por mais algumas etapas junto à cena do crime antes de trazer o foco de volta a Lisa Trammel.
- Sua parceira voltou à cena do crime em algum momento para informar sobre o depoimento colhido com a funcionária do banco que alegava ter visto Lisa Trammel nas
proximidades do prédio?
- Sim, voltou. Minha parceira e eu achamos que a identificação feita pela testemunha era sólida. Depois discutimos sobre Lisa Trammel e a necessidade de falar rapidamente
com ela.
- Mas, detetive, o senhor estava com uma investigação de cena do crime em andamento e uma pasta cheia de nomes de pessoas que haviam feito ameaças contra o banco
e seus funcionários. Por que a urgência envolvendo Lisa Trammel?
Kurlen recostou em sua cadeira e adotou a pose de um veterano sábio e astucioso.
- Bom, havia algumas coisas que nos transmitiam um sentido de urgência em relação à senhora Trammel. Primeiro, o litígio com o banco dizia respeito à execução hipotecária
de seu imóvel. Isso ligava seu problema diretamente à divisão de financiamentos residenciais. A vítima, o senhor Bondurant, era o vice-presidente sênior diretamente
encarregado da divisão de financiamentos residenciais. Então estávamos de olho nessa conexão. Além disso, e o mais importante...
- Permita-me interrompê-lo aqui, detetive. O senhor está dizendo que havia uma conexão. O senhor sabia se a vítima e Lisa Trammel conheciam um ao outro?
- Nessa altura, não. O que sabíamos era que a senhora Trammel tinha um histórico de protestos públicos contra a execução de sua casa e que o processo de execução
fora iniciado pelo senhor Bondurant, a vítima. Mas não sabíamos na época se essas duas pessoas se conheciam ou mesmo se já tinham se encontrado.
Era uma jogada esperta, trazer à tona as deficiências em seu caso perante o júri antes que eu o fizesse. Tornava mais difícil para a defesa apresentar seu caso.
- Certo, detetive - disse Freeman. - Eu o interrompi quando o senhor ia nos dizer um segundo motivo para ter alguma urgência em relação à senhora Trammel.
- O que eu queria explicar é que uma investigação de homicídio é uma situação dinâmica. É preciso agir muito devagar e com cautela, mas ao mesmo tempo é preciso
ir aonde o caso leva você. Caso contrário, as provas correm risco, assim como possivelmente outras vítimas. Sentíamos que havia uma necessidade de contatar Lisa
Trammel nesse ponto da investigação. Não dava para esperar. Não podíamos dar tempo a ela para destruir provas ou ferir outras pessoas. Tínhamos de agir.
Olhei para os jurados. Kurlen estava lhes dando a atuação de sua vida. Cada olhar na bancada do júri estava fixo nele. Se Clegg McReynolds um dia fizesse um filme,
talvez Kurlen pudesse fazer o papel dele mesmo.
- Então o que fizeram, detetive?
- Passamos um informe sobre a carteira de motorista de Lisa Trammel, obtivemos seu endereço em Woodland Hills e nos dirigimos à sua residência.
- Quem permaneceu na cena do crime?
- Várias pessoas. Nosso coordenador, todos os técnicos da DIS e o pessoal do legista. Eles ainda tinham muita coisa a fazer e só estávamos ali esperando, de todo
modo. Ir até a casa de Lisa Trammel não comprometia em nada a cena ou a investigação.
- Seu coordenador? Quem é esse?
- O detetive 3 encarregado da unidade de homicídio. Jack Newsome. Ele era o supervisor na cena.
- Entendo. Então o que aconteceu quando chegaram à casa da senhora Trammel? Ela estava lá?
- Sim, estava. Batemos e ela atendeu.
- Pode nos contar o que aconteceu em seguida?
- Nós nos identificamos e dissemos que estávamos conduzindo a investigação de um crime. Não dissemos do que se tratava, apenas que era um assunto grave. Perguntamos
se podíamos entrar para lhe fazer algumas perguntas. Ela disse sim, então entramos.
Senti uma vibração em meu bolso e soube que recebera uma mensagem de texto no celular. Tirei o aparelho e o segurei sob a mesa, de modo que o juiz não o visse. Era
um recado de Cisco.
Preciso conversar, mostrar uma coisa.
Enviei uma mensagem de volta e tivemos uma rápida conversa digital:
Você checou a carta?
Não, é outra coisa. Ainda trabalhando na carta.
Então depois do tribunal. Verifica a carta.
Guardei o celular e voltei a prestar atenção no depoimento. A carta em questão chegara na tarde anterior pelo correio para mim. Era anônima, mas se o conteúdo pudesse
ser confirmado por Cisco, eu teria uma nova arma. Uma arma poderosa.
- Qual foi o comportamento da senhora Trammel quando se apresentaram? - perguntou Freeman.
- Ela me pareceu bastante calma - disse Kurlen. - Não pareceu particularmente curiosa a respeito do assunto que queríamos conversar ou de que crime se tratava. Parecia
desinteressada da coisa toda.
- Onde o senhor e sua parceira conversaram com ela?
- Ela nos acompanhou até a cozinha, e nos convidou para sentar em torno da mesa. Perguntou se aceitávamos um café, e nós dois dissemos que não.
- E foi nessa hora que começaram a fazer perguntas para ela?
- Isso, começamos perguntando se ela ficara em casa a manhã toda. Ela disse que sim, a não ser quando saiu para levar o filho para a escola em Sherman Oaks, às oito.
Perguntei se tinha parado em algum outro lugar a caminho de casa e ela respondeu que não.
- E o que isso significava para vocês?
- Bem, que alguém estava mentindo. Tínhamos a testemunha situando-a perto do banco quase às nove horas. Então alguém se enganara ou alguém estava mentindo.
- O que fizeram nesse ponto?
- Perguntei se concordava em vir conosco à central de polícia para responder a algumas perguntas e olhar algumas fotos. Ela disse que sim, e nós a levamos para Van
Nuys.
- Vocês a notificaram antes de seus direitos constitucionais de não falar sem a presença de um advogado?
- Não nesse momento. Ela ainda não era suspeita. Era simplesmente uma pessoa de interesse, cujo nome viera à tona. Eu acreditava que não precisávamos lhe fazer a
advertência sobre seus direitos até haver passado desse limiar. Não estávamos perto disso ainda. Havia uma discrepância entre o que ela nos dissera e o que a testemunha
nos dissera. Precisávamos ir um pouco mais fundo antes de alguém passar à condição de suspeito.
Freeman voltara à carga. Tentando tapar buracos antes que eu pudesse abri-los. Era frustrante, mas não havia nada que eu pudesse fazer a respeito. Eu estava ocupado
redigindo perguntas que iria fazer mais tarde a Kurlen, perguntas que Freeman não antecipasse.
A promotora conduziu Kurlen habilmente de volta à central de Van Nuys e à sala de interrogatório onde ele estivera com minha cliente. Ela o usou para apresentar
o vídeo da sessão. Ele foi passado para o júri nas duas telas acima. Aronson argumentara com propriedade contra a apresentação do interrogatório, mas de nada adiantara.
O juiz Perry dera sua permissão. Podíamos apelar após a condenação, mas sair bem-sucedido nisso era um tiro no escuro. Eu precisava virar o jogo. Tinha de encontrar
uma maneira de fazer o júri ver aquilo como um processo injusto, uma armadilha em que minha cliente inocente caíra.
O vídeo foi feito de um ângulo no alto e a defesa tinha uma pequena vantagem logo de cara porque Howard Kurlen era um sujeito grande e Lisa Trammel era pequena.
Sentada do outro lado da mesa diante de Trammel, Kurlen parecia apertá-la, acossá-la, até mesmo intimidá-la. Isso era bom. Seria parte de um tema que eu planejava
explorar em minha contrainquirição.
O áudio estava límpido e o som era nítido. Contra meu protesto, os jurados e todos os demais envolvidos no processo haviam recebido transcrições para acompanhar
o que era dito. Eu havia objetado porque não queria os jurados lendo. Eu os queria observando. Queria que vissem o homem grande intimidando a mulher pequena. Havia
simpatia a ser conquistada ali, mas não nas palavras na página.
Kurlen começara casualmente, anunciando os nomes dos presentes e perguntando a Trammel se estava ali voluntariamente. Minha cliente disse que sim, mas a rigidez
e o ângulo do vídeo desmentiam suas palavras. Era como se estivesse sob detenção.
- Por que não começa nos contando sobre o que fez ao longo do dia de hoje? - foi a pergunta seguinte de Kurlen.
- Começando por onde? - respondeu Trammel.
- Que tal a partir do momento em que acordou?
Trammel relatou sua rotina do início da manhã, de acordar e preparar seu filho para a escola, depois levá-lo. O garoto estava em uma escola particular e o trajeto
normalmente levava entre vinte e quarenta minutos, dependendo do trânsito. Ela afirmava ter parado para um café depois de deixá-lo na escola, e que então voltara
para casa.
- A senhora nos informou antes que não parou em lugar nenhum. Agora parou para um café?
- Acho que eu esqueci.
- Onde?
- Um lugar chamado Joe’s Joe, no Ventura.
Interrogador calejado, Kurlen mudou abruptamente de direção, pegando sua presa com a guarda baixa.
- A senhora passou pelo WestLand National hoje de manhã?
- Não. É disso que se trata?
- Então se alguém dissesse que sim estaria mentindo?
- É, quem disse isso? Não violei a ordem. Vocês...
- Conhece Mitchell Bondurant?
- Conhecer? Não. Ouvi falar. Sei quem ele é. Mas não conheço de verdade.
- A senhora o viu hoje?
Trammel fez uma pausa nesse ponto e isso era prejudicial para a sua situação. No vídeo, dava para perceber seus pensamentos operando. Estava considerando se deveria
dizer a verdade. Olhei para o júri. Não vi um rosto que não estivesse voltado para as telas.
- Sim, vi.
- Mas a senhora disse que não passou no WestLand.
- Não passei. Olha, não sei quem foi que disse para vocês que me viu no banco. E se foi ele, então ele é um mentiroso. Eu não estive lá. Eu vi ele, verdade, mas
foi na cafeteria, não n...
- Por que não nos contou isso hoje de manhã em sua casa?
- Contar o quê? Vocês não perguntaram.
- A senhora mudou de roupa desde hoje de manhã?
- Como?
- A senhora trocou de roupa hoje de manhã, depois que voltou para casa?
- Olha, o que é isso? Vocês me pediram para vir até aqui conversar, e isso é meio que uma armadilha. Não violei a ordem de restrição. Eu...
- A senhora atacou Mitchell Bondurant?
- O quê?
Kurlen não respondeu. Ficou apenas olhando para Trammel, conforme a boca dela abria-se num perfeito O. Olhei para o júri. Todos os olhos continuavam grudados nas
telas. Esperava que vissem o que eu via. Choque genuíno no rosto de minha cliente.
- É isso... Mitchell Bondurant foi atacado? Ele está bem?
- Não, na verdade, está morto. E neste momento quero advertir a senhora de seus direitos constitucionais.
Kurlen recitou para Trammel a advertência de Miranda, e Trammel disse as palavras mágicas, as quatro palavras mais ajuizadas que saíram de sua boca até lá.
- Eu quero o meu advogado.
Isso encerrou o interrogatório e o vídeo concluiu com Kurlen dando voz de prisão a Trammel por homicídio. E foi desse modo que Freeman encerrou o depoimento de Kurlen.
Ela me surpreendeu anunciando abruptamente que havia encerrado com a testemunha e depois indo sentar. Ainda havia o mandado de busca na casa de minha cliente para
apresentar ao júri. E o martelo. Mas ao que parecia ela não pretendia usar Kurlen para isso.
Eram 11h45 e o juiz chamou mais cedo o recesso para o almoço. Isso me dava uma hora e 15 minutos para fazer os preparativos finais para Kurlen. Mais uma vez estávamos
prestes a dançar nossa valsa na frente do júri.
Vinte e sete
Aproximei-me do atril carregando duas grossas pastas e meu fiel bloco amarelo. As pastas eram supérfluas para minha contrainquirição, mas minha esperança era que
constituíssem um acessório de cena impressionante, teatral. Organizei tudo sem pressa na parte superior do atril. Eu queria ver Kurlen indo de um lado para outro.
Meu plano era tratá-lo da mesma maneira que ele tratara minha cliente. Balançando o corpo e esquivando, golpeando com a esquerda quando ele esperasse uma direita,
avançando e recuando.
Freeman jogara com inteligência, dividindo o testemunho entre os parceiros. Eu não teria a oportunidade de fazer um ataque coeso contra sua estratégia por intermédio
de Kurlen apenas. Teria de lidar com ele agora e com sua parceira, Longstreth, bem mais tarde. A coreografia do processo era um dos pontos fortes de Freeman e ela
estava mostrando isso no julgamento.
- Quando quiser, doutor Haller - instou o juiz.
- Certo, Excelência. Só pondo minhas anotações em ordem. Boa tarde, detetive Kurlen. Imagino que poderíamos começar voltando à cena do crime. O senhor...
- Como quiser.
- Certo, obrigado. Quanto tempo o senhor e sua parceira permaneceram na cena do crime antes de saírem na perseguição a Lisa Trammel?
- Bem, eu não chamaria de perseguição. A gente...
- Isso porque ela não era uma suspeita?
- Esse é um dos motivos.
- Ela era apenas uma pessoa de interesse, foi assim que disse?
- Isso mesmo.
- Então por quanto tempo permaneceram na cena do crime antes de sair para procurar essa mulher que não era uma suspeita, mas apenas uma pessoa de interesse?
Kurlen consultou suas anotações.
- Minha parceira e eu chegamos à cena do crime às 9h27 e sempre um ou nós dois estivemos ali até sairmos juntos às 10h39.
- Isso dá... uma hora e 12 minutos. Vocês passaram 72 minutos na cena do crime antes de sentir a necessidade de sair para pegar uma mulher que não era nem mesmo
suspeita. Entendi direito?
- É uma maneira de ver a coisa.
- E como o senhor vê a coisa, detetive?
- Em primeiro lugar, deixar a cena do crime não era um problema, porque a cena estava sob o controle e direção do coordenador da equipe de homicídio. Tinha vários
técnicos da Divisão de Investigação Científica presentes também. Nosso trabalho não era na cena do crime. Nosso trabalho era seguir as pistas para o lugar que elas
nos levassem e nesse momento elas nos levaram até Lisa Trammel. Ela não era uma suspeita quando fomos até sua casa, mas virou uma quando começou a dar declarações
inconsistentes e contraditórias durante o interrogatório.
- Está falando sobre o interrogatório na Divisão Van Nuys, correto?
- Isso mesmo.
- Ok, então quais foram as declarações inconsistentes e contraditórias que o senhor acabou de mencionar?
- Na casa, ela disse que não fez nenhuma parada depois de deixar o filho na escola. Na central, de repente ela lembra de ter ido tomar café e ver a vítima lá. Ela
diz que não passou perto do banco, mas tínhamos uma testemunha que a punha a meia quadra dali. Tinha coisa aí.
Sorri e balancei a cabeça, como se estivesse lidando com um simplório.
- Detetive, está brincando com a gente, não está?
Kurlen me lançou o primeiro olhar de irritação. Era exatamente o que eu queria. Se fosse percebido como arrogância, seria ainda melhor quando eu o humilhasse.
- Não, não estou brincando - disse Kurlen. - Levo meu trabalho muito a sério.
Pedi ao juiz permissão para repassar uma parte do interrogatório de Trammel. Permissão concedida, avancei a gravação, ficando de olho no contador de tempo, no canto
inferior da tela. Diminuí para a velocidade normal bem a tempo de que o júri visse o diálogo em que Lisa negava ter estado perto do WestLand National.
- A senhora passou pelo WestLand National hoje de manhã?
- Não. É disso que se trata?
- Então se alguém dissesse que sim estaria mentindo?
- É, quem disse isso? Não violei a ordem. Vocês...
- Conhece Mitchell Bondurant?
- Conhecer? Não. Ouvi falar. Sei quem ele é. Mas não conheço de verdade.
- A senhora o viu hoje?
- Sim, vi.
- Mas a senhora disse que não passou no WestLand.
- Não passei. Olha, não sei quem foi que disse para vocês que me viu no banco. E se foi ele, então ele é um mentiroso. Eu não estive lá. Eu vi ele, verdade, mas
foi na cafeteria, não n...
- Por que não nos contou isso hoje de manhã em sua casa?
- Contar o quê? Vocês não perguntaram.
Parei o vídeo e olhei para Kurlen.
- Detetive, onde está a parte em que Lisa Trammel se contradiz?
- Ela acabou de dizer aí que não estava nem perto do banco, e temos uma testemunha que diz que estava.
- Então vocês têm uma contradição entre as declarações de duas pessoas diferentes, mas Lisa Trammel não se contradisse, correto?
- Cada um interpreta como quer.
- Pode responder à pergunta, detetive?
- Sim, isso mesmo, uma contradição entre duas declarações.
Kurlen não achava a diferença entre uma coisa e outra importante, mas eu esperava que o júri achasse.
- Não é verdade, detetive, que Lisa Trammel jamais contradisse sua afirmação de que não estava nem perto do banco no dia do crime?
- Como eu vou saber. Não fui informado de tudo que ela disse desde aquele dia.
Agora ele estava apenas sendo malcriado, coisa que por mim tudo bem.
- Ok, então até onde o senhor sabe, detetive, ela alguma vez contradisse essa primeira declaração de que não passou nem perto do banco?
- Não.
- Obrigado, detetive.
Pedi ao juiz para passar outro trecho do vídeo e recebi permissão. Voltei a gravação para um ponto bem no começo e pausei a imagem. Então perguntei ao juiz se poderia
apresentar uma das fotos da cena do crime em uma tela enquanto deixava o vídeo na outra. O juiz consentiu que eu fosse em frente.
A foto da cena do crime que abri era um enquadramento amplo que cobria quase a cena toda. A composição incluía o corpo de Bondurant, seu carro, a pasta aberta e
o copo de café entornado no chão.
- Detetive, permita-me chamar sua atenção para a foto da cena do crime registrada como Prova do Povo número Três. Pode descrever o que está vendo no primeiro plano?
- Quer dizer a pasta ou o corpo?
- O que mais, detetive?
- Tem o café derramado, e o marcador de prova do lado esquerdo é de onde encontraram um fragmento de pele que foi mais tarde identificado como sendo do couro cabeludo
da vítima. Não dá para ver na foto.
Pedi ao juiz para desconsiderar a parte da resposta relativa ao fragmento de pele, por estar fora do escopo da pergunta. Eu pedira a Kurlen para descrever o que
ele podia ver na foto, não o que não podia ver. O juiz não concordou e permitiu que a resposta toda constasse. Balancei a cabeça e tentei novamente.
- Detetive, consegue ler o que diz na lateral do copo?
- Consigo, diz Joe’s Joe. É uma cafeteria gourmet que fica a umas quatro quadras do banco.
- Muito bom, detetive. Seus olhos são melhores do que os meus.
- Deve ser porque eles procuram a verdade.
Olhei para o juiz e abri as mãos como um técnico de beisebol que acabou de ver uma bola rápida passando fora da zona de strike e sendo validada. Mas, antes que eu
pudesse verbalizar algum protesto, o juiz foi para cima de Kurlen.
- Detetive! - bradou Perry. - É melhor tomar cuidado.
- Desculpe, Excelência - disse Kurlen com ar arrependido, os olhos fixos nos meus. - Parece que de algum modo o doutor Haller consegue sempre me tirar do sério.
- Isso não é desculpa. Mais uma dessas e o senhor vai se haver comigo.
- Não vai acontecer outra vez, Meritíssimo. Prometo.
- O júri deve desconsiderar o comentário da testemunha. Doutor Haller, prossiga, e vamos tentar esquecer tudo isso.
- Obrigado, Excelência. Vou fazer o possível. Detetive, quando o senhor ficou na cena do crime por 72 minutos antes de sair para interrogar a senhora Trammel, chegaram
a determinar de quem era o copo de café?
- Bom, mais tarde descobrimos que...
- Não, não, não, não perguntei o que vocês descobriram mais tarde, detetive. Perguntei sobre os primeiros 72 minutos, quando o senhor estava na cena do crime. Durante
esse tempo, antes de ir para a casa de Lisa Trammel em Woodland Hills, o senhor sabia de quem era o café?
- Não, ainda não havíamos determinado isso.
- Certo, então vocês não sabiam quem havia derrubado aquele café na cena do crime, correto?
- Protesto, já foi respondido - disse Freeman.
Era uma objeção inútil, mas ela tinha de fazer alguma coisa para tentar quebrar meu ritmo.
- Vou permitir - disse o juiz antes que eu pudesse contra-argumentar. - Pode responder à pergunta, detetive. O senhor sabia quem havia derrubado o copo de café na
cena do crime?
- Nesse momento, não.
Voltei ao vídeo e passei o trecho ao qual eu aludira e que estava no ponto. Era do início do interrogatório, quando Trammel contava suas atividades rotineiras durante
a manhã do assassinato.
- A senhora parou para tomar café?
- Acho que esqueci.
- Onde a senhora parou para um café?
- Um lugar chamado Joe’s Joe. Fica em Van Nuys Boulevard, bem no cruzamento com o Ventura.
- Lembra se pegou um copo grande ou pequeno?
- Grande. Eu bebo muito café.
Parei o vídeo.
- Diga-me uma coisa agora, detetive. Por que perguntou o tamanho do copo de café que ela pegou no Joe’s Joe?
- A gente tenta cobrir tudo para ver o que pega. Obter o máximo de detalhes que consegue.
- Não foi porque vocês acreditavam que o copo de café encontrado na cena do crime podia ter vindo de Lisa Trammel?
- Era uma possibilidade, nesse momento.
- O senhor incluiu isso como uma das admissões de Lisa Trammel?
- Achei que era significativo nesse ponto da conversa. Não chamaria de uma admissão.
- Mas depois, ao ser questionada outra vez, ela contou ter visto a vítima na cafeteria, correto?
- Correto.
- Então isso não mudou o que vocês pensavam sobre o copo de café na cena do crime?
- Era só uma informação extra a considerar. A investigação ainda estava bem no começo. Não tínhamos nenhuma informação independente de que a vítima estivera na cafeteria.
Tínhamos o depoimento dessa pessoa, mas ele era inconsistente com o depoimento de uma testemunha com quem já havíamos conversado. Então a gente tinha Lisa Trammel
dizendo que viu Mitchell Bondurant na cafeteria, mas isso não podia ser considerado um fato. A gente ainda precisava de confirmação. E mais tarde confirmou.
- Mas o senhor percebe que o que consideravam uma inconsistência no início do interrogatório acabou se revelando totalmente consistente com os fatos mais tarde?
- Só nesse caso.
Kurlen não dava o braço a torcer. Ele sabia que eu estava tentando deixá-lo encurralado na beirada de um precipício. Sua missão era não cair.
- Na verdade, detetive, o senhor não diria, após tudo dito e feito, que a única coisa inconsistente sobre o interrogatório com Lisa Trammel foi ela ter dito que
não estava perto do banco e vocês terem uma testemunha alegando que estava?
- É sempre fácil olhar para as coisas em retrospecto, com visão abrangente. Mas essa única inconsistência era e é muito importante. Uma testemunha confiável a situou
perto da cena do crime no momento do crime. Isso não mudou desde o começo.
- Uma testemunha confiável. Baseado num curto depoimento de Margo Schafer ela foi considerada uma testemunha confiável?
Dei a ênfase apropriada de indignação e confusão em minha voz. Freeman protestou, dizendo que eu estava simplesmente intimidando a testemunha porque não conseguia
as respostas que queria. O juiz indeferiu, mas era um bom recado esse que ela tentava transmitir ao júri - a ideia de que eu não estava conseguindo o que queria.
Porque, na verdade, eu estava.
- A primeira conversa com Margo Schafer foi curta - disse Kurlen. - Mas ela voltou a dar seu depoimento várias vezes para diversos investigadores. As coisas que
ela observou naquele dia não mudaram uma vírgula. Acredito que ela viu o que disse que viu.
- Ótimo para o senhor, detetive - eu disse. - Vamos voltar ao copo de café. Houve um momento em que o senhor chegou à conclusão quanto a quem pertencia o café entornado
e deixado na cena do crime?
- Sim. Encontramos um recibo do Joe’s Joe no bolso da vítima para um copo grande de café, comprado nessa manhã, às 8h21. Assim que descobrimos isso, acreditamos
que o copo de café na cena do crime era o dele. Isso foi confirmado mais tarde pela análise de impressões digitais. Ele desceu do carro com o copo na mão e deixou
cair quando foi atacado por trás.
Balancei a cabeça, tentando mostrar para o júri que sem a menor sombra de dúvida eu estava obtendo as respostas que queria.
- Que horas eram, quando esse recibo foi encontrado no bolso da vítima?
Kurlen verificou suas notas e não encontrou uma resposta.
- Não tenho certeza porque o recibo foi encontrado pelo investigador do legista, que ficou encarregado de verificar os bolsos da vítima e guardar todos os objetos
que estavam em posse do homem no momento. Isso deve ter sido feito antes do transporte do corpo para o legista.
- Mas isso foi bem depois que o senhor e sua parceira saíram em perseguição a Lisa Trammel, correto?
- Não saímos em perseguição a Lisa Trammel, mas a descoberta do recibo teria sido bem depois que saímos para conversar com Trammel.
- O investigador do legista o procurou para comentar sobre o recibo?
- Não.
- O senhor descobriu sobre o recibo antes ou depois de prender Lisa Trammel pelo homicídio?
- Depois. Mas havia outra prova para ap...
- Obrigado, detetive. Apenas responda à questão que eu lhe fiz, se não se importa.
- Eu não me importo de dizer a verdade.
- Ótimo. É para isso que estamos aqui. Agora, o senhor não concordaria que prendeu Lisa Trammel com base em declarações inconsistentes e contraditórias que mais
tarde se revelaram ser, na verdade, consistentes e não em contradição com a prova e os fatos do caso?
Kurlen respondeu como que mecanicamente.
- Tínhamos uma testemunha que a situou próximo à cena do crime no momento do crime.
- E isso é tudo que tinham, correto?
- Havia mais provas que a ligavam ao assassinato. Nós tínhamos o martelo dela e...
- Estou falando sobre o momento da prisão! - exclamei. - Por favor, responda à pergunta que fiz, detetive!
- Ei! - exclamou o juiz. - Só existe uma pessoa com permissão de erguer a voz nesta sala de tribunal, doutor Haller, e essa pessoa não é o senhor.
- Lamento, Excelência. Pode por favor instruir a testemunha a responder às perguntas que lhe são feitas, e não dizer coisas que não foram perguntadas?
- Considere a testemunha advertida. Prossiga, doutor Haller.
Fiz uma longa pausa para me recompor e passei os olhos pelo júri. Estava procurando alguma reação de simpatia, mas não vi nenhuma. Nem mesmo de Furlong, que não
cruzou o olhar comigo. Voltei a encarar Kurlen.
- O senhor acabou de mencionar o martelo. O martelo da acusada. Essa era uma prova que o senhor não possuía no momento da prisão, correto?
- Correto.
- Não é verdade que uma vez que o senhor fez a prisão e se deu conta de que as declarações inconsistentes sobre as quais se apoiava não eram de fato inconsistentes,
o senhor começou a procurar provas que se encaixassem em sua teoria sobre o caso?
- Não tem nada de verdade nisso. Tínhamos a testemunha, mas continuávamos com uma visão bem aberta do caso. Ninguém estava usando viseira. Para mim teria sido uma
satisfação retirar as acusações contra a acusada. Mas a investigação estava em andamento e as provas que começamos a acumular e avaliar não limpavam a barra dela.
- Não só isso como vocês tinham um motivo, também, não é?
- A vítima conduzia uma execução hipotecária contra a residência da acusada. No que diz respeito a motivos, esse me parecia bem forte.
- Mas o senhor não estava por dentro dos detalhes dessa execução, só que havia uma execução em andamento, correto?
- Isso, e de que havia uma ordem de restrição temporária contra ela, também.
- O que o senhor quer dizer é que a ordem de restrição era um motivo para ela matar Mitchell Bondurant?
- Não, não é isso que estou dizendo, e não foi isso que quis dizer. Só estou dizendo que isso era parte do panorama geral.
- O panorama geral a essa altura chegando àquele ponto de pressa para haver um julgamento, certo, detetive?
Freeman ficou de pé rapidamente, protestou e o juiz deferiu. Tudo bem, por mim. Não estava interessado na resposta de Kurlen para a pergunta. Eu só queria enfiar
a questão na cabeça de cada um, ali no júri.
Verifiquei a parede do fundo na sala do tribunal e vi que eram três e meia. Falei para o juiz que iria mudar de direção em minha contrainquirição, e que talvez fosse
um bom momento para o intervalo da tarde. O juiz concordou e dispensou o júri por 15 minutos.
Recostei na mesa da defesa, minha cliente levou a mão ao meu antebraço e deu um forte aperto.
- Você está se saindo muito bem! - sussurrou.
- Vamos ver. Ainda tem muita água pra rolar.
Ela empurrou a cadeira para ficar de pé.
- Vai sair para um café? - perguntou.
- Não, preciso fazer uma ligação. Pode ir. Só não esquece que é proibido conversar com a imprensa. Não fala com ninguém.
- Eu sei, Mickey. Em boca fechada não entra mosca.
- Isso mesmo.
Ela se afastou da mesa e fiquei olhando conforme deixava a sala do tribunal. Não vi seu inseparável companheiro, Herb Dahl, em parte alguma.
Peguei meu celular e liguei para o celular de Cisco. Ele atendeu na mesma hora.
- Meu tempo está no fim, Cisco. Preciso da carta.
- Tá na mão.
- Como assim, confirmado?
- É legítima, cem por cento.
- Sorte sua que a gente está falando no telefone.
- Por que, chefe?
- Porque eu podia te dar um beijo na boca agora mesmo.
- Hum, acho que não.
Vinte e oito
Usei os últimos poucos minutos do intervalo para preparar a segunda parte de minha contrainquirição de Kurlen. A novidade de Cisco iria sacudir todo o tribunal.
O modo como eu ia lidar com a nova informação diante de Kurlen traria impacto pelo restante do julgamento. Não demorou para que todos estivessem de volta à sala,
e eu me visse junto ao atril e pronto para prosseguir. Havia ainda um último ponto em minha lista para tratar antes de passar à carta.
- Detetive Kurlen, vamos voltar à foto da cena do crime que o senhor viu na tela. O senhor identificou a quem pertencia a pasta que foi encontrada aberta, perto
do corpo da vítima?
- Sim, tinha pertences da vítima dentro e as inicias dele gravadas na fechadura de metal. Era dele.
- E quando o senhor chegou à cena do crime e viu a pasta aberta perto do corpo, quais foram suas impressões iniciais dela?
- Nenhuma. Eu tento manter a mente aberta para todas as possibilidades, principalmente quando o caso está no começo.
- O senhor chegou a pensar que a pasta aberta podia significar que um roubo fora o motivo do assassinato?
- Entre muitas possibilidades, sim.
- O senhor pensou: aqui está este bancário morto e com uma pasta aberta junto ao corpo. Atrás do que será que o assassino estava?
- Tive de pensar nisso como um cenário possível. Mas eu disse que f...
- Obrigado, detetive.
Freeman protestou, dizendo que eu não estava dando tempo à testemunha para responder à pergunta até o fim. O juiz concordou e permitiu que Kurlen terminasse.
- Eu só estava dizendo que a possibilidade de ter sido um roubo foi uma entre várias outras. Deixar a pasta aberta pode facilmente ter sido apenas uma jogada para
fazer parecer que era um roubo, quando não era.
Mantive o ritmo sem perder um segundo.
- Vocês determinaram o que foi tirado da pasta?
- Até onde sabíamos naquele momento, e sabemos agora, nada foi tirado. Mas não tínhamos um inventário do que deveria estar na pasta. Pedimos à secretária do senhor
Bondurant que verificasse seus arquivos e material de trabalho e tentasse determinar se havia alguma coisa faltando, como uma pasta de documentos ou algo assim.
- Então o senhor tem alguma explicação para o motivo de ter sido deixada aberta?
- Como eu já disse, pode ter sido feito para despistar. Mas também acreditamos haver uma boa chance de que a pasta abriu sozinha quando caiu no piso de concreto,
durante o ataque.
Fiz uma expressão de incredulidade.
- E como determinaram uma coisa dessas, detetive?
- Ela tinha um mecanismo de trava com defeito. Qualquer movimento brusco da pasta podia fazer com que abrisse. Conduzimos experimentos com ela e descobrimos que
quando deixada cair numa superfície dura de uma altura de um metro ou mais, caía aberta em uma de cada três vezes.
Balancei a cabeça e agi como se estivesse recebendo essa informação pela primeira vez, mesmo já sabendo de tudo isso pelos relatórios da investigação entregues com
a publicação compulsória.
- Então o que o senhor está dizendo é que havia uma em três chances de que a pasta tivesse se aberto sozinha quando o senhor Bondurant a deixou cair.
- Correto.
- E o senhor chama isso de uma boa chance, correto?
- Uma chance sólida.
- E é claro que havia uma chance ainda maior de que não foi assim que a pasta ficou aberta, correto?
- Pode interpretar desse modo.
- Há uma chance ainda maior de que alguém abriu a pasta, correto?
- Outra vez, pode interpretar dessa forma. Mas nós determinamos que não havia nada faltando na pasta, então não havia motivo aparente para que ela tivesse sido aberta,
a não ser criar um despistamento ou algo assim. Trabalhamos com a teoria de que ela abriu sozinha quando caiu.
- O senhor nota na foto da cena do crime, detetive, que nenhum conteúdo da pasta caiu para fora, ou no chão?
- Correto.
- O senhor tem um inventário da pasta aí em seu fichário que possa ler para nós?
Kurlen procurou por algum tempo e então leu para o júri. A maleta continha seis pastas de documentos, cinco canetas, um iPad, uma calculadora, uma agenda de endereços
e duas cadernetas em branco.
- Quando o senhor conduziu seus testes, em que deixou cair uma pasta no chão para verificar a possibilidade de que caísse aberta, o conteúdo era o mesmo?
- Tinha um conteúdo similar, isso.
- E das vezes em que a pasta caiu aberta, quantas vezes o conteúdo todo continuou dentro dela?
- Não todas as vezes, mas na maioria. Definitivamente, podia ter acontecido.
- Foi essa a conclusão científica de seu experimento científico, detetive?
- Isso foi feito no laboratório. Não foi meu experimento.
Com uma caneta e um ostensivo floreio de pulso, fiz várias marcas de checado em meu bloco de anotações. Então passei a explorar o caminho mais importante em minha
contrainquirição.
- Detetive - eu disse -, o senhor nos contou um pouco antes que recebeu um relatório de avaliação de ameaças do WestLand National e que ele continha informação sobre
a acusada. O senhor verificou cada um dos outros nomes que havia nessa lista?
- Repassamos a lista várias vezes e fizemos um acompanhamento limitado. Mas como as provas apontavam para a acusada, achamos que havia cada vez menos necessidade
de fazer isso.
- Os senhores não iam sair por aí perseguindo quimeras quando tinham uma suspeita já nas mãos, não é?
- Eu não diria dessa forma. Nossa investigação foi completa e exaustiva.
- Por acaso essa investigação completa e exaustiva inclui perseguir alguma outra pista a qualquer momento que não envolva Lisa Trammel como suspeita?
- Claro. Faz parte do trabalho.
- Vocês verificaram o material de trabalho do senhor Bondurant e procuraram alguma pista que não levasse a Lisa Trammel?
- Claro que sim.
- O senhor testemunhou sobre investigar ameaças feitas contra a vítima neste caso. O senhor investigou alguma ameaça que ele tenha feito contra outros?
- Em que a vítima ameaçou alguma outra pessoa? Não que eu me lembre.
Pedi a permissão do tribunal para me aproximar da testemunha com a Prova da Defesa número 2. Entreguei cópias para todas as partes. Freeman protestou, mas era algo
pro forma, nada mais. A questão relativa à carta de Bondurant para se queixar com Louis Opparizio já fora decidida durante as argumentações que precederam o julgamento.
Perry ia permitir, quanto mais não fosse, para igualar o placar por ter permitido ao estado introduzir o martelo e o DNA. Ele indeferiu a objeção de Freeman e me
instruiu a prosseguir.
- Detetive Kurlen, o senhor tem nas mãos uma carta registrada pelo correio de Mitchell Bondurant, a vítima, para Louis Opparizio, presidente da ALOFT, um escritório
de cobrança terceirizado a serviço do WestLand National. Poderia por favor ler a carta para o júri?
Kurlen ficou olhando para a carta que lhe entreguei por um longo tempo antes de ler.
- “Caro Louis, anexa o senhor encontrará correspondência de um advogado chamado Michael Haller que está representando o proprietário do imóvel em um dos casos de
execução hipotecária que seu escritório administra para o WestLand. Seu nome é Lisa Trammel e o número do financiamento é zero-quatro-zero-nove-sete-um-nove. A hipoteca
foi contraída conjuntamente por Jeffrey e Lisa Trammel. Em sua carta, o sr. Haller faz alegações de que a pasta está repleta de atos fraudulentos perpetrados no
caso. O senhor vai notar que ele lista exemplos específicos, todos os quais foram empreendidos pela ALOFT. Como o senhor deve estar ciente, e já discutimos, têm
havido outras queixas. Essas novas alegações contra a ALOFT, se verdadeiras, deixam o WestLand numa posição vulnerável, especialmente considerando o recente interesse
do governo nesse aspecto do negócio das hipotecas. A menos que cheguemos a alguma espécie de acordo e acomodação com relação a esse assunto, recomendarei à diretoria
que o WestLand rescinda o contrato com sua firma e que quaisquer negociações em andamento sejam encerradas. Essa ação exigiria também que o banco impetrasse um SAR
junto às autoridades competentes. Queira ter a gentileza de entrar em contato comigo assim que possível para discutirmos o assunto mais detidamente.”
Kurlen estendeu a carta para mim, como se o assunto estivesse encerrado. Ignorei o gesto.
- Obrigado, detetive. Bem, a carta menciona a obtenção de um SAR. O senhor sabe do que se trata?
- Relatório de atividade suspeita. Todos os bancos são obrigados a entrar com um junto à Federal Trade Commission se uma atividade assim chama a atenção deles.
- O senhor chegou a ver a carta que está em sua mão antes, detetive?
- Sim, já vi.
- Quando?
- Quando estava verificando o material de trabalho da vítima. Eu notei a carta.
- Pode fornecer uma data de quando isso aconteceu?
- Não uma data exata. Eu diria que fiquei sabendo desta carta umas duas semanas depois que a investigação começou.
- E isso teria sido duas semanas depois que Lisa Trammel já estava presa pelo assassinato. Quando ficou sabendo da carta, o senhor conduziu uma investigação mais
aprofundada, talvez conversando com Louis Opparizio?
- A certa altura, fiz algumas investigações e descobri que o senhor Opparizio tinha um álibi sólido para a hora do crime. Deixei por isso mesmo.
- E quanto às pessoas que trabalham para o senhor Opparizio? Elas tinham álibis?
- Não sei.
- O senhor não sabe?
- Isso mesmo. Não fui atrás disso porque parecia ser uma discussão de negócios, e não um motivo legítimo para assassinato. Eu não vejo esta carta como uma ameaça.
- O senhor não considera incomum que nesses dias de comunicação instantânea a vítima tenha escolhido uma carta registrada, em vez de um e-mail, uma mensagem de texto
ou um fax?
- Na verdade, não. Havia um monte de cópias de cartas enviadas pelo correio e registradas. Parecia ser um jeito normal de fazer negócio e manter um controle da comunicação.
Balancei a cabeça. Ele tinha razão.
- Sabe se o senhor Bondurant algum dia impetrou um relatório de atividade suspeita referente a Louis Opparizio e sua empresa?
- Verifiquei com a Federal Trade Commission. Ele não fez isso.
- O senhor verificou com alguma outra agência do governo para ver se Louis Opparizio ou sua empresa eram objeto de alguma investigação?
- O melhor que pude. Não achei nada.
- O melhor que o senhor pôde... e então a coisa toda pareceu um beco sem saída para o senhor, correto?
- Correto.
- O senhor checou com a FTC e verificou o álibi de um homem, mas depois deixou de lado. O senhor já contava com uma suspeita e o caso contra ela era fácil e simplesmente
parecia ter todas as peças no lugar, correto?
- Um caso de homicídio nunca é fácil. Você precisa ser meticuloso. Não pode deixar nada por investigar, nenhuma pedra sem virar.
- E quanto ao Serviço Secreto dos Estados Unidos? Essa pedra ficou sem virar?
- Serviço Secreto? Não sei se entendi o que o senhor quer dizer.
- O senhor teve alguma interação com o Serviço Secreto dos Estados Unidos durante essa investigação?
- Não, não tive.
- E quanto ao Gabinete da Procuradoria-Geral dos Estados Unidos em Los Angeles?
- Eu, não. Não posso falar por minha parceira ou pelos outros colegas que trabalharam no caso.
Era uma boa resposta, mas não boa o bastante. Em meu campo de visão periférico pude perceber que Freeman se movera para a beirada da cadeira, pronta para o momento
certo de protestar contra minha linha de questionamento.
- Detetive Kurlen, o senhor sabe o que é uma carta-alvo federal?
Freeman ficou de pé antes mesmo que Kurlen tivesse oportunidade de responder. Ela protestou e solicitou uma conferência com o juiz.
- Acho que é melhor nos dirigirmos à minha sala para tratar disso - disse Perry. - Quero que o júri e os funcionários do tribunal permaneçam em seus lugares enquanto
me reúno com os advogados. Doutor Haller, doutora Freeman, vamos.
Peguei um documento e o envelope anexo em uma de minhas pastas e segui Freeman na direção da porta que levava à sala do juiz. Eu tinha confiança de que ou estava
prestes a fazer o caso pender na direção da defesa ou a caminho de ser preso por desacato.
Vinte e nove
Ojuiz Perry não estava nada feliz. Nem se deu ao trabalho de ir para trás de sua mesa e sentar. Entramos na sala e ele na mesma hora virou para mim e cruzou os braços
diante do peito. Encarou-me e aguardou que a estenógrafa sentasse e arrumasse a máquina antes de falar.
- Certo, doutor Haller, aposto que a doutora Freeman está protestando porque é a primeira vez que ela ouviu a respeito do Serviço Secreto, do Gabinete da Procuradoria-Geral,
de uma carta-alvo federal, e sobre o que tudo isso pode ou não ter a ver com o caso. Eu mesmo faço uma objeção, porque pelo que me lembro é a primeira vez que é
feita qualquer menção ao governo federal e não vou permitir que o senhor aponte sua metralhadora giratória para o governo diante do júri. Agora, se tem alguma coisa
a oferecer, quero a prova neste exato instante, e depois quero saber por que a doutora Freeman não está sabendo nada a respeito.
- Obrigado, Excelência - disse Freeman com indignação, as mãos na cintura.
Tentei acalmar um pouco a situação afastando-me casualmente de nosso grupo muito próximo e indo na direção da janela com a vista que descortinava a encosta das montanhas
Santa Monica. Dava para ver as casas de vigas em balanço ao longo da crista. Pareciam caixas de fósforo prontas para cair com o primeiro terremoto. Eu sabia como
era a sensação, ficar na beira do precipício.
- Excelência, meu escritório recebeu um envelope remetido anonimamente pelo correio que continha uma cópia de uma carta-alvo federal endereçada a Louis Opparizio
e à ALOFT. A carta o informava que ele e sua empresa eram alvo de uma investigação sobre práticas de execução hipotecária fraudulentas perpetradas em nome de seus
clientes, os bancos.
Ergui o documento e o envelope.
- Estou com a carta bem aqui. Está datada de duas semanas antes do assassinato e apenas oito dias depois da carta de Bondurant queixando-se com Opparizio.
- Quando você recebeu esse envelope supostamente anônimo? - perguntou Freeman, a voz carregada de ceticismo.
- Chegou ontem em minha caixa de correio, mas só foi aberta à noite. Se a doutora não acredita, posso chamar minha gerente do escritório aqui para responder a qualquer
pergunta que quiser. Ela é quem cuida da correspondência.
- Deixe-me dar uma olhada - pediu o juiz.
Passei a carta e o envelope para o juiz Perry. Freeman se aproximou para ler também. Era uma carta breve e logo ele me devolveu sem perguntar a Freeman se ela terminara
de ler.
- O senhor deveria ter trazido isso hoje de manhã - disse o juiz. - Deveria pelo menos ter fornecido uma cópia para a promotoria e avisado que planejava introduzir
a carta.
- Meritíssimo, é o que eu teria feito, mas isso é claramente uma fotocópia, e veio pelo correio. Já fui passado pra trás, antes. Provavelmente, todo mundo aqui já
foi. Eu precisava verificar o documento e ter certeza de que era legítimo antes de anunciar para quem quer que fosse. Só recebi a confirmação há menos de uma hora,
durante o intervalo da tarde.
- Qual foi a fonte da confirmação? - perguntou Freeman antes que o juiz tivesse chance.
- Não sei exatamente os detalhes. Meu investigador simplesmente me informou que a carta foi confirmada pelos federais como sendo legítima. Se quer mais detalhes,
posso chamar meu investigador também.
- Isso não será necessário, porque tenho certeza de que a doutora Freeman vai querer investigar por conta própria e fazer a devida diligência. Mas apresentá-la na
contrainquirição passou dos limites, doutor Haller. O senhor deveria ter informado o tribunal hoje de manhã de que havia recebido algo pelo correio que estava no
processo de checar, e que planejava sua introdução no julgamento. O senhor pegou o estado e o tribunal de calças curtas.
- Peço desculpas, Excelência. Minha intenção era agir do modo apropriado em relação ao documento. Acho que aprendi com o exemplo, vendo como o estado me pegou de
calças curtas pelo menos duas vezes com provas surpresa, detalhes oportunos e cadeias de custódia.
Perry me fitou duramente, mas eu sabia que o recado estava dado. No fim das contas, eu acreditava que era um magistrado justo e que agiria de acordo. Ele sabia que
a carta era legítima e vital para a estratégia da defesa. Por uma questão básica de julgamento justo, eu fizera por merecer o direito de utilizá-la. Freeman interpretava
dessa mesma forma e tentava convencer o juiz.
- Excelência, são 4h15. Solicito que a sessão seja adiada pelo restante do dia, de modo que a promotoria possa digerir esse novo material e se preparar adequadamente
para dar prosseguimento pela manhã.
Perry balançou a cabeça.
- Não gosto de desperdiçar o tempo do tribunal.
- Nem eu tampouco, Meritíssimo - respondeu Freeman. - Mas não há dúvida, como o senhor mesmo disse, de que fui pega de calças curtas aqui. O doutor deveria ter trazido
essa informação hoje de manhã. Vossa Excelência não pode permitir que ele continue simplesmente sem que a promotoria esteja preparada e conduza sua própria confirmação
e devida diligência quanto ao contexto da informação. Estou pedindo apenas 45 minutos, Meritíssimo. Sem dúvida o estado tem esse direito.
O juiz olhou para mim, à espera de um contra-argumento. Mostrei a palma das mãos.
- Para mim não faz diferença, Meritíssimo. Ela pode ter todo o tempo do mundo, mas isso não muda o fato de que Opparizio estava e está sob investigação federal por
causa desse negócio com o WestLand, entre outros bancos. Isso tornaria a vítima neste caso uma potencial testemunha contra ele, a carta que introduzimos há pouco
deixa bem claro. A polícia e a promotoria deixaram escapar completamente esse aspecto do caso e agora a doutora Freeman quer jogar a culpa em cima do mensageiro
porque não foram a fund...
- Ok, doutor Haller, não estamos mais na frente do júri - disse Perry, me interrompendo. - Entendo seu argumento. Vou encerrar mais cedo hoje, mas começaremos às
nove em ponto amanhã e espero que todas as partes estejam preparadas e prontas para começar sem mais adiamentos.
- Obrigada, Excelência - disse Freeman.
- Vamos voltar - disse Perry.
E voltamos.
Minha cliente se pendurava em mim ao deixarmos a sala do tribunal. Ela queria saber que outros detalhes eu tinha sobre a investigação federal. Herb Dahl seguia logo
atrás, como o rabo de um papagaio. Eu me sentia desconfortável conversando com ambos.
- Olha, não sei o que isso quer dizer, Lisa. Esse é um dos motivos para o juiz ter interrompido mais cedo hoje. Para que tanto a defesa como a promotoria possam
trabalhar um pouco nisso. Você só precisa ter um pouco de paciência e deixar que eu e minha equipe cuidemos do assunto.
- Mas pode ser por isso, não pode, Mickey?
- Como assim, “por isso”?
- A prova que mostra que não fui eu... que justifica isso!
Parei e virei para ela. Seus olhos passearam por meu rosto à procura de algum sinal de confirmação. Alguma coisa em seu desespero me fez pensar pela primeira vez
que havia sido de fato vítima de uma armação pelo assassinato de Bondurant.
Mas não faz muito meu tipo acreditar na inocência.
- Olha, Lisa, espero que isso demonstre muito claramente para o júri que há uma possibilidade alternativa forte, com motivo, oportunidade e tudo o mais. Mas você
precisa se acalmar e aceitar que também pode não ser prova de coisa alguma. Eu tô esperando a promotoria aparecer amanhã com um argumento para manter isso longe
do júri. A gente precisa estar preparado para contra-atacar, assim como para continuar sem isso. Então eu tenho um mont...
- Eles não podem fazer isso! Isso é prova!
- Lisa, eles podem argumentar o que bem entenderem. E o juiz vai decidir. A boa notícia é que ele está em dívida com a gente. Na verdade, a dívida é dupla, pelo
martelo e pelo DNA que caíram do céu. Então espero que ele faça a coisa certa nessa questão e permita o uso no julgamento. É por isso que você precisa me deixar
ir agora mesmo. Preciso voltar para o escritório e começar a trabalhar nisso.
Ela levou a mão à minha gravata para arrumar um pouco, depois ajustou o colarinho de meu terno.
- Certo, entendi. Faz o que você tiver que fazer, mas me liga hoje à noite, tá? Quero saber em que pé estão as coisas no fim do dia.
- Se der tempo, Lisa. Se eu não estiver cansado demais, eu ligo.
Olhei por cima de seu ombro para Dahl, que estava a meio metro dela. Na verdade eu até precisava do sujeito naquele momento.
- Herb, toma conta dela. Leva ela pra casa, assim eu posso trabalhar.
- Pode deixar - ele disse. - Sem preocupação.
É, sem preocupação. Eu tinha o caso todo com que me preocupar e não podia deixar de me preocupar com minha cliente indo embora com o sujeito que eu acabara de mandar
acompanhá-la. As intenções de Dahl seriam sinceras ou ele estava apenas protegendo seu investimento? Fiquei olhando ambos atravessarem a praça na direção do estacionamento.
Depois tomei a direção norte, passando pela biblioteca para chegar ao meu escritório. Eu provavelmente estava mais animado do que Lisa com as possibilidades que
caíram em meu colo. Apenas não demonstrava. Você nunca deve mostrar suas cartas, a menos que seu oponente tenha pago para ver.
Quando voltei ao escritório, eu ainda flutuava na adrenalina. A forma pura, de alta octanagem, que vem quando uma mudança inesperada ocorre a seu favor. Cisco e
Bullocks esperavam por mim quando entrei. Ambos começaram a falar ao mesmo tempo e tive de erguer as mãos para fazer com que parassem.
- Calma, calma - eu disse. - Um de cada vez, e eu primeiro. Perry encerrou a sessão mais cedo hoje, para que o estado possa cuidar da carta. A gente precisa estar
pronto para o melhor contra-ataque que eles vão ser capazes de preparar, porque eu quero mostrar a carta de qualquer jeito para o júri. Cisco, você, o que conseguiu?
Me fala sobre a carta.
Eu vinha no embalo desde a sala do tribunal, então acabei arrastando todo mundo junto comigo até meu escritório e fui sentar atrás de minha mesa. A cadeira estava
quente e dava para perceber que alguém trabalhara ali a tarde toda.
- Ok - disse Cisco. - Confirmamos que a carta era legítima. A Procuradoria não quis conversa com a gente, mas eu descobri que o agente do Serviço Secreto que aparece
na carta, Charles Vasquez, está destacado para uma força-tarefa conjunta com o FBI que investiga todo tipo de fraude hipotecária ocorrendo no distrito do sul da
Califórnia. Lembra do ano passado, quando todos os grandes bancos temporariamente pararam com as execuções e todo mundo no Congresso disse que ia investigar?
- Lembro, achei que eu ia ficar sem trabalho. Até que os bancos começaram a realizar execuções outra vez.
- É, bom, uma das investigações que de fato foi em frente estava bem aqui. Lattimore juntou sua força-tarefa.
Reggie Lattimore foi o advogado americano indicado para o distrito. Eu o conheci anos antes, quando era um defensor público. Mais tarde ele trocou de lado e se tornou
um promotor federal, e passamos a orbitar mundos diferentes. Eu tentava manter distância do tribunal federal. Eu o via de tempos em tempos no horário do almoço,
pelos balcões do centro.
- Certo, ele não vai conversar conosco. E quanto a Vasquez?
- Eu tentei com ele também. Cheguei a falar com ele pelo telefone, mas assim que percebeu do que se tratava, não fez nenhum comentário. Liguei de novo uma segunda
vez e ele simplesmente bateu o telefone na minha cara. Acho que se a gente quiser falar com ele vai precisar intimar.
Eu sabia por experiência que tentar entregar uma intimação para um agente federal seria como pescar sem anzol na ponta da linha. Se eles não querem ser intimados,
dão um jeito de evitar.
- Talvez a gente não precise - eu disse. - O juiz encerrou mais cedo para que a promotoria possa checar a carta. Meu palpite é que ela vai trazer Lattimore ou Vasquez
para o julgamento antes que a gente tenha uma chance. Daí ela pode tentar torcer a história do jeito que for melhor para ela.
- Ela não vai querer esse negócio estourando na cara dela durante a fase da defesa - acrescentou Aronson, como a calejada veterana de tribunais que não era. - E
a melhor maneira de se proteger contra isso é trazer Vasquez para ser uma testemunha dela mesma.
- O que a gente sabe sobre essa força-tarefa? - perguntei.
- Não tenho ninguém do lado de dentro - disse Cisco. - Mas tenho alguém perto o bastante para saber o que está acontecendo. A força-tarefa é muito política, obviamente.
O consenso era que tinha tanta fraude comendo solta por aí que seria como pescar num aquário, e que eles podiam conseguir algumas manchetes e parecer que estavam
tomando alguma atitude em relação a toda essa sujeira. Opparizio é um alvo perfeito: rico, arrogante, republicano. Seja lá o que estiverem fazendo em relação a ele,
está só no começo e ainda não foi muito fundo.
- Não faz diferença - eu disse. - A carta-alvo é tudo de que a gente precisa. Vai fazer a carta de Bondurant parecer uma ameaça legítima.
- Você acha mesmo que foi isso que aconteceu ou a gente só está aproveitando a coincidência para desviar a atenção do júri? - perguntou Aronson.
Ela continuava de pé, ainda que Cisco e eu já estivéssemos sentados. Havia algum simbolismo aí. Como se, por não sentar conosco conforme tramávamos aquilo, não estivesse
aceitando o jogo nem vendendo sua alma.
- Não faz diferença, Bullocks - eu disse. - A gente tem um trabalho por aqui, e se trata de colocar um “inocente” no placar. De que forma a gente vai chegar lá...
Não precisei terminar. Dava para perceber por sua expressão que continuava tendo dificuldade com as lições que estava aprendendo fora da sala de aula. Virei outra
vez para Cisco.
- Então, quem foi que vazou a carta para nós?
- Isso eu não sei - ele disse. - Duvido que tenha sido Vasquez. Ele parecia surpreso demais e muito nervoso no telefone. Estou achando que foi alguém na Procuradoria.
Concordei.
- Talvez o próprio Lattimore. Se tivermos sorte bastante de pôr Opparizio no banco das testemunhas, pode ser que na verdade ajude os federais o fato de ter o homem
amarrado com um depoimento juramentado.
Cisco balançou a cabeça. Era uma possibilidade tão boa quanto qualquer outra, só isso. Continuei:
- Cisco, a mensagem que você me mandou no tribunal dizia que tinha algo não relacionado com essa história para me contar.
- Para mostrar. A gente precisa dar uma volta quando encerrar por aqui.
- Ir aonde?
- Prefiro que você veja.
Dava para perceber pelo jeito como seu rosto ficou impassível que não ia falar na frente de Bullocks. Não fazia diferença que ela fosse parte da equipe. Recebi o
recado e voltei a virar para ela.
- Bullocks, você queria me dizer alguma coisa quando eu cheguei?
- Ahn, não, eu só queria falar sobre meu testemunho. Mas a gente tem alguns dias ainda antes de repassar isso. Acho que é melhor ver uma coisa de cada vez.
- Tem certeza? Dá pra conversar agora.
- Não, pode ir com o Cisco. Talvez a gente tenha algum tempo amanhã.
Dava para perceber que alguma coisa na conversa inicial a estava incomodando. Deixei para lá e levantei. Eu simpatizava com sua posição, mas não muito. Gente idealista
sempre tem um quê de fanatismo.
Trinta
Fomos no Lincoln, pois Cisco fora trabalhar de moto. Ele me orientou a tomar a direção norte, no Van Nuys Boulevard.
- Tem alguma coisa a ver com o marido de Lisa? - perguntei. - Você encontrou o cara?
- Ahn, não, não tem nada a ver com isso. É sobre os dois caras na garagem, chefe.
- Os caras que me atacaram? Você ligou eles com Opparizio?
- Sim e não. Tem a ver com eles, mas não liguei eles com Opparizio.
- Então quem foi que mandou aqueles dois atrás de mim, porra?
- Herb Dahl.
- O quê? Você só pode estar de sacanagem comigo.
- Bem que eu queria.
Olhei para o meu investigador. Eu confiava cegamente nele, mas não estava vendo lógica em Dahl pondo os dois brutamontes para me pegar. Havíamos tido aquela disputa
sobre o controle do filme e o dinheiro, mas como arrebentar minhas costelas e esmagar meus bagos podia ajudá-lo em alguma coisa? Na época do ataque, eu acabara de
descobrir que ele fizera o acordo com McReynolds. Eu fui espancado antes de sequer conseguir registrar um protesto.
- Você precisa explicar essa história direito pra mim, Cisco.
- Ainda não dá pra fazer isso. É por isso que a gente está aqui.
- Então me fala. O que tá acontecendo? Eu tô bem no meio de um julgamento.
- Ok, você me disse que não confiava em Dahl e que eu devia dar uma checada nele. Fiz isso. Também mandei alguns caras de minha confiança ficarem de olho nele.
- Por caras de confiança você quer dizer os Saints?
- Isso mesmo.
No passado, muito antes de se casar com Lorna, Cisco andava com os Road Saints, um clube de motoqueiros que se situava em algum ponto do espectro entre os Hell’s
Angels e os palhaços sobre rodas da fraternidade Shriners. De algum modo ele conseguiu deixar o grupo sem ficar com ficha criminal e agora ainda mantinha a ligação
com o clube. Por algum tempo eu também fiz isso, servindo de advogado interno e cuidando de vários delitos de trânsito, brigas e posse de drogas envolvendo seus
membros. Foi assim que vim a conhecer Cisco. Ele realizava investigações de segurança para o clube e comecei a usá-lo nos casos criminais que surgiam. O resto todo
mundo já sabe.
Em mais de uma ocasião ao longo dos anos Cisco empregara os Saints a meu serviço. Eu chegava até a lhes dar o crédito por ter salvado minha família de um potencial
perigo quando me envolvi com o caso de Louis Roulet. De modo que não foi uma surpresa para mim que tivesse voltado a recorrer aos antigos colegas, exceto pelo fato
de que não se dera ao trabalho de me informar a respeito.
- Por que não me contou?
- Não queria complicar as coisas para o seu lado. Você já tem o caso com que se preocupar. Eu estava cuidando dos dois vagabundos que deixaram você naquele estado.
Com isso ele queria dizer mais do que fisicamente. Ele estava me mantendo afastado das coisas porque sabia que às vezes o lado psicológico pesa até mais do que o
físico após a violência. Ele não me queria desestabilizado ou paranoico.
- Ok, entendi - eu disse.
Cisco levou a mão ao bolso interno da jaqueta preta de couro e puxou uma fotografia dobrada. Ele passou para mim e esperei até parar no semáforo da Roscoe, antes
de olhar. Desdobrei e vi uma foto de Herb Dahl entrando em um carro com os dois capangas de luvas pretas que haviam me deixado facilmente no chão do estacionamento,
no Victory Building.
- Reconhece? - perguntou Cisco.
- É, são eles - eu disse, a raiva subindo por minha garganta. - Aquele filho da puta do Dahl, eu vou acabar com a raça dele.
- Vamos ver. Vira à esquerda aqui. Estamos indo para a sede.
Olhei por cima do ombro e mudei para a faixa da esquerda assim que o sinal abriu e recebi sua indicação. Fomos na direção oeste e tive de baixar o protetor, por
causa do sol na minha cara, no fim do dia. Por sede eu sabia que ele queria dizer o clube dos Saints, que ficava perto da cervejaria, do outro lado da 405 Freeway.
Já fazia algum tempo desde que eu estivera por lá.
- Quando essa foto foi tirada? - perguntei.
- Quando você estava no hospital. Eles n...
- Você vem escondendo isso de mim desde então?
- Relaxa. Eu não estava entrando em contato com meus caras diariamente, ok? Eles também não sabiam que você tinha sido agredido. Então viram o Dahl com esses caras,
tiraram umas fotos e esqueceram de me mostrar, porque demoraram mais de um mês para imprimir. Foi uma cagada, eu sei, mas esses caras não são profissionais. Eles
são preguiçosos. Eu assumo a responsabilidade por isso. Então se você precisa culpar alguém, pode me culpar. Eu vi a foto pela primeira vez ontem à noite. A outra
coisa é que meus caras me disseram que não fotografaram, mas eles também viram Dahl passando um rolo de dinheiro pra esses veados. Então acho que está bem claro.
Ele contratou os dois pra pegarem você, Mick.
- Filho da puta.
Eu fiquei presa da mesma sensação de desamparo que sentira quando um dos agressores prendera meu braço e me segurara enquanto o outro me acertava com os punhos.
Senti o suor brotando no meu couro cabeludo. E a dor simpática latejando em minhas costelas e meus testículos.
- Se pelo menos eu tivesse a chance de...
Parei e olhei para Cisco no banco ao lado. Um sorriso ligeiro brincava em seu rosto.
- É disso que se trata? Você está com esses dois na sede do clube?
Ele não respondeu, mas continuou sorrindo.
- Cisco, estou no meio de um julgamento e agora você vem me dizer que o cara que está botando as mãos no dinheiro da minha cliente foi quem armou para me... me atacar?
Não tenho tempo para isso, meu. Estou muito cheio d...
- Eles vão falar.
Isso me calou bem rápido.
- Você interrogou os dois?
- Negativo. Estava esperando você. Achei que devia ser o primeiro.
Dirigi em silêncio pelo resto do trajeto, considerando o que me aguardava. Não demorou para que estacionássemos diante do clube, no lado leste da cervejaria. Cisco
desceu para abrir o portão e o carro foi invadido na mesma hora pelo odor de fermentação da cerveja.
A sede do clube era cercada por um alambrado, com uma espiral de arame laminado correndo pelo topo. O prédio do clube, feito de blocos de concreto, e que ficava
no meio de um terreno baldio, parecia nada impressionante em comparação com a fileira reluzente de motos estacionadas na frente. Só Harleys e Triumphs. Nada de motocas
japonesas para aquela turma.
Entramos na sede, esperamos um momento até que nossos olhos se ajustassem e então vi Cisco se aproximar de um balcão com self-service de bebida, onde havia dois
sujeitos com roupa de couro, sentados.
- Prontos pra parada? - ele disse.
Os dois giraram nos banquinhos e ficaram de pé. Ambos passavam fácil dos 2 metros e de uns 130 quilos. Eram guarda-costas. Cisco os apresentou como Tommy Guns e
Bam Bam.
- Estão lá atrás - disse Tommy Guns.
Os dois nos conduziram por um corredor atrás do bar. Eram tão grandes que tinham de andar em fila indiana. Havia portas dos dois lados. Bam Bam abriu uma no meio
do corredor, do lado direito, e entramos numa sala sem janelas com as paredes e o teto pintados de preto e uma única lâmpada pendurada. Sob a luz fraca dava para
ver desenhos pintados nas paredes. Homens com barbas e cabelos compridos. Percebi que ali era uma espécie de capela em homenagem aos Saints do passado. Meu primeiro
pensamento ao chegar ao local foi Pulp Fiction. Meu segundo foi que eu não queria estar ali. Havia dois homens no chão, mãos e pés amarrados atrás do corpo. Estavam
com sacos pretos na cabeça.
Bam Bam abaixou e começou a tirar os sacos. Isso despertou um coro de gemidos e sons assustados vindos dos dois.
- Espera um minuto - eu disse. - Cisco, não posso estar aqui. Você está me pondo n...
- São eles? - disse Cisco, sem esperar que eu terminasse meu protesto. - Olha com cuidado. Você não vai querer se enganar.
- Eu? O engano não foi meu! Eu não pedi pra fazer isso!
- Calma. Você está aqui, então só dá uma olhada. São eles?
- Jesus Cristo!
Os dois estavam amordaçados com fita adesiva enrolada em volta da cabeça. Seus rostos estavam bem deformados pelo inchaço e os hematomas que já se formavam em torno
de seus olhos. Haviam levado uma surra. As feições não batiam com o que eu me lembrava do estacionamento no Victory Building, nem com a fotografia que Cisco me mostrara
antes. Abaixei para olhar mais de perto. Os dois ergueram os olhos para mim, a expressão dominada pelo medo.
- Não sei - eu disse.
- É sim ou não, Mick.
- Sei, mas eles não estavam se cagando de medo quando quebraram minha cara e não estavam amordaçados.
- Tira a fita - mandou Cisco.
Bam Bam se moveu, abrindo uma faca retrátil e cortando rudemente a fita que prendia o primeiro sujeito. Depois ele puxou, arrancando junto tufos de cabelos da nuca.
O homem ganiu de dor.
- Cala a boca! - gritou Tommy Guns.
O segundo sujeito aprendeu com o exemplo do colega. Aguentou o processo de remoção da fita sem um ai. Bam Bam jogou as mordaças num canto e foi para trás dos homens.
Agarrou o ponto central da corda que prendia braços e pernas e virou os dois de lado, de modo que eu pudesse ver melhor o rosto.
- Por favor, não mata a gente - disse um deles, a voz tensa de desespero. - Não foi pessoal. Pagaram a gente pelo serviço. A gente podia ter matado você, mas não
fez isso.
Subitamente o reconheci como o que falara comigo na garagem.
- São eles - eu disse, apontando. - Este foi o que conversou e este foi que bateu. Quem são?
Cisco balançou a cabeça como se a confirmação não passasse de uma formalidade.
- São irmãos. O que falou chama Joey Mack. O que bateu, ouve só, chama Angel Mack.
- Escuta, a gente nem faz ideia do que está rolando - berrou o primeiro. - Por favor, a gente cometeu um erro. A g...
- Pode apostar que cometeram um erro, caralho! - gritou Cisco, a voz trovejando na direção deles como a própria ira divina. - E agora vão pagar. Quem vai primeiro?
Angel começou a gemer. Cisco foi até uma mesa de carteado sobre a qual havia diversas ferramentas e armas, além do rolo de fita adesiva. Escolheu uma chave de grifo
e um alicate, então voltou. Imaginei e rezei para que fosse só teatro. Mas, se fosse, Cisco ia merecer um Oscar. Pus a mão em seu ombro e o detive antes que se aproximasse
dos dois sujeitos. Não precisei dizer coisa alguma, mas a mensagem foi clara. Deixa eu tentar tirar alguma coisa deles.
Peguei a chave de grifo de Cisco e me agachei como um jogador de beisebol na frente dos cativos. Ergui a ferramenta pesada em minha mão por alguns segundos, dando
uma boa avaliada no peso, antes de falar.
- Quem contratou vocês para me pegar?
Joey respondeu na mesma hora. Não estava interessado em proteger ninguém a não ser ele mesmo e seu irmão.
- Um cara chamado Dahl. Ele mandou a gente bater com vontade, mas falou que não era pra matar. Você não pode fazer isso, cara.
- Acho que posso fazer o que eu quiser. Como vocês conheceram o Dahl?
- A gente não conhece. Mas tinha uma ligação em comum.
- E quem é?
Sem resposta. Não precisei esperar muito até Bam Bam fazer jus ao seu apelido, abaixando e acertando os dois com um soco curto e forte no maxilar. Joey cuspia sangue
quando me deu o nome.
- Jerry Castille.
- E quem é Jerry Castille?
- Olha, você não pode falar com ninguém sobre isso.
- Você não está em posição de me dizer o que eu posso ou não posso fazer. Quem é Jerry Castille?
- É o representante na Costa Oeste.
Esperei, mas foi só.
- Não tenho a noite toda, cara. Representante do que na Costa Oeste?
O sujeito sangrando balançou a cabeça como se soubesse que havia um único jeito de continuar.
- De uma certa organização da Costa Leste. Sacou agora?
Olhei para Cisco. Herb Dahl tinha ligações com o crime organizado na Costa Leste? Parecia um pouco forçado.
- Não, não saquei - eu disse. - Sou advogado. Quero uma resposta direta. Que organização? Você tem exatamente cinco segundos ant...
- Ele trabalha pro Joey Giordano, do Brooklyn, ok? Agora você já fodeu com a gente de qualquer jeito. Então vai tomar no cu.
Ele se curvou para trás e cuspiu sangue em mim. Eu tinha deixado o paletó e a gravata no escritório. Baixei o rosto para minha camisa branca e vi uma mancha de sangue
bem na área que estaria coberta pela gravata.
- Isso aqui é uma camisa com monograma, seu veado.
Tommy Guns se colocou entre nós subitamente e escutei o impacto brutal de um punho no rosto, mas não vi nada devido ao tamanho enorme de suas costas. Então ele recuou
e pude ver Joey cuspindo alguns dentes.
- Camisa com monograma, cara - disse Tommy Guns, como que oferecendo uma explicação para a reação violenta.
Fiquei de pé.
- Ok, solta os dois - eu disse.
- Tem certeza? - disse Cisco. - Provavelmente vão voltar correndo pra esse filho da puta de Castille e contar tudo que sabemos.
Olhei para os dois homens no chão e abanei a cabeça.
- Não vão não. Se contarem que abriram o bico, os dois provavelmente morrem. Então solta e a gente faz de conta que nunca aconteceu nada. Eles vão sumir de circulação
até os hematomas desaparecerem. E essa história morre aí.
Curvei o corpo para olhar os dois mais de perto.
- É isso mesmo, não é?
- É - disse Joey, um inchaço do tamanho de uma bola de gude se formando em seu lábio superior.
Olhei para o irmão.
- É isso mesmo? Quero ouvir da boca dos dois.
- É, é isso - disse Angel.
Olhei para Cisco. Havíamos encerrado por ali. Ele deu a ordem.
- Ok, Guns, escuta. Espera até escurecer. Deixa eles aqui por enquanto e espera escurecer. Depois põe no saco e leva pra onde eles preferirem. Larga os caras lá,
mas deixa quieto. Entendeu?
- Tá, entendi.
Pobre Tommy Guns. Parecia verdadeiramente desapontado.
Dei uma última olhada nos sujeitos ensanguentados no chão. E eles olharam para mim. A sensação de ter suas vidas em minhas mãos era como uma corrente de eletricidade
passando por meu corpo. Cisco deu um tapinha em minhas costas e fui atrás dele ao deixar a sala, fechando a porta ao sair. Começamos a andar pelo corredor, mas pus
a mão no braço de meu investigador e o detive.
- Você não devia ter feito isso. Não devia ter me trazido aqui.
- Está brincando? Eu tinha de trazer você aqui.
- Do que você está falando? Por quê?
- Porque eles fizeram uma coisa com você. Por dentro. Você perdeu uma coisa, Mick, e se não conseguisse de volta não ia fazer nenhum bem pra você mesmo, nem pra
ninguém.
Fiquei encarando-o por um longo momento e então balancei a cabeça.
- Já consegui de volta.
- Beleza. Agora a gente não precisa nunca mais conversar sobre esse assunto outra vez. Pode me deixar no escritório para eu pegar minha moto?
- Claro. Sem problema.
Trinta e um
Sozinho no carro depois de deixar Cisco no estacionamento, fiquei pensando na lei magna e na lei das ruas e nas diferenças entre as duas. Frequentando os tribunais,
eu insistia na aplicação da lei magna de modo justo e apropriado. Não havia ocorrido nada de justo ou apropriado na reunião de que eu acabara de participar na sala
escura.
Mesmo assim, não me incomodei. Cisco tinha razão. Eu precisava voltar a me sentir numa posição de superioridade em meu íntimo antes de ser capaz de vencer no tribunal
ou onde quer que fosse. Me senti revigorado conforme andava. Abri todos os vidros do Lincoln e deixei que o ar da noite atravessasse o carro ao percorrer o Laurel
Canyon a caminho de casa.
Dessa vez Maggie usara sua chave. Já estava lá dentro quando cheguei, uma surpresa inesperada, mas agradável. A porta da geladeira estava aberta e ela se curvava
para ver o que havia ali.
- Na verdade eu vim só porque você sempre costumava estocar comida antes de um julgamento. Sua geladeira parecia o corredor dos frios no supermercado Gelson’s. Mas
o que aconteceu? Não tem nada aqui.
Deixei cair minhas chaves sobre a mesa. Ela passara primeiro em sua casa e havia trocado de roupa. Estava usando jeans, blusa camponesa e sandálias com sola grossa
de cortiça. Ela sabia que eu gostava quando se vestia assim.
- Acho que não tive tempo pra isso, dessa vez.
- Bom, se eu soubesse... Podia ter considerado ir em algum outro lugar na minha única noite livre esta semana com uma babá.
Ela sorriu com malícia. Eu não conseguia pensar nos motivos para não estarmos mais morando juntos.
- Que tal dar um pulo no Dan’s?
- Dan Tana’s? Achei que você só fosse lá depois de ganhar um caso. Já está contando com a vitória, Haller?
Sorri e balancei a cabeça.
- Não, de jeito nenhum. Mas se eu fosse lá só quando ganhasse, então dificilmente ia comer por lá.
Ela apontou um dedo para mim e sorriu. Era uma dança e estávamos ambos bem acostumados com isso. Fechou a geladeira, foi até a porta da cozinha e passou direto por
mim sem me dar um beijo.
- O Dan Tana’s abre tarde - disse ela.
Observei-a andar pelo corredor na direção do meu quarto. Ela tirou a blusa pela cabeça no momento em que entrava.
Não foi amor de verdade, o que fizemos. Alguma coisa no que eu vira e sentira na sala escura dos Saints continuava comigo. Chame de agressão residual ou de liberação
da raiva impotente que eu havia sentido. Fosse o que fosse, estava influindo em todos os meus gestos em relação a ela. Eu entrava e saía com força demais. Mordi
seu lábio e segurei seus pulsos acima da cabeça. Controlei-a e sabia que era apenas disso que se tratava enquanto o fazia. Maggie aceitou o jogo, de início. A novidade
provavelmente era interessante. Mas a curiosidade acabou por se transformar em preocupação, ela desviou o rosto do meu e lutou para libertar suas mãos. Segurei seus
pulsos com mais força. Finalmente, percebi lágrimas brotando em seus olhos.
- O que foi? - sussurrei em sua orelha, meu nariz fortemente pressionado contra seus cabelos.
- Termina logo - ela disse.
Toda agressividade, ímpeto e desejo escoaram pelo ralo psíquico depois disso. Suas lágrimas e suas palavras dizendo-me para terminar deixaram-me incapaz de fazê-lo.
Saí de dentro dela e me afastei, rolando para o lado, na cama. Pus um antebraço sobre os olhos, mas ainda podia sentir que ela me encarava.
- O que foi?
- Qual o problema com você hoje? Tem alguma coisa a ver com Andrea? Está descontando em mim pelo que está acontecendo no tribunal ou qualquer coisa assim?
Percebi que se levantava.
- Maggie, claro que não! O julgamento não tem nada a ver com isso.
- Então o quê?
Mas a porta do banheiro fechara antes que eu pudesse responder, e o chuveiro foi ligado imediatamente, interrompendo a conversa.
- Eu conto no jantar - eu disse, mesmo sabendo que ela não podia me escutar.
O Dan Tana’s estava lotado, mas Christian se aproximou e nos conseguiu rapidamente um reservado no canto esquerdo. Maggie e eu não conversamos no trajeto de 15 minutos
por West Hollywood. Eu havia tentado bater um papo sobre nossa filha, mas Maggie não estava a fim de conversa mole, então deixei por isso mesmo. Pensei em voltar
a tentar puxar assunto no restaurante.
Ambos pedimos o Steak Helen com massa para acompanhar. Molho Alfredo para ela e bolonhesa para mim. Maggie escolheu um tinto italiano e eu pedi uma garrafa de água
com gás. Depois que o garçom se afastou, estiquei a mão sobre a mesa e segurei seu pulso, com delicadeza, dessa vez.
- Desculpe, Maggie. Vamos começar do zero.
Ela retirou o braço.
- Você ainda me deve uma explicação, Haller. Aquilo não foi fazer amor. Não sei o que está acontecendo com você. Acho que ninguém merece ser tratado daquele jeito,
muito menos eu, principalmente.
- Maggie, acho que está exagerando um pouco. Por um tempo você até gostou, e eu sei que sim.
- E depois você começou a me machucar.
- Desculpe. Nunca tive essa intenção.
- E não tente dar a entender que foi uma coisa passageira. Se você pensa em voltar a ficar comigo um dia, melhor começar a me contar o que está acontecendo com você.
Balancei a cabeça e olhei para o lugar lotado. Passava um jogo dos Lakers na tevê, acima do balcão que dividia o ambiente. Havia três fileiras de pessoas acotoveladas
atrás dos felizardos que tinham conseguido um banquinho para sentar. O garçom trouxe nossas bebidas e ganhei um pouco mais de tempo. Mas, assim que ele deixou a
mesa, Maggie voltou à carga.
- Explica logo, Michael, ou vou pedir meu jantar para viagem. Eu pego um táxi.
Tomei um longo gole d’água e então olhei para ela.
- Não teve nada a ver com o julgamento, nem com Andrea Freeman, nem com ninguém ou nada que você saiba, tudo bem?
- Não, tudo bem nada. Explica logo.
Pousei meu copo e cruzei os braços sobre a mesa.
- Cisco encontrou os caras que me atacaram.
- Onde? Quem são eles?
- Isso não importa. Ele não chamou a polícia, não entregou os caras.
- Você quer dizer que deixou os caras irem embora, simplesmente?
Eu ri e balancei a cabeça.
- Não, ele segurou os dois. Ele e dois amigos dele dos Saints. Para mim. Nesse lugar que eles têm. Para fazer o que eu quisesse. Como quisesse. Ele falou que eu
precisava disso.
Ela esticou o braço sobre a toalha de mesa xadrez e pôs a mão em meu antebraço.
- Haller, o que foi que você fez?
Eu a encarei por um momento.
- Nada. Interroguei e depois disse para Cisco soltar os dois. Eu sei quem os contratou.
- Quem?
- Não vou entrar nesse assunto. Não é importante. Mas quer saber, Maggie? Quando eu estava no hospital, esperando para ver se conseguiriam salvar minha bola torcida,
eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser nessas imagens violentas de mim dando o troco naqueles dois. Sabe como é, tortura ao estilo Hieronymus Bosch. Medieval.
Eu queria ver os caras sofrendo muito. Daí eu tive minha chance, e pode acreditar em mim, eles iam simplesmente ter desaparecido depois, e eu deixei pra lá... e
daí, eu estava com você e...
Ela recostou no reservado. Ficou com o olhar perdido no vazio, uma mistura de tristeza e resignação no rosto.
- Que merda, hein?
- Eu preferia que você não tivesse me contado tudo isso.
- Você quer dizer, como promotora?
- Exato.
- Bom, você continuou a perguntar. Acho que teria sido melhor se eu tivesse inventado uma história sobre estar puto da vida com Andrea Freeman. Por você, não haveria
problema nisso, não é? Se fosse uma coisa de homem pra mulher, você ia conseguir entender.
Ela me devolveu o olhar.
- Não banca o superior pra cima de mim.
- Desculpa.
Ficamos sentados em silêncio, observando a movimentação no balcão. As pessoas bebendo, felizes. Pelo menos na aparência. Os garçons de smoking indo de um lado para
outro, espremendo-se entre as mesas lotadas.
Quando nossos pratos chegaram, eu não estava mais com tanta fome, mesmo com o melhor filé da cidade bem na minha frente.
- Posso perguntar só mais uma coisa sobre isso? - quis saber Maggie.
Dei de ombros. Não via motivo para continuar falando a respeito, mas consenti.
- Fala.
- Como você pode ter certeza de que Cisco e os amigos dele deixaram os dois caras irem?
Cortei meu filé e o sangue esparramou dentro do prato. Estava muito malpassado. Olhei para Maggie.
- Acho que não dá pra ter certeza.
Voltei ao meu filé e com a visão periférica percebi que Maggie acenava para o ajudante de garçom.
- Vou levar isso para viagem e tentar pegar um táxi aí na frente. Pode mandar embrulhar e levar para mim?
- Claro. Pode deixar.
Ele saiu apressado com o prato.
- Maggie - eu disse.
- Só preciso de um tempo para pensar nisso tudo.
Ela deslizou para fora do reservado.
- Eu posso levar você.
- Não, tudo bem.
Parou do lado da mesa, abrindo a bolsa.
- Não se preocupa. Deixa que essa é minha.
- Tem certeza?
- Se não tiver táxi lá fora, dá uma olhada mais adiante, no Palm. Pode ser que tenha por lá.
- Certo, obrigada.
Então ela foi embora, foi esperar sua comida do lado de fora. Empurrei meu prato alguns centímetros e fiquei contemplando a taça de vinho pela metade que deixara.
Cinco minutos depois, eu ainda considerava se devia ou não quando Maggie apareceu do nada, a embalagem para viagem na mão.
- Precisei mandar chamar um táxi - disse. - Deve chegar daqui a pouco.
Ela pegou a taça e tomou um gole.
- A gente conversa depois do julgamento - ela disse.
- Ok.
Pôs a taça na mesa, curvou o corpo e me beijou no rosto. Depois foi embora. Fiquei sentado ali por algum tempo pensando nas coisas. Achei que talvez aquele último
beijo tivesse salvado minha vida.
Trinta e dois
Dessa vez, em sua sala, o juiz Perry sentou. Eram 9h05, quarta-feira, e eu estava ali junto com Andrea Freeman e a estenógrafa. Antes de retomar o julgamento, o
juiz concordara com o pedido de Freeman para mais uma conferência longe dos olhos do público. Perry aguardou até que sentássemos em nossos lugares, depois verificou
se os dedos da estenógrafa já estavam sobre o teclado da máquina.
- Ok, constando dos autos em Califórnia versus Trammel - disse. - Doutora Freeman, a senhora pediu uma conferência in camera. Espero que não seja para me dizer que
precisa de mais tempo para investigar a questão envolvendo a carta-alvo federal.
Freeman moveu o corpo para a beirada da cadeira.
- De maneira alguma, Excelência. Não existe nada que valha a pena investigar. A questão foi exaustivamente examinada, mas o conhecimento aprofundado do que está
acontecendo com as agências federais envolvidas não me ajudou em nada. Creio ter ficado claro, pelo que percebo agora, que o doutor Haller está tentando tirar o
foco desse julgamento com questões que definitivamente são irrelevantes para a apresentação da matéria perante o júri.
Limpei a garganta, mas o juiz falou primeiro.
- Já tratamos da questão da culpa de uma terceira parte no prejulgamento, doutora Freeman. Estou concedendo à defesa a margem de manobra legal para seguir esse caminho,
até certo ponto. Mas a senhora precisa me apresentar alguma coisa mais consistente, aqui. Só porque não quer que o doutor Haller use a carta-alvo não quer dizer
que ela seja irrelevante.
- Eu entendo, Meritíssimo. Só q...
- Com licença - eu disse. - Será que terei minha vez aqui? Eu gostaria de ter a oportunidade de responder à insinuação de que estou forçand...
- Deixe a doutora Freeman terminar e depois lhe concedo o tempo que for necessário, doutor Haller. É uma promessa. Doutora Freeman?
- Obrigada, Excelência. O que estou tentando dizer é que uma carta-alvo federal não significa essencialmente quase nada. É um aviso de uma investigação iminente.
Não é uma acusação formal. Não é nem mesmo uma afirmação. Não significa que encontraram algo ou vão encontrar algo. É simplesmente um instrumento usado pelos federais
para dizer: “Ei, a gente ouviu falar de um negócio e vamos dar uma checada.” Mas nas mãos do doutor Haller perante o júri, ele vai distorcer essa coisa até transformá-la
em um símbolo do mal, e ligar a uma pessoa que nem mesmo faz parte do caso. Quem está sendo julgada é Lisa Trammel e toda essa história sobre carta-alvo federal
não é nem remotamente relevante para as questões da matéria. Rogo ao senhor que o tribunal proíba o doutor Haller de fazer qualquer outra pergunta ao detetive Kurlen
a esse respeito.
O juiz recostava em sua cadeira com as mãos diante do peito, os dedos pressionados em um V invertido. Ele girou para ficar de frente para mim. Finalmente, minha
deixa.
- Excelência, se eu estivesse em seu lugar, acho que pediria mais explicações, já que a doutora afirma que investigou exaustivamente essa carta e sua origem, quando
há neste exato momento um grande júri federal sendo formado para tratar da questão das fraudes hipotecárias no sul da Califórnia. E depois eu perguntaria à doutora
como ela chegou à conclusão de que uma carta-alvo federal não significa “quase nada”. Porque eu acho que o tribunal não está recebendo uma avaliação muito precisa
do que a carta significa ou de qual é seu impacto neste caso.
O juiz girou a cadeira de volta para Freeman e moveu apenas um dedo para apontar em sua direção.
- E quanto a isso, doutora Freeman? Existe mesmo um grande júri?
- Meritíssimo, o senhor está me deixando numa posição desconfortável, aqui. Um grande júri trabalha em sigilo e...
- Estamos entre amigos aqui, doutora Freeman - disse o juiz secamente. - Há ou não há um grande júri?
- Sim, há, Excelência, mas não colheram qualquer testemunho em relação a Louis Opparizio. Como eu disse, a carta-alvo não é nada além de um aviso de investigação
iminente. É especulação, Meritíssimo, e não se enquadra em nenhuma exceção que justifique sua admissibilidade neste julgamento. Embora a carta tenha sido assinada
pela Procuradoria-Geral para este distrito, foi redigida na verdade por um agente do Serviço Secreto que está conduzindo a investigação. Estou com o agente aí embaixo
na minha sala. Se for desejo do tribunal, posso chamá-lo em dez minutos para explicar exatamente o que acabei de explicar. Que tudo isso não passa de uma cortina
de fumaça criada pela defesa. Quando o senhor Bondurant foi assassinado, não havia ainda nenhuma investigação em curso e nenhuma ligação entre os dois. Só a carta.
Isso foi um erro. Ao revelar que Vasquez, o agente do Serviço Secreto que redigiu a carta-alvo, estava no prédio, Freeman deixara o juiz numa situação complicada.
O fato de o agente estar próximo e acessível tornaria mais difícil para o tribunal rejeitar a questão. Falei antes que o juiz pudesse responder.
- Excelência? Permita-me sugerir que, já que a doutora diz que está com o agente que escreveu a carta bem aqui no prédio do tribunal, que ela simplesmente o convoque
ao banco das testemunhas para contradizer qualquer depoimento que eu possa extrair do detetive Kurlen na contrainquirição. Se a doutora Freeman tem tanta certeza
assim de que o agente vai dizer que a carta-alvo que redigiu não significa nada, então que faça isso perante o júri. Deixe que ele me dê esse balde de água fria.
Não preciso lembrar ao tribunal que afinal de contas já estamos na chuva, por assim dizer. Perguntei sobre a carta para o detetive ontem. Simplesmente recuar e não
voltar a tocar no assunto ou fazer com que o senhor peça aos jurados para desconsiderar o que foi dito e esquecer tudo... agir assim seria mais prejudicial ao processo
como um todo do que ventilar plenamente a questão.
Perry respondeu sem hesitar.
- Estou inclinado a pensar que o senhor tem razão nesse ponto, doutor Haller. Não gosto da ideia de manter o júri a noite toda com essa carta-alvo misteriosa para
ruminar e depois deixar todo mundo boiando sem mais nem menos, agora de manhã.
- Excelência - disse Freeman rapidamente. - Posso falar mais uma vez?
- Não, acho que isso não será necessário. Chega de perder tempo aqui, precisamos começar logo o julgamento.
- Mas, Excelência, há outra questão urgente que o tribunal ainda não considerou.
O juiz pareceu frustrado.
- E qual seria, doutora Freeman? Minha paciência está se esgotando.
- Permitir que um testemunho sobre essa carta-alvo seja dirigido à testemunha-chave da defesa provavelmente vai dificultar a decisão anterior da testemunha de não
invocar a Quinta Emenda durante seu depoimento neste caso. Louis Opparizio e sua equipe jurídica talvez venham a reconsiderar essa decisão, uma vez que essa carta-alvo
for introduzida e discutida publicamente. Além do mais, o doutor Haller talvez esteja construindo sua estratégia legal para o caso sobre uma defesa que acabe redundando
em sua testemunha-chave e testa de ferro, se preferir, recusando-se a testemunhar. Quero deixar registrado aqui que, se o doutor Haller optar por esse jogo, é melhor
se preparar para as consequências. Quando Opparizio decidir na semana que vem que seus interesses estarão mais bem servidos se não testemunhar, e pedir uma nova
audiência para essa intimação, não quero ver o advogado de defesa choramingando no tribunal e pedindo para voltar atrás. Sem segunda chance, Excelência.
O juiz balançou a cabeça, concordando.
- Acho que isso seria como um homem que matou os pais pedir clemência ao tribunal porque ele é um órfão. Estou de acordo, doutor Haller. O senhor fique avisado de
que se for por esse caminho deve estar preparado para assumir as consequências.
- Compreendo, Meritíssimo - eu disse. - E também vou explicar com muito cuidado para minha cliente. Quero apenas contestar a alegação da doutora de que Louis Opparizio
é um testa de ferro. Ele não é, e vamos provar.
- Bom - disse o juiz. - Pelo menos o senhor terá a chance de provar. Agora estamos perdendo tempo. Vamos voltar à sala do tribunal.
Segui Freeman ao sair, deixando o juiz para trás conforme vestia sua toga. Eu esperava por alguma agressão verbal, mas aconteceu o contrário.
- Foi bem, doutor - ela disse.
- Obrigado, eu acho.
- Quem você acha que mandou a carta?
- Bem que eu queria saber.
- Os federais entraram em contato? Pelo que imagino vão querer descobrir quem anda vazando delicados documentos confidenciais para o público.
- Ninguém se pronunciou ainda. Vai ver os próprios federais fizeram vazar. Se eu levar Opparizio para o banco das testemunhas, ele fica amarrado com o que disser.
Quem sabe estou só servindo de instrumento nas mãos do governo federal, nessa história. Já pensou nisso?
A sugestão fez ela diminuir o passo. Quando passei por ela, eu sorri.
Ao entrarmos na sala do tribunal, vi Herb Dahl na primeira fila da plateia, atrás da mesa da defesa. Tive de reprimir o impulso de empurrá-lo por cima da balaustrada
e socar sua cara no piso duro. Freeman e eu assumimos nossas posições nas respectivas mesas, e sussurrando pus minha cliente a par do que acontecera na conferência
privada. O juiz entrou e mandou chamar o júri.
A última peça que faltava chegou quando o detetive Kurlen voltou ao banco das testemunhas. Apanhei minhas pastas e meu bloco amarelo de anotações e voltei ao atril.
Eu tinha a sensação de que passara uma semana desde a interrupção de minha contrainquirição, mas fora menos de um dia. Agi como se tivesse sido menos de um minuto.
- Bem, detetive Kurlen, quando interrompemos a sessão ontem, eu acabara de perguntar se o senhor sabia o que seria uma carta-alvo federal. Pode responder à questão
agora?
- Pelo que sei, quando uma agência federal está interessada em colher informação de um indivíduo ou empresa, eles às vezes mandam uma carta dizendo para esse indivíduo
ou empresa que querem conversar. É meio que uma carta dizendo: “Vamos nos reunir e conversar sobre tal e tal coisa, de maneira a evitar algum mal-entendido.”
- Só isso?
- Não sou agente federal.
- Bem, o senhor considera um assunto grave receber uma carta do governo federal dizendo que o senhor é alvo de uma investigação?
- Pode ser, eu acho. Imagino que isso depende de que crime estejam investigando.
Pedi permissão ao juiz para me aproximar da testemunha com um documento. Freeman objetou a que constasse dos autos, citando relevância. O juiz indeferiu sem comentários
e disse-me para entregar o documento à testemunha.
Após passar o documento para Kurlen, voltei ao atril e pedi ao juiz para marcar o documento como Prova da Defesa 3. Depois instruí Kurlen a ler a carta.
- “Prezado senhor Opparizio, Esta carta tem por objetivo inform...”
- Um minuto - interrompi. - Pode primeiro ler e descrever o que está no alto da carta? O cabeçalho?
- Diz “Gabinete da Procuradoria-Geral dos Estados Unidos, Los Angeles” e tem a imagem de uma águia de um lado e a bandeira dos Estados Unidos do outro. Quer que
eu leia a carta, agora?
- Por favor.
- “Caro senhor Opparizio, Esta carta tem por objetivo informá-lo de que a A. Louis Opparizio Financial Technologies - conhecida como ALOFT - e o senhor, individualmente,
estão entre os alvos de uma força-tarefa de múltiplas agências que investigam todos os níveis de fraude hipotecária no sul da Califórnia. Um recibo desta carta serve
como notificação para que o senhor não remova nem destrua nenhum documento ou material de trabalho relativo aos negócios de sua empresa. Caso queira discutir essa
investigação e cooperar com os membros da força-tarefa, por favor não hesite em nos procurar ou mandar sua equipe jurídica entrar em contato comigo ou com Charles
Vasquez, do Serviço Secreto dos Estados Unidos, que foi designado à investigação da ALOFT como agente para o caso. Envidaremos todo esforço em nos reunir com o senhor
para discutir a questão. Caso não deseje cooperar, asseguramos que o senhor será contatado em breve por agentes da força-tarefa. Mais uma vez quero lembrá-lo de
não destruir ou remover quaisquer documentos ou materiais de trabalho de seus escritórios ou instalações filiadas. Fazer isso após receber esta notificação constituirá
crime grave contra os Estados Unidos da América. Atenciosamente, Reginald Lattimore, Procuradoria-Geral dos Estados Unidos, Los Angeles.” É isso, além de fornecer
o telefone de todo mundo na parte de baixo.
Um murmúrio baixo percorreu a sala do tribunal. Eu tinha certeza de que a maioria das pessoas comuns não fazia ideia da existência de coisas como uma carta-alvo
federal. Era a nova era no cumprimento da lei. Eu tinha certeza de que a tal da força-tarefa não passava de alguns gatos pingados fornecidos por uma meia dúzia de
agências num gesto simbólico, sem qualquer orçamento. Em lugar de preparar dispendiosas operações, tentavam a sorte para ver se assustavam alguém para que viesse
de joelhos implorando misericórdia. Tudo feito para pegar o que caísse na rede, conseguir algumas manchetes e dar o trabalho por encerrado. Um sujeito como Opparizio
provavelmente usava a carta original registrada do correio para limpar a bunda. Mas para mim não fazia diferença. Meu plano era usar a carta para ajudar minha cliente
a ficar em liberdade.
- Obrigado, detetive Kurlen. Agora pode nos dizer qual é a data da carta?
Kurlen olhou o papel antes de responder.
- Está datada em 18 de janeiro deste ano.
- Agora, detetive, o senhor chegou a ver essa carta antes de ontem?
- Não, por que veria? Isso não tem nada a v...
- A testemunha não está respondendo - eu disse rapidamente. - Excelência, a pergunta foi simplesmente se já vira a carta antes.
O juiz instruiu Kurlen a responder apenas à pergunta feita.
- Nunca vi essa carta antes do dia de ontem.
- Obrigado, detetive. E agora vamos voltar à outra carta que pedi ao senhor para ler ontem, da vítima, Mitchell Bondurant, para o mesmo Louis Opparizio que recebeu
a carta-alvo federal. O senhor a tem à mão aí em seu fichário?
- Se puder esperar um momento.
- Por favor.
Kurlen encontrou a carta no fichário, tirou e segurou.
- Ótimo. Pode nos dizer a data dessa carta, por favor?
- Dez de janeiro deste ano.
- E essa carta foi entregue ao senhor Opparizio, pelo correio, registrada, correto?
- Isso, registrada. Não dá para dizer se o senhor Opparizio recebeu ou ficou sabendo dela. Tem um outro nome acusando o recebimento.
- Mas, independentemente de quem assinou, ela sem dúvida foi enviada em 10 de janeiro, correto?
- Acho que está correto.
- E a segunda carta sobre a qual conversamos aqui, a carta-alvo do agente do Serviço Secreto, também foi enviada registrada, não é isso mesmo?
- Isso mesmo.
- Então a data registrada de 18 de janeiro é de quando a carta foi enviada.
- Correto.
- Então me deixa ver se entendi direito. O senhor Bondurant envia para o senhor Louis Opparizio uma carta registrada que ameaça expor supostas práticas fraudulentas
em sua empresa e então, oito dias depois, uma força-tarefa federal manda para o senhor Opparizio outra carta registrada, esta afirmando que ele é alvo de uma investigação
de fraude hipotecária. Será que compreendi a cronologia corretamente, detetive Kurlen?
- Até onde sei, sim.
- E daí, menos de duas semanas mais tarde, o senhor Bondurant é brutalmente assassinado na garagem do estacionamento do WestLand, correto?
- Isso mesmo.
Fiz uma pausa e esfreguei o queixo, como um filósofo. Eu queria muito manter o júri atento nisso. Eu queria olhar para o rosto deles, mas sabia que isso revelaria
minha intenção. Então continuei fazendo a pose de pensador profundo.
- Detetive, o senhor testemunhou sobre seu rico currículo como detetive de homicídio, correto?
- Tenho um bocado de experiência, isso mesmo.
- Hipoteticamente falando, o senhor desejaria saber na época o que sabe hoje?
Kurlen estreitou o olhar como se estivesse confuso, mesmo sabendo exatamente o que eu estava fazendo e para onde estava indo.
- Não tenho certeza se entendi - disse ele.
- Ponha desse modo, teria sido bom para o senhor ter essas cartas em suas mãos no primeiro dia da investigação do homicídio?
- Claro, por que não? Eu preferia ter todas as provas e informações no primeiro dia, sempre. Mas nunca é assim que acontece.
- Hipoteticamente falando, se o senhor soubesse que a vítima, Mitchell Bondurant, havia mandado uma carta ameaçando expor o comportamento criminoso de outro homem
apenas oito dias antes que esse homem descobrisse que era alvo de uma investigação criminal, isso constituiria uma possibilidade de investigação significativa para
o senhor?
- É difícil dizer.
Agora eu olhava para o júri. Kurlen estava enrolando, recusando-se a admitir o que o bom senso ditava. Você não precisa ser um detetive para entender isso.
- Difícil dizer? O senhor está dizendo que se tivesse essa informação e essas cartas no dia do assassinato seria difícil dizer se consideraria uma pista significativa
para a investigação?
- Estou dizendo que não tenho todos os detalhes, então é difícil dizer até que ponto isso é ou não é significativo. Mas, respondendo no geral, todas as pistas são
seguidas. É simples assim.
- Simples assim, e no entanto vocês nunca investigaram o crime por esse ângulo, não é mesmo?
- Eu não tinha essa carta. Como eu ia poder investigar?
- O senhor tinha a carta da vítima e não tomou qualquer atitude a respeito, não foi?
- Isso não é verdade. Eu chequei a carta e determinei que não tinha nada a ver com o assassinato.
- Mas não é verdade que a essa altura vocês já tinham um suposto assassino e que não iam permitir que nada os fizesse mudar de ideia ou se desviar dessa trilha?
- Não, não é verdade. De jeito nenhum.
Fiquei encarando Kurlen por um longo tempo, esperando que meu rosto mostrasse todo o meu asco.
- Não tenho mais perguntas no momento - eu disse, enfim.
Trinta e três
Freeman manteve Kurlen no banco das testemunhas por outros 15 minutos de perguntas e fez o melhor que pôde para remodelar o relato dele da investigação como um excelente
trabalho de combate ao crime. Quando terminou, dispensei uma nova inquirição, porque eu estava convencido de que já passara à frente de Kurlen. Meu esforço fora
pintar a investigação como um exercício em cegueira, e acreditava ter conseguido.
Freeman aparentemente sentiu que a necessidade de abordar a carta-alvo federal era premente. Sua próxima testemunha era o agente do Serviço Secreto, Charles Vasquez.
Vinte e quatro horas antes, ela nem sequer sabia de sua existência, mas agora o inseria em sua sequência cuidadosamente orquestrada de testemunhas e provas. Eu poderia
ter protestado contra seu depoimento com base no argumento de que não tivera oportunidade de interrogar ou me preparar para Vasquez, mas achei que isso seria forçar
a barra com o juiz Perry. Decidi pelo menos escutar o que o agente tinha a dizer na inquirição da promotoria antes de chegar a esse ponto.
Vasquez tinha cerca de 40 anos, tez escura e cabelo idem. Durante o inquérito preliminar informou ter sido um agente da Drug Enforcement Administration antes de
passar ao Serviço Secreto. Passara da caça aos traficantes para a caça aos contraventores até surgir a oportunidade de se juntar à força-tarefa da hipoteca. Disse
que a força-tarefa contava com um supervisor e dez agentes oriundos do Serviço Secreto, do FBI, do Serviço Postal e da Receita. Um assistente da Procuradoria federal
supervisionava o trabalho deles, mas os agentes, divididos em duplas, operavam em larga medida autonomamente, com liberdade para perseguir os alvos de sua escolha.
- Agente Vasquez, no dia 18 de janeiro deste ano o senhor redigiu uma assim chamada carta-alvo para um homem chamado Louis Opparizio, e que estava assinada por Reginald
Lattimore, procurador-geral. O senhor se lembra disso?
- Sim, lembro.
- Antes de passarmos a essa carta específica, pode dizer ao júri exatamente o que é uma carta-alvo?
- É um instrumento que utilizamos para identificar suspeitos e transgressores.
- Como assim?
- Basicamente informamos que estamos de olho em suas transações, suas práticas de negócios e nas ações que vêm executando. Uma carta-alvo sempre convida o destinatário
a comparecer para discutir a situação com os agentes. Na maior parte das vezes quem recebe faz exatamente isso. Às vezes a coisa termina em processo, às vezes leva
a outras investigações. Tem sido uma ferramenta útil, porque as investigações são muito custosas. A gente não tem orçamento. Se uma carta resultar em acusações formais,
na cooperação de alguma testemunha ou uma pista sólida para uma investigação, então é um bom negócio para nós.
- Então, com relação à carta para Louis Opparizio, o que o levou a enviar uma carta-alvo?
- Bom, meu parceiro e eu já estávamos bem familiarizados com o nome dele, porque aparecia com frequência em outros casos em que estávamos trabalhando. Não necessariamente
de forma negativa, só que a empresa de Opparizio é o que a gente chama de “fábrica” de execuções hipotecárias. É um escritório de cobrança lidando com toda a papelada
e ações de execução para muitos bancos que operam no sul da Califórnia. Milhares de casos. Então a gente continuou vendo o escritório, ALOFT, e às vezes tinha queixas
sobre os métodos que a firma estava usando. Meu parceiro e eu decidimos olhar mais de perto. Mandamos uma carta para ver que tipo de resposta a gente recebia.
- Pode-se dizer que vocês jogaram verde para colher maduro?
- Está mais para jogar maduro para colher podre. Tinha muita fumaça vindo desse lugar. A gente estava à procura do fogo, e às vezes o modo como reagem a uma carta-alvo
determina qual vai ser nosso próximo movimento.
- Na época que o senhor redigiu e enviou a carta, vocês haviam obtido alguma prova de atividade criminosa por parte de Louis Opparizio e sua firma?
- Nesse ponto, não.
- O que aconteceu depois que a carta foi enviada?
- Até agora nada.
- Louis Opparizio respondeu à carta?
- Recebemos resposta de um advogado dizendo que o senhor Opparizio dava as boas-vindas à investigação porque seria uma oportunidade de mostrar que seu negócio era
conduzido de forma limpa.
- Vocês se valeram dessas boas-vindas e investigaram mais a fundo o senhor Opparizio e sua firma?
- Não, não houve tempo. Tínhamos diversas outras investigações em andamento que pareciam mais proveitosas.
Freeman verificou suas anotações antes de continuar.
- Finalmente, agente Vasquez, no presente momento, Louis Opparizio ou a ALOFT estão sob investigação de sua força-tarefa?
- Tecnicamente, não. Mas planejamos dar prosseguimento àquela carta.
- Então a resposta é não?
- Correto.
- Obrigada, agente Vasquez.
Freeman sentou. Estava radiante e obviamente satisfeita com o depoimento que extraíra do agente. Fiquei de pé e levei meu bloco de anotações para o atril. Eu escrevera
algumas perguntas durante sua inquirição.
- Agente Vasquez, o senhor está dizendo para o júri que um indivíduo que não responde à sua carta-alvo apresentando-se e confessando imediatamente deve ser inocentado
de qualquer delito?
- Não, não estou.
- Como Louis Opparizio não fez isso, o senhor o considera limpo, agora?
- Não, não considero.
- O senhor costuma mandar cartas desse tipo para indivíduos que acredita serem inocentes de qualquer atividade criminosa?
- Não, nunca.
- Então qual é o limiar, agente Vasquez? O que a pessoa precisa fazer para receber uma carta-alvo?
- Basicamente, se a pessoa aparece em meu radar de algum modo suspeito, então faço uma verificação preliminar, e isso pode levar à carta. Não estamos mandando cartas
a torto e a direito. A gente sabe o que está fazendo.
- Por acaso o senhor, ou seu parceiro, ou qualquer outro da força-tarefa, entrou em contato com Mitchell Bondurant relativamente às práticas da ALOFT?
- Não, não entramos. Ninguém fez isso.
- Por acaso ele seria alguém com quem os senhores viriam a conversar?
Freeman protestou, chamando a questão de vaga. O juiz deferiu a objeção. Decidi deixar a pergunta no ar e sem ser respondida, diante do júri.
- Obrigado, agente Vasquez.
Freeman prosseguiu com seu esquema programado para o caso após Vasquez, chamando o jardineiro que encontrou o martelo nos arbustos de uma casa a uma quadra e meia
da cena do crime. Seu testemunho foi rápido e monótono, em si mesmo pouco importante até que fosse amarrado mais tarde com o depoimento das testemunhas forenses
do estado. Mas marquei alguns pontos ao obter uma admissão do jardineiro de que ele trabalhara nas imediações daqueles arbustos pelo menos em 12 ocasiões diferentes
antes de encontrar o martelo. Era uma pequena semente a plantar para o júri, a ideia de que talvez o próprio martelo tivesse sido plantado bem depois do crime.
Após o jardineiro, a promotoria seguiu com alguns breves depoimentos do dono da casa e dos policiais que executaram a cadeia de custódia do martelo para o laboratório
forense. Nem me dei ao trabalho de uma contrainquirição. Eu não ia contestar a cadeia de custódia ou o fato de que o martelo era a arma do crime. Meu plano era concordar
não só que era a arma que matou Mitchell Bondurant, mas também que pertencia a Lisa Trammel.
Seria um movimento inesperado, mas o único que funcionava para a teoria da defesa, de armação. A dica dada por Jeff Trammel de que o martelo podia estar na traseira
do BMW que ele deixara para trás quando desapareceu no México não deu em nada. Cisco conseguiu localizar o carro, ainda em uso na concessionária onde Jeff Trammel
havia trabalhado, mas não havia martelo algum no porta-malas e o sujeito encarregado da frota de veículos dos funcionários disse que nunca houve. Descartei a história
de Jeff Trammel como uma tentativa de ganhar algum dinheiro com qualquer informação que pudesse ser útil para o caso de sua esposa abandonada.
A sequência da arma do crime nos levou ao almoço, e o juiz, como começava a ser seu costume, interrompeu 15 minutos mais cedo. Virei para minha cliente e convidei-a
para almoçar comigo.
- E quanto a Herb? - ela disse. - Prometi pra ele que a gente ia almoçar junto.
- Herb pode vir, também.
- Sério?
- Claro, por que não?
- Porque achei que você não... Deixa pra lá, eu aviso a ele.
- Ótimo. Vamos no meu carro.
Mandei Rojas nos apanhar e atravessamos Van Nuys para ir ao Hamlet, perto do Ventura. O lugar existia havia décadas e embora tivesse ganhado um pouco mais de classe
desde a época em que se chamava Hamburguer Hamlet, a comida continuava igual. Como o juiz encerrara mais cedo, evitamos a fila do meio-dia e fomos conduzidos imediatamente
a um reservado.
- Eu adoro esse lugar - disse Dahl. - Mas faz um século que não venho aqui.
Sentei diante de Dahl e minha cliente. Não reagi ao seu entusiasmo com o restaurante. Eu estava ocupado demais pensando em como ia usar a hora do almoço.
Fizemos logo nosso pedido, porque mesmo com os minutos extras nossa janela de tempo era pequena. A conversa se concentrou no caso e em como Lisa achava que as coisas
estavam andando. Até o momento, ela se mostrava satisfeita.
- Você consegue alguma coisa favorável para mim com cada testemunha - ela disse. - É incrível.
- Mas a questão é: estou conseguindo o suficiente? - respondi. - E o que você não pode esquecer é que a subida fica mais íngreme a cada testemunha. Sabe o Bolero
de Ravel? Você ouve música clássica?
Lisa me olhou sem expressão.
- Bo Derek, em Mulher nota 10 - disse Dahl. - Adoro essa cena!
- Certo. Bom, é uma peça de um único movimento, deve ter uns 15 minutos, mais ou menos, e começa devagar e só com alguns instrumentos, e depois vai ganhando corpo
e sobe num crescendo até o grand finale com todos os instrumentos da orquestra tocando em uníssono. E ao mesmo tempo a emoção de quem escuta cresce junto, e chega
ao clímax junto com a música. E isso é o que a promotora está fazendo aqui. Ela está aumentando o som e o ritmo gradativamente. Sua melhor cartada ainda está por
vir, porque ela vai fazer soar os tímpanos, as cordas, os metais e tudo o mais, quando tiver terminado. Está entendendo, Lisa?
Ela balançou a cabeça, relutante.
- Não estou querendo derrubar sua animação. Você está empolgada, esperançosa, querendo justiça, e espero que continue assim. Porque o júri percebe essas coisas e
isso ajuda tanto quanto qualquer coisa que eu fizer lá dentro. Mas não se esqueça que a montanha está ficando mais alta. Ela ainda tem os fatos científicos para
apresentar e os jurados adoram a ciência, porque dá uma oportunidade para se safarem, tirarem a responsabilidade do ombro deles. As pessoas acham que é legal fazer
parte de um júri. Você ganha uma justificativa para faltar no trabalho, senta na primeira fila para assistir a um caso interessante, o drama da vida real se desenrolando
na sua frente, e não no metrô. Mas no final eles precisam entrar lá naquela sala, olhar uns para os outros e tomar uma decisão. Eles precisam decidir sobre a vida
de alguém. Pode acreditar, não tem muita gente que gosta de se ver nessa situação. A ciência facilita as coisas. “Ah, bom, se o DNA deu positivo, então não tem como
estar errado. Culpado.” Viu? Isso é o que a gente ainda vai enfrentar, Lisa, e não quero você alimentando ilusões a respeito.
Dahl bancou o cavalheiro e pôs a mão em seu braço, que estava sobre a mesa. Então o apertou levemente, para consolá-la.
- Bom, o que a gente vai fazer sobre o DNA? - perguntou Trammel.
- Nada - eu disse. - Não tem nada que eu possa fazer. Eu disse antes do julgamento que mandei nosso próprio pessoal testar, e o resultado foi o mesmo. É legítimo.
Seus olhos se voltaram para baixo, derrotados, e percebi as lágrimas começando a brotar, que era o que eu queria. A garçonete resolveu aparecer bem nesse instante
com nossos pratos. Esperei ficarmos a sós outra vez antes de continuar.
- Ânimo, Lisa. O DNA é só perfumaria.
Ela olhou para mim, confusa.
- Achei que você tinha dito que era legítimo.
- E é. Mas isso não significa que não haja uma explicação para ele. Eu cuido do DNA. Como você mesma disse quando a gente sentou, meu trabalho é lançar uma dúvida
sobre cada peça do quebra-cabeça. Depois a gente espera até todas as peças estarem no lugar e eles erguerem o quadro na frente do júri para que as sementes da dúvida
que a gente plantou tenham crescido e virado algo maior que mude o quadro. Se a gente conseguir isso, carimbamos o passaporte.
- Como assim?
- Você fica livre. A gente vai pra casa.
Sorri e ela sorriu de volta. Suas lágrimas haviam manchado a elaborada maquiagem que fizera pela manhã.
O resto do almoço foi pontuado por assuntos sem importância e por comentários desinformados ou vazios feitos pelos dois sobre o sistema de justiça criminal. Isso
é algo comum que costumo observar em meus clientes. Eles não conhecem a lei, mas são os primeiros a dizer o que há de errado com ela. Esperei Lisa enfiar a última
garfada de salada em sua boca.
- Lisa, sua maquiagem ficou um pouco manchada no começo da nossa conversa. É muito importante que você continue forte e pareça forte. Quero que você vá até o banheiro
e se recomponha para mostrar como está sendo forte, ok?
- Não dá para esperar até a gente voltar?
- Não, porque a gente pode cruzar com alguém do júri ou da imprensa. Nunca se sabe quem está olhando. Não quero ninguém pensando que você passou o almoço chorando,
ok? Quero que faça isso já. Vou ligar para o Rojas e dizer a ele pra pegar a gente.
- Pode demorar uns minutos.
Olhei meu relógio.
- Certo, fica à vontade. Eu espero um pouco para ligar.
Dahl se levantou para que ela pudesse sair do reservado. Então ficamos a sós. Eu havia empurrado meu prato para o lado e estava com os cotovelos sobre a mesa. Tinha
as mãos entrelaçadas diante da boca, como um jogador de pôquer segurando as cartas para ajudar a ocultar o rosto. No fundo, um bom advogado é um negociador. E agora
chegara a hora de negociar a saída de Herb Dahl.
- Então, Herb... chegou a hora de você cair fora.
Ele deu um pequeno sorriso de incompreensão.
- Como assim? A gente veio junto.
- Não, tô falando do caso. De Lisa. Chegou a hora de você sumir.
Ele continuou a exibir a postura de não estou entendendo.
- Não vou a lugar algum. Lisa e eu... a gente tá muito ligado. E eu pus uma grana preta nesse negócio.
- Bom, sua grana já era. E quanto a Lisa, essa farsa vai terminar agora mesmo.
Levei a mão ao bolso interno de meu paletó e tirei de lá a foto de Herb com os irmãos Mack que Cisco me dera na noite anterior. Passei por sobre a mesa para ele.
Ele deu uma rápida olhada e sorriu, pouco à vontade.
- Certo, você me pegou. Quem são esses caras?
- Os irmãos Mack. Os caras que você contratou pra me pegarem.
Ele balançou a cabeça e olhou por sobre o ombro para o corredor no fundo, que dava nos banheiros. Depois virou de novo para mim.
- Desculpa, Mickey, não sei do que você está falando. Acho que preciso lembrar a você que a gente fez um acordo sobre o filme. Um acordo envolvendo circunstâncias
que eu tenho certeza que a Ordem da Califórnia ia estar interessada em investigar, mas além d...
- Você está me ameaçando, Dahl? Porque se estiver está cometendo um erro.
- Não, que ameaça? Só estou tentando entender aonde você quer chegar.
- Não quero chegar em lugar nenhum, mas estou vindo de uma sala escura onde tive uma conversa interessante com os irmãos Mack.
Dahl voltou a dobrar a foto e me devolveu.
- Esses dois? Eles estavam me pedindo uma informação, só isso.
- Informação, hein? Tem certeza de que não era dinheiro que eles estavam pedindo? Porque a gente tem fotos disso, também.
- Pode ser que eu tenha dado alguns trocados para eles. Eles pediram uma ajuda e pareciam bons rapazes.
Agora não consegui deixar de sorrir.
- Olha, você é bom, Herb, mas eu fiz os dois falarem. Então vamos cortar logo a conversa mole e ir direto ao assunto.
Ele deu de ombros.
- Ok, você é quem manda. Qual é o assunto?
- O assunto é o mesmo do começo. Você já era, Herb. Pode dizer tchau para a Lisa. Pode dizer tchau para seu acordo sobre o filme. Pode dizer tchau para o seu dinheiro.
- Isso é muito tchau. O que eu ganho com isso?
- Fica fora da prisão, é isso que você ganha.
Ele balançou a cabeça e olhou por sobre o ombro outra vez.
- Não funciona assim, Mick. Olha, o dinheiro não era meu. Não veio do meu bolso.
- Veio do bolso de quem, então? Jerry Castille?
Seus olhos fizeram um movimento súbito e depois ficaram imóveis. O nome o acertara como um soco invisível. Ele sabia agora que os irmãos Mack haviam entregado o
serviço.
- É, eu sei sobre Jerry e sei sobre Joey em Nova York, também. Não existe honra entre bandidos, Herb. Os irmãos Mack estão prontos para começar a cantar como Sonny
e Cher. E a música é “I’ve Got You, Babe”. Você é meu, cara, e veio embrulhado para presente, e a menos que suma da vida de Lisa e da minha hoje mesmo, vai ser um
pacote que vou deixar no Gabinete da Promotoria, onde por acaso trabalha minha ex-mulher que é promotora e não gostou nem um pouco do ataque que eu sofri. Pelo que
sei, ela apresenta esse caso perante o grande júri numa manhã, e você, seu babaca, vai dançar por ataque com LCD, mais circunstância agravante pelos ferimentos que
causou. Isso significa “lesão corporal dolosa” com reforço de acusação. São três anos extras na sua sentença. E como vítima vou insistir que seja assim. Pela minha
bola torcida. Digamos que, se a gente somar tudo isso, você pode esperar quatro anos vendo o sol nascer quadrado, Herb. E tem mais uma coisa que você precisa saber.
Ninguém vai deixar você usar essa merda de correntinha da paz em Soledad.
Dahl apoiou os cotovelos na mesa e se curvou para a frente. Pela primeira vez pude perceber o desespero tomando conta de sua expressão.
- Você não faz ideia da merda que tá fazendo. Não sabe com quem tá se metendo.
- Escuta, seu babaca... posso te chamar de babaca?... estou cagando e andando pra com quem eu tô me metendo. É com você que eu tô falando e quero que fique longe
desse caso e...
- Não, não, você não tá entendendo. Eu posso te ajudar. Você acha que sabe o que está acontecendo nesse caso? Não sabe porra nenhuma. Mas eu posso explicar uma ou
duas coisinhas pra você, Haller. Posso te ajudar a pegar o passaporte e a curtir umas férias na praia.
Recostei no banco, me afastando dele e apoiando o braço em cima do forro do reservado, no encosto. Agora quem estava sem entender era eu. Fiz um meneio com o pulso,
como se aquilo fosse uma tremenda perda de tempo.
- Então me explica.
- Você acha que eu apareci sem mais nem menos, interessado na causa dela, participando da manifestação, e falei: “Ei, vamos fazer um filme?” Seu otário de merda!
Me mandaram lá. Antes mesmo de matarem o Bondurant, eu já tinha me aproximado da Lisa. Você acha que foi por acaso?
- Quem mandou?
- Quem você acha?
Fiquei olhando para ele e senti todos os aspectos do caso se amalgamando numa coisa só, como afluentes juntando em um rio. A hipótese de inocência não era uma hipótese.
A armação era real.
- Opparizio.
Ele fez um ligeiro gesto de confirmação. E nesse instante percebi Lisa voltando do banheiro, vindo em nossa direção, o olhar renovado e brilhando para o tribunal.
Olhei outra vez para Dahl. Queria fazer um monte de perguntas, mas não havia mais tempo.
- Sete horas, hoje à noite. No meu escritório. Sozinho. Você me conta sobre Opparizio lá. Vai me contar tudo... ou eu vou até a Promotoria.
- Só tem uma coisa, não vou servir de testemunha pra nada. Não tem como.
- Sete horas.
- Eu ia jantar com a Lisa.
- É, bom, mudança de planos. Pensa numa desculpa. Mas é bom aparecer. Vamos indo.
Comecei a sair do reservado quando Lisa chegou. Peguei meu celular e liguei para Rojas.
- Estamos prontos - eu disse. - Pega a gente lá na frente.
Trinta e quatro
Depois que o tribunal voltou a entrar em sessão, a promotoria chamou a detetive Cynthia Longstreth para o banco das testemunhas. Ao usar a parceira de Kurlen como
sua próxima testemunha, Freeman estava confirmando o que eu havia suspeitado: que sua versão do Bolero teria a ciência como clímax. Era uma jogada inteligente. Usar
o que não pode ser questionado nem negado. Apresentar a investigação por meio de Kurlen e Longstreth e depois pôr os pingos nos is com os técnicos forenses. Ela
encerraria seu caso com o legista e a prova de DNA. Um pacote bonito e bem-feito.
A detetive Longstreth não pareceu tão durona e severa quanto no primeiro dia do caso, quando fui apresentado a ela na Divisão Van Nuys. Antes de mais nada, estava
usando um vestido que a fazia parecer mais com uma professora do que uma detetive. Eu já vira esse tipo de transformação antes, e era algo que sempre me incomodava.
Fosse por instrução da promotora, fosse um estratagema da própria detetive, várias vezes eu me vira diante de uma testemunha policial feminina que se transformara
numa versão mais suave e agradável de si mesma para o júri. Mas se eu ousasse insinuar isso para o juiz, ou aliás para quem quer que fosse, corria o risco de ser
tachado de misógino.
Então na maioria das vezes só me restava sorrir e engolir.
Freeman estava usando Longstreth para esboçar a segunda metade da investigação. Seu testemunho seria principalmente sobre a busca na casa de Trammel e o que foi
encontrado. Eu não esperava surpresas aí. Depois de ouvir o juramento ser feito por sua testemunha, Freeman foi direto ao ponto.
- A senhora obteve um mandado de busca judicial garantindo acesso à casa de Lisa Trammel? - perguntou Freeman.
- Sim, obtivemos.
- Como é esse processo? Como se faz para que um juiz emita esse tipo de mandado?
- Você faz uma requisição contendo uma declaração de causa provável, que lista os fatos e a prova que o levaram ao ponto de necessitar dar uma busca no local. Fiz
isso aqui mesmo, usando uma declaração da testemunha que avistou a suspeita nas adjacências do banco, bem como pelas próprias declarações inconsistentes da suspeita
durante o interrogatório. O mandado foi emitido e assinado pela juíza Companioni e nós seguimos para a casa em Woodland Hills.
- “Nós” quem, detetive?
- Meu parceiro, o detetive Kurlen, e eu, e decidimos trazer junto conosco uma pessoa com uma câmera de vídeo e também uma equipe de perícia, para processar qualquer
coisa que por acaso encontrássemos durante a busca.
- Então a busca toda foi gravada em vídeo?
- Bom, eu não diria a busca toda. Meu parceiro e eu nos separamos para conduzir tudo mais rápido. Mas só tinha um cameraman e ele não tinha como acompanhar nós dois
ao mesmo tempo. Procedemos da seguinte forma: quando a gente encontrava alguma coisa que parecia prova ou algo que pretendíamos levar sob custódia para examinar,
chamávamos o câmera.
- Entendi. E a senhora trouxe o vídeo gravado aqui hoje?
- Trouxe, e já está no aparelho e pronto para rodar.
- Perfeito.
O júri foi então apresentado a um vídeo de noventa minutos acompanhado pela narração de Longstreth. A câmera seguiu a equipe policial conforme chegaram e deram uma
volta inteira na residência antes de entrar. Quando a imagem mostrava o quintal, Longstreth tomou o cuidado de indicar para os jurados uma horta de ervas com um
caminho de dormentes e o solo recém-mexido. É o que os grandes cineastas chamariam de foreshadowing. O significado ficaria óbvio mais tarde, assim que a câmera estivesse
dentro da garagem.
Eu estava com dificuldade para me concentrar no depoimento. Dahl jogara uma bomba ao revelar a ligação com Opparizio. Eu não conseguia parar de pensar nos cenários
possíveis e no que poderia significar para o caso. Queria que o dia terminasse logo e que chegassem as sete horas.
No vídeo, uma chave tirada dos pertences de Lisa Trammel seguindo-se a sua prisão foi utilizada para entrarem na casa sem danificar sua propriedade. Uma vez lá dentro,
a equipe começou uma busca sistemática que parecia seguir um protocolo originado da experiência. O chuveiro e a banheira foram examinados em busca de prova de sangue.
A máquina de lavar roupas e a secadora também. A parte mais longa da busca teve lugar nos closets, onde cada sapato e peça de roupa foram cuidadosamente examinados
e submetidos a tratamentos químicos e luminescentes feitos para evidenciar vestígios de sangue.
A câmera finalmente seguiu Longstreth quando ela saiu por uma porta lateral da casa e atravessou um pequeno pórtico até outra porta. Essa porta estava trancada e
ela passou, conduzindo a câmera à garagem. Freeman parou o vídeo nesse ponto. Como se fosse uma grande especialista de Hollywood, ela construíra a expectativa de
seu público e agora vinha a grande revelação.
- O que foi encontrado na garagem tornou-se muito importante para a investigação, correto, detetive?
- Isso mesmo, correto.
- O que vocês encontraram?
- Bom, em um dos casos, é o que não encontramos.
- Você pode explicar o que quer dizer com isso?
- Sim. Havia uma bancada de ferramentas na parede dos fundos da garagem. Parecia inteiramente abastecida de ferramentas. A maior parte estava pendurada em ganchos
ligados a um painel de furos instalado acima da bancada, ao longo da parede. Os locais diferentes para pendurar as ferramentas estavam marcados com o nome da ferramenta.
Tudo tinha seu lugar no painel.
- Ok, pode nos mostrar?
O vídeo foi acionado novamente e logo exibiu um close da bancada. Nesse ponto Freeman congelou a imagem nos monitores.
- Certo, então essa é a bancada, correto?
- Isso.
- Estamos vendo as ferramentas penduradas no painel. Tem alguma coisa faltando?
- Tem, o martelo está faltando.
Freeman pediu ao juiz permissão para que Longstreth descesse e usasse uma ponteira laser para mostrar nas telas onde ficava o lugar do martelo, no painel. O juiz
concedeu sua permissão. Longstreth indicou o local nas duas telas e depois voltou para o banco das testemunhas.
- Certo, detetive, o lugar estava marcado especificamente como sendo de um martelo?
- Sim, estava.
- Então o martelo estava faltando.
- Não foi encontrado em lugar nenhum na garagem ou na casa.
- E chegou um momento em que vocês identificaram a fabricação e o modelo das ferramentas que estavam no painel?
- Sim, usando as ferramentas que continuavam lá, fomos capazes de determinar que o casal tinha um jogo da Craftsman que vinha em um estojo específico. Era um conjunto
de 239 peças chamado Estojo de Ferramentas de Carpinteiro.
- E o martelo desse estojo era vendido avulso, sem ser nesse jogo de ferramentas?
- Não, não era. Tinha um martelo específico que vinha nesse jogo.
- E ele estava faltando no jogo de ferramentas da garagem de Lisa Trammel?
- Correto.
- Bom, houve um momento durante a investigação que um martelo foi entregue à polícia, que tinha sido encontrado perto da cena do assassinato de Mitchell Bondurant?
- Sim, um martelo foi encontrado por um jardineiro em uns arbustos a uma quadra e meia da garagem onde ocorreu o homicídio.
- Vocês examinaram esse martelo?
- Eu examinei brevemente antes de entregar à Divisão de Investigação Científica para análise.
- Que tipo de martelo era?
- Um martelo com unha.
- E vocês sabem quem fabricou o martelo?
- Foi produzido pela Sears Craftsman.
Freeman parou como se esperasse que o júri engasgasse coletivamente com a revelação, quando todo mundo na sala do tribunal já sabia exatamente o que estava por vir.
Então se aproximou da mesa da promotoria e abriu um saco marrom de prova. De dentro tirou um martelo que estava encerrado em um saco plástico transparente. Segurando
o martelo no alto, ela voltou ao atril.
- Excelência, posso me aproximar da testemunha com a prova?
- Por favor.
Ela levou o martelo até Longstreth e o entregou à mulher.
- Detetive, peço que identifique o martelo que tem nas mãos.
- Esse é o martelo que foi encontrado e entregue para mim. Minhas iniciais e o número do distintivo estão nesse saco de prova.
Freeman pegou o martelo de sua mão e pediu que fosse registrado como prova do estado. O juiz Perry deu sua aprovação. Após devolver o martelo à mesa da promotoria,
Freeman voltou ao atril e procedeu à sua inquirição.
- A senhora testemunhou que o martelo foi entregue à DIS para o exame da perícia, correto?
- Isso, correto.
- E subsequentemente a isso a senhora recebeu um relatório forense sobre a ferramenta?
- Isso, e estou com ele aqui.
- O que descobriram?
- Duas coisas dignas de nota. Uma foi que identificaram o martelo como sendo feito exclusivamente para o Estojo de Ferramentas de Carpinteiro Craftsman.
- O mesmo jogo que foi encontrado na garagem da acusada?
- Isso.
- Só que sem o martelo?
- Correto.
- E a outra descoberta digna de nota da perícia foi o quê?
- Encontraram sangue no cabo do martelo.
- Mesmo com ele tendo sido encontrado nos arbustos e ficado lá por várias semanas?
Fiquei de pé e protestei, argumentando que nenhum testemunho ou prova estabelecia quanto tempo o martelo ficara nos arbustos.
- Excelência - respondeu Freeman. - O martelo foi encontrado várias semanas após a ocorrência do crime. É simplesmente lógico supor que ficou nos arbustos durante
esse tempo.
Antes que o juiz pudesse deliberar, contra-argumentei rapidamente.
- Mais uma vez, Meritíssimo, o estado não apresentou nada a título de prova ou testemunho que conclua que o martelo ficou nesse arbusto por um tempo tão longo. Na
verdade, o homem que o encontrou disse em seu depoimento que tinha trabalhado em torno desses arbustos pelos menos 12 vezes desde o crime e que só o viu na manhã
em que de fato o encontrou. O martelo poderia facilmente ter sido plantado na noite anterior ao...
- Protesto, Excelência! - exclamou Freeman. - O advogado da defesa está usando sua objeção para apresentar seu caso antes de descobrir que v...
- Chega! - bradou o juiz. - Os dois. Objeção deferida. Doutora Freeman, precisa refazer sua pergunta de modo a não assumir fatos que não estão na prova.
Freeman baixou o rosto para as notas, acalmando-se.
- Detetive, a senhora viu sangue no martelo quando ele lhe foi entregue?
- Não, não vi.
- Então quanto sangue havia de fato no martelo?
- Foi descrito no laudo como um vestígio de sangue. Uma quantidade minúscula que estava abaixo da parte superior do revestimento de borracha que envolve o cabo de
madeira.
- Ok, então o que a senhora fez depois de receber o laudo?
- Providenciei para que o sangue do martelo fosse testado em um laboratório de DNA particular, em Santa Monica.
- Por que não usou o laboratório criminal regional na Cal State? Não é o procedimento normal?
- É o procedimento normal, mas queríamos acelerar a investigação. Havia dinheiro no orçamento, então achamos que era melhor fazer a coisa andar mais depressa. Eu
mandei revisar os resultados no nosso laboratório.
Freeman fez uma pausa nesse ponto e pediu ao juiz para incluir o laudo da perícia sobre o martelo como prova da promotoria. Não protestei e o juiz acatou. Freeman
a seguir mudou de rumo, deixando a revelação do DNA para o perito em DNA que viria ao final do caso da promotoria.
- Vamos voltar à garagem agora, detetive. Houve alguma outra descoberta significativa?
Protestei outra vez, agora quanto à formulação da pergunta, que pressupunha que houvera uma descoberta significativa quando na verdade nada havia sido testemunhado.
Era uma objeção fraca, mas fiz assim mesmo porque a última disputa acerca de um protesto meu quebrara o ritmo de Freeman. Eu queria continuar a fazer isso. O juiz
disse-lhe para refazer a pergunta e ela consentiu.
- Detetive, a senhora testemunhou sobre o que não encontrou na garagem. O martelo. O que pode nos dizer sobre o que encontrou?
Freeman virou para mim depois de perguntar, como que para obter minha aprovação. Acenei com o queixo e ela sorriu. O fato de que ao menos desse por minha presença
era um sinal de que eu a atingira com minhas duas últimas objeções.
- Encontramos um par de sapatos de jardinagem e obtivemos uma reação positiva para sangue quando fizemos o teste do Luminol.
- O Luminol é um dos agentes que reagem com sangue sob luz ultravioleta, correto?
- Correto. Ele é usado para detectar pontos onde o sangue foi esfregado ou removido.
- Onde vocês encontraram sangue?
- No cadarço do sapato esquerdo.
- Por que esses sapatos em particular foram testados com Luminol?
- Em primeiro lugar, é rotina testar todos os sapatos e roupas quando se está à procura de uma prova de sangue. Havia sangue na cena do crime, então você trabalha
presumindo que deve ter ficado um pouco com o agressor. Segundo, observamos no quintal que a horta fora trabalhada recentemente. O solo tinha sido remexido e mesmo
assim os sapatos estavam muito limpos.
- Bom, mas a pessoa não limpa os sapatos de jardinagem antes de entrar na casa?
- Pode ser, mas não estávamos na casa. Ali era a garagem e os sapatos estavam em uma caixa de papelão que continha muita terra solta, presumivelmente do jardim,
e mesmo assim os sapatos estavam bem limpos. Chamou nossa atenção.
Freeman avançou o vídeo para o ponto onde os sapatos eram mostrados. Eles estavam guardados numa caixa que dizia COCA-COLA. Estavam em uma prateleira sob a bancada.
Não escondidos, nem nada assim. Apenas no lugar onde ficariam normalmente guardados.
- São esses os sapatos?
- São. Dá para ver um dos técnicos forenses recolhendo, ali.
- Então está afirmando que o fato de estarem tão limpos mas guardados numa caixa suja os tornava suspeitos?
Protestei, alegando que estava conduzindo a testemunha. Fui atendido pelo juiz, mas o ponto foi dela, que passou seu recado para o júri. Freeman prosseguiu.
- O que a fez pensar que os sapatos fossem de Lisa Trammel?
- Porque eram pequenos, obviamente sapatos femininos, e porque encontramos uma foto emoldurada na casa que mostrava Lisa trabalhando no jardim. Ela estava usando
os sapatos.
- Obrigada, detetive. O que aconteceu com os sapatos e a mancha no único cadarço que inicialmente apresentou sangue no teste?
- O cadarço foi entregue para o laboratório criminal regional na Cal State, para teste de DNA.
- Por que não usaram o laboratório particular para isso?
- A amostra de sangue era muito pequena. Decidimos não nos arriscar a perder a amostra num laboratório terceirizado. Meu parceiro e eu na verdade entregamos pessoalmente
a amostra no laboratório da Cal State. Também enviamos outros exemplares para comparação.
- Outros exemplares para comparação... o que isso quer dizer?
- Amostras de sangue da vítima também foram mandadas em entregas separadas para o laboratório, de maneira a serem comparadas com o sangue encontrado no sapato.
- Por que entregas separadas?
- Para que não houvesse nenhuma chance de contaminação entre as amostras.
- Obrigada, detetive Longstreth. Não tenho mais perguntas, no momento.
O juiz chamou o intervalo do meio da tarde antes de dar início à contrainquirição. Minha cliente, sem saber do verdadeiro propósito de meu convite para o almoço,
convidou-me para me unir a ela e Dahl no café. Recusei, dizendo que tinha de redigir algumas perguntas. Na verdade, minhas perguntas já estavam prontas. Embora antes
do julgamento eu estivesse achando que Freeman usaria Kurlen para introduzir e testemunhar sobre o martelo, os sapatos e a busca na casa de Lisa Trammel, eu estava
preparado de qualquer maneira, porque a inquirição da promotoria fora exatamente como eu esperava que fosse.
Em vez disso, passei o intervalo ao telefone com Cisco, preparando-o para o encontro com Dahl às sete. Disse a ele para informar Bullocks do que estava acontecendo
e deixar Tommy Guns e Bam Bam de guarda do lado de fora do Victory Building. Eu não tinha certeza se Dahl ia jogar limpo ou não, mas ia ficar preparado para uma
coisa ou outra.
Trinta e cinco
Após o intervalo, a detetive Longstreth voltou ao banco das testemunhas e o juiz virou para mim. Não perdi tempo com amenidades e fui direto às questões que pretendia
apresentar perante o júri. Antes de mais nada, seu depoimento informava o júri que o bairro em torno do WestLand fora objeto de uma busca policial no dia do crime.
Isso incluía a casa e presumivelmente o jardim onde o martelo foi enfim encontrado.
- Detetive - perguntei -, não a incomoda que esse martelo tenha sido encontrado tanto tempo após o crime e ainda assim tão próximo da cena do crime e num lugar situado
dentro do perímetro de uma intensa busca?
- Não, na verdade não. Depois que o martelo foi encontrado, eu fui até lá e observei os arbustos na frente daquela casa. Eram grandes e muito densos. Não me surpreendeu
nem me deixou preocupada de jeito algum que um martelo pudesse ter ficado ali o tempo todo. Na verdade, eu achei que a gente teve muita sorte de acabar encontrando.
Boa resposta. Eu começava a ver por que Freeman dividira as coisas entre Kurlen e Longstreth. Longstreth era muito boa no banco das testemunhas, talvez melhor até
que seu parceiro veterano. Segui em frente. Uma das regras do jogo era se distanciar dos equívocos. Não piorar as coisas insistindo no erro.
- Certo, vamos passar na casa em Woodland Hills, agora. Detetive, a senhora não concordaria que a busca na casa foi um fiasco?
- Um fiasco? Não sei se chamaria de fiasco. Eu...
- Vocês encontraram as roupas sujas de sangue da acusada?
- Não, não encontramos.
- Encontraram o sangue da vítima nos canos do chuveiro ou da banheira?
- Não, não encontramos.
- E na máquina de lavar?
- Não.
- Que prova o estado apresentou durante este julgamento que tenha sido obtida dentro da residência da acusada? Não estou falando da garagem. Só da casa.
Longstreth ficou em silêncio por um bom tempo conforme empreendia um inventário em sua cabeça. Finalmente, sacudiu a cabeça.
- Não consigo me lembrar de nada, no momento. Mas isso também não quer dizer que a busca foi um fiasco. Às vezes não encontrar prova pode ser tão útil quanto encontrar.
Parei. Era uma isca. Ela queria que eu lhe pedisse para explicar. Mas, se eu fizesse uma coisa dessas, não tinha como saber que rumo ela tomaria. Decidi recuar,
ignorar a isca e seguir em frente.
- Ok, mas o verdadeiro tesouro, a prova que vocês realmente encontraram, foi achada na garagem, correto? A prova que já foi ou será trazida para o julgamento neste
tribunal.
- Acho que sim, é.
- Estamos falando sobre o sapato com o sangue e o jogo de ferramentas com o martelo faltando, correto?
- Isso tá certo.
- Deixei de notar alguma coisa?
- Acho que não.
- Ok, então me permita mostrar uma coisa ali nas telas.
Peguei o controle remoto, que Freeman deixara à mão, sobre o atril. Voltei o vídeo da busca, mantendo os olhos nas imagens que retrocediam. Passei direto pelo trecho
que me interessava e apertei o STOP, depois pus para rodar até o ponto correto e pausei.
- Ok, pode explicar ao júri o que está acontecendo nesse ponto do vídeo?
Apertei o PLAY e a imagem na tela começou a se mover. Mostrava Longstreth e um dos técnicos forenses saindo da residência e atravessando o pórtico para a porta que
levava à garagem.
- Ahn, isso é quando fomos para a garagem - disse Longstreth.
Então dava para ouvir sua voz na gravação:
- Acho que a gente vai precisar pegar a chave com o Kurlen - ela dizia.
Mas no vídeo ela punha a mão enluvada na maçaneta e girava.
- Esquece, tá aberta.
Deixei o vídeo seguir até Longstreth e o técnico forense terem entrado na garagem e acendido as luzes. Depois pausei novamente.
- Essa foi a primeira vez que entraram na garagem, detetive?
- Foi.
- Estou vendo que vocês acenderam as luzes aqui. Alguma outra pessoa da equipe de busca chegou a entrar antes na garagem?
- Não, ninguém.
Voltei devagar o vídeo até o ponto onde ela abrira a porta para entrar. Acionei o aparelho outra vez e fiz minhas perguntas conforme as imagens passavam.
- Notei que a senhora não usou uma chave para entrar na garagem, detetive. Por que isso?
- Eu experimentei a porta, como pode ver, e ela estava destrancada.
- Sabe me dizer por quê?
- Não, estava destrancada, só isso.
- Tinha alguém na casa quando a equipe de busca chegou?
- Não, a casa estava vazia.
- E a porta da casa estava trancada, correto?
- Isso, a senhora Trammel tinha trancado quando concordou em nos acompanhar até Van Nuys.
- Ela trancou por iniciativa própria ou vocês disseram a ela para fazer isso?
- Não, ela mesma trancou.
- Então no momento em que trancou a casa, ela deixou a outra porta, que dava para a garagem, destrancada, não foi?
- Correto.
- Ou seja, qualquer um poderia ter entrado na garagem enquanto a proprietária, Lisa Trammel, estava sob a custódia da polícia, correto?
- Acho que é possível, pode ser.
- A propósito, quando a senhora e o detetive Kurlen saíram da casa com a senhora Trammel nessa manhã, deixaram algum policial a postos na casa, montando guarda,
de certa forma, para ter certeza de que nada seria mexido ou tirado do interior?
- Não, não deixamos.
- Não pensaram que seria uma medida prudente, considerando que a casa podia conter prova de uma investigação de homicídio?
- Na época ela não era uma suspeita. Só alguém com quem queríamos conversar.
Quase sorri e Longstreth quase sorriu. Ela contornara habilmente a armadilha que eu lhe preparara. Muito bem.
- Ah - eu disse. - Não era suspeita, isso mesmo. Então quanto tempo, na sua opinião, a porta lateral foi deixada destrancada e a garagem disponível para alguém entrar?
- Isso seria uma coisa impossível de responder, para mim. Não sei nem quando foi destrancada, para começar. Pode ser que ela nunca trancasse a garagem.
Balancei a cabeça e fiz uma pausa após sua resposta.
- Por acaso a senhora ou o detetive Kurlen instruíram a equipe forense a verificar se havia alguma impressão digital na porta que levava à garagem?
- Não, não fizemos isso.
- Por que não, detetive?
- Porque não era necessário. Estávamos dando uma busca na casa, não preservando uma cena de crime.
- Permita-me lhe perguntar hipoteticamente, detetive. A senhora acha que alguém que tenha planejado e praticado cuidadosamente um assassinato iria depois deixar
um par de sapatos com sangue na garagem destrancada? Principalmente depois de se dar ao trabalho de se livrar da arma do crime?
Freeman protestou, mencionando a natureza composta da pergunta e argumentando que presumia fatos que não estavam na prova. Não me importei. A pergunta não fora feita
para saber o que Longstreth tinha a dizer. Fora dirigida ao júri.
- Excelência, retiro a pergunta - anunciei. - E não tenho mais perguntas para a testemunha.
Afastei-me do atril e sentei. Fiquei olhando diretamente para os jurados, passando pelo rosto de cada um. Finalmente, parei quando vi Furlong, na cadeira três. Ele
ficou olhando para mim sem desviar o rosto. Tomei isso como um bom sinal.
Trinta e seis
Herb Dahl apareceu sozinho. Cisco o recebeu na porta do escritório e o conduziu até minha sala, onde eu estava à espera. Bullocks sentava do meu lado esquerdo e
pusemos uma cadeira para Dahl na frente da minha mesa. Cisco ficou de pé, como havíamos combinado. Eu queria Cisco em movimento e pensativo. Queria Dahl se sentindo
desconfortável, com receio de que uma palavra errada pudesse provocar o grandalhão de camiseta preta apertada.
Não ofereci café, refrigerante ou água para Dahl. Não comecei com nenhuma conversa mole nem fiz qualquer esforço de melhorar nossa relação tensa. Apenas fui direto
ao assunto.
- O objetivo de estarmos aqui, Herb, é descobrir exatamente o que você fez, qual seu envolvimento com Louis Opparizio e o que vamos fazer a respeito. Até onde sei,
minha presença não será necessária em lugar algum até as nove horas da manhã, então a gente tem a noite inteira, se precisar.
- Antes de mais nada, quero saber qual vai ser meu acordo por cooperar - disse Dahl.
- Eu disse hoje na hora do almoço que seu acordo é ficar fora da prisão. Em troca, você me diz o que sabe. Fora isso, não prometo nada.
- Não vou testemunhar nem nada assim. Só dou informações. Além do mais, tenho uma coisa melhor do que meu testemunho para você.
- Bom, isso a gente vai ver. Mas nesse momento quero começar pelo começo. Você disse hoje que o mandaram participar da manifestação de Lisa Trammel. Começa daí.
Dahl fez que sim, mas então discordou.
- Acho que preciso começar antes disso. A história vem desde o começo do ano passado.
Mostrei a palma das mãos.
- Fique à vontade. A gente tem a noite toda.
Dahl então passou a contar uma longa história sobre um filme que ele produzira um ano antes, chamado Blood Racer. Era um desses afetuosos filmes familiares sobre
uma garota que ganha um cavalo chamado Chester. Ela encontra um número tatuado dentro do lábio interno do animal, indicando que se tratava de um puro-sangue que,
assim se acreditava, morrera no incêndio em um celeiro, cinco anos antes.
- Então ela e seu pai investigam mais um p...
- Olha - interrompi. - Parece uma ótima história, mas será que dá para falar sobre Louis Opparizio? Pode até ser que eu tenha a noite toda, mas não vamos sair do
assunto.
- Esse é o assunto. Esse filme. Era para ser um baixo orçamento do começo ao fim, mas eu adoro cavalos. Desde criança. E realmente achei que ia conseguir sair das
prateleiras com esse.
- Prateleiras?
- Toda essa tranqueira lançada direto em DVD que você vê por aí. Para mim a história era um diamante bruto e se a gente fizesse direito podia conseguir um lançamento
em grande estilo nos cinemas. Mas pra isso você precisa de produção de primeira, e para conseguir isso você precisa de dinheiro.
Tudo sempre tem a ver com dinheiro.
- Você pegou dinheiro emprestado?
- Peguei o dinheiro emprestado e investi tudo no filme. Burrice, eu sei. E sem falar no dinheiro do investidor que eu já tinha conseguido no começo. Mas o diretor
era um maluco perfeccionista que veio da Espanha. O cara mal falava inglês, mas a gente contratou. Era tomada atrás de tomada em cada passo do cronograma... trinta
tomadas na droga de cena do bar! Resultado: a grana acabou e precisei de 250 paus no mínimo para terminar o filme. Eu já tinha batido perna pela cidade inteira atrás
de dinheiro, não tinha mais ninguém. Mas eu adorava o filme. Para mim era um desses filmes modestos que virariam uma grande surpresa, sabe como é?
- Você conseguiu a grana com um agiota - disse Cisco, atrás da cadeira de Dahl.
Dahl girou para olhar para ele e balançou a cabeça.
- É, de um cara que eu conheço. Um carcamano.
- Qual o nome dele? - perguntei.
- A gente não precisa mencionar o nome dele aqui - disse Dahl.
- Precisa sim. Qual é o nome?
- Danny Greene.
- Pensei que você tinha dito q...
- É, sei. Ele é da famiglia, mas o nome é Greene... o que eu vou dizer? É “Green” com um “e” no fim.
Troquei um olhar com Cisco.
- Muito bem, então você pegou 250 com Danny Greene e o que aconteceu?
Dahl ergueu a palma das mãos, indicando frustração.
- Só isso, não aconteceu nada. Terminei o filme, mas não consegui vender. Levei pra tudo que foi festival pela América do Norte e ninguém quis. Levei pro American
Film Market, aluguei uma droga de suíte no Loews, em Santa Monica, e só vendi para a Espanha. Claro, o único país que ficou interessado foi o país de onde era o
diretor.
- Então Danny Greene não estava feliz, estava?
- Não, não estava. Quer dizer, eu vinha pagando em dia, mas era um empréstimo de seis meses, e ele me deu um ultimato. Eu não tinha como pagar tudo. Dei pra ele
o dinheiro da Espanha, mas a maior parte ainda ia demorar. Mandaram para a dublagem e essa merda toda e não vou ver a maior parte da grana até o fim deste ano, quando
o filme for lançado lá. Então eu me fodi direitinho.
- O que aconteceu?
- Bom, um dia o Danny chega pra mim. Quer dizer, ele aparece e eu estou achando que é para quebrar minhas duas pernas. Mas em vez disso ele diz que precisa de mim
para fazer uma coisa. É um serviço de longo prazo e se eu fizer vou poder reestruturar meu empréstimo e posso até ficar livre de uma boa parte do que faltava pagar.
Então, cara, fiquei sem saída, não tive escolha. O que eu vou fazer, dizer não pro Danny Greene? Uh-hum, não é assim que funciona.
- Então você falou que tudo bem.
- Isso mesmo. Eu topei.
- E qual era o serviço?
- Me aproximar daquele pessoal que estava fazendo manifestações e protestos contra as execuções hipotecárias. A organização chamada FLAG. Ele me queria dentro do
QG deles, se eu conseguisse. Daí eu fiz isso, e foi assim que conheci a Lisa. Ela era a principal agitadora.
Isso parecia esquisito, mas continuei dando corda.
- Explicaram para você o motivo?
- Na verdade, não. Só fiquei sabendo que tinha um sujeito que estava meio que paranoico e queria saber o que ela andava armando. Ele estava com algum tipo de negócio
para fechar e não queria essa gente atrapalhando. Então se Lisa estivesse planejando protestar ou qualquer coisa assim, daí era para eu contar para o Danny onde
ia ser, contra quem, esse tipo de coisa.
A história agora começava a soar como verdadeira. Pensei no negócio da LeMure. Opparizio estivera no processo de preparar a aquisição da ALOFT por essa empresa de
capital aberto. A prudência do mundo dos negócios ditava que ficasse inteirado de qualquer ameaça potencial para a venda antes de ser finalizada, em fevereiro. Isso
podia incluir Lisa Trammel. Má publicidade podia fazer a venda mixar. Os acionistas sempre esperam que uma aquisição seja transparente.
- Certo, o que mais?
- Não tem muito mais. Só espionagem. Eu me aproximei da Lisa, só que mais ou menos um mês depois ela foi presa pelo assassinato. Danny apareceu de novo, então. Achei
que ia dizer que nosso acordo estava cancelado porque ela tinha sido presa. Mas ele disse que era para eu pagar a fiança e tirar ela de lá. Ele me deu a grana num
saco, duzentas pilas. Daí, quando ela saiu, era para ser a mesma coisa outra vez, só que com vocês. Entrar no QG, descobrir o que estava acontecendo e informar.
Voltei a olhar para Cisco. Seus movimentos pensativos não eram mais uma encenação. Nós dois sabíamos que Dahl podia ser a ponta de um iceberg que iria rachar o fundo
do caso da promotoria e fazer o barco deles afundar. A gente sabia também que em Lisa Trammel tínhamos uma cliente extremamente antipática, mas inocente.
E se ela era inocente...
- Onde Opparizio entra nessa história? - perguntei.
- Bom, de certa forma, não entra, pelo menos, não diretamente. Mas quando eu procuro o Danny para dar meus informes, ele sempre quer saber o que você tem para usar
contra o Opparizio. Ele fala assim: “O que eles têm no Opparizio?” Toda vez ele pergunta. Então eu fico pensando, vai ver é pra esse cara que eu estou realmente
fazendo o serviço, entende?
Não respondi imediatamente. Girei na cadeira, refletindo sobre a história.
- Sabe o que eu não entendo e o que você não conta nessa história, Dahl? - disse Cisco.
- O quê?
- A parte sobre contratar aqueles caras para pegar o Mick. Você deixou essa parte de fora, seu babaca.
- Pode falar - acrescentei.
Dahl ergueu as mãos em sinal de rendição, para mostrar sua inocência.
- Ei, foram eles que me disseram para fazer isso. Me mandaram aqueles dois caras.
- Por que me pegar? Ajudou em quê?
- Atrasou você, não foi? Eles querem que a Lisa dance por isso e começaram a achar que você era muito bom. Queriam diminuir seu ritmo.
Dahl evitou o contato olho no olho esfregando fiapos imaginários em sua coxa conforme falava. Isso me fez pensar que talvez estivesse mentindo sobre o motivo por
trás do ataque contra mim. Era a primeira nota falsa que eu pegara durante a confissão. Meu palpite era que Dahl armara a emboscada na garagem por conta própria,
que talvez a ideia da surra houvesse partido dele.
Olhei para Bullocks e depois para Cisco. À parte minha preocupação com a última resposta de Dahl, tínhamos uma oportunidade ali. Eu sabia o que Dahl ia me oferecer
a seguir. Sua atuação como agente duplo. Com ele fornecendo falsas informações para Opparizio, a gente ia estar um passo à frente.
Eu tinha de pensar a respeito. Eu podia facilmente fornecer informação enganosa para Dahl levar de volta até Danny Greene. Mas seria uma manobra arriscada, para
não mencionar as considerações éticas.
Fiquei de pé e fiz um sinal para Cisco, indicando a porta.
- Todo mundo aguarda um minuto. Quero conversar com meu investigador lá fora.
Saímos para a área da recepção e fechei a porta atrás de mim. Fui até a mesa de Lorna.
- Você está vendo o que isso significa? - perguntei.
- Significa que a gente vai ganhar a porra desse caso.
Abri a gaveta do meio na mesa de Lorna e tirei a pilha de cardápios de comida para viagem dos restaurantes locais e cadeias de fast-food.
- Não, significa que aqueles dois caras lá na sede do clube... Eles podiam ser os assassinos de Bondurant, e a gente fodeu tudo armando aquele negócio na salinha
escura.
- Não sei quanto a isso, chefe.
- Sei, o que seus camaradas fizeram com eles?
- Exatamente o que eu mandei fazer, deixar os caras em algum lugar. Eles me contaram mais tarde que os dois quiseram ficar em um clube da garrafa no centro. E foi
isso. Sério mesmo, Mick.
- Mesmo assim, fodeu tudo.
Com os cardápios na mão, fui na direção da minha porta. Cisco falou às minhas costas.
- Você acredita no Dahl?
Olhei outra vez para ele antes de abrir a porta.
- Até certo ponto.
Entrei na sala e pus os cardápios no centro da mesa. Sentei outra vez e olhei para Dahl. Era uma cobra criada tentando se dar bem. E eu estava prestes a ir pelo
mesmo caminho.
- Melhor a gente não fazer isso - disse Bullocks.
Olhei para ela.
- Fazer o quê?
- Usá-lo para entregar informação falsa para Opparizio. Melhor pôr ele no banco das testemunhas e fazer com que conte a história para o júri.
Dahl protestou imediatamente.
- Eu não vou testemunhar! Que merda ela pensa que é, dizendo como ess...
Ergui as mãos num gesto para que se acalmasse.
- Você não vai testemunhar - eu disse. - Mesmo que eu quisesse, não ia conseguir levar você para o banco das testemunhas. Não tem nada que ligue Opparizio diretamente
com isso. Alguma vez você se encontrou com o homem?
- Não.
- Já viu o homem antes?
- Já, no tribunal.
- Antes disso.
- Não, e nunca tinha escutado o nome até Danny me perguntar a respeito.
Olhei para Bullocks e balancei a cabeça.
- Os caras são espertos demais para deixar uma conexão direta por aí. O juiz não ia deixar ele chegar nem perto do banco das testemunhas.
- E que tal Danny Greene? A gente pode intimar ele.
- E o que a gente usa para obrigar ele a testemunhar? Ele ia invocar a Quinta antes que a gente dissesse seu nome. Só tem uma coisa a ser feita aqui.
Esperei por mais protestos, mas finalmente Bullocks, com ar sombrio, ficou em silêncio. Olhei para Dahl outra vez. Eu desprezava o sujeito intensamente, e acreditava
nele tanto quanto acreditava que era cabelo de verdade que havia em sua cabeça. Mas isso não me impediu de dar o passo seguinte.
- Dahl, como você entra em contato com Danny Greene?
- Normalmente eu ligo às dez, mais ou menos.
- Toda noite?
- É, durante o julgamento tem sido assim. Ele sempre quer receber notícias minhas. Na maioria das vezes ele atende e se não atende liga de volta bem rápido.
- Ok, vamos dar uma olhada aí e pedir comida. Hoje à noite você liga daqui.
- O que eu vou dizer?
- A gente vai pensar direitinho até chegar a hora de você ligar, às dez. Mas em essência acho que você vai dizer para Danny Greene que Louis Opparizio não tem com
que se preocupar quando subir no banco das testemunhas. Você vai dizer pra ele que a gente não tem nada, que estamos blefando e que a barra está limpa.
Trinta e sete
Quinta-feira era para ser o dia em que todos os elementos da orquestra se uniriam num crescendo para a promotoria. Desde a segunda de manhã, Andrea Freeman desenvolvera
cuidadosamente seu caso, cercando as variáveis e incógnitas, como os tiros a esmo que mandei e a intromissão da carta-alvo federal, numa evolução estratégica que
ganhava ímpeto e levava inexoravelmente a esse dia. Quinta era o dia da ciência, o dia em que todos os elementos de prova e testemunho seriam interligados com as
amarras inquebráveis do fato científico.
Era uma boa estratégia, mas era aí que eu pretendia virar seus planos de cabeça para baixo. Na sala do tribunal há três coisas que um advogado sempre deve levar
em consideração: o conhecido, as incógnitas conhecidas e as incógnitas desconhecidas. Esteja ocupando a mesa da promotoria ou da defesa, é trabalho do advogado dominar
as duas primeiras e sempre estar preparado para a terceira. Na quinta eu pretendia ser uma das incógnitas desconhecidas. Eu enxergara a estratégia de Andrea Freeman
a um quilômetro de distância. Ela não iria enxergar a minha até que pisasse ali como em uma areia movediça e isso silenciasse sua música.
Sua primeira testemunha foi o dr. Joachim Gutierrez, o assistente do legista que realizou a autópsia no cadáver de Mitchell Bondurant. Valendo-se de uma mórbida
apresentação de slides a que eu objetara sem muita convicção e sem nenhum sucesso, o médico conduziu o júri num magical mystery tour pelo corpo da vítima, catalogando
cada hematoma, escoriação e dente quebrado. Claro que passou a maior parte do tempo descrevendo e mostrando nas telas os ferimentos gerados pelos três impactos da
arma do crime. Apontou qual fora o primeiro golpe e por que foi fatal. Chamou as duas outras pancadas, desferidas quando a vítima estava de bruços no chão, de overkill
e testemunhou que por sua experiência uma overkill correspondia a um contexto emocional. Os três golpes brutais revelaram que o assassino tinha animosidade pessoal
em relação à vítima. Eu poderia ter protestado contra as duas coisas, tanto a pergunta como a resposta, mas elas se prestavam bem a uma questão que eu faria mais
tarde.
- Doutor - perguntou Freeman, a certa altura -, se existem três golpes brutais desferidos no topo da cabeça, todos em um círculo de 10 centímetros de diâmetro, como
é possível dizer qual foi o primeiro e qual foi o golpe fatal?
- É um processo meticuloso, porém muito simples. As pancadas no crânio criaram dois padrões de fratura. O impacto imediato e com maior dano foi na área de contato
onde cada golpe da arma provocou o que é chamado de fratura calvária deprimida, o que é na verdade apenas um modo sofisticado de dizer que criou uma depressão no
crânio, ou uma mossa.
- Mossa?
- Veja, todo osso tem uma certa elasticidade. Com lesões como essa... um impacto poderoso, traumático... o osso do crânio afunda no formato do instrumento do golpe,
e duas coisas acontecem. Você tem linhas de ruptura paralelas sobre a superfície... chamamos de fraturas niveladas, e no interior você tem uma fratura de depressão
profunda, a mossa. No interior do crânio essa depressão causa uma fratura que a gente chama de lasca em pirâmide. Essa lasca se projeta através da dura-máter, que
é uma membrana interna, e diretamente no cérebro. Muitas vezes, e foi esse o caso, como descobrimos, a lasca se solta e penetra fundo no tecido cerebral como se
fosse uma bala. Isso causa imediatamente o término da função cerebral e a morte.
- Como uma bala, o senhor disse. Então esses três impactos na cabeça da vítima foram tão poderosos que literalmente equivaleram a receber três tiros na cabeça?
- Isso, correto. Mas só foi necessária uma das lascas para matá-lo. A primeira.
- O que me traz de volta à pergunta inicial. Como o senhor pode afirmar qual impacto ocorreu primeiro?
- Posso fazer uma demonstração?
O juiz deu permissão a Gutierrez para mostrar o diagrama de um crânio nas telas de vídeo. Era uma vista do alto e mostrava os três pontos de impacto que o martelo
atingira. Esses pontos estavam desenhados em azul. Outras fraturas estavam desenhadas em vermelho.
- Para determinar a sequência de golpes numa situação de trauma múltiplo, vamos às fraturas secundárias. Essas são as fraturas em vermelho. Chamei essas rupturas
paralelas de fraturas niveladas porque, como eu disse antes, são como passos se afastando do ponto de impacto. Uma fratura ou rachadura como essa pode se estender
completamente através do osso e aqui se pode ver que no caso dessa vítima essas linhas de fratura percorrem transversalmente a região parietal-temporal. Mas essas
fraturas sempre terminam quando atingem uma fratura preexistente. A energia é simplesmente absorvida pela fratura existente. De modo que estudando o crânio da vítima
e rastreando as fraturas niveladas torna-se possível determinar quais dessas fraturas vieram primeiro. E depois é claro podemos rastrear de volta até o ponto de
impacto e perceber facilmente a ordem das pancadas.
No desenho da tela os números 1, 2 e 3 estavam escritos, assinalando a ordem dos golpes que desceram sobre a cabeça de Mitchell Bondurant. O primeiro golpe - o impacto
fatal - fora bem no alto da cabeça.
Freeman prosseguiu a partir daí e passou a maior parte da manhã explorando a testemunha, chegando finalmente a um ponto em que começou a repisar o óbvio em muitas
áreas, com um excesso de perguntas repetitivas ou pouco pertinentes. Por duas vezes o juiz teve de lhe pedir para passar a outras áreas do testemunho. E então comecei
a achar que estava tentando ganhar tempo. Ela estava sendo obrigada a segurar a testemunha durante toda a manhã porque sua testemunha seguinte possivelmente não
se achava disponível ou talvez tivesse até lhe dado o cano.
Mas se estava nervosa com algum problema, Freeman não aparentava. Manteve o foco em Gutierrez e o conduziu com firmeza ao longo do depoimento, encerrando com o mais
importante - ligar o martelo Craftsman encontrado nos arbustos aos ferimentos na cabeça da vítima.
Para fazer isso, mandou trazer os modelos. Após a autópsia de Bondurant, Gutierrez criara um molde da cabeça da vítima. Ele também tirou uma série de fotos do couro
cabeludo e imprimiu imagens retratando os ferimentos em tamanho real.
Recebendo o martelo que havia sido introduzido como prova, Gutierrez o removeu do saco plástico e começou uma demonstração para mostrar como a face achatada e circular
se encaixava perfeitamente nos ferimentos e depressões do crânio. O martelo tinha também um chanfro na beirada superior da superfície de impacto cuja finalidade
era segurar o prego. O chanfro podia claramente ser visto na depressão esquerda do crânio. Tudo se encaixava perfeitamente no quebra-cabeça da promotoria. Freeman
estava radiante quando viu um elemento-chave de prova se cristalizando na frente do júri.
- Doutor, o senhor tem alguma dúvida em dizer ao júri que essa ferramenta pode ter produzido o ferimento fatal na vítima?
- Nenhuma.
- O senhor se dá conta de que essa ferramenta não é única, correto?
- Claro. Não estou dizendo que esse martelo específico causou os ferimentos. Estou dizendo que ou foi esse martelo, ou algum outro desse mesmo modelo. Não dá para
ser mais específico que isso.
- Obrigada, doutor. Agora vamos falar sobre a chanfradura na superfície de impacto do martelo. O que o senhor pode dizer sobre a posição da chanfradura no padrão
de ferimento?
Gutierrez ergueu o martelo e apontou para o chanfro.
- Esse chanfro fica na beirada superior. A área é magnetizada. Você põe o prego no lugar aqui, o martelo segura e daí você bate o prego na superfície do material
em que está trabalhando. Como a gente sabe que o chanfro fica no canto superior, a gente pode olhar para os ferimentos e ver de que direção eles vieram.
- E que direção foi essa?
- Atrás. A vítima foi golpeada por trás.
- Então é possível que em nenhum momento tenha visto seu agressor.
- Isso mesmo.
- Obrigada, doutor Gutierrez. Não tenho mais perguntas no momento.
O juiz entregou a testemunha para mim e quando passei por Freeman a caminho do atril ela me lançou um olhar inexpressivo que transmitia o recado: Quero ver como
vai se virar agora, seu trouxa.
Eu pretendia mostrar a ela. Pus meu bloco de anotações sobre o atril, ajeitei a gravata e estiquei os punhos da camisa, depois olhei para a testemunha. Antes de
voltar a sentar, eu o queria comendo na palma de minha mão.
- No escritório do legista eles chamam o senhor de doutor Guts, não é mesmo?
Era uma boa pergunta fora de contexto. Ia fazer a testemunha pensar que outra informação pessoal eu podia ter para tentar usar contra ele.
- Ahn, às vezes, sim. Informalmente, pode-se dizer.
- Qual a razão, doutor?
Freeman protestou, questionando a relevância, e o juiz quis saber.
- Pode me explicar de que maneira isso tem relação com o motivo de estarmos aqui hoje, doutor Haller?
- Excelência, creio que se tiver permissão de responder, o doutor Gutierrez vai revelar sua especialidade em uma patologia que não tem relação com padrões de ferramenta
e ferimentos cranianos.
Perry refletiu por um instante e depois balançou a cabeça.
- A testemunha pode responder.
Voltei meu foco para Gutierrez.
- Doutor, responda por favor à pergunta. Por que é chamado de doutor Guts?
- É porque, como o senhor mesmo disse, minha especialidade é identificar doenças do aparelho gastrointestinal... dos guts, quer dizer, das entranhas... e também
porque a palavra guts parece muito com meu nome, principalmente quando pronunciam errado.
- Obrigado, doutor. Agora o senhor pode nos dizer quantas vezes esteve em um caso em que comparou um martelo com os ferimentos no crânio de uma vítima?
- Esse é o primeiro.
Balancei a cabeça para enfatizar o ponto.
- Então o senhor é meio que um novato quando se trata de assassinato com um martelo.
- Isso mesmo, mas minha comparação foi meticulosa e completa. Minhas conclusões não estão erradas.
Mexa com seu complexo de superioridade. Sou um médico, não posso estar errado.
- O senhor já se equivocou antes ao dar seu parecer para um tribunal na condição de testemunha?
- Todo mundo comete erros. Com certeza, já.
- Como por exemplo o caso Stoneridge.
Freeman protestou na mesma hora, coisa que eu sabia que faria. Ela pediu para se aproximar e o juiz sinalizou, concedendo autorização. Eu sabia que não poderia prosseguir
nessa linha de questionamento, mas precisava dizer aquilo na frente do júri. Agora eles sabiam, apesar da mínima informação, que em algum momento no passado Gutierrez
fornecera um parecer e se equivocara. Isso era tudo de que eu necessitava.
- Meritíssimo, ambos sabemos aonde o advogado da defesa quer chegar e além de não ser relevante para a matéria, a investigação de Stoneridge continua em andamento
e não chegou a nenhuma conclusão oficial. O q...
- Retiro a pergunta.
Ela me fuzilou com o olhar.
- Sem problema. Passo à pergunta seguinte.
- Ah, contanto que o júri ouça a pergunta, tanto faz a resposta. Meritíssimo, quero que ele seja advertido quanto a isso, não está certo.
- Eu cuido disso. Volte para o seu lugar. E doutor Haller? Melhor tomar cuidado.
- Obrigado, Excelência.
O juiz instruiu os jurados a desconsiderar minha pergunta e os lembrou que seria injustiça incluir qualquer coisa que não fizesse parte das provas e dos testemunhos
quando fossem deliberar, mais tarde. Depois, disse-me para prosseguir e eu fui numa nova direção.
- Doutor, vamos nos concentrar no ferimento fatal e extrair mais alguns detalhes. O senhor o chamou de fratura de depressão, correto?
- Na verdade, chamei de fratura calvária deprimida.
Eu sempre adorava quando uma testemunha da promotoria me corrigia.
- Ok, então a depressão ou mossa que foi criada por esse impacto traumático, o senhor a mediu?
- Medir de que forma?
- A profundidade, por exemplo. O senhor mediu?
- Sim, medi. Posso consultar minhas anotações?
- Certamente, doutor.
Gutierrez verificou sua cópia do laudo de autópsia.
- Bem, chamamos o impacto fatal de ferimento 1-A. E de fato eu medi as delimitações do padrão de ferimento. Quer ouvir as medidas?
- Minha próxima pergunta. Por favor, doutor, informe-nos quais foram as medidas.
Gutierrez baixou o rosto para o documento enquanto falava.
- As medidas foram tiradas em quatro pontos do local de impacto circular. Em sentido horário, as medidas são 3, 6, 9 e 12. Doze sendo onde a chanfradura da superfície
se localizava.
- E o que essas medidas informam ao senhor?
- Muito pouca movimentação nesses números. Menos de um quarto de centímetro separando as quatro medições. A média foi de 7 milímetros em profundidade, o que dá aproximadamente
um quarto de polegada.
Ele tirou os olhos de suas anotações. Eu estava escrevendo os números, mesmo já os tendo recebido no laudo da autópsia. Relanceei a bancada do júri e vi alguns deles
fazendo anotações em suas cadernetas. Um bom sinal.
- Então, doutor, observei que essa parte de seu trabalho não foi comentada na inquirição da promotoria. O que essas medidas significam para o senhor em termos do
ângulo de impacto da arma?
Gutierrez encolheu os ombros. Olhou de soslaio para Freeman e pegou o recado. Cuidado aí.
- Não podemos concluir nada desses números.
- Sério? Por acaso o fato de que a impressão deixada pelo martelo no osso... a mossa, como o senhor chamou... foi praticamente igual em todos os pontos de medição
não indica que o martelo acertou a vítima de maneira uniforme no topo da cabeça?
Gutierrez baixou o rosto para suas anotações. Era um homem da ciência. Eu acabara de lhe fazer uma pergunta baseada na ciência e ele sabia como responder a ela.
Mas também sabia que de algum modo estava pisando em um campo minado. Ele não sabia como nem por quê, apenas que a promotora sentada a menos de 5 metros dele estava
nervosa.
- Doutor? Gostaria que eu repetisse a pergunta?
- Não, isso não será necessário. O senhor deve ter em mente que cientificamente falando um décimo de centímetro pode significar uma grande diferença.
- O senhor está dizendo que o martelo não atingiu a vítima de maneira uniforme?
- Não! - exclamou ele, irritado. - Só estou dizendo que as coisas não são tão preto no branco, como as pessoas pensam. Isso mesmo, parece que o martelo acertou a
vítima em cheio, se preferir.
- Obrigado, doutor. E quando o senhor observa suas medições da profundidade dos ferimentos no segundo e no terceiro golpes, eles não são tão uniformes, correto?
- Sim, isso está correto. Em ambos os impactos o desvio é de mais de 3 milímetros em cada um.
Eu estava no controle, agora. Estava enrolando. Recuei do atril e comecei a ir para o lado esquerdo, no espaço aberto entre o atril e a bancada do júri. Enfiei as
mãos nos bolsos e adotei a pose de um homem completamente confiante.
- Certo, doutor, o senhor então tem o golpe fatal desferido secamente e acertando em cheio no topo da cabeça. Os dois seguintes não aconteceram da mesma maneira.
O que explica essa diferença?
- A orientação do crânio. A primeira pancada cessou a função cerebral em um segundo. As escoriações e os outros ferimentos pelo corpo... os dentes quebrados, por
exemplo... indicam queda fatal imediata a partir da postura ereta. É provável que o segundo e o terceiro golpe tenham ocorrido depois que ele estava caído.
- O senhor acaba de dizer que os outros ferimentos indicam “queda fatal imediata a partir da postura ereta”. Por que o senhor tem tanta certeza que a vítima estava
de pé quando foi atacada por trás?
- As esfoladuras em ambos os joelhos indicam isso.
- Então ele não poderia estar ajoelhado quando sofreu o ataque?
- Parece improvável. As escoriações nos dois joelhos indicam outra coisa.
- E que tal agachado, como um apanhador no beisebol?
- Aí também não é possível, quando você olha para os ferimentos nos joelhos. Escoriações profundas e fratura na patela esquerda. A rótula, como é mais conhecida.
- Então não existe dúvida alguma em seu entendimento de que a vítima estava de pé quando recebeu o golpe fatal?
- Nenhuma.
Essa era talvez a resposta mais importante para qualquer pergunta no julgamento inteiro, mas continuei agindo como se fosse meramente parte da rotina.
- Obrigado, doutor. Agora vamos voltar ao crânio por um momento. Como o senhor avalia a resistência do osso na área onde ocorreu o impacto fatal?
- Depende da idade do indivíduo. Nosso crânio fica mais espesso à medida que a gente envelhece.
- Nosso indivíduo é Mitchell Bondurant, doutor. Qual a espessura do crânio dele? O senhor mediu?
- Medi. A espessura era de 80 milímetros na região de impacto.
- E o senhor conduziu algum tipo de estudo ou simulação para determinar que tipo de força teria sido necessária para que um martelo criasse a mossa de fratura letal
nesse caso?
- Não, não fiz isso.
- O senhor foi informado sobre estudos na área, de maneira geral?
- Existem estudos na área. As conclusões são bem amplas. Eu tendo a achar que cada caso é um caso. Não dá para se basear em estudos gerais.
- Não é amplamente aceito que o limiar da medida de pressão necessário para criar uma fratura de depressão é de mil libras de pressão por polegada quadrada?
Freeman ficou de pé e protestou. Disse que eu estava fazendo perguntas fora do escopo de especialidade do doutor Gutierrez como testemunha.
- O próprio doutor Haller se apressou a observar em sua contrainquirição que a especialidade da testemunha são doenças do trato digestivo, não elasticidade e depressão
de ossos.
Era uma situação em que ela só tinha a perder, e ela havia escolhido o mal menor: ou queimava sua própria testemunha desse jeito, ou permitia que eu continuasse
a lhe fazer perguntas cuja resposta ele não sabia.
- Mantido - disse o juiz. - Vamos seguir em frente, doutor Haller. Faça sua próxima pergunta.
- Sim, Excelência.
Virei algumas páginas de meu bloco e fingi que estava realmente lendo. Eu queria ganhar alguns segundos enquanto considerava o que faria a seguir. Então virei e
olhei o relógio na parede do fundo do tribunal. Faltavam 15 minutos para o almoço. Se eu tinha intenção de mandar o júri embora com um último bocadinho para ruminar,
precisava agir nesse momento.
- Doutor - eu disse. - O senhor registrou a altura da vítima?
Gutierrez verificou suas anotações.
- O senhor Bondurant media um 1,86 metro no momento de sua morte.
- De modo que essa área na coroa da cabeça teria um metro e 86 de altura. É correto dizer isso, doutor?
- Sim, é.
- Na verdade, com os sapatos que o senhor Bondurant estava usando, essa altura seria ainda maior, correto?
- É, você pode considerar aí mais uns 3 centímetros e pouco, por conta da sola.
- Muito bem, então sabendo a altura da vítima e sabendo que o ferimento fatal acertou em cheio no alto de sua cabeça, o que isso diz ao senhor sobre o ângulo do
ataque?
- Não tenho certeza se entendi o que o senhor quer dizer com ângulo do ataque?
- Tem certeza sobre isso, doutor? Estou falando sobre o ângulo do martelo em relação à área de impacto.
- Mas isso seria impossível de saber, porque não sabemos a postura da vítima ou se ela estava se abaixando para se proteger do agressor, ou qual exatamente era a
situação quando ocorreu o ataque.
Gutierrez encerrou sua resposta com um gesto de cabeça, como que orgulhoso da maneira como lidara com o questionamento.
- Mas, doutor, o senhor não testemunhou na inquirição feita pela doutora Freeman que lhe parecia, pessoalmente, pelo menos, que o senhor Bondurant foi golpeado por
trás num ataque de surpresa?
- Foi o que eu disse.
- Isso não contradiz o que o senhor acaba de declarar sobre a vítima se abaixar para se proteger da agressão? Qual das duas, doutor?
Sentindo-se acuado, Gutierrez reagiu da maneira que a maioria das pessoas acuadas fazem. Com arrogância.
- Meu depoimento é de que não sabemos exatamente o que aconteceu naquela garagem ou qual era a postura da vítima, nem qual era a orientação do crânio quando foi
atingido pelo golpe fatal. Chutar os detalhes do que aconteceu, a essa altura, seria idiotice.
- O senhor está dizendo que é estupidez tentar entender o que aconteceu na garagem?
- Não! Não estou dizendo nada disso. O senhor está deturpando minhas palavras.
Freeman tinha de fazer alguma coisa. Ela se levantou e protestou, dizendo que eu estava intimidando a testemunha. Eu não estava e o juiz disse exatamente isso, mas
a pequena interrupção foi o que bastou para Gutierrez se recompor e recuperar a calma e a postura de superioridade. Decidi recapitular as coisas. Em grande parte
eu viera usando o dr. Guts como um ponto de apoio para introduzir meu próprio especialista, que iria testemunhar durante a fase da defesa. Eu acreditava estar quase
chegando aonde queria.
- Doutor, o senhor concordaria que se pudéssemos determinar a postura da vítima e a orientação de seu crânio no momento desse primeiro golpe fatal, isso lançaria
alguma luz quanto ao ângulo em que a arma do crime foi empunhada?
Gutierrez ponderou a questão por mais tempo do que ela levara para ser formulada, depois balançou a cabeça com relutância.
- Certo, isso lançaria alguma luz sobre a questão. Mas é imposs...
- Obrigado, doutor. Minha próxima pergunta é: se soubéssemos de todas essas coisas... a postura, a orientação, o ângulo da arma... então não seríamos capazes de
fazer algumas suposições sobre a altura do atacante?
- Mas isso é absurdo. Não temos como saber essas coisas.
Ele ergueu ambas as mãos em um sinal de frustração e virou para o juiz à procura de socorro. Nenhuma ajuda veio dali.
- Doutor, o senhor não está respondendo à pergunta. Deixe-me perguntar outra vez. Se efetivamente tivéssemos conhecimento de todos esses fatores, poderíamos nesse
caso fazer alguma suposição sobre a altura do agressor?
Ele deixou cair as mãos, num gesto de eu desisto.
- Claro, claro. Mas não sabemos esses fatores.
- “Sabemos” quem, doutor? O senhor não está dizendo que o senhor não sabe esses fatores porque o senhor não procurou por eles?
- Não, eu...
- O que o senhor não quer dizer é que o senhor não quer saber desses fatores porque eles revelariam que teria sido impossível para a acusada, com um metro e 61 de
altura, ter cometido...
- Protesto!
- ... esse crime contra um homem 25 centímetros mais alto que ela?
Por sorte os martelinhos de madeira haviam sido abolidos dos tribunais na Califórnia. Perry teria quebrado sua bancada.
- Mantido! Mantido! Mantido!
Peguei meu bloco amarelo e folheei de volta no lugar todas as páginas viradas, para mostrar como estava frustrado, e dando por encerrado.
- Não tenho mais nada a...
- Doutor Haller - bradou o juiz -, o senhor já foi advertido repetidamente de se abster desse teatro na frente do júri. Considere este o último aviso. Da próxima
vez, vais sofrer as consequências.
- Ciente, Meritíssimo. Obrigado.
- O júri deve desconsiderar o último diálogo entre o advogado de defesa e a testemunha. Será apagado dos autos.
Sentei, sem ousar nem olhar para a bancada do júri. Mas não era um problema, porque dava para sentir a vibração. Os olhos deles estavam sobre mim. Na mesma onda
que eu.
Bem, nem todos. Mas o suficiente.
Trinta e oito
Passei a hora do almoço explicando para Lisa Trammel o que esperar durante a sessão vespertina do julgamento. Herb Dahl não estava presente, tendo sido despachado
numa tarefa inventada, de modo que eu pudesse ficar a sós com minha cliente. Tentei explicar para ela da melhor maneira possível os riscos que estaríamos assumindo
à medida que a fase da promotoria terminasse e a defesa fosse para o centro do palco. Ela estava temerosa, mas confiava em mim e isso é praticamente tudo que se
pode esperar de um cliente. A verdade? Não. Mas confiança? Sim.
Assim que o tribunal voltou a se reunir Freeman convocou a dra. Henrietta Stanley para o banco das testemunhas. Ela se identificou como bióloga supervisora do Laboratório
Criminal Regional de Los Angeles na Cal State L.A. Meu palpite era de que seria a última testemunha da promotoria e que seu depoimento contaria com duas partes de
grande significação. Ela iria confirmar que o exame de DNA do sangue encontrado no martelo recuperado batia perfeitamente com o DNA de Mitchell Bondurant e que o
sangue encontrado no sapato de jardinagem de Lisa Trammel também batia com o da vítima.
O testemunho científico completaria o círculo do caso, com o sangue como elo de ligação. Minha única intenção era privar a promotoria de seu grande momento.
- Doutora Stanley - começou Freeman. - A senhora conduziu ou supervisionou toda a análise de DNA que veio da investigação sobre a morte de Mitchell Bondurant, não
foi?
- Supervisionei e confirmei uma análise conduzida por um laboratório terceirizado. A outra análise eu mesma fiz. Mas devo acrescentar que tenho dois assistentes
no laboratório que me ajudam e que fazem uma boa parte do trabalho sob minha supervisão.
- A certa altura na investigação a senhora recebeu uma pequena quantidade de sangue que havia sido encontrada em um martelo analisado para uma comparação de DNA
com a vítima, está correto?
- Utilizamos um laboratório terceirizado nessa análise porque o tempo estava muito apertado. Eu supervisionei esse processo e mais tarde confirmei os resultados
obtidos.
- Excelência?
Eu estava de pé na mesa da defesa. O juiz pareceu irritado comigo por interromper a inquirição de Freeman.
- O que foi, doutor Haller?
- Para poupar o tempo do tribunal e o júri de assistir a uma explicação longa e arrastada sobre análise e comparação de DNA, a defesa estipula.
- Estipula o que, doutor Haller?
- Que o sangue no martelo veio de Mitchell Bondurant.
O juiz não perdeu um segundo. A chance de adiantar o julgamento em uma hora ou mais foi bem recebida - com cautela.
- Muito bem, doutor Haller, mas o senhor não terá oportunidade de contestar isso durante a fase da defesa. Sabe disso, não sabe?
- Sei, Meritíssimo. Não vai haver necessidade de contestação.
- E sua cliente não se opõe a essa tática?
Virei o corpo ligeiramente na direção de Lisa Trammel e gesticulei.
- Ela está perfeitamente consciente dessa tática e concorda. E também está disposta a declarar isso para os autos, se o senhor desejar lhe perguntar diretamente.
- Acho que não será necessário. Como o estado se sente em relação a isso?
Freeman parecia desconfiada, como que só esperando uma armadilha.
- Meritíssimo - ela disse -, quero que fique bem claro que a ré está ciente de que o sangue encontrado no martelo era de fato sangue de Mitchell Bondurant. E quero
uma renúncia de representação legal desqualificada.
- Não acho que uma renúncia será necessária - disse Perry. - Mas vou obter a estipulação diretamente da acusada.
Então Perry fez algumas perguntas a Lisa, confirmando que ela estava de acordo com a estipulação.
Assim que Freeman se deu por satisfeita, Perry virou sua cadeira e rodou até a ponta de sua bancada, de modo a poder se dirigir ao júri.
- Senhoras e senhores, a testemunha estava prestes a lhes fornecer uma explicação da ciência exigida para determinar o tipo do DNA e fazer sua comparação, apresentando
seu depoimento relativamente aos testes laboratoriais de comparação do sangue encontrado no martelo com o da vítima em questão, Mitchell Bondurant. Por estipulação,
a defesa quer dizer que concorda com esses resultados e não fará objeção a eles. Então o que devem concluir disso tudo é que o sangue descoberto no cabo do martelo
encontrado nos arbustos perto do banco veio de fato da vítima, Mitchell Bondurant. Isso está agora estipulado como um fato comprovado e vocês receberão por escrito
quando derem início a suas deliberações.
Acenou uma vez e então rolou a cadeira de volta para o lugar, onde disse a Freeman para continuar. Tirada de seu ritmo pela jogada inesperada, ela pediu ao juiz
alguns momentos enquanto se localizava e procurava o ponto por onde reiniciar sua inquirição. Finalmente, ergueu o rosto para sua testemunha.
- Certo, doutora Stanley, o sangue do martelo não foi a única amostra de sangue desse caso que lhe pediram para analisar, correto?
- Isso está correto. Recebemos também uma amostra separada de sangue descoberta em um sapato encontrado na residência da acusada. Na garagem, acredito. Determinamos
o tip...
- Excelência - eu disse ao me levantar de minha cadeira outra vez -, a defesa deseja estipular novamente.
Dessa vez o gesto trouxe silêncio completo à sala do tribunal. Ninguém sussurrava na plateia, o oficial do tribunal não estava usando a mão para abafar sua voz no
celular, os dedos da estenógrafa pairavam acima das teclas. Silêncio completo.
O juiz sentava com os dedos das mãos entrelaçados sob o queixo. Ele ficou nessa pose por um longo momento antes de usar as duas mãos para sinalizar que eu e Freeman
nos aproximássemos de sua bancada.
- Aqui em cima um minuto, doutores.
Freeman e eu ficamos lado a lado diante da bancada. O juiz sussurrou.
- Doutor Haller, sua reputação o precedeu quando entrou em meu tribunal para este caso. Fui informado por mais de uma fonte que o senhor era um advogado excepcional
e um defensor incansável. Mas preciso perguntar, de qualquer maneira, se sabe o que está fazendo aqui. Pretende estipular para o argumento da promotoria de que o
sangue da vítima foi encontrado no sapato de sua cliente? Tem certeza sobre isso, doutor Haller?
Balancei a cabeça, como que admitindo que ele tinha razão em questionar minha estratégia legal.
- Excelência, fizemos nossa própria análise e o resultado foi positivo. A ciência não mente e a defesa não está interessada em tentar enganar o tribunal ou o júri.
Se um julgamento procura a verdade, então que a verdade venha à tona. A defesa estipula. Vamos provar mais tarde que o sangue foi plantado no sapato. Essa é a pura
verdade, não se era ou não o sangue dele. Admitimos que era e estamos prontos para seguir em frente.
- Excelência, me concede a palavra? - disse Freeman.
- Por favor, doutora Freeman.
- O estado objeta à estipulação.
A ficha caíra, finalmente. O juiz pareceu perplexo.
- Não compreendo, doutora Freeman. A senhora conseguiu o que queria. O sangue da vítima no sapato da acusada.
- Excelência, a doutora Stanley é minha última testemunha. O advogado de defesa está tentando me privar da possibilidade de apresentar a prova da forma que desejo.
O depoimento dessa testemunha é devastador para a defesa. Ele quer estipular apenas para reduzir o impacto sobre o júri. Mas uma estipulação deve vir de um ajuste
entre ambas as partes. Cometi um erro aceitando a estipulação sobre o martelo, mas não dessa vez. Não sobre os sapatos. O estado protesta contra isso.
O juiz não se abalou. Percebia que podia poupar pelo menos meio dia de tribunal e não ia deixar a oportunidade escapar.
- Doutora, compreenda que o tribunal pode indeferir sua objeção pelo bem da economia do judiciário. Eu preferia que não fosse dessa forma.
Ele estava lhe dizendo para não comprar a briga na questão. Aceitar a estipulação.
- Lamento, Excelência, mas o estado ainda protesta.
- Indeferido. Podem voltar a seus lugares.
E assim foi. Tal como com o martelo, o juiz relatou a estipulação para o júri e prometeu que receberiam um documento detalhando a prova e os fatos admitidos de comum
acordo pelo início das deliberações. Eu levara a melhor em silenciar o crescendo do caso da promotoria. Em vez de sair de cena ao som de tambores e pratos com a
prova de CULPADA! CULPADA! CULPADA!, a promotoria ia embora com o rabo entre as pernas. Freeman espumava. Ela sabia como o desfecho era importante para o todo. Você
não fica escutando o Bolero durante dez minutos para desligar a música quando faltam dois minutos para acabar.
E não era apenas o fato de truncar seu caso que doía, mas na prática eu transformara sua última e mais importante testemunha na primeira testemunha da defesa. Estipulando.
Eu dera a entender ao júri que os resultados de DNA eram as pedras fundamentais de meu caso. E não havia nada que Freeman pudesse fazer. Ela expusera o caso todo
e não deixara nada por revelar. Depois de liberar Stanley do banco das testemunhas, ela foi sentar à mesa da promotoria, repassando suas anotações, provavelmente
pensando se não deveria trazer Kurlen ou Longstreth de volta para encerrar o caso com um apanhado geral de todas as provas. Mas ela corria um risco, se fizesse isso.
Os depoimentos dos detetives tinham sido ensaiados, da outra vez. Mas agora, não.
- Doutora Freeman? - perguntou finalmente o juiz. - A senhora tem mais alguma testemunha?
Freeman olhou para a bancada do júri. Ela acreditara antes que já obtivera um veredicto. E o que acontecia se a prova não fosse apresentada segundo o plano que havia
coreografado? A prova continuava ali e constando dos autos. O sangue da vítima no martelo e nos sapatos da acusada. Era mais do que suficiente. O veredicto tinha
de estar do seu lado.
Lentamente ela se levantou, ainda olhando para os jurados. Então virou e se dirigiu ao juiz.
- Excelência, o Povo se retira.
Foi um momento solene e mais uma vez a sala do tribunal ficou imóvel e em silêncio, agora durante quase um minuto inteiro.
- Muito bem - disse o juiz finalmente. - Acho que ninguém imaginou que chegaríamos tão cedo nesse estágio do julgamento. Doutor Haller, o senhor está pronto para
proceder à apresentação do caso da defesa?
Fiquei de pé.
- Excelência, a defesa está pronta para continuar.
O juiz balançou a cabeça. Ele ainda parecia um pouco em choque com a decisão da defesa de admitir e aceitar como prova o sangue da vítima nos sapatos da acusada.
- Então vamos sair para o intervalo da tarde um pouco mais cedo - disse ele. - E quando voltarmos, a fase da defesa terá início.
PARTE QUATRO
A Quinta Testemunha
Trinta e nove
Se a tática da defesa durante os últimos estágios da promotoria foram surpreendentes, meu primeiro movimento ao chegar na fase da defesa não ajudou em nada a diminuir
as dúvidas de alguns observadores quanto à minha competência como advogado. Assim que todo mundo voltou ao lugar após o intervalo da tarde, eu me dirigi ao atril
e fiz mais uma coisa que levou todo mundo a pensar: O que diabos esse cara tá fazendo?
- A defesa chama a acusada, Lisa Trammel.
O juiz pediu silêncio enquanto minha cliente se levantava e caminhava até o banco das testemunhas. Só o fato de que fosse convocada para depor já era chocante, e
motivou uma onda de murmúrios e comentários na sala do tribunal. Como regra geral, advogados de defesa não levam seus clientes ao banco das testemunhas. Numa taxa
de risco-recompensa, por assim dizer, a tática tem um índice muito baixo. Você nunca sabe o que seu cliente vai dizer porque nunca pode acreditar completamente no
que ele lhe diz. E ser pego numa única mentira quando está sob juramento e no banco das testemunhas diante das 12 pessoas que determinam sua culpa ou inocência é
devastador.
Mas dessa vez e nesse caso era diferente. Lisa Trammel nunca hesitara em sua alegação de inocência. Em nenhum momento ficara enrolando ao reagir às provas contra
ela. E nunca se mostrara nem remotamente interessada em qualquer tipo de acordo. Diante disso tudo, e dos acontecimentos relativos à ligação entre Herb Dahl e Louis
Opparizio, eu começava a enxergá-la de um modo diferente de como fora no início do julgamento. Ela insistira em ter uma chance de dizer ao júri que era inocente
e me ocorreu na noite anterior que merecia ter a oportunidade assim que surgisse uma. Ela seria a primeira testemunha.
A ré fez o juramento com um leve sorriso no rosto. Talvez parecesse algo fora de lugar, para alguns. Depois que sentou e teve seu nome registrado para os autos,
abordei a questão imediatamente.
- Lisa, percebi que estava sorrindo quando fazia o juramento. Pode dizer o motivo?
- Ah, você sabe, nervosismo. E alívio.
- Alívio?
- É, alívio. Finalmente tenho a chance de contar o meu lado da história. De contar a verdade.
Começou bem. A partir daí, rapidamente eu a conduzi pela lista de praxe de perguntas básicas sobre quem ela era, o que fazia para ganhar a vida e o estado de seu
casamento, bem como a situação de seu imóvel.
- Você conhecia a vítima desse crime terrível, Mitchell Bondurant?
- Não pessoalmente, mas conhecia, sim.
- Pode explicar melhor o que quer dizer?
- Bom, no ano passado, ou um pouco antes disso, quando comecei a ter problemas com a hipoteca, eu cheguei a vê-lo. Eu fui ao banco algumas vezes para tentar resolver
meu caso. Nunca tive permissão de falar com ele pessoalmente, mas eu o via em sua sala. A parede era toda de vidro, parecia mais uma brincadeira. Como se você tivesse
permissão de ver a pessoa, mas não de falar com ela.
Olhei para o júri. Não notei ninguém balançando a cabeça e concordando, mas achei que a resposta e a imagem que minha cliente passara estavam perfeitas. O funcionário
do banco se escondendo atrás de uma parede de vidro enquanto os clientes oprimidos e em desvantagem eram mantidos a distância.
- Você chegou a vê-lo em algum outro lugar?
- Na manhã do crime. Eu o vi na cafeteria aonde fui. Ele estava duas pessoas atrás de mim na fila. Foi por isso que eu fiquei confusa quando estava conversando com
os detetives. Eles estavam falando sobre o senhor Bondurant e eu tinha acabado de ver ele de manhã. Não sabia que tinha morrido. Eu não percebi que estavam me investigando
por um crime que eu nem sabia que tinha sido cometido.
Até ali, tudo bem. Ela estava se comportando da maneira que havíamos conversado e ensaiado, mesmo referindo-se à vítima com completo respeito, quando não, simpatia.
- Você conversou com o senhor Bondurant nessa manhã?
- Não, não conversei. Eu estava com medo de que ele pudesse achar que eu estava perseguindo ele ou qualquer coisa assim e acionar a justiça. Além disso, eu tinha
sido advertida por você a evitar qualquer encontro ou confrontação com as pessoas do banco. Então peguei meu café bem rápido e saí.
- Lisa, você matou o senhor Bondurant?
- Não! Claro que não!
- Você o emboscou por trás com um martelo tirado da sua garagem e o acertou na cabeça com tanta força que ele morreu antes de atingir o chão?
- Não, não fiz isso!
- Você o acertou mais duas vezes quando ele estava caído no chão?
- Não!
Parei, fingindo examinar minhas anotações. Eu queria que suas negações ficassem ecoando na sala do tribunal e na mente de cada jurado.
- Lisa, você ficou bastante conhecida lutando contra o processo de execução hipotecária de sua casa, não foi?
- Não era essa a minha intenção. Eu só queria continuar com a casa, para mim e meu filho. Eu fiz o que achei que fosse certo. Acabei atraindo muita atenção.
- Não era uma boa atenção para o banco, era?
Freeman protestou, argumentando que eu estava perguntando à testemunha algo sobre o qual ela não tinha capacidade para responder. O juiz deferiu e disse-me para
passar à outra questão.
- Houve um momento em que o banco tentou impedir seus protestos e outras atividades, correto?
- Isso, eu fui processada e eles conseguiram um mandado de restrição contra mim. Então levei as manifestações para o fórum.
- E as pessoas se uniram à sua causa?
- Sim, eu fiz um site na internet e centenas de pessoas... muitos como eu, perdendo suas casas... participaram.
- Você ganhou muita visibilidade como líder desse grupo, não foi?
- Acho que sim. Mas a ideia nunca foi chamar atenção para mim. Era mostrar o que eles estavam fazendo, as fraudes que estavam cometendo quando retomavam os imóveis
das pessoas.
- Você acha que apareceu nos noticiários de televisão e dos jornais quantas vezes?
- Não contei, mas algumas vezes foi em rede nacional. Eu apareci na CNN e na Fox.
- A propósito, falando em nacional, Lisa, na manhã do crime, você passou pelo WestLand National, em Sherman Oaks?
- Não, não passei.
- Não era você na calçada, a meia quadra do banco?
- Não, não era.
- Então a mulher que testemunhou que viu você estava mentindo sob juramento?
- Não vou chamar ninguém de mentirosa, mas não era eu. Vai ver ela se enganou.
- Obrigado, Lisa.
Baixei os olhos para minhas anotações e mudei de direção. Ao passar a impressão de que mantinha minha cliente com a guarda baixa, mudando de assunto e perguntas,
eu na verdade mantinha o júri com a guarda baixa, o que era minha intenção de fato. Não queria ninguém pensando adiante de mim. Eu queria a completa atenção dos
jurados e queria lhes fornecer a história em pequenos bocados, e na ordem que eu escolhesse.
- Você normalmente deixa a porta da sua garagem trancada? - perguntei.
- Deixo, sempre.
- Por quê?
- Bom, ela fica separada da casa. Você precisa sair para entrar na garagem. Então eu sempre tranco a porta. O que tem lá dentro é na maior parte lixo, mas tem algumas
coisas que são valiosas. Meu marido sempre tratou as ferramentas como algo precioso e eu guardo lá o tanque de hélio para encher bexigas em festas e não quero as
crianças mais velhas da vizinhança mexendo naquilo. E também porque eu li uma vez sobre alguém com uma garagem separada como a minha e que nunca trancava a porta.
Daí, um dia, a mulher entra na garagem e tem um homem lá dentro roubando coisas. Ela foi estuprada. Então eu sempre deixo a porta trancada.
- Você tem alguma ideia do motivo de a porta estar destrancada quando a polícia deu uma busca na sua casa no dia do assassinato?
- Não, eu sempre a mantenho trancada.
- Quando foi a última vez antes deste julgamento que você viu o martelo da sua bancada de trabalho no lugar certo, na garagem?
- Não lembro nem de ter reparado nisso algum dia. Era o meu marido que punha as ferramentas no suporte. Eu não sei mexer com as ferramentas.
- E ferramentas de jardinagem?
- Bom, eu retiro o que eu disse, se você está falando desse tipo de ferramenta. Eu sempre cuidei do jardim e aquelas são as minhas ferramentas.
- Você faz alguma ideia de como uma microgota do sangue do senhor Bondurant foi parar num dos seus sapatos de jardinagem?
Lisa ficou com o olhar imóvel, uma expressão preocupada no rosto. Seu queixo tremeu levemente quando falou.
- Não. Não tem explicação. Fiquei sem usar aqueles sapatos um bom tempo e não matei o senhor Bondurant.
Sua última frase saiu quase como uma súplica. Transmitia uma sensação de desespero e verdade. Parei para saborear e esperei que os jurados também houvessem notado.
Depois disso passei mais meia hora com ela, trabalhando principalmente nesses mesmos temas e negativas. Entrei em mais detalhes sobre seu encontro na cafeteria com
Bondurant, bem como com o processo de execução e a esperança que ela tinha de vencer o caso.
Seu propósito no caso da defesa era triplo. Eu precisava de suas negações e explicações constando dos autos. Precisava que despertasse pessoalmente a simpatia do
júri e pusesse um rosto humano em um caso de homicídio. E, finalmente, precisava que levasse os jurados a começar a se perguntar se aquela mulher diminuta e de aparência
frágil era capaz de se esconder numa emboscada e depois acertar o martelo na cabeça de um homem. Três vezes.
Quando cheguei ao fim da minha inquirição, senti que chegara bem perto de completar esses três objetivos. Tentei encerrar com meu próprio crescendo.
- Você odiava Mitchell Bondurant? - perguntei.
- Eu odiava o que ele e o banco dele estavam fazendo comigo e outras pessoas como eu. Mas não o odiava pessoalmente. Nem mesmo o conhecia.
- Mas você viu seu casamento ruir e perdeu o emprego e depois corria o perigo de ficar sem sua casa. Você não desejava descontar sua raiva nas forças que acreditava
estarem atingindo você?
- Eu já estava descontando. Eu protestava contra a forma como fui tratada. Eu tinha contratado um advogado e estava lutando contra a execução. Claro que sentia raiva.
Mas não estava sendo violenta. Não sou uma pessoa violenta. Sou professora. Eu estava descontando, se você quer usar essa palavra, da única forma que sabia como
fazer. Protestando pacificamente contra algo que era errado. Muito errado.
Passei os olhos rapidamente pelo júri e achei ter visto uma mulher na fileira de trás enxugando uma lágrima. Torci para que fosse isso. Virei para minha cliente
e executei o grand finale.
- Vou perguntar mais uma vez, Lisa, você matou Mitchell Bondurant?
- Não, não matei.
- Você levou um martelo e o atacou no estacionamento do banco?
- Não, eu não estava lá. Não fui eu.
- Então como o martelo de sua garagem foi usado para matá-lo?
- Não sei.
- Como o sangue dele foi encontrado em seus sapatos?
- Não sei! Eu não fiz isso! Foi tudo armado!
Parei por um momento e acalmei minha voz antes de terminar.
- Uma última pergunta, Lisa. Quanto você tem de altura?
Ela pareceu confusa, como uma boneca de pano sacudida para todos os lados.
- Como assim?
- Perguntei quanto você mede, só isso.
- Um metro e 61.
- Obrigado, Lisa. Sem mais perguntas.
Freeman tinha um trabalho árduo pela frente. Lisa Trammel fora uma testemunha sólida e a promotora não conseguiria dobrá-la. Ela tentou em alguns pontos obter respostas
contraditórias, mas Lisa se manteve firme. Após cerca de meia hora em que Freeman procurou encontrar alguma brecha, comecei a achar que minha cliente ia sair sem
um arranhão. Mas nunca é bom imaginar que você está a salvo enquanto o cliente não estiver fora do banco das testemunhas e sentado do seu lado. Freeman tinha uma
última carta na manga e resolveu jogá-la.
- Quando o doutor Haller lhe perguntou agora há pouco se a senhora cometeu esse crime, sua resposta foi de que não era uma pessoa violenta. A senhora afirmou ser
uma professora e disse que não era violenta, lembra-se disso?
- Lembro, é a verdade.
- Mas não é verdade que a senhora foi forçada a mudar de escola e passou por um tratamento para controlar sua raiva há quatro anos, quando bateu em um aluno com
uma régua de escala?
Fiquei de pé rapidamente, protestei e pedi ao juiz para me aproximar. O juiz aquiesceu.
- Meritíssimo - sussurrei antes mesmo de Perry perguntar -, não recebi nada na publicação compulsória sobre essa história da régua. De onde saiu isso?
- Meritíssimo - sussurrou Freeman antes mesmo de Perry perguntar -, é uma nova informação que só chegou para nós na semana passada. Tivemos de verificar.
- Ah, para com isso - eu disse. - Você vai me dizer que já não tinham levantado todo o histórico dela como professora desde o começo? Quer que a gente acredite nisso?
- Pode acreditar no que achar melhor - respondeu Freeman. - A gente não entregou na publicação compulsória porque eu não tinha a menor intenção de tocar no assunto
até sua cliente começar a testemunhar sobre seu passado de não violência. Isso obviamente mostra que é mentira e põe a coisa em pratos limpos.
Voltei a me virar para Perry.
- Meritíssimo, a desculpa dela não faz diferença. Ela descumpriu as regras da publicação compulsória. A pergunta precisa ser desconsiderada e ela ficar proibida
de seguir essa linha de questionamento.
- Meritíssimo, isso é...
- A defesa tem razão, doutora. Pode guardar para sua refutação, caso a senhora traga as testemunhas, mas agora não pode tocar no assunto. Deveria ter feito parte
da publicação.
Voltamos aos nossos lugares. Eu agora precisava pôr Cisco para trabalhar nesse incidente, porque sem dúvida Freeman voltaria à carga mais tarde. Fiquei irritado
porque uma das primeiras tarefas que passara a Cisco quando pegamos o caso fora fazer um levantamento exaustivo do histórico de nossa cliente. E isso de algum modo
lhe escapara.
O juiz instruiu o júri a desconsiderar a pergunta da promotoria e então instruiu Freeman a prosseguir com uma linha de questionamento diferenciada. Mas eu sabia
que agora os jurados ficariam com aquilo ecoando em suas cabeças. A pergunta podia ter sido apagada dos autos, mas não de sua memória.
Freeman prosseguiu em sua contrainquirição, disparando contra Trammel aqui e ali, mas sem conseguir furar a armadura do depoimento que colhi. Minha cliente permanecia
inamovível da alegação de que não passara perto do WestLand na manhã do assassinato. Com exceção da história da régua, era um início danado de promissor, pois deixava
o júri imediatamente ciente de que estávamos empenhados numa defesa afirmativa. Nós não íamos nos entregar sem luta.
A promotora continuou até as cinco da tarde, desse modo preservando sua capacidade de pensar em alguma coisa à noite e atacar Trammel pela manhã. O juiz decretou
o recesso e todo mundo foi mandado para casa. Excetuando eu mesmo. Meu destino era o escritório. Ainda havia o que fazer.
Antes de deixar a sala do tribunal, confabulei com minha cliente na mesa da defesa e sussurrei irritado para ela.
- Obrigado por me contar sobre a reguada no aluno. O que mais eu não sei?
- Nada, isso foi uma estupidez.
- O que foi estupidez? Você ter batido em uma criança ou não ter me contado?
- Isso aconteceu faz quatro anos e o menino mereceu. Não vou dizer mais nada sobre esse assunto.
- A escolha não vai ser sua. Freeman ainda pode trazer à tona na refutação, então é melhor começar a pensar no que vai dizer.
Uma expressão de preocupação cruzou seu rosto.
- Como pode ser? O juiz falou para o júri esquecer o que foi mencionado.
- Ela não pode mais tocar no assunto durante a contrainquirição, mas vai encontrar um jeito de trazer de volta mais tarde. Existem regras diferentes para a refutação.
Então é melhor você me contar tudo que lembra e qualquer coisa mais que eu deva saber, mas que deixou de me dizer.
Ela relanceou por cima do meu ombro e eu sabia que estava à procura de Herb Dahl. Ela não fazia ideia do que Dahl revelara para mim ou sobre o papel de agente duplo
que ele estava desempenhando.
- Dahl não está aqui - eu disse. - É comigo que você vai conversar, Lisa. O que mais eu não sei?
Quando voltei ao escritório, encontrei Cisco na recepção, as mãos nos bolsos, batendo papo com Lorna, que estava atrás de sua mesa.
- O que está acontecendo? - eu quis saber. - Achei que você estivesse a caminho do aeroporto para buscar Shami.
- Eu mandei a Bullocks - disse Cisco. - Ela já pegou a mulher e está voltando.
- Ela devia é ter ficado aqui se preparando para testemunhar, o que provavelmente vai ser amanhã. Você é o investigador, você devia ter ido para o aeroporto. As
duas juntas provavelmente não são capazes de carregar o boneco.
- Relaxa, chefe, elas estão no controle. E as duas conseguem se virar muito bem juntas. A Bullocks acabou de me ligar, estão na estrada. Então fica frio que a gente
faz o resto.
Dei uma fuzilada nele. Não me importava que fosse 15 centímetros mais alto e tivesse 35 quilos a mais de puro músculo. Eu estava por aqui. O caso todo nas minhas
costas e eu chegara no limite.
- Você está me dizendo para relaxar? Para ficar frio? Vai se foder, Cisco. A gente acabou de começar a defesa e o problema é que não tem uma defesa. Tenho muita
conversa mole e um boneco. O problema é que se você não tirar a porra da mão dos bolsos e achar alguma coisa pra mim, sou eu que vou ficar com cara de boneco. Então
não venha me dizer pra ficar frio, ok? Sou eu quem fica ali na frente do júri todo dia, caralho.
A primeira a explodir em uma gargalhada foi Lorna, depois foi a vez de Cisco.
- Vocês estão achando engraçado? - eu disse, completamente indignado. - Não tem graça nenhuma. Que porra vocês dois estão achando tão engraçado?
Cisco ergueu as mãos num gesto pedindo calma, até que conseguisse se conter.
- Desculpa, chefe, é só que quando você fica todo puto da vida desse jeito... e esse negócio de boneco.
Isso provocou outro acesso de risadas em Lorna. Pensei comigo mesmo que era para não esquecer de mandá-la embora assim que acabasse o julgamento. Na verdade, mandar
os dois embora. Isso sim ia ser engraçado.
- Olha - disse Cisco, aparentemente percebendo que eu não estava apreciando o humor da situação. - Vai pra sua sala, tira a gravata e senta na sua cadeira. Vou pegar
minhas coisas e mostrar no que estou trabalhando. Andei envolvido com Sacramento o dia todo, então as coisas avançam devagar, mas estou chegando perto.
- Sacramento? O laboratório criminal do estado?
- Não, registro de empresas. Burocracia, Mickey. É por isso que está demorando uma eternidade. Mas não precisa se preocupar. Faz seu trabalho que eu faço o meu.
- Meio difícil eu fazer meu trabalho quando estou esperando você fazer o seu.
Fui para minha sala. Lancei um olhar odioso para Lorna ao passar. Isso só serviu para fazê-la começar a rir outra vez.
Quarenta
Apareci sem ser convidado e para uma visita inesperada. Mas depois de ficar sem ver minha filha durante uma semana - eu tivera de cancelar as panquecas da quarta
à noite por causa do julgamento - e me despedir de Maggie em péssimos termos, da última vez, me sentia na obrigação de dar uma passada na casa onde moravam, em Sherman
Oaks. Maggie abriu a porta com a cara fechada, aparentemente depois de ter me visto pelo olho-mágico.
- Uma noite bem ruim para uma visita surpresa, Haller - ela disse.
- Bom, eu só quero ver a Hayley um pouco, se não tiver problema.
- Ela é que não está tendo uma noite das melhores.
Deu um passo para trás e para o lado, a fim de me deixar entrar.
- Sério? - eu disse. - Qual o problema?
- Está com uma tonelada de lição de casa e não quer ser incomodada por ninguém, nem por mim.
Olhei para a sala ali da entrada, mas não vi minha filha.
- Ela está no quarto, com a porta fechada. Boa sorte. Estou arrumando a cozinha.
Ela me deixou ali e eu ergui o rosto para a escada. O quarto de Hayley ficava em cima e de repente aqueles degraus me pareceram proibidos. Minha filha era uma adolescente,
sujeita a todas as mudanças de humor que vêm com essa designação. Você nunca sabe o que o aguarda.
Cobri o trajeto de um modo ou de outro e minha batida educada na porta foi recebida com um “Que foi?”.
- É o papai. Posso entrar?
- Pai, eu tô com uma tonelada de lição de casa!
- Então isso quer dizer que eu não posso entrar?
- Tanto faz.
Abri a porta e entrei. Ela estava na cama e sob as cobertas. Cercada por fichários, livros e o laptop.
- Não me beija. Tô cheia de pomada pra espinha.
Me aproximei da lateral da cama e me curvei. Dei um jeito de beijá-la no alto da cabeça antes que tivesse tempo de erguer o braço para me afastar.
- Falta muito pra terminar?
- Já disse, é uma tonelada de lição.
O livro de matemática estava aberto e virado para baixo, marcando a página. Peguei para ver o que ela estava estudando.
- Não desmarca!
Puro pânico, uma angústia de fim do mundo na voz.
- Não se preocupa. Faz quarenta anos que eu lido com livros.
Até onde eu podia dizer, a lição era sobre equações atribuindo valores a X e Y e fiquei completamente perdido. Ela estava aprendendo coisas fora do meu alcance.
Uma pena serem coisas que nunca ia usar.
- Menina, eu não ia conseguir ajudar nem que quisesse.
- Eu sei, nem a mamãe. Eu tenho que me virar sozinha.
- Não é assim pra todo mundo?
Percebi que não olhara para mim sequer uma vez desde que eu entrara. Era deprimente.
- Bom, eu só queria dar um alô. Já vou indo.
- Tchau. Te amo.
Ainda nenhum olho no olho.
- Boa noite.
Fechei a porta atrás de mim e desci para a cozinha. A outra criatura do sexo feminino que parecia capaz de controlar meu humor ao seu bel-prazer sentava em um banquinho
junto ao balcão de café da manhã. Diante dela havia uma taça de vinho branco e uma pasta aberta.
Ela pelo menos olhou para mim. Não sorriu, mas me olhou nos olhos e ali naquela casa tomei isso como uma vitória. Seu rosto voltou a baixar para o documento.
- No que está trabalhando?
- Ah, só refrescando a memória. Tenho uma audiência preliminar amanhã sobre um assalto e agressão, e não voltei a dar uma olhada desde que entrei com o processo.
A costumeira engrenagem do sistema de justiça. Ela não me ofereceu uma taça de seu Chardonnay porque sabia que eu não bebia. Curvei-me sobre o balcão da cozinha.
- Então, andei pensando em concorrer para promotor - eu disse.
Ela ergueu a cabeça na mesma hora e olhou para mim.
- O quê?
- Nada, só tentando chamar a atenção de alguém por aqui.
- Desculpa, mas é uma noite meio ocupada. Preciso trabalhar.
- É, sei, já vou. Sua colega Andy provavelmente também anda fazendo serão.
- Acho que sim. Era para a gente se encontrar e tomar uma bebida depois do trabalho, mas ela desmarcou. O que você fez para ela, Haller?
- Ah, cortei as asinhas dela no fim do caso da promotoria, depois entrei com os dois pés, quando chegou nossa vez. Ela provavelmente está tentando bolar um jeito
de contra-atacar.
- Provavelmente.
Ela voltou à sua pasta. Eu estava claramente sendo dispensado em silêncio. Primeiro minha filha, agora a ex-esposa que eu ainda amava. Eu não queria sair assim,
sumir mansamente na noite serena, como diz o poema.
- E sobre a gente? - perguntei.
- O que tem a gente?
- Você e eu. As coisas não terminaram muito bem naquela outra noite no Dan Tana’s.
Ela fechou a pasta, empurrou para o lado e me olhou. Finalmente.
- Tem noite que é assim mesmo. Isso não muda nada.
Afastei-me de um balcão e fui até o outro. Apoiei o corpo nos dois cotovelos. Ficamos olho no olho.
- Então, se nada mudou, e sobre a gente? O que estamos fazendo?
Ela deu de ombros.
- Quero tentar novamente. Eu ainda te amo, Mags. Você sabe disso.
- Sei também que da outra vez não deu certo. Somos o tipo de pessoa que leva os problemas do trabalho para casa. Não era bom.
- Estou começando a achar que minha cliente é inocente e que fizeram uma armação para ela e que mesmo com tudo isso pode ser que eu não consiga livrar a cara dela.
Que tal levar um trabalho desses para casa?
- Se te deixa tão incomodado, então talvez você devesse mesmo tentar a promotoria. A vaga está em aberto, você sabe.
- É, quem sabe eu tente.
- Haller pelo Povo.
- É.
Continuei ali por mais alguns minutos depois disso, mas dava para perceber que não estava fazendo nenhum progresso com Maggie. Ela tinha a habilidade de dar um gelo
em você e fazer com que soubesse disso.
Falei que estava de saída e pedi que desse boa noite a Hayley. Maggie não fez a menor menção de barrar a porta antes que eu pudesse sair. Mas ao menos disse algo
em seguida que me fez me sentir bem.
- Dê tempo ao tempo, Michael.
Virei para ela.
- Do que você está falando?
- Não de quê, de quem. Hayley e eu.
Balancei a cabeça e disse que tudo bem.
No carro, voltando para casa, deixei que os acontecimentos do dia no tribunal me animassem um pouco. Comecei a pensar na próxima testemunha que eu planejava chamar
depois de Lisa. A tarefa que tínhamos pela frente ainda era formidável, mas de nada adiantava pensar muito no futuro. Você começa com o impulso do dia e segue em
frente a partir daí.
Subi pela Beverly Glen até o alto, depois peguei a Mulholland sentido leste, na direção do Laurel Canyon. Pude ver as luzes da cidade tanto ao norte como ao sul.
Los Angeles se esparramava como um oceano bruxuleante. Fiquei com a música desligada e os vidros abaixados. O ar frio que entrava combinava com a solidão que eu
sentia.
Quarenta e um
Tudo que fora conquistado no dia anterior se perdeu no espaço de vinte minutos na sexta-feira de manhã, quando Andrea Freeman deu continuidade à sua contrainquirição
de Lisa Trammel. Ver a promotoria passando a perna em você no meio de um julgamento nunca é uma coisa boa, certamente, mas em muitos aspectos é aceitável como parte
do jogo. Uma das incógnitas desconhecidas. Mas ser tapeado por seu próprio cliente é o pior que pode acontecer. Uma incógnita desconhecida nunca deve vir da pessoa
que você está defendendo.
Com Trammel sentada no banco das testemunhas, Freeman se aproximou do atril carregando um grosso documento com as bordas enrugadas e um Post-it cor-de-rosa marcando
uma das folhas. Achei que não passava de jogo de cena, planejado para me distrair, e não prestei muita atenção. Ela deu início aos trabalhos com o que eu chamo de
perguntas preparatórias. O intuito era ter as respostas da testemunha constando dos autos antes de provar que eram falsas. Eu podia ver a armadilha sendo montada,
mas não tinha certeza sobre o ponto onde a rede ia cair.
- Bem, a senhora testemunhou ontem que não conhecia Mitchell Bondurant, está correto?
- Correto.
- Nunca se encontrou com ele?
- Nunca.
- Nunca falou com ele?
- Nunca.
- Mas tentou entrar em contato e conversar, não foi?
- Certo, eu fui ao banco duas vezes para tentar conversar com ele sobre a minha casa, mas ele não quis me receber.
- Lembra-se de quando exatamente fez essas tentativas?
- Foram no ano passado. Mas não lembro das datas exatas.
Freeman então pareceu mudar de direção, mas eu sabia que era tudo parte de um plano cuidadoso.
Ela fez a Trammel uma série de perguntas aparentemente inócuas sobre a organização FLAG e seus propósitos. Grande parte disso já fora abordado em minha inquirição.
Eu ainda não conseguia entender qual seria a artimanha. Olhei para o documento com o Post-it cor-de-rosa e comecei a desconfiar que não era jogo de cena coisa nenhuma.
Maggie me dissera na noite anterior que Freeman de fato ficara fazendo serão. Agora eu sabia por quê. Ela obviamente encontrara alguma coisa. Debrucei-me sobre a
mesa da defesa, na direção do banco das testemunhas, como se ficar mais perto da fonte pudesse acelerar a chegada da compreensão.
- E a senhora tem um website que utiliza como apoio para as atividades da FLAG, não é? - perguntou Freeman.
- Isso - respondeu Trammel. - California Foreclosure Fighters ponto com.
- E a senhora também está no Facebook, não é?
- Estou.
Dava para perceber pelo modo tímido e cauteloso com que minha cliente pronunciou esta única palavra que era ali que a armadilha ia funcionar. Essa era a primeira
vez que eu ouvia falar de uma página de Lisa no Facebook.
- Para as pessoas do júri que talvez não saibam, o que exatamente é o Facebook, senhora Trammel?
Recostei na cadeira e disfarçadamente peguei o telefone. Digitei rapidamente um texto para Bullocks, dizendo-lhe para largar o que estivesse fazendo e ver o que
conseguia descobrir sobre o perfil de Lisa no Facebook. Veja o que tem lá, eu disse.
- Bom, é um site de rede social na internet, e me ajuda a manter contato com as pessoas ligadas à FLAG. Eu posto atualizações sobre o que está acontecendo. Conto
onde vamos nos encontrar ou onde é a passeata, coisas assim. As pessoas podem deixar programado para receber um recado automaticamente no celular ou no computador
sempre que eu postar ali. Costuma ser bem útil para nossa organização.
- É possível postar no Facebook direto do celular também, certo?
- É, dá para fazer isso.
- E esse lugar virtual onde você deixa um post é chamado de “mural”, correto?
- Isso.
- E a senhora tem usado seu mural para fazer outras coisas além de simplesmente mandar recados sobre as passeatas de protesto, não é?
- Às vezes.
- A senhora fornecia atualizações regulares sobre seu próprio caso de execução hipotecária, não foi?
- Sim, eu queria ser como o diário pessoal de uma execução.
- A senhora também usava o Facebook para avisar a mídia sobre suas atividades?
- Usava, também.
- Então de modo a receber essa informação a pessoa teria de se registrar como amiga, correto?
- Isso, é assim que funciona. As pessoas que querem ser amigas virtuais precisam mandar o pedido, eu aceito e depois elas têm acesso ao meu mural.
- Quantos amigos você tem?
Eu não fazia ideia de onde esse negócio ia parar, mas não parecia nada bom. Levantei e protestei, dizendo ao juiz que a promotoria parecia estar jogando verde para
ver no que daria, sem propósito definido nem relevância. Freeman prometeu que a relevância não tardaria a surgir e Perry permitiu que continuasse.
- Pode responder à pergunta - ele disse para Trammel.
- Hum, acho... bom, da última vez que eu olhei, tinha mais de mil.
- Quando a senhora abriu sua página no Facebook?
- No ano passado. Acho que foi em julho ou agosto, quando dei entrada nos documentos para a FLAG e comecei o website. Fiz tudo junto.
- Então vamos deixar bem claro. No que diz respeito ao site, qualquer um com um computador e conexão com a internet pode acessar, correto?
- Isso mesmo.
- Mas seu perfil no Facebook é um pouco mais privado e pessoal. Para obter acesso a pessoa tem de ser aceita por você como amiga. Isso está correto?
- Sim, mas em geral eu aceito qualquer um que fizer a solicitação. Não conheço todo mundo, porque é gente demais. Só presumo que tenham ouvido falar do nosso trabalho
e estejam interessados. Eu não recuso ninguém. Foi assim que cheguei a mil pessoas em menos de um ano.
- Ok, e a senhora tem publicado posts regularmente no seu mural desde que começou no Facebook, correto?
- Bem regularmente, está certo.
- Na verdade a senhora postou atualizações sobre este julgamento, não foi?
- Isso, só minha opinião sobre as coisas.
Eu podia sentir minha temperatura subindo. Meu terno começava a parecer que era feito de plástico e que meu corpo estava aprisionado dentro. Eu queria afrouxar a
gravata, mas sabia que se um jurado visse um gesto assim durante aquela contrainquirição, seria um indício desastroso.
- Bom, alguém pode entrar na página e postar uma mensagem sob seu nome?
- Não, só eu. As pessoas podem responder e fazer seus próprios posts, mas não com meu nome.
- Quantos posts a senhora diria que publicou no seu mural desde o último verão?
- Não faço ideia. Muitos.
Freeman brandiu o grosso documento com o Post-it cor-de-rosa no meio.
- A senhora acreditaria se eu dissesse que postou mais de 1.200 vezes em seu mural?
- Não sei.
- Bom, eu sim. Tenho cada um dos seus posts impresso bem aqui. Excelência, posso me aproximar da testemunha com este documento?
Antes que o juiz tivesse oportunidade de responder, pedi para me aproximar. Perry sinalizou, consentindo. Freeman trouxe o grosso documento consigo.
- Excelência, o que é isso? - eu disse. - Vou fazer a mesma objeção que fiz ontem quanto à recusa deliberada da promotoria em fornecer a publicação compulsória.
Não vi nada a respeito disso previamente, e agora ela quer introduzir 1.200 posts do Facebook? Ora, Meritíssimo, isso não está certo.
- Não havia nada na publicação compulsória porque essa conta do Facebook só chegou ao nosso conhecimento ontem à noite.
- Meritíssimo, se o tribunal acredita nisso, tenho um terreninho na Lua para vender, caso esteja interessado.
- Meritíssimo, ontem à tarde meu escritório ficou de posse de uma cópia impressa de todos os posts publicados pela acusada em sua página no Facebook. Minha atenção
recaiu sobre uma série de posts do último mês de setembro que são relevantes para este caso e para o próprio testemunho da acusada. Se me for concedida a permissão
de ir em frente, isso vai se mostrar bem óbvio, até mesmo para a defesa.
- “Ficou de posse?” - eu disse. - O que isso quer dizer? Meritíssimo, é preciso ser um amigo autorizado para ver o mural de Facebook de minha cliente. Se o governo
empregou algum subter...
- Foi entregue para mim por um membro da imprensa que é amigo da acusada no Facebook - interrompeu Freeman. - Não houve qualquer subterfúgio. Mas a fonte não é um
problema nesse caso. Res ipsa loquitur... o documento fala por si mesmo, Meritíssimo, e tenho certeza de que a acusada pode identificar seus próprios posts de Facebook
para o júri. O doutor está simplesmente empenhado em tentar impedir o júri de ver o que ele sabe ser uma prova d...
- Meritíssimo, não faço ideia do que ela está falando. A primeira vez em que ouvi falar sobre uma página de Facebook foi durante a contrainquirição. A visão que
a doutora tem d...
- Muito bem, doutora Freeman - interrompeu Perry. - Dê a ela o documento, mas vá logo ao ponto.
- Obrigada, Excelência.
Assim que sentei outra vez, meu celular vibrou em meu bolso. Peguei e li o texto sob a mesa, longe da vista do juiz. Era de Bullocks e ela dizia apenas que tinha
acessado o mural de Lisa no Facebook e que estava trabalhando em meu pedido. Digitei com uma mão, dizendo-lhe para verificar os posts de setembro, então guardei
o aparelho.
Freeman deu o calhamaço para Trammel e pediu sua confirmação de que os posts mais recentes eram mesmo de seu mural no Facebook.
- Obrigada, senhora Trammel. Poderia agora ir para a página que marquei com o Post-it?
Lisa fez relutantemente como instruída.
- Como pode ver, destaquei uma série de três de seus posts do dia 7 de setembro. Poderia por favor ler o primeiro para o júri, incluindo o horário do post?
- Ahn, 13h46. “Estou indo para o WestLand para ver Bondurant. Dessa vez não vou aceitar um não como resposta.”
- Certo, a senhora acabou de pronunciar Bondurant, mas está escrito de outra forma no post, não está?
- Sim.
- Como está grafado em seu post?
- B-O-N-D-U-R-U-N-T.
- Ou seja, Bondurunt, terminando em runt, dando ideia de alguém desprezível. Notei que o nome foi grafado dessa forma em todos os posts em que ele é mencionado.
Isso foi intencional ou por engano?
- Ele estava tirando minha casa.
- Pode por favor responder à pergunta?
- Sim, foi intencional. Eu o chamava dessa forma porque ele não era um homem bom.
Eu podia sentir o suor escorrendo pelo meu cabelo. A Lisa oculta estava prestes a sair da toca.
- Pode por favor ler o próximo post destacado? Com o horário.
- Duas e 18. “Eles não vão me deixar falar com ele, outra vez. Não é justo.”
- E agora por favor pode ler o próximo post com o horário?
- Duas e 21. “Encontrei a vaga dele. Vou esperá-lo na garagem.”
A quietude que desceu sobre o tribunal foi como a surdez à passagem de um trem.
- Senhora Trammel, a senhora esperou por Mitchell Bondurant na vaga de estacionamento do WestLand National no dia 7 de setembro do ano passado?
- Sim, mas não por muito tempo. Percebi que era besteira e que ele só ia sair no fim do dia. Então fui embora.
- A senhora chegou a voltar para a garagem e esperar por ele na manhã do assassinato?
- Não, não voltei! Eu não estava lá.
- A senhora o viu na cafeteria, ficou furiosa e sabia exatamente onde ele estaria, não foi? Voltou para a garagem e esperou por ele ali, então...
- Protesto! - gritei.
- ... o assassinou com o martelo, não foi?
- Não! Não! Não! - gritou Trammel. - Não fiz isso!
Ela prorrompeu em lágrimas, gemendo alto como um animal encurralado.
- Excelência, protesto! Ela está intimidando a test...
Perry pareceu voltar de uma espécie de devaneio quando observava Trammel.
- Mantido!
Freeman parou. A sala do tribunal estava em silêncio, a não ser pelo som de minha cliente soluçando. A estenógrafa se aproximou com uma caixa de lenços e o choro
de Lisa finalmente cessou.
- Obrigada, Excelência - disse Freeman finalmente. - Não tenho mais perguntas.
Solicitei o adiantamento do intervalo da manhã para que minha cliente pudesse se recompor e eu tivesse tempo de decidir se continuava na contrainquirição. O juiz
concordou, provavelmente porque sentiu pena de mim.
As lágrimas de Lisa não apagaram o fato de que Freeman preparara sua armadilha com maestria. Mas nem tudo estava perdido. A melhor coisa sobre uma defesa que alega
armação é o fato de que quase qualquer prova ou testemunho prejudiciais - mesmo vindos de seu próprio cliente - podem se tornar parte da armação.
Depois que o júri saiu, fui até o banco das testemunhas para consolar minha cliente. Tirei dois lenços da caixa e passei para ela. Ela os pegou e começou a enxugar
os olhos. Envolvi o microfone com a mão para evitar que nossa conversa fosse captada na sala do tribunal. Tentei controlar meu tom de voz da melhor forma possível.
- Lisa, por que diabos só fiquei sabendo sobre o Facebook agora? Você faz a menor ideia do que isso pode fazer com nosso caso?
- Eu pensei que você soubesse! Eu aceitei Jennifer como amiga.
- A Jennifer da minha equipe?
- É!
Nada como ter tanto sua sócia júnior como sua cliente sabendo mais do que você.
- Mas e esses posts de setembro? Você faz ideia de como eles são prejudiciais?
- Desculpa! Eu esqueci completamente deles. Faz muito tempo.
Parecia que outra cascata de lágrimas estava prestes a vir. Tentei impedir.
- Bom, a gente teve sorte. Pode ser que a gente consiga usar isso a nosso favor.
Ela parou de enxugar o rosto com o lenço de papel e olhou para mim.
- Sério?
- Pode ser. Mas preciso ir lá fora ligar para a Bullocks.
- Quem é Bullocks?
- Desculpe, é assim que chamamos a Jennifer. Espera aqui e tenta se recompor.
- Vou precisar responder a mais alguma pergunta?
- Vai. Eu vou pedir uma contrainquirição.
- Então posso dar um jeito na maquiagem?
- Boa ideia. Só não demora muito.
Saí finalmente para o corredor e liguei para Bullocks no escritório.
- Você viu os posts do dia 7 de setembro? - perguntei, a título de alô.
- Acabei de ver. Se Freeman...
- Freeman já usou.
- Merda!
- Sei, bom, é uma droga, mas talvez a gente tenha uma saída. Lisa disse que você tem acesso como amiga no Facebook dela?
- Tenho, desculpa, viu? Eu sabia que ela tinha uma página. Nunca me ocorreu voltar e olhar as postagens anteriores no mural.
- A gente conversa sobre isso mais tarde. No momento, preciso saber se você tem acesso à lista de amigos dela.
- Estou com isso bem aqui na minha frente.
- Certo, primeiro eu quero que você imprima todos os nomes, dê para Lorna e peça para Rojas trazer ela até aqui com essa lista. Agora mesmo. Depois quero que você
e Cisco comecem a trabalhar nos nomes, descubram quem são essas pessoas.
- Tem mais de mil. Quer que a gente verifique todo mundo?
- Se precisar. Estou procurando uma ligação com Opparizio.
- Opparizio? Por qu...
- Trammel era uma ameaça para ele, assim como era uma ameaça para o banco. Ela estava protestando contra fraude nas execuções. A firma de Opparizio cometia fraudes.
A gente sabe pelo Herb Dahl que ela estava no radar de Opparizio. É simplesmente lógico que alguém na empresa dele a estivesse monitorando pelo Facebook. Lisa acabou
de testemunhar que aceitava qualquer um que fizesse a solicitação de amigo. Pode ser que a gente dê sorte e encontre algum nome conhecido.
Um silêncio se seguiu e então Bullocks adivinhou o que eu estava pensando.
- Seguindo seus passos pelo Facebook eles iam saber o que ela estava tramando.
- E teriam ficado sabendo que numa ocasião ela esperou Bondurant na garagem.
- E daí podem ter planejado o assassinato em cima disso.
- Bullocks, detesto te dizer, mas você está pensando como um advogado de defesa.
- Vamos começar a trabalhar nisso agora mesmo.
- Ótimo, mas primeiro imprime a lista e manda pra mim. Minha vez começa daqui a uns 15 minutos. Fala pra Lorna trazer para mim agora mesmo. Depois, se você e o Cisco
encontrarem alguma coisa, me manda uma mensagem de texto na mesma hora.
- Pode deixar.
Quarenta e dois
Freeman continuava inchada de orgulho com sua vitória da manhã quando voltei para a sala do tribunal. Ela passou por mim, cruzou os braços e recostou o quadril na
mesa da defesa.
- Haller, me diga que foi só jogo de cena você não saber nada sobre a página no Facebook.
- Desculpe, não posso dizer isso.
Ela revirou os olhos.
- Ah, parece que tem alguém precisando de uma cliente que não esconda as coisas... ou quem sabe de um investigador que consiga achar.
Ignorei a provocação, esperando que terminasse de tripudiar em cima de mim e voltasse para seu lugar. Comecei a folhear as páginas de meu bloco de anotações, fingindo
procurar alguma coisa.
- Foi como um maná caindo do céu, ontem à noite, quando pus a mão nas folhas impressas e li os posts.
- Você deve estar bem orgulhosa de si mesma. Quem foi o babaca do repórter que entregou aquilo?
- Você não ia querer saber.
- Ah, mas vou descobrir. Seja lá quem for que aparecer com a próxima exclusiva do Gabinete da Promotoria vai ser a pessoa que ajudou você. Vindo de mim, acho bom
não esperarem muito mais coisa que um “sem comentários”.
Ela riu. Minha ameaça não tinha nada a ver com ela. Conseguira falar sobre os posts do Facebook diante do júri e era só isso que importava. Finalmente, eu a fitei,
os olhos entrecerrados.
- Você não está entendendo, está?
- O que tem pra entender? Que o júri agora sabe que sua cliente esteve antes na cena do crime, provando que tinha conhecimento de onde encontrar a vítima? Pelo contrário,
entendo perfeitamente.
Parei de olhar para ela e sacudi a cabeça.
- Você não perde por esperar. Com licença.
Fiquei de pé e fui na direção do banco das testemunhas. Lisa Trammel acabara de voltar do banheiro. Havia refeito a maquiagem em torno dos olhos. Quando começou
a falar, tapei o microfone outra vez.
- O que você está fazendo, conversando com aquela vaca? Aquela mulher horrível - ela disse.
Meio aturdido com esse acesso de raiva descontrolada, virei e olhei para Freeman, sentada na mesa da promotoria.
- Ela não é horrível e não é uma vaca, ok? Só está fazendo...
- É sim, ela é. Você é que não sabe.
Curvei-me mais perto dela e sussurrei:
- E você, sabe o quê? Olha, Lisa, não vem com essa de bipolar pra cima de mim agora. Você tem menos de meia hora de testemunho pela frente. Vamos ver se a gente
consegue passar por isso sem você mostrar para o júri seus problemas psicológicos. Tudo bem?
- Não sei do que você está falando, mas isso me deixa muito triste.
- Puxa vida, lamento muito. Estou tentando defender você e não ajuda nada descobrir coisas como essa história do Facebook em plena contrainquirição da promotoria.
- Já falei, desculpa. Mas sua sócia sabia.
- É, bom, mas eu não.
- Olha, você disse antes que pode ser que consiga fazer isso funcionar a nosso favor. Como?
- Simples. Se alguém pretendia armar para você, a página no Facebook teria sido um ótimo lugar para começar.
E por falar em maná caindo do céu... Seus olhos viraram para o alto e uma expressão de puro alívio invadiu seu rosto quando compreendeu a tática que eu estava prestes
a empregar. A raiva que passara como uma nuvem negra por seu rosto apenas um minuto antes agora sumira completamente. Nesse exato minuto o juiz entrou, pronto para
recomeçar. Balancei a cabeça para minha cliente e voltei à mesa da defesa quando o juiz instruía o oficial do tribunal a trazer o júri de volta.
Assim que todo mundo se viu em seu lugar, o juiz perguntou se eu pretendia questionar minha cliente na contrainquirição. Fiquei de pé rapidamente, como se estivesse
há dez anos aguardando pela oportunidade. Paguei por isso. Uma pontada de dor atravessou meu torso como um raio. As costelas estavam calcificadas, mas qualquer movimento
errado ainda doía muito.
Assim que me dirigi ao atril, a porta da sala do tribunal foi aberta e Lorna entrou. O timing era perfeito. Segurando uma pasta e um capacete de motocicleta, ela
atravessou rapidamente o corredor central em direção ao portão da balaustrada.
- Excelência, posso ter um minuto com minha colega?
- Seja rápido, por favor.
Fui ao encontro de Lorna no portão e ela me entregou a pasta.
- É a lista com todos os amigos dela no Facebook, mas quando eu saí Dennis e Jennifer ainda não tinham encontrado nenhuma ligação com você sabe quem.
Era esquisito ver alguém se referindo a Cisco e Bullocks pelos nomes de verdade. Olhei para o capacete em sua mão. Sussurrei.
- Você veio na moto de Cisco?
- Você estava com pressa e eu sabia que dava para estacionar perto.
- Onde está o Rojas?
- Sei lá. Ele não atende o celular.
- Que ótimo. Escuta, quero que deixe a moto de Cisco onde estacionou e volte a pé para o escritório. Não quero você andando naquela máquina de suicídio.
- Não sou mais sua esposa. Meu marido é ele.
Assim que sussurrou isso para mim, olhei por cima de seu ombro e vi Maggie McPherson sentada na plateia. Fiquei imaginando se estaria lá por minha causa ou de Freeman.
- Olha - eu disse. - Isso não tem nada a ver c...
- Doutor Haller? - exclamou o juiz às minhas costas. - Estamos esperando.
- Certo, Excelência - eu disse alto sem me virar. Depois, sussurrando para Lorna, falei:
- Volta a pé!
Virei para o atril, abrindo a pasta. Não continha nada além de dados não trabalhados - mais de mil nomes, listados em duas colunas por folha -, mas olhei para aquilo
como se tivesse acabado de receber o Santo Graal.
- Muito bem, Lisa, vamos falar sobre sua página no Facebook. Você testemunhou pouco antes que tinha mais de mil amigos. Conhece pessoalmente todas essas pessoas?
- Não, de jeito nenhum. Como tem muita gente que só me conhece por causa da FLAG, eu presumia que quando alguém enviava a solicitação de amigo era porque estava
interessado em apoiar a causa. Eu dava um “aceitar”, só isso.
- Então os posts no seu mural eram livres para um número significativo de pessoas que são seus amigos no Facebook, mas, na realidade, completos estranhos para você.
É isso mesmo?
- Sim, está correto.
Senti o celular vibrando em meu bolso.
- Então qualquer um desses estranhos que estivesse interessado em seus movimentos, passados ou presentes, podia simplesmente entrar em sua página no Facebook e ver
os posts em seu mural, certo?
- Isso mesmo.
- Por exemplo, alguém poderia entrar nessa página nesse minuto, visualizar suas mensagens e ver que em setembro do ano passado você esteve na garagem do WestLand,
esperando por Mitchell Bondurant, correto?
- Sim, é possível.
Tirei o celular do bolso e, usando o atril como proteção, pus o aparelho sobre o tampo do móvel. Folheando a lista de nomes com uma das mãos, usei a outra para abrir
a mensagem de texto que acabara de receber. Era de Bullocks.
3a pág., coluna da direita, 5o de baixo p/cima - Don Driscoll. Temos um Donald Driscoll como ex-ALOFT em TI. Estamos verificando.
Era isso. Agora eu estava com a faca e o queijo na mão.
- Excelência, gostaria de mostrar este documento à testemunha. É uma lista impressa dos nomes de pessoas que foram aceitas como amigas na página de Lisa Trammel
no Facebook.
Freeman, vendo sua manhã vitoriosa sob ameaça, protestou, mas o juiz indeferiu sem que eu precisasse argumentar, dizendo que ela própria abrira essa porta. Dei a
lista para minha cliente e voltei ao atril.
- Pode por favor ir para a terceira página desse documento e ler o nome que aparece na quinta posição a partir de baixo, na coluna do lado direito?
Freeman protestou outra vez, afirmando que a lista não fora verificada. O juiz aconselhou-a a guardar sua objeção para a contrainquirição, caso achasse que eu estava
introduzindo uma prova falsa. Falei para Lisa que podia ler o nome.
- Don Driscoll.
- Obrigado. E esse nome lhe é familiar?
- Na verdade, não.
- Mas é um de seus amigos no Facebook.
- Eu sei, mas é como eu falei, não conheço todo mundo que aceito ali. Tem gente demais.
- Bom, você lembra se Don Driscoll alguma vez entrou em contato diretamente com você e se identificou como trabalhando para uma empresa chamada ALOFT?
Freeman protestou e pediu para se aproximar da bancada. O juiz concedeu a autorização.
- Meritíssimo, o que está acontecendo aqui? A defesa não pode sair assim citando pessoas aleatoriamente, sem mais nem menos. Quero que me ofereça uma prova de que
não está apenas apontando o dedo para qualquer lugar e escolhendo um nome.
Perry balançou a cabeça, pensativo.
- Concordo com ela, doutor Haller.
Meu celular ficara no atril. Possíveis atualizações de Bullocks viriam bem a calhar, nesse instante.
- Meritíssimo, podemos nos reunir em sua sala e falar com meu investigador pelo telefone, se preferir. Mas eu gostaria de pedir ao tribunal alguma margem de manobra
aqui. A promotoria trouxe à tona essa questão do Facebook hoje de manhã e estou tentando fazer minha parte. Podemos segurar as coisas para um oferecimento de prova,
ou podemos esperar até a defesa convocar Don Driscoll para testemunhar, e a doutora Freeman o terá à disposição para verificar se estou caracterizando mal quem realmente
é.
- O senhor vai convocá-lo?
- Acho que não me resta outra escolha, diante da opção do estado de ir atrás dos antigos posts no Facebook de minha cliente.
- Muito bem, vamos aguardar pelo testemunho do senhor Driscoll. E doutor Haller: não me decepcione, aparecendo no tribunal e dizendo que mudou de ideia. Não vou
gostar nem um pouco se isso acontecer.
- Claro, Excelência.
Voltamos a nossos lugares e voltei a perguntar a Lisa.
- Alguma vez Don Driscoll entrou em contato pelo Facebook ou em algum outro lugar e disse que trabalhava para a ALOFT?
- Não, nunca.
- Você tem conhecimento da ALOFT?
- Sim. É o nome da fábrica de execuções que bancos como o WestLand usam para cuidar de toda a papelada dos processos hipotecários.
- Essa empresa tem algum envolvimento na retomada de seu imóvel?
- Tem total envolvimento.
- ALOFT é um acrônimo? Você sabe o que as iniciais querem dizer?
- A. Louis Opparizio Financial Technologies. É o nome da empresa.
- Bom, o que significaria para você se essa pessoa, Donald Driscoll, que foi aceito como um de seus amigos no Facebook, trabalhasse para a ALOFT?
- Que alguém da ALOFT andava recebendo todos os meus posts.
- Então, essencialmente, esse tal de Driscoll saberia onde você esteve e para onde ia, correto.
- Correto.
- Ele teria se inteirado de seus posts no último mês de setembro, dizendo que você encontrara a vaga de garagem de Bondurant no estacionamento do banco e que você
ia esperar por ele, correto.
- Isso, correto.
- Obrigado, Lisa. Não tenho mais perguntas.
Quando voltava para minha cadeira, não pude resistir a dar uma olhada de soslaio em Freeman. Ela já não parecia tão radiante. Olhava para a frente. Então esquadrinhei
a plateia à procura de Maggie, mas ela se fora.
Quarenta e três
Aparte da tarde estava reservada para Shamiram Arslanian, minha perita forense de Nova York. Eu me valera de Shami com grande proveito em julgamentos anteriores
e esse era o plano mais uma vez. Sua formação incluía diplomas de Harvard, do MIT e da John Jay, onde trabalhava atualmente como pesquisadora, e era uma presença
cativante e telegênica. Para coroar, tinha uma integridade que saltava aos olhos quando sentava no banco das testemunhas para depor. O sonho de todo advogado de
defesa. Claro que era esse tipo de profissional que chamamos de “pistoleiro de aluguel”, mas ela só pegava o trabalho se acreditasse nos fatos científicos envolvidos
e no que ia dizer no banco das testemunhas. Além do mais, no presente caso, havia um bônus inesperado. Ela tinha exatamente a mesma altura que minha cliente.
Durante o intervalo para o almoço, Arslanian montara um manequim diante da bancada do júri. Era uma figura masculina em posição ereta, com exatamente 1,89 metro
de altura, a altura aproximada de Mitchell Bondurant calçando sapatos. Fora vestido com um terno semelhante ao que Bondurant usava na manhã de seu assassinato e
exatamente com os mesmos sapatos. O manequim tinha articulações que permitiam realizar plenamente os movimentos humanos.
Depois que o tribunal voltou a entrar em sessão e minha testemunha subiu ao banco, demorei-me, sem a menor pressa, em explicitar seu volumoso currículo. Eu queria
que os jurados compreendessem as realizações da mulher e apreciassem seu modo pouco cerimonioso de responder às perguntas. Queria também que percebessem que suas
habilidades e conhecimentos a punham num patamar diferente do ocupado pelos peritos trazidos pelo estado para depor. Um patamar mais elevado.
Uma vez fixada a imagem, passei ao propósito do manequim.
- Bem, doutora Arslanian, eu lhe pedi para revisar aspectos do assassinato de Mitchell Bondurant, isso está correto?
- Sim, isso mesmo.
- E em particular eu queria que examinasse a física do crime, correto?
- Certo, o que o senhor me pediu basicamente foi para descobrir se sua cliente poderia de fato ter perpetrado o crime do modo como a polícia disse que fez.
- E a senhora concluiu que poderia?
- Bom, sim e não. Determinei que sim, ela poderia ter feito, mas não teria sido do modo como os detetives aqui disseram que foi.
- Pode nos explicar sua conclusão?
- Prefiro demonstrar, usando a mim mesma no lugar de sua cliente.
- Qual é sua altura, doutora Arslanian?
- Um metro e 61 calçando apenas meias, a mesma altura de Lisa Trammel, conforme fui informada.
- E eu lhe enviei um martelo que era igual ao martelo recuperado pela polícia e declarado como a arma do crime?
- Sim, mandou. Eu trouxe aqui comigo.
Ela segurou o martelo acima da parte frontal elevada no banco das testemunhas.
- E recebeu as fotos que mandei, mostrando os sapatos de jardinagem que foram apreendidos na garagem destrancada da ré e posteriormente identificados como tendo
o sangue da vítima neles?
- Sim, também recebi, e tive oportunidade de procurar um par exatamente igual na internet. Estou usando agora.
Ela projetou uma perna pela lateral do banco das testemunhas, exibindo o sapato impermeável. Houve um murmúrio educado de risadas na sala do tribunal. Pedi ao juiz
que desse sua permissão para conduzir a demonstração do que ela descobriu, e ele concordou, sob protesto da promotoria.
Arslanian deixou o banco das testemunhas com o martelo na mão e começou sua demonstração.
- A pergunta que me fiz foi: será que uma mulher da altura da acusada, medindo 1,61 metro, como eu, seria capaz de desferir o golpe fatal no topo da cabeça de um
homem medindo 1,89 metro, com seus sapatos sociais? Certamente o martelo, que acrescenta uns 25 centímetros extras de alcance, ajuda quanto a isso, mas será o suficiente?
Essa era minha pergunta.
- Doutora, se me permite a interrupção, pode nos contar sobre seu manequim e como a senhora o preparou para seu depoimento hoje?
- Claro. Seu apelido é Manny e costumo utilizá-lo sempre que preciso testemunhar em algum julgamento ou quando conduzo testes em meu laboratório, na John Jay. Ele
possui todas as articulações, como um ser humano de verdade, e desmonta, se eu precisar fazer isso, mas a melhor coisa é que nunca responde para mim nem me diz que
fico gorda usando jeans.
Mais uma vez ela provocou risadas educadas.
- Obrigado, doutora - disse eu rapidamente antes que o juiz pudesse adverti-la a manter a seriedade. - Agora, se puder prosseguir com sua demonstração.
- Claro. Bem, o que eu fiz foi usar o laudo de autópsia e as fotos e desenhos para localizar exatamente o ponto no crânio do manequim em que o golpe fatal foi desferido.
Sabemos pelo chanfro na face de impacto que o senhor Bondurant foi atacado por trás. Sabemos também pelo afundamento uniforme da fratura de depressão ocasionada
no crânio que ele foi atingido em cheio no topo da cabeça. De modo que atribuindo ao martelo um ângulo direto como esse...
Subindo numa pequena escada junto a Manny, ela foi capaz de encostar a face de impacto do martelo contra o topo do crânio e então mantê-lo no lugar com duas fitas
que passavam sob o queixo do manequim sem rosto. Depois ela desceu e fez um gesto para o martelo e o cabo, que se projetava em um ângulo reto e paralelo ao chão.
- Então, como pode ver, isso não funciona. Continuo com 1,64 metro nesses sapatos, a acusada tem 1,64 metro nesses sapatos, e o cabo está muito alto.
Esticou o braço na direção do martelo. Era impossível para ela segurá-lo apropriadamente.
- O que podemos perceber é que o golpe fatal não poderia ter sido desferido pela acusada com a vítima nessa posição... de pé e ereto, a cabeça erguida. Certo, que
outras posições é possível encontrar para efetivamente se encaixarem no que sabemos? Sabemos que o ataque veio de trás, então, se a vítima estivesse curvada para
a frente... digamos que tenha deixado cair as chaves ou algo assim... como vê, ainda assim não dá, porque não consigo alcançar o martelo por cima de suas costas.
Conforme falava ela manipulava o manequim, dobrando-o na cintura, e depois esticando-se para alcançar o martelo por trás dele.
- Não, isso não funciona. Bem, por dois dias, entre uma aula e outra, procurei outros modos de acertar o golpe, mas o único jeito que consegui achar para funcionar
foi se a vítima estivesse de joelhos ou agachada por algum motivo, ou se por acaso estivesse olhando para o alto.
Ela manipulou o manequim outra vez e endireitou o torso. Depois inclinou a cabeça para trás a partir da nuca e o cabo desceu. Agarrou o cabo e a posição pareceu
confortável, mas o manequim olhava quase diretamente para cima.
- Agora, segundo a autópsia, havia esfoladuras pronunciadas em ambos os joelhos e um deles chegou até a ter a patela quebrada. Essas escoriações foram descritas
como ferimentos do impacto advindo da queda do senhor Bondurant no chão depois de atingido. Ele caiu de joelhos primeiro e então desabou de frente, aterrissando
de bruços. É o que a gente chama de uma queda livre. De modo que com esse tipo de ferimentos nos joelhos, descartei a possibilidade de que estivesse ajoelhado ou
agachado próximo ao chão. Isso deixa apenas uma possibilidade.
Ela gesticulou para a cabeça do manequim, em seu ângulo quase reto para trás em relação ao torso, o rosto liso voltado para cima. Dei uma espiada no júri. Todos
observavam atentamente. Pareciam alunos da primeira série assistindo à apresentação de um coleguinha.
- Muito bem, doutora, se a senhora puser o ângulo da cabeça de volta no lugar certo ou apenas ligeiramente elevado, é capaz de inferir uma faixa de alturas possíveis
para o verdadeiro perpetrador desse crime?
Freeman ficou de pé na mesma hora e objetou em tom de completa exasperação.
- Meritíssimo, isso não é ciência. Isso é adivinhação. Esse negócio todo não tem outra finalidade além de lançar uma cortina de fumaça sobre a verdade, e agora ele
vem pedir a ela que forneça a altura de alguém que poderia ter feito isso? É impossível saber exatamente a postura ou o ângulo do pescoço da vítima desse crime horr...
- Excelência, os argumentos de encerramento são apenas na semana que vem - retruquei. - Se o estado tem alguma objeção, que a doutora a refira ao tribunal, em vez
de se dirigir ao júri e tentar vender...
- Tudo bem - disse o juiz. - Os dois, já chega. Doutor Haller, o senhor recebeu ampla liberdade de ação com essa testemunha. Mas eu estava começando a concordar
com a promotora até ela subir no caixote para discursar. Objeção mantida.
- Obrigada, Excelência - disse Freeman, com um ar de quem acabara de ser resgatada do meio de um deserto.
Eu me recompus, olhei para minha testemunha e seu manequim, verifiquei minhas anotações e finalmente balancei a cabeça. Eu já conseguira o que queria.
- Não tenho mais perguntas - eu disse.
Freeman partiu para a contrainquirição, mas por mais que tentasse fazer Shami Arslanian titubear em seu depoimento à defesa e nas conclusões apresentadas, a experiente
promotora em momento algum conseguiu levar a experiente testemunha a ceder um milímetro. Freeman fez perguntas para ela por quase quarenta minutos, mas o mais perto
que chegou de marcar um tento para a promotoria foi conseguir que Arslanian admitisse que não havia como saber com certeza o que acontecera na garagem quando Bondurant
foi assassinado. O juiz anunciara no começo da semana que a sexta-feira seria um dia mais curto, devido a uma reunião dos juízes distritais planejada para o final
da tarde. De modo que não houve intervalo vespertino e trabalhamos quase até as quatro antes de Perry decretar o recesso para o fim de semana. Saímos para o intervalo
de dois dias com a sensação de estar com a vantagem. Havíamos atacado o caso do estado criticando grande parte da prova, depois encerrado a semana com a negação
de Lisa Trammel e sua alegação de ser vítima de uma armação, e a tese de minha testemunha forense de que era fisicamente impossível que a acusada houvesse cometido
o crime. A menos, é claro, que tivesse desferido o golpe fatal na vítima quando ele olhava diretamente para o teto do estacionamento.
Eu acreditava que essas eram poderosas sementes de dúvida. A situação me parecia num bom pé e quando terminei de guardar minhas coisas na pasta, continuei na mesa
da defesa, olhando alguns papéis e esperando encontrar algo que na verdade não estava ali. Eu meio que esperava Freeman se aproximar para me pedir que convencesse
minha cliente a aceitar um acordo.
Mas isso não aconteceu. Quando ergui o rosto da minha encenação, ela se fora.
Peguei o elevador para descer ao segundo andar. Os juízes podiam estar encerrando todos mais cedo para a reunião sobre as desgastadas regras do decoro nas salas
de tribunal, mas imaginei que o Gabinete da Promotoria continuaria trabalhando até as cinco. Na recepção dei o nome de Maggie McPherson e me disseram para entrar.
Ela dividia uma sala com outro promotor, mas por sorte o sujeito estava de férias. Ficamos a sós. Puxei a cadeira da mesa dele e sentei diante da mesa de Maggie.
- Dei uma passada lá no julgamento hoje - ela disse. - Assisti a uma parte da sua inquirição com aquela mulher da John Jay. É uma boa testemunha.
- É, ela é boa. E eu vi você. Não sabia se estava lá por minha causa... ou por causa da Freeman.
Ela sorriu.
- Talvez estivesse em causa própria. Eu ainda aprendo com você, Haller.
Agora eu sorri.
- Maggie McFierce aprendendo comigo? Sério?
- Bom...
- Não, não precisa responder.
Nós dois demos risada.
- De qualquer jeito, fico feliz que tenha ido - eu disse. - Como vai ser esse fim de semana, com você e a Hay?
- Não sei. Vamos ficar por aqui. Você precisa trabalhar, imagino.
Fiz que sim.
- Acho que a gente precisa ir atrás de uma pessoa. E segunda e terça vão ser os dias mais importantes do julgamento. Mas talvez dê para a gente pegar um cinema ou
qualquer coisa assim.
- Claro.
Ficamos em silêncio por alguns momentos. Eu acabara de vivenciar um de meus melhores dias numa sala de tribunal, e mesmo assim me sentia atingido por uma sensação
crescente de perda e tristeza. Olhei para minha ex-esposa.
- A gente nunca vai voltar, não é, Maggie?
- O quê?
- Eu meio que acabei de perceber. Você quer que continue do jeito que está. Presente quando um dos dois realmente precisar, mas nunca mais como era. Você nunca vai
me conceder isso.
- Por que quer falar sobre isso bem agora, Michael? Você está no meio de um julgamento. Precisa...
- Estou no meio da minha vida, Mags. Eu só queria que tivesse um jeito de fazer você e a Hayley sentirem orgulho de mim.
Ela esticou o braço sobre a mesa. Pôs a mão em meu rosto por um momento e depois retirou.
- Acho que Hayley sente orgulho de você.
- É? E quanto a você?
Ela sorriu, mas foi de um jeito meio triste.
- Acho que é melhor você ir para casa e não pensar nisso, nem no julgamento, nem em mais nada por uma noite. Limpar a mente. Relaxar.
Balancei a cabeça.
- Não dá. Tenho uma reunião às cinco com um informante.
- Sobre o caso Trammel? Que informante?
- Deixa pra lá, e você só está tentando mudar de assunto. Nunca vai me perdoar completamente, nem esquecer, não é? Não faz seu estilo, e talvez seja por isso que
é uma promotora tão boa.
- Ah, maravilhosa. Por isso estou aqui presa em Van Nuys, cuidando de um roubo à mão armada.
- Isso é política. Não tem nada a ver com capacidade e dedicação.
- Isso não vem ao caso e não posso ter essa conversa agora. Ainda estou no meu horário de trabalho e você precisa ir falar com seu informante. Por que não me liga
amanhã se quer levar a Hayley ao cinema? Provavelmente vou deixar ela com você enquanto resolvo algumas coisas.
Fiquei de pé. Eu conhecia uma causa perdida quando via uma.
- Certo, vou nessa. Eu ligo amanhã. Mas queria que você fosse ao cinema junto com a gente.
- Vamos ver.
- Tudo bem.
Desci a escada para não ter de esperar. Atravessei a praça e segui rumo norte pela Sylmar na direção do Victory. Logo encontrei uma motocicleta estacionada junto
ao meio-fio. Reconheci como sendo a moto de Cisco. Uma valiosa panhead ’63 H-D com um tanque preto perolado e para-choques combinando. Dei risada. Lorna, minha segunda
ex-esposa, fizera realmente o que eu lhe dissera para fazer. Sempre tem uma primeira vez.
Ela deixara a moto sem tranca, provavelmente imaginando que era seguro na frente do fórum e ao lado da central de polícia. Desencostei-a da calçada e fui empurrando
pela Sylmar. Que visão devia ser, um sujeito com seu melhor terno italiano levando uma Harley pelo meio da rua, a pasta pendurada no guidão.
Quando finalmente voltei para o escritório, ainda eram quatro e meia, um bom tempo até Herb Dahl aparecer para nos passar seu informe. Chamei todos para uma reunião
de equipe e tentei me conectar outra vez no caso, como um meio de afastar os pensamentos sobre a conversa com Maggie. Expliquei a Cisco onde deixara estacionada
sua moto e pedi uma atualização sobre a lista de amigos do Facebook de nossa cliente.
- Antes de mais nada, por que eu não sabia dessa droga de história do Facebook? - perguntei.
- A culpa é minha - explicou Aronson rapidamente. - Como já disse, eu sabia e até fui aceita como amiga. Só não pensei na importância que tinha.
- Eu também deixei passar - disse Cisco. - Ela me aceitou também. Eu olhei e não vi nada de mais. Devia ter olhado com mais cuidado.
- E eu também - acrescentou Lorna.
Olhei para os três. Era uma frente unida.
- Ótimo - eu disse. - Acho que nós quatro deixamos passar e nossa cliente não pensou em nos contar. Então acho que estamos todos despedidos.
Parei para ver se alguém achava graça.
- Bom, e esse nome que vocês me passaram? Don Driscoll, de onde ele saiu e o que mais sabemos a respeito dele? Freeman pode sem querer ter entregado o caso todo
de bandeja na nossa mão hoje de manhã, gente. O que temos?
Bullocks olhou para Cisco, dando a vez.
- Como você já sabe - ele disse -, a ALOFT foi vendida em fevereiro para o LeMure Fund, com Opparizio continuando no comando. Como é uma empresa de capital aberto,
toda a negociação foi monitorada pela Federal Trade Commission e apresentada publicamente para os acionistas. Incluindo uma lista de funcionários que iam permanecer
na ALOFT depois da transição. Eu tenho a lista, datada de 15 de dezembro.
- Daí a gente começou a cruzar as referências dos empregados da ALOFT com a lista de amigos do Facebook da Lisa - disse Bullocks. - Por sorte Donald Driscoll fica
no começo do alfabeto. O nome dele apareceu bem rápido.
Balancei a cabeça, impressionado.
- Então quem é Driscoll?
- Nos documentos da FTC o nome dele aparecia num grupo listado como tecnologia da informação - disse Cisco. - Daí, quer saber?, liguei pro setor de TI da ALOFT e
pedi pra chamarem. Me informaram que Donald Driscoll trabalhava lá, mas que o contrato dele expirou em 1o de fevereiro e que não foi prorrogado. Ele não está mais
lá.
- Já começaram a procurar? - perguntei.
- Já. Mas o nome é comum e isso está atrasando um pouco as coisas. Assim que a gente tiver alguma coisa, você vai ser o primeiro a saber.
Pesquisar nomes quando você pertence ao setor privado sempre toma mais tempo. Não é tão fácil como é para a polícia, que simplesmente digita o nome em um dos inúmeros
bancos de dados disponíveis para as autoridades.
- Não deixa escapar - eu disse. - O jogo inteiro pode depender só disso.
- Não se preocupa, chefe - disse Cisco. - Ninguém vai deixar ninguém escapar.
Quarenta e quatro
Donald Driscoll, 31 anos, ex-funcionário da ALOFT, morava na região de Belmont Shore, em Long Beach. No domingo de manhã, fui até lá com Cisco a fim de entregar
uma intimação ao sujeito, sendo minha esperança de que falasse comigo antes que eu o fizesse sentar no banco das testemunhas, quando então se mostraria pouco cooperativo.
Rojas concordou em trabalhar em seu dia de folga como forma de compensar por suas besteiras. Com ele dirigindo, fui atrás ao lado de Cisco, que me punha a par de
suas conclusões relativas às investigações mais recentes do assassinato de Bondurant. Não restava dúvida de que a hipótese da defesa fazia sentido e que Driscoll
podia ser justamente a testemunha capaz de constituir a peça final.
- Sabe - eu disse -, a gente tem grande chance de vencer essa coisa se Driscoll cooperar e disser o que eu acho que ele vai dizer.
- Mesmo assim, é um tiro no escuro - respondeu Cisco. - Olha, a gente precisa estar preparado para qualquer coisa com esse cara. Até onde a gente sabe, ele pode
ser o cara. Sabe qual é a altura dele? Um e 95. Está na carteira de motorista.
Olhei para ele.
- O que aliás não era para eu ter visto, mas por acaso pude dar uma conferida - completou.
- Não me conte sobre crimes, Cisco.
- Só estou dizendo o que vi na carteira de motorista, só isso.
- Ótimo. Para por aí. Então o que você sugere que a gente faça quando chegar lá? Achei que só fôssemos bater na porta.
- Vamos. Mas mesmo assim é melhor ter cuidado.
- Não se preocupe, vou estar atrás de você.
- Sei, você é um ótimo amigo.
- Sou mesmo. E, a propósito, se eu te chamar para o banco das testemunhas amanhã, precisa vestir uma camisa que tenha mangas e colarinho. Ficar apresentável, meu.
Não sei como a Lorna aguenta esse seu visual.
- No momento, ela aguentou o meu mais tempo do que aguentou o seu.
- É, acho que é verdade.
Virei e olhei pela janela. Eu tinha duas ex-esposas que eram provavelmente também minhas duas melhores amigas. Mas não ia além disso. Eu as tinha, mas não as tinha.
O que isso significava para mim? Eu vivia alimentando o sonho de que um dia Maggie, minha filha e eu iríamos voltar a morar juntos, como uma família. A realidade
era que isso nunca ia acontecer.
- Tudo bem, chefe?
Virei de novo para Cisco.
- Tudo, por quê?
- Sei lá. Você parece um pouco preocupado. Por que não me deixa ir até lá sozinho bater na porta e se ele concordar em falar eu dou um toque no seu celular e você
vem?
- Não, a gente vai junto.
- Você é quem manda.
- É, sou eu que mando.
Mas por dentro eu me sentia derrotado. Decidi nesse exato momento que iria mudar as coisas e descobrir uma maneira de me redimir. Logo após o julgamento.
Belmont Shore parecia uma dessas pequenas cidades à beira-mar, embora fosse parte de Long Beach. O endereço de Driscoll ficava em um prédio de dois andares, estilo
anos 50, branco e azul-claro, na praia de Bayshore, perto do píer.
O apartamento de Driscoll era no segundo andar, com uma passagem externa na frente do edifício. O apartamento 24 era no meio do corredor. Cisco bateu e depois assumiu
posição ao lado da porta, deixando-me ali plantado.
- Você tá de brincadeira? - perguntei.
Ele apenas me olhou. Não estava.
Dei um passo para o lado. Esperamos, mas ninguém atendeu, mesmo sendo antes das dez em um domingo de manhã. Cisco olhou para mim e ergueu as sobrancelhas, como que
perguntando: O que você quer fazer?
Não respondi. Virei para a grade e observei o pátio do estacionamento na frente. Vi algumas vagas desocupadas e percebi que eram numeradas. Apontei.
- Vamos procurar a 24 e ver se o carro dele está lá.
- Vai você - disse Cisco. - Eu dou uma checada por aqui.
- Como é?
Não vi coisa alguma para ser checada. Estávamos numa passagem de um metro e meio que levava a todos os apartamentos do segundo andar. Nenhuma peça de mobília, nenhuma
bicicleta, apenas cimento.
- Vai dar uma olhada no estacionamento.
Voltei a descer as escadas. Depois de me abaixar para olhar sob três carros para pegar o número pintado na guia, percebi que a numeração das vagas não correspondia
aos números dos apartamentos. O edifício tinha 12 unidades, os apartamentos indo de um a seis embaixo e 21 a 26 em cima. Mas as vagas no estacionamento estavam numeradas
de um a 16. Meu palpite era que por esse esquema Driscoll teria o número 10, se cada apartamento tivesse uma vaga, o que parecia lógico, uma vez que havia apenas
16 vagas e vi que duas estavam assinaladas como de visitantes e duas eram para deficientes.
Eu ainda digeria esses números na cabeça e olhava para o BMW com 10 anos de idade estacionado na vaga 10 quando Cisco chamou meu nome da passagem acima. Olhei e
ele acenou para que eu subisse.
Quando voltei para lá, ele estava parado diante da porta aberta do apartamento 24. Fez um sinal para que eu entrasse.
- Ele estava dormindo, mas depois atendeu.
Entrei e vi um homem desalinhado sentado em um sofá na sala com pouca mobília. O cabelo estava todo espetado em cachos duros e nós do lado direito. Sentava com um
cobertor enrolado em torno dos ombros. Mesmo assim, dava para ver que era o mesmo homem de uma foto que Cisco obtivera na conta de Donald Driscoll no Facebook.
- Isso é mentira - ele disse. - Não deixei ninguém entrar. Foi invasão.
- Não, você me convidou para entrar - disse Cisco. - Eu tenho uma testemunha.
Ele apontou para mim. O sujeito de olhar sonolento seguiu o dedo e me fitou pela primeira vez. Pude perceber a expressão de reconhecimento em seu olhar. Percebi
na mesma hora que de fato era Driscoll e que naquele mato tinha coelho.
- Ei, olha, não sei o q...
- Você é Donald Driscoll? - perguntei.
- Não preciso falar porra nenhuma pra você, cara. Não pode sair por aí invad...
- Ei! - gritou Cisco.
O homem levou um susto. Até eu levei, pois não estava esperando por essa sua nova tática de interrogatório.
- Responde logo - continuou Cisco, num tom mais calmo. - É ou não é Donald Driscoll?
- Quem quer saber?
- Você sabe quem quer saber - eu disse. - Me reconheceu no momento em que olhou pra mim. E você sabe por que a gente está aqui, Donald, não sabe?
Atravessei a sala, tirando a intimação de minha jaqueta de náilon. Driscoll era alto, mas de constituição frágil e mais branco que um vampiro, o que era estranho
para um sujeito vivendo a uma quadra da praia. Joguei o documento dobrado em seu colo.
- O que é isso? - ele disse, jogando no chão sem nem abrir.
- É uma intimação e você pode jogar no chão e preferir nem ler, mas não faz diferença. Considere-se intimado, Donald. Tenho uma testemunha e sou um oficial da justiça.
Se não aparecer amanhã às nove para testemunhar, vai estar na cadeia, acusado de desacato, na hora do almoço.
Driscoll se abaixou e pegou o papel.
- Você só pode estar de brincadeira comigo. Eles me matam.
Olhei para Cisco. Definitivamente, havia alguma coisa ali.
- Do que você tá falando?
- Estou falando que não posso testemunhar! Se eu chegar perto do tribunal, eles me matam. Provavelmente estão vigiando este lugar bem agora, porra!
Voltei a olhar para Cisco e então de volta para o sujeito no sofá.
- Quem vai matar você, Donald?
- Não vou dizer. Porra, quem você pensa que é?
Ele jogou a intimação em mim, que bateu em meu peito e caiu no chão. Levantou do sofá e começou a andar na direção da porta aberta. O cobertor caiu e vi que estava
vestindo apenas shorts de ginástica e uma camiseta. Antes que pudesse dar três passos, Cisco o atingiu com um jogo de corpo, como um defensor de futebol americano.
Driscoll rebateu na parede e foi ao chão. Um pôster enquadrado de uma garota numa prancha de surfe desprendeu da parede e se espatifou no chão ao seu lado.
Cisco se abaixou calmamente, ergueu Driscoll e o conduziu de volta ao sofá. Fui até a porta e a fechei, só para o caso de todo aquele barulho despertar a curiosidade
de algum vizinho. Depois voltei à sala.
- Não dá para fugir disso, Donald - eu disse. - Melhor dizer pra gente o que você sabe e o que você fez, que nós podemos ajudá-lo.
- Ajudar a me matar, seu veado. Acho que você quebrou meu ombro, seu filho da puta.
Começou a mexer o ombro e o braço como se estivesse se preparando para um arremesso de beisebol. Fez uma careta.
- Como está isso aí? - eu disse.
- Já falei, acho que quebrou. Senti alguma coisa sair do lugar.
- Se tivesse quebrado você não ia conseguir mexer - disse Cisco.
A voz de Cisco transmitia um tom de ameaça, como se as consequências pudessem ser ainda piores caso o ombro estivesse mesmo quebrado. Quando falei, minha voz foi
calma e cordial.
- O que você sabe, Donald? O que torna você um perigo para Opparizio?
- Não sei de nada e não disse esse nome; você disse.
- Precisa entender uma coisa. Você acaba de receber uma intimação legítima. Vai ter de aparecer e testemunhar ou ficar na cadeia até o momento de fazer isso. Mas
pensa bem, Donald. Se testemunhar o que sabe sobre a ALOFT e contar o que fez, fica sob proteção. Ninguém vai levantar um dedo contra você, porque seu agressor ia
ser óbvio. É a única coisa a ser feita nesse caso.
Ele balançou a cabeça.
- Sei, óbvio se fizessem agora. E que tal daqui a dez anos, quando ninguém mais lembrar desse seu julgamento de merda e eles continuarem protegidos atrás de toda
aquela montanha de dinheiro que eles têm?
Eu não tinha como responder a isso, de fato.
- Olha, eu tenho uma cliente sendo julgada, é a vida dela que está em jogo. Ela tem um filho pequeno e estão tentando acabar com a vida dela. Não v...
- Vai se foder, cara, ela provavelmente é culpada. São duas coisas diferentes que a gente está falando. Não tem como eu ajudar. Eu não tenho prova de nada. Não tenho
porra nenhuma. Só me deixa em paz, você está entendendo? E a minha vida? Eu também quero viver a minha vida.
Olhei para ele e balancei a cabeça tristemente.
- Não posso deixar você em paz. Vou convocá-lo para o banco das testemunhas amanhã. Pode se recusar a responder a qualquer pergunta. Pode até invocar a Quinta Emenda,
se cometeu algum crime. Mas você vai estar lá e eles vão estar lá. Eles vão saber que você é um problema não resolvido para eles. Sua melhor jogada é entregar tudo,
Donald. Dizer o que sabe e receber proteção. Cinco anos, dez anos, eles nunca vão poder encostar um dedo em você, porque os autos do processo continuam existindo.
Driscoll olhava fixamente para um cinzeiro cheio de moedas sobre a mesa do café, mas estava enxergando alguma outra coisa.
- Talvez seja melhor eu chamar um advogado - ele disse.
Olhei para Cisco. Isso era exatamente o que eu não queria que acontecesse. Uma testemunha com seu advogado nunca era uma coisa boa.
- Certo, perfeito, se tiver um advogado, pode trazer. Mas um advogado não vai impedir o progresso desse julgamento. Essa intimação é à prova de bala, Donald. Um
advogado vai cobrar pelo menos mil dólares para derrubar isso, mas não vai funcionar. Só vai servir para deixar o juiz puto da vida com você por tomar o tempo do
tribunal.
Meu celular começou a zumbir no bolso. Era suficientemente cedo num domingo para ser incomum. Tirei e olhei o visor. Maggie McPherson.
- Pensa no que eu disse, Donald. Preciso atender aqui, mas é rápido.
Conforme atendia fui para a cozinha.
- Maggie? Está tudo bem?
- Claro, por quê?
- Não sei. É meio cedo para um domingo. A Hayley já levantou?
Domingo sempre era dia de minha filha tirar o atraso. Ela conseguia facilmente dormir até depois do meio-dia, se ninguém chamasse.
- Claro. Só estou ligando porque a gente não se falou ontem e achei que continuava valendo nosso combinado de ir ao cinema hoje.
- Hum...
Lembrei vagamente da promessa de irmos todos juntos ao cinema quando estivera na sala de Maggie, na sexta-feira à tarde.
- Você está ocupado.
Pronto, lá vinha ela com aquele tom de voz. Aquele tom de Não dá mesmo pra confiar em você.
- No momento, estou. Estou em Long Beach, conversando com uma testemunha.
- Então nada de filme? É isso que eu falo pra ela?
Eu podia escutar a voz de Cisco e Driscoll lá na sala, mas não dava para prestar atenção no que estavam dizendo.
- Não, Maggie, não fala isso pra ela. Só não tenho certeza de que hora vou conseguir sair daqui. Deixa eu encerrar por aqui que eu ligo de volta. Ela ainda nem vai
ter acordado, ok?
- Ótimo, a gente espera.
Antes que eu pudesse responder, ela desligou. Guardei o celular e olhei em volta. Parecia que a cozinha era o lugar menos usado do apartamento.
Voltei para a sala. Driscoll continuava no sofá e Cisco continuava perto o suficiente para impedir outra tentativa de fuga.
- Donald acabou de me dizer que quer testemunhar - disse Cisco.
- É isso mesmo? Como foi que você mudou de ideia, Donald?
Passei por Cisco e fiquei bem na frente de Driscoll. Ele ergueu o rosto para mim e deu de ombros, depois fez um sinal na direção de Cisco.
- Ele disse que você nunca perdeu uma testemunha e que se a coisa chegar nesse ponto ele conhece uns caras capazes de cuidar do pessoal deles sem problema. Estou
inclinado a acreditar.
Balancei a cabeça e por um momento tive uma visão da sala escura na sede dos Saints. Rapidamente, pensei em outra coisa.
- É, bom, é verdade - eu disse. - Então está dizendo que vai colaborar?
- É. Vou falar tudo que sei.
- Ótimo. Então por que a gente não começa agora mesmo?
Quarenta e cinco
No início do julgamento, Andrea Freeman conseguira manter minha sócia, Jennifer Aronson, afastada da mesa da defesa como minha assistente, protestando que ela figurava
também na lista de testemunhas da defesa. Na segunda de manhã, quando chegou a hora de Aronson testemunhar, a promotora tentou impedir seu depoimento, alegando ser
irrelevante para as acusações. Eu não pudera fazer nada a respeito daquela primeira objeção, mas sentia que os deuses da justiça estavam do meu lado dessa segunda
vez. Além disso, eu contava com um juiz que continuava em dívida comigo depois de se alinhar à promotoria em duas decisões críticas no começo do julgamento.
- Excelência - eu disse -, a promotoria não pode estar protestando a sério. O estado determinou perante o júri um motivo para a alegação de que a acusada cometeu
esse crime. A vítima estava empenhada em tirar sua casa. A acusada ficou com raiva e frustrada, e cometeu o homicídio. Esse é o caso da promotora, em resumo. E agora
protestar contra uma testemunha que vai fornecer os detalhes dessa ação de incitamento ao crime, a execução da hipoteca, com base em relevância é na melhor das hipóteses
um preciosismo e, na pior, pura hipocrisia.
O juiz não perdeu tempo em fornecer uma resposta e pronunciou sua decisão.
- Objeção indeferida. Podem trazer o júri.
Assim que o júri tomou seu lugar e Aronson foi para o banco das testemunhas, dei início à minha inquirição, começando por esclarecer por que ela era a especialista
da defesa quanto à tentativa de retomada do imóvel de Lisa Trammel.
- Então, senhorita Aronson, você não era a advogada incumbida de defender Trammel na ação de execução, era?
- Não, era sua advogada associada.
Balancei a cabeça.
- Desse modo, na verdade você cuidava do trabalho todo, enquanto meu nome só aparecia na papelada, correto?
- Correto. A maior parte dos documentos no processo de execução foi preparada por mim. Eu conheci o caso a fundo.
- Vida de uma sócia júnior no começo é assim, não é?
- Acho que é.
Ambos sorrimos. A partir daí eu a conduzi passo a passo pelos procedimentos da execução. Nunca digo que você deve simplificar o que fala diante de um júri, mas você
deve sem dúvida falar de um modo que seja universalmente compreensível. De investidores a donas de casa, há 12 cabeças diferentes no júri, formadas todas em diferentes
experiências de vida. Você precisa contar a todos a mesma história. E tem apenas uma chance. Esse é o macete. Doze cabeças, uma história. Precisa ser uma história
que atinja cada um deles.
Uma vez estabelecidos os problemas financeiros e legais que minha cliente estava enfrentando, passei à questão de como o jogo estava sendo jogado pelo WestLand e
seu representante, a ALOFT.
- Então quando você recebeu uma pasta sobre esse assunto, qual foi a primeira coisa que fez?
- Bom, você me disse para adotar como prática a checagem de todas as datas e detalhes. Disse para ter certeza de que em todos os casos o requerente tivesse base
legal, ou seja, que a gente precisava ter certeza de que a instituição que pleiteava a retomada do imóvel tinha mesmo condições de fazer a reivindicação.
- Mas não teria sido óbvio neste caso, já que os Trammel vinham fazendo os pagamentos da hipoteca para o WestLand por quase quatro anos antes que suas dificuldades
financeiras mudassem as coisas?
- Não necessariamente, porque a gente estava vendo que o negócio das hipotecas passara por um BOOM na metade da década. Era tanta hipoteca sendo feita e depois renegociada
e refinanciada que em muitos casos a transferência da escritura nunca ficava pronta. Não interessava nesse caso para quem os Trammel estavam pagando as prestações.
O que interessava era que entidade detinha legitimamente a hipoteca.
- Certo, então o que foi que você descobriu quando verificou as datas e os detalhes da execução dos Trammel?
Freeman protestou outra vez, alegando falta de relevância, e mais uma vez a objeção foi indeferida. Não precisei fazer a pergunta para Aronson outra vez.
- Quando revisei as datas e os detalhes, encontrei discrepâncias e indícios de fraude.
- Pode descrever esses indícios?
- Claro. Havia uma prova irrefutável de que a documentação de transferência do imóvel era forjada, deixando o WestLand sem base legal para acionar a execução.
- Tem esses documentos aí, senhorita Aronson?
- Tenho, estou com eles prontos para exibir na apresentação do PowerPoint.
- Então, por favor.
Aronson abriu um laptop diante de si e iniciou o programa. O documento em questão apareceu nas telas do alto e pedi mais algumas explicações para Bullocks.
- O que é isso que estamos vendo, senhorita Aronson?
- Se eu puder explicar, há seis anos Lisa e Jeff Trammel compraram sua casa, obtendo uma hipoteca por meio de uma corretora chamada CityPro Home Loans. A CityPro
depois combinou a hipoteca deles em um portfólio com 59 outras hipotecas de valor parecido. O portfólio todo foi comprado pelo WestLand. Cabia ao WestLand nesse
ponto assegurar que a hipoteca de cada uma dessas propriedades fosse adequadamente transferida pela documentação legal para o banco. Mas isso nunca aconteceu. A
transmissão legal da hipoteca no caso do imóvel dos Trammel nunca foi feita.
- Como você sabe disso? O documento de transmissão não está bem aqui na nossa frente?
Saí de trás do atril e fiz um gesto na direção das telas.
Aronson continuou.
- Esse documento pretende ser uma transmissão da hipoteca, mas se você for para a última página...
Ela apertou a seta para baixo em seu teclado e rolou o documento para a última página. Era a folha de assinaturas, com as assinaturas de um funcionário do banco
e um tabelião, além do obrigatório selo oficial do tabelionato.
- Duas coisas aqui - disse Aronson. - Segundo o registro do tabelião, podemos ver que o documento foi supostamente assinado no dia 6 de março de 2007. Isso teria
sido pouco depois que o WestLand comprou o portfólio de hipoteca da CityPro. A firma do funcionário que vemos aqui é de Michelle Monet. Até o momento não conseguimos
encontrar uma Michelle Monet que é ou tenha sido funcionária do WestLand National em qualquer cargo que seja, em qualquer filial ou agência do banco. O segundo problema
é que se você observar o selo do tabelião, a data de encerramento pode ser vista claramente como sendo 2014.
Ela parou aí, exatamente como havíamos ensaiado, como se a fraude envolvendo o selo do tabelião ficasse óbvia para todo mundo. Mantive o suspense por um longo tempo,
como que esperando mais coisas.
- Certo, qual o problema com a data de término sendo de 2014?
- No estado da Califórnia, licenças de tabelionato são concedidas por cinco anos. Isso significaria que o selo desse tabelião foi emitido em 2009, mas a data com
reconhecimento do cartório neste documento é 6 de março de 2007. O selo desse tabelião não foi emitido em 2007. Isso quer dizer que esse documento foi criado para
transmitir fraudulentamente o título da hipoteca sobre o imóvel dos Trammel para o WestLand National.
Voltei a me aproximar do atril para checar minhas anotações e deixar que o depoimento de Aronson pairasse diante do júri por mais algum tempo. Relanceei rapidamente
o grupo de jurados e notei que vários deles continuavam olhando para as telas. Isso era bom.
- Então o que você pensou quando descobriu essa fraude?
- Que poderíamos questionar legalmente o direito do WestLand de executar a hipoteca da residência dos Trammel. O WestLand não era o detentor legítimo da hipoteca.
Ela continuava com a CityPro.
- Você informou Lisa Trammel sobre sua descoberta?
- No dia 17 de dezembro do ano passado, tivemos uma reunião em que compareceram a cliente, Lisa, você e eu. Ela foi informada na época de que tínhamos uma prova
clara e convincente de fraude na documentação da execução. Também dissemos a ela que iríamos utilizar essa prova como um trunfo para negociar um desfecho positivo
em sua situação.
- Como ela reagiu a isso?
Freeman protestou, dizendo que minha pergunta exigia uma resposta especulativa. Argumentei que eu tinha o direito de determinar o estado de espírito da acusada no
momento do crime. O juiz concordou e Aronson recebeu permissão de responder.
- Ela se mostrou muito feliz e positiva. Disse que era um presente de Natal antes da época, saber que não ia perder a casa tão cedo.
- Obrigado. Certo, e chegou um momento em que você escreveu uma carta ao WestLand assinada por mim?
- Sim, escrevi uma carta portando sua assinatura que destacava essas descobertas de fraude. Era endereçada a Mitchell Bondurant.
- E qual foi o propósito dessa carta?
- Era parte da negociação sobre a qual Lisa Trammel havia sido informada. A ideia era notificar o senhor Bondurant do que a ALOFT andava fazendo em nome do banco.
Acreditávamos que se o senhor Bondurant ficasse preocupado acerca da exposição do banco nesse assunto, isso ajudaria a facilitar uma negociação benéfica para nossa
cliente.
- Quando você escreveu essa carta assinada por mim, era de seu conhecimento ou era sua intenção que o senhor Bondurant a passasse adiante para Louis Opparizio na
ALOFT?
- Não, não era.
- Obrigado, senhora Aronson. Não tenho mais perguntas.
O juiz convocou o intervalo da manhã e Aronson veio sentar na cadeira da acusada, enquanto Lisa e Herb Dahl saíam para esticar as pernas no corredor.
- Ufa, finalmente posso sentar aqui - ela disse.
- Não se preocupe, depois de hoje, seu lugar é na mesa da defesa. Você se saiu bem, Bullocks. Agora vem a parte difícil.
Olhei para Freeman, que ficou em sua mesa durante o intervalo, terminando seu planejamento para a contrainquirição.
- Só não esquece, você tem direito de levar o tempo que for para responder. Quando ela fizer alguma pergunta mais difícil, faça uma pausa, respire fundo, só fale
depois que souber a resposta.
Ela me olhou como que questionando se era isso mesmo que eu queria dizer: Você quer dizer, a verdade?
Balancei a cabeça.
- Você se vira.
Depois do intervalo, Freeman se dirigiu ao atril e abriu uma pasta contendo anotações e perguntas escritas. Era só um jogo de cena, na maior parte. Ela fez o que
pôde, mas é sempre duro inquirir um advogado, mesmo um novato. Durante quase uma hora ela tentou contradizer o depoimento de Aronson, mas sem resultado.
Por fim, acabou adotando uma postura diferente, usando sarcasmo sempre que possível. Um sinal claro de frustração.
- Então depois daquela maravilhosa e feliz reunião com a cliente que tiveram antes do Natal, quando voltou a ver sua cliente?
Aronson teve de pensar por um longo momento antes de responder.
- Deve ter sido depois que foi presa.
- Bem, e quanto a ligações telefônicas? Depois da reunião, quando voltou a conversar com a cliente pelo telefone?
- Tenho certeza absoluta de que ela conversou com o doutor Haller algumas vezes, mas eu mesma só voltei a falar com ela depois que foi presa.
- De modo que nesse meio-tempo entre a reunião e o crime, a senhorita não teria a menor ideia sobre o estado de espírito de sua cliente?
Como instruída, minha colega não teve pressa para responder.
- Se tivesse acontecido uma mudança na opinião dela sobre o caso e sobre como estava sendo conduzido, acho que eu teria sido informada diretamente ou por intermédio
do doutor Haller. Mas nada assim ocorreu.
- Desculpe, mas não perguntei o que a senhorita acha. Perguntei o que ficou sabendo diretamente. Está dizendo ao júri que com base em sua reunião de dezembro, sabe
qual era o estado de espírito de sua cliente um mês depois?
- Não, não estou.
- Então não pode sentar aí e nos dizer qual era o estado de espírito de Lisa Trammel na manhã do assassinato, pode?
- Posso dizer o que sei da reunião.
- E pode nos dizer o que ela estava pensando quando viu Mitchell Bondurant, o homem que estava tentando tirar sua casa, naquela manhã na cafeteria?
- Não, não posso.
Freeman baixou o rosto para suas anotações e pareceu hesitar. Eu sabia por quê. Tinha uma decisão difícil a tomar. Ela sabia que eu acabara de conquistar uns pontos
sólidos com o júri e agora precisava decidir se tentava descontar mais alguns ou terminar enquanto estava por cima.
Finalmente, decidiu que já era suficiente e dobrou sua pasta.
- Não tenho mais perguntas, Excelência.
O próximo a subir ao banco das testemunhas era Cisco, mas o juiz como sempre adiantou o intervalo do almoço. Levei minha equipe para o Jerry’s Famous Deli, em Studio
City. Lorna estava à espera de nós, num reservado próximo à porta que levava à pista de boliche, nos fundos do restaurante. Sentei ao lado de Jennifer e diante de
Lorna e Cisco.
- E aí, como foi hoje de manhã? - perguntou Lorna.
- Bom, eu acho - respondi. - Freeman marcou alguns pontos na contrainquirição, mas acho que no geral a gente se saiu melhor. Jennifer foi muito bem.
Não sei se alguém havia notado, mas eu decidira que não iria mais chamá-la de Bullocks. Na minha opinião, ela deixara o apelido para trás, com seu desempenho no
banco das testemunhas. Não era mais a advogada novata da faculdade meia-boca. Ela fizera seu batismo de fogo naquele caso, tanto por seu trabalho dentro como fora
da sala do tribunal.
- E agora senta na mesa dos adultos! - acrescentei.
Lorna deu vivas e bateu palmas.
- E hoje é a vez de Cisco - disse Aronson, claramente constrangida com a atenção.
- Talvez não - eu disse. - Acho que vou precisar pôr o Driscoll, na sequência.
- Por quê? - disse Aronson.
- Porque hoje de manhã, na sala do juiz, informei o tribunal e a promotoria da existência dele e sua inclusão na minha lista de testemunhas. Freeman protestou, mas
foi ela mesma quem trouxe o Facebook para o caso, então o juiz disse que ia autorizar. Então agora estou pensando que, quanto antes eu convocá-lo, menos tempo Freeman
terá para se preparar. Se eu me ativer ao planejamento e chamar o Cisco, Freeman pode enrolar com ele a tarde toda enquanto seus investigadores vão atrás de Driscoll.
Só Lorna balançou a cabeça concordando com meu raciocínio. Mas isso era quanto bastava, para mim.
- Merda, e eu que me arrumei todo - resmungou Cisco.
Era verdade. Meu investigador estava usando uma camisa de mangas compridas com colarinho, que parecia a ponto de descosturar se ele flexionasse os músculos. Mas
eu já o vira assim antes. Era sua camisa de testemunhar.
Ignorei a queixa.
- Falando no Driscoll, como andam as coisas, Cisco?
- Meus caras foram buscar ele hoje de manhã e levaram pra sede. Da última vez que chequei, estava jogando bilhar.
Encarei meu investigador.
- Não estão dando álcool pra ele, estão?
- Claro que não.
- Era só o que eu precisava, uma testemunha bêbada no julgamento.
- Não se preocupa. Falei que nada de álcool.
- Bom, liga pros seus amigos. Diz que é pra deixar o Driscoll no fórum à uma. Ele é o próximo.
Estava muito barulhento no restaurante para dar um telefonema. Cisco saiu do reservado e foi na direção da porta enquanto pegava o celular. Ficamos vendo ele ir.
- Sabe, ele até que fica bem numa camisa de verdade - disse Aronson.
- Sério? - respondeu Lorna. - Eu não gosto das mangas.
Quarenta e seis
Quase não reconheci Donald Driscoll com o cabelo penteado e vestindo um terno. Cisco o pusera em uma sala de testemunhas no fim do corredor anexo ao tribunal. Quando
entrei, ele ergueu o rosto para mim com uma expressão de medo nos olhos.
- Que tal o clube dos Saints? - perguntei.
- Não é bem meu tipo de lugar - ele disse.
Balancei a cabeça, fingindo simpatia.
- Está preparado?
- Não, mas estou aqui.
- Certo, daqui a uns minutos Cisco vai aparecer para buscar você e levar para a sala do tribunal.
- Não vejo a hora.
- Olha, sei que não parece, no momento, mas você está fazendo o certo.
- Tem razão... não parece, no momento.
Eu não sabia o que responder.
- Tudo bem, vejo você lá dentro.
Saí da sala e sinalizei para Cisco, esperando no corredor com os dois sujeitos que haviam vigiado Driscoll. Apontei o lado do corredor onde ficava a sala do tribunal,
e Cisco balançou a cabeça. Fui em frente e quando entrei no tribunal vi Jennifer Aronson e Lisa Trammel na mesa da defesa. Sentei, mas antes que pudesse dizer qualquer
coisa para uma das duas, o juiz entrou no recinto e tomou seu lugar. Ele mandou chamar o júri e rapidamente iniciou a sessão. Chamei Donald Driscoll para o banco
das testemunhas. Depois que ele fez o juramento, passei direto ao assunto.
- Senhor Driscoll, qual é sua profissão?
- Trabalho em TI.
- E o que TI significa?
- Tecnologia da informação. Significa que eu trabalho com informática, com a internet. Encontro a melhor maneira de usar novas tecnologias para reunir informação
para o cliente ou o empregador, seja quem for.
- O senhor é um ex-funcionário da ALOFT, correto?
- Sim, trabalhei lá por dez meses, até o começo deste ano.
- Em TI?
- Isso.
- O que exatamente o senhor fazia em TI para a ALOFT?
- Eu tinha diversas funções. O negócio é muito dependente de computador. São funcionários demais e existe uma grande necessidade de acessar informação pela internet.
- E o senhor ajudava nisso.
- Isso mesmo.
- Bem, o senhor conhece a acusada, Lisa Trammel?
- Não pessoalmente. Eu sei quem é.
- O senhor a conhece por causa deste processo?
- É, mas também de antes.
- De antes. Como assim?
- Uma de minhas funções na ALOFT era monitorar Lisa Trammel.
- Por quê?
- Não sei por quê. Me disseram para fazer e eu fiz, só isso.
- Quem pediu para o senhor monitorar Lisa Trammel?
- O senhor Borden, meu supervisor.
- Ele lhe pediu para monitorar mais alguém?
- Pediu, um monte de gente.
- Quanta gente?
- Acho que umas dez pessoas.
- Quem eram essas pessoas?
- Outros envolvidos nas manifestações contra as hipotecas, como Trammel. Além de alguns funcionários dos bancos com quem a gente tinha negócios.
- Como quem?
- O sujeito que foi assassinado. O senhor Bondurant.
Verifiquei minhas anotações por algum tempo e deixei que o júri absorvesse isso.
- Bem, e com monitorar, o que o senhor quis dizer?
- Era para eu procurar qualquer coisa que pudesse encontrar sobre essas pessoas on-line.
- O senhor Borden chegou a comentar o motivo de ter lhe passado essa incumbência?
- Eu perguntei uma vez e ele disse que era porque o senhor Opparizio quer a informação.
- O senhor se refere a Louis Opparizio, fundador e presidente da ALOFT?
- Isso.
- Certo, e havia alguma instrução específica do senhor Borden em relação a Lisa Trammel?
- Não, era apenas para ver o que dava para descobrir a respeito.
- E quando essa incumbência foi passada para o senhor?
- No ano passado. Eu comecei a trabalhar na ALOFT em abril, então foi alguns meses depois disso.
- Pode ter sido em julho ou agosto?
- É, mais ou menos por aí.
- O senhor passou a informação que obteve para o senhor Borden?
- Passei.
- Chegou um momento em que o senhor ficou sabendo que Lisa Trammel estava no Facebook?
- Claro, era uma coisa meio óbvia de verificar.
- O senhor foi admitido como amigo dela no Facebook?
- Fui.
- O senhor mencionou isso especificamente para seu supervisor?
- Eu informei a ele que ela estava no Facebook e que a página era bastante ativa, e que era um bom lugar para ficar por dentro das ações dela e do que estava planejando
para a FLAG.
- Como ele respondeu?
- Ele me disse para monitorar a página e depois resumir tudo uma vez por semana em um e-mail. Então foi o que eu fiz.
- O senhor usou seu próprio nome quando enviou uma solicitação de amigo para Lisa Trammel.
- Foi. Eu já tinha meu próprio perfil no Facebook, sabe. Então não tinha por que me esconder. Quer dizer, eu duvidava que ela pudesse saber quem eu era, de qualquer
jeito.
- Que tipo de relatório o senhor fornecia para o senhor Borden?
- Sabe, se a turma dela estivesse planejando um protesto em algum lugar, eu dizia a data e o horário para eles, esse tipo de coisa.
- O senhor acaba de dizer “eles”. Estava fornecendo esses relatórios para alguma outra pessoa além do senhor Borden?
- Não, mas eu sabia que ele repassava para o senhor Opparizio, porque o senhor Opparizio me mandava e-mails de vez em quando sobre o material que eu mandava para
o senhor Borden. Então eu sabia que ele estava acompanhando os relatórios.
- Em tudo isso, o senhor fez alguma coisa ilegal, quando espionava para Borden e Opparizio?
- Não.
- E por acaso algum desses resumos semanais sobre as atividades de Lisa Trammel incluía referência aos posts dela sobre estar na garagem do WestLand National e esperando
para falar com Mitchell Bondurant?
- Sim, teve um. O WestLand era um dos maiores clientes da empresa e achei que talvez o senhor Bondurant devesse saber, se é que já não soubesse, que essa mulher
tinha esperado por ele naquele local.
- Então o senhor forneceu ao senhor Borden os detalhes de como Lisa Trammel havia encontrado a vaga de estacionamento do senhor Bondurant e esperado por ele?
- Isso.
- E ele agradeceu?
- Sim.
- E tudo isso figurou nos e-mails?
- Sim.
- O senhor guardou uma cópia do e-mail que enviou para o senhor Borden?
- É, guardei.
- Por que fez isso?
- É uma espécie de prática usual minha, manter cópias, principalmente quando estou lidando com gente importante.
- Por acaso o senhor trouxe uma cópia desse e-mail consigo hoje?
- Trouxe.
Freeman protestou e pediu para se aproximar. Junto à bancada do juiz, ela argumentou com sucesso que não havia maneira de legitimar o que se supunha ser uma cópia
impressa de um antigo e-mail. O juiz não me permitiria introduzir a prova, determinando que eu deveria me ater ao depoimento de Driscoll.
Ao voltar para o atril, decidi que tinha de deixar claro para o júri que Borden sabia que Trammel estivera antes na garagem e que Borden era um canal de comunicação
de Opparizio. Os elementos de uma armação estavam bem aí. A promotoria queria que acreditassem que a primeira vez que Lisa esteve na garagem foi um ensaio para o
assassinato que ela cometeria mais tarde. Eu queria que acreditassem que as pessoas que haviam armado para Trammel, fossem quem fossem, sabiam de tudo que precisavam
saber, graças ao Facebook.
Prossegui.
- Senhor Driscoll, o senhor disse que Mitchell Bondurant era uma das pessoas sobre as quais o senhor deveria recolher informações, correto?
- Sim.
- Que informações o senhor obteve a respeito dele?
- Na maior parte sobre suas propriedades pessoais. Que imóveis estavam em seu nome, quando os comprou e por quanto. Quem detinha as hipotecas. Esse tipo de coisa.
- Então o senhor forneceu para o senhor Borden um retrato financeiro.
- Isso mesmo.
- O senhor encontrou algum penhor contraído pelo senhor Bondurant ou contra as suas propriedades?
- Sim, um monte. Ele devia muito dinheiro na praça.
- E toda essa informação chegou a Borden?
- Sim, chegou.
Decidi parar por aí no que dizia respeito a Bondurant. Eu não queria que o júri se afastasse muito do ponto principal no depoimento de Driscoll: de que a ALOFT estivera
observando Lisa e tinha toda a informação necessária para implicá-la no assassinato. Driscoll fora muito útil e agora eu encerraria seu testemunho com chave de ouro.
- Senhor Driscoll, quando foi que deixou de trabalhar para a ALOFT?
- Dia 1o de fevereiro.
- Foi por opção própria ou o senhor foi mandado embora?
- Eu disse que ia pedir demissão, então me mandaram embora.
- Por que o senhor queria se demitir?
- Porque o senhor Bondurant tinha sido assassinado no estacionamento do banco e eu não sabia se a mulher que tinha sido presa, Lisa Trammel, era a autora do crime
ou se havia alguma outra coisa acontecendo. Encontrei o senhor Opparizio no elevador um dia depois que o crime virou notícia e todo mundo na firma ficou sabendo
a respeito. A gente estava subindo junto, mas quando cheguei no meu andar, ele segurou meu braço enquanto os outros passageiros desciam. Subimos só nós dois para
o andar dele, e ele não disse nada até abrir as portas. Daí ele disse: “Fica com a merda do bico fechado”, e saiu. E as portas fecharam.
- Foram essas as palavras que ele usou: “Fica com a merda do bico fechado”?
- Foram.
- Ele disse mais alguma coisa?
- Não.
- Então isso o levou a pedir demissão?
- Sim, mais ou menos uma hora depois entreguei meu aviso prévio de duas semanas. Mas uns dez minutos depois que fiz isso o senhor Borden veio até minha mesa e me
disse que era para eu ir embora. Que estava despedido. Ele trouxe uma caixa para eu guardar minhas coisas e um segurança para me vigiar enquanto eu fazia isso. Depois
os dois me acompanharam até eu sair.
- O senhor recebeu alguma indenização por rescisão de contrato?
- Quando eu estava de saída o senhor Borden me deu um envelope. Ali dentro tinha um cheque com o salário de um ano.
- Isso parece muita generosidade, dar um ano de salário, considerando que o senhor não tinha trabalhado lá nem um ano inteiro e disse que ia pedir demissão, não
acha?
Freeman protestou contra a relevância e a objeção foi deferida.
- Não tenho mais perguntas para a testemunha.
Freeman assumiu meu lugar, aproximando-se do atril com sua fiel pasta, que abriu cuidadosamente. Eu só incluíra Driscoll em minha lista de testemunhas nessa mesma
manhã, mas o nome dele aparecera durante o testemunho de sexta-feira. Eu tinha certeza de que Freeman preparara alguma coisa. Logo descobriria até que ponto.
- Senhor Driscoll, o senhor não tem diploma superior, tem?
- Ahn, não.
- Mas o senhor frequentou a UCLA, não foi?
- Isso mesmo.
- Por que o senhor não se formou?
Fiquei de pé e protestei, dizendo que as perguntas não tinham qualquer relação com a inquirição da testemunha feita pela defesa. Mas o juiz afirmou que eu abrira
essa brecha ao perguntar à testemunha sobre suas credenciais e experiência em TI. Então instruiu Driscoll a responder.
- Não me formei porque fui expulso.
- Por qual motivo?
- Cola. Eu hackeei o computador de um professor e baixei a prova uma noite antes.
Driscoll disse isso com um tom de voz quase entediado. Como se já soubesse o que estava por vir. Eu sabia disso no seu passado. Falei a ele que se acontecesse de
só ter uma escolha, para ser absolutamente honesto. Caso contrário, seria um convite ao desastre.
- Então o senhor é um trapaceiro e um ladrão, correto?
- Eu era, e isso foi há mais de dez anos. Não trapaceio mais. Não tem por quê.
- Sério? E roubar?
- Mesma coisa. Eu não sou ladrão.
- Não é verdade que seu emprego na ALOFT foi encerrado abruptamente quando descobriram que o senhor estava sistematicamente lesando a empresa?
- Isso é mentira. Eu falei para eles que queria pedir demissão e eles me mandaram embora.
- Não é o senhor que está mentindo aqui?
- Não, estou dizendo a verdade. Acha que eu ia simplesmente inventar uma coisa dessas?
Driscoll lançou um olhar desesperado para mim e desejei que não tivesse feito isso. Podia ser interpretado como um conluio entre nós dois. Driscoll estava por conta
própria ali em cima. Eu não tinha como ajudá-lo.
- Para falar a verdade, acho, senhor Driscoll - disse Freeman. - Não é verdade que o senhor mantinha um negócio próprio paralelo funcionando às custas da ALOFT?
- Não.
Driscoll balançou enfaticamente a cabeça para corroborar sua negativa. Interpretei isso como uma mentira e percebi que eu estava bem encrencado. O acordo de indenização,
pensei. O salário de um ano. Eles não mandam embora uma pessoa e dão para ela um ano de salário se a pessoa está roubando. Fala sobre a indenização!
- O senhor não estava usando a ALOFT como fachada para encomendar softwares caros, depois quebrar os códigos de segurança e vender cópias piratas na internet?
- Isso não é verdade. Eu sabia que isso ia acontecer se eu contasse para alguém o que eu sei.
Dessa vez ele fez mais do que olhar para mim. Ele apontou para mim.
- Eu falei pra você que isso ia acontecer. Eu falei que essa gente não...
- Senhor Driscoll! - bradou o juiz. - Responda à pergunta que lhe foi feita pela promotora. O senhor não deve conversar com o advogado de defesa nem com ninguém
mais.
Tentando aproveitar seu embalo, Freeman voltou à carga.
- Excelência, posso me aproximar da testemunha com um documento?
- Por favor. A senhora vai tomar nota?
- Prova do Povo Nove, Excelência.
Ela entregou cópias para todo mundo. Mostrei para Aronson, e lemos juntos. Era uma cópia de um relatório interno de investigação da ALOFT.
- Você sabia alguma coisa sobre isso? - sussurrou Aronson.
- Claro que não - sussurrei em resposta.
Curvei-me para a frente de modo a me concentrar no documento. Eu não ia deixar uma advogada novata vindo com um tsc-tsc para cima de mim devido à gigantesca falha
de investigação.
- O que é esse documento, senhor Driscoll? - perguntou Freeman.
- Não sei - respondeu a testemunha. - Nunca vi isso antes.
- É um resumo de investigação interna da ALOFT, não é?
- Se a senhora diz.
- Está datado de quando?
- Dia 1o de fevereiro.
- Esse foi seu último dia de trabalho na ALOFT, não foi?
- É, foi. Na manhã desse dia eu dei o aviso prévio de duas semanas para o meu supervisor e eles apagaram meu login e me despediram.
- Por justa causa.
- Sem justa causa. Por que acha que me deram aquele cheque gordo quando passei pela porta? Eu sabia de coisas e eles estavam tentando me calar.
Freeman olhou para o juiz.
- Excelência, poderia por favor instruir a testemunha a se abster de responder minhas perguntas com suas próprias perguntas?
Perry balançou a cabeça.
- A testemunha deve responder às perguntas, não fazê-las.
Não fazia diferença, porém. Ele dissera o que eu queria, ali.
- Senhor Driscoll, poderia por favor ler o parágrafo do documento que realcei em amarelo?
Protestei, afirmando que o relatório não fazia parte da prova. O juiz indeferiu, autorizando a leitura sob a condição de uma posterior determinação sobre as provas.
Driscoll leu o parágrafo para si mesmo e então sacudiu a cabeça.
- Em voz alta, senhor Driscoll - pediu o juiz.
- Mas isso aqui é um monte de mentira. Isso é o que eles faz...
- Senhor Driscoll - exclamou o juiz, irritado. - Leia o parágrafo em voz alta, por favor.
Driscoll hesitou uma última vez e então finalmente leu.
- “O funcionário admitiu ter adquirido os pacotes de software com um requerimento da empresa e depois os devolveu após copiar o material, com direitos autorais.
O funcionário admitiu que vendia cópias piratas do software pela internet, usando os computadores da empresa para facilitar seu negócio. O funcionário admitiu ter
ganhado mais de cem mil d...
Driscoll subitamente amassou o papel com as duas mãos, fez uma bola e jogou pela sala do tribunal.
Direto em mim.
- Isso é culpa sua! - gritou comigo, fazendo acompanhar seu arremesso de um dedo apontado. - Eu estava sossegado no meu canto até você aparecer!
Mais uma vez o juiz Perry deve ter sentido falta de um martelo. Ele pediu ordem no tribunal e instruiu o júri a se recolher na sala de reunião. Os jurados rapidamente
saíram em fila, como se o próprio Driscoll estivesse mordendo seus calcanhares. Assim que a porta se fechou, o juiz prosseguiu com as medidas, gesticulando para
o oficial presente.
- Jimmy, acompanhe a testemunha até a cela do tribunal enquanto me reúno com os doutores em minha sala.
Ele se levantou, desceu da bancada e rapidamente sumiu pela porta antes que eu tivesse tempo de protestar contra o modo como minha testemunha estava sendo tratada.
Freeman o seguiu e eu passei pelo banco das testemunhas.
- Vai pra lá e se acalma. Daqui a pouco eles te soltam.
- Seu mentiroso do caralho - disse ele, os olhos faiscando de raiva. - Você disse que ia ser moleza e que não tinha perigo, e agora olha só. Todo mundo está achando
que eu sou uma porra de ladrão de software! Onde você acha que eu vou arrumar emprego agora?
- Bom, se eu soubesse antes que você vendia software pirata, provavelmente não o teria chamado para testemunhar.
- Vai tomar no cu, Haller. Melhor dar um jeito nessa situação, porque se eu tiver que voltar pra cá, vou fazer a merda chover em cima de você.
O policial o conduzia para a porta que dava na cela anexa à sala do tribunal. Quando ele ia notei Aronson de pé atrás da mesa da defesa. Seu rosto dizia tudo. Todo
seu bom trabalho da manhã possivelmente fora por água abaixo.
- Doutor Haller? - disse a estenógrafa de seu cercado. - O juiz está esperando.
- Sei - eu disse. - Já vou.
Segui na direção da porta.
Quarenta e sete
OFour Green Fields era sempre vazio nas noites de segunda. O bar costumava atrair uma multidão de gente que trabalhava na justiça e normalmente só enchia mais para
a metade da semana, quando os advogados precisavam de álcool para anestesiar a consciência.
Pedimos uma cerveja, um cosmopolitan e uma vodca-tônica com limão, mas sem vodca. Ainda aborrecido com o fiasco Donald Driscoll, eu convocara a reunião de happy
hour, que não tinha nada de happy, para falar sobre a terça-feira. E porque achei que meus colegas estavam precisando de uma bebida.
Passava um jogo de basquete na tevê, mas nem me dei ao trabalho de olhar quem estava jogando ou qual era o placar. Não estava interessado e não conseguia pensar
em quase nada além do desastre que fora Driscoll. O depoimento dele fora encerrado após a mostra de destempero e o dedo apontado. Em sua sala, o juiz preparara uma
declaração paliativa para apresentar ao júri, dizendo-lhes que tanto a promotoria quanto a defesa haviam concordado que ele devia ser dispensado de seguir testemunhando.
Driscoll fora, na melhor das hipóteses, uma aposta furada. Seu testemunho para mim certamente colaborara para o argumento da defesa de que Louis Opparizio fora o
mandante do assassinato de Mitchell Bondurant. Mas sua credibilidade fora solapada durante a contrainquirição e seu comportamento desequilibrado e animosidade contra
mim não ajudaram em nada. Além disso, o juiz certamente me considerava responsável pelo espetáculo e isso provavelmente acabaria acarretando um prejuízo para a defesa.
- Então - disse Aronson após um gole em seu coquetel. - O que a gente faz agora?
- Continua brigando, só isso. A gente teve uma testemunha ruim, foi um fiasco. Acontece em qualquer julgamento.
Apontei a tevê.
- Você gosta de futebol, Jennifer?
Eu sabia que ela entrara primeiro na UC Santa Barbara antes de se formar, na Southwestern. Não era nenhum reduto de potência futebolística universitária.
- Isso não é futebol. É basquete.
- É, sei, mas você gosta de futebol?
- Eu torço pros Raiders.
- Eu sabia! - disse Cisco, com satisfação. - Essa garota é das minhas.
- Bom - eu disse. - Quando você é advogado de defesa, precisa ser como um beque. Você sabe que vai se queimar de vez em quando. É parte do jogo, só isso. Então,
quando acontece, você levanta, sacode a poeira e esquece, porque logo alguém vai lançar uma bola outra vez. A gente deixou eles marcarem um touchdown hoje, eu deixei.
Mas a partida ainda não terminou, Jennifer. Ainda tem muito jogo pela frente.
- Certo, então o que a gente faz?
- O que a gente vem planejando fazer o tempo todo. Ficar na cola de Opparizio. A coisa toda tem a ver com ele. Eu preciso pôr o cara contra a parede. Acho que o
Cisco me deu munição para isso e minha esperança é pegar ele com a guarda baixa, com o Dahl informando que o julgamento vai ser uma moleza. Vendo de forma realista,
nesse exato momento, acho que está empatado. Mesmo depois de o Driscoll ter aprontado aquela lambança, eu diria que o jogo está empatado, ou talvez a promotoria
esteja um pouquinho na nossa frente. Pretendo mudar isso amanhã. Se não fizer isso, a gente perde.
Um silêncio sombrio se seguiu até Aronson fazer outra pergunta.
- E quanto ao Driscoll, Mickey?
- O que tem ele? Nós encerramos com o Driscoll.
- Sei, mas você acreditou nele com aquela história do software? Você acha que Opparizio armou pra ele? Toda aquela história de piratear softwares era mesmo mentira?
Porque agora já apareceu na mídia toda.
- Sei lá. O que a Freeman fez foi inteligente. Ela ligou isso com uma coisa que ele não ia ou não podia negar, ter roubado uma prova na faculdade. Aí a coisa toda
meio que fluiu junto. Seja como for, não faz diferença se eu acredito ou não. É o que o júri acredita que conta.
- Acho que você está errado. Acho que o que a gente acredita sempre é importante.
Balancei a cabeça.
- Pode ser, Jennifer.
Dei um longo gole em minha bebida anêmica. Aronson mudou de assunto.
- Por que você parou de me chamar de Bullocks?
Olhei para ela e depois voltei a olhar para o meu copo. Dei de ombros.
- Porque você se saiu muito bem hoje. É como se tivesse atingido a maioridade ou qualquer coisa assim e não fosse certo ser chamada pelo apelido, não mais.
Olhei além dela para Cisco e apontei.
- Mas ele? Com um nome como Wojciechowski, o apelido pega pra vida toda. E não tem jeito.
Todo mundo riu e foi como um alívio da pressão. Eu sabia que o álcool podia ajudar nesse departamento, mas já fazia dois anos agora, e eu seguia firme. Não ia dar
para trás.
- O que você passou para o Dahl entregar hoje? - perguntou Cisco.
Dei de ombros outra vez.
- A defesa está sem saber o que fazer, eles perderam sua melhor aposta quando Freeman acabou com Driscoll. E também o de sempre, a gente não tem nada para usar contra
Opparizio e o testemunho dele vai ser um mamão com açúcar. Ele ficou de me ligar depois de conversar com o mandante.
Cisco fez que sim. Falei sobre outra coisa.
- Acho que Opparizio é o canal para acabar com isso. Se eu conseguir mostrar para o júri nas perguntas e respostas o que o Cisco conseguiu pra mim, e forçar ele
a chamar a Quinta, daí acho que termina aí mesmo e o Cisco não precisa nem testemunhar.
Aronson franziu o rosto, como que em dúvida sobre se esse era mesmo um bom movimento.
- Ótimo - disse Cisco. - Não preciso me vestir com esse uniforme de idiota amanhã.
E deu um puxão no colarinho, como se aquilo fosse feito de lixa.
- Não, você vai precisar ir assim amanhã, pra qualquer eventualidade. Você tem outra camisa dessas, não tem?
- Na verdade, não. Acho que vou precisar lavar hoje à noite.
- Você tá de sacanagem comigo? Você só...
Cisco deu um assobio baixo e apontou com o queixo para a entrada atrás de mim. Virei no exato instante em que Maggie McPherson sentava no banquinho vago ao meu lado,
no balcão.
- Achei vocês.
- Maggie McFierce.
Ela apontou minha bebida.
- Melhor não ser o que eu acho que é.
- Relaxa, não é.
- Bom.
Ela pediu uma vodca-tônica de verdade para Randy, o bartender, provavelmente só para esfregar na minha cara.
- E aí, afogando as mágoas sem o afogador? Fiquei sabendo que foi um ótimo dia para os mocinhos.
Ou seja, a promotoria. Sempre.
- Pode ser. Você contratou uma baby-sitter para a segunda à noite?
- Não, a pessoa se ofereceu para ficar essa noite. Peguei o que dava, porque ela agora está namorando, então provavelmente lá se foram minhas noites de sexta e sábado
em liberdade.
- Certo, então você arruma uma baby-sitter e vai sozinha para um bar?
- Pode ser que eu estivesse procurando você, Haller. Já pensou nisso?
Girei no banquinho, ficando de costas para Aronson e de frente para Maggie.
- Sério?
- Talvez. Achei que você podia precisar de um pouco de companhia. Não está atendendo o celular.
- Esqueci. Deixei desligado depois que saí do fórum.
Peguei o aparelho e liguei. Não admira que não tivesse recebido notícias de Herb Dahl.
- Quer ir para sua casa? - ela perguntou.
Olhei para ela um bom tempo antes de responder.
- Amanhã vai ser o dia mais importante do julgamento. Eu pr...
- Tenho até a meia-noite.
Tentei respirar fundo, mas saiu mais ar do que entrou. Curvei-me em sua direção e me inclinei de modo que nossas cabeças se tocassem, mais ou menos como as pessoas
tocam os floretes antes de uma disputa de esgrima. Sussurrei em seu ouvido.
- Não consigo continuar desse jeito. A gente precisa dar o próximo passo ou parar com isso.
Ela pôs a mão em meu peito e me empurrou. Eu tinha medo de pensar em como seria minha vida se ela sumisse de vez. Me arrependi do ultimato que acabara de dar, porque
eu sabia que se a forçasse a tomar uma decisão, ela escolheria a segunda alternativa.
- O que me diz de a gente se preocupar só com hoje à noite, Haller?
- Ok - eu disse tão rápido que os dois começamos a rir.
Eu havia desviado de uma bala que disparara contra mim mesmo. Por enquanto.
- Ainda tenho alguma coisa para resolver do trabalho.
- Sei, isso é o que a gente vai ver.
Ela levou a mão ao balcão para pegar sua bebida, mas pegou a minha por engano. Ou talvez não por engano. Deu um gole e depois fez uma careta de nojo.
- Essa coisa sem vodca é horrível. Qual o objetivo?
- Eu sei. Por acaso você estava checando?
- Não, eu errei mesmo.
- Claro.
Ela então tomou um gole de seu próprio copo. Virei ligeiramente e voltei a olhar para Cisco e Aronson. Estavam curvados na direção um do outro, concentrados numa
conversa, sem prestar atenção em nós. Voltei a virar para Maggie.
- Casa comigo outra vez, Maggie. As coisas vão mudar completamente depois desse caso.
- Já ouvi isso antes. A segunda parte.
- É, mas dessa vez vai acontecer. Já está acontecendo.
- Eu preciso responder imediatamente? É uma oferta única na vida ou posso pensar a respeito?
- Claro, você tem alguns minutos. Vou dar um pulo no banheiro e já volto.
Rimos outra vez e então eu me curvei para a frente, dei-lhe um beijo e afundei o rosto em seus cabelos. Suspirei outra vez.
- Não consigo pensar em estar com mais ninguém.
Ela virou para mim e beijou meu pescoço, depois endireitou o corpo.
- Odeio exibições públicas de afeto, principalmente num bar. Parece vulgar.
- Desculpe.
- Vamos embora.
Ela desceu do banquinho. E deu mais um gole em sua bebida depois que ficou de pé. Tirei meu dinheiro e escolhi notas para cobrir todo mundo, incluindo o bartender.
Disse a Cisco e Aronson que estava de saída.
- Achei que ainda estivéssemos conversando sobre Opparizio - protestou Aronson.
Percebi Cisco tocando o braço dela disfarçadamente num sinal de agora não. Gostei disso.
- Quer saber? - eu disse. - Foi um longo dia. Às vezes, não pensar em alguma coisa é o melhor modo de se preparar. Estarei no escritório amanhã cedo, antes de ir
para o fórum. Se quiser aparecer, bem. Se não, a gente se vê no tribunal às nove.
Todo mundo se despediu e fui embora com minha ex-esposa.
- Quer deixar um dos carros aqui ou qualquer coisa assim? - perguntei.
- Não, é perigoso demais voltar aqui depois de jantar e ir pra cama com você. Vou querer entrar para uma saideira e daí pode não ser a saideira. Preciso dispensar
a babá e também tenho que trabalhar, amanhã.
- É assim que você vê? Só jantar e sexo e voltar para casa à meia-noite?
Ela podia ter me atingido nesse exato momento, dizer que eu estava choramingando como uma mulher que se queixa dos homens. Mas não.
- Nada disso - ela disse. - Na verdade, vejo como a melhor noite da semana.
Ergui a mão e segurei sua nuca ao caminharmos para nossos carros. Ela sempre gostou disso. Mesmo sendo uma exibição pública de afeto.
Quarenta e oito
Dava para sentir a tensão subir a cada passo dado por Louis Opparizio em direção ao banco das testemunhas, na terça de manhã. Ele vestia um terno bege-claro, com
camisa azul e gravata bordô. Parecia dignificado de um modo a evidenciar dinheiro e poder. E claramente olhava para mim com uma expressão de desprezo. Era minha
testemunha, mas obviamente não morria de amores por mim. Desde o início do julgamento eu apontara o dedo da culpa para uma outra pessoa que não era minha cliente.
Eu apontara para Opparizio e agora ele estava sentado à minha frente. Era o evento principal e por isso atraíra o maior público até ali - tanto imprensa como curiosos
- do julgamento.
Comecei num tom bastante amigável, mas não planejava continuar desse jeito. Eu tinha um único objetivo ali e o veredicto dependeria de conseguir conquistá-lo. Eu
tinha de empurrar o homem no banco das testemunhas ao limite. Ele se metera nessa situação exclusivamente por conta de sua própria avareza e vaidade. Havia ignorado
os conselhos de seus advogados, declinara do direito de se esconder atrás da Quinta Emenda e aceitara o desafio de ficar comigo frente a frente diante de uma casa
lotada. Meu trabalho era fazer com que se arrependesse dessas decisões. Meu trabalho era fazê-lo invocar a Quinta perante o júri. Se ele fizesse isso, então Lisa
Trammel ficaria em liberdade. Não poderia haver dúvida razoável mais poderosa do que ver o testa de ferro para o qual você apontou o dedo durante todo o julgamento
se esconder atrás da Quinta Emenda, recusar-se a responder a perguntas com base em que isso o incriminaria. Como poderia um jurado em boa-fé votar culpado além da
dúvida razoável depois disso?
- Bom dia, senhor Opparizio. Como vai?
- Preferia estar em outro lugar. Vou bem, e o senhor?
Sorri. O sujeito já estava irritado logo de saída.
- Daqui a algumas horas digo como estou - respondi. - Obrigado por sua presença aqui hoje. Notei que o senhor tem um leve sotaque da Costa Leste. O senhor não é
de Los Angeles?
- Eu nasci no Brooklyn, estou com 51. Vim para cá estudar direito e nunca mais voltei.
- O senhor e sua firma foram citados durante o julgamento um bom número de vezes. Parece que dominam o negócio das execuções hipotecárias, pelo menos neste condado.
Eu...
- Excelência? - interrompeu Freeman, de sua cadeira. - Será que vamos ouvir alguma pergunta aqui?
Perry a fitou do alto por um momento.
- Isso foi uma objeção, doutora Freeman?
Ela percebeu que não havia ficado de pé. O juiz nos instruíra antes do julgamento a nos levantarmos da cadeira sempre que quiséssemos protestar. Ela se levantou
rapidamente.
- Sim, Excelência.
- Faça uma pergunta, doutor Haller.
- É o que eu ia fazer, Excelência. Senhor Opparizio, pode nos dizer em suas próprias palavras o que exatamente a ALOFT faz?
Opparizio limpou a garganta e virou para os jurados quando respondeu. Era uma testemunha educada e competente. Eu arrumara uma sarna para me coçar.
- Com prazer. Essencialmente, a ALOFT é um escritório de cobranças. Grandes financeiras como o banco WestLand National pagam minha empresa para conduzir os processos
de execução hipotecária do início ao fim. Cuidamos de todos os aspectos, desde a elaboração da papelada até a entrega de notificação para comparecimento em juízo,
se necessário. Tudo isso englobado numa taxa única. Ninguém gosta de ouvir falar em execuções e retomadas de imóveis. Todos nós lutamos, cada um dentro da sua realidade,
para pagar as contas e ter uma casa. Mas às vezes as coisas não dão certo e um processo hipotecário acontece. É aí que a gente entra.
- O senhor disse que “às vezes as coisas não dão certo”. Mas nos últimos anos as coisas vêm dando muito certo para o senhor, não é verdade?
- Nosso negócio conheceu um tremendo crescimento nos últimos quatro anos e só agora começou finalmente a estabilizar.
- O senhor mencionou o WestLand National como um cliente. O WestLand era um cliente significativo, correto?
- Era e ainda é.
- Mais ou menos quantas execuções vocês conduzem para o WestLand em um ano?
- Assim de cabeça eu não saberia dizer. Mas acho que posso afirmar com segurança que somadas todas as agências do banco no oeste dos Estados Unidos, chegamos perto
de 10 mil processos em um ano.
- O senhor acreditaria que nos últimos quatro anos sua firma cuidou em média de 16 mil casos por ano passados pelo WestLand? Isso está no relatório anual do banco.
Segurei o documento para que todos vissem.
- Sim, acredito nisso. Relatórios anuais não mentem.
- Qual a taxa que a ALOFT cobra por execução?
- Nas residenciais, cobramos 2.500 dólares, e isso engloba tudo, mesmo se tivermos de ir a juízo na questão.
- Então, fazendo as contas, sua firma recebe 40 milhões de dólares por ano só do WestLand, correto?
- Se os números que o senhor mencionou estão corretos, então deve ser isso mesmo.
- Suponho, nesse caso, que a conta da WestLand na ALOFT era gigante.
- Certo, mas todos os nossos clientes são importantes.
- Então o senhor deve ter conhecido muito bem Mitchell Bondurant, a vítima deste caso, não é?
- Claro que eu o conhecia bem e acho lastimável o que aconteceu com ele. Era um bom homem, fazia seu melhor trabalho.
- Tenho certeza de que todo mundo aqui aprecia suas simpatias. Mas na época do crime, o senhor não estava muito satisfeito com o senhor Bondurant, estava?
- Não tenho certeza sobre onde quer chegar. Somos parceiros de negócios. Temos algumas disputas menores para acertar de tempos em tempos, mas isso sempre acontece
no curso natural dos negócios.
- Bom, não estou falando sobre disputas menores ou sobre o curso natural dos negócios. Estou falando sobre uma carta que o senhor Bondurant lhe enviou pouco antes
de ser assassinado, ameaçando expor as práticas fraudulentas de sua firma. A carta registrada foi assinada por sua secretária pessoal. O senhor a leu?
- Passei os olhos. A carta me fez saber que um dos meus 185 funcionários tomara um atalho. Isso era uma disputa menor e não havia nada ali ameaçador, como o senhor
disse. Instruí a pessoa responsável por esse caso particular a tomar as providências. Só isso, doutor Haller.
Mas isso não era tudo que eu tinha a dizer sobre o assunto. Obriguei Opparizio a ler a carta para o júri e durante a meia hora seguinte fiz perguntas cada vez mais
específicas e desconfortáveis sobre as alegações que ela continha. Depois passei à carta-alvo federal e pedi à testemunha que a lesse, também. Mas mais uma vez Opparizio
permaneceu imperturbável, menosprezando a carta federal como um tiro no escuro.
- Eu me comprometi a recebê-los de braços abertos - disse. - Mas quer saber? Ninguém apareceu. Passou todo esse tempo e não tive a menor notícia do senhor Lattimore
ou do agente Vasquez ou de qualquer outro agente federal. Porque a carta deles não funcionou. Eu não fugi, não suei frio, não choraminguei declarando culpa nem me
escondi atrás de um advogado. Eu disse: sei que os senhores têm um trabalho a fazer, apareçam e verifiquem nosso negócio. Nossas portas estão abertas e não temos
absolutamente nada a esconder.
Era uma resposta boa e bem ensaiada e Opparizio estava claramente vencendo os primeiros rounds. Mas tudo bem, porque eu guardara meus melhores golpes para depois.
Eu queria que ele se sentisse confiante e no controle. Herb Dahl o municiara com uma dieta constante de despreocupação. Ele fora levado a crer que eu não tinha nada
a não ser alguns palpites desesperados de conspiração que ele poderia facilmente destruir, como estava fazendo agora. Sua confiança estava crescendo. Mas, quando
ficasse confiante e condescendente demais, eu partiria para o ataque e para o nocaute. Essa luta não duraria 15 rounds. Não podia.
- Bem, na época em que essas cartas vieram, o senhor estava envolvido numa negociação sigilosa, não é?
Opparizio hesitou pela primeira vez desde que eu começara com as perguntas.
- Eu estava envolvido na época em assuntos privados dos negócios, como quase sempre estou. Eu não usaria a palavra “sigilo”, devido à conotação que ela tem. Segredo
soa errado, quando na verdade manter a privacidade dos próprios negócios é algo comum.
- Ok, então essa discussão privada era na verdade uma negociação para vender sua firma, a ALOFT, para uma empresa de capital aberto, correto?
- Sim, isso mesmo.
- Uma empresa chamada LeMure?
- Isso, correto.
- Essa transação renderia uma enorme quantia de dinheiro para o senhor, não é?
Freeman se levantou e pediu para conferenciar com o juiz. Nós nos aproximamos e ela declarou sua objeção num sussurro veemente.
- Qual a relevância disso tudo? Onde isso tudo vai parar? A defesa nos levou agora para Wall Street e isso não tem nada a ver com Lisa Trammel nem com as provas
contra ela.
- Excelência - eu disse rapidamente, antes que o juiz tivesse oportunidade de tolher meus movimentos. - A relevância vai ficar aparente dentro em breve. A doutora
Freeman sabe exatamente onde isso vai parar, ela apenas não quer ir nessa direção. Mas o tribunal me propiciou margem legal para apresentar uma defesa envolvendo
culpa de terceira parte. Bom, chegou a hora, Meritíssimo. É agora que as peças vão se juntar e tudo que peço é mais um pouco de indulgência deste tribunal.
Perry não precisou pensar muito antes de responder.
- Doutor Haller, pode prosseguir, mas quero ver o senhor chegando logo a algum lugar.
- Obrigado, Meritíssimo.
Voltamos a nossos lugares e decidi impor um andamento um pouco mais rápido nas coisas.
- Senhor Opparizio, em janeiro, quando estavam no meio das negociações com a LeMure, o senhor sabia que estava em condições de ganhar muito dinheiro se o negócio
se concretizasse, não é?
- Eu seria generosamente compensado pelos anos que passei fazendo a empresa crescer.
- Mas se o senhor perdesse um de seus maiores clientes, na faixa de 40 milhões em rendimentos anuais, o negócio correria perigo, correto?
- Nenhum cliente meu ameaçava sair.
- Gostaria que voltasse a prestar atenção na carta que o senhor Bondurant lhe enviou. Não diria o senhor que há uma clara ameaça do senhor Bondurant de tirar o WestLand
de sua carteira de clientes? Creio que continua com uma cópia da carta aí diante do senhor, se quiser consultá-la.
- Não preciso olhar a carta. Não existe ameaça de quem quer que seja. Mitch me enviou a carta e eu cuidei do problema.
- Do modo como cuidou de Donald Driscoll?
- Protesto - disse Freeman. - Argumentativo.
- Retiro a pergunta. Senhor Opparizio, o senhor recebeu esta carta bem no meio de suas negociações com a LeMure, correto?
- Foi durante a transação, isso mesmo.
- E quando o senhor recebeu esta carta do senhor Bondurant, o senhor sabia que ele se encontrava em um aperto financeiro, correto?
- Eu não sabia nada sobre a situação financeira pessoal do senhor Bondurant.
- O senhor não mandou um funcionário de sua firma fazer um levantamento do histórico financeiro do senhor Bondurant e de outros funcionários de banco com quem o
senhor negociava?
- Não, isso é ridículo. Quem disse isso é um mentiroso.
Chegara a hora de testar o trabalho de Herb Dahl como agente duplo.
- Na época que o senhor Bondurant lhe enviou esta carta, ele tinha ciência de seu negócio secreto com a LeMure?
A resposta de Opparizio deveria ter sido: “Eu não sei.” Mas eu dissera a Dahl para passar de volta por intermédio de seu mandante a informação de que a equipe legal
de Trammel não encontrara coisa alguma nessa parte crucial para a estratégia da defesa.
- Ele não sabia nada a respeito - disse Opparizio. - Eu vinha mantendo todos as nossos bancos-clientes no escuro enquanto as negociações estavam em andamento.
- Quem é o diretor financeiro da LeMure?
Opparizio pareceu momentaneamente inseguro com a questão e a aparente mudança de direção.
- Esse é Syd Jenkins. Sydney Jenkins.
- E ele era o chefe da equipe de aquisição com a qual o senhor tratou o negócio da LeMure?
Freeman objetou e perguntou aonde aquilo estava indo. Eu disse ao juiz que ele saberia em breve e ele me permitiu continuar, dizendo a Opparizio para responder à
pergunta.
- Isso, eu tratei com Syd Jenkins, na aquisição.
Abri uma pasta e tirei um documento enquanto pedia ao juiz permissão para me aproximar da testemunha com o papel. Como esperado, Freeman objetou e conferenciamos
vivamente sobre a admissibilidade do documento. Mas, como Freeman ganhara a batalha para mostrar a Driscoll o relatório de investigação interno da ALOFT, o juiz
Perry igualou o placar, permitindo-me introduzir o documento para sua posterior determinação.
Permissão concedida, entreguei uma cópia para a testemunha.
- Senhor Opparizio, pode dizer ao júri que documento é esse?
- Não sei ao certo.
- Não é uma cópia impressa de uma agenda digital?
- Se o senhor diz.
- E qual é o nome no alto da folha.
- Mitchell Bondurant.
- E qual é a data na página?
- Treze de dezembro.
- Pode ler a anotação marcada em dez horas?
Freeman pediu para se aproximar do juiz mais uma vez e lá fomos nós.
- Excelência, é Lisa Trammel quem está sendo julgada aqui. Não Louis Opparizio ou Mitchell Bondurant. Isso é o que acontece quando alguém tira vantagem da boa vontade
do tribunal em fornecer margem de manobra. Protesto contra essa linha de questionamento. A defesa está desviando para muito longe a questão sobre a qual o júri deve
decidir.
- Meritíssimo - eu disse. - Mais uma vez isso conduz à culpa de terceira parte. O documento é uma página da agenda digital entregue à defesa na publicação compulsória.
A resposta a essa questão vai tornar claro para o júri que a vítima nesse caso se envolveu numa sutil extorsão da testemunha. E isso é um motivo para assassinato.
- Meritíssimo, isso...
- Já chega, doutora Freeman. Vou permitir que a defesa prossiga.
Voltamos a nossos lugares e o juiz instruiu Opparizio a responder à pergunta. Eu a repeti para o júri.
- O que está listado no calendário do senhor Bondurant para as dez horas do dia 13 de dezembro?
- Diz “Sydney Jenkins, LeMure”.
- De modo que o senhor não infere desse registro que o senhor Bondurant ficou ciente do negócio entre a ALOFT e a LeMure em dezembro do ano passado?
- Eu seria incapaz de saber o que foi dito nessa reunião ou se é que ela aconteceu de fato.
- Que motivo o homem conduzindo a aquisição da ALOFT teria para se encontrar com um dos clientes mais importantes da ALOFT?
-Vai ter que perguntar isso ao senhor Jenkins.
- Talvez eu pergunte.
Opparizio fora ficando de cara amarrada no curso da inquirição. A informação plantada por Herb Dahl funcionara bem. Continuei.
- Quando foi fechado o acordo sobre a venda da ALOFT para a LeMure?
- O acordo foi fechado no fim de fevereiro.
- Por quanto a empresa foi vendida?
- Prefiro não dizer.
- A LeMure é uma empresa de capital aberto, senhor. A informação está disponível. Poderia nos poupar tempo e...
- Noventa e seis milhões de dólares.
- A maior parte dos quais, como único dono, foi para o senhor, correto?
- Uma boa parte disso, é.
- E o senhor tem ações da LeMure também, correto?
- Isso mesmo.
- E o senhor continua como presidente da ALOFT, não é?
- Isso. Continuo conduzindo a empresa. Só que agora tenho chefes.
Ele ensaiou um sorriso, mas a maioria dos presentes na sala do tribunal, como meros trabalhadores que eram, não achou graça no comentário, considerando os milhões
que ele havia obtido com o negócio.
- Então o senhor continua intimamente envolvido nas operações diárias da empresa?
- Continuo.
- Senhor Opparizio, seu ganho pessoal com a venda da ALOFT foi de 61 milhões de dólares, como noticiado pelo Wall Street Journal?
- Eles entenderam errado.
- Como assim?
- Meu negócio envolvia esse valor, mas ele não veio todo para mim de uma vez.
- O senhor recebeu pagamentos diferidos?
- Algo nessa linha, mas realmente não entendo o que isso tem a ver com quem matou Mitch Bondurant, doutor Haller. Por que estou aqui? Eu não tenho nada a...
- Excelência?
- Um momento, senhor Opparizio - disse o juiz.
Ele então se curvou sobre sua bancada e fez uma pausa, como que considerando alguma coisa.
- Vamos interromper para o intervalo da manhã agora e os advogados devem se reunir comigo em minha sala. O tribunal está em recesso.
Mais uma vez seguimos o juiz para conversar a sós. Mais uma vez seria eu ali na berlinda. Mas eu estava tão furioso com Perry que parti para a ofensiva. Continuei
de pé enquanto tanto ele como Freeman sentavam.
- Excelência, com o devido respeito, eu estava indo num certo embalo ali e a interrupção para o intervalo da manhã quebrou meu ritmo.
- Doutor Haller, pode ser que o senhor estivesse com todo o embalo do mundo, mas isso está levando o senhor longe demais desse caso. Tenho me empenhado ao máximo
em lhe permitir que apresente sua defesa de terceira parte, mas estou começando a desejar que não o tivesse feito.
- Meritíssimo, eu estava a quatro perguntas de esclarecer todo o meu caso, mas o senhor me impediu.
- O senhor se impediu sozinho, doutor. Não posso ficar sentado ali em cima e deixar que isso prossiga. A doutora Freeman está protestando, agora até mesmo a testemunha
está protestando. E eu estou passando por bobo. O senhor está jogando verde. O senhor afirmou para mim e afirmou para aquele júri ali que não só iria provar que
sua cliente não cometeu o crime, como também iria provar quem cometeu. Mas já avançamos cinco testemunhas na apresentação da defesa e o senhor continua jogando verde.
- Excelência, não acredito... olhe, não estou jogando verde, aqui. Estou provando. Bondurant havia ameaçado custar àquele homem 61 milhões de dólares. É óbvio e
qualquer um com bom senso enxerga isso. E se isso não é motivo para um assassinato, então acho q...
- Motivo não é prova - disse Freeman. - Não é prova e está na cara que você não tem nenhuma. O caso todo da defesa é uma farsa. O que vem agora, indicar todo mundo
com uma execução de Bondurant como suspeito?
Apontei para ela em sua cadeira.
- Isso não seria má ideia. Mas o fato é que o caso da defesa não é uma farsa e se eu tiver permissão de prosseguir com minha inquirição da testemunha, vou chegar
à prova bem rápido.
- Sente-se, doutor Haller, e por favor cuidado com o tom de voz quando se dirigir a mim.
- Certo, Excelência. Peço desculpas.
Sentei e aguardei enquanto Perry refletia sobre a situação. Finalmente, ele falou.
- Doutora Freeman, mais alguma coisa?
- Acho que o tribunal está plenamente ciente do modo como a promotoria encara o que o doutor Haller teve permissão de fazer. Adverti antes e de forma reiterada que
ele iria criar um espetáculo sem qualquer relação com o caso em questão. Já passamos muito desse ponto agora e devo concordar com a avaliação de Vossa Excelência
de que isso tudo faz o tribunal passar por bobo e manipulado.
Ela fora longe demais. Pude perceber a pele em torno dos olhos de Perry se retesando quando ela afirmou que ele estava sendo feito de bobo. Acho que ela o tivera
nas mãos e deixara escapar.
- Bem, muito obrigado, doutora Freeman. Acho que dessa vez estou inclinado a voltar e dar ao doutor Haller uma última chance de amarrar tudo. Compreende o que quero
dizer com última chance, doutor Haller?
- Sim, Excelência. De acordo.
- É bom mesmo, doutor, porque a paciência do tribunal está se esgotando. Agora vamos voltar.
Vi Aronson sentada solitariamente na mesa da defesa e me dei conta de que ela não entrara comigo na sala do juiz. Sentei, com ar cansado.
- Aonde Lisa foi?
- Ela está no corredor, com o Dahl. O que aconteceu?
- Ele me deu mais uma chance. Preciso ir pra cima com tudo, já.
- Tem como?
- Isso é o que a gente vai ver. Preciso sair um pouco do fórum antes de começar outra vez. Por que você não foi lá dentro com a gente?
- Ninguém me chamou, e eu não sabia se era para ir atrás de você.
- Da próxima vez, vai atrás.
A planta de um tribunal é eficiente em separar os grupos. Os jurados têm suas próprias salas de reunião e deliberação, e há corredores e portas separando as partes
em litígio e as pessoas ligadas a um e outro lado. Mas os banheiros são o território comum por excelência. Ao entrar num deles você nunca sabe com quem vai topar.
Empurrei a porta do banheiro e quase trombei com Opparizio, que estava lavando as mãos na pia. Ele se curvou e olhou para mim no espelho.
- Então, doutor, levou um puxão de orelha do juiz?
- Isso não é da sua conta. Pode ficar à vontade.
Virei para sair e procurar outro banheiro, mas Opparizio me deteve.
- Não se incomode. Já tô saindo.
Ele sacudiu as mãos molhadas e foi na direção da porta, chegando muito perto de mim e parando de repente.
- Você não presta, Haller - disse. - Sua cliente é uma assassina e você tem a coragem de tentar jogar a culpa em mim. Como consegue se olhar no espelho?
Virou e fez um gesto para a fileira de urinóis.
- Ali é o seu lugar - ele disse. - A privada.
Quarenta e nove
Tudo se consumaria na próxima meia hora - talvez uma hora, no máximo. Sentei na mesa da defesa, ordenando os pensamentos e esperando. Todo mundo estava em seu lugar,
exceto o juiz, que continuava em sua sala, e Opparizio, que conferenciava presunçosamente com dois advogados seus na primeira fileira da plateia, onde tinha lugares
reservados. Minha cliente se curvou para mim e sussurrou, de modo que Aronson não pudesse escutar.
- Você tem mais, certo?
- Como é?
- Você tem mais munição, não tem, Mickey? Mais munição para usar com ele.
Até ela sabia que o que eu apresentara não era suficiente. Respondi também num sussurro.
- A gente vai descobrir antes da hora do almoço. Então estaremos estourando a champanhe ou chorando as pitangas.
A porta da sala do juiz abriu e Perry surgiu. Mandou chamar o júri e ordenou que a testemunha voltasse ao banco antes mesmo de sentar em seu lugar. Minutos depois,
eu voltava ao atril, olhando para Opparizio. O confronto no banheiro parecia ter renovado sua confiança. Ele adotava uma postura relaxada, mostrando para todo mundo
como estava despreocupado. Decidi que não fazia mais sentido esperar. Parti para o ataque.
- Então, senhor Opparizio, continuando nossa conversa de antes, o senhor não foi completamente sincero em seu depoimento hoje, foi?
- Tenho sido completamente honesto e a pergunta me parece ofensiva.
- O senhor mentiu desde o início, não foi? Dando um nome falso quando fez o juramento perante o tribunal.
- Meu nome foi alterado legalmente 31 anos atrás. Não menti, e isso não tem nada a ver com o caso.
- Que nome consta de sua certidão de nascimento?
Opparizio fez uma pausa e achei ter notado em seu rosto o primeiro sinal de reconhecimento sobre a direção que eu estava tomando.
- Meu nome de nascença era Antonio Luigi Apparizio. Como agora, só que com um A. Onde eu cresci as pessoas me chamavam de Lou ou Louie porque havia uma porção de
Anthonys e Antonios em nosso bairro. Decidi ficar com Louis. Mudei meu nome legalmente para Anthony Louis Opparizio. Eu americanizei. Só isso.
- Mas por que o senhor mudou também a grafia de seu sobrenome?
- Tinha um jogador de beisebol profissional na época chamado Luis Aparicio. Achei que os nomes eram parecidos demais. Louis Apparizio e Luis Aparicio. Eu não queria
ter o nome tão próximo de uma pessoa famosa, então mudei a grafia. Tudo bem pelo senhor, doutor Haller?
O juiz advertiu Opparizio a simplesmente responder às perguntas e não fazer nenhuma.
- Sabe quando Luis Aparicio se aposentou do beisebol profissional? - perguntei.
Olhei o juiz de soslaio depois de fazer a pergunta. Se a paciência dele estava sendo levada ao limite antes, agora provavelmente estava tão fina quanto o pedaço
de papel onde uma intimação por desacato seria impressa.
- Não, não sei quando ele se aposentou.
- O senhor ficaria surpreso em saber que foi oito anos antes de sua mudança de nome?
- Não, não me surpreende.
- Mas o senhor espera que o júri acredite que mudou de nome para evitar ser homônimo de um jogador de beisebol já retirado do esporte muito tempo antes?
Opparizio deu de ombros.
- Foi o que aconteceu.
- Não é verdade que o senhor mudou o nome de Apparizio para Opparizio porque era um jovem ambicioso e queria ao menos fingir que se distanciava de sua família?
- Não, não é verdade. Fiz isso para ter um nome que soasse mais americano, mas não estava me distanciando de ninguém.
Vi os olhos de Opparizio relancearem rapidamente na direção de seus advogados.
- O senhor foi batizado com o nome de seu tio, não foi? - perguntei.
- Não, não é verdade - respondeu rapidamente Opparizio. - Não era o nome de ninguém.
- O senhor tinha um tio chamado Antonio Luigi Apparizio, o mesmo nome que consta em sua certidão de nascimento, e está dizendo que tudo não passa de coincidência?
Percebendo seu equívoco em mentir, Opparizio tentou consertar, mas só piorou as coisas.
- Meus pais nunca me contaram de onde vinha meu nome ou se tiraram o nome de alguém.
- E um sujeito brilhante como o senhor não somou dois mais dois?
- Nunca pensei a respeito. Quando eu tinha 21 anos, vim para a Costa Oeste e me afastei da família.
- O senhor quer dizer geograficamente?
- Em todos os sentidos. Comecei vida nova. Fiquei por aqui.
- Seu pai e seu tio eram envolvidos no crime organizado, não eram?
Freeman protestou imediatamente e pediu para se aproximar. Quando estávamos diante do juiz, ela fez o melhor que pôde para revirar os olhos como acompanhamento para
sua frustração.
- Excelência, isso é o fim da picada. A defesa pode não ter a menor vergonha de manchar a reputação da própria testemunha, mas isso precisa acabar. Estamos em um
julgamento, Meritíssimo, não numa caça às bruxas.
- Excelência, o senhor me instruiu a ir rápido, e isso é o que estou fazendo. Tenho um oferecimento de prova que mostra claramente que não se trata de nenhuma caça
às bruxas.
- Bom, vamos ver isso, doutor Haller.
Estendi para o juiz um grosso documento encadernado que levei debaixo do braço. Havia diversos Post-its de cores diferentes marcando as páginas.
- Este é o Relatório ao Congresso sobre o Crime Organizado, do Gabinete da Procuradoria-Geral dos Estados Unidos. Está datado de 1986 e o procurador na época era
Edwin Meese. Se o senhor abrir a página no Post-it amarelo, o parágrafo marcado é meu oferecimento de prova.
O juiz leu a passagem e depois virou o calhamaço de modo que Freeman pudesse ler. Antes que ela terminasse, ele decidiu sobre a objeção.
- Faça suas perguntas, doutor Haller, mas vou lhe dar cerca de dez minutos para ligar os pontos. Se não conseguir até lá, sou eu quem vai pôr um ponto final nisso.
- Obrigado, Excelência.
Voltei ao atril e fiz a pergunta outra vez, mas formulei diferente.
- Senhor Opparizio, o senhor sabia que seu pai e seu tio eram membros de um grupo do crime organizado conhecido como família Gambino?
Opparizio me vira mostrar o documento para o juiz. Ele sabia que eu tinha algo para respaldar minha pergunta. Em vez de negar pura e simplesmente, deu uma resposta
vaga.
- Como eu disse, deixei minha família para trás quando entrei na faculdade. Nunca mais soube deles. E ninguém me disse nada antes disso.
Chegara a hora de não dar trégua, de empurrar Opparizio para a beira do penhasco.
- Seu tio não era conhecido como Anthony “O Macaco” Apparizio, devido à sua reputação de brutalidade e violência?
- Não sei dizer.
- Seu tio não representou uma figura paterna para o senhor enquanto seu pai de fato passava a maior parte de seus anos de adolescente preso por extorsão?
- Meu tio cuidou financeiramente de nós, mas não era uma figura paterna.
- Quando o senhor se mudou para cá, com a idade de 21 anos, foi para se distanciar da família ou para ampliar as oportunidades de negócio da família na Costa Oeste?
- Mas isso é uma mentira! Vim para cá para estudar. Vim com uma mão na frente e outra atrás. Sem nada, nem ligações familiares.
- O senhor está familiarizado com o termo “sonâmbulo” quando aplicado a investigações sobre o crime organizado?
- Não sei do que está falando.
- O senhor ficaria surpreso em saber que o FBI, a começar da década de 1980, acreditava que a máfia estava tentando passar a áreas legítimas de negócios enviando
sua geração seguinte de membros para faculdades e outros locais, de modo que pudessem criar raízes e começar empreendimentos, e que essas pessoas eram chamadas sonâmbulos?
- Sou um empresário legítimo. Ninguém me mandou a lugar algum e eu consegui pagar a faculdade de direito trabalhando como oficial de justiça.
Fiz que sim, como se já esperasse pela resposta.
- Falando em citações judiciais, o senhor possui diversas empresas, não é isso mesmo?
- Não estou entendendo.
- Permita-me refazer a pergunta. Quando o senhor vendeu a ALOFT para o Fundo LeMure, conservou a posse de uma variedade de firmas que tinham contrato com a ALOFT,
correto?
Opparizio demorou, pensando numa resposta. Lançou outro olhar furtivo na direção de seus advogados. Era um olhar Me tirem dessa fria. Ele sabia para onde eu estava
indo e sabia que não podiam permitir que eu fosse. Mas seu lugar era o banco das testemunhas e dali só havia uma saída.
- Sou proprietário e tenho participação numa variedade de diferentes empreendimentos. Todos eles legais, nada por baixo do pano, tudo legítimo.
Era uma boa resposta, mas não seria suficiente.
- Que tipo de empresas? Que serviços elas prestam?
- O senhor mencionou entrega de citações judiciais, esse era um deles. Tenho uma firma de consultoria jurídica paralegal e uma agência de recrutamento para o exterior.
Também uma agência para pessoal de escritório, além de uma firma de fornecimento de móveis para escritório. Tenho...
- O senhor possui um serviço de courier?
A testemunha parou antes de responder. Ele estava tentando pensar duas perguntas adiante e eu não mantinha um ritmo que ele fosse capaz de acompanhar.
- Sou um investidor. Não sou o único dono.
- Vamos conversar sobre o serviço de courier. Antes de mais nada, qual é o nome?
- Wing Nuts Courier Services.
- E é uma firma baseada em Los Angeles?
- Baseada aqui, mas com escritórios em sete cidades. Ela opera em todo este estado e em Nevada.
- Exatamente que parte da Wing Nuts o senhor detém?
- Minha participação é parcial. Creio que possuo 40%.
- E quem são os demais participantes?
- Bem, muitos. Alguns não são pessoas, são outras empresas.
- Como a AA-Best Consultants, do Brooklyn, Nova York, que está listada nos registros corporativos em Sacramento como proprietária parcial da Wing Nuts?
Opparizio mais uma vez demorou a responder. Dessa vez ele parecia perdido em pensamentos sombrios, até o juiz cobrar sua resposta.
- Isso, creio ser um dos investidores.
- Bom, documentos de corporação mantidos pelo estado de Nova York mostram que o dono majoritário da AA-Best é um certo Dominic Capelli. O senhor está familiarizado
com o nome?
- Não, não estou.
- Está dizendo que não está familiarizado com um de seus sócios na Wing Nuts?
- A AA-Best investiu. Eu investi. Não conheço todos os indivíduos envolvidos.
Freeman ficou de pé. Já não era sem tempo. Eu havia esperado que sua objeção viesse pelo menos quatro perguntas antes. Estava só ganhando tempo, enquanto ela não
protestava.
- Excelência, essa história toda tem alguma razão de ser? - perguntou.
- Eu mesmo começava a me perguntar isso - disse Perry. - Quer nos esclarecer, doutor Haller?
- Mais três perguntas, Excelência, e acho que a relevância aqui ficará transparente para todos - eu disse. - Peço a indulgência do tribunal por apenas mais três
perguntas.
Fiquei encarando Opparizio durante todo esse tempo em que dizia isso. Era para mandar meu recado. Melhor tirar o pino da tomada agora mesmo ou vou revelar seus segredos
para meio mundo. A LeMure vai saber. Seus acionistas vão saber. A Procuradoria dos Estados Unidos vai saber. Todos vão saber.
- Muito bem, doutor Haller.
- Obrigado, Excelência.
Baixei os olhos para minhas anotações. Agora era hora. Se eu havia interpretado Opparizio corretamente, chegara o momento. Olhei para ele, outra vez.
- Senhor Opparizio, ficaria surpreso em descobrir que Dominic Capelli, o sócio que o senhor alega não conhecer, aparece no relatório de Nova York sobr...
- Excelência?
Era Opparizio. Ele me interrompera.
- Por aconselhamento de meus advogados e conforme os direitos e prerrogativas da Quinta Emenda concedidos pela Constituição dos Estados Unidos e o estado da Califórnia,
respeitosamente declino de responder a essa ou posteriores perguntas.
Pronto.
Fiquei totalmente imóvel, mas só por fora. A energia fluía pelo meu corpo como um grito. Mal tomei consciência do burburinho de sussurros que percorreu a sala do
tribunal. Então, atrás de mim, uma voz firme se dirigiu ao tribunal.
- Excelência, posso por favor me dirigir ao tribunal?
Virei e vi que era um dos advogados de Opparizio, Martin Zimmer.
Então escutei Freeman, a voz elevada e tensa, protestando e solicitando conferenciar com o juiz.
Mas eu sabia que uma simples conversa junto à bancada do juiz não seria suficiente para resolver as coisas dessa vez. E Perry também sabia.
- Doutor Zimmer, tenha a bondade de sentar. Vamos interromper a sessão agora para o almoço e espero todas as partes de volta ao tribunal à uma da tarde. O júri está
instruído a não discutir o caso entre si nem a extrair quaisquer conclusões do depoimento e do pedido da testemunha.
Os presentes se dispersaram ruidosamente depois disso, com o pessoal da imprensa conversando entre si. Quando o último jurado passava pela porta, afastei-me do atril
e me curvei diante da mesa da defesa para sussurrar no ouvido de Aronson.
- Talvez você queira participar da reunião na sala do juiz, dessa vez.
Ela já ia perguntar o que eu queria dizer quando Perry oficializou.
- Quero que a promotoria e a defesa se juntem a mim em minha sala. Imediatamente. Senhor Opparizio, quero que permaneça onde está. Pode se consultar com seus advogados,
mas não deixe a sala do tribunal.
Dizendo isso, o juiz ficou de pé e se dirigiu ao fundo.
Fui atrás.
Cinquenta
A essa altura eu já estava começando a conhecer intimamente os quadros nas paredes, a mobília e tudo o mais que havia na sala do juiz. Mas minha expectativa era
de que essa seria minha última visita, e provavelmente a mais difícil. Quando entramos, o juiz tirou a toga e jogou de qualquer jeito no mancebo do canto, em vez
de pendurá-la cuidadosamente no cabide, como fizera nas situações in camera precedentes. Depois, desabou em sua cadeira e exalou audivelmente. Recostando muito atrás,
olhou para o teto. Seu rosto exibia uma expressão rabugenta, como se suas preocupações sobre o que seria decidido ali dissessem respeito antes à sua própria reputação
como jurista do que à justiça para com uma vítima de homicídio.
- Doutor Haller - ele disse, como que se livrando de um grande fardo.
- Sim, Excelência?
O juiz esfregou o rosto.
- Por favor, diga-me que não era seu plano o tempo todo, e desde o início, forçar o senhor Opparizio a invocar a Quinta perante o júri.
- Meritíssimo, eu não fazia ideia de que ele iria invocar a Quinta Emenda. Depois que tivemos o pedido para anular a audiência, achei que não havia como ele fazer
isso. Eu o pus contra a parede, é verdade, mas só queria uma resposta para as minhas perguntas.
Freeman balançou a cabeça.
- Tem algo a acrescentar, doutora Freeman?
- Sim, Excelência, acho que o advogado de defesa vem tratando o tribunal e o sistema de justiça com o mais absoluto desrespeito desde o início deste julgamento.
Mesmo agora, ele nem sequer respondeu à pergunta. Ele não afirmou que não era o que estava planejando, Excelência. Apenas disse que não fazia ideia. Essas são duas
coisas diferentes e põem em relevo o fato de que o advogado de defesa age de maneira dissimulada e tem tentado sabotar o julgamento desde o começo. Agora ele conseguiu.
Opparizio era uma “Quinta” testemunha o tempo todo, um testa de ferro para ele pôr diante do júri e depois mandar a nocaute quando invocasse a Quinta Emenda. Esse
era o plano e se isso não é uma subversão do sistema acusatório, então não sei o que é.
Relanceei Aronson. Ela parecia mortificada e talvez até convencida pelo que Freeman acabara de dizer.
- Excelência - eu disse, calmamente -, só posso dizer uma coisa à doutora Freeman. Prove. Se ela tem tanta certeza de que isso foi uma espécie de plano sinistro,
então, que tente provar. A verdade, e minha jovem e idealista colega aqui pode confirmar ou que vou dizer, é que só ficamos sabendo das ligações de Opparizio com
o crime organizado muito recentemente. Meu investigador literalmente topou com elas quando estava rastreando todas as holdings de Opparizio tal como listadas em
seus balanços para a Comissão de Títulos e Câmbios dos Estados Unidos. A polícia e a promotoria tiveram a oportunidade de fazer isso, mas preferiram ignorar ou erraram
o alvo. Creio que a irritação da doutora deriva na maior parte disso, não das táticas que emprego no tribunal.
O juiz, que continuava reclinado para trás e olhando o teto, fez um floreio com a mão. Não entendi o significado.
- Meritíssimo?
Perry girou a cadeira e se curvou para a frente, falando com nós três.
- Então, o que vamos fazer sobre isso?
Olhou para mim primeiro. Olhei para Aronson para ver se tinha alguma sugestão, mas ela parecia congelada no lugar. Virei outra vez para o juiz.
- Acho que não há nada que possa ser feito. A testemunha invocou a Quinta. O depoimento dele acabou. Não podemos continuar com ele usando seletivamente a Quinta
Emenda quando julgar conveniente. Invocou, ponto final. Próxima testemunha. Tenho só mais uma, e depois acabei. Vou estar pronto para o meu encerramento amanhã.
Freeman não conseguia mais continuar sentada. Ela ficou de pé e começou a andar perto da janela, indo e voltando com passadas curtas.
- Isso é uma tremenda injustiça e foi totalmente planejado pelo doutor Haller. Ele extrai o depoimento que quer na inquirição, depois empurra Opparizio na direção
da Quinta, e então o estado fica sem poder perguntar nada, sem contrainquirição. Onde está o jogo limpo nesse negócio, Excelência?
Perry não respondeu. Não precisou. Todo mundo ali na sala sabia que a situação era injusta para a promotoria. Agora Freeman não tinha oportunidade de interrogar
Opparizio.
- Vou anular o testemunho todo dele - declarou Perry. - Vou dizer ao júri para desconsiderar.
Freeman cruzou os braços sobre o peito e abanou a cabeça de frustração.
- É muito leite derramado para limpar - ela disse. - Isso é um desastre para a promotoria, Meritíssimo. Uma tremenda injustiça.
Não falei nada, porque Freeman tinha razão. O juiz podia dizer ao júri para desconsiderar o que Opparizio dissera, mas era tarde demais. O recado fora dado e aquilo
agora não ia mais sair de suas cabeças. Exatamente como fora minha intenção.
- Infelizmente, não vejo alternativa - disse Perry. - Vamos sair para o almoço agora, preciso pensar um pouco mais a respeito. Sugiro que os três façam o mesmo.
Se tiverem alguma ideia antes da uma, certamente levarei em consideração.
Ninguém disse nada. Era difícil acreditar que chegara àquele ponto. O fim do caso à vista. E as coisas funcionando exatamente como planejei.
- Isso significa que estão todos dispensados, por enquanto - acrescentou Perry. - Vou dizer ao oficial que o senhor Opparizio está dispensado como testemunha. Ele
provavelmente vai ter uma multidão de repórteres no corredor prontos para devorá-lo. E provavelmente está culpando o senhor por isso, doutor Haller. Talvez seja
melhor manter distância enquanto ele continuar no fórum.
- Certo, Excelência.
Perry pegou o telefone interno para chamar o oficial do tribunal enquanto nos dirigíamos para a porta. Segui atrás de Freeman pelo corredor para a sala do tribunal.
Já estava esperando quando ela virou para mim e me fuzilou, com pura raiva.
- Agora eu entendo, Haller.
- Agora entende o quê?
- Por que você e Maggie nunca vão voltar.
Isso me fez parar e Aronson, que vinha logo atrás, passou por mim. Freeman voltou a virar e continuou andando.
- Esse foi um golpe baixo, Mickey - disse Aronson.
Fiquei olhando Freeman passar pela porta para a sala do tribunal.
- Não - eu disse. - Não foi.
Cinquenta e um
Minha última testemunha era meu próprio investigador e homem de confiança. Dennis “Cisco” Wojciechowski sentou no banco das testemunhas depois do almoço, após o
juiz ter informado aos jurados que todo o depoimento de Louis Opparizio fora excluído dos autos. Cisco precisou soletrar seu nome duas vezes para a estenógrafa,
mas isso já era esperado. Estava realmente usando a mesma camisa do dia anterior, mas sem paletó e gravata. A iluminação fluorescente na sala do tribunal tornava
a tatuagem tribal de elos de corrente em seu bíceps visível através das mangas esticadas de sua camisa azul-clara.
- Vou chamá-lo simplesmente de Dennis, se não se incomoda - eu disse. - Vamos facilitar a vida da estenógrafa.
Risadas educadas soaram no tribunal.
- Sem problema, por mim - disse a testemunha.
- Muito bem, você trabalha para mim, realizando investigações para a defesa, isso está correto, Dennis?
- Sim, é o que faço.
- E você trabalhou extensamente para a defesa na investigação do assassinato de Mitchell Bondurant, correto?
- Correto. Pode-se dizer que eu fiquei na cola da investigação da polícia, ao fazer minha investigação, checando para descobrir se tinham deixado alguma coisa escapar
ou talvez entendido alguma coisa errado.
- Você trabalhou a partir dos materiais investigativos que foram entregues à defesa pela promotoria?
- É, trabalhei.
- Uma lista de placas de carro estava inclusa entre eles, correto?
- Isso, o estacionamento do WestLand National tinha uma câmera posicionada sobre a entrada da garagem. Os detetives Kurlen e Longstreth examinaram a gravação da
câmera e anotaram o número da placa de todos os carros que entraram na garagem das sete, quando o estacionamento abriu, até as nove, quando foi determinado que o
senhor Bondurant já estava morto. Então eles lançaram as placas nos computadores da polícia para ver se algum proprietário tinha antecedentes criminais ou deveria
ser investigado por outros motivos.
- E houve alguma investigação posterior gerada por essa lista?
- De acordo com os relatórios deles, não.
- Certo, Dennis, você mencionou que ficou na cola da investigação deles. Você pegou essa lista e verificou as placas por conta própria?
- Verifiquei. Todas as 78 placas. O melhor que pude, sem ter acesso aos computadores da polícia e outros órgãos da lei.
- E alguma delas mereceu atenção especial ou você chegou às mesmas conclusões que os detetives Kurlen e Longstreth?
- Teve uma, uma placa merecia ser olhada mais atentamente, na minha opinião, então fui atrás.
Pedi permissão ao juiz para entregar à testemunha uma cópia das 78 placas. O juiz permitiu. Cisco tirou seus óculos de leitura do bolso da camisa e pôs no rosto.
- Que placa você verificou com mais atenção?
- W-N-U-T-Z-nove.
- Por que se interessou por essa?
- Porque na época em que vi essa lista, a gente já tinha avançado bem na investigação, por outros ângulos. Eu sabia que Louis Opparizio era proprietário parcial
de um negócio chamado Wing Nuts. Achei que talvez tivesse uma ligação com o veículo dessa placa.
- Então o que foi que você descobriu?
- Que o carro estava registrado na Wing Nuts, um serviço de courier com participação de Louis Opparizio.
- E, voltando à questão, por que isso chamou sua atenção?
- Bom, como eu disse, o tempo disponível foi favorável para mim. Kurlen e Longstreth fizeram a lista juntos no dia do crime. Eles não tinham ideia de todos os fatores
e indivíduos-chave envolvidos. Eu já vinha investigando aquilo por várias semanas. E a essa altura eu sabia que a vítima, o senhor Bondurant, tinha mandado uma carta
revoltada para o senhor Opparizio e qu...
Freeman protestou contra a descrição da carta e o juiz mandou eliminar a palavra revoltada dos autos. Então instruí Cisco a continuar.
- Do nosso ponto de vista, essa carta colocava Opparizio na condição de pessoa de interesse, de modo que eu já vinha fazendo um levantamento exaustivo do histórico
dele. Estabeleci a ligação dele pela Wing Nuts com um sócio chamado Dominic Capelli. Capelli é conhecido das autoridades em Nova York como participante de uma família
do crime organizado dirigida por um sujeito chamado Joey Giordano. Capelli tem diversas ligações com outros negócios escusos...
Freeman protestou outra vez e o juiz deferiu a objeção. Fiz a melhor cara de frustração que fui capaz, agindo como se o juiz e a promotora estivessem ocultando a
verdade do júri.
- Certo, vamos voltar à lista e ao que ela significa. O que ela mostrou que ocorreu na garagem envolvendo um carro de propriedade da Wing Nuts?
- Mostrou que o carro entrou na garagem às oito e cinco.
- E em que horário ele saiu?
- A câmera mostrou que saiu às oito e cinquenta.
- Então esse veículo entrou na garagem antes do assassinato e foi embora depois do assassinato. É isso mesmo?
- Correto.
- E o veículo era de propriedade de uma empresa que era de propriedade de um homem com ligações diretas com o crime organizado. É isso mesmo?
- Sim, é isso.
- Certo, você determinou se existe uma razão legítima de negócios para um veículo pertencente à Wing Nuts estar naquela garagem?
- Claro que sim, a empresa é um serviço de courier. É usado regularmente pela ALOFT para entregar documentos para o WestLand National. Mas o que me pareceu curioso
foi o carro ter entrado às oito e cinco e depois ter saído antes que o banco chegasse a abrir, às nove.
Encarei Cisco por um longo momento. Meus instintos me diziam que eu conseguira tudo de que precisava. Ainda havia um pouco de carne no osso, mas às vezes você simplesmente
precisa empurrar o prato. Às vezes deixar o júri com uma interrogação é a melhor maneira de terminar.
- Não tenho mais perguntas - eu disse.
Minha inquirição tivera um âmbito bem preciso para incluir apenas o testemunho sobre as placas. Isso deixava a Freeman pouco com que trabalhar na contrainquirição.
Entretanto, ela de fato marcou um tento quando extraiu de Cisco um lembrete para o júri de que o WestLand National ocupava apenas três andares em um edifício de
dez. O entregador do Wing Nuts poderia estar indo em algum outro lugar sem ser o banco, explicando desse modo a chegada cedo na garagem.
Eu tinha certeza de que se havia um registro de entrega de courier em algum escritório do prédio que não o banco, então ela o encontraria - ou o pessoal de Opparizio
faria com que aparecesse num passe de mágica para ela - a tempo de usar em testemunhas de refutação.
Após cerca de meia hora, Freeman jogou a toalha e sentou. Foi então que o juiz perguntou se eu tinha outra testemunha para chamar.
- Não, Excelência - eu disse. - A defesa encerrou.
O juiz dispensou o júri pelo restante do dia e os instruiu a estar na sala de reuniões às nove na manhã seguinte. Uma vez que saíram, Perry preparou o cenário para
o fim do julgamento, perguntando aos advogados se iam pedir testemunhas de refutação. Eu disse não. Freeman disse que queria se reservar o direito de convocar testemunhas
de refutação pela manhã.
- Ok, então vamos reservar a sessão da manhã para a refutação, se houver alguma - disse Perry. - As argumentações de encerramento começarão logo após o almoço e
ambos os lados estarão limitados a uma hora. Com um pouco de sorte e mais nenhuma surpresa, nosso júri entrará em deliberações mais ou menos nesse horário, amanhã.
Perry deixou sua bancada e eu fiquei na mesa da defesa com Aronson e Trammel. Lisa esticou o braço e pousou a mão sobre a minha.
- Aquilo foi brilhante - ela disse. - A manhã toda foi brilhante. Acho que os jurados finalmente entenderam direito. Eu estava olhando para eles. Acho que sabem
a verdade.
Devolvi o olhar para Trammel e depois olhei para Aronson, duas expressões diferentes em seus rostos.
- Obrigado, Lisa. Acho que em breve vamos descobrir.
Cinquenta e dois
Pela manhã, Andrea Freeman me surpreendeu ao não me surpreender. Ficou perante o juiz e disse que não tinha testemunhas de refutação. Então encerrou o caso do estado.
Isso me fez pensar. Eu viera para o tribunal plenamente preparado para enfrentar pelo menos um último confronto com ela. Algum depoimento explicando o carro da Wing
Nuts na garagem do banco ou talvez o supervisor de Driscoll piorando ainda mais sua situação, até um especialista em hipoteca da promotoria para contradizer a análise
de Aronson. Mas nada. Levantou acampamento.
Ela punha fé no sangue. Se eu a tivesse privado de seu desfecho de Bolero ou não, ela ia se apoiar no único aspecto incontroverso de todo o julgamento: o sangue.
O juiz Perry decretou que o tribunal estava em recesso pela manhã, de modo que os advogados pudessem trabalhar em seus discursos de encerramento e ele tivesse oportunidade
de se retirar para sua sala para trabalhar na instrução do júri - o conjunto final de instruções que os jurados levariam consigo para suas deliberações.
Liguei para Rojas e lhe pedi para me pegar no Delano. Eu não queria voltar ao escritório. Distrações demais. Falei para Rojas andar, simplesmente, e espalhei minhas
pastas e anotações no banco traseiro do Lincoln. Era aí que eu pensava melhor, executava meu melhor trabalho de preparação.
Uma hora em ponto, o tribunal reiniciou. Como tudo o mais no sistema de justiça criminal, os argumentos de encerramento favoreciam o estado. A promotoria falava
no começo e no fim. A defesa ficava com o meio.
Parecia-me que Freeman seguiria o formato padrão dos promotores. Construir o edifício com os fatos na primeira leva de argumentos e depois puxar as cordas emocionais
na segunda.
Tijolo a tijolo, ela delineou a prova contra Lisa Trammel, ao que parecia sem deixar de fora nada do que fora apresentado desde o início do julgamento. O discurso
foi enxuto, mas cumulativo. Ela cobriu os meios e motivo, e amarrou tudo com o sangue. O martelo, os sapatos, os testes de DNA incontestáveis.
- Eu disse no início deste julgamento que o sangue contaria a história - afirmou. - E aqui estamos. Os senhores podem desconsiderar tudo o mais, mas só a prova de
sangue já é garantia da sentença de culpada. Estou certa de que os senhores seguirão sua consciência e farão exatamente isso.
Ela sentou e então foi minha vez. Fiquei de pé no espaço diante da bancada do júri e me dirigi diretamente aos 12 jurados. Mas não fui sozinho. Como previamente
autorizado pelo juiz, levei Manny comigo. O velho companheiro da dra. Shamiram Arslanian estava ereto, com o martelo preso no alto da cabeça, a nuca dobrada para
trás no ângulo incomum que teria sido necessário para Lisa Trammel ter desferido o golpe fatal.
- Senhoras e senhores do júri - comecei -, antes uma boa notícia. Vamos todos sair daqui e retomar nossas vidas normais até o fim do dia. Agradeço a paciência e
a atenção concedidas ao longo deste julgamento. Agradeço por terem avaliado as provas e testemunhos. Não pretendo tomar grande parte de seu tempo agora, porque desejo
liberá-los assim que possível. Hoje deve ser fácil. Esse é um caso rápido. Resume-se ao que considero um veredicto de cinco minutos. Um caso onde a dúvida razoável
é tão presente que um veredicto unânime sem dúvida será obtido na primeira votação que fizerem.
A partir daí destaquei as provas que a defesa apresentara e as contradições e deficiências no caso do estado. Formulei as perguntas que não haviam sido respondidas.
Por que a pasta da vítima estava aberta no chão? Por que o martelo demorou tanto para ser encontrado? Por que a porta da garagem de Lisa Trammel estava destrancada
e por que alguém que claramente ia se sair vitorioso na defesa contra a execução de sua hipoteca atacaria Bondurant?
Isso finalmente me conduziu à peça central de meu encerramento - o manequim.
- Só a demonstração apresentada pela doutora Arslanian já basta para revelar a falsidade do caso da promotoria. Sem considerar nenhuma única outra parte do caso
da defesa, Manny aqui lhes fornecerá a dúvida razoável. Sabemos pelos ferimentos nos joelhos da vítima que o homem estava de pé quando atingido pelo golpe fatal.
E se estava de pé, então este é o único modo em que podia estar posicionado para que Lisa Trammel fosse a assassina. A cabeça jogada para trás, o rosto virado para
o teto. Isso é possível, os senhores devem estar se perguntando? Isso é provável? O que teria feito Mitchell Bondurant olhar para o alto? Ele estava olhando para
o quê?
Parei nesse ponto, mãos no bolso, adotando uma pose casual e confiante. Olhei em seus olhos. Todos os 12 tinham a atenção fixa no manequim. Então levei a mão ao
cabo do martelo e vagarosamente o empurrei para a posição, até o rosto sem face se alinhar numa postura normal e o cabo ficar em um ângulo de 90 graus, alto demais
para ser empunhado por Lisa Trammel.
- A resposta, senhoras e senhores, é que ele não estava olhando para o alto, pois Lisa Trammel não cometeu o crime. Lisa Trammel estava em seu carro, a caminho de
casa, com seu café, enquanto algum outro levava adiante o plano de eliminar a ameaça que Mitchell Bondurant havia se tornado.
Mais uma pausa para deixar que absorvessem minhas palavras.
- Mitchell Bondurant havia mexido em um vespeiro com sua carta para Louis Opparizio. Intencionalmente ou não, a carta era uma ameaça a duas coisas que constituíam
a força e a ferocidade desse vespeiro. Dinheiro e Poder. Isso ameaçava um negócio que era maior do que Louis Opparizio e Mitchell Bondurant. Ameaçava os negócios,
e desse modo providências tinham de ser tomadas.
Nova pausa.
- E foram. Lisa Trammel foi escolhida para ser o bode expiatório. Ela era conhecida dos perpetradores desse crime, seus movimentos vinham sendo monitorados por eles
e ela possuía o que parecia ser uma motivação verossímil. Era o pato perfeito. Ninguém acreditaria nela quando dissesse: “Não fui eu.” Ninguém pensaria duas vezes.
Um plano foi acionado e executado com descaramento e eficiência. Mitchell Bondurant foi encontrado sem vida no piso de concreto de um estacionamento, sua pasta remexida
e caída ao lado de seu corpo. E a polícia chegou e foi na onda.
Sacudi a cabeça com ar de decepção, como que carregando o peso do desgosto de toda a sociedade.
- A polícia estava usando viseiras. Como essas viseiras que colocamos nos cavalos para que não saiam do caminho. A polícia seguia um rastro que levava a Lisa Trammel
e se recusou a olhar para qualquer outro lado. Lisa Trammel, Lisa Trammel, Lisa Trammel... Muito bem, e quanto à ALOFT e as dezenas de milhões de dólares que Mitchell
Bondurant estava ameaçando? Negativo, não interessa. Lisa Trammel, Lisa Trammel, Lisa Trammel. O trem seguia nos trilhos e rumo ao destino.
Parei novamente e andei na frente do júri. Pela primeira vez, olhei em torno do tribunal. A sala estava lotada, com gente até de pé, no fundo. Vi Maggie McPherson
ali e ao seu lado minha filha. Estaquei no meio da passada, mas me recuperei rapidamente. Senti uma sensação agradável no coração quando me virei para o júri e cheguei
à conclusão de meus argumentos.
- Mas os senhores podem enxergar o que os policiais não enxergaram ou se recusaram a enxergar. Enxergar que foram pelo caminho errado. Enxergar que foram habilmente
manipulados. Enxergar a verdade.
Fiz um gesto para o manequim.
- A prova física não se encaixa. A prova circunstancial não se encaixa. O caso não comporta uma investigação à luz do dia. A única coisa que faz sentido neste caso
é a dúvida razoável. É o bom senso que nos diz isso. São nossos instintos que nos dizem isso. Peço aos senhores que concedam a liberdade a Lisa Trammel. Que a deixem
ir para casa. É a coisa certa a fazer.
Agradeci e voltei para meu lugar, dando um tapinha de leve no ombro de Manny ao passar. Como havíamos previamente planejado, Lisa Trammel segurou e apertou meu braço
assim que sentei. Ela articulou mudamente um Obrigada para que todo mundo no júri pudesse ver.
Olhei meu relógio sob a mesa da defesa e vi que levara apenas 25 minutos. Comecei a me acomodar para a segunda parte do encerramento do estado quando Freeman solicitou
ao juiz que o manequim fosse retirado do recinto. O juiz me pediu que fizesse isso e voltei a me levantar.
Carreguei o manequim até o portão, onde Cisco, que estava na plateia, foi ao meu encontro.
- Pode deixar, chefe - sussurrou ele. - Eu levo.
- Obrigado.
- Você foi bem.
- Obrigado.
Freeman se dirigiu ao mesmo lugar que eu para fazer a segunda parte de seu resumo. Ela não perdeu tempo em atacar as alegações da defesa.
- Não preciso de nenhum boneco para tentar tapear os senhores. Não preciso de conspirações, nem de assassinos sem nome ou sem rosto. Tenho do meu lado os fatos e
a prova para provar além de qualquer dúvida razoável que Lisa Trammel assassinou Mitchell Bondurant.
E seguiu a partir daí. Freeman utilizou todo o tempo que lhe foi disponibilizado para atacar os argumentos da defesa ao mesmo tempo em que enaltecia as provas e
testemunhos fornecidos pelo estado. O encerramento à la Joe Friday de praxe, previsível. Apenas os fatos, ou os supostos fatos, apresentados num ritmo firme. Nada
mau, mas nada bom, tampouco. Percebi que a concentração de alguns jurados divagou durante algumas partes, o que podia significar duas coisas distintas. Uma, não
estavam engolindo, ou então já haviam se convencido e não precisavam ouvir tudo de novo.
Freeman foi aumentando constantemente o ritmo até seu grand finale, o discurso padrão sobre o poder e os recursos do estado para ministrar ponderação e distribuir
justiça.
- Os fatos do caso são inalteráveis. Os fatos não mentem. A prova mostra claramente que a ré esperou atrás da coluna na garagem pela chegada de Mitchell Bondurant.
A prova mostra claramente que ao descer do carro ele foi atacado pela acusada. Era o sangue dele no martelo e o sangue dele no sapato. Esses são os fatos, senhoras
e senhores. Os fatos inquestionáveis. Esses são os tijolos de construção das provas. Provas que mostram além de qualquer dúvida razoável que Lisa Trammel matou Mitchell
Bondurant. Que ela se aproximou por trás e o golpeou brutalmente com o martelo. Que chegou até a acertá-lo mais duas vezes quando estava caído no chão e já sem vida.
Não sabemos exatamente em que posição qualquer um dos dois estava. Ela é a única pessoa que sabe disso. Mas o que sabemos é que foi ela. As provas do caso apontam
para uma única pessoa.
E é claro que Freeman não deixou de apontar o dedo para minha cliente.
- Ela. Lisa Trammel. Foi ela, e agora, usando os subterfúgios de seu advogado, quer que a deixemos livre. Não façam isso. Deem justiça a Mitchell Bondurant. Sentenciem
sua assassina como culpada desse crime. Obrigada.
Freeman sentou. Dei um B para seu encerramento, mas para mim eu já havia dado um A - egocêntrico que sou. Mesmo assim, em geral um C era quanto bastava para a promotoria
triunfar. Sempre é um jogo de cartas marcadas para o estado e em geral o melhor trabalho do advogado de defesa simplesmente não é bom o suficiente para sobrepujar
o poderio do oponente.
O juiz Perry passou direto à instrução do júri, lendo suas orientações finais para eles. Tratava-se não apenas das regras de deliberações, mas também de instruções
específicas do caso. Ele deu grande atenção a Louis Opparizio e voltou a advertir que seu depoimento não era para ser considerado durante as deliberações.
A instrução acabou tomando tanto tempo quanto meus argumentos de encerramento, mas enfim, pouco depois das três, o juiz mandou os 12 jurados de volta para a sala
de reunião a fim de darem início a sua tarefa. Observando-os passar um a um pela porta, ao menos me senti relaxado, quando não confiante. Eu havia apresentado a
melhor estratégia de que fui capaz. Sem dúvida, desobedecera a algumas regras e forçara alguns limites. Chegara até a correr algum risco. Risco do ponto de vista
da jurisprudência, mas também num nível mais perigoso. Eu me arriscara por acreditar na possibilidade de inocência de minha cliente.
Olhei para Lisa quando a porta da sala de deliberações se fechou. Não vi medo em seus olhos e mais uma vez fiquei convencido. Ela já tinha certeza do veredicto.
Não havia sinal de dúvida em seu rosto.
- O que você acha? - sussurrou Aronson para mim.
- Acho que temos uma chance de 50%, e isso é melhor do que normalmente acontece, ainda mais num homicídio. Vamos ver.
O juiz decretou o tribunal em recesso depois de confirmar com a estenógrafa que anotara os telefones de todos e frisar que não deveríamos ficar a mais do que 15
minutos de distância, caso um veredicto saísse. Meu escritório era perto, então decidi voltar para lá. Me sentindo otimista e magnânimo, cheguei até a dizer a Lisa
para convidar Herb Dahl. Eu sentia que seria minha obrigação acabar informando-a sobre a traição de seu anjo da guarda, mas deixaria essa conversa para outro dia.
Quando a defesa saía no corredor, a imprensa começou a nos rodear, pedindo alguma declaração de Lisa, ou pelo menos minha. Atrás da multidão eu vi Maggie recostada
contra uma parede, minha filha sentada num banco ao lado, digitando no celular. Falei para Aronson cuidar dos repórteres e comecei a sair de fininho.
- Eu? - disse Aronson.
- Você sabe o que dizer. Só não deixe Lisa falar. Não até termos um veredicto.
Afastei com um gesto mais alguns repórteres que vieram atrás e fui falar com Maggie e Hayley. Fiz um movimento rápido com o corpo para um lado e depois para o outro,
beijando minha filha no rosto antes que conseguisse evitar.
- Paaaaii!
Endireitei-me e olhei para Maggie. Percebi um ligeiro sorriso em seu rosto.
- Você a tirou da escola por minha causa?
- Achei que ela tinha de estar aqui.
Era uma concessão e tanto.
- Obrigado - eu disse. - Então, o que você achou?
- Acho que você podia vender gelo no Polo Sul - ela disse.
Sorri.
- Mas isso não quer dizer que vai ganhar - acrescentou.
Franzi o rosto.
- Muito obrigado.
- Bom, o que você esperava que eu dissesse? Sou uma promotora. Não gosto de ver uma pessoa culpada ficando em liberdade.
- Bom, isso não vai ser um problema, neste caso.
- Acho que cada um acredita no que quer.
Voltei a sorrir. Olhei para minha filha e vi que voltara a digitar, sem prestar atenção em nossa conversa, como sempre.
- Freeman conversou com você ontem?
- Você quer dizer sobre a estratégia de fazer a testemunha invocar a Quinta? Conversou. Você não joga limpo, Haller.
- Não é um jogo limpo. Ela contou o que falou para mim depois?
- Não, o que foi?
- Deixa pra lá. Ela estava errada.
Minha ex juntou as sobrancelhas. Ficou intrigada.
- Mais tarde eu conto - eu disse. - Vamos todos para o meu escritório, esperar. Vocês duas querem vir?
- Não, acho que preciso levar Hayley para casa. Ela tem lição para fazer.
Meu celular zumbiu em meu bolso. Tirei e olhei. O visor dizia:
Supremo Tribunal de L.A.
Atendi. Era a estenógrafa do juiz Perry. Ouvi o que ela disse e desliguei. Olhei em torno para ter certeza de que Lisa Trammel continuava por perto.
- O que foi? - perguntou Maggie.
- O veredicto já saiu. Levou cinco minutos.
PARTE CINCO
A Hipocrisia da Inocência
Cinquenta e três
Eles vieram aos bandos, aparecendo de todo o sul da Califórnia, todos atraídos pelo canto de sereia do Facebook. Lisa Trammel anunciara o encontro na manhã seguinte
à do veredicto e agora no sábado à tarde havia uma aglomeração de 3 metros junto aos balcões de comes e bebes. Traziam bandeirolas norte-americanas e vestiam vermelho,
branco e azul. A luta contra as execuções hipotecárias junto à líder quase martirizada da causa era agora mais americana do que nunca. Em todas as portas da casa
e espaçados pelo terreno, na frente e nos fundos, havia baldes de 40 litros para receber doações visando custear as despesas de Trammel e manter viva a chama da
luta. Broches da FLAG por um dólar, camisetas de algodão por dez. E posar para uma foto com Lisa custava uma doação de no mínimo vinte dólares.
Mas ninguém reclamava. Queimada no fogo da falsa acusação, Lisa Trammel emergira ilesa e parecia prestes a pular da condição de ativista para a de ícone. E não estava
achando nem um pouco ruim. Dizia-se que Julia Roberts cogitava fazer seu papel no cinema.
Minha equipe e eu estávamos reunidos no quintal, em torno de uma mesa de piquenique, sob um guarda-sol. Havíamos chegado cedo para pegar lugar. Cisco e Lorna tomavam
cerveja em lata e Aronson e eu uma garrafa de água mineral. Uma ligeira tensão pairava no ar e captei o suficiente das insinuações para entender que tinha alguma
coisa a ver com Cisco ter voltado tarde após estar com Aronson no Four Green Fields naquela noite de segunda-feira, depois que fui embora com Maggie McFierce.
- Nossa, olha só pra essa gente - disse Lorna. - Eles não sabem que um veredicto de inocente não quer dizer que ela é inocente de verdade?
- Isso não é muito educado da sua parte, Lorna - eu disse. - A gente nunca deve dizer uma coisa dessas, principalmente quando é da nossa própria cliente que estamos
falando.
- Eu sei.
Ela franziu o rosto e abanou a cabeça?
- Você não acredita nela, Lorna?
- Bom, vai me dizer que você acredita?
Fiquei feliz por estar de óculos escuros. Não queria me entregar nessa. Dei de ombros, como se não soubesse ou se não fizesse diferença.
Mas fazia. A pessoa precisa viver consigo mesma. Saber que havia uma chance concreta de que Lisa Trammel de fato merecia o veredicto que recebeu tornava as coisas
bem melhores quando eu me olhava no espelho.
- Bom, mas vou dizer uma coisa - continuou Lorna. - O telefone não parou de tocar desde que saiu o resultado do julgamento. Estamos de volta aos negócios, e é pra
valer.
Cisco balançou a cabeça, aprovando. Era verdade. Ao que parecia, todo acusado por algum crime na cidade agora queria me contratar. Isso teria sido ótimo, se minha
vontade fosse que as coisas continuassem do modo como vinham sendo.
- Você deu uma conferida no preço de fechamento da LeMure ontem no NASDAQ? - perguntou Cisco.
Olhei para ele.
- Desde quando você acompanha a cotação da Bolsa?
- Só queria ver se tinha alguém prestando atenção no caso, e parece que sim. A LeMure caiu trinta por cento do valor em dois dias. Não ajudou muito o Wall Street
Journal publicar aquela matéria ligando Opparizio a Joey Giordano e perguntando quanto dos 61 milhões tinha ido parar no bolso da máfia.
- Provavelmente, a grana toda - disse Lorna.
- Então, Mickey - disse Aronson. - Como você sabia?
- Sabia o quê?
- Que Opparizio ia invocar a Quinta.
Dei de ombros outra vez.
- Eu não sabia. Só imaginei que assim que ficasse óbvio que as ligações dele iam ser discutidas num julgamento, ele faria qualquer coisa para impedir. Só restava
uma saída. A Quinta.
A resposta não pareceu satisfazer Aronson. Virei para o outro lado e observei o quintal cheio de gente. O filho de minha cliente estava numa mesa próxima, com sua
tia. Ambos pareciam entediados, como que forçados a estar ali. Um grande grupo de crianças se reunira perto da horta. Uma mulher no meio do círculo distribuía balas
de um saco. Ela usava uma cartola vermelha, branca e azul como a do Tio Sam.
- Quanto tempo mais a gente precisa ficar por aqui, chefe? - perguntou Cisco.
- Não tem uma hora certa - eu disse. - Só achei que a gente devia dar uma passada.
- Quero ficar - disse Lorna, provavelmente só de birra. - Quem sabe aparece alguém de Hollywood.
Minutos depois a principal atração do dia surgiu na porta dos fundos, seguida de um repórter e um câmera. Escolheram um ponto com a multidão ao fundo e Lisa Trammel
deu uma rápida entrevista. Não me dei ao trabalho de tentar ouvir. Fazia dois dias que eu escutava e via sempre a mesma coisa.
Após encerrar a entrevista, Lisa se afastou da imprensa, apertou algumas mãos e posou para algumas fotos. Finalmente, conseguiu chegar até nossa mesa, depois de
parar para acariciar a cabeça do filho, no caminho.
- Aí estão vocês. Os vencedores! Como vai minha equipe hoje?
Fiz força para sorrir.
- Tudo bem com a gente, Lisa. E você também parece bem. Onde está o Herb?
Ela olhou em volta, como que procurando Dahl no meio da multidão.
- Não sei. Era para ele estar aqui.
- Que pena - disse Cisco. - Não vamos poder bater um papo com ele.
Lisa aparentemente não captou o sarcasmo.
- Você sabe que a gente precisa conversar mais tarde, Mickey - ela disse. - Quero sua opinião sobre qual o melhor programa para ir. Good Morning America ou Today?
Os dois me chamaram para aparecer na semana que vem, mas preciso escolher um, porque os dois vão ser demorados.
Gesticulei com a mão, como se minha resposta não viesse ao caso.
- Sei lá. Provavelmente Herb pode ajudar você com isso. Ele é o especialista em mídia.
Lisa virou para olhar o grupo de crianças e esboçou um sorriso.
- Ah, tenho uma coisa para as crianças que elas vão adorar. Com licença, pessoal.
Ela se afastou apressada e contornou a casa.
- Ela está adorando isso, não está? - disse Cisco.
- Eu também estaria - disse Lorna.
Olhei para Aronson.
- Por que você está tão calada?
Ela deu de ombros.
- Sei lá. Não tenho muita certeza se continuo gostando de defesa criminal. Acho que se você pegar algumas dessas pessoas que andam ligando, prefiro seguir nas execuções.
Se não tiver problema.
Fiz que sim.
- Acho que entendo o que você está sentindo. Pode cuidar das execuções, se quiser. Vai ter muito processo desse tipo ainda por um bom tempo, principalmente com caras
como Opparizio seguindo nesse ramo. Mas a sensação que você está tendo um dia vai embora. Pode acreditar em mim, Bullocks, vai mesmo.
Ela não reagiu à volta de seu apelido nem a coisa alguma que eu acabara de dizer. Virei para olhar o terreno. Lisa estava de volta e havia tirado o tanque de hélio
da garagem. Disse às crianças para se juntar e começou a encher balões. O cameraman da tevê se aproximou para uma imagem. Seria perfeito para o noticiário das seis.
- Hum, ela está fazendo aquilo para as crianças ou para as câmeras? - perguntou Cisco.
- Você precisa mesmo perguntar? - rebateu Lorna.
Lisa puxou uma bexiga azul do tanque e rapidamente amarrou com um barbante. Entregou para uma garotinha de uns seis anos, que segurou o barbante e deixou a bexiga
flutuando a cerca de 3 metros de sua cabeça. A menina sorriu e olhou para cima, observando seu brinquedo novo. E nesse momento eu me dei conta do que Mitchell Bondurant
estava olhando quando Lisa o atingiu com o martelo.
- Foi ela - sussurrei entre dentes.
Senti a descarga de um milhão de sinapses descendo por minha nuca e através dos meus ombros.
- O que você disse? - perguntou Aronson.
Olhei para ela, mas não respondi, e depois voltei a olhar minha cliente. Ela encheu outra bexiga com gás, amarrou o bico e a deu para um menino. A mesma coisa aconteceu
outra vez. O menino segurou o barbante e virou o rosto alegre para o alto, olhando o balão vermelho. Uma reação natural, instintiva. Observar a bexiga no alto.
- Ai, meu Deus - disse Aronson.
Sua ficha também caiu.
- Foi assim que ela fez.
Agora Cisco e Lorna tinham se virado.
- A testemunha disse que ela estava carregando uma grande sacola de compras pela calçada - disse Aronson. - Grande o suficiente para guardar um martelo, mas grande
o suficiente também para guardar bexigas.
Segui a partir daí.
- Ela entra na garagem e prende as bexigas acima da vaga de garagem de Bondurant. Talvez haja um bilhete na ponta de cada barbante, assim ele não vai deixar de olhar.
- É - disse Cisco. - Tipo, olha aqui seu pagamento balão.
- Ela se esconde atrás da coluna e espera - eu disse.
- E quando Bondurant ergue o rosto para as bexigas - concluiu Cisco -, bam, bem na cabeça.
Assenti.
- E os dois estouros que alguém achou que fossem tiros, mas que descartaram como explosão de escapamento, também não eram isso - eu disse. - Ela estourou as bexigas
quando estava saindo.
Um silêncio terrível pairou sobre a mesa. Até Lorna falar.
- Espera aí um minuto. Está dizendo que ela planejou tudo isso desse jeito? Como se soubesse que se acertasse ele no alto da cabeça isso ia tapear o júri?
Fiz que não.
- Não, isso foi pura sorte. Ela só queria que ele esperasse. Usou as bexigas para ter certeza de que ele ia parar e ela conseguiria chegar por trás. O resto foi
sorte, só isso... coisa que um advogado de defesa saberia como usar.
Não consegui encarar meus colegas. Fiquei observando Lisa encher as bexigas.
- Então... a gente ajudou ela a se safar.
Lorna estava afirmando isso. Não era uma pergunta.
- Non bis in idem - disse Aronson. - Ela não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo crime.
Como que recebendo uma dica, Lisa olhou para nós enquanto amarrava a ponta de um balão branco. Ela o deu para outra criança.
E sorriu para mim.
- Cisco, quanto estão cobrando a cerveja?
- Cinco paus a lata. Um roubo.
- Mickey, não - disse Lorna. - Não vale a pena. Você tem se saído tão bem.
Tirei os olhos de minha cliente e olhei para Lorna.
- Bem? Está dizendo que estou fazendo alguma coisa direito?
Levantei, deixando os três, fui na direção do balcão no quintal e entrei na fila. Imaginei que Lorna viria atrás de mim, mas foi Aronson quem apareceu do meu lado.
Ela falou muito baixo.
- Ei, o que está fazendo? Foi você mesmo quem me falou para não deixar a consciência atrapalhar. Está me dizendo que com você tudo bem?
- Sei lá - sussurrei. - Só sei é que ela me manipulou como uma porra de boneco e... quer saber? Ela sabe que eu sei. Acabou de sorrir pra mim de um jeito diferente.
Eu percebi no olhar dela. Está sentindo orgulho. Ela foi buscar o tanque de gás só para que eu visse e ficasse sabendo que...
Sacudi a cabeça.
- Ela me levou na conversa desde o primeiro dia. Era tudo parte do plano. Até...
Parei e me dei conta de algo.
- O que foi? - quis saber Aronson.
Fiz uma pausa conforme continuava a raciocinar.
- O que foi, Mickey?
- O marido não era marido coisa nenhuma.
- Como assim?
- O cara que me ligou, o cara que apareceu. Onde ele está agora, na hora de ver a cor do dinheiro? Ele não está aqui porque não era ele. Era só parte da farsa.
- Então onde está o marido?
Essa era a questão. Mas eu não tinha resposta. Não tinha mais nenhuma resposta.
- Estou indo embora.
Saí da fila e fui na direção da porta dos fundos.
- Mickey, aonde você está indo?
Não respondi. Atravessei a casa rapidamente e saí pela porta da entrada. Eu chegara cedo o suficiente para conseguir uma vaga apenas duas casas mais adiante. Estava
quase no Lincoln quando escutei meu nome sendo chamado às minhas costas.
Era Lisa. Vinha em minha direção pela rua.
- Mickey! Já vai?
- É, já vou.
- Por quê? A festa está só começando.
Ela se aproximou e parou.
- Estou indo porque sei, Lisa. Eu sei.
- O que você acha que sabe?
- Que você me usou como usa todo mundo. Até Herb Dahl.
- Ah, para com isso, você é advogado de defesa. Vai conseguir mais clientes do que nunca com isso tudo.
Sem meias palavras, ela admitia tudo.
- E se eu não estivesse interessado em ganhar clientes? E se eu só quisesse acreditar em alguma coisa, para variar?
Ela hesitou. Não estava entendendo.
- Cai na real, Mickey. Abre o olho.
Balancei a cabeça. Era um bom conselho.
- Quem era ele, Lisa? - perguntei.
- Quem era quem?
- O cara que você mandou me procurar dizendo que era seu marido.
Agora um pequeno sorriso de orgulho curvou seu lábio inferior.
- Tchau, Mickey. Obrigada por tudo.
Ela virou e começou a voltar para a casa. Entrei em meu Lincoln e fui embora.
Cinquenta e quatro
Eu estava no banco traseiro do Lincoln atravessando o túnel da Third Street quando meu celular começou a zumbir. O visor dizia que era Maggie. Falei para Rojas desligar
a música - era Judgement Day, do último álbum de Eric Clapton - e atendi.
- Você se inscreveu? - foi logo perguntando.
Olhei pela janela quando saímos do túnel e mergulhamos na luz brilhante do dia. Combinava com meu estado de espírito. Fazia três semanas desde o veredicto e quanto
mais longe eu ficava do episódio, melhor me sentia. Minha jornada era outra, agora.
- Sim.
- Uau! Parabéns.
- Mas se eu conseguir vai ser a maior zebra que você já viu. Tem muito candidato e eu não tenho dinheiro nenhum.
- Não importa. Você tem nome nesta cidade e existe uma certa integridade em relação a você que as pessoas enxergam e respeitam. Pelo menos eu vejo assim. Além do
mais, você não é do meio. Gente de fora sempre ganha. Então não se iluda, o dinheiro vai aparecer.
Eu não tinha certeza se integridade e eu pertenciam à mesma frase. Mas o resto era bem-vindo e, além do mais, era a melhor coisa que eu ouvia de Maggie McFierce
em muito tempo.
- Tá, vamos ver - eu disse. - Mas contanto que eu tenha seu voto, não me importo com os outros.
- Isso é muita gentileza sua, Haller. O que vem em seguida?
- Boa pergunta. Preciso abrir uma conta no banco e juntar...
Meu telefone começou a emitir um bipe. Havia uma chamada em espera. Olhei a tela e vi que estava bloqueada.
- Mags, aguenta aí um segundo, deixa eu ver quem está me ligando.
- Pode atender.
Apertei o botão.
- Aqui é Michael Haller.
- Foi você.
Reconheci a voz furiosa. Lisa Trammel.
- Eu o quê?
- A polícia está aqui! Estão cavando no quintal, procurando por ele. Você mandou eles aqui!
Presumi que o “ele” se referisse ao marido desaparecido, que nunca fora muito longe, quanto mais no México. Sua voz tinha aquele familiar tom esganiçado que assumia
quando estava prestes a se descontrolar.
- Lisa, eu...
- Preciso que você venha aqui agora! Preciso de um advogado. Eu vou ser presa!
Isso significava que ela já sabia o que iam encontrar no quintal.
- Lisa, não sou mais seu advogado. Posso recomendar um...
- Nããão! Você não pode me abandonar! Não agora!
- Lisa, você acaba de me acusar de mandar a polícia aí. Agora quer que eu a represente?
- Preciso de você, Mickey. Por favor.
Ela começou a chorar, aquele soluço prolongado e ressonante que eu ouvira tantas vezes.
- Procura alguma outra pessoa, Lisa. Pra mim, chega. Com um pouco de sorte pode até acontecer de ser eu dando entrada no processo.
- Do que você está falando?
- Acabei de me inscrever. Estou concorrendo para o Gabinete da Promotoria.
- Não entendo.
- Vou mudar de vida. Estou de saco cheio de ficar perto de gente como você.
Não houve reação no início, mas dava para ouvir sua respiração. Quando ela finalmente falou, sua voz tinha um tom distante, desapaixonado.
- Eu devia ter dito ao Herb para mandar eles aleijarem você. É isso que você merece.
Agora fiquei em silêncio. Eu sabia do que ela estava falando. Os irmãos Mack. Dahl havia mentido para mim e dito que Opparizio ordenara a agressão. Mas isso não
batia com o resto da história. Agora sim. Fora Lisa a mandante. Ela estava disposta a mandar espancar seu próprio advogado se fosse para afastar as suspeitas e ajudar
seu caso. Se isso ajudasse a me fazer acreditar em outras possibilidades.
Dei um jeito de achar minha voz e disse minhas palavras finais para ela.
- Tchau, Lisa. E boa sorte.
Me acalmei e voltei a falar com minha ex-esposa.
- Desculpe... era uma cliente. Uma antiga cliente.
- Está tudo bem?
Recostei contra a janela. Rojas acabava de entrar na Alvarado e se dirigia à 101.
- Sem problema. Então, quer ir em algum lugar hoje à noite para conversar sobre a campanha?
- Sabe, enquanto eu esperava, fiquei pensando, por que não vem em casa? A gente pode jantar com a Hayley e conversar depois, quando ela estiver fazendo a lição.
Era um raro convite para que eu fosse à sua casa.
- Então o cara tem que concorrer para o Gabinete se quer ser convidado para sua casa?
- Não abusa da sorte, Haller.
- Pode deixar. A que horas?
- Seis.
- Até lá, então.
Desliguei e fiquei olhando pela janela mais um pouco.
- Senhor Haller? - perguntou Rojas. - O senhor vai concorrer para a Promotoria?
- É. Tem algum problema pra você, Rojas?
- Não, chefe. Mas ainda vai precisar de motorista?
- Claro, Rojas, seu trabalho está garantido.
Liguei para o escritório e Lorna atendeu.
- Onde está todo mundo?
- Todo mundo aqui. Jennifer está usando sua sala para se reunir com um novo cliente. Hipoteca. E Dennis está fazendo alguma coisa no computador. Por onde você andou?
- Centro. Mas já tô voltando. Avisa que não é para ninguém sair. Quero fazer uma reunião de equipe.
- Certo, eu aviso.
- Ótimo. A gente se vê daqui a meia hora.
Fechei o celular. Estávamos subindo a rampa na direção da 101. Todas as seis faixas entupidas de metal, movendo-se num ritmo firme, mas lento. Para mim, era perfeito.
Essa era minha cidade e era assim que eu a queria se movendo. Guiado por Rojas, o Lincoln preto trocava de faixa e costurava o tráfego, me carregando rumo a um novo destino.
Michael Connelly
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