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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAINHA DA COSTA NEGRA / Robert E. Howard
A RAINHA DA COSTA NEGRA / Robert E. Howard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RAINHA DA COSTA NEGRA

 

Conan era um gigantesco aventureiro bárbaro, nascido nas inóspitas e atrasadas terras do norte, em uma região chamada Ciméria. Brigando e guerreando, ele percorreu metade do mundo de seu tempo, atravessando verdadeiros rios de sangue e enfrentando inimigos naturais e sobrenaturais, até tornar-se rei do poderoso império hiboriano de Aquilônia.

Tendo chegado ao reino de Zamora (vide mapa geral) ainda jovem e averso à lei, Conan conseguiu manter uma vida meramente precária durante alguns anos, como ladrão. Cansado dessa difícil e magra existência, alistou-se como soldado mercenário nos exércitos de Turan. Viajou bastante durante os dois anos seguintes, aprimorando as suas técnicas de arqueiro e cavaleiro.

Como resultado de uma briga com um oficial superior por causa de uma mulher, Conan fugiu de Turan. Depois de uma fracassada tentativa de encontrar um tesouro em Zamora, e de uma breve visita à sua Ciméria natal, ele entregou-se à carreira de soldado mercenário nos reinos hiborianos. As circunstâncias — violentas, como sempre — o transformaram em pirata nas costas de Kush, em companhia de uma mulher pirata shemita de nome Bêlit, além de uma tripulação formada de corsários negros sempre sedentos de sangue. Depois que Bêlit foi assassinada, ele tornou-se chefe de uma tribo negra e, depois, serviu como mercenário em Shem e nas mais meridionais nações hiborianas.

Ainda mais tarde, Conan apareceu como líder entre os kozaki, uma tribo de bandidos que perambulava pelas estepes entre as terras hiborianas e Turan. Também foi comandante de um navio pirata no grande mar mediterrâneo de Vilayet.

 

 

O barulho dos cascos ecoou pela rua que descia para o ancoradouro. As pessoas que falavam alto, espalhadas por ali, só conseguiram ver de relance uma figura vestida com uma armadura de malha metálica cavalgando um garanhão preto e a larga capa escarlate voando ao vento. Lá de cima da rua vieram os gritos e o barulho dos cavalos em perseguição, mas o cavaleiro nem olhava para trás. Foi em disparada na direção do cais e segurou firme nas rédeas, fazendo o cavalo parar, apenas quando o animal estava a ponto de cair na água. Os marinheiros levantaram o olhar espantado para ele, interrompendo o trabalho de varrer e limpar as velas de uma galé de proa elevada e casco bastante largo. O timoneiro, um homem rústico e de barba negra, estava em pé na proa, afastando o barco do píer com um longo gancho. Ele gritou com raiva quando o cavaleiro desceu da sela e, com um longo salto, caiu bem no meio do convés.

— Quem o convidou para vir a bordo?

— Vamos embora! — gritou o intruso, com um gesto rápido que fez espirrar gotas vermelhas de sua espada de lâmina bastante larga.

— Mas nós estamos a caminho das costas de Kush! — respondeu o timoneiro.

— Então, irei para Kush! Vamos depressa, eu repito! — O outro deu uma rápida olhada para a parte alta da rua, ao longo da qual cavalgava um grupo de cavaleiros. Atrás deles vinha um pelotão de arqueiros, de arco e flecha nas costas.

— Vai pagar sua passagem? — indagou o timoneiro.

— Eu pago tudo com aço! — gritou o homem da armadura, brandindo no ar a pesada espada, que refletia os raios do sol na lâmina azulada. — Em nome de Crom, homem! Se não partir agora mesmo eu prometo inundar esta banheira com o sangue de sua tripulação!

O timoneiro sabia julgar as pessoas. Bastou um olhar mais atento para o rosto escuro e cicatrizado do espadachim, endurecido pela vida, para que ele gritasse uma ordem rápida, ao mesmo tempo em que empurrava com força contra os pilares de madeira do ancoradouro. A galé balançou e afastou-se da margem, enquanto os remos começavam o seu movimento rítmico. Então, um sopro de vento encheu a vela aberta no alto. O navio leve arremessou para a frente e assumiu seu curso como um cisne, ganhando velocidade a cada instante.

No cais, os cavaleiros erguiam suas espadas ao alto e gritavam ameaças e ordens para que o barco regressasse, dizendo aos arqueiros para se apressar, antes que o navio se afastasse do alcance das flechas.

— Deixe que eles gritem, — disse o espadachim, sorrindo. — E procure manter o seu curso, timoneiro.

O timoneiro desceu do pequeno convés superior, passou por entre as duas filas de remadores e subiu para o convés intermediário. O estranho estava parado ali, de costas para o mastro, os olhos alertas e a espada em posição de prontidão. O marinheiro o examinou com o olhar, tomando todo cuidado para não fazer qualquer movimento brusco em direção à longa faca que trazia na cintura. O que tinha na sua frente era a figura de um homem alto, de físico avantajado, com uma armadura negra de malha metálica, longas botas polidas e um capacete de aço escuro muito brilhante, decorado com chifres de touro. A larga capa escarlate descia dos ombros protegidos pela armadura, e balançava na brisa do mar. Um cinturão largo, de couro cru, com uma enorme fivela dourada, segurava a bainha da espada que ele segurava. Debaixo do capacete de chifres, a cabeleira negra, cortada em quadrado, contrastava com seus brilhantes olhos azuis.

— Já que vamos viajar juntos, — disse o timoneiro, — é melhor que haja paz entre nós. Meu nome é Tito, mestre timoneiro licenciado nos portos de Argos. Estou a caminho de Kush, levando miçangas, seda, açúcar e espadas de cabo de metal para vender aos reis negros, em troca de marfim, azeite de coco, cobre, escravos e pérolas.

 

O espadachim olhou de volta para as docas que se afastavam depressa, e onde seus perseguidores continuavam gesticulando, alguns procurando encontrar um barco rápido o bastante para alcançar a ligeira galera.

— Sou Conan, da Ciméria, — respondeu ele. — Vim para Argos em busca de trabalho mas, como não estão em guerra, nada havia para eu fazer aqui.

— Por que os guardas o estão perseguindo? — perguntou Tito. — Não que os seus problemas sejam da minha conta, mas eu pensei que...

— Nada tenho a esconder, — interrompeu o cimério. — Em nome de Crom, quanto mais tempo eu passo entre vocês, pessoas civilizadas, menos consigo entender seus modos. Ontem à noite, em uma taverna, um capitão da guarda real violentou a garota de um jovem soldado que, naturalmente, acabou com ele. Mas parece que existe uma maldita lei que impede de matar integrantes da guarda, de maneira que o rapaz e a moça resolveram fugir. Andaram dizendo que me viram com eles e, assim, fui levado ao tribunal, e o juiz me perguntou onde o rapaz estava escondido. Respondi que, sendo ele meu amigo, não poderia traí-lo. Ficaram com raiva, e o juiz fez um demorado discurso sobre a minha responsabilidade para com o Estado e a sociedade, e um monte de outras coisas que eu nem entendi. E acabou me ordenando a dizer para onde meu amigo tinha fugido. Ai eu também comecei a ficar com ódio, porque já explicara minha posição mais de uma vez. Mas procurei me controlar e fiquei calado. O juiz acabou achando que eu tinha desrespeitado a autoridade dele e que devia ser mandado para o calabouço e apodrecer lá até me decidir a trair meu amigo. Aí, vendo que todo o mundo estava contra mim, tirei a espada e arrebentei a cabeça do juiz. E abri caminho para fora do tribunal. Quando vi o cavalo de um soldado amarrado ali perto, montei e fugi em disparada para o porto, onde esperava encontrar um navio zarpando para alguma terra bem distante.

— Muito bem, — respondeu Tito. — Os tribunais já me prejudicaram bastante nos processos que me moveram alguns comerciantes ricos, de maneira que não morro de amor por eles. Terei de responder a muitas perguntas se aportar de novo por aqui, mas não será difícil alegar que estou sendo forçado a ajudá-lo. É melhor você guardar a espada. Todos aqui somos marinheiros pacíficos, e não temos nada contra você. Além disso, há muitas vantagens em levar um guerreiro como você a bordo. Venha até o tombadilho da popa tomar um copo de cerveja comigo.

— Ótima idéia, — respondeu o cimério, guardando a espada na bainha.

O Argus era um navio pequeno e resistente, uma típica embarcação de carga que fazia comércio entre os portos de Zíngara e Argos e as costas do sul, navegando perto da costa e jamais se aventurando a entrar em mar aberto. Tinha uma popa elevada e a proa também alta e elegantemente curvada. O casco era largo no meio, e inclinava ligeiramente de uma ponta a outra. O leme era uma longa alavanca na popa, e a propulsão principal vinha de uma larga vela de seda listrada, ajudada por uma bujarrona. Os remos eram usados para sair de rios e baías, e durante as calmarias. Eram dez de cada lado, cinco à frente e os outros cinco atrás do pequeno convés central. A parte mais preciosa da carga ficava armazenada debaixo desse convés e do tombadilho. Os homens dormiam no próprio convés ou entre os bancos dos remadores, protegidos por toldos de lona durante as tempestades. A tripulação completa era formada pelos vinte remadores, três marinheiros de proa e o mestre timoneiro.

Então o Argus navegou firme rumo ao sul, com tempo bom e ventos favoráveis. O sol brilhava dia após dia, fazendo aumentar cada vez mais o calor, e os toldos foram fechados. Eram peças de seda listrada que combinavam com as velas e com os apetrechos de metal dourado muito bem polido na proa e ao longo das laterais do casco.

Logo avistaram as costas de Shem, longas pradarias com pequenas colinas arredondadas, encimadas pelas torres brancas das cidades distantes, e cavaleiros com barbas negras e nariz muito comprido e curvo, parados ao longo da praia, examinando a galera com um ar de suspeita no olhar. O barco não baixou âncoras. Afinal, não havia grande possibilidade de lucro no comércio com os selvagens e cuidadosos filhos de Shem.

O mestre timoneiro Tito tampouco mandou baixar âncoras na grande baía onde o rio Styx despejava suas enormes cheias no oceano, e onde os castelos ébanos de Khemi pareciam gigantescos fantasmas à beira das águas azuis do mar. Nenhum navio entrava sem ser convidado nesse porto, onde feiticeiros de pele escura conjuravam suas magias envolvidos pela fumaça sacrificial que subia eternamente de altares manchados de sangue, sobre os quais eram sempre ouvidos os gritos desesperados de mulheres nuas e onde se dizia que Set, a Imortal Serpente, principal entidade demoníaca dos hiborianos mas deus dos estígios, retorce seus gigantescos anéis resplandecentes entre os seus adoradores.

Mestre Tito manteve-se à distância daquela baía sonolenta, de águas calmas, a salvo dos tiros de uma gôndola decorada com uma serpente na proa, que apareceu de trás de um ponto fortificado da terra, enquanto mulheres nuas, com grandes flores vermelhas nos cabelos, chamavam os seus marinheiros, com acenos e gestos ardentes e voluptuosos.

Já não se viam torres brancas erguendo-se no continente. Eles haviam passado pelas fronteiras do sul da Stygia, e agora navegavam ao longo das costas de Kush. O mar e os costumes do mar eram mistérios impenetráveis para Conan, cuja terra natal encontrava-se situada no meio das altas colinas das terras do norte. Por sua vez, o estrangeiro também despertava a curiosidade daqueles rústicos homens do mar, a maioria dos quais jamais vira uma pessoa de sua raça.

Aqueles eram típicos marinheiros de Argos, homens de baixa estatura e corpo bastante forte. Conan era mais alto do que todos eles, e nenhum tinha tanta força como ele. Os navegadores eram duros e robustos, mas Conan tinha a resistência e vitalidade de um lobo, e suas qualidades físicas e seus nervos de aço tinham a têmpera da vida difícil que levara pelas terras mais inóspitas do mundo. Ria com facilidade, mas era ainda mais fácil e terrível o seu ódio, quando provocado. Comia com voracidade, e tinha paixão e até fraqueza pelas bebidas fortes. De certo modo era ingênuo como uma criança, e não conhecia a sofisticação da civilização, mas era naturalmente inteligente, conhecia e sabia fazer valer os seus direitos, e podia ser considerado tão perigoso como um tigre faminto. Embora ainda jovem, mostrava toda a dureza de quem enfrentou muitas batalhas e aventuras, e sua maneira de vestir indicava ter passado por diversas terras diferentes. O capacete decorado com chifres de boi era do mesmo tipo usado pelos aesires de cabelos louros de Nordheim; as peças de proteção que usava no pescoço e nos tornozelos, em fina malha metálica, tinham sido feitas à mão em Koth; a armadura que protegia seus braços e pernas vinha da Nemédia; a lâmina que trazia pendurada à cintura era uma espada larga, originária da Aquilônia; e sua maravilhosa capa escarlate só poderia ter sido tecida em Ophir.

Eles continuavam navegando rumo ao sul, quando mestre Tito começou a procurar pelas aldeias de altas paliçadas dos povos negros. Mas só encontraram ruínas ainda fumegantes, nas praias de uma baía, coalhada de corpos negros, sem roupas. Tito amaldiçoou sua sorte.

— Já realizei excelente comércio com esta gente. O que estamos vendo só pode ter sido feito por piratas.

— E se nos encontrarmos com eles? — perguntou Conan, desatando a tira que prendia sua espada na bainha.

— Meu barco não está preparado para batalhas. Nós fugimos e não lutamos. Mas, se não tiver outro jeito... já enfrentamos esse tipo de ladrões antes, e talvez o façamos de novo. A menos que seja o Tigresa de Bêlit.

— Quem é Bêlit?

— A pior mulher que já pisou neste mundo. Se eu não estiver enganado, foram os carniceiros dela que destruíram a aldeia na baía. Espero vê-la um dia enforcada num mastro bem alto. É chamada de Rainha da Costa Negra. Uma mulher shemita, que lidera piratas negros. Atacam e saqueiam os barcos que navegam por aqui, e já mandaram muitos navegantes e comerciantes para o fundo do mar.

De baixo do tombadilho Tito trouxe alguns coletes acolchoados, capacetes de aço, arcos e flechas.

— Isto não vai adiantar muito se formos atacados, — ele resmungou. — Mas é contra a nossa natureza nos entregarmos sem lutar.

Foi ao raiar da aurora que a sentinela deu o aviso. Ao redor da extremidade arredondada de uma ilha, a estibordo, apareceu a forma longa e letal de uma galera que lembrava uma serpente esguia, com um convés elevado estendendo-se de popa a proa. Quarenta remos de cada lado a faziam deslizar rapidamente sobre a água, e suas laterais baixas estavam repletas de negros seminus, que cantavam e batiam suas lanças em escudos ovais. No mastro principal flutuava um longo pendão vermelho.

— É Bêlit! — gritou Tito, horrorizado. — Preparem-se! Vamos dar a volta e tentar entrar por aquele rio! Se conseguirmos chegar até lá antes que nos alcancem, teremos uma chance de escapar com vida!

Assim, com um giro rápido, o Argus correu na direção das ondas que quebravam ao longo da praia delimitada por uma linha de palmeiras, enquanto Tito andava a passos largos de um lado para outro, gritando ordens aos ofegantes remadores para que se esforçassem ainda mais. A barba negra do comandante parecia arrepiada, e seus olhos brilhavam assustados.

— Eu quero um arco! — gritou Conan. — Não considero o arco como arma de um homem de verdade, mas aprendi a atirar quando vivia entre os hirkanianos, e vai ser um desperdício eu morrer sem levar comigo pelo menos um ou dois daqueles malditos selvagens!

Em pé sobre a popa, ele ficou observando o barco com aparência de serpente que singrava as águas com grande leveza e rapidez. Embora pouco soubesse de navegação, estava claro para ele que o Argus jamais conseguiria ganhar aquela corrida. Já podia ver muitas flechas lançadas do convés dos piratas, as quais assobiavam no ar e caíam a menos de vinte passos atrás deles.

— Acho melhor nos prepararmos para o combate, — resmungou o cimério. — Do contrário, vamos todos morrer com as costas cheias de flechas, sem devolver um golpe sequer.

— Força nos remos, seus cães vadios! — berrou Tito, com os punhos cerrados. Os suados remadores gemiam, arquejando sobre os remos, com os músculos formando verdadeiros nós de cãibra. As vigas de madeira da pequena e robusta galera rangiam sob o esforço sobre-humano dos homens, fazendo-a cortar à força as águas do mar. O vento tinha diminuído, e a vela estava vazia. Os inexoráveis perseguidores chegavam cada vez mais perto, e o Argus ainda estava a mais de uma milha da arrebentação quando um dos timoneiros auxiliares tombou ensangüentado pela lateral do barco, com uma longa flecha enfiada no pescoço. Tito correu para o lugar dele e Conan ergueu seu arco, abrindo as pernas fortes para equilibrar-se sobre o tombadilho. Já via com clareza os detalhes da expressão de cada um dos piratas. Os remadores deles estavam protegidos por uma linha de cobertura ao longo das laterais do casco do esguio barco, mas os guerreiros que dançavam sobre o estreito convés estavam bem à vista. Tinham o corpo pintado e enfeitado com penas, estavam seminus e erguiam no ar as suas lanças e os escudos manchados. Sobre a plataforma que se erguia na proa ele viu em pé uma figura magra, cuja pele branca destacava-se em franco contraste com os guerreiros da cor de ébano que a circundavam. Sem dúvida alguma, aquela era Bêlit. Conan esticou a corda do arco até a orelha. Então, o extremo capricho, ou talvez as náuseas que sentiu, deram-lhe firmeza nas mãos, e sua flecha voou para atravessar o corpo de um lanceiro alto, todo enfeitado de penas, que estava bem ao lado dela.

Cada vez mais próxima, a galé dos piratas estava alcançando sua presa. Uma verdadeira chuva de flechas caiu sobre o Argus, e os homens gritaram. Todos os tripulantes tombaram, com os corpos crivados de flechas, e Tito se viu sozinho no controle do barco, gritando palavrões de ódio, com as pernas em cãibra, usando o que ainda lhe sobrava de resistência física. Então, com um gemido, ele também tombou, com uma longa lança atravessada no coração. O Argus ficou desgovernado sobre as ondas. Os homens gritaram, confusos, e Conan assumiu o comando, de um jeito que lhe era peculiar.

— Vamos, rapazes! — ele gritou para os remadores. — Apanhem suas armas e vamos dar a esses cães o que eles querem, antes que cortem a garganta de todos nós! Não adianta continuar remando como loucos. Eles vão nos abordar antes que consigamos navegar mais cinqüenta metros!

Em desespero, os marinheiros abandonaram seus remos e agarraram as armas. Era uma atitude valente, mas inútil. Teriam tempo para lançar só uma flecha cada um, antes que os piratas caíssem sobre eles. Como não havia ninguém no leme, o Argus girou para um dos lados, e a proa do barco pirata, reforçada com uma chapa de aço, atingiu a parte central do seu casco. Os ganchos de abordagem do Tigresa prenderam-se às pranchas de madeira de sua lateral. De cima do convés inimigo, os piratas negros lançaram uma descarga de lanças, as quais penetraram com facilidade nos coletes acolchoados dos marinheiros. Depois, carregando outras lanças, atiraram-se contra as vítimas para completar a carnificina. Sobre o convés do barco dos piratas contava-se meia-dúzia de guerreiros mortos, o heróico resultado da reação de Conan com seu arco.

A bordo do Argus o combate foi rápido e sanguinário. Os atarracados marinheiros, que não eram ameaça para os piratas de estatura elevada, foram mortos até o último homem. Mas, num determinado lugar do convés, a batalha tomava outro rumo. Instalado sobre o elevado tombadilho, Conan estava no mesmo nível do convés dos piratas. Quando a proa de aço batera contra o casco do Argus ele conseguira agarrar-se e manter-se em pé, atirando o arco para longe. Um enorme corsário lançou-se sobre o parapeito inimigo e foi atingido em pleno ar pela grande espada do cimério, que separou seu corpo em duas metades, de maneira que o tronco caiu para um lado, e as pernas para outro. Então, com uma explosão de fúria que deixou um rastro de corpos dilacerados ao longo do convés, Conan saltou sobre o parapeito e chegou ao convés do Tigresa.

Num instante ele tornou-se o centro de um furacão de lanças cortantes, em meio aos golpes de pesados bastões. Mas movia-se rápido, como o ofuscante brilho do aço de sua espada. As lanças quebravam contra sua armadura ou assobiavam no vazio do ar, enquanto a espada entoava seu canto de morte. Sobre ele pairava a loucura combativa de sua raça, e com uma cortina vermelha de fúria insensata cobrindo seus olhos ardentes, ele arrebentava crânios, despedaçava peitos fortes, arrancava membros, rasgava entranhas, transformando o convés num lúgubre depósito de miolos e de sangue.

Quase invulnerável em sua armadura, com as costas voltadas para o mastro, ele ia amontoando corpos mutilados aos seus pés, até que os inimigos recuaram, ofegantes de ódio e medo. Então, ao levantarem suas lanças para atingi-lo, ao mesmo tempo em que ele retesava seus músculos, pronto para saltar para a morte, um grito estridente fez congelarem os braços erguidos dos lanceiros. Ficaram todos como estátuas, os guerreiros negros preparados para atirar suas lanças, e o gigante de armadura com a espada derramando sangue.

Bêlit saltou na frente dos negros, derrubando suas lanças. Voltou-se para Conan, com os seios erguidos, os olhos brilhando intensamente. Grandes e terríveis dúvidas tomaram conta do seu coração. Diante dele estava um corpo esbelto de mulher, mais parecida com uma deusa. Era ao mesmo tempo maleável e voluptuosa. A única roupa que vestia era uma cinta larga, de seda. Seus membros brancos como o marfim e as curvas alvas de seus seios provocaram um choque de paixão que pulsou em suas veias, mesmo durante a ofegante fúria da batalha. A rica cabeleira negra, tão escura como uma noite estígia, caía em brilhantes cachos ondulados sobre suas costas macias. Os olhos negros pareciam queimar sobre o cimério.

Ela era tão indomável como o vento do deserto, delicada e perigosa como uma pantera. Aproximou-se dele, mostrando não temer a enorme espada, ainda manchada com o sangue de seus piratas. Ela chegou tão perto do alto guerreiro que seus quadris lisos e delicados esfregaram na lâmina. Seus lábios vermelhos se entreabriram quando seu olhar se fixou nos sombrios e ameaçadores olhos do cimério.

— Quem é você? — perguntou ela. — Por Ishtar, jamais vi alguém como você, apesar de ter navegado pelos mares desde as costas de Zíngara até o fogo do extremo sul. De onde você vem?

— De Argos, — respondeu Conan, preparado para qualquer possibilidade de um ataque traiçoeiro. Bastaria que as mãos delicadas fizessem um só movimento em direção ao punhal que ela levava na cinta de seda, para que um golpe de sua enorme mão aberta a derrubasse sem sentidos sobre o convés. Mas, no fundo do seu coração, ele não sentia medo. Já segurara tantas mulheres civilizadas e bárbaras em seus poderosos braços de guerreiro, que tinha certeza de reconhecer o fogo que ardia nos olhos daquela.

— Você não é nenhum hiboriano molóide, — exclamou ela. — É tão feroz e durão como um lobo cinzento. O seu olhar jamais foi ofuscado pelas luzes de uma cidade. Seus músculos nunca foram afrouxados pela vida entre paredes de mármore.

— Eu sou Conan, da Ciméria, — respondeu ele.

Para aquela gente dos climas exóticos, o norte era um reino confuso, meio mítico, habitado por gigantes ferozes, de olhos azuis, que ocasionalmente desciam de suas fortalezas geladas armados de tochas e espadas. Eles jamais haviam ido tão ao sul a ponto de chegar a Shem, e aquela filha de Shem não sabia distinguir entre os aesires, os vanires ou os cimérios. Com o seu certeiro e elementar instinto feminino, ela sabia ter encontrado o seu amante, e a raça dele não tinha significado algum, embora transmitisse o fascínio de terras distantes.

— E eu sou Bêlit! — ela gritou, como alguém que diz: “Eu sou rainha!”. Abriu os braços e continuou: — Olhe para mim, Conan. Sou Bêlit, a rainha da Costa Negra. Ó tigre do norte, você é tão frio como as montanhas de neve que o viram crescer. Abrace-me e me possua com o seu amor ardente! Venha comigo para os confins da terra e os extremos do mar! Eu sou uma rainha pelo fogo, o aço e a morte. Seja você o meu rei!

O olhar dele percorreu os rostos dos piratas negros, à procura de alguma expressão de ódio ou ciúme. Não viu nada disso. A fúria desaparecera daquelas faces escuras. Ele entendeu que, para aqueles homens, Bêlit era mais do que uma mulher. Era uma deusa, cuja vontade não poderia ser questionada. Olhou então para o Argus, flutuando sobre o mar avermelhado, tombado para um dos lados, o convés alcançado pelas ondas, seguro pelos ganchos de abordagem do navio pirata. Seu olhar voltou-se para a praia azulada na distância, para a cerração esverdeada do oceano, para a vibrante figura que tinha à sua frente. E sua alma de bárbaro agitou-se dentro dele. Seria emocionante aventurar-se por aqueles ofuscantes reinos azulados com uma jovem pantera de pele tão branca, amar, sorrir, perambular pelo sul, e pilhar...

— Partirei com você, — resmungou ele, agitando da espada as últimas gotas de sangue.

 

Com uma voz tão vibrante como a corda de um arco, ela dirigiu-se a um dos seus:

— N’Yaga! Apanhe as ervas para curar as feridas de seu mestre! Os outros tragam a bordo os espólios do combate e vamos partir.

Enquanto Conan permanecia sentado de costas para a grade de proteção do tombadilho, e o velho xamã cuidava dos cortes que ele tinha nas mãos, nos braços e nas pernas, a carga do malfadado Argus era rapidamente transferida para o Tigresa e armazenada em pequenas cabines no porão. Os corpos dos membros da tripulação e dos piratas mortos foram atirados ao mar e ali mesmo devorados pelos tubarões, enquanto os negros feridos recebiam os curativos necessários. Então, os ganchos de abordagem foram retirados. E enquanto o Argus mergulhava silenciosamente nas águas manchadas de sangue, o Tigresa partia em direção ao sul, em meio ao barulho ritmado dos remos que o impulsionavam.

Com a partida do delgado barco pelas espelhadas águas azuis, Bêlit veio para o tombadilho. Seus olhos brilhavam com a intensidade dos olhos de uma pantera no escuro, quando ela arrancou os ornamentos, as sandálias e o cinturão de seda, para lançar tudo aos pés de Conan. Levantando o corpo sobre as pontas dos pés, os braços erguidos ao alto, transformou-se em uma trêmula e delicada coluna branca, e gritou para a multidão de piratas:

— Lobos do mar azul, observem agora a dança de acasalamento de Bêlit, cujos pais foram os soberanos de Asgalun!

E ela dançou, girando como os ventos do deserto, saltando como uma labareda impossível de apagar, como o desejo da criação e o ímpeto da morte. Seus pés brancos pareciam cobrir de desprezo o convés manchado de sangue, e os moribundos esqueceram-se da morte, com os olhos vidrados sobre ela.

Então, enquanto as estrelas brancas já começavam a tremer no aveludado firmamento, acima do poente, fazendo o delicado corpo branco parecer apenas uma disforme mancha de marfim flutuando no ar, ela atirou-se aos pés de Conan com um grito selvagem. A cegueira transbordante do desejo que dominara o cimério tomou conta de todos os seus sentimentos, e ele esmagou o corpinho arquejante contra a malha que lhe protegia o peito.

 

O Tigresa percorria os mares, e as aldeias negras tremiam. O som dos tambores ecoava pela noite, contando que a mulher-demônio dos mares tinha encontrado um par, um homem de ferro cuja ira era pior do que a de um leão ferido. E os sobreviventes dos navios estígios que haviam destruído, amaldiçoavam o nome de Bêlit e o guerreiro branco de frios olhos azuis.

Assim, os príncipes da Stygia lembrar-se-iam desse homem por muito e muito tempo, e suas lembranças seriam amargas, tingidas de vermelho, durante gerações inteiras.

Despreocupado como o vento do verão, o Tigresa singrou os mares pelas costas do sul, até ancorar no delta de um rio largo e sombrio, cujas margens eram cobertas de densas florestas e de grandes mistérios.

— Este é o rio Zarkheba, que significa Morte, — disse Bêlit. — Suas águas estão envenenadas. Está vendo como elas são escuras? Apenas os répteis venenosos conseguem viver neste rio. O povo negro o evita a todo custo. Uma vez, um navio estígio que fugia de mim, entrou por aí e desapareceu. Eu ancorei aqui mesmo onde estamos e, depois de vários dias, a galera veio flutuando pelas águas escuras, deserto e com o convés todo manchado de sangue. Só havia um homem a bordo, mas tinha enlouquecido e morreu dizendo coisas sem sentido. A carga estava intacta, mas toda a tripulação desaparecera no mais completo silêncio e mistério. Meu amor, eu acredito que existe uma cidade em algum lugar, à beira deste rio. Já ouvi lendas sobre gigantescas torres e muralhas, que teriam sido vistas de longe por marinheiros que se arriscaram a entrar pelo rio. Nós não temos medo de coisa alguma. Conan, por que não vamos pelo rio para saquear essa cidade?

Conan concordou. De um modo geral, aceitava tudo o que ela dizia. Era a mente dela que dirigia todos os ataques que faziam, e seu braço forte executava todas as idéias dela. Pouco lhe importava para onde navegavam ou contra quem lutavam, desde que continuassem viajando e fazendo guerra. Ele gostava daquela vida.

As batalhas e os ataques constantes tinham reduzido bastante a tripulação do navio pirata. Agora restavam apenas uns oitenta lanceiros, número apenas suficiente para manter em operação o longo barco. Mas Bêlit não queria perder o tempo necessário para a longa viagem em direção ao sul, para os reinos onde costumava recrutar seus bucaneiros. Seu coração ardia de vontade de partir para aquela aventura. Assim, o Tigresa entrou pelo delta do rio, com os remadores puxando forte para vencer a correnteza de águas escuras.

Fizeram a misteriosa curva que escondia o restante do rio da vista de quem se encontrava no mar, e o crepúsculo os encontrou navegando firme contra a correnteza lenta, evitando os bancos de areia onde estranhos répteis se aninhavam. Não viram sequer um crocodilo, nem animais de quatro patas ou pássaros bebendo à beira daquele rio. Continuaram adiante pela escuridão que precedeu o surgimento da lua no céu, passando entre as margens que mais pareciam sólidas muralhas de escuridão, de onde se ouviam estranhos murmúrios e passos furtivos, e onde brilhavam olhares repugnantes.

Ouviu-se de repente o grito de uma voz inumana, que parecia estar zombando deles. Bêlit informou que se tratava do grito de um macaco, acrescentando que as almas dos homens maus eram aprisionadas nesses animais de forma quase humana como castigo por seus crimes do passado. Mas Conan não acreditou, porque uma vez, numa cidade hirkaniana, ele vira o olhar triste de um animal aprisionado em uma jaula de barras douradas, que lhe disseram ser um macaco, e que não transmitia nem parecia ter a mesma malevolência que vibrava no riso estridente que ecoava daquela floresta escura.

Quando a lua surgiu foi como um facho de sangue no céu, e toda a floresta pareceu receber o luar como algo que penetra sem permissão numa terra de loucura, dominada pela escuridão. Urros, berros e gritos fizeram os guerreiros negros tremer de medo. Mas Conan notou que todo o barulho vinha de algum lugar mais para dentro da floresta, como se os animais, assim como os homens, também evitassem as águas escuras do Zarkheba. Erguendo-se sobre a densa e negra camada de árvores, acima dos galhos agitados pelo vento, a lua lançou sua luz prateada sobre as águas, que passaram a refletir os pequenos pontos cintilantes que se abriam como uma estrada, iluminada pelo brilho de milhões de jóias preciosas. Os remos mergulhavam nas águas brilhantes e tornavam a subir, refletindo o luar prateado. As plumas que enfeitavam as cabeças dos guerreiros balançavam ao vento, ao mesmo tempo em que reluziam as lâminas e os cabos metálicos de suas lanças e espadas.

A luz fria do luar arrancou reflexos das jóias das mechas negras dos cabelos de Bêlit, deitada sobre uma pele de leopardo esticada sobre o convés. Com o delicado corpo apoiado sobre os cotovelos, o queixo seguro pelas mãos finas, ela olhava para Conan, que descansava ao seu lado com a cabeleira negra solta na brisa leve da noite. Os olhos de Bêlit pareciam duas jóias negras ardendo ao luar.

— Estamos cercados de terror e mistério, Conan, e navegamos na direção do reino do horror e da morte, disse ela. — Você tem medo? — A única resposta dele foi um movimento dos ombros. E ela continuou, com uma expressão de meditação: — Não temo coisa alguma. Jamais senti medo. Muitas e muitas vezes me vi frente a frente com a morte. Conan, você teme os deuses?

— Não me atreveria a pisar nas sombras deles, — respondeu o bárbaro, em tom conservador. — Alguns deuses fazem tudo para nos ferir, outros para nos ajudar. Pelo menos é o que dizem os sacerdotes. Mitra, dos hiborianos, deve ser um deus forte, porque seu povo espalhou cidades pelo mundo inteiro. Mas, mesmo os hiborianos temem Set. E Bei, deus dos ladrões, é um bom deus. Ouvi falar dele quando eu era ladrão, em Zamora.

— E quanto aos deuses de seu povo? Jamais o ouvi chamar um deles.

— O principal é Crom, que mora em uma grande montanha. Que adianta chamar por ele? Crom pouco se importa se os homens vivem ou morrem. É melhor ficar em silêncio do que atrair sua atenção sobre nós. Ele só nos manda a destruição, e não a boa sorte. É severo e sem amor mas, no momento do nascimento, sopra o poder de lutar e de matar, na alma do homem. O que mais poderiam os homens querer dos deuses?

— Mas, e os mundos que existem depois da morte? — insistiu ela.

— Não existe esperança, aqui ou no além, segundo o culto do meu povo, — respondeu Conan. — Neste mundo os homens lutam e sofrem por nada, encontrando prazer apenas na ofuscante loucura da batalha. Ao morrerem, suas almas entram em um reino cinzento e enevoado, coberto de nuvens e ventos gelados, para ficarem vagando sem esperança alguma por toda a eternidade.

Bêlit sentiu um arrepio.

— A vida, por pior que seja, é muito melhor do que um destino desses. Em que é que você acredita, Conan?

Ele encolheu os ombros, e respondeu:

— Já conheci muitos deuses. Aquele que nega a sua existência é um cego, assim como todo aquele que confia demais neles. Não me importo com o que existe além da morte. Tanto pode ser a escuridão em que acreditam os céticos nemédios, como o reino de gelo e nuvens onde vive Crom, como as planícies geladas e os corredores fechados da Valhalla em que acredita o povo de Nordheim. Eu não sei, nem me importo. Só quero viver intensamente enquanto posso. Quero experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante no meu paladar, o aperto quente de braços brancos como o marfim, a loucura do triunfo na batalha, quando as lâminas azuladas queimam e são tingidas de vermelho. Isso é o suficiente para eu me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões de realidade e ilusão. Uma coisa eu sei: se a vida é ilusão, eu também sou uma ilusão e, sendo assim, a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida, eu amo, eu mato, e sou feliz assim.

— Mas os deuses são reais! — disse ela, continuando em sua própria linha de raciocínio. — E acima de tudo são reais os deuses dos shemitas: Ishtar e Ashtoreth, Derketo e Adónis. Bei também é shemita, pois nasceu na primitiva terra de Shumir, há muito, muito tempo, e viveu sorrindo, com a barba encaracolada e olhos espertos e inocentes como os de uma criança, roubando as jóias dos reis dos tempos antigos. Existe vida depois da morte, isso também eu sei, Conan da Ciméria. — Com agilidade ela se apoiou nos joelhos e o agarrou num abraço tão apertado como o de uma pantera. E continuou: — Meu amor é mais forte do que qualquer tipo de morte! Eu me coloquei nos seus braços, arquejando com a violência do seu amor. Você me agarrou, me apertou e me conquistou, puxando minha alma para os seus lábios com a ferocidade de seus beijos ardentes. Meu coração está colado ao seu coração, minha alma é parte de sua alma! Se eu estivesse imóvel na morte e você lutando pela vida, eu voltaria do abismo para ajudá-lo. Sim, mesmo que meu espírito flutuasse com as velas purpúreas do mar de cristal do paraíso, ou se debatesse nas eternas labaredas do Inferno! Eu sou sua, e nem todos os deuses e todas as suas eternidades jamais serão capazes de nos separar!

Um grito partiu do posto da sentinela, na proa. Empurrando Bêlit para o lado, Conan levantou-se de um salto, com a espada erguida brilhando ao luar, os cabelos eriçados diante do que via. O guerreiro negro balançava sobre o convés, apoiado no que parecia ser um tronco de árvore macio e escuro, curvado sobre o parapeito. Então ele percebeu que se tratava de uma gigantesca serpente, que havia escorregado silenciosamente pela lateral do barco e agarrado o infeliz guerreiro em suas mandíbulas. Suas escamas encharcadas brilharam em sequência, iluminadas pelo luar de prata, no momento em que o monstro levantou sua parte anterior bem acima do convés, segurando a vítima que gritava e se debatia como um rato nas mandíbulas de uma sucuri. Conan correu para a proa brandindo sua pesada espada no ar, e quase conseguiu separar em dois pedaços o gigantesco tronco, cujo diâmetro era maior do que o do corpo de um homem. O parapeito do barco encheu-se de sangue quando o moribundo monstro balançou para longe, ainda segurando sua vítima, para mergulhar no rio, uma espiral após a outra, formando uma espuma ensanguentada sobre a água, na qual a serpente e o homem desapareceram juntos.

A partir desse momento Conan decidiu ficar ele próprio como sentinela, mas nenhum outro monstro apareceu das profundezas escuras do rio. Ao anunciar-se o amanhecer do dia, ele viu as pontas brancas de torres que se projetavam acima das árvores. Chamou Bêlit, que dormia no convés, enrolada na capa escarlate de Conan. Ela correu para seu lado, com os olhos vermelhos. A primeira coisa que fez foi gritar um par de ordens a seus guerreiros, no sentido de preparerem seus arcos e flechas. Então, os seus olhos apaixonados se arregalaram.

Foi apenas o fantasma de uma cidade que eles viram, quando passaram adiante de uma saliência do terreno, coberta por uma floresta espessa, e seu barco dirigiu-se para a pequena baía que se formava na praia. O mato e uma luxuriante grama do rio cresciam por entre as pedras dos pilares quebrados e das calçadas arrebentadas que, no passado, tinham sido ruas, praças espaçosas e amplos pátios. A floresta vinha de todos os lados, menos da direção do rio, escondendo colunas caídas e paredes desintegradas com uma densa e venenosa vegetação verde. Aqui e ali viam-se torres salientes, que pareciam cambalear inseguras em contraste com o céu brilhante da manhã, assim como pilares quebrados, sobressaindo-se entre as paredes em decomposição. No espaço central, uma pirâmide de mármore tinha no seu pináculo uma fina coluna, em cujo ponto mais alto estava sentada ou agachada alguma coisa que Conan imaginou ser uma imagem, até que sua vista aguçada conseguiu perceber que ela tinha vida.

— É um grande pássaro, — disse um dos guerreiros, em pé na proa.

— É um monstruoso morcego, — insistiu outro.

— Parece ser um macaco, — afirmou Bêlit.

Nesse instante a criatura abriu suas grandes asas e voou para o meio da floresta.

— Um macaco com asas, — disse nervoso o velho N’Yaga. — Teria sido melhor se tivéssemos cortado nossas próprias gargantas, ao invés de vir a este lugar. É assombrado.

Bêlit zombou das superstições do velho xamã e ordenou que o barco fosse levado para a praia e amarrado ao cais em ruínas. Ela foi a primeira a saltar à praia, seguida de perto por Conan.

Depois deles vieram em fila os piratas de pele negra, com seus enfeites de penas brancas ondulando sob a brisa da manhã, as lanças prontas para o combate e os olhos examinando cuidadosamente cada centímetro da floresta ao redor.

Em todo aquele cenário predominava um silêncio tão sinistro como o de uma serpente adormecida. Bêlit colocou-se em posição no meio das ruínas, e a vida vibrante de sua figura delicada formou um estranho contraste com a desolação e a decadência que havia ao seu redor. O sol ardeu devagar e mal-humorado sobre a floresta, inundando as torres com uma luz dourada e fraca que projetava sombras ao lado das paredes vacilantes. Bêlit apontou então para uma torre estreita que parecia cambalear sobre sua base apodrecida. Um amplo caminho de pedras rachadas, quase cobertas para a grama, levava até essa torre, cercada de colunas caídas. Na frente destacava-se um enorme altar. Bêlit correu por aquele caminho primitivo e parou diante do altar.

— Este era o templo dos antigos, — disse ela. — Veja: existem canais para o sangue ao longo das laterais do altar, e nem as chuvas de milhares de anos conseguiram lavar as manchas escuras que foram deixadas ali. Todas as paredes tombaram, mas este bloco de pedra ainda desafia o tempo e os elementos da natureza.

— Mas, quem eram os antigos? — perguntou Conan. Ela abriu as mãos indicando não saber explicar.

— Nem mesmo as lendas falam a respeito desta cidade. Mas, observe os buracos que parecem alças, dos dois lados do altar! Os sacerdotes costumam esconder os seus tesouros debaixo dos altares. Quatro de vocês agarrem a pedra e vejam se conseguem levantá-la.

Ela se afastou para lhes dar passagem, observando a torre que parecia cambalear acima do grupo. Três dos mais fortes guerreiros negros agarraram a pedra pelos buracos que tinha, e que pareciam inadequados para mãos humanas. Então Bêlit deu um salto para trás, com um grito estridente. Eles ficaram congelados nos seus lugares e Conan, que se curvara para ajudá-los, virou-se praguejando.

— Há uma cobra na grama, — disse ela, afastando-se. — Venha matá-la. Os outros continuem tentando erguer a pedra.

Conan veio depressa para junto dela, e outro guerreiro negro tomou o seu lugar. Enquanto ele procurava impacientemente pela serpente na grama, os gigantescos negros apoiaram seus pés, gemeram e fizeram força para cima, com seus tensos músculos de aço puxando forte sob a pele cor de ébano. O altar não se levantou do chão, mas girou de repente para um dos lados. Ao mesmo tempo ouviu-se no alto o barulho de pedra moendo, e a torre despencou, cobrindo os quatro homens negros com os restos quebrados de alvenaria.

Um grito de horror levantou-se dentre os outros guerreiros. Os dedos finos de Bêlit afundaram nos músculos dos braços de Conan. E ela sussurrou:

— Não vi serpente alguma. Foi um truque para chamar você para o meu lado. Eu fiquei com medo. Os antigos guardavam muito bem os seus tesouros. Vamos remover aquelas pedras.

Trabalhando sem parar eles removeram as pedras da torre caída e tiraram dali os corpos mutilados dos quatro homens. Por baixo deles, manchada com o seu sangue, os piratas encontraram uma cripta entalhada na rocha sólida. O altar, apoiado por um dos lados com hastes de pedra e encaixes, tinha sido usado como tampa. A primeira vista, a cripta parecia estar cheia até à boca com uma espécie de fogo líquido, resultado do reflexo da luz pálida do sol nascente sobre um milhão de facetas reluzentes. Uma riqueza incalculável surgia aos olhos dos boquiabertos piratas: brilhantes, rubis, jaspes, safiras, turquesas, pedras-da-lua, opalas, esmeraldas, ametistas, e outras tantas pedras desconhecidas que brilhavam como os olhos de mulheres malvadas. A cripta estava cheia até à boca com reluzentes pedras preciosas que o brilho do sol da manhã parecia transformar em chamas ardentes. Com um grito de surpresa Bêlit caiu de joelhos no meio do entulho manchado de sangue sobre a beirada da cripta, e enfiou os braços brancos até os ombros na quela pequena piscina de esplendor. Retirou-os logo depois, segurando alguma coisa que provocou outro grito de sua boca: uma longa carreira de pedras vermelhas que mais pareciam gotas de sangue congelado, enfileiradas em um grosso fio de ouro. Ao refletir a luz dourada do sol, seu brilho ficou ainda mais semelhante ao do sangue.

Os olhos de Bêlit eram como os de uma pessoa hipnotizada. A alma shemita deixa-se facilmente inebriar pela riqueza e o esplendor material, de maneira que a visão poderia ter sacudido a alma de qualquer imperador de Shushan.

— Retirem as jóias da cripta, seus cães vadios! — Sua voz era aguda e penetrante, por causa da emoção que sentia.

— Olhem! — Um musculoso braço negro apontou na direção do Tigresa e Bêlit virou-se de repente, com os dentes cerrados como se esperasse ver algum corsário rival atacando para saquear o que ela estava pilhando. Mas uma criatura negra levantou-se de cima da lateral do casco do navio, voando para o meio da floresta.

 

— O macaco-demônio estava investigando nosso navio, — resmungaram os negros, assustados.

— E o que importa isso? — respondeu Bêlit blasfemando, puxando e empurrando para o lado uma mecha rebelde dos cabelos, com a mão impaciente. — Façam uma maca com lanças e capotes para carregar estas pedras... Ei, onde é que você vai?

— Vou examinar o navio, — respondeu Conan. — Preciso verificar se aquele macaco voador não fez nenhum buraco no fundo do barco.

Ele correu pela superfície de pedras arrebentadas do cais e saltou para dentro da galera. Depois de um rápido exame da parte interna do casco ele praguejou com violência, lançando um olhar sombrio na direção da floresta onde desaparecera a criatura com aparência de morcego. Voltou depressa para o lado de Bêlit, que se ocupava de supervisionar a pilhagem da cripta. Ela colocara o colar ao redor do pescoço, e aquelas gotas vermelhas brilhavam de um modo estranho sobre o seu peito branco. Um enorme guerreiro negro estava enterrado quase até a cintura, dentro da cripta cheia de jóias, arrastando montes de pedras brilhantes com os dois braços, e depois passando-as para os outros. Pequenos pedaços de arco-íris escorregavam de suas mãos, cheias de reluzentes pedras de todas as cores. Era como um gigante negro, de pernas abertas, enterrado no fosso aceso do inferno, com as mãos erguidas, cheias de estrelas.

Ao voltar para junto do grupo, Conan disse:

Aquele demônio voador arrebentou os nossos barris de água potável. Se não estivéssemos tão hipnotizados por essas pedras nós teríamos ouvido o barulho. Foi tolice de nossa parte não deixar pelo menos uma sentinela a bordo. Não vamos poder beber da água do rio. Então vou escolher vinte homens e sair em busca de água fresca na floresta.

Bêlit olhou para ele casualmente, refletindo na expressão o ardor de sua estranha paixão pela riqueza, e esfregando com as pontas dos dedos as pedras do colar que usava.

— Está bem, — ela disse distraída, como se não tivesse entendido. — Tratarei de carregar o tesouro a bordo.

 

A floresta fechou-se depressa sobre eles, mudando a luz do sol, de dourada para cinzenta. Nos galhos curvados viam-se diversos tipos de trepadeiras que mais pareciam cobras dependuradas. Os guerreiros formavam fila única, rastejando pelo lusco-fusco primordial como fantasmas negros acompanhando um grande espírito branco.

A mata rasteira não era tão densa como Conan havia imaginado a princípio. O solo era bastante úmido, mas não estava encharcado. Longe do rio, a terra mostrava uma ligeira inclinação para cima. Eles foram penetrando cada vez mais nas profundezas verdes da floresta, sem encontrar sinal algum de água, em forma de regato ou de poça estagnada. De repente, Conan parou e seus guerreiros ficaram imóveis como estátuas de pedra. No tenso silêncio que se seguiu, o cimério balançava a cabeça com irritação.

— Passe com o grupo na minha frente, — ordenou a N’Gora, um dos sub-chefes dos piratas. — Caminhe em linha reta até que não possa me ver mais. Depois pare e espere por mim. Acho que estamos sendo seguidos. Ouvi alguma coisa lá atrás.

Os negros balançaram a cabeça, demonstrando nervosismo, mas obedeceram a ordem. Quando marcharam adiante, Conan escondeu-se depressa atrás do tronco de uma árvore enorme, com os olhos fixos no caminho por onde haviam passado. Esperava que qualquer coisa surgisse pela trilha, mas nada aconteceu. Os passos dos lanceiros marchando pela mata logo desapareceram na distância. Conan percebeu então que o próprio ar da floresta estava impregnado com um cheiro exótico e estranho. Alguma coisa tocou de leve em sua têmpora. Ele virou rápido. No meio de um ramalhete verde, alguns talos com umas folhas curiosas pareciam acenar para ele. Um daqueles talos o havia tocado. Era como se lhe fizessem sinais, curvando as hastes flexíveis na direção dele. Abriam-se e emitiam um tipo estranho de murmúrio, embora não houvesse vento.

Conan recuou, reconhecendo a lótus negra, cuja seiva era mortal e cujo aroma levava ao sono povoado de pesadelos. E já sentia uma sutil letargia apossando-se dos seus sentidos. Tentou apanhar a espada para cortar aquelas hastes diabólicas, mas seu braço parecia estar adormecido. Abriu a boca para gritar e pedir socorro aos guerreiros, mas só conseguiu produzir um sussurro. No instante seguinte, de um modo totalmente inesperado, a floresta balançou e escureceu diante dos seus olhos. Ele nem ouviu os gritos horríveis que explodiram ali perto, quando os seus joelhos se dobraram, deixando-o cair mole no chão. Acima de seu corpo inerte, as grandes hastes negras continuavam balançando no ar.

 

A princípio manifestara-se a escuridão do mais absoluto vazio, com os ventos gelados do espaço cósmico soprando sobre ela. Depois, formas vagas, monstruosas e esvanecentes, envoltas num panorama embaçado no meio da vastidão do nada, como se a escuridão estivesse assumindo formas materiais. Os ventos tinham soprado e formado um redemoinho, uma pirâmide giratória de escuridão barulhenta. Do meio dela haviam surgido a forma e a dimensão. De repente, como as nuvens dispersando-se no céu, a escuridão afastara-se para os lados e uma enorme cidade de pedras manchadas de um verde profundo aparecera à margem de um rio muito largo, que corria por uma planície ilimitada. Pelas ruas da cidade começaram a andar criaturas com uma aparência bastante estranha.

Embora tivessem uma vaga semelhança com seres humanos, não eram homens. Tinham asas, e sua estatura era fora do comum. Por certo não representavam um ramo da evolução que havia culminado no homem, mas um galho de uma árvore alienígena, separada e distante do ramo humano. Além de serem dotados de asas, sua única semelhança física com o homem poderia ser comparada com a semelhança entre o homem, plenamente desenvolvido, e os grandes macacos. Em sua condição espiritual, estética e intelectual, eram superiores ao homem, do mesmo modo que o homem é superior aos gorilas. Mas, no momento em que haviam construído sua colossal cidade, os ancestrais primitivos do homem ainda não tinham surgido do lodo dos mares primordiais.

Eram criaturas mortais, como todas as coisas feitas de carne e ossos. Viviam, amavam e morriam, embora a média de duração da vida individual fosse enorme. Então, depois de incontáveis milhões de anos, a grande mudança havia começado. Todo o quadro tremia e oscilava, como uma folha atirada ao vento. Sobre a cidade e a terra as eras tinham fluído como ondas sobre uma praia, e cada onda trouxera novas mudanças. Em algum ponto do planeta os centros magnéticos tinham sido deslocados. As grandes geleiras e os campos nevados foram retirando-se para os novos polos.

Fora alterado o curso do grande rio. As planícies haviam sido transformadas em pântanos repletos de vida réptil. Nos pontos onde se haviam formado férteis campinas, acabaram crescendo as matas, que logo tinham sido transformadas em densas florestas. As eras de mutação também tinham afetado os habitantes das cidades. Eles não migraram para terras virgens. Por razões inexplicáveis em termos humanos, haviam resolvido permanecer nas primitivas cidades para esperar pelo destino final. Assim, enquanto aquela terra antes rica e poderosa afundava cada vez mais na lama negra da mata sombria, o povo da cidade também mergulhava no caos da suja vida da floresta. Convulsões terríveis tinham sacudido a terra. As noites foram iluminadas pelas violentas explosões dos vulcões que formavam nos horizontes gigantescos pilares de lava incandescente.

Depois de um terremoto que derrubara as muralhas externas e as mais altas torres da cidade, transformando as águas do rio em uma enchurrada negra durante vários dias, com uma substância letal escapando das profundezas subterrâneas, uma pavorosa mudança química tornara-se aparente nas águas que as pessoas tinham bebido durante milhões e milhões de anos.

Muitos que beberam dela tinham encontrado a morte. Os que sobreviveram tiveram de passar por mudanças sutis, graduais e assustadoras. No processo de adaptação às novas condições, eles haviam baixado muito do seu nível original. Mas as águas letais os haviam transformado ainda mais profundamente, de geração para geração. Aqueles que tinham sido deuses alados, tinham-se tornado demônios incapazes de voar, com tudo o que restara dos vastos conhecimentos dos seus ancestrais sendo distorcido e pervertido para os horríveis propósitos do mal. Assim como haviam alcançado um nível muito mais elevado do que qualquer ser humano poderia sonhar, também acabaram mergulhando mais fundo do que jamais poderia ser visto nos piores e mais loucos pesadelos humanos. Morriam depressa, como resultado do canibalismo, e incessantes batalhas tinham sido travadas na escuridão da floresta sombria. Por fim, no meio das ruínas de sua cidade, encobertas pela mata, uma única criatura restara, uma decadente e horrível perversão da natureza.

Então, pela primeira vez, tinham aparecido os seres humanos. De pele escura e expressões selvagens, usando armaduras de cobre e de couro, carregando arcos, flechas e lanças: eram os guerreiros da Stygia pré-histórica. Somavam apenas cinquenta indivíduos, magros e esqueléticos por causa da fome e do esforço prolongado, arranhados e machucados por terem vagado pela floresta, o corpo coberto de bandagens ensanguentadas que davam testemunho de sua participação em violentas batalhas. Em suas mentes traziam histórias de guerras e derrotas, da fuga frente a uma tribo mais forte que os tinha forçado a ir cada vez mais para o sul, até que se haviam perdido no oceano verde da floresta e do rio escuro.

Exaustos, eles deitaram-se entre as ruínas, onde botões vermelhos que apareciam apenas uma vez a cada século dançavam sob a luz da lua cheia, e foram tomados pelo sono. Enquanto dormiam, uma criatura medonha rastejou das sombras, com os olhos muito vermelhos, e celebrou estranhos e horrorosos rituais ao redor e por cima deles, pintando a floresta com várias tonalidades das cores vermelha e preta. Por cima dos homens adormecidos os botões vermelhos brilhavam como grandes manchas de sangue. Aí a lua se escondeu, e os olhos do feiticeiro transformaram-se em perfeitas esferas vermelhas, como jóias contrastando com a negra es curidão da noite.

Quando a aurora espalhou o seu véu branco sobre o rio, já não haviam homens à vista. Apenas uma criatura horrorosa, peluda e alada, agachada no centro de um círculo de cinqüenta hienas pintadas, todas apontando os focinhos trêmulos para o céu e urrando como almas perdidas no inferno.

A partir desse momento, uma cena seguiu-se à outra, e com tamanha rapidez que cada uma parecia tropeçar nos calcanhares da anterior. Houve uma grande confusão de movimentos, uma mescla de luz e sombras frente ao cenário da floresta escura, das ruínas de rochas esverdeadas e do rio de águas sujas. Homens negros apareceram pelo rio, em longos barcos enfeitados com caveiras sorridentes na proa, ou estavam abaixados, escondidos no meio das árvores, de lança na mão. Na escuridão eles fugiram de um par de olhos vermelhos e presas ameaçadoras. Os horríveis berros de homens enfrentando a morte sacudiram as sombras. Passos silenciosos encheram as trevas, e um par de olhos de vampiro acendeu-se como duas brasas em pleno ar. Houve uma seqüência de horríveis banquetes à luz da lua, diante de cujo disco vermelho uma sombra semelhante à de um morcego flutuava sem cessar.

Mas, de repente, desenhada em claro contraste com essas imagens impressionistas, ao redor de uma colina coberta pela floresta, iluminada pela luz embranquecida da aurora, surgiu uma longa galera, apinhada de enormes figuras negras, lideradas por um gigante de pele branca e armadura de aço, em pé na proa.

Foi nesse instante que Conan percebeu que estava sonhando. Até aquele momento não tinha tido consciência de sua existência como indivíduo. Mas, ao ver sua própria imagem caminhando sobre o convés do Tigresa, ele reconheceu a existência e o sonho que vivia, muito embora não tivesse ainda despertado.

Ainda durante o sonho, a cena mudou rapidamente para uma clareira na floresta, onde N’Gora e dezenove outros lanceiros negros estavam parados, como se esperassem por alguém. Ao dar-se conta de que era por ele que esperavam, uma coisa horrorosa baixou do céu, e sua impassividade foi rompida por gritos de pavor.

Como homens enlouquecidos pelo medo, eles atiraram para longe as suas armas e correram desesperados pela floresta, seguidos de perto pela mostruosidade voadora que batia suas asas sobre eles.

O caos e a confusão seguiram-se a essa visão, durante a qual Conan fez um enorme esforço para despertar. Vagamente via a imagem de seu próprio corpo deitado sobre um ramalhete de flores negras, enquanto uma figura medonha vinha do meio dos arbustos, arrastando-se em sua direção. Com um esforço selvagem ele conseguiu romper os invisíveis laços que o mantinham preso ao seu sonho, e levantou-se de um salto.

Foi com um olhar desnorteado que procurou entender onde estava. Ao seu lado balançavam os ramos da lótus negra, que ele imediatamente afastou do rosto.

No solo úmido, não muito longe dele, viu uma pegada, como se um animal tivesse colocado a pata para fora dos arbustos para sair dali, recuando de novo para o esconderijo. Parecia a marca da pata de uma hiena incrivelmente grande.

Ele gritou o nome de N’Gora. O mais absoluto silêncio reinava sobre a floresta, fazendo seus gritos parecessem vazios e inseguros, como uma espécie de zombaria. Ele não conseguia ver o sol, mas sua longa experiência de vida nos espaços abertos indicava que o dia estava chegando ao fim. Ficou preocupado, quando pensou que tivesse ficado inconsciente durante muitas horas. Rapidamente procurou seguir a trilha deixada pelos lanceiros, que era bastante clara na terra úmida à sua frente. Os rastros seguiam em fila única, e não demorou para Conan chegar a uma clareira. Ali ele parou de repente, sentindo um calafrio na espinha ao reconhecer naquele lugar a clareira que tinha visto no pesadelo provocado pelo aroma envenenado da lótus negra. Escudos e lanças estavam espalhados por toda parte, atirados para longe no momento de uma fuga repentina.

Pelos rastros que levavam para fora da clareira, cada vez mais profundamente na floresta, Conan perce­beu que os lanceiros tinham fugido como loucos. As pegadas se sobrepunham umas às outras. Entrelaçavam-se sem rumo estabelecido entre as árvores. De maneira súbita o cimério saiu do meio da floresta e se viu diante de uma enorme rocha parecida com uma colina, bastante inclinada, que acabava de repente num precipício de mais de uma dezena de metros de altura. E havia alguma coisa agachada na beirada.

A princípio Conan pensou que fosse um enorme gorila. Observou então que era um gigantesco homem negro, agachado como um macaco, os longos braços pendurados, espumando pelos lábios entreabertos. Foi apenas quando a criatura levantou as grandes mãos, deu um grito que mais parecia um soluço e correu na direção dele, que Conan reconheceu a figura de N’Gora. O negro não deu atenção ao grito de Conan quando avançou com os olhos revirados para cima, os dentes arreganhados, o rosto semelhante a uma máscara inumana.

Com o corpo todo ar repiado pelo horror que uma cena maluca como aquela sempre inspira nas pessoas de mente sadia, Conan fez a espada atravessar o corpo do homem negro. Então, evitando as mãos em forma de gancho que tentavam agarrá-lo quando N’Gora tombou, ele foi até a beira do precipício.

Durante alguns instantes ficou olhando para as pedras lá embaixo, onde jaziam os homens de N’Gora, com expressões de dor e horror no rosto, indicando terem morrido com os membros arrebentados e os ossos quebrados. Não havia movimento algum entre eles. Uma nuvem de enormes moscas pretas pairava com um zumbido enlouquecedor sobre as pedras lavadas de sangue. As formigas já haviam começado a roer os cadáveres. Sobre as árvores amontoavam-se as aves de rapina, e um chacal, olhando para cima e vendo o homem sobre a rocha, afastou-se furtivamente da cena.

Por um curto espaço de tempo Conan ficou imóvel. Então, deu meia-volta e correu de volta pelo caminho de onde viera, saltando com muita pressa por entre o capim alto e os arbustos, afastando com os braços as trepadeiras espalhadas pelos galhos como serpentes. Brandia a espada na mão direita e seu rosto queimado pelo sol estampava uma palidez incomum.

O silêncio que reinava na floresta permanecia inviolado. O sol havia baixado no horizonte, e grandes sombras negras surgiam do lodo da terra escura. Entre as fantasmagóricas imagens da morte e da terrível desolação daquele lugar, Conan parecia um relâmpago de aço azul e capa vermelha. Nenhum som se ouvia na solidão da floresta, a não ser a sua própria respiração ofegante, quando ele saiu das sombras da mata para o fraco clarão do crepúsculo à beira do rio.

Ele viu a galera apoiada no ancoradouro destruído, assim como as ruínas que pareciam cambalear como homens bêbados no lusco-fusco cinzento.

Aqui e ali, entre as pedras, viam-se manchas de cores mais vivas, como se um pintor descuidado tivesse espalhado a tinta do pincel mergulhado no vermelho.

Uma vez mais Conan punha os olhos sobre a morte e a destruição. Diante dele jaziam os lanceiros, nenhum dos quais se levantou para saudá-lo. Havia corpos caídos desde a margem da floresta até a beira do rio, entre os pilares apodrecidos e ao longo do pier quebrado, dilacerados, mutilados e semidevorados, meras lembranças de homens.

Ao redor dos corpos e dos restos de homens viam-se dezenas de rastros, como os de patas de hienas.

Conan foi em silêncio até o cais, aproximando-se da galera sobre cujo convés parecia estar dependurada uma coisa que, à luz fraca do crepúsculo, tinha a brancura do marfim. O cimério perdeu a fala quando ergueu os olhos para a rainha da Costa Negra, enforcada no mastro princi pal de seu próprio navio. Entre o mastro e sua garganta estava esticada uma linha de gotas vermelhas que brilha vam como o sangue, no lusco-fusco do fim de tarde.

 

A floresta mais parecia um colosso escuro que mantinha a trágica clareira apertada em seus braços negros como o ébano. A lua não aparecera no céu. As estrelas, por sua vez, não passavam de pequenas manchas amareladas no céu de veludo negro, que tinha o desagradável cheiro da morte. Sobre a pirâmide erguida no meio das torres caídas, estava sentado Conan, o cimérío, como uma grande estátua de pedra, o queixo apoiado sobre os punhos fortes. No meio das sombras negras da escuridão, patas silenciosas marchavam de um lado para outro e olhos vermelhos reluziam. Os mortos permaneciam nos mesmos lugares onde haviam tombado. Mas, sobre o convés do Tigresa, numa pira feita com galhos quebrados, cabos de lanças e peles de leopardo, jazia o corpo da rainha da Costa Negra em seu derradeiro sono, envolto na capa escarlate de Conan. Jazia como uma verdadeira rainha, com as jóias que pilhara amontoadas ao seu lado: eram sedas, peças de ouro, fitas de prata, barris cheios de pedras preciosas, moedas de ouro, lingotes de prata, punhais cravejados de brilhantes e pequeninas pirâmides de quinas douradas.

Mas apenas as silenciosas águas do Zarkheba sabiam onde Conan tinha atirado, em um ritual de blasfêmias pagãs, o resto do tesouro pilhado da cidade maldita. Agora ele estava sentado ali, imóvel sobre a pirâmide, esperando por seus invisíveis inimigos. A fúria negra que se apossara de sua alma não deixava lugar para o medo. Ele não sabia que tipo de forma poderia surgir da escuridão. E tão pouco se importava.

Já não duvidava mais das visões proporcionadas pela lótus negra. Tinha entendido que, enquanto esperavam por ele na clareira, N’Gora e seus companheiros tinham sido atacados pelo monstro alado que viera das alturas e que, ao fugir dele em pânico, tinham caído no precipício. Todos menos o líder do grupo que, de alguma forma, conseguira escapar do mesmo destino, embora não tivesse podido evitar a loucura. Enquanto isso, ou logo depois, ou talvez mesmo antes, tinha sido perpetrada a destruição contra aqueles que se encontravam às margens do rio. Conan estava convencido de que a morte desse segundo grupo tinha sido um massacre, e não o resultado de uma batalha. Dominados por suas próprias superstições, os guerreiros negros provavelmente tinham morrido sem desfechar um golpe sequer em sua própria defesa, quando atacados pelos inimigos inumanos.

Conan não compreendia por que tinha sido poupado por tanto tempo, a menos que a maligna criatura que dominava o rio quisesse mantê-lo vivo para torturá-lo com a tristeza e o medo. Tudo indicava haver uma inteligência humana ou sobrehumana por trás daquela loucura: quando rompera os barris de água potável para provocar a divisão dos guerreiros, ao forçar os lanceiros negros a correr para o precipício e, por último, a atitude repugnante de amarrar o colar vermelho, como o nó de um carrasco, ao redor do pescoço branco de Bêlit.

Como se tivesse aparentemente guardado o cimério para o final, na categoria de vítima principal, e tendo extraído dele a última gota de tortura mental, era provável que o inimigo desconhecido concluiria o drama mandando-o pelo mesmo caminho das demais vítimas. Nenhuma sombra de sorriso apareceu nos lábios tristes de Conan quando ele teve esse pensamento, mas seus olhos acenderam-se em uma gargalhada implacá vel.

A lua apareceu no céu, fazendo brilhar o capacete metálico de Conan. Nenhum barulho provocou eco mas, de repente, a noite tornou-se tensa e toda a floresta pareceu prender a respiração. Instintivamente, Conan soltou o cordão de couro que prendia sua espada na bainha. A pirâmide sobre a qual estava era de quatro lados, e um desses lados, o que dava de fren te para a floresta, tinha de graus lapidados na rocha. Nas mãos ele tinha um arco shemita, como aqueles que Bêlit ensinara seus piratas a usar. A seus pés um monte de flechas, com a parte das penas voltada para o seu lado. O grande cimério apoiava-se sobre um dos joelhos, pronto para o combate.

Alguma coisa se moveu na escuridão, debaixo das árvores. Desenhada de repente à luz do luar, Conan viu uma cabeça e um par de ombros indefinidos, com um contorno irracional. Então, do meio das sombras, foram surgindo outras figuras escuras, rápidas, correndo junto ao solo: eram vinte grandes hienas pintadas. Vinham com as presas brilhando ao luar, os olhos irradiando um brilho mais inten so do que o de qualquer outro animal já visto.

Vinte: então as lanças dos piratas haviam provoca do perdas na matilha, afinal de contas. Enquanto este pensamento lhe passava pela cabeça, Conan puxou a corda do arco para trás e disparou a primeira flecha. Uma sombra de olhos ardentes saltou para o alto e tombou retorcida. As outras criaturas não pararam, mas continuaram avançando. Como uma chuva de morte as flechas de Conan caíam sobre eles, lançadas com toda a força e precisão dos seus nervos de aço, alimentados por um ódio tão quente como as correntezas de lava do inferno.

Apesar de sua fúria incontrolável ele não errava o alvo. O ar logo se impregnou da destruição provocada pelas flechas. A confusão gerada entre a matilha que avançava era intensa. Menos da metade das estranhas criaturas chegou aos pés da pirâmide. Outras tombaram diante dos largos degraus. De olhar fixo naqueles brilhantes pares de olhos ardentes, Conan sabia que as criaturas não eram animais selvagens. E não era apenas no seu tamanho extraordinário que ele percebia existir uma diferença flagrante. Elas projetavam uma aura tão visível como a névoa escura que subia do pântano forrado de cadáveres. Ele não conseguia adivinhar que tipo de alquimia pagã teria trazido aqueles bichos à existência, mas sabia que estava diante de algum tipo de magia mais diabólica do que qualquer uma encontrada no Livro de Skelos.

Colocando-se em pé, ele puxou com toda força a corda do arco e disparou sua última flecha, apontando para uma enorme criatura negra e peluda que voava por cima dele. A flecha parecia um raio de luar que lampejava como um relâmpago na direção de um alvo quase invisível na escuridão, mas a besta selvagem mergulhou convulsivamente no meio do céu e bateu de frente no chão, atravessada pela flecha.

Então as outras criaturas caíram sobre ele, num violento pesadelo de olhos ardentes e presas espumantes. Sua espada implacável derrubou a primeira, lançando-a para baixo. Mas o impacto desesperado das outras feras o derrubaram. Ele arrebentou o pequeno crânio de uma delas com o cabo da espada, tendo sentido o osso quebrar e o sangue e os miolos escorrendo por sua mão. Decidiu deixar cair a espada, inútil numa luta mortal a tão curta distância, e agarrou as gargantas de duas daquelas horrorosas criaturas, que mordiam e dilaceravam implacavelmente sua pele, com uma fúria silenciosa. Um fedor azedo quase o sufocou, e o próprio suor o deixou cego. Só a malha metálica impediu que seu corpo fosse cortado em tiras num instante. Em seguida, sua mão nua apertou sobre uma garganta peluda e a abriu ao meio. Sua mão esquerda, ao errar o bote sobre o outro pescoço, agarrou e quebrou uma das patas dianteiras da outra fera. Um latido curto, dado pela criatura de pata quebrada, foi o único ganido ouvido naquela batalha selvagem, e lembrava muito um grito humano. Horrorizado ao ouvir o ganido produzido pela garganta selvagem, Conan involuntariamente afrouxou o aperto dos seus dedos.

Uma das bestas, com o sangue jorrando de sua jugular cortada, deu um bote sobre ele, num derradeiro espasmo de ferocidade, e fincou as presas em sua garganta. Mas caiu morta no mesmo instante em que Conan sentia o corte provocado pela mordida.

A outra besta, saltando em três patas apenas, mordia sua barriga como um lobo feroz, desfazendo com as presas a malha metálica de sua armadura. Lançando-se ao lado do animal agonizante, Conan agarrou aquela coisa horrorosa e, com um esforço muscular tão grande que provocou um gemido de seus lábios manchados de sangue, ele se levantou com aquele demônio repugnante nos braços. Durante uma fração de segundo que ficou desequilibrado, a criatura lançou seu hálito fétido sobre suas narinas, e suas presas quase lhe alcançaram a garganta. Então, juntando todas as suas forças, arremessou a fera contra os degraus de mármore, e com tamanha violência que chegou a ouvir o barulho dos ossos ao se arrebentarem.

Quando vacilou sobre as pernas abertas, tentando recuperar o fôlego, tendo a floresta e a lua silenciosa diante dos olhos ensanguentados, Conan ouviu as batidas de asas de morcego bem perto da orelha. Abaixou-se e tateou em busca da espada. Encontrou-a e levantou-se de novo, procurando equilibrar o corpo extenuado, ao mesmo tempo em que agitava violentamente a espada sobre a cabeça com as duas mãos, sacudindo a cabeça para livrar-se do sangue que lhe cobria os olhos e procurando no ar pelo inimigo que o atacava.

Ao invés do esperado ataque pelo ar, o que sentiu foi a pirâmide balançando de repente debaixo dos seus pés. Ouviu o ruído surdo de pedras estalando e viu a alta coluna ao seu lado balançar como um arbusto ao vento. Apegado à idéia de continuar vivendo, ele saltou o mais longe possível. Seus pés atingiram um dos degraus, a meio caminho entre o cume e a base da pirâmide, e ele sentiu a rocha ceder sob o seu peso. O próximo salto desesperado o lançou para longe daquela estrutura de pedra. No mesmo instante em que seus calcanhares alcançaram o solo, a pirâmide desmoronou com um estrondo ensurdecedor, como uma montanha atingida por um terremoto. A coluna de pedra que havia sobre ela tombou em centenas de pedaços. Durante um instante cataclísmico o céu parecia derramar uma chuva de fragmentos de mármore. No momento seguinte, só se via a poeira que levantava do enorme monte de entulho, iluminada pelos raios brancos do luar.

Conan sacudiu o corpo, procurando livrar-se dos restos de mármore que o cobriam. Um golpe rápido e inesperado derrubara seu capacete e o deixara momentaneamente aturdido. Sobre suas pernas havia um grande pedaço da coluna, impedindo-o de mover-se. Ele suspeitou que poderia estar com as pernas quebradas. Seus cabelos negros estavam empastados com o suor. O sangue corria dos ferimentos que tinha na garganta e nas mãos. Puxou o corpo com um dos braços, lutando contra os escombros que o prendiam ao solo.

Nesse instante alguma coisa desceu dentre as estrelas e atingiu a grama perto dele. Torcendo o corpo ele viu, a criatura alada.

Com uma velocidade assustadora o monstro se lançava sobre ele, e naquele momento Conan só conseguiu ver uma enorme figura de aparência quase humana correndo sobre as pernas curtas e curvadas. E enxergou os longos e peludos braços estendidos, deformados, terminando em garras muito escuras. Observou a cabeça disforme, em cuja cara larga só conseguiu ver um par de olhos vermelhos como sangue. Aquela coisa não era homem, nem animal e nem demônio, mas demonstrava ser dotada de características sub-humanas, assim como sobre-humanas.

Mas Conan não tinha tempo para raciocinar de maneira consciente. Atirou o corpo na direção da espada caída, e faltaram uns poucos centímetros para que os dedos alcançassem a arma. Desesperado, ele agarrou o fragmento de rocha que lhe prendia as pernas. As veias incharam em suas têmporas, com o esforço que fez para livrar-se. A pedra cedia devagar, mas ele sabia que, antes de poder libertar-se, o monstro o alcançaria. E também sabia que aquelas garras afiadas traziam a morte consigo.

A corrida do monstro alado não diminuiu. Já se erguia sobre o prostrado cimério como uma sombra negra, com os longos braços abertos. E um fraco raio branco se interpôs entre a criatura e sua vítima.

Durante um único instante ela esteve ali, uma figura branca e nervosa, vibrando com uma paixão tão intensa como a de uma pantera selvagem. O aturdido cimério a viu na frente do monstro assassino, sua imagem pálida e trêmula iluminada pelo luar. Viu o esplendor dos seus olhos negros, e o brilho cheio dos seus cabelos polidos. Seus seios eram firmes, e seus lábios entreabertos soltavam gritos estridentes que ressoavam como o aço enquanto ela se lançava contra o peito do monstro alado.

— Bêlit! — gritou Conan. Ela lançou um rápido olhar na sua direção e ele viu o amor intenso que ardia no seus olhos negros, uma sensação elementar de fogo puro e lava derretida. Então ela desapareceu, e o cimério só viu o demônio alado que cambaleava para trás dominado pelo medo, com os braços erguidos diante do rosto como se procurasse se defender do ataque. Ele sabia que o corpo de Bêlit jazia em sua pira, no convés do Tigresa. Nos seus ouvidos ecoava a promessa apaixonada:

“Se eu estivesse imóvel na morte e você lutando pela vida, eu voltaria do abismo para ajudá-lo”.

Com um grito horrível ele levantou-se, arremessando a pedra para o lado. O monstro alado renovou o seu ataque, e Conan saltou para enfrentá-lo, com as veias ardendo de loucura. Os músculos retesaram-se como cordões em seu braço quando ele levantou a grande espada, pivoteando nos calcanhares com a força do movimento. A espada atingiu o corpo cabeludo do monstro na altura da cintura, cortando-o em dois pedaços: as pernas curtas tombaram para um lado, enquanto o tronco caía para o outro.

Conan ficou parado no meio do silêncio do luar, a espada ainda ensangüentada em sua mão, olhando firme para o que restava de seu inimigo. Os arregalados olhos vermelhos estavam fixos nele e pareciam ainda ter vida. Instantes depois, mostravam a expressão vidrada da morte. As grandes mãos estendidas estavam duras como pedra. E a mais antiga raça da face da terra acabava de ser extinta.

Conan ergueu a cabeça, procurando mecanicamente pelas estranhas criaturas que haviam sido escravos e carrascos daquele monstro. Não encontrou uma sequer. Os corpos que ele viu sobre a grama, iluminados pelo brilho prateado do luar, eram de homens, não de animais. Homens de pele escura, expressões endurecidas, nus, trespassados por flechas ou dilacerados por golpes de espada. E estavam se transfor mando em pó, bem diante dos seus olhos.

Por que não teria o monstro alado socorrido os seus escravos quando Conan lutara contra eles? Teria fica do com medo do ataque das presas que poderiam atingi-lo? Nem toda a destreza e o cuidado que haviam orientado o raciocínio daquela cabeça disforme tinham adiantado muito no final.

Virando as costas para aquele cenário de morte, Conan caminhou na direção das ruínas do cais e subiu a bordo do navio. Com alguns golpes da espada ele cortou as amarras e foi para o leme. O Tigresa balançou devagar sobre as águas silenciosas, escorregando na direção do meio do rio, até que a correnteza o alcançou. Conan segurou firme no leme, com o olhar sombrio fixo no corpo envolto em sua capa escarlate, que jazia sobre a pira, e cuja riqueza era semelhante ao resgate de uma imperatriz.

 

Aurora tingiu de novo o oceano. Um brilho mais avermelhado iluminava a foz do rio. Conan da Ciméria apoiou o corpo sobre sua grande espada, na praia de areias brancas, observando o Tigresa que partia em sua derradeira viagem. Não havia brilho nos seus olhos, que contemplavam as ondas preguiçosas. Toda glória e alegria desaparecera daquela vastidão azul. Uma feroz revolta tomou conta dele quando olhou para as cristas esverdeadas das ondas, que se transformavam em manchas purpúreas de mistério.

Bêlit tinha pertencido ao mar. Ela atribuíra esplendor e fascínio ao oceano. Sem ela, as águas nada mais eram do que uma vastidão deserta, lúgubre e desolada, de um polo ao outro. Ela pertencia ao mar. E ele a devolvia aos mistérios eternos dos oceanos. Nada mais poderia fazer. Para si mesmo, o esplendor azul da água era agora mais repelente do que as árvores frondosas que sussurravam e pareciam confidenciar lá atrás, falando das vastidões misteriosas e selvagens que representavam, e nas quais ele tinha de entrar.

Ninguém segurava o leme do Tigresa, nenhum remo impulsionava o barco pelas águas verdes. Mas uma brisa forte enchia sua vela de seda. Assim, como um gigantesco cisne que corta os céus em direção ao seu ninho, a galera alcançava o mar alto, com as chamas erguendo-se cada vez mais sobre o convés, lambendo o mastro e envolvendo a figura que jazia enrolada na capa escarlate sobre a pira ardente.

E assim se foi a rainha da Costa Negra. Com o corpo apoiado sobre sua espada ainda manchada de sangue, Conan ali ficou em silêncio, até o clarão vermelho desaparecer no meio da névoa azulada e a aurora trazer de volta o seu brilho dourado sobre o oceano.

 

Além dos desertos nunca trilhados da Stygia encontravam-se as vastas pradarias de Kush. Por mais de cem léguas não se via coisa alguma, além de intermináveis extensões de terra forrada de grama alta. Aqui e ali havia uma ou outra árvore solitária, quebrando a monótona ondulação da savana: acácias de espinho, dracenas de folha em espada, lobélias-esmeralda e poinsétias venenosas. De vez em quando a pradaria era atravessada por um córrego em seu leito pouco profundo, regando uma estreita galeria de árvores às suas margens. Manadas de zebras, antílopes, búfalos e outras criaturas nativas das savanas perambulavam através das imensas pradarias, pastando ao mesmo tempo.

A grama assobiava e dançava ao vento, sob um céu de profundo cobalto em que brilhava intensamente o ardente sol tropical. De vez em quando uma nuvem fervia, lançando trovões e relâmpagos durante rápidas tempestades de catastrófica fúria, que morriam e desapareciam com a mesma velocidade com a qual se haviam formado.

Através dessa vastidão sem limites, marchava uma criatura solitária e silenciosa. Era um jovem gigante, de físico avantajado e músculos arredondados que mantinham esticada a pele queimada do sol, marcada pelos traços esbranquiçados de ferimentos antigos. Tinha os ombros largos, o peito fundo e longos braços e pernas. Sua escassa vestimenta, composta apenas de uma tanga e sandálias, revelava toda a beleza de seu físico magnífico. Suas costas, seus ombros e seu peito eram quase tão queimados como a pele dos nativos daquela terra.

As mechas confusas de uma cabeleira negra, espessa e mal cuidada, emolduravam um rosto severo e indiferente. Sob a testa franzida e as sobrancelhas pretas e espessas, dois ferozes olhos de um azul ardente vagavam sem descanso de um lado para o outro, enquanto ele marchava com passos flexíveis e constantes pela planície sem fim. Seu olhar alerta penetrava os arbustos espessos à sua volta, e refletiam o vermelho intenso do crepúsculo. A noite não demoraria a cair sobre Kush. Sob as trevas de suas asas escuras, o perigo e a morte não demorariam a rondar aquela vastidão.

No entanto, o solitário viajante, Conan, da Ciméria, não tinha medo. Era o bárbaro dos bárbaros, nascido nas colinas inóspitas da distante Ciméria, dono de uma resistência férrea e de uma feroz vitalidade que lhe garantiam a sobrevivência em qualquer lugar onde pereceria em poucas horas qualquer homem civilizado, mesmo que fosse melhor educado, mais atencioso e mais sofisticado do que ele. Embora esse viajante tivesse caminhado a pé durante oito dias, sem outro alimento a não ser a caça que havia conseguido matar com o grande arco bamula que levava nas costas, não estava sequer perto dos limites de sua resistência.

Conan estava há muito acostumado à vida severa e rigorosa de lugares remotos como aquele. Apesar de ter sentido o gosto do preguiçoso luxo e conforto do mundo civilizado, em metade das mais sofisticadas cidades de sua época, ele não sentia saudade alguma desse tipo de vida. E continuava caminhando rumo ao horizonte distante, agora obscurecido por um profundo clarão purpúreo.

Atrás dele haviam ficado as densas florestas das terras negras além de Kush, onde fantásticos canteiros de orquídeas fulguravam em meio às folhagens de um verde muito escuro, e onde ferozes tribos nativas mal conseguiam forjar sua sobrevivência nas matas quentes, cujas trilhas sombrias tinham seu silêncio quebrado apenas pelos ressonantes rugidos do leopardo, os grunhidos do porco selvagem, o estridente trombetear do elefante ou o repentino grito de um macaco. Durante mais de um ano Conan tinha vivido ali, como chefe guerreiro da poderosa tribo dos bamula. Com o passar do tempo, os astutos sacerdotes negros, invejosos de sua rápida ascensão ao poder e ofendidos por sua indisfarçada indiferença frente aos seus deuses sedentos de sangue, e em relação aos seus cruéis e sanguinários rituais, tinham envenenado a mente dos guerreiros bamula para se levantarem contra o seu líder de pele branca.

Uma série de catástrofes precipitara os acontecimentos. As tribos da floresta vinham passando por um longo e interminável período de violenta seca. Com a constante queda do nível dos rios e o desaparecimento da maior parte dos bebedouros naturais, irrompera uma guerra selvagem entre as tribos negras, que procuravam valer-se da força para garantir a posse sobre as poucas fontes de água que ainda restavam. Aldeias inteiras tinham sido queimadas, seus habitantes chacinados e seus corpos abandonados no lugar onde caíam. Depois, no ponto mais alto da seca, da fome e da guerra, irrompera a peste sobre toda aquela terra.

As maliciosas línguas dos astutos sacerdotes tinham atribuído a autoria daquelas desgraças a Conan. Haviam afirmado que ele provocara a vinda de todos esses desastres sobre os bamula. Segundo os sacerdotes, os deuses estavam irados pelo fato de um estrangeiro de pele branca ter usurpado o trono de uma longa linhagem de chefes bamula. Tinham insistido em dizer que Conan precisava ser torturado e morto através de mil tormentos diferentes, sobre os altares dos deuses-demônios da floresta, para evitar que todo o povo perecesse.

Por não gostar da idéia de um destino tão sombrio, Conan não demorara a dar sua rápida e devastadora resposta. Um golpe de sua grande e pesada espada de aço tinha atravessado o corpo do sumo sacerdote. Depois, ele derrubara sobre os outros xâmanes o grande ídolo de madeira manchada de sangue que os bamula adoravam, e fugira para a escuridão da floresta vizinha. Tinha aberto seu próprio caminho a pé, andando por muitas e cansativas léguas em direção ao norte, até chegar à região onde a densa floresta ia desaparecendo aos poucos para dar lugar à savana aberta. Sua intenção agora era atravessar toda aquela planície a pé e chegar ao reino de Kush, onde sua força bárbara e o peso de sua espada poderiam garantir-lhe emprego a serviço dos sombrios monarcas daquela terra primitiva.

De repente, seus pensamentos foram arrebatados da contemplação do passado para a tensão do perigo. Algum instinto primitivo de sobrevivência o alertava sobre a possibilidade de estar correndo risco de vida. Ele parou e olhou em volta, examinando cada uma das longas sombras lançadas pelo clarão do sol poente. Com os pelos da nuca arrepiados pela sensação de uma ameaça invisível, o gigante bárbaro procurava farejar o ar com suas sensíveis narinas, varrendo a escuridão com os olhos ardentes. Embora não conseguisse ver nem cheirar coisa alguma, a misteriosa sensação de perigo que o envolvia dizia-lhe que o perigo não estava longe. Ele podia sentir o toque delicado de olhos invisíveis, e virou depressa para observar melhor um par de enormes globos que brilhavam na escuridão.

No mesmo instante aqueles olhos estranhos desapareceram. Tinha sido tão rápida a visão e tão repentina a sua fuga que Conan chegou a pensar que talvez fosse apenas um truque de sua imaginação. Ele virou e continuou a andar, mas agora tinha todos os sentidos em alerta. Enquanto continuava sua viagem, abriam-se de novo os olhos ardentes escondidos entre as sombras do capim alto, seguindo sua solitária caminhada. Figuras amareladas e sinuosas deslizavam atrás dele, sobre patas silenciosas. Os leões de Kush estavam no seu encalço, cobiçando seu sangue quente e sua carne fresca.

 

Uma hora mais tarde a noite havia caído sobre a savana, exceto por uma estreita faixa em que o sol brilhava no céu ocidental, destacando em alguns pontos as silhuetas negras de uma ou outra árvore pequena e insignificante. E Conan começava a chegar perto dos limites de sua resistência. Três vezes as leoas haviam chegado bem perto dele, dentre as sombras da direita ou da esquerda. Três vezes ele havia conseguido livrar-se delas lançando na direção dos animais as suas flechas mortais. Embora fosse muito difícil fazer pontaria naquela escuridão, os berros explosivos dos grandes gatos lhe tinham dito, três vezes seguidas, que ele conseguira acertar. Mas não tinha como saber se havia matado ou apenas ferido os mortais predadores.

Mas a sua aljava agora estava vazia, e ele sabia que era apenas uma questão de tempo até que os silenciosos caçadores se abatessem sobre ele. Havia uns oito ou dez leões na sua pista, e mesmo o austero bárbaro sentia uma pontada de desespero. Ainda que sua poderosa espada conseguisse derrubar um ou dois dos animais, os outros acabariam por dilacerar seu corpo em ensanguentados pedaços antes que ele conseguisse fazer mais vítimas. Conan já havia enfrentado leões antes, e conhecia a sua enorme força, que lhes permitia derrubar e arrastar uma zebra inteira, com a mesma facilidade que um gato arrasta um ratinho morto. Embora Conan fosse um dos homens mais fortes de seu tempo, bastaria que um leão o golpeasse com uma patada e fincasse nele as suas presas para que toda a sua força fosse menos eficiente do que a de uma criancinha.

Conan continuou correndo. Já fazia quase uma hora que corria, com passos bastante largos que lhe permitiam engolir as distâncias. A princípio tinha conseguido correr sem muito esforço, mas agora já começava a sentir o peso horrível da fuga que empreendera através das florestas sombrias, e dos oito dias de caminhada por aquela planície interminável. Sua vista ficou embaçada e sentiu dores nos músculos das pernas. Cada batida de seu coração agitado parecia roubar a energia que ainda restava naquele corpo gigantesco.

Ele implorou aos seus deuses selvagens que fizessem a lua aparecer de trás das densas e tempestuosas nuvens que cobriam a maior parte do céu. Implorou que surgisse alguma colina ou árvore pelo caminho para romper a monotonia do terreno plano, ou que aparecesse ao menos uma rocha onde pudesse encostar para defender-se com a honra de um guerreiro durante o ataque mortal que estava para enfrentar.

Mas os deuses não escutaram. As únicas árvores que havia por ali eram pequenas demais, não passavam de arbustos espinhosos que se erguiam a uma altura de pouco mais de dois metros, abrindo então os seus galhos para os lados, como gigantescos cogumelos. Se ele conseguisse subir numa dessas árvores, apesar dos espinhos, seria presa fácil dos leões que, chegando à base da planta, poderiam saltar com facilidade e derrubá-lo de lá. As únicas elevações que havia no terreno eram ninhos de cupim, alguns com mais de um metro de altura, mas inúteis como recurso de defesa. Nada mais ele podia fazer, além de continuar correndo.

Para facilitar um pouco as coisas, tinha deixado cair o grande arco de caça, que se tornara inútil depois de ter lançado sua última flecha, embora lhe doesse o coração ter de jogar fora uma arma esplêndida como aquela. Logo depois livrara-se da aljava e das correias. Agora só carregava a tanga de pele de leopardo que lhe servia de roupa, as sandálias de longas tiras que protegiam seus pés, o saco de pele de cabra cheio d’água e a pesada espada, que levava numa das mãos, guardada na bainha. Largar de qualquer dessas coisas seria o mesmo que abandonar sua última esperança.

Os leões estavam quase nos seus calcanhares. O cimério já conseguia sentir o cheiro forte dos seus corpos ágeis, e ouvir a respiração ofegante dos animais. A qualquer momento saltariam sobre ele, e Conan teria de lutar sua última batalha em busca da sobrevivência, antes que os leões o derrotassem.

Esperava que seus perseguidores repetissem as mesmas táticas milenares desses animais. O mais velho dos machos, chefe do grupo, seguiria imediatamente atrás dele, com os machos mais jovens formando colunas dos dois lados. As leoas mais rápidas correriam adiante para formar um círculo e fechar sobre ele. Então, todos atacariam juntos, sem lhe deixar qualquer possibilidade de defesa.

De repente, toda a planície se encheu de luz. A grande e prateada bola da lua iluminou a terra, banhando a figura cansada do gigante bárbaro com o seu brilho, desenhando pálidas linhas de prata sobre os tendões dos animais que saltavam na direção dos calcanhares do fugitivo, lavando seus pelos curtos e sedosos com aquele fulgor cadavérico.

Com seu olhar alerta Conan observou o brilho do luar incidindo sobre uma pele amarelada que corria à sua esquerda, e então percebeu que o círculo da morte estava quase completo. Mas, quando já se preparava para enfrentar o ataque, levou enorme susto ao ver a mesma leoa desviar do seu curso e parar de repente. Com dois passos largos ele passou pelo animal. E notou que a jovem leoa que corria do lado direito também tinha parado. Estava imóvel, agachada sobre a grama, com a cauda chicoteando no ar. Um som curioso vinha de suas mandíbulas arreganhadas, metade urro e metade lamento.

Conan teve a coragem de desacelerar em sua corrida e olhar para trás. Para sua grande surpresa, viu que todo o bando tinha parado, como se tivesse chegado a uma barreira invisível. Os leões estavam todos na mesma linha, com as presas brilhando como prata ao luar. De suas gargantas saíam urros poderosos, cheios de ira e perplexidade.

Os olhos de Conan quase desapareceram debaixo de suas sobrancelhas, que se curvaram de admiração. O que teria feito o bando parar justo no momento em que sua presa estava cercada? Que força invisível teria anulado a fúria da perseguição? Ele parou por um momento, observando os animais, com a espada na mão, curioso em saber se pretendiam voltar à carga. Mas os leões permaneceram onde estavam, urrando e rosnando, com a saliva pingando das mandíbulas.

Foi então que Conan observou uma coisa curiosa. A linha onde os leões haviam parado parecia representar uma demarcação de área na planície. Do lado de lá a relva crescia espessa e viçosa A partir da fronteira invisível, no entanto, o capim era ralo, curto e desnutrido, com largas manchas de terra limpa. Embora não lhe fosse possível distinguir as cores sob a luz fraca do luar, parecia que o capim da parte interna da linha não tinha o verde normal do restante da relva. Ao invés disso, parecia um capim seco e cinzento, como se não tivesse vitalidade alguma.

Examinando melhor a planície iluminada pelo luar, ele notou que a área de capim morto estendia-se para longe, como se ele estivesse sozinho dentro de um vasto círculo de morte e destruição.

 

Embora ainda estivesse extenuado, com os músculos doloridos, a rápida parada tinha-lhe devolvido suficiente energia para continuar a jornada. Como desconhecia a natureza da linha invisível que havia feito os leões desistirem da caçada, não sabia até quando os animais se deixariam influenciar por aquela estranha fronteira. Portanto, achou melhor aumentar tanto quanto possível a distância que o separava do bando de feras famintas.

Logo ele viu uma enorme massa tomar forma na obscuridade adiante. Prosseguiu ainda mais alerta do que antes, com a espada na mão e os olhos vasculhando a imensidade enevoada da vasta planície. O luar ainda brilhava, mas a claridade não era a mesma à distância, parecendo ser bloqueada por uma neblina espessa. A princípio Conan não conseguiu definir a massa escura e indistinta que se erguia da planície à sua frente, a não ser por seu tamanho e pelo fato de estar imóvel. Talvez fosse o colossal ídolo de um primitivo culto de adoração ao demônio, lavrado numa montanha ou talhado na pedra negra por alguma raça desconhecida na aurora dos tempos. E a massa escura permanecia abaixada, imóvel, no meio do capim morto.

Quando Conan se aproximou, ficaram mais claros os detalhes da enorme mancha escura. Ele viu que se tratava de um grande edifício erguido na planície de Kush, e que estava parcialmente em ruínas, uma colossal estrutura levantada por mãos desconhecidas, para algum propósito ignorado. Tinha a aparência de um castelo ou fortaleza, mas Conan jamais vira uma construção com aquelas características. Erguido com densas pedras negras, o prédio tinha uma fachada complexa de pilares, terraços e vigias, e tudo estava fora de alinhamento. Chegava a confundir a vista. Seu olhar seguiu por curvas alucinantes que pareciam ligeiramente erradas, distorcidas. A enorme estrutura dava a impressão de uma caótica falta de ordem, como se os seus construtores não fossem muito certos da cabeça.

Conan afastou os olhos das vertiginosas curvas daquela massa disforme de alvenaria, cuja mera visão era o bastante para deixá-lo tonto. Achava que podia, por fim, entender por que os leões da savana evitavam aquela estranha estrutura. De certo modo a fortaleza parecia transmitir uma aura de ameaça e terror. Talvez, durante os milênios em que aquela cidadela negra estivera sobre a planície, os animais tivessem aprendido a receá-la e a evitar suas sombrias redondezas, de modo que esse hábito de evitar o lugar tivesse se tornado instintivo para eles.

A lua desapareceu de repente, escondida por espessas nuvens de tempestade. Conan ouviu o clamor dos trovões à distância, e viu o fulgor momentâneo dos relâmpagos no meio das altas camadas de nuvens negras. Outra das rápidas e violentas tempestades de verão que ele já conhecia estava a ponto de cair sobre a savana.

Conan vacilou. Por um lado, a curiosidade e a busca por um abrigo da tempestade que se aproximava o atraíam para a fortaleza em ruínas. Por outro, sua mente de bárbaro alimentava uma profunda aversão pelo sobrenatural. Ele não temia qualquer coisa terrena ou mortal, podendo-se considerar até precipitado neste aspecto. Mas os perigos do outro mundo tinham o estranho poder de fazer com que sentisse arrepios na espinha e pânico nos nervos. E alguma coisa naquela estrutura misteriosa parecia fazer alusão ao sobrenatural. Ele podia quase sentir a ameaça, nos pontos mais profundos de sua consciência.

O clamor forte dos trovões que se aproximavam o levou a uma decisão. Com enorme esforço de controle sobre os próprios nervos, ele caminhou confiante na direção do escuro portal e, de espada em punho, desapareceu lá dentro.

 

Conan perambulou por toda a extensão do pátio cercado por altas paredes de pedra, sem ter encontrado qualquer criatura viva. O piso escuro estava coberto de poeira e folhas mortas. Lixo deteriorado amontoava-se nos cantos e ao redor das bases das altas colunas de pedra. Fosse qual fosse a idade daquela estranha estrutura, uma coisa era evidente: nenhum ser vivo devia ter entrado ali durante séculos.

O pátio, revelado por outra breve aparição da lua, tinha dois andares. O segundo piso era rodeado por uma sacada de balaústres. Curioso, querendo penetrar mais fundo nos mistérios daquela enigmática estrutura que se erguia na planície, muitas léguas distante de qualquer outro edifício de pedra, Conan andou pelos corredores, que davam voltas como os rastros de uma serpente. E enfiou-se por câmaras cobertas de poeira, cuja finalidade não conseguia sequer adivinhar.

O castelo tinha dimensões assustadoras, mesmo para uma pessoa como ele, que já vira o templo do deus-aranha, em Yezud, Zamora, e o palácio do rei Yildiz, em Aghrapur, Turan. Uma boa parte daquela cidadela, toda uma ala do edifício, na verdade, tinha-se transformado em uma massa indistinta de blocos caídos. Mesmo assim, a parte que permanecera intacta era o maior prédio que Conan jamais vira no mundo. Sua idade era impossível de adivinhar. O ônix negro que servira de material para a construção do castelo era diferente de qualquer pedra que Conan encontrara naquela parte do mundo. Devia ter sido transportada de muito longe. Mas ele não conseguiu sequer imaginar porquê.

Algumas das características da esquisita arquitetura do prédio trouxeram-lhe à lembrança as primitivas sepulturas que vira em Zamora. Outras sugeriam os templos proibidos que encontrara na distante Hirkânia, na época em que servira como mercenário junto aos turanianos. Mas não sabia dizer se o castelo negro teria sido levantado como sepultura, fortaleza, palácio ou templo, ou se teria todas essas finalidades combinadas numa só.

Além de tudo, havia um certo aspecto alienígena no castelo que o deixava ainda menos à vontade. Assim como a fachada parecia ter sido construída de acordo com as regras de alguma geometria alienígena, o interior também era dotado de características muito confusas. Os degraus das escadas, por exemplo, eram muito mais largos e rasos do que o necessário para pés humanos. As portas eram altas e estreitas demais, de modo que Conan tinha de se virar de lado para poder passar por elas.

As paredes eram esculpidas em baixo relevo com arabescos geométricos, espirala-dos, de uma complexidade quase hipnótica. Conan descobriu que tinha de fazer força para afastar a vista das esculturas na parede, ou sua mente acabaria como presa dos símbolos crípticos formados pelas linhas retorcidas.

Na verdade, tudo que havia naquele estranho e confuso enigma de pedra trazia a imagem de serpentes à mente de Conan: os corredores em curva, a decoração retorcida e até mesmo o leve cheiro de almíscar e de ofídios.

Conan parou, com as sobrancelhas cerradas. Teria aquela desconhecida ruína sido erguida pelos homens-serpente da primitiva Valusia? Os tempos daquele povo pré-humano permaneciam como um intervalo obscuro no passado, anterior ao surgimento do próprio homem, nos apagados momentos do tempo em que os gigantescos répteis dominavam a terra. Os homens-serpente poderiam ter reinado antes do surgimento dos Sete Impérios, nos dias anteriores ao cataclismo, ou mesmo antes da Atlântida ter surgido das profundezas do Oceano Ocidental. Eles haviam desaparecido muito antes do nascimento do primeiro homem, mas não completamente.

Junto às fogueiras dos acampamentos montados nas inóspitas colinas da Ciméria, e também nos pátios de mármore dos tempos da Nemédia, Conan tinha ouvido a lenda de Kull, o rei atlante da Valusia. Os homens-serpente tinham sobrevivido aqui e ali, graças à sua magia, que lhes permitia aparecer aos outros como seres humanos comuns. Mas Kull tinha descoberto o segredo e conseguira limpar o seu reino de todos os vestígios dessas criaturas, destruindo-as pela força das espadas e do fogo.

Portanto, não seria aquele castelo negro, com sua arquitetura alienígena, uma relíquia dos remotos tempos em que os homens disputavam o domínio do planeta com aqueles répteis sobreviventes de eras perdidas no tempo?

 

A primeira tempestade não atingiu o castelo negro. Apenas um leve chuvisqueiro chegou às ruínas, derramando pingos pelas goteiras no telhado. Aí os relâmpagos e os trovões diminuíram de intensidade e a tempestade desviou para oeste, permitindo que a lua brilhasse de novo, sem qualquer obstrução, pelos buracos entre as pedras. Mas outras tempestades se formaram, rugindo e piscando a partir do oriente.

Conan dormiu inquieto num canto da sacada acima do grande pátio, virando para um lado e para outro como um animal alerta que sente sinais da aproximação do perigo. Por uma questão de cautela ele decidira não dormir no pátio, diante das portas escancaradas. Ainda que o círculo da morte parecesse afastar as feras das planicies, ele não confiava muito na estranha força que impedira os leões de continuar na sua perseguição.

Uma dúzia de vezes ele despertou, procurando pela espada e varrendo com o olhar as sombras ao redor, tentando encontrar qualquer coisa que o pudesse ter feito acordar. Uma dúzia de vezes nada viu na vasta escuridão do antigo edifício em ruínas. Todas as vezes que isso acontecia, ele voltava a se compor para o sono, mas sentia as sombras fracas que se agrupavam ao seu redor e parecia ouvir o som de vozes sussurrando por perto.

Resmungando uma blasfêmia aos seus deuses bárbaros, o cimério amaldiçoou todas aquelas sombras e ecos, mandando-os para as profundezas mais quentes do inferno de sua mitologia, e recostou-se uma vez mais, tentando conciliar o sono. Acabou adormecendo profundamente. E foi então que teve um sonho muito estranho.

Parecia que, apesar de seu corpo estar adormecido, seu espírito havia despertado e mantinha-se alerta. Para os olhos imateriais do seu ka, que era o nome que os estígios davam à alma, a escura sacada estava repleta de um clarão fraco de luz avermelhada, procedente de uma fonte invisível. Não era a luz prateada da lua, que continuava lançando seus raios oblíquos pelo pátio, através dos buracos nas pedras das paredes, nem o pálido fulgor dos distantes relâmpagos. À luz daquela luz avermelhada Conan conseguia ver sombras flutuantes, que voavam com a rapidez de morcegos entre as colunas de mármore preto. E as sombras tinham olhos penetrantes, repletos de uma ânsia insensata. As sombras sussurravam, numa confusão de risadas de zombaria e gritos bestiais.

De algum modo o espírito de Conan sabia que aquelas sombras murmurantes eram os fantasmas de milhares de seres conscientes, que haviam morrido dentro daquela primitiva estrutura. Não entendia como podia saber disso mas, para seu ka, os fatos eram claros. Os seres desconhecidos que haviam erguido aquela enorme ruína, fossem eles os homens-serpente da lenda valusiana, ou alguma outra raça esquecida, tinham inundado os altares de mármore do castelo negro com o sangue de milhares de outros. Os fantasmas de suas vítimas tinham sido acorrentados para sempre naquele castelo de terror. Talvez tivessem sido mantidos presos à terra por algum poderoso tipo de encanto da feitiçaria pré-humana. E podia ser o mesmo encanto que mantinha à distância as feras da savana.

Mas isso não era tudo. Os fantasmas do castelo negro ansiavam pelo sangue dos vivos, pelo sangue de Conan.

Seu corpo exausto jazia acorrentado ao sono enfeitiçado, enquanto os fantasmas sombrios esvoaçavam ao seu redor, dilacerando-o com seus dedos imateriais. Mas um espírito não pode ferir uma pessoa a menos que se manifeste no plano físico e assuma uma forma material. Aquelas criaturas das sombras, com sua linguagem ininteligível, estavam fracas. Durante muitos e muitos anos nenhum homem havia desafiado a maldição para entrar no castelo sombrio. Assim, fazia tempo que elas não se alimentavam. Enfraquecidas pela fome de muitos anos, elas não tinham forças para se materializar numa multidão de demônios.

De alguma forma, no sonho, o espírito de Conan sabia disso. Enquanto seu corpo continuava adormecido, seu ka observava os movimentos no plano astral, de olho nas sombras vampíricas que esvoaçavam ao redor de sua cabeça adormecida e atacavam com as garras imateriais as veias de sua garganta. Apesar de seu delírio silencioso, elas não o podiam ferir. Aprisionado pelo feitiço, ele continuava adormecido.

Depois de muito tempo, uma mudança ocorreu na avermelhada luminosidade do plano astral. Os espectros começaram a se reunir numa massa disforme de sombras cada vez mais espessas. Embora fossem criaturas mortas e sem raciocínio, o desespero da fome as levava a uma fantástica aliança. Cada um dos fantasmas ainda dispunha de uma pequena quantidade da energia vital necessária para a materialização. Agora, cada fantasma combinava seu insignificante suprimento de energia com a de seu irmão.

Aos poucos, começou a se materializar uma figura de formas horríveis, alimentada pela força de vida de milhares de pequenos fantasmas. Na escuridão da sacada de mármore negro aquela energia combinada foi lentamente formando uma nuvem giratória de partículas sombrias.

E Conan continuava dormindo.

 

O trovão explodia com um barulho ensurdecedor. Os relâmpagos espoucavam pela planície escura, de onde a lua havia fugido uma vez mais. As nuvens altas e escuras derramavam seu conteúdo, encharcando a vastidão gramada com uma chuva torrencial.

Os estígios traficantes de escravos tinham cavalgado a noite inteira, viajando para o sul, na direção das florestas além de Kush. Sua expedição ainda não tinha produzido resultados. Nenhum negro das tribos nômades de caçadores e pastores da savana tinha caído em suas mãos. Eles não sabiam a razão, mas talvez a guerra ou a peste tivessem acabado com todos eles, ou os nativos, advertidos sobre a chegada dos traficantes de escravos, talvez tivessem fugido para longe do seu alcance.

De qualquer modo, tudo indicava que os resultados deveriam ser melhores nas luxuriantes florestas do sul. Os negros das selvas viviam em aldeias permanentes, que os traficantes de escravos podiam sitiar e tomar de surpresa com ataques súbitos ao amanhecer, apanhando todos os habitantes como peixes numa rede. Os nativos muito velhos, jovens demais ou doentes, incapazes de enfrentar a longa caminhada de volta para a Stygia, seriam mortos logo depois de aprisionados. Então os restantes seriam levados juntos para o norte, amarrados um atrás do outro, como uma corrente humana.

Eram quarenta estígios, ótimos guerreiros que cavalgavam excelentes montarias, usando capacetes e protetores metálicos para o pescoço. Homens altos, de pele escura e rosto comprido, dotados de músculos poderosos, eram saqueadores endurecidos, valentões, briguentos, destemidos e impiedosos. Tinham menos remorso depois de matar um estrangeiro do que a maior parte das pessoas sente ao esmagar um mosquito.

De repente viram-se bem no meio da tempestade. O vento arrancava suas capas de lã e os roupões de linho, e soprava em seu rosto as crinas dos cavalos. O brilho quase contínuo dos relâmpagos os deixava quase cegos.

O líder do grupo viu o castelo negro tomando forma sobre o campinzal, atrás da cortina de chuva torrencial, mas iluminado pelo brilho intenso dos relâmpagos. Gritou uma ordem para seus seguidores e fincou as esporas nas costelas de sua enorme égua preta. Os outros galoparam atrás dele e entraram pelo sombrio portal no meio do barulho dos cascos, do chiado das selas de couro e do tilintar das malhas metálicas que compunham suas armaduras. A anormalidade da fachada não era muito distinta na escuridão e naquela chuva forte, e os estígios tinham pressa em chegar ao abrigo antes de ficassem encharcados.

Entraram batendo os pés, praguejando e gritando, ao mesmo tempo em que sacudiam a água das capas. Num instante o sombrio silêncio daquelas ruínas foi rompido pelo clamor daquele tremendo barulho. Juntaram gravetos e folhas secas e acenderam uma fogueira. Não demorou para as labaredas se levantarem no meio do piso de mármore rachado, pintando as paredes esculpidas com uma rica tonalidade alaranjada.

Os homens descarregaram seus alforjes, tiraram as capas e as estenderam para secar. Removeram as vestimentas de malha de aço e passaram a engraxá-las com trapos embebidos em óleo.

Abriram os alforjes e retiraram grandes pedaços de pão envelhecido, que logo se transformou em jantar.

Lá fora a tempestade rugia e espoucava. Verdadeiras torrentes de água, como pequenas cachoeiras, desciam pelas fendas nas paredes e no teto. Mas os estígios não deram atenção.

Conan estava em silêncio na sacada, acordado, mas trémulo, com arrepios que sacudiam todo o seu corpo poderoso. O encanto que o mantinha prisioneiro havia sido quebrado quando irrompera a tempestade. Ao se levantar, ele olhara por toda a sacada, à procura da coisa fantasmagórica que, durante o sonho, tinha visto formar-se perto de seu corpo. Quando um relâmpago iluminara o pátio, ele achou ter visto uma figura escura e disforme, num dos cantos da sacada, mas não teve vontade de chegar mais perto para investigar melhor.

Quando pensava numa forma de descer da sacada sem se deixar alcançar pela Coisa, os estígios tinham entrado com todo aquele barulho e gritaria. E enfrentar aquele grupo não era melhor do que encarar os fantasmas. Se tivessem uma chance, não hesitariam em capturar o cimério para transformá-lo em escravo. Apesar de sua imensa força e da destreza com as armas, Conan sabia muito bem que ninguém consegue lutar ao mesmo tempo com quarenta adversários bem armados. Se não agisse como um relâmpago para fugir, os estígios o derrotariam sem dificuldade. Portanto, ele corria o risco de ser morto na hora ou de passar o resto da vida amargando os trabalhos forçados num curral de escravos da Stygia. E não sabia qual das duas opções seria menos ruim.

Se os estígios desviaram as atenções de Conan dos fantasmas, também desviaram a atenção dos fantasmas em relação a Conan. Em sua ânsia insensata, os seres sombrios ignoraram o cimério em favor dos quarenta estígios acampados lá embaixo. Ali havia carne fresca e energia vital suficiente para satisfazer seu apetite fantasmagórico por muito tempo. Como folhas secas ao vento eles flutuaram entre os balaústres e desceram da sacada para o pátio.

Os estígios esticaram-se ao redor da fogueira, passando uma garrafa de vinho de mão em mão e conversando em seu idioma gutural. Embora Conan conhecesse apenas algumas palavras da língua stígia, conseguia entender o que diziam graças à entonação das frases e aos gestos que faziam. O líder do grupo, um gigante de cara bem barbeada, tão alto como o cimério, jurava que não pretendia sair debaixo de uma chuva tão forte como a daquela noite. O grupo esperaria pelo raiar da aurora, abrigado naquelas ruínas. Pelo menos os homens tinham um teto sobre a cabeça que, embora cheio de goteiras, era suficiente como abrigo da tempestade.

Quando várias garrafas já tinham sido esvaziadas, os estígios ajeitaram-se para dormir, agora com o corpo quente e seco. A fogueira estava bem fraca, pois os gravetos que tinham conseguido juntar não eram suficientes para manter as labaredas por muito tempo. O líder apontou para um dos seus homens e deu uma ordem severa. O homem protestou mas, depois de uma rápida discussão, levantou-se com um resmungo e apanhou sua roupa de malha de aço. Conan percebeu que o homem tinha sido escolhido para o primeiro turno de vigia.

Nesse momento, com a espada na mão direita e o escudo na esquerda, a sentinela estava parada em pé, nas sombras à margem da luz da fogueira que se apagava. De vez em quando andava para um lado e para outro no pátio, parando para olhar para dentro dos corredores curvos ou pelas portas da frente, onde a tempestade ia diminuindo de intensidade.

Enquanto a sentinela se achava em pé na porta principal, de costas para os companheiros, uma figura sombria se formava no meio dos traficantes de escravos, que roncavam alto. Crescia devagar, a partir de dezenas de nuvens de sombras imateriais. A criatura composta que ia tomando forma reunia a força vital de milhares de seres mortos. E assumiu uma forma assustadora, um enorme volume com inúmeros membros, de todos os tamanhos e formatos. Uma dúzia de pernas curtas e grossas suportava seu monstruoso peso. No alto, como se fossem horríveis frutos, tinha centenas de cabeças. Algumas delas com cabelos e sobrancelhas, enquanto outras eram pelotas com orelhas, bocas, narinas e olhos posicionados a esmo.

A simples visão de um monstro de centenas de cabeças como aquele, no pátio úmido e mal iluminado, teria sido o bastante para congelar o sangue de qualquer pessoa, por mais corajosa que fosse. Conan sentiu um frio gelado na espinha e arrepios de repugnância, quando viu aquela cena.

O monstro arrastou-se pelo chão. Curvou-se oscilando para a frente e agarrou um dos estígios com meia dúzia de garras afiadas.

Quando o homem acordou com um grito, o monstro o arrebentou em pedaços, borrifando os companheiros ainda adormecidos com o sangue e os restos da primeira vítima.

 

No instante seguinte os estígios estavam todos de pé. Embora fossem saqueadores profissionais de longa experiência, aquela visão arrancou gritos de terror de alguns deles. Virando-se ao ouvir o primeiro grito, a sentinela veio correndo para o pátio para atacar o monstro com sua espada. Gritando ordens para o grupo inteiro, o líder agarrou a arma mais próxima e atacou.

Os outros, embora sem armaduras e ainda surpresos e confusos, agarraram suas espadas e lanças para se defender da criatura que cambaleava e matava no meio deles.

As espadas cortavam a figura disforme, enquanto as lanças mergulhavam na enorme barriga que tremia como gelatina. Os braços do monstro eram cortados e caíam ao solo, sacolejando e ainda tentando agarrar. Mas, como se não sentisse a dor, a horrível criatura ia derrubando um homem após o outro. Alguns dos estígios tiveram suas cabeças arrancadas pelas estranhas mãos. Outros foram apanhados do chão, erguidos pelos pés e arrebentados contra os pilares, transformando em meros pedaços de carne ensangüentada.

Enquanto o cimério observava lá de cima, uma dúzia de estígios teve morte instantânea, com a cabeça arrancada ou arremessados contra os pilares. Os horríveis ferimentos causados ao monstro pelas armas dos estígios fechavam e se curavam no mesmo instante. As cabeças e braços que as espadas e lanças haviam arrancado eram logo substituídos por novos membros, que brotavam do corpo gelatinoso.

Ao perceber que os estígios não teriam chance alguma contra a criatura monstruosa, Conan resolveu cair fora enquanto a Coisa ainda estava ocupada com os traficantes de escravos e antes que se voltasse de novo para ele. Achou que seria arriscado demais passar pelo pátio, e procurou uma saída mais direta. Pulou uma janela, que dava para o teto de um terraço, mas as telhas estavam quebradas. Ficou com medo de dar um passo em falso e se arrebentar no chão.

A chuva tinha diminuído e se transformara em mera garoa. A lua, agora bem no alto do céu, acendia e apagava conforme a passagem das nuvens. Ornando do parapeito que cercava o terraço, Conan encontrou um lugar onde a parede tinha quebras que, combinadas com as plantas trepadeiras, permitiria que ele descesse em segurança. Com a firmeza de um macaco ele foi baixando pela fachada de estranha arquitetura.

A lua acendeu de novo com toda a sua força, iluminando o quintal onde estavam amarrados os cavalos estígios, que relinchavam e andavam nervosos de um lado para o outro, ao som do combate mortal que vinha lá de dentro. Da batalha travada no pátio o barulho mais intenso era o dos gritos de agonia de cada homem que tinha sua cabeça e membros arrancados antes de morrer.

Conan saltou, caindo de leve sobre a terra do quintal. E correu para a égua preta que tinha pertencido ao líder dos traficantes de escravos. Ele gostaria de ficar para aproveitar as armaduras e os suprimentos que pudesse saquear dos corpos estígios. Afinal, a camisa de malha de aço que tinha usado no tempo da pirataria com Bêlit, já estava muito gasta e enferrujada, e sua fuga de Bamula tinha sido repentina demais, impedindo que ele se equipasse melhor. No entanto, não existia força na terra que o pudesse arrastar de volta para aquele pátio, onde a horrorosa criatura ainda caçava e matava.

Quando Conan estava desamarrando a montaria que escolhera, um homem saiu correndo, gritando pela entrada principal e veio como uma flecha na sua direção. Conan notou que era o estígio que tirara o primeiro turno de vigia. Seu capacete e a malha da armadura o haviam protegido o bastante para que ele sobrevivesse ao massacre dos companheiros.

Conan abriu a boca para falar. Não morria de amores pelos estígios mas, se aquele homem era o único sobrevivente do seu grupo, não havia problema algum em formar uma aliança de bandidos com ele, ainda que temporária, até poderem chegar a um lugar mais calmo e seguro.

Mas Conan não teve chance de apresentar sua proposta, porque a horrível experiência que enfrentara havia enlouquecido o sujeito. Seus olhos vidrados tinham um brilho estranho ao luar, e ele derramava espuma pela boca. Avançou para Conan com um punhal na mão, e gritou:

— Volte para o inferno, demônio maldito!

O primitivo instinto de sobrevivência que Conan aperfeiçoara em suas aventuras pelo mundo levou-o à ação inconsciente. Quando o homem chegou suficientemente perto, sua espada já estava fora da bainha, em posição de combate. As duas lâminas de aço chocaram-se uma vez, duas, três, espalhando fagulhas pelo ar. Quando o estígio enlouquecido deu um passo para trás, para lançar uma nova investida, Conan enfiou-lhe a espada pela garganta. O homem gritou, cambaleou e tombou morto.

Conan ficou um instante apoiado na sela do cavalo, ofegante. O duelo fora curto mas feroz, e o estígio tinha sido um inimigo formidável.

Não se ouviam mais os gritos de terror que antes vinham de dentro do castelo em ruínas. Agora nada mais havia, além do silêncio total. Então Conan escutou o barulho de passos lentos, pesados e arrastados. Teria a criatura chacinado todos eles? Estaria arrastando-se para a porta, com a intenção de aparecer lá fora?

Ele decidiu não esperar para conferir. Com os dedos trêmulos desamarrou a tira de couro que prendia a armadura do homem e a tirou dele. Também apanhou do chão o capacete e o escudo, feito do couro de uma das feras de pele mais grossa da savana. Apressadamente amarrou os trofeus na sela, saltou sobre o lombo do animal, segurou as rédeas e fincou os tornozelos nas costelas da grande égua preta. Galopou pelo quintal do castelo em ruínas, para a região coberta de capim seco. A cada passo dado pelos cascos a galope ficava mais longe o castelo da primitiva maldade.

Em algum lugar além do círculo do capim morto talvez os leões famintos ainda estivessem à espreita. Mas Conan não se importava. Depois dos horrores fantasmagóricos da cidadela negra, não haveria problema algum em entrar em combate com um simples bando de leões esfomeados.

 

O barulho dos tambores e das trompas feitas de dentes de elefante era ensurdecedor mas, aos ouvidos de Lívia, o clamor parecia apenas um murmúrio confuso, apagado e distante. Deitada no espaço central da grande cabana, estava entre as condições de delírio e semi-inconsciência. Os sons e movimentos exteriores quase não provocavam reações dos seus sentidos. Toda a sua visão mental, embora confusa e caótica, concentrava-se inevitavelmente sobre a figura nua e contorcida de seu irmão, com o sangue jorrando de seus trémulos quadris. Sobre um fundo ofuscado pelo pesadelo de formas e sombras indefmidas, misturadas umas com as outras, aquela figura branca delineava-se com impiedosa e impressionante clareza. O ar ainda parecia pulsar com os gritos agonizantes, obscenamente misturados e entrelaçados com o sussurro de uma risada demoníaca.

Ela não tinha consciência das sensações como indivíduo separado e distinto do resto do Cosmos. Encontrava-se mergulhada no enorme golfo da dor, sentia-se como a própria dor cristalizada e manifestava em carne e osso. Assim, jazia sem pensamento ou ação consciente, enquanto os tambores ecoavam e as trompas berravam lá fora, acompanhando as vozes dos bárbaros que entoavam medonhos cantos, no compasso marcado pelos pés descalços que martelavam sobre a terra dura e pelas palmas ritmadas.

Mas sua consciência por fim começou a voltar, vencendo a barreira do congelamento de suas sensações. A primeira coisa que sentiu foi uma certa surpresa por não ter sofrido ferimentos físicos. Decidiu aceitar o milagre sem dar graças. Não lhe parecia tão importante agradecer por estar a salvo. Agindo de maneira mecânica, sentou-se sobre o leito e olhou em volta. Os pés e mãos começaram a mover-se devagar, como se reagissem ao lento despertar de seu sistema nervoso central. Seus pés descalços tocaram nervosamente o chão de terra batida. Seus dedos seguraram a ponta da saia de sua camisola curta, a única peça de roupa que tinha sobre o corpo. Com a mente ainda distante, ela se lembrou que um dia, que lhe parecia ter sido muito tempo antes, um par de mãos rudes havia rasgado as outras roupas que vestia, e ela chorara de medo e de vergonha. Agora, parecia estranho que um episódio tão insignificante tivesse sido motivo de tanta desgraça. Afinal de contas, a magnitude do ultraje e da indignidade que ela sentira era apenas relativa, como tudo o mais.

A porta da cabana se abriu e uma mulher entrou. Era uma pessoa delicada cujo corpo, flexível como o de uma pantera e brilhante como o ébano polido, estava adornado apenas por uma faixa de seda enrolada sobre os quadris largos e redondos. O branco dos seus olhos refletiu a luz do fogueira que ardia lá fora, quando os arregalou com uma expressão travessa.

Trazia um prato de bambu cheio de comida: carne ainda fumegando, batata-doce assada, milho cozido, grandes pedaços de pão nativo, e um vaso de ouro batido com cerveja de yarati. Colocou a bandeja sobre um dos cantos do leito, mas Lívia não deu atenção. Continuava com o olhar vidrado na direção da parede oposta, coberta de esteiras feitas de brotos de bambu. A jovem mulher nativa sorriu, mostrando todo o brilho dos seus olhos negros e dentes muito brancos. Com um assobio de malícia e um afago de zombaria que era mais grosseiro do que sua linguagem, ela saiu da cabana com um andar rebolado, expressando uma insolência mais insultuosa com o movimento dos quadris redondos, do que seria possível para qualquer mulher civilizada com todo o seu vocabulário.

Nem as palavras da mulher e menos ainda os seus gestos haviam sido suficientes para ativar por completo a consciência de Lívia. Todas as suas sensações continuavam apontadas para dentro. A incrível clareza das imagens que tinha na mente era tamanha que o mundo exterior lhe parecia um quadro irreal de fantasmas e de sombras. Com gestos mecânicos ela comeu os alimentos e bebeu a cerveja, sem sentir gosto algum.

Foi ainda com gestos mecânicos que ela por fim se levantou e caminhou cambaleante pela cabana, para olhar para fora através de uma fenda na parede de bambu. Uma repentina mudança no timbre dos tambores e das trompas de marfim provocou reações em alguma parte obscura de sua mente, fazendo com que ela procurasse a causa dessa sensação, aparentemente sem querer.

A princípio ela não entendeu o que via. Tudo lhe parecia caótico e sombrio, com imagens que se moviam e se misturavam, torcendo-se e girando, blocos negros e disformes recortados sobre um fundo vermelho como o sangue, incandescente porém sem brilho. De repente, os movimentos e os objetos assumiram suas devidas proporções, e ela viu homens e mulheres movendo-se ao redor das fogueiras. A luz vermelha cintilava sobre os ornamentos de prata e marfim. Enormes penas brancas balançavam na claridade, e as figuras nuas movimentavam-se e posavam com gestos exagerados. Suas silhuetas pareciam recortadas da escuridão e iluminadas em vermelho.

Sobre um banquinho de marfim, ladeada por gigantes com adornos de penas na cabeça e tangas de pele de leopardo, estava sentada uma figura gorda e baixa, repulsiva, quase como um enorme sapo, emitindo um horrível cheiro de floresta apodrecida e pântanos sombrios. Suas mãos curtas e redondas repousavam sobre o enorme e liso arco de sua barriga. A nuca era um rolo de gordura que parecia lançar para a frente a cabeça pontiaguda. Os olhos eram como dois pedaços de carvão incandescente num tronco preto. Sua espantosa vitalidade não combinava com a inerte imagem transmitida pelo corpo monstruoso.

Com o olhar fixo sobre aquela figura, o corpo da jovem tornou-se tenso e endurecido quando toda a intensidade da vida apossou-se dela de novo. De repente, ela deixava de ser um mero autômato para voltar a ser uma pessoa cheia de vida consciente, pulsante, aguda e ardente. A dor naufragou num ódio tão intenso que tornou a transformar-se em dor. Ela sentiu-se endurecida e quebradiça, como se o corpo estivesse se transformando em uma peça de aço. Era como se o ódio fluísse de um modo quase material ao longo da linha ; de sua visão. Parecia-lhe que o objeto daquelas emoções deveria cair morto daquele banquinho entalhado, por causa da força desse ódio.

No entanto, se a concentração de sua prisioneira causava qualquer tipo de desconforto psíquico a Bajujh, rei de Bakalah, ele não o demonstrava. Continuava a encher sua boca de sapo com as duas mãos, que tiravam milho cozido de uma vasilha segura pelas mãos estendidas de uma mulher ajoelhada ao seu lado. E olhava na direção de um caminho largo formado pelas ações dos seus súditos, que se acotovelavam dos dois lados.

Lívia entendia vagamente que, por essa alameda constituída de seres humanos negros e suados, deveria aparecer alguma personagem importante, a julgar pelo estridente clamor dos tambores e trompas. E não demorou para que isso acontecesse.

Uma coluna de guerreiros, marchando em fila de três, foi na direção do banquinho de marfim, mais parecendo uma espessa linha de penas flutuantes e lanças resplandecentes, que serpenteava no meio da multidão colorida. Na frente dos lanceiros negros marchava uma figura cuja visão provocou violento impulso em Lívia. Seu coração pareceu parar de repente para disparar logo em seguida, quase a ponto de sufocá-la. Contra aquele cenário de figuras escuras, o homem destacava-se com enorme clareza. Assim como os seus seguidores, usava uma tanga de pele de leopardo e um adorno de penas na cabeça. Mas era um homem branco.

Não foi como um suplicante nem como subordinado que ele marchou até o banquinho de marfim. Um repentino silêncio envolveu toda a multidão quando ele parou diante da figura agachada. Lívia chegou a sentir a tensão do ar, embora tivesse apenas uma leve impressão sobre o que aquele silêncio poderia significar. A princípio Bajujh ficou ali sentado por um instante, erguendo o pescoço curto como um enorme sapo. Depois, como se estivesse sendo forçado a agir pelos olhares insistentes de todos os outros, ele levantou com insegurança o corpo grotesco, balançando a cabeça raspada.

Desfez-se na mesma hora a tensão que havia. Uma multidão de nativos irrompeu em gritos de alegria quando, obedecendo a um gesto do estranho, os guerreiros ergueram suas lanças e fizeram uma saudação ao rei Bajujh. Fosse quem fosse aquele homem, Lívia percebeu que devia ser muito poderoso naquela terra selvagem, pois até Bajujh de Bakalah se levantara para saudá-lo. E o poder representava prestígio militar entre aquelas raças ferozes, que só sabiam respeitar a violência.

Desse momento em diante, Lívia ficou de olhos pregados no estranho, espiando pela fresta na parede da cabana. Os guerreiros que o acompanhavam misturaram-se aos bakalahs, dançando, festejando e bebendo cerveja. O próprio líder branco sentou-se ao lado de Bajujh e dos chefes de Bakalah, de pernas cruzadas sobre uma esteira de bambu, comendo e bebendo à vontade. Ela viu as mãos fortes mergulhando no fundo das panelas onde os outros também se serviam, e o seu focinho enfiado na mesma jarra de cerveja em que Bajujh bebia. No entanto, percebeu que ele recebia o mesmo tipo de tratamento e respeito dado aos soberanos. Como não havia banquinho para ele, Bajujh abandonara o seu para sentar-se com o convidado sobre uma esteira de bambu. Quando foi trazida uma nova jarra de cerveja, o soberano de Bakalah mal provou da bebida fresca antes de passar a jarra ao homem branco. Poder! Era isso que ficava demonstrado naquela cortesia cerimonial. Força e prestígio! Lívia tremeu de emoção quando um plano arriscado começou a se formar em sua mente.

Continuou observando o homem branco com uma intensidade dolorosa, examinando cada detalhe de sua aparência. Era alto e forte. Nenhum dos gigantes negros que o acompanhavam era maior ou mais forte do que ele. Movia-se com a flexibilidade e leveza de uma grande pantera. Quando a luz da fogueira refletiu sobre os seus olhos, eles pareceram transformar-se em duas labaredas azuis. Seus pés eram protegidos por sandálias de longas tiras amarradas na perna, e ele carregava uma larga espada na bainha de couro, presa à tanga de pele. Tinha uma aparência estrangeira e desconhecida. Lívia jamais vira uma pessoa como ele, mas não fez qualquer esforço no sentido de definir sua posição entre as raças humanas que conhecia. Era branco, e isso bastava.

As horas foram passando e o barulho da festança diminuindo, com os homens e mulheres caindo no sono provocado pela bebedeira. Por fim Bajujh levantou-se cambaleando e ergueu os braços, não necessariamente como um sinal para que a festa terminasse, mas como se tivesse sido derrotado na disputa pela comida e a bebida. Ele tropeçou e foi apoiado por seus guerreiros, que o levaram para sua cabana. O homem branco levantou-se também, e parecia estar em condição semelhante por causa da inacreditável quantidade de cerveja que havia consumido. Foi levado para a cabana dos convidados, apoiando-se nos poucos chefes bakalahs que ainda conseguiam manter-se de pé. Ele entrou na cabana, e Lívia percebeu que uma dúzia dos seus próprios guerreiros colocaram-se ao redor da habitação, com as lanças em posição de combate. Estava claro que o estranho não pretendia correr riscos com a amizade de Bajujh.

Lívia correu os olhos por toda a aldeia, que mais parecia uma escura noite do Julgamento Final, com suas ruas e vielas cheias de sombras embriagadas que cambaleavam a caminho de casa. Ela sabia que havia homens perfeitamente sóbrios de sentinela por todo o perímetro externo da aldeia, mas os únicos guerreiros despertos que conseguia enxergar nos limites de seu campo de visão eram os lanceiros que guardavam a cabana do estranho. E mesmo esses já começavam a bocejar e a apoiar-se em suas lanças.

Com o coração batendo forte, ela deslizou para a parte de trás da cabana onde estava presa e saiu pela porta dos fundos, passando pelo guarda que Bajujh destacara para tomar conta dela, e que roncava num sono profundo. Como uma sombra de marfim ela correu em direção à cabana ocupada pelo estranho. Apoiada nas mãos e nos joelhos engatinhou até a porta dos fundos. Um gigante negro estava agachado ali, com a cabeça emplumada enfiada entre os joelhos. Ela já ficara presa naquela cabana, e tinha usado uma estreita abertura na parede, escondida na parte de dentro por uma esteira pendurada, durante uma patética e inútil tentativa de fuga. Encontrou a passagem, virou o corpo de lado e contorceu-se para passar, empurrando para o lado a esteira dependurada.

A luz da fogueira que ardia lá fora iluminava muito mal o interior da cabana. No mesmo instante em que empurrou a esteira para o lado, ouviu um resmungo e uma blasfêmia, e sentiu uma mão forte agarrando-a pelos cabelos, sendo arrastada pela abertura estreita e forçada a ficar em pé lá dentro.

Cambaleando diante da surpresa a que foi submetida, ela procurou coordenar todos os pensamentos e reações, ao mesmo tempo em que afastava dos olhos os cabelos desordenados, para poder ver o homem branco que estava à sua frente, bem mais alto do que ela, com uma expressão de assombro no rosto bronzeado e cheio de cicatrizes. Tinha a espada na mão, e seus olhos brilhavam como o fogo. Ela não conseguiu adivinhar se aquela era uma expressão de ódio, desconfiança ou surpresa. O homem falou em uma língua que ela não conseguiu entender, um idioma que nada tinha de gutural negro, embora tampouco tivesse qualquer som civilizado.

— Por favor, — implorou ela. — Fale baixo que eles podem ouvir...

— Quem é você? — ele indagou, falando a língua de Ophir com um sotaque bárbaro. — Em nome de Crom, jamais pensei em encontrar uma garota branca nesta terra dos infernos!

— Eu me chamo Lívia, — respondeu ela. — Sou prisioneira de Bajujh. Mas, por favor, ouça! Não posso continuar aqui. Tenho de voltar antes que eles dêem por minha falta na cabana... Meu irmão... — Ela parou para soluçar, e depois continuou: — Meu irmão chamava-se Theteles, e nós somos da casa de Chelkus, sábios e nobres de Ophir. Por uma permissão especial do rei da Stygia meu irmão conseguiu viajar para Kheshatta, a Cidade dos Magos, para estudar as artes deles, e eu o acompanhei. Era apenas um garoto, mais jovem do que eu... — A voz dela tremeu e ela irrompeu em prantos. O estranho ficou em silêncio, mas a observava com um olhar ardente, a testa franzida e uma expressão impossível de definir. Havia alguma coisa selvagem e indomável a respeito dele que a deixava ainda mais nervosa e insegura. E ela continuou: — Os kushitas negros atacaram Kheshatta. Nós estávamos chegando à cidade em uma caravana de camelos. Nossos guardas fugiram e os invasores nos levaram dali. Não nos fizeram mal algum e nos informaram que iam negociar com os estígios e aceitar um resgate para a nossa libertação. Mas um dos chefes queria ficar com toda a recompensa, e veio uma noite com um grupo de guerreiros para nos roubar do campo. Fugiram em direção sudeste e nos levaram até a fronteira de Kush. Aí eles foram atacados e mortos por um bando de guerreiros de Bakalah. Theteles e eu fomos arrastados para este ninho de animais; selvagens... — Ela soluçava convulsivamente. — Hoje cedo meu irmão foi esquartejado diante dos meus olhos... Deram o corpo dele aos chacais, não sei quanto tempo fiquei desacordada... As palavras pareciam lhe faltar, e ela ergueu os olhos para o rosto zangado de estranho. Uma fúria selvagem tomou conta dela. Ergueu os punhos e bateu inutilmente contra o peito forte do gigante, para quem aquelas pancadas mais pareciam o pouso de uma mosca.

— Como pode ficar parado aí desse jeito? — perguntou ela, controlando a voz cheia de medo. — Será que é um animal como todos os outros daqui? Ó, Mitra, e eu que pensava ainda haver honra entre os homens! Agora eu sei que cada um tem seu preço. O que sabe sobre honra, misericórdia ou decência? Você não passa de um bárbaro como os outros, com a única diferença de que tem a pele branca. Sua alma é tão negra como a deles. Não se importa pelo fato de um homem de sua própria raça ter sido brutalmente assassinado por esses cães selvagens e por eu ser mantida como escrava deles. Não se importa nem um pouco! — Ela se afastou e continuou: — Pois bem! Vou lhe fazer uma proposta. — E rasgou a túnica que lhe cobria os seios brancos como o marfim. — Não sou bonita? Não sou mais atraente do que as mulheres nativas? Não sou uma recompensa valiosa que justifica o derramamento de sangue? Por acaso não vale a pena matar por uma virgem de pele branca como eu? Mate Bajujh, aquele cão selvagem! Permita-me ver a sua cabeça maldita rolar no solo manchado com seu próprio sangue! Mate-o. Mate-o! — E ela bateu violentamente com os punhos sobre o peito dele. — Depois me tome e faça o que quiser comigo. Serei sua escrava!

Ele ficou em silêncio durante alguns segundos, mas permaneceu em pé, como uma gigantesca estátua, meditando sobre morte e destruição, com os dedos esfregando o cabo da espada.— Você fala como se pudesse se entregar a quem quisesse, por sua própria vontade, — ele disse. — Como se tivesse o poder de derrubar reinos inteiros, bastando entregar seu corpo a alguém. Por que eu mataria Bajujh para ficar com você? As mulheres desta terra são baratas, e pouco importa se têm algum desejo ou não. Você está exagerando no valor que dá a si mesma. Se eu a quisesse, não teria de lutar Contra Bajujh para possuí-la. Aposto que ele preferiria entregá-la do que lutar contra mim.

Lívia perdeu o fôlego. Todo o fogo que a consumia apagou-se, e foi como se a cabana estivesse balançando e girando diante dos seus olhos. Ela cambaleou e desmoronou sobre uma cama. Uma amargura estonteante lhe esmagou a alma, quando ele a fez compreender até que ponto estava desamparada. A mente humana apega-se inconscientemente a valores e conceitos conhecidos, mesmo em ambientes e condições adversas, não relacionadas com os ambientes e as condições às quais se adaptam os valores e conceitos conhecidos. Apesar de tudo o que Lívia tinha enfrentado, ela ainda supunha que o consentimento de uma mulher representava o maior valor em um jogo como o que se propunha a disputar. Ficou chocada quando percebeu que nada dependia dela, afinal de contas. Ela não tinha como manipular os homens, como se fossem as pedras de um jogo de tabuleiro. Ela própria nada mais era do que uma peça sem importância no jogo da vida.

— Estou vendo como é absurdo supor que um homem nesta parte do mundo poderia agir de acordo com as regras e costumes vigentes em outro lugar. — resmungou ela, não muito consciente do que estava dizendo, e que era apenas a expressão oral dos pensamentos que a dominavam. Aturdida diante daquela inesperada reviravolta do destino, ela ficou imóvel, até que os dedos de aço daquele bárbaro a agarraram pelo ombro e a fizeram levantar de novo.

E ele falou com uma voz áspera:

— Você disse que eu sou um bárbaro, e é verdade, graças a Crom. Mas se você tivesse tido como guardas alguns homens de terras remotas, como eu, ao invés daqueles fracotes do seu mundo civilizado, não seria agora escrava de um porco como Bajujh. Eu sou Conan, da Ciméria, e vivo conforme a lei do fio da espada. Mas não sou nenhum cachorro que teria a coragem de deixar uma mulher nas ganas de um selvagem. Embora as pessoas como você me chamem de ladrão, eu jamais me impus a mulher alguma, sem o consentimento dela. Os costumes são diferentes em varias regiões, mas se um homem é suficientemente forte, ele consegue impor os seus costumes nativos onde quer que vá. E homem nenhum jamais me chamou de fraco! Ainda que você fosse velha e feia como os abutres de estimação do demônio eu a libertaria de Bajujh, só por causa de sua raça. Mas você é jovem e bonita, e já estou cansado e enjoado de olhar para as mulheres nativas. Vou jogar conforme as regras que você estabelece, porque alguns dos seus instintos combinam com os meus. Volte para a sua cabana. Bajujh está bêbado demais para ir procurá-la esta noite, e farei com que ele fique bastante ocupado amanhã. Então, amanhã à noite você estará esquentando a cama de Conan, e não a de Bajujh.

— E como vai conseguir fazer isso? — ela perguntou, com a voz trêmula e as emoções confusas. — Você só tem esses guerreiros?

— Não se preocupe, porque eles me bastam. Cada um dos guerreiros bamula nasce num berço de guerra e seu primeiro alimento é a batalha. Vim aqui a convite de Bajujh. Ele quer que me junte aos seus guerreiros para um ataque contra Jihiji. Hoje nós festejamos, e amanhã vamos realizar uma reunião de conselho. Quando eu terminar com ele aquele porco vai estar realizando reuniões no inferno!

— Pretende violar a trégua?

— Nesta terra a trégua é feita para ser violada, — respondeu Conan. — Ele está querendo violar a trégua que firmou com Jihiji, e estou certo de que, ao terminarmos de saquear a aldeia juntos, ele planeja acabar comigo, se conseguir me pegar de surpresa. Aquilo que se considera como a pior traição em outras terras não passa de esperteza aqui. Só consegui chegar sozinho à posição de chefe guerreiro dos bamula porque aprendi muito bem todas as lições que a Terra Negra ensina. Agora, volte para sua cabana e durma, sabendo que não é para Bajujh, mas sim para Conan que você guarda a sua beleza!

 

Pela fenda na parede de bambu Lívia ficou observando, com os nervos tensos e trêmulos. Durante todo o dia, desde a hora tardia em que tinham despertado de ressaca, depois dos abusos e da bebedeira da noite anterior, os habitantes da aldeia prepararam a festa para a noite seguinte. E durante todo o dia Conan, o cimério, tinha ficado na cabana de Bajujh, mas Lívia não tinha a menor idéia do que acontecia entre os dois. Tinha lutado muito para esconder a emoção diante da única pessoa que entrara em sua cabana, a vingativa garota nativa que lhe trouxera comida e bebida. Mas aquela mulherzinha vulgar ainda estava intoxicada demais, depois de ter passado a noite quase toda bebendo, para perceber a mudança no comportamento da prisioneira.

A noite acabara de cair de novo, e havia fogueiras por toda a aldeia. Uma vez mais os chefes saíram da cabana do rei e sentaram-se de pernas cruzadas ao ar livre, na praça entre as cabanas, para festejar e realizar um derradeiro conselho cerimonial. Dessa vez não houve tanta bebedeira. Lívia notou que os bamula convergiram casualmente para o círculo onde os chefes se reuniam. Viu Bajujh e, na frente dele, do outro lado das panelas de comida, Conan, rindo e conversando com o gigantesco Aja, chefe guerreiro de Bajujh.

O cimério roía um grande osso de boi e ela percebeu que, enquanto o observava, ele olhou várias vezes sobre os ombros. Como se fosse um sinal pelo qual estavam esperando, os guerreiros bamula olharam ao mesmo tempo para o seu chefe. Ainda rindo, Conan levantou-se como se fosse apanhar a comida de uma panela mais distante. Então, com a rapidez de um gato, ele atacou Aja com o pesado osso, desfechando violento golpe contra a cabeça do negro. O chefe guerreiro dos Bakalahs tombou para a frente com o crânio arrebentado. No mesmo instante um terrível grito de guerra encheu os céus, com todos os bamula entrando em ação ao mesmo tempo, como um grupo de panteras sanguinárias.

As panelas de comida tombaram, escaldando as mulheres que estavam agachadas por perto, enquanto as paredes de bambu rachavam ao impacto dos corpos atirados contra elas. A noite foi cortada por lamentos de agonia, encobertos pelo insistente grito de guerra dos enlouquecidos bamula, e pelas labaredas carregadas pelas lanças que brilhavam naquele cenário infernal.

Bakalah transformou-se numa casa de loucos, avermelhada pelas chamas que cresciam. A ação rápida dos invasores tinha paralisado os infelizes nativos, tomados de surpresa. Jamais teriam imaginado que seus convidados partissem para o ataque daquele jeito. A maior parte das lanças estava guardada nas cabanas, e muitos guerreiros já estavam embriagados. A queda de Aja tinha sido o sinal que lançou as lâminas brilhantes dos bamula num ataque contra uma centena de nativos despreparados. Depois disso, foi um verdadeiro massacre.

Olhando pela fenda na parede da cabana, Lívia ficou paralisada, branca como uma estátua, os cabelos louros puxados para trás. Ela quase sufocou e colocou ambos os punhos fechados contra as têmporas, como se tivesse medo de enlouquecer. Seus olhos se arregalaram, e o corpo todo ficou rígido. Os gritos de dor e de fúria atingiram seus nervos torturados como uma pancada física. Os corpos contorcidos e dilacerados desfocavam diante de sua vista, apenas para se tornar nítidos de novo, com a mais horripilante clareza e distinção. Ela viu as lanças mergulhando nos corpos negros, fazendo o sangue jorrar. E viu enormes bastões descendo com toda a força sobre cabeças humanas. Os tições eram chutados das fogueiras, espalhando brasas pelo chão. O sapé que cobria as cabanas fazia fumaça e se transformava em enormes labaredas. Um tipo diferente de grito angustiado começou a cortar os ares quando as vítimas ainda vivas passaram a ser atiradas de cabeça nas gigantescas fogueiras das cabanas. O cheiro de carne queimada encheu o ar, já impregnado do fedor de suor dos guerreiros e do sangue fresco que corria.

Os nervos sobrecarregados de Lívia não suportaram. Ela gritou com toda a força dos seus pulmões, num estridente guincho de tormento, perdido no estrepitoso barulho das labaredas e da matança. E ela bateu nas têmporas com os punhos fechados. Perdera o controle sobre suas emoções e seu grito aos poucos se transformava em repiques de uma risada histérica. Em vão tentou convencer a si mesma de que eram os seus inimigos que estavam morrendo daquele modo horrível, e de que ela própria talvez tivesse esperado e até planejado que aquilo tudo ocorresse. Tentou convencer sua própria razão de que aquele pavoroso sacrifício nada mais era do que a recompensa pelas maldades que haviam praticado contra ela e seu irmão. Um terror frenético tomava conta dela.

Sabia que não havia piedade para com as vítimas que morriam às dezenas, cortadas pelas lanças sanguinárias. A única emoção que conseguia registrar era um medo cego, inflexível, louco e irracional. Viu Conan no meio da carnificina, com o seu enorme corpo branco contrastando com os dos negros. Os olhos arregalados registraram o brilho de sua espada, e os nativos que tombavam ao redor dele. De repente um pequeno grupo de homens formou uma confusão ao redor de uma das fogueiras, e Lívia notou que havia um gordo e baixo contorcendo-se no meio deles. Conan enfiou-se no meio do grupo e por um momento ficou escondido atrás dos outros guerreiros. Um grito insuportável ergueu-se dali. O pequeno grupo desfez-se por um momento, e ela teve a visão horrível de um homem agachado que se arrastava, derramando sangue sobre a terra. Então os outros se juntaram de novo no mesmo lugar e a única coisa que ela conseguiu discernir foi o brilho das espadas e das pontas das lanças pelo ar.

Um urro animalesco ecoou pela aldeia, terrível por causa do júbilo primitivo que parecia exprimir. A figura gigantesca de Conan abriu caminho por entre os guerreiros. Ele caminhava na direção da cabana onde a garota se agachava, trazendo nas mãos uma relíquia: a cabeça decepada do rei Bajujh, iluminada pela grande fogueira em que se transformara quase toda a aldeia. Os olhos negros estavam vidrados e sem vida, voltados para cima, revelando apenas a sua parte branca. O queixo caído dava ao rosto uma expressão idiota. Pelo chão ia ficando o rastro das gotas espessas do sangue que jorrava.

Lívia recuou com um gemido sufocado. Conan pagara o preço exigido e vinha para tomá-la, trazendo a horrorosa prova de que cumprira a sua parte. Ele iria agarrá-la com as mãos ensangüentadas, esmagar seus lábios com a boca ainda ofegante da carnificina. Com este pensamento ela entrou em desespero.

Com um grito ela correu pela cabana e atirou-se contra a porta, na parede dos fundos. A porta abriu e ela disparou pelo espaço aberto como um rápido fantasma branco num reino de sombras negras e labaredas vermelhas.

Algum tipo de instinto inexplicável a dirigiu ao curral onde estavam presos os cavalos. Um dos guerreiros estava removendo as tábuas que separavam o curral da paliçada principal da aldeia quando ela passou em disparada. Ele gritou surpreso, e suas mãos a agarraram pela gola da túnica que usava. Com um golpe frenético ela conseguiu libertar-se, deixando a peça de roupa nas mãos do guerreiro. A manada estourou e os cavalos passaram voando por ela, atropelando o guerreiro. Era uma excelente manada de animais fortes, musculosos e resistentes, da raça kushita, já assustados com o fogo e o cheiro forte de sangue que havia no ar.

Cega pela poeira erguida na fuga dos animais ela agarrou uma crina que passava voando ao seu lado. Foi derrubada e arrastada no mesmo instante, bateu no chão com os tornozelos, seu corpo levantou alto no ar e ela conseguiu equilibrar-se e lançar-se sobre o lombo do animal em disparada. Enlouquecida pelo medo, a manada disparou pelo meio das chamas, com os cascos espalhando brasas numa chuva de fagulhas brilhantes. Os negros assustados viram de relance aquela mulher branca, cavalgando nua sobre o dorso de um animal que voava igual ao vento que fluía entre os cabelos louros da fantasmagórica amazona. O garanhão galopou na direção da paliçada principal, levantou no ar como se tivesse asas e desapareceu na escuridão da noite.

 

Livia não podia fazer qualquer tentativa no sentido de dirigir o animal que montava, nem achava que houvesse necessidade disso. Os gritos e o brilho das fogueiras já estavam desaparecendo atrás dele. O vento mantinha seus cabelos no ar e acariciava seus braços e pernas nuas. A única coisa de que estava mais ou menos certa era a necessidade de manter-se agarrada à crina do animal e cavalgar, cavalgar sem parar até saltar sobre a beirada do mundo e escapar de toda aquela agonia, tristeza e horror.

Durante horas seguidas o garanhão continuou galopando até que, ao chegar a uma colina iluminada pelas estrelas, tropeçou e tombou para a frente, lançando a amazona à distância.

Ela bateu na relva espessa e ficou caída durante alguns instantes, meio atordoada, escutando o barulho abafado do animal que fugia trotando. Quando se levantou cambaleando, a primeira coisa que chamou sua atenção foi o silêncio que imperava ao seu redor. Era uma coisa quase palpável, uma escuridão aveludada e macia, surpreendentemente contrastante com o incessante troar dos tambores e os berros bárbaros das trompas dos nativos que a haviam enlouquecido durante dias a fio. Ela ergueu os olhos para o firmamento e viu os grandes bancos de estrelas brancas dependuradas no vazio. Não havia lua no céu, mas o brilho das estrelas era tão intenso que iluminava a terra, chegando a formar inesperadas sombras. Ela ergueu-se sobre uma elevação gramada, a partir da qual se formavam as colinas arredondadas, macias como o veludo sob a luz das estrelas. Lá longe, numa direção, notou uma densa e escura linha de árvores, assinalando o limite da floresta distante. Nesse lugar havia apenas a noite e o silêncio total, além de uma leve brisa que soprava através das estrelas.

A terra parecia vasta e adormecida. A cálida carícia da brisa fez com que Lívia se lembrasse de que estava nua, e ela se contorceu, espalhando as mãos sobre o corpo. Sentiu então o isolamento em que se encontrava e a completa solidão da noite que a envolvia. Ela estava sozinha. Em pé, sobre a elevação do terreno em que se achava, não podia ver ninguém. Nada além da noite e do vento que sussurrava aos seus ouvidos.

Sentiu-se repentinamente feliz com a noite e a escuridão. Nada havia que a pudesse ameaçar, nem agarra-la com mãos rudes e violentas. Olhou à sua frente e viu a encosta esparramar-se sobre um vasto vale, onde os arbustos dançavam ao vento e a luz das estrelas refletia em uma grande quantidade de pequenos objetos espalhados pelo chão. Ela achou que deviam ser grandes flores brancas, e esse pensamento lhe trouxe à memória uma vaga lembrança. Pensou em um vale sobre o qual os negros se referiam com medo, um vale para o qual haviam fugido as jovens mulheres de uma estranha raça de pele morena, que habitara aquela terra antes da vinda dos ancestrais dos Bakalahs. Ali, segundo a lenda, as mulheres haviam sido transformadas pelos primitivos deuses, para fugir dos seus perseguidores. Nenhum nativo se arriscaria a ir para aquele lugar.

Mas Lívia ia se arriscar a descer ao vale. Ia descer por aquelas encostas gramadas, que pareciam veludo sob os seus delicados pés. Ia habitar entre as oscilantes hastes das flores brancas, e nenhum homem jamais viria para colocar suas mãos rudes sobre ela. Conan dissera que os pactos são feitos para serem quebrados. Então, ela romperia seu pacto com ele. Iria para o Vale das Mulheres Perdidas e deixar-se-ia perder na solidão e quietude daquele lugar... Nem mesmo concluíra esses pensamentos e já estava descendo pela encosta. As paredes do vale começaram a se elevar dos dois lados.

Eram tão suaves as encostas que, mesmo ao chegar ao fundo do vale, ela não tinha a impressão de estar cercada por paredes de pedra. Tudo ao seu redor parecia um imenso mar de sombras, e as grandes flores brancas dançavam ao seu redor, parecendo sussurrar para ela. Lívia andava a esmo, abrindo caminho pelos arbustos com as duas mãos muito pequenas e delicadas, ouvindo o sopro suave do vento pelas folhas, descobrindo um prazer infantil no murmúrio de um regato que não enxergava. Movia-se como se estivesse sonhando, presa de uma estranha e total irrealidade. Um pensamento se repetia em sua mente: ali ela estava a salvo das brutalidades dos homens. Então chorou, mas foram lágrimas de alegria. Deitou-se sobre a relva e agarrou a grama espessa como se pretendesse apertar seu novo refugio contra o peito e segurá-lo ali para sempre.

Arrancou algumas pétalas das flores brancas e fez com elas um pequeno enfeite para seus cabelos dourados. O perfume combinava muito bem com tudo o mais que havia naquele vale, sutil e encantador como um sonho.

Então ela chegou a uma clareira no meio do vale e viu uma grande pedra, cortada como se tivesse sido lavrada por mãos humanas, adornada com samambaias e flores de diversos tipos e cores. Ficou ali parada, olhando para a pedra, até que de repente sentiu movimento e vida ao seu redor. Voltou-se e viu algumas figuras que corriam furtivamente pelas sombras. Eram mulheres delicadas, de pele morena, e estavam nuas, com os cabelos negros decorados por flores brancas. Como habitantes ae um sonho elas se aproximaram, sem nada dizer. De repente, o terror tomou conta de Lívia, quando ela viu os olhos das mulheres. Eram luminosos, radiantes sob o brilho das estrelas. Mas não eram olhos humanos. As mulheres tinham forma humana, mas parecia que suas almas haviam passado por uma estranha transformação, que se refletia naqueles olhos luminosos. O medo tomou conta dela como uma onda do oceano. A serpente mostrava sua cabeça medonha no novo paraíso que Lívia encontrara.

Mas ela não podia fugir. As delicadas mulheres estavam ao seu redor. Uma delas, mais bonita do que as outras, veio silenciosamente em direção de Lívia e a envolveu com seus braços macios. No hálito tinha o mesmo perfume das flores brancas que balançavam ao vento. Seus lábios encobriram os de Lívia, em um longo e terrível beijo. Ela sentiu um frio gelado correndo por suas veias. Seus membros enfraqueceram. Como uma estátua de mármore branco ela estava nas mãos de sua captora, incapaz de falar ou de se mover.

Mãos muito rápidas e delicadas a levantaram e colocaram sobre o altar de pedra, no meio de uma cama de flores. As mulheres morenas deram-se as mãos e formaram um círculo dócil ao redor do altar, numa dança escura e muito estranha. Jamais o sol ou a lua tinham visto uma dança como aquela, e as grandes estrelas brancas ficaram ainda maiores e brilharam com mais intensidade, como se aquela feitiçaria negra provocasse reações do Cosmos e dos elementos. Ouviu-se então um canto baixo, muito menos humano do que o murmúrio do regato distante. Era mais um sussurro de todas aquelas vozes, como o barulho das flores brancas que dançavam debaixo das estrelas. Lívia estava deitada, consciente, mas sem poder se mexer. Não lhe passou pela cabeça a idéia de achar que estivesse louca. Não procurava raciocinar nem analisar a situação. Ela estava ali, e aquelas estranhas criaturas também. A surpreendente compreensão da existência e o reconhecimento da verdade do pesadelo tomaram conta dela, deitada e impotente, olhando para o céu cravejado de estrelas, de onde alguma coisa lhe dizia que haveria de vir o socorro de que ela precisava, como já acontecera muito tempo antes, transformando aquelas mulheres nos seres desalmados que são agora.

Primeiro ela viu lá em cima uma pequenina mancha negra entre as estrelas, que foi crescendo e se expandindo. Aproximou-se dela, chegou ao tamanho de um morcego, mas continuou crescendo, embora sua forma não se alterasse muito com o crescimento. Pairou entre as estrelas, tombando como se mergulhasse em direção à terra, com as grandes asas abertas sobre ela. Lívia estava à sombra daquela coisa e, ao seu redor, o canto aumentava de volume, tornando-se uma oração pagã de alegria sem alma, uma prece de boas vindas ao deus que descia para recolher o sacrifício fresco e róseo como uma flor no orvalho da manhã.

Pairava diretamente acima dela, e sua alma ficou tensa, gelada e pequenina diante daquela estranha visão. As asas pareciam as de um morcego, mas o corpo da criatura, assim como o rosto

escuro que olhava para ela, não tinham semelhança com qualquer coisa que houvesse na terra, no céu ou no mar. Lívia sentiu que estava de frente para o horror, para uma loucura cósmica, negra, nascida dos golfos escuros situados além do alcance dos mais estranhos sonhos de qualquer ser humano, por mais enlouquecido que estivesse.

Rompendo os laços invisíveis que a mantinham imóvel, ela gritou com toda a força do seu peito. Seu grito foi respondido com um clamor profundo e ameaçador. Ela ouviu o barulho de pés correndo e, ao seu redor percebeu um redemoinho igual ao de águas muito rápidas. As flores brancas voaram pelo ar e as mulheres morenas desapareceram. Acima dela ainda pairava a grande sombra negra, mas Lívia viu uma figura branca e muito alta, com penas arrumadas na cabeça, correndo na sua direção.

— Conan! — O grito escapou-lhe dos lábios. Com um grito feroz e indistinto, o bárbaro saltou para o ar, brandindo a espada que reluziu sob as estrelas.

As grandes asas negras levantaram e baixaram. Paralisada de horror, Lívia viu o cimério envolvido pela sombra negra que pairava sobre ele. A respiração do homem tornou-se ofegante. Seus pés batiam forte no chão duro, esmagando as flores brancas sobre a terra. O impacto violento dos seus golpes ecoou pela noite escura. Ele era lançado de um lado para o outro, como um rato nas mandíbulas de um cão. O sangue espirrava sobre a relva, misturando-se com as pétalas brancas, caídas ao chão como um tapete.

Foi então que a garota, observando a batalha diabólica como se estivesse vivendo um pesadelo, viu aquele monstro de asas negras balançar e vacilar no espaço. Ouviu as batidas das asas quebradas, e o monstro que escapou e flutuou de volta para cima, para misturar-se de novo com as estrelas e desaparecer no meio delas. O guerreiro vitorioso parecia tonto e cambaleava, mas tinha a espada nas mãos e as pernas abertas, em posição de combate. Olhava boquiaberto para cima, surpreso com a vitória, mas pronto e disposto a uma nova batalha, se necessário fosse.

Um instante depois Conan aproximava-se do altar, ofegante, derramando sangue a cada passo. Seu peito enorme subia e descia, reluzente por causa da transpiração. O sangue descia por seus braços, em fios que se originavam no pescoço e nos ombros. Quando a tocou rompeu-se o feitiço que havia sobre a garota e ela se sentou e desceu do altar, afastando-se das mãos dele. Conan apoiou-se na pedra, olhando para ela, agachada aos seus pés.

— Meus homens viram quando você fugiu da aldeia a cavalo, — ele disse. Vim atrás assim que consegui sair, e encontrei o seu rastro, embora não fosse fácil seguir as pegadas do cavalo com uma tocha na mão. Consegui chegar até o lugar onde o cavalo a derrubou e, como as tochas já estavam extintas, não encontrei mais as marcas dos seus pés sobre a relva macia. Mas eu tinha certeza de que havia descido para o vale. Meus homens recusaram-se a me seguir, e eu tive de vir sozinho, a pé. Que vale dos infernos é este? E que coisa estranha era aquela?

— Um deus, — sussurrou Lívia. — Os bakalahs me falaram a respeito dele. É um deus que vem de muito, muio longe, do passado distante!

— Um demônio vindo da escuridão do espaço! — resmungou Conan. — E não são de todo incomuns. Eles espreitam como bandos de pulgas fora do cinturão de luz que envolve este mundo. Já ouvi os sábios de Zamora falarem a respeito deles. Alguns conseguem penetrar na terra, mas quando fazem isso precisam assumir uma forma humana de carne e osso ou coisa assim. Um homem como eu, com uma espada nas mãos, pode enfrentar qualquer quantidade de presas e garras, sejam da terra ou do inferno. Vamos, meus homens estão esperando além dos limites do vale.

Ela se manteve agachada, imóvel, incapaz de encontrar palavras, enquanto ele a censurava com o olhar. Então, ela disse:

— Eu fugi de você. Pretendia enganá-lo. Não ia manter minha promessa. Devia entregar-me a você conforme combinei, mas teria fugido de você, se tivesse conseguido. Agora, pode me punir como quiser.

Ele balançou a cabeça para livrar-se do suor e do sangue, e colocou a espada na bainha. Depois resmungou.

— Levante-se! Foi um acordo idiota que eu fiz. Não me arrependo de ter acabado com aquele cachorro negro do Bajujh, mas você não é uma escrava que se compra e se vende. Os costumes dos homens são diferentes em lugares diversos, mas nenhum homem precisa ser um porco, esteja ele onde estiver. Andei pensando e acho que, se a fizesse cumprir sua promessa, seria o mesmo que forçá-la a entregar-se a mim. Além do mais, você não é suficientemente dura para viver nesta terra. É filha das cidades, dos livros e dos costumes civilizados. A culpa não é sua, mas você morreria muito depressa se tivesse de levar a vida que eu levo. E uma mulher morta não me serviria para coisa alguma. Portanto, vou levá-la até às fronteiras da Stygia. Os estígios tratarão de mandá-la de volta para sua casa, em Ophir.

Os olhos dela se arregalaram, como se ela não tivesse entendido o que acabara de ouvir.

— Minha casa? Minha Casa? Ophir? Minha gente? As cidades, as torres, a paz, meu lar!

As lágrimas encheram os olhos dela. Caindo de joelhos, ela abraçou as pernas dele.

— Em nome de Crom, garota, — disse Conan, confuso. — Não faça isso, por favor. Não pense que estou lhe fazendo um favor ao expulsá-la deste país. Já não expliquei que você não é uma mulher adequada para o chefe guerreiro dos bamula?

 

O sol do meio-dia ardia sob a abóbada incendiada do céu. As areias desertas e secas de Shan-e-Sorkh, o Deserto Vermelho, queimavam debaixo da impiedosa fogueira do sol, como se estivessem em uma gigantesca fornalha. Nada se movia no ar parado. Não havia movimento sequer entre os pequenos e espinhosos arbustos que se erguiam sobre as baixas colinas, cobertas de pedregulhos, e que pareciam formar uma parede nos limites do deserto.

Tampouco se moviam os soldados agachados atrás dos morros, observando a trilha.

Nesse lugar, algum tipo de conflito primordial entre as forças naturais tinha aberto uma fenda através das rochas escarpadas. Milhares de anos de erosão tinham alargado a fenda, mas ela ainda era uma passagem estreita entre as encostas íngremes — o local perfeito para uma emboscada. Os soldados da tropa turaniana tinham ficado escondidos sobre as colinas durante toda a tórrida manhã. Enfrentando o terrível calor em suas túnicas de malha protetora de aço, eles agora apoiavam o corpo sobre as pernas e os joelhos doloridos. Amaldiçoando sua sorte, o capitão da tropa, o emir Boghra Khan, permanecera o tempo todo da insuportável vigília ao lado dos seus soldados. Sua garganta estava tão seca como o couro curtido ao sol. Seu corpo cozinhava dentro da malha protetora de aço. Naquela terra maldita de morte e sol ardente, não havia meio de um homem transpirar confortavelmente. O ar ressecado do deserto bebia sedento cada gota de umidade, deixando as pessoas tão secas como a língua murcha de uma múmia estígia.

O emir piscou e esfregou os olhos, forçando a vista contra a intensa claridade, para ver de novo a pequenina luz que piscava. Uma sentinela avançada, escondida entre as dunas de areia vermelha, tinha feito o sol refletir em um pequeno espelho para mandar um sinal ao chefe, que se encontrava nas colinas.

Ao longe já se podia ver uma nuvem de poeira. Um sorriso se abriu entre as barbas negras do corpulento nobre turaniano, que chegou a esquecer o desconforto que sentia. Sem dúvida o informante traidor tinha merecido o suborno com o qual se vendera!

Logo depois Boghra Khan já conseguia ver a longa fila de guerreiros zuagires, cobertos com longas khalats brancas, montando seus esbeltos garanhões do deserto. Quando o bando de saqueadores do deserto emergia da nuvem de poeira levantada pelos cascos de seus próprios cavalos, o lorde turaniano já conseguia discernir os rostos magros e escuros de suas futuras vítimas, emoldurados por seus protetores de cabeça — tão limpo era o ar do deserto e tão brilhante o sol. Um arrepio de satisfação tomou conta de suas veias, como o vinho vermelho de Aghrapur encontrado nas adegas particulares do jovem rei Yezdigerd.

Durante muitos anos essa quadrilha de bandidos tinha pilhado e saqueado inúmeras aldeias, entrepostos comerciais e paradas de caravanas ao longo das fronteiras de Turan. A princípio o bando tinha agido sob o comando do perverso e traiçoeiro Olgerd Vladislav. Depois, desde mais ou menos um ano antes, comandado por seu sucessor, Conan. Finalmente os espiões turanianos, infiltrados em aldeias cujos habitantes simpatizavam com os bandidos, tinham conseguido encontrar um membro corrupto daquele bando — um tal de Vardanes, que não era zuagir, mas zamoriano. Vardanes tinha sido irmão de sangue de Olgerd, que Conan afastara do comando, e tinha uma enorme sede de vingança contra o estranho que usurpara a chefia do bando.

Boghra esfregava a barba, pensativo. O traidor zamoriano era um vilão sorridente, dono de espalhafatosa gargalhada, bastante simpático para os turanianos. Pequeno, magro, de corpo flexível e elegante, Vardanes era um jovem bonito e descuidado, companheiro alegre das bebedeiras e um lutador diabólico, mas de coração tão frio e indigno de confiança como uma víbora.

Agora os zuagires passavam pelo desfiladeiro. E lá, na frente de uma das colunas dos flancos, vinha Vardanes, sobre uma saltitante égua branca. Boghra Khan ergueu um dos braços, avisando seus homens para ficarem preparados. Queria que o maior número possível de zuagires entrasse no passo, antes de fechar a armadilha sobre eles. Somente Vardanes deveria sair dali com vida. No momento em que ele ficou além das paredes de pedra, Boghra baixou rapidamente o braço, como se estivesse cortando o ar.

— Matem os cães! — gritou ele, levantando-se.

Uma nuvem de flechas assobiou pelo ar, atravessando o ar iluminado pelo sol como uma chuva mortífera. Em uma questão de segundos, os zuagires estavam no mais completo tumulto, um bando de homens que gritavam e cavalos que saltavam e disparavam para todos os lados. As flechas continuaram caindo em verdadeiras nuvens que varriam sobre eles. Os bandidos caíam, agarrados às hastes com penas que brotavam nos seus corpos como se fosse por magia. Os cavalos relinchavam assustados, feridos pelas flechas afiadas que lhes atingiam o corpo empoeirado.

A poeira ergueu-se em uma nuvem sufocante, escurecendo a parte inferior do passo. Tornou-se tão espessa que Boghra Khan ordenou aos arqueiros que fizessem uma pausa no ataque, para não desperdiçarem flechas no meio da poeira, que os impedia de fazer pontaria. E aquela momentânea preocupação com a economia acabou sendo sua desgraça. Porque, no meio do clamor desesperado dos bandidos, ergueu-se um grito profundo, que se sobrepôs ao caos.

— Subam pelas encostas e revidem o ataque!

Era a voz de Conan. Um instante depois, a gigantesca figura do próprio cimério avançava pela íngreme encosta, montando um enorme e fogoso garanhão. Qualquer um acharia que apenas um tolo ou um louco seria capaz de avançar para cima, numa íngreme colina coberta de areia e pedras soltas, indo de frente contra o poderoso inimigo. Mas Conan não era tolo nem louco. É fato que se deixara dominar por um feroz desejo de vingança mas, por trás de seu rosto austero e queimado pelo sol, e dos seus olhos ardentes, como duas labaredas azuis encimadas por sobrancelhas negras, estava em ação a aguçada perspicácia de um guerreiro experimentado. Ele sabia, melhor do que ninguém que, muitas vezes, a única resposta possível em uma emboscada era uma atitude inesperada.

Atônitos, os guerreiros turanianos afrouxaram os arcos, limitando-se a olhar estarrecidos. Agarrando-se e subindo com dificuldade pelas íngremes encostas das laterais do passo, escapando da nuvem de poeira que cobria o desfiladeiro, vinha todo o bando agitado dos zuagires, gritando, a pé e montados, direto contra o inimigo. Num instante os bandidos do deserto — mais numerosos do que o emir imaginara — avançavam violentamente pelo topo da colina, de cimitarras em punho, amaldiçoando e soltando os seus estridentes gritos de guerra.

À frente deles destacava-se a gigantesca figura de Conan. As flechas tinham rasgado sua khalat branca, deixando à mostra a malha negra que protegia todo o seu tronco, forte como o de um leão. Sua cabeleira selvagem e mal aparada escapava por baixo do capacete de aço, como uma bandeira esfarrapada. Uma flecha perdida tinha arrancado o enfeite de seu capacete. Em seu garanhão de olhos selvagens, ele atacou os inimigos como um demônio saído de um mito. Não estava armado com uma cimitarra semelhante às dos povos do deserto, mas com uma enorme espada ocidental de lâmina bastante larga — sua arma favorita entre todas as que carregava e sabia manejar com tanta perícia. Em seus punhos marcados pelas cicatrizes agitava-se essa pesada lâmina de aço tão brilhante como um espelho, abrindo um caminho vermelho por entre os turanianos. Ela subia e descia, derramando gotículas encarnadas pelo ar do deserto. A cada golpe a espada rasgava armaduras, carne e ossos, arrebentando um crânio aqui, arrancando um membro ali, lançando ao chão suas vítimas inertes, mutiladas e ensanguentadas, com as costelas afundadas para dentro. Ao final de apenas meia-hora, tudo estava terminado. Nenhum turaniano conseguiu sobreviver à matança, exceto alguns que fugiram logo no começo do combate — e seu líder. Com seu manto rasgado e o rosto ensanguentado, o emir, mancando e todo desarrumado, seguia à frente de Conan que, sentado em seu arquejante garanhão, limpava o sangue da lâmina da espada com a capa de um dos mortos.

Conan observava o derrotado lorde com uma expressão de desprezo, combinada com um olhar de humor sarcástico.

— Então, Boghra, nós nos encontramos de novo! — ele resmungou.

O emir piscou os olhos irritado, mal acreditando no seu destino.

— Maldito! — praguejou ele.

Conan riu. Dez anos antes, como um jovem e itinerante vagabundo, o cimério tinha servido junto ao corpo de mercenários de Turan. Tinha deixado as tropas do rei Yildiz com uma certa pressa, por causa de um probleminha com a amante de um dos oficiais — de fato, partira com tamanha pressa que deixara de pagar uma dívida de jogo que havia contraído com o mesmo emir que agora estava ali, boquiaberto diante dele. Na época, como jovem descendente de um lar nobre, Boghra Khan tinha sido companheiro de Conan em muitas noitadas divertidas, indo das mesas de jogo para as bebedeiras e as casas de prostituição. Agora, bem mais velho, o mesmo Boghra olhava boquiaberto, derrotado na batalha por um velho camarada cujo nome ele jamais conseguira vincular à fama do terrível líder dos guerreiros do deserto.

Conan dirigiu-lhe um olhar de reprovação.

— Você estava esperando por nós aqui, não estava? — ele rugiu.

O emir encolheu-se. Não pretendia dar informação alguma ao líder dos bandidos, mesmo tratando-se de um dos seus antigos companheiros de bebedeiras. Mas já tinha ouvido contar muitas e horripilantes histórias sobre os métodos sanguinários dos zuagires para arrancar confissões dos seusprisioneiros. Gordo e mole por ter passado muitos anos em uma vida principesca, o oficial turaniano temia não poder manter silêncio debaixo daquele tipo de pressão.

Mas, para sua surpresa, sua colaboração não era necessária. Conan tinha visto que Vardanes, que pedira para ficar em posição avançada na cavalgada daquela manhã, tinha disparado com o cavalo para fora do desfiladeiro alguns momentos antes do ataque dos turanianos.

— Quanto foi que pagou a Vardanes? — perguntou Conan de repente.

— Duzentas moedas de prata... — resmungou o turaniano. Mas silenciou de repente, surpreso diante de sua própria indiscrição.

Conan riu.

— Um suborno principesco, não? Aquele velhaco sorridente... Como todo zamoriano, tem a traição plantada no fundo do seu podre e negro coração! Ele jamais me perdoou por ter tomado o comando de Olgerd! — Conan fez silêncio, lançando um olhar de zombaria na direção da cabeça baixa do emir. E sorriu, com um ar de compaixão, quando disse: — Não se martirize, Boghra. Afinal, você não contou seus segredos militares, mas eu é que o fiz revelar a informação. Pode voltar a cavalo para Aghrapur com sua honra de soldado intacta.

Boghra ergueu a cabeça, ainda mais surpreso. E perguntou:

— Você vai me deixar viver?

Conan acenou com a cabeça.

— E por que não? Ainda estou lhe devendo um saco de ouro por aquela velha aposta. Acho que podemos trocar sua vida pelo ouro Mas, da próxima vez, cuidado ao montar armadilhas para lobos. Você pode acabar pegando um tigre!

 

Depois de dois dias de cavalgada pelas areias vermelhas de Shan-e-Sorkh , os saqueadores do deserto ainda não haviam conseguido alcançar o traidor. Sedento de vontade de ver o sangue de Vardanes, Conan insistia para que seus homens continuassem cavalgando. O cruel código do deserto exigia a Morte das Cinco Estacas para o homem que traíra seus companheiros, e Conan estava determinado a fazer com que o zamoriano pagasse por seu crime.

Ao final da tarde do segundo dia, montaram acampamento ao abrigo de um morro de arenito, que se erguia no meio das areias cor de ferrugem como um pedaço da torre de alguma ruína primitiva. O rosto duro de Conan, quase negro por causa da inclemência do sol, estampava todo o cansaço que ele sentia. O cavalo arquejava exausto, babando pela boca cheia de espuma, quando ele colocou a sacola d'água no seu focinho. Atrás dele, os homens esticavam as pernas exaustas e os braços doloridos. Deram água aos animais e acenderam uma fogueira para manter afastados os cães selvagens do deserto. Conan ouviu o barulho das cordas quando os homens tiraram dos alforjes as barracas e os utensílios de cozinha.

A areia fez barulho quando uma sandália afundou nela, atrás de Conan. Ele voltou-se para ver o rosto cicatrizado e barbado de um dos seus ajudantes de ordens. Era Gomer, um shemita de olhos negros e nariz em forma de gancho, cujos cabelos escorriam pelas dobras do capacete como argolas negro-azuladas.

—O que houve? — perguntou Conan, escovando o cavalo fatigado.

O shemita encolheu os ombros e disse:

— Ele continua indo diretamente para o sudoeste. O maldito traidor deve ser feito de ferro!

Conan deu uma gargalhada.

— Sua égua pode ser de ferro, mas Vardanes não. É de carne e osso, como você vai ver quando eu o amarrar nas estacas e arrancar sua barrigada para os abutres comerem!

Os olhos tristes de Gomer espelhavam um certo medo.

— Conan, não acha melhor desistirmos da perseguição? A cada dia afundamos mais e mais nesta terra de areia e sol, onde só víboras e escorpiões conseguem viver. Por todos os dragões, a menos que voltemos agora mesmo, nós todos acabaremos com os ossos espalhados pela areia para sempre!

— Nada disso, — resmungou o cimério. — Se alguém vai deixar os ossos espalhados pela areia, esse alguém é aquele maldito zamoriano. Não tenha medo, Gomer. Nós ainda o alcançaremos. Talvez amanhã mesmo. Ele não vai conseguir continuar cavalgando para sempre.

— Nem nós! — protestou Gomer. E fez silêncio ao sentir o olhar penetrante e inquisitivo de Conan.

— Mas não é só isso que o está preocupando, não é Gomer? — indagou Conan. Vamos homem, desembuche logo!

O robusto shemita encolheu os ombros.

— Bem, não. É que eu... os homens temem que... — sua voz quase desapareceu

— Vamos logo! Fale ou arranco a resposta de você a tapa!

— E que... bem, estamos em Makan-e-Mordan! — explodiu Gomer.

— Eu sei. Já ouvi falar deste “Antro dos Fantasmas”. Mas, e daí? Vai me dizer que está com medo das histórias contadas por mulheres velhas?

Gomer parecia infeliz.

— Não são apenas histórias, Conan. Você não é zuagir e não entende. Não conhece esta terra e suas ameaças como nós, que vivemos há tanto tempo no deserto. Durante milênios, esta terra tem sido amaldiçoada e assombrada, e a cada hora que cavalgamos mais nos afundamos neste lugar maldito. Os homens têm medo de lhe dizer, mas estão apavorados e aterrorizados.

— Por causa de uma superstição infantil? — rosnou Conan. — Eu sei que eles estão tremendo de medo das lendas sobre fantasmas e demônios. Também já ouvi as histórias que contam a respeito deste lugar, Gomer. Mas são apenas historinhas para assustar crianças, e não guerreiros como nós! Diga aos seus companheiros que abram bem os olhos. Minha ira é mais forte do que todos os fantasmas que já morreram!

— Mas, Conan...

O cimério interrompeu com uma voz áspera.

— Chega desse medo infantil, shemita! Eu jurei por Crom e por Mitra que farei correr o sangue daquele traidor zamoriano, ainda que me arrisque a morrer por isso! E se tiver de derramar um pouco de sangue zuagir pelo caminho, pouco me importa. Agora, pare de choramingar e venha tomar uma garrafa comigo. Minha garganta já estava tão seca como este maldito deserto, e essa conversa chata só fez piorar as coisas.

Com um toque nos ombros de Gomer, Conan afastou-se na direção da fogueira, onde os homens tiravam das sacolas grandes pedaços de carne defumada, figos e tâmaras secos, queijo de leite de cabra e sacolas de couro cheias de vinho.

Mas o shemita não acompanhou o cimério de imediato. Ficou parado ali por algum tempo, olhando para o chefe que vinha acompanhando havia quase dois anos, desde que o bando encontrara Conan crucificado perto das muralhas de Khauran. Conan tinha sido capitão da guarda real que servia a rainha Taramis, de Khauran, até que o trono fora usurpado pela bruxa Salomé, ajudada por Constantius, o Falcão, líder das Companhias Livres.

Quando Conan se inteirara dos planos dos usurpadores e decidira permanecer ao lado de Taramis, que fora derrotada, Constantius mandara que o crucificassem do lado de fora das muralhas da cidade. Por sorte, Olgerd Vladislav, chefe dos bandidos zuagires que agiam na região, tinha passado por ali e decidido libertar Conan de sua cruz, dizendo que, se ele sobrevivesse aos ferimentos, poderia juntar-se ao bando. Conan não apenas sobrevivera, mas provara ser um líder nato, acabando por tomar de Olgerd a chefia do bando, que continuava comandando.

Mas sua liderança não passaria da noite de hoje. Gomer, de Akkharia, suspirou profundamente. Nos últimos dois dias, Conan cavalgara diante deles mergulhado nos seus sombrios desejos de vingança. Não conseguia entender até que ponto ia a paixão no coração dos zuagires. Gomer sabia que, apesar do respeito que tinham por Conan, seus temores supersticiosos os haviam levado à beira do motim e da revolta assassina. Eram capazes de seguir o cimério até às ardentes portas do inferno... mas não dariam mais um passo no Antro dos Fantasmas.

O shemita idolatrava seu chefe. Mas, sabendo que nenhuma advertência ou ameaça afastaria o cimério do caminho da vingança, só conseguia pensar em um modo de salyar Conan dos punhais dos seus homens. De um bolso em sua capa branca ele retirou um pequeno frasco onde havia um pozinho verde. Escondendo o frasco na palma da mão, reuniu-se a Conan junto ao fogo, para tomar com ele uma garrafa de vinho.

 

Quando Conan acordou, o sol já estava alto no céu. As ondas de calor tremiam sobre as areias estéreis. O ar estava quente, parado e seco, como se o céu fosse uma tijela invertida, ardendo em brasa.

Conan cambaleou sobre os joelhos e apertou as sobrancelhas que latejavam. A cabeça doía tanto como se tivesse sido atacada a pauladas.

Ergueu-se indeciso e ficou parado, oscilando de um lado para o outro. Com a vista embaçada, forçando os olhos contra a intensa claridade, ele olhou ao redor. Estava sozinho, naquela maldita terra seca.

Resmungou uma maldição contra os supersticiosos zuagires. Todo o bando havia desfeito o acampamento e desaparecido, levando os apetrechos, os cavalos e as provisões. Ao seu lado havia duas sacolas de pele de cabra, cheias d'água. Seus companheiros nada mais haviam deixado, além das sacolas d'água, sua malha de aço e a capa, assim como sua pesada espada.

Conan tornou a cair de joelhos e puxou o cordão de uma das sacolas d'água. Erguendo o recipiente com o líquido morno sobre a cabeça, lavou da boca o gosto ruim que sentia e bebeu um pouco, tornando a fechar a sacola antes de saciar por completo a tremenda sede que o consumia. Embora tivesse vontade de derramar toda a água sobre a cabeça que latejava, sua razão falou mais alto. Se ele se perdesse naquela vastidão deserta, cada gota seria necessária para garantir sua sobrevivência.

Apesar da dor de cabeça e de ainda estar confuso, ele começava a perceber o que tinha acontecido. Seus companheiros zuagires tinham mais medo daquele lugar do que ele fora capaz de imaginar, apesar das advertências de Gomer. Ele cometera um erro muito sério — talvez até fatal: tinha subestimado o poder da superstição sobre aqueles guerreiros do deserto, e confiado demais no seu poder de controlá-los e dominá-los. Com um gemido surdo, Conan amaldiçoou seu próprio orgulho, sua arrogância e teimosia. Se não mudasse de atitude, acabaria encontrando o caminho da morte.

E talvez o seu dia tivesse chegado. Lenta e dolorosamente, ele procurou examinar melhor a sua situação. Suas chances não pareciam ser boas. Tinha água suficiente para um par de dias, se fizesse bastante economia. Talvez até três, se corresse o risco de enlouquecer, limitando ainda mais o consumo. Não tinha comida e nem montaria, o que significava que teria de tentar sair dali andando.

Pois bem, ele ia caminhar. Mas, para onde? A resposta mais óbvia era: para o lugar de onde tinha vindo. No entanto, havia vários argumentos contrários a isso. O mais eloquente de todos referia-se à distância. Com o bando ele havia cavalgado dois dias inteiros, depois de terem deixado o último bebedouro que encontraram. Um homem a pé conseguiria viajar, no máximo, à metade da velocidade de um cavalo. Portanto, como seu suprimento de água estava estimado em dois dias, se ele voltasse pelo mesmo caminho teria de caminhar dois dias inteiros sem água nenhuma...

Conan esfregou o queixo, pensativo, tentando esquecer a cabeça que latejava de dor e procurando raciocinar com clareza. Voltar pelo caminho de onde viera não era uma boa idéia, pois ele sabia que não encontraria água antes de caminhar durante quatro dias.

Ele olhou para a frente, onde a trilha do fugitivo Vardanes se estendia em linha reta para o horizonte.

Talvez pudesse continuar seguindo a pista do zamoriano. Embora a trilha levasse a um território desconhecido, ele tinha a seu favor o próprio fato de tratar-se de um lugar desconhecido. Talvez houvesse um oásis logo depois das primeiras dunas. Era muito difícil chegar a uma conclusão sensata naquelas circunstâncias, mas Conan decidiu seguir aquele que lhe parecia o melhor caminho. Vestindo a capa branca sobre a malha protetora de aço, colocou a espada sobre o ombro e caminhou pela trilha de Vardanes, com as duas sacolas de água nas costas.

O sol permanecia dependurado no céu, que mais parecia uma fornalha metálica. Ardia como um olho em brasa na cabeça de um colossal ciclope, fixo sobre a pequenina e lenta figura que marchava penosamente pela superfície quente das areias vermelhas. Demorou uma eternidade para que o sol da tarde começasse a baixar pela vasta e vazia curva do céu, a caminho da morte na ardente pira funerária do ocidente. Então a noite anunciou-se através das asas sombrias projetadas sobre a abóbada celeste, e um rastro abençoado de frescor espalhou-se por sobre as dunas, em meio às longas sombras e sob os efeitos de uma brisa leve.

A essa altura os músculos das pernas de Conan já haviam ultrapassado os umbrais da dor. A fadiga tinha-se encarregado de amortecê-los e o cimério praticamente tombava para a frente, sobre membros que mais pareciam colunas de pedra animadas por algum tipo de feitiçaria. Sua grande cabeça ia curvada sobre o peito musculoso. Ele caminhava devagar, de modo quase mecânico, precisando descansar, mas movido pela certeza de que, no frescor da noite, ele conseguiria percorrer uma distância bem maior, com menos dor e sofrimento.

Sua garganta estava cheia de poeira. O rosto tinha sido coberto pelo pó vermelho, como uma máscara feita de areia do deserto. Tinha bebido uns bons goles uma hora antes, e só voltaria a beber quando a noite se tornasse tão escura a ponto de impedi-lo de continuar seguindo a trilha de Vardanes.

Naquela noite, os seus sonhos foram muitos e confusos, cheios de figuras típicas dos pesadelos, muitas delas com um único olho debaixo de sobrancelhas bestiais, que atacavam o seu corpo nu com correntes incandescentes.

Quando ele acordou, viu que o sol já ia alto no céu e que tinha outro dia quente pela frente. Levantar-se foi uma verdadeira agonia. Todos os músculos do corpo latejavam como se ele tivesse milhares de agulhas enfiadas na carne. Mas levantou-se para tomar um pequeno gole d'água e continuar sua jornada.

Logo depois ele perdia a noção do tempo. Mas a incansável máquina de sua determinação o empurrava para a frente, passo após passo cambaleante e indeciso. Sua mente vagava pelos caminhos desconhecidos do delírio. Apesar disso, ele ainda tinha claras na mente três idéias fixas: seguir a trilha deixada pelo cavalo de Vardanes, economizar o máximo possível de água e permanecer de pé. Se caísse uma única vez, sabia que não conseguiria levantar-se de novo. E, se tombasse debaixo daquele sol abrasador, seus ossos acabariam secando para permanecer naquela vastidão avermelhada durante anos e anos a fio.

 

Vardanes de Zamora parou no cume de uma das colinas e voltou-se para olhar uma coisa tão estranha que o deixou boquiaberto. Durante cinco dias, desde que a emboscada contra os zuagires tinha-se voltado contra os turanianos, ele cavalgara como louco, jamais se arriscando a parar mais do que uma hora ou duas para descansar e permitir que sua égua recuperasse o fôlego. Estava tomado de um terror tão grande que já nem se sentia mais homem. E isso o levava a continuar fugindo.

Ele sabia muito bem como poderia ser a vingança dos bandidos do deserto. Sua imaginação estava cheia de cenas horripilantes, mostrando o que os inflexíveis vingadores poderiam fazer com seu corpo se conseguissem deitar as mãos sobre ele.

Assim, quando vira fracassar a emboscada, disparara a montaria e galopara direto para o deserto. Ele sabia que o demônio chamado Conan arrancaria o nome do traidor dos lábios de Boghra Khan e viria urrando na sua trilha, com o seu bando de zuagires sangüinários. E não abandonaria facilmente a perseguição contra o traidor.

Sua única chance de escapar estava na fuga pela vastidão de Shan-e-Sorkh, onde seu rastro seria quase impossível de seguir. Embora Vardanes fosse um zamoriano criado na cidade, homem de cultura e sofisticação, a sorte o havia lançado no meio dos bandidos do deserto. E ele os conhecia muito bem. Sabia do temor que sentiam em relação ao Deserto Vermelho, e de que pensavam existir ali todos os tipos de monstros e demônios jamais imaginados. Mas não sabia e nem lhe interessava saber por que os bandidos do deserto temiam tanto o Deserto Vermelho. O importante era que seu medo os impediria de segui-lo para dentro do mortífero deserto.

Mas o bando não tinha desistido da perseguição. Sua vantagem era tão pequena que, dia após dia, ele conseguia ver as nuvens de poeira levantadas pelos cavaleiros zuagires que vinham na sua pista. Vardanes apressava-se o máximo que podia, comendo e bebendo sem descer do cavalo, abusando da montaria até levar a égua à beira da exaustão total, na tentativa de aumentar sua vantagem sobre os perseguidores.

Depois de cinco dias, ele não sabia se o bando permanecia no seu encalço. E logo isso nem iria importar mais. Ele já não tinha mais comida nem água para si mesmo ou para a égua, e só continuava rugindo na esperança de encontrar alguma fonte, naquela vastidão sem fim.

O animal que o levava, coberto por uma espessa camada de poeira e suor, cambaleava para a frente como se fosse uma criatura sem vida, impulsionada pela vontade de algum feiticeiro. E estava bem perto da morte. Nada menos do que sete vezes, naquele dia, a égua caíra pelo caminho, e apenas o chicote de Vardanes a tinha feito levantar e continuar andando. Como ela já não conseguia suportar o peso do traidor, ele andava na frente, puxando a égua pelas rédeas.

O Deserto Vermelho tinha cobrado um enorme tributo do próprio Vardanes. Ele, que pouco tempo antes tinha sido um jovem bonito e sorridente, como um deus, não passava agora de uma figura magra, esquelética, queimada pelo sol. Os olhos vermelhos estavam no fundo do rosto fino e pegajoso. Através dos lábios rachados e secos, ele repetia preces mecânicas a Ishtar, a Set, a Mitra e a uma série de outras divindades. Quando ele e sua trémula montaria conseguiram chegar ao topo de outra duna, Vardanes olhou para baixo e viu um vale verdejante, cheio de palmeiras e tamareiras.

No centro desse fértil vale havia uma pequena cidade cercada por uma muralha de pedras. Cúpulas salientes e torres de vigia erguiam-se sobre um paredão de estuque, onde se podia ver uma enorme porta de madeira, cujas ferragens de bronze polido refletiam a luz intensa do sol.

Uma cidade no meio daquela vastidão escaldante? Um fértil vale cheio de árvores verdes e frescas, nascendo da grama macia e cercadas de límpidas lagoas, no meio daquela vastidão desolada? Impossível!

Vardanes estremeceu, fechou os olhos e lambeu os lábios rachados. Devia ser uma miragem, ou uma fantasia criada por sua mente desordenada! No entanto, veio-lhe à mente um fragmento de conhecimentos quase esquecidos, adquiridos nos seus anos de estudo durante a juventude, muito tempo atrás. Ele se lembrou de um trecho de uma lenda chamada Akhlat, a Amaldiçoada.

Procurou lembrar-se de toda a lenda. Tinha lido a respeito no antigo livro estígio, que seu tutor shemita mantinha trancado em um baú de sândalo. Ainda na sua juventude, Vardanes tinha sido abençoado ou amaldiçoado com a avidez, a curiosidade e a agilidade das mãos. Numa noite escura ele conseguira arrombar o cadeado do baú e tinha lido com temor e repugnância pelas assustadoras páginas daquela obscura coletânea de necromancia primitiva. Manuscrito por mãos trêmulas, sobre páginas de pergaminho amarelado, o texto descrevia estranhos rituais e cerimônias. Havia uma infinidade de hieróglifos indecifráveis, usados em antigos reinos de feitiçaria e maldade, como Acheron e Lemúria, os quais tinham florescido e desaparecido no começo dos tempos.

Entre as páginas cheias de símbolos encontravam-se fragmentos de algum tipo de liturgia obscura, destinada a convocar demônios imortais dos reinos das trevas, além das estrelas, de dentro do caos que os magos primitivos diziam predominar do outro lado das fronteiras do cosmos. Uma dessas liturgias continha misteriosas referências à “amaldiçoada e assombrada Akhlat no Deserto Vermelho, onde poderosos feiticeiros do passado convocavam para a esfera terrestre um Demônio do Além, para seu interminável sofrimento... Akhlat, onde o Imortal reina com mão de terror até os dias de hoje...

Condenada, amaldiçoada Akhlat, que os próprios deuses rejeitaram, transformando todo o território ao seu redor em uma vastidão abrasadora...”

Vardanes permanecia sentado na areia, à frente da égua ofegante, quando os guerreiros de expressões severas o agarraram e fizeram descer das colinas que circundavam a cidade, para o vale jardinado de tamareiras e lagoas de águas límpidas, para as portas de Akhlat, a Amaldiçoada.

 

Conan levantou-se devagar, mas dessa vez foi diferente. Antes, o seu despertar tinha sido doloroso, era difícil abrir os olhos pegajosos para olhar pela claridade intensa do sol abrasador, erguendo-se devagar para cambalear para a frente, sobre as areias escaldantes.

Desta vez ele acordou com facilidade, com uma sensação alegre de satisfação e conforto. Travesseiros de seda davam apoio à sua cabeça. Toldos espessos com franjas dependuradas impediam o sol de continuar queimando seu corpo, que estava limpo e nu, exceto por uma tanga de linho branco.

Com um salto ele acordou de uma vez, como um animal cuja sobrevivência nas selvas depende dessa habilidade. Olhou ao redor, mal acreditando no que via. Seu primeiro pensamento foi que a morte o havia finalmente levado, e seu espírito tinha sido transportado para além das nuvens do paraíso primitivo onde Crom, o deus de seu povo, ocupava seu trono cercado por milhares de heróis.

Ao lado do sofá de seda onde estava havia uma jarra de prata, cheia de água límpida e fresca.

Instantes depois, Conan levantava o rosto molhado de dentro da jarra sabendo que, fosse qual fosse o paraíso em que se encontrava, era um lugar real e físico. Ele bebera bastante, embora a condição em que se encontravam sua garganta e sua boca indicasse que ele não sofria mais os efeitos da ardente sede que enfrentara em sua jornada pelo deserto. Talvez tivesse sido encontrado pelos integrantes de alguma caravana, que o teriam trazido para aquelas barracas, para ser curado e socorrido. Examinando seu próprio corpo Conan viu que havia sido banhado e limpo da poeira do deserto, e que alguém passara uma pomada medicinal em seu tronco e membros. Fossem quem fossem os seus salvadores, tinham-no alimentado e cuidado muito bem dele, enquanto dormia e delirava a caminho da recuperação.

Ele olhou em volta, por toda a barraca. Sua espada estava sobre um grande baú de madeira de ébano. Caminhou em silêncio na direção da arma, quase como um grande gato selvagem... mas parou de repente, ao ouvir o tilintar de uma armadura, logo atrás de si.

No entanto, aquele som musical não vinha da armadura de um guerreiro, mas de uma garota magra, de grandes olhos de gazela, que acabara de entrar na barraca e o olhava curiosa para ele. Seus cabelos negros e brilhantes caíam livres até à cintura, e pequenos sinos de prata estavam amarrados às pontas. Desses sinos viera o barulho que Conan tinha ouvido.

O cimério examinou a garota com um olhar rápido: era jovem, pouco mais do que uma chança, delgada e muito bonita, com um corpo pálido que reluzia de modo atraente, através das vestes transparentes. Havia jóias brilhando em suas mãos delicadas e muito brancas. Pela faixa dourada que trazia na testa e a expressão dos seus olhos grandes e escuros, Conan adivinhou que devia ser de uma raça semelhante aos shemitas.

— Óhhh! — gritou ela. — Você ainda está fraco demais para ficar de pé! Deve descansar mais para recuperar toda a sua força.

O idioma que ela falava era um dialeto shemita, cheio de formas arcaicas mas muito próximo do shemita que Conan conhecia. Portanto, ele entendeu tudo o que ela disse.

— Nada disso, mocinha. Já estou recuperado, — respondeu ele, na mesma língua. — Foi você quem cuidou de mim aqui? Quanto tempo faz que me encontraram?

— Não, estranho senhor. Foi meu pai. Sou Zillah, filha de Enosh, um lorde de Akhlat, a Amaldiçoada. Encontramos o seu corpo no meio das areias eternas do Deserto, há três dias, — respondeu ela, com os olhos quase escondidos atrás dos longos cílios negros.

O único pensamento de Conan foi para a bela visão que tinha diante dos olhos. Fazia semanas que não via mulher alguma, e ele perdeu um bom tempo estudando os contornos arredondados daquele corpo delgado, mal coberto pelos véus de seda transparente. O rosto dela ficou corado de um momento para o outro.

— Então foram as suas lindas mãos que cuidaram de mim, Zillah? — perguntou ele. — Meus melhores agradecimentos a você e ao seu pai por sua misericórdia. Pode estar certa de que cheguei bem perto da morte. Como foi que me encontraram?

Conan esforçou-se e não conseguiu lembrar seja ouvira falar de uma cidade chamada Akhlat, a Amaldiçoada, embora achasse que conhecia todas as cidades dos desertos meridionais, pela fama ou por tê-las de fato visitado.

— Não foi por acaso, eu garanto. Nós viemos ao deserto à sua procura, — disse Zillah. Conan franziu as sobrancelhas, e seus nervos se retesaram ao pressentir perigo. Algo no súbito endurecimento de seu rosto severo e impassível dizia à garota que aquele era um homem dominado por violentas e volúveis paixões animais, uma pessoa perigosa, diferente dos gentis e delicados cavalheiros da cidade, que ela havia conhecido.

— Não queremos lhe fazer mal, — insistiu ela, defensivamente. — Por favor, siga-me e meu pai lhe dará todas as explicações.

Por um instante Conan ficou parado, tenso, tentando adivinhar se Vardanes tinha mandado aquela gente atrás dele. A prata com que ele se vendera aos turanianos sem dúvida era suficiente para comprar as almas de meia centena de shemitas.

Mas seus nervos acabaram relaxando, quando Conan dominou o ardente desejo que nascia dentro de seu peito. Ele apanhou a espada e apoiou a bainha no ombro.

— Então, leve-me a esse tal de Enosh, garota, — disse ele calmamente. — Eu quero ouvir o que ele tem para me contar.

A jovem saiu na frente dele. Conan ergueu os ombros nus e a acompanhou.

 

Enosh estava examinando com cuidado um velho e amarelado pergaminho, sentado em uma cadeira de madeira negra, quando Zillah chegou, trazendo Conan à sua presença. Aquela parte da barraca estava enfeitada com panos roxos. Espessos tapetes abafavam o ruído de seus passos. Um espelho negro, de uma forma bastante estranha, repousava sobre um pedestal espiral, formado de serpentes de bronze polido. As chamas de lanternas fantasmagóricas tremiam naquele lugar escuro.

Enosh levantou-se e cumprimentou Conan, usando de um palavreado bastante educado. Era um homem alto, de idade avançada, magro, mas de corpo ereto. Tinha a cabeça coberta por um turbante de linho branco, e estampava no rosto a idade e as rugas da sabedoria. Seus olhos escuros tinham um brilho de tristeza primitiva.

Pediu ao convidado que se sentasse e ordenou que Zillah lhes servisse vinho. Depois de todas as formalidades, Conan perguntou abruptamente:

— Como foi que conseguiu me encontrar, senhor?

Enosh olhou para o espelho negro e respondeu:

— Embora eu não seja um mago, meu filho, posso me valer de certos meios um tanto sobrenaturais.

— Como estavam a minha procura sem me conhecerem?

Enosh ergueu a mão magra, de veias ressaltadas, procurando acalmar o suspeito guerreiro.

— Paciência, meu jovem amigo, e explicarei tudo, — disse ele, com uma voz baixa e profunda. Estendendo a mão para um pequeno barril que havia ao seu lado, depositou ali o pergaminho que segurava e aceitou uma taça de prata com vinho. Quando os dois terminaram de beber, o velho começou a contar: — Muito tempo atras um astuto feiticeiro desta terra de Akhlat planejou um golpe contra a antiga dinastia que tinha governado este lugar desde o desaparecimento da Atlântida. Usando de muita esperteza, ele fez o povo acreditar que o monarca, um homem fraco e cheio de vaidade, era seu inimigo. O povo rebelou-se e derrubou o vaidoso rei. Mostrando-se como sacerdote e profeta dos Deuses Desconhecidos, o feiticeiro dizia-se inspirado pelas divindades. Declarou que um dos deuses logo desceria à terra para reinar em pessoa sobre Akhlat, a Sagrada, como a cidade era então conhecida.

Conan resmungou:

— Parece que vocês, de Akhlat, são tão ingênuos como todas as nações que eu conheço.

O idoso sorriu e disse:

— É muito fácil acreditar naquilo que pensamos ser a verdade. Mas o plano arquitetado por aquele feiticeiro negro era mais terrível do que qualquer pessoa poderia imaginar. Através de profanos rituais ele invocou para este plano da existência uma mulher-demônio do além, para servir como deusa para o povo. Conservando o seu poder de feiticeiro sobre esse ser, ele apresentou-se como intérprete dos seus divinos desejos. Tomado de surpresa, o povo de Akhlat logo se viu dominado por uma tirania muito pior do que aquela exercida pela antiga dinastia, que havia sido derrubada do trono.

Conan mostrou um sorriso maldoso. E disse:

— Muitas vezes eu vi que as revoluções em geral produzem governos bem piores do que aqueles contra os quais se levantam.

— Talvez. De qualquer forma, aqui foi assim. E, com o passar do tempo, as coisas foram ficando ainda piores, porque o feiticeiro acabou perdendo o controle sobre a criatura demoníaca que havia invocado do além. O espírito do mal o destruiu e passou a governar sozinho este lugar. E ainda o está governando... - concluiu o velhinho.

Conan retrucou:

— Quer dizer que a criatura é imortal? Há quanto tempo foi que isso tudo aconteceu?

— Passou mais tempo do que a soma de todos os grãos de areia desta vastidão, — disse Enosh. — E a deusa continua reinando suprema sobre a infeliz Akhlat. O segredo dos seus poderes é tal que ela consegue sugar a força vital das demais criaturas. Tudo o que vemos ao nosso redor era uma terra verdejante e cheia de vida, com palmeiras e tamareiras ao longo dos rios e das colinas, cuja relva alta sustentava enormes manadas. Sua sede pela vida alheia tornou a terra seca e inóspita, exceto pelo vale onde se encontra a cidade de Akhlat. Ela decidiu manter esta área na sua condição original porque, sem ter nada vivo por perto para poder sugar e explorar, ela não conseguiria manter-se neste plano da existência.

— Em nome de Crom! — resmungou Conan, terminando sua taça de vinho.

Enosh continuou:

— Há vários séculos esta terra foi transformada no deserto estéril que você está vendo. Nossos jovens são usados para saciar a lúgubre sede da deusa, assim como os animais de nossos rebanhos. Ela se alimenta deles sem cessar. A cada dia escolhe uma nova vítima, e a cada dia é uma pessoa ou um animal a menos que temos. Quando ela ataca, a vítima pode permanecer viva por alguns dias, ou até por mais de uma semana. Os mais fortes e corajosos chegam a resistir durante trinta dias antes que ela consiga exaurir toda a sua reserva de vida e atacar a próxima vítima.

Conan acariciou o cabo de sua espada.

— Em nome de Crom e de Mitra! Por que vocês ainda não acabaram com essa coisa?

O velho balançou a cabeça.

— Ela é invulnerável, impossível de matar. Sua carne é composta de matéria que atrai e mantém colada a si, por sua indômita vontade. Uma flecha ou uma espada talvez conseguisse ferir essa matéria, mas ela não demoraria mais de um segundo para reparar o ferimento. E a força vital que ela suga de outras pessoas, transformando-as em cascos vazios, lhe dá uma terrível força interior que permite reformar sua matéria exterior em uma firação de segundo.

— Então queimem essa maldita coisa! — grunhiu Conan. — Ateiem fogo ao palácio com ela dentro, ou então cortem-na em pedacinhos e ponham numa fogueira para queimar!

— Não. Ela usa como escudo os seus poderes negros de magia demoníaca. Sua arma transmite um tipo de paralisia sobre tudo em que fixa os olhos. Nada menos do que cem guerreiros foram uma vez mandados para dentro do seu Templo Negro, determinados a acabar com sua repugnante tirania. E nada restou deles a não ser um grupo de zumbis, os quais acabaram se transformando em um banquete humano para o insaciável monstro.

Conan mostrava-se irritado e nervoso.

— Acho inacreditável que vocês continuem vivendo nesta terra maldita! — resmungou o cimério. — Como é que essa horripilante criatura ainda não sugou a vida de todos os seres humanos deste vale desde que começou seu reinado de terror? E por que vocês ainda não juntaram suas coisas para fugir de uma vez deste lugar demoníaco?

— De fato, restam muito poucos de nós. Ela vai nos consumindo, e acabando com os nossos rebanhos com maior rapidez do que seria possível para o crescimento natural manter a vida neste lugar. Durante muito tempo a mulher-demônio satisfez os seus desejos sugando a existência dos vegetais que cresciam por toda parte, e não atacava as pessoas. Quando a terra tornou-se árida e sem vida, ela passou a se alimentar dos rebanhos e dos nossos escravos, chegando finalmente a atacar os próprios súditos deste reino. Em breve estaremos todos mortos, e Akhlat será apenas uma cidade fantasma. Não podemos abandonar estas terras, pois a força demoníaca da deusa nos mantém confinados dentro de um círculo, para além do qual não podemos escapar.

Conan balançou a cabeça, e a longa cabeleira esfregou sobre os ombros bronzeados.

— É uma história muito triste que você me conta, velho homem. Mas por que a está repetindo com tantos detalhes?

— Por causa de uma antiga profecia, — explicou Enosh calmamente, apanhando o velho e gasto pergaminho que colocara sobre o barril.

— Que profecia?

Enosh desenrolou parte do pergaminho e apontou para algumas linhas de uma escrita tão antiga que Conan não conseguia ler, embora tivesse bons conhecimentos do idioma shemita de sua própria época.

— A profecia de que, no final dos tempos, quando nosso fim estiver próximo, os Deuses Desconhecidos, de quem os nossos ancestrais se afastaram para adorar a muIher-demônio, abrandarão sua ira para nos mandar um libertador, que derrubará a deusa e destruirá o seu poder maldito. Você, Conan da Ciméria, é esse libertador...

 

Durante vários dias e noites, Vardanes esteve confinado numa cela úmida do calabouço localizado na parte inferior do Templo Negro de Akhlat. Ele gritava, implorava e chorava, amaldiçoava e orava, mas os guardas, de olhos parados, expressões frias e capacetes de bronze, não lhe davam atenção, exceto para fornecer-lhe comida e água para beber. Não respondiam suas perguntas e tampouco aceitavam suas ofertas de suborno, o que o deixara pasmado. Como zamoriano típico, Vardanes não conseguia imaginar que existissem homens desinteressados pela riqueza. Mas aqueles sujeitos estranhos, que falavam um dialeto muito antigo e usavam armaduras ultrapassadas, eram tão pouco ambiciosos, em relação à prata que ele ganhara dos turanianos como pagamento por sua traição, que nem ao menos tinham tentado roubar as sacolas cheias de dinheiro que ele havia deixado num canto da cela.

Mas tinham cuidado muito bem dele, banhando seu corpo magro e tratando de seus ferimentos com pomadas e bandagens. E a alimentação que serviam era suntuosa, com aves assadas, deliciosas frutas e carnes variadas. Até um excelente vinho lhe era dado para beber. Tendo conhecido outras masmorras no seu tempo, Vardanes considerava aquela a mais extraordinária de todas. Às vezes ficava imaginando se não o estariam engordando para algum sacrifício...

Então, um dia, os guardas vieram e o levaram de sua cela. Ele pensou que por fim haviam decidido levá-lo a comparecer perante um magistrado para responder a alguma acusação absurda. Sentiu-se confiante. Jamais conhecera um magistrado cuja misericórdia não pudesse ser comprada com a prata. E ele dispunha de prata suficiente nos gordos alforjes que carregava!

Mas, ao invés de ser levado ao magistrado ou juiz, Vardanes foi obrigado a passar por um corredor escuro e cheio de curvas até chegar a uma enorme porta de bronze coberto de bolor esverdeado, que mais parecia a porta do próprio inferno. O imenso portal tinha três cadeados e era reforçado com barras de ferro, suficientemente fortes para suportar o ataque de um exército. Com as mãos nervosas e expressões de tensão no rosto, os guardas tiraram as trancas da grande porta e empurraram Vardanes para dentro.

Quando a porta se fechou às suas costas, Vardanes descobriu que estava em um magnífico salão de mármore polido. Todo o aposento estava mergulhado numa escuridão avermelhada, coberto de poeira. Por toda parte havia amostras de deterioração bastante antiga, com objetos que pareciam há muito abandonados. Ele andou pelo salão, cheio de curiosidade.

Seria aquele lugar uma sala do trono, ou o transepto de algum templo colossal? Era difícil dizer. A coisa mais peculiar a respeito do vasto e sombrio salão, além do abandono em que parecia ter sido deixado muito tempo antes, era o estatuário que havia no piso, em grupos separados. Uma série enorme de complicadas perguntas tomou conta do cérebro confuso de Vardanes.

O primeiro mistério referia-se à substância de que tinham sido feitas as estátuas. Enquanto o salão tinha sido construído do mais liso mármore, as figuras eram de um tipo de pedra porosa, sem brilho e sem vida, que ele não conseguia identificar. Fosse qual fosse o material, nada tinha de atraente. Parecia cinza de madeira morta, embora fosse dura como pedra.

O segundo mistério dizia respeito à incrível arte do escultor desconhecido, cujas mãos dadivosas tinham produzido aquelas maravilhas artísticas. Eram muito semelhantes a pessoas, e mostravam uma inacreditável perfeição de detalhes: cada dobra das vestes parecia tecido verdadeiro; era possível distinguir cada fio de cabelo das figuras. Essa estonteante fidelidade estendia-se até à postura de cada estátua. Mas nenhum agrupamento heróico nem majestade monumental era visível naquelas imagens esculpidas em material de uma tonalidade cinzenta sem brilho, quase como o gesso. Estavam todas paradas, em poses humanas, às dezenas e às centenas. Estavam espalhadas por toda parte, sem qualquer ordem aparente. Haviam sido entalhadas para representar guerreiros e nobres, jovens rapazes e senhoras, velhos cavalheiros e mulheres senis, crianças sadias e até bebes de colo.

A única característica mais perturbadora, comum a todas aquelas figuras, era a expressão de insuportável terror que cada uma delas tinha no rosto.

Não demorou para Vardanes ouvir um leve ruído nas profundezas daquele palácio escuro. Era como o som de muitas vozes, mas tão fraco e distante que ele não conseguia entender as palavras. Era como um diapasão sobrenatural, soprado por aquela floresta de estátuas. Quando Vardanes se aproximou, conseguiu distinguir os grupos de sons que faziam parte do todo: eram soluços lentos, de cortar o coração, gemidos baixos e agonizantes, preces balbuciadas indistintamente, gargalhadas exageradas, monótonas e repetidas maldições. Os sons pareciam sair de meia centena de gargantas, mas o zamoriano não conseguia ver de onde vinham. Embora procurasse por toda parte, nada havia naquele lugar a não ser ele mesmo e milhares de estátuas.

O suor escorreu-lhe pela testa e desceu por seu rosto magro. O medo tomou conta de seu peito. Ele desejou com todas as forças de seu incrédulo coração que estivesse a milhares de léguas de distância daquele maldito templo, onde as vozes de seres invisíveis gemiam, soluçavam, murmuravam e riam horrorosamente.

Foi então que ele viu o trono dourado. Estava bem no meio do salão, e ficava acima das cabeças das estátuas. Os olhos de Vardanes encheram-se de cobiça pelo ouro. Ele abriu caminho pela floresta de figuras duras como pedras para chegar ao trono.

Havia alguma coisa estendida naquele rico trono. Talvez fosse a múmia enrugada de algum rei, morto muito tempo antes. As mãos enrugadas estavam cruzadas sobre o peito afundado. O corpo fino estava todo coberto por uma espécie de mortalha empoeirada, da garganta aos tornozelos. Sobre o rosto havia uma fina máscara de ouro forjado, moldando a expressão de uma mulher de beleza sobrenatural. Uma repentina onda de cobiça acelerou a respiração já ofegante de Vardanes. Ele esqueceu-se de seu medo quando viu, na testa daquela máscara de ouro, uma enorme safira negra, brilhando como um terceiro olho. Era uma pedra de beleza estonteante, digna de um príncipe.

Aos pés do trono, Vardanes mal conseguia controlar a enorme cobiça que sentia pela máscara de ouro. Os olhos tinham sido entalhados como se estivessem fechados, em um sono profundo. Doce e maravilhosa era a boca de lábios cheios daquele lindo rosto de ouro. A enorme safira negra parecia lançar faíscas brilhantes quando ele estendeu sua mão para agarrá-la.

Com os dedos trêmulos, o zamoriano puxou a máscara para si. Debaixo dela havia um rosto moreno e murcho. As faces tinham afundado e a pele era dura, seca como o couro. Vardanes sentiu um calafrio diante da maldosa expressão daquele rosto, que parecia a própria cara da morte.

Então, a múmia abriu os olhos para ele.

Com um grito ele cambaleou para trás, deixando a máscara cair sobre o piso de mármore polido. Os olhos cadavéricos daquela caveira fixaram-se nos dele. E a Coisa abriu seu terceiro olho...

 

Conan abriu caminho pelo salão das estátuas cinzentas, com os pés descalços, espreitando pelas passagens cobertas de poeira como um grande gato selvagem. A luz fraca refletia na lâmina afiada da enorme espada que ele carregava no punho forte. Seus olhos viravam rápido de um lado para o outro, e os pêlos de sua nuca estavam arrepiados. Aquele lugar tinha o fedor da morte.

O cheiro do medo pairava no ar imóvel.

Como ele tinha permitido que o velho Enosh o convencesse a fazer uma loucura daquelas? Ele não era nenhum redentor, não podia ser um libertador predestinado, nem um santo mandado pelos deuses para salvar Akhlat da maldição eterna da mulher-demônio. Seu único propósito era a vingança.

Mas o velho sábio havia contado sua história com todos os detalhes, e sua eloquência tinha levado Conan a partir para a perigosa missão. Enosh havia destacado dois fatos que tinham servido para convencer até o incrédulo bárbaro. Um deles era que, depois de ter entrado naquela terra, Conan também se havia transformado em prisioneiro da magia negra e não poderia partir enquanto a deusa não tivesse sido liquidada. O outro era que o traidor zamoríano tinha sido aprisionado no calabouço que havia debaixo do Templo Negro da deusa, e que logo seria levado à mesma morte que, se não fosse evitada, acabaria destruindo todos eles.

Assim, Conan entrara por uma série de secretas passagens subterrâneas que Enosh lhe mostrara. Tinha chegado ali por meio de uma porta escondida na parede daquele vasto e escuro salão, pois Enosh sabia quando Vardanes estava destinado a ser levado perante a deusa.

Assim como o zamoriano, Conan ficara maravilhado diante do realismo das estátuas cinzentas. Mas, ao contrário de Vardanes, ele sabia a resposta para aquele enigma. O cimério desviou o olhar das expressões de horror que havia nos rostos duros como pedras, em todas aquelas figuras.

Ele também ouviu as lamentações e o choro. Quando se aproximou do centro do enorme salão, cujo teto era sustentado por grandes colunas, ouviu com maior clareza as vozes que soluçavam. Víu o trono dourado e a múmia ressecada que havia sobre ele, e rastejou silenciosamente na direção da reluzente poltrona.

Quando se aproximou, uma das estátuas falou com ele. O susto quase o fez perder o controle. Sua pele arrepiou-se e o suor lhe correu da testa.

Então ele viu a fonte daqueles gritos, e seu coração encheu-se de revolta, porque as pessoas que estavam ao redor do trono não estavam mortas. Eram como pedras

até o pescoço, mas as cabeças ainda tinham vida. Os olhos tristes viravam de um lado para o outro, no mais completo desespero, e dos lábios secos saíam preces implorando que ele enterrasse a pesada espada nos cérebros vivos de todos aqueles seres parcialmente petrificados.

Nesse momento Conan ouviu um grito, na voz conhecida de Vardanes. Teria a mulher-demônio acabado com seu inimigo antes que ele pudesse saciar sua sede de vingança? O cimérío deu um salto e colocou-se ao lado do trono.

Ali, os seus olhos depararam com uma terrível visão. Vardanes estava em pé diante do trono, com os olhos arregalados e os lábios falando sem controle. A atenção de Conan foi atraída pelo barulho de pedra esfregando contra pedra. Ele olhou para as pernas de Vardanes. No ponto em que os pés do zamoriano tocavam o chão, uma palidez cinzenta ia tomando conta deles. A carne quente ia secando diante dos olhos de Conan. A maré cinzenta já chegara aos joelhos de Vardanes. Enquanto Conan observava, a parte de cima das pernas começava a tornar-se dura e branca como pedra. Vardanes tentava andar, mas não conseguia. Sua voz transformou-se em um grito estridente, enquanto seus olhos se fixavam em Conan, com a expressão apavorada de um animal preso numa armadilha.

A coisa sentada no trono emitia uma gargalhada baixa, que mais parecia um cacarejo. Enquanto Conan observava, a carne morta e ressecada sobre os braços esqueléticos e a garganta enrugada ia inchando è a pele tornava-se lisa. Até a cor mudava, do marrom escuro da morte para os tons róseos da vida intensa. A cada sugada de energia vital que a Górgone puxava do corpo de Vardanes, mais o seu próprio corpo adquiria vida e aparência saudável.

— Crom e Mitra! — gritou Conan.

Com todos os átomos de sua mente concentrados no zamoriano já meio-petrificado, a Górgone não deu atenção a Conan. Agora todo o seu corpo se enchia de vida. Ela florescia, tornava-se exuberante. As curvas macias dos quadris e das coxas esticaram a mortalha sem brilho. Seus seios de mulher incharam, puxando o pano fino. Ela estendeu os braços firmes e plenos de juventude. Sua boca corada e úmida abriu-se em mais uma onda de gargalhada, que agora era o riso musical de uma mulher muito atraente.

A onda de petrificação já chegara à cintura de Vardanes. Conan não sabia se ela iria permitir que Vardanes permanecesse semi-petrificado como os outros, que circundavam o trono, ou se lhe sugaria a essência vital até à morte. Afinal, o zamoriano era um homem ainda jovem e cheio de vida. Sua essência devia representar uma iguaria para a deusa vampira.

Quando a onda de petrificação alcançou o peito ofegante do zamoriano, ele soltou outro grito — o som mais horrível que Conan jamais ouvira sair de lábios humanos. A reação do cimério foi instintiva. Como uma pantera no ataque, ele saltou do lugar onde estava escondido, atrás do trono. A luz refletiu sobre a lâmina de sua espada quando ele a ergueu no ar. A cabeça de Vardanes levantou do seu tronco e caiu com um barulho surdo, sobre o piso de mármore.

Sacudido pelo impacto, o corpo tombou e caiu. Quando o corpo bateu no chão, Conan viu as pernas petrificadas racharem e quebrarem em pedaços. Os fragmentos espalharam-se, e o sangue escorreu pelas fendas na carne petrificada.

Assim morria Vardanes, o traidor. Nem o próprio Conan sabia dizer se o seu golpe tinha sido motivado pela sede de vingança, ou se fora resultado de um impulso de misericórdia, para pôr fim ao tormento de uma criatura indefesa.

Conan voltou-se para a mulher-demônio. Sem querer, ele instintivamente ergueu seus olhos para os dela.

 

O rosto dela era uma máscara de encanto inumano. Seus lábios macios e úmidos eram tão cheios e encarnados como fruta madura. Os cabelos negros e brilhantes tombavam sobre os ombros cor de pérola, desmanchando em ondas sedosas sobre os seios redondos e armados. Ela era a encarnação da própria beleza, exceto pela grande esfera negra que tinha entre as duas sobrancelhas.

O terceiro olho encontrou-se com o olhar de Conan e o prendeu de imediato. Essa esfera ovalada era maior do que qualquer órgão humano de visão. Não era dividida em pupila, íris e a parte branca, como os olhos humanos, mas era inteiramente negra. O olhar do cimério mergulhou ali, e ele se viu perdido em infinitos mares de escuridão. Sentiu-se arrebatado, e chegou a esquecer a espada que tinha na mão. O terceiro olho era tão negro como os mares privados de luz do espaço entre as estrelas.

Agora ele parecia estar à beira de um poço negro e sem fundo, dentro do qual acabou caindo. Para baixo, mais baixo, dentro da neblina negra ele caiu, num vasto e gelado abismo da mais profunda escuridão. Ele sabia que, se não afastasse imediatamente o olhar, acabaria ficando perdido para o mundo. Conan reuniu toda a sua força de vontade. As gotas de suor acumularam-se em suas sobrancelhas. Seus músculos contorciam-se como serpentes, debaixo de sua pele bronzeada. Seu peito forte subia e descia.

A Górgone deu uma gargalhada, um som baixo e melodioso, carregado de uma fria e cruel dose de zombaria. Conan sentiu o rosto arder, e o ódio tomou conta de seu peito.

Com uma explosão de decisão, ele afastou os olhos daquela grande esfera negra, e notou que estava olhando para o chão. Fraco e atordoado, ele cambaleou. Lutando para recuperar as forças e manter-se de pé, Conan examinou bem os seus pés. Graças a Crom eles ainda eram de carne e osso, e não de pedra fria! O longo instante em que ficara enfeitiçado pelo olhar da Górgone não passara de um breve momento, curto demais para que a onda de petrificação começasse a tomar conta de sua carne.

A Górgone tornou a gargalhar. Apesar de estar de cabeça baixa, Conan sentiu a força da vontade dela. Os músculos fortes de seu pescoço chegaram a inchar, no esforço sobre-humano que ele fazia para manter a cabeça baixa e o olhar afastado do terceiro olho da mulher-demônio.

Ele ainda olhava para o chão. Bem na sua frente, sobre o piso de mármore, estava a máscara de ouro com a enorme safira negra que representava o terceiro olho. De repente, Conan percebeu tudo.

Dessa vez, quando ele levantou o olhar, a enorme espada foi junto. A lâmina brilhante dividiu pelo meio o ar carregado de poeira e bateu com violência sobre o rosto cheio de zombaria, dividindo em duas metades o grande terceiro olho.

Ela não se moveu. Com os dois olhos normais, de uma beleza inacreditável, a mulher-demônio ficou olhando para o inflexível guerreiro, com a face branca e preta. Uma grande mudança tomou conta dela.

Do que restava do terceiro olho corria um líquido preto, que descia pelo rosto de perfeição inumana. Como lágrimas negras, as gotas espessas tombavam do órgão dilacerado.

Então ela começou a envelhecer. Enquanto o líquido escuro descia da esfera destruída, a essência da vida que a mulher-demônio havia sugado durante muito tempo também escorria do seu corpo. Sua pele foi escurecendo depressa e formando milhares de rugas. Dobras ressecadas formaram-se debaixo de seu queixo. Os olhos brilhantes transformaram-se em poças sem vida e desprovidas de brilho.

Os seios maravilhosos encolheram e caíram. Os membros bem torneados viraram pele e ossos. Durante um longo período de tempo a forma anã de uma mulher fraca e ressecada ocupou aquele trono. Então, a carne apodreceu em pedaços ressecados como papel, enquanto os ossos também deterioravam. O corpo desmontou, espalhando-se pelo piso em forma de milhares de fragmentos que, sob o olhar estarrecido de Conan, transformaram-se em poeira fina, sem cor nem brilho.

Um longo suspiro fez-se ouvir pelo salão. Houve um segundo de escuridão, como se a passagem de um par de asas gigantescas filtrasse a luz fraca. Então a mulher-demônio desapareceu e, com ela, o ar carregado daquela ameaça primitiva. O salão tornou-se apenas um velho e empoeirado aposento, destituído de qualquer terror sobrenatural.

As estátuas adormeceram para sempre, em sepulturas de pedra eterna. Com a passagem da Górgone para outra dimensão, todos os seus feitiços foram com ela, inclusive aqueles que mantinham os mortos-vivos ainda apegados a uma horrível condição de meia-vida. Conan afastou-se, deixando o trono vazio, com sua sujeira de pó e a estátua quebrada, sem cabeça, daquele que um dia fora um corajoso e alegre guerreiro zamoriano.

— Fique conosco, Conan! — implorou Zillah, com sua voz baixa e macia. — Temos muitos lugares de honra para um homem como você em Akhlat, agora que estamos livres da maldição.

Ele riu sem jeito, percebendo um tom mais pessoal na voz dela, além do desejo de uma boa cidadã em convocar um imigrante honrado para a causa da reconstrução cívica do seu reino. Diante do olhar quente e inquisitivo de Conan, ela ficou confusa e seu rostinho corou de vergonha.

Lorde Enosh acrescentou sua voz amiga aos pedidos da filha. A vitória de Conan sobre a mulher-demônio fizera com que o velhote adquirisse nova força e vigor. Agora tinha uma postura de orgulho, queixo erguido e firmeza no andar, além de uma voz muito mais segura do que antes. Aproveitou para oferecer riqueza, honras e posição social ao cimério, junto com um cargo de poder na cidade renascida. Enosh chegou a dar a entender que não seria contrário à idéia de ter Conan como seu genro.

Mas, sabendo que não se adaptaria muito facilmente à vida calma e respeitosa que eles pretendiam lhe dar, Conan recusou todas as ofertas. As frases educadas não nasciam prontas na boca de uma pessoa como ele, que passara tantos anos nos campos de batalha, em bebedeiras com os amigos e nas alegres casas de prostituição de muitas cidades. Mas, com a maior educação que lhe permitia sua natureza áspera e bárbara, ele agradeceu as propostas que lhe eram feitas.

— Não, meus amigos. Não são para Conan, da Ciméria, as tarefas da paz. Eu não demoraria a me cansar de tudo e, quando fico chateado, são poucas as coisas que me podem curar: ficar bêbado, arrumar briga, ou fugir com alguma garota. Que tipo de cidadão seria eu, numa cidade que agora procura a paz e a tranquilidade para recuperar seu poder e sua força?

—Então, para onde pretende ir, ó Conan, agora que as barreiras da magia estão desfeitas? — perguntou Enosh.

Conan encolheu os ombros, passou a mão pela cabeleira negra e deu uma risada.

— Por Crom, meu bom senhor, eu não sei! Para minha sorte, os servos da deusa alimentaram e deram de beber à montaria de Vardanes. Pelo que vejo, em Akhlat não há cavalos, mas apenas jumentos, e um sujeito grandão e desajeitado como eu não gostaria de sair como um bobo, montado num jumenti-nho mole e dorminhoco como esses, com os pés arrastando pela areia! Acho que vou cavalgar na direção sudeste. Em algum lugar, nesse rumo, fica a cidade de Zamboula, onde eu nunca estive. Os homens dizem que é um centro de riquezas, de mulheres bonitas e de muita alegria, onde só falta o vinho correr livre como a água das fontes. Já faz tempo que eu penso em experimentar os prazeres de Zamboula, em comprovar se é verdade tudo o que dizem a respeito desse lugar.

— Mas não precisa partir daqui como um mendigo! — protestou Enosh. — Nós lhe devemos tanto! Permita que lhe ofereçamos um pouco de ouro e prata como pagamento pelos favores que nos prestou.

Gonan balançou a cabeça.

— Conserve os tesouros da cidade, meu sábio amigo. Akhlat não é uma rica metrópole, e vocês vão precisar de cada grama de ouro quando os mercadores das caravanas começarem a chegar de novo, vindo do Deserto Vermelho. Agora, que minhas sacolas de água estão cheias e tenho suficientes provisões, estou pronto para partir. Desta vez, minha viagem através de Shan-e-Sorkh será feita com bastante conforto.

Com um último e rápido adeus, ele saltou para a sela e galopou para fora do vale.

Os outros ficaram olhando, Enosh orgulhoso, mas Zillah com lágrimas caindo pelo rosto. Logo o cavaleiro desaparecia de vista.

Quando chegou ao topo das dunas, Conan parou a grande égua preta. Talvez fosse loucura de sua parte não ter aceito o pequeno tesouro que lhe tinham oferecido. Mas ainda havia muita prata nos alforjes de Vardanes, que ele tocou uma vez mais. Então, Conan sorriu. Por que brigar como um mercador sujo, por causa de um par de moedas a mais ou a menos? Um homem sente-se bem, de vez em quando, ao externar as suas virtudes. Até mesmo um cimério!

 

                                                                                Robert E. Howard  

 

                      

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