Dorothea SaDiablo, a sacerdotisa suprema de Hayll, subiu devagar os degraus até a grande plataforma de madeira. Era uma bela manhã de início de outono e Draega, a capital de Hayll, ficava bastante ao sul, de modo que os dias ainda eram quentes. O pesado manto preto a fazia transpirar. Sob o grande capuz, seu cabelo estava úmido e o pescoço coçava. Em poucos minutos, o manto não seria mais um problema.
Ao chegar à plataforma, ela viu a lona estendida à frente, junto à multidão ansiosa, e ofegou. Que bobagem. Usara todos os feitiços que conhecia para manter em segredo aquilo que estava debaixo da lona. Forçando-se a respirar normalmente, atravessou a plataforma, detendo-se a alguns centímetros da lona.
As rainhas de todos os territórios do reino de Terreille olhavam para ela com prudência e ressentimento. Dorothea exigira que todas trouxessem suas duas rainhas de província mais poderosas e os príncipes dos senhores da guerra que as servissem. Ela estava ciente de que muitas dessas rainhas, sobretudo as dos territórios mais a oeste, esperavam por algum tipo de armadilha.
Bem, elas tinham razão. Se apresentasse a isca da maneira certa, elas cairiam na armadilha sem pensar duas vezes.
Dorothea ergueu os braços. O murmúrio da multidão se transformou em silêncio. Usando a arte para aumentar o volume da voz, ela iniciou seu movimento no jogo do poder.
– Irmãs e irmãos, chamei-os aqui para avisá-los de uma terrível descoberta que fiz recentemente, algo que ameaça os membros dos Sangue em todo o reino de Terreille. No passado, admito que pratiquei ações cruéis. Fui responsável pela destruição de rainhas e de alguns dos melhores machos do reino. Difundi o medo nos Sangue para me tornar o poder dominante de Terreille. Eu, melhor do que ninguém, sei que uma sacerdotisa não pode substituir uma rainha, mesmo que tenha grande domínio e poder na arte. Carregarei o remorso e o peso desses atos até o fim dos meus dias. Mas agora lhes digo o seguinte: fui usada! Algumas semanas atrás, enquanto utilizava minhas habilidades de viúva-negra para tecer uma teia de sonhos e visões, rasguei sem querer um véu mental que me envolveu ao longo de todos os séculos em que fui sacerdotisa suprema de Hayll. Abri caminho através desse nevoeiro mental e finalmente vi o que minhas teias tentavam me dizer havia muito tempo.
A multidão a observava.
– Alguém pretende dominar Terreille e deseja subjugar todos os Sangue deste reino. Mas não sou eu. Fui o instrumento de um ser maléfico e monstruoso que deseja nos esmagar e reduzir a cinzas, que brinca conosco da mesma forma que um gato brinca com um rato antes de desferir o golpe mortal. Esse monstro tem nome – um nome que, com razão, foi temido durante milhares e milhares de anos. Nosso aniquilador é o príncipe das trevas, o senhor supremo do Inferno.
Ergueu-se um burburinho apreensivo na multidão.
– Duvidam de mim? – gritou Dorothea, arrancando o manto e lançando-o para o lado.
O cabelo branco e fino que até poucas semanas fora espesso e preto caía-lhe pelos ombros. O rosto abatido e enrugado se contorceu e os olhos dourados se encheram de lágrimas enquanto o burburinho dava lugar a exclamações de espanto.
– Vejam o que aconteceu comigo quando lutei para me libertar dos encantamentos ardilosos dele. Olhem para mim. Foi este o preço que paguei para avisá-los do perigo.
Dorothea pôs a mão no peito, respirando com dificuldade. Seu administrador deu um passo à frente e segurou-lhe o braço com delicadeza, para ampará-la.
– Você tem que parar, sacerdotisa. Sua saúde...
– Não – arfou Dorothea, ainda usando a arte para amplificar o som da voz. – Preciso dizer tudo a eles enquanto consigo. Posso não ter outra oportunidade. Assim que ele descobrir que eu sei...
A multidão ficou em silêncio. Baixando a mão, Dorothea se endireitou o melhor que pôde, ignorando a dor na coluna.
– Não fui o único instrumento do senhor supremo. Entre vocês há quem tenha tido a infelicidade de ter Daemon Sadi ou Lucivar Yaslana servindo em suas cortes. Que as trevas me perdoem... Eu enviei esses monstros para territórios frágeis, e rainhas morreram por causa deles. Cortes inteiras foram destruídas. Tanto eu como Prythian, a sacerdotisa suprema de Askavi, pensávamos que os enviávamos por nossa própria vontade, na esperança de que pudessem ser controlados. No entanto, fomos manipuladas. Eles são os filhos do senhor supremo! São a descendência daquela criatura brutal e se tornaram suas ferramentas de destruição. O controle que julgávamos exercer sobre os dois não passava de mera ilusão. Ambos desapareceram há muitos anos. A maioria de nós esperava que tivessem morrido, mas não foi o caso. Fui informada por alguns corajosos irmãos e irmãs que vivem atualmente na Pequena Terreille, no território de Kaeleer, que tanto Yaslana como Sadi estão no reino das sombras, onde o senhor supremo tem vivido sob o disfarce de príncipe dos senhores da guerra de Dhemlan. As crias da víbora voltaram ao ninho. Mas não é só isso. O senhor supremo exerce uma influência nefasta sobre a maioria das rainhas de territórios em Kaeleer e controla uma jovem mulher que é a rainha mais poderosa de todos os reinos. Com a força dela a seu serviço, ele pretende nos dominar. A menos que ataquemos primeiro. Não temos escolha, irmãos e irmãs. Se não destruirmos o senhor supremo e todos os que o servem, as crueldades que pratiquei parecerão brincadeira de criança.
Dorothea fez uma breve pausa.
– Muitos de vocês têm amigos ou entes queridos que fugiram para Kaeleer a fim de escapar da violência que tem sufocado Terreille. Vejam o que aconteceu a muitos dos que correram para os braços sedutores do senhor supremo.
Usando a arte, Dorothea afastou abruptamente a lona que cobria a parte da frente da plataforma. No mesmo momento, colocou a mão sobre a boca para não vomitar, enquanto moscas voavam sobre os corpos mutilados.
Os gritos tomaram conta do ambiente. Um guincho pungente de dor e de raiva se sobrepôs às outras vozes. Depois outro, e mais outro, à medida que as pessoas junto à plataforma reconheciam uma joia ou o que restava de um rosto.
Novamente utilizando a arte, Dorothea voltou a colocar a lona sobre os corpos, com delicadeza. Aguardou vários minutos até os gritos se tornarem soluços reprimidos.
– Quero que saibam de uma coisa: usarei toda a arte que aprendi e cada gota de força que tenho para derrotar esse monstro. Sozinha, porém, certamente serei vencida. Se nos mantivermos unidos, teremos chance de nos livrar do senhor supremo e daqueles que o servem. Muitos de nós não sobreviverão a esta batalha, mas nossos filhos... – A voz ficou embargada nesse momento. Dorothea levou um momento antes de prosseguir. – Mas nossos filhos conhecerão a liberdade.
Virando-se, tropeçou. O administrador e o mestre da guarda a ajudaram a atravessar a plataforma e descer os degraus. Enquanto instalavam Dorothea cuidadosamente na carruagem aberta para a curta viagem de volta à mansão, tinham lágrimas nos olhos, que denotavam um orgulho feroz. Quando tentaram acompanhá-la, ela balançou a cabeça.
– Fiquem. Suas obrigações estão aqui – afirmou, debilmente.
– Mas, sacerdotisa... – protestou o mestre da guarda.
– Por favor – disse Dorothea. Os dois serão mais úteis para mim se ficarem. – Invocando um pedaço de papel dobrado, entregou-o ao administrador. – Se estas rainhas pedirem para falar comigo, marque uma audiência para esta tarde.
Dorothea viu o protesto nos olhos do administrador, mas ele permaneceu calado. O cocheiro incitou os cavalos. Dorothea se recostou e fechou os olhos para esconder a satisfação. Bem, seu filho da puta desgraçado, a primeira jogada foi minha. Agora não há nada que possa fazer que não possa ser usado contra você.
Apesar do calor matinal, Alexandra Angelline tremia enquanto esperava Philip Alexander voltar da verificação dos corpos dilacerados que jaziam na plataforma de madeira. Lançou um feitiço de aquecimento no pesado xale de lã, mesmo sabendo que isso de nada serviria. Nenhuma fonte externa de calor aqueceria o frio dentro dela.
É cedo demais, pensou, desesperada. Wilhelmina atravessou o portão ontem de manhã. Ela não pode estar entre...
Vania e Nyselle, as duas rainhas de província que havia trazido, já tinham voltado à estalagem com seus acompanhantes. Não tinham se oferecido para aguardar com ela. Alguns anos atrás – algumas semanas atrás – teriam feito isso. Naquela época acreditavam em Alexandra, apesar dos problemas em sua família.
Semanas antes, porém, alguém enviara mensagens secretas às trinta feiticeiras mais fortes de Chaillot – mas não a ela e à filha, Leland –, convidando-as para uma visita a Briarwood e prometendo resolver o enigma sobre o que acontecera às jovens moças de suas famílias que haviam sido internadas no hospital e tinham desaparecido sem deixar rastro.
Briarwood, que fora construído para acolher e tratar de crianças com distúrbios emocionais, estava fechado desde que uma inexplicável doença começara a afligir dezenas de homens da aristocracia de Beldon Mor, a capital de Chaillot – uma doença que parecia ter relação com aquele lugar.
As feiticeiras chegaram na noite indicada e descobriram os segredos e os horrores de Briarwood. A guia, uma jovem demônia-morta chamada Rose, foi implacável ao lhes mostrar os fantasmas. Uma sacerdotisa encontrou encerrada entre paredes a prima desaparecida desde criança. Uma rainha de província reconheceu o que restava da filha de uma amiga.
Viram as salas de jogos. Viram os cubículos com as camas estreitas. Viram a horta e a moça com a perna amputada.
Estarrecidas diante do que testemunhavam, as feiticeiras seguiam Rose, que sorria para elas e contava em detalhes como e por que cada criança havia morrido. Rose contou sobre as outras crianças demônias-mortas que foram para o reino das trevas viver com as cildru dyathe que restavam. Recitou a lista dos “tios” de Briarwood, os homens que haviam apoiado e usado aquele perverso parque de diversões carnal. E recitou uma lista de feiticeiras quebradas de famílias aristocráticas que tinham sido “curadas” de sua instabilidade emocional – tendo também sido despojadas de seu poder interior – e depois voltado para casa.
Um dos homens que Rose citou foi Robert Benedict, ex-marido de Leland e um importante membro do conselho de machos – um conselho já dizimado por aquela enfermidade misteriosa.
Quando uma curandeira do grupo perguntou sobre a doença, Rose voltou a sorrir e disse: “Briarwood é o belo veneno. Não existe cura para Briarwood.”
Alexandra apertou o xale, mas continuou tremendo.
A raiva que varrera Chaillot o fizera em pedaços. Beldon Mor se tornou um campo de batalha. Os membros do conselho de machos que ainda não tinham sido vítimas da doença foram sumariamente executados. Depois de vários aristocratas terem morrido por envenenamento, muitos outros fugiram para estalagens ou clubes particulares, aterrorizados com a ideia de comer ou beber qualquer coisa que tivesse passado pelas mãos das mulheres de suas famílias.
Ao fim da primeira onda de raiva, as feiticeiras dirigiram sua fúria para Alexandra. Não a responsabilizavam por Briarwood, construído antes que ela se tornasse rainha de Chaillot, mas sem dúvida a culpavam pela cegueira. Alexandra havia se empenhado tanto em manter Hayll longe da influência de Chaillot e preservar algum poder diante do conselho de machos que não notara o perigo. Para elas, aquilo era como reclamar com um homem por botar a mão em seus seios depois de ele já ter enfiado o pau entre suas pernas.
Culpavam-na por Robert Benedict ter vivido em sua casa durante tantos anos e ter dormido com sua filha. Se ela era incapaz de reconhecer o perigo diário dentro de casa, como poderia proteger seu povo contra qualquer outro tipo de ameaça?
Culpavam-na por Robert Benedict e por todas as jovens feiticeiras que haviam morrido em Briarwood.
Alexandra se culpava pelo que acontecera com Jaenelle, sua neta mais nova. Permitira que aquela criança estranha e difícil fosse trancada naquele lugar. Não sabia dos segredos de Briarwood, mas se não tivesse ignorado as histórias fantasiosas de Jaenelle, se as tivesse aceitado como o pedido de atenção de uma criança, ela jamais teria sido internada. Se não tivesse ignorado o ódio da neta pelo Dr. Carvay, teria descoberto a verdade mais cedo?
Não sabia. E era tarde demais para encontrar as respostas.
Agora tinha outro problema familiar. Onze anos antes, Wilhelmina Benedict, a filha do primeiro casamento de Robert, havia fugido depois de uma suposta investida sexual de Robert. Philip Alexander, o meio-irmão bastardo de Robert, havia encontrado a sobrinha, mas se recusara a revelar seu paradeiro. Na época, Alexandra ficara furiosa com ele por manter a localização de Wilhelmina em segredo. Agora, vinha se perguntando se Philip teria alguma ideia do que se passava por baixo do véu de Briarwood, sobretudo porque ele havia tido um papel determinante no fechamento do local.
Há dois dias, recebera uma carta de Wilhelmina, na qual a menina dizia estar indo para Kaeleer, o reino das sombras. Não – agora Wilhelmina tinha 27 anos, já não era uma menina. Não importava. Não deixava de ser da família. Não deixava de ser sua neta.
Alexandra balançou a cabeça para interromper a linha de raciocínio e reparou que Philip vinha em sua direção. Prendendo a respiração, procurou seus olhos cinza.
– Não está lá – disse ele calmamente.
Alexandra suspirou.
– Graças às trevas – respondeu ela, porém compreendendo o que não havia sido dito: ainda não.
Philip lhe ofereceu o braço. Alexandra aceitou, agradecida. Philip era um bom homem, o oposto de seu meio-irmão. Ela ficara feliz quando Leland e ele ficaram noivos.
Alexandra olhou para trás, para a plataforma de onde Dorothea proferira aquele horripilante discurso.
– Acredita nela? – perguntou baixinho.
Philip a conduziu através de aglomerados de pessoas ainda chocadas demais para fazer outra coisa além de ficar abraçadas, reunindo coragem para olhar os corpos mutilados.
– Não sei. Se metade do que ela diz for verdade... Se Sadi... – Ele engasgou.
Alexandra ainda tinha pesadelos com Daemon Sadi. Philip também, por outros motivos. Sadi a ameaçara quando Jaenelle foi internada em Briarwood pela última vez. Ao libertar seu poder negro para quebrar o anel de obediência, ele havia destruído metade dos Sangue com joias de Beldon Mor. Apanhado por essa explosão, a força de Philip regredira para sua joia verde de direito por progenitura.
– Podemos pegar uma carruagem esta noite – disse Philip. – Se comprarmos passagem em uma carruagem que viaje pelos ventos mais escuros, estaremos em casa amanhã.
– Ainda não. Gostaria que falasse com o administrador de Dorothea antes. Tente marcar uma audiência.
– Você é a rainha – disparou Philip. – Não deveria ter que suplicar por uma audiência com uma sacerdotisa, não importa quem...
– Philip. – Ela apertou o braço dele. – Agradeço a sua lealdade, mas neste momento nós somos suplicantes. Não posso me dar ao luxo de mais suposições. Não estou convencida de que Dorothea não seja o monstro que sempre aparentou ser, mas estou plenamente convencida de que o senhor supremo representa uma ameaça maior. – Sentiu um arrepio. – Temos que ir a Kaeleer procurar Wilhelmina. E não podemos ir lá sem ter todo o conhecimento possível sobre o inimigo.
– Está bem – disse Philip. – E Vania e Nyselle? Vão com a gente?
– Se elas desejarem, sim. Com certeza não se importarão com o que eu fizer. – Suspirou. – Quem diria, um mês atrás, que eu precisaria considerar a ideia de ter Dorothea como aliada?
Kartane SaDiablo perambulava pelos jardins, esforçando-se para ignorar os olhares inquisitivos ou de piedade das poucas pessoas que ainda não tinham se recolhido. Aguardara a carruagem de Dorothea desaparecer antes de se afastar da plataforma. Os corpos mutilados ali deixados para uma inspeção macabra não o incomodavam. Dorothea fizera o mesmo – ou pior – com tantas outras pessoas quando estava com vontade de brincar. Mas parecia que ninguém se lembrava disso. Ou talvez a maior parte dos imbecis jamais tivesse testemunhado um dos acessos de fúria da sacerdotisa.
Quanto ao administrador e ao mestre da guarda... Idiotas sem colhões. Tinham lágrimas nos olhos enquanto a ajudavam a subir na carruagem. Como podiam acreditar que Dorothea havia estado sob o efeito de um encantamento por todos esses séculos, que não tinha se regozijado com o sofrimento de suas vítimas?
Sem dúvida ela parecia sincera e arrependida, mas Kartane não acreditou nela nem por um momento. Nenhum homem que tivesse sido obrigado a proporcionar prazer sexual a Dorothea teria acreditado. Daemon, por exemplo, não teria.
Daemon. O filho do senhor supremo. Isso explicava bastante sobre seu “primo”. Dorothea sabia disso? E ela escondera essa informação durante todos aqueles anos em que Daemon fora criado como bastardo em sua corte? Isso significava que o senhor supremo do Inferno não nutriria qualquer afeto pela sacerdotisa suprema de Hayll.
O que o trazia de volta às suas próprias preocupações.
A misteriosa doença que começara quase treze anos antes o estava consumindo. Todos os outros homens que haviam desfrutado do parquinho de diversões secreto de Briarwood já estavam debaixo da terra. Por ser haylliano, uma das raças de longevidade prolongada, e por nunca mais ter voltado a Chaillot, ele era o único que restava. Mas seu tempo estava quase no fim.
Algumas semanas antes, depois que fora revelada a ligação entre a doença e Briarwood, ele começara a arquitetar um plano – isso quando não tinha a mente consumida por pesadelos: as únicas curandeiras com poderes suficientes para livrá-lo da doença, e as únicas que não teriam conhecimento do que a provocava, estavam em Kaeleer. Sem dúvida serviriam nas cortes das rainhas dos territórios, que, de acordo com Dorothea, estavam sob o controle do senhor supremo. O que significava que Kartane teria que encontrar algo para comprar o auxílio do senhor supremo. Graças ao discurso de Dorothea, ele dispunha agora de informações que julgava serem do interesse do príncipe das trevas.
Satisfeito com a decisão tomada, Kartane sorriu. Passaria mais alguns dias farejando informações e depois visitaria o reino das sombras.
Alexandra Angelline se instalou alegremente na cadeira, aliviada por Dorothea ter optado por uma sala de recepções privada em vez de uma sala de audiências oficial. O encontro já seria bastante difícil sem uma corte cheia de hayllianos zombeteiros.
Estar sozinha com Dorothea, porém, também implicava alguns inconvenientes. Alexandra ouvira dizer que a sacerdotisa suprema de Hayll tinha sido uma bela mulher. Ah, o espectro dessa beleza ainda estava presente, mas havia uma inegável curvatura nos ombros de Dorothea. Manchas de idade apareciam nas mãos morenas, no cabelo e no rosto...
Acontece com todo mundo, mais cedo ou mais tarde, pensava Alexandra enquanto observava Dorothea servir o chá em xícaras finas. Mas como seria se deitar à noite sendo uma mulher em seu esplendor e acordar na manhã seguinte como uma velha de pele enrugada?
– Agradeço... que tenha me concedido uma audiência – disse Alexandra, tentando não se atrapalhar.
Os lábios de Dorothea se curvaram num ligeiro sorriso enquanto passava a xícara de chá para Alexandra.
– Fiquei surpresa que tenha solicitado esse encontro. – O sorriso desapareceu. – Tivemos muitas discordâncias no passado. E, considerando o que aconteceu com sua família, você tem razões para me odiar. – Hesitou, bebeu um gole de chá e prosseguiu calmamente: – A ideia de enviar Sadi a Chaillot foi minha, mas não consigo me lembrar de quem partiu a sugestão ou por que concordei com ela. Sobre essas memórias existe um véu que ainda não consegui romper.
Alexandra levou a xícara aos lábios mas voltou a baixá-la, sem beber.
– Acha que foi obra do senhor supremo?
– Sim. Sadi é uma arma bela e cruel, e o pai sabe usá-la convenientemente. E a verdade é que alcançaram seus objetivos.
– Que objetivos? – inquiriu Alexandra, cheia de raiva. – Sadi destruiu minha família e matou minha neta mais nova. Que objetivo foi alcançado com isso?
Dorothea se recostou, bebeu um gole de chá e disse calmamente:
– Você se esquece de uma coisa, irmã. O corpo da jovem nunca foi encontrado.
Alexandra sentiu arrepios diante da expectativa que percebeu no olhar de Dorothea.
– Isso não quer dizer nada. – Pôs a xícara e o pires na mesa, sem tocar no chá. – Não vim aqui para falar do passado. Até que ponto o senhor supremo é perigoso?
– Daemon Sadi é filho dele. Isso responde a sua pergunta?
Alexandra tentou inutilmente disfarçar um calafrio.
– E você realmente acha que ele quer destruir os Sangue de Terreille?
– Não há dúvida. – Dorothea tocou nos cabelos brancos. – Paguei um preço alto para ter certeza disso.
– Minha outra neta, Wilhelmina Benedict, foi para Kaeleer recentemente – informou Alexandra, com delicadeza.
Dorothea enrijeceu.
– Quando foi isso?
– Atravessou ontem o portão.
– Mãe Noite! – exclamou Dorothea, deixando-se cair na cadeira. – Lamento muito, Alexandra. Lamento muito.
– Príncipe Alexander e eu pretendemos ir a Kaeleer assim que aquela “feira de serviços” terminar e voltarem a permitir a entrada de visitantes. Com sorte, conseguiremos encontrá-la e convencer a rainha a libertá-la.
– O perigo que ela corre é muito maior – disse Dorothea, com um ar preocupado.
– Não há qualquer motivo para que Wilhelmina atraia atenção – objetou Alexandra, com a voz estridente de medo. – Não há motivo para aceitar um contrato fora da Pequena Terreille.
– Há dois motivos: o senhor supremo e a feiticeira que ele controla. Se não a encontrarem depressa, Wilhelmina vai parar em seus braços tenebrosos, e então não restará a menor esperança.
Embora a sala estivesse aquecida, Alexandra sentiu um arrepio pelo corpo. Dorothea se limitou a olhá-la por um longo momento.
– Sadi e o senhor supremo atingiram seus objetivos. Ninguém procura um cadáver por muito tempo quando é preciso cuidar dos sobreviventes. E o corpo de sua neta jamais foi encontrado.
Alexandra olhava estarrecida para Dorothea.
– Você acha que Jaenelle é a feiticeira poderosa controlada pelo senhor supremo? Jaenelle? – Riu amargamente. – Dorothea, Jaenelle não era capaz de realizar nem mesmo a arte mais básica.
– Se você souber ler nas entrelinhas de alguns dos registros mais... restritos... da história dos Sangue, vai ver que existiram algumas mulheres, muito poucas, que possuíam enormes reservas de poder, mas eram incapazes de extraí-las sozinhas. Elas precisavam de uma... ligação... emocional com alguém com a capacidade de canalizar o poder para usá-lo. Nem sempre, porém, era possível escolher a forma como ele era usado. – Dorothea fez uma pausa. – Os rumores mais recentes vindos da Pequena Terreille sobre o bichinho de estimação do senhor supremo a descrevem como “excêntrica” e “emocionalmente perturbada”. Parece familiar?
Alexandra não conseguia respirar.
– Se você decidir agir, darei toda ajuda possível. – Dorothea a olhou com tristeza. – Não dá para ignorar isso, Alexandra. Independentemente daquilo em que você queira pensar ou acreditar, não há como ignorar que a feiticeira de estimação do senhor supremo, a feiticeira que Daemon Sadi ajudou a conquistar, responda pelo nome de Jaenelle Angelline.
Dorothea abriu as cortinas pesadas e escuras e olhou para o jardim envolto na escuridão da noite. Sentia-se exaurida, física e emocionalmente. Ah, como desejara cravar as unhas e arrancar aquele olhar patético e cheio de esperança dos olhos dos machos de seu primeiro círculo. Eles aceitavam de bom grado qualquer desculpa para seu comportamento ao longo dos séculos. Queriam acreditar que fora um macho que a tornara cruel, que fora um macho que a manipulara e controlara seus pensamentos, que fora um macho que estivera por trás de sua ascensão ao poder e das atrocidades que se seguiram e tornaram possível o enfraquecimento da maior parte dos outros territórios de Terreille.
Não queriam lhe dar crédito por nada daquilo. Queriam que tivesse sido uma vítima para que não se sentissem envergonhados por servi-la, para que pudessem fingir que a serviam por uma questão de honra e não por mesquinhez e temor.
Bem, ela promoveria algumas mudanças na corte assim que Kaeleer sucumbisse. Talvez até fizesse com que os idiotas morressem em batalha, asfixiados no sangue da própria honra.
– Você se saiu bem hoje, irmã – disse uma voz dura mas com tom infantil. – Eu mesma não teria feito melhor.
Dorothea não se virou. Quando olhava para Hekatah, a autoproclamada sacerdotisa suprema do Inferno, sentia o estômago revirar.
– As palavras eram suas, não minhas, por isso não me admira que esteja satisfeita.
– Você ainda precisa de mim – disparou Hekatah, arrastando-se para uma cadeira junto à lareira. – Não se esqueça disso.
– Eu nunca me esqueço – respondeu Dorothea baixinho, sem desviar o olhar do jardim.
Fora Hekatah que vira seu potencial quando ainda era uma jovem feiticeira aprendendo os deveres de sacerdotisa e a arte de viúva-negra. Fora Hekatah que lhe acalentara as ambições e os sonhos de poder, que lhe indicara as rivais que poderiam interferir nesses sonhos. E fora Hekatah que ajudara a eliminar essas rivais. A sacerdotisa suprema estivera presente a cada passo, orientando e aconselhando.
Dorothea não conseguia recordar bem o momento em que percebera que Hekatah precisava tanto dela como ela própria de Hekatah. Essa necessidade fizera com que uma desprezasse a outra, mas as duas estavam ligadas pelo sonho de dominar todo um reino.
– Você realmente acha que, depois do que fizemos para controlar Terreille, aquelas rainhas vão acreditar que tudo foi culpa do senhor supremo?
– Se você tiver lançado os feitiços de persuasão da maneira certa, não há razão para acreditarem no contrário – afirmou Hekatah, com um doce veneno na voz.
– Não há nenhum problema com minhas capacidades na arte, sacerdotisa – retrucou Dorothea com igual veneno, virando-se para encará-la.
– Suas capacidades não foram suficientes para impedir o feitiço com que Sadi a envolveu, não?
– Assim como as suas não foram o bastante para protegê-la ou ajudá-la a reverter os danos causados.
Hekatah soltou um silvo de fúria e Dorothea se voltou novamente para a janela, sentindo uma pequena satisfação.
Sete anos antes, Hekatah tentara controlar Jaenelle Angelline e eliminar Lucivar Yaslana. Mas alguma coisa dera errado com o plano e, ao final do embate, ela perdera a capacidade de se passar por viva, o que a fazia parecer um cadáver ressequido e decadente.
Nos primeiros dois anos, ela insistira que era preciso apenas ingerir grandes quantidades de sangue fresco para renovar o corpo. Mas os demônios-mortos eram, de certa forma, espíritos que ainda possuíam energia psíquica de mais para voltar às trevas, portanto estavam retidos em corpos sem vida. Enquanto a energia subsistisse e pudesse ser renovada, o corpo podia ser mantido pela ingestão de sangue. Mas nada iria recuperar a aparência de Hekatah. Nos últimos sete anos o corpo, morto havia cinquenta mil anos, começara a se deteriorar.
– Elas vão acreditar que o senhor supremo é o responsável por todas as perversões de Terreille – afirmou Hekatah, surgindo por trás de Dorothea, tão próxima que era possível ver seu reflexo no vidro da janela, escurecido pela noite. – Querem acreditar. É um mito, uma história terrível sussurrada durante milhares de anos. E quem quer que tenha dúvidas em relação ao senhor supremo, não terá em relação a Yaslana e a Sadi. A ideia de ver os três unidos usando uma feiticeira poderosa como ferramenta será suficiente para unir Terreille contra Kaeleer. No fim das contas, não importa a razão pela qual se juntam à luta, importa apenas que lutem.
– Esta tarde ganhamos uma aliada obstinada. Alexandra Angelline, a rainha de Chaillot. – Um sorriso maldoso surgiu nos lábios de Dorothea. – Ela ficou estarrecida ao descobrir que a neta tem estado sob o domínio do senhor supremo durante todos esses anos graças a Daemon Sadi.
Hekatah franziu a sobrancelha.
– Ela é tola, mas não estúpida. Se convencer Jaenelle a ajudá-la a manter o controle sobre Chaillot...
Dorothea balançou a cabeça.
– Ela não acredita que Jaenelle tenha qualquer poder. Pude ver em seus olhos. Inventei uma pequena história sobre mulheres com grandes reservas de poder bruto... e ela também não acreditou. É capaz de aceitar o fato de que Sadi e o senhor supremo possam ter desejado Jaenelle por razões perversas, mas continuará acreditando no que quiser. Assim que chegar à Pequena Terreille, lorde Jorval estará aguardando para oferecer ajuda. Nunca dirá que Jaenelle é a rainha de Ebon Askavi. E duvido que Alexandra acredite no que lhe for dito no Paço, qualquer que seja seu interlocutor.
Hekatah deu uma gargalhada de satisfação.
– E imagino que, assim que conhecer o príncipe Saetan Daemon SaDiablo, senhor supremo do Inferno, terá o maior prazer em nos transmitir informações que julgue serem úteis para nós.
– E se ele descobrir sua traição... – Hekatah encolheu os ombros. – Bem, de qualquer forma teríamos de nos livrar dela depois da guerra.
Dorothea olhou fixamente para o reflexo das duas no vidro. Houve um tempo em que tinham sido mulheres encantadoras. Agora, Hekatah parecia um cadáver carcomido por vermes, e ela...
Sadi criara uma espécie de feitiço para envelhecer e deformar o corpo de Dorothea, mas nada fizera para diminuir seu desejo sexual. Os Sangue o chamavam de Sádico, mas ela ainda não havia tido oportunidade de apreciar até onde ia sua crueldade. Sadi conhecia seus desejos – naturalmente, uma vez que, em sua juventude, teve de satisfazê-los. Sabia também a humilhação que Dorothea sentiria ao ver a repulsa nos olhos dos machos que montava em vez daquele misto excitante de luxúria e temor. Agora, depois de sua lacrimosa confissão, nem isso conseguiria obter.
– Chegou a informar suas rainhas de estimação de que terão de se abster dos prazeres mais... imaginativos? – perguntou Hekatah.
– Sim – respondeu Dorothea, irritada. – Se serão comedidas ou não, é difícil dizer.
– As que cederem terão de ser eliminadas.
– E como explicaremos isso?
Hekatah emitiu um som de impaciência.
– Obviamente, a influência do feitiço do senhor supremo também se estende sobre elas. Sua heroica luta para se libertar também libertou algumas de suas irmãs, mas, infelizmente, não todas. Basta matar uma ou duas para que as outras compreendam a mensagem e se comportem da maneira apropriada.
– E depois que tivermos vencido?
– Depois que tivermos ganhado, poderemos fazer o que bem entendermos. Dominaremos os reinos, Dorothea. Não só Terreille, mas todos os outros! Terreille, Kaeleer e o Inferno!
Deliciando-se com a ideia, Dorothea nada disse durante vários minutos. Por fim, relutantemente, perguntou:
– Acha mesmo que o temor suscitado pelo senhor supremo será suficiente para dar início a uma guerra? Acha mesmo que isso vai funcionar?
O que restava dos lábios de Hekatah se moveu em um sorriso pavoroso.
– Funcionou da última vez.
A rainha de Aracna se aproximou do ombro da mulher de cabelos louros e ar cansado que se apoiava em um rochedo plano.
*Más notícias?*, perguntou a grande aranha dourada em sua voz suave.
Jaenelle Angelline afastou o cabelo do rosto e suspirou. Seus perturbados olhos azul-safira se contraíram ligeiramente à luz do sol da manhã, enquanto examinavam mais uma vez os delicados filamentos da teia emaranhada que tecera durante a noite.
– Sim. Uma guerra está a caminho. Uma guerra entre os reinos.
*É possível evitá-la?*
Jaenelle balançou a cabeça.
– Não, ninguém será capaz de evitá-la.
A aranha se mexeu, inquieta. O ar em volta da mulher tinha gosto de tristeza e de uma raiva fria e crescente.
*Os duas-pernas já lutaram antes. É pior desta vez?*
– Veja por si mesma.
Aceitando o convite formal, a rainha aracniana abriu a mente aos sonhos e às visões da grande teia emaranhada que Jaenelle tecera entre um rochedo e uma árvore próxima. Tanta morte. Tanto sofrimento e pesar. E uma mancha escura e tenebrosa que maculava os sobreviventes.
Afastando-se dos sonhos e das visões, a aranha examinou a teia em si e reparou em dois elementos estranhos. Um era o delicado anel de prata com uma joia cinza-ébano que fora colocado no centro da teia. Raramente se tecia uma lasca de joia numa teia emaranhada, uma vez que a magia que moldava essas teias era poderosa – e perigosa – o suficiente, e esta joia em particular pertencia a Jaenelle, que era a feiticeira, o mito vivo, os sonhos tornados realidade. Outro elemento estranho era o triângulo. Muitos dos fios estavam ligados ao anel, mas havia três fios sobrepostos a todos os outros, formando um triângulo em volta do objeto.
Intrigada, a aranha continuou observando a teia. Já tinha visto aquele triângulo. Força, paixão e coragem. Lealdade, honra e amor. Quase conseguia sentir o cheiro forte de macho naqueles fios.
– Se Kaeleer aceitar o desafio de Terreille e entrar em guerra – comentou Jaenelle baixinho –, os Sangue de ambos os reinos serão aniquilados. Todos eles.
*Alguns sobreviverão. É sempre assim.*
– Desta vez será diferente. Alguns sobreviverão fisicamente à guerra, mas... – Jaenelle ficou com a voz embargada. Respirou fundo. – Todas as minhas irmãs, todos os meus amigos desaparecerão. Todas as rainhas. Todos os príncipes dos senhores da guerra.
*Todos?*
– Se Kaeleer entrar em guerra contra Terreille, não restarão rainhas para curar a terra e manter os Sangue unidos. A carnificina prosseguirá até não restar mais ninguém. As feiticeiras ficarão tão estéreis quanto a terra. O dom que nos foi oferecido há tanto tempo será a arma que acabará nos destruindo.
*Precisa parar a mancha escura e tenebrosa*, disse a aranha.
Jaenelle sorriu amargamente.
– A guerra não a deterá. Sei quem lançou e nutriu as sementes, e se matar Dorothea e de Hekatah servisse para impedir o que está por vir, eu as destruiria agora mesmo. Mas isso não evitaria nada. Iria apenas adiar, o que seria pior. Este é o lugar e o momento certos para livrar os Sangue dessa mácula.
*Você fala de caminhos que não levam a lugar algum*, repreendeu a aranha. *Diz não poder combater mas tem que combater. Está confusa? Talvez tenha lido mal a teia.*
Jaenelle virou a cabeça para a aranha, com um olhar divertido e frio.
– E com quem aprendi a tecer? Se não estou lendo corretamente, talvez não tenha sido bem ensinada.
A aranha usou arte para produzir um zumbido irritante que indicava uma séria desaprovação.
*Não é culpa da aranha professora se a pequena aranha passa mais tempo papando moscas do que fazendo a lição.*
O riso prateado e aveludado de Jaenelle preencheu o ar.
– Eu prestei atenção à aranha professora. Afinal, na época ela era a rainha das tecelãs de sonhos.
A rainha aracniana voltou a se acomodar, um pouco mais calma. O humor de Jaenelle desapareceu quando os olhos azul-safira voltaram a examinar a teia.
– Terreille entrará em guerra.
*Então Kaeleer entrará em guerra.*
– Esta teia mostra dois caminhos – disse Jaenelle serenamente.
*Não*, retrucou a aranha com firmeza. *Uma teia, uma visão. É assim que é.*
– Dois caminhos – insistiu Jaenelle. – Se seguir o segundo caminho, Kaeleer não entrará em guerra com Terreille e as rainhas e os príncipes dos senhores da guerra sobreviverão para cuidar do reino das sombras e protegê-lo.
*Então quem lutará contra Terreille?*
Jaenelle hesitou.
– A rainha das trevas.
*Mas a rainha é você!*
Jaenelle expirou bruscamente.
– Uma guerra que purifique os reinos, acerte dívidas, recupere o dom que foi oferecido. Existe um jeito. Tem de existir. Mas a teia ainda não me mostra, por causa disto. – Seu dedo indicava o triângulo. – Este não é o triângulo da rainha. – Com o dedo, delineou o lado esquerdo da forma. – Este fio é o senhor supremo. – Delineou o fio da base. – Este fio é Lucivar. – Seu dedo hesitou no lado direito do triângulo. – Mas este fio não é Andulvar. Devia ser, uma vez que é o mestre da guarda, mas é outro. Alguém que ainda não está aqui, alguém que me guiará às respostas de que preciso para seguir pelo outro caminho.
*O fio não diz o nome?*
– Diz que o espelho está chegando. Que tipo de resposta é... – Tensa, Jaenelle se pôs de joelhos. – Daemon – sussurrou. – Daemon.
A aranha se mexeu, inquieta. A feiticeira saboreara o ar com intenso prazer ao sussurrar aquele nome – porém, sob o prazer havia uma ligeira nota de medo.
– Preciso ir – disse Jaenelle, apressada. – Tenho que passar em alguns territórios antes de voltar ao Paço. – Hesitou. Olhou rapidamente para a aranha. – Com a sua permissão, gostaria de guardar esta aqui por um tempo.
*Suas teias são bem-vindas entre as tecelãs de sonhos.*
Erguendo a mão, Jaenelle usou a arte para criar um escudo protetor nos fios da teia emaranhada. Virou-se para trás e olhou para a aranha.
– Que as trevas a protejam, irmã.
*Desejo-lhe o mesmo, irmã rainha*, respondeu a aranha.
A rainha aracniana esperou até Jaenelle tomar um dos ventos, as estradas psíquicas que percorriam as trevas, antes de usar a arte para flutuar com delicadeza em direção à teia emaranhada.
Uma teia, uma visão. Era assim que funcionava. Mas quando a feiticeira tecia uma teia... Usando o instinto e tudo o que havia aprendido, a aranha tocou levemente com uma das patas um dos pequenos fios que flutuavam soltos do anel cinza-ébano. A teia emaranhada desvendou-lhe o segundo caminho.
A aranha recuou bruscamente.
*NÃO!*, gritou, enviando um fio psíquico de comunicação tão longo quanto possível. *NÃO! Pelo segundo caminho, não!*
Não obteve resposta. Nem uma leve cintilação da mente poderosa da feiticeira que indicasse que ela ouvira.
*Não vá por esse caminho!*, exclamou a aranha com tristeza, vendo nitidamente para onde o trajeto levaria.
Talvez não. A feiticeira era capaz de tecer teias emaranhadas melhor do que qualquer outra viúva-negra, mas nem mesmo ela era capaz de detectar todos os aromas nos fios.
A rainha de Aracne se virou de volta para a teia e sentiu um leve puxão. Caminhando pelo ar, seguiu o puxão até a ponta do fio presa à árvore. Com cuidado, roçou uma pata no fio.
Cão. O cachorro de pelugem castanha e branca que vira na primeira teia que tecera após a temporada de frio. Pedira à feiticeira que trouxesse o cachorro, Ladvarian, à ilha das tecelãs. Desejara ver esse senhor da guerra – e desejara que ele a visse.
Puxou o fio de Ladvarian e sentiu as vibrações percorrendo a teia. Muitos dos fios ligados ao anel cinza-ébano – os fios dos parentes – começaram a brilhar. Os fios humanos também brilhavam, mas não com a mesma intensidade, com a mesma perseverança. Precisava se lembrar disso. E aquele triângulo...
Com a pata ainda apoiada no fio de Ladvarian, a aranha deixou a mente navegar até a gruta secreta, a gruta sagrada no centro da ilha. Era ali que as rainhas aracnianas iam o tempo todo para ouvir os sonhos – e para tecer as teias especiais que ligavam os sonhos à carne; eram o primeiro passo tangível na criação da feiticeira.
Pequenas teias. Teias maiores. Às vezes apenas uma raça, apenas um tipo de sonhador dava corpo à feiticeira. Outras vezes os sonhadores vinham de lugares diferentes, tendo necessidades diferentes que, de alguma forma, se encaixavam, tornando-se um sonho único.
Quando o tempo do sonho na carne terminava, cessando sua viagem pelos reinos, a rainha aracniana cortava respeitosamente os fios de suporte que mantinham a teia presa às paredes da gruta, enrolava a seda de aranha num novelo e o depositava num nicho para depois, mediante a arte, fazer com que crescessem cristais sobre a abertura. Havia muitos nichos fechados, mais do que os Sangue humanos poderiam pensar. A verdade era que os parentes sempre se revelaram os sonhadores mais crentes.
Na gruta, havia uma teia que fora iniciada fazia muito, muito tempo. Geração após geração, as rainhas aracnianas teceram um dos fios de suporte dessa teia, escutaram os sonhos e adicionaram mais filamentos. Tantos sonhadores nesta teia, tantos sonhos que se conjugaram para se tornar um só. Havia 25 anos, pelas contas humanas, esse sonho enfim ganhara corpo.
No centro dessa teia especial havia um triângulo. Três sonhadores poderosos. Três fios reforçados tantas vezes que agora eram grossos e extraordinariamente fortes.
E a cada rainha, enquanto devorava a carne de sua predecessora, oferecida de livre vontade, fora transmitida a mesma mensagem: lembre-se desta teia. Conheça esta teia. Compreenda cada fio.
A aranha voltou a centrar a atenção na nova teia. Sonhos que se tornaram realidade. Um espírito nutrido nas trevas, moldado pelos sonhos. E uma teia emaranhada, escondida numa gruta repleta de poder ancestral, que guiava esse espírito para o tipo certo de carne.
Houvera ocasiões, depois de ter visto coisas terríveis em suas teias de sonhos e visões, em que a aranha se perguntara se esse espírito em particular teria realmente encontrado a carne certa; em que se perguntara se alguns dos fios não seriam talvez antigos demais. Não, havia uma razão para que esse espírito tivesse sido moldado nesse corpo. O sofrimento e as feridas não eram culpa dos sonhos – nem dos sonhadores.
A aranha extraiu seda do corpo e a ligou cuidadosamente ao fio de Ladvarian.
Então era isso. A feiticeira optaria pelo segundo caminho sem perceber que, ao salvar Kaeleer e seus entes queridos, também destruiria o coração de Kaeleer.
Tinha de haver uma maneira de salvar o coração de Kaeleer.
Tecendo um fio de suporte entre o tronco da árvore e um ramo robusto, a rainha aracniana começou a fazer a própria teia.
Lucivar Yaslana folheou a lista de volta até a primeira página com nomes escritos em ordem e se afastou da mesa, ligeiramente divertido com os homens que se debatiam entre a vontade de consultar as listas na mesa e o desejo de não chegar muito perto dele.
Essa era uma de suas vantagens em relação aos que iam de mesa em mesa para examinar as listas da feira de serviços. Ninguém o empurrava ou se queixava por sua demora em examinar os nomes, porque nenhum deles queria se meter com um príncipe dos senhores da guerra que usava joias cinza-ébano, nascido e criado para ser um guerreiro eyrieno e que tinha um temperamento cruel e a reputação de manifestar livremente esse temperamento. Além disso, pertencia a uma das famílias mais poderosas do reino e servia na corte das trevas em Ebon Askavi. Não era surpresa que os outros tivessem rapidamente se rendido.
Mas nada disso contribuía para que ele se sentisse tranquilo na feira de serviços em Goth, capital da Pequena Terreille. Não importava como a chamassem, ela era muito semelhante às feiras de escravos ainda realizadas no reino de Terreille.
Caminhando lentamente até a porta, Lucivar respirou fundo. E se arrependeu disso. O enorme salão estava superlotado. Mesmo com as janelas abertas, o ar fedia a suor e cansaço – e ao medo e desespero que pareciam brotar dos milhares de nomes naquelas listas.
Assim que se viu do lado de fora do prédio, Lucivar abriu as asas escuras e membranosas em toda sua envergadura. Não sabia se era em desafio por todas as vezes em que esse movimento natural lhe valera uma chicotada ou se apenas queria sentir o sol e o vento nas asas por um momento depois de várias horas dentro de um prédio – ou, ainda, se era simplesmente uma forma de se lembrar de que agora era o comprador e não a mercadoria.
Fechando as asas, foi até o canto mais distante do recinto, reservado para o “acampamento” eyrieno.
Notara vários nomes eyrienos interessantes, mas não o único nome – o nome haylliano – que para ele era a razão principal de ter passado as últimas horas pesquisando aquelas malditas listas. Procurava o nome de Daemon fazia cinco anos, desde que os idiotas do conselho das trevas decidiram que as “feiras de serviços” bianuais seriam a forma de encaminhar as centenas de pessoas que fugiam de Terreille e tentavam encontrar alguma coisa a que se agarrar em Kaeleer. E pensava, como sempre, na razão da ausência do nome de Daemon. E rejeitava, como sempre, todas as razões, exceto uma: não estava procurando o nome correto.
Mas isso era improvável. Qualquer que tivesse sido a forma que Daemon usara para chegar a Kaeleer, uma vez na feira ele teria que usar o próprio nome. Muita gente o reconheceria e, como a punição por mentir sobre as joias usadas era a expulsão imediata do reino – fosse de volta para Terreille ou a morte final –, mudar de nome e continuar admitindo o uso de joias negras só o faria parecer idiota, já que era o único macho, além do senhor supremo, a usar as joias negras em toda a história dos Sangue. As trevas sabiam que Daemon era muitas coisas, mas não idiota.
Afastando o desapontamento de sua mente, Lucivar ficou pensando em como explicar isso a Ladvarian. O senhor da guerra de Scelt fora tão insistente em que Lucivar verificasse as listas de modo minucioso, parecera tão confiante... A maioria das pessoas acharia estranho essa apreensão motivada por desapontar um cachorro que mal lhe chegava aos joelhos, mas pensariam duas vezes se descobrissem que o melhor amigo desse animal era uma criatura de mais de 300 quilos de temperamento felino.
Lucivar afastou esses pensamentos ao chegar ao “acampamento” eyrieno: um curral de terra batida com um barracão de madeira porcamente construído, uma bomba d’água e um enorme balde. Não era assim tão diferente dos chiqueiros de escravos em Terreille. Claro que havia alojamentos melhores para aqueles que ainda dispunham dos marcos de ouro ou prata para pagar, com água quente e camas que não eram mais do que sacos de dormir no chão. Mas, para a maioria, resumia-se a isto: um grande esforço para ficar apresentável depois de dias de espera, remoendo esperanças. Mesmo aqui, entre uma raça em que a arrogância era tão natural como respirar, era possível detectar os odores da fadiga extrema provocada pela falta de alimentos, o pouco tempo de sono e os nervos exauridos. Quase conseguia saborear o desespero.
Abrindo o portão, Lucivar entrou. A maior parte das mulheres estava junto ao barracão. A maioria dos homens se dividia em pequenos grupos. Alguns olharam rapidamente para ele e se viraram. Outros, ao reconhecê-lo, ficaram tensos e desviaram o olhar, ignorando-o da mesma forma como haviam ignorado o jovem bastardo que acreditavam que ele fosse.
Alguns machos, porém, começaram a vir na sua direção com expressões desafiadoras. Lucivar deu a eles um longo e arrogante sorriso, indicando que aceitava o desafio, para logo em seguida virar as costas e ir até o senhor da guerra cuja atenção estava voltada para dois rapazes que se moviam num treinamento com bastões.
Um deles reparou em Lucivar, esquecendo-se do companheiro de treino. O outro usou a vantagem e o atingiu com força na barriga.
– Rapaz, tem sorte de ter apenas uma barriga dolorida. Você baixou a guarda – disse o senhor da guerra com irritação.
Lucivar sorriu.
– Mas... – disse o rapaz, começando a erguer a mão e a apontar.
O senhor da guerra ficou tenso, mas não se virou.
– Se começar a se preocupar com um homem que ainda não o alcançou, aquele com quem luta acabará por matá-lo.
Foi nesse momento que o outro rapaz se virou, devagar, arregalando os olhos. O sorriso de Lucivar ficou mais acentuado.
– Você está ficando mole, Hallevar. Costumava me acertar no estômago e depois me esbofeteava por eu ter baixado a guarda.
– Deu certo. Você baixa a guarda numa luta? – resmungou Hallevar.
Lucivar se limitou a rir.
– Então, do que está se queixando? Fique direito, rapaz, e vamos dar uma olhada em você.
Os jovens estavam estarrecidos diante do desrespeito de Hallevar por um príncipe dos senhores da guerra. Os machos que haviam decidido lutar tinham formado um semicírculo à sua direita. Lucivar, porém, manteve-se imóvel enquanto os olhos de Hallevar percorriam seu corpo; nada disse em resposta aos sons de aprovação do homem mais velho, e reprimiu uma gargalhada ao perceber o olhar furioso de desaprovação pelo cabelo preto e espesso, na altura dos ombros.
A forma como usava o cabelo rompia com a tradição, já que os guerreiros eyrienos usavam o cabelo curto para evitar que o inimigo os agarrasse. Mas depois de fugir das minas de sal de Pruul, oito anos antes, e tendo vindo parar em Kaeleer em vez de morrer, menosprezara várias tradições – e, ao fazê-lo, encontrara outras ainda mais antigas.
– Bem – rosnou Hallevar –, embora não tenha uma cara tão bonitinha como a daquele bastardo sádico a quem chama de irmão, vai conseguir enganar as senhoras por algum tempo, contanto que tenha a fúria necessária. – Passou a mão na nuca. – Mas este é o último dia de feira. Não lhe resta muito tempo para atrair a atenção de alguém.
– Nem a você – retrucou Lucivar. – Treinar esses cachorrinhos não mostrará a ninguém aquilo de que é capaz.
– Quem quer cartilagem quando se pode ter carne fresca? – murmurou Hallevar, desviando o olhar.
– Não comece a cavar a própria sepultura – vociferou Lucivar, não satisfeito com o alívio que sentiu ao ver a raiva nos olhos de Hallevar. – Você é um guerreiro e mestre de armas experiente. Ainda tem tempo suficiente para treinar mais uma ou duas gerações. Este é apenas outro tipo de campo de batalha, por isso pegue sua arma e mostre alguma coragem.
Hallevar sorriu com relutância.
Lucivar se virou para os outros homens. Com o canto do olho, reparou que algumas mulheres se aproximavam. E que algumas traziam crianças muito pequenas.
Refreou as emoções que começavam a fervilhar. Precisava escolher com cuidado. Alguns seriam capazes de se adaptar ao modo de vida dos Sangue em Kaeleer e construiriam uma vida agradável. Outros logo morreriam de forma violenta por não conseguirem ou não desejarem se adaptar. Ele tinha feito escolhas erradas nas duas primeiras feiras, depositara confiança onde não devia. Por isso, culpava-se pelas vidas estilhaçadas de duas feiticeiras que haviam sido violentadas e espancadas – e se lembrava da raiva doentia que sentira ao executar os machos eyrienos responsáveis por esses atos. Depois disso, encontrara uma maneira de confirmar suas escolhas. Nem sempre confiara em seu próprio discernimento, mas nunca duvidara do de Jaenelle.
– Lucivar.
Ao ouvir seu nome, Lucivar se voltou para o príncipe dos senhores da guerra com joia azul-safira que avançara para a frente do grupo.
– Falonar.
– Príncipe Falonar.
Lucivar mostrou os dentes num sorriso feroz.
– Pensei que estávamos sendo informais, tenho certeza de que um macho da aristocracia como você não se esqueceria de algo como regras básicas de cortesia.
– Por que deveria lhe oferecer cortesia?
– Porque uso a cinza-ébano – respondeu Lucivar com demasiada delicadeza, reposicionando-se ligeiramente, para que o outro homem percebesse o desafio e fizesse sua escolha.
– Parem com isso, vocês dois – disse Hallevar bruscamente. – Não comecem uma guerra só porque desejam provar quem tem o pau maior. Bati nos dois quando eram uns pirralhos metidos e ainda sou capaz de fazer isso.
Lucivar sentiu a tensão arrefecer e recuou um passo. Ele seria capaz de partir o homem mais velho em dois com as mãos ou com a mente, mas Hallevar fora um dos poucos que vira o guerreiro latente nele, que não se importara com sua linhagem.
– Assim é melhor – disse Hallevar, acenando a Lucivar em sinal de aprovação. – E você, Falonar, teve duas ofertas, muito mais do que a maioria de nós. Talvez fosse melhor considerá-las.
O rosto de Falonar ficou ainda mais tenso. Ele inspirou fundo e expirou.
– Talvez fosse melhor. Não acho que o desgraçado vá aparecer.
– Que desgraçado é esse? – perguntou Lucivar serenamente. Mais mulheres e alguns dos homens que haviam se recusado a reconhecê-lo tinham se aproximado devagar.
Foi um jovem senhor da guerra que respondeu.
– O príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih. Ouvimos...
– Ouviram...? O que foi que ouviram?
Lucivar incitou o senhor da guerra a terminar a frase, enquanto reparava na feiticeira próxima a ele, que segurava uma adorável menina nos braços. Os olhos dourados de Lucivar se estreitaram enquanto ele abria os sentidos psíquicos um pouco mais. Uma pequena rainha. Desviou o olhar para o rapaz que segurava a saia da mulher. Havia força ali, potencial. Sentiu uma mudança, algo se intensificando dentro de si.
O senhor da guerra engoliu em seco.
– Ouvimos dizer que é um desgraçado difícil, mas justo com quem o serve bem. E não...
Foi o medo nos olhos da mulher e a forma como sua pele morena empalideceu que incitaram a fúria de Lucivar.
– E não come uma mulher a menos que ela peça? – perguntou, com extrema delicadeza.
Detectou um acesso de raiva feminina em algum lugar ali perto. Antes que conseguisse localizar sua origem, lembrou-se das crianças que provavelmente já traziam cicatrizes demais.
– Vocês ouviram direito. É isso mesmo.
Falonar se virou, chamando a atenção – e aumentando a fúria – de Lucivar. Depois lançou um olhar penetrante para Hallevar e para dois homens que conhecera antes que séculos de escravidão o afastassem das cortes e dos campos de caça eyrienos.
– É por ele que têm aguardado? – Embora com esforço, conseguiu manter a voz neutra.
– Você não faria o mesmo? – Hallevar devolveu a pergunta. – Pode não ser o território que conhecíamos em Terreille, mas aqui também é chamado de Askavi e talvez não nos pareça tão... estranho.
Lucivar cerrou os dentes. A tarde estava voando. Precisava fazer escolhas, e precisava ser agora. Virou-se para Falonar.
– Irá se engasgar toda vez que receber ordens minhas?
Falonar enrijeceu.
– E por que deveria acatar ordens suas?
– Porque eu sou o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih.
Choque. Alguns homens – muitos dos que tinham se aproximado – olharam para ele com aversão e se afastaram. Falonar semicerrou os olhos.
– Já tem contrato?
– Um de longa duração. Pense bem, príncipe Falonar. Se for um incômodo servir sob as minhas ordens, é melhor aceitar outra oferta. Porque vou transformá-lo em pedacinhos se quebrar as minhas regras. E seria melhor que você – e todos os outros que aguardavam aqui – pensasse melhor no que é Ebon Rih.
– É o território da fortaleza – disse Hallevar. – Como o Vale Negro em Terreille. Nós sabemos.
Lucivar assentiu com a cabeça, sem desviar os olhos de Falonar.
– Existe uma grande diferença. – Fez uma pausa e acrescentou: – Eu sirvo na corte das trevas em Ebon Askavi.
Várias pessoas arquejaram. Os olhos de Falonar ficaram arregalados. Foi então que ele olhou para a joia cinza-ébano que pendia da corrente de ouro no pescoço. Não era, no entanto, um olhar insultuoso, e sim de deferência.
– E existe mesmo uma rainha lá? – perguntou ele, devagar.
– É claro – disse Lucivar gentilmente. – Temos uma rainha. Há outra coisa que devem saber: apresento a ela minhas escolhas sobre quem me serve em Ebon Rih, mas a decisão final é dela. Se disser “não”... – Olhou para as pessoas tensas que o observavam em silêncio. – Não resta muito tempo para decidir. Aguardarei junto ao portão. Quem estiver interessado, venha falar comigo.
Caminhou na direção do portão, ciente dos olhares que o seguiam. Manteve-se de costas, olhando para os currais. Agora tinha um lugar, uma família, uma rainha que amava e que se sentia honrado em servir. Era respeitado por sua inteligência, pela capacidade como guerreiro e pelas joias que usava. E era admirado e amado por ser quem era.
No entanto, passara 1.700 anos acreditando ser um bastardo mestiço, e os insultos e golpes que recebera ainda jovem, nos campos de caça, ajudaram a moldar o formidável temperamento herdado do pai. As cortes onde servira como escravo depois disso se encarregaram do cruel toque final.
Isso já não deveria mais importar. Já não importava. Não permitiria que voltassem a feri-lo. Mas sabia também que, se Hallevar decidisse retornar a Terreille ou aceitasse as migalhas que lhe eram oferecidas em outra corte, em vez de assinar contrato com ele, passaria muito tempo até que o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih voltasse à feira de serviços.
– Príncipe Yaslana.
Lucivar quase sorriu ao sentir a relutância na voz de Falonar, mas manteve o rosto com uma expressão cuidadosamente neutra ao voltar-se para encará-lo.
– Pronto para me servir? – Estava surpreso com a cautelosa prudência que viu nos olhos de Falonar.
– Nunca simpatizamos um com o outro, por diversas razões. Não precisamos ser amigos para trabalhar como uma equipe. Combatemos os jhinkas juntos. Você sabe do que sou capaz.
– Nessa época éramos combatentes inexperientes, recebíamos ordens de outras pessoas – disse Lucivar, com cuidado. – Agora é diferente.
Falonar assentiu, de maneira solene.
– Agora é diferente. Mas diante da oportunidade de servir em Ebon Rih, estou disposto a deixar o passado para trás. E você?
Tinham sido rivais, adversários, dois jovens príncipes dos senhores da guerra lutando para provar sua superioridade. Falonar partira a serviço do primeiro círculo da sacerdotisa suprema de Askavi. Lucivar partira para a escravidão.
– Consegue cumprir ordens? – perguntou Lucivar.
Não era uma pergunta despropositada. Os príncipes dos senhores da guerra faziam suas próprias leis. A menos que entregassem o coração e o corpo, obedecer não era fácil para nenhum deles.
– Sim, consigo cumprir ordens – disse Falonar, e acrescentou baixinho: – Quando sou capaz de tolerá-las.
– E está disposto a seguir as regras que eu determinar mesmo que isso signifique perder alguns dos privilégios que talvez esteja esperando?
Falonar semicerrou os olhos dourados.
– Você não quebra regras?
A pergunta fez Lucivar soltar uma gargalhada de surpresa.
– Ainda quebro algumas. E depois levo um belo chute no traseiro por causa disso.
Falonar abriu a boca, mas voltou a fechá-la.
– O administrador e o mestre da guarda – disse Lucivar friamente, em resposta à pergunta que não chegara a ser formulada.
– Essas joias devem lhe dar alguma vantagem – disse Falonar, inclinando a cabeça para apontar a joia cinza-ébano de Lucivar.
– Não com aqueles dois.
Falonar pareceu surpreso, depois ficou pensativo.
– Há quanto tempo está aqui?
– Oito anos.
– Então já cumpriu o seu contrato.
Lucivar sorriu sarcasticamente.
– Vá plantar suas ambições em outro lugar, príncipe. Meu contrato é vitalício.
Falonar ficou tenso.
– Pensei que os príncipes dos senhores da guerra só precisavam servir cinco anos numa corte.
Lucivar assentiu com a cabeça e reprimiu o prazer que experimentou ao ver Hallevar indo até ele.
– É essa a exigência. – Sorriu com malícia. – A senhora levou apenas três anos para perceber que não foram essas as condições com que concordei.
Falonar hesitou.
– Como é a senhora?
– Maravilhosa. Bela. Espantosa. – Lucivar olhou para Falonar de modo inquisitivo. – Vem comigo para Ebon Rih?
– Vou para Ebon Rih. – Falonar acenou com a cabeça para Hallevar e se afastou para que o homem mais velho pudesse passar.
– Gostaria de ir com você – disse Hallevar repentinamente.
– Mas? – disse Lucivar.
Hallevar olhou para os dois rapazes por cima do ombro. Voltou-se para Lucivar.
– São seus...?
Os olhos de Hallevar se inflamaram.
– Se fossem meus, teriam sido reconhecidos mesmo que as mães negassem a paternidade. É preciso que conste um progenitor nos registros para que uma criança não seja considerada bastarda, mesmo que o homem não tenha a possibilidade de ser pai.
As palavras feriam. Prythian, a sacerdotisa suprema de Askavi em Terreille, e Dorothea SaDiablo tinham tecido teias de mentiras para separá-lo da mãe, Luthvian. Adulteraram seus registros de nascimento, pois não queriam que ninguém soubesse quem era seu pai. Ficara estarrecido ao descobrir que o ressentimento que carregava por ter sido ludibriado dessa forma não era nada em comparação com a raiva de Saetan.
– A mãe de um deles é prostituta numa casa da Lua Vermelha – disse Hallevar. – Não admira que não saiba a identidade do pai. A outra mulher era a conhecida amante de um senhor da guerra da aristocracia. A feiticeira com quem ele se casara era estéril e todos sabiam que ele tomava todas as providências para que a amante não convidasse nenhum outro homem para a cama. Ele queria a criança e a teria reconhecido. No entanto, quando ela nasceu, a mãe indicou uma dezena de homens na corte que poderiam ser os progenitores. Fez isso de propósito e condenou a criança por vingança.
Lucivar simplesmente assentia, debatendo-se com a ira que ardia dentro de si.
– Este é um lugar novo, Lucivar – disse Hallevar. – Uma nova oportunidade. Você sabe como é. Deve compreender melhor do que ninguém. Eles não são fortes como você. Nenhum dos dois vai usar joias escuras. Mas são bons rapazes e terão seu valor. E são eyrienos puros – acrescentou.
– Então não carregam o estigma de serem mestiços? – perguntou Lucivar, demonstrando um controle implacável.
– Nunca usei essa palavra com você – disse Hallevar calmamente.
– Não, não usou. Mas é uma palavra que sai com facilidade. Por isso, vou lhe dar um conselho, lorde Hallevar. É melhor que se esqueça dessa palavra, pois nada poderei fazer para salvá-lo se a proferir na presença de meu pai.
Hallevar olhou espantado para Lucivar.
– Seu pai está aqui? Você o conhece?
– Sim. Acredite em mim, você não saberá o que é fúria até despertar a ira dele.
– Vou me lembrar disso. E os rapazes?
– Não vou mentir, Hallevar. Eles podem vir, mas terão de se sujeitar à aprovação da rainha.
Hallevar sorriu, claramente aliviado.
– Vou dizer a eles para arrumar nossas coisas. – Um aceno curto com a mão e os rapazes correram para os barracões. Sem olhar para Lucivar, Hallevar perguntou: – Ele se orgulha de você?
– Quando não quer me esganar ou me dar um chute no traseiro.
Hallevar tentou reprimir uma gargalhada e acabou engasgando.
– Gostaria de conhecê-lo.
– Assim será – prometeu Lucivar, friamente.
Depois que os primeiros foram aceitos – e de passado algum tempo no qual reuniram coragem –, outros homens foram se aproximando. Ali estava Endar, o jovem senhor da guerra, com a mulher, Dorian. Ao lado deles, se encontram os filhos: Alanar e Orian, a pequena rainha.
A mulher estava apavorada, o homem, nervoso. Mas a menina sorriu ternamente para Lucivar, afastando-se da mãe e estendendo os braços para ele.
Lucivar a pegou, apoiou-a no quadril e sorriu.
– Não me venha com ideias, mocinha. Sou comprometido – disse, enquanto lhe fazia cócegas, provocando risadinhas.
Quando a entregou de volta à mãe, Dorian o fitou como se ele fosse um ser de duas cabeças.
Em seguida, aproximaram-se Nurian, uma curandeira com os estudos ainda incompletos, e sua irmã mais nova, Jillian, que estava prestes a fazer a passagem de moça para mulher.
Depois veio Kohlvar, um fabricante de armas. Seguiram-se Rothvar e Zaranar, dois guerreiros que Lucivar recordava dos campos de caça.
Enquanto falava com eles, um pensamento o incomodava. O que os tinha trazido aqui? Pelos padrões das raças de longevidade prolongada, Kohlvar era jovem quando Lucivar fora mandado embora de Askavi. Mesmo naquela época, ele já era conhecido pela força e pelo equilíbrio das armas que fabricava. Poderia ter tido uma boa vida em Terreille e ficado longe das intrigas da corte, se assim desejasse. Rothvar e Zaranar eram guerreiros experientes, que poderiam ter encontrado uma posição na maioria das cortes de Askavi ou aceitado qualquer tipo de trabalho independente, se fosse esse o seu desejo.
E por que um aristocrático príncipe dos senhores da guerra como Falonar deixaria Terreille? A cautela que sentia só aumentava. As coisas em Terreille estariam muito piores do que qualquer um imaginava ou eles estavam aqui por outra razão?
Lucivar afastou esses pensamentos. Não detectara nada nas pessoas que o procuraram que o levasse a rejeitá-las, por isso deixaria que Jaenelle as julgasse.
Ao final do dia, Lucivar concordara em levar vinte machos e uma dúzia de fêmeas.
Quantos sobreviveriam até o final dos contratos?, perguntou-se ao vê-los dirigindo-se apressadamente até ele, com os parcos pertences que tinham sido autorizados a trazer. Em Kaeleer, havia outros perigos além dos que esperavam. Isso para não falar dos demônios-mortos. Tendo em vista o lugar para onde os levava, teriam que aceitar a realidade de ter demônios-mortos caminhando entre eles.
Suspirou profundamente.
– Estão prontos?
Achou divertido, embora não tenha ficado surpreso, quando viu Falonar inspecionando o grupo e respondendo a ele como se Lucivar já o tivesse aprovado como seu subcomandante.
– Estamos prontos.
Daemon Sadi cruzou as pernas, uniu os dedos e apoiou o queixo nas longas unhas pintadas de preto.
– E as rainhas dos outros territórios? – perguntou com sua voz profunda e controlada.
Lorde Jorval sorriu, cansado.
– Como disse antes, príncipe Sadi, as rainhas fora da Pequena Terreille não estão dispostas a aceitar de bom grado os irmãos e irmãs terreillianos em suas cortes. Mesmo os imigrantes que conseguem contratos não são bem-vindos.
– Perguntou a elas?
Os olhos dourados de Daemon se tornaram vítreos por um instante. Um estranho poderia pensar que talvez estivesse cansado ou entediado, mas aquele olhar sonolento teria apavorado quem realmente o conhecesse.
– Perguntei – disse Jorval, com certa rispidez. – Não responderam.
Daemon olhou rapidamente para as quatro folhas de papel na mesa à frente. Nos últimos dois dias, Jorval e ele tinham estado naquela sala seis vezes. Aquelas folhas de papel, com as quatro rainhas interessadas em contratar seus serviços, tinham sido apresentadas a ele na primeira reunião.
Jorval uniu as mãos e suspirou.
– Você tem que entender. Um príncipe dos senhores da guerra é considerado um elemento perigoso, mesmo quando usa joias mais claras e serve a seu próprio povo. Um homem com a sua força e reputação... – Encolheu os ombros. – Sei que suas expectativas talvez fossem diferentes. As trevas bem sabem, são muitos os que fazem uma ideia irrealista da vida em Kaeleer. Mas posso garantir, meu príncipe, que o fato de termos quatro rainhas dispostas a aceitar o desafio de tê-lo em suas cortes durante os próximos cinco anos é insólito, mas não é uma oportunidade que se deva ignorar.
Daemon não deu qualquer indicação de que tomara a advertência como uma apunhalada. Não, não podia ignorar as limitadas opções se quisesse permanecer em Kaeleer. Mas não sabia se conseguiria suportar qualquer daquelas mulheres por tempo suficiente até concluir o que tinha vindo fazer ali. E não conseguia deixar de imaginar o tamanho do presente que Jorval receberia da rainha que escolhesse.
De repente, tudo era demais: a privação de sono, a pressão para fazer uma escolha intragável, os nervos à flor da pele devido ao que planejara e as questões que tinham surgido das conversas que escutara ao passear pela feira de serviços.
– Vou considerá-las e depois o informarei – disse Daemon, caminhando até a porta com uma agilidade graciosa que lembrava um predador felino.
– Príncipe Sadi – chamou Jorval bruscamente.
Daemon parou à porta.
– O último sino soará em menos de uma hora. Se até lá não tiver escolhido, não restará alternativa. Terá que aceitar qualquer tipo de oferta que lhe for proposta ou abandonar Kaeleer.
– Estou ciente da situação, lorde Jorval – respondeu Daemon, com demasiada delicadeza.
Saiu do prédio, enfiou as mãos nos bolsos das calças e começou a perambular sem rumo.
Desprezava lorde Jorval. Havia algo em seu odor psíquico, algum tipo de mácula. E muitos segredos por trás daqueles olhos sombrios e inexpressivos. Desde o primeiro encontro, vira-se forçado a conter o desejo assassino de enfiar o mirrado senhor da guerra numa cova funda.
O que teria levado lorde Magstrom a encaminhá-lo a Jorval? Ao chegar a Goth, falara brevemente com o ancião no final do terceiro dia de feira, e estava disposto a confiar na opinião do homem com cautela. Quando exprimiu o desejo de servir numa corte fora da Pequena Terreille, os olhos azuis de Magstrom cintilaram de satisfação.
As rainhas além das fronteiras da Pequena Terreille são bem seletivas em suas escolhas, dissera Magstrom. Mas sem dúvida dispõem de uma vantagem quando se trata de um homem como você – sabem lidar com machos de joias escuras.
Magstrom prometera recolher informações e eles combinaram de se encontrar no dia seguinte, de manhã cedo. Quando Daemon chegou, porém, quem o aguardava era lorde Jorval, com os nomes de quatro rainhas que pretendiam controlar sua vida durante os cinco anos seguintes.
Aromas de comida intensificaram sua fúria já bastante aguçada, lembrando-o de que quase não comera nos últimos dois dias. O choque de aromas intensos misturados a odores corporais de igual intensidade o ajudaram a recordar por que decidira não comer.
Mais do que isso, a incapacidade de dormir e a falta de apetite deviam-se a questões para as quais não encontrava respostas. Não neste local.
Levara cinco anos para chegar a Kaeleer após sair do reino distorcido. Não havia pressa. Jaenelle não o estava aguardando, como havia prometido ao marcar a trilha que indicava a saída da loucura. Ainda não sabia o que de fato acontecera quando tentara trazer Jaenelle do abismo para que salvasse o corpo. As memórias dessa noite, passados treze anos, ainda eram confusas, fragmentadas. Tinha a vaga lembrança de alguém lhe dizendo que Jaenelle estava morta – que o senhor supremo convencera outro macho a se tornar o instrumento de destruição de uma criança extraordinária.
Por isso, ao não encontrar Jaenelle na ilha onde Surreal e Manny o mantiveram a salvo e escondido, e quando Surreal lhe contou sobre a sombra que Jaenelle criara a fim de tirá-lo do reino distorcido...
Passara os últimos cinco anos acreditando ter assassinado a criança que era sua rainha; passara os últimos cinco anos acreditando que Jaenelle usara suas últimas forças para tirá-lo da loucura, a fim de que saldasse a dívida que tinha; passara os últimos cinco anos aprimorando as competências na arte, dando tempo para que sua mente se curasse, com um único objetivo: vir para Kaeleer e aniquilar o homem que o usara como instrumento: seu pai, o senhor supremo do Inferno.
Mas agora que estava aqui...
Circulavam rumores e especulações sobre as feiticeiras no reino das sombras. Ao passear pela feira, no dia anterior, ficara irritado com os boatos sobre uma estranha e terrível feiticeira que ao primeiro olhar conseguia ver a alma de um homem. Segundo os boatos, quem quer que assinasse um contrato fora da Pequena Terreille era levado à presença dessa feiticeira, e se fosse considerado inaceitável, não sobrevivia para ver a luz de um novo dia.
Daemon poderia ter ignorado essas conversas, mas finalmente lhe ocorreu que talvez Jaenelle estivesse à sua espera, mas não em Terreille. Deixara a dor nublar seus pensamentos, bloqueando todas as lembranças, exceto as melhores, relativas aos poucos meses que passara com ela. Assim, esquecera-se dos laços que já ligavam Jaenelle a Kaeleer.
Se ela de fato estivesse no reino das sombras, ele havia perdido cinco anos que poderia ter passado com ela. Não passaria os cinco anos seguintes em outra corte, ansiando à distância.
Isto é, se ela estivesse viva.
Uma alteração nos odores psíquicos à sua volta o fez abandonar seus pensamentos. Olhou em volta e praguejou baixinho. A julgar pelo céu, teria de correr até o prédio da administração e fazer sua escolha antes de soar o sino indicando o fim do último dia de feira. Mesmo assim, poderia não ter uma escolha se Jorval não o estivesse aguardando.
Ao se virar para fazer o caminho de volta, reparou numa das bandeiras vermelhas que assinalavam os postos onde eram preenchidos os contratos das cortes. Havia uma fila de eyrienos. Entre eles, um guerreiro observava os procedimentos e fez o sangue de Daemon congelar.
O homem usava um colete de couro e calças pretas e justas. Seu cabelo preto caía pelos ombros, o que era um tanto incomum num macho eyrieno. Porém, era a forma como se portava, a forma como se movia, que lhe pareceu tão dolorosamente familiar.
Daemon foi invadido por uma alegria selvagem. Seu coração batia na garganta e os olhos ardiam cheios de lágrimas. Lucivar.
Mas não podia ser. Lucivar morrera oito anos antes, ao fugir das minas de sal de Pruul.
Foi então que o homem se virou. Por um momento, Daemon pensou vislumbrar a mesma alegria selvagem nos olhos de Lucivar, antes que ela se perdesse numa fúria fulminante.
Vendo aquela fúria e lembrando que os assuntos inacabados entres os dois só poderiam terminar em derramamento de sangue, Daemon se escondeu atrás da máscara fria com a qual vivera a maior parte da vida e começou a se afastar.
Tinha dado apenas alguns passos quando sentiu uma mão agarrar-lhe o braço direito e virá-lo.
– Há quanto tempo está aqui? – perguntou Lucivar.
Daemon tentou se livrar da mão, mas os dedos de Lucivar estavam cravados com tanta força que deixariam marcas.
– Há dois dias – respondeu Daemon com uma delicadeza fria.
Sentiu que a máscara estava prestes a cair, por isso precisava sair dali antes que as emoções transbordassem. Não estava certo se enfrentaria a ira de Lucivar com lágrimas ou com raiva.
– Já assinou algum contrato? – Lucivar o sacudiu.
– Não, e tenho pouco tempo para fazer isso. Peço licença.
Lucivar rosnou e o apertou com mais força.
– Seu nome não estava nas listas – resmungou enquanto arrastava Daemon em direção à mesa sob a bandeira vermelha. – Verifiquei uma a uma. Não estava em nenhuma dessas malditas listas.
– Peço perdão pelo inconv...
– Cale a boca, Daemon.
Daemon cerrou os dentes e aumentou a passada para acompanhar o irmão. Não sabia que tipo de jogo Lucivar fazia, mas não aceitaria ser arrastado como um cachorrinho medroso.
– Olha, bastardo – disse Daemon, tentando contrabalançar o temperamento volúvel de Lucivar com a razão –, preciso...
– Você vai assinar contrato com o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih.
Daemon bufou, exasperado.
– Não acha melhor discutir o assunto com ele antes?
Lucivar o olhou de modo incisivo.
– Não costumo discutir assuntos comigo mesmo. Fique aqui.
Daemon sentiu o chão girando e decidiu que aquele era um bom conselho.
– Há quanto tempo está em Kaeleer? – perguntou, sentindo-se fraco.
– Há oito anos. – Lucivar silvou enquanto um velho senhor da guerra eyrieno assinava um contrato e se desviava da mesa. – Fogo do Inferno. Por que esse verme demora tanto tempo para escrever uma linha? – Avançou um passo até a mesa. Depois virou-se e disse gentilmente: – Nem pense em sair daqui. Se fizer isso, quebro sua perna em tantos pedaços que não conseguirá sequer rastejar.
Daemon não se deu o trabalho de responder. Lucivar não fazia ameaças vãs. Em um confronto físico, Daemon sabia que não conseguiria derrotar seu meio-irmão eyrieno. Além disso, o chão sob seus pés não parava de girar, ameaçando seu equilíbrio.
Lucivar era o príncipe dos senhores da guerra do território que pertencia a Ebon Askavi, a montanha negra também chamada de fortaleza, onde ficava o santuário da feiticeira.
Talvez isso não significasse nada. Fosse ou não vigiada por um príncipe dos senhores da guerra, fosse ou não governada por uma rainha, a terra de qualquer maneira não deixava de existir.
Mas o fato de Lucivar estar aqui, vivo, acalentava em Daemon a esperança de ter se enganado também sobre a morte de Jaenelle. Será que ela tinha enviado Lucivar à feira de serviços à sua procura? Será que lorde Magstrom havia chegado a ela? Será que...
Daemon balançou a cabeça. Perguntas demais – e aqui não era o local nem o momento de obter respostas. Mas, oh, como começava a acalentar esperanças.
Quando Lucivar se aproximou da mesa, alguém chamou:
– Príncipe Yaslana, há duas pessoas aqui para assinar contrato.
Virando-se na direção da voz, Daemon sentiu o chão fugindo ainda mais de seus pés. Dois homens, um senhor da guerra de joia azul-safira e um príncipe dos senhores da guerra de joia vermelha, arrastavam duas mulheres até a mesa. Um homem de cabelos castanhos usando um tapa-olho preto e mancando nitidamente os seguia, furioso.
A mulher assustada tinha cabelos negros, pele clara e olhos azuis. Fazia treze anos desde a última vez que estivera com Wilhelmina Benedict, a meia-irmã de Jaenelle. Ela havia se tornado uma bela mulher, mas conservava a afabilidade de quando era adolescente. Arregalou os olhos ao vê-lo, mas nada disse.
A resmungona de longos cabelos pretos, pele morena dourada, orelhas delicadamente pontudas e olhos verde-dourados fulminantes era Surreal. Ela deixara a ilha quatro meses antes, sem dar qualquer explicação além de dizer que tinha um assunto a tratar.
De início, Daemon não reconheceu o homem que mancava. Ao ver o lampejo de reconhecimento nos olhos azuis do homem, sentiu uma pontada no coração. Andrew, o moço da cavalariça que o ajudara a escapar dos guardas hayllianos depois que levaram Jaenelle de novo para Briarwood.
– Lorde Khardeen. Príncipe Aaron – disse Lucivar, cumprimentando formalmente o senhor da guerra de joia azul-safira e o príncipe dos senhores da guerra de joia vermelha.
– Príncipe Yaslana, essas senhoras devem fazer parte do contrato – disse respeitosamente o príncipe Aaron.
Lucivar olhou para ambas com um olhar que poderia esfolá-las vivas. Em seguida, encarou Khardeen e Aaron.
– Aceitas.
Wilhelmina tremia visivelmente, mas Surreal prendeu o cabelo atrás das orelhas pontudas e semicerrou os olhos, dirigindo-se a Lucivar.
– Olha, meu bem...
– Surreal – chamou Daemon baixinho. Balançou a cabeça. A última coisa que qualquer um deles poderia querer era que Surreal e Lucivar se desentendessem.
Surreal silvou. Quando tentou se libertar da mão do príncipe Aaron, o homem a soltou, mas se posicionou de forma a bloquear qualquer tentativa de fuga. Fitando Lucivar com um desagrado profundo, ela caminhou até Daemon.
– É seu irmão? – perguntou baixinho. – Aquele que deveria estar morto?
Daemon assentiu com a cabeça. Surreal observou Lucivar durante um minuto.
– E está morto?
Pela primeira vez desde que chegara a Kaeleer, Daemon sorriu.
– Os demônios-mortos não suportam a luz do dia. Pelo menos é isso que rezam as histórias. Então eu diria que Lucivar está bem vivo.
– Bem, será que não consegue argumentar com ele? Tenho um salvo-conduto válido por três meses e não vim aqui assinar contrato com corte nenhuma. O dia em que tiver de saltar quando aquele filho da puta estalar os dedos é o dia em que o sol vai brilhar no Inferno.
– Eu não apostaria nisso – murmurou Daemon, vendo Lucivar examinar o membro do conselho das trevas que preenchia o contrato.
Antes que Surreal tivesse oportunidade de responder, Wilhelmina se aproximou furtivamente.
– Príncipe Sadi – disse com uma voz no limiar do pânico. – Senhora.
– Lady Benedict – respondeu Daemon formalmente, enquanto Surreal assentia em reconhecimento.
Wilhelmina olhava assustada para Lucivar, que agora falava com o velho senhor da guerra eyrieno.
– Ele é assustador – sussurrou ela.
Surreal sorriu maliciosamente e disse em voz alta:
– Quando um homem usa calças justas desse jeito, acaba ficando com as bolas apertadas e furioso.
Aaron, que estava junto a eles, começou a tossir com violência, tentando reprimir as gargalhadas. Ao ver Lucivar interrompendo a conversa se dirigindo a eles, Daemon suspirou e desejou conhecer um feitiço capaz de silenciar Surreal pelas próximas horas.
Lucivar parou a um braço de distância, ignorando a forma como Wilhelmina se encolhia, voltando a atenção para Surreal. O sorriso sonolento e arrogante que tinha no rosto normalmente era o único aviso que dava antes de um confronto.
Surreal baixou a mão direita. Antecipando o gesto, Daemon tirou as mãos dos bolsos e mudou ligeiramente de posição, preparando-se para detê-la antes que cometesse a insensatez de ameaçar Lucivar com uma faca.
– Você é filha de Titian, não é? – perguntou Lucivar.
– Isso é da sua conta? – retrucou Surreal.
Lucivar a examinou por um momento. Em seguida, balançou a cabeça e resmungou:
– Vai ser difícil aturar você.
– Talvez então fosse melhor me deixar ir embora – disse Surreal com doce veneno na voz.
Lucivar riu baixinho e cheio de maldade.
– Se você acha que vou explicar à rainha das harpias por que sua filha serve em outra corte quando estive diante dela, é melhor pensar duas vezes, pequena feiticeira.
Surreal cerrou os dentes.
– Minha mãe não é harpia, eu não sou uma pequena feiticeira e não vou assinar droga de contrato nenhum!
– Pense melhor – disse Lucivar.
A mão de Daemon se fechou no braço direito de Surreal. Aaron segurou seu braço esquerdo. O sino que indicava o término da feira de serviços soou três vezes. Surreal praguejou com violência. Lucivar se limitou a sorrir.
De repente, ouviu-se a voz de um homem que protestava cada vez mais alto, e todos voltaram a atenção para a mesa. Daemon viu o homem que se vestia de maneira exagerada e se ocupava em endireitar papéis, ignorando o jovem senhor da guerra eyrieno.
Irritado, Lucivar foi até a mesa a passos largos, passou pela fila de eyrienos confusos e perturbados e parou ao lado do homem que continuava a fingir não reparar em nenhum deles.
– Há algum problema, lorde Friall? – perguntou Lucivar serenamente.
Friall ajeitou o laço branco no pulso e continuou a reunir seus papéis.
– O sino que indica o fim da feira já soou. Se essas pessoas ainda estiverem disponíveis quando você chegar amanhã para o dia da reivindicação, pode fazer um contrato com elas segundo a regra da primeira oferta.
Daemon ficou tenso. Lorde Jorval explicara várias vezes a regra da primeira oferta. Durante a feira, os imigrantes podiam recusar ofertas de serviço numa corte, aguardar possíveis ofertas de cortes diferentes ou, ainda, tentar negociar posições melhores. No entanto, o dia que se seguia à feira era o dia da reivindicação. Restava uma única opção. O imigrante poderia aceitar qualquer que fosse a oferta feita pela primeira corte que o reivindicasse – Jorval insinuara que qualquer posição oferecida na reivindicação era geralmente degradante – ou poderia voltar a Terreille e tentar a sorte na feira seguinte.
Daemon gastara 2 milhões de marcos de ouro em subornos para ser incluído nas listas de imigração dessa feira. Possuía recursos para fazer isso de novo caso se atrevesse a voltar a Terreille. A maioria das pessoas, porém, havia gastado tudo o que tinha por essa chance única de tentar uma vida quem sabe melhor. Assinariam contratos pelo privilégio de rastejar, se essa fosse a única forma de permanecer em Kaeleer.
– Ora, lorde Friall – disse Lucivar, ainda com um tom de voz sereno –, você sabe tão bem quanto eu que os indivíduos têm que ser aceitos antes da última badalada, mas que depois disso temos uma hora para preencher e assinar contratos.
– Se deseja assinar o contrato dos que já estão na lista, pode levá-los agora mesmo. Os outros terão de aguardar até amanhã – insistiu Friall.
Lucivar ergueu a mão direita e coçou o queixo.
O que se seguiu foi tão rápido que Daemon nem se deu conta do movimento. Num momento, Lucivar estava coçando o queixo. No momento seguinte, sua espada de guerra eyriena repousava delicadamente no pulso esquerdo de Friall.
– Bem – disse Lucivar de modo agradável –, você pode terminar de preencher aquele contrato ou posso cortar sua mão esquerda agora mesmo. A escolha é sua.
– Puta que pariu! – reclamou Surreal, aproximando-se de Daemon.
– O senhor não pode fazer isso – lamentou Friall.
A mão de Lucivar parecia não se mover, mas uma fina linha de sangue surgiu no pulso de Friall.
– Informarei o conselho – gemeu Friall. – Você vai ter problemas.
– É possível que eu tenha – respondeu Lucivar. – Mas isso não trará de volta sua mão esquerda. Se tiver sorte, não perderá nada além dela. Se não tiver...
Um movimento rápido desviou o olhar de Daemon para a esquerda. Lorde Magstrom, o membro do conselho das trevas com quem tinha falado antes de Jorval, parou do lado oposto da mesa.
– Posso ajudá-lo, príncipe Yaslana? – perguntou o ancião, esbaforido.
Lucivar ergueu os olhos e Magstrom ficou petrificado.
– Mãe Noite! – murmurou Aaron. – Ele ascendeu ao limiar assassino.
Daemon não se mexeu. Nem os outros. Um príncipe dos senhores da guerra no limiar assassino era um homem violento e incontrolável. Ele usava a negra, a única joia mais escura do que a cinza-ébano de Lucivar, mas qualquer tentativa para controlar o irmão só serviria para quebrar o pouco autocontrole que ainda lhe restava. No mínimo, Friall morreria. Na pior das hipóteses, haveria uma carnificina.
– Lorde Friall afirma que os contratos não podem ser preenchidos após a badalada final – disse Lucivar com serenidade.
– Com certeza se enganou – respondeu Magstrom, de imediato. – Existe um período de tolerância após a badalada final para que os papéis sejam preenchidos. – Vendo que Lucivar não respondia, respirou com cautela. – Lorde Friall parece estar indisposto. Com a sua permissão, eu mesmo terminarei de preencher os contratos.
Nesse momento, o laço branco em volta do pulso de Friall era de um vermelho úmido e vivo. Ranho escorria de seu nariz enquanto ele choramingava em silêncio.
Lucivar assentiu com cabeça e Magstrom puxou os papéis da pequena poça de sangue na mesa, pegando a caneta junto a eles. Dirigindo-se à extremidade oposta da mesa, Magstrom se sentou.
Lucivar ergueu a mão esquerda e apontou para Daemon.
– Ele é o primeiro.
Magstrom preencheu a parte de cima do contrato e depois olhou para Daemon, expectante. Tinha a testa salpicada por gotas de suor.
Mexa-se, desgraçado, mexa-se. Durante um momento de tensão, o corpo de Daemon se recusou a obedecer. Quando por fim suas pernas começaram a funcionar, ele teve a sensação arrepiante de estar caminhando sobre gelo fino e rachado, de que bastaria um passo em falso para um desastre.
– Daemon Sadi – disse Magstrom calmamente, escrevendo o nome de maneira clara. – De Hayll, não é mesmo?
– Sim – respondeu Daemon.
A seus próprios ouvidos sua voz lhe soava rouca, cavernosa. Magstrom não deu qualquer indicação de ter reparado nisso.
– Quando nos encontramos, lembro-me de ter dito que usava uma joia escura, mas não recordo qual.
Durante o encontro com Magstrom, dissera que sua joia de direito por progenitura era vermelha, mas evitara mencionar a categoria atual dela. Agora já não podia mais fazer isso.
– A negra.
Magstrom olhou para cima, os olhos arregalados de espanto. Em seguida, preencheu o espaço no papel.
– E você trouxe dois criados?
– Manny é uma feiticeira de joia branca. Jazen é um senhor da guerra de joia violeta.
Magstrom anotou as informações e depois virou o contrato para Daemon.
– Assine aqui, depois ponha suas iniciais nos espaços das duas outras assinaturas, indicando que aceita a responsabilidade por seus criados. – Quando Daemon se inclinou para assinar o contrato, Magstrom sussurrou: – Esta corte teria sido minha escolha para você. Aqui é o seu lugar.
Sem dizer nada, Daemon se afastou da mesa para deixar Surreal passar. Olhou rapidamente para Lucivar, que o encarava com seus olhos dourados e vítreos.
– Nome? – perguntou Magstrom.
– Surreal.
Percebendo que ela não acrescentaria mais nada, Magstrom disse gentilmente:
– Embora não sejam muito usados em Kaeleer, é comum registrar formalmente um nome de família.
Surreal o encarou e sorriu maliciosamente.
– SaDiablo.
Magstrom arquejou. Por um momento, Khardeen e Aaron olharam para ela, boquiabertos, mas logo se afastaram da mesa. Daemon fechou os olhos e não ouviu as respostas dos outros. Uma vez que Surreal era filha bastarda de Kartane SaDiablo, provavelmente disse isso com a intenção de atingir a mãe dele, Dorothea. Ela não tinha como saber que o nome era carregado de significado em Kaeleer.
– Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas – exclamaram duas vozes em uníssono.
Daemon abriu os olhos. Aaron e Khardeen estavam à sua frente, observando enquanto Surreal se afastava da mesa.
Aaron olhou para Daemon.
– Esse é mesmo o nome de família dela?
Daemon hesitou. Não sabia a que tipo de estigma estavam sujeitos os bastardos em Kaeleer e devia demais a Surreal para revelar um ponto fraco.
– O homem que a gerou responde por esse nome – respondeu, com cautela.
– O que acha que devemos fazer? – Aaron perguntou a Khardeen.
– Vender ingressos para esse espetáculo – respondeu Khardeen de imediato. – E depois encontrar um lugar seguro para assistir à explosão.
A diversão às custas de Surreal inflamou a fúria de Daemon.
– Isso vai ser um problema? – perguntou Daemon.
– Pode-se dizer que sim – respondeu Khardeen alegremente, para logo em seguida assumir uma expressão séria. – Veja bem, o que lady Surreal ainda não percebeu é que, ao declarar formalmente ser membro da família SaDiablo, acaba de adquirir Lucivar como primo.
– Se você acha que Lucivar tem uma personalidade dominante com os outros machos, devia vê-lo com as mulheres da família – acrescentou Aaron.
E com Jaenelle?
Não chegou a formular a pergunta, pois não queria ver a expressão desorientada em seus rostos quando ouvissem o nome – e também porque não tinha certeza do que faria se detectasse reconhecimento. Seria melhor perguntar a Lucivar depois. E as perguntas que lhe surgiam agora sobre mulheres e família... estas também teriam de ficar para mais tarde.
– E não vamos nem tentar imaginar o que vai acontecer quando ela se meter com os machos do lado Dea al Mon da família – disse Khardeen.
– E por que eles se envolveriam? – perguntou Daemon.
– Porque ela é a filha de Titian, finalmente chegando em casa – respondeu Aaron. Depois, sorriu abertamente. – Lady Surreal está prestes a descobrir que agora tem parentes machos de ambas as descendências que irão se meter em sua vida... e vários desses machos são príncipes dos senhores da guerra.
Mãe Noite!
– Ela jamais vai tolerar isso – disse Daemon.
– Bem, não vai ter muita escolha – respondeu Khardeen.
– Os Sangue são matriarcais. Não é assim em Kaeleer?
– É claro – disse Aaron, animado. – Mas os machos têm direitos e privilégios e tiramos deles o maior proveito possível. – Examinou Daemon por um momento. – Poderia tentar mantê-la calma enquanto ficamos de olho em Lucivar? Se ninguém o pressionar, é provável que consiga controlar a fúria.
– Conhece ele tão bem assim? – perguntou Daemon.
Percebeu no olhar dos dois homens o que eles sabiam mas tinham cuidadosamente escondido até agora. Sabiam que ele era irmão de Lucivar. E sabiam também que...
– Servimos todos na mesma corte, príncipe Sadi – disse Aaron, serenamente. – Servimos todos no primeiro círculo da senhora.
Afastaram-se dele.
Poderiam até ter gritado dos telhados. Está viva! Alegria e ansiedade lutavam dentro de si, fazendo seu coração bater desenfreado, levando o sangue a correr rápido demais pelas veias. Está viva!
Mas o que pensaria dele? O que sentiria por ele? Não tinha respostas. Não aqui. Não por enquanto.
Com cuidado exagerado, Daemon caminhou até Surreal. No momento em que parou, sentiu que balançava como um salgueiro sob vento pesado.
Surreal passou os braços em volta do braço esquerdo de Daemon e fincou os pés.
– O que está acontecendo? – perguntou ela baixinho, com urgência. – Está doente?
Melhor do que ninguém, Surreal seria capaz de adivinhar o que estava acontecendo, mas Daemon não estava disposto a admiti-lo. Não agora.
– Quase não dormi nem comi nos últimos dias.
Surreal semicerrou os olhos, mas aceitou a resposta.
– Entendo. Este lugar me dá calafrios.
Daemon abriu o reservatório da joia negra e o poder fluiu pelo seu corpo. Sentiu-se estável pela primeira vez desde que vira Lucivar.
Surreal detectou a alteração.
– Por que você acha que o velho senhor da guerra que está elaborando os contratos ficou tão chocado quando lhe disse que meu nome de família era SaDiablo? A vadia da Dorothea é tão conhecida assim por aqui?
– Não sei – respondeu Daemon, com cautela. – Mas ouvi dizer que o nome do príncipe dos senhores da guerra de Dhemlan é S. D. SaDiablo.
Não era o momento certo para lhe contar que o príncipe dos senhores da guerra de Dhemlan era também o senhor supremo do Inferno, bem como pai dele e de Lucivar.
– Droga – resmungou Surreal para logo encolher os ombros. – Bem, provavelmente não vou conhecê-lo. Se alguém perguntar, posso dizer que talvez sejamos parentes distantes. Muito distantes.
Recordando os comentários de Khardeen e Aaron, Daemon emitiu um ruído que se assemelhava a um gemido.
– Tem certeza de que está bem? – perguntou Surreal, examinando-o.
– Estou bem. – Muito bem. Mais do que bem. Acreditaria, insistiria, até que fosse verdade. – Faça-me um favor. Pergunte a Khardeen ou a Aaron se vamos viajar nas carruagens da teia e depois fale com a Manny para que Jazen e ela nos encontrem lá.
Surreal não perguntou por que ele mesmo não fazia isso, e Daemon ficou agradecido.
Por fim, chegou a vez do último eyrieno assinar o contrato e se afastar da mesa. Lucivar, que não se mexera nem proferira uma palavra desde que lorde Magstrom começara a preencher os contratos, invocou um pano limpo, secou o sangue da espada, fez com que ambos desaparecessem e contornou a mesa para assinar os contratos.
Segurando contra o peito o pulso que sangrava, Friall limpou o nariz na manga limpa e disse, com uma voz aborrecida:
– Você precisa fazer cópias. Não pode levar o contrato sem fazer cópias.
Lucivar se endireitou lentamente e se virou para Friall.
Uma voz masculina praguejou baixinho.
Lançando a Friall um olhar penetrante, Magstrom disse apressadamente:
– Providenciarei contratos em branco ao príncipe Yaslana. O administrador da corte poderá produzir as cópias, devolvendo-as depois ao conselho das trevas para que sejam registradas. – Vendo que Friall estava a ponto de protestar e provocar a própria morte, Magstrom acrescentou: – Já vi lorde Jorval fazendo isso muitas vezes. Ele explicou que podíamos confiar nos administradores para produzir cópias exatas e que essa era a única forma de acelerar o processo de instalação dos imigrantes em suas novas casas.
Invocando uma pequena pasta de couro, Lucivar arquivou os contratos e a fez desaparecer. Acenou educadamente para Magstrom, virou-se para os imigrantes que aguardavam e disse rispidamente:
– Vamos.
Daemon se aproximou de Lucivar e acompanhou a passada larga do eyrieno.
Já tinham caminhado assim antes, lado a lado. Não com muita frequência, pois os Sangue de Terreille tinham pavor de vê-los juntos. Nem o anel de obediência fora suficiente para impedir a destruição que provocaram em cortes terreillianas.
Enquanto seguiam na direção das carruagens concebidas para viajar nos ventos, Daemon se perguntou por quanto tempo seriam capazes de adiar os assuntos pendentes.
Era quase noite quando chegaram às duas enormes carruagens cobertas cinza-ébano paradas na extremidade mais distante da área de desembarque. Lucivar desfez os escudos de proteção, abriu a porta da primeira, olhou para Daemon e disse:
– Entre.
Daemon olhou em volta.
– Meus criados ainda não chegaram.
– Eu cuido deles. Entre.
Reparando nos olhos ainda vítreos de Lucivar e detectando uma forte urgência no odor psíquico do irmão, Daemon obedeceu.
Surreal, Wilhelmina e Andrew entraram logo depois, seguidos por vários eyrienos. Passado um minuto, Daemon respirou aliviado ao ver Jazen ajudando Manny a subir os degraus para a carruagem. Entraram mais alguns eyrienos e, nesse momento, o veículo foi envolvido por um escudo cinza-ébano que cobriu todos, exceto Daemon, o único a usar uma joia mais escura que a de Lucivar.
Uma carruagem desse tamanho geralmente transportava trinta pessoas, mas os eyrienos precisavam de mais espaço, por causa das asas. Reparando na falta de assentos, Daemon ficou pensando se a carruagem costumava ser usada para transportar outros seres ou se Lucivar, já com a intenção de trazer eyrienos, removera os bancos. Os únicos objetos ali que poderiam ser usados como assento eram as caixas pesadas de madeira junto às paredes, com almofadas em cima e a parte da frente aberta para acomodar as bagagens.
Depois de examinar as pessoas espremidas contra as paredes, de modo a deixar um pequeno corredor ao centro, Daemon voltou a atenção para a carruagem. À frente, havia uma porta que levava ao compartimento do condutor. Talvez outra pessoa pudesse se sentar ali com ele, abrindo um pouco mais de espaço para os outros. Movendo-se com cuidado, Daemon foi até o pequeno corredor na parte traseira da carruagem. À esquerda, havia um pequeno recinto com uma mesa estreita, uma cadeira de espaldar alto, uma poltrona, um descanso para pés e uma cama de solteiro. O recinto à direita tinha uma pia e um vaso sanitário.
Daemon estava prestes a recuar para o compartimento principal quando ouviu a voz de Lucivar pela porta aberta da carruagem.
– Não estou nem aí para o que aquele verme diz – resmungou Lucivar.
– Não é o comportamento de lorde Friall que está em questão – disse uma voz que Daemon reconheceu como a de lorde Jorval. – Este assunto será levado ao conselho das trevas, e posso lhe assegurar que não ignoraremos seu comportamento imoral.
– Se tem algum problema comigo, pode apresentá-lo ao administrador, ao mestre da guarda ou à minha rainha.
– Sua rainha tem medo de você – zombou Jorval. – Todo mundo sabe. Ela não é capaz de controlá-lo, e o administrador e o mestre da guarda não irão exigir restrições a seu comportamento, uma vez que lhes serve tão bem.
Lucivar baixou a voz, transformando-a num silvo malévolo:
– Não se esqueça, lorde Jorval, que enquanto lorde Friall e você estiverem fazendo suas queixas, vou me certificar de que as rainhas dos territórios tomem conhecimento da existência de certos membros do conselho que ignoram abertamente as próprias regras da feira de serviços.
– Mas essa é uma mentira descabida!
– Então Friall é incompetente, e não deveria cuidar dessa tarefa.
– Friall é um dos melhores membros do conselho!
– Nesse caso, será que estava irritado porque esperava pegar sua parte nos subornos daquela mesa e não se deu conta de que ela já estava em seu bolso?
– Como se atreve! – Seguiu-se uma pausa prolongada. – Talvez lorde Friall tenha sido em parte responsável por esse lamentável incidente, mas o conselho será firme sobre outra questão.
– E que questão seria essa? – perguntou Lucivar.
– Não podemos permitir que você tenha a seu serviço um macho que usa joias mais escuras que as suas.
– As rainhas da Pequena Terreille fazem isso o tempo todo.
– São rainhas. Sabem controlar machos.
– Eu também.
– O conselho proíbe.
– O conselho que vá para o fundo do Inferno.
Lucivar apareceu de repente à porta da carruagem.
– Você não pode fazer isso! – gritou Jorval atrás de Lucivar.
Lucivar se virou e sorriu para Jorval de modo indolente e arrogante.
– Sou um príncipe dos senhores da guerra de joia cinza-ébano. Posso fazer o que tiver vontade.
Fechou a porta na cara de Jorval e olhou rapidamente para o compartimento do condutor, enviando uma ordem num fio psíquico. A carruagem se elevou de imediato.
Quando Daemon deu um passo para voltar ao compartimento principal, Lucivar se pôs à sua frente, bloqueando totalmente a entrada no corredor. Aceitando a ordem implícita, Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças e se encostou à parede.
Quando teve certeza de que Lucivar terminara de transmitir as instruções silenciosas a quem quer que estivesse conduzindo a carruagem, enviou um fio masculino cinza-ébano para perguntar:
*Isto vai lhe trazer problemas?*
*Não*, respondeu Lucivar. Passou os olhos pelos imigrantes. Todos desviaram o olhar de repente.
*O conselho não vai exigir algum tipo de castigo?*
*Sem dúvida. O administrador lerá a reclamação, provavelmente vai mostrá-la ao mestre da guarda e vão ignorá-la.*
Daemon percebeu que estava respirando rápido demais, superficialmente demais, e não conseguiu se controlar ao fazer a próxima pergunta:
*Isso não chegará ao conhecimento de sua rainha?*
*Não*, respondeu Lucivar. *Se puderem evitar, não mencionarão nada disso à rainha. Se não puderem, vão tentar minimizar o assunto.*
*Por quê?*
*Porque o conselho das trevas já a pressionou em outras ocasiões e o resultado foi assustador para todo mundo.*
Lucivar se mexeu.
– Já estamos longe de Goth – comentou, subindo ligeiramente o tom de voz. – Tentem se acomodar o melhor que puderem. São umas duas horas de viagem.
– Não vamos para Ebon Rih? – perguntou alguém.
– Ainda não. – Lucivar avançou para o pequeno corredor, forçando Daemon a se afastar. Deslizou a porta do compartimento privado.
– Lá para dentro – disse, entrando de lado para passar as asas.
Daemon o seguiu com relutância e fechou a porta. Lucivar se posicionou numa das extremidades do recinto. Daemon ficou junto à porta.
Lucivar suspirou profundamente.
– Desculpe-me por tê-lo atacado. Não estava zangado com você. Eu... Maldição, Daemon, verifiquei todas as listas de que consegui me lembrar e seu nome deve ter me escapado. Se não fosse por uma questão de pura sorte, você teria acabado em outra corte e talvez não houvesse forma de livrá-lo desse contrato.
Daemon sentiu uma camada de tensão abrandar. Forçou os lábios num sorriso.
– Bem, desta vez a sorte esteve do nosso lado. – Depois olhou para Lucivar, olhou de verdade, e o sorriso se tornou autêntico. – Você está vivo.
Lucivar devolveu o sorriso.
– E você está são.
Daemon sentiu um tremor a percorrer o corpo e reforçou o autocontrole. Sentiu os olhos ardendo, com lágrimas.
– Lucivar – sussurrou.
Não foi possível perceber qual dos dois deu o primeiro passo. Num momento, estavam tão distantes quanto possível no pequeno recinto, e no momento seguinte estavam nos braços um do outro, abraçando-se como se suas vidas dependessem daquilo.
– Lucivar... – Daemon voltou a sussurrar, com o rosto junto ao pescoço do irmão. – Achei que estivesse morto.
– Fogo do Inferno, Daemon – disse Lucivar ternamente, com a voz rouca –, não conseguimos encontrá-lo. Não sabíamos o que tinha acontecido. Procuramos por você. Juro que procuramos.
– Tudo bem. – Daemon afagou a cabeça de Lucivar. – Tudo bem.
Os braços de Lucivar apertavam o irmão com tanta força que machucavam suas costelas. Daemon pousou a mão nos cabelos de Lucivar.
– Lucivar, sei que temos assuntos a resolver. Mas será que podemos deixá-los de lado só por um momento?
– Podemos – respondeu Lucivar, baixinho.
Daemon recuou. Com os polegares, limpou delicadamente as lágrimas do rosto do irmão.
– É melhor voltarmos.
Virou-se e estendeu a mão para a porta.
Atrás dele, Lucivar segurou o braço esquerdo do irmão com a mão esquerda e Daemon pousou sobre ela a mão direita, por um momento. Ao deslizar os dedos da mão de Lucivar, olhou para baixo e por fim compreendeu o significado do que tinha visto, mas não de verdade.
– Daemon – disse Lucivar, rapidamente. – Tenho algo a dizer. Acho que você já deve saber, mas é preciso que seja dito.
Está viva! Sentiu um novo estremecimento percorrer seu corpo.
– Não, agora não.
Ele abriu a porta e saiu cambaleante para o corredor. Com o equilíbrio precário, entrou no banheiro e trancou a porta com a joia negra. O corpo tremia com violência. O estômago dava voltas. Debruçando-se na privada, combateu a necessidade de vomitar.
Tarde demais.
Se tivesse tentado encontrá-la cinco anos antes, ao voltar pela primeira vez do reino distorcido, talvez tivesse sido diferente. Se tivesse procurado o senhor supremo e pelo menos tentado entender o que de fato havia acontecido no altar de Cassandra naquela noite...
Tarde demais.
Conseguia aguentar. Ia aguentar. Sua mente estava bem mais fragilizada do que dava a entender. Perdera algumas memórias, alguns pequenos fragmentos do cálice de cristal, mas estava são. A cura, porém, nunca ficaria completa porque ele havia perdido a única pessoa necessária para isso. Não dera importância quando seu desejo era se manter íntegro pelo tempo necessário para aniquilar o senhor supremo. Agora, já não importava mais. Sobreviveria tempo suficiente para vê-la, uma única vez.
Não havia mais nada que pudesse fazer. Qualquer outro homem teria usado todo seu ser e sabedoria para se tornar amante dela. Qualquer outro homem. Mas não Lucivar. Ele não seria rival do irmão.
Assim, não podia deixar Lucivar lhe dizer o que precisava desesperadamente ouvir. E não era por não querer saber que Jaenelle estava viva, de modo algum; era por não estar preparado para ser informado sobre a aliança de ouro na mão esquerda de Lucivar.
Surreal empurrou a última das caixas almofadadas para junto das outras, de modo a formar um banco contra a parede.
– Sente-se, Manny – disse para a mulher mais velha.
– Não seria correto – respondeu ela. – Uma criada não deveria se sentar.
Surreal lançou a ela um olhar firme.
– Não seja burra. Você é “criada” apenas porque essa era a única forma de Sadi trazê-la.
Manny estreitou os lábios, em sinal de desaprovação.
– Esse tipo de linguagem é desnecessário, sobretudo com crianças por perto. Além do mais, fui criada durante muitos anos. Era uma forma honesta de ganhar a vida e da qual não me envergonho.
Ao contrário de mim?, Surreal se perguntou. Nunca havia negado que, durante séculos, fora uma prostituta muito bem-sucedida até se aposentar, treze anos antes, quando não conseguia mais tolerar os jogos de alcova. Aquela noite no altar de Cassandra deixara marcas em todos.
Os sentimentos de Manny em relação às mulheres que trabalhavam nas casas da Lua Vermelha eram ambivalentes. O que pensaria se soubesse da outra profissão de Surreal? Como reagiria se soubesse que Surreal fora – e ainda era – uma assassina muito bem-sucedida?
Não importava. Tinham se tornado amigas durante os dois anos em que Daemon caminhara para fora do reino distorcido. No entanto, assim que ele recobrou a sanidade, Manny teve uma virada mental, tratando os dois com o afeto doméstico que havia entre uma criada especial e uma criança da aristocracia. Daemon não notara nada de estranho nesse comportamento; era provável que Manny sempre o tivesse tratado assim. Mas isso aborrecera Surreal, que crescera na dureza das ruas. Também lhe dera bastante experiência no trato com as opiniões inflexíveis de Manny.
– Veja bem – disse, com extrema delicadeza. – O criado de lady Benedict parece que não vai aguentar duas horas em pé sem sofrimento. Se você se sentar, pode ser que ele se sente também.
Passados alguns minutos, Manny, Andrew, Wilhelmina Benedict e Surreal estavam sentados no banco improvisado.
Surreal olhou para o espaço à sua direita. Em nome do Inferno, onde estaria Sadi? Ele não gozava da estabilidade mental que fingia ter, e o encontro com Lucivar devia tê-lo abalado. E o que teria pensado o eyrieno ao voltar a ver o meio-irmão? Depois de Jaenelle desaparecer, treze anos antes, Daemon fora a Pruul para resgatar Lucivar das minas de sal. Por alguma razão, Lucivar recusara-se a acompanhá-lo. Sempre suspeitara, a julgar pelo que Daemon não lhe dizia, que tinha havido um embate violento que abrira uma fenda entre os dois. E sempre desconfiara essa fenda foi causada, como tantas outras coisas, no altar de Cassandra.
A porta do compartimento do condutor foi aberta. Lorde Khardeen saiu e olhou rapidamente para os eyrienos, que ficaram nervosos. Em silêncio, ele caminhou até a ponta do banco improvisado e se sentou ao lado de Surreal.
À frente deles, estava a mulher com as duas crianças. Tinham a pele morena, os olhos dourados e o cabelo preto típico das três raças de longevidade prolongada, embora o cabelo da menina fosse levemente ondulado. Surreal imaginou se isso indicaria que não era completamente eyriena do lado de um dos pais, se aquele ondulado teria traído um segredo e se essas pessoas haviam deixado seu território de origem por causa disso.
O garoto mais velho não saía de perto da mãe, mas a menina sorriu para Khardeen e deu dois passos em sua direção.
– Buu – disse alegremente, estendendo um bichinho de pelúcia gasto.
Khardeen se inclinou para a frente e sorriu.
– Qual o nome dele?
– Buu. – A menina abraçou com força o boneco. – Meu.
– Isso mesmo.
Com um olhar receoso, a mulher puxou a menina.
– Orian, não aborreça o senhor da guerra.
– Não está me aborrecendo – disse Khardeen, de maneira agradável.
A mulher puxou a menina para junto de si e tentou sorrir.
– Ela gosta de animais. A mãe do meu marido fez uma boneca para ela antes de partirmos, mas Orian preferiu trazer este aqui.
E onde estava a sua própria mãe enquanto aquela vagabunda a agredia verbalmente?, perguntou-se Surreal enquanto observava as sombras se acumulando nos olhos da mulher, detectando uma faísca de vergonha em seu odor psíquico. Bem, isso respondia qual lado da linhagem da menina estava em questão.
O senhor da guerra, que havia protestado quando Friall se recusara a concluir o contrato, desviou a atenção da conversa que mantinha com dois machos eyrienos, lançou um olhar penetrante sobre Khardeen e logo se aproximou, de maneira protetora, da mulher e das crianças.
Khardeen se recostou, devolvendo o olhar penetrante com um olhar plácido.
Sentada a seu lado, com o braço tocando o dele, Surreal podia sentir sua tensão – e irritação? –, mas Khardeen não demonstrava isso. Ao olhar para ela, sua expressão era séria, mas os olhos azuis revelavam divertimento.
– Fico imaginando como a mãe da pequena rainha irá reagir quando vir os “buus” que a filha abraçará – disse ele, ternamente.
– Eles a morderão? – perguntou Surreal.
– A menina? Não. A mãe? – Khardeen deu de ombros.
Compreendendo a advertência sob o ar divertido, Surreal sentiu um calafrio. Nesse momento, Daemon se aproximou. Ele se movia com cautela, como um homem que acabara de ser mortalmente ferido e sangrava em silêncio até a morte.
Khardeen se levantou e gesticulou para o lugar vazio.
– Por que não se senta? Preciso tratar de alguns assuntos.
Assim que se sentou, Daemon abraçou o próprio corpo. Surreal já vira aquele gesto protetor em outras ocasiões, nos momentos em que se esforçara demais nos estudos de arte, quando os sonhos assombravam seu sono.
Khardeen olhou para Surreal de modo interrogativo e ela balançou a cabeça. Ficava agradecida pela preocupação, mas não havia nada a fazer por Daemon nestes momentos, a não ser deixá-lo recuar até se sentir fortalecido para voltar a enfrentar o mundo.
Um minuto depois, Lucivar saiu do recinto privado com uma expressão escrupulosamente neutra.
Durante toda a viagem, Daemon ficou sentado ao lado de Surreal, de olhos fechados, enquanto Lucivar permanecia de pé, na parte traseira da carruagem, conversando calmamente com os machos eyrienos que se aproximaram dele com cuidado.
Durante toda a viagem, Surreal imaginou o que teria acontecido naquele pequeno recinto. E ficou preocupada.
Lorde Jorval se encolheu na cadeira e viu a sacerdotisa das trevas andando furiosamente pela sala que havia sido alugada para o encontro.
As casas da Lua Vermelha tinham surgido em Kaeleer há quatro anos – e ainda não existiam em qualquer outro local a não ser na Pequena Terreille. No entanto, alguns membros influentes do conselho das trevas, entre os quais ele se incluía, argumentaram que os imigrantes machos mais fortes, com menos chances de ter uma amante nascida em Kaeleer, precisavam de alguma maneira aliviar a tensão sexual.
As rainhas da Pequena Terreille concordaram, não sem um protesto simbólico, pois rapidamente reconheceram a utilidade desse tipo de local. Agora, uma visita a uma casa da Lua Vermelha se tornara uma forma de premiar os machos por bom comportamento nas cortes. Eles podiam descarregar as frustrações e agressões em mulheres que não podiam se defender, que não tinham condições de exigir delicadeza e obediência. E ninguém se importava que todas as mulheres nessas casas fossem imigrantes reivindicadas no dia posterior à feira de serviços.
Alguns machos de Kaeleer, entre os quais ele se incluía, haviam descoberto o prazer que era possível extrair da obediência aduladora de uma mulher.
Optara por uma casa da Lua Vermelha na periferia de um bairro degradado porque os proprietários não fariam perguntas. Não se importavam se as mulheres sofreriam danos físicos ou mentais, contanto que fossem recompensados. Do mesmo modo, não se importavam com o jovem que estava preso e amordaçado no quarto ao lado – a oferenda que havia trazido na esperança de abrandar a ira da sacerdotisa suprema.
Hekatah despiu rapidamente o manto que lhe envolvia o rosto e o corpo.
Jorval engoliu em seco. Certa vez, não conseguira se controlar e ficara agoniado ao ver o corpo demônio-morto em decomposição. O castigo recebido por tal descontrole ensejou pesadelos durante meses a fio.
Havia momentos em que desejava desesperadamente nunca a ter conhecido ou nunca ter se deixado envolver em seus esquemas. Mas Hekatah estivera por trás de sua ascensão ao poder no conselho das trevas e ele descobrira que pertencia a ela antes mesmo de se dar conta de que aceitara servi-la.
– Tínhamos quatro rainhas adequadas aos nossos propósitos – vociferou Hekatah. – Quatro. Ainda assim, você não conseguiu escondê-lo até encontrarmos uma forma de usá-lo.
– Tentei, sacerdotisa – disse Jorval, com a voz trêmula. – Afastei as perguntas de Sadi sobre servir além da Pequena Terreille. Aqueles foram os únicos nomes que lhe apresentei.
– Se é assim, por que ele não está com uma delas?
– Ele saiu no meio do último encontro! – exclamou Jorval. – Só soube que tinha assinado outro contrato quando Friall me informou.
– Assinou outro contrato... com o irmão!
O peito de Jorval estremecia com o esforço para respirar.
– Tentei impedir! Tentei... – A voz se perdeu enquanto Hekatah se aproximava.
– Você não cuidou bem dele – disse, a voz de menina tornando-se perigosamente dócil. – Por causa disso, ele agora está ligado à corte que não queríamos que soubesse de sua presença em Kaeleer, e não temos como usar todo aquele poder negro em nosso benefício.
Jorval tentou se levantar. Sentiu um aperto na garganta ao perceber que Hekatah usava arte para mantê-lo preso à cadeira.
Hekatah se sentou graciosamente no colo do homem e envolveu seu pescoço com um braço. Ao sentir as unhas longas deslizando pelo rosto, Jorval se perguntou se perderia um olho. Talvez fosse melhor. Não poderia vê-la se estivesse cego. Pensando melhor, não. Hekatah usava joias mais escuras que as dele. Poderia forçá-lo a abrir a mente e lhe imprimir uma imagem cem vezes pior do que seu aspecto real.
Choramingou ao sentir o estômago revirar diante do que viria.
– Assim como se deve recompensar os êxitos, é preciso castigar os insucessos – disse Hekatah, acariciando o rosto de Jorval.
Tendo plena consciência do que lhe era exigido, ele murmurou:
– Sim, sacerdotisa.
– E você não teve sucesso, não foi, querido?
– S-sim, sacerdotisa.
Hekatah formou um sorriso com o que lhe restava dos lábios. Usando arte, invocou uma garrafa de cristal e uma pequena taça de prata. Os objetos flutuavam no ar enquanto removia a rolha da garrafa e derramava o líquido escuro e espesso na taça. Voltou a fechar a garrafa e a fez desaparecer, pondo a taça, em seguida, junto aos lábios de Jorval.
– Trouxe uma oferenda fresca – disse Jorval, debilmente.
– Eu vi. Que rapaz bonitinho, cheio de vinho quente e doce. – Comprimiu a taça contra o lábio inferior de Jorval. – Já vou cuidar dele.
Sem alternativa, Jorval abriu a boca. O líquido deslizou pela língua como uma lesma quente e comprida. Engasgou-se, mas conseguiu engolir.
– É veneno? – perguntou.
Hekatah fez a taça desaparecer e se inclinou para trás, com os olhos arregalados de espanto.
– Acha realmente que eu envenenaria um homem leal a mim? É leal a mim, não é, querido? – balançou a cabeça, com tristeza. – Não, querido, é apenas uma pequena infusão afrodisíaca.
– S-safframate?
Teria preferido veneno.
– Só o suficiente para tornar a noite interessante – respondeu Hekatah.
Jorval ficou ali sentado, indefeso, enquanto Hekatah acariciava sua pele, que estremecia ao mais ligeiro toque. Gemendo, ele a envolveu nos braços, já sem reparar no cheiro de decomposição, já sem se importar com quem ou com o que ela era, já sem se importar com mais nada a não ser usar aquele corpo feminino sentado em seu colo.
Quando tentou enfiar a língua na boca dela, Hekatah recuou com uma gargalhada de satisfação.
– Agora, querido – disse, enquanto o acariciava –, vá buscar uma daquelas prostitutas.
A névoa da luxúria se dissipou ligeiramente.
– Para cá?
– Ainda temos de tratar do seu castigo – disse Hekatah com brandura, cheia de maldade. – Traga alguém de cabelos louros e olhos azuis.
A lascívia se tornou violenta, quase dolorosa.
– Como Jaenelle Angelline.
– Exatamente. Encare isto como um pequeno ensaio para o dia em que aquela vagabunda pálida tiver de se sujeitar a mim. – Beijou-o na têmpora. – Ficará excitado se eu beber um pouco de sangue enquanto estiver dentro dela?
Jorval a olhou, descontroladamente excitado e apavorado.
– Sim – sussurrou Jorval. – Sim.
– Sim – ecoou Hekatah, satisfeita. Levantou-se e caminhou devagar até a porta do quarto. – Não se preocupe com a possibilidade da puta sair por aí falando sobre o nosso joguinho. Confundirei a mente dela de modo que nunca tenha certeza de nada, a não ser que foi bem usada.
Erguendo-se, Jorval cambaleou até a porta, dolorosamente consciente do olhar de Hekatah.
– O garotinho bonito será o aperitivo e a sobremesa – disse Hekatah. – O medo confere ao sangue um gosto agradavelmente apimentado, e no final da noite estará no ponto. Por isso, não demore muito a escolher, querido. Um aperitivo acaba rápido. Se eu ficar impaciente, é provável que tenhamos de mudar o seu castigo. E você não quer isso, quer?
Lorde Jorval esperou até a porta se fechar atrás de si para então sussurrar:
– Não.
Uma mão quente apertou delicadamente seu ombro.
– Daemon – disse Lucivar baixinho. – Vamos, meu velho. Chegamos.
Daemon abriu os olhos com relutância. Queria se afastar do mundo, queria afundar no abismo e simplesmente desaparecer. Em breve, prometeu a si mesmo. Em breve.
– Estou bem, bastardo – disse, cansado.
Estava mentindo. Ambos sabiam disso.
Pondo-se de pé, Daemon se espreguiçou. Os músculos zumbiam de tensão, e uma violenta dor de cabeça se formava atrás dos olhos.
– Onde estamos?
Sem dizer nada, Lucivar o conduziu para fora da carruagem. Surreal estava olhando espantada para a gigantesca construção de pedra cinza.
– Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas. Que lugar é esse?
O príncipe Aaron sorriu abertamente.
– O Paço dos SaDiablo.
– Merda.
O chão começou a girar sob os pés de Daemon e ele estendeu um braço, que Lucivar agarrou, proporcionando-lhe equilíbrio.
– Não consigo – murmurou. – Lucivar, não consigo.
– É claro que consegue. – Segurando o braço de Daemon, Lucivar o levou até as portas duplas da entrada principal. – Será mais fácil do que pensa. Além disso, Ladvarian está ansioso para conhecê-lo.
Daemon não entendia por que o tal Ladvarian queria conhecê-lo, não quando seu próximo passo poderia colocá-lo frente a frente, mais uma vez, com o senhor supremo – ou com Jaenelle.
Lucivar abriu as portas com um empurrão. Daemon o seguiu até o salão principal, tendo os outros imigrantes agrupados às suas costas. Tinham avançado apenas alguns passos quando Lucivar parou abruptamente, praguejando baixinho.
Daemon olhou em volta, tentando compreender o impulso de prudência que detectara no irmão. No lado mais distante do salão, uma criada estava ajoelhada sob um lustre de cristal, lavando o chão. A alguns passos deles havia um enorme senhor da guerra de joia vermelha usando uniforme de mordomo. Sua expressão era mais fria do que estoica.
Olhando para o mordomo, Lucivar disse cautelosamente:
– Beale.
– Príncipe Yaslana – respondeu Beale com uma formalidade rígida.
Lucivar estremeceu.
– O quê...?
Ouviram-se risadinhas. Todos olharam para o alto.
Muito acima de suas cabeças, um garotinho eyrieno nu, que devia ter começado a andar há pouco tempo, balançava-se precariamente num lustre.
Lucivar lançou um olhar rápido para Beale e deu dois passos à frente.
– O que está fazendo aí, menino?
– Voando – respondeu o garoto.
– Adivinhem – resmungou a criada, lançando o pano dentro de um balde.
– Escapou dos inspetores, não foi? – resmungou Lucivar.
A criança voltou a rir, e em seguida fez um som muito rude.
– Desça daí, Daemonar – disse Lucivar, rispidamente.
– Não!
Daemon sentiu os olhos ardendo em lágrimas ao olhar para o garoto. Engoliu em seco para que o coração não lhe saísse pela boca.
Lucivar deu mais um passo e abriu as asas escuras e membranosas.
– Se não descer, vou aí pegá-lo.
Daemonar abriu as pequenas asas.
– Não!
Lucivar se lançou pelo ar. Ao passar pelo lustre, tentou segurar Daemonar, que se desviou e mergulhou. O menino voava como um zangão bêbado tentando fugir de um falcão, mas conseguia se manter fora de alcance.
– O garoto se movimenta bem – comentou Hallevar num tom de aprovação, passando à frente do grupo.
Surreal olhou disfarçadamente para o senhor da guerra eyrieno mais velho.
– Parece ter herdado o melhor de Yaslana.
Hallevar resfolegou quando Lucivar passou a toda velocidade por Daemonar e lhe fez cócegas no pé, provocando gritos no menino, que tentava escapar.
– Não, Lucivar podia tê-lo apanhado da primeira vez. O garoto terá de reconhecer a derrota, mas ficará gravado em sua mente que fez uma boa luta. Lucivar sabe treinar um guerreiro eyrieno.
Daemon quase nem os ouvia. Fogo do Inferno! Será que Lucivar não percebia que a criança estava ficando cansada?
Quando ela voou em sua direção, Daemon avançou, ergueu o braço e segurou uma das pernas gordinhas. Daemonar berrou e bateu as asinhas com toda a força. Puxando-o com delicadeza, Daemon envolveu Daemonar com o outro braço, encostando-o ao peito.
Um pequeno punho acertou seu queixo. A outra mãozinha segurou e puxou seus cabelos, levando lágrimas aos olhos. Um grito de indignação atravessou seu tímpano e fez sua cabeça vibrar.
Lucivar aterrissou sorrindo, e se aproximou. Passou o braço esquerdo em volta da cintura do garoto e forçou a pequena mão a se abrir.
– Solte o tio Daemon. Queremos que ele goste de você – disse enquanto prendia os pés da criança: – E não chute seu pai.
Daemonar fez um som rude e abriu um sorriso. Lucivar olhou para o menino que se debatia e disse, pesaroso:
– Naquela época, você parecia ser uma boa ideia.
– Sim! – Foi então que Daemonar reparou na mulher que carregava a menina no colo.
– Um bebê! – gritou Daemonar, debatendo-se para se libertar. – Minha!
– Mãe Noite – resmungou Lucivar, virando-se para tentar bloquear a visão de Daemonar.
Duas mulheres molhadas e desgrenhadas entraram no salão. Uma delas segurava uma toalha de banho.
– Vamos ficar com ele, príncipe Yaslana.
– Graças às trevas. – Com algum esforço, Lucivar e as duas mulheres conseguiram enrolar Daemonar na toalha e tirá-lo do salão.
Ao olhar para eles, o coração de Daemon ficou apertado. O menino se parecia com Lucivar. Não sabia se ficava triste ou aliviado por não ver qualquer indício de azul-safira nos olhos dourados da criança, pela inexistência de um tom mais claro no cabelo preto ou na pele morena, por não detectar qualquer traço da beleza exótica da mãe.
Lucivar logo estava de volta.
– Assim que os convidados se instalarem em seus quartos, o jantar será servido na sala de jantar formal – informou o mordomo.
– Obrigado, Beale – respondeu Lucivar.
– Há necessidade de algum preparativo especial?
Lucivar gesticulou para que o jovem senhor da guerra, que se mantivera protetoramente junto à mulher e as duas crianças, se aproximasse.
– Este é lorde Endar, marido de lady Dorian.
Endar enrijeceu diante do olhar atento de Beale.
O príncipe Aaron passou a mão em volta do braço de Surreal e a puxou para a frente.
– Acompanharei lady SaDiablo e lady Benedict a seus aposentos.
– Lady SaDiablo? – perguntou Beale, surpreso.
Aaron sorriu de orelha a orelha. Surreal silvou.
– Tenho certeza de que o senhor supremo ficará satisfeito em recebê-la – disse Beale, com um brilho suspeito nos olhos.
Antes que Surreal pudesse impedir, Aaron afastou seu cabelo, revelando uma orelha delicadamente pontuda.
– Assim como o príncipe Chaosti.
Os lábios de Beale estremeceram. Em seguida, ele recobrou o ar austero e se dirigiu aos imigrantes.
– Os que estão aqui como criados, sigam Holt – disse, indicando o criado que aguardava. – Os demais podem me acompanhar.
Assim que todos os eyrienos saíram do salão, exceto o príncipe Falonar, Manny, Jazen e Andrew, Surreal se dirigiu a Lucivar.
– Não devia ter dito a ele para deixar as crianças ficarem com os pais? Duvido que se sintam à vontade num lugar estranho.
O príncipe Aaron pigarreou ruidosamente. Lorde Khardeen inclinou a cabeça e começou a estudar o teto. Lucivar se limitou a olhá-la por um momento antes de dizer, devagar:
– Se quer ensinar a Beale e Helene como administrar este lugar, não faça cerimônia. Mas avise antes, para eu me afastar da linha de fogo.
– Venha, lady Surreal – disse Aaron. – Vamos acomodá-la antes que comece a destruir tudo à nossa volta.
Lucivar aguardou que Aaron e Khardeen acompanhassem Surreal e Wilhelmina para fora do salão, e em seguida se virou para Falonar.
– O que foi?
Falonar encolheu os ombros.
– Por que destacou Endar?
– Desde que o pessoal da casa saiba que Endar é marido de Dorian, ninguém contestará o fato de dormir com ela. E acredite, há machos aqui que não hesitariam em fazê-lo em pedaços se não soubessem que a relação é consensual. – Soltou um suspiro longo. – Amanhã explicarei as regras. Por hoje, diga aos homens para ficar longe das mulheres. – Fez uma pausa e acrescentou: – É melhor você se instalar. Ficaremos aqui alguns dias.
Depois que Falonar saiu, Lucivar se virou para Daemon.
– Vamos acabar logo com isso para podermos comer e descansar.
Daemon seguiu Lucivar pela escadaria da sala de recepções informal e pelo labirinto de corredores. Passados alguns minutos de silêncio, disse:
– Você o chamou de Daemonar.
– Foi o melhor que consegui mantendo o nome eyrieno – disse Lucivar baixinho, a voz ligeiramente rouca.
– Estou lisonjeado.
Lucivar resfolegou.
– Poderia estar quando ele ainda era bebê. Assim que ficou de pé, transformou-se num monstrinho. E a culpa não é só minha. Não o fiz sozinho. Mas parece que ninguém se lembra disso.
– Não consigo imaginar por quê – disse Daemon friamente, vendo Lucivar se inflar de indignação.
– Quando faz alguma coisa adorável, é o filho da mamãe. Quando faz algo inteligente, é o neto do senhor supremo. Mas quando se porta como um monstrinho desagradável, é meu filho. – Lucivar esfregou o peito. – Às vezes, parece que faz coisas só para ver se meu coração para.
– Como agora há pouco?
Lucivar acenou com indiferença.
– Não, aquilo era apenas... apenas... Merda. O que quer que eu diga? É um monstrinho.
Ao fazer uma curva, quase se chocaram com uma bela mulher eyriena. Usava uma camisola comprida e prática e segurava um livro grosso.
– Seu filho – disse, espaçando as palavras – não é um monstro.
– Esqueça – disse Lucivar, semicerrando os olhos. – Marian, por que não está na cama? Devia estar descansando.
Marian bufou irritada.
– Dormi a maior parte da manhã. Brinquei um pouco com Daemonar à tarde e depois descansamos. Acabei de me levantar para vir buscar um livro. Vou voltar para a cama antes que Beale me traga uma xícara de chocolate quente e um prato de biscoitos.
Lucivar semicerrou os olhos um pouco mais.
– Não comeu nada hoje?
Daemon olhou atônito para Lucivar. Até mesmo um idiota – ou um macho eyrieno – podia ver que a mulher estava crepitando em silêncio.
– Tio Andulvar veio verificar se eu tinha tomado um bom café da manhã. Prothvar me trouxe um lanche no meio da manhã. Almocei com Daemonar. Mephis trouxe um lanche no meio da tarde. E seu pai já andou perguntando o que comi no jantar. Já fui bastante importunada por hoje.
– Não estou importunando você – resmungou Lucivar, e acrescentou, baixinho: – Ainda não tive oportunidade.
Marian olhou intencionalmente para Daemon.
– Não deveria cuidar de seu hóspede?
– Não é um hóspede. É meu irmão.
Sorrindo calorosamente, Marian estendeu a mão.
– Você deve ser Daemon então. Ah, estou tão feliz que finalmente tenha chegado. Agora tenho mais um irmão.
Irmão? Aceitando a mão de Marian, Daemon olhou perplexo para Lucivar. Enquanto passava a mão possessivamente pelo cabelo de Marian, que caía até a cintura, Lucivar disse, cheio de ternura:
– Marian me deu a honra de ser minha mulher.
E a mãe de Daemonar. O chão desapareceu e ressurgiu de repente sob os pés de Daemon. Marian apertou a mão do cunhado, os olhos repletos de preocupação. O olhar de Lucivar se tornou mais penetrante.
As emoções se debatiam dentro de Daemon, golpeando sua frágil sanidade. Incapaz de oferecer qualquer tipo de alento, ele deu um passo para trás e voltou a se esforçar para recuperar o controle.
Ao perceber que Daemon precisava de tempo, Lucivar puxou o livro que Marian segurava, tentando ler o título.
Marian o segurou com força e se afastou de Lucivar.
– É um livro de choradeira? – perguntou Lucivar, desconfiado.
Marian abriu e fechou as asas com um estalido.
– Um o quê?
– Você sabe. Um desses livros que as mulheres gostam de ler, que as fazem ficar todas chorosas. Da última vez que você leu um desses, ficou chateada quando perguntei o que estava acontecendo. Atirou o livro em mim.
A crepitação de Marian deixou de ser silenciosa.
– Não fiquei chateada por causa do livro. Foi você que entrou no quarto de repente com a espada levantada e me assustou.
– Você estava chorando. Pensei que tivesse se machucado. Olha, só quero saber se você vai ficar chorando pelos cantos.
– Aposto que não entrou sem pedir licença quando era Jaenelle que estava lendo.
Lucivar olhou para o livro como se tivessem acabado de lhe nascer presas.
– Ah. Esse livro. – Protegeu a barriga com o braço. – Na verdade, entrei sim. Mas a pontaria dela é melhor que a sua.
Os resmungos de Marian deram lugar a uma gargalhada.
– Pobre Lucivar. Tenta proteger as mulheres da família com tanto afinco e nós não mostramos nosso apreço, não é?
Lucivar sorriu.
– Bem, se houver cenas de amor interessantes nessa história, marque as páginas e me mostre o seu apreço daqui a alguns dias.
Marian lançou um olhar rápido para Daemon e corou. Lucivar a beijou delicadamente e se afastou para deixá-la passar.
– Agora vá para a cama.
– Até amanhã, Daemon – disse Marian, com certa timidez.
– Boa noite, lady Marian – respondeu Daemon. Foi tudo o que conseguiu dizer.
Observaram até que ela entrasse em seus aposentos, que eram também os de Lucivar. Foi quando Lucivar estendeu a mão. Daemon enrijeceu e rejeitou o toque.
Deixando cair a mão, Lucivar disse:
– Os aposentos do senhor supremo ficam no final do corredor. Sem dúvida ele deseja vê-lo.
Daemon não conseguia se mexer.
– Pensei que você tivesse se casado com Jaenelle.
– E o que o levou a pensar isso?
O espanto na voz de Lucivar despertou a fúria de Daemon.
– Você estava aqui – rosnou. – Por que não ia querer se casar com ela?
Lucivar se manteve em silêncio durante um longo minuto. Depois, calmamente, respondeu:
– Esse sempre foi o seu sonho, Daemon. Não o meu. – Lucivar se virou e começou a caminhar pelo corredor. – Vamos.
Daemon o seguiu a passos lentos. Quando Lucivar parou e bateu a uma porta, Daemon continuou andando, atraído pelo odor psíquico feminino forte e escuro que vinha de um quarto do lado oposto do corredor.
– Daemon?
A voz de Lucivar desapareceu, silenciada por uma poderosa onda de emoções.
Daemon abriu uma porta e entrou numa sala de estar. Em uma das paredes havia estantes acima de armários de madeira. Um sofá, duas mesas laterais triangulares e duas cadeiras constituíam a mobília em torno de uma mesa baixa e comprida. Em cada mesa lateral havia um candeeiro sinuoso e coberto de pátina. Ao lado de uma das cadeiras se via um grande cesto cheio de meadas de lã e de fios de seda e um bordado parcialmente acabado. Havia uma mesa em frente às portas de vidro que dava para a varanda. Um dos cantos estava cheio de plantas.
O odor psíquico o inundava. Ah, recordava-se perfeitamente daquele odor escuro. Mas havia alguma coisa diferente agora, um toque delicado e agradável de almíscar.
O corpo de Daemon ficou tenso, depois se inflou de interesse masculino, até sua mente compreender o significado dessa diferença. Foi então que reparou nos chinelos azul-safira junto a uma cadeira. Chinelos de mulher.
Contra toda a razão, apesar de todo o desejo, mesmo quando pensava que Lucivar tinha se casado com ela, não absorvera inteiramente o fato de que Jaenelle já não era a criança que havia conhecido. Crescera.
As paredes do quarto começaram a se tornar cinza, depois escureceram e começaram a se fechar, formando um túnel à sua volta.
– Daemon.
Também lembrava daquela voz profunda. Ouvira-a com um ar divertido. Ouvira-a repleta de raiva e fúria. Ouvira-a rouca e extenuada. Ouvira-a suplicando a ele que ascendesse, que aceitasse a ajuda e a força que estavam sendo oferecidas.
Virando-se lentamente, deparou-se com Saetan. O príncipe das trevas. O senhor supremo do Inferno. Seu pai.
Saetan estendeu a mão de dedos esguios e unhas longas tingidas de preto.
– Daemon... Jaenelle está viva – disse, docilmente.
O quarto encolheu. O túnel continuava a se fechar. A mão o aguardava, oferecendo força, segurança, conforto – tudo o que rejeitara no reino distorcido.
– Daemon.
Desta vez, aceitaria as promessas de Saetan. Deu mais um passo na direção da mão que espelhava a sua. Antes de tocar os dedos nos de Saetan, o quarto desapareceu.
– Mantenha a cabeça baixa, rapaz. Respire devagar. Assim.
Uma força e calor serenos fluíam da mão que lhe afagava o cabelo, o pescoço, as costas. O esforço o deixou nauseado, mas, passado um momento, Daemon abriu os olhos. Viu o tapete entre os pés – castanho-serra com espirais verde-claras e vermelho-queimadas. O tapete não conseguia decidir se representava a primavera ou o outono.
– Quer um copo de conhaque ou um balde? – perguntou Lucivar.
Por que haveria de querer um balde? Sentiu o estômago revirar. Engoliu com cuidado.
– Conhaque – disse, cerrando os dentes na esperança de não ter feito a escolha errada.
Ao voltar, Lucivar trouxe um copo de conhaque bem servido e uma bacia, que pôs entre os pés do irmão. A mão que massageava as costas de Daemon parou de se mexer.
– Lucivar – disse Saetan, num tom de voz igualmente divertido e aborrecido.
– Helene não ficará nada contente se ele vomitar no tapete.
Saetan exclamou algo para Lucivar. Daemon não reconheceu a palavra, mas ela soava desagradável. Era insignificante, mas ele sentiu uma satisfação infantil com o fato de o pai ter tomado seu partido.
– Vá para o Inferno – disse Daemon, endireitando-se para beber um gole do conhaque.
– Não era eu que estava com o nariz batendo no chão – resmungou Lucivar, farfalhando as asas.
– Crianças – avisou Saetan.
Percebendo que o estômago não rejeitara de imediato o conhaque, Daemon bebeu outro gole – chegando aos poucos às perguntas que precisavam de respostas.
– Está mesmo viva?
– Sim – respondeu Saetan, gentil.
– Vive aqui desde...?
Não conseguia dizer.
– Sim.
Daemon virou a cabeça. Precisava ver a resposta nos olhos de Saetan, assim como ouvi-la.
– E está curada?
– Sim.
Entretanto, ele detectou uma faísca de hesitação nos olhos dourados. Bebendo mais um gole do conhaque, finalmente percebeu que, embora o odor psíquico de Jaenelle preenchesse o quarto, não era recente.
– Onde ela está?
– Fazendo sua excursão de outono pelos territórios dos parentes – respondeu Saetan. – Tentamos não interrompê-la durante esse tempo, mas eu podia...
– Não. – Daemon fechou os olhos. Precisava de algum tempo para se recompor antes de reencontrá-la. – Posso esperar.
Havia esperado treze anos. Mais alguns dias não fariam diferença.
Saetan hesitou, olhando rapidamente para Lucivar, que assentiu com a cabeça.
– Há algo em que deve pensar antes que ela volte.
Invocou um pequeno estojo de joias e o abriu com o polegar. Daemon olhou fixamente para o rubi incrustado no anel de ouro. Um anel de consorte. Já vira aquele anel no reino distorcido, em volta da base de um cálice de cristal que havia sido estilhaçado e cuidadosamente remontado. O cálice de Jaenelle. A promessa de Jaenelle.
– Não lhe cabe oferecê-lo – disse Daemon.
Apertou com força o copo de conhaque para escapar à tentação de pegar o anel.
– A oferta não é minha, príncipe. Como administrador da corte das trevas, foi-me confiada sua guarda.
Daemon passou a língua nos lábios.
– Já foi usado alguma vez?
Jaenelle tinha agora 25 anos. Não havia motivo para crer que nunca tivesse sido usado no dedo de outro homem. Os olhos de Saetan eram um misto de alívio e de tristeza.
– Não.
Fechou o estojo e o ofereceu a Daemon, que o segurou bruscamente, fechando a mão com força.
– Vamos, rapaz – disse Saetan, entregando o copo de conhaque a Lucivar e ajudando Daemon a se levantar. – Vou levá-lo a seu quarto. Beale trará uma bandeja daqui a pouco. Tente comer e dormir um pouco. Voltaremos a falar amanhã.
Abrindo a porta de vidro, Daemon saiu para a varanda. O roupão de seda era fino demais e não impedia que a brisa noturna dissipasse o calor que adquirira do banho demorado. Mesmo assim, ele precisava ficar ao ar livre por um momento. Precisava ouvir a água cantando nas pedras da fonte no centro do jardim, lá embaixo. Em torno do jardim, apenas dois quartos exibiam uma luz tênue. Quartos de hóspedes? Ou seriam os quartos de Khardeen e Aaron?
Saetan havia dito que nenhum homem usara o anel de consorte, mas...
Daemon suspirou. Ela era rainha, e rainhas tinham direito a qualquer prazer que os machos de sua corte lhes pudessem proporcionar.
E agora aqui estava ele.
Tremendo de frio, voltou para o quarto, trancou a porta de vidro e puxou as cortinas. Tirou o roupão, deitou-se e puxou os cobertores sobre o corpo nu. Virando-se de lado, fitou demoradamente o estojo que havia colocado na mesinha de cabeceira.
Estava aqui. Agora, a escolha era sua.
Tirou o anel de consorte do estojo e o enfiou no dedo anelar da mão esquerda.
Depois de guardar o último artigo de higiene pessoal no armário do banheiro, Surreal se deteve por um instante e escutou. Sim, alguém havia entrado em seu quarto. Será que a criada tinha voltado para mais uma educada discussão? Havia dito à mulher que não precisava de ajuda para desfazer as malas – e ficara pensando no comentário da criada.
Não há dúvida, é uma SaDiablo.
Talvez tivesse se precipitado um pouco. Afinal, não queria ter que cuidar das próprias roupas enquanto permanecesse ali.
Dirigindo-se à porta do banheiro, Surreal lançou uma sonda psíquica cautelosa na direção do quarto. Seus lábios formaram um rosnado. Não era a criada que estava de volta, era um macho se instalando confortavelmente em seu quarto. Surreal hesitou. O odor psíquico era de um macho, não tinha dúvidas. Mas havia algo diferente.
Invocando seu punhal preferido, usou a arte para ocultá-lo mediante um escudo de visão. Com os braços pendendo ao lado do corpo e a mão direita ligeiramente dobrada segurando o cabo, ninguém suspeitaria que tinha uma arma a postos – a menos que soubessem que era uma assassina. Muito provavelmente era um macho que tomara conhecimento de sua profissão anterior e imaginara que ela ficaria feliz em acolhê-lo – como aqueles cretinos covardes da feira de serviços que não paravam de insistir para que assinasse contrato numa casa da Lua Vermelha “aristocrática”.
Bem, se este macho estava esperando uma festa, iria se decepcionar. Ela falaria diretamente com o administrador. A menos que fosse o próprio administrador. Estaria ele imaginando que ela queria comprar o tíquete de saída de um contrato que nunca nem mesmo quisera assinar?
Com a fúria fervilhando, Surreal irrompeu no quarto – e parou de maneira brusca, sem saber se gritava ou ria. Um imenso cão cinza tinha o focinho enfiado no baú aberto de Surreal. A ponta do rabo balançava como um metrônomo acelerado enquanto ele farejava as roupas.
– Encontrou alguma coisa interessante? – perguntou Surreal.
O cão saltou do baú e foi na direção da porta. Então parou, o corpo tomado por um tremor nervoso enquanto olhava para Surreal com seus olhos castanhos. O rabo balançou duas vezes, esperançoso, antes de se pôr entre as pernas.
Surreal fez o punhal desaparecer. Sem tirar os olhos do cão, verificou o baú. Se descobrisse alguma coisa nojenta em suas roupas... Vendo que não havia feito nada além de farejar, relaxou e se virou de frente para o cão.
– Você é grande – disse, num tom agradável. – Tem permissão para ficar dentro de casa?
– Rrrf.
– Tem razão. Considerando o tamanho deste lugar, foi uma pergunta estúpida.
Estendeu a mão ligeiramente fechada. Aceitando o convite, o cão a farejou avidamente, mão, pés, joelhos...
– Não me ponha o focinho entre as pernas – resmungou Surreal.
O cão recuou dois passos e espirrou.
– Bem, essa é a sua opinião.
Abriu a boca numa careta canina.
– Rrrf.
Rindo, Surreal guardou as roupas no armário e na penteadeira. Depois de pendurar a última peça, fechou o baú. Percebendo que tinha de novo a atenção da mulher, o cão se sentou e ofereceu uma pata.
Bem, parecia amistoso.
Depois de apertar suas patas, passou as mãos por seu pelo, coçou atrás das orelhas e afagou a cabeça do cão até seus olhos começarem a se fechar de satisfação.
– Você é um belo garoto, não é? Um garoto enorme e peludo.
O cão deu duas lambidas entusiasmadas em seu queixo. Surreal ficou de pé e se espreguiçou.
– Agora preciso ir. Meu jantar está em algum lugar por aqui e pretendo encontrá-lo.
– Rrrf. – O cão saltou na direção da porta, balançando o rabo.
Surreal olhou para ele.
– Bem, acho que você deve saber onde encontrar comida. Vou me aprontar e já saímos em busca do jantar.
– Rrrf.
Fogo do Inferno, pensou Surreal enquanto lavava as mãos e penteava o cabelo. Devia estar mais cansada do que pensava, pois estava imaginando inflexões de tons nos sons emitidos pelo cão que faziam com que realmente parecesse que ele a estava respondendo. Podia jurar que aquele último “Rrrf” estava carregado de divertimento. Como podia jurar que alguém tentava alcançá-la num fio psíquico de comunicação e que era ela que atrapalhava a ligação.
Quando Surreal voltou, o estado de espírito do cão tinha mudado. Ao abrir a porta do quarto, olhou para ela com um ar triste e se esgueirou para o corredor.
O príncipe Aaron estava encostado na parede oposta.
Era um homem bonito, de cabelo preto e olhos cinza, com compleição e altura que costumavam agradar as mulheres. Ao lado de Sadi, ficaria num distante segundo lugar – bem, seria assim com qualquer outro homem –, mas certamente nunca lhe faltariam convites para a cama.
Talvez isso explicasse a cautela sob a confiança arrogante.
– Uma vez que ainda não conhece o lugar, passei aqui para acompanhá-las, você e lady Benedict, até a sala de jantar – disse Aaron, parecendo se esforçar para não sorrir. – Mas vejo que já tem companhia.
As orelhas do cão se ergueram, o rabo começou a balançar.
O corredor se encheu da desagradável presença masculina. Surreal considerou por um instante dar uma bofetada em um deles para interromper o que quer que estivesse acontecendo, mas perder seus acompanhantes significaria ter de procurar sozinha a sala de jantar.
Felizmente, Wilhelmina Benedict escolheu esse exato momento para sair do quarto, que ficava ao lado do de Surreal. Depois de Aaron explicar que as acompanharia, ofereceu um braço a cada mulher e os três, com o cão os seguindo de perto, iniciaram a longa caminhada pelo Paço.
– Os empregados devem ficar exaustos ao final do dia – disse Surreal quando entraram em outro corredor.
– Não muito – respondeu Aaron. – O pessoal trabalha em sistema de rotatividade e se divide em alas. Assim, todos trabalham na ala da família e na ala onde a corte reside quando está aqui.
– Isso quer dizer que vou ter a mesma discussão com outra criada? – queixou-se Surreal.
Aaron lançou um olhar divertido.
– Quer dizer que preparou seu próprio banho?
– Nem me dei o trabalho de tomar banho – respondeu Surreal. – É melhor se sentar contra o vento.
Espertinha.
Surreal virou a cabeça para trás e olhou seu acompanhante peludo. Bem, os animais deveriam ser um tema seguro para amenidades.
– Ele pode ficar dentro de casa, não é?
– Claro – respondeu Aaron. – Embora eu tenha ficado surpreso por vê-lo aqui. A alcateia normalmente fica nos bosques ao norte quando há estranhos por estes lados.
– A alcateia? Qual é a raça deste cão?
– Não é um cão. É um lobo. E é um parente.
Wilhelmina teve um sobressalto e olhou para o lobo com um ar assustado.
– Mas... os lobos não são animais selvagens?
– E também é senhor da guerra – prosseguiu Aaron, ignorando a pergunta de Wilhelmina.
Surreal se sentiu ligeiramente nauseada. Já ouvira falar dos parentes, que teriam algum tipo de magia animal. Mas chamá-lo de senhor da guerra...
– Quer dizer que é Sangue?
– Mas é claro.
– Por que está no Paço?
– Bem, eu diria que estava procurando amizades.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas, pensou Surreal. O que significava aquilo?
– Então ele não deve ser selvagem. Se está dentro de casa, deve estar domesticado.
Aaron sorriu de modo feroz.
– Se com “domesticado” quer dizer que não mija nos tapetes, então podemos dizer que sim. Mas por esses padrões eu também sou domesticado.
Surreal cerrou os dentes. Para o inferno com as amenidades. Wilhelmina, por sua vez, suspirou quando chegaram a uma escadaria. Com sorte, a sala de jantar não estaria muito distante e poderia se afastar de seu acompanhante. Acompanhantes.
Merda.
Talvez Khardeen estivesse na sala de jantar. Era senhor da guerra, faziam parte da mesma casta, e suas joias cinza eram superiores às azul-safira, o que lhes dava vantagem. Neste momento, desejava uma vantagem, pois tinha a forte impressão de que, dos dois acompanhantes, aquele com as presas mais impressionantes era na verdade o que representava menor perigo.
Surreal fitou a porta de madeira fechada desejando ter feito isso antes de jantar. O cozido de carne e legumes estava delicioso, assim como o pão, o queijo e as maçãs ligeiramente ácidas, que comera com entusiasmo.
Resmungando baixinho, ergueu a mão para bater à porta. Fogo do Inferno, era apenas uma reunião necessária com o administrador da corte... que tinha agora autoridade para controlar sua vida... que era também o príncipe dos senhores da guerra de Dhemlan... que era também o senhor supremo do Inferno... cujo nome era Saetan Daemon SaDiablo.
– Rrrf?
Surreal olhou por cima do ombro. O lobo inclinou a cabeça.
– Acho melhor você ficar aqui fora – indicou, batendo com força na porta. Ao ouvir uma voz grave dizer “Entre”, deslizou para dentro da sala, fechando a porta antes que o lobo conseguisse segui-la.
A sala tinha a forma de um L invertido. A parte mais alongada era composta por uma área de estar confortável, com mesas, cadeiras e um sofá de couro preto. Nas paredes podia-se ver uma variedade de quadros, de dramáticas pinturas a óleo a excêntricos esboços em carvão. Intrigada pelas escolhas, Surreal se virou na direção das artes.
As paredes eram forradas de veludo vermelho escuro. A do fundo consistia de prateleiras de livros, do chão ao teto. Uma mesa de madeira escura preenchia o centro do espaço. Dois candeeiros iluminavam o tampo da mesa, assim como o homem sentado atrás dela.
A princípio, pensou que Daemon estivesse lhe pregando alguma peça. Depois, olhou com mais atenção.
O rosto era parecido com o de Daemon, porém mais elegante do que belo. O homem era sem dúvida mais velho, e o denso cabelo negro estava ficando grisalho nas têmporas. Usava óculos em meia-lua, que lhe conferiam um aspecto simpático de escrivão. Porém, as mãos elegantes possuíam unhas longas, tingidas de preto, assim como as de Daemon. Na mão esquerda, usava um anel de administrador. Na mão direita, um anel com uma joia negra.
– Sente-se, por favor – disse, sem parar de fazer anotações no papel que tinha à sua frente. – Isso só vai levar um minuto.
Surreal foi até a cadeira em frente à mesa e se sentou delicadamente. Aquela voz tinha o mesmo timbre profundo da voz de Daemon, a mesma capacidade de deixá-la nervosa. Pelo menos o ardor sensual que emanava de Daemon estava ausente no senhor supremo. Talvez devido à idade.
Então ele pôs a tampa na caneta, pousou os óculos na mesa, recostou-se na cadeira e juntou os dedos de ambas as mãos, pousando o queixo sobre eles. Surreal sentiu um aperto na garganta. Vira Daemon se sentar exatamente naquela posição sempre que a conversa era “formal”. Fogo do Inferno, qual era a ligação entre Sadi e o senhor supremo?
– Então – disse, calmamente –, você é Surreal. A filha de Titian.
Surreal sentiu um calafrio.
– Conheceu minha mãe?
Sorriu friamente.
– Ainda conheço. E uma vez que sou família de sua família, ela me considera um amigo tolerável, apesar de ser macho.
As palavras que a tinham atormentado durante todo o percurso até ali explodiram.
– Minha mãe não é harpia.
Saetan a examinou cuidadosamente
– Uma harpia é uma feiticeira que morreu de forma violenta pelas mãos de um macho. Eu diria que isso descreve bem Titian, não acha? Além disso, não creio que ser rainha das harpias possa ser considerado um insulto.
– Ah. – Surreal prendeu o cabelo atrás das orelhas. Ele tinha se expressado com tanta segurança, não havia dúvida quanto ao respeito em sua voz.
– Gostaria de vê-la? – perguntou Saetan.
– Mas... Se ela é uma demônia-morta...
– Podemos arranjar um encontro aqui no Paço. Posso perguntar a ela se estaria disposta.
– Sendo o senhor supremo, fico surpresa que simplesmente não lhe ordene que venha – disse Surreal, um tanto ácida.
Saetan deu um risinho.
– Minha querida, posso ser o senhor supremo, mas também sou macho. Não vou dar ordens a uma rainha viúva-negra sem uma boa razão.
Surreal semicerrou os olhos.
– Não consigo imaginá-lo submisso.
– Não sou submisso, mas a verdade é que sirvo. Recomendo que não confunda as duas coisas enquanto estiver convivendo com os machos da corte.
Que maravilha.
– Sobretudo após ter declarado formalmente fazer parte da família – acrescentou Saetan.
Mãe Noite.
– Veja – disse Surreal, inclinando-se para a frente –, eu não sabia que havia outros SaDiablo por aqui. – E com certeza não esperava encontrá-los.
– Se pensarmos bem, você tem tanto direito a esse nome quanto Kartane SaDiablo – disse, enigmaticamente. – E uma vez que o registrou, tem de aceitar as consequências.
– E quais são? – perguntou Surreal, desconfiada.
Saetan sorriu.
– A versão mais curta é que, como patriarca da família, sou agora responsável por você e é a mim que tem de prestar contas.
– Quando o sol brilhar no Inferno – retrucou Surreal.
– Cuidado com as condições que estabelece, pequena feiticeira – disse, gentilmente. – Jaenelle tem formas perturbadoras de atender as condições que outros impõem.
Surreal engoliu em seco.
– Ela está mesmo em Kaeleer?
Saetan pegou o salvo-conduto na mesa.
– Não foi por isso que você veio?
Surreal assentiu.
– Queria descobrir o que aconteceu com ela.
– Pode fazer essas perguntas diretamente a Jaenelle. Ela voltará para casa em alguns dias.
– Ela mora aqui?
– Não é sua única casa, mas, sim. Ela mora aqui.
– E Daemon sabe disso? – perguntou. – Ele não apareceu para jantar.
– Sabe – respondeu Saetan, gentil. – Ficou um pouco transtornado.
– Isso é um eufemismo – murmurou. Em seguida, pensou em outra coisa, algo que durante treze anos a deixara curiosa. Se havia alguém nos reinos capaz de matar essa curiosidade, certamente era o senhor supremo. – Alguma vez ouviu falar do sacerdote supremo da Ampulheta?
O sorriso de Saetan era sarcástico.
– Sim. Sou eu.
– Ah, merda.
A gargalhada de Saetan era calorosa e encorpada.
– Você estava disposta a confrontar o senhor supremo, o administrador e o patriarca da família, mas ficou sem chão ao saber que sou o sacerdote?
Surreal lançou um olhar penetrante para ele. Colocado daquela forma, era realmente uma tolice. Mas não deixava de ser desconcertante descobrir que o perigoso macho cujo odor detectara naquela noite no altar de Cassandra era o mesmo homem com ar divertido sentado do outro lado da mesa.
– Então você pode contar a Daemon o que aconteceu naquela noite. Pode contar a ele aquilo de que não se lembra.
Saetan balançou a cabeça.
– Não, não posso. Posso confirmar o que aconteceu enquanto estávamos ligados e o que aconteceu posteriormente. Mas só uma pessoa poderá dizer a ele o que aconteceu no abismo.
Surreal suspirou.
– Chego quase a ter medo do que ele poderá descobrir.
– Eu não me preocuparia tanto. Quando Jaenelle constituiu oficialmente sua corte, guardou o anel de consorte para ele. Assim, seja lá o que tenha acontecido entre os dois, não pode ter sido tão perturbador assim. Pelo menos para ela – acrescentou, de maneira solene. Levantando-se, contornou a mesa. – Ainda tenho que receber vários eyrienos esta noite, além de ouvir os relatos de Aaron, Khardeen e Lucivar. Se precisar de ajuda para compreender os Sangue deste lugar, venha falar comigo.
Aceitando a dispensa, Surreal se levantou e olhou rapidamente para a porta.
– Só mais uma coisa.
Saetan examinou a porta fechada.
– Vejo que conheceu lorde Presa Cinza.
Surreal reprimiu uma gargalhada.
– Eu sei. Os nomes deles soam tão estranhos para nós quanto os nossos para eles. Embora eles tenham mais motivos para pensar assim. Quando nasce um jovem parente, uma viúva-negra dá aquele passo lateral mental para dentro dos sonhos e visões. Às vezes, nada vê. Outras vezes, dá nomes aos jovens de acordo com as visões.
– Bem – disse Surreal, sorrindo –, ele é cinza e tem presas. Aaron me disse que estava no Paço para fazer amigos.
Saetan olhou-a de maneira estranha.
– Eu diria que ele está certo. Os cães e cavalos parentes se dão bem com os humanos dos Sangue porque viveram entre eles durante muito tempo, embora em segredo, até oito anos atrás. Os outros parentes costumam se manter afastados da maioria dos humanos. Mas quando deparam com um humano que consideram compatível, tentam estabelecer um vínculo, para nos compreender melhor.
– E por que eu? – perguntou Surreal, intrigada.
– Aqui as rainhas possuem cortes poderosas, e os machos do primeiro círculo têm direito ao principal quinhão de seu tempo e de suas atenções. Um jovem como Presa Cinza precisa esperar sua vez e ainda tem de partilhar esse tempo com outros jovens machos na mesma posição. Mas você é uma feiticeira de joia cinza que, por enquanto, não possui pretensões de outros machos.
– Exceto os machos da família – disse Surreal, amargamente.
– Exceto os machos da família – concordou Saetan. – De ambos os lados.
Surreal bufou.
– Mas essa pretensão não é exatamente da mesma natureza. Você não é rainha, cujas cortes são constituídas a partir de um protocolo diferente. Por isso, se aceitar Presa Cinza antes que os outros machos percebam sua presença, irá manter uma posição dominante sobre todos os outros, exceto o seu parceiro, mesmo que os outros usem joias mais escuras. Uma vez que ainda não chegou à idade de realizar a oferenda às trevas e ainda usa a joia violeta de direito por progenitura, as probabilidades de um macho de joia mais escura vir a se interessar por você são elevadas.
– Mas isso não explica o motivo do interesse dele em mim.
Saetan estendeu o braço lentamente. Com o indicador da mão esquerda, segurou a corrente de ouro em volta do pescoço de Surreal, puxando-a para fora da blusa até a joia cinza ficar pendurada entre os dois.
A princípio, Surreal imaginou que a carícia que acompanhava o movimento era um tipo de sedução sutil. Depois percebeu que Saetan não pretendia seduzi-la. Era um gesto tão natural para ele como respirar.
– Pense nisso – disse Saetan. – Talvez ele tenha esse nome não porque seja cinza ou tenha presas, mas sim por ser a presa da cinza.
– Mãe Noite – disse Surreal, olhando para sua joia.
Saetan baixou a joia sobre o peito de Surreal.
– A decisão é sua e apoiarei o que quer que decida. Mas pense bem, Surreal. As visões de uma viúva-negra não devem ser descartadas peremptoriamente.
Assentindo com a cabeça, ela saboreou a sensação da mão de Saetan em suas costas enquanto a conduzia até a porta. Quando ele pegou na maçaneta, Surreal pôs a mão na porta para impedi-lo de abri-la.
– Qual a sua relação com Daemon?
– Lucivar e ele são meus filhos.
Já deveria imaginar isso.
– Daemon herdou sua boa aparência – disse Surreal.
– E também meu temperamento.
Captando a advertência na voz de Saetan, reconheceu, no fundo daqueles olhos dourados, a mesma prudência que vira nos olhos de Aaron. Fogo do Inferno, teria de encontrar depressa alguém que pudesse lhe explicar as regras macho-fêmea em Kaeleer. Que despertasse cautela pelo fato de ser assassina era uma coisa. Que despertasse cautela pelo fato de ser mulher... Não gostava disso. Não vindo dele. Nem um pouco.
– Gostaria de encontrar minha mãe – disse, bruscamente.
Saetan assentiu.
– A corte chega esta noite, e não posso sair até a rainha aprovar os recém-chegados, mas farei com que a mensagem chegue a Titian.
– Obrigada.
Maldição, pare de adiar as coisas. Saia daqui. Disparou para fora do escritório assim que Saetan abriu a porta.
Enquanto Presa Cinza caminhava a seu lado, Surreal continuava a sentir aquele estranho toque psíquico em suas barreiras interiores. Sem ele, teria se perdido duas vezes, embora tivesse reparado na presença de criados em todos os corredores principais. Cada um dos homens erguia-se de sua cadeira, olhava rapidamente para Presa Cinza, sorria para Surreal e permanecia em silêncio. Assim, ela seguiu o lobo até estar de volta à segurança de seu quarto.
Quando ele a deixou, para tratar de seus próprios afazeres noturnos, Surreal se despiu rapidamente e vestiu um pijama de mangas compridas. Costumava preferir camisolas de seda, mas havia certas ocasiões – como esta noite – em que tinha vontade de vestir algo que transmitisse a sensação de ela ser assexuada.
Jogando a roupa suja num cesto no banheiro, cumpriu rapidamente seu ritual noturno: enfiou-se na cama e apagou as velas na mesinha de cabeceira. Alguém lançara um leve feitiço de aquecimento nos lençóis. Provavelmente a criada. Agradecendo silenciosamente à mulher, Surreal se aconchegou sob os cobertores.
Já estava adormecendo quando viu uma sombra passar pela porta de vidro. Estremeceu, em expectativa, até sentir um corpo subindo na cama, dando três voltas e se aconchegando a seu lado, com um suspiro de satisfação.
Virando ligeiramente o tronco, olhou para Presa Cinza. Sentindo mais uma vez aquele estranho toque psíquico, deixou-se levar, cansada demais para pensar no que estava fazendo e mais preocupada em saber se acordaria com pulgas na manhã seguinte.
*Pulgas não*, disse uma voz masculina através de um fio psíquico. *Os parentes conhecem feitiços contra pulgas e sarnas.*
Com um berro, Surreal se sentou de um pulo.
Presa Cinza se levantou, com os dentes cerrados e os pelos eriçados.
*Onde está o perigo?*, perguntou. *Não farejo perigo.*
– Você fala!
Lentamente, os pelos de Presa Cinza voltaram ao normal. Escondeu os dentes.
*Sou parente. Nem sempre queremos falar com os humanos, mas sabemos falar.*
Mãe Noite!
Com o rabo balançando, deu alguns passos à frente e lambeu a bochecha de Surreal.
*Você me ouviu!*, disse, feliz. *Ainda nem foi treinada e consegue ouvir os parentes!*
Ele levantou a cabeça e uivou. Surreal o segurou pelo focinho.
– Fique quieto. Vai acordar todo mundo.
*Ladvarian vai ficar contente.*
– Ótimo. Fico feliz. – Em nome no Inferno, quem é Ladvarian? – Agora vamos dormir, está bem?
Não fazia ideia de como tinha conseguido estabelecer aquela ligação. Como a cortaria para que seus pensamentos voltassem a ser particulares?
Sentiu uma ligeira pressão mental e, em seguida, novamente aquele toque estranho.
– Rrrf.
– Obrigada – disse Surreal, voltando a se aconchegar sob os cobertores, enquanto sentia Presa Cinza se encostar em suas costas.
Pensaria nisso de manhã...
Daemon ajeitou cuidadosamente os punhos da camisa e do casaco. Sentia-se mais seguro esta manhã, mas não descansado. Seu sono fora interrompido por sonhos vagos e fragmentos de memórias, pela consciência de que apenas uma porta o separava do quarto de Jaenelle e por um corpo inquieto e excitado, que sabia ferozmente aquilo que desejava.
Ao enfiar as mãos nos bolsos das calças, percebeu o anel de consorte na mão esquerda. Como se não estivesse consciente de sua existência desde que despertara. Não era apenas a sensação estranha de um anel naquela mão; eram os deveres e as responsabilidades que o anel acarretava que o deixavam apreensivo. O corpo cumpriria os deveres com avidez. Pelo menos, assim achava. E era essa a intenção, não era? Não sabia como reagiria quando voltasse a encontrar Jaenelle. Da mesma forma, não sabia qual seria a reação dela.
Notando que Jazen, seu criado particular, cumpria as tarefas da manhã com lentidão, perguntou:
– Foi bem acomodado ontem à noite?
Jazen sorriu.
– As instalações dos criados são bastante espaçosas.
– E os criados?
– São... educados.
Daemon sentiu o calafrio que precedia a fúria e se esforçou para dominá-la. Jazen já sofrera bastante. Se preciso fosse, arrancaria o Paço de suas fundações para garantir que a vida do homem não fosse ainda mais dificultada por criados que não faziam ideia da brutalidade que os homens enfrentavam nos territórios terreillianos sob o jugo de Dorothea.
– Não sei bem o que se espera de mim hoje.
Jazen assentiu.
– Os outros criados particulares me disseram que os trajes hoje seriam informais, uma vez que o primeiro círculo vai avaliar os recém-chegados. Aqueles que se sentarão à mesa do senhor supremo terão de se vestir apropriadamente, mas não será necessário usar terno – acrescentou quando Daemon ergueu uma sobrancelha. – Soube que as senhoras se vestem de forma descontraída durante o dia.
Daemon remoeu aquelas informações ao caminhar pelos corredores até a sala de jantar. Com base em sua experiência em cortes terreillianas, trajes informais significavam roupas práticas feitas com tecidos ligeiramente menos exagerados do que aquelas que se usavam durante o jantar.
Ao entrar em um corredor, reparou na feiticeira de pele clara e cabelo ruivo que caminhava em sua direção. Usava uma calça marrom escura desgastada e um suéter verde de lã comprido, largo e com detalhes decorativos. Detectou aprovação na avaliação rápida daqueles olhos verdes sobre seu corpo, mas nenhum interesse ativo.
– Príncipe – disse, educadamente, ao passar por ele.
– Senhora – respondeu com igual delicadeza, imaginando como um sujeito encrenqueiro como Beale permitiria que uma criada se vestisse daquele jeito. Ao sentir uma lufada do odor psíquico da mulher, se virou e ficou olhando boquiaberto até ela entrar em um corredor e desaparecer.
Rainha. Aquela mulher era rainha.
Sentiu o estômago roncar, o que o fez retomar seu caminho.
Uma rainha. Bem, se aquele era o conceito que as senhoras tinham de trajes informais, apoiava veementemente a insistência do senhor supremo quanto ao código de vestimenta para o jantar – um sentimento que, tinha fortes suspeitas, deveria guardar para si.
Estava quase chegando à sala de jantar quando deparou com Saetan.
– Príncipe Sadi, precisamos discutir um assunto – disse Saetan serenamente, embora com uma expressão carregada.
O fato de Saetan chamá-lo por seu título formal lhe provocou um arrepio.
– Então vamos resolver logo isso– respondeu Daemon, seguindo o pai até o escritório oficial do senhor supremo.
Sentiu a tensão se dissipar ao ver que Saetan apenas se encostara à mesa de madeira escura, em vez de se sentar atrás dela.
– Você sabe que seu criado particular é totalmente raspado? – perguntou Saetan de maneira delicada, sinistra.
– Sei – respondeu Daemon com igual delicadeza.
– Há muito poucas leis que, quando violentadas, justificam esse castigo. Todas são de caráter sexual.
– Jazen não fez nada a não ser estar no lugar errado, na hora errada – contestou Daemon. – Dorothea fez aquilo com ele para divertir sua assembleia.
– Tem certeza?
– Eu estava presente, senhor supremo. Nada pude fazer por ele a não ser apagá-lo, deslizando através das drogas que lhe deram para mantê-lo consciente. A família cuidou dele por algum tempo, e muitos prestaram ajuda. No entanto, assim que a notícia se espalhou – e Dorothea garantiu isso – Jazen foi considerado impuro porque, é claro, aquilo não teria acontecido se ele não merecesse. Se tivesse ficado com a família, eles também perderiam seus postos. É um homem bom e leal. Merecia algo melhor do que aquilo que lhe aconteceu.
– Compreendo – disse Saetan, calmamente. – Explicarei a situação a Beale. Ele cuidará do assunto.
– Até que ponto terá de informá-lo? – perguntou Daemon, preocupado.
– Direi apenas que a mutilação foi injustificada.
Daemon sorriu com amargura.
– Acha realmente que isso vai mudar a opinião dos outros criados em relação a ele? Acha que vão acreditar?
– Não, mas isso vai suspender o julgamento até que a senhora retorne. – Saetan assumiu um ar solene. – Mas é preciso compreender, príncipe. Se Jaenelle se virar contra ele, não há nada que alguém possa fazer ou dizer para mudar isso. Em Kaeleer, a feiticeira é a lei. Suas decisões são irrevogáveis.
Daemon refletiu e em seguida assentiu.
– Aceitarei a decisão da senhora. – Ao seguir Saetan até a sala de jantar, não conseguia deixar de desejar que a mulher que Jaenelle se tornara não fosse muito diferente da criança que recordava – e que tinha amado.
O coração de lorde Jorval batia acelerado quando voltou à sala, onde o homem de cabelo ruivo e olhos cinzentos o aguardava. Sentou-se atrás da mesa e uniu as mãos para disfarçar o tremor da ansiedade.
– Já descobriu o destino da minha sobrinha? – perguntou Philip Alexander.
– Sim, descobri – respondeu Jorval, solenemente. – Quando você me explicou as relações familiares, tive uma ideia de onde procurar.
Philip agarrou os braços da cadeira com tal força que quase partiu a madeira.
– Assinou contrato com uma corte da Pequena Terreille?
– Infelizmente não foi isso que aconteceu – respondeu Jorval, esforçando-se por colocar a dose certa de compaixão na voz. – É preciso que entenda, príncipe Alexander. Não tínhamos como saber quem era. Dois membros do conselho se lembram de ouvi-la dizer que estava procurando a irmã, mas imaginaram que a irmã tinha imigrado antes. Bem, de certa forma, foi assim. Entretanto, nunca chegou ao conselho das trevas um registro da origem de Jaenelle Angelline antes que o senhor supremo ganhasse sua tutela. Não havia razão para estabelecerem uma ligação entre as duas, e quando começaram a se dar conta do significado das indagações da moça, já era tarde demais.
– O que significa “tarde demais”? – perguntou Philip rispidamente.
– Ela foi... convencida... a assinar contrato com o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih... Lucivar Yaslana.
Jorval ficou animado ao ver Philip empalidecer.
– Vejo que já ouviu falar dele. Compreende então o perigo que sua sobrinha está correndo. E não é só isso, embora Yaslana já seja bastante cruel. – Fez uma pausa, permitindo que Philip engolisse a isca e o anzol.
– Está presa com os três, não é? Com Yaslana, Sadi e o senhor supremo... assim como Jaenelle.
– Sim. – Jorval suspirou. – Pelo que sabemos, Yaslana a levou para o Paço dos SaDiablo em Dhemlan. Quanto tempo vai permanecer lá... – Estendeu as mãos num gesto de impotência. – Talvez seja possível retirá-la do Paço, mas assim que a levarem para as montanhas em torno de Ebon Rih, é improvável que consiga recuperá-la – pelo menos enquanto ainda restar algo dela que faça o risco valer a pena.
Philip se afundou na cadeira. Jorval limitou-se a esperar. Por fim, disse:
– Desta vez, não há nada que o conselho das trevas possa fazer para ajudá-lo. No entanto, extraoficialmente, faremos tudo que estiver ao nosso alcance para recuperar Jaenelle Angelline e Wilhelmina Benedict para sua família legítima.
Philip se levantou como um homem que acabou de ser brutalmente espancado.
– Obrigado, lorde Jorval. Transmitirei essas informações à minha rainha.
– Que as trevas o guiem e amparem, príncipe Alexander.
Jorval aguardou um minuto depois que Philip saiu e se recostou na cadeira, satisfeito com o encontro. Graças às trevas que Philip era príncipe. Ficaria preocupado e refletindo, mas, ao contrário de um príncipe dos senhores da guerra, voltaria para o lado de Alexandra Angelline e acataria sua decisão. Tivera sorte de Philip não se lembrar de perguntar se Yaslana servia uma rainha – e quem era ela. Obviamente, mentiria se tivesse de responder a essa pergunta, mas não deixava de ser interessante que Philip não tivesse considerado, nem por um momento, que Jaenelle pudesse ser uma rainha com um poder descomunal a ponto de controlar os machos da família SaDiablo.
E quanto a Alexandra Angelline... Seria um instrumento útil para distrair o senhor supremo e dividir as lealdades na corte de Ebon Askavi, desde que não se desse conta da verdadeira razão para afastar Jaenelle da corte das trevas.
Daemon perambulava pelos cômodos do primeiro andar do Paço, reparando distraidamente na função de cada um deles, com a mente repleta de suas impressões do café da manhã. Saiu e começou a caminhar pelo pátio a céu aberto, na esperança de que o ar fresco e a vegetação o ajudassem a desanuviar a cabeça.
Esperava encontrar a sala de refeições cheia. Afinal, os eyrienos iam querer comer antes de executar os planos de Lucivar. Esperara que Khardeen e Aaron estivessem ali, e sabia que reparariam e entenderiam o significado do anel de consorte. Estava preparado para aquilo. Mas não estava preparado para os outros machos que constituíam o primeiro círculo.
Ali estava Sceron, o príncipe dos senhores da guerra de joia vermelha de Centauran. O centauro de pelo escuro ficara junto à mesa de refeições, saboreando uma omelete de legumes e conversando com Morton, um senhor da guerra louro de olhos azuis da Glácia. Havia também Jonah, um senhor da guerra de joia verde, um sátiro cujo pelo escuro o cobria da cintura aos cascos, mas não as partes abertamente masculinas, e Elan, um príncipe dos senhores da guerra de joia vermelha de Tigrelan, de pele fulva com listras pretas e mãos que terminavam em garras fechadas. Vendo Elan, Daemon apostaria que o homem tinha mais em comum com o gato listrado que tinha visto da janela do que apenas traços físicos.
E havia ainda Chaosti, o príncipe Dea al Mon dos senhores da guerra de joia cinza, com o longo cabelo louro-prateado, orelhas pontudas e enormes olhos azul-floresta. Todos os instintos territoriais de Daemon vieram à tona quando pousou os olhos nele, talvez porque Chaosti parecesse um adversário assombroso independentemente das joias que usava, ou talvez porque Daemon visse nele um pouco mais do que queria de si próprio. Somente a presença de Saetan evitou que os cumprimentos cáusticos se transformassem num confronto aberto. Esse encontro o deixara nervoso e consciente de sua própria fragilidade interior.
Em seguida, chegou o príncipe dos senhores da guerra de joia cinza que se apresentou como Mephis, seu irmão mais velho. A sala se inclinou ligeiramente quando Daemon percebeu que, sendo primogênito de Saetan, Mephis era demônio-morto há mais de 50 mil anos. Talvez tivesse conseguido recobrar o equilíbrio se o príncipe Andulvar Yaslana e lorde Prothvar Yaslana não tivessem entrado, provocando uma comoção coletiva entre os machos eyrienos que o atingiu como uma carroça desgovernada. Depois de varrerem com o olhar os eyrienos intimidados e dirigirem um comentário ao senhor supremo, o príncipe dos senhores da guerra demônio-morto e seu neto deixaram o recinto.
A essa altura, Daemon ansiava sinceramente por conhaque em vez de café – um desejo que deve ter ficado aparente. O líquido que Khardeen derramou de uma garrafa de prata em seu café não era conhaque, mas acalmou seus nervos o suficiente para que conseguisse comer.
Ainda abalado demais para apreciar a refeição, tinha acabado de terminar seu modesto café da manhã quando Surreal irrompeu na sala, resmungando. Parecera chocada ao deparar com Chaosti, a única outra pessoa da mesma raça de sua mãe que já tinha visto, mas no momento em que ele veio até ela, Surreal cerrou os dentes e anunciou que o próximo macho que se aproximasse dela antes do café da manhã provaria o gosto da lâmina de sua faca.
Assim, ela conseguiu tomar café da manhã sossegada e sem interrupções.
Daemon estava prestes a sair quando entrou na sala uma feiticeira alta e esguia, de cabelo louro quase branco e arrepiado. Ela olhou para Daemon e disse, tão alto que deve ter sido ouvida em todo o Paço:
– Fogo do Inferno, você é um viúva-negra!
O fato de ser um viúva-negra natural – e, tirando Saetan, o único macho viúva-negra – fora algo que conseguira manter em segredo durante séculos, desde que o corpo atingira a maturidade sexual, assim como conseguira esconder o dente de serpente e a bolsa de veneno sob o dedo anelar da mão direita. O que quer que tenha feito para impedir que outra viúva-negra o detectasse, falhara desta vez.
A tensão na sala se dissipou quando Saetan comentou:
– Bem, Karla, ele é meu filho e é o consorte.
A surpresa da feiticeira se transformou em reflexão profunda.
– Ah – exclamou. Nesse caso... – Ela abriu lentamente um sorriso perverso. – Beijinho, beijinho.
Passando apressado por Lucivar, Daemon fugira da sala de refeições e passara a última hora perambulando pelo Paço, tentando controlar os pensamentos e as emoções.
– Está perdido?
Daemon olhou para Lucivar, que estava encostado à soleira de uma porta.
– Não, mas estou muito confuso.
– Claro que está. É macho. – Sorrindo de orelha a orelha ao ver a contrariedade de Daemon, Lucivar caminhou até o pátio. – Por isso, se uma das queridinhas da assembleia se oferecer para lhe dar explicações, não aceite. Ela realmente tentará ajudar, mas você vai bater com a cabeça na parede e se lamentar quando ela terminar.
– Por quê?
– Para cada cinco regras que aprendeu em Terreille sobre o comportamento adequado de um macho, os Sangue de Kaeleer só conhecem uma... e todos a interpretam de modo diferente.
Daemon encolheu os ombros.
– Obediência é obediência.
– Não, não é. Para os machos dos Sangue, a primeira lei é honrar. A segunda lei é estimar. A terceira é proteger. Nessa ordem.
– E se a obediência interferir nas duas primeiras?
– Então esqueça.
Daemon pestanejou.
– Tem realmente conseguido se safar desse jeito?
Lucivar coçou a nuca e assumiu uma expressão pensativa.
– Não é bem uma questão de me safar. Para os príncipes dos senhores da guerra, é quase um requisito do serviço na corte. No entanto, se você ignorar uma ordem do administrador ou do mestre da guarda, precisa estar certo de que é capaz de justificar suas ações e estar disposto a aceitar as consequências caso não aceitem a justificativa, o que é raro. Tenho arranjado mais problemas com o senhor supremo como meu pai do que como administrador.
Pai. Administrador. Os laços da família e da corte.
– Por que ainda está aqui, bastardo? – perguntou Daemon cautelosamente. – Por que não está no campo de treinamento observando os guerreiros que escolheu?
– Estava à sua procura, porque temos assuntos a resolver – disse devagar.
Ainda não, pensou Daemon. Agora não.
Lucivar deu um longo suspiro.
– Acusei-o de ter assassinado Jaenelle. Acusei-o de coisas ainda mais infames. Estava errado e isso custou sua sanidade e oito anos de vida.
Daemon desviou os olhos da mágoa e da tristeza nos olhos de Lucivar.
– Você não teve culpa – disse compassivamente. – Eu já estava fraco.
– Eu sei. Percebi... E usei isso como arma.
Recordando-se da discussão entre os dois naquela noite em Pruul, Daemon fechou os olhos. A fúria de Lucivar não o magoara tanto como seu próprio receio de que as acusações pudessem ser de algum modo verdadeiras. Se estivesse certo sobre o que tinha acontecido no altar de Cassandra, a discussão teria terminado de forma diferente. Lucivar não teria passado mais alguns anos nas minas de sal e ele próprio não teria passado oito anos no reino distorcido.
Daemon olhou para o irmão, percebendo por fim que Lucivar não propunha um encontro num campo de matança por algo que Daemon tivesse feito, mas como reparação por toda a dor que ele havia sofrido no reino distorcido. Lucivar lutaria, e lutaria muito, pois tinha esposa e filho pequeno. Não hesitaria se Daemon exigisse a luta, mesmo sabendo qual o resultado de um confronto entre as joias cinza-ébano e negra.
Daemon sabia também por que Lucivar estava insistindo no assunto. Não queria que a esposa e o filho pesassem na balança, não queria que Daemon tivesse tempo de desenvolver sentimentos por eles antes de tomar a decisão. Seguindo as tradições antigas dos Sangue, se perdoasse a dívida neste momento, não poderia exigir reparações posteriores. Caso contrário, desconfiariam sempre um do outro, teriam sempre a necessidade de tomar precauções enquanto aguardavam o ataque inesperado.
E, de certa forma, a dívida já não tinha sido cobrada? Os anos que ficara no reino distorcido contrabalançavam os anos que Lucivar passara nas minas de sal em Pruul. Seu pesar pela suposta morte de Lucivar contrabalançava o pesar de Lucivar pela suposta morte de Jaenelle nas mãos de Daemon. E se as posições fossem invertidas, teria acreditado em outra versão ou agido de forma diferente?
– Esta é a única pendência entre nós? – perguntou Daemon.
Lucivar assentiu, cautelosamente.
– Então esqueça, bastardo. Já sofri uma vez a perda do meu irmão. Não quero passar por isso de novo.
Observaram-se durante um minuto, pesando tudo o que estava além das palavras. Por fim, Lucivar relaxou. Seu sorriso era indolente, arrogante e tão irritantemente familiar que Daemon sorriu também.
– Nesse caso, sacana, está atrasado para o treino – disse Lucivar, gesticulando na direção de uma porta.
Assim que alcançaram a saída, foram até os eyrienos reunidos na extremidade mais distante do extenso gramado.
– A propósito – disse Lucivar –, enquanto você estava ruminando...
– Não estava ruminando – resmungou Daemon.
– ...perdeu a diversão desta manhã.
Daemon cerrou os dentes. Não ia perguntar. Não faria isso.
– Que diversão?
– Está vendo o lobo sozinho com ar envergonhado?
Daemon olhou para o animal de pelo cinza observando um grupo de mulheres fazendo uma espécie de exercício com bastões eyrienos.
– Sim.
– Presa Cinza quer ser amigo de Surreal. É jovem e ainda não tem muita experiência com humanos, sobretudo com as fêmeas. Ao que parece, numa tentativa de reforçar essa amizade e melhorar a compreensão das fêmeas, foi se juntar a Surreal enquanto ela estava na ducha. Como havia água correndo, ela não se deu conta de sua presença até ele enfiar o focinho onde não devia. Depois, quando ele se queixou de ter sabonete no pelo, Surreal o arrastou de volta ao chuveiro. E agora ele está com cheiro de flor.
Daemon mordeu o lábio.
– Há um remédio para isso.
Lucivar pigarreou.
– Verdade, mas ela ameaçou lhe dar uma chicotada se se sujasse.
– Tudo tem um preço – disse Daemon, com a voz abafada. Reparando na mulher com quem Surreal falava, deu uma violenta cotovelada em Lucivar. – Marian devia estar fazendo algo tão extenuante durante o período da lua?
Lucivar silvou.
– Não comece. – Parou e observou as mulheres com os olhos semicerrados. – Eu disse a ela que podia fazer os exercícios de aquecimento. Tenho certeza de que vai acabar fazendo mais, com a desculpa de estar demonstrando os movimentos.
Daemon olhou para as mulheres e depois para Lucivar.
– Você disse à sua mulher quanto ela podia fazer?
– É claro que não – respondeu Lucivar, indignado. – Tenho cara de idiota? Foi o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih que disse a uma feiticeira que vive em seu território.
– Ah. Assim é diferente.
– Se eu dissesse alguma coisa, ela tentaria partir minha cabeça com um bastão.
Daemon riu enquanto caminhavam na direção dos guerreiros eyrienos.
– Agora lamento ter perdido isso.
Lucivar voltou a atenção para Falonar e Rothvar, que tinham acabado de entrar no círculo de treinamento, enquanto Daemon observava Surreal e Marian executar alguns movimentos.
– Quem é ela? – perguntou Daemon quando a feiticeira de cabelo espetado se juntou às outras mulheres.
Lucivar olhou rapidamente para as mulheres e voltou a atenção para os guerreiros eyrienos.
– É Karla, a rainha de Glácia. É viúva-negra e curandeira. Uma das três que possuem um dom triplo.
Um dom triplo e uma boca grande, pensou Daemon.
– Está dispensado do treino hoje, mas espero que seja pontual amanhã – disse Lucivar.
Daemon falou cuspindo.
– Não vou praticar com bastões contra guerreiros eyrienos.
Lucivar resfolegou e olhou para os pés de Daemon.
– Tenho um par de botas que devem servir até você mandar fazer as suas.
– Não vou fazer isso.
– Até que a transferência oficial esteja concluída, o contrato que assinou pertence a mim, meu velho. Não tem escolha.
Daemon praguejou baixinho, perversamente. Lucivar começou a se afastar na direção de Falonar.
– Diga uma boa razão para que eu me sujeite a isso – exigiu Daemon, os dentes cerrados.
Lucivar se virou.
– Tem noção de como sou bom nos bastões eyrienos? – perguntou serenamente.
– Sim.
– Jaenelle é melhor. – Lucivar sorriu de orelha a orelha ao ver a boca aberta de Daemon.
Daemon ficou pensando naquele precioso fragmento de informação enquanto Lucivar falava com os machos eyrienos. Pensou bastante. Quando Lucivar voltou, com um olhar interrogativo, despiu o casaco, enrolou as mangas da camisa e rosnou:
– Onde estão as malditas botas?
Ajeitando um pouco melhor o xale, Alexandra Angelline enrolou os braços em volta da cintura enquanto olhava pela janela da estalagem para o lugar onde havia sido realizada a feira de serviços. A chuva que começara a cair uma hora antes não passava de um chuvisco que sujava a terra.
Isto é Kaeleer?, pensou, desolada. Este é o reino das sombras que tantos desesperadamente tentam alcançar? Sem dúvida seria injusto julgar todo um reino por um terreno desgastado no qual centenas de pessoas haviam esperado conseguir assinar um contrato de serviços. Mas sabia que essa seria sempre a imagem mental formada ao ouvir o nome Kaeleer.
Sentiu alguém se aproximar, mas não se virou quando a filha, Leland, se juntou a ela na janela.
– Por que Wilhelmina poderia querer vir para este lugar? – murmurou Leland. – Ficarei feliz quando sairmos daqui.
– Você não precisa ficar, Leland. Especialmente agora que Vania e Nyselle insistiram com tanta benevolência em me acompanhar.
– Não vieram por lealdade – disse Leland, de modo sereno porém amargo. – Só queriam ter a chance de ver o reino das sombras, e sabiam que poderia não haver outra forma de fazer isso.
Alexandra cerrou os dentes diante da verdade nas palavras de Leland, que a corroía. Vania e Nyselle, as duas rainhas de província que a tinham acompanhado a Hayll, ainda que a contragosto, haviam se tornado irritantemente solícitas desde que anunciara a viagem a Kaeleer, em busca de Wilhelmina.
Essas rainhas e seus respectivos consortes tinham vindo com ela, bem como Philip e Leland e uma escolta de cinco homens. Quatro dos membros da escolta a acompanhavam desde Chaillot. O quinto, escolhido por Dorothea SaDiablo, fora “emprestado” por uma das rainhas de estimação de Dorothea, de outro território. O homem lhe dava arrepios, mas Dorothea garantira que seria capaz de libertar Wilhelmina de seus “captores” e entregá-la a outro grupo de machos leais que a aguardavam em Kaeleer.
É com pesar que digo isso, falara Dorothea, mas se for possível libertar apenas uma de suas netas do controle do senhor supremo, é preciso que seja Jaenelle. Ela representa perigo para Terreille.
Alexandra não acreditou nem por um segundo que Jaenelle fosse algo além de um fantoche usado para camuflar quem quer que representasse a verdadeira ameaça para Terreille. No entanto, doces trevas, esperava não ter de optar entre Wilhelmina e Jaenelle – pois em seu coração sabia qual das duas deixaria para trás.
– Além disso – acrescentou Leland, baixinho –, tenho de ficar. Jaenelle sempre foi uma criança estranha, mas era... é... minha filha. Só de pensar que esteve sob o controle daquele monstro durante todo esse tempo... – Leland estremeceu. – Não há como saber o que pode ter feito a ela.
E não havia como saber o que lhe acontecera em Briarwood. Ela sempre foi mentalmente frágil ou aquele local teria provocado essa fragilidade? Não, decidiu com firmeza. As estadias de Jaenelle em Briarwood podem ter contribuído para o enfraquecimento de uma estabilidade já fragilizada, mas as excentricidades da criança eram o que havia levado à decisão de enviar a moça para Briarwood.
– O que vamos fazer? – perguntou Leland, discretamente.
Alexandra olhou por cima do ombro para as outras pessoas que aguardavam sua decisão, inquietas. Philip, que várias vezes perdera o controle enquanto relatava as informações transmitidas por lorde Jorval, iria com ela, não somente por ter se casado com Leland mas também por se preocupar genuinamente com Wilhelmina e Jaenelle. Vania e Nyselle a acompanhariam para conhecer Kaeleer em mais detalhes. Os consortes e os acompanhantes seguiriam as rainhas por dever. A curiosidade e o dever seriam suficientes contra algo como o senhor supremo?
Não importava. Aceitaria toda a ajuda oferecida.
Dando de costas para a janela, disse:
– Príncipe Alexander, pode fazer o favor de conseguir uma carruagem o mais depressa possível? Vamos ao Paço dos SaDiablo.
Certo de que tinha mais dores musculares do que músculos, Daemon avançou a passos lentos até o salão principal, onde, de acordo com Beale, o senhor supremo o aguardava.
Nunca mais. Deveria ter se lembrado do que significava “Vamos começar com calma”, deveria ter se lembrado de que não havia nenhum tipo de exercício que preparasse o corpo para o treinamento com armas eyrienas. Mesmo no ritmo de treino, Lucivar era rigoroso.
Esqueceu-se dos músculos doloridos ao ver Saetan na extremidade mais distante do salão principal, afastando o cabelo do rosto de uma bela feiticeira dhemlana. Nesse gesto, havia ternura e afeto. Imaginando se estaria interpretando corretamente, avançou da maneira mais discreta possível.
A feiticeira reparou nele primeiro. Desorientada, deu um grande passo para trás e olhou para ele cheia de tensão. O que o deixou preocupado, no entanto, foi o rasgo de fúria que detectou no pai.
Nesse momento, Saetan se virou, viu Daemon e tentou relaxar por um instante antes de ir a seu encontro.
– O que aconteceu com você? – perguntou Saetan. – Está ferido?
– Lucivar foi o que aconteceu comigo – respondeu Daemon, os dentes cerrados.
– Andaram se estranhando? – perguntou Saetan, num tom de voz falsamente indiferente, no qual se lia a desaprovação paternal.
– Não estávamos nos estranhando, estávamos treinando. Mas fico contente que alguém além de mim tenha dificuldades em compreender a distinção.
A feiticeira se afastou deles e começou a produzir sons engraçados. Quando se virou, seus olhos dourados estavam animados pelo riso.
– Perdão – disse, não parecendo nem um pouco arrependida. – É que como também já recebi instruções de Lucivar, posso entender como se sente.
– E por que estava fazendo exercícios de armas com Lucivar? – perguntou Saetan.
– Porque sou idiota. – Daemon ergueu a mão para afastar o cabelo da testa. – Da próxima vez que Jaenelle o fizer comer terra quero muito estar presente.
– E quem não quer? – sussurrou a feiticeira.
Saetan soltou um suspiro exasperado.
– Sylvia, este é Daemon Sadi. Daemon, esta é lady Sylvia, rainha de Halaway.
Sylvia arregalou os olhos.
– Este é o garoto?
Daemon estremeceu até Saetan lhe dar um brusco toque mental.
– “Garoto” é um termo relativo – disse Saetan.
– Sem dúvida – respondeu Sylvia, tentando disciplinar o rosto numa expressão adequada.
Saetan se limitou a contemplá-la.
– Bem – disse Sylvia com excesso de efusão –, vou cumprimentar a assembleia e deixar que os dois resolvam o que têm a resolver.
– Vai me emprestar o livro? – perguntou Saetan, com um sorriso cheio de malícia.
– De que livro está falando, senhor supremo? – perguntou Sylvia, tentando parecer inocente, ao mesmo tempo que corava a uma velocidade vertiginosa.
– Aquele que você não admite que leu.
– Ah, creio que não lhe despertará qualquer interesse – balbuciou Sylvia.
– A julgar pela sua reação toda vez que falo dele, acho que terei todo o interesse em sua leitura.
– Pode comprar um exemplar.
– Prefiro pedir o seu emprestado.
Sylvia fulminou-o com o olhar.
– Empresto com a condição de você admitir na assembleia que o está lendo.
Saetan ficou em silêncio, as faces ligeiramente coradas. Satisfeita, Sylvia sorriu afetuosamente para Daemon.
– Bem-vindo a Kaeleer, príncipe Sadi.
– Obrigado, senhora – respondeu Daemon, cortesmente. – Foi extremamente instrutivo conhecê-la.
Sylvia não perdeu tempo em desaparecer. Assim que saiu, Saetan passou os dedos pelo cabelo, inspecionando depois a mão vazia.
– Entendo perfeitamente por que o cabelo do pai dela caiu – resmungou. – O meu está ficando cada vez mais grisalho. Acho que deveria ficar agradecido por ainda ter cabelo.
– É uma amiga? – perguntou Daemon, com malícia.
– Sim, é uma amiga – retrucou Saetan, realçando a última palavra. Franziu a sobrancelha. – Venha comigo, filhote. Vamos conversar.
Daemon seguiu obedientemente o pai até o escritório, curioso com o tom nervoso e defensivo na voz de Saetan. Enquanto vencia a dor muscular a fim de se sentar, Andulvar Yaslana se aproximou e se juntou aos dois.
– Não foi mal para um principiante – comentou Andulvar.
– Assim que recuperar os movimentos, vou partir a cabeça dele – resmungou Daemon.
Saetan e Andulvar trocaram um olhar divertido.
– Ah – exclamou Saetan –, os séculos passam, mas certos sentimentos não mudam.
– Daemon, essas foram as palavras que você usou da primeira vez que lutou com Lucivar – comentou Andulvar.
Daemon examinou os dois homens.
– Vocês dois eram só uns dois anos mais velhos que Daemonar – disse Saetan. – Você encontrou uma vara comprida e Lucivar começou a lhe mostrar os exercícios que andava praticando.
– Ele sempre demonstrou um talento natural para as armas – disse Andulvar –, mas naquela idade não sabia muito bem explicar os exercícios.
– Por isso – prosseguiu Saetan – acabou lhe dando umas boas varadas, e você, por sorte ou temperamento, acabou lhe dando algumas varadas também. Até o momento em que ambos puseram “as armas” de lado e começaram a usar os punhos. Manny acabou com a diversão lançando um balde de água fria sobre os dois.
Daemon teve de se esforçar para não gritar.
– Vai fazer isso sempre? – rosnou para Saetan.
– Isso o quê? – perguntou Saetan, ternamente.
– Desencavar histórias constrangedoras da minha infância.
Saetan se limitou a sorrir.
– Vamos lá, filho – disse Andulvar. – Você precisa de um banho quente, de uma massagem e de algo para comer. A manhã acabou de começar e temos o resto do dia pela frente.
O rosnado de Daemon se converteu num ganido quando Andulvar o puxou pelas costas da camisa.
– Um momento – disse Saetan, serenamente.
Detectando a alteração no estado de espírito, Daemon se virou, encarando Saetan de frente.
– Recebi um pedido. Se quiser ou não honrá-lo, a escolha é sua – explicou Saetan. – Se achar que não está preparado ou simplesmente não quiser, entenderei.
Daemon sentiu gelo correndo nas veias, mas resistiu ao impulso de ceder à raiva. Tinha muito a aprender sobre o processo de dar e receber dos machos e fêmeas de Kaeleer. Não deveria partir do princípio de que um pedido ali tivesse o mesmo significado de um pedido em Terreille.
– Qual é o pedido?
Saetan respondeu com delicadeza:
– Sua mãe gostaria de vê-lo.
Bebendo uma xícara de chá de ervas, Karla passeava pelos jardins, na esperança de que o som da fonte a acalmasse. Ergueu o olhar, apreensiva, para as janelas do segundo andar do lado sul do pátio. Será que Sadi estava lá, observando-a por trás das finas cortinas?
Fogo do Inferno, eu não deveria ter gritado que ele é um viúva-negra. Percebera isso no momento em que viu a fúria gelada nos olhos de Daemon. Mas estava transtornada com a teia que havia tecido dois dias antes e exaurida pela tentativa de entender as imagens enigmáticas que vira... Bem, ter conhecido Daemon Sadi sem dúvida explicara muitas dessas imagens. Vira o senhor supremo se olhando no espelho, mas o reflexo não era o dele. Vira verdades protegidas por mentiras. Vira uma viúva-negra de joia negra se tornando um inimigo para poder se manter amigo. E vira a morte suspensa por um anel. Sua própria morte.
Perturbada pela incapacidade de interpretar a visão do senhor supremo, começara a se perguntar se não teria interpretado mal a teia. Dúvidas se acumulavam.
Esvaziou a xícara e suspirou. Para o bem de todos, havia outra coisa que precisava esclarecer antes da volta de Jaenelle.
Daemon pegava seu casaco preto quando ouviu um barulho, desta vez um pouco mais forte. Havia alguém do outro lado da porta de vidro que separava a varanda da sala de estar.
Largando o casaco, foi até a sala, afastou a cortina e fitou a feiticeira de cabelo arrepiado parada. Seu primeiro impulso foi largar a cortina e ignorá-la. Não desejava a presença física nem o odor psíquico de Karla em seus aposentos. Não queria que ninguém lhe perguntasse por que estava com outra mulher antes de ser formalmente aceito pela rainha.
Não queria saber se era rainha, mas o fato de Karla fazer parte do primeiro círculo da corte de Jaenelle era extremamente importante. Relutante, abriu a porta e deu um passo atrás para deixá-la entrar.
– Tenho um compromisso daqui a pouco – disse, friamente.
– Vim me desculpar – disse Karla. – Não vou demorar. Não levo muito jeito para desculpas.
Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças e aguardou. Karla respirou fundo.
– Não devia ter anunciado publicamente que você pertence à Ampulheta. O primeiro círculo seria informado de qualquer maneira, mas eu não devia ter dito isso tão bruscamente. Estava pensando em outra coisa que tem me intrigado, e quando o vi...
Encolheu os ombros.
– Como descobriu? Ninguém percebeu em Terreille.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios de Karla.
– Bem, duvido que algum deles tenha passado os últimos dez anos aborrecendo o tio Saetan. Só alguém nessa situação perceberia as similaridades de seus odores psíquicos e chegaria a essa conclusão.
Daemon pestanejou.
– Tio Saetan?
Karla exibia agora o característico sorriso perverso.
– Ele adotou Jaenelle e todos nós. Viemos passar um verão e nunca mais voltamos de verdade para casa. Você pode imaginar como ele ficou entusiasmado quando percebeu que havia ganhado dez feiticeiras adolescentes em vez de apenas uma – e os rapazes também, é claro.
– É claro – disse Daemon, esforçando-se para não sorrir. – Que surpresa.
– No primeiro verão, quando todos nós caímos no colo dele, a assembleia se especializou em tônicos calmantes. Era tão angustiante ouvi-lo se queixar.
Daemon reprimiu uma gargalhada. Em seguida, a diversão desapareceu. Era esperta, essa rainha de olhos azuis como o gelo e cabelo louro arrepiado quase branco. Sabia a vontade que tinha de ouvir histórias sobre a adolescência de Jaenelle.
Karla o observou.
– Se ajudar a se sentir melhor, pode ameaçar me esganar.
Por um momento ficou mudo.
– Como?
– Nesta corte, é a maneira aceitável para um macho expressar aborrecimento com uma feiticeira.
– Ameaçar esganar uma mulher é considerado aceitável? – perguntou Daemon, convencido de ter entendido mal.
– Desde que seja feito num tom tranquilo, de modo que se saiba que é da boca para fora.
Um macho capaz de manter a calma neste lugar tem que ter um imenso autocontrole, pensou Daemon. Massageou a testa e começou a entender o aviso de Lucivar quanto às explicações dadas pelas feiticeiras da assembleia.
– Ser ameaçada por Lucivar não a incomoda? – perguntou Daemon.
Considerando que Lucivar costumava manter a calma quando ameaçava alguém, só um tolo não o levaria a sério.
Karla recuou.
– Ah. Bem. Lucivar. Ele raramente nos dirige a palavra quando está chateado. O que ele faz é nos agarrar e arremessar na poça d’água mais próxima. – Fez uma pausa. – Se bem que, para ser justa...
– O quê? – resmungou Daemon.
– Você passou a manhã com ele, não foi? – disse Karla, sabiamente. – Seja uma poça d’água ou uma fonte, ele na verdade mais nos mergulha que arremessa, assim ninguém sai machucado. Mas estamos falando de Lucivar. Desencorajamos veementemente que outros machos adquiram esse hábito.
– Ou estariam ensopadas a maior parte do tempo – murmurou Daemon.
Antes que Karla conseguisse responder ao comentário, Morghann, a rainha de Scelt – a rainha de cabelo ruivo com quem cruzara pela manhã –, e Gabrielle, a rainha dos Dea al Mon, deram uma leve batida à porta da varanda e entraram.
– Todas as portas da assembleia dão para este jardim, por isso é mais rápido usar as portas das varandas em vez de dar a volta por dentro – disse Morghann ao mesmo tempo que Karla perguntava:
– Onde está Surreal?
Gabrielle pôs o cabelo louro-prata atrás das orelhas pontudas e deu um sorriso largo.
– Chaosti a reclamou com o pretexto de lhe mostrar o Paço. Surreal ainda estava resmungando que precisava pedir desculpas a Presa Cinza por ter sido muito enfática ao ameaçar lhe dar uma chicotada.
– Eu estava explicando algumas regras a Daemon – disse Karla.
– Tenho realmente um compromisso – resmungou Daemon. Em seguida, quando alguém bateu à porta da sala de estar, disse em voz alta: – Entre.
Saetan entrou, passou os olhos pelas três mulheres e parou.
– Beijinho, beijinho – disse Karla.
– Íamos explicar as regras a Daemon – comentou Morghann.
– Que as trevas tenham piedade de Daemon – retrucou Saetan, friamente.
– Vou pegar o meu casaco – disse Daemon, não querendo deixar escapar uma oportunidade de fugir dali.
O orgulho o impedia de correr para o quarto. O bom senso o fez demorar mais do que o necessário. Por isso, quando voltou à sala de estar, apenas Saetan o aguardava.
– Já foram atormentar outro? – perguntou Daemon acidamente, enquanto deixavam os aposentos e começavam a caminhar pelos corredores.
Saetan deu um risinho.
– Por enquanto.
Daemon hesitou.
– Talvez seja melhor você me explicar essas regras.
– Tenho um livro que explica o protocolo nas cortes.
– Não, desejo saber as regras específicas desta corte. Por exemplo...
– Não quero saber – disse Saetan, em um tom firme.
– Você precisa saber. É o administrador.
– Exato. E se esta corte tem algumas regras que venho alegremente ignorando nestes cinco anos como administrador, não é agora que vou querer saber delas.
– Mas... – disse Daemon, mas o olhar implacável de Saetan o fez se interromper. – Esse é um jeito meio puritano de agir.
– Do seu ponto de vista, imagino que sim. Do meu ponto de vista, faz todo sentido.
Antes que conseguisse fazer um comentário do qual poderia se arrepender, um cachorrinho de pelo marrom e branco correu na direção de ambos, parando a alguns centímetros, com o rabo balançando desenfreadamente num cumprimento fervoroso.
*Ele chegou! O parceiro de Jaenelle finalmente chegou!*
Daemon ficou sem fôlego, não apenas por ter ouvido o cão falar, mas também ao ver a joia vermelha oculta no pelo branco do pescoço.
– Daemon, este é lorde Ladvarian – disse Saetan. – Ladvarian, este é...
*Um príncipe dos senhores da guerra de joia negra*, disse Ladvarian, pulando à frente deles. *É um príncipe dos senhores da guerra de joia negra. Preciso contar a Kaelas.*
O cão saiu em disparada pelo corredor e desapareceu.
– Mãe Noite! – disse Saetan, baixinho. – Vamos logo. Vamos sair daqui antes que encontremos mais alguém. Você já teve ensinamentos suficientes para o primeiro dia na corte.
– É parente – disse Daemon quase sem voz, seguindo Saetan. – Quando Lucivar disse que um tal Ladvarian ficaria satisfeito em me ver, pensei... A não ser que estivesse falando de outra pessoa.
– Não, este é Ladvarian. Ele próprio teria ido à feira de serviços procurá-lo, mas os parentes não são muito bem recebidos na Pequena Terreille. Sua capacidade de explicar o comportamento dos parentes aos humanos e vice-versa faz dele um ser único. E a influência que exerce sobre o príncipe Kaelas não deve ser menosprezada.
– Quem é Kaelas?
Saetan deu um olhar estranho.
– Vamos deixar Kaelas para outro dia.
Daemon viu a casinha bem cuidada e o pátio limpo.
– Sempre quis que Tersa vivesse num lugar assim.
– Ela vive tranquilamente aqui – disse Saetan, abrindo a porta da frente. – Uma viúva-negra assistente lhe faz companhia. E tem também o Mikal – acrescentou, enquanto seguiam o som de vozes até a cozinha.
Daemon entrou na cozinha e olhou rapidamente para o rapaz sentado à mesa. Em seguida, fixou os olhos em Tersa, que resmungava consigo mesma enquanto cozinhava. O cabelo preto estava tão embaraçado quanto se recordava, mas o vestido verde-escuro estava limpo.
O rapaz engoliu apressadamente um pedaço de bolinho de avelã antes de perguntar, num tom de voz desconfiado:
– Quem é ele?
Tersa ergueu os olhos dourados. Foi tomada pela alegria e sorriu de maneira radiante.
– É o garoto – disse, lançando-se nos braços de Daemon.
– Olá, querida – disse Daemon, sentindo-se inundado pelo prazer de revê-la.
– Não é um garoto – disse o garoto.
– Mikal – repreendeu Saetan.
– É, sim, um garotão – disse Tersa, com firmeza na voz. Puxou Daemon para a mesa. – Sente-se. Temos comida. Você devia comer.
Daemon se sentou diante do rapaz, que claramente o via como um rival inoportuno.
– Você não devia estar na escola?
Mikal revirou os olhos.
– Não é dia de escola.
– Mas você terminou as tarefas que sua mãe mandou fazer antes de vir para cá? – perguntou Saetan serenamente, aceitando o copo de vinho tinto que Tersa lhe ofereceu, mas sem desviar os olhos de Mikal.
Mikal se contorceu sob aquele olhar informado e por fim murmurou:
– Quase tudo.
– Nesse caso, depois que tivermos comido, irei acompanhá-lo até em casa e poderá terminá-las – disse Saetan.
– Mas tenho que ajudar Tersa a arrancar as ervas daninhas do jardim – protestou Mikal.
– Elas não vão fugir – disse Tersa, serenamente. Olhou para os dois “garotos”, franziu a sobrancelha para os copos de leite que tinha nas mãos, colocou os dois à frente de Mikal e deu uns tapinhas no ombro de Daemon. – Você já tem idade para beber vinho.
– Graças às trevas – murmurou Daemon.
A refeição transcorreu com pouca conversa. Saetan quis saber como ia o trabalho escolar de Mikal e obteve as respostas evasivas que esperava. Tersa tentou fazer comentários banais sobre a casa e o jardim, mas eles iam se tornando cada vez mais incoerentes.
Daemon cerrou os dentes. Não gostava de vê-la se esforçando tanto para caminhar na fronteira da sanidade mental por sua causa, e a preocupação e o rancor nos olhos de Mikal ao ver Tersa perdendo o controle feriam-no profundamente.
Saetan pousou o copo de vinho na mesa e se levantou.
– Vamos, filhote – disse a Mikal. – Agora vou levá-lo para casa.
Mikal pegou rapidamente um bolinho de avelã.
– Ainda não terminei de comer.
– Traga o bolinho.
Quando ambos saíram, Daemon olhou para Tersa.
– É bom vê-la de novo – disse, ternamente.
Os olhos de Tersa se encheram de pesar.
– Não sei ser sua mãe.
– Basta ser Tersa – disse, pegando em sua mão. – Foi sempre mais do que suficiente.
Sentiu que Tersa absorvia a aceitação. Por fim, ela sorriu.
– Você está bem?
Ele devolveu o sorriso e mentiu:
– Sim, estou bem.
A mão de Tersa apertou a de Daemon. Seus olhos ficaram desfocados, distantes e previdentes.
– Não, não está. Mas vai ficar. – Em seguida se levantou. – Vamos. Vou lhe mostrar meu jardim.
Saetan se sentou no sofá do escritório. Não precisava usar uma sonda psíquica para saber quem estava do outro lado da porta. O odor de medo era suficiente.
– Entre.
Wilhelmina Benedict entrou, hesitando a cada passo.
Enquanto a observava, Saetan tentava controlar o temperamento. Não era culpa dela. Há treze anos, era praticamente uma criança. Nada poderia ter feito.
Mas se Jaenelle não tivesse ficado em Chaillot para proteger Wilhelmina, aquela última e terrível noite em Briarwood não teria acontecido. Ela teria deixado a família que não compreendera nem estimara o que ela era. Teria vindo para Kaeleer e a seu encontro – e teria evitado o violento estupro que lhe deixara profundas cicatrizes emocionais.
Não era justo responsabilizar Wilhelmina pelo que acontecera a Jaenelle, porém não deixava de ficar ressentido com a presença da moça na casa que lhe pertencia.
– Como posso ajudá-la, lady Benedict?
– Não sei o que fazer.
– Em relação a quê?
– Todos os que assinaram contrato têm alguma coisa para fazer, mesmo que seja apenas elaborar uma lista de suas habilidade. Mas eu...
Apertou as próprias mãos com tanta força que Saetan teve pena dos ossos delicados.
– Todos aqui me odeiam e eu não sei por quê – disse Wilhelmina, a voz cada vez mais aguda de desespero.
Saetan lhe indicou a extremidade oposta do sofá.
– Sente-se. – Aguardando o cumprimento da ordem, imaginou como aquela mulher medrosa e emocionalmente frágil tinha conseguido viajar através de um dos portões entre os reinos e depois obtido um contrato na feira de serviços. – Odiar é uma palavra forte demais. Ninguém aqui odeia você.
– Yaslana odeia. E você também.
– Não odeio você, Wilhelmina – disse serenamente. – Embora fique ressentido com a sua presença.
– Por quê?
Diante do sofrimento e da desorientação da mulher, Saetan decidiu lhe oferecer a cortesia da honestidade.
– Porque foi por sua causa que Jaenelle não abandonou Chaillot a tempo.
Ficou espantado ao vê-la mudar a fisionomia de assustada para feroz, mas percebeu que não havia motivo para alarme. Devia ter procurado o que havia em comum entre Wilhelmina e Jaenelle em vez de deixar que o passado nublasse seu pensamento.
– Você sabe onde encontrá-la, não sabe?
Parecia prestes a sacudi-lo para arrancar a resposta. Intrigado com a mudança na moça, Saetan ficou se perguntando se ela teria coragem de tentar.
– Neste exato momento, não sei – respondeu com tranquilidade. – Mas em breve voltará para casa.
– Para casa? – A ferocidade se transformou novamente em perplexidade, logo em seguida em reflexão, quando passou o olhar pelo escritório. – Para casa?
– Sou o pai adotivo de Jaenelle. – E como não houve reação, acrescentou: – Lucivar é seu irmão.
Wilhelmina deu um pulo como se tivesse sido picada por uma agulha. Tinha os olhos azuis repletos de algo semelhante a horror enquanto olhava estarrecida para Saetan.
– Irmão?
– Sim. Se lhe serve de consolo, Lucivar e você não têm qualquer relação entre si.
O alívio de Wilhelmina foi tão evidente que Saetan quase riu.
– Ela gosta dele? – perguntou Wilhelmina, baixinho.
Não conseguiu evitar. Riu abertamente.
– A maior parte do tempo. – Depois a examinou. – Por isso veio a Kaeleer? Para procurar Jaenelle?
Wilhelmina assentiu.
– Todos disseram que ela tinha morrido, que fora assassinada pelo príncipe Sadi, mas eu sabia que não era verdade. Ele jamais machucaria Jaenelle. Achei que ela tinha ido morar com um de seus amigos secretos ou com seu professor. – Olhou para ele como se estivesse comparando o que via com algo que sabia. – Foi você, não foi? Foi você que ela procurou atrás de lições.
– Sim. – Aguardou. – O que a fez pensar em vir para Kaeleer?
– Foi Jaenelle que me disse. Depois. – Wilhelmina passou um dedo pela joia azul-safira. – Quando o príncipe Sadi libertou as joias negras para escapar dos hayllianos que tinham vindo atrás dele, ouvi Jaenelle gritando “fluam, fluam”. Foi o que fiz. Quando tudo acabou, me vi usando uma joia azul-safira. Todos ficaram chateados, pensando que eu havia realizado a oferenda às trevas de alguma forma. Mas a joia não era minha. Era de Jaenelle. Eu não conseguia usá-la, mas ela me protegia. Às vezes, quando estava assustada ou não sabia o que fazer, a joia sempre me oferecia a mesma resposta: Kaeleer. Saí de casa porque Bobby... – Cerrou os lábios e respirou fundo duas vezes. – Saí de casa. Assim que completei 20 anos, realizei a oferenda. E recebi esta joia. A outra desapareceu.
– E passou os últimos anos tentando chegar aqui?
Ela hesitou.
– Durante muito tempo, não me sentia preparada. Um dia, comecei pensando se algum dia estaria preparada. Por isso, vim de qualquer maneira.
Ela tinha mais coragem do que aparentava.
– Diga-me uma coisa, Wilhelmina – pediu Saetan, docilmente. – Se há treze anos Jaenelle tivesse decidido deixar Chaillot e tivesse lhe pedido para acompanhá-la, teria feito isso?
Ela demorou muito para responder. Por fim, relutante, disse:
– Não sei. – Olhou ao redor, com uma expressão triste. – Aqui é o lugar de Jaenelle, não o meu.
– Você é irmã de Jaenelle e uma feiticeira de joia azul-safira. Não faça julgamentos precipitados. – Tentarei fazer o mesmo. – Além disso, teria tido uma opinião muito diferente deste lugar se tivesse nos visitado quando dez feiticeiras adolescentes moravam aqui – acrescentou, com uma voz propositadamente pesarosa.
Wilhelmina arregalou os olhos.
– Está falando das rainhas que estão aqui?
– Sim.
– Deve ter sido difícil.
– É uma forma de colocar a questão.
Wilhelmina baixou a cabeça para reprimir uma gargalhada. Quando se atreveu a voltar a olhar para Saetan, ele pôde ver que estava refletindo, reavaliando o Paço e as pessoas que ali habitavam.
– Continuo sem nada para fazer – disse, vacilante.
Ao perceber a expectativa quase esperançosa nos olhos da mulher, compreendeu que ela havia dado um grande passo para aceitá-lo como patriarca da família – e esperava que cumprisse os deveres inerentes a essa posição.
– Lucivar não disse nada? – perguntou, sabendo que a única razão pela qual ele a havia trazido era afastá-la de quem quer que tentasse usar a relação que tinha com Jaenelle.
Pela primeira vez, um fragmento de fúria tremeluziu no olhar de Wilhelmina.
– Ele me disse para tentar não desmaiar, pois isso desapontaria os machos.
Saetan suspirou.
– Vindo de Lucivar, foi quase uma delicadeza. Mas ele tem razão. Foi grosseiro, mas não deixa de ter razão. Os machos reagem energicamente à angústia feminina.
Wilhelmina franziu a sobrancelha.
– É por isso que aquele imenso gato listrado está sempre me seguindo?
Saetan olhou para a porta do escritório. Uma rápida pergunta num fio psíquico masculino lhe deu a resposta.
– Chama-se Dejaal. É filho do príncipe Jaal. Autoproclamou-se seu protetor até que se sinta à vontade com os outros machos do Paço.
– É parente? Ouvi histórias...
– Os Sangue da Pequena Terreille não veem grande utilidade nos parentes e os parentes veem ainda menos utilidade nos Sangue da Pequena Terreille... – explicou Saetan, para logo acrescentar baixinho – ...exceto quando têm fome.
Levantando-se, ofereceu a mão a Wilhelmina e a conduziu até a porta. Invocou uma escova e estendeu a ela.
– Se quer se ocupar de uma coisa que ajudará a todos neste momento, leve Dejaal até um dos jardins externos e dê uma escovada nele. Assim que se habituar à sua presença, talvez fique mais fácil estar entre nós.
– Se é para eu ficar mais tranquila, talvez fosse melhor escovar Lucivar – disse, com um ligeiro indício de mordacidade.
Saetan desatou a rir.
– Minha querida, se quiser se dar bem com Lucivar, mostre a ele essa veia mordaz. Tendo vivido com Jaenelle durante os últimos oito anos, ele reconhecerá sua essência.
– Tem certeza de que este é o caminho de volta até o Paço? – perguntou Daemon se desviando de um galho.
*Saímos do caminho*, disse Ladvarian. *Temos de atravessar o riacho, mas acho que não há uma ponte.*
– Não preciso de uma ponte para atravessar o riacho.
Ladvarian olhou para os sapatos de Daemon.
*Ficaria todo molhado.*
– É a vida – resmungou Daemon.
Ao deixar a casa de Tersa, encontrara Ladvarian aguardando para acompanhá-lo de volta ao Paço. A princípio, pensou se aquilo não seria um tipo leve de insulto, insinuando que não conseguia encontrar o caminho sozinho. Depois, quando Ladvarian se ofereceu para lhe mostrar um atalho entre Halaway e o Paço, pensou que poderia estar sendo levado para uma emboscada. Por fim, percebeu que o cão queria simplesmente passar algum tempo conhecendo o macho cujos deveres faziam dele uma parte importante da vida da rainha.
O que não gostava era da impressão de estar sendo rotulado como um humano que precisava de cuidados.
– Olha, isso tem que parar. Posso não ser um guerreiro eyrieno, mas sou capaz de andar alguns quilômetros sem cair, consigo atravessar um riacho sem me molhar e não preciso que uma bola de pelos baixinha me trate como se eu não fosse capaz de sobreviver numa casa sem criados. Entende?
Ladvarian balançou o rabo.
*Sim. Quer ser tratado como um macho de Kaeleer.*
Daemon se virou e o examinou.
– Foi isso que eu disse?
*Sim.* Ladvarian correu na diagonal. *Por aqui.*
Um minuto depois, chegaram ao riacho. Ladvarian trotou até a margem e saltou. Normalmente, teria aterrissado no meio do riacho. Em vez disso, ficou pairando 30 centímetros acima da água.
Daemon olhou para o riacho, depois para Ladvarian. Em seguida, caminhou pelo ar sobre o riacho, até a outra margem.
*Jaenelle que o ensinou a fazer isso?*
Recordando a tarde em que Jaenelle lhe mostrara como caminhar no ar, Daemon sentiu um aperto no peito.
– Sim – disse, docilmente.
*Ela também me ensinou.*
Ladvarian parecia satisfeito.
Depois de atravessarem outra fileira de árvores, Daemon avistou o caminho. Quando a estrada a norte de Halaway atravessava a ponte, tornava-se o caminho que levava ao Paço, e os terrenos que se estendiam à sua frente faziam parte da propriedade da família.
Seguiu na direção do caminho, mas se virou ao ouvir Ladvarian rosnando, na expectativa de um ataque apesar das demonstrações de amizade do cão.
Ladvarian, porém, estava virado para o local de onde tinham vindo. A ponte estava escondida sob a ondulação do terreno, mas o vento soprava daquela direção.
– O que foi? – perguntou Daemon, abrindo ligeiramente a primeira barreira interior de modo a perscrutar a área ao redor.
*Humanos se aproximam. Três carruagens. Avisei os outros machos, mas temos de voltar.*
Ladvarian se dirigiu a passos rápidos para o Paço, em linha reta, forçando Daemon a aumentar o ritmo para acompanhá-lo.
– Qual é o problema de humanos virem ao Paço?
O odor psíquico de Ladvarian se tornou hostil.
*Há alguma coisa errada com eles.*
A repentina ferocidade era um nítido lembrete de que o pequeno macho que corria a seu lado era também um senhor da guerra de joia vermelha e, se tivesse treinado com Lucivar, um lutador bem mais impressionante do que se poderia suspeitar.
*Bacurau o levará até o Paço. Ele é mais rápido.*
Antes que Daemon pudesse refletir sobre aquele comentário enigmático, ouviu o som de cascos vindo em sua direção.
Em outras circunstâncias, montar um garanhão sem sela não seria a melhor das ideias. No entanto, o vento e os movimentos do cavalo levantaram ligeiramente a franja que lhe encobria a fronte, e, por um breve instante, Daemon viu a joia cinza escondida. Apesar das diferenças entre as duas espécies, reconheceu o agressivo odor psíquico de outro príncipe dos senhores da guerra. No entanto, não se moveu quando o cavalo parou a seu lado e Ladvarian beliscou a perna dele.
*Vá, Daemon. Agora.*
Mal teve tempo de montar e se agarrar à longa crina. Bacurau partiu num galope desenfreado pelo meio do mato. Imaginando se Ladvarian seria capaz de acompanhá-los naquele ritmo, olhou para trás e viu o cão equilibrado na garupa do cavalo.
Quando Bacurau avançou pelo último trecho longo do caminho, Daemon deu um puxão na crina do animal e, receando que o cavalo deslizasse no cascalho àquela velocidade, gritou:
– Mais devagar!
Sentiu uma ligeira subida e depois... Não ouviu nada. Não ouviu os cascos nem o cascalho se espalhando. Ao espreitar por cima do ombro esquerdo de Bacurau, viu as patas dianteiras se deslocando pelo ar, na direção da porta principal.
Quando já estavam perto a ponto de verem os detalhes da cabeça do dragão na aldraba da porta, Bacurau pousou nas patas traseiras e por fim parou, a um palmo da escadaria.
Daemon desmontou e subiu os degraus, sem saber se as pernas tremiam devido aos músculos tensos ou aos nervos em frangalhos. Ao chegar à porta, olhou para trás, mas não havia sinais de Bacurau, ainda que sentisse a presença do garanhão.
– Fogo do Inferno – murmurou, quando um criado abriu a porta.
Ladvarian passou correndo à sua frente e desapareceu.
Daemon entrou devagar, sentindo a pressão da hostilidade masculina. Além do criado, a única pessoa visível no salão principal era Beale, o mordomo, mas duvidava que eles fossem os únicos presentes.
– Parece que estamos prestes a ter companhia – disse Daemon ajeitando o cabelo e o casaco preto.
– Parece que sim – respondeu Beale. – Se não se importar de aguardar aqui, o príncipe Yaslana e o senhor supremo estão chegando.
Daemon olhou ao redor e entrou na sala de visitas formal, posicionando-se de forma a não ser visto por quem quer que passasse pela porta. Observando a movimentação, Beale mudou de posição, colocando-se diretamente na linha de visão de Daemon.
*Lucivar*, chamou Daemon através de um fio masculino cinza-ébano.
*Estou entrando pela porta de serviço nos fundos do Paço.*
*Se algum deles conseguir passar por nós sem ser detectado, é possível que chegue à área dos aposentos?*
*A única forma de chegar aos andares de cima a partir dessa área do Paço é pela escadaria na sala de visitas informal. Não se preocupe. Kaelas está lá. Nada passará por essa escadaria. E o senhor supremo está descendo por lá.*
Daemon ouviu as carruagens parando diante do Paço, viu Beale acenando com a cabeça ao criado quando alguém bateu à porta.
Passos. Farfalhar de roupas. A voz de uma mulher.
– Exijo ver Wilhelmina Benedict.
A raiva fria deslizou tão rápido dentro dele que Daemon se viu no limiar assassino antes mesmo de perceber que tinha dado o primeiro passo nessa direção. Há treze anos que não ouvia aquela voz, mas a reconheceu.
– Lady Benedict não está disponível – respondeu Beale, impassível.
– Não me digam. Sou a rainha de Chaillot e...
Daemon saiu da sala de visitas.
– Boa tarde, Alexandra – disse, com uma tranquilidade exagerada. – Muito prazer em revê-la.
– Você! – Alexandra o fitou, olhos arregalados e aterrorizados. Então veio a raiva. – Foi você que organizou aquela “visita” a Briarwood, não foi?
– No fim das contas, era o mínimo que eu podia fazer. – Deu um passo na direção dela. – Eu avisei que inundaria de sangue as ruas de Beldon Mor se me traísse.
– Também disse que me mandaria para a sepultura.
– Decidi que deixá-la viver seria um castigo bem mais rigoroso.
– Desgraçado! Você...
Alexandra começou a tremer, assim como todos os que a acompanhavam. O intenso e ardente frio o atingiu no momento seguinte, deixando-o tão aturdido que se afastou do limiar assassino.
Um minuto depois, Saetan entrou no grande salão.
Será que é assim que fico quando estou frio?, perguntou-se Daemon, incapaz de desviar o olhar daqueles olhos vítreos e sonolentos e do sorriso malevolamente dócil.
– Lady Angelline. – A voz de Saetan ribombou no Paço como um suave trovão. – Sempre soube que um dia nos encontraríamos para um acerto de contas, mas não pensei que fosse tão tola para vir até aqui.
Alexandra cerrou os punhos, mas não conseguiu deixar de tremer.
– Vim para levar minhas netas de volta para casa. Depois disso, iremos embora.
– Lady Benedict será informada de sua presença. Se desejar vê-la, marcaremos um encontro. Isto é, sempre com alguém a acompanhando, claro.
– Se atreve a insinuar que represento algum tipo de perigo?
– Não insinuo. Sei que representa. A única questão é a dimensão desse perigo.
A voz de Alexandra subiu de tom.
– Você não tem o direito...
– Aqui sou eu quem governo – rosnou Saetan. – São vocês que não têm o direito, senhora. Nenhum. Exceto os que lhes concedo. E concedo-lhes muito pouco.
– Quero ver minhas netas. As duas.
Alguma coisa muito feroz tremeluziu no fundo dos olhos de Saetan. Olhou para Leland e Philip e voltou sua atenção para Alexandra. Sua voz se converteu numa cantilena monocórdia:
– Passei dois longos e terríveis anos pensando na execução perfeita para vocês três. Dois longos e terríveis anos é o tempo que levarão para definhar até a morte, e a cada minuto a dor sentida irá além do imaginável. Neste caso, porém, preciso da anuência de minha rainha antes de começar. – Virou-lhes as costas. – Beale, prepare acomodações para nossos hóspedes. Ficarão conosco por algum tempo.
Ao passar por Daemon em direção ao escritório, seus olhares se cruzaram.
Daemon olhou para Leland, que estava agarrada a Philip e chorando baixinho; para as outras rainhas e seus respectivos machos, encolhidos de medo. Por fim, para Alexandra, que estava pálida e o fitava com olhos apavorados.
Virando-se, foi na direção do escritório e reparou em Lucivar instalado no fundo do corredor.
*Tenha cuidado, bastardo*, avisou Lucivar.
Assentindo com a cabeça, Daemon entrou no escritório.
Saetan estava de pé junto à mesa, servindo-se diligentemente de um copo de conhaque. Ergueu os olhos, serviu outro copo e o ofereceu a Daemon. Este o aceitou e bebeu um gole substancial, na esperança de que o aquecesse um pouco.
– A raiva de outro macho não deveria afetá-lo a ponto de se afastar do limiar assassino – comentou Saetan, calmamente.
– Na verdade, nunca senti nada como aquilo.
– Mas irá afetá-lo se voltar a sentir?
Daemon olhou para o homem a um braço de distância e compreendeu que era o administrador da corte das trevas que estava lhe colocando a questão.
– Não.
Movendo-se com cautela, como se soubesse que qualquer movimento repentino poderia libertar a violência que ainda bramia dentro de si, Saetan se apoiou na mesa de madeira escura.
Também controlando os movimentos, Daemon se serviu de outro copo de conhaque.
– Acha que a rainha vai consentir?
– Não. Uma vez que os familiares só fizeram mal a ela e a mais ninguém, vai se opor à execução. Mas não deixarei de lhe apresentar o pedido.
Daemon fez o conhaque girar lentamente no copo.
– Se por alguma razão não se opuser, posso assistir?
O sorriso de Saetan era encantador e cruel.
– Meu querido príncipe, se Jaenelle der seu consentimento, poderá fazer muito mais do que simplesmente assistir.
Lorde Magstrom suspirou ao pousar uma pilha de pastas na grande mesa, que já estava atulhada. Suspirou pela segunda vez no momento em que deu uma cotovelada involuntária em uma das pilhas, espalhando pelo chão o conteúdo da volumosa pasta do topo. Apoiando-se num joelho, começou a recolher os papéis.
Graças às trevas que o dia de reivindicação terminara e que a feira de serviços de outono fora oficialmente encerrada. Talvez devesse recusar o trabalho na próxima primavera. As horas exaustivas eram incompatíveis com um homem de sua idade, mas o que o atormentava era ver a esperança e o desespero desoladores nos rostos dos imigrantes. Era difícil olhar para uma mulher da mesma idade de sua neta e não desejar ajudá-la a encontrar um local para viver. Ou conhecer um homem cortês, mas que tivera o corpo horrivelmente marcado após repetidas tentativas de lhe “ensinar obediência”, e não desejar enviá-lo para uma aldeia tranquila onde pudesse recuperar o respeito por si próprio, sem ter de imaginar o que iria acontecer sempre que a rainha do território olhasse em sua direção.
Não havia lugares assim na Pequena Terreille. Não mais. No entanto, eram as rainhas deste território que continuavam oferecendo contratos e atulhando as cortes de imigrantes. As outras rainhas de Kaeleer eram mais precavidas e seletivas. Por isso, ele se esforçava ao máximo para encontrar os imigrantes que tinham uma habilidade, um sonho ou alguma coisa que pudesse lhes garantir um contrato fora da Pequena Terreille, e levava essas pessoas ao conhecimento dos machos do primeiro círculo de Jaenelle Angelline. Quanto aos outros, preenchia os contratos e desejava-lhes boa sorte e uma boa vida – e ficava imaginando se a nova vida na Pequena Terreille seria tão diferente assim da vida da qual estavam tentando fugir.
E tentava não se lembrar daqueles que não tinham tido a sorte de conseguir qualquer tipo de contrato e que eram enviados de volta para Terreille.
Magstrom balançava a cabeça enquanto reorganizava os papéis. Que trabalho malfeito! Arquivaram as listas de entrada da imigração no mesmo arquivo das listas de serviços e daqueles que iriam voltar a Terreille. Como é que os escrivães...?
A mão apertou uma folha de papel. A lista de entrada haylliana. Mas ele próprio havia se encarregado da lista haylliana – até o final do terceiro dia, quando Jorval decidiu cuidar dela. Havia vinte nomes na lista que entregara a Jorval. Agora havia apenas doze. Será que alguém tinha copiado a lista colocando apenas os nomes daqueles que assinaram contratos? Não, porque o nome de Daemon Sadi não constava da lista.
Magstrom remexeu os papéis, em busca da lista haylliana de quem estava voltando a Terreille, que seria usada pelos guardas para se certificar de que ninguém tentaria escapar e passar à clandestinidade. A lista tinha quatro nomes. Uma vez que Sadi estava em Dhemlan, restavam três pessoas das quais não havia qualquer informação, mas que tinham estado na lista de entradas que entregara a Jorval.
Ao ouvir o som de passos se aproximando, voltou a enfiar os papéis na pasta, resmungou baixinho ao se levantar e pousou a pasta numa pilha onde não pudesse ser derrubada.
Os passos se detiveram à porta e depois prosseguiram.
Magstrom aguardou, usando a arte para sondar a área. Ninguém. No entanto, sentiu um arrepio de inquietação percorrer seu corpo. Impelido por essa inquietação, deixou o prédio e foi depressa até a estalagem onde se hospedara durante a feira de serviços. Assim que chegou ao quarto, começou a fazer as malas.
Em circunstâncias normais, deveria procurar outros membros do conselho e informá-los sobre as disparidades nas listas hayllianas. Talvez fosse apenas um simples erro administrativo. Mas quem se “esqueceria” de colocar um príncipe dos senhores da guerra como Daemon Sadi na lista? A menos que a omissão tivesse sido deliberada. Nesse caso, quem poderia saber quantas outras listas teriam disparidades semelhantes? E quem sabe o que poderia acontecer às provas de tais disparidades se falasse com os membros errados do conselho?
Se viajasse pelo vento branco, o menos exigente de todos, poderia chegar à fronteira de Nharkhava ao nascer do dia. Uma de suas netas vivia naquela região, e Kalush, a rainha de lá, lhe dera um visto especial que permitia visitar o território sem ter de passar pelas formalidades de praxe. E se, assim que chegasse à teia de desembarque na fronteira, solicitasse uma escolta até a casa da neta... Os guardas poderiam pensar que era um pedido estranho, mas não se recusariam a auxiliar um idoso. Depois de dormir um pouco, redigiria uma carta para o senhor supremo explicando as disparidades nas listas.
Talvez não passasse de um erro administrativo. Mas se fosse o primeiro indício de problemas, pelo menos Saetan ficaria de sobreaviso – e saberia onde começar a procurar.
Jorval olhou para a folha sob a mesa e para os papéis enfiados apressadamente na volumosa pasta. Ora, ora. O velho tolo andou bisbilhotando. Que pena.
Magstrom podia ter sido um espinho no conselho das trevas durante muitos anos, mas não deixava de ter sua utilidade, sobretudo porque era o único membro do conselho que o senhor supremo se dispunha a receber.
Mas parecia que a utilidade de Magstrom estava chegando ao fim. E não podia se esquecer de que, se não fosse pela interferência de Magstrom na tarde do dia anterior, a sacerdotisa das trevas poderia ter sua arma de joia negra bem guardada em algum lugar seguro, onde pudesse encontrar utilidade.
Estava tentado a enviar alguém para cuidar de Magstrom nessa mesma noite, mas isso poderia levar determinadas pessoas – como o senhor supremo – a investigar a feira de serviços.
Podia esperar. Magstrom não podia ter visto tanto assim. E se alguma questão fosse levantada, era relativamente fácil demitir um ou dois funcionários por negligência e se desmanchar em pedidos de desculpas.
Mas na primeira oportunidade...
Alexandra estava encolhida na cadeira em frente à mesa de madeira escura.
O senhor supremo solicita sua presença.
Solicita? Exige era mais adequado. No entanto, o escritório estava vazio quando o mordomo de rosto sem expressão abriu a porta para ela. Quinze minutos tinham se passado e ela ainda estava esperando. Ótimo. Não tinha nenhuma pressa de voltar a ver o senhor supremo.
Reforçou o feitiço de aquecimento que havia colocado no xale. Em seguida, sorriu diante da inutilidade de procurar um pouco de calor naquele lugar. Não era bem o lugar – que na verdade era bem bonito depois que a sensação opressiva e escura que transmitia era superada –, eram as pessoas que provocavam calafrios.
Sabia que não fora por cortesia que tinham servido o jantar à sua comitiva numa pequena sala de jantar próxima dos quartos de hóspedes. O fato de Alexandra estar física e emocionalmente exaurida para enfrentar os encontros com as outras pessoas que viviam ali de nada importava ao senhor supremo. Também não se importava se ela não conseguisse engolir uma colherada de comida se tivesse de partilhar a mesa com Daemon Sadi.
Não, seus acompanhantes e ela tinham jantado desacompanhados porque ele não os queria à sua mesa. E agora, quando tudo o que mais queria era ir para o quarto e dormir, ele solicitara sua presença – e não tinha tido sequer a delicadeza de estar presente assim que ela chegou.
Devia ir embora. Era rainha, e o insulto de deixá-la à espera já se prolongara demais. Se o senhor supremo quisesse vê-la, que fosse a seu encontro.
Quando se levantou, uma porta se abriu e o odor psíquico escuro de Saetan inundou o recinto. Deixou-se cair na cadeira. Precisou de autocontrole para não se encolher de medo quando Saetan passou por ela e se instalou na cadeira atrás da mesa de madeira escura.
– Quando um macho solicita um encontro com uma rainha, não a deixa à espera – disse Alexandra, tentando evitar que a voz estremecesse.
– E você, que dá tanta importância à cortesia, nunca deixou ninguém à espera? – perguntou Saetan, calmamente, depois de uma longa pausa.
A cintilação estranha e ardente nos olhos dele a assustava, embora pressentisse que esta seria sua única oportunidade. Se recuasse agora, Saetan nunca concederia o que quer que fosse.
Colocou na voz o desdém frio que usava sempre que um macho da aristocracia precisava ser informado de seu lugar.
– Aquilo que uma rainha faz é irrelevante.
– Verdade. Uma rainha pode fazer o que bem quiser, a despeito da crueldade do ato, a despeito dos danos que causa.
– Não distorça minhas palavras – retrucou, esquecendo-se de tudo o mais sobre o senhor supremo, exceto que era um macho e não devia tratar uma rainha desse jeito.
– Minhas desculpas, senhora. Uma vez que já as distorce enormemente, farei um esforço para não contribuir.
Alexandra refletiu por um momento.
– Você está tentando me provocar. Por quê? Para poder justificar minha execução?
– Ah, já tenho todas as justificativas necessárias para uma execução – respondeu Saetan, calmamente. – Não, é mais simples do que isso. O fato de estar apavorada por minha causa não nos leva a lugar algum. Se estiver irritada, pelo menos será capaz de falar.
– Nesse caso, quero as minhas netas de volta.
– Você não tem qualquer direito sobre elas.
– Tenho todos os direitos!
– Você se esquece de uma coisa muito básica, Alexandra. Wilhelmina tem 27 anos. Jaenelle tem 25. A maioridade é atingida aos 20. Você já não tem qualquer poder de decisão sobre a vida delas.
– Nem vocês, então. Cabe a elas decidir se ficam ou se vão.
– Já decidiram. E eu tenho muito mais poder de decisão sobre a vida delas do que vocês. Wilhelmina assinou um contrato com o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih, que, por sua vez, serve na corte das trevas. Eu sou o administrador. Por isso, a hierarquia da corte me concede alguns direitos decisórios sobre sua vida.
– E Jaenelle? Também serve nessa corte das trevas?
Saetan a olhou de forma estranha.
– Você ainda não entendeu, não é? Jaenelle não serve, Alexandra, porque é a rainha.
Por um momento, a convicção na voz de Saetan quase a convenceu. Não. Não. Se Jaenelle fosse rainha, ela teria sabido. Semelhantes reconhecem semelhantes. Ah, poderia haver uma rainha governando esta corte, mas não podia ser Jaenelle.
Mas a declaração de Saetan deu-lhe uma arma.
– Se Jaenelle é a rainha, você não tem direito de controlar sua vida.
– Nem vocês.
Alexandra agarrou os braços da cadeira e cerrou os dentes.
– A maioridade exige certas condições que precisam ser cumpridas. Se uma criança for considerada incapaz de alguma maneira, a família mantém o direito de cuidar de seu bem-estar mental e físico e de tomar decisões em seu nome.
– E de quem é a decisão de considerar a criança incapaz? Da família que exerce controle sobre ela? Que conveniente. E não se esqueça, está falando de uma rainha muito superior a você.
– Não esqueço de nada. E não venha com moralismos para cima de mim, como se tivesse a menor noção de moral.
– Muito bem. Vamos analisar a sua noção de moralidade. Diga-me, Alexandra, como justifica o tempo em que era óbvio que Jaenelle estava passando fome? Como justifica as queimaduras de corda na qual era amarrada, os machucados resultantes dos espancamentos? Ou apenas justifica tudo isso como disciplina necessária para controlar uma criança indisciplinada?
– É mentira! – gritou Alexandra. – Nunca vi qualquer indício disso.
– Apenas a jogou em Briarwood e não se deu o trabalho de vê-la de novo?
– É claro que a visitava! Visitava-a sempre que estava estável o bastante para receber visitas.
Alexandra fez uma pausa. Sentiu uma fisgada no peito ao lembrar da maneira distante, quase acusatória, que Jaenelle olhava para ela e para Leland quando iam visitá-la. A cautela e a desconfiança nos olhos da moça. Lembrava como tinha sofrido, como Leland tinha chorado baixinho durante a viagem de volta para casa, após o Dr. Carvay ter-lhes dito que Jaenelle estava perturbada demais para receber visitas. E recordou as vezes em que se sentira aliviada por Jaenelle estar escondida num lugar seguro, onde os outros não teriam conhecimento direto de suas histórias fantasiosas.
Saetan resmungou.
– Você fica aí sentado me julgando, mas não faz ideia de como era tentar lidar com uma criança que...
– Jaenelle tinha 7 anos quando a conheci.
Por um momento, Alexandra não conseguiu respirar. Sete. Podia imaginar aquela voz envolvendo uma criança, tecendo mentiras.
– Então quando ela contava histórias sobre unicórnios e dragões você a encorajava?
– Sim, eu acreditava nela.
– Por quê?
O sorriso de Saetan era terrível.
– Porque eles existem.
Alexandra balançou a cabeça, sem palavras devido à colisão de tantos pensamentos, sentimentos demais.
– O que seria necessário para convencê-la, Alexandra? Ser empalada num chifre de unicórnio? Continuaria insistindo que era uma história fantasiosa?
– Você podia levar qualquer um a acreditar em qualquer coisa.
O olhar de Saetan ficou vítreo.
– Compreendo. – Levantou-se. – Não me interessa o que pensa de mim. Se eu sentir uma faísca de angústia em Wilhelmina ou em Jaenelle causada por vocês, irei atacá-los com todas as minhas forças. – Fitou-a com aqueles olhos frios, tão frios. – Não sei como Jaenelle foi parar com você. Não sei por que as trevas colocariam um espírito tão extraordinário sob os cuidados de alguém como você. Você não a merecia. Não merecia sequer conhecê-la.
Ele saiu do escritório. Alexandra ficou sentada durante muito tempo.
Enganos e mentiras. O senhor supremo havia mencionado que Jaenelle tinha 7 anos quando se conheceram, mas que idade teria quando começou a sussurrar em seu ouvido as mentiras docemente envenenadas? Talvez tivesse criado ilusões de unicórnios e dragões que parecessem reais e convincentes. O sentimento de apreensão que Jaenelle às vezes lhe despertava talvez fosse um traço de Saetan e não da própria criança.
Não podia negar os horrores que foram cometidos em Briarwood. Mas teriam aqueles homens executado tais ações de livre e espontânea vontade ou haveria um titereiro invisível puxando as cordas? Já sentira a crueldade de Daemon Sadi. Não seria de esperar que seu pai lhe tivesse refinado o gosto? Teriam a dor e o sofrimento sido causados para tornar Jaenelle emocionalmente dependente desses homens?
Dorothea tinha razão. O senhor supremo era um monstro. Alexandra só tinha uma certeza: faria o que fosse necessário para afastar Wilhelmina e Jaenelle de Saetan.
Sentiu as mãos de Daemon deslizando pelas omoplatas e parando nos ombros um momento antes de aqueles dedos fortes e esguios começarem a massagear os músculos tensos.
– Você contou a ela que Jaenelle é a feiticeira? – perguntou Daemon, suavemente.
Saetan bebeu um gole de yarbarah, o vinho de sangue, e fechou os olhos para saborear melhor a tensão e a raiva desaparecerem enquanto Daemon persuadia seus músculos a relaxar.
– Não. Disse que Jaenelle era a rainha, o que devia ter sido suficiente, mas...
– Não teria feito diferença – disse Daemon. – Naquela última noite, na festa do Winsol, quando finalmente entendi o que era Briarwood, pensei em contar a Alexandra sobre Jaenelle. Quis me convencer que ela me ajudaria a levar Jaenelle para bem longe de Chaillot.
– Mas não contou.
As mãos de Daemon fizeram uma pausa antes de começarem a trabalhar em outro grupo de músculos cansados.
– Uma vez, sem querer, eu a ouvi dizer que a feiticeira era apenas um símbolo para os Sangue, mas, caso chegasse, esperava que alguém tivesse coragem de estrangulá-la no berço.
Uma onda de raiva subitamente invadiu Saetan.
– Mãe Noite, como odeio essa mulher.
– Philip e Leland não são exatamente inocentes.
– Não, não são, mas apenas seguem a liderança de Alexandra como rainha e matriarca da família. Ela me acusou de tecer mentiras para enredar Jaenelle, mas quantas mentiras eles disseram debaixo de um suposto manto de verdade? – Emitiu um som que poderia ser uma gargalhada amarga. – Posso dizer quantas. Tive muitos anos para observar as cicatrizes emocionais provocadas por essas palavras.
– E o que acontecerá quando ela descobrir que estão aqui?
– Cuidaremos disso na hora certa.
Daemon se inclinou mais para perto, roçou os lábios no pescoço de Saetan.
– Posso criar uma sepultura que ninguém jamais descobrirá.
O beijo que se seguiu a essa declaração abalou Saetan o suficiente para que se lembrasse de que o filho ainda precisava de cuidados especiais. Daemon poderia se entregar àquela ideia para canalizar um pouco da raiva que sentia, mas não hesitaria em torná-la real.
Teve um novo sobressalto ao sentir o leve toque de poder escuro e feminino no limite mais profundo de suas barreiras interiores.
– Saetan? – chamou Daemon com uma delicadeza extrema.
A cantoria dos lobos invadiu a noite.
– Não – respondeu Saetan de modo gentil, mas firme, ao se afastar para olhar Daemon de frente. – Agora é tarde demais.
– Por quê?
– Porque esse coro de boas-vindas significa que Jaenelle está de volta. – Vendo Daemon empalidecer, Saetan passou a mão pelo braço do filho. – Vamos até meu escritório tomar um drinque. Vou chamar Lucivar também. Marian já deve estar furiosa de tanto ser importunada.
– E Jaenelle?
Saetan sorriu.
– Garoto, depois de uma viagem dessas, cumprimentar os machos vem num distante terceiro lugar em sua lista de prioridades – sendo o primeiro um banho quente e demorado e o segundo, uma enorme refeição. Uma vez que não podemos competir com isso, o melhor que fazemos é nos sentar confortavelmente e relaxar enquanto a esperamos vir até nós.
Surreal avançava pelos corredores. Sempre que chegava a uma interseção, um criado de expressão solene apontava a direção certa. Provavelmente o primeiro avisara os demais depois que Surreal o interpelou com rispidez:
– Onde fica o escritório do senhor supremo?
Achou um pouco estranho que nenhum dos criados parecesse surpreso com sua ira pelos corredores vestindo nada além de uma camisola. Bem, considerando que as feiticeiras tinham de conviver com os machos que habitavam aquele lugar, provavelmente não seria incomum.
Ao chegar à escadaria, levantou a camisola até os joelhos para não tropeçar na bainha, desceu correndo os degraus e chegou ao salão principal, praguejando ao sentir o piso de mármore frio sob os pés descalços. Em vez de algumas delicadas batidas, deu um forte murro na porta e se dirigiu à mesa de madeira escura onde Saetan estava sentado com um copo de conhaque parado a meio caminho dos lábios.
Daemon e Lucivar, sentados relaxadamente em duas cadeiras em frente à mesa, apenas olharam para ela. Agora que estava ali, Surreal não tinha mais tanta vontade de se dirigir ao senhor supremo, então se virou para Daemon e Lucivar.
– Não tenho o direito de dormir sozinha? Preciso ter sempre um macho na minha cama?
– Presa Cinza? – perguntou Lucivar maliciosamente.
– Não sei quanto a você, mas eu não estou acostumada a dormir com um lobo.
– Qual é o problema de Presa Cinza ficar no seu quarto? – perguntou Daemon.
O tom condescendente em sua voz só contribuiu para enfurecê-la.
– Ele peida! – retrucou ela. – Bem, vocês todos são assim.
Alguém emitiu um som abafado. Surreal pensou que fosse Daemon.
– Você ressente a presença dele por ser um lobo ou porque ele impede que outra espécie de macho se aqueça em sua cama? – perguntou Lucivar.
Talvez não fosse uma insinuação de que tinha sido prostituta, mas foi assim que Surreal interpretou o comentário, pois dessa forma poderia descarregar sua fúria em Lucivar.
– Bem, docinho, não há muito o que escolher entre vocês. Ele ocupa mais da metade da cama, ronca e dá beijos babões. Mas se eu tivesse que escolher, escolheria ele. Pelo menos ele lambe as próprias bolas!
Ouviu-se um copo batendo na mesa com um som ameaçador. Surreal fechou os olhos e mordeu o lábio. Merda. Estava tão concentrada em sua fúria por Lucivar que se esquecera do senhor supremo.
Antes que pudesse se virar, Saetan já segurava seu braço com força, arrastando-a até a porta.
– Se não quiser Presa Cinza no seu quarto à noite, diga a ele – informou Saetan, parecendo estar engasgado com alguma coisa. – Ele usa a joia violeta e você a cinza. Um escudo em volta do quarto deve resolver a questão.
– Eu pus um escudo no quarto – protestou Surreal. – Mas isso não o impediu. Ao perceber que não conseguia entrar, pediu ajuda a um tal de Kaelas.
A mão de Saetan se imobilizou na maçaneta da porta.
– Kaelas o ajudou a atravessar o escudo?
Surreal assentiu cautelosamente. Saetan abriu a porta depressa.
– Nesse caso, senhora, sugiro que o assunto seja resolvido entre você e Presa Cinza.
Quando se deu conta, estava no salão principal, olhando boquiaberta para a porta fechada.
– Você disse que ajudaria – resmungou. – Disse que eu poderia vir até você se precisasse de qualquer coisa.
Quando a porta voltou a se abrir, teve uma leve esperança de ser novamente chamada pelo senhor supremo. Em vez disso, Daemon e Lucivar foram empurrados para o salão e a porta se fechou com um estrondo.
Eles fitaram a porta por um momento e depois olharam para Surreal.
– Parabéns – disse Lucivar. – Está aqui há pouco mais de 24 horas e já foi expulsa do escritório. Eu demorei três dias.
– Por que não se senta numa lança? – rosnou Surreal.
Lucivar balançou a cabeça. Daemon parecia estar se esforçando para não rir.
– Mas por que ele expulsou vocês também? – perguntou Surreal.
– Privacidade. Repare que agora há escudos fortíssimos em volta do escritório, incluindo um escudo auditivo. – Lucivar olhou para a porta fechada. – Tendo presenciado esse comportamento várias vezes, os machos do primeiro círculo chegaram à conclusão de que ele está sentado rindo que nem um louco ou tendo um ataque histérico. Seja o que for, não quer que tenhamos conhecimento.
– Ele disse que me ajudaria – resmungou Surreal.
Lucivar riu.
– Tenho certeza de que ele a ajudaria... até você mencionar Kaelas.
– Vivo ouvindo esse nome – disse Daemon. – Quem é Kaelas?
Lucivar olhou ponderadamente para Daemon, então respondeu olhando para Surreal.
– Kaelas é um príncipe arceriano dos senhores da guerra de joia vermelha. No entanto, devido a uma peculiaridade em seu talento ou treinamento, é capaz de atravessar qualquer tipo de escudo, inclusive o Negro.
– Mãe Noite! – murmurou Daemon.
– E ele ainda tem 350 quilos de músculos e temperamento felino. – Lucivar sorriu sinistramente. – Todos nós tentamos não aborrecer Kaelas.
– Merda! – exclamou Surreal, debilmente.
– Vamos – disse Lucivar. – Acompanharemos você até seu quarto.
Ser acompanhada por dois machos de repente parecia uma excelente ideia. Passados alguns breves minutos, Surreal disse:
– Sendo tão grande, ao menos é fácil de detectar.
Lucivar hesitou.
– Os Sangue arcerianos costumam usar escudos de visão quando caçam. Isso faz deles predadores extremamente eficazes.
– Merda.
Ter um lobo como amigo parecia cada vez mais divertido.
Ao chegarem ao quarto, deu boa-noite a seus acompanhantes e entrou. Presa Cinza estava exatamente onde ela o tinha deixado. Aparentemente ele levou ao pé da letra quando Surreal disse: “Não se mexa.”
Observando a tristeza naqueles olhos castanhos, suspirou.
Amor de filhote. Era uma expressão usada pelas prostitutas para descrever os jovens machos desajeitados e ansiosos durante suas primeiras semanas de experiência sexual. Por um breve período, tentavam agradar, para não serem recusados na cama. Mas, uma vez superada a novidade, passavam a se dirigir àquelas mesmas mulheres com insensibilidade nos olhos e desprezo nas vozes.
– Amanhã teremos de chegar a um acordo – disse Surreal a Presa Cinza.
O rabo dele balançou uma única vez.
Rendendo-se, Surreal subiu para a cama e deu um tapinha nos cobertores a seu lado. Presa Cinza pulou na cama e se deitou, observando-a cautelosamente. Surreal fez-lhe uma festa que o deixou com o pelo despenteado, desligou a luz e percebeu-se sorrindo. Acabara em um lugar em que, quando alguém falava de amor de filhote, estava falando de um filhote de verdade.
Nervoso demais para dormir e inquieto demais para se distrair com um livro, Daemon perambulava pelos corredores escuros do Paço.
Está fugindo, pensava, ciente das dúvidas que o vinham assolando enquanto se aproximava de seus aposentos – e ao sentir a presença de Jaenelle na suíte ao lado.
Durante a maior parte de seus 1.700 anos, acreditara ter nascido para ser o amante da feiticeira. Há treze, diante de uma moça de 12 anos, essa crença não fora abalada. Seu coração estava comprometido; a união física teria apenas de ser adiada por alguns anos. Mas um estupro brutal e os anos que passara sem rumo na loucura agora os separavam, e não sabia se suportaria encará-la para ver em seus olhos unicamente um sentido de obrigação ou, pior ainda, de piedade.
Precisava encontrar um lugar que o ajudasse a recuperar o equilíbrio.
Daemon se deteve e deu um sorriso hesitante ao perceber que não estava fugindo, mas procurando. Em algum lugar da propriedade deveria haver um local dedicado à realização dos rituais formais dos Sangue nos dias sagrados de cada estação. Saetan deve ter construído um local dedicado a meditações informais dentro da própria casa.
Fechou os olhos, abrindo os sentidos internos. Passado um momento, estava andando novamente, de volta à área do Paço reservada aos aposentos da família. Não teria reparado na entrada se não tivesse vislumbrado seu reflexo no vidro da porta.
Saiu e caminhou até o jardim mais abaixo. Canteiros de flores altas contornavam os quatro lados, exceto o local onde os degraus de pedra desciam até o jardim. Duas estátuas dominavam o espaço. Alguns centímetros à frente delas, havia uma laje de pedra elevada e um banco de madeira. Candeeiros diligentemente posicionados iluminavam as estátuas, bem como os degraus.
As estátuas o atraíam. Desceu os degraus, hesitou um momento e avançou para a grama.
O ar estava impregnado de energia. Ao encher os pulmões com esse ar, sentiu o corpo absorvendo a força e a paz contidas no jardim. Na laje de pedra havia meia dúzia de velas em recipientes de vidro colorido. Escolhendo uma ao acaso, criou uma pequena labareda de fogo encantado por meio da arte e a acendeu. Sentiu um toque de alfazema antes de caminhar até a fonte que abrigava a estátua feminina.
A parte de trás da fonte era uma parede curva de pedra bruta encoberta pela água que corria para um lago delimitado por pedras. Metade do corpo da mulher se erguia do lago, com o rosto levantado. Os olhos estavam fechados e seus lábios se abriam em um sorriso. Tinha as mãos erguidas como se estivesse prestes a tirar a água do cabelo. Tudo nela encarnava força serena e celebração da vida.
Não reconheceu o corpo maduro, mas reconheceu o rosto. E imaginou se o escultor teria prosseguido com os detalhes refinados além do quadril que se erguia da água, o que seus dedos poderiam encontrar se deslizasse as mãos abaixo da barriga.
Enquanto especulava sobre isso, virou-se para a outra estátua – o macho.
A besta.
Sua reação visceral ao corpo ostensivamente masculino e curvo, uma mistura de humano e animal, foi um sentimento de reconhecimento instintivo. Era como se alguém lhe tivesse arrancado a pele, revelando o que havia de fato sob a superfície.
Os ombros largos suportavam uma cabeça felina com os dentes cerrados num rosnado de raiva. Uma pata/mão se apoiava no chão, junto à cabeça de uma pequena mulher adormecida. A outra estava erguida, com as garras à mostra.
Alguém como Alexandra olharia para essa criatura e presumiria que se preparava para esmagar e destruir a fêmea, e que a única forma de controlar aquela força física e aquela raiva era mantendo-as acorrentadas. Alguém como Alexandra jamais conseguiria ver além disso e reparar nos pequenos detalhes, como a mão estendida da mulher adormecida, com os dedos quase tocando na pata/mão junto à sua cabeça. Como o corpo curvo que parecia abrigá-la. Como os olhos de pedra verde e brilhante fitavam quem quer que se aproximasse e como aquela raiva ríspida provinha do desejo, da necessidade de proteger.
Daemon respirou fundo, expirando devagar, e ficou tenso. Não ouvira passos, embora não precisasse se virar para saber quem estava ao pé da escadaria.
– O que acha dele? – perguntou serenamente.
– É lindo – respondeu Jaenelle com sua voz de meia-noite.
Daemon se virou devagar.
Ela usava um longo vestido preto. As rendas na parte da frente terminavam logo abaixo do peito, revelando pele clara suficiente para deixar um homem com água na boca. O cabelo louro se espalhava pelos ombros e caía pelas costas. Os olhos azul-safira ancestrais já não pareciam tão perturbados como se recordava, mas tinha a angustiante suspeita de ser ele próprio a razão da tristeza que via neles.
Enquanto o silêncio entre os dois se alongava, Daemon não se conseguia avançar na direção de Jaenelle nem ir embora.
– Daemon...
– Compreende o que ele representa? – perguntou depressa, inclinando a cabeça ligeiramente para indicar a estátua.
Os cantos dos lábios de Jaenelle se curvaram num indício de sorriso mordaz.
– Ah, sim, príncipe, é claro que compreendo o que representa.
Daemon engoliu em seco.
– Então não me insulte com expressões de pesar. Um macho é dispensável. Uma rainha, não. Sobretudo a feiticeira.
Jaenelle emitiu um som estranho.
– Certa vez, Saetan disse quase a mesma coisa.
– E ele estava certo.
– Bem, sendo um príncipe dos senhores da guerra feito a partir do mesmo molde, seria de esperar que pensasse dessa forma, não é?
Começou a sorrir mas logo semicerrou os olhos. Daemon teve a nítida impressão de que havia algo nele que não agradava Jaenelle. Quando o intenso esforço de concentração da feiticeira terminou, percebeu que ela tinha chegado a uma decisão. Ele só não sabia qual.
O anel de consorte lhe pesava no dedo, mas, por causa dele, podia pedir algo que desejava ardentemente.
– Posso abraçá-la por um minuto?
Tentou dizer a si mesmo que a hesitação de Jaenelle se devia à surpresa e não à cautela, mas não conseguiu se convencer. Isso não o impediu de envolvê-la em seus braços quando Jaenelle caminhou a seu encontro. Isso não impediu que as lágrimas queimassem seus olhos quando sentiu os braços dela envolvendo cuidadosamente sua cintura e Jaenelle pousou a cabeça em seu ombro.
– Está mais alta do que me lembrava – disse, sentindo os cabelos de Jaenelle no rosto.
– Espero que sim.
A voz dela soou um pouco cáustica, mas pôde perceber o sorriso que ela continha.
Como suas mãos desejavam acariciar e explorar... Mas temia que ela se afastasse, por isso não se mexeu. Jaenelle estava viva. Era tudo o que importava. Podia ter ficado ali a noite toda, abraçando-a, sentindo sua respiração leve, mas, passados alguns minutos, Jaenelle se afastou.
– Vamos, Daemon – disse, estendendo-lhe a mão. – Você precisa descansar. Tenho ordens para levá-lo de volta ao seu quarto para que possa dormir um pouco antes do nascer do sol.
Sua fúria se avivou de imediato.
– Quem se atreveria a dar ordens a você? – resmungou.
Jaenelle o olhou com um ar de divertimento exasperado.
– Adivinhe.
Quase falou “Saetan”, mas refletiu melhor.
– Lucivar – respondeu, consternadamente.
– Lucivar – concordou Jaenelle, pegando a mão de Daemon e o levando em direção às escadas. – Acredite em mim, você não vai querer Lucivar o arrastando para fora da cama porque não estava no campo de treinamento quando ele disse para estar.
– O que ele vai fazer? Jogar um balde d’água em cima de mim? – perguntou Daemon enquanto chegavam ao corredor e se dirigiam a seus aposentos.
– Não, porque encharcar a cama deixaria Helene furiosa. Mas ele não hesitaria em arrastá-lo para debaixo de uma ducha gelada.
– Ele não...
Jaenelle se limitou a olhar para Daemon.
A opinião de Daemon era franca e explícita.
– Por que atura tudo isso?
– Ele é maior do que eu.
– Talvez devesse ser lembrado de que está a seu serviço.
Jaenelle riu tanto que tropeçou em Daemon.
– Ele mesmo me lembra disso quando lhe convém. E quando não lhe convém, acabo tendo de lidar com meu irmão mais velho. Seja como for, é mais fácil se concordarmos com ele.
Chegaram à porta dos aposentos de Jaenelle. Com relutância, Daemon soltou sua mão.
– Lucivar não mudou nada, não é? – disse, sentindo um golpe de ansiedade ao recordar como Lucivar sempre fora instável nas cortes.
Ao olhar para Jaenelle pôde ver uma luz incomum em seus olhos.
– Não – disse ela, com a voz de meia-noite –, não mudou nada. Mas a verdade é que ele também compreende o que a estátua representa.
– Diga-me de novo por que não pude tomar o café da manhã – disse Daemon, com a respiração ofegante, enquanto limpava o rosto e o pescoço suados com uma toalha.
– Porque você não sabe bloquear meus golpes e vai vomitar tudo quando for acertado na barriga – respondeu Lucivar, bebendo o café e observando Palanar e Tamnar envolvidos no aquecimento com bastões. – E esta manhã estamos começando cedo, porque quero despachar os machos antes que as mulheres cheguem para a primeira lição.
Daemon bebeu um gole do café de Lucivar e lhe devolveu a caneca.
– Vai mesmo ensinar as mulheres a usar os bastões?
– Quando terminar, serão capazes de manejar o bastão, o arco e a faca.
Uma ordem ríspida de Hallevar levou os jovens a recuar e a repetir um movimento devagar.
– Aposto que os guerreiros não ficaram contentes quando disse isso a eles – comentou Daemon, observando os movimentos.
– Sim, reclamaram. A maioria das mulheres também parece não ter ficado muito contente. Não espero transformá-las em guerreiras, mas saberão se defender até um guerreiro chegar para ajudá-las.
Daemon fitou Lucivar, pensativo.
– Foi por isso que treinou Marian?
Lucivar assentiu.
– Ela resistiu bastante, pois tradicionalmente as fêmeas eyrienas não tocam nas armas de um guerreiro. Eu disse que a encheria de porrada se um macho a ferisse por ter sido teimosa demais para aprender a se defender. Ela disse que arrancaria fora as minhas tripas se eu levantasse a mão para ela. Pensei que estávamos fazendo progresso.
Daemon riu. A gargalhada foi interrompida quando viu Jaenelle se aproximando a passos largos pelo gramado. Seus sentidos se aguçaram até o limite, o calor do desejo o invadiu e o odor dos outros machos se transformou numa declaração de rivalidade.
– Controle-se, meu velho – murmurou Lucivar, olhando por cima do ombro e depois para Daemon.
Palanar e Tamnar terminaram a série de aquecimento e Hallevar e Kohlvar entraram na arena de treino.
Os lábios de Palanar formaram um sorriso zombeteiro.
– Lá vem uma moça alegre, tentando criar colhões.
Daemon se virou bruscamente, os olhos cobertos por uma neblina vermelha de fúria. Hallevar se virou e bateu com o bastão nas nádegas do rapaz com tanta força que o fez dar um pulo.
– É minha irmã, garoto – disse Lucivar, com excessiva serenidade.
Palanar parecia nauseado.
– Vou esquecer o que disse – prosseguiu Lucivar, com a mesma serenidade –, desde que não volte a ouvir essas palavras. Caso contrário, chegará uma manhã em que você entrará na arena de treino e estarei à sua espera.
– Si-sim, senhor – gaguejou Palanar. – Me desculpe, senhor.
Hallevar deu um tapa na nuca do rapaz.
– Vá comer alguma coisa – disse, ríspido. – Talvez consiga usar melhor a cabeça com comida no estômago.
Palanar se retirou, seguido por Tamnar. Hallevar mediu a distância entre eles e Jaenelle, concluiu que ela estava suficientemente próxima para ter ouvido e praguejou baixinho:
– Não foi isso que ensinei a ele.
Lucivar deu de ombros
– Já tem idade suficiente para querer que admirem seu pau. Isso o torna estúpido. – Olhou para o senhor da guerra mais velho. – Não pode se dar ao luxo de ser estúpido. As rainhas desta corte podem estar dispostas a deixar passar certas atitudes, mas os machos não deixarão.
– Vou lhe dar um puxão de orelhas para ter certeza de que entendeu a mensagem – prometeu Hallevar. – Talvez seja melhor fazer o mesmo com Tamnar.
Voltou à arena e iniciou a série de aquecimento com Kohlvar. Daemon foi na direção de Jaenelle, já tendo esquecido Palanar. Ao ver o olhar feroz dela, o sorriso se dissipou antes mesmo de se formar.
Lucivar se limitou a erguer o braço esquerdo. Lançando um olhar tímido e selvagem para Daemon e o cumprimentando de maneira quase inaudível, Jaenelle se aproximou de Lucivar, que baixou o braço e puxou-a pela cintura para junto de si. O braço direito de Jaenelle estava pousado nas costas de Lucivar, e a mão cobria seu ombro nu.
Eles ficam sempre assim, pensou Daemon se debatendo para controlar o ciúme – e o sofrimento –, pois ela mal olhara para ele.
Mas suspeitava que Lucivar estava mais bem preparado para lidar com aquele olhar feroz do que ele.
– Vamos agora às apresentações? – perguntou Lucivar baixinho.
Jaenelle balançou a cabeça.
– Primeiro quero fazer o aquecimento.
– Quando estiver pronta, faço uma série com você.
Jaenelle olhou rapidamente para o peito nu de Lucivar.
– Achei que já tinha terminado o treino.
– Já fiz dois. Nem sequer transpirei.
– Ah.
Lucivar fez uma pausa.
– Sua irmã está aqui.
– Eu sei. – Olhou para a arena de treino das mulheres, que estava vazia. – Estou surpresa que não a tenha arrastado até aqui.
– Ela tem mais trinta minutos para vir por conta própria antes de ser arrastada. – Lucivar sorriu abertamente, de modo sinistro. – Prometo pegar leve.
– Sei.
Gostaria de ver isso, pensou Daemon, azedo.
– E temos companhia – disse Lucivar.
Os olhos de Jaenelle gelaram.
– Eu sei.
Daemon deu um passo na direção de Jaenelle. Não sabia o que dizer ou fazer, mas sabia que precisava mudar o estado de espírito em que ela estava.
*Lucivar...*, começou.
*Pegue leve, bastardo*, respondeu Lucivar. *O treino irá acalmá-la.*
Daemon deu outro passo na direção de Jaenelle. A expressão dela agora era de pânico. Na noite anterior, quando deixara que a abraçasse, a rainha estava cumprindo seu dever perante um dos machos do primeiro círculo, mas a mulher não queria nem chegar perto dele.
Afastando-se rapidamente de Lucivar e de Daemon, Jaenelle quase colidiu contra Jazen, que trazia um tabuleiro com um bule de café fresco e canecas limpas.
– Quem é você? – perguntou ela, com uma delicadeza exagerada.
Jazen a fitou, imobilizado.
– Jazen – disse, por fim. – O criado particular do príncipe Sadi.
Os olhos gelados de Jaenelle mudaram para um olhar curioso.
– É um trabalho interessante?
– Seria mais interessante se não tivesse que vestir terno preto e camisa branca todos os dias – murmurou Jazen.
Lucivar reprimiu uma gargalhada. Daemon sentiu o rosto ficando vermelho, mas sem saber se era de raiva ou de vergonha. Jazen parecia horrorizado quando notou a gafe que havia cometido. Foi então que ouviu o riso de Jaenelle.
– Bem, faremos o melhor para amarrotá-lo. – Ao passar por Jazen, ela pôs a mão esquerda em seu ombro. – Bem-vindo a Kaeleer, senhor da guerra.
Daemon esperou até Jaenelle chegar à arena de treino das mulheres antes de se dirigir ao criado:
– Devo me desculpar por meu gosto enfadonho no que diz respeito a roupas? E por que diabo está aqui, fazendo o trabalho de um criado?
– Beale me pediu para trazer esta bandeja. – Jazen engoliu em seco. – Desculpe. Não sei o que me levou a dizer aquilo.
– Você foi sincero – interveio Lucivar, divertido. – Não se preocupe.
Daemon rosnou para o irmão e olhou Jazen furiosamente.
– Eu levo isso – disse Holt, um dos criados que tinha trazido as outras bandejas.
Jazen olhou rapidamente para Daemon, entregou a bandeja a Holt e se retirou. Daemon respirou fundo e observou Jaenelle executando os movimentos de aquecimento.
– Eu devia falar com ela, explicar a situação de Jazen antes que o julgue.
Lucivar o encarou.
– Meu velho, ela acabou de fazer isso. Deu as boas-vindas a Kaeleer. É tudo o que precisamos saber.
– Por aqui – indicou Marian, com um gesto amistoso para que Wilhelmina Benedict a acompanhasse, enquanto observava a túnica de mangas compridas e as calças de Surreal. – O que está vestindo por baixo da túnica?
Surreal fez um esforço para manter a voz cordial. Marian não parecia ser do tipo que se interessava pelas roupas de baixo de uma ex-prostituta.
– Por quê?
– Lucivar insistirá que tirem a roupa para a lição.
– Tirar a roupa? – perguntou Wilhelmina. – Na frente daqueles homens?
– Vocês não vão querer ter os movimentos limitados por causa da roupa – disse Marian, gentilmente. – E depois vão querer vestir uma peça de roupa que esteja seca.
– Imagino que vou suar – disse Surreal.
Ela olhou rapidamente para Wilhelmina, perguntando-se se aquele tipo de exercício era uma boa ideia. A jovem parecia pálida como água e assustada o bastante para se quebrar.
– Acho que ele não vai pegar pesado com os principiantes, mas você... – Os olhos dourados de Marian pousaram nas orelhas pontudas de Surreal. – É Dea al Mon. É provável que exija mais de você, só para descobrir do que é capaz.
– Sorte minha – murmurou Surreal enquanto atravessavam o gramado na direção das outras mulheres, que já estavam reunidas na arena de treino.
Marian sorriu.
– Minha primeira arma foi a frigideira.
– Parece perigoso – disse Surreal, devolvendo o sorriso.
– Eu estava trabalhando como governanta na casa de Lucivar há quatro meses. O sangramento da lua começara naquela manhã e eu não estava me sentindo bem. Compreendo agora que Lucivar deve ter passado os outros períodos da lua de dentes cerrados para evitar comentários. Mas naquela manhã ele me disse para pegar leve, e achei que estava me criticando por não conseguir fazer meu trabalho. Atirei uma panela em cima dele. Bem, não exatamente em cima dele. Não queria acertá-lo, mas estava tão furiosa que precisava atirar alguma coisa. Atingiu a parede a cerca de meio metro dele. Lucivar olhou para a panela e a pegou. Alguns minutos depois, arrastou-me para fora. Disse que uma panela não tinha o equilíbrio certo, mas que uma frigideira poderia funcionar se fosse lançada da forma adequada. Passei dois meses praticando o lançamento da frigideira antes que Lucivar me declarasse proficiente segundo seus critérios.
– O que é proficiente para Lucivar? – perguntou Surreal.
Marian já não tinha o mesmo ar divertido.
– Ser capaz de partir ossos nove em dez vezes.
Boquiaberta, Surreal olhou para Marian por um momento, e então refletiu seriamente. Ela uma excelente assassina. Até que ponto, sob a orientação de Lucivar, suas competências poderiam ser aperfeiçoadas?
Ao chegarem à arena de treino, Wilhelmina ficou para trás. Surreal a empurrou para a frente. Olhando ao redor, avistou Daemon e teve dificuldades para respirar. Ele parecia tranquilo, com uma caneca de café na mão, mas seu rosto tinha aquele olhar fixo que Surreal testemunhara na carruagem a caminho dali. Não parecia tão grave como da outra vez, mas não era nada bom.
Foi então que Lucivar começou a falar, e por um momento isso afastou as preocupações com Daemon.
– Existem razões para que os machos eyrienos sejam guerreiros – disse Lucivar, passando os olhos pelas mulheres enquanto caminhava lentamente ao longo da linha. – Somos maiores, mais fortes e possuímos o temperamento para matar. Vocês têm outras forças e competências. A maior parte do tempo, tudo funciona bem dessa forma. Mas isso não significa que não sejam capazes de se defender. E antes que me venham com essa merda de que não conseguem manejar uma arma, lembro-as de que a maioria de vocês não tem qualquer problema em manejar facas de cozinha, algumas tão grandes como facões de caça. Diferem apenas no aspecto. E algumas de vocês tentarão escapar dos treinos dizendo que, não importa o que aprendam, uma mulher não é páreo para um homem. Certo? – Olhando para a outra arena de treino, rugiu: – Gata, venha aqui!
Sem saber por que Lucivar haveria de querer um felino, Surreal olhou na direção da arena. Expirou quando a mulher que falava com Karla, Morghann e Gabrielle se virou.
– Jaenelle – sussurrou.
Voltou a se concentrar em Daemon. Não parecia surpreso por ver Jaenelle. Talvez já tivessem tido oportunidade de conversar. Talvez... Não, provavelmente era cedo demais pensar nesses “talvez”.
As outras mulheres caminharam a passos largos para a arena de treino. Jaenelle avançou devagar, com os olhos em Lucivar e ao mesmo tempo vergastando o bastão em volta da cintura com força suficiente para ferir o ar.
Lucivar foi andando de lado até o centro da arena, sempre de olho em Jaenelle.
– Brinque comigo, gata – disse, olhando-a de modo arrogante.
Jaenelle rosnou e começou a andar em círculos.
– Hallevar – disse Lucivar, agora também andando em círculos. – Comece a contar o tempo.
Surreal sentiu Falonar, que estava a seu lado, ficando tenso.
– O que significa isso? – perguntou, dando-lhe uma cotovelada quando não respondeu.
– Dez minutos – respondeu Falonar, sinistramente. – Vai derrubá-la muito antes disso.
Surreal lançou um olhar para Daemon e começou a transpirar. Se aquilo acontecesse, qual seria a reação de Sadi? A resposta era fácil. O mais complicado era saber o que qualquer um deles poderia fazer para impedir que despedaçasse Lucivar.
O primeiro embate dos bastões fez seu coração saltar do peito. Depois disso, não teve consciência de mais nada a não ser Jaenelle e Lucivar se movendo graciosamente numa dança selvagem.
Os segundos se transformaram em minutos.
– Mãe Noite – murmurou Falonar. – Ela está dando trabalho.
O peito de Lucivar brilhava de suor. Surreal podia ouvir a respiração ofegante. Seu próprio suor esfriou a pele quando viu o olhar feroz de Jaenelle.
Não sabia quanto tempo tinha se passado quando, após meia dúzia de movimentos extremamente velozes, Jaenelle perdeu o equilíbrio por um brevíssimo instante. Lucivar fez um passo de dança para trás, dando tempo para que a mulher voltasse a equilibrar, e então tornou a atacar.
– Podia ter acabado com ela agora – comentou Falonar, gentilmente.
– Lucivar quer treiná-la, não enfurecê-la – respondeu Chaosti com igual gentileza, surgindo atrás de Surreal.
Por fim, Hallevar gritou:
– TEMPO!
Lucivar e Jaenelle andavam em círculos, golpeavam, colidiam.
– MALDITOS SEJAM OS DOIS! EU DISSE TEMPO!
Eles se afastaram. Hallevar irrompeu na arena e tirou o bastão das mãos de Lucivar. Olhou para Jaenelle, hesitou e recuou quando Lucivar balançou a cabeça.
– Vamos, gata – disse Lucivar, ofegante, avançando para Jaenelle. – Precisamos esfriar a cabeça. Vamos caminhar um pouco.
Jaenelle ergueu o olhar. Colocou os pés em posição de combate. Lucivar ergueu as mãos e continuou a avançar. O olhar feroz de Jaenelle desapareceu.
– Água.
– Primeiro, caminhamos – disse Lucivar, tirando o bastão das mãos dela.
– Sacana – rosnou Jaenelle, mas aceitando a proposta.
– Se não tornar as coisas mais difíceis para mim, pode até tomar café da manhã.
Lucivar entregou o bastão a Falonar quando passou por ele. Pegou duas toalhas que Aaron segurava, colocou uma delas em volta do pescoço de Jaenelle e começou a passar a outra pelo corpo.
Olhando ao redor, Surreal reparou que Khardeen também estava no meio da multidão, vigilante e alerta. E reparou, com um suspiro de alívio, que Saetan conversava tranquilamente com Daemon.
Voltando-se para Falonar, passou os dedos pelo bastão.
– Acha que conseguirei ter pelo menos metade da destreza daqueles dois?
Esperava um comentário depreciativo. Como não obteve resposta, ergueu os olhos e viu Falonar a examinando com seriedade.
– Se conseguir chegar à metade daquele domínio do bastão, será capaz de derrotar qualquer macho, exceto os guerreiros eyrienos – disse Falonar, pausadamente. – Ainda assim, será capaz de vencer metade deles. – Em seguida olhou para Marian. – Está bem, senhora?
Marian expirou com força.
– Estou bem, obrigada, príncipe Falonar. É que... quando transmitem essa intensidade...
Falonar fez uma mesura reveladora de respeito e se afastou para falar com Hallevar.
– Está bem mesmo? – perguntou Surreal, afastando Marian discretamente da multidão.
O sorriso de Marian estava um pouco tenso.
– Lucivar sempre fica nervoso depois da feira de serviços, e tem andado preocupado com Daemon.
Olhando para trás, Surreal viu que Daemon se dirigia ao Paço acompanhado pelo senhor supremo. Uma preocupação a menos. Reparou também como Jaenelle olhava para Daemon o tempo todo, enquanto Lucivar enchia seu prato de comida. Sorriu.
– Normalmente consigo ajudá-lo a aliviar a tensão – prosseguiu Marian.
Pela expressão constrangida, Surreal deduziu o método que Marian usava para aliviar a tensão. Corajosa essa mulher, meter-se na cama com um homem como Lucivar.
– Só que algo mudou desde que ele voltou...
Não olhe para mim, pensou Surreal enquanto Marian a encarava inquisitivamente.
– Em geral, quando Jaenelle é sua parceira de treino, praticam incessantemente até toda a tensão esvair pelos poros. Mas esta manhã... O surgimento inesperado dos familiares de Jaenelle também a deixou no limite.
– É, voltar a ver a família não é motivo para celebrar.
Marian ficou tensa.
– Está enganada. A família dela, a de verdade, mora aqui.
– Sim – disse Surreal, decorrido um minuto –, parece que sim.
Wilhelmina caminhava em silêncio ao lado de Lucivar, que a acompanhava até o quarto. Desejava que ele a amparasse. Talvez parasse de tremer. Talvez deixasse de se sentir tão apavorada.
Era curioso. Sentia um medo terrível dele, especialmente depois de tê-lo visto no duelo de bastões com Jaenelle. Tentara voltar furtivamente ao Paço antes que alguém reparasse, pois tinha certeza de que seu coração ia explodir se algum dos guerreiros eyrienos gritasse com ela por não executar bem os exercícios. Mas Lucivar percebera sua fuga e a segurara pela parte de trás da túnica, arrastando-a até a arena de treino.
E fora gentil. Enquanto os outros eyrienos instruíam as outras mulheres, Lucivar trabalhara só com ela e Jillian. Sem pressa, paciente, com as mãos firmes ao reposicionar seu corpo, com a voz sempre calma e encorajadora.
Não esperara essa atitude de Lucivar. Também não esperara que a acompanhasse quando foi ao encontro de Alexandra, Leland e Philip. Devia ter dito “não” ao ser informada pelo senhor supremo de que eles estavam no Paço e queriam falar com ela. Porém, sentia-se na obrigação de vê-los, uma vez que tinham vindo de tão longe.
Os três ficaram furiosos quando Lucivar não permitiu a presença das rainhas de província e dos acompanhantes, recusando-se ele próprio a sair. Embora sentindo-se insultados, estavam satisfeitos por vê-la. Eles a abraçaram, dizendo que tinha se tornado uma linda mulher, e expressaram a preocupação que sentiram e quanto sentiram sua falta...
Foi então que Alexandra disse para que Wilhelmina não se preocupasse. Encontrariam uma forma de quebrar o contrato e de tirá-la dali, para longe daquela gente. Wilhelmina tentou explicar que queria cumprir o contrato, que o senhor supremo e o príncipe Yaslana não eram os monstros que Alexandra queria fazer parecer.
Não lhe deram ouvidos, tal como anos atrás, quando seu pai, Robert Benedict tentara estuprá-la, depois do desaparecimento de Jaenelle – alguns meses depois de ter contraído a doença que acabaria por levá-lo à morte. Fugira, com medo de que um dia deixassem de ouvir seus gritos ou, caso ouvissem, os ignorassem, por estar se tornando uma criança “difícil” como Jaenelle.
Não lhe deram ouvidos. Tinham a convicção de que estavam certos, de que sabiam o que era melhor. Até Philip. Dizia-lhe o tempo todo que tudo ficaria bem agora. Robert estava morto e tudo ficaria bem. Mas não seria assim, não ficaria tudo bem, pois eles achavam que ela estava “danificada” de algum modo, e tudo o que pensasse ou sentisse estaria marcado por essa convicção. Mesmo assim, por estimar Philip e saber que sofreria, não podia explicar a eles a razão pela qual queria permanecer ali.
O receio de que pudessem levá-la depois de todo o esforço que havia feito para entrar em Kaeleer se intensificou ao ponto de saltar do sofá e gritar:
– Não! Não quero!
Lucivar se apressou a levá-la para fora antes que um deles fizesse algo. Mas Wilhelmina não conseguia parar de tremer. O medo a estava devorando viva. Lucivar pousou a mão no ombro dela, interrompendo o tremor. Em seguida, invocou um frasco. Fez a rolha desaparecer, segurou a nuca da jovem com uma das mãos e com a outra levou o frasco até seus lábios.
– Se continuar tremendo desse jeito, vai acabar tendo um colapso – disse, parecendo aborrecido. – Beba um gole disso. Vai acalmar os nervos.
– Não quero nenhum calmante – retrucou Wilhelmina, tentando se afastar, ao mesmo tempo que seu desespero aumentava. – Não tem nada de errado comigo.
– A não ser esse medo todo, o que não é nada bom para você. – Lucivar fez uma pausa e a examinou. – Não é um calmante, Wilhelmina. É a infusão caseira de Khary. Vai apenas acalmá-la. Vamos lá.
Ela engoliu a dose que Lucivar lhe ofereceu. O líquido fluiu pela língua, encheu o estômago por um instante e depois se espalhou pelo corpo.
Quando Lucivar lhe ofereceu outro gole, aceitou. Aquele calor glorioso derretia seus receios e produzia um ardor sensual. Se tomasse outra dose, talvez se sentisse até destemida – imensamente, maravilhosamente destemida.
Mas Lucivar não lhe ofereceu mais. Ela não percebeu que ele a tinha soltado, mas notou que segurava a rolha numa das mãos e o frasco na outra, e que estava prestes a guardar aquele calor delicioso.
Arrancou o frasco de suas mãos, correu pelo corredor, virou uma esquina e bebeu sofregamente o que conseguiu antes de Lucivar a alcançar e pegá-lo de volta. Wilhelmina se encostou à parede e sorriu para Lucivar. Sentiu-se extremamente satisfeita quando o viu recuar alguns passos e observá-la com cautela.
Lucivar cheirou o frasco, bebeu um pequeno gole e disse:
– Merda.
– Isso seria algo muito indelicado de se fazer no corredor.
Lucivar praguejou baixinho ao fechar o frasco, fazendo-o desaparecer, mas soava mais como uma risada.
– Vamos, pequena feiticeira. Vou acomodá-la em algum lugar, enquanto ainda consegue andar.
Wilhelmina caminhou na direção de Lucivar para provar que era capaz de se mover, mas o chão girou sob seus pés e ela tropeçou, esbarrando no eyrieno.
– Sou muito corajosa – disse, encostando-se ao peito de Lucivar.
– E muito bêbada.
– Não estou, não. – Lembrou-se de repente de algo importante que tinha a fazer. – Quero ver minha irmã.
Bateu com a mão com toda a força na superfície à qual estava apoiada, para realçar a importância do pedido.
– Ai – exclamou, olhando para a mão dolorida.
Resmungando, ele a conduziu pelos corredores. Wilhelmina se sentia maravilhosamente bem. Queria cantar, mas todas as canções que conhecia pareciam tão... educadas.
– Conhece alguma canção malcriada?
– Mãe Noite – resmungou.
– Não conheço essa. Como é?
– Por aqui – disse ele, fazendo com que virasse para outro corredor.
Wilhelmina se soltou de Lucivar e saiu correndo, balançando os braços.
– Consigo voaaaar.
Quando conseguiu alcançá-la, Lucivar passou um braço em volta da cintura dela, bateu uma única vez na porta à frente deles e a empurrou para dentro.
– Gata!
Os olhos de Wilhelmina se encheram de lágrimas ao ver Jaenelle sair do quarto ao lado. O sorriso afetuoso de saudação era tudo o que precisava ver.
Libertando-se de Lucivar, deu dois passos cambaleantes e abraçou Jaenelle.
– Senti sua falta – disse Wilhelmina rindo, lágrimas correndo pelo rosto. – Senti tanto sua falta. Desculpe não ter sido mais corajosa. Era minha irmã mais nova e devia ter tomado conta de você. Mas foi você que sempre tomou conta de mim.
Curvou-se para trás, segurando Jaenelle pelos ombros para se equilibrar.
– Está tão bonita.
– E você está bêbada. – Os olhos azul-safira fitaram Lucivar. – O que fez com ela?
– Ela estava com os nervos em frangalhos depois do encontro com a família. Por isso pedi a Khary que colocasse num frasco a infusão mais forte que tivesse, pois pensei que não tomaria mais do que um gole. – Lucivar estremeceu. – Ela bebeu metade. Era a mistura que você criou.
Jaenelle arregalou os olhos.
– Deixou que ela bebesse um “coveiro”? Wilhelmina, o que tomou no café da manhã? – perguntou Jaenelle.
– Água. Estava nervosa demais para comer. Mas não estou mais nervosa. Eu me sinto muito corajosa e brava.
Lucivar segurou seu braço.
– Por que não se senta no sofá?
Wilhelmina cruzou o quarto quase em linha reta. Quase. Quando Lucivar começou a ajudá-la a contornar a mesa, fincou pé.
– Consigo atravessar a mesa – anunciou, orgulhosa. – Estudei minha arte. Quero mostrar a Jaenelle que posso fazer isso.
– Quer fazer algo realmente desafiador? – perguntou Lucivar. – Então vamos caminhar em volta da mesa. Neste momento, isso sim será impressionante.
– Está bem.
Contornar a mesa era de fato um desafio, sobretudo porque Lucivar estava sempre à sua frente atrapalhando-a. Ao chegar ao sofá, deixou-se cair ao lado de Jaenelle.
– Escovei Dejaal e agora ele gosta de mim. Se escovar Lucivar, acha que ele também gostará de mim?
– Se parar de pisar em mim, talvez – resmungou Lucivar baixinho, enquanto a descalçava.
– Escovar Lucivar é algo que cabe a Marian – disse Jaenelle, com um ar solene.
– Está bem.
– Vou pedir que tragam café e torradas – anunciou Lucivar.
Wilhelmina ficou olhando para Lucivar até ele sair da sala.
– Eu achava que ele era assustador. Mas é apenas grande.
– Verdade. Por que não se deita um pouco? – disse Jaenelle.
Wilhelmina obedeceu. Quando Jaenelle a cobriu com um cobertor, sussurrou:
– Todos disseram que você tinha morrido, mas eu sempre soube a verdade. Você me disse onde encontrá-la.
Olhou nos olhos azul-safira de Jaenelle. A mente por trás daqueles olhos era vasta. Porém, já não temia essa imensidão.
– Você sempre soube onde eu estava, não é?
– Sim – respondeu Jaenelle baixinho. – Sempre soube.
Alexandra parou por um momento, respirou fundo e abriu a porta sem bater.
A mulher de cabelos louros que moía ervas num almofariz não se virou nem deu qualquer indicação de ter percebido a presença dela. Sobre a mesa pairava uma grande tigela, aquecida por três labaredas de fogo encantado. Uma colher mexia vagarosamente o conteúdo.
Alexandra aguardou. Passado um minuto, disse numa voz angustiada:
– Pode parar de mexer nisso e vir cumprimentar sua avó? Afinal, treze anos se passaram desde a última vez que a vi.
– Um minuto ou dois não farão diferença para quem já esperou treze anos – respondeu Jaenelle, despejando as ervas finamente maceradas no conteúdo fervilhante da tigela. – Mas farão toda a diferença para que este tônico desenvolva a potência adequada.
Virou-se de lado, deu um olhar breve e corrosivo para Alexandra e voltou a centrar a atenção na infusão.
Alexandra cerrou os dentes. Era difícil lidar com essa neta. Mesmo criança, Jaenelle já exibia gestos de superioridade, insinuando que não tinha motivos para mostrar respeito pelos mais velhos ou para se submeter a uma rainha.
Por quê? Pela primeira vez, Alexandra ficou se perguntando. Sempre presumira, como todos os outros, que essas insubordinações eram tentativas de compensar o fato de não usar joias, por ser inferior às outras feiticeiras da família. Mas talvez fossem o resultado de mentiras cativantes sussurradas ao ouvido de uma criança – pelo senhor supremo, por exemplo –, levando-a a acreditar que era superior.
Balançou a cabeça. Era difícil acreditar que a criança que não conseguia realizar os exercícios mais simples de arte pudesse ter crescido e se tornado uma ameaça terrível e poderosa ao reino de Terreille, como Dorothea dizia. Se isso fosse verdade, onde estava o poder? Mesmo agora, em que tentava detectar a força de Jaenelle, parecia... emudecida... como sempre. Distante, que era como se sentia uma fêmea dos Sangue sem força psíquica suficiente para usar uma joia.
O que significava que Jaenelle não passava de um peão num jogo elaborado. O senhor supremo – ou talvez a rainha misteriosa que reinava nesta corte – desejava um testa de ferro atrás do qual poderia se ocultar.
– O que está fazendo? – perguntou Alexandra.
– Um tônico para um menino que está doente – respondeu Jaenelle, acrescentando um líquido escuro à infusão.
– Isso não devia ser feito por uma curandeira?
Fogo do Inferno, eles realmente a deixam produzir tônicos para as pessoas?
– Eu sou curandeira – respondeu Jaenelle asperamente. – Também sou viúva-negra e rainha.
É claro que é. Com algum esforço, Alexandra reprimiu as palavras. Permaneceria calma; estabeleceria uma ligação com a neta mais nova; teria em mente que Jaenelle já passara por experiências terríveis.
Quando Jaenelle terminou o tônico e se virou, Alexandra ficou atordoada. Quem a olhava com aqueles olhos azul-safira? Procurou uma explicação para a estranheza que sentia.
Ao encontrar essa explicação, teve vontade de chorar.
Jaenelle estava louca. Completamente louca. E o monstro que reinava naquele lugar estimulava essa loucura por suas próprias razões. Deixava que Jaenelle acreditasse que era curandeira, viúva-negra e rainha. Sem dúvida permitiria que administrasse aquele tônico em algum menino doente, sem se importar com o que aquilo provocaria na criança.
– O que a traz aqui, Alexandra?
Alexandra sentiu calafrios ao ouvir aquela voz de meia-noite. Jaenelle sempre tivera uma propensão ao drama.
– Vim para levar você e Wilhelmina de volta para casa.
– Por quê? Nestes últimos treze anos vocês pensaram que eu estava morta. Por que não continuam fingindo?
– Não estávamos fingindo – disse Alexandra, irritada. As palavras de Jaenelle magoavam, sobretudo porque eram verdadeiras. Fora mais fácil chorar a morte de uma criança do que lidar com a menina complicada. Mas isso Alexandra jamais admitiria. – Achávamos que Sadi a tinha assassinado.
– Daemon jamais me machucaria.
Mas você sim. Era essa a mensagem implícita na resposta fria e monótona.
– Leland é sua mãe. Eu sou sua avó. Somos a sua família, Jaenelle.
Jaenelle balançou a cabeça devagar.
– Este corpo pode estar ligado à sua linhagem. Isso faz com que tenhamos relações de parentesco. Mas não nos torna família. – Ela foi até a porta. Quando estava quase passando por Alexandra, deteve-se. – Você chegou a ser aprendiz numa assembleia da Ampulheta durante algum tempo, não foi? Antes de ter de escolher entre se tornar viúva-negra ou rainha de Chaillot.
Alexandra assentiu, imaginando aonde aquilo levaria.
– Aprendeu o suficiente para tecer as teias emaranhadas mais simples, do tipo que absorveria uma intenção concentrada e atrairia o objeto para você. Não é verdade? – Quando Alexandra voltou a assentir, os olhos de Jaenelle foram invadidos de tristeza e compreensão. – Quantas vezes se sentou diante de uma dessas teias sonhando com algo que mantivesse Chaillot fora do alcance de Hayll?
Alexandra não conseguia falar, mal conseguia respirar.
– Já lhe ocorreu que essa pode ser a solução do enigma? Saetan também era um sonhador intenso. A diferença é que soube reconhecer o sonho, quando ele finalmente apareceu. – Jaenelle abriu a porta. – Volte para casa, Alexandra. Aqui não há nada nem ninguém para você.
– Wilhelmina – murmurou Alexandra.
– Cumprirá os dezoito meses de contrato. Depois disso, poderá fazer o que bem entender. – O sorriso de Jaenelle tinha algo de irônico e horrível. – Ordens da rainha.
Alexandra respirou fundo.
– Quero ver essa rainha.
– Não, não quer – respondeu Jaenelle, com demasiada delicadeza. – Não quer se apresentar diante do trono das trevas. – Fez uma pausa. – Agora, se me der licença, preciso terminar o tônico. Já ferveu tempo suficiente.
Com toda a indiferença do mundo, ela tinha sido dispensada.
Alexandra saiu da oficina, aliviada por estar longe de Jaenelle. Encontrou um dos jardins interiores e se sentou num banco. Talvez o sol conseguisse afugentar o frio que se infiltrara em seus ossos. Talvez conseguisse acreditar que estava tremendo de frio e não porque Jaenelle tinha mencionado algo que nunca havia contado a ninguém.
Sua avó paterna fora uma viúva-negra natural. Fora por isso que se sentira atraída pela Ampulheta. Nessa época, os Sangue da aristocracia em Chaillot já sussurravam que as viúvas-negras eram mulheres “desnaturais”, e que as outras rainhas e os príncipes dos senhores da guerra jamais escolheriam uma rainha que também fosse feiticeira das assembleias da Ampulheta.
Por isso, abandonou a aprendizagem e, alguns anos mais tarde, quando a avó materna abdicou, tornou-se rainha de Chaillot. Entretanto, durante os primeiros anos como rainha, tecera em segredo aquelas simples teias emaranhadas. Sonhara que alguém ou alguma coisa surgiria em sua vida e a ajudaria a combater a deterioração da sociedade de Chaillot. Na época, pensou que seria um consorte, um macho forte que a apoiaria e ajudaria. Mas nenhum homem desse tipo surgiu em sua vida.
Foi quando sua avó viúva-negra estava morrendo que Alexandra recebeu o que passou a chamar de enigma. Aquilo por que sonha virá, mas, se não tiver cuidado, permanecerá cega até ser tarde demais.
Por isso, aguardara. Observara. Mas o sonho não chegara. E não iria, não podia acreditar que uma criança perturbada e excêntrica fosse a solução do enigma.
Enquanto olhava pela janela, pôs a mão dentro da camisa e sentiu o pequeno frasco de vidro pendurado numa corrente ao pescoço. A sacerdotisa suprema de Hayll garantira-lhe que havia tecido, junto com a sacerdotisa das trevas, os feitiços mais potentes que conheciam para que passasse despercebido. Até agora, tinham funcionado. Ninguém detectara que ele era mais do que um mero acompanhante de Alexandra Angelline. Era apenas um homem insípido, praticamente invisível. E isso lhe servia perfeitamente.
A missão parecera fácil. Localizar o alvo, drogá-la para torná-la complacente e, então, levá-la para fora do Paço até os homens que estariam a aguardando. Quando se deu conta do tamanho do local, achou que seria ainda mais fácil.
No entanto, apesar do tamanho, o Paço estava atulhado de machos agressivos, desde o mais subalterno dos criados até o senhor supremo. E parecia que as vagabundas nunca estavam sozinhas. Arrastara-se pelos corredores durante horas sem sentir sequer um cheirinho de qualquer uma delas.
Estremeceu ao se lembrar do único vislumbre da vadia de cabelos louros. Fora repetidamente informado de que ela era o alvo principal, mas não tinha qualquer intenção de se aproximar dela. Ele não sabia se os feitiços resistiriam àquele olhar azul-safira. Por isso, raptaria a irmã. Mas teria de fazer isso rapidamente. Talvez acompanhasse Wilhelmina durante todo o caminho de volta a Hayll. Assim que a tirasse dali, que diferença faria se dessem pela sua falta?
Também não se importava com Alexandra. Ela que ficasse para explicar o desaparecimento da neta para o senhor supremo... ou para pagar o preço por isso.
A raiva dava voltas dentro de Dorothea. O breve relatório pendia de uma das mãos.
– Você está angustiada, irmã – disse Hekatah enquanto entrava na sala e se sentava.
– Kartane partiu para Kaeleer. – Não conseguia conferir força à voz.
– Partiu com a intenção de consultar as curandeiras de lá, para saber se conseguem curá-lo? – Hekatah pensou naquilo por um momento. – Mas por que agora? Poderia ter ido a qualquer momento nos últimos anos.
– Talvez só agora tenha algo de valioso com que negociar.
Hekatah assobiou, compreendendo de imediato.
– Quanto ele sabe?
– Estava presente à minha “confissão” naquele dia, mas isso não é grande coisa para contar.
– É o suficiente para deixar Saetan cauteloso – disse Hekatah, agourenta. – É o suficiente para que comece a fazer perguntas.
– Então talvez devêssemos tomar providências antes que Kartane tenha chance de falar com alguém fora da Pequena Terreille – disse Dorothea baixinho.
Hekatah se levantou e começou a andar de um lado para outro.
– Não. Vamos ver se conseguimos usar Kartane como isca para atrair uma curandeira específica à Pequena Terreille.
Dorothea resfolegou.
– Acredita realmente que Jaenelle Angelline vai ajudar Kartane?
– Vou à Pequena Terreille esta noite e falarei com lorde Jorval. Ele saberá como redigir um pedido discreto. – Já perto da porta, preparando-se para sair, Hekatah se deteve. – Quando seu senhorzinho da guerra voltar para casa, talvez seja o caso de lhe dar uma lição sobre lealdade.
Dorothea esperou que Hekatah saísse e foi até a lareira. Deixou cair o relatório nas labaredas e ficou contemplando as chamas devorarem o papel.
Quando terminasse a guerra que estavam iniciando, construiria uma grande fogueira ao ar livre e ficaria olhando as chamas devorarem aquele cadáver ressequido. Assistiria a Hekatah arder, daria ao filho uma lição sobre lealdade.
– Preciso de um favor – disse Karla, abruptamente, depois de dez minutos jogando conversa fora e falando sobre os eyrienos que Lucivar havia trazido.
Jaenelle ergueu os olhos do bordado em que estava trabalhando com um olhar desconfiado mas repleto de divertimento.
– Está bem.
– Quero um anel de honra como os que ofereceu aos rapazes do primeiro círculo.
– Querida, eles usam o anel de honra no pau. Você pode até ter colhões, mas não desse tipo.
– Os machos parentes não os usam lá. Você mandou fazer pequenos anéis que são presos na corrente onde usam as joias.
– Então você quer um anel de honra – disse Jaenelle, ainda com o ar divertido e acrescentando pontos ao desenho do bordado.
Karla assentiu de modo solene.
– Para toda a assembleia.
Jaenelle ergueu os olhos, já sem o ar divertido. Karla a encarou, reconhecendo na alteração sutil daqueles olhos azul-safira que já não estava falando com Jaenelle, sua amiga e irmã. Estava se dirigindo à feiticeira, a rainha de Ebon Askavi. Sua rainha.
– Você tem um motivo para isso – afirmou Jaenelle com a voz de meia-noite. Não era uma pergunta.
– Sim.
Quanto teria de revelar para convencer Jaenelle? E quanto do que vira na teia emaranhada poderia ficar por dizer? Alguns minutos se passaram em silêncio.
Jaenelle retomou o bordado.
– Se for para usar no dedo, deve ser adornado para que sua real finalidade não seja óbvia – disse, serenamente. – Imagino que o interesse que demonstra pelo anel resida sobretudo nos feitiços de proteção que acrescentei a ele.
– Sim – concordou Karla, baixinho.
Os feitiços de proteção, os escudos cinza-ébano que Jaenelle colocara nos anéis, eram a razão pela qual desejava possuir um.
– Quer que os anéis estejam ligados somente entre os membros da assembleia ou que também tenham ligação com os rapazes?
Karla hesitou. Um anel de honra normal permitia que a rainha vigiasse as emoções dos machos de seu primeiro círculo. Devido a um equívoco no modo como Jaenelle fabricara o primeiro anel de honra – aquele que Lucivar ainda usava –, os machos do primeiro círculo da corte das trevas tinham, igualmente, a capacidade de sentir o estado de espírito da rainha. Desejaria ela, ou qualquer outra das feiticeiras da assembleia, ter de lidar com machos ainda mais sensíveis aos estados de espírito femininos do que já eram? Esse ligeiro distanciamento emocional compensaria a perda da possibilidade de enviar um aviso que não podia, de forma alguma, ser bloqueado?
– Devem estar ligados aos machos do primeiro círculo.
– Produzirei os anéis assim que possível – disse Jaenelle, com serenidade.
– Obrigada, senhora – respondeu Karla, agradecendo sobretudo à rainha, e não tanto à amiga.
Uma nova onda de silêncio invadiu o recinto.
– Mais alguma coisa? – perguntou Jaenelle, passado algum tempo.
Karla soltou um suspiro profundo.
– Não gosto de seus familiares.
– Ninguém aqui gosta – respondeu Jaenelle, embora houvesse mágoa e aspereza sob o ar divertido. Em seguida, acrescentou com extrema tranquilidade: – Saetan solicitou formalmente meu consentimento para a execução deles.
– E você concordou? – perguntou Karla, com um tom de voz neutro.
Já sabia a resposta. Estivera na mesma situação cinco anos antes, quando se tornara rainha de Glácia. Exilara o tio, lorde Hobart, em vez de executá-lo, embora tivesse fortes suspeitas de que ele fora responsável pela morte de seus pais e dos pais de Morton.
Jaenelle faria a mesma escolha.
– Se serve de consolo, gosto de sua irmã – disse Karla, vendo que Jaenelle não respondia. – Vai se adaptar perfeitamente à vida em Kaeleer se conseguir deixar de ter medo.
Jaenelle pareceu ligeiramente angustiada.
– Lucivar a embebedou. Ela se ofereceu para escová-lo.
– Ah, Mãe Noite.
Quando as gargalhadas esmoreceram, Karla se levantou do sofá, deu boa-noite a Jaenelle e foi para seus aposentos. Na privacidade de seu quarto, permitiu-se alguns grunhidos e gemidos enquanto se preparava para se deitar. Independentemente do quanto se exercitava, levava sempre alguns dias para se adaptar aos treinos a que Lucivar a submetia. Entretanto, não perderia a oportunidade de treinar mais um pouco com ele.
Apenas mais tarde, quando estava quase adormecendo, que lhe ocorreu que Jaenelle, uma viúva-negra poderosíssima e muito dotada, poderia ter suas próprias razões para ter concordado com seu pedido.
Com um cuidado exagerado, Daemon amarrou o cordão do roupão. O banho quente tinha reconfortado seus músculos tensos e exaustos. Uma generosa dose de conhaque abrandaria a mente. Mas nenhuma dessas duas coisas poderia acalmar um coração machucado.
Jaenelle não o queria. Isso estava se tornando dolorosamente evidente.
Quando viera procurá-lo na noite anterior, ele pensara que ficara satisfeita em vê-lo, sentira-se confiante de que poderiam recomeçar. Hoje, porém, tinha se afastado todas as vezes que Daemon tentara uma aproximação, amparando-se em Lucivar ou Chaosti. Atribuíra-lhe o título de consorte por algum sentimento de obrigação, mas não o desejava.
Por quanto tempo, Daemon imaginava ao entrar em seu quarto, conseguiria observá-la interagindo com os outros machos da corte enquanto o bania de sua vida? Por quanto tempo sua estabilidade mental resistiria se, dia após dia, estando prestes a tocar-lhe, não lhe fosse permitido fazê-lo? Por quanto tempo...
Vendo algo sob a tênue luz, pensou que alguém havia entrado em seu quarto e largado um cobertor de pelo branco sobre a cama, sem aplaná-lo. Foi então que viu uma cabeça se erguendo das almofadas e músculos se agitando sob o pelo branco enquanto o enorme felino mudava de posição.
As patas da frente, que pendiam para o lado da cama, curvaram-se para revelar garras impressionantes. Olhos cinzentos fitavam-no como se estivessem a desafiá-lo para tentar fazer mais do que respirar.
Mesmo que não tivesse visto a joia vermelha em meio ao pelo branco, Daemon não teria a menor dúvida sobre quem estava esparramado em sua cama.
Todos nós tentamos não aborrecer Kaelas, mencionara Lucivar.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas.
Com o coração batendo descompassado, Daemon recuou cautelosamente até a porta. Os aposentos de Saetan ficavam logo em frente. Podia...
Assim que pousou a mão na maçaneta, sentiu algo enorme se chocando violentamente do outro lado da porta.
Os lábios de Kaelas formaram um rosnado silencioso.
Só lhe restava uma saída.
Sem desviar os olhos de Kaelas, Daemon se deslocou até a porta que separava seu quarto do de Jaenelle. Abriu a porta apenas o suficiente para conseguir passar, entrou no quarto de Jaenelle, trancou a porta com a negra e acrescentou um escudo negro. Se o que Lucivar contara sobre Kaelas conseguir atravessar qualquer escudo fosse verdade, a fechadura e o escudo seriam inúteis, mas ao menos lhe proporcionariam uma sensação de conforto.
Enquanto recuava cada vez mais para dentro do quarto, começou a tremer. Não era exatamente por causa de Kaelas. Qualquer homem com um instinto saudável de sobrevivência teria receio de um gato daquele tamanho, sobretudo se esse gato fosse também um príncipe dos senhores da guerra de joia vermelha. Esse medo avassalador, entretanto, não existia para Daemon. Pelo menos não antes de estilhaçar a mente pela primeira vez no altar de Cassandra. Agora...
– Daemon?
Sentindo dificuldade para respirar, ele se virou. Jaenelle estava na soleira da porta que levava ao resto de seus aposentos, com um pijama de cor azul-safira. Ao vê-la, perdeu o equilíbrio de várias formas. Jaenelle correu a seu encontro e envolveu sua cintura com os braços para impedir que caísse.
– O que está acontecendo? Está doente?
– Eu...
– Consegue andar até a cama?
Incapaz de falar, assentiu com a cabeça.
– Sente-se – disse Jaenelle. – Respire devagar.
Daemon obedeceu. No entanto, ao fazê-lo, o roupão se abriu. Curvou-se na esperança de não estar revelando nada que Jaenelle não desejasse ver, uma vez que estava agachada à sua frente.
– Pode me dizer o que está acontecendo? – perguntou Jaenelle, enquanto passava os dedos pelo cabelo de Daemon.
Você não me ama.
– Na minha cama – arquejou.
Jaenelle voltou a olhar para a porta que ligava os dois quartos. Semicerrou os olhos.
– O que Kaelas está fazendo em seu quarto?
– Está dormindo. Na minha cama.
– O quarto é seu. Por que não lhe disse para sair?
Por quê? Porque não queria morrer esta noite.
No entanto, Jaenelle parecia tão estarrecida que Daemon ergueu a cabeça para olhá-la. Estava falando sério. Não hesitaria em arrastar 350 quilos de um felino rosnador para fora de sua cama.
Jaenelle se ergueu.
– Vou mand...
Daemon agarrou sua mão.
– Não. Tudo bem. Vou procurar outra cama. Um sofá. Fogo do Inferno, vou dormir no chão.
Aqueles olhos ancestrais o examinaram. Por um instante, vislumbrou um brilho incomum.
– Quer dormir aqui esta noite? – perguntou serenamente.
Sim. Não. Não queria vir até ela como um macho assustado e carente. Do mesmo modo, também não recusaria aquele que poderia ser o único convite que receberia para a cama de Jaenelle.
– Sim, por favor.
Ela afastou os cobertores tanto quanto conseguiu com Daemon ainda sentado na cama.
– Pode se deitar.
– Eu... – Sentiu o rosto ardendo.
– Imagino que use o mesmo que qualquer outro macho deste local para dormir – disse Jaenelle sarcasticamente.
Ou seja, “nada”.
Jaenelle caminhou até o outro lado do quarto, de costas para ele, educadamente.
Daemon despiu o roupão e se enfiou na cama colossal. Não admirava que o tivesse convidado a ficar. A cama era tão grande que outro ocupante jamais a incomodaria.
Passado um minuto, Jaenelle se deitou, mantendo-se em seu lado da cama. Ao desligar o candeeiro, murmurou:
– Boa noite, Daemon.
Por muito tempo, ficou deitado no escuro ouvindo a respiração de Jaenelle, certo de que ela não estava dormindo.
Por fim, a cama quentinha, o murmúrio da fonte no jardim e o cheiro do sabonete ou perfume de Jaenelle o embalaram num sono profundo.
Os sons serenos, quase furtivos, o despertaram. Escuridão. Névoa rodopiante.
Apoiando-se num cotovelo, olhou ao redor e viu-a junto ao altar. A cabeleira loura. As orelhas delicadamente pontudas. A estreita faixa de pelo que percorria a coluna até o rabo de corça que se movia sobre as nádegas. As pernas humanas que terminavam em cascos. As mãos com garras recolhidas.
Feiticeira. O mito vivo. Os sonhos tornados realidade. Estava de volta ao local enevoado, no abismo profundo. O local onde...
Levantou-se devagar. Movendo-se cautelosamente para não assustá-la, contornou o altar até ficar de frente para Jaenelle. No altar havia um cálice de cristal com fendas da espessura de um fio de cabelo. Enquanto a observava em silêncio, Jaenelle pegou uma lasca de cristal e a colocou em seu devido lugar.
Dentro de si, Daemon sentiu alguma coisa mudar. Fitando o cálice com mais atenção, percebeu que se tratava de sua própria mente estilhaçada.
Reparou em outros três diminutos fragmentos. Estendeu a mão para um deles, mas Jaenelle lhe deu um tapa.
– Tem ideia do trabalho que tive para encontrá-lo? – rosnou.
Virou o cálice e voltou a colocar outra pequena lasca em seu respectivo lugar.
A névoa rodopiava, dançava, girava.
Caindo, caindo, caindo no abismo. Sua mente se estilhaçando. Acordando no local enevoado. Vendo Jaenelle como feiticeira pela primeira vez enquanto ela reconstruía seu cálice de cristal.
Outra lasca encontrou seu lugar.
Uma cama estreita com tiras para prender mãos e pés – a cama de Briarwood. Uma cama suntuosa com lençóis de seda. Uma armadilha sedutora feita de amor e de mentiras e de verdades – uma armadilha para salvar uma criança. O Sádico sussurrando que ela morderia a isca pois ele, em toda sua glória sexual de macho, era a isca.
A última lasca encontrou seu lugar.
Restabelecendo a ligação psíquica com Saetan depois de ter convencido Jaenelle a subir até o nível das joias vermelhas. Os dois a forçando a curar o próprio corpo dilacerado e ensanguentado. O pânico de Jaenelle ao ouvir os machos de Briarwood lutando contra as defesas que Surreal criara nos corredores que levavam ao altar. Cassandra abrindo o portão entre os reinos e levando Jaenelle.
O cálice de cristal brilhou, aquecido pelo poder obscuro da feiticeira, que cobriu todas as fendas e as selou.
Agora que as fendas estavam preenchidas, as memórias voltaram. Finalmente ele se lembrou rigorosamente do que acontecera treze anos antes, no altar de Cassandra. Compreendeu tudo o que fizera – e o que não fizera.
Suspirou. Jaenelle o olhou, os nervos se debatendo com a inteligência feroz e aguda naqueles olhos ancestrais.
– Os pedaços que estavam faltando criavam pontos fracos que fragilizavam o cálice. Agora você vai ficar bem.
– Obrigado.
– Não quero sua gratidão – retrucou.
Observando-a, Daemon abriu as barreiras interiores o bastante para sentir as emoções de Jaenelle. O sofrimento que detectou o surpreendeu.
– E o que você quer, afinal? – perguntou, calmamente.
Ela acariciou, nervosa, a base do cálice. Daemon ficou imaginando se ela se dava conta de que ele podia sentir aquelas carícias. E ficou imaginando se ela percebia o que aquelas carícias lhe provocavam. Começou a dar voltas no altar, os dedos tocando levemente na pedra.
– Nada – disse Jaenelle baixinho enquanto dava meio passo para se afastar dele. Acrescentou: – Você mentiu para mim. Não desejava a feiticeira.
Daemon foi invadido pelo fogo da raiva, despertando aquele seu lado que os Sangue em Terreille chamavam de Sádico. Quando a raiva arrefeceu, foi substituída por outro tipo de fogo.
Sua voz adquiriu um ronronar sexual.
– Eu amo você. E esperei a vida toda para me tornar seu amante. Mas era jovem demais, senhora.
Ela ergueu a cabeça, o corpo hirto de dignidade.
– Não era tão nova assim aqui, no abismo.
Lentamente, ele continuava a dar voltas no altar.
– Seu corpo tinha sido violentado. Sua mente estava estilhaçada. Mas mesmo que não fosse este o caso, você ainda era jovem demais. Mesmo aqui no abismo.
Surgiu por trás de Jaenelle. Passou os dedos levemente por seu quadril, pela cintura. Subindo um pouco, seus dedos tocaram ligeiramente a parte inferior dos seios. Aproximou-se, sorrindo com um prazer selvagem enquanto o rabo de corça que balançava nervosamente o provocava e excitava.
Beijou-a no espaço entre o pescoço e o ombro. O primeiro beijo foi leve e casto. No segundo beijo, usou os dentes para mantê-la imóvel enquanto a ponta da língua acariciava e saboreava sua pele.
Podia sentir seu coração aos saltos, cada palpitação ofegante. Deixando um rastro de beijos suaves pescoço acima, sussurrou, por fim, em seu ouvido:
– Já não é nova demais.
Jaenelle soltou um gritinho arquejante ao senti-lo roçar com delicadeza em seu corpo. Subitamente, Daemon ficou com as mãos vazias e se viu sozinho. Sentiu um desejo ardente rugindo dentro de si. Virou-se num círculo lento, procurando, perscrutando.
O predador em busca da presa.
A última coisa de que se deu conta plenamente foi a névoa ficando cada vez mais densa e rodopiando à sua volta até não restar mais nada.
Debatia-se para atravessar o nevoeiro denso do sono quando sentiu alguém segurando seu braço e o arrastando para fora da cama. Atordoado, tentou despertar. Não sabia por que estava sendo arrastado pelo quarto.
Não teve qualquer dificuldade para acordar quando Lucivar o empurrou para debaixo do chuveiro e ligou a água fria na potência máxima.
Daemon tateou até encontrar a torneira e por fim conseguiu desligar a água. Apoiando-se com uma das mãos na parede, tentou convencer os músculos enrijecidos pelo frio a libertar os pulmões para respirar. Foi então que lançou um olhar furioso a Lucivar.
– Jaenelle acordou num estado de espírito semelhante – disse Lucivar, calmamente. – Deve ter sido uma noite interessante.
– Não aconteceu nada – resmungou Daemon, afastando o cabelo para trás.
– Nada físico – disse Lucivar. – Mas eu mesmo já dancei muitas vezes com o Sádico para reconhecê-lo quando o vejo.
Daemon não disse nada. Os lábios de Lucivar formaram aquele sorriso sonolento e arrogante.
– Bem-vindo a Kaeleer, irmão – disse, com gentileza. – É bom tê-lo de volta. – Parou à porta da banheiro. – Já lhe trago uma xícara de café. Isso e um banho quente devem ser suficientes para despertá-lo.
– Despertar para quê? – perguntou Daemon, cauteloso.
O sorriso de Lucivar ganhou contornos perversos.
– Está atrasado para o treino, meu velho. Mas, tendo em conta as circunstâncias, vou lhe dar mais quinze minutos para chegar ao campo antes de vir outra vez à sua procura.
– E se tiver de vir outra vez? – perguntou Daemon com demasiada gentileza.
– Acredite. Se tiver de vir aqui de novo, você não vai gostar nem um pouco.
Já não estava gostando nada. Mas bebeu o café que Lucivar lhe trouxe enquanto a água quente lhe caía pelo pescoço e as costas.
O Sádico começou a planejar a sedução serena e dócil de Jaenelle Angelline.
Alexandra caminhava pelos corredores com Philip a seu lado. Teria preferido a companhia de Leland, mas a forma como Philip prontamente se oferecera para acompanhá-la significava que queria discutir algo em privado.
Irritada com a presença dele, Alexandra explodiu:
– Estamos aqui há mais de uma semana e nada aconteceu. Quanto tempo aquele “acompanhante” espera que permaneçamos aqui como hóspedes?
Philip não precisava lembrá-la de que Osvald, o acompanhante que Dorothea providenciara, não havia tido oportunidade de se aproximar de Wilhelmina ou de Jaenelle. Também não precisava salientar que seriam “hóspedes” até que o senhor supremo – ou a verdadeira rainha – decidisse de modo diferente.
– Lucivar veio me ver esta manhã – disse Philip, abruptamente.
Detectando tensão na voz de Philip, Alexandra olhou para ele, e depois de forma mais atenta para o rubor que obscurecia seu rosto. Seria raiva ou vergonha?
– E?
– Ele sugeriu que controle Vania antes que ela se machuque. Parece que tem sido agressiva demais em suas tentativas de aliciar um macho de Kaeleer para sua cama. Para Lucivar, Vania deveria convidar seu consorte, já que está tão ansiosa por um macho.
Pessoalmente, Alexandra achava que Vania se comportava como uma puta. Mas ela também era generosa na hora de partilhar seus machos com as rainhas que a visitavam – generosidade que Alexandra nunca recusava quando visitava aquela província.
Alexandra não tinha um amante fixo em sua própria corte há mais de 25 anos – desde que solicitara a Philip que acompanhasse Leland na Noite da Virgem. Não teria sido justo para ninguém se tivesse pedido a Philip que aquecesse sua cama depois disso, quando tudo o que ele desejava era ser amante de sua filha. Além disso, os homens que considerara para essa posição estavam muito mais interessados no poder do que em lhe proporcionar prazer.
– Ela não precisaria ser “agressiva” se esta corte se lembrasse de proporcionar as comodidades básicas às rainhas visitantes.
– Foi o que aleguei – disse Philip, com os dentes cerrados. – Mas fui informado de que os machos desta corte não fazem esse tipo de serviço.
– Isso é difícil de acreditar. Nem todas as rainhas que vêm aqui têm necessariamente um consorte. Tem de existir alguma forma... – Calou-se, abalada pela profundidade do insulto. – É porque somos de Terreille, não é?
– Sim – respondeu Philip de maneira categórica. – Lucivar me explicou que alguns machos do segundo ou terceiro círculos normalmente estariam dispostos a receber uma convidada da corte se isso lhes fosse solicitado, mas nenhum deles se ofereceria de livre vontade, uma vez que as rainhas terreillianas não sabem desfrutar de um macho sem o maltratarem. Ele acrescentou que não existem escravos do prazer em Kaeleer.
Aquele tapa verbal machucou tanto como um murro, pois era um lembrete de que, por alguns meses, Daemon Sadi servira como escravo do prazer em sua corte.
– Compreendo.
– Apesar da raiva que demonstrou em relação a essa situação, Lucivar parecia realmente preocupado – disse Philip, parecendo desconcertado. – Sobretudo porque Vania concentrou seus esforços no príncipe Aaron.
– Aaron é um homem muito bonito e...
– É casado.
Não havia muito o que argumentar diante disso, sobretudo quando sentia as ondas de ansiedade que fluíam de Philip. A atenção especial que Vania dedicava a um homem casado seria um violento lembrete de sua própria vulnerabilidade.
A maioria dos machos dos Sangue ainda prezava o conceito do casamento, uma vez que era a única relação em que os gêneros permaneciam em pé de igualdade, como companheiros. Mas isso também significava que a fidelidade dos machos era um requisito importante. Qualquer homem que olhasse além da cama da esposa poderia rapidamente se descobrir sem casa nem família, podendo até perder os filhos.
– Há outra razão para refrear Vania – disse Philip. – Se os machos deste lugar ficarem ainda mais nervosos...
– Eu sei – respondeu Alexandra, rispidamente. Jamais conseguiriam levar Wilhelmina e Jaenelle do Paço se os machos se tornassem ainda mais hostis do que já eram. – Falarei com ela.
– Em breve?
– Sim, Philip. Falarei com ela em breve.
Uma reunião interessante, pensava Daemon enquanto enfiava as mãos nos bolsos das calças e imaginava o que significaria quando o administrador da corte convocava o mestre da guarda, o consorte e o primeiro acompanhante a seu escritório para “discutir uma coisa”.
Passara os últimos dois dias estudando o livro que Saetan havia lhe dado e ficara surpreso com as diferenças entre as regras dali e as de Terreille. Este protocolo, embora reforçasse a natureza matriarcal dos Sangue, proporcionava aos machos alguns direitos e privilégios que contribuíam para o equilíbrio do poder. O que explicava a refrescante ausência de receio e subserviência nesses machos. Eles compreendiam os limites que definiam o comportamento aceitável por parte dos homens e, dentro desses limites, mantinham-se em terreno firme, sem precisar ficar imaginando o que lhes aconteceria se deixassem de estar nas boas graças de uma determinada senhora.
Ficara surpreso também com a seção do protocolo que dizia respeito aos machos do primeiro círculo, uma vez que jamais vira sequer uma breve referência a isso em Terreille.
Deparou-se com uma frase que resumia a entrega de um macho ao serviço formal: sua vontade é a minha vida. Isso dava à rainha o direito de fazer o que bem entendesse com um macho, inclusive matá-lo. Isso não era novidade e, em Terreille, constituía um risco sério. A diferença residia no acordo tácito por parte da rainha, que, ao aceitar o macho, aceitava também seu direito de opinar sobre suas decisões e sua vida. Se a rainha desse uma ordem à qual a maior parte dos machos do primeiro círculo se opusesse, poderia se submeter à decisão deles ou dispensá-los da corte. No entanto, não lhes podia infligir qualquer mal por se oporem a ela.
Se os machos em Terreille tivessem conhecimento dessa parte do protocolo, poderiam ter questionado o comportamento das rainhas de estimação de Dorothea, ter mantido as jovens e fortes feiticeiras seguras e íntegras, ter encontrado uma forma de combater as ameaças de escravidão e de castração que amedrontavam a maior parte dos machos, impedindo-os de desafiar as feiticeiras no poder.
Mas alguma coisa – ou alguém – havia eliminado as seções que abordavam o poder masculino dos livros de protocolo em Terreille, e isso acontecera há tanto tempo que ninguém mais se lembrava de sua existência.
Não admirava que os terreillianos achassem tão chocante residir em Kaeleer. E agora finalmente fazia sentido a exigência de que imigrantes oriundos de Terreille servissem numa corte. Eles precisavam desse tempo para absorver as novas regras e compreender de que forma se aplicavam na vida cotidiana. Isso alimentava sua curiosidade em relação ao “dar e receber” formal entre uma rainha e o triângulo masculino.
Partindo do princípio, é claro, que a rainha fosse comparecer.
– Alguém avisou a gata que ela deveria estar presente? – perguntou Lucivar, ecoando o pensamento de Daemon.
Saetan olhou Lucivar com ternura.
– Falei com ela. Mas lorde Ladvarian a encurralou para discutir alguns assuntos. Imagino que ela virá assim que terminar a conversa com Ladvarian e Kaelas.
Saetan concentrava seu olhar em Daemon agora, cujo coração batia acelerado. Tinha a nítida impressão de que o assunto entre Ladvarian e Kaelas o envolvia de alguma forma. Tentava encontrar uma desculpa que lhe permitisse arrastar Lucivar para o salão principal, a fim de lhe perguntar a razão do interesse dos parentes pelo consorte, quando Jaenelle irrompeu no escritório.
– Desculpem, eu... – Deteve-se quando os viu, e sua desorientação se transformou em precaução. – É família ou corte? – perguntou, cautelosa.
– Corte – respondeu Saetan.
Fascinado, Daemon observou a mudança sutil de mulher para rainha.
– E qual é o desejo da corte? – perguntou Jaenelle, com serenidade.
Daemon concluiu que não havia vestígio de escárnio em sua voz, reconhecendo uma das aberturas cerimoniais das discussões.
– Recebi uma mensagem de lorde Jorval – explicou Saetan, com igual serenidade, embora seu olhar parecesse demasiadamente inexpressivo. – Uma prestigiada família aristocrática veio a Kaeleer em busca de ajuda devido a uma doença que deixou todas as curandeiras em Terreille perplexas. Como você é a melhor curandeira do reino, ele solicita que vá a Goth para lhe dar sua opinião.
Lucivar rosnou baixinho, mas de forma agressiva. Um gesto curto mas abrupto de Andulvar o silenciou.
– Jorval diz ainda que, embora tenha certeza de que a doença não é contagiosa, parece afetar unicamente machos. E uma vez que não deseja que os machos de sua corte sejam afligidos por qualquer mal...
Desta vez, foi Andulvar que resfolegou.
– Ele ofereceu uma escolta para acompanhá-la durante sua permanência na Pequena Terreille.
– NÃO! – gritou Lucivar. – Você não vai à Pequena Terreille para realizar uma cura sem uma escolta completa constituída por seus próprios machos. De novo, não. Nunca mais. Se essa pessoa quer vê-la tão desesperadamente, por que não vem aqui?
– Consigo pensar em algumas razões – respondeu Jaenelle com seu humor cáustico, enquanto observava Lucivar.
O sangue de Daemon cantou quando seu olhar cruzou com o de Jaenelle por um momento. Então gelou ao ver um tremeluzir no fundo dos olhos dourados de Saetan. O que o senhor supremo estaria tentando ocultar por trás daquele olhar deliberadamente indiferente?
E o que aconteceria se a correia arrebentasse?
– Jorval disse de onde vem esse indivíduo? Ou algo sobre a doença que possa ser útil? – perguntou Jaenelle, voltando-se para Saetan, enquanto Lucivar caminhava para a frente e para trás, praguejando.
– Somente que as raças de longevidade reduzida parecem ser as mais afetadas – disse Saetan.
Os lábios de Jaenelle se acalmaram, deixando transparecer o vestígio de um sorriso sonhador mas suficientemente malévolo para provocar arrepios em Daemon.
– As raças da zona mais ocidental de Terreille? – perguntou com a voz de meia-noite.
– Ele não falou nada sobre isso, senhora.
Jaenelle assentiu, pensativa.
– Vou pensar no assunto.
– Não há nada para pensar – resmungou Lucivar. – Você não vai. Talvez não se lembre muito bem do que aconteceu há sete anos, mas eu me lembro. Não vamos passar por isso de novo, especialmente você.
Daemon estudou Lucivar. Além da fúria, havia pânico em sua voz. Reprimiu um suspiro, descontente por se opor à sua rainha no primeiro ato oficial como consorte. Porém, o que quer que fosse que amedrontava Lucivar daquela forma não podia ser algo com que concordaria.
Reparou então no rosto de Jaenelle ao se virar para Lucivar – e imaginou quantos seriam os homens que se atreveriam a fazer frente à feiticeira agora que atingira a maturidade e estava no auge de seu poder.
Lucivar parou no meio de uma passada ao sentir aqueles olhos azul-safira em cima dele. Estremeceu, mas não desviou o olhar, e manteve a voz firme ao dizer baixinho:
– A única forma de chegar à Pequena Terreille é passando por cima de mim.
E saiu do escritório.
Os ombros de Jaenelle caíram ligeiramente por um instante e voltaram a se endireitar quando se virou para Daemon.
– Vá atrás dele, por favor – pediu ela.
– Por quê? – perguntou Daemon, demasiadamente sereno.
O olhar fixo da rainha mostrava exasperação.
– Porque você tem força suficiente para detê-lo e não quero que ele comece a encher a cabeça dos rapazes por causa de uma decisão que ainda não tomei.
Era o primeiro pedido que lhe fazia, mas não estava certo se conseguiria executá-lo.
– O que aconteceu sete anos atrás?
O rosto de Jaenelle ficou pálido como a morte, e ela demorou algum tempo a responder.
– É melhor perguntar a Lucivar. Como ele próprio afirmou, lembra-se melhor do que eu.
Aguardou durante algumas batidas do coração.
– De quanto tempo precisa?
Desta vez, Jaenelle olhou para Saetan.
– Uma hora seria conveniente?
– Teremos todo o prazer em nos reunir novamente dentro de uma hora – disse Saetan.
– Muito bem – disse Daemon. – Posso detê-lo por uma hora.
Assentindo com a cabeça para confirmar que o tinha ouvido, Jaenelle saiu da sala apressadamente. Daemon fitou a porta fechada, plenamente consciente de que Andulvar e Saetan aguardavam alguma indicação sobre o que faria.
– Vou perguntar a ele – disse calmamente. – E, se não gostar da resposta, ela também terá de passar por cima de mim. – Para protegê-la, sacrificaria toda e qualquer oportunidade de se tornar amante de Jaenelle.
– Não vai gostar da resposta – disse Saetan –, mas eu não me preocuparia sobre ter que tomar uma posição. Se Jaenelle decidir ir à Pequena Terreille, terá de passar por cima de todo o primeiro círculo. E como não é provável que ela vá brigar com toda a corte por causa dessa cura em particular, devemos dar tempo à senhora para que chegue a essa conclusão por si mesma, por uma questão de respeito.
– Nesse caso, se me dão licença, é melhor ir ver o que posso fazer para controlar o temperamento de Lucivar.
*Lucivar está descontente*, disse Ladvarian enquanto observava Jaenelle olhando fixamente a queda d’água e os lagos de vários níveis que construíra neste jardim interior, muitos anos atrás.
– Quero pensar, senhor da guerra – disse Jaenelle, baixinho. – Sozinha.
O sceltita mexeu as patas.
*Está rabugento e chateado e não fala com nenhum de nós.* Este odor específico de raiva e de medo que vinha de Lucivar só era sentido quando Jaenelle ou Marian faziam algo que perturbava o eyrieno. Uma vez que Marian não havia feito nada fora do comum, Jaenelle sem dúvida havia feito. Ou estava prestes a fazer.
Os lábios se afastaram num rosnado silencioso.
*Jaenelle.*
Ao se virar para encará-lo, Ladvarian viu que ela segurava uma grande ampulheta de madeira escura. Sem dizer uma palavra, Jaenelle a virou, pousou-a na borda de pedra do lago mais baixo e caminhou até a extremidade oposta do jardim.
Ladvarian rosnou baixinho para a ampulheta.
Os parentes tinham dificuldade para perceber a maneira como os humanos dividiam o dia nessas pequenas parcelas que chamavam de horas e minutos. Tinham compreendido com relativa facilidade que, às vezes, as fêmeas humanas queriam ficar sozinhas, embora não soubesse ainda por quanto tempo. Por isso o senhor supremo e a senhora tinham inventado essas ampulhetas de fácil compreensão. Se a areia tivesse passado para a parte de baixo, a fêmea estava disposta a brincar de novo. Do contrário, o parente ia embora sem perturbá-la.
Jaenelle tinha dois conjuntos de ampulhetas. Cada um deles tinha uma ampulheta dimensionada para uma hora, meia hora e um quarto de hora. Jaenelle usava o conjunto de madeira clara como um pedido para ficar algum tempo sozinha, mas podia ser interrompida se fosse necessário. A feiticeira, a rainha, usava o conjunto de madeira escura, e essas ampulhetas representavam uma ordem implícita.
Ladvarian saiu trotando do jardim, aceitando a dispensa.
Não desafiaria a rainha. Pelo menos aprendera que, se fosse severamente atiçado, Lucivar acabaria explodindo. E então Ladvarian e os outros machos ficariam sabendo o que a senhora planejava fazer.
Por meio da arte, qualquer membro dos Sangue que usasse joias seria capaz de lançar um machado com precisão através de um pedaço de madeira. Daemon concluiu que Lucivar não usava nada além de força muscular e fúria enquanto observava o machado partindo a madeira ao meio.
E isso, mais do que tudo o que observara desde sua chegada a Kaeleer, mostrava-lhe quão diferente era o serviço nesta corte. Em Terreille, Lucivar teria começado uma briga com outro macho e a violência resultante seria capaz de despedaçar o lugar. Aqui ele descarregava sua fúria na madeira que serviria para aquecer o Paço nos dias de inverno que se aproximavam.
– Ela o mandou aqui para me manter sob controle? – perguntou Lucivar com rispidez, arremessando novamente o machado.
– O que aconteceu sete anos atrás, Lucivar? – perguntou Daemon. – Por que se opõe com tanta veemência que Jaenelle vá à Pequena Terreille para realizar uma cura?
– Você não vai me dissuadir, sacana.
– Não tenho qualquer interesse nisso. Só quero saber por que estou prestes a ficar contra os desejos de minha rainha.
O machado golpeou a madeira com tanta força que a lâmina ficou presa no tronco. Lucivar invocou uma toalha e limpou o suor do rosto.
– Sete anos atrás, Jaenelle estava na Pequena Terreille, numa daquelas visitas concedidas ao conselho das trevas. Uma criança havia se ferido gravemente e pediram para ela realizar a cura. Quem quer que tenha planejado a armadilha, fez isso de maneira inteligente. Os ferimentos eram bastante extensos, de modo que o processo de cura deixaria Jaenelle física e mentalmente exausta, mas não a ponto de precisar chamar outras curandeiras além das da Pequena Terreille. Pois se tivesse chamado Gabrielle ou Karla para ajudá-la, um acompanhante masculino teria vindo com elas. Quando o tratamento terminou, alguém lhe deu comida ou bebida misturada com alguma droga. Jaenelle estava cansada demais para detectá-las. Isso a deixou complacente o bastante para fazer algo que não queria.
– O que ordenaram que ela fizesse?
– Assinasse um contrato de casamento.
Daemon sentiu uma corrente gelada se movendo pelas veias, doce e mortífera. Você não estava aqui. Não pode pensar nisso como uma traição uma vez que não estava aqui. Não importava. Um consorte não podia ser nada além de uma comodidade física. Mas um marido...
– E onde está ele? – perguntou com uma delicadeza exagerada.
Lucivar torceu a toalha.
– Não sobreviveu à consumação.
– Você cuidou disso? Obrigado.
– Já estava morto quando cheguei. – Lucivar fechou os olhos e engoliu em seco. – Fogo do Inferno, Daemon, ficou respingado por todo o quarto. – Abriu os olhos. O desânimo que havia neles provocou arrepios em Daemon. – Além da droga, deram-lhe uma dose generosa de safframate.
O corpo de Daemon ficou entorpecido por um momento. Sabia muito bem o que o safframate provocava numa pessoa.
– Você cuidou dela?
O que significava: deu a ela o sexo de que precisava? Não havia espaço agora para sentimentos de ciúme ou traição, somente a esperança desesperada de que Lucivar tivesse feito o que era necessário.
Lucivar desviou o olhar.
– Levei-a para caçar em Askavi.
Daemon se limitou a fitar o irmão, deixando que a magnitude daquelas palavras amadurecesse.
– Caçar?
– O que esperava que eu fizesse? – retrucou Lucivar. – Que a deixasse trancada em Ebon Askavi sofrendo? O derramamento de sangue alivia o tormento provocado pelo safframate tanto quanto o sexo. – Fez uma pausa e respirou fundo para recuperar o controle. – Não foi fácil, mas sobrevivemos.
E era tudo o que Lucivar pretendia contar sobre um período que devia ter sido um pesadelo para ele, compreendeu Daemon.
– Desde então, voltou à Pequena Terreille duas vezes, sempre acompanhada por uma escolta armada que me incluía – disse Lucivar. – Não voltou mais lá desde que constituiu formalmente sua corte.
– Compreendo – disse Daemon baixinho. – Está quase na hora de ouvir sua decisão.
– Posso ajudá-lo?
Osvald, o acompanhante, forçou um sorriso para o criado. Fogo do Inferno, não existiria um único homem neste maldito local que não estivesse atrás de uma briga?
– Acho que me perdi, então pensei em apreciar os quadros nesta área do Paço.
– Ficarei feliz em lhe indicar o caminho de volta a seus aposentos – disse Holt, com uma cortesia fria.
Em Terreille, poderia mandar açoitar o criado pela falta de subserviência. Em Terreille, os serviçais não ostentariam as joias tão abertamente, forçando os superiores sociais a reconhecer sua força. Estando nas boas graças da sacerdotisa suprema de Hayll, ficava mortificado por ter de reconhecer um criado, que era também um senhor da guerra de joia opala.
– Por aqui – disse Holt, no preciso momento em que Wilhelmina saía do quarto.
Osvald praguejou em silêncio. Se Holt tivesse aparecido alguns minutos mais tarde, poderia ter agarrado a vagabunda e deixado aquele lugar.
Foi nesse momento que viu o enorme gato listrado saindo do quarto e olhando para ele com aqueles olhos imperturbáveis. Ficou grato pela presença de Holt. Quando os lábios do gato começaram a desenhar um rosnado, não precisou ser instigado. Cumprimentou Wilhelmina educadamente, sentindo um enorme alívio quando a mulher devolveu o cumprimento de forma automática.
Aquilo poderia ser uma vantagem, pensava enquanto seguia Holt de volta à ala onde Alexandra, bem como todo o séquito que a acompanhava, estava hospedada. Não pareceria estranho para um acompanhante entregar uma mensagem de uma senhora para outra, especialmente se pensassem que trabalhava para aquela família há muitos anos.
Sim, aquilo poderia funcionar.
*Quando trabalham juntos, são perigosos*, disse Andulvar a Saetan através de um fio de comunicação cinza-ébano.
Olhando para Lucivar e Daemon, Saetan compreendeu o ponto de vista de Andulvar. Todos os príncipes dos senhores da guerra são perigosos, mas quando dois homens com forças complementares se tornam uma equipe...
*Assim como nós éramos com a idade deles*, respondeu Saetan. *Bem, continuamos sendo.*
*Se isso algum dia terminar num confronto, não quero ter de enfrentar aqueles dois*, disse Andulvar, ponderadamente.
Qualquer pontinha de diversão que Saetan pudesse ter sentido desapareceu com aquela afirmação. Seu coração queria gritar: Nunca serão meus inimigos. São minha prole, meus filhos. No entanto, outra parte de si – a que avaliava o potencial perigo de outro macho – não estava tão segura. Tinha certeza quanto a Lucivar. Mas Daemon...
Lucivar tivera uma infância brutal, mas, de alguma forma, fora uma brutalidade pura. Não fora enredado por uma corte até a adolescência. Já Daemon tinha sido criado na corte de Dorothea e absorvera as lições distorcidas que ali aprendera, tornando-as parte de si mesmo, usando-as posteriormente como uma arma.
Embora pudesse lutar contra indivíduos, Lucivar conseguira abraçar a lealdade à família e à corte. Saetan suspeitava de que a lealdade de Daemon seria sempre superficial, de que a única lealdade com que os outros poderiam contar era sua dedicação a Jaenelle. O que significava que Daemon faria qualquer coisa em nome dessa lealdade. Ou seja, o filho precisava ser tratado com imenso cuidado.
Jaenelle não estava ajudando ao agir como um coelho diante da raposa que era Daemon. Se fosse outro homem, Saetan teria achado graça dessa perseguição. Os rapazes certamente estavam se divertindo. Mas sabia que Daemon não via graça naquilo, e ficou pensando no que poderia acontecer quando a fúria do filho por fim estourasse... e quem sofreria com isso.
Quando Jaenelle entrou no escritório, Saetan deixou de lado o problema que ainda não tinha surgido para tratar daquele que estava junto à porta.
– Senhor supremo – disse Jaenelle formalmente.
– Senhora – respondeu Saetan, com igual formalidade.
Respirou fundo e se virou para Lucivar.
– Príncipe Yaslana, como primeiro acompanhante quero que providencie acomodações em algum lugar ao longo da fronteira da Pequena Terreille para mim e uma pequena escolta. Mas que não seja uma estalagem. Uma casa particular ou um posto de vigia. Um local que garanta discrição. A escolha do território fica a seu critério. Caberá a você também decidir o momento do encontro, contanto que não seja nos próximos três dias.
Não estava perto suficiente de Jaenelle para sentir o odor, mas podia perceber pela súbita explosão nos olhos de Daemon e pela impetuosidade nos de Lucivar que ela tinha iniciado o período da lua. Queria suspirar. Fogo do Inferno, como poderia canalizar a agressividade instintiva de Daemon enquanto se debatia para controlar a sua?
As feiticeiras ficavam vulneráveis durante os três primeiros dias do período da lua, uma vez que não podiam usar suas joias ou realizar mais do que arte básica sem que isso lhes provocasse dor física. E, quando se tratava da vulnerabilidade de sua rainha, durante esses dias, o temperamento de um príncipe dos senhores da guerra ficava muito perto do limiar assassino.
– Você não precisa falar para ninguém sobre os preparativos – prosseguiu Jaenelle. – Mas, por uma questão de cortesia, deverá informar o administrador, o mestre da guarda e o consorte. O administrador entrará em contato com lorde Jorval para confirmar o local do encontro na Pequena Terreille.
– De que adianta montar um lugar seguro se você vai para a Pequena Terreille? – perguntou Lucivar, e Saetan reparou que estava mantendo um tom de voz respeitoso.
– Porque vou à Pequena Terreille sem ir à Pequena Terreille. Assim, a corte não precisará se preocupar com o meu bem-estar e, ao mesmo tempo, poderei me encontrar com esse indivíduo.
Lucivar semicerrou os olhos, refletindo.
– Podia simplesmente recusar.
– Tenho minhas razões para fazer isso – respondeu Jaenelle com uma voz sombria.
Saetan estava certo, o assunto estava encerrado no que dizia respeito a Lucivar. Mas o eyrieno continuava a estudá-la.
– Se eu concordar, podemos atormentá-la durante os próximos três dias sem que reaja com sete pedras na mão?
Isso bastou para que a rainha voltasse a ser a irmã mais nova, balbuciante e resmungona.
– “Nós” quem? – perguntou ameaçadoramente.
– A família.
Saetan se perguntou se mais alguém teria reparado no olhar que Daemon lançou ao irmão. E Lucivar? Teria percebido que, quer tivesse incluído Daemon ou não no termo “família”, aquilo não tinha caído bem para o consorte da rainha?
– Papai! – exclamou Jaenelle, girando para encará-lo de frente.
– Criança-feiticeira? – respondeu calmamente, embora pudesse sentir as gotas de suor brotando na testa ao ver o rosto de Daemon assumindo uma máscara fria e indecifrável.
Jaenelle o olhou por um momento, mas voltou sua atenção a Lucivar.
– Dentro de limites razoáveis – vociferou. – E sou eu quem decide o que é razoável.
Quando Lucivar se limitou a sorrir, ela saiu como um furacão do escritório. O sorriso desapareceu quando olhou para Andulvar.
– Sendo o mestre da guarda, ela deveria ter lhe pedido para cuidar dos preparativos.
Andulvar deu de ombros.
– Não fiquei com o ego ferido, filhote. Ela é uma rainha excelente e compreende as necessidades dos machos que a servem. Neste momento, você precisa se ocupar com os preparativos. – Seu sorriso tinha contornos sarcásticos. – Porém, se não me mantiver informado, tomarei isso como um insulto.
– Se tiver algum tempo agora, podemos dar uma olhada no mapa – disse Lucivar.
– Está aprendendo, filhote – disse Andulvar ao passar um braço sobre os ombros de Lucivar, levando-o para fora do escritório. – Está aprendendo.
Vendo que Daemon não havia feito qualquer movimento para sair, Saetan se curvou sobre a mesa de madeira escura.
– O que o preocupa, príncipe?
– Pouco me importam os laços familiares que você e Lucivar afirmam ter com Jaenelle, eu não sou irmão dela – disse Daemon, com demasiada serenidade.
– Ninguém disse que era. O fato de eu ser pai adotivo de Jaenelle e por acaso você ser meu filho é irrelevante. Nunca pensou nela como irmã e ela nunca pensou em você como irmão. Isso não mudou.
O gelo nos olhos de Daemon se derreteu em desolação.
– Talvez não pense em mim como irmão, mas também não quer que seja qualquer outra coisa.
Saetan ficou alerta.
– Isto não é verdade.
O leve sorriso de Daemon mostrava ressentimento e pesar.
– Normalmente, sou capaz de seduzir uma mulher em menos de uma hora, quando me empenho. Quando não me empenho, não demoro mais do que duas. A maioria das vezes nem consigo me aproximar dela o suficiente para conversar.
O notório talento de Daemon na arte da sedução arrepiava Saetan. Ouvira muitas histórias sobre o Sádico que o deixaram apreensivo. Essas habilidades de alcova eram uma faca de dois gumes.
Se Daemon fosse impelido a usar essas habilidades prematuramente... Saetan cruzou os braços para ocultar o ligeiro tremor nas mãos.
– Os rapazes acham graça dessa perseguição entre você e Jaenelle.
– É mesmo? – perguntou Daemon.
– Eu também, tenho que confessar.
Os olhos dourados de Daemon traziam o ar entediado e sonolento que Saetan conhecia bem. Houve momentos em que se olhou ao espelho e viu esse mesmo olhar.
– É mesmo? – perguntou Daemon.
– Dois dias atrás, Jaenelle pediu minha opinião sobre o vestido que usaria durante o jantar.
– Lembro-me de que era um vestido encantador.
– Fico feliz que tenha gostado. – Saetan fez uma pausa. – E acho que vai gostar de saber que, nos treze anos em que vive aqui, Jaenelle jamais demonstrou qualquer preocupação em relação a roupas a ponto de pedir a minha opinião. E ela não estava pedindo minha opinião como administrador ou pai, mas como homem. Admito que, considerando a maneira como aquele vestido lhe caiu bem, minha opinião como pai teria divergido consideravelmente de minha opinião como homem.
Daemon quase sorriu.
– Ela o vê como um homem, Daemon. Um homem, não um amigo macho. Pela primeira vez na vida, está tentando lidar com seus próprios desejos carnais. Por isso foge.
– Não é a única que está se esforçando para lidar com isso – resmungou Daemon, embora o olhar sonolento tivesse dado lugar a um vivo interesse. – Sou o consorte. Podia ao menos...
Saetan balançou a cabeça.
– Acha mesmo que Jaenelle exigiria isso de você?
– Não. – Daemon passou os dedos pelo cabelo. – O que posso fazer?
– Não precisa fazer nada além do que já está fazendo. – Saetan ponderou por um instante. – Sabe preparar alguma infusão para aliviar o desconforto do período da lua?
– Sei fazer algumas.
Saetan sorriu.
– Nesse caso, sugiro que o consorte prepare uma infusão para sua senhora.
Surreal parou na porta da sala de jantar e praguejou baixinho. Os únicos ali eram Alexandra e seu séquito.
Fogo do Inferno. Por que Jaenelle não os tinha deixado ficar sozinhos? As refeições eram certamente mais descontraídas e as conversas bem mais interessantes quando Alexandra e seu pessoal não estavam ali. Quando mencionou isso com Saetan, ele a informara de que a ideia tinha partido de Jaenelle, que permitiu que Alexandra e seus acompanhantes se juntassem aos outros na esperança de que compreendessem Kaeleer um pouco melhor.
A intenção pode ter sido boa, pensava Surreal, furiosa enquanto caminhava a passos largos até a mesa, mas a realidade se revelava um triste fracasso. Ninguém daquele grupo, de Alexandra até o acompanhante de categoria mais baixa, desejava compreender o que quer que fosse sobre os Sangue de Kaeleer. E as refeições do meio-dia eram sempre piores, uma vez que Saetan estava ausente.
Ao chegar à mesa, as duas rainhas de província, Vania e Nyselle, olharam para Surreal com um misto de superioridade e desprezo. Teria se sentido ofendida se não soubesse que olhavam daquele jeito para todas as feiticeiras, incluindo as rainhas que as superavam de longe na hierarquia.
Então Vania olhou para a porta e sua expressão mudou para deleite predatório.
Com um rápido olhar, Surreal viu Aaron parar momentaneamente à entrada. Ele parecia um homem a quem havia sido anunciada a data de execução. Imaginando que Aaron não precisava de outra mulher a fitá-lo, voltou a atenção para a mesa.
O primeiro detalhe interessante era a forma como esse grupo se dividira. Alexandra, Philip e Leland estavam sentados numa das extremidades da mesa. Nyselle estava na extremidade oposta, com o consorte e os acompanhantes à sua volta. O consorte de Vania estava sentado à esquerda de sua senhora, com um ar infeliz. A cadeira à direita de Vania estava vazia, tal como as cadeiras à sua frente.
O segundo detalhe interessante estava nas travessas dispostas na mesa. O café da manhã e a refeição do meio-dia eram distribuídos pelo enorme aparador lateral, para que todos pudessem se servir. O jantar era a única refeição que tinha horário marcado, e era também a única servida pelos criados. Esta refeição do meio-dia estava disposta de modo familiar, como se fosse aguardado apenas um número reduzido de pessoas.
Tudo bem, pensava Surreal enquanto começava a se servir das travessas mais próximas. Tudo bem, contanto que todos os outros estivessem passando fome para evitar comer com os convidados. Mas se descobrisse que outro almoço estava sendo servido em outro local, teria algumas coisas a dizer a alguém por não ter sido avisada.
– Posso me juntar a você? – perguntou Aaron baixinho ao chegar perto de Surreal.
Estava prestes a responder com frieza, apontando todas aquelas cadeiras vazias, quando reparou no olhar perturbado de Aaron.
Como se o fato de ter reparado nele tivesse lhe dado algum tipo de permissão, aproximou-se ainda mais de Surreal. Estava tão próximo que ela podia sentir o modo como os músculos estremeciam com a tensão provocada pelo controle firme das emoções.
– Por que não se senta aqui, Aaron? – disse Vania, com um sorriso recatado, ao mesmo tempo que dava pequenas batidas na cadeira à sua direita.
Bem, isso explicava claramente o olhar perturbado.
Durante sua estadia no Paço, Surreal observara que os machos – desde o mais subalterno até o senhor supremo – tinham ideias bastante específicas sobre o que era uma distância física aceitável. A cortesia fria com que tratavam uma mulher quando essa distância não era respeitada normalmente funcionava como um afastamento eficaz. Os machos do primeiro círculo não só toleravam a aproximação e o contato físico com todas as feiticeiras do primeiro círculo como gostavam dessa intimidade amistosa. Mas não a aceitavam de bom grado de mais ninguém.
Ele me considera uma delas, percebeu, sentindo um choque de prazer diante da aceitação. Ele me considera confiável. Por isso, ao lhe responder afirmativamente, fez isso da maneira mais suave que conseguiu. O que, por algum motivo, o angustiou.
Eu era uma boa prostituta, pensou, enquanto pegava o garfo e a faca de trinchar da travessa com o peru assado. Uma prostituta boa pra cacete. Então por que de repente se tornou impossível entender os machos?
– Se importaria...?
Surreal virou a cabeça e olhou para Aaron, a faca de trinchar pairando sobre o peru.
– Não ia sugerir que não sei manejar uma faca, não é, docinho?
Aaron arregalou os olhos.
– Não seria tolo a ponto de sugerir isso de uma feiticeira Dea al Mon – respondeu, num tom suspeitamente submisso. – Ia perguntar se não se importaria de cortar um pedaço para mim.
– É claro – respondeu, azeda.
Sentindo que Aaron relaxava, Surreal praguejou em silêncio sobre o perverso comportamento masculino. Mas, enquanto trinchava o peito do peru, divagava. Talvez os machos estivessem tão habituados a essa mistura agridoce na personalidade de uma feiticeira que conseguiam relaxar diante delas. Talvez fosse um gosto adquirido.
Depois de pousar novamente o garfo e a faca na travessa, ela se preparou para comer. Não houve muita conversa, o que lhe agradou – em especial porque todos os comentários de Vania eram dirigidos a Aaron, e as respostas que este lhe dava se tornaram curtas e grossas.
Na tentativa de aliviar a tensão que crescia a cada momento, Surreal ergueu os olhos, com a intenção de perguntar a Alexandra quando deixariam o Paço. No entanto, ficou em silêncio e notou o olhar de Vania. Nos olhos da mulher era possível reconhecer uma raiva desagradável focada em Aaron.
Depois de brincar com a comida por um instante, Vania afastou o prato e sorriu com um ar afetado de timidez.
– Estou tão cansada que nem consigo comer. Aaron foi tão estimulante esta manhã.
Surreal precisou de um tempo longo demais para compreender o comentário. Com um rugido de raiva, Aaron se precipitou por cima da mesa, agarrou Vania pelos cabelos e a puxou. Sua mão esquerda se fechou na faca de trinchar e girou na direção da garganta da mulher.
Surreal segurou o pulso esquerdo de Aaron com as duas mãos, puxando-o para trás com toda a força. O homem cedeu alguns centímetros, mas logo os músculos se recompuseram. A ponta da faca golpeou o pescoço de Vania, que gritou, ao mesmo tempo que o sangue começou a jorrar da ferida.
Surreal concentrou o poder das joias cinza nas mãos de modo a aumentar sua força, mas havia um escudo impenetrável em volta de Aaron que absorvia toda a energia.
Muito bem. Músculo contra músculo. Podia detê-lo durante os segundos que os outros homens que estavam à mesa levariam para alcançá-los.
No entanto, ninguém se mexeu.
Foi então que viu o rosto de Aaron. Ninguém ali ousaria se aproximar de um príncipe dos senhores da guerra com aquele aspecto glacial e implacável. Surreal, no entanto, se preocupava. Não se importava se ele cortasse a garganta de Vania, mas não queria que Aaron arranjasse problemas porque a vagabunda tinha ido longe demais.
*Surreal?*, disse ansiosamente Presa Cinza.
*Me ajude!*
O lobo devia estar por perto, pois entrou na sala de refeições segundos depois.
*Surreal...*
*Não fique aí parado. Faça alguma coisa!*
*Aaron é do primeiro círculo*, ganiu Presa Cinza. *Não posso mordê-lo.*
*Então vá buscar alguém que possa!*
Presa Cinza saiu correndo.
Se fosse possível, Surreal teria usado a arte para fazer a faca desaparecer, mas Aaron tinha estendido o maldito escudo até a arma. Não conseguia chegar à faca, não conseguia sequer quebrar seu pulso para detê-lo.
A força com que segurava o pulso de Aaron vacilou por um instante, o suficiente para que a faca voltasse a cortar o pescoço de Vania.
Nesse momento chegaram Lucivar e Chaosti, que agarraram o pulso direito de Aaron. Ele lutava sem pensar em mais nada, concentrado unicamente no assassinato.
– Droga, Aaron – rosnou Lucivar. – Não me obrigue a quebrar seu pulso.
Boa sorte, pensou Surreal amargamente, sentindo as mãos de Lucivar apertando as suas. Esperava que ele se lembrasse que estavam ali antes de começar a partir ossos.
Aaron parecia incapaz de ouvi-los, mas reagiu quando uma voz fria de meia-noite disse:
– Príncipe Aaron, ao meu serviço.
Aaron começou a tremer. Lucivar puxou a faca imediatamente e a fez desaparecer. Chaosti forçou a mão direita de Aaron a se abrir para que soltasse o cabelo de Vania.
Vania continuava gritando. Gritava sem parar desde o primeiro golpe.
– SILÊNCIO.
Na mesma hora, os copos sobre a mesa ficaram cobertos de gelo. Vania deu um rápido olhar na direção de Jaenelle e parou de gritar.
– Príncipe Aaron – prosseguiu Jaenelle com demasiada serenidade. – Ao meu serviço.
Titubeando, Aaron se endireitou. Chaosti e Lucivar o soltaram e se afastaram.
Pálido como a morte, Aaron caminhou até o lugar onde Jaenelle estava e caiu de joelhos.
– Espere por mim no escritório do senhor supremo – disse Jaenelle.
Com esforço, Aaron deixou a sala de refeições.
Surreal olhou para aqueles frios olhos azul-safira, sentiu o toque suave de uma raiva imensa e quase fora de controle e começou a tremer. As pernas cederam. Sentou-se.
Jaenelle se aproximou da mesa, devagar, e olhou para Lucivar.
– Você sabia disso.
Ofegante, Lucivar respirou fundo e respondeu:
– Sim.
– E não fez nada.
Ele engoliu em seco.
– Esperava que o assunto fosse resolvido discretamente.
– Venha me ver no escritório do senhor supremo em trinta minutos, príncipe Yaslana.
– Sim, senhora.
Em seguida, os olhos azul-safira se cravaram em Chaosti.
– E você, depois dele.
– Com todo o prazer, senhora – respondeu Chaosti, com a voz rouca.
Ah, duvido muito, pensou Surreal, ainda tremendo.
Foi então que Jaenelle olhou para Vania... e o gelo começou a arder.
– Se voltar a perturbar algum dos meus machos física, mental ou emocionalmente, penduro-a de cabeça para baixo e a esfolo viva.
Ninguém disse nada nem se mexeu até Jaenelle sair da sala.
Faria mesmo isso? Não tinha se dado conta de que falara em voz alta até ouvir Lucivar emitir um som que era um misto de gargalhada e gemido.
– No estado de espírito em que se encontra? Não só o faria como nem se daria o trabalho de usar uma faca.
Surreal olhou para as próprias mãos, refletiu por alguns instantes e depois se perguntou se alguém se importaria se vomitasse no chão.
– Surreal? – A mão de Lucivar tremia enquanto levantava sua cabeça.
Ele está tomado pelo medo. Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas.
– Surreal? Está ferida?
A intensa preocupação na voz de Lucivar a fez recobrar o foco.
– Ferida? Não, acho que não...
– Tem sangue no rosto e no pescoço.
– Ah. – Sentiu o estômago revirar. – Devo ter respingado quando...
Manter a boca fechada parecia agora uma excelente ideia. Lucivar olhou por cima do ombro.
– Falonar?
– Sim, príncipe Yaslana?
– Seu único dever esta tarde é tomar conta de lady Surreal.
– Com todo o prazer.
– Lady Vania precisa de uma curandeira – disse um dos acompanhantes, aflito.
– Ah, é, seu merda? – exclamou Surreal, sentindo-se de repente um pouco tonta. – Estou surpresa de que possam falar e se mexer, já que estavam petrificados alguns minutos atrás.
– Cale a boca, vadia – gritou um dos acompanhantes.
Lucivar, Chaosti e Falonar rosnaram para o homem.
– Sugiro que peçam a lorde Beale que mande vir uma curandeira de Halaway – disse Lucivar, friamente.
– Não há uma curandeira no Paço? – perguntou Alexandra, indignada.
– Lady Gabrielle e lady Karla são curandeiras – respondeu Lucivar. – Mas, se eu fosse vocês, não pediria nada a elas neste momento.
– Jaenelle talvez possa ajudar – disse Surreal com um sorriso virulento.
A resposta foi um silêncio aterrador.
Com dois acompanhantes apoiando Vania, Alexandra e seu séquito saíram da sala. Lucivar e Chaosti olharam Falonar de maneira severa antes de sair.
Falonar se aproximou de Surreal, cauteloso.
– Deve ter sido... perturbador... para você. Precisa de sais ou algo do tipo?
Surreal semicerrou os olhos.
– Docinho, sou uma assassina. Já fiz coisas muito piores numa mesa de jantar.
– Eu não estava falando de...
Olhou para a mesa salpicada de sangue.
– Ah.
Pelo menos era esperto o suficiente para perceber que não fora Aaron que a assustara. Ele fez uma pausa e acrescentou:
– Não era minha intenção insultá-la.
– Não se preocupe – respondeu Surreal. – Qualquer dia terei prazer em aprender quais são as regras para convidar um homem para uma tarde suada de sexo, nem que seja para afastar o pensamento de tudo isso por algumas horas. Mas acho que hoje nenhum tipo de sexo seria uma boa ideia.
A surpresa e o interesse faiscaram nos olhos de Falonar, e sua voz mostrava pesar:
– Não, acho que não seria uma boa ideia... hoje.
– Então por que não fazemos alguns exercícios com bastões? Gostaria de sair deste edifício.
Falonar assentiu.
– Sabe manejar uma faca?
Surreal sorriu.
– É claro. – Olhou rapidamente para a virilha de Falonar. – Também sei manejar lanças muito bem.
Falonar corou ligeiramente.
– Arco?
Ainda sorrindo, Surreal balançou a cabeça.
– Uma nova habilidade requer concentração – comentou ele.
– Assim como algumas habilidades antigas, se quisermos desempenhá-las bem.
Falonar ficou mais vermelho e interessado. Surreal se levantou.
– Vamos nos concentrar numa nova habilidade.
– E discutir a possibilidade de praticar habilidades antigas?
– Sem dúvida.
Amparando-se um no outro, apressaram-se para fugir da fúria crescente que invadia o Paço.
Daemon parou na entrada da sala de estar de Jaenelle por um momento. Respirou fundo, endireitou os ombros e bateu à porta. Não houve resposta. Jaenelle estava lá. Podia sentir a fúria rodopiando no quarto. Podia sentir o frio.
Voltou a bater e entrou, ignorando o fato de não ter sido convidado. Jaenelle percorria a sala de estar, com os braços em volta da cintura. Olhou-o furiosa e disse rispidamente:
– Vá embora, Daemon.
Devia estar repousando hoje, pensou Daemon enquanto o temperamento ficava mais aguçado. Provavelmente era o que estava fazendo antes daquela cena na sala de refeições.
– Uma vez que sou o único macho do primeiro círculo com quem não está descontente, pensei em vir checar se precisa de alguma coisa. A propósito, por que tudo isso?
Apesar dos esforços para manter o tom sereno, sua voz deixava transparecer certo nervosismo. Racionalmente, sabia que deveria estar agradecido por ter escapado ao açoite verbal com que os outros haviam sido contemplados. Em vez disso, estava ressentido com a exclusão... até sentir a estocada certeira daquele olhar glacial azul-safira.
– Sabia que devia ter me informado da perseguição de Vania a Aaron? – perguntou Jaenelle com uma serenidade exagerada.
– Não, não sabia. Contudo, mesmo que soubesse, não teria dito nada.
– E por que diabo não? – rugiu Jaenelle.
Calor. Daemon sentiu as pernas fraquejando enquanto era invadido pelo alívio. Graças às trevas já não era raiva fria, mas ira inflamada. Podia lidar com ira inflamada.
– Porque ela o perseguia. Aaron não estava fazendo seduções nem enviando convites implícitos. Ela que estava tentando atraí-lo para sua cama.
– Exatamente.
Jaenelle continuava sem entender. Daemon passou os dedos pelo cabelo.
– Fogo do Inferno, mulher, o homem tem esposa e filha pequena. Se tivesse dito alguma coisa, Kalush teria realmente acreditado em sua inocência?
– É claro que sim! – gritou Jaenelle. – Mas se achava que não podia contar a Kalush, podia ter contado a mim, a Karla ou a Gabrielle.
– E como isso teria ajudado? – respondeu Daemon também aos gritos. – Você teria contado a Kalush e ela continuaria desconfiando de algo que Aaron não tinha feito, que nem sequer queria fazer.
– Por que insiste na desconfiança? Isto...
– Não estou insistindo.
– ...não tem nada a ver com desconfiança.
– Então por que está tão furiosa com ele? – rugiu Daemon.
– PORQUE ELE SE MACHUCOU E ISSO NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO! – Os olhos de Jaenelle subitamente ficaram repletos de lágrimas. – Estou muito zangada com ele por ter se machucado. Acha que não sei como ele tem estado encantado e apavorado desde que Kalush ficou grávida? Quanto Arianna e ela significam para ele? Quanto se sente vulnerável quando outra mulher demonstra interesse por ele? – Limpou uma lágrima que escorria pelo rosto. – Mas vocês esconderam tudo tão bem que não fomos capazes de detectar nada além do nervosismo que os rapazes têm sentido desde que aquelas... pessoas... chegaram ao Paço. Se soubéssemos disso antes, a assembleia já teria agido.
Percebendo que havia alguma coisa sob as palavras, Daemon semicerrou os olhos dourados.
– E o que mais?
Jaenelle hesitou.
– Alexandra é minha avó.
Avançou para ela tão rápido que Jaenelle deu um passo para trás e tropeçou na cauda do vestido. Segurando-a pelos braços, Daemon puxou-a para junto de si.
– A culpa não é sua, Jaenelle – disse, ferozmente. – Está me ouvindo? Não é. Alexandra é sua avó. Uma mulher adulta e, portanto, responsável por suas ações. Como rainha, tem o dever de controlar sua corte. Se há alguém que deveria dividir a culpa com Vania, esse alguém é Alexandra. Foi avisada sobre a situação e nada fez. – Quando Jaenelle começou a argumentar, sacudiu-a com força. – Se quiser arcar com a culpa e a responsabilidade por estarem aqui, então Wilhelmina é tão culpada e responsável quanto você.
A ferocidade protetora naquele olhar. Daemon acariciou os braços de Jaenelle, de modo tranquilizador.
– Se uma das netas não deve ser responsabilizada pelas ações de Vania ou pela inação de Alexandra, como pode você responsabilizar a outra?
– Porque sou a rainha, e uma rainha não apenas controla sua corte, também a protege.
Daemon resmungou, frustrado, e fez alguns comentários pouco lisonjeiros sobre a teimosia feminina.
– Não é teimosia quando se tem razão – retrucou Jaenelle.
Não conseguiria vencer a disputa se ela mantivesse aquela posição, por isso tentou passar a um terreno diferente.
– Muito bem. Devíamos tê-la informado. Ou resolvido o assunto nós mesmos, de outro jeito.
Jaenelle o fitou, desconfiada.
– Por que de repente está concordando comigo?
Daemon ergueu uma sobrancelha.
– Pensei que preferia que os machos concordassem com você. Quer continuar discutindo?
– Sempre que um de vocês desiste assim tão depressa é porque há outro preparado para prosseguir a discussão de outra perspectiva.
– Do jeito que fala, até parece que o primeiro círculo é uma alcateia de caçadores – disse Daemon, esforçando-se para reprimir um sorriso.
– Acho que aprenderam essa tática com os lobos – respondeu Jaenelle, ácida.
Daemon começou a massagear os ombros de Jaenelle. Ela fechou os olhos.
– Sabia que você e Lucivar foram os únicos machos vivos do primeiro círculo que Vania não tentou levar para a cama?
– Não se atreveria a tentar comigo – disse Daemon com demasiada gentileza.
– E foi esperta ao não tentar com Lucivar. Quando alguém o põe numa situação desse tipo, tende a bater primeiro e discutir depois.
– Parece um método eficaz de dissuasão.
– Hmm. Oh, aí mesmo.
Daemon centrou a atenção num músculo tenso. Enquanto massageava, persuadiu-a sutilmente a encostar-se nele.
– Lucivar está muito magoado por ter se zangado tanto com ele – disse baixinho. – Todos os rapazes estão.
– Eu sei. – Suspirou. – Estou cansada demais para pensar numa tarefa para cada um deles. Acho que vou ter de bater com o dedo do pé.
– Perdão?
As mãos interromperam as carícias por um momento.
– Baterei com o dedo do pé em algum lugar e deixarei que se preocupem e corram de um lado para o outro a meu serviço, assim saberão que já não estou zangada com eles.
– Realmente vão acreditar que uma topada é um ferimento grave?
Jaenelle resfolegou baixinho.
– É claro que não. É apenas uma desculpa.
– Compreendo. Uma rainha não pode se desculpar pela disciplina, mas precisa dar um sinal claro de que terminou.
– Exatamente. Se tivesse sido apenas um deles, eu pediria ajuda para uma tarefa que eu mesma poderia realizar sem dificuldades. Com tantos ao mesmo tempo, preciso deixá-los ocupados. – Deu um leve resmungo. – Vão afofar almofadas e me encher de cobertores, mesmo que eu não queira. Vão me obrigar a tirar cochilos.
– Então não é apenas perdão, há também uma pequena vingança.
– Não tão pequena. Normalmente, alguém da assembleia dá um jeito de me passar um livro sorrateiramente, para que eu possa ler durante os “cochilos”. Uma vez, papai veio ver como eu estava e enfiei o livro debaixo de uma almofada, mas não ficou completamente coberto. Ele não disse nada. Quando Khary e Aaron entraram, até empurrou o livro mais para baixo da almofada para escondê-lo melhor. Depois Saetan teve colhões de dizer que eu parecia um pouco febril, para que eles ficassem ainda mais nervosos.
Daemon parou por um instante, refletindo sobre a distinção que Jaenelle havia feito entre “papai” e “Saetan”.
– Minha querida – disse, cautelosamente –, se Saetan tem colhões, papai também tem.
– Parece desrespeitoso dizer algo assim sobre papai.
– Compreendo – disse Daemon, num tom de voz que indicava que não compreendia inteiramente.
– Papai é charmoso e inteligente, um companheiro requintado.
Pensando em Saetan e Sylvia, Daemon disse sarcasticamente:
– Não acho que Saetan seja um companheiro requintado.
Uma longa pausa. E depois:
– Você diria que Sylvia é requintada?
Daemon mordeu a língua. Estaria perguntando sobre Sylvia porque ela havia detectado um de seus pensamentos soltos ou por uma conexão óbvia de tópicos? E, em nome do Inferno, como poderia um consorte responder com segurança uma pergunta dessas?
– Sylvia é mais requintada que Saetan. Eles parecem gostar um do outro, ainda que Sylvia não queira lhe emprestar aquele livro.
Quando Jaenelle ergueu a cabeça, o brilho em seus olhos não apresentava qualquer frieza.
– Que livro?
– Você falou o quê?
Daemon passou a mão na nuca enquanto estudava o pai. Sentira-se na obrigação, de macho para macho, de advertir Saetan. Agora desejava não tê-lo feito.
Saetan o fitou.
– Em que diabo estava pensando para falar sobre isso?
Ah, não. Não repetiria nada daquilo que o levara a fazer aquele comentário.
– Jaenelle está se sentindo bem melhor agora.
– Tenho certeza de que sim. – Saetan passou a mão pelo rosto. – O que está fazendo?
– Descansando – disse Daemon. – Vou pedir a Beale para levar uma bandeja para ela. Vamos jantar lá e jogar cartas.
O modo como os olhos de Saetan se iluminaram de repente deixaram Daemon nervoso.
– Vai jogar cartas com Jaenelle? – perguntou Saetan.
– Sim – respondeu Daemon, cautelosamente.
– Nesse caso, príncipe, diria que mais do que compensou o fato de ter referido aquele livro.
Osvald andava pelo corredor.
A princípio, pensou que a luxúria voraz de Vania fosse arruinar seus planos. Mas depois de ter sido atacada, todos se afastaram para se recuperar das feridas emocionais e não foram mais vistos pelo resto do dia.
A fúria de Jaenelle teria sido uma dádiva se Wilhelmina Benedict estivesse em seu quarto. Mas não estava, e ele não fazia ideia de onde procurá-la. Se estivesse com as outras vadias, não poderia abordá-la. Não queria que nenhuma delas reparasse nele antes que estivesse pronto para desaparecer.
Em breve, então. Em breve.
E é a mim que chamam de Sádico, pensou Daemon enquanto fitava o tabuleiro e as cartas.
– Você quase ganhou esta rodada – disse Jaenelle, tentando não parecer satisfeita demais ao registrar a pontuação.
Daemon cerrou os dentes numa pobre imitação de sorriso.
– É minha vez de dar as cartas?
Assentindo, Jaenelle pegou a folha de papel, traçou uma linha vertical dividindo-a ao meio e escreveu os nomes de ambos no topo. Daemon começou a embaralhar as cartas.
Fogo do Inferno, um jogo de cartas não deveria dar tanto trabalho. Era apenas uma variação do “peixinho”, jogo que Jaenelle brincava quando criança. Tudo bem, eram 26 variações do “peixinho”. Ainda assim, não devia ter tantas dificuldades para ganhar uma partida. Mas havia algo diferente neste jogo, algo que desafiava o pensamento racional. O pensamento masculino.
Um tabuleiro de jogos com pedras coloridas e peças redondas de marfim com símbolos gravados de um dos lados. Uma mão de cartas. E a complexa interação entre todos os elementos. Podia imaginar a assembleia sentada em volta da mesa, numa tarde tempestuosa de inverno, organizando este jogo, peça por peça, construindo uma variação depois da outra, adicionando pedaços de outros jogos de suas próprias culturas, até terem criado algo que era uma autêntica tortura para o cérebro masculino. Desprezava sobretudo o jogo do coringa, uma vez que o jogador que controlava o tabuleiro podia invocar uma variação diferente quando surgisse o coringa – o que poderia mandar uma boa mão e um bom plano de jogo para o lixo.
Tinha que haver uma maneira de tirar vantagem disso...
Enquanto embaralhava as cartas, Daemon examinou minuciosamente o tabuleiro de jogo, as pedras e as peças de marfim. Pensou em como cada peça podia interagir com as restantes – e com as cartas.
Sim, aquilo funcionaria. Funcionaria muito bem.
– Que variação você quer jogar? – perguntou Jaenelle ao colocar as pedras e os discos nas posições iniciais.
Daemon deu a ela o sorriso que costumava aterrorizar as rainhas de Terreille.
– A variação 27.
Jaenelle franziu a sobrancelha.
– Daemon, não existe variação 27.
Ele deu as cartas e ronronou:
– Agora existe.
Ela era tão jovem, pensava Surreal enquanto examinava a mãe. Eu me lembrava dela como uma mulher enorme, forte. Mas é menor do que eu... e era tão jovem quando morreu.
Titian pôs os pés na soleira da janela e abraçou os joelhos.
– Ainda bem que você veio para Kaeleer.
Surreal olhou para a rua, mas o vidro escurecido pela noite não permitia que visse nada além do próprio reflexo – e isso a fez pensar nas perguntas que haviam ficado sem resposta durante tanto tempo.
– Por que não viemos para cá antes? – perguntou, calmamente. – Por que não voltou para casa depois de fugir de Kartane? Foi... por minha causa?
– Não – respondeu Titian rispidamente. – Decidi ficar com você, Surreal. Tive de lutar contra a rejeição instintiva do meu corpo a uma criança concebida à força, e escolhi você. – Agora era Titian que hesitava. – Na época, havia outras razões para não voltar para casa. Se tivesse feito isso, sua vida teria sido mais fácil, mas...
– Mas o quê? – retrucou Surreal. – Se tivesse voltado para casa, você não teria se prostituído por comida e abrigo. Se tivesse saído de Terreille, não teria morrido tão jovem. Que razão pode haver para contrabalançar esses fatos?
– Eu amava meu pai – disse Titian serenamente. – E amava meus irmãos. O estupro é punido com a execução, Surreal. Se eu tivesse voltado para casa assim que fugi de Kartane, meu pai e meus irmãos teriam ido a Hayll matá-lo.
Estarrecida, Surreal a encarou.
– Em nome do Inferno, e como eles esperavam passar por todos os guardas de Dorothea para chegar a Kartane?
– Teriam morrido – respondeu Titian, simplesmente. – E eu não queria que morressem. Entende?
– Na verdade, não, uma vez que passei a maior parte da vida me preparando para o dia em que matarei Kartane. Agora, se tivesse sido sua mãe... – Surreal tentou sorrir, mas não conseguiu. – O que acha que seu pai teria dito em relação à escolha que fez?
Titian sorriu pesarosamente.
– Eu sei o que disse. Ele esteve durante algum tempo no reino das sombras antes de voltar às trevas. Mas viveu todos os anos de sua vida, Surreal, e meus irmãos criaram filhos que nunca teriam nascido. – Fez uma pausa. – E se minha escolha tivesse sido diferente, você nunca teria estado em Chaillot treze anos atrás, e teríamos perdido a melhor rainha que os Sangue jamais conheceram.
– E se você não tivesse ido parar em Terreille, sob o jugo de Kartane, teria sido rainha e viúva-negra.
– Continuo sendo rainha e viúva-negra – retrucou Titian. – Quando Kartane me quebrou, separou-me da força que eu teria possuído, mas não conseguiu arrancar de mim aquilo que sou.
– Lamento – disse Surreal, sem saber como exprimir sua tristeza sem ofender.
– Não carregue mágoas, pequena feiticeira – disse Titian gentilmente, levantando-se. – Carregue apenas o fardo de suas ações. Vamos, você precisa descansar se vai treinar com Lucivar amanhã.
Surreal se levantou com dificuldade e seguiu Titian. Entre a cena com Vania ao meio-dia, o treino extra com Falonar e ter de lidar com o resultado da fúria de Jaenelle, estava mais do que disposta a rastejar até a cama. Tinha abraçado mais machos consternados nesse dia do que em toda sua vida. O que a fez se lembrar de uma coisa.
– Como devo lidar com os familiares machos que ganhei de repente?
– Você precisa impor limites – respondeu Titian ao chegarem ao corredor perto do quarto de Surreal. – É você quem decide o que quer que façam por você e o que quer fazer sozinha. Depois que decidir, diga a eles... com delicadeza. Estamos em Kaeleer, Surreal. É preciso lidar com os machos...
Titian ficou imóvel. Suas narinas se dilataram.
– Titian? – chamou Surreal, alarmada pela terrível expressão no rosto da mãe. – O que está acontecendo?
– Onde está o senhor supremo? – rosnou Titian.
Sem esperar pela resposta, correu até as escadas mais próximas. Surreal seguiu-a a passos rápidos, alcançando-a no momento em que Titian subitamente parou diante de uma porta.
Bateu com força e a abriu.
– Senhor supremo!
Ouviu-se um som abafado vindo do quarto adjacente. Titian abriu a porta e entrou correndo. Surreal se precipitou atrás da mãe e parou abruptamente.
Saetan congelou no momento em que estendia a mão para pegar o roupão em cima da cama. Endireitou-se devagar e se virou para encará-las.
Surreal não conseguiu evitar um olhar rápido – e profissional – de aprovação. Já Titian parecia não reparar que estava diante de um homem nu e irritado.
– Há um macho impuro no Paço – exclamou Titian.
Saetan a fitou por um momento. Depois, agarrou o roupão e perguntou:
– Onde?
Saiu porta afora, Titian logo atrás. Surreal tinha dificuldades para acompanhá-los. Quando alcançou os dois, Titian farejava o corredor de um lado a outro, como um cão de caça, enquanto Saetan procurava um pouco mais devagar.
– Estava aqui – disse Titian. – Juro que estava aqui.
– Ainda consegue senti-lo? – perguntou Saetan com uma delicadeza exagerada.
Os ombros de Titian estremeceram.
– Não. Mas estava aqui.
– Não estou duvidando de você, senhora.
– Mas não está sentindo nada.
– Não. O que só pode significar que, quem quer que tenha criado os feitiços para ocultá-lo, sabia exatamente de quem e do que ocultá-lo.
– Foi Hekatah – disse Titian.
Saetan aquiesceu.
– Ou Dorothea. Ou as duas. Quem quer que tenha sido, certificou-se de que passaria despercebido. O que não previram era que uma harpia poderia detectar traços de seu verdadeiro odor psíquico. Mas por que estaria aqui? – Voltou-se para examinar as portas. – O quarto de Surreal. E o quarto de Wilhelmina.
Surpresa com seu próprio desconforto, Surreal pigarreou.
– Talvez fosse um homem que não foi informado que não trabalho mais nas casas da Lua Vermelha.
Saetan a olhou de modo demorado e apreciativo. Titian balançou a cabeça.
– Concordo – disse, enigmaticamente. Bateu à porta do quarto de Wilhelmina. Não obtendo resposta, entrou. Saiu um minuto depois. – Está no jardim com Dejaal. Ele ficará com ela.
Surreal levou um minuto para ligar o nome ao jovem tigre que vira com frequência na companhia de Wilhelmina.
– Presa Cinza está vindo – informou Saetan, olhando Surreal de modo firme. – Esta noite não sairá de perto de você.
Surreal levou mais um minuto para juntar as peças. Indignou-se.
– Vamos com calma, senhor supremo. Sei tomar conta de mim mesma.
– Presa Cinza é um senhor da guerra – retrucou Saetan. – Ele defende e protege.
– Ele usa a violeta! Não dá para presumir que esse outro macho use uma joia mais clara do que Presa Cinza.
– Não estou presumindo nada. Ele defende e protege.
Furiosa, Surreal avançou a passos largos para Saetan e segurou seu roupão com as duas mãos.
– Ele não é forragem – rosnou. – Não é certo que morra se eu for perfeitamente capaz de me defender.
Um divertimento mordaz invadiu os olhos de Saetan.
– Certo, então vá em frente. Diga isso para Presa Cinza e fira o orgulho dele. No entanto, antes de fazer isso, posso lembrá-la de que é considerado aceitável que as rainhas providenciem escudos protetores para você e para ele?
– Ah.
Soltando-o, Surreal tentou desamassar o roupão. Quando reparou que Saetan estava se divertindo com aquilo, desistiu e recuou.
– Vai montar guarda esta noite? – perguntou Titian.
Saetan pensou por um instante e balançou a cabeça.
– Não. As senhoras da corte estarão protegidas. Quanto ao resto, tratarei disso pela manhã. – Olhou para Surreal. – Peço que permaneça no quarto esta noite. Ninguém chegará a você, ou a Wilhelmina, vindo dessa direção.
Os instintos de Surreal ficaram aguçados e ela começou a pensar nas maneiras em que um assassino poderia entrar.
– Os quartos estão todos ocupados? – perguntou.
Entrar sorrateiramente num quarto vazio. Entrar sorrateiramente pelo jardim. Entrar no quarto da vítima pelas portas de vidro que dão para o jardim...
– Há dois quartos de hóspedes vazios – disse Saetan –, mas ninguém alcançará vocês pelo jardim. Kaelas ficará ali.
Daemon olhou para Saetan e Titian, saiu para o corredor e fechou a porta da sala de estar de Jaenelle.
– Lady Titian, como vai? – perguntou de modo respeitoso, disfarçando a surpresa por vê-la. Sabia que ela era uma demônia-morta e não esperava vê-la no Paço. Também não gostou da tensão que sentiu nela, assim como da neutralidade controlada de Saetan.
– Daemon, como administrador da corte, solicito formalmente que permaneça com a rainha esta noite – disse Saetan baixinho. – A noite toda.
Daemon ficou tenso. Esta noite tinha sido a primeira desde que Jaenelle terminara de curar sua mente que se mostrara disposta a passar algum tempo com ele. Esperava que Jaenelle se recordasse de que era um amigo, o que seria o primeiro passo em direção à aceitação de Daemon como amante. Mas Jaenelle voltaria a se afastar se lhe dissesse que passaria a noite na cama com ela. Será que Saetan não compreendia?
Ao examinar a neutralidade controlada de Saetan percebeu que ele compreendia. Mas o administrador da corte, embora estivesse ciente da hesitação e dos sentimentos do consorte, sentia-se na obrigação de ignorá-los.
– Estou solicitando o mesmo a todos os consortes e primeiros acompanhantes – acrescentou Saetan.
Daemon assentiu, considerando essa informação. Um pedido formal daquele tipo, nesta corte, era o mesmo que convocar uma batalha. Todos os príncipes dos senhores da guerra do Paço estariam no limiar assassino esta noite.
– Lucivar ficará com Marian?
– Não – disse Saetan. – Prothvar permanecerá com Marian e Daemonar. Lucivar vai... percorrer... o Paço esta noite.
– E Kaelas? – perguntou Daemon. De repente, toda aquela força e temperamento felinos eram um consolo.
– Kaelas permanecerá no jardim. Isso lhe dá mais flexibilidade.
– Então boa noite. E boa caça – acrescentou Daemon, com uma delicadeza extrema. – Senhor supremo. Senhora.
– Algum problema? – perguntou Jaenelle quando ele voltou à sala de estar.
Daemon hesitou, mas não conseguiu pensar em outra forma de responder a pergunta.
– O administrador solicitou formalmente que eu permanecesse com você esta noite.
O tremeluzir de pânico nos olhos de Jaenelle o feriu, mas foi o jeito como olhou para a porta da sala de jantar que o deixou desconfiado.
– Esse pedido foi feito a todos os consortes e primeiros acompanhantes? – perguntou a feiticeira com a voz de meia-noite.
– Sim, senhora.
Um longo silêncio. Jaenelle franziu o nariz.
– Um pedido formal parece um pouco exagerado, não acha?
Daemon reprimiu um suspiro.
– Quer jogar outra vez? – perguntou, sentando-se.
Daemon semicerrou os olhos.
– É a vez de quem dar agora?
Daemon sorriu.
– É a minha vez.
– Por que não o informou sobre o macho impuro? – perguntou Titian.
– Não posso contar com o autocontrole de Daemon neste momento – respondeu Saetan após uma longa pausa. – Um príncipe dos senhores da guerra que está concentrado em ser aceito como consorte tem um temperamento extremamente instável.
Titian balançou a cabeça.
– Mesmo que mais ninguém tenha detectado os feitiços que Dorothea e Hekatah criaram, não compreendo como Jaenelle não percebeu.
– Nem eu. Mas, como disse, Dorothea e Hekatah sabiam exatamente de quem precisavam ocultá-lo – respondeu Saetan, com o coração acelerado.
– Mesmo assim, Jaenelle sempre examina com atenção aqueles que pretendem ficar em Kaeleer.
– Mas não teria motivo para examinar com atenção alguém que não pretendesse ficar, sobretudo se questões emocionais e pessoais estivessem sendo usadas como um subterfúgio para ocultar objetivos diferentes.
Titian franziu a sobrancelha.
– Quem mais está no Paço?
– Os familiares de Jaenelle, que vieram de Chaillot, e seus respectivos acompanhantes.
Viu seu próprio ódio refletido no rosto de Titian.
– E você não fez nada em relação a eles?
– Meu pedido formal de execução foi negado – respondeu Saetan, esforçando-se para não responder à acusação na voz de Titian. – Ficou atravessado na minha garganta, mas acatarei a decisão. Além disso, haverá outras oportunidades para acertar essas dívidas – acrescentou compassivamente.
Titian assentiu.
– Se eu me infiltrar nos quartos, talvez consiga detectar alguma coisa. Então poderíamos tratar discretamente do macho impuro ainda esta noite.
Saetan resmungou de frustração.
– À exceção da vagabunda da Vania, ninguém agiu de modo a justificar uma execução. – Balançou a cabeça. – Estou certo de que nada acontecerá esta noite. Depois do café da manhã, falarei com Jaenelle sobre mandar aquelas... pessoas... para longe do Paço e para fora de Kaeleer.
– Suponho que seja o melhor a fazer. – Caminharam em silêncio durante algum tempo. – Todos os familiares de Jaenelle estão aqui?
– Todos, menos Robert Benedict. Ele morreu há alguns anos... e permaneceu no reino das trevas por um breve período.
Titian parou de caminhar. Saetan se virou para a olhá-la. Ela levou a mão ao rosto de Saetan e o acariciou levemente.
– E, durante esse período, ele teve alguma conversa em particular com o senhor supremo do Inferno? – perguntou, com uma doçura malévola.
– Sim – respondeu Saetan com uma gentileza exagerada.
Daemon estava com os nervos à flor da pele quando entrou com Jaenelle na sala de refeições na manhã seguinte. Os olhares especulativos dos outros machos do primeiro círculo não ajudavam. Não importava que Jaenelle estivesse no período da lua e que, por isso, ele nada pudesse ter feito além de aquecer sua cama. Sabia o que se esperava de um consorte e que os outros homens tinham ciência de que ele não estava cumprindo seus deveres.
Tentou afastar esses pensamentos. Outras razões exigiam que ficasse de sobreaviso aquele dia. Lucivar estava junto ao aparador, bebendo uma caneca de café, enquanto Khardeen e Aaron se serviam. Leland e Philip, os únicos membros presentes da comitiva de Alexandra, tomavam o café da manhã numa das extremidades da mesa. Surreal e Karla estavam na extremidade oposta.
Jaenelle olhou para a caneca nas mãos de Lucivar com avidez.
– Posso beber um pouco?
Lucivar cerrou os dentes e sorriu.
– Não.
Ela lançou um olhar glacial ao eyrieno, mas beijou-o no rosto.
Daemon poderia alegremente ter matado Lucivar por ter recebido aquele beijo. Fora um beijo mal-humorado e normal, mas ainda assim um beijo – que era mais do que ele recebera de manhã. Uma vez que matar Lucivar estava fora de questão – pelo menos naquele momento –, observou Jaenelle escolhendo duas fatias de pera e uma colherada de ovos mexidos.
Enquanto se afastava do aparador, Lucivar enfiou um garfo num pedaço de carne e o deixou cair no prato de Jaenelle.
– Hoje você precisa de carne. Coma.
Jaenelle resmungou. Lucivar continuou a beber o café.
– Noite longa? – perguntou Daemon baixinho a Lucivar.
– Já tive piores – respondeu Lucivar com um sorriso que ganhou um ar mordaz quando olhou para Philip e Leland. Em seguida, subiu o tom de voz o suficiente para ser ouvido. – E você, meu velho? Parece que também teve uma noite bem longa pela frente.
– Foi interessante – disse Daemon, cauteloso.
Não queria admitir que tinham apenas jogado cartas até tarde. Jaenelle resfolegou.
– Há alguma coisa traiçoeira nas posições da variação 27 que dá grande vantagem a um macho, mas não consegui entender por quê.
Daemon reparou na raiva lívida de Philip, e na forma como Khardeen e Aaron ficaram alerta.
– Você conhece 27 variações? – perguntou Khardeen.
Daemon não respondeu.
– Sim, conhece – resmungou Jaenelle. – E a variação é genial. Traiçoeira, mas genial.
Estudou a travessa de carne, escolheu mais dois pedaços e foi até a mesa. Antes que Daemon conseguisse pegar um prato, Khardeen estava segurando um de seus braços e Aaron o outro, arrastando-o para fora da sala de refeições.
– Tomaremos o café da manhã mais tarde – disse Khary enquanto conduziam Daemon até a sala vazia mais próxima. – Primeiro, precisamos ter uma conversinha.
– Não é o que estão pensando – disse Daemon. – Não é nada de mais.
– Não? – cuspiu Aaron.
Khary prosseguiu:
– Se você descobriu uma nova variação do “peixinho” que dá vantagem ao homem, é seu dever como irmão do primeiro círculo compartilhá-la com os outros.
Daemon ficou olhando para eles, sem ter certeza se os tinha ouvido bem. Aaron sorriu.
– Ora, o que pensa que os consortes fazem à noite?
Daemon explodiu numa gargalhada.
Osvald bateu à porta de Wilhelmina e voltou a segurar firmemente a caixa de madeira entalhada com as mãos.
Não fora necessário muito esforço para convencer Alexandra a manter a maior parte de seus acompanhantes em seus quartos. Tivera de se esforçar mais para convencê-la a mandar Leland e Philip descerem para tomar o café da manhã a fim de passar a impressão de que os outros estavam simplesmente atrasados. Com tantos ausentes, ninguém saberia ao certo quem estava faltando até que ele já estivesse bem longe do Paço.
Isto, é claro, se os feitiços que Dorothea e a sacerdotisa suprema tinham preparado para abrir uma brecha nos escudos defensivos do senhor supremo de fato funcionassem.
Não. Não havia dúvida. Os feitiços que tinham evitado que fosse detectados eram prova suficiente de que Dorothea e a sacerdotisa das trevas sabiam como lidar com o desgraçado que governava aquele lugar. Fugiria com o prêmio de valor mais baixo, é verdade, mas ela serviria como isca para capturar Jaenelle Angelline.
Estava tudo correndo bem. Os três homens que Dorothea providenciara para ajudá-lo o esperavam na ponte. Havia um altar das trevas junto ao Paço, mas ele fora avisado de que os feitiços de detecção em torno do altar alertariam de imediato o senhor supremo, e ele não conseguiria abrir o portão a tempo de fugir. Portanto, levaria Wilhelmina até Goth, e então lorde Jorval o ajudaria a alcançar outro portão.
Ao final da tarde, estaria de volta a Terreille com o prêmio, e Alexandra, ao lado dos tolos que a acompanhavam, ainda estariam explicando o desaparecimento de Wilhelmina ao senhor supremo... ou prestes a morrer.
Sorrindo, Osvald bateu novamente à porta de Wilhelmina. Um momento depois, impaciente, bateu com mais força. Ela estava ali dentro. Por que demorava tanto para abrir a maldita porta?
Estava tentado a usar um dos feitiços de coerção que Dorothea lhe preparara, mas só dispunha de dois e não queria gastá-los com isto. Ainda assim, cada minuto que passava aumentava as chances de alguém reparar em sua presença.
Estava prestes a ceder quando a porta se abriu.
– Bom dia, lady Wilhelmina. – Sorrindo, ergueu a caixa o suficiente para chamar sua atenção. – Lady Alexandra pediu que eu trouxesse esta caixa.
– O que é? – perguntou Wilhelmina, não parecendo nem um pouco ansiosa.
– Um símbolo de seu afeto por você... e um gesto de boa vontade. Ela planeja deixar Kaeleer em breve e está angustiada que a preocupação que sente por você possa ter sido mal interpretada. Espera que, ao aceitar esta simples lembrança, possa se recordar dela com afeto no futuro.
Wilhelmina ainda parecia desconfiada.
– Por que ela não a trouxe?
Osvald a fitou com uma expressão triste.
– Teve medo de que rejeitasse o presente.
– Não guardo ressentimentos – comentou Wilhelmina baixinho, deixando que a desconfiança se transfigurasse aos poucos em compaixão.
O homem estendeu-lhe a caixa. Ao abrir a tampa, uma névoa de drogas sairia dela. Surpresa, Wilhelmina arquejaria e inalaria o bastante para se tornar complacente e permitir que ele a levasse para longe do quarto e do corredor antes de fazê-la engolir a segunda dose, desta vez líquida.
Dentro do quarto, ouviu-se um baque surdo no chão. O maldito gato listrado.
Osvald disparou o primeiro feitiço de coerção e formulou a ordem. Saia para o corredor e feche a porta. Saia para o corredor e feche a porta. Saia para...
Sorriu quando Wilhelmina, parecendo ligeiramente confusa, obedeceu.
– Pediram-me que comunicasse sua reação ao presente – disse, como se estivesse pedindo desculpas por incomodá-la.
Wilhelmina manteve-se junto à porta, a mão ainda na maçaneta. Praguejando em silêncio, ele disparou o segundo feitiço de coerção. Avance até a caixa e levante a tampa. Avance até a caixa...
Embora parecesse que seus músculos estavam a se debater diante do esforço, Wilhelmina avançou até a caixa e levantou a tampa devagar.
Tendo Presa Cinza a seu lado, Surreal perambulava pelos jardins. Os comentários enigmáticos de Jaenelle e Karla no café da manhã sobre uma nova variação a intrigavam e preocupavam.
Havia um bom número de variações sexuais que davam vantagem ao macho, por isso achava que não estavam falando disso... infelizmente. Daemon estava sendo consumido por sua própria energia sexual, e a tensão de tentar mantê-la sob controle para não assustar Jaenelle começava a transparecer. Não sabia por quanto tempo mais Daemon conseguiria suportar a ternura complacente que Jaenelle distribuía aos outros machos do primeiro círculo antes de explodir. Talvez devesse falar com o senhor supremo...
Presa Cinza rosnou. Antes que conseguisse perguntar qual era o problema, o lobo desatou a correr em linha reta em direção à parede. Ao se aproximar, saltou e escalou pelo ar como se estivesse escalando uma colina íngreme, subiu no telhado e desapareceu.
– Presa Cinza! – gritou Surreal.
*Dejaal está sendo atacado*, respondeu ele. *Vou ajudá-lo.*
Surreal praguejou enquanto corria até a porta mais próxima.
– Surreal!
Ela girou o corpo. Falonar vinha em sua direção a passos largos, do outro lado do jardim.
– Lucivar pediu que a procurasse. Você não apareceu no...
– Consegue me levar para cima deste telhado? – perguntou Surreal, com fúria na voz. – Presa Cinza disse que Dejaal está sendo atacado e saiu correndo sem mim!
Imediatamente ele se transfigurou de macho prudente em guerreiro.
– Segure-se em mim – ordenou.
Surreal hesitou por um instante, tentando decidir onde poderia se segurar sem atrapalhar o movimento das asas. Passou um braço em volta do pescoço de Falonar e enfiou os dedos da outra mão sob o grande cinto de couro.
Apenas quando sentiu as asas balançando foi que pensou se o eyrieno conseguiria suportar o peso adicional de outra pessoa.
– Preciso aprender a caminhar sobre o ar para não ter que voltar a ser carregada por aí – resmungou.
– Não me importo de carregá-la – disse Falonar bruscamente, pousando de modo não muito delicado no telhado.
Surreal cerrou os dentes. Um macho de cada vez. E era o cinza peludo que ia sentir em primeiro lugar o gostinho de sua fúria.
– Consegue vê-lo? – perguntou enquanto perscrutava o pátio mais abaixo.
– Não. Pode ter...
No pátio ao lado, viram uma explosão de energia das joias, seguida pelo grito de uma mulher. Falonar se lançou do telhado com tal rapidez que Surreal enganchou uma das pernas do eyrieno nas suas para conseguir se agarrar com mais firmeza. Irritou-se ao sentir, ainda que num momento inoportuno, o corpo dele exprimindo aprovação entre suas pernas.
– Se ele não morrer nesta batalha, eu mesma o matarei! – resmungou.
– Espere aqui – disse Falonar, olhando para o pátio lá embaixo.
– “Espere aqui”? Você tem amor pelas suas bolas? – retrucou Surreal, virando-se para olhar em volta.
Recobrou o fôlego e praguejou. O jovem tigre, Dejaal, estava estendido no pátio, imóvel. Um criado se contorcia em agonia. Presa Cinza se precipitava para a frente e para trás, sem se envolver ativamente num ataque, mas retendo a atenção do homem que segurava Wilhelmina.
Voltou a praguejar ao reconhecer o homem. Osvald. Um dos acompanhantes de Alexandra. Mãe Noite!
– Consegue se equilibrar? – perguntou Falonar, soltando-a e, em seguida, partindo para a batalha.
Pelo menos ele perguntou antes, pensou Surreal enquanto usava a arte para não escorregar pelo telhado.
Presa Cinza atacou por baixo, como se tentasse paralisar Osvald. Surreal viu o clarão da joia opala do inimigo. Lançou um escudo cinza em torno de Presa Cinza, rápido o bastante para evitar que ele fosse atingido por uma explosão fatal de poder, mas não a tempo de evitar que fosse derrubado pelo embate das forças cinza e opala.
Vendo o lobo cair, Wilhelmina gritou e cravou as unhas na mão que lhe prendia o braço. Osvald a acertou com força o suficiente para que tombasse, atordoada. Depois, concentrou seu ataque de novo em Presa Cinza, que se levantara com dificuldades.
– Diga ao lobo para recuar – disse Falonar enquanto invocava o arco eyrieno e colocava uma flecha em posição.
Surreal obedeceu sem hesitar e se sentiu aliviada quando Presa Cinza reagiu. Enquanto os uivos e rugidos dos parentes alertavam todos os habitantes do Paço, Surreal pôde sentir a torrente de força masculina desenfreada que se dirigia para o local, vindo de todas as direções. E sentiu o poder frio feminino em sua esteira.
Falonar apontou.
– Atravesse o desgraçado com a flecha – sussurrou Surreal.
– Não sabemos o que está acontecendo – respondeu Falonar.
Ah, não? pensou Surreal ferozmente. O que mais precisa ver?
No preciso momento em que Osvald se virava para Wilhelmina, Falonar lançou a flecha, que atravessou o joelho esquerdo do homem. Osvald caiu, aos gritos. Agarrando Surreal pelo braço esquerdo, Falonar desceu-os do telhado, um salto que as asas abertas mal contiveram.
– Proteja Wilhelmina – disse Falonar enquanto corria em direção a Osvald, com um bastão afiado em vez do arco.
– Eu posso...
– Faça o que eu pedi!
Não era momento para discutir. Invocando sua melhor faca, Surreal correu para protegê-la ao mesmo tempo que Osvald agarrava o tornozelo de Wilhelmina. Amaldiçoou a esperteza do homem. Enquanto ele mantivesse contato físico com Wilhelmina, Surreal não conseguiria lançar um escudo protetor em volta dela.
Foi nesse momento que viu a luz do sol refletida no pequeno punhal que Osvald segurava na mão direita. Pelo misto de raiva e triunfo no rosto do homem, Surreal sabia que o veneno contido ali seria rápido e letal.
A mão de Osvald estava prestes a atingir a perna de Wilhelmina quando Falonar cortou os ossos do pulso do homem como se fossem manteiga. O bastão laminado cintilou novamente, decepando agora a mão que segurava o tornozelo de Wilhelmina.
Logo em seguida, Surreal alcançou Wilhelmina e Lucivar invadiu o pátio, acompanhado por Karla, Gabrielle e a maioria dos machos do primeiro círculo.
Assim como Alexandra e seu séquito.
As coisas não correram como tinha planejado, não é?, pensou Surreal enquanto observava Alexandra analisar a situação. Fazendo desaparecer a faca, pousou uma das mãos nas costas de Wilhelmina e a outra em Presa Cinza, que cambaleou até ela, e criou um escudo cinza em volta dos três. Talvez não fosse necessário, mas não havia motivo para correr riscos. Olhou para Falonar, que se posicionara de modo a cortar o pescoço de Osvald se ele tentasse algo. Estendeu o escudo ao eyrieno e sentiu sua surpresa e prazer quando o escudo o envolveu. Por que ele estaria com medo?
Gabrielle correu em auxílio do criado enquanto Karla, sem chegar a tocar em Osvald, usou arte medicinal para estancar as veias decepadas.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou Alexandra, cujo tom de voz soava mais assustado do que zangado. – Por que estão atacando um de meus acompanhantes?
– Você o enviou? – perguntou Lucivar, num tom estranho.
– Pedi a ele que levasse um presente a Wilhelmina – respondeu Alexandra.
O riso de Lucivar tinha algo de estranho e amargo.
– E o desgraçado o entregou, não foi?
– Entreguei o presente, mas lady Wilhelmina estava indisposta – lamuriou-se Osvald. – Eu me ofereci para acompanhá-la num passeio para que pudesse tomar ar fresco. Foi então que aquela criatura nos atacou.
Lucivar olhou para Osvald e depois para Falonar.
– Se esse desgraçado voltar a abrir a boca, corte a língua dele.
Falonar pareceu chocado, mas assentiu.
– Como se atreve? – disse Alexandra. – Como permite que esse...
– Cale a boca – disse Lucivar abruptamente. – A situação já é ruim. Não a torne ainda pior.
Surreal deu um olhar penetrante a Lucivar. O que estava acontecendo?
Tremendo, Presa Cinza se aproximou.
*A raiva da rainha é má, Surreal. Os machos a temem. Até mesmo Kaelas.*
Seguindo o olhar fixo do lobo, Surreal viu o colossal gato branco no telhado, ao lado de um tigre. Aquele era Kaelas? Mãe Noite!
*Quem é o tigre?*, perguntou.
*É Jaal. O genitor de Dejaal.*
Surreal engoliu em seco. O tigre parecia um anão em comparação com Kaelas. Ainda assim, era duas vezes maior do que o jovem tigre que jazia no pátio.
*Dejaal morreu, não foi?*
*Voltou às trevas*, respondeu tristemente Presa Cinza.
Como explicariam isto a Jaenelle?
Como se o pensamento a tivesse invocado, Jaenelle chegou ao pátio, acompanhada por Daemon e Saetan.
Surreal sentiu consolo pela presença dos três, até notar o rosto do senhor supremo empalidecer ao ver o corpo de Dejaal.
Alexandra começou a falar, mas, antes que conseguisse pronunciar um único som, suas mãos voaram até a própria garganta e seus olhos se arregalaram, apavorados. Surreal não sabia ao certo de qual dos machos partira aquela ação, mas apostava que Daemon era o responsável pela mão fantasma que agora estrangulava Alexandra.
Todos se afastaram para deixar Jaenelle passar. Ela se ajoelhou junto a Dejaal. A mão que acariciava o pelo era doce e afetuosa, mas os olhos que finalmente se ergueram e fitaram Wilhelmina...
O que Surreal percebeu naqueles olhos azul-safira estava tão além da raiva fria que não havia palavras que o pudessem descrever. Sim, havia. Compreendeu enquanto Presa Cinza gania baixinho. Era a isto que o lobo se referia ao falar da raiva da rainha.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas.
Conseguiu apenas pronunciar as palavras que a libertariam daquele olhar:
– Ela está viva.
Jaenelle olhou para Karla, que fez um cumprimento formal antes de ir até Wilhelmina para examiná-la.
– Você disse as palavras certas – Karla murmurou para Surreal enquanto examinava Wilhelmina. Em seguida, praguejou e acrescentou: – O que quer que faça, siga o protocolo à risca. – Respirando fundo, virou-se de frente para Jaenelle. – Wilhelmina tem algumas escoriações... e está fortemente drogada.
– Consegue neutralizar o efeito? – perguntou Jaenelle.
– Preciso de mais tempo para determinar a natureza exata da droga que foi usada – respondeu Karla calmamente. – Mas não detecto nada capaz de provocar danos permanentes. Recomendo isolamento supervisionado e repouso. Com a sua permissão, vou levá-la agora mesmo para o quarto e cuidar dela.
– Obrigada, irmã.
Como resposta ao gesto sutil de Karla, seu primo, Morton, pegou Wilhelmina no colo e seguiu Karla para fora do pátio.
Surreal permaneceu agachada ao lado de Presa Cinza, reticente em fazer qualquer movimento que voltasse a chamar a atenção daqueles olhos azul-safira.
– E quanto a mim? – gemeu Osvald.
Falonar olhou para Lucivar, indagando em silêncio se devia cumprir a ordem e cortar a língua do homem. Lucivar balançou a cabeça, num movimento quase imperceptível.
Jaenelle atravessou o pátio, olhou para Osvald no chão e sorriu.
– Cuidarei de você pessoalmente.
Lucivar deu um salto para a frente.
– Senhora, com todo o respeito, Dejaal era nosso irmão. Os machos têm direito...
Erguendo a mão, Jaenelle o silenciou. Por um momento, permaneceu de pé, no mesmo lugar, mas Surreal pôde sentir a chicotada de poder que explodiu dela como uma sonda psíquica se expandindo rapidamente – e percebeu que ninguém que usasse uma joia mais clara do que a cinza poderia sentir o que quer que fosse.
– Há três homens aguardando junto à ponte que leva a Halaway – disse Jaenelle. Um brilho terrível invadiu seus olhos enquanto se dirigia a Osvald. – Três estranhos. Não me importo com o que fizer a eles.
Osvald flutuou até a posição vertical. Quando Jaenelle se virou e saiu do pátio, ele flutuou atrás dela, alegando inocência.
– Kalush e Morghann estão chegando – disse Gabrielle, com lágrimas nos olhos. – Ficaremos com Dejaal até...
Apontando para Alexandra, Lucivar olhou para Falonar.
– Você e Surreal... acompanhem estas... pessoas... a seus quartos. Se qualquer um deles causar problemas, mate-o.
– Com todo o prazer – disse Surreal. Falonar apenas assentiu com a cabeça.
Lucivar saiu do pátio, seguido pelos outros príncipes dos senhores da guerra do primeiro círculo. Quando Daemon ia acompanhá-los, Saetan o impediu.
– Não. Fique comigo.
Ao lado de Falonar e Presa Cinza, Surreal reuniu os prisioneiros e os levou para fora do pátio. Não sabia o que o senhor supremo tinha em mente, mas preferia não estar por perto durante a discussão.
Daemon deu um passo para o lado quando Morghann e Kalush irromperam no pátio.
– Vamos sair daqui – disse Saetan, com a voz rouca de mágoa contida. E algo que talvez fosse medo.
Foi esse medo que levou Daemon a seguir o pai. Mas nem mesmo isso era suficiente para que engolisse sua própria raiva. Enquanto saíam do pátio, devagar, Daemon disse:
– Posso não ter a habilidade de Lucivar com armas, mas sou capaz de lidar com um inimigo.
Saetan parou de andar.
– Lembre-se com quem está falando, príncipe. Se há alguém que conhece sua eficiência como predador, esse alguém sou eu.
– Então por que me deteve?
– Lucivar não precisa da sua ajuda para cuidar de quem quer que esteja esperando aquele desgraçado na ponte, sobretudo tendo ao lado os machos que o acompanharam. Mas eu preciso de você. Neste momento, conto com cada gota de força e de cada grão de habilidade que tiver para lidar com Jaenelle. Fogo do Inferno, Daemon. Não percebe o que aconteceu aqui?
Esforçando-se imensamente, Daemon reprimiu a fúria.
– Alexandra planejou o sequestro da própria neta.
Saetan balançou a cabeça devagar.
– Alexandra estava de conluio com Dorothea e Hekatah para sequestrar a própria neta.
Daemon absorveu o impacto daquelas palavras, e se deu conta do que poderia acontecer quando Jaenelle descobrisse.
– Mãe Noite.
– E que as trevas sejam misericordiosas – acrescentou Saetan. – Estamos lidando com uma rainha furiosa que, a esta altura, já desceu tão fundo no abismo que não temos como alcançá-la. Não temos como impedir o que ela quiser libertar no estado emocional em que se encontra.
– O que posso fazer? – perguntou Daemon, embora desconfiasse da resposta.
– A questão é o que podemos fazer como administrador e consorte, o que o protocolo nos permite fazer nestas situações.
– O protocolo não levou em conta a possibilidade de ter que lidar com uma rainha com duas vezes mais poder que um príncipe dos senhores da guerra de joia negra!
A mão de Saetan tremia ligeiramente enquanto ajeitava o cabelo.
– Seis vezes nossas forças combinadas, eu diria.
– O quê? – exclamou Daemon, apoiando-se na parede com uma das mão.
– Não existe nenhuma forma concreta de medir o poder de Jaenelle. No entanto, considerando o número de joias negras de direito por progenitura que foram convertidas em ébano quando realizou a oferenda às trevas, acho que, no auge de seu poder, tem seis vezes mais força do que nós dois juntos.
– Mãe Noite. – Daemon se concentrou durante um minuto para conseguir respirar. – E quando pretendia me dizer isso? Ou não tinha essa intenção?
Saetan estremeceu.
– Queria que se sentissem... à vontade... um com o outro antes de lhe contar. Mas agora...
Uma explosão de poder fez o Paço estremecer, lançando-os ao chão. Daemon teve a impressão de estar se agarrando desesperadamente a uma margem que desmoronava, a centímetros de um dilúvio enfurecido que o esmagaria.
Sentiu Saetan segurando-o, com firmeza. Aquela torrente de poder desapareceu tão depressa como surgiu. Isso foi tão assustador quanto a explosão. Para Jaenelle libertar e absorver tal quantidade de poder num intervalo de tempo tão curto...
– Jaenelle – disse Daemon, pondo-se em pé de um salto.
Enviou uma sonda psíquica, procurando especificamente por ela. Descobriu um local do Paço que estava gelado a ponto de queimar. Embora tivesse se afastado rapidamente, a dor lancinante quase o fez cair de joelhos. E isso o fez correr.
– Daemon, não! – chamou Saetan, pondo-se em pé com dificuldades.
Daemon disparou pelos corredores. Já não precisava procurar. Os corredores ficavam cada vez mais frios quanto mais se aproximava do cômodo onde Jaenelle libertara o poder.
– Daemon!
Já tinha alcançado a porta quando ouviu Saetan correndo em seu encalço. Usando a arte, Daemon entrou no quarto. O frio era extremo. Ao olhar em volta, não conseguiu compreender o que havia acontecido. Primeiro, identificou que os pequenos respingos vermelhos nas janelas eram gotas congeladas de sangue...
– Daemon.
Depois, compreendeu o que Lucivar havia mencionado sobre o casamento forçado de Jaenelle. Fogo do Inferno, Daemon, ficou respingado por todo o quarto.
– Daemon.
Percebeu a súplica na voz de Saetan, mas não conseguia reagir. Um torpor se instalara em seu ser... Sabia agora por que Saetan não queria que visse o quarto. Devido à natureza de seus deveres, um consorte não podia ser inibido em sua relação com a rainha. Um consorte se disponibilizava fisicamente à rainha, consciente e por vontade própria, como nenhum outro macho da corte. Um consorte que receava sua rainha não podia funcionar na cama.
Mas já tinha visto antes esse lado de Jaenelle. Fora apenas um leve vislumbre, mas conhecera essa faceta da feiticeira, que emergia devido à intensa agitação ou à raiva profunda. Poderia viver com isso? Conseguiria conduzir a dança sexual uma vez revelado esse lado de Jaenelle?
O ardor do desejo sexual, a forte necessidade de acasalar com a feiticeira que, de súbito, o atingiu, consumiu o torpor emocional, deixando em seu lugar uma aprovação sinistra diante do que estava presenciando.
Saiu do quarto e fechou a porta.
– Daemon – disse Saetan, ternamente, observando-o.
Daemon sorriu.
– Fico triste pelo papel de parede. Era lindo.
– Bem – disse Surreal afastando o cabelo do rosto –, acho que neste momento nenhum dos “hóspedes” está ansioso para sair do quarto, não é?
– Acho que não – respondeu Falonar, soando ligeiramente nervoso.
– É. – Surreal se encostou na parede e fechou os olhos. – Merda.
– Você se machucou durante... aquilo? – perguntou Falonar, referindo-se à explosão de energia que fizera estremecer o Paço. Tocou levemente seu ombro antes de se afastar.
Surreal balançou a cabeça. Se eu me machuquei? Não. Se eu me caguei de medo? Com certeza. Mas as pessoas que viviam com Jaenelle não viviam num terror constante. Na verdade, ao pensar na maneira como Karla e Lucivar tinham agido no pátio, classificaria esse comportamento mais como prudente do que temeroso. E essa prudência também não era habitualmente visível.
Afastando esses pensamentos, lançou um olhar zangado para Falonar e decidiu enfrentar outra coisa fácil, como, por exemplo, a maneira arrogante como tinha lhe dado ordens depois de terem chegado ao pátio.
– Eu poderia ter me encarregado daquele desgraçado.
Falonar pareceu insultado.
– É dever do macho defender e proteger.
Surreal cerrou os dentes.
– Não é a primeira vez que escuto essa cantilena e...
– Então deveria prestar atenção e respeitá-la, senhora.
– Por quê? Porque acha que eu não consigo me defender numa luta? – perguntou, cheia de veneno.
– Por que é mais letal. É por isso que são os machos que defendem, lady Surreal. Porque vocês, fêmeas, são mais letais quando estão inflamadas... e implacáveis quando atingem o limiar assassino – retrucou. Afastou-se alguns passos de Surreal, praguejou e voltou a se aproximar. – Se eu for vencido numa luta, pelo menos não preciso lidar depois com você.
Sem saber se tinha sido elogiada ou insultada, Surreal permaneceu em silêncio. Estava prestes a admitir que Falonar poderia ter certa razão quando ele comentou:
– Você escolheu um péssimo momento para ser infantil. Já vai ser bem difícil enfrentar Yaslana.
Agora sim, isso era um insulto.
– Uma vez que se sente desse jeito, querido, vou sair do seu caminho.
Afastou-se da parede. Falonar estendeu a mão e tocou seu braço.
– Surreal, você tinha razão. Eu deveria ter matado aquele desgraçado. Agora terei de aceitar as consequências desse erro. – Hesitou e acrescentou baixinho: – Ele poderia ter matado você ou lady Benedict com aquele punhal envenenado.
Surreal deu de ombros.
– Você não tinha como saber, e ele não matou nenhuma de nós. Logo...
– E que diferença faz? – perguntou Falonar asperamente. – Meu erro quase estragou tudo.
Surreal o examinou.
– Acha que vai ser castigado?
– Isso é certo. A única questão é até que ponto.
– Bem, tenho algumas coisas a dizer quanto a isso. Quando Lucivar começar a discutir o assunto...
– Não haverá discussão – interrompeu Falonar. – Ele é o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih. Agirá como bem entender. Prefiro ser atado a uma coluna de pedra e chicoteado a ser enviado de volta para Terreille.
– Mas não há motivo para qualquer castigo!
Falonar sorriu sinistramente.
– É assim que funciona, lady Surreal.
É o que vamos ver, pensou Surreal.
Daemon observou Saetan se servindo de uma generosa dose de conhaque.
– Consegue beber isso? – perguntou, num tom ligeiramente curioso.
– Fico com dores de cabeça terríveis – respondeu Saetan, servindo outro copo para Daemon. – Mas duvido que vá piorar a que já estou sentindo... – Ergueu o copo num brinde, engolindo em seguida metade do conhaque. – Dejaal era filho do príncipe Jaal.
A menção ao tigre príncipe dos senhores da guerra lhe pareceu uma mudança brusca de assunto.
– Lucivar encontrou os homens?
– Sim, e obteve as informações que queria antes de executá-los.
Daemon observou o pai. Havia alguma coisa errada. Como não sabia que perguntas fazer, expressou suas próprias preocupações.
– Jaenelle não está aqui, não é?
Saetan balançou a cabeça.
– Partiu para Ebon Askavi... e pediu para não ser incomodada por enquanto.
– Pretende acatar esses desejos? – perguntou Daemon, com cautela.
O olhar de Saetan era firme demais.
– Nós vamos acatar esses desejos. Ela precisa tomar algumas decisões difíceis. Seria cruel forçá-la a sentir antes de estar preparada para isso.
Daemon assentiu. Não gostava daquilo, mas podia aceitar. Voltou pensando nos três homens que esperavam Osvald para auxiliá-lo no sequestro de Wilhelmina.
– Esses homens trabalhavam para Hekatah e Dorothea?
– Sim.
Sentiu que Saetan se afastava, por isso insistiu.
– Lucivar os executou?
Não seria a primeira vez que Lucivar matava, então não devia ser isso que estava atormentando Saetan. Haveria algo diferente numa execução formal?
– Os outros machos do primeiro círculo renunciaram a seu direito de cobrar parte da dívida pela morte de um irmão – disse Saetan.
– O que isso significa? – perguntou Daemon lentamente.
Saetan hesitou e terminou de beber o conhaque antes de responder.
– Significa que entregaram os homens a Jaal... e a Kaelas.
Num silêncio furioso, Surreal fulminava com o olhar os quatro homens no escritório do senhor supremo. Resmungara tanto que lhe haviam permitido estar presente a essa pequena discussão, mas foi logo informada de que sua presença seria tolerada contanto que não interferisse. Sua opinião não seria solicitada nem necessária.
Se fossem quaisquer outros homens, teria opinado sobre aquilo, provavelmente fazendo uso do punhal. Mas Lucivar parecia estar no limite e não hesitaria em mandá-la para fora – através da porta. E Saetan e Andulvar Yaslana não eram o tipo de homens que permitiam que alguém desafiasse sua autoridade como administrador e mestre da guarda.
Mas o que realmente a magoava era que Falonar não tivesse olhado para ela nem uma única vez desde que conseguira impor sua presença. Pensara que ele ficaria grato por ter alguém ali para falar em sua defesa. Mas ele...
Bem, não havia problema. Não precisava ficar ali perdendo tempo com um macho insensível e cabeça-dura que não desejava sua presença.
Olhou para Lucivar, viu o divertimento sarcástico naqueles olhos dourados e soube que, se tentasse sair agora, exigiriam que permanecesse. Por isso, em vez de se amaldiçoar por sua teimosia, amaldiçoou Lucivar. Ele sabia! Sacana!
Saetan se encostou à mesa de madeira escura e cruzou os braços.
– Príncipe Falonar, pode nos explicar suas ações esta manhã?
Seu tom de voz era educado, ligeiramente curioso. Surreal imaginou se seria um mau sinal. Falonar respondeu. Na opinião de Surreal, a recitação objetiva das ações ficou aquém de uma explicação, mas os homens ali não pareceram reparar nisso.
Quando Falonar terminou, Saetan olhou para Andulvar e Lucivar e então se voltou para Falonar.
– Pecou por excesso de zelo – disse Saetan, calmamente. – É compreensível. Mas, sendo um príncipe dos senhores da guerra, é igualmente inadmissível. Você não pode se dar ao luxo de ser cauteloso.
– Sim, senhor.
– Compreende que o castigo é indispensável?
– Sim, senhor.
Saetan assentiu, satisfeito. Olhou para Lucivar.
– A decisão é sua.
Falonar se virou de frente para Lucivar, que o examinou por um momento.
– Cinco dias de rondas extras, a começar amanhã.
Em vez de ficar aliviado, Falonar parecia ter levado uma bofetada.
– Há outra coisa que queiram discutir? – perguntou Saetan.
Lucivar olhou para Surreal e depois para Saetan, que, depois de uma pausa, fez uma saudação praticamente imperceptível com a cabeça.
Lucivar abriu a porta do escritório e aguardou.
Depois de fazer um cumprimento a Saetan e a Andulvar, Falonar saiu. Como parecia que aquilo era o mais apropriado, Surreal também fez um cumprimento aos dois homens e seguiu Falonar para fora do escritório, tão rapidamente que pisou em seu pé.
Praguejando, Falonar alongou as passadas, parando por fim ao chegar ao centro do salão principal.
Surreal o alcançou.
– Bem, não foi...
Calou-se ao ver o desagrado e a ira no rosto do homem.
– Cinco dias de rondas extras é um insulto! – exclamou Falonar.
Surreal apertou o tecido da túnica que vestia para resistir à vontade de lhe dar um murro. Tolo. Idiota. Deveria estar grato por não ter sido pior.
– Não é um insulto – respondeu Lucivar gentilmente. – É justo. Você cometeu um erro, Falonar. Precisa pagar por ele. Você agiu, mas por pouco não mutilou a si mesmo por excesso de zelo.
– Sei bem o que meu zelo poderia ter custado.
– Sim, você sabe. E é por isso que o castigo é justo. – Os lábios de Lucivar se arquearam num sorriso indolente e arrogante. – Não se preocupe. Fará ainda muitas outras rondas extras antes de completar um ano aqui. Comigo aconteceu o mesmo.
Falonar o olhou estupefato.
– Com você?
O sorriso ficou mais acentuado.
– É difícil acreditar que eu pecaria por excesso de zelo, não é? Mas eu queria ficar em Kaeleer e servir minha rainha, por isso controlei minha fúria tanto quanto possível... Acabava sempre naquele escritório, enfrentando aqueles dois, tantas vezes que perdi a conta. – Lucivar fez uma pausa. – Estamos em Kaeleer. Aqui, a fúria de um príncipe dos senhores da guerra é considerada um elemento valioso da corte.
Falonar levou algum tempo para digerir aquelas palavras. Então disse, gentilmente:
– Rondas extras não parecem muita coisa quando uma feiticeira poderia ter morrido.
– Bem, há um detalhe no seu... castigo – disse Lucivar. Inclinou a cabeça na direção de Surreal. – Terá de aturá-la até o nascer do sol. Uma vez que ela parece necessitar diariamente berrar com um macho, que seja você. – O sorriso acentuou-se ainda mais. – É claro, há sempre a possibilidade de você se oferecer para aquecer a cama dela. Quem sabe isso a tornará um pouco mais clemente.
Falonar engasgou. Surreal produziu um som que lembrava uma chaleira prestes a ferver.
– Você acha que passar a noite comigo é uma forma de castigo? – gritou Surreal. – Seu desgraçado... Eu diria que é uma recompensa!
Lucivar deu de ombros.
– Como quiser. Mas saibam que, se decidirem prolongar o “castigo” além desta noite, terão de obter a permissão formal do administrador da corte. Ele concordou em deixar de lado essa formalidade até o nascer do sol, mas só até lá. E esta é uma área em que não é muito sensato provocar Saetan.
Depois que Lucivar desapareceu, Surreal e Falonar olharam um para o outro.
– Parece que não consegui manter meu... interesse... em estar com você tão... contido. Lucivar percebeu – disse Falonar.
Ou o senhor supremo, pensou Surreal. Sendo patriarca da família e orientador sexual, estava certa de que não lhe escapava muita coisa.
– Então, vai gritar comigo?
Surreal sorriu.
– Bem, querido, talvez não grite com você. Com o estímulo certo, talvez apenas grite.
Lorde Jorval se instalou numa cadeira na sala de estar de Kartane SaDiablo.
– Seu encontro com a curandeira foi adiado.
– Por quê? – perguntou Kartane rispidamente. – Pensei que estava tudo arranjado.
– Estava – tranquilizou-o Jorval. – Mas aconteceu um... incidente... na residência da curandeira, por isso levará mais alguns dias até vocês se encontrarem.
– Você podia ter insistido – disse Kartane. – Talvez não tenha compreendido como é importante que eu...
– De nada adiantaria insistir – interrompeu Jorval.
– Então imagino que não tenha outra opção a não ser esperar.
Jorval se levantou.
– Não há outra opção.
Um incidente, pensava Jorval no caminho de volta para casa. Fora assim que o senhor supremo se expressara, com cautela e cortesia. Uma vez que os homens que tinham ido a Halaway para auxiliar o acompanhante haviam desaparecido subitamente, e diante da inexistência de qualquer sinal do acompanhante, podia imaginar o “incidente” que estava atrasando a viagem de Jaenelle Angelline à Pequena Terreille.
O que significava que tinha de avisar a sacerdotisa das trevas de que, muito provavelmente, Alexandra já não era mais uma ferramenta útil. Hekatah não ficaria nada satisfeita com isso. Provavelmente viria à Pequena Terreille numa fúria desenfreada, e a descarregaria nele.
Mas talvez pudesse redirecionar essa fúria. Talvez agora fosse um bom momento para resolver aquele outro probleminha. Ao chegar em casa, correu para o escritório e rabiscou um bilhete para lorde Magstrom.
– Onde está meu acompanhante? – perguntou Alexandra ao se sentar no escritório do senhor supremo.
Depois de dois dias dentro do quarto, sentia-se aliviada por sair, embora nenhum alívio por estar naquele cômodo com ele. Saetan se reclinou na cadeira e juntou as mãos à sua frente, pousando o queixo nas longas unhas pintadas de preto. Os olhos dourados tinham um ar sonolento, tal como quando a vira pela primeira vez.
Consciente do frio no recinto, Alexandra enrolou a xale no corpo.
– É interessante que a primeira pessoa por quem pergunta seja Osvald – disse Saetan com demasiada serenidade.
– E por quem deveria perguntar? – retrucou Alexandra, com a voz estridente de medo.
– Pela sua neta, Wilhelmina. Está se recuperando das drogas que aquele desgraçado deu. Não haverá danos permanentes.
– Mas é claro que não. Foi apenas um sedativo leve.
– Foi muito mais do que um sedativo, senhora – respondeu Saetan, ficando também com a voz estridente.
Alexandra hesitou. Ele estava mentindo. É claro que estava mentindo. Saetan a olhou com curiosidade.
– Não consigo deixar de pensar na recompensa que Dorothea e Hekatah devem ter lhe oferecido que valesse a vida da sua neta.
Alexandra saltou da cadeira.
– Você está me insultando!
– Estou? – perguntou, a voz novamente com aquela serenidade exasperante e assustadora.
– Eu não estava vendendo Wilhelmina a Dorothea, estava apenas tentando afastá-la de vocês!
Um olhar estranho tomou conta do rosto de Saetan.
– Sim, essa justificativa parece ser sempre suficiente, não é? Vocês levam a criança para longe de mim e que se dane o que acontecer a ela depois. Toda uma vida de sofrimento, humilhação e tortura é sem dúvida melhor do que ficar comigo.
Alexandra se sentou novamente e o observou. Ele estava concentrado, seguindo algum pensamento íntimo.
– O que achou que iria acontecer a Wilhelmina? – perguntou Saetan.
– Osvald ia tirá-la de Kaeleer e depois a levaríamos para casa.
Enquanto a fitava, os olhos de Saetan foram invadidos por uma tristeza profunda.
– Então não haveria recompensa – disse baixinho. – Seria uma moeda de troca.
– Do que está falando?
– Como planejavam tirar Wilhelmina de Hayll?
Alexandra fitou o senhor supremo.
– Ela não ia para Hayll.
– Sim, ia. Essas eram as ordens, Alexandra. Wilhelmina seria “convidada” de Dorothea durante o tempo que você estivesse disposta a fazer concessões. Quantas concessões poderia fazer a Hayll antes que seu povo ficasse sufocado por elas e se recusasse a continuar aceitando-a como rainha? O que teria então para negociar para mantê-la a salvo?
– Não – disse Alexandra. – Não. Dorothea concordou em me ajudar porque... – Porque estava se preparando para iniciar uma guerra com ele e queria manter o suposto poder negro de Jaenelle longe de seu controle. Mas não podia permitir que Saetan tivesse conhecimento disso. – Wilhelmina não era uma moeda de troca.
Mas Jaenelle não teria se tornado exatamente isso? Uma moeda de troca nos jogos de guerra? Aquilo era diferente. Jaenelle já estava obviamente desvirtuada pelas atenções do senhor supremo, e se Jaenelle tivesse acabado sendo uma “convidada” de Dorothea...
Com uma honestidade brutal, Alexandra admitiu que jamais teria feito concessões a Hayll de modo a garantir o bem-estar de Jaenelle. À sua corte, falaria sobre um sacrifício familiar pelo bem do povo. E, na verdade, não teria sentido mais do que uma pontada de culpa por esse sacrifício. Ela fora sempre uma criança tão difícil...
– Wilhelmina não era uma moeda de troca – repetiu, de modo pouco convincente.
– Pense como quiser.
Aquela indiferença despreocupada, como se o assunto já não tivesse mais importância, a perturbou.
– O que aconteceu com Osvald? Pelo menos cuidaram das suas feridas?
Algo estranho se apoderou dos olhos de Saetan.
– Foi executado. Assim como os três homens que o aguardavam.
Alexandra ficou estarrecida.
– Que direito você tem...?
– Ele tentou sequestrar um membro da corte e assassinou outro. Esperava realmente que ficássemos de braços cruzados e engolíssemos isso?
– Não foi um sequestro! – gritou Alexandra. – Ele estava tentando ajudá-la a sair daqui. Aquele animal o atacou. Teve de se defender.
– Estava levando-a contra sua vontade. Isso é sequestro.
– Estava fazendo cumprir os desejos da família de Wilhelmina.
– Ela é uma mulher adulta – retrucou Saetan. – Você não tem qualquer direito de tomar decisões por ela.
– Está mentalmente fragilizada. Não é capaz de decidir...
– É assim que você lida com aqueles que não partilham de sua opinião? – A voz de Saetan se elevou. – Declara que são mentalmente fragilizados e assim justifica que sejam trancados num lugar onde outros têm prazer em violá-los e torturá-los?
– Como se atreve?
– Sabendo o que sei sobre Briarwood, atrevo-me bastante.
Alexandra sentiu o ar fugindo dos pulmões. Saetan tinha um ódio no olhar que já não se dava o trabalho de disfarçar.
Com algum esforço, reuniu forças e se levantou, endireitando-se para lhe dirigir a palavra.
– Sou rainha...
– É uma vagabunda ingênua, arrogante e violentadora – retrucou Saetan, num cantarolar melodioso que dava às palavras uma sensação de carícia violenta. – Viva uma longa vida, Alexandra. Viva uma longa vida. Quando chegar seu fim, volte diretamente às trevas. Se não for assim, se fizer a transição para demônia-morta, estarei à sua espera.
Ela levou alguns instantes para compreender as palavras. O senhor supremo do Inferno.
– Robert Benedict fez a transição – cantarolou Saetan – e pagou a parte da dívida que tinha comigo pelo que fizeram à filha da minha alma.
– Não devo nada a você. – Alexandra tentou parecer firme, mas não conseguiu evitar um tremor na voz.
Saetan abriu um sorriso doce e terrível. Alexandra precisava sair dali, precisava se afastar dele.
– Uma vez que supostamente estamos numa corte, acho que chegou a hora de falar com a rainha misteriosa. A verdadeira rainha. Na verdade, exijo falar com ela.
Saetan não mexeu um único músculo.
– Parece que ela também deseja falar com você – disse, com uma voz estranha. – Você foi convocada a Ebon Askavi, a ficar diante do trono das trevas.
Com o coração na boca, Alexandra seguiu o senhor supremo pelas escadas de pedra escura. As enormes portas duplas ao fundo da escadaria se abriram em silêncio, revelando uma escuridão intensa.
Protestara ao saber que Leland, Philip e o resto de seu séquito também tinham sido convocados à fortaleza. Não surtira qualquer efeito. Ninguém dera a menor indicação de ter sequer ouvido suas queixas, quanto mais concordar com elas.
Protestara igualmente quando Daemon e Lucivar se juntaram ao senhor supremo como “acompanhantes”. Neste momento sentia-se ridiculamente grata pela força masculina que a guardava. O Paço era aterrador, mas não passava de um agradável solar se comparado à fortaleza.
À medida que Saetan avançava, as tochas começavam a se acender, até restar apenas o fundo da sala em completa escuridão. Quando a última tocha se iluminou, Alexandra olhou estupefata para a enorme cabeça de dragão que saía da parede do fundo. As escamas de tom dourado-prateado cintilavam. Seus olhos eram tão escuros como a meia-noite. Num estrado ao lado da cabeça podia-se ver uma simples cadeira de madeira escura. A mulher ali sentada ainda estava coberta pelas sombras.
Então essa era a rainha de Ebon Askavi. A luz da sala sofreu uma alteração imperceptível, devido ao acender suave do chifre de unicórnio do cetro que a mulher tinha nas mãos.
Ao olhar para os anéis nas mãos da rainha, sentiu um calafrio de pavor. À primeira vista diria que eles continham pedaços de uma joia negra, mas as joias nesses anéis pareciam ainda mais escuras do que a negra. O que era impossível... ou não?
A luz do cetro aumentava e o poder na sala crescia na mesma proporção. O rosto da mulher continuava na penumbra, mas agora Alexandra conseguia distinguir o vestido negro e outra joia incrustada num colar parecido com uma teia de aranha feita de fios dourados e prateados. A luz ficou mais forte. Alexandra ergueu o rosto... e fitou os glaciais olhos azul-safira de Jaenelle.
Longos segundos se passaram até Jaenelle desviar o olhar para Leland e Philip, Vania e Nyselle e os consortes e acompanhantes que compunham seu séquito. Livre do olhar glacial, Alexandra apertou o estômago com a mão, numa tentativa desesperada de não se curvar. Neste cenário formal, finalmente compreendeu o que Jaenelle havia dito quando se encontraram pela primeira vez no Paço. A diferença é que soube reconhecer o sonho, quando ele finalmente apareceu.
O poder escuro que fluía de Jaenelle podia ter mantido Chaillot longe da influência de Dorothea. Mas como poderiam esperar que Alexandra tivesse reconhecido isso numa criança difícil e excêntrica?
Atreveu-se a dar um rápido olhar para Daemon. Ele reconhecera. Reconhecera e...
Mas não era isso que Dorothea tinha dito? O Sádico e o senhor supremo tinham reconhecido o potencial de todo aquele poder escuro e se empenharam em seduzi-la e moldá-la. Era evidente a razão pela qual Dorothea queria controlar Jaenelle, mas isso não alterava a provável verdade do que havia dito sobre Daemon e o senhor supremo.
Os pensamentos rodopiavam, retorciam-se, até que aqueles olhos azul-safira voltaram a fitá-la.
– Você conspirou com Dorothea SaDiablo e com Hekatah SaDiablo, reconhecidas inimigas, com a intenção de entregar um membro da minha corte a ela. – A voz, embora tranquila, podia ser ouvida em toda a imensa sala. – Na tentativa de executar esse plano, matou outro membro da minha corte, um jovem príncipe dos senhores da guerra.
Leland se exaltou, não deixando que Philip a impedisse.
– Não passava de um animal.
Uma ferocidade terrível invadiu o rosto de Jaenelle.
– Era Sangue... e era irmão. A vida dele valia tanto quanto a sua.
– Não o matei – disse Alexandra, numa voz quase inaudível.
Havia raiva mortífera no limiar da loucura sob o gelo daqueles olhos azul-safira.
– Não desferiu o golpe fatal – concordou Jaenelle. – E por isso decidi não executá-la.
Alexandra teria tombado se Philip não tivesse corrido em seu socorro. Executá-la?
– No entanto – prosseguiu Jaenelle –, um preço será pago pela morte de Dejaal.
O desespero começou a brotar em Alexandra.
– Não existe qualquer lei contra o assassinato.
– Não, não existe – respondeu Jaenelle com demasiada delicadeza. – Mas uma rainha pode exigir um preço pela vida que se perdeu.
Vania ou Nyselle choramingaram. Alexandra não sabia qual delas.
– Vocês não são mais bem-vindos em Kaeleer. Jamais voltarão a ser. Se algum de vocês voltar aqui, será executado. Sem perdão.
– Ela pode fazer isso? – murmurou Nyselle.
Os olhos de Jaenelle saltaram para as rainhas de província antes de voltarem a se fixar em Alexandra.
– Sou a rainha. Minha vontade é lei.
E ninguém, compreendeu Alexandra, ninguém desafiaria essa vontade.
– Vocês serão conduzidos ao altar de Cassandra e, por esse portão, enviados de volta a Terreille – informou Jaenelle. – Senhor supremo, os preparativos ficarão a seu encargo.
– Com todo o prazer, senhora – respondeu Saetan, solenemente.
– Podem ir. – O cetro balançou até que o chifre de unicórnio apontou para o peito de Alexandra. – Menos você.
Leland protestou em silêncio, mas não discutiu quando Philip, com um ar pálido e nauseado, pegou em seu braço e a conduziu para fora da sala. Os demais membros da comitiva se apressaram a segui-los, tendo Saetan, Daemon e Lucivar logo atrás.
Quando as portas duplas se fecharam e ficaram apenas as duas na sala, Jaenelle baixou o cetro.
– Você devia ter ido embora quando avisei da primeira vez. Agora...
Alexandra demorou um minuto para dizer:
– Agora...?
Jaenelle não respondeu.
Alexandra cambaleou e deu um pequeno passo para tentar se equilibrar quando sentiu a sala começar a girar, ficando em total escuridão.
O que acabou de acontecer, em nome do Inferno?, pensou enquanto se equilibrava.
Foi então que olhou à sua volta. Estava sozinha no centro de um amplo círculo de pedra. O chão era completamente liso. Em volta do círculo havia um muro sólido de rocha afiada e irregular que se elevava muito acima de sua cabeça. Além desse muro...
Sentiu uma pressão enorme contra aquelas paredes, como se alguma coisa estivesse tentando forçar a entrada e destruir aquele lugar.
*Onde...?*
*Estamos no fundo do abismo*, disse uma voz de meia-noite.
Alexandra se virou para o lugar de onde vinha a voz de Jaenelle, e ficou perplexa com a criatura que viu a alguns metros. Fitou o corpo humano esguio e nu; as pernas humanas que terminavam em cascos delicados; as mãos humanas que tinham garras retraídas no lugar de unhas; as orelhas pontudas; a juba dourada que não era exatamente cabelo nem exatamente pelo; o pequeno chifre espiralado no meio da testa; os frios olhos azul-safira.
*O que é você?*, murmurou Alexandra.
*Sou os sonhos tornados realidade*, respondeu. *Sou a feiticeira.*
A voz de Jaenelle. Os estranhos olhos de Jaenelle. No entanto...
Alexandra recuou. Não. Não.
*Você é o que está dentro...*
Não conseguiu completar a frase. A repulsa a emudeceu. Tinha sido isso que sua filha Leland dera à luz? Isso?
*O que você fez com minha neta?*, perguntou Alexandra.
*Não fiz nada.*
*Impossível! O que foi que fez com ela? Devorou o espírito para poder usar o corpo?*
*Se está se referindo ao casulo a que chama Jaenelle, o corpo sempre foi meu. Nasci naquela pele.*
*Nunca! Nunca! Não pode ter nascido de Leland.*
*E por que não?*, perguntou a feiticeira.
*Porque você é monstruosa.*
Um silêncio doloroso. Em seguida, a feiticeira disse friamente:
*Sou o que sou.*
*E seja o que isso for, não nasceu da minha filha. Não nasceu de mim.*
*Seus sonhos...*
*NÃO! NÃO HÁ NADA DE MIM EM VOCÊ!*
Outro longo silêncio. Além do muro de pedras, parecia se formar uma tempestade selvagem.
*Tem alguma outra coisa a dizer?*, perguntou a feiticeira serenamente.
*A você, nunca terei nada a dizer*, respondeu Alexandra.
*Muito bem.*
Os muros de pedra desapareceram. O poder no abismo se precipitou para encher o espaço vazio. Alexandra sentiu essa torrente súbita de poder começar a esmagá-la, depois outra fonte de poder equilibrando e controlando essa torrente, evitando que sua mente se estilhaçasse. Sentiu algo rompendo dentro de si e, por um breve segundo, uma dor atroz e um sofrimento agonizante.
E então não sentiu mais nada.
Alexandra acordou lentamente. Estava deitada na cama, coberta e confortável, mas levou apenas um momento para perceber que havia algo errado. Sua mente estava enevoada e seu corpo doía como se estivesse com febre.
Abriu os olhos. Viu Saetan sentado numa cadeira junto à cama.
– Não quero você – disse ela, com a voz rouca.
– Também não quero você – retrucou ele de modo seco, pegando uma caneca sobre a mesinha de cabeceira. – Tome isto. Vai ajudar a clarear a mente.
Resmungando, Alexandra se apoiou num cotovelo e viu as joias opala, o pingente e o anel, sobre a mesa. Estavam vazias, completamente exauridas, despojadas do poder armazenado no reservatório.
Instintivamente, em desespero, tentou alcançar a profundidade de sua força opala. Não conseguiu sequer alcançar a profundidade da branca. O abismo estava fora do seu alcance, e sua mente parecia estar revestida de pedra.
– Ainda resta a arte básica – comentou Saetan tranquilamente.
Alexandra olhou para ele horrorizada.
– Apenas a arte básica?
– Sim.
Não desviou os olhos ao se lembrar da esmagadora torrente de poder e do brevíssimo momento de dor.
– Fui quebrada – murmurou Alexandra. – Aquela vagabunda me quebrou.
– Cuidado com a maneira como se refere à minha rainha – rosnou Saetan.
– E o que vai fazer? – retrucou. – Arrancar minha língua?
Saetan não precisou dizer nada. Era possível ler a resposta em seus olhos.
– Beba – disse, com uma calma exagerada, oferecendo-lhe a caneca.
Não se atrevendo a rejeitar, Alexandra bebeu a infusão e devolveu-lhe a caneca.
– Nem sou mais feiticeira – disse, com os olhos cheios de lágrimas.
– Uma feiticeira é sempre uma feiticeira, mesmo que esteja quebrada e não seja capaz de usar joias. Uma rainha é sempre uma rainha.
Alexandra riu amargamente.
– Ah, é fácil dizer isso, não é? Que tipo de rainha poderei ser? Acha realmente que conseguirei manter uma corte à minha volta?
– Outras rainhas conseguiram. A força psíquica é apenas um dos fatores que atrai os machos fortes e os leva a servir. Não precisará desse tipo de força se puder usar a deles.
– E acha que conseguirei manter uma corte forte o suficiente para continuar sendo a rainha de Chaillot?
– Não – respondeu Saetan após uma longa pausa. – Mas isso não tem nada a ver com sua capacidade de usar as joias.
Engasgou-se com o insulto, mas não se atreveu a fazer nada.
– Compreende o que acontecerá a Chaillot agora?
– Seu povo vai escolher outra rainha.
– Não existe outra rainha com poder suficiente para ser aceita como rainha do território. É por isso... – que eu ainda governo. Não, não podia dizer isso a ele.
Sentou-se e esperou a mente clarear. Aquela sensação estranha e sufocante acabaria desaparecendo, mas o sentimento de perda permaneceria. A vagabunda que se fizera passar por sua neta que provocara aquilo.
– Ela é um monstro – disse.
– É o mito vivo, os sonhos tornados realidade – disse Saetan, com frieza.
– Bem, não era o meu sonho! – retrucou Alexandra. – Como aquela criatura repugnante e deformada poderia ser o sonho de alguém...
– Não cruze essa linha de novo, Alexandra – advertiu Saetan.
Detectando o nervosismo na voz de Saetan, encolheu-se. Podia ranger os dentes e fechar a boca porque não tinha escolha, mas não conseguia deixar de pensar naquela criatura. Vivera em sua casa. Arrepiou-se. Todos os anos, no Winsol, dançamos pela glória da feiticeira. Todos os anos, celebramos aquilo.
Não se deu conta de que tinha falado em voz alta até o quarto se cobrir de gelo.
– Quero ir para casa – disse baixinho. – Pode cuidar disso?
– Com todo o prazer – cantarolou Saetan.
Daemon fitou com imenso desagrado a ampulheta de madeira escura que pairava à porta do quarto de Jaenelle. Quando viera saber como estava Jaenelle, Ladvarian, o senhor da guerra sceltita, explicara seu significado. Por isso, aceitara a oferta dele para ser seu guia e explorar um pouco a fortaleza. Ao voltar, uma hora depois, descobrira que a ampulheta tinha sido virada, assinalando outra hora de isolamento. Era a terceira vez que a areia escorria. Desta vez, aguardaria junto à porta até cair o último grão de areia.
– Está impaciente? – ouviu uma voz sibilante.
Daemon se virou e ficou de frente para Draca, a senescal da fortaleza. Assim que chegaram à fortaleza, Lucivar o avisara enigmaticamente: Draca é um dragão sob forma humana. No momento em que vira a senescal, compreendera as palavras do irmão. Suas feições, combinadas com a sensação de ancestralidade e de um poder antigo e profundo, o fascinaram.
– Estou preocupado – respondeu, encontrando aqueles olhos escuros que o trespassavam. – Ela não deveria estar sozinha.
– Apesar disso, você permanece à porta.
Daemon lançou um olhar mortífero para a ampulheta. Draca produziu um som que poderia ser considerado uma gargalhada abafada.
– É ssempre assim tão obediente?
– Quase nunca – disse Daemon, e depois lembrou com quem estava falando.
Mas Draca assentiu, como se satisfeita pela confirmação.
– É ssensato que oss machoss ssaibam quando devem ceder e obedecer. Mas o conssorte tem permissão para contornar muitass regrass.
Daemon ponderou aquelas palavras com cuidado. Era difícil detectar inflexões naquela voz sibilante, mas pensava ter compreendido a mensagem.
– Você conhece melhor os pontos mais delicados do protocolo do que eu – disse, observando-a com atenção. – Obrigado pelo esclarecimento.
O rosto de Draca não se alterou, mas Daemon podia jurar que tinha visto um sorriso. Enquanto se afastava, Draca acrescentou:
– A ampulheta esstá quase vazia.
Com a mão pousada na maçaneta, girou-a devagar ao mesmo tempo que os últimos grãos de areia deslizavam para a base da ampulheta. Ao abrir a porta, viu a ampulheta girando para anunciar outra hora de isolamento. Deslizou velozmente para o quarto e fechou a porta.
Jaenelle estava junto a uma janela, contemplando a noite, ainda com o vestido negro. Sendo homem, aquele vestido o atraía de todas as formas imagináveis, e ele tinha esperanças de que não o usasse apenas em ocasiões formais.
Afastou esses pensamentos. Não só eram inúteis esta noite como também levavam seu corpo a reagir de uma forma que não seria aceitável.
– Já foram embora? – perguntou Jaenelle baixinho, ainda olhando pela janela.
Daemon a observou, tentando compreender se estava apenas jogando conversa fora ou se porventura teria se refugiado tão profundamente que, de fato, não sabia.
– Já.
Caminhou lentamente até ela, cauteloso, até ficar a apenas alguns centímetros de Jaenelle, num ângulo que lhe permitia vê-la de perfil.
– Foi o castigo apropriado – disse Jaenelle enquanto outra lágrima lhe escorria pelo rosto. – É o castigo apropriado quando uma rainha viola a corte de outra para fazer mal.
– Podia ter pedido a qualquer um de nós para cuidar disso – disse Daemon, tranquilamente.
Jaenelle balançou a cabeça.
– Sou a rainha. O dever era meu.
Não se for consumi-la.
– Há um jeito tradicional de quebrar um membro dos Sangue, de destituí-lo do poder sem causar outros danos. É rápido e seguro. – Hesitou. – Arrastei-a até o fundo do abismo.
– Levou-a àquele lugar?
– Não – respondeu Jaenelle, depressa e de maneira contundente. – Aquele é um lugar especial. Não queria manchá-lo...
Mordeu o lábio. Daemon não quis examinar o alívio que sentiu ao saber que Alexandra não tinha conspurcado aquele lugar enevoado com sua presença.
Enquanto continuava a estudá-la, teve um lampejo que o atingiu como um soco: Jaenelle não tinha se recolhido tão longe dentro de si mesma por causa da tristeza que sentia por ter quebrado outra feiticeira; retirara-se para lidar com algum tipo de sofrimento pessoal.
– Minha querida – disse Daemon, serenamente –, qual é o problema? Diga-me, por favor. Deixe-me ajudá-la.
Quando ela se virou para olhá-lo, não viu uma mulher adulta ou uma rainha ou a feiticeira. Viu uma criança atormentada.
– Leland... Acho que Leland se preocupava, mas nunca esperei muito dela. Philip se preocupava, mas não havia muito que pudesse fazer. Alexandra era a ma-matriarca da família. Era a ela que todos queríamos agradar. E eu nunca conseguia agradá-la, nunca conseguia ser... Amava todos eles. Leland, Alexandra, Philip e Wilhelmina. – A respiração de Jaenelle se deteve num soluço reprimido. – Eu a amava e ela di-disse que eu era mo-monstruosa.
– A vagabunda disse o quê?
Sobressaltada pela virulência na voz de Daemon, Jaenelle lançou a ele um olhar lúcido antes de voltar a desmoronar.
– Disse que eu era monstruosa.
Ele quase podia ver todas as profundas cicatrizes da infância se reabrindo, sangrando. Essa era a rejeição final, a dor final. A criança desafiara essa rejeição, tentara justificar o pouco amor que lhe davam apenas de modo condicional. A criança tentara encontrar uma justificativa para ser enviada para aquele horror, Briarwood. No entanto, a criança já não era criança e a angústia de enfrentar uma verdade amarga a estava dilacerando.
Daemon também percebeu que, confrontada com esses maus-tratos emocionais, Jaenelle se agarrava agora à única parede sólida de sua infância: o amor e a aceitação de Saetan.
Bem, poderia dar a ela outra parede à qual se agarrar. Abriu os braços de maneira convidativa, sem que parecesse uma exigência.
– Venha aqui – disse, afetuoso. – Venha para mim.
Sentiu o coração apertado ao vê-la se arrastar, evitando olhá-lo, ao ver o modo como seu corpo estava preparado para a rejeição.
Envolveu Jaenelle com os braços, reconfortantes e protetores.
– Ela era uma boa rainha, não era? – perguntou Jaenelle com uma voz suplicante, passados alguns minutos.
Daemon sentiu uma punhalada de dor. Em outros tempos, teria sido fácil mentir, mas não esta noite. Sabendo que destruiria sua última justificativa para o comportamento de Alexandra, disse-lhe a verdade tão suavemente quanto conseguiu.
– Comparada com as outras rainhas de Terreille, era uma boa rainha. Comparada com qualquer uma das rainhas que conheci desde que estou em Kaeleer... Não, meu amor, não era uma boa rainha.
A dor veio acompanhada de lágrimas enquanto Jaenelle finalmente desistia das pessoas que uma vez tentara amar.
Daemon a abraçou em silêncio. Limitou-se a abraçá-la, deixando que todo seu amor a envolvesse. A porta se abriu silenciosamente. Ladvarian entrou, seguido por Kaelas.
Daemon os observou, imaginando se teriam decidido sozinhos desafiar a ordem de isolamento ou se teriam interpretado a presença de Daemon como um sinal indicativo de que poderiam entrar.
Passado um minuto, a ponta do rabo de Ladvarian balançou uma única vez.
*Voltaremos depois.*
Saíram tão discretamente quanto haviam entrado.
Lorde Magstrom caminhava nervoso pela sala onde estavam arquivados os registros da feira de serviços. Fazia apenas dois dias que voltara para casa e ainda estava pondo em ordem os assuntos oficiais de sua própria aldeia. No entanto, lorde Jorval solicitara que voltasse com urgência à capital da Pequena Terreille para discutirem um “assunto importante”.
Havia passado vários dias com sua neta mais velha e o marido dela, dias repletos de excitação e apreensão, em vez do repouso de que tanto precisava. Sua neta estava grávida do primeiro filho e, embora estivesse muito contente, estava bastante enjoada. Passara a maior parte do tempo garantindo ao marido dela que tudo correria bem. Tudo bem que ela não conseguia manter o café da manhã no estômago, mas isso mudaria em algumas semanas. Não deveria ter dito “algumas semanas”. Ao ouvir tais palavras, o jovem pareceu prestes a desmaiar.
Chegara a escrever uma carta apressada ao senhor supremo relatando as disparidades encontradas nos registros da feira de serviços, mas hesitara em enviá-la, imaginando se seu próprio cansaço não teria transformado em algo sinistro aquilo que não passava de um trabalho administrativo malfeito.
Não importava. Assim que voltasse para casa, escreveria uma carta mais ponderada e bem elaborada, expressando preocupação em vez de alarme. Acabara de tomar essa decisão quando a porta se abriu de repente e lorde Jorval entrou na sala.
– Ainda bem que você veio, lorde Magstrom – disse Jorval, quase sem fôlego. – Não sabia em quem mais poderia confiar. Mas qualquer um que tenha trabalhado com você sabe que não poderia estar envolvido nisso.
– Envolvido em quê? – perguntou Magstrom, cauteloso.
Jorval foi até as prateleiras dos registros e puxou uma pasta volumosa. Magstrom sentiu um aperto no estômago. Era a pasta haylliana, a mesma que estivera examinando antes de partir apressadamente de Goth.
Com as mãos trêmulas, Jorval folheava os papéis, pousando vários delas na grande mesa.
– Veja. Há disparidades nessas listas. – Voltou apressado às prateleiras, puxou várias pastas e as deixou cair na mesa. – E não é só nas listas hayllianas. A princípio, pensei que seria um erro administrativo, mas... – Retirando uma folha de uma das pastas, apontou. – Lembra-se deste homem? Era completamente incompatível com Kaeleer. Completamente incompatível.
– Lembro-me dele – disse Magstrom. Um homem bruto cujo odor psíquico lhe provocara calafrios. – Foi aceito numa corte?
– Sim – disse Jorval sinistramente. – Nesta.
Magstrom semicerrou os olhos para tentar decifrar a escrita ilegível. Quase não dava para ler o nome da rainha e do território que governava. A única coisa que conseguia perceber distintamente era que o território ficava na Pequena Terreille.
– Quem é esta... Hektek?
– Não sei. Não existe nenhuma rainha chamada Hektek nem na menor aldeia da Pequena Terreille. No entanto, trinta terreillianos foram aceitos nessa pretensa corte. Trinta.
– Para onde estão indo essas pessoas?
Jorval hesitou.
– Estou convicto de que alguém está criando um exército em segredo, debaixo dos nossos narizes, usando a feira de serviços para encobrir os rastros.
Magstrom engoliu em seco.
– Desconfia de alguém? – perguntou, meio que esperando que Jorval acusasse o senhor supremo... o que seria ridículo.
– Acho que sim – respondeu Jorval, com um brilho estranho nos olhos. – Caso minhas suspeitas se confirmem, as rainhas de território de Kaeleer precisam ser avisadas imediatamente. Foi por isso que pedi que viesse. Hoje à noite vou me encontrar com uma pessoa que diz ter informações sobre as pessoas que faltam nas listas. Queria que outro membro do conselho me acompanhasse como testemunha para confirmar aquilo que vai ser dito. Pensei em você porque, se estivermos em perigo, o senhor supremo lhe dará ouvidos.
Foi o suficiente para que Magstrom tomasse uma decisão.
– Uma vez que a revelação dessas informações implica algum risco, não devemos deixar essa pessoa esperando.
– Não – respondeu Jorval, num tom de voz estranho –, não devemos.
Conseguiram uma carruagem assim que saíram do edifício. Um silêncio pesado pairava sobre o veículo, que se deteve alguns minutos depois. Magstrom saiu, olhou em voltou e sentiu um forte receio. Estavam nos limites da periferia de Goth, um lugar inapropriado para os incautos... ou para um idoso.
– Eu sei – Jorval apressou-se a dizer, enquanto conduzia Magstrom pelo braço pelas ruas estreitas e sujas. – Parece um lugar improvável para um encontro. Acho que foi essa a razão da escolha. É muito mais difícil nos reconhecerem aqui.
Com a respiração ofegante, Magstrom se esforçou para acompanhar Jorval. Podia sentir os olhos que os observavam das entradas envoltas em sombras. Sentia também o tremeluzir de energia daquelas pessoas. Havia muitas razões para um macho de joias escuras ir parar num lugar desses.
Por fim, entraram discretamente pela porta dos fundos de um enorme edifício e subiram as escadas em silêncio. Numa porta do segundo andar, Jorval introduziu uma chave de maneira desajeitada, afastando-se logo em seguida para dar passagem a Magstrom.
A mobília da sala de estar era de segunda mão e desgastada. A própria sala parecia não ser limpa há muito tempo. E fedia a decomposição.
– Algum problema? – perguntou Jorval, num tom de voz estranhamente alegre.
Magstrom foi até as janelas estreitas. Um pouco de ar poderia ajudar a aliviar o fedor.
– Talvez um rato ou uma ratazana tenha morrido aqui dentro...
Jorval emitiu um som estranho, uma risada aguda, no preciso momento em que a porta do quarto se abriu e uma figura encapuzada entrou na sala. Magstrom se virou... e não conseguiu dizer uma única palavra.
As articulações dos dedos espreitavam pela pele rachada enquanto as mãos escuras afastavam o capuz. Estupefato, Magstrom fitou os olhos dourados repletos de ódio naquele rosto em decomposição. Ela deu um passo na direção de Magstrom, que, por sua vez, recuou um passo. Depois, mais um... e mais um... até não ter mais para onde ir.
Jorval sorriu.
– Pensei que já era hora de você conhecer a sacerdotisa suprema.
– Algum problema? – Daemon perguntou a Saetan. Olhou rapidamente para Lucivar, que observava o pai com atenção.
– Recebi uma carta de lorde Jorval informando que lorde Magstrom foi brutalmente assassinado ontem à noite.
Daemon expirou devagar enquanto Lucivar vociferava.
– Estive com Magstrom na feira de serviços. Parecia um homem respeitável.
– De fato – respondeu Saetan. – E era também o único membro do conselho das trevas com o qual Jaenelle se dispunha a falar.
– Como morreu? – perguntou Lucivar sem rodeios.
Saetan hesitou.
– Foi encontrado num beco na periferia de Goth. O corpo estava tão dilacerado que correm rumores de que foi morto por parentes.
– Por que suspeitariam dos parentes? – perguntou Daemon.
– Foi uma morte absoluta? – resmungou Lucivar.
– Sim – respondeu Saetan sinistramente, respondendo primeiro à pergunta de Lucivar. – Por isso não há a menor hipótese de Magstrom se tornar fantasma no reino das trevas pelo tempo suficiente para contar a alguém o que aconteceu de verdade. Existem matilhas ferozes, que podem representar perigo, mas um escudo produzido pela arte o teria protegido. Somente uma matilha de parentes ou alguém que usasse joias mais escuras do que Magstrom seria capaz de esgotar seu poder psíquico de forma a concluir a morte.
– E isso é plausível? – perguntou Daemon.
– Se um humano desconhecido entrar num dos territórios dos parentes, é quase certo. Mas em Goth? Não.
– Então ele foi mutilado de modo a ocultar as verdadeiras feridas fatais.
– É o que parece.
– Jorval pretende adiar a cura? – perguntou Lucivar.
Saetan balançou a cabeça.
– O encontro continua marcado para o fim desta tarde. Está tudo pronto?
Lucivar assentiu.
– Saímos na próxima hora.
– O local para onde está levando Jaenelle é seguro? – perguntou Saetan.
– É um posto de guarda em Dea al Mon – explicou Lucivar. – Chaosti irá conosco e os guardas de Dea al Mon providenciarão a proteção física adicional. A gata disse que tem algumas coisas para resolver em Amdarh, por isso iremos para lá depois, por um ou dois dias. Chaosti voltará ao Paço para apresentar o relatório.
Daemon dominou o ciúme que o corroía por dentro. Não havia motivo para Lucivar pensar duas vezes sobre fazer planos para passar dois dias com Jaenelle, apesar dos eyrienos que ainda aguardavam para ser instalados em Askavi antes que o inverno chegasse, apesar de ter uma esposa e um filho. Jaenelle não era apenas sua irmã, era também sua rainha. Estaria a seu lado sempre que precisasse dele, aonde quer que fosse.
Afastando esses pensamentos, Daemon se concentrou no horário. Não tinha prestado muita atenção durante a viagem de Goth para o Paço, mas devia ter levado no mínimo umas duas horas. A viagem para esse local secreto em Dea al Mon certamente levaria ainda mais tempo. Se Lucivar planejava sair dentro de uma hora para chegar ao posto de guarda, planejava chegar de modo que houvesse tempo suficiente para Jaenelle descansar e almoçar tardiamente antes de se dedicar ao que quer que fosse fazer. Somente o tempo suficiente...
O Sádico dentro dele despertou. Olhou para Saetan e viu suas próprias suspeitas refletidas nos olhos do pai.
– Quando o corpo foi encontrado? – perguntou com demasiada gentileza.
Lucivar ficou alerta e praguejou ferozmente. Saetan devolveu seu olhar por um momento.
– Se Jorval tivesse sido informado imediatamente, só teria tempo para rabiscar um bilhete apressado e enviá-lo por um mensageiro.
– E o bilhete foi escrito de maneira apressada?
– Não, eu diria que não.
O que significava que Jorval sabia da morte de Magstrom antes de encontrarem o corpo. E fora ele que tratara dos arranjos para que Jaenelle fosse à Pequena Terreille.
Assim que se afastaram do escritório de Saetan, Daemon pousou a mão no ombro de Lucivar, as longas unhas pintadas de preto tocando-o levemente, para garantir que o irmão prestasse atenção.
– Fará tudo que for necessário para mantê-la a salvo e tomar conta dela, não é?
– Estará protegida, sacana. Pode ficar tranquilo. – Depois sorriu de modo indolente e arrogante. – Mas não serei eu a tomar conta dela, meu velho. Você tem menos de uma hora para fazer as malas. Traga o bastante para passar dois dias em Amdarh.
Daemon fitou Lucivar, em seguida recuou e enfiou as mãos nos bolsos das calças.
– Ela não se sente à vontade comigo, bastardo. – Não admitiria nem mesmo para Lucivar como Jaenelle tinha praticamente fugido do próprio quarto a fim de se afastar dele depois de ter passado a noite com ela. – Minha presença só iria perturbá-la.
– Você é o consorte – disse Lucivar com rispidez. – Imponha-se.
– Mas...
– Ela não dará atenção a nenhum de nós antes deste encontro, e estarei com você quando for a Amdarh. Enquanto Jaenelle estiver ocupada me amaldiçoando o tempo todo, não terá tempo de ficar nervosa com a sua presença. – Lucivar reprimiu outro protesto, ainda que fraco. – Quero você no posto de guarda, Daemon.
Então compreendeu. Lucivar não o queria presente porque era o consorte, mas porque era o Sádico. Daemon assentiu.
– Estarei pronto quando você estiver.
Notando a tristeza nos olhos de Jaenelle, Lucivar não precisou perguntar se fora informada da morte de lorde Magstrom. Sentiu-se tentado a perguntar se queria adiar o encontro, mas não o fez. Sabia que ela estava disposta a prosseguir com aquele encontro por razões pessoais.
Olhou para o grande estojo achatado junto à mala de viagem de Jaenelle. Ela tinha vários estojos daquele tipo, de tamanhos diferentes, nos quais guardava as estruturas de madeira que usava para tecer suas várias teias.
– Está pensando em tecer uma teia medicinal desse tamanho? – perguntou.
– Não é para a teia medicinal; é para a sombra.
Voltou a contemplar o estojo. Uma “sombra” era uma ilusão sofisticada que podia enganar o olhar, levando uma pessoa a acreditar na presença real de outra. Jaenelle era capaz de criar uma sombra tão realista que a única diferença entre ela e seu próprio corpo era que, enquanto a sombra conseguia pegar ou tocar em qualquer objeto, não podia ser tocada. Produzira esse tipo de sombra oito anos antes, ao iniciar a busca por Daemon para trazê-lo de volta do reino distorcido. Lucivar ainda se lembrava do preço físico que pagara por isso.
– Sente-se bem o bastante para canalizar toda essa energia pelo seu corpo de modo que a sombra seja capaz de realizar uma cura abrangente?
– Não será necessária tanta cura assim – respondeu Jaenelle calmamente.
Não fora essa a impressão que Saetan e ele haviam tido ao ler as cartas prementes de Jorval, mas sabia que era melhor ficar em silêncio. Durante aqueles últimos anos servindo Jaenelle, aprendera quando era o momento de ceder.
Jaenelle fez desaparecer o estojo e a mala de viagem e pegou uma capa com capuz negra e comprida.
– Vamos?
Agitado, Kartane SaDiablo andava de um lado para outro na sala de estar de sua suíte. A vadia estava atrasada. Se estivesse em casa, ela não se atreveria a deixar o filho de Dorothea esperando. Fogo do Inferno, quase ficaria satisfeito em voltar a Hayll.
Estava tão furioso que quase não se seu conta da leve batida à porta. Tentou se recompor. Precisava dessa vagabunda, que, segundo Jorval, era a melhor curandeira de Kaeleer. Se fosse grosseiro, nada nem ninguém a impediria de sair porta afora.
Foi até as janelas e olhou para a rua. Não havia motivo para que ela soubesse que a aguardava ansiosamente, para lhe conceder essa pequena dose de poder sobre ele.
– Entre – disse quando voltaram a bater.
Não ouviu a porta se abrir, mas, quando se virou, viu uma figura envolta numa capa negra com capuz.
A princípio pensou se tratar daquela feiticeira que Dorothea chamava de sacerdotisa suprema, mas havia algo repugnante no odor psíquico da sacerdotisa suprema, e o odor desta...
Kartane franziu a sobrancelha. Não conseguia detectar qualquer odor psíquico.
– É a curandeira? – perguntou, cheio de dúvidas.
– Sim.
Kartane tremeu ao ouvir aquela voz de meia-noite. Tentando ignorar o desconforto, começou a desabotoar a camisa.
– Imagino que queira me examinar.
– Não será necessário. Sei o que está acontecendo com você.
– Já viu esta doença antes?
– Não.
– Mas sabe o que é?
– Sim.
Irritado com as respostas concisas, pôs de lado os esforços de civilidade.
– Então que diabo é isso, em nome do Inferno?
– Chama-se Briarwood – respondeu a voz de meia-noite.
O sangue esvaiu do rosto de Kartane, deixando-o tonto.
– Briarwood é o doce veneno – prosseguiu a voz enquanto as mãos de pele clara afastavam o capuz. – Não há cura para Briarwood.
Kartane a fitou boquiaberto. A última vez em que a vira, treze anos atrás, parecia mais uma marionete drogada do que uma criança, um brinquedo trancado num dos cubículos de Briarwood, esperando para ser utilizado. Mas jamais se esquecera daqueles olhos azul-safira ou o terror que sentira ao tentar tocar sua mente.
– Você – suspirou. – Pensei que Greer a tinha destruído.
– Ele tentou.
Foi então que se deu conta. Apontou um dedo acusador.
– Foi você que fez isso comigo. Foi você!
– Sim, eu criei a teia emaranhada. Quanto ao que aconteceu com você, Kartane, foi você mesmo que provocou.
– Não!
– Sim. Cada um recebe de volta aquilo que deu. Foi a única instrução que teci na teia.
– Uma vez que foi você que fez isso, pode perfeitamente desfazê-lo!
Jaenelle balançou a cabeça.
– Muitas das crianças que constituíam os fios da teia emaranhada voltaram às trevas. Estão completamente fora de alcance, mesmo para mim, e não há como desfazer a teia sem elas.
– Mentira – gritou Kartane. – Se eu puser bastante ouro em suas mãos, aposto que rapidamente encontrará um jeito.
– Não existe cura para Briarwood. Mas existe um jeito de acabar com isso, se lhe serve de consolo. Cada um recebe de volta aquilo que deu.
– O QUE SIGNIFICA ISSO?
– Cada golpe, cada ferida, cada estupro, cada momento de terror que um dia infligiu aos outros voltará para você. Está recebendo de volta aquilo que deu, Kartane. Quando a dívida estiver paga, a teia o libertará tal como fez com os outros machos que se divertiram em Briarwood.
– Estão todos mortos, sua vagabunda estúpida! Sou o único que resta. Ninguém sobreviveu a sua teia.
– A teia apenas estabeleceu as condições. Se nenhum dos outros sobreviveu... Quantas crianças que foram enviadas a Briarwood sobreviveram a vocês?
– Se não veio aqui para me curar, por que se deu o trabalho de vir? Só para me irritar?
– Não. Vim para servir como testemunha para aquelas que já se foram.
Kartane a observou, então balançou a cabeça.
– Você pode acabar com isso.
– Já disse que não.
– Você pode acabar com isso. Pode acabar com esse sofrimento. E é o que você vai fazer agora mesmo!
Com um uivo de raiva, Kartane se precipitou sobre Jaenelle... e a atravessou. Bateu contra a porta, incapaz de interromper o movimento.
Quando se virou, a sala estava vazia.
Daemon se aproximou de Jaenelle com cautela, relutante em perturbar sua solidão e sem saber o que pensar do estranho misto de tristeza e satisfação que via em seu rosto. A solidão era ilusória, é claro. Ao sair de seu quarto no posto de guarda, indo se sentar junto ao riacho, foi seguida por Lucivar, Chaosti e meia dúzia de guardas Dea al Mon que desapareceram todos na floresta. Não conseguia ver nenhum deles, mas sabia que estavam perto, observando e escutando.
– Tome isto – disse baixinho, oferecendo-lhe uma caneca. – É um chá de ervas. Nada de mais. – Quando Jaenelle agradeceu, enfiou as mãos nos bolsos das calças, constrangido. – Está tudo bem?
Jaenelle hesitou.
– Fiz o que vim fazer. – Bebeu um gole do chá, examinou o interior da caneca e olhou para Daemon. – Quais ervas usou para fazer o chá?
– Tem um pouco de tudo.
– Hmm.
Se aquele tom de dúvida tivesse vindo de outra mulher, teria se sentido insultado. Mas a concentração e o vestígio de frustração nos olhos de Jaenelle enquanto dava outro gole indicava que sua dúvida tinha mais a ver com o seu desdenhoso “nada de mais” do que com a própria infusão.
Fitou-o de modo especulativo.
– Estaria disposto a trocar a receita desta infusão por uma das minhas?
Contente que ela tivesse gostado da bebida, sentiu-se tentado a recusar, para que fosse o único a saber prepará-la para ela, mas logo se deu conta de que passar algum tempo com Jaenelle debruçado sobre uma mesa cheia de ervas seria muito mais proveitoso.
Daemon sorriu.
– Sei de algumas infusões que talvez você ache interessantes.
Jaenelle devolveu o sorriso, esvaziou a caneca e pôs-se de pé.
– Gostaria de partir para Amdarh assim que possível – disse, enquanto caminhavam de volta ao posto de guarda. – Assim, poderemos nos instalar ainda esta noite.
Apesar dos repetidos avisos de Lucivar e Chaosti, Daemon teve de morder a língua para não sugerir que ela comesse alguma coisa antes de partir. Eles haviam explicado que sua resistência a comer seria diretamente proporcional a seu estado de espírito depois de voltar daquele encontro. Bastou um rápido olhar para ela quando saiu do quarto para entender que qualquer sugestão teria sido inútil.
– Acho que você vai gostar de Amdarh – disse Jaenelle. – É uma linda... – Parou de caminhar e farejou o ar. – Isso é ensopado?
– Acho que sim – respondeu Daemon gentilmente. – Lucivar e Chaosti estão preparando. Deve estar quase pronto.
– Fizeram ensopado selvagem?
– Acho que é esse o nome.
Jaenelle olhou para ele.
– Imagino que esteja com fome.
Mesmo que nunca tivesse entendido uma indireta na vida, não era possível não entender esta.
– Na verdade, estou. Acha que podemos jantar antes de partir para Amdarh?
Jaenelle virou a cabeça, mas Daemon conseguiu vê-la passando a língua pelos lábios.
– Não é preciso tanto tempo assim para comer uma tigela de ensopado. Ou duas – acrescentou enquanto se apressava na direção do posto de guarda.
Daemon aumentou a passada para acompanhá-la e imaginou até que ponto os machos iriam disputar a sua parte.
Kartane irrompeu na sala de jantar de Jorval.
– Aquela vagabunda está viva? – perguntou.
Jorval correu em sua direção enquanto um homem que Kartane nunca tinha visto permaneceu à mesa, limitando-se a olhá-lo fixamente.
– Lorde Kartane – disse Jorval, ansioso. – Se eu soubesse que o tratamento seria tão rápido, teríamos aguardado...
– Maldito seja, responda à pergunta! Está viva?
– Lady Angelline? Sim, é claro que está. Por que pergunta? Ela não compareceu?
– Compareceu – resmungou Kartane.
– Não entendo – disse Jorval, quase se lamentando. – É a melhor curandeira do reino. Se ela...
– ELA FEZ ISTO COMIGO!
O espanto no olhar de Jorval foi rapidamente substituído por malícia.
– Entendo. Junte-se a nós, por favor. Vejo que teve uma tarde perturbadora. Talvez um pouco de comida e companhia ajudem.
– Nada ajudará até aquela vagabunda ser dominada – retrucou Kartane, aceitando um lugar à mesa e enchendo uma taça de vinho.
Olhou furioso para o outro homem, que continuava a fitá-lo.
– Lorde Kartane – disse Jorval polidamente –, este é lorde Hobart. Ele também tem suas razões para querer ver Jaenelle Angelline subjugada.
– E não apenas Jaenelle Angelline – resmungou Hobart.
– Ah, é? – exclamou Kartane, afastando a raiva à medida que seu interesse por Hobart crescia.
– Lorde Hobart controlou o território de Glácia por muitos anos – disse Jorval. – Quando a sobrinha se tornou rainha do território...
– A vagabunda ingrata me EXILOU! – gritou Hobart.
– E você pretende retomar o controle – disse Kartane, começando a perder o interesse.
Então Jorval acrescentou:
– Lady Karla é amiga íntima de Jaenelle.
Kartane pegou um pouco de comida dos pratos que lhe eram oferecidos enquanto digeria aquela informação. Nada lhe daria mais prazer do que machucar uma amiga íntima daquela vagabunda.
– Talvez eu possa ajudar. Minha mãe é a sacerdotisa suprema de Hayll.
Hobart ficou impressionado, mas igualmente apreensivo. Pigarreou.
– É uma oferta generosa, lorde Kartane. Uma oferta bastante generosa, mas...
– Mas você já está sendo auxiliado pela sacerdotisa das trevas – tentou adivinhar Kartane. Ao ver Hobart empalidecer, cruzou dois dedos e os ergueu. – Talvez você não saiba que minha mãe e a sacerdotisa suprema são assim.
Hobart engoliu em seco. Jorval se limitou a beber seu vinho e a observá-los com olhos escuros, repletos de maliciosa alegria.
– Compreendo – disse Hobart, por fim. – Nesse caso, sua ajuda é muito bem-vinda.
Andulvar se instalou numa cadeira diante da mesa de madeira escura de Saetan.
– Karla disse que você está de mau humor há pelo menos duas horas, desde que recebeu uma mensagem de lady Zhara.
Saetan olhou para o amigo de longa data com o olhar mais frio que conseguiu.
– Não. Estou. De. Mau. Humor.
– Tudo bem. – Andulvar aguardou. – Então, o que está fazendo?
Saetan se recostou na cadeira.
– Me diga uma coisa: se eu quisesse fugir de casa, haveria algum lugar nos reinos para onde pudesse ir sem ser encontrado?
Andulvar coçou o queixo.
– Bem, se quisesse se esconder das rainhas de Dhemlan ou da assembleia, há muitos lugares. Se quisesse se esconder de sua prole masculina, há poucos lugares no reino das trevas. Até Mephis levaria algum tempo para encontrá-lo. Mas se fosse Jaenelle à sua procura...
– É justamente por isso que ainda estou aqui sentado. – Saetan massageou a testa e suspirou. – Zhara me convocou a Amdarh para tratar de um problema.
Andulvar franziu a sobrancelha.
– Lucivar está em Amdarh, não? Se Zhara precisa da ajuda de um macho mais forte do que os que servem em sua corte, por que não pediu a ele?
Saetan semicerrou os olhos dourados e deixou que as palavras atingissem Andulvar como pedras atiradas com precisão.
– Lucivar está em Amdarh com Jaenelle.
O silêncio ficou tão pesado como uma cortina de ferro.
– Ah – disse Andulvar, por fim. – Bem, Daemon...
– Está em Amdarh com Lucivar e Jaenelle.
– Mãe Noite – murmurou Andulvar, acrescentando, cauteloso: – O que Zhara disse?
Saetan pegou o papel com a mensagem e leu com uma voz fúnebre:
– “Seus filhos estão se divertindo imensamente. Venha buscá-los.”
Daemon apoiou a cabeça nas mãos e fechou os olhos.
– Mãe Noite – exclamou Lucivar, articulando as palavras devagar.
– Nunca estive tão bêbado na vida – gemeu Daemon baixinho.
Lucivar o fitou com os olhos injetados de sangue.
– É claro que já esteve.
– Talvez uma ou duas vezes quando era um adolescente idiota, mas nunca desde que uso a negra. Meu corpo consome o álcool tão depressa que não consigo ficar bêbado.
– Mas não desta vez – disse Lucivar, acrescentando após uma longa e reflexiva pausa: – Eu já.
– Sério? Quando?
– Da última vez que saí para passear com Jaenelle. Grande erro. Devia ter me lembrado disso. E teria me lembrado, se estivesse sóbrio.
Depois de um minuto de doloroso esforço, Daemon desistiu de tentar decifrar o comentário e se ocupou de outro pensamento.
– Nunca fui expulso de uma cidade antes.
– É claro que já – disse Lucivar com uma voz amável que fez ambos gemeram.
Daemon balançou a cabeça, percebendo seu erro um pouco tarde demais. Mesmo quando conseguiu parar, a sala continuava balançando, e o que restava de seu cérebro patinava ruidosamente no interior de seu crânio. Engoliu com cuidado.
– Fui expulso de cortes e proibido de voltar à cidade porque era o território da rainha, mas isso é diferente.
– Tudo bem – disse Lucivar. – Em algumas semanas, Zhara o receberá de braços abertos.
– Não me pareceu uma tola. Por que faria isso?
– Porque temos uma influência moderadora sobre Jaenelle.
– É mesmo?
Ficaram se olhando até a porta da sala de jantar se abrir.
– Mãe Noite – disse Surreal, reprimindo o riso. – Eles são patéticos.
– Não são? – Não havia qualquer indício de graça na resposta de Saetan.
Os passos suaves que se aproximavam da mesa faziam a sala vibrar.
– Não gritem, por favor – queixou-se Daemon.
– Isso nem me passou pela cabeça – respondeu Saetan num tom de voz que, no entanto, fez retinir os ossos de Daemon. – Não faria sentido gritar. Vocês ficariam estatelados no chão, inconscientes, após a primeira palavra. Por isso, vou guardar o sermão para quando estiverem sóbrios para ouvi-lo. A única coisa que desejo saber é o que vocês tomaram para ficarem nesse estado?
– Coveiros – balbuciou Lucivar.
– Quantos? – perguntou Saetan com um ar ameaçador.
Lucivar suspirou algumas vezes.
– Não sei ao certo. Ficou tudo um pouco embaçado depois do sétimo.
– Depois do...? – Uma longa pausa. – Conseguem andar até seus quartos?
– É claro – respondeu Lucivar. Depois de várias tentativas, conseguiu ficar de pé. Não querendo ser superado, Daemon também se levantou. Mas se arrependeu no mesmo momento.
– Leve Lucivar – disse Saetan a Surreal. – Ele parece estar um pouco mais equilibrado.
– Isso é porque ainda não terminei as bebidas. – Lucivar apontou para Daemon, tombou para um lado e quase esmagou Surreal contra a mesa. – É por isso que ele está tão bêbado. Avisei para que não bebesse até o fim.
Daemon tentou produzir um ruído grosseiro e acabou cuspindo em Saetan. Sem dizer mais nada, foi arrastado para fora da sala e por uma escadaria terrivelmente íngreme. Ao chegar à cama, tentou se deitar, mas foi puxado para cima e despido, enquanto a ira de seu pai fazia o quarto pulsar.
– Precisa de uma bacia, caso vomite no meio da noite? – perguntou Saetan, sem qualquer compaixão.
– Não – respondeu Daemon, com ternura.
Por fim, conseguiu se deitar. A última coisa que viu foi a mão de Saetan afastando seu cabelo numa carícia gentil. Surreal fechou a porta do quarto de Lucivar no momento exato em que Saetan saía do quarto de Daemon.
– Obrigado pela ajuda – disse, quando se encontraram no topo da escada.
Surreal sorriu de orelha a orelha.
– Não perderia isso por nada.
Começaram a descer as escadas.
– Conseguiu botar Lucivar na cama?
– Ele rosnou um bocado e não parava de me dizer para tirar as mãos de cima dele, porque é um homem casado. Não queria se despir, mas salientei que, sendo casado, deveria saber que não devia tentar ir para a cama com botas naquele estado. Também consegui convencê-lo de que se despir da cintura para cima não era indecoroso, uma vez que sou da família, e deixei o que restava dele cair na cama.
Surreal olhou em redor.
– E Jaenelle? Não vai dar uma olhada nela?
– Agora mesmo – disse Saetan, friamente.
– Onde ela está?
– Na cozinha, se empanturrando com o café da manhã – respondeu Saetan.
Surreal se controlou para não dar uma gargalhada.
Karla tirou o anel do estojo e o colocou no segundo dedo da mão direita. Era um anel simples de ouro amarelo e branco, com uma pequena safira oval. De bom gosto, um anel prático em vez de chamativo.
– É perfeito.
– Pedi a Banard para fazer esse primeiro – disse Jaenelle –, mas ele acabou fazendo todos os anéis da assembleia. – Fez uma pausa e acrescentou: – Também encomendei anéis para Surreal e Wilhelmina. Ficarão prontos na semana que vem.
Karla assentiu ao examinar o anel.
– Como faço para ativar o escudo dentro dele?
– Poderia ativá-lo deliberadamente através da joia cinza. Mas está afinado da mesma forma que os anéis de honra dos rapazes, e reagirá ao medo, à raiva e à dor causada por um ferimento grave. Está regulado para reagir a emoções intensas, pois, quando ativado, quem quer que esteja ao alcance e use um anel ligado a este agirá como se fosse um chamado à guerra.
– Qual é o alcance? – perguntou Karla. – Se for ativado, Morton poderá senti-lo mesmo que não esteja na mesma cidade?
Jaenelle olhou para ela de um jeito estranho.
– Karla, se alguma coisa despertar o escudo desse anel, você não terá apenas Morton batendo à sua porta, mas Sceron, Jonah, Kaelas, Mistral e Khary, assim como nossas irmãs desta zona do reino.
– Mãe Noite! – Karla franziu a sobrancelha para o anel. – Mas... pelo que sei, os rapazes já usaram este escudo antes e não deixaram os outros frenéticos.
– Não acho que responderiam a um sinal vindo de um anel usado por uma rainha da mesma forma que reagiriam a um sinal vindo de outro irmão da corte – explicou Jaenelle, com frieza. – Além disso, a esta altura, os machos já estão todos em sintonia. Sabem quando devem permanecer alerta, à espera de outro sinal, e quando devem largar tudo e correr a toda velocidade ao encontro de quem estiver com problemas.
– E você não acha que eles vão esperar?
– De jeito nenhum.
Karla suspirou. Era um pouco mais de atenção masculina do que tinha previsto, e ficou agradecida pela advertência.
– Agora vou ligá-lo à sua joia cinza – disse Jaenelle, estendendo a mão direita.
– Os rapazes não vão detectar isso? – perguntou Karla, pousando a mão direita na de Jaenelle.
– Sim, e vão levar menos de dois minutos para perceber que alguém na assembleia está usando um anel ao qual podem se conectar agora.
Bem, quantos mais, melhor, pensou Karla. Com todos nós usando um anel destes...
– E vão levar outro minuto para perceber a sensação distintiva deste anel em especial e reconhecê-lo como seu.
– Fogo do Inferno.
O sorriso de Jaenelle era compreensivo, mas divertido.
– Espere até Lucivar aparecer pela primeira vez. É uma experiência e tanto.
– Tenho certeza que sim – balbuciou Karla.
Um momento depois, sentiu um lampejo de frio seguido por calor. O anel pulsava em seu dedo. As sensações desapareceram, mas Karla podia sentir o profundo reservatório de poder que aguardava, fora de alcance.
– Outra coisa que você precisa saber é que, se o escudo for ativado, as únicas pessoas que poderão alcançá-la se precisar de ajuda física são os demais membros do primeiro círculo – informou Jaenelle.
Karla assentiu.
– Nesse caso, é melhor usá-lo sempre. Não quero que ninguém use o anel e tenha esse tipo de proteção.
– Ninguém poderá usá-lo. Foi feito para você. Se outros tentarem ativar o escudo, os resultados serão... desagradáveis.
– Compreendo. – Não pediu que Jaenelle definisse “desagradável”.
Jaenelle observou Karla por um momento.
– Faça bom uso dele, irmã.
– Obrigada. Farei.
– Vou levar os outros anéis à assembleia. – Jaenelle pegou a mala com os outros estojos e hesitou. – Tem mesmo de ir embora amanhã? – perguntou num tom ligeiramente lamentoso.
– O dever me chama – respondeu Karla, sorrindo. Aguardou até Jaenelle sair e acrescentou: – E tio Saetan deixou bem claro que não aceitaria nenhuma desculpa para permanecer aqui.
Todas as rainhas estavam voltando a seus territórios natais. Assim como os machos do primeiro círculo. Lucivar ia levar a família e os outros eyrienos para Ebon Rih. Surreal e Wilhelmina iriam com ele. Andulvar e Prothvar já estavam a caminho de Askavi, e Mephis partira para sua casa em Amdarh.
Compreendia por que Saetan estava esvaziando o Paço. Todos compreendiam. Até amanhã à tarde, todos os amigos que Jaenelle vinha usando como proteção teriam partido. Suas únicas companhias humanas seriam o senhor supremo, que, Karla estava certa, ficaria bastante recolhido, e Daemon. O consorte teria o caminho livre para cortejar sua senhora.
– Que as trevas nos ajudem – murmurou Karla, caminhando a passos largos até a porta e a abrindo.
Parou na soleira, estarrecida. Lucivar, Aaron, Chaosti, Khardeen e Morton sorriam para ela.
– Bem, bem, bem – cantarolou Lucivar. – Vejam só quem encontramos.
Tentando devolver o sorriso, Karla disse com a voz fraca:
– Beijinho, beijinho.
E esperou sinceramente que Jaenelle não demorasse muito a ativar os outros anéis.
Depois de duas semanas em Ebon Rih, Surreal voltou ao Paço em busca de Jaenelle. Com a ajuda de Presa Cinza, a encontrou numa área afastada do Paço. Jaenelle saiu de uma sala e reparou em Surreal vindo pelo corredor na sua direção. Seu rosto se iluminou de alegria.
– Surreal! Não esperava que voltasse tão...
Surreal agarrou Jaenelle pelo braço e a arrastou de volta para a sala de onde tinha saído.
– Precisamos conversar. De mulher para mulher. – Então se voltou para Presa Cinza e Ladvarian. – Enquanto isso, vão regar uns arbustos!
E fechou a porta nos dois focinhos surpresos e peludos.
– Surreal – disse Jaenelle, libertando-se das mãos que a seguravam firmemente –, aconteceu alguma coisa?
– Em nome do Inferno, o que diabo está fazendo? – gritou Surreal.
Jaenelle tinha um ar desconfiado e desconcertado.
– Estava lendo.
– Não estou falando do que estava fazendo há cinco minutos. Estou falando de Daemon. Por que está fazendo isso com ele?
– Não estou fazendo nada.
– Esse é exatamente o problema. Jaenelle, ele é seu consorte. Por que não o está usando?
Numa fração de segundos, viu a jovem defensiva se transformar numa rainha irritada.
– Já foi muito usado, não acha? – disse Jaenelle calmamente, com a voz de meia-noite. – E não serei a próxima numa lista interminável de mulheres que o forçaram à intimidade física.
– Mas... – Surreal recuou um passo mental. Não tinha sido isso que esperara ouvir como justificativa. Tinha certeza de que Daemon não fazia ideia de que era por isso que não permitia que entrasse no quarto dela. Ah, querida, pensou tristemente. Fez tudo errado pelos motivos certos. – Era diferente. Ele era um escravo de prazer, não era consorte.
– Será que a diferença é assim tão grande, Surreal?
Lembre-se de com quem está falando. Lembre-se do que ela deve ter visto em Briarwood. Que tipo de conclusões uma menina de 12 anos que conhecia esse lado do sexo teria chegado sobre o tempo que Daemon passou como escravo do sexo?
– Os rapazes que são consortes não parecem se importar de realizar seus deveres. Na verdade, bem pelo contrário.
– Nunca foram escravos do sexo. Nunca foram forçados. Tudo bem, é verdade que às vezes é pedido ao consorte mais do que ele gostaria de dar no momento, mas, quando um homem aceita o anel de consorte, aceita esse tipo de serviço de bom grado e por escolha própria.
– Daemon fez essa escolha – apontou Surreal serenamente. – Não é porque queira o status de consorte e esteja disposto a aturar os deveres que vêm junto, mas porque deseja ser seu amante. – Estudou Jaenelle. – Gosta dele, não gosta?
– Eu o amo.
Surreal pôde ouvir um vasto rio de sentimentos naquelas palavras simples.
– Além disso – disse Jaenelle, voltando a ser uma jovem nervosa –, não tenho tanta certeza de que ele quer fazer... aquilo. Nem mesmo tentou me beijar – acrescentou com tristeza.
Surreal prendeu o cabelo atrás das orelhas pontudas. Merda, merda, merda.
– Se entendo bem as regras que regem o comportamento de um consorte, não é a rainha que deve dar o primeiro beijo, para que ele saiba que suas atenções serão bem-vindas?
– Sim – respondeu Jaenelle, relutante.
– Mas você também não o beijou?
Jaenelle resmungou, frustrada, e começou a andar de um lado para outro.
– Já não tenho mais 12 anos.
Surreal pôs as mãos nos quadris.
– Isso é bom, não é?
Jaenelle ergueu os braços e gritou:
– Você não entende? Não sei como fazer isso!
Surreal apenas a fitou.
– Nunca foi beijada? Beijos da família e dos amigos não contam – emendou rapidamente.
O rosto de Jaenelle foi invadido por um ar de repugnância.
– Dentes, línguas e baba.
– Lobos e cães também não contam.
Jaenelle deu uma gargalhada irritada e disse com frieza:
– Não estava me referindo aos parentes.
– Nunca recebeu um beijo de que gostasse?
Jaenelle hesitou.
– Bem, Daemon me beijou uma vez.
– Bem, então...
– Eu tinha 12 anos.
Surreal ficou indignada com a ideia de um homem adulto beijando uma criança, então parou por um instante para refletir sobre o homem. Havia beijos e beijos. E Daemon saberia exatamente como beijar uma criança sem passar dos limites, sobretudo se tratando de Jaenelle.
– Beijou-a quando tinha 12 anos?
Jaenelle encolheu os ombros e pareceu incomodada.
– Foi no Winsol, antes de... tudo. Ele tinha me dado uma pulseira de prata, e pensei que um beijo era um jeito adulto de agradecer.
– Certo – assentiu Surreal. – E então você o beijou, e ele a beijou de volta.
– Sim.
– E não babou em você?
Os lábios de Jaenelle estremeceram.
– Não, não babou.
– Então por que não pode beijá-lo agora?
– Porque já não tenho mais 12 anos! – gritou Jaenelle.
– E o que uma coisa tem a ver com a outra?
– Não quero que ria de mim!
– Duvido que sua primeira reação fosse rir. Para ser sincera, acho que isso jamais lhe ocorreria.
Surreal fez uma pausa. Fogo do Inferno, parece que estou conversando com uma adolescente! Pensou um pouco mais sobre o assunto. Se deixasse a idade de lado e considerasse apenas a experiência de Jaenelle, não estaria falando com uma adolescente? Precisava haver uma chave que pudesse girar, alguma forma de fazer parecer que Daemon precisava desesperadamente de ajuda. Nesse caso, Jaenelle...
– Sabe, querida, Daemon está tão nervoso quanto você.
– Por que ELE estaria? – perguntou Jaenelle, cautelosa. – Ele sabe beijar e é...
– Virgem.
Jaenelle ficou de queixo caído.
– Mas... Mas ele é...
– Virgem. Sem dúvida sabe algumas coisas sobre beijar, mas há muitas outras coisas que só conhece em teoria.
– Surreal, não pode ser.
– Acredite em mim.
– Ah...
– Entende agora por que ele está nervoso? – perguntou Surreal, sentindo-se também ligeiramente enervada. Se Daemon um dia descobrisse essa conversa, ela podia acabar servindo como ingrediente principal num ensopado. – Sinceramente, querida, quando chegar a hora H, tudo o que precisa fazer é ficar deitadinha. Mas se ele estiver nervoso quanto à sua capacidade de desempenhar bem seu papel... Você sabe, né? Não levanta.
– Não – balançou a cabeça. – Não, isso não aconteceria com Daemon.
Aquela confiança ingênua na capacidade de Daemon era comovente.
– Vamos nos sentar – sugeriu Surreal, dirigindo-se a um sofá. – Trinta minutos devem bastar, mas é melhor estarmos confortáveis.
– Bastar para quê? – perguntou Jaenelle, sentando-se na extremidade oposta do sofá.
– Vou explicar a técnica básica de beijar. – Havia um leve sarcasmo no sorriso de Surreal. – Concorda que sei algumas coisas sobre o assunto?
– Claro – respondeu Jaenelle, cautelosa.
– E nunca pensou em me perguntar desde que estou em Kaeleer?
– Pensei – murmurou Jaenelle. – Mas não me pareceu muito educado.
Ah, Mãe Noite. Bem, isso explicava o olhar preocupado e cansado do senhor supremo. Quantas noites teria passado em seu escritório completamente desorientado por ter de lidar com uma rainha tão poderosa e que ainda se preocupava em ser educada?
– Agradeço a preocupação, mas, uma vez que fazemos parte da mesma família, eu nunca me sentiria ofendida.
Havia especulação nos olhos de Jaenelle. Surreal quase conseguia ver as perguntas se acumulando.
– Por hoje, vamos ficar apenas na técnica básica de beijar.
– Devo tomar notas? – perguntou Jaenelle, séria.
– Não – respondeu Surreal –, mas acho que deve tentar praticar assim que possível.
Surreal fechou a porta suavemente e saiu pelo corredor. Não tinha certeza se aquele olhar de concentração intensa no rosto de Jaenelle prenunciava alguma coisa boa para o homem que receberia aquela atenção, mas tinha feito o melhor que podia. Instruções adicionais teriam de vir de Daemon. Boa sorte para ele.
Para uma mulher que crescera rodeada por alguns dos machos mais sensuais que Surreal jamais encontrara, Jaenelle era fechada ao sexo. Em nome do Inferno, como é que dois amantes inexperientes vão conseguir compreender o funcionamento das coisas?, perguntava-se Surreal. O que a fez pensar em tudo o que poderia dar errado assim que Daemon e Jaenelle fossem além dos beijos.
O que a fez pensar que talvez fosse melhor informar o senhor supremo sobre essa conversa. Talvez. Por via das dúvidas.
Ao virar num dos corredores, quase esbarrou na última pessoa que desejava ver neste momento.
– Qual é o problema? – perguntou Daemon.
– Problema? – disse Surreal, recuando um passo. – E por que haveria um problema?
– Você está pálida.
Merda.
– Hmm.
Talvez devesse contar a ele sobre aquela conversa, para deixá-lo de sobreaviso. Daemon, tive uma conversinha com Jaenelle sobre sexo. Acho que você vai gostar do resultado.
Talvez não.
– Surreal? – disse Daemon, com um ligeiro nervosismo na voz.
Surreal respirou fundo.
– Aja de modo nervoso. Vai ajudar.
Então passou por ele, em disparada pelos corredores. Alguns minutos depois, ofegante, irrompeu no escritório de Saetan.
– Surreal – disse ele, cauteloso.
Sentou-se na cadeira diante da mesa e sorriu um tanto desesperadamente.
– Olá. Pensei em lhe fazer companhia por um momento.
– Por quê?
– Preciso de uma razão?
Aquela pergunta tinha um significado diferente para Saetan. Ele colocou delicadamente a caneta no suporte, pousou os óculos meia-lua na mesa, recostou-se na cadeira e fitou a porta do escritório antes de fixar o olhar em Surreal.
– Se quer apenas me ver cuidando da papelada, não prefere passar essa cadeira para trás da mesa? – perguntou gentilmente.
Isso permitiria que Saetan ficasse entre ela e algum macho irado que pudesse entrar pela porta. Daemon, mais precisamente.
– Que ideia maravilhosa – exclamou Surreal.
Ela pegou a cadeira e deu a volta na mesa. Antes que pudesse se sentar, Saetan moveu-a para junto das estantes no fundo do recanto.
– Sente-se – disse, enquanto passava os dedos pelos títulos nas prateleiras. Escolheu um livro e o entregou a Surreal. – É uma história dos Dea al Mon. Você devia saber mais sobre o povo da sua mãe. E será uma desculpa razoável para estar aqui sentada se alguém entrar. – Fez uma pausa. Aguardou. – Está esperando alguém?
– Não.
– Compreendo. Nesse caso, vou cuidar de uns papéis enquanto recupera o fôlego. Depois, teremos uma conversinha.
Surreal sorriu debilmente.
– Parece que hoje é o dia das conversas.
Felizmente, Saetan resmungou sua resposta tão baixinho que Surreal pôde fingir não tê-la ouvido.
Daemon olhou para o corredor vazio, balançou a cabeça e continuou a andar. Passara o dia caminhando, primeiramente nos terrenos da propriedade, e agora pelos corredores do Paço.
Depois de um mês em Kaeleer, começara a amar o local. Amava a sensação que lhe transmitia, o tamanho descomunal do edifício, os móveis.
Agora teria de deixá-lo.
Chegara a essa conclusão depois de outra noite insone. Os rapazes tinham tentado ajudar, contando histórias de perseguição às suas senhoras, mas era cada vez mais evidente que não havia esperança para ele. Se não usasse o anel de consorte, se não fosse lembrado a cada minuto da relação que ele implicava, poderia aceitar ser apenas um amigo ou – que as trevas o ajudassem – um irmão mais velho. Talvez conseguisse superar o desejo que havia se tornado doloroso e simplesmente...
Simplesmente o quê? Ver Jaenelle aceitar outro homem? Fingir que podia extinguir o fogo que o consumia?
Um mês não era muito, não era nada na dança da corte. Mas já esperara tanto tempo pelo surgimento da feiticeira. Quando ela lhe ofereceu o anel de consorte, esperara que...
Falaria com Saetan, devolveria o anel, tentaria descobrir se haveria uma corte distante em algum lugar no reino onde pudesse cumprir o tempo exigido para permanecer em Kaeleer. Iria...
Uma porta se abriu. Jaenelle saiu para o corredor. Ficou pálida ao vê-lo.
Daemon parou. Talvez tivesse que desistir de tudo, mas nunca deixaria de amá-la.
– Hmm. Daemon – disse Jaenelle com uma voz estranha. – Tem um minuto?
– É claro. – Foi difícil, mas abriu um sorriso afetuoso e tranquilizador para ela e seguiu-a.
Pondo-se fora de alcance, Jaenelle ficou olhando para o chão, apreensiva, como se estivesse tentando achar a melhor forma de dar uma notícia ruim. Vai me pedir para devolver o anel de consorte. Assim que esse pensamento se formou, Daemon enterrou impiedosamente suas ideias sobre sacrifícios nobres. Não desistiria facilmente. E não devolveria o anel de consorte sem lutar.
– Não pode ser assim tão difícil – murmurou Jaenelle.
Daemon apenas esperou.
Soltando um grande suspiro, Jaenelle foi até Daemon, colocou as mãos em seus ombros, ficou ligeiramente na ponta dos pés e o beijou. Ele não sabia o que dizer sobre essa atitude inesperada. Como beijo, deixava muito a desejar. Mas sendo um beijo de Jaenelle...
Esforçou-se para não lamber os lábios.
– Está nervoso? – perguntou Jaenelle, cautelosa.
Depois ele teria uma conversinha com Surreal sobre a inutilidade de conselhos enigmáticos. Mas tinha uma vaga ideia de qual devia ser a resposta certa.
– Na verdade, estou morrendo de medo de dizer ou fazer alguma coisa estúpida e de você não querer me beijar de novo.
Talvez a resposta tivesse sido certa demais. Agora ela parecia preocupada. Então ergueu as mãos num gesto de abandono desesperado.
– Não sei o que estou fazendo – quase gemeu, acrescentando baixinho. – Surreal devia ter me deixado tomar notas.
Daemon prendeu a língua entre os dentes. Sim, definitivamente precisava ter uma conversinha com Surreal.
Jaenelle começou a andar de um lado para outro.
– Parece sempre tão fácil nos romances.
– Beijar não é difícil – disse Daemon, cauteloso.
Jaenelle formou um olhar furioso ao passar por ele.
– Beijar não é difícil – repetiu Daemon, com firmeza. – Você acabou de me beijar.
– Não muito bem – resmungou Jaenelle.
Sabendo que era melhor não responder, Daemon a observou. Frustração. Vergonha. E uma emoção que o deixava sem ar. Desejo.
– Por que perguntou a Surreal sobre beijar?
– Ela contou?
– Não, eu presumi. – Depois de ouvir a observação de Jaenelle sobre tomar notas e se lembrar das instruções sucintas de Surreal, não foi difícil chegar à conclusão correta.
Jaenelle resmungou e rosnou alguma coisa num idioma que, felizmente, ele não compreendia.
– Queria impressioná-lo. Não queria que risse de mim.
– Rir não é exatamente o que tenho vontade fazer – disse Daemon, friamente. Passou os dedos pelo cabelo. – Minha querida, se serve de consolo, também quero impressioná-la.
– Quer? – Jaenelle pareceu admirada.
Daemon começou pensando no que teria acontecido nos últimos treze anos para ela ficar tão pasma com a ideia. Mas ele sabia. Ela havia contado da primeira vez que fora parar no lugar enevoado, quando tentara trazer a feiticeira de volta para curar o corpo ferido. No que dizia respeito ao prazer físico, os machos queriam se satisfazer com o corpo sem ter de lidar com quem vivia em seu interior. E Jaenelle, devido aos horrores de Briarwood, jamais se entregaria dessa forma.
– Sim, quero – respondeu.
Jaenelle refletiu sobre isso.
– Kaelas está aborrecido com você.
Parecia uma mudança repentina de assunto.
– Por quê? – perguntou, cauteloso.
– Porque não tenho dormido bem ultimamente e vivo lhe dando pontapés. Ele decidiu que a culpa é sua.
– Também não tenho dormido bem.
Ela desviou os olhos, parecendo aflita.
Basta, pensou Daemon. A culpa por aquele mês difícil era mais dele do que dela. Saetan tinha lhe informado que Jaenelle nunca tivera um amante. Ainda assim, esperava que ela o recebesse de braços abertos em sua cama. Agira como se fosse uma mulher experiente que se aproveitaria de sua disponibilidade.
Fora seu maior erro. Jaenelle era incapaz de se aproveitar de quem quer que fosse que servisse em sua corte. Bem, ela dera aquele primeiro passo vacilante. Agora era sua vez.
Afrouxou o controle sufocante de sua sexualidade, apenas o bastante para produzir uma sensação sutil no ar, mas sem deixar que Jaenelle a percebesse.
– Venha aqui – disse, baixinho.
Com um ar confuso, ela obedeceu. Pondo as mãos na cintura de Jaenelle, puxou-a para junto de si.
– Beije-me de novo. Assim. – Roçou os lábios nos dela, suavemente, com delicadeza. – E assim. – Beijou-a no canto da boca. – E assim. – Beijou seu pescoço.
Jaenelle imitou cada movimento. Quando sentiu a ponta da língua de Jaenelle em sua pele, ele inclinou a cabeça para trás, pressionou os lábios nos dela e a beijou intensamente. Beijou-a com todo o desejo que crescera no último mês, durante toda a vida. Beijou-a enquanto suas mãos percorriam as costas e os quadris e exploravam delicadamente os seios. Beijou-a até ouvi-la gemer. Beijou-a até que se abriu para ele, deixando que a língua de Daemon dançasse com a dela. Beijou-a até que as mãos de Jaenelle deslizaram por suas costas e apertaram seus ombros. Beijou-a até que os gemidos se transformassem num rosnado faminto, sentindo as unhas de Jaenelle furando sua pele através da camisa e do casaco.
E foi então que percebeu que tinha ido muito mais longe do que pretendia. Voltou a colocar as mãos na cintura de Jaenelle e recuou lentamente para os beijos suaves e tranquilos.
Sentindo o afastamento, Jaenelle voltou a rosnar. Ali havia desejo... e raiva.
– Não me deseja? – perguntou ela com a voz de meia-noite.
Em resposta, Daemon puxou ligeiramente os quadris de Jaenelle em sua direção.
– Sim, desejo-a. – Cedeu por mais um instante, cravou a boca no pescoço de Jaenelle e mordeu com força suficiente para deixar uma marca. Afastando a boca, beijou-a delicadamente do queixo até a têmpora. – Mas isso é só uma brincadeira, não passa de um aperitivo.
– Brincadeira? – perguntou a feiticeira, desconfiada.
– Hmm – respondeu ele, lambendo o ponto em sua testa onde estaria o pequeno chifre espiralado, se estivessem no abismo. – Não é o lugar adequado para mais do que brincadeiras.
– Por quê?
– Porque eu gostaria que minha primeira vez fosse numa cama.
A raiva de Jaenelle desapareceu na mesma hora.
– Ah, é claro, seria mais confortável.
Vai me convidar para sua cama esta noite? Sabia que não deveria perguntar tão descaradamente, mas, ao mesmo tempo, sabia que tinha de perguntar.
– Posso ir vê-la esta noite? – Sentindo a tensão de Jaenelle, apressou-se a colocar um dedo sobre seus lábios. – Não diga nada. Um beijo bastará como resposta.
A resposta de Jaenelle foi tudo aquilo que ele sempre desejara.
Daemon apoiou as mãos na cômoda e fechou os olhos.
Respire fundo, maldito seja, pensou ferozmente. Respire fundo.
Em nome do Inferno, como é que os homens faziam isto da primeira vez? Talvez, para um jovem, a excitação bastasse para empurrá-lo através das dúvidas. Talvez fosse mais fácil da primeira vez se a mulher não fosse tão especial. Conhecia dezenas de maneiras de beijar, de acariciar, de excitar uma mulher e fazê-la ansiar por tê-lo em sua cama.
Esquecera-se de todas.
Daemon se endireitou, voltou a amarrar a corda do roupão... e vociferou com uma intensidade sincera. Devia ter cedido ao desejo que despertara em Jaenelle, devia ter agido em vez de recuar, assim não teria passado as últimas horas em pânico. Agora, desejando mais do que sexo, esperava sinceramente que tudo fosse perfeito quando entrasse no quarto de Jaenelle...
Quando bateu à porta dela, interpretou o som abafado como um convite e entrou. A única luz vinha do fogo que ardia na lareira e das velas perfumadas espalhadas pelo cômodo. O cobertor da enorme cama tinha sido puxado. Numa mesa junto à lareira havia pratos cobertos, duas taças e uma garrafa de espumante.
Jaenelle estava em pé no centro do quarto. A ponta daquilo que parecia ser uma camisola transparente de seda espreitava por baixo da bainha de um roupão grosso e surrado – que Daemon imaginava que ela vestia em noites chuvosas ao se aconchegar no quarto para ler. Parecia mais uma criança abandonada do que uma mulher com fome de sexo.
– Seu aspecto é igual ao jeito como me sinto.
– Maldisposto e aterrorizado?
Estremeceu, desejando não ter dito aquelas palavras, mas Jaenelle assentiu.
– Pensei... que um pouco de comida... – Olhou rapidamente para os pratos cobertos e empalideceu. Depois, voltou o olhar para a cama e ficou ainda mais pálida. – O que vamos fazer? – sussurrou.
Não fizera nenhum favor a nenhum dos dois ao lhes dar tempo para pensar.
– O básico – disse. – Começaremos com alguma coisa simples. – Deu um passo à frente e abriu os braços. – Um abraço.
Jaenelle refletiu por um instante.
– Parece fácil.
Daemon fechou os olhos e a abraçou delicadamente. Inspirou o odor de Jaenelle. Havia algo reconfortante na textura daquele roupão surrado, assim como na maneira como o cabelo de Jaenelle roçava sua mão. Puxou-a para junto de si, ao mesmo tempo que acariciava suas costas, somente pelo prazer que isso lhe dava.
Jaenelle suspirou. A tensão em seus músculos se aliviou. Não estava pensando em sedução quando suas mãos começaram a explorá-la, ou quando as mãos dela o afagaram com hesitação.
Não estava pensando em sedução quando seu corpo se deliciou com a diferença do toque de seus lábios na pele sedosa do pescoço de Jaenelle e o roupão sob suas mãos.
Não estava pensando em sexo quando abriu seu próprio roupão e, em seguida, o dela, de modo que apenas aquela película de seda de aranha separava suas peles. Nem mesmo quando a seda de aranha deixou de estar entre os dois.
Não estava pensando em sexo quando sua boca se fechou sobre a dela, fazendo-os deslizar para o desejo escuro e ardente.
E, mesmo quando percebeu que estava na cama, ouvindo-a gemer de prazer enquanto se mexia dentro dela, não foi capaz de pensar.
Dorothea segurava uma carta na mão.
– Parece que Kartane conheceu lorde Jorval e lorde Hobart.
Os lábios de Hekatah se curvaram num enorme e monstruoso sorriso.
– Como são úteis esses machos. Imagino que Kartane não tenha conseguido nada com o senhor supremo.
– Parece que não – respondeu Dorothea, esforçando-se para parecer indiferente enquanto a fúria da traição de Kartane fazia seu sangue cantar. – Ele sugere que lorde Hobart aceitaria qualquer tipo de ajuda que Hayll possa oferecer para arrancar Glácia da vagabunda da rainha, que é sobrinha dele. Permanecerá na Pequena Terreille para servir como elemento de ligação.
– Parece que seu filho finalmente compreendeu a quem deve lealdade.
Dorothea amassou a carta.
– Não é meu filho. Não mais. É apenas um instrumento.
Lucivar andou até o ponto mais distante do jardim de muros baixos que cercava um dos lados de sua casa. Marian lia uma história para Daemonar e os lobos tinham se juntado no quarto para ouvir. Assim, a notícia que Prothvar tinha a lhe dizer não seria ouvida por mais ninguém.
Duas semanas antes, Saetan mandara Surreal de volta a Ebon Rih com uma mensagem concisa e perturbadora: fiquem longe do Paço. Só obedecera porque Saetan havia assinado como administrador da corte. Depois de duas semanas de silêncio, Andulvar, como mestre da guarda, enviara Prothvar ao Paço a fim de solicitar mais informações ao administrador. Agora Prothvar estava de volta, querendo vê-lo longe de todos.
– Problemas? – perguntou Lucivar em voz baixa.
Os dentes de Prothvar brilharam enquanto seus lábios formaram um sorriso feroz.
– Não, contanto que você permaneça longe do Paço. Concluí que é desconfortável viver lá agora se você usa joias mais escuras do que a vermelha.
– Mãe Noite – murmurou Lucivar, massageando a nuca. Que diabo havia acontecido? – Talvez o senhor supremo mande Daemon para cá por um tempo.
– Ah, não acho sensato que Daemon fique longe do Paço.
Lucivar fitou Prothvar por um momento. Depois, abriu um sorriso.
– Bem, já não era sem tempo.
– Para ambos.
– Então por que Saetan está aborrecido?
– Porque, apesar dos esforços de Daemon para isolar o quarto, a... celebração tende a vazar pelos escudos, o que deixa os residentes de joias mais escuras doidos. E nenhum dos dois quer abordar o assunto com Jaenelle, uma vez que ela está perdidamente feliz e alheia a tudo à sua volta, à exceção de seu consorte. E Saetan, para não falar em Daemon, quer que ela continue assim.
– Bem – disse Lucivar maliciosamente –, se Saetan precisa de uma folga das comemorações que estão acontecendo no Paço, há sempre a possibilidade de passar uma ou duas noites com Sylvia.
– Ora, Lucivar – repreendeu Prothvar –, você sabe que eles são apenas amigos.
– É claro. – Reparando na lua, Lucivar fez um rápido cálculo mental, então lançou um olhar penetrante para Prothvar. – Alguém falou com Daemon sobre as infusões contraceptivas?
– Sim. Tive a impressão de que ele deseja uma criança no futuro, mas, por enquanto, quer apenas desfrutar a cama da senhora.
– Nesse caso, Saetan deve ter alguns poucos dias de alívio em breve. – Lucivar olhou para as luzes das janelas de casa e pensou em desfrutar a cama de sua própria senhora assim que Daemonar adormecesse. No entanto, não deixou de perguntar educadamente: – Quer entrar? Tenho um pouco de yarbarah.
– Obrigado, mas não – respondeu Prothvar. – Ainda preciso falar com Andulvar.
Prothvar desejou boa-noite, abriu as asas escuras e levantou voo em direção ao céu noturno. Enquanto voltava para casa, ouviu o uivo de um lobo solitário. Sorriu. Uma vez que o som vinha da direção da casa de Falonar na colina, não precisava perguntar onde Surreal ia passar a noite.
Então Surreal estava com Falonar, Jaenelle com Daemon, e Marian...
Ao entrar em casa, viu Marian à porta da cozinha. Ela sorriu daquela forma calma que o deixava sempre excitado e com o coração batendo rápido.
– Ia fazer um chá – disse. – Está frio esta noite.
Lucivar devolveu o sorriso e lhe deu um beijo demorado e íntimo.
– Conheço uma forma melhor de se aquecer.
A rainha aracniana pairava no ar diante da teia emaranhada de sonhos e visões – a teia que havia ligado àquela tecida pela feiticeira. A estação de frio estava prestes a chegar. Era hora das tecelãs de sonhos se recolherem às grutas e tocas, mas precisava olhar essa teia mais uma vez...
Examinou primeiro a teia emaranhada da feiticeira. Um pequeno fio estava escuro, escuro, escuro. A primeira morte.
Outras viriam. Muitas outras.
Em seguida, examinaria sua própria teia emaranhada. Mas não antes da estação de calor. Até os humanos tendiam a permanecer em suas tocas durante a estação fria.
Pois então. Podia se abrigar em sua própria toca na gruta sagrada, onde repousaria e sonharia os sonhos agradáveis. Quando as estações voltassem a mudar, falaria com o cão de pelo marrom, Ladvarian. Era a ligação entre os Sangue parentes e humanos. Os parentes lhe obedeciam e os humanos o escutavam. E precisava dele para o que tinha de ser feito.
Quando a terra voltasse a se aquecer, precisaria de toda sua força e habilidade – e de toda a força e habilidade que o cão de pelo marrom conseguisse reunir para ajudá-la – para salvar o coração de Kaeleer.
Depois de guardar o bilhete na gaveta e trancá-la, Morton franziu o cenho. Estava preocupado com as recentes inquietações da sacerdotisa do santuário, sobretudo porque aquele santuário continha um altar das trevas, um dos treze portões que ligavam os reinos de Terreille, Kaeleer e do Inferno.
Ao longo dos meses de inverno, ela enviara várias mensagens perturbadas... e perturbadoras. Suprimentos haviam desaparecido. Vozes na calada da noite. Indicações de que o portão fora aberto sem seu consentimento.
Naturalmente, havia explicações razoáveis para isso. Os suprimentos podiam ter sido consumidos sem ser repostos. A jovem aprendiz de sacerdotisa podia ter um amante, e as vozes tarde da noite não passariam de um encontro amoroso. Os portões...
Era isso que o deixava inquieto. Será que havia terreillianos usando o portão em Glácia para entrar sorrateiramente em Kaeleer em vez de passar pelas feiras de serviço? Sempre havia aqueles que, por sorte ou instinto, conseguiam acender as velas negras na ordem correta e enunciar os feitiços certos para abrir o portão entre os reinos. As histórias diziam que o poder contido nesses locais ancestrais às vezes reconhecia a necessidade de um espírito de voltar para casa e abria o portão para o reino correto mesmo que a pessoa não soubesse o feitiço. No entanto, o mais provável era que essa pessoa tivesse encontrado a chave em algum texto antigo da arte.
Portanto, iria até aquela pequena aldeia junto à fronteira arceriana e falaria com a sacerdotisa. Morton verificou os bolsos para se certificar de que tinha um lenço limpo e alguns marcos de prata para o jantar e uma rodada na taberna. Por último, com um ligeiro toque de arte, assegurou-se de que sua joia opala estava ligada ao anel de honra em volta de seu órgão.
Sorriu. Desde que Jaenelle ofertara anéis semelhantes à assembleia, os machos do primeiro círculo, por um consenso tácito, começaram a usar os seus permanentemente. Esse método extra de serem capazes de decifrar os estados de espírito femininos aborrecera tanto as feiticeiras quanto agradara os machos.
Morton se deteve um instante junto à porta e balançou a cabeça. Não havia motivo para incomodar Karla. Viajaria até a aldeia, falaria com a sacerdotisa e, depois, informaria a prima.
Além disso, o período da lua de Karla estava lhe causando mais desconforto do que o habitual este mês. Ela tinha ficado doente durante todo o inverno. Nada muito sério: nariz entupido, uma dor nas articulações provocada pela mudança de tempo, gripes passageiras. As duas curandeiras que serviam em sua corte não conseguiam encontrar nada que justificasse essa repentina vulnerabilidade. Sugeriram que talvez estivesse trabalhando demais. Karla rejeitara essa explicação, afirmando que também era curandeira, e de joia cinza. Se houvesse algo errado, ela mesma não teria percebido?
É claro que sim. Mas como reinava sobre um território onde pessoas apoiavam lorde Hobart e suas ideias de como deveria ser a sociedade dos Sangue, Karla poderia ignorar muita coisa para parecer invulnerável. Se fosse uma doença de maior gravidade, ela diria a ele, certo? Não usaria a arte para ocultar uma doença das outras curandeiras em vez de obter ajuda, não é?
Sabendo a resposta para essa questão, Morton praguejou. Bem, Jaenelle fazia sua excursão de primavera pelos territórios e estaria em Scelt em alguns dias. Mandaria uma mensagem por Khardeen, solicitando formalmente os serviços dela como curandeira.
Tendo tomado essa decisão, apanhou um dos ventos e viajou pelo caminho psíquico através das trevas, até a aldeia da sacerdotisa.
Apesar da impaciência do gatinho, Kaelas manteve um trote tranquilo. Afinal de contas, o gatinho tinha metade do seu tamanho, e suas passadas eram também mais curtas. Mesmo nesse ritmo calmo, KaeAskavi tinha de correr frequentemente para conseguir acompanhá-lo.
A viagem lhe agradava, pois nunca conhecera seu genitor. Essa não era a tradição arceriana. Uma pequena assembleia de feiticeiras arcerianas podia estabelecer seus covis próximos, de modo a se proteger e fazer melhor uso das diferentes habilidades de cada uma na arte. Mas os machos ficavam de fora, sendo considerados uma ameaça depois do nascimento das crias. Era verdade que os machos arcerianos que não eram parentes eram conhecidos por matar as próprias crias. No entanto, os machos parentes se ressentiam dessa exclusão, sobretudo os príncipes dos senhores da guerra. Tinham permissão para deixar a carne junto à toca das companheiras e observar os gatinhos a distância, mas não podiam brincar com os filhotes ou ensiná-los a caçar e a usar a arte.
Tendo sido criado pela senhora e tendo vivido no seio de sua família humana, ele também tinha esse ressentimento. Os machos parentes de outras espécies não eram excluídos. E os machos humanos também não. Tinham permissão para brincar com seus filhotes, cuidar deles e ensiná-los.
Por isso, trouxera sua companheira para o Paço logo após o nascimento da cria de Lucivar. Reconhecera outro predador, ainda que tivesse asas e apenas duas pernas. Observara Lucivar cuidando de seu filhote. Observara o senhor supremo. E observara as fêmeas humanas, principalmente a senhora, que aprovavam que o gatinho humano passasse pelas mãos desses machos adultos.
Por causa disso, e por se sentir honrada pela senhora ter batizado sua cria com um nome que significava “montanha branca” no idioma antigo, sua companheira permitira que entrasse na toca pouco depois do nascimento de KaeAskavi.
Sua cria estava aprendendo o modo arceriano de caçar, bem como os métodos humanos que Lucivar lhe ensinara discretamente. Essa exposição aos humanos estimulara a curiosidade de KaeAskavi, razão pela qual tinham empreendido esta viagem.
Durante uma ronda solitária, KaeAskavi se aproximara demais de uma aldeia de humanos em Glácia e conhecera uma gatinha humana. Em vez de ter medo de um enorme predador, ela ficara encantada e se tornaram amigos. Depois de muitos encontros secretos ao longo do verão e no início do inverno, as fêmeas-mães, tanto a humana quanto a felina, descobriram tudo... e nenhuma das duas ficou satisfeita.
Por isso, KaeAskavi recorrera a Kaelas, desejando sua aprovação em relação à amizade com a jovem fêmea humana.
Kaelas podia compreender esse fascínio pela gatinha humana de uma forma que sua companheira jamais conseguiria. KaeAskavi era um príncipe dos senhores da guerra, e os príncipes dos senhores da guerra tinham dificuldades em se privar da companhia de uma fêmea. Muitas estações se passariam até que KaeAskavi ou a pequena fêmea começassem a procurar uma companheira ou companheiro. Se a gatinha era uma boa amiga, por que não deixar que tivessem a companhia um ao outro?
Não que Kaelas tivesse um apreço especial pelos humanos. Jamais se esquecera dos caçadores que haviam matado sua mãe. Mas alguns humanos eram capazes de ser mais do que apenas carne. Os que pertenciam à senhora, por exemplo. E o companheiro da senhora. Embora tivesse apenas duas pernas, havia muito de felino naquele humano, algo que Kaelas aprovava.
Por isso, avaliaria essa pequena fêmea. Se chegasse à conclusão de que poderia ser aceita pelos parentes, pediria à senhora para avaliá-la também. A senhora saberia se era uma boa amiga para seu gatinho.
De repente, o vento mudou, soprando agora da aldeia, a mais de um quilômetro dali.
Kaelas ficou imóvel. Sangue e morte impregnavam o ar.
*Della!*, exclamou KaeAskavi.
Com uma patada, Kaelas derrubou o gatinho.
*Quando há cheiro de sangue e morte no ar, não se deve correr a seu encontro*, disse Kaelas severamente.
*Mas é a aldeia de Della!*
Mediante a arte, Kaelas sondou a área ao redor. A estação que os humanos chamavam de primavera já tinha chegado a outras terras, mas aqui o inverno ainda mostrava as garras – e uma espessa camada de neve.
*Faça uma toca. Fique escondido*, ordenou Kaelas.
KaeAskavi rosnou, mas passou imediatamente a uma posição submissa quando Kaelas avançou em sua direção.
*Posso lutar*, disse KaeAskavi, desafiador.
*Você vai ficar escondido até eu chamá-lo.* Kaelas esperou um instante. *Como é a toca da gatinha?*
Da mente de KaeAskavi, recebeu a imagem de uma pequena toca humana, de um terreno aberto, e então de uma densa fileira de árvores onde KaeAskavi costumava aguardar pela amiga.
*Fique aqui*, disse Kaelas. *Escave a toca.*
Kaelas não esperou para ver se KaeAskavi acataria a ordem. Envolvendo-se num escudo de visão e caminhando pelo ar para não deixar pegadas na neve, prosseguiu na direção aldeia, a passos largos que o fizeram percorrer a distância em poucos minutos.
O ar nos arredores da aldeia cheirava a medo e desespero, bem como a sangue e morte. Seus ouvidos vigilantes detectaram sons de luta, o embate de armas humanas. Por meio da arte, sondou cautelosamente o local e mostrou as presas num rosnado mudo ao detectar um príncipe dos senhores da guerra de joia verde. Havia algo naquele odor...
Aproximou-se de uma árvore com vista para a parte de trás da toca da gatinha, e ouviu o grito de uma fêmea e o berro de um macho. Observou alguém abrir a janela da toca. Por ela, uma jovem fêmea humana saltou para a neve. Ao tentar se levantar, voltou a cair, sem forças.
Kaelas irrompeu das árvores, investindo em direção ao local onde a menina jazia, ao mesmo tempo que um senhor da guerra eyrieno contornava a toca. Localizando a menina, o eyrieno ergueu a arma ensanguentada e avançou para o golpe fatal.
O macho humano não detectou o perigo até sentir 350 quilos de ódio contra si.
Com os dentes, Kaelas arrancou o braço que segurava a arma e dilacerou o ventre do eyrieno. Uma detonação de poder psíquico extinguiu a mente do humano, consumando a morte.
Kaelas se deteve um momento para abocanhar um pouco de neve limpa. Tal como o odor psíquico, o humano tinha gosto de carne estragada. Balançou a cabeça e se dirigiu à moça, que olhava fixamente para o macho sem vida.
*Gatinha*, rosnou.
Desesperada, ela levantou a cabeça com algum esforço e olhou em volta.
*KaeAskavi?*
*Kaelas*, respondeu. Com a mesma delicadeza que usava com sua própria cria, agarrou-a pela cintura e trotou com ela, na direção das árvores que serviam de abrigo. Ela não fez um único som. Não se debateu. E ele admirou a coragem da moça.
Como Kaelas, agora ela era órfã.
Escolhendo um local onde a neve se acumulava, manteve a menina suspensa no ar, escavou rapidamente uma pequena toca, acomodou-a ali e cobriu a maior parte da entrada.
*Fique aqui*, ordenou.
A menina se enrolou numa bola trêmula.
Kaelas galopou de volta até a toca dos humanos e atravessou a parede ao lado da janela de onde a garota tinha vindo. O quarto tinha seu odor... e de outras coisas, coisas muito ruins.
Uma porta estava aberta. Vislumbrou um braço feminino ensanguentado. Não detectou qualquer sinal de vida. Desejou que Ladvarian estivesse ali com ele. Apesar de ter vivido quase toda sua vida entre humanos, não os compreendia tão bem como o cão. Ele saberia do que a menina precisaria.
Pensou por um momento. Ela precisaria dos casacos dos humanos. Por meio da arte, abriu as gavetas e o guarda-roupas e fez desaparecer tudo que havia ali dentro. O que mais levaria? Olhando em volta, fez desaparecer os cobertores da cama. A gatinha poderia se enrolar naquilo para se aquecer. A necessidade de sair daquele lugar era cada vez maior, mas pensou um pouco mais...
Os parentes não viam grande utilidade nos objetos, mas...
Foi então que o viu, ao lado da cama. Primeiro, sentiu um ódio cego, mas quando se aproximou para farejar o falso gato branco, percebeu que tinha sido feito de pelúcia e não de pelo arceriano, como a princípio havia pensado. Carregava um intenso cheiro da gatinha humana e, embora mais sutil, o odor da gata-mãe também estava presente. Detectou ainda um terceiro odor psíquico no brinquedo, um odor que associou à senhora.
Fazendo o brinquedo desaparecer, deslocou-se com cautela até a porta aberta. A fêmea morta ainda tinha uma faca na mão. Lutara com um macho mais forte para proteger a gatinha, da mesma maneira que sua mãe havia feito com os caçadores para que Kaelas pudesse fugir.
Se soubesse que sua cria estava protegida e segura, não se importaria que a jovem fêmea estivesse agora entre os felinos arcerianos. Atravessando a parede do fundo da casa, parou junto ao macho eyrieno morto. Mediante a arte, fez com que seus restos mortais penetrassem os primeiros centímetros de neve e, em seguida, empurrou-os para o fundo. A neve ficou manchada de sangue, mas ninguém viria procurá-lo imediatamente. E, até conseguirem retirar o corpo, não saberiam que o humano fora morto por um elemento de sua espécie.
Correndo de volta para a árvore, Kaelas chamou KaeAskavi.
*Venha depressa... e em silêncio.*
Chegando à toca improvisada, escavou a entrada. Invocando o cobertor, estendeu-o sobre a neve, usando dois feitiços que aprendera com a senhora: um de aquecimento no interior e outro para manter o tecido seco do lado de fora. Erguendo a gatinha, envolveu-a desajeitadamente na coberta.
Ela apenas olhava o vazio.
Apreensivo, Kaelas a farejou. Não estava morta, mas sabia que aqueles olhos fixos não eram bom sinal.
Sentindo a aproximação de KaeAskavi, ergueu a cabeça. Conseguiu detectar uma leve sombra do escudo de visão de uma joia mais clara, e rosnou baixinho em aprovação.
*Della!*, KaeAskavi farejou a fêmea embrulhada.
*Leve a gatinha à minha companheira*, disse Kaelas. *Apanhe os ventos assim que encontrar um fio no qual possa viajar. A gatinha precisa urgentemente de ajuda.*
*Minha mãe não aceitará uma gatinha humana na sua toca*, protestou KaeAskavi.
*Diga a ela que a gata-mãe lutou contra os caçadores para salvar a cria... e morreu.*
KaeAskavi ficou imóvel por um momento.
*Direi a ela*, disse tristemente.
Abocanhando a coberta com cuidado, afastou-se rapidamente com a gatinha. Kaelas aguardou, seguindo-os por um fio psíquico. Quando sentiu que KaeAskavi havia apanhado o vento que o levaria para perto da toca, voltou à aldeia.
O príncipe eyrieno dos senhores da guerra de joia verde passou os olhos pela carnificina com satisfação. O portão agora era seguro para ser utilizado pela sacerdotisa das trevas. Ela já havia selecionado as sessenta pessoas louras e de rosto pálido que substituiriam as que ele e seus homens tinham acabado de matar, pessoas que adquirira nas últimas duas feiras de serviços. Desde que a aldeia parecesse habitada e que as pessoas aparentassem seguir suas rotinas diárias, duvidava que alguém olhasse duas vezes para elas. E caso um visitante conhecesse a aldeia o suficiente para perceber que os habitantes eram todos estranhos, qual era o problema de mais um cadáver?
Virou-se quando o senhor da guerra, seu subcomandante, se aproximou.
– A vagabunda da sacerdotisa enviou a mensagem?
O senhor da guerra assentiu.
– Enviou-a a lorde Morton, primo e primeiro acompanhante da rainha de Glácia.
– E ele costuma responder a essas mensagens?
– Sim. E normalmente vem sozinho.
– Nesse caso, é melhor nos prepararmos. Designe cinco arqueiros para ficar atrás da teia de desembarque.
O senhor da guerra examinou o massacre.
– Se Morton vir isto, é provável que apanhe os ventos de volta e vá relatar o acontecido.
– Então preciso me certificar de que se afaste o suficiente da teia de desembarque e fique ao alcance dos arqueiros – disse o príncipe dos senhores da guerra. – A velha sacerdotisa está morta?
– Sim, príncipe.
Ouviu um grito débil e angustiado.
– E a jovem sacerdotisa?
O senhor da guerra sorriu de modo maldoso.
– Está tendo a recompensa que merece por ter traído seu próprio povo.
Daemon seguiu Khardeen para dentro de casa.
– Foi muito gentil da sua parte me convidar para jantar.
– Não tem nada a ver com gentileza – respondeu Khary. – Não faz sentido você andar de um lado para outro sozinho enquanto espera por Jaenelle.
Daemon a havia acompanhado durante grande parte da excursão de primavera aos territórios de Kaeleer. Quando chegou o momento de visitar os parentes, entretanto, ela sugeriu delicadamente, embora de maneira firme, que ele prosseguisse para Scelt, onde o encontraria depois. Passariam alguns dias ali antes de continuarem a visita pelos demais territórios.
– Bem, você não precisava ter perdido uma tarde para me mostrar Maghre. Eu poderia ter dado uma volta sozinho pela aldeia.
– Também não foi gentileza – disse Khary depois de pedir café e bolos. Sentou-se numa cadeira confortável junto à lareira. – Foi o jeito que consegui para sair de casa. Quanto ao jantar, será um prazer falar com alguém que não vai resmungar comigo por causa do estômago indisposto.
– Tirando isso, Morghann está bem? – perguntou Daemon, sentando-se na outra cadeira.
– Está muito bem para uma feiticeira de joia escura no primeiro trimestre de gravidez. É o que Maeve vive me dizendo. – O sorriso de Khary era ligeiramente triste. – Uma rainha de território subitamente limitada à arte básica enquanto carrega uma criança no ventre não é uma senhora de temperamento dócil.
– Uma vez que os dois tiveram de deixar de tomar a infusão contraceptiva para que isso acontecesse, a culpa não é toda sua – disse Daemon, sorrindo.
– Ah, mas não sou eu que vomita o café da manhã todos os dias. Percebe a diferença? E há outras... frustrações... para ela neste momento. Não ouviu a briga esta manhã? Fico admirado, pois sua casa fica a menos de um quilômetro da nossa. Eu poderia jurar que Maghre inteira tinha ouvido os gritos dela esta manhã.
– Estava gritando com você?
– Não, graças às trevas. Com Bailarino do Sol. – Depois de agradecer à criada que trouxe a bandeja, Khary serviu o café. – Morghann queria montar esta manhã. Maeve, a curandeira de Maghre, afirmou que não havia problema. Mas Jaenelle tinha dito que não havia problema, desde que Morghann se sentisse capaz.
– Então? – incitou Daemon, com a xícara de café a meio caminho dos lábios.
– Bailarino do Sol não achou a mesma coisa. Disse que, uma vez que as éguas prenhas não podiam ser montadas, uma égua humana prenha também não deveria poder.
– Ah, céus – disse Daemon, dando uma gargalhada. – Não admira que você quisesse sair de casa.
A porta se abriu. Morghann fez uma cara feia para a bandeja, depois para Khary. Mas sorriu para Daemon. Pousando a xícara, ele se levantou para beijá-la. Ao longo dos meses em Kaeleer, aprendera o valor desses pequenos gestos de afeto. Khary também se levantara, mas não tentara se aproximar da esposa, o que era uma atitude sensata.
À porta, uma criada apareceu.
– Deseja uma xícara daquele chá de ervas que Maeve preparou, lady Morghann?
– Acho que sim – resmungou Morghann.
Olhando rapidamente para Khary, Daemon deu a ela seu melhor sorriso.
– Querida – disse a Morghann –, fico feliz que tenha se juntado a nós.
– Por quê? – perguntou Morghann enquanto se sentava.
– Porque o aniversário de Jaenelle é daqui a dois meses e queria o seu conselho sobre o que comprar de presente.
Enquanto discutiam ideias, Morghann se envolveu o bastante para não reparar que estava bebendo um chá de curandeira em vez de café. Chegou a morder um pequeno pedaço de bolo de avelã, o que significava que os homens também podiam se servir sem correr o risco de levar com a bandeja na cabeça.
Ao fim de uma hora, Morghann se levantou.
– Preciso tratar da correspondência. Nos vemos no jantar?
– Mal posso esperar – respondeu Daemon.
Ela lhe deu um beijo no rosto e agraciou Khary com um beijo mais generoso.
Khary aguardou um minuto depois de a porta se fechar. Ergueu a xícara de café num brinde.
– Muito bem, príncipe Sadi. Obrigado.
Daemon ergueu a xícara em resposta.
– Foi um prazer, lorde Khardeen.
Morton deu dois passos ao sair da teia de desembarque e ficou petrificado, sem conseguir desviar os olhos dos corpos que jaziam na neve.
Em nome do Inferno, o que aconteceu?
Sentiu um ligeiro zunido do anel de honra, o que o fez despertar do estado de choque e criar um escudo opala. Esteve a ponto de ativar o escudo do anel, mas hesitou. Essa ação convocaria os outros rapazes e alarmaria Karla. Não queria nada disso por enquanto.
Tentou sondar a área. Conseguia sentir a presença de várias pessoas. Sua primeira reação foi a de correr para ajudar os sobreviventes, mas então se lembrou do seu treinamento. O que quer que tivesse acontecido ali era mais do que conseguiria enfrentar sozinho. E agora começava a sentir alguma coisa errada naquele local, além da carnificina.
Recuou um passo, na intenção de tomar os ventos, ir até a aldeia mais próxima e trazer ajuda. Ao recuar outro passo, um eyrieno virou a esquina de um prédio e o viu.
– Lorde Morton? – chamou o eyrieno.
Morton não reconheceu o príncipe dos senhores da guerra de joia verde. Estava tenso, preparado para pegar os ventos e fugir.
– Lorde Morton! – O eyrieno acenou com uma mão e correu em sua direção. – Graças às trevas, recebeu a mensagem de Yaslana!
Esse nome bastou para levar Morton alguns metros na direção do eyrieno.
– O que aconteceu aqui?
– Não sabemos ao certo – respondeu o eyrieno, parando a alguns centímetros de distância. – Yaslana encontrou pegadas vindas do altar das trevas. Juntou alguns homens e as seguiu. – Olhou por cima do ombro de Morton, com o rosto marcado pela preocupação. – Não trouxe curandeiras?
– Não, eu...
Foi tudo muito rápido. Uma detonação de poder da joia verde do eyrieno estilhaçou o escudo opala ao mesmo tempo que três flechas atravessaram seu corpo. O escudo ébano do anel de honra de Jaenelle foi acionado na mesma hora. Duas outras flechas bateram no escudo e viraram pó.
Usou a arte para permanecer de pé e se amaldiçoou por não ter ativado o escudo antes. Agora, não podiam fazer nada com ele, nem sequer impedi-lo de voltar à teia de desembarque andando ou rastejando, e de viajar pelos ventos para longe. As feridas, embora dolorosas, não eram graves. Tinha uma flecha atravessada em cada perna e uma no ombro esquerdo, muito acima do...
Sentiu um frio letal invadindo os membros e soube na mesma hora o que era. Veneno nas pontas das flechas. Mas quão virulento seria? Obteve a resposta no sorriso cruel do eyrieno.
Caiu de joelhos. Não restava tempo para enviar todos os avisos que precisava enviar. Não restava tempo. Por isso, concentrou-se em enviar um aviso à pessoa que sempre lhe fora mais querida.
Enquanto a morte se apoderava do seu corpo, reuniu forças e enviou uma única palavra.
*KARLA!*
Karla estava sentada junto à penteadeira, com uma mão apoiada no tampo e a outra pressionando o abdômen. As dores do período da lua não costumavam se prolongar por tanto tempo, nem costumavam ser tão dolorosas.
– Aqui está – disse Ulka de maneira simpática, pousando uma caneca fumegante na penteadeira. – Esta infusão para o período da lua vai fazer você se sentir uma outra mulher num instante.
– Obrigada, Ulka – murmurou Karla.
Aceitara Ulka no terceiro círculo pela mesma razão que aceitara outras feiticeiras das famílias aristocratas de Glácia: para aplacá-las depois que exilou seu tio, Hobart. Embora não gostasse de Ulka, precisava admitir que a mulher tinha sido uma companheira solícita ao longo deste inverno, preocupando-se demais com doenças e com um excelente instinto sobre quando falar e quando ficar em silêncio.
Assim que a infusão esfriou um pouco, Karla bebeu um gole generoso. Fazendo uma careta de nojo, pousou a caneca. A infusão tinha um sabor estranho e rançoso. Fogo do Inferno, será que alguma erva tinha mofado ou estragado? Pensando bem, várias coisas não haviam tido um bom sabor durante o inverno. Ou talvez estivesse mal habituada às infusões deliciosas que Jaenelle produzia. O sabor não interessava. Era preciso beber tudo se quisesse abrandar a dor.
Ao pegar novamente a caneca, olhou para o espelho. Sentiu um calafrio percorrer o corpo ao perceber a expectativa nos olhos alertas de Ulka.
– Está envenenada, não está? – disse Karla, sem rodeios.
– Sim – respondeu Ulka, num tom de voz presunçoso e satisfeito.
Karla sentiu o corpo se recompondo lentamente para a batalha contra o veneno. Por ser viúva-negra, tinha maior tolerância aos venenos, mas até uma viúva-negra podia sucumbir a um veneno que o corpo não reconhecesse ou tolerasse.
Enquanto olhava atônita para o reflexo da outra mulher, finalmente compreendeu. Todas as doenças menores, todas as comidas com sabor estranho. E Ulka sempre presente, tão solícita, agindo de modo tão preocupado.
– Você pôs venenos fracos em muitas coisas ao longo deste inverno.
– Sim.
Venenos que enfraqueceram seu corpo, mas nunca a fizeram adoecer gravemente, a ponto de levantar suspeitas. Tinha sido advertida sobre sua própria morte na teia emaranhada que criara no último outono. Tinha sido prudente. Sabia demais sobre venenos para não ser. O fato de não ter conseguido detectar os venenos significava que as plantas usadas não vinham de Glácia.
Com algum esforço, Karla se levantou. Em um momento, as pernas pareciam ter sido atingidas por pregos abrasadores, para logo em seguida ficarem dormentes. Inundou o corpo com a força da cinza, aceitando a dor que seu próprio poder lhe causava devido ao período da lua, de modo a combater o veneno.
Ao mesmo tempo que uma espantosa torrente de dor se alastrava, sentiu o escudo ébano do anel que Jaenelle havia lhe dado.
– Por quê? – perguntou Karla.
Como podia ter subestimado aquela vagabunda? O que teria escapado à sua atenção?
Ulka fez beiço.
– Pensei que seria uma senhora importante em sua corte. Deveria pertencer ao primeiro círculo, e não ao terceiro.
– Uma feiticeira que envenena sua rainha não é digna de servir no primeiro círculo – retrucou Karla. – É uma questão de lealdade.
– Eu era leal – respondeu Ulka. – Mas não consegui nada sendo leal. Foi então que recebi uma oferta mais vantajosa. Assim que você desaparecer e lorde Hobart voltar a controlar Glácia, eu serei uma senhora importante.
– Tudo que você vai ser é a vagabunda de um homem qualquer – disse Karla secamente.
O rosto de Ulka ganhou um ar ameaçador.
– E vocês estarão mortos!
Segundos antes do grito de aviso de Morton invadir sua mente, o anel de Karla enviou uma leve advertência.
*KARLA!*
*Morton? Morton!*
Nada. Um vazio ocupava o local onde estava Morton. Um tipo diferente de frio invadiu Karla, um frio glacial que lhe nutria o corpo, que lhe dava forças.
– Você matou Morton – disse, com demasiada calma.
– Eu não – respondeu Ulka. – Mas a esta hora ele já deve estar morto.
O bastão laminado eyrieno que Lucivar lhe dera estava em suas mãos e silvando pelo ar antes que Ulka tivesse tempo de perceber o perigo. As lâminas, mortalmente afiadas, atravessaram os ossos das pernas de Ulka com a mesma facilidade com que atravessariam um vestido de lã.
O sangue jorrou. Ulka caiu, aos gritos. Karla cambaleou. Era cansativo demais usar o bastão e combater o veneno... Já que Morton estava morto, quem viria em seu auxílio com a brevidade necessária? Não importava. Lutaria pela vida enquanto tivesse forças. E tinha mais poder do que os inimigos imaginavam, uma vez que não precisava usar as joias cinza para se proteger.
Baixando o olhar para Ulka, Karla ergueu o bastão laminado.
– Bem, vagabunda, posso não ter forças para consumar a morte, mas posso garantir que não terá serventia alguma quando se tornar demônia-morta.
Decepou as mãos e a cabeça de Ulka. O último golpe atravessou o ventre e rasgou a coluna. Karla recuou alguns passos, cambaleando, afastando-se da poça crescente de sangue. Deixando-se cair no chão, alongou-se cuidadosamente, com o braço direito em volta do abdômen e a mão esquerda agarrada ao bastão laminado.
Tinha visto sua própria morte na teia emaranhada e fizera o possível para alterar essa parte da visão. Porém, se tivesse de morrer neste momento, iria aceitar a morte.
Um poder escuro a inundou, aquecendo seus braços frios. Sentiu uma gavinha de poder envolvendo-a e reconheceu o fio curativo que a ajudava a lutar contra o veneno.
Envolvida pela força de Jaenelle, recolheu-se a seu interior, concentrando-se no campo de batalha em que seu corpo se tornara.
Daemon rosnou de frustração ao sentir a picada do anel de honra de Jaenelle. Ainda não conseguia interpretar muito bem todas as informações que podiam ser absorvidas pelo anel. Reconheceu essa sensação específica como um pedido de ajuda, mas não fazia ideia da origem do pedido.
– Está sentindo... – disse, voltando-se para Khardeen.
A perturbação intensa nos olhos de Khary o impediu de continuar.
– Morton – disse Khary baixinho. – E Karla.
Ele correu para a porta, mas Daemon o agarrou.
– Não. Você é necessário aqui.
– Não é assim que as coisas funcionam – disse Khary rispidamente. – Quando um de nós precisa de ajuda...
– Todos mordem a isca? – perguntou Daemon com igual rispidez. – Temos uma rainha grávida que não pode se defender sem correr o risco de abortar. O seu lugar é aqui. Eu cuidarei de Karla... e de Morton. – Examinou Khary. – Quem mais terá recebido o pedido de ajuda?
– Todos os membros do primeiro círculo que vivem na parte ocidental de Kaeleer. No entanto, esses membros irão retransmitir um aviso através de um fio de comunicação aos outros.
– Então transmita esta mensagem ao primeiro círculo o mais rápido possível: “Permaneçam onde estão. Fiquem atentos.” – Daemon fez uma pausa. – “E encontrem Jaenelle.”
– Sim – disse Khary sinistramente. – As rainhas têm de ser protegidas. E ela em particular.
Satisfeito, Daemon saiu da casa correndo e praguejou. Daqui não podia alcançar nenhum dos ventos. Começou a correr pelo caminho de entrada, para logo se virar na direção do som de cascos galopando. Bailarino do Sol deslizou e parou ao lado de Daemon.
*Ouvi seu pedido*, disse Bailarino do Sol. *Precisa viajar pelos ventos?*
– Preciso.
*Eu corro mais rápido. Suba.*
Segurando na crina de Bailarino do Sol, Daemon montou na garupa do príncipe dos senhores da guerra.
Foi uma cavalgada breve, mas atribulada. O garanhão optou pelo caminho mais rápido para alcançar os ventos mais próximos sem se importar com o que havia pelo caminho. As pernas de Daemon tremiam ao deslizar da garupa do Bailarino do Sol. Antes de conseguir proferir uma única palavra, o garanhão girou e partiu.
*Boa luta!*, desejou Bailarino do Sol para ele enquanto galopava velozmente de volta para a casa de Khary e Morghann.
– Não se preocupe – respondeu Daemon com demasiada delicadeza. E, pegando o vento negro, dirigiu-se para Glácia.
Kaelas saltou facilmente para o telhado de uma toca a tempo de ver Morton tombar. Rosnou em silêncio, o desejo de atacar em conflito com o instinto de prudência. Retirando-se para a profundidade de sua joia vermelha, onde não poderia ser detectado pelos machos alados que ali se encontravam, abriu a mente e deixou que uma gavinha psíquica deslizasse na direção de Morton.
Sentiu de imediato o escudo da senhora. Não era um obstáculo. A senhora produzira anéis de honra também para os parentes machos. Por isso, ele dispunha da mesma proteção e podia atravessar o escudo em segurança.
Assim que o fez, percebeu que o corpo de Morton estava sem vida, mas ainda era capaz de senti-lo muito debilmente. Morton era um irmão na corte da senhora e irmãos ajudam uns aos outros. Isso era importante. Por isso, ele o levaria para longe do inimigo e, depois, decidiria o passo seguinte.
Olhando na direção contrária, viu o santuário onde se encontrava o altar das trevas. Próximo dele, havia uma árvore enorme e velha que não voltaria a despertar. Os humanos pálidos deviam tê-la cortado para fazer fogueiras. Agora não precisariam mais dela.
Por meio da arte, abriu a porta do santuário, deixando que batesse devagar, como se não tivesse sido bem trancada. Saltando do telhado, circulou pelos fundos das tocas humanas, caminhando pelo ar para não deixar rastros. Não era por estar invisível devido ao escudo de visão que seria negligente. Aprendera isso com os jogos de “perseguição e ataque súbito” de Lucivar.
Ao pensar em Lucivar, lembrou-se de outra coisa: nunca mostre toda a força que possui ao inimigo até se revelar absolutamente necessário. A sua joia de direito por progenitura era opala. A categoria da joia de Morton era a opala. Sim, isso poderia confundir os machos alados.
Revelando os dentes no que poderia ser descrito como um sorriso felino, Kaelas libertou uma explosão de força opala na árvore tombada. Ela explodiu. Os ramos em chamas voaram em todas as direções. Outra explosão de poder estilhaçou as janelas nas tocas junto ao santuário. Outra explosão de poder lançou para o ar uma quantidade de neve suficiente para formar uma pequena tempestade de neve. A última explosão controlada de poder embateu na porta do santuário.
O príncipe eyrieno dos senhores da guerra de joia verde girara sobre si próprio na primeira explosão, o rosto contorcido de raiva. Outros machos gritavam. Ao ouvir o estrondo da porta do santuário, o eyrieno saiu correndo, rugindo ordens.
– Então, e aquele desgraçado? – gritou um homem.
O príncipe dos senhores da guerra hesitou por um momento.
– Deixem ele. Não vai a lugar nenhum. Consumaremos a morte depois de cuidar de nossas novas visitas.
Kaelas avançou em posição de ataque, usando todos os sentidos para detectar os humanos alados. A grande velocidade, aproximou-se de Morton. Bastou farejar o corpo para recuar, confuso. Morton cheirava a carne envenenada. Não queria fincar os dentes em carne envenenada, mas tinha de levar Morton para longe dos machos alados.
Avançando novamente, roçou o escudo da senhora, sentindo o reconhecimento do anel de honra que ele próprio usava. Colocou um pequeno e apertado escudo opala em volta do braço esquerdo de Morton. Ao agarrar o braço entre os dentes, o escudo opala estava interposto entre Kaelas e a carne envenenada. Satisfeito, fez Morton levitar no ar mediante a arte, estendeu o escudo de visão de modo a cobri-los e correu para as árvores.
Chegando lá, desacelerou ligeiramente, mas só parou ao alcançar a toca escavada por KaeAskavi, que servia de esconderijo. Largando o braço de Morton, examinou a toca. O humano caberia perfeitamente se não fossem as flechas cravadas em seu corpo. Mas a curandeira precisaria delas para remover a seta, não?
Depois de ponderar um pouco, usou a arte para quebrar as hastes ao meio. Aconchegou Morton na toca e colocou as metades partidas a seu lado. Nunca vira os Sangue humanos se tornando demônios-mortos. Não sabia quanto tempo Morton levaria para despertar e reclamar a carne morta. O que sabia com segurança era que, quando Morton despertasse e se visse naquele lugar estranho, poderia pensar que tinha sido posto ali pelo inimigo.
Kaelas pressionou uma pata dianteira na neve junto à cabeça de Morton, deixando uma marca profunda, e protegeu a marca com um escudo para que não fosse apagada sem querer. Assim, Morton veria a marca e compreenderia.
Satisfeito por ter entendido a complicada forma de pensar necessária para lidar com humanos, cobriu a toca, deixando um pequeno orifício de respiração. Um humano morto não precisava de ar, mas o ar fresco indicaria a Morton o lugar mais acessível para sair.
Agora era chegado o momento de cuidar dos machos alados.
Depois de chamar os príncipes dos senhores da guerra e os senhores da guerra arcerianos de joias escuras para se juntarem a ele, Kaelas voltou para a aldeia.
Ignorando a teia de desembarque oficial, Daemon saltou dos ventos o mais próximo possível da casa de Karla. Assim que chegou a uma rua, envolveu-se em um escudo de visão negro, em um escudo psíquico e em um escudo de proteção. Correu durante alguns quarteirões, dobrou uma esquina e parou.
A rua estava cheia de homens lutando. Explosões de poder transmitiam ao ambiente um odor peculiar. Os que já tinham esgotado as joias ou os que nunca as tinham usado lutavam com armas banais. Reparou em algumas mulheres que lutavam desesperadamente, ainda que sem êxito.
Era tão familiar. Não precisava do cheiro de podridão presente em alguns dos odores psíquicos para reconhecer a mão de Dorothea. Vira aquilo muitas vezes em Terreille. Aqueles cuja ambição superava as capacidades venderiam o próprio povo em troca do “auxílio” de Hayll. As lutas eliminariam os machos e as fêmeas mais fortes, os mais capazes de se opor a Dorothea, e os que ficavam...
Desta vez não precisava ser sutil. Desta vez não precisava dançar em volta da agonia que Dorothea lhe infligiria se suspeitasse de sua interferência. Mas a sutileza estava entranhada em Daemon. Além disso, um predador silencioso era o mais temido.
Com um sorriso frio e cruel, Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças e deslizou entre grupos de combatentes – invisível, indetectável –, deixando um rastro de devastação.
Entrou na mansão de Karla. Os combates pareciam ter começado a batalha aqui, espalhando-se em seguida para a rua. Passou por cima de cadáveres, concentrou-se nos odores psíquicos que tinham um cheiro associado a Dorothea, matando esses lutadores tão rapidamente e com uma tal perfeição que seus oponentes ficavam estáticos e aturdidos por um instante.
Um príncipe dos senhores da guerra se debatia para afastar outros machos junto à escadaria, usando as últimas forças de suas joias para se proteger de três homens que tinham começado a lutar e não estavam cansados.
Três golpes de poder negro. Três homens tombados.
Ao começar a subir as escadas, Daemon viu o olhar penetrante de caçador nos olhos do outro príncipe dos senhores da guerra. Um senhor da guerra de joia branca investiu contra ele, forçando-o a se concentrar no inimigo que o atacava.
Daemon aproveitou a oportunidade e continuou a subir as escadas. Mesmo exausto, o príncipe dos senhores da guerra não teria dificuldades com o senhor da guerra, mas ficaria ocupado por mais alguns instantes.
Não era necessário procurar o quarto de Karla. O anel de honra o guiava, a palpitação em seu órgão a irritá-lo o suficiente para aguçar a fúria que já estava no limiar assassino.
A porta estava aberta. Viu uma mulher mutilada num tapete ensopado de sangue. Viu cinco homens que lançavam detonação após detonação de poder contra o escudo que envolvia outra mulher. Karla.
Não sabia quem eram os homens. Não importava. Subindo das profundidades da negra, infiltrou-se sob as barreiras interiores dos homens e libertou uma raiva fria, transformando seus cérebros em pó e consumindo suas forças psíquicas.
Antes mesmo que tombassem, Daemon já estava atravessando o quarto. Ajoelhando-se ao lado de Karla, baixou o escudo de visão e esticou a mão prudentemente. O escudo em volta dela continha uma ânsia mortal.
Sem saber exatamente como atravessar o escudo, e pensando no que poderia libertar se não o fizesse da maneira certa, Daemon respirou fundo e aproximou a mão um pouco mais.
Um tremeluzir de energia na palma da mão. Apreciação. Aceitação.
A mão atravessou o escudo, incólume.
– Karla – disse, ao mesmo tempo que a agarrava pelo braço. – Karla.
O ruído áspero que emitiu ao tentar respirar indicou-lhe que estava viva. Mas se tivesse embarcado num sono curativo tão profundo a ponto de não ouvi-lo...
– Beijinho, beijinho – arquejou Karla.
Daemon se sentiu invadido por um enorme alívio. Inclinou-se para que ela pudesse vê-lo sem precisar mexer a cabeça.
– Beijinho, beijinho.
– Envenenada – sussurrou ele. – Não consigo identificar. Merda.
Afastando o roupão de Karla, Daemon pousou a mão esquerda no seu peito e enviou uma sonda psíquica. Seus conhecimentos sobre arte medicinal eram limitados, mas entendia de venenos. E reconheceu pelo menos uma parte do que estava no organismo dela.
– Tira a mão... do meu... peito – disse Karla.
– Não seja resmungona – respondeu Daemon calmamente, sondando mais fundo. O corpo de Karla estava combatendo muito melhor do que julgaria possível, mas não conseguiria sobreviver sem ajuda adicional. Hesitou. – Karla...
– Tenho... cerca de... três horas. Corpo... não consegue lutar mais...
Viajando pelos ventos negros, ele levara quase duas horas de Scelt até aqui. Pandar e Centauran ficavam mais perto, mas não conhecia Jonah ou Sceron tão bem quanto Khardeen, e não sabia se as curandeiras sátiras ou centauras tinham capacidade para ajudá-lo com esse tipo de veneno.
Além disso, Jaenelle provavelmente iria a Scelt. E isso o fez tomar uma decisão.
– Vou tirar você daqui – disse, pegando-a no colo. Nesse momento percebeu que a mão de Karla ainda segurava o bastão laminado. – Querida, largue o bastão.
– Preciso limpar... a lâmina. Não... guardar arma... sem limpar lâmina. Lucivar... me mata.
Daemon ia dizer algo, mas ao olhar por cima do ombro para a mulher esquartejada, engoliu as críticas que pudesse ter tido quanto aos métodos de treino de Lucivar.
– Eu limpo as lâminas. E prometo não dizer a Lucivar que não foi você.
Os lábios de Karla formaram um sorriso quase imperceptível.
– Você até poderia ser... interessante... se não fosse tão... macho.
– Minha rainha gosta de mim desse jeito – disse Daemon mordazmente.
Fez o bastão laminado desaparecer, levantou Karla com cuidado e se virou.
O mestre da guarda de Karla estava bloqueando a porta.
– O que está fazendo com a minha rainha?
– Tirando-a daqui – respondeu Daemon baixinho. – Foi envenenada. Precisa de ajuda.
– Temos curandeiras.
– Confiaria nelas? – Daemon viu o instante de hesitação. – Não tenho motivo de queixa contra vocês, príncipe. Não me obrigue a passar por vocês.
O outro homem o examinou, concentrando-se no anel de joia negra.
– É o consorte de lady Angelline.
– Sim.
O homem saiu do caminho. Assim que Daemon passou por ele, disse baixinho:
– Por favor, tome conta dela.
– Farei isso. – Daemon se deteve. – Viu Morton?
O mestre da guarda balançou a cabeça. Não havia tempo para pensar em Morton ou no que poderia ter acontecido a ele.
– Se o vir, diga que estou levando Karla a Scelt. Não informe mais ninguém a não ser Morton.
O homem assentiu.
– Venha por aqui. Temos uma carruagem impelida pela arte nos fundos. Chegarão aos ventos mais rapidamente com ela.
O mestre da guarda conduziu a carruagem enquanto Daemon segurava Karla, usando esses preciosos minutos para envolvê-la em escudos negros, de modo a protegê-la durante a viagem pelos ventos. Pararam a alguns centímetros do local onde tinha desembarcado.
– Que as trevas o protejam, príncipe – disse o homem.
– E a vocês.
Segurando Karla nos braços, Daemon tomou o vento negro e viajou diligentemente em direção a Scelt. Parou uma vez, no meio do caminho, para enviar uma mensagem a Khary.
*Estou chegando com Karla. Foi envenenada. Precisamos de uma curandeira e de uma viúva-negra. As melhores que conhecer.*
*Jaenelle está a caminho*, respondeu Khary.
Era tudo o que precisava saber. Voltou ao vento negro e prosseguiu viagem, ciente de que a areia da ampulheta deslizava com demasiada rapidez.
À noite, protegidos por escudos de visão, Kaelas e vinte machos arcerianos se empoleiravam nos telhados das tocas humanas, observando os movimentos dos machos alados pela aldeia. Algumas tocas estavam iluminadas e o cheiro de comida podia ser sentido de longe.
*Carne?*, perguntou um dos senhores da guerra arcerianos.
*Não*, respondeu Kaelas. Sentiu uma onda de raiva percorrendo os outros machos. *A carne está com gosto ruim.*
*Viemos caçar, mas não levaremos carne de volta às tocas?*, perguntou outro macho irritadamente.
*Prometemos à senhora que não caçaríamos humanos*, disse um macho mais jovem, timidamente.
*Esses machos mataram um macho que pertencia à senhora*, disse Kaelas com firmeza. *Mataram os humanos pálidos que pertenciam a lady Karla.*
Outra onda de raiva, desta vez dirigida aos malvados machos alados. Os arcerianos não viam grande utilidade nos humanos, mas gostavam de lady Karla e adoravam a senhora. Por elas, caçariam e voltariam às tocas sem as presas.
O vento mudou ligeiramente, trazendo um odor diferente.
*Levaremos os animais que pertenciam aos humanos pálidos*, disse Kaelas. *Os humanos já não precisam mais deles. Será o pagamento pelo trabalho.*
Ficou contente por ter se lembrado dessa ideia típica dos humanos. Se a senhora se irritasse com ele por ter trazido animais da aldeia dos humanos, poderia argumentar com essas palavras.
*Pagamento pelo trabalho?*, ecoou um par de machos, e um deles logo perguntou: *Isso é coisa de humanos?*
*É. Mataremos esses machos e depois poderemos levar boa carne para as tocas.*
Satisfeitos, os arcerianos se posicionaram para estudar as presas.
Kaelas observou os machos alados durante um minuto.
*Temos de ser rápidos... e silenciosos.*
*Mortes rápidas*, concordaram os outros.
Kaelas observou o príncipe dos senhores da guerra de joia verde vindo na direção de uma toca perto do santuário.
Mortes rápidas... exceto para aquele.
Jaenelle estava à espera quando Daemon chegou à casa de Khary e Morghann.
– Está sangrando demais, mesmo considerando o período da lua – disse abruptamente ao irromper no quarto de hóspedes, seguido por Morghann, Khary e Maeve, a curandeira da aldeia. – Não resta muito tempo.
Jaenelle pousou uma mão no peito de Karla, com os olhos fixos em algo que somente ela podia ver.
– Há tempo – disse, com demasiada serenidade.
Morghann colocou uma camada de toalhas na cama. Daemon lançou a ela um olhar frio enquanto deitava Karla. Estaria mais preocupada com a bela roupa de cama do que com uma amiga que fora envenenada?
– Vai ficar menos incomodada de trocar uma toalha que os lençóis – disse Morghann baixinho, indicando com o olhar que sabia o que ele tinha pensado. E que ficara magoada.
Não havia tempo para pedidos de desculpa. Morghann e Maeve despiram a camisola e o roupão ensanguentados e retiraram com movimentos ágeis o sangue que cobria a pele de Karla. Jaenelle não prestou a menor atenção aos cuidados físicos, permanecendo concentrada no tratamento.
Daemon estava prestes a informá-la sobre o que sabia do veneno quando olhou para a própria manga ensopada de sangue. Foi invadido pelas memórias do momento em que ficou ensopado pelo sangue de Jaenelle. Rasgou o casaco e a camisa. Khary levou a roupa e deu a ele um pano úmido.
Enquanto Daemon limpava o sangue, Jaenelle disse:
– Foram usados dois venenos. Não conheço um deles.
Devolvendo o pano a Khary, Daemon se aproximou da cama.
– Um deles vem de uma planta que cresce apenas ao sul de Hayll.
Jaenelle levantou os olhos inexpressivos e frios.
– Sabe preparar o antídoto? – perguntou com uma calma tão incomum que o alarmou.
– Sei, mas as ervas de que disponho já têm muitos anos. Não sei se ainda mantêm o vigor.
– Eu consigo aumentar o vigor delas. Prepare o antídoto, Daemon.
– E quanto ao outro veneno? – perguntou enquanto começava a preparar um espaço de trabalho na mesinha de cabeceira.
– É sangue-de-feiticeira.
Sentiu um calafrio. O sangue-de-feiticeira crescia apenas no local onde uma feiticeira tivesse sido assassinada de forma violenta. Era mortal se usado como veneno. Além disso, era quase imperceptível.
– Consegue detectá-lo? – perguntou Daemon, cautelosamente.
– Consigo detectar o sangue-de-feiticeira seja qual for a forma em que se apresente – respondeu Jaenelle, com a voz de meia-noite.
Foi assolado por outra memória. Jaenelle diante do canteiro de sangues-de-feiticeira que plantara no recanto da propriedade dos Angelline. Sabia que, se você cantar a melodia certa, elas lhe dizem os nomes das que já morreram?
Mesmo secas e transformadas em veneno, as plantas diriam à feiticeira os nomes das que partiram? Trancando as memórias, bem como o coração, Daemon se concentrou na elaboração do antídoto.
– Maeve – disse Jaenelle –, prepare alguns emplastros. Precisaremos extrair um pouco do veneno. Morghann, quero que saia do quarto. Não volte aqui por razão alguma até eu dizer.
– Mas...
Jaenelle se limitou a olhar para Morghann, que saiu rapidamente do quarto.
– Posso ficar? – perguntou Khary serenamente. – Vocês três estarão concentrados no tratamento. Vão precisar de um par de mãos livres para pegar coisas.
– Isso não vai ser fácil, lorde Khardeen – disse Jaenelle.
Khary empalideceu ligeiramente.
– Ela também é minha irmã.
Jaenelle assentiu, e então se debruçou sobre a cama, dizendo num tom de voz tão baixo que Daemon tinha certeza de que fora o único a ouvir:
– Braços ou pernas, Karla?
Se obteve uma resposta, foi privada. De irmã para irmã. Mas foi o início de uma cura tão horrível que Daemon desejou ardentemente nunca mais voltar a testemunhar nada do tipo.
Kaelas ouviu os sons que vinham do quarto e rosnou baixinho. O príncipe eyrieno dos senhores da guerra de joia verde estava acasalando com a fêmea pálida, a jovem sacerdotisa. Os gritos da fêmea o perturbavam. Não se pareciam com os sons que a senhora emitia quando estava com Daemon. Havia medo e dor.
Estava prestes a atravessar o escudo verde que o macho erguera em volta do quarto, praticamente decidido a retribuir a morte de Morton com uma morte rápida em vez do tipo de morte que ele merecia, quando a fêmea gritou:
– Mas eu ajudei você. Eu ajudei!
Recordando-se da gatinha de KaeAskavi, que agora era órfã, e de todos os outros humanos pálidos que pertenciam a lady Karla e estavam mortos, Kaelas recuou um passo. A fêmea maculara sua própria toca, deixara entrar carne envenenada. Merecia esse macho alado como parceiro.
Com cuidado para não perturbar o escudo verde e alertar o macho, colocou um escudo vermelho em volta do quarto, aprisionando os humanos. Adicionou um escudo psíquico vermelho para que o macho não fosse capaz de advertir os outros machos alados ao perceber que estava preso.
Saindo sorrateiramente do edifício, Kaelas se deteve e escutou. Os machos alados eram em maior número do que os felinos, mas isso não importava. O príncipe dos senhores da guerra de joia verde era o único que usava uma joia mais escura, e estava aprisionado. Entre os felinos presentes, Kaelas era o único que usava uma joia vermelha, mas os escudos das joias opala, verde e azul-safira que os restantes usavam serviriam para protegê-los enquanto atacavam com unhas e dentes.
*Agora*, disse Kaelas.
Silenciosos, invisíveis, os felinos começaram a caçada.
Lucivar e Falonar se mantiveram a uma distância prudente enquanto observavam as mulheres no treino de arco e flecha. Hallevar estava alguns centímetros atrás das mulheres, dando instruções que podiam ser ouvidas tão nitidamente quanto o som do embate de bastões que vinha do campo de treinamento.
O tempo mudara durante a noite, trazendo a promessa reconfortante da primavera. Não seria duradouro, mas, enquanto durasse, Lucivar pretendia que as mulheres treinassem duas horas todas as manhãs. Esta era a primeira vez que, de fato, estavam treinando com um alvo. Seria divertido observá-las, se não estivesse tão irritado.
Passara-se um dia e meio desde que a ordem de Daemon para que permanecessem onde estavam fora retransmitida pelo primeiro círculo, ordem esta reforçada por Jaenelle duas horas depois. A única mensagem adicional que recebera fora igualmente sucinta: Karla havia sido envenenada e Morton estava desaparecido.
Teria ignorado a ordem se Daemon não estivesse junto de Jaenelle. Porém, sabia que se havia alguém capaz de proteger a rainha melhor do que ele próprio, esse alguém seria o Sádico.
Por isso ficara... e observara... e aguardara. Falonar bufou quando um borrão de flechas tentou pateticamente alcançar os alvos.
– Acha mesmo que vão conseguir? – perguntou, em dúvida.
Lucivar resfolegou.
– Nos seus primeiros meses nos campos de caça, você não conseguia acertar nada menor do que a encosta de uma montanha.
Falonar o encarou.
– Mas não fiquei me queixando por causa do tempo perdido, que poderia ter sido usado para arejar a roupa de cama. Para que fingir que elas são capazes de usar um... Merda. – Uma mulher com o arco já carregado começou a se virar para Hallevar enquanto ele prosseguia com as instruções. Hallevar deu um salto e a empurrou de modo que a flecha cruzasse a relva e não uma das mulheres a seu lado.
Lucivar e Falonar estremeceram diante dos palavrões que Hallevar usou para explicar aquele pequeno erro.
– Está vendo? – perguntou Falonar.
– O que realmente o está incomodando? – perguntou Lucivar.
Falonar arrastou a bota no chão.
– Se não formos os guerreiros e os protetores, não nos resta muito a oferecer. E isso não é fácil de engolir.
– Sabe cozinhar? – perguntou Lucivar, impassível.
Falonar o fulminou com o olhar.
– Mas é claro que sei cozinhar. Qualquer eyrieno que tenha frequentado os campos de caça sabe preparar uma refeição rudimentar.
Lucivar assentiu.
– Então se acalme. Só porque uma mulher é capaz de caçar seu próprio jantar não significa que lhe vão crescer colhões. Assim como seu peito não vai crescer só porque saber cozinhar. – Viu Surreal acertando a flecha no anel exterior do alvo e sorriu. – Quer ir lá e dizer a ela que acha que não consegue manejar um arco?
– Não, pelo menos não enquanto ela tiver uma arma nas mãos – resmungou Falonar.
Deram um salto ao ouvirem o grito de uma mulher. Lucivar se tranquilizou ao reparar na forma como Hallevar massageava a boca com a mão e a mulher massageava furtivamente o peito direito com o braço.
– Cinco minutos de treino livre – gritou Hallevar antes de correr na direção dos outros dois homens.
– O que aconteceu? – perguntou Falonar.
– Maldição – disse Hallevar, não conseguindo deixar de sorrir. – Não me lembrei de avisá-las porque... Fogo do Inferno, nunca precisei pensar nisso antes. Como poderia adivinhar que um peito pode ficar preso na corda de um arco?
– Preso na... – Falonar olhou para as mulheres, que estavam todas olhando para eles com raiva. Baixou os olhos e pigarreou várias vezes. – Aposto que dói.
Lucivar sentiu cãibras nos maxilares devido ao esforço para não rir.
– Sim, com certeza deve doer. Não me lembrei de avisar Marian quando ensinei a ela, mesmo já tendo treinado Jaenelle. Marian tem... um pouco mais de peito.
Falonar engasgou. Hallevar se limitou a assentir, solene.
– É um jeito elegante e respeitoso de colocar a questão, especialmente quando temos ali um grupo de mulheres que podiam ficar cegas de raiva e atingir alguma coisa se fizesse um comentário equivocado.
– Tem razão – disse Lucivar, com sarcasmo.
Antes que o primeiro grito de pânico fosse abafado por brados enfurecidos, Lucivar já estava correndo na direção do campo de treinamento. Saltou o muro baixo de pedra que separava os dois campos. Seu coração gelou ao ver Kaelas dando um golpe num príncipe eyrieno dos senhores da guerra de joia verde, abrindo-lhe a parte de trás da coxa. Ficou ainda mais preocupado quando viu Rothvar e Zaranar correndo na direção do estranho com as armas em riste.
*NÃO!*, gritou num fio masculino. *Corto fora a cabeça do homem que erguer uma arma!*
Eles pararam repentinamente, debatendo-se entre o choque da ordem e a fúria. No entanto, os dois, assim como os homens que estavam no campo de treinamento, obedeceram.
– Ajudem-me! – berrou o desconhecido ao mesmo tempo que investia com a espada de guerra contra Kaelas, tentando manter o felino à sua frente, enquanto retrocedia, mancando, na direção dos outros homens. – Malditos sejam nas entranhas do Inferno, me ajudem!
Lucivar se virou e olhou para as mulheres.
*Marian, leve as mulheres para nossa casa na colina. Feche as cortinas.*
*Lucivar, o que...*
*Agora!*
Caminhou a passos largos até o círculo de homens, seguido de perto por Falonar e Hallevar. Sentiu certa satisfação ao observar a facilidade com que Kaelas se esquivava das tentativas de contra-ataque do homem. O que diriam os outros homens se soubessem que fora Lucivar quem ensinara o felino a se movimentar diante de armas dos humanos?
Assim que o homem se pôs em posição de combate, Kaelas atacou. A velocidade e o peso bruto da investida derrubaram o homem, arrastando-o vários metros para trás. As garras rasgaram os ombros do eyrieno e desceram pelos braços, inutilizando-os. O gato se afastou com um salto e começou a andar lentamente em volta do homem, que mal conseguia ficar de pé.
Falonar olhou para trás e praguejou baixinho, mas com ferocidade. Virando-se e abrindo as asas para ocultar o campo de treinamento, resmungou:
– Saia daqui com as outras mulheres.
– Não me venha com essa... Ah, merda! – disse Surreal ao driblar Falonar e conseguir ver com clareza o homem e o felino.
Kaelas prosseguiu, quase como se estivesse de brincadeira, infligindo feridas superficiais que iriam levar a presa a se esvair em sangue, aos poucos. Continuou até o eyrieno desconhecido abrir as asas feridas e tentar voar. O gato saltou com o homem e pousou com delicadeza. O homem, com as costas rasgadas, caiu pesadamente.
– Mãe Noite – sussurrou Surreal. – Ele está brincando com aquele homem.
– Está brincando – disse Lucivar sinistramente ao mesmo tempo que suas entranhas se contorciam –, mas não é um jogo. É uma execução arceriana.
Surreal compreendeu antes de Falonar. Lucivar viu o rosto da mulher ficando tenso, e percebeu que seus olhos estavam repletos de um frio interesse profissional.
– Yaslana – alertou Falonar.
Lucivar sentiu a tensão crescente nos outros homens e soube que não demoraria muito até um deles desobedecer a ordem de Kaelas e se juntar à “luta”. Começou a se aproximar. Kaelas devia ter sentido o mesmo, pois as brincadeiras acabaram. O eyrieno desconhecido gritou enquanto as garras dilaceravam seu peito e coxas até o osso.
– Kaelas – disse Lucivar com firmeza –, já...
Sentiu a crepitação de energia da joia vermelha no momento em que as garras voltaram a investir. O objeto voou na direção de Lucivar tão depressa que ele só teve tempo de apanhá-lo instintivamente, para que não se chocasse contra seus peito. Durante um ou dois segundos, Lucivar fitou a cabeça que fora decepada na base do pescoço. E deixou-a cair.
– Mãe Noite! – disse Surreal baixinho.
A mão direita do eyrieno, com o anel de joia verde, rasgou o ar e caiu com um baque ao lado da cabeça. Com uma raiva gutural, Kaelas rosnou enquanto dilacerava o homem para, em seguida, defecar no abdômen aberto dele. Por fim, se afastou do corpo e olhou para Lucivar.
*Deixe-o como está.*
Lucivar tentou engolir. Deliberadamente, Kaelas não consumara a morte.
*Por quê?*
*Assassinou Morton*, respondeu Kaelas, esforçando-se ao tentar usar um fio de comunicação que pudesse ser ouvido por todos os humanos presentes. *E matou os humanos pálidos que pertenciam a lady Karla.*
Lucivar sentiu uma torrente de fúria, um fogo purificador.
*Onde?* Em sua mente surgiu uma imagem nítida o bastante para permitir que identificasse o local. *Obrigado, irmão*, disse, usando um fio masculino dirigido especificamente ao felino.
Kaelas saltou, apanhou os ventos e desapareceu.
– Já fiz muitas coisas trabalhando como assassina – disse Surreal, prendendo o cabelo atrás das orelhas –, mas nunca caguei num corpo. É algum tipo de excentricidade felina?
– É a forma de os arcerianos mostrarem desdém pelo inimigo – respondeu Lucivar, olhando para Falonar, que parecia estar se esforçando para não vomitar. Bastou um rápido olhar para confirmar que a maioria dos homens estava na mesma situação, apesar da experiência de batalhas. – Não sei quem é ele. E você?
Falonar balançou a cabeça.
– Eu sei – disse Rothvar com dificuldade, chegando mais perto. – Quando soube que ia imigrar para Kaeleer, me ofereceu uma posição em sua companhia. Disse que não ia lamber as botas de nenhuma vagabunda, que estaria governando um belo pedaço de terra em menos de um ano. Nunca simpatizei com ele, por isso recusei. Mas... – Olhou rapidamente para a cabeça, e logo desviou o olhar. – Ouvi... acho que ouvi... O gato estava falando a verdade?
– Ele não mentiria. – Lucivar respirou fundo. – Falonar, escolha quatro homens para nos acompanharem.
Olhando ao redor, ele percebeu que Surreal não estava mais ali. Falonar se virou também e praguejou:
– Maldição, provavelmente ela deve estar vomitando por aí...
No entanto, Surreal saltou o muro baixo de pedra e veio caminhando na direção dos homens, com um grande balde de metal na mão. Como todos ficaram olhando para ela, ela se dirigiu a Lucivar, de modo mordaz:
– Estava pensando em levar aquela coisa debaixo do braço até o senhor supremo?
Lucivar sorriu relutantemente.
– Obrigado, Surreal.
Bufando, Surreal lançou a cabeça e a mão para o balde e o cobriu com um pedaço de pano escuro. Os homens recuaram. Surreal rosnou para eles. Percebendo a cautela nos olhos de Falonar, Lucivar disse:
– Cumpra as ordens que lhe foram transmitidas, príncipe.
Falonar e Rothvar foram embora com mais rapidez do que discrição.
– “Vomitando por aí.” Aposto que nunca fez nada parecido num campo de batalha. – disse Surreal com uma ponta de amargura.
– Não o condene precipitadamente – disse Lucivar, sereno. – Ele não está habituado a mulheres como você.
Surreal se virou.
– E que tipo de mulher eu seria?
– Uma feiticeira Dea al Mon.
Devagar, surgiu um genuíno sorriso.
– Suponho que devia ter tido mais tato. – Acenou com a mão para o balde e hesitou. – Gostaria de acompanhá-lo.
– Não. Quero que fique aqui com as outras mulheres.
Surreal semicerrou os olhos.
– Por quê?
– Porque você usa a cinza e confio em você. – Aguardou até se certificar de que Surreal compreendera. – Minha casa na colina está protegida com escudos cinza-ébano, mas Marian sabe penetrá-los. Não deixe entrar ninguém que ela não reconheça, seja pelo motivo for. Voltarei assim que possível.
Surreal assentiu.
– Está bem. Mas tenha cuidado. Se você se machucar, vou lhe dar uma surra.
Lucivar aguardou até Surreal já não conseguir mais ouvi-lo e acenou para Hallevar, que se aproximou.
– Mande Palanar à casa da minha mãe. Ele deve trazer lady Luthvian para minha casa na colina sem mais demoras.
Hallevar mudou de posição, desconfortável.
– Ela vai reclamar.
– Diga que é uma ordem do príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih – disse Lucivar. – Quero que fique de olhos abertos. Se vir, ouvir ou detectar algo que não for de seu agrado, mande um dos rapazes à fortaleza e outro ao Paço para buscar ajuda. A alcateia também ficará de vigia. Se notar alguém que não more nas redondezas, mesmo que o conheça bem de Terreille, encare-o como inimigo. Compreendido?
Assentindo com a cabeça, Hallevar partiu para tratar de suas obrigações.
Pouco tempo depois, Lucivar e cinco de seus homens voavam em direção à fortaleza.
Lucivar pousou o balde de metal na outra ponta da mesa de trabalho e observou Saetan derramando sangue fresco numa tigela de líquido fervilhante.
– Pensei que estava no Paço, aguardando notícias.
– Draca me pediu que viesse – respondeu Saetan, mexendo lentamente o conteúdo da tigela. – O que o traz aqui?
– Morton morreu.
A mão de Saetan se deteve por um instante para logo retomar o movimento.
– Eu sei.
– Está no reino das trevas?
– Não, está aqui. Foi por isso que Draca pediu que eu viesse. Ele veio reportar.
Lucivar começou a andar para trás e para a frente, inquieto.
– Ainda bem. Vou falar com ele antes que...
– Não.
O tom implacável da voz de Saetan o deteve por um instante.
– Não me importa se agora ele é demônio-morto.
– Mas ele se importa. – A voz de Saetan abrandou. – Não quer vê-lo, Lucivar. A nenhum de vocês.
– E por que não, em nome do Inferno? – gritou Lucivar.
Saetan rosnou.
– Acha que é fácil fazer a transição? Acha que tudo será igual para ele? Está morto, Lucivar. É um jovem que já não terá oportunidade de realizar atos grandiosos, que já não é quem era nem o que era. Existem razões para que os mortos permaneçam, a maior parte do tempo, entre os mortos.
Lucivar continuava a andar.
– Não é que o primeiro círculo não esteja habituado ao convívio com demônios-mortos.
– Você não os conheceu quando caminhavam entre os vivos – disse Saetan, com serenidade. – Não havia laços que precisassem ser cortados. É verdade, os laços precisam forçosamente ser cortados – disse, sobrepondo-se ao protesto de Lucivar. – Os vivos precisam seguir em frente. Assim como os mortos. Se não consegue respeitar isso, pelo menos respeite o fato de Morton precisar de tempo para se adaptar antes de ter de enfrentá-lo.
Lucivar rogou pragas.
– Qual é a gravidade...?
Saetan pousou a colher e foi até o lado oposto da mesa.
– As feridas não são visíveis quando está vestido. Na verdade, não teriam sido fatais se as flechas não estivessem envenenadas.
– Envenenadas – repetiu Lucivar enquanto olhava para o balde.
– Não há muito que Morton poderia dizer. Até mesmo o que sabe não nos ajuda muito.
Lucivar apontou para o balde.
– É possível que encontre as respostas aí.
Saetan levantou o pano escuro, olhou para dentro do balde e deixou o pano cair.
– Kaelas – informou Lucivar, respondendo à pergunta tácita.
– Compreendo – disse Saetan calmamente. – Vai voltar a Ebon Rih?
Lucivar balançou a cabeça.
– Vou com alguns homens ao altar das trevas em Glácia para dar uma olhada, ver se encontro algumas respostas.
– A ordem da nossa rainha foi bastante explícita – lembrou Saetan, com serenidade.
– Vou arriscar que ela fique furiosa comigo.
Saetan assentiu.
– Então, como administrador da corte, solicito oficialmente que se dirija ao altar das trevas em Glácia para esclarecer o acontecido.
– Não preciso me esconder atrás do seu título – retrucou Lucivar.
Saetan sorriu com frieza.
– Estou fazendo isso tanto por Jaenelle como por você. Desse jeito, ela poderá recuar de um confronto com você por ter desobedecido a uma ordem direta.
– Hmm. Nesse caso...
– Anda logo, garoto. Depois vá se reportar a mim no Paço. E, príncipe Yaslana – acrescentou Saetan quando Lucivar já estava à porta –, lembre-se de que Glácia não é seu território. Você não é a lei por lá.
– Sim, senhor, não me esquecerei. Vamos apenas observar e relatar.
Atenta ao olhar reservado de Marian e à forma como Luthvian conseguia transmitir silenciosamente sua desaprovação pela escolha de esposa do filho, Surreal se perguntou quanto Lucivar ficaria irritado se levassem sua mãe para o jardim e a usassem como alvo durante o treino.
– Como é que consegue fazer alguma coisa esta manhã? – perguntou Nurian, a curandeira assistente, aceitando um bolinho de avelã da travessa que Marian estava fazendo circular. – Melhor, como é que consegue fazer o que quer que seja depois desses treinos matinais?
– Ah! – exclamou Marian com um sorriso tímido –, já estou acostumada e...
– Você é curandeira – interrompeu Luthvian, olhando friamente para Nurian. – O fato de sentir dificuldade em praticar uma arte exigente depois desses treinos é compreensível. Mas não servem de desculpa para negligenciar seus deveres na arte caseira. Afinal de contas...
– Com licença, por favor – disse Surreal, puxando Luthvian para que se levantasse. – Lady Luthvian e eu temos um assunto a tratar.
– Me solte – resmungou Luthvian enquanto Surreal a arrastava para fora da sala. – Não se deve tratar uma curandeira viúva-negra como se fosse uma...
– Uma feiticeira doméstica? – completou Surreal com doce veneno enquanto empurrava Luthvian para o jardim.
– Exatamente – respondeu Luthvian de maneira sombria. – Mas não acho que uma prostituta...
– Cala a boca, vagabunda – disse Surreal com serenidade exagerada.
Luthvian inspirou ruidosamente.
– Você está se esquecendo do seu lugar!
– Não, querida, é justamente isso que eu não estou esquecendo. Você pode pertencer a uma casta superior, mas minhas joias são superiores às suas. Acho que isso equilibra as coisas, pelo menos no seio da família. Você não gosta de mim e eu não gosto de você.
– Não é sensato enfurecer uma viúva-negra – disse Luthvian, suavemente.
– Do mesmo modo, não é sensato enfurecer uma assassina. – Surreal sorriu ao ver Luthvian arregalando os olhos. – Por isso, vamos simplificar a questão: se fizer de novo algum comentário depreciativo sobre Marian, vou bater com a sua cara na parede até entrar algum bom senso na sua cabeça.
– O que acha que Lucivar diria sobre isso? – A voz de Luthvian parecia segura, mas havia dúvida em seus olhos.
– Não acho que Lucivar teria algo a dizer, pelo menos não a mim.
Ao ver a estocada verbal acertar no alvo, sentiu uma compaixão momentânea por Luthvian. A mulher afastava as pessoas, mas depois parecia ficar perplexa por se ver sozinha.
– Ele podia ter arranjado coisa melhor – protestou Luthvian. – Não precisava se contentar com uma feiticeira doméstica de joia violeta.
Surreal observou Luthvian.
– Isto não tem nada a ver com Lucivar, não é? Você é que está envergonhada porque seu filho se casou com uma feiticeira doméstica. Marian é uma mulher doce e carinhosa que o ama e cuja presença o faz feliz. Se ele tivesse se casado com uma curandeira viúva-negra e fosse infeliz, bem, isso não importaria, porque teria casado com uma mulher digna de um príncipe dos senhores da guerra, não é? – Além disso, acrescentou em silêncio, o senhor supremo aprova a escolha do filho, o que levou Surreal a desconfiar que era essa a razão principal da desaprovação de Luthvian. – Lembre-se do que eu disse, Luthvian.
– Só porque o senhor supremo tolera que use o nome SaDiablo, isso não muda o que você foi... e ainda é – disse Luthvian, sordidamente.
Surreal olhou por cima do ombro.
– Não, não muda. É bom você se lembrar disso também.
Lucivar sentiu o formigamento do poder residual no instante em que saiu da teia de desembarque. Enquanto os demais eyrienos olhavam atônitos para os cadáveres, ele manteve os olhos na neve batida, alguns centímetros à sua frente.
– O que foi? – perguntou Falonar, evitando igualmente o lugar.
– Foi aqui que Morton morreu – disse Lucivar baixinho.
– Não foi o único – disse Rothvar sinistramente, olhando para os cadáveres maltratados dos eyrienos.
– Não, não foi o único – respondeu Lucivar. Mas foi o único que vi crescer de jovem respeitável até se tornar um homem excepcional. – Rothvar, você e Endar...
Se não tivesse vivido com parentes durante os últimos oito anos, jamais teria detectado o odor psíquico específico... e nunca notaria a presença dos felinos arcerianos até ser tarde demais.
Passou os olhos pelos telhados da aldeia de uma forma descontraída, ao mesmo tempo que se recolhia nas profundidades de sua joia cinza-ébano e sondava a área. Oito arcerianos. Dois deles eram príncipes dos senhores da guerra. Todos usavam joias escuras.
– Não peguem nas armas – disse Lucivar, mantendo um tom de voz baixo e sem variações. – Temos companhia. – Movendo-se devagar, soltou a curta capa de lã, abrindo-a para mostrar a joia cinza-ébano que pendia da corrente em volta do pescoço. Levantou os braços, afastando-os das armas. – Sou Lucivar Yaslana – disse em voz alta. – Pertenço à senhora. E esses machos me pertencem.
*Não consigo detectar nada*, disse Falonar num fio masculino safira.
*Normalmente, os parentes não anunciam sua presença*, disse Lucivar, friamente. *Especialmente os arcerianos.*
*Mãe Noite!* Falonar olhou para os cadáveres maltratados dos eyrienos. *Os gatos ainda estão por aqui? Quantos?*
*Oito. Vamos torcer para que concluam que somos amigos ou teremos um grande problema.*
Lucivar aguardou até que os braços começaram a doer. Por fim, sentiu um toque psíquico cauteloso.
*Você é irmão de Kaelas*, disse uma voz que era ao mesmo tempo um rosnado.
*E Kaelas é meu irmão*, respondeu Lucivar. Baixou os braços.
*Por que estão aqui?*, perguntou o felino.
*Para prestar testemunho à senhora.*
Uma longa pausa se deu.
*Kaelas disse para tomarmos conta deste local para que mais nenhuma carne estragada atravesse o portão.*
Lucivar esperou que os felinos que o observavam julgassem que o arrepio se devera ao frio e não à referência aos eyrienos como “carne estragada”.
*Kaelas é sensato.*
*Vocês olham e depois vão embora.*
Não era uma pergunta. Lucivar se virou para seus homens. Levantou a voz para se certificar de que o felino arceriano mais próximo pudesse ouvir as ordens.
– Ergam escudos básicos.
Cinco homens olharam para ele perplexos, seguindo-se uma rápida compreensão. Foram envolvidos por escudos protetores.
*Esses escudos conseguirão nos proteger?*, perguntou Falonar a Lucivar, usando um fio safira para que os outros homens não o conseguissem ouvir.
*Não*, respondeu Lucivar laconicamente. *Armas em riste. Invocou sua espada eyriena e assentiu quando os outros seguiram o exemplo.*
– Kohlvar, você e Endar ficam de guarda na teia de desembarque. Rothvar e Zaranar, vão pelo lado esquerdo da aldeia. Falonar, venha comigo. – *Se algum arceriano surgir, mostrem-lhe a mesma reverência que mostrariam diante de outro guerreiro*, acrescentou num fio masculino geral.
Moveram-se devagar, com cautela, com a consciência absoluta de que os felinos observavam todos os movimentos, todos os gestos.
– Como é que aqueles gatos conseguiram matar tantos eyrienos sem que ninguém fizesse soar um alarme? – perguntou Falonar baixinho, depois de terem verificado metade das casas no lado da aldeia de que estavam incumbidos. Era óbvio que a maior parte dos homens não suspeitara de nada até serem atacados.
– Quando um arceriano caça, normalmente não nos damos conta da sua presença até nos matar – respondeu Lucivar, distraído, passando os olhos rapidamente por outra casa. Havia indícios de pequenas lutas em todas as casas, mas foram glacianos contra eyrienos. – Isso faz deles extremamente eficientes.
Quando chegaram aos aposentos no santuário, ficaram estarrecidos com a visão da sacerdotisa – ou do que restava dela.
– Fogo do Inferno – disse Falonar, recuando enquanto era dominado por uma sensação de repugnância. – Bem, acho que o estupro coletivo é um tipo de execução lenta. Mas por que só mantiveram esta? E por que espancá-la até a morte quando o que tinham feito já seria suficiente para matá-la?
– Porque as outras mulheres lutaram, enquanto esta esperava um tipo diferente de recompensa – respondeu Lucivar. Quando Falonar o fitou com os olhos cheios de horror, Lucivar deu uma gargalhada, grave e sórdida. – Você passou tempo suficiente nas cortes terreillianas para saber como se sujar, príncipe Falonar. Aquele desgraçado de joia verde teve de contar com a ajuda de alguém para atravessar o portão de volta a Terreille ... ou, pelo menos, para evitar que a velha sacerdotisa percebesse que o portão estava sendo usado sem seu conhecimento ou consentimento. Quanto ao espancamento, imagino que quando o desgraçado percebeu que estava aprisionado, precisou descarregar em alguém.
– O gato não o torturou o bastante – disse Falonar, afastando-se do quarto. – Nem de perto.
Imagino que o senhor supremo saberá extrair o pagamento final pela dívida, pensou Lucivar, mas não disse isso a Falonar.
Quando estavam quase saindo do santuário, Zaranar acenou para que se aproximassem.
– Rothvar está na porta dos fundos – disse Zaranar, agitado. – Acho que é melhor você cuidar disso. Nós vigiaremos as portas – acrescentou depressa.
Antes que Lucivar conseguisse dar um passo, Kohlvar enviou uma mensagem urgente.
*Príncipe, há um glaciano na teia de desembarque que diz ser o mestre da guarda de lady Karla. Está acompanhado de quarenta guardas.*
*Diga a ele para não sair daí*, respondeu Lucivar rispidamente enquanto se dirigia com Falonar para os fundos da casa. *Falarei com ele daqui a pouco.*
Antes de chegar à porta dos fundos, ouviu rosnados nervosos que vinham de dentro da casa. Rothvar se afastou. Lucivar se preparava para entrar, mas parou abruptamente.
O senhor da guerra arceriano tinha praticamente atingido a maturidade, por isso não restava muito espaço na diminuta cozinha para um gato daquele tamanho andar de um lado para outro. Na mesa, havia uma estranha variedade de comidas. No chão, jazia uma cabra, morta.
Quando Lucivar deu um passo na direção da cabra, o felino saltou para cima da presa e rosnou.
*Minha*, disse o gato.
– Tudo bem – respondeu Lucivar serenamente.
O felino parecia intrigado pelo rápido consentimento.
*Pagamento pelo trabalho.*
Interessante, pensou Lucivar. Os parentes estão aprendendo conceitos humanos?
– Uma vez que está vigiando este lugar em vez de caçando, é justo que seja pago com carne.
Relaxando ligeiramente, o felino olhou para a mesa, assim como Lucivar. Não havia nada ali que se adequasse ao gosto de um felino.
– Isso também é pagamento pelo trabalho?
*Comida dos humanos.* Pelo tom que usou, parecia mais questionamento.
– Sim.
*Uma gatinha gostaria dessa comida?*
Lucivar coçou o queixo.
– Não sei.
O felino soltou um rosnado, mas o som expressava desânimo.
*Queimamos carne para ela, mas ela não quis.* Torceu o focinho para indicar o que pensava sobre arruinar um belo pedaço de carne, cozinhando-o. *Prometi levar comida de humanos.*
Um arrepio percorreu as costas de Lucivar.
– Uma criança sobreviveu?
*Sim. A gatinha. A amiga de KaeAskavi.* O gato o examinou, perguntando em seguida, de modo hesitante: *Você vai ajudar?*
Lucivar piscou os olhos para conter as lágrimas, que poderiam confundir o felino.
– Sim, é claro.
– Agimos corretamente? – perguntou Daemon enquanto caminhava pelo ar com Lucivar, em direção ao local considerado a teia de desembarque oficial.
Não faziam assim apenas para não afundar até a cintura na neve. As pegadas poderiam indicar ao inimigo a localização das tocas arcerianas.
– O que mais poderíamos fazer? – respondeu Lucivar, abatido. – A moça perdeu a mãe, a aldeia, todos que conhecia. KaeAskavi é o único amigo que lhe resta. Há focos de combates por toda a Glácia, por isso levá-la a outra aldeia... Não temos como garantir que sobreviveria a um novo ataque. Marian e eu íamos levá-la para viver com a gente, mas...
Daemon balançou a cabeça.
– Tem razão. Ela não aguentaria o convívio com eyrienos neste momento. – E fora sobretudo por isso que Lucivar insistira que Daemon o acompanhasse a Arceria.
– E não podemos levá-la para nenhum outro lugar – acrescentou Lucivar, tristemente. – Primeiro precisamos descobrir se o ataque foi tramado por lorde Hobart com o objetivo de voltar a controlar Glácia ou se foi mais do que isso. Você disse que a moça estava fisicamente bem.
– Torceu um pé, mas as curandeiras arcerianas dispõem da arte para tratar de membros feridos. Além disso, estava... ilesa.
Não conseguia dizer a palavra “estupro”. Jamais se esqueceria do pânico que tomara conta de si ao rastejar para a toca e ver Della. A Della de cabelo louro, de olhos azuis, com 10 anos. Não era em nada parecida com Jaenelle, exceto na tez, mas isso bastara para que as memórias do que acontecera em Chaillot treze anos antes voltassem e o invadissem. Suas mãos tremiam ao examiná-la em busca de ferimentos, enquanto usava uma delicada sonda psíquica para responder a essa questão em particular. As mãos não deixaram de tremer ao ver que Della agarrava um gato de pelúcia com uma das mãos e, com a outra, um punhado de pelo de KaeAskavi, o que significava que o gato tinha estado literalmente em cima dela. Foi a forma como se agarrou a KaeAskavi que o forçou a deixá-la naquele lugar. Ela precisava se sentir segura para sarar. E parecia óbvio que se aconchegar a 150 quilos de músculos e pelo lhe dava uma enorme sensação de segurança.
Lucivar pousou uma mão no ombro de Daemon.
– Algumas semanas entre os arcerianos não irão prejudicá-la. Pelo menos assim, poderá usufruir de “cuidados maternais” sem ter a sensação de que está deixando alguém ocupar o lugar da mãe.
Daemon assentiu.
– Vai voltar a Ebon Rih? – Pretendia se dirigir à fortaleza, pois Jaenelle estava a caminho com Karla e Morghann.
Lucivar balançou a cabeça.
– O senhor supremo pediu que o informasse no Paço. Esta excursão inesperada adiou o relatório alguns dias, por isso é melhor eu ir logo antes que ele me faça em pedaços.
– Eu vou com você.
Ao chegarem ao local onde poderiam apanhar os ventos, Lucivar hesitou.
– Como está Karla? Não tive oportunidade de vê-la antes de partirem para a fortaleza.
Daemon fixou o olhar na neve lisa.
– Vai sobreviver. Jaenelle acha que consegue tratar as pernas dela para que volte a andar.
– Jaenelle acha que consegue? – Lucivar empalideceu. – Mãe Noite, Daemon. Se Jaenelle não tem certeza, o que fizeram...?
– Não queira saber – respondeu Daemon, ríspido. Esforçou-se para abrandar o tom de voz. – Não... quero falar sobre isso. – Mas era Lucivar que estava perguntando, por isso fez um esforço. – Não existe antídoto para o sangue-de-feiticeira. O veneno precisou ser levado para uma parte do corpo de modo a salvar os órgãos internos, e depois extraído. Provocou a... morte de boa parte do músculo, que teve de ser...
Sentiu o estômago revirando ao recordar os membros atrofiados que tinham sido pernas saudáveis.
– Deixa pra lá – disse Lucivar, com gentileza. – Deixa pra lá.
Ambos respiraram fundo. Por fim, Daemon disse:
– Quanto mais rápido apresentarmos nossos relatórios, mais rápido poderemos voltar a nossos lares.
Para Daemon, o lar não era um lugar, era uma pessoa. E, naquele momento, ele precisava saber que Jaenelle estava em segurança.
– Kartane enviou um relatório. – Dorothea escolheu zelosamente um pedaço de fruta cristalizada, deu uma dentada e mastigou devagar, somente para fazer Hekatah esperar.
– E? – perguntou Hekatah, passado um momento. – O portão em Glácia está sob controle? Podemos usá-lo? A aldeia está preparada para receber os imigrantes que escolhemos a dedo?
Dorothea escolheu outro pedaço de fruta. Desta vez, lambeu-o duas vezes antes de responder.
– Os habitantes foram eliminados. Assim como os eyrienos.
– O quê? Como?
– O mensageiro que se encontrou com Kartane não conseguiu descobrir o que aconteceu com aos eyrienos. Apenas que dizimaram os moradores e, de alguma maneira, foram igualmente dizimados. – Fez uma pausa. – Lorde Hobart também está morto.
Hekatah ficou petrificada.
– E a vadia da rainha Karla? Tivemos sucesso com ela?
Dorothea deu de ombros.
– Desapareceu durante o combate. Mas uma vez que Ulka morreu de modo tão... dramático... podemos imaginar que ela ingeriu o veneno.
– Então está acabada – disse Hekatah, com um vago sorriso de satisfação. – Mesmo que alguém consiga descobrir um antídoto para o veneno haylliano a tempo, o sangue-de-feiticeira dará conta do resto.
– Nossos planos para Glácia é que estão acabados!
Hekatah fez um gesto com a mão, como se quisesse afastar essa afirmação.
– Considerando o que alcançamos, é um inconveniente de menor importância.
Dorothea deixou cair a fruta na tigela.
– Não alcançamos nada!
– Você está ficando inflexível, Dorothea – disse Hekatah, com doce veneno. – Começa a ter atitudes de velha, muito adequadas ao seu aspecto.
Dorothea sentia o sangue latejando nas têmporas. Desejava libertar somente uma pequena parte dos sentimentos que eram cada vez mais virulentos. Odiava Hekatah, mas também precisava da vadia. Por isso, recostou-se e infligiu uma ferida que machucaria muito mais profundamente que qualquer golpe físico:
– Pelo menos ainda tenho cabelo. Esse pedaço de careca está começando a se alastrar, minha cara.
Hekatah levantou automaticamente a mão para esconder a área. Com esforço, baixou-a antes de chegar à cabeça.
O ódio impotente nos olhos dourados e sem brilho de Hekatah assustava ligeiramente Dorothea, embora produzisse também uma sensação de satisfação perversa.
– Teremos de nos contentar em entrar sorrateiramente pelos outros portões – disse Hekatah. – Agora temos algo melhor.
– O quê? – perguntou Dorothea, de modo educado.
– A desculpa de que precisávamos para começar a guerra.
O sorriso de Hekatah era pura malevolência.
– Compreendo – disse Dorothea, devolvendo o sorriso.
– Os imigrantes que escolhemos para substituir os aldeões irão para Glácia, como teria acontecido se Hobart tivesse nos oferecido aquela aldeia como pagamento por nossa ajuda. Acrescentaremos alguns imigrantes de outros territórios terreillianos. Os acompanhantes serão machos sem conhecimento da localização original da aldeia. Só os condutores das carruagens serão informados do local onde deixarão as famílias felizes, e não será nas proximidades de uma área habitada, por isso não haverá forma de serem detectados. Os acompanhantes, é claro, ficarão consternados ao não vislumbrar qualquer sinal de uma aldeia a aguardar habitantes. – Os olhos de Hekatah ganharam um ar sonhador. – A companhia de guerreiros eyrienos que estará esperando por eles cuidará do resto. A carnificina será... horrível. Mas um par de sobreviventes conseguirá fugir. Sobreviverão para alcançar a Pequena Terreille e contar a algumas pessoas sobre os terreillianos que estão sendo massacrados em Kaeleer. E sobreviverão o tempo necessário para contar que dois homens estavam no comando: um haylliano e um eyrieno.
– Todos em Terreille vão pensar em Sadi e Yaslana – disse Dorothea com satisfação. – Concluirão que o senhor supremo ordenou o ataque e enviou os filhos para coordená-lo.
– Exatamente.
– O que provará que todas as minhas advertências eram justificadas. Assim que começarem a pensar nas razões da ausência de notícias dos amigos e entes queridos... – Dorothea deslizou na cadeira com um suspiro de satisfação e, em seguida, endireitou-se relutantemente. – Temos ainda de encontrar uma forma de controlar Jaenelle Angelline.
– Com o estímulo adequado, vai se colocar à nossa disposição voluntariamente.
Dorothea resfolegou.
– Que tipo de estímulo a levaria a isso?
– Usar alguém que ela ama como isca.
Gelado até os ossos, Saetan ouviu os relatos de Lucivar e Daemon. Gostaria de acreditar que lorde Hobart contratara uma companhia de eyrienos para ajudá-lo a tomar o poder em Glácia. Gostaria de acreditar que a morte de Morton e o ataque a Karla eram questões estritamente glacianas. Porém, tinha ouvido outros relatos nas últimas 24 horas. Duas rainhas de distrito em Dharo foram assassinadas, bem como seus acompanhantes. Uma multidão de plebeus atacara uma alcateia de parentes que se reunira há pouco tempo em torno de uma jovem rainha. Enquanto os machos enfrentavam essa ameaça, alguns Sangue os apanharam de surpresa, mataram a rainha e desapareceram, deixando os plebeus para trás, à mercê da fúria dos machos. Em Scelt, encontraram um príncipe dos senhores da guerra, um jovem que ainda não tinha chegado à idade de realizar a oferenda às trevas, atrás da taberna de sua terra natal. Tinha a garganta cortada.
Ainda mais inquietante, Kalush fora atacada ao passear num parque em Tajrana, a capital de seu próprio território. Kalush e sua pequena filha só não sofreram qualquer ferimento por causa da incapacidade dos atacantes em penetrar no escudo protetor que as envolvia – o escudo cinza-ébano do anel que Jaenelle havia lhe dado – e também porque Aaron, alertado pelo anel de honra que usava, chegara depressa, já na beira do limiar assassino, destruindo os atacantes com uma ferocidade insana.
Não foi preciso um grande esforço mental para entender o padrão. Cinquenta mil anos que se eclipsaram como se nunca tivessem existido. Poderiam ter sido Andulvar e Mephis ali sentados, dando voz às preocupações que sentiam face a ataques repentinos e aparentemente aleatórios, que visavam um homem que insistira que, como guardião, deixara de poder interferir nos assuntos dos vivos. Ainda era guardião, mas estava enredado demais nos assuntos dos vivos para seguir as regras impostas aos guardiões.
A guerra ia começar. Imaginou se Daemon e Lucivar já teriam percebido isso.
E imaginou quantos entes queridos teria de ajudar desta vez, na transição para demônios-mortos. Quantos desapareceriam sem deixar rastro. Como o filho de Andulvar, Ravenar. Como seu próprio filho, seu segundo filho, Peyton.
– Pai? – chamou Daemon, baixinho.
Percebeu que ambos o olhavam com atenção, mas foi em Daemon que se concentrou. O filho que era o espelho, que era seu verdadeiro herdeiro. O filho que melhor compreendia... e que menos compreendia.
Antes que pudesse começar a falar com eles sobre os outros ataques, Beale bateu à porta do escritório e entrou.
– Perdoe a intromissão, senhor supremo – disse Beale –, mas há um senhor da guerra lá fora que deseja vê-lo. Traz uma carta.
– Então pegue a carta. Não quero ser incomodado agora.
– Foi o que sugeri, senhor supremo. Ele disse que precisa entregá-la pessoalmente.
Saetan aguardou um momento.
– Muito bem.
Lucivar saltou da cadeira, posicionando-se de modo a flanquear quem quer que estivesse junto à mesa. Daemon se levantou e se encostou num dos cantos.
O guerreiro ferrenho e o macho indolente. Saetan imaginou que já tivessem desempenhado esses papéis em outras ocasiões. E era uma representação perfeita. Com a fúria de Lucivar à tona, a atenção recairia sobre ele. Mas o golpe mortal seria desferido por Daemon.
O senhor da guerra que entrou no escritório estava pálido, nervoso e transpirava. Empalideceu ainda mais ao ver Lucivar e Daemon.
Saetan contornou a mesa.
– Tem uma carta para mim?
O senhor da guerra engoliu em seco.
– Sim, senhor.
Mostrou um envelope, com a tinta um pouco manchada por suas mãos. Saetan sondou o envelope. Não encontrou nada. Nenhum vestígio de feitiço. Nenhum vestígio de veneno. Pegou-o e olhou para o senhor da guerra.
– Encontrei este envelope na mesa do quarto de hóspedes esta manhã – disse o homem, apressadamente. – Não sabia que estava lá.
Saetan olhou para o envelope. Só tinha seu nome escrito.
– Então você o encontrou esta manhã. Isso é relevante?
– Espero que não. Quer dizer... – O homem respirou fundo, fez um esforço para se acalmar. – Lorde Magstrom é... era... avô da minha esposa. No último outono veio nos visitar, logo antes de... Bem, antes. Parecia transtornado, mas não lhe demos muita atenção. Minha esposa... Tínhamos acabado de ter a confirmação de que estava grávida. Tinha sofrido um aborto no ano anterior e estávamos preocupados que pudesse voltar a ocorrer. A curandeira avisou para ela ter cuidado.
Por que o homem estava se desculpando?
– Sua esposa está bem?
– Sim, obrigado, mas tem tido cuidado. Magstrom não mencionou a carta. Pelo menos, não me lembro de qualquer referência, e, depois de ter sido... assassinado... – As mãos do homem tremiam. – Espero que não seja nada urgente. Assim que a descobri, soube que tinha de vir sem demora. Espero que não seja nada urgente.
– Com certeza não é – respondeu Saetan, gentilmente. – Devem ser as informações de praxe que lorde Magstrom me mandava depois das feiras de serviços. Uma confirmação, mais do que qualquer outra coisa.
O alívio do homem era visível.
Saetan olhou rapidamente para a joia amarela do senhor da guerra.
– Posso oferecer uma carruagem para levá-lo para casa?
– Não se incomode.
– Não é nenhum incômodo. E com um motorista capaz de viajar pelos ventos mais escuros chegará em casa a tempo de jantar com sua senhora.
O senhor da guerra hesitou por mais uns instantes.
– Obrigado. Não... gosto de ficar longe dela por muito tempo. – Pareceu ligeiramente envergonhado. – Ela diz que me preocupo com besteiras.
Saetan sorriu.
– Vai ser pai, tem o direito de ficar preocupado.
Acompanhou o homem, deu instruções a Beale sobre a carruagem e voltou para junto de Daemon e de Lucivar. Abriu o envelope cuidadosamente, invocou os óculos em meia-lua e leu a carta.
– Magstrom mandava relatórios sobre as feiras de serviço? – perguntou Lucivar, aceitando o copo de conhaque que Daemon lhe servira.
– Não. – E, quanto mais lia, menos gostava de ter recebido esse relato. Ao reler a carta, quase deixou de ouvir a conversa entre Lucivar e Daemon. Até Daemon dizer algo que despertou sua atenção. – O que foi que você disse?
– Disse que lorde Magstrom falou sobre mandar cartas a algumas das rainhas fora da Pequena Terreille – repetiu Daemon, fazendo o conhaque rodopiar no copo. – Mas depois que Jorval passou a cuidar do meu processo de imigração, fui informado de que as rainhas fora da Pequena Terreille não teriam em consideração um príncipe dos senhores da guerra de joia negra.
Lucivar resfolegou.
– Muito provavelmente Jorval impediu que as cartas fossem enviadas. Fogo do Inferno, Daemon, você conheceu as outras rainhas de território. Constituem a assembleia. Se alguma delas tivesse recebido uma carta, mandaria o administrador à feira de serviços tão depressa quanto possível para assinar o contrato.
– Leia isto – disse Saetan, passando a carta a Daemon.
– Não entendo – disse Daemon, depois de ler metade da carta. – As listas não têm de indicar todos os imigrantes na feira de serviços?
– Sim – respondeu Lucivar sombriamente, lendo por cima do ombro de Daemon. – E você não estava em nenhuma delas. – Olhou para Saetan. – Comentei sobre isso na época.
– Sim, é verdade – respondeu Saetan –, mas como Daemon acabou vindo parar na corte das trevas, deixei escapar a importância desse comentário.
Daemon devolveu a carta a Saetan.
– Tinha que haver uma lista em algum lugar. Do contrário, como as rainhas da Pequena Terreille poderiam ter conhecimento da minha disponibilidade?
Saetan manteve um tom de voz brando.
– E que rainhas eram essas?
– Quatro rainhas da Pequena Terreille estavam dispostas a me receber – disse Daemon, lentamente. – Jorval insistiu que eram as únicas.
– Então, se não tivesse encontrado Lucivar por acaso...
Daemon ficou petrificado.
– Teria assinado contrato com uma delas.
Rogando pragas baixinho, Lucivar começou a andar de um lado para outro. Saetan se limitou a assentir.
– Teria assinado contrato com uma das rainhas escolhidas por Jorval e sido enfiado em algum lugar na Pequena Terreille.
Sem mais ninguém saber do seu paradeiro.
– E qual seria o objetivo? – perguntou Daemon, irritado.
– Na Pequena Terreille usam o anel de obediência em machos imigrantes – retrucou Lucivar. – Era esse o objetivo. Seria reviver Terreille.
– Não necessariamente – disse Saetan, mantendo ainda um tom de voz brando. – Se Daemon fosse bem tratado, e estou certo de que isso faria parte do acordo, não teria razões para deixar de usar a força de suas joias contra um inimigo que ameaçasse a rainha que servisse. E em seguida à primeira detonação da Negra, não haveria meio de voltar atrás. As linhas seriam traçadas.
Daemon estava estarrecido.
– Que importância tem isso? – disse Lucivar, olhando para os dois inquieto. – Daemon está conosco.
– Sim – disse Saetan, compassivo –, é verdade. Mas onde estão os outros homens cujos nomes desapareceram daquelas listas?
A aranha dourada examinou as duas teias emaranhadas de sonhos e visões. Mais mortes. Muitas mortes. Tinha chegado o momento.
Lembre-se dessa teia. Lembre-se de cada filamento, de cada fio.
Durante todo inverno, fora arrancada de seus próprios sonhos, forçada a estudar a teia que moldara o mito vivo, a rainha que era feiticeira. E compreendera que não seria suficiente, pois ao viver na carne o sonho tinha sofrido alterações. Agora, representava mais. E, de alguma forma, precisava acrescentar esse “mais” à teia. Sem esse elemento, o Coração de Kaeleer desapareceria durante muitas estações... e não voltaria a ser o mesmo quando o sonho voltasse.
Continuou a examinar as teias. O cão marrom, Ladvarian, era a chave. Ele seria capaz de trazer a ela esse “mais” de que precisava.
Sim. Chegara o momento.
Voltou à câmara nas grutas sagradas e começou a tecer a teia dos sonhos que já tinham tornado realidade.
O primeiro círculo da corte das trevas estava reunido na fortaleza.
Ou melhor, os humanos do primeiro círculo tinham se reunido, corrigiu Saetan ao ouvir o relato sinistro de Khardeen sobre os ataques em Scelt nas últimas três semanas. Fora provavelmente por causa disso que os parentes não tinham respondido à convocação de Jaenelle. Talvez as rainhas e os príncipes dos senhores da guerra parentes não desejassem retirar suas forças dos territórios. Talvez estivessem querendo distância daquilo que consideravam ser um conflito entre humanos, de maneira a se salvaguardar.
No entanto, esperara que pelo menos Ladvarian estivesse presente, para explicar aos demais parentes o que estava acontecendo. Ele teria compreendido que o conflito não se restringia aos humanos. Fogo do Inferno, os parentes também já tinham sofrido ataques.
Mas Ladvarian não estava ali, e isso o preocupava.
Tinha dois outros motivos para se preocupar: os lampejos de tristeza e resignação que detectava em Andulvar, Prothvar e Mephis – todos os três haviam lutado e tombado na última guerra entre Terreille e Kaeleer – e também em Jaenelle, que estivera ali sentada nas últimas duas horas com um olhar inexpressivo.
– Se nos limitarmos à defesa diante desses ataques, nossas terras e nossos povos estarão em perigo – argumentou Aaron. – Os exércitos terreillianos estão se reunindo para nos atacar. Se o inimigo que já está em Kaeleer conseguir controlar um portão e abri-lo para esses exércitos... Bem, precisamos agir imediatamente.
– Sim, é preciso agir – disse Jaenelle, num tom cavernoso. – Vocês precisam bater em retirada.
Ergueram-se protestos de todas as direções.
– Vocês precisam bater em retirada – repetiu Jaenelle. – E enviar todas as rainhas e príncipes dos senhores da guerra de seus territórios para a fortaleza.
A declaração foi recebida com um silêncio de estarrecimento.
– Mas, Jaenelle – disse Morghann –, precisamos dos príncipes dos senhores da guerra para liderar os combates. E pedir às rainhas que abandonem as terras enquanto seu povo está sendo atacado...
– Não serão necessárias se o povo também bater em retirada.
– Até onde teremos de recuar? – perguntou Gabrielle rispidamente.
– Até onde for necessário.
Aaron balançou a cabeça.
– Precisamos reunir nossos guerreiros em exércitos para combater os terreillianos e...
– Kaeleer não entrará em guerra com Terreille – disse Jaenelle, com a voz de meia-noite.
Chaosti pulou da cadeira.
– Já estamos em guerra!
– Não, não estamos.
– Então estamos em guerra com a Pequena Terreille, uma vez que é lá que esses atacantes têm se escondido – resmungou Lucivar. – É a mesma coisa.
O olhar de Jaenelle ficou frio.
– Não estamos em guerra com ninguém.
– Gata, você não está pensando...
– Lembre-se de com quem está falando.
Lucivar olhou-a nos olhos e ficou pálido.
– Minhas desculpas, senhora – respondeu, por fim.
Jaenelle se levantou.
– Se for possível fugir antes do ataque, façam isso. Se não for, as lutas deverão se restringir ao mínimo possível. Defendam até que seja possível bater em retirada, mas não ataquem. E tragam as rainhas e os príncipes dos senhores da guerra para a fortaleza. Não há exceções e não aceitarei qualquer tipo de desculpas.
Depois que Jaenelle saiu, a sala foi invadida por um longo silêncio.
– Não está pensando com clareza – disse Kalush, hesitante.
– Está se comportando de modo estranho desde o primeiro ataque – acrescentou Gabrielle com rispidez, para logo olhar para Karla, como se pedisse desculpas.
– Tudo bem – disse Karla lentamente, com dificuldade. – Tem mesmo se comportado de forma estranha. Será que foi afetada ao me curar?
– O que a afeta é a aversão que tem a matar – resmungou Lucivar. – Mas normalmente é bastante perspicaz diante do óbvio. Estamos em guerra. Os floreados em volta da palavra não irão alterar esse fato.
– Desafiaria a sua rainha? – perguntou Daemon de modo gentil, quase indolente.
A tensão imediata e penetrante em Lucivar estremeceu a todos.
O que está acontecendo entre os dois?, perguntou-se Saetan, enquanto Daemon e Lucivar apenas olhavam um para o outro. Percebendo o olhar sonolento de Daemon, sentiu gelo formando-se em volta de sua coluna dorsal.
– Acho que a senhora não compreende as implicações da ordem que transmitiu – disse Lucivar, com cautela.
– Ah, acho que as compreende muito bem. Você não concorda com ela, mas isso não é razão suficiente para desobedecer.
– Considerando o seu histórico em outras cortes, você não é exatamente um modelo de obediência – retrucou Lucivar.
– Não importa. Estamos falando de você e desta corte. E estou avisando, Yaslana: você não irá afligi-la com provocações e desobediências. Se fizer isso...
Daemon se limitou a sorrir. Lucivar estremeceu.
Depois que Daemon deslizou para fora da sala, Saetan perguntou:
– Ele está blefando, Lucivar?
Ficou apreensivo ao ver que Lucivar não tirava os olhos da mesa.
– O Sádico não blefa – respondeu Lucivar com a voz enrouquecida. – Não precisa.
E saiu da sala a passos largos.
– Parece que não resta nada discutir – disse Saetan, se levantando. Com um olhar, fez com que Andulvar, Prothvar e Mephis se levantassem.
Deixou que os outros homens saíssem antes dele. Estava prestes a fechar a porta quando ouviu Aaron dizer:
– O que sabemos de verdade sobre Daemon Sadi?
Fechou a porta sem fazer barulho. Quando se virou para os outros homens, viu a mesma pergunta nos olhos de Andulvar.
Mas já não estava certo de que poderia responder.
– O que sabemos de verdade sobre Daemon Sadi? – perguntou Aaron.
Karla deixou que as opiniões e conversas sussurradas se transformassem num escarcéu enquanto mergulhava em seus pensamentos mais profundos. O que sabiam de verdade sobre Daemon Sadi? Era príncipe dos senhores da guerra de joia negra e viúva-negra natural, um homem belo e explosivamente perigoso.
Era o espelho do senhor supremo, embora não fosse um reflexo perfeito.
Era um homem que, durante a maior parte de sua vida, estivera acorrentado, de uma forma ou de outra, a Dorothea SaDiablo, inimiga de Kaeleer.
Era um homem que compreendia as mulheres. Incapaz de suportar a compaixão nos olhares dos criados que a ajudavam no banho, insistira que não precisava de ajuda alguns dias após a cura. Mediante a arte, conseguiu se despir e entrar na banheira, mas não conseguiu se lavar bem, sobretudo devido à reação provocada pelos venenos, que lhe faziam surgir feridas na pele a um ritmo grotesco. Uma noite, Daemon aparecera para ajudá-la. Karla falara com ele rispidamente, exigira que fosse embora. A resposta que recebeu, enunciada com uma voz tão agradável que demorou alguns segundos para entender as palavras, foi tão obscenamente criativa que de repente se viu na banheira, sendo delicada e exaustivamente lavada. O toque de Daemon não fora impessoal e tampouco sexual, mas, quando começou a massagear seu couro cabeludo, Karla foi inundada por um prazer sensual como nunca experimentara antes.
Por isso compreendia a inquietação dos outros. Uma mulher podia ficar facilmente viciada naquele toque, estaria disposta a muita coisa para evitar que lhe fosse retirado. E Jaenelle andava mesmo se comportando de maneira estranha desde o primeiro ataque. Mas não achava que aquilo tivesse a ver com Daemon.
Havia outra coisa que sabia sobre Daemon, algo que tinha visto na mesma teia que a advertira sobre sua própria morte: ele era o amigo que se tornaria inimigo para permanecer amigo.
– Por que Lucivar morre de medo de Daemon? – perguntou Andulvar assim que os quatro homens entraram numa pequena sala de estar na fortaleza.
– Não sei – respondeu Saetan, aquecendo um copo de yarbarah numa labareda de fogo encantado como forma de evitar os olhares dos outros.
Não sabia. Lucivar era sempre evasivo quando falava sobre o tempo em que ele e Daemon se metiam em confusões quando se encontravam nas cortes terreillianas. Uma vez havia dito que se tivesse de escolher entre enfrentar o Sádico ou o senhor supremo, optaria pelo senhor supremo, pois assim teria alguma chance de vencer.
O que estaria por trás daquele sorriso de Daemon que abalava Lucivar daquela forma? O que poderia ter o Sádico para fazer um homem agressivo como Lucivar recuar? E o que poderia representar para os outros a presença de Daemon na fortaleza?
– Senhor supremo!
Prothvar empurrou a mão de Saetan para afastá-la da labareda de fogo encantado, imediatamente antes do yarbarah começar a ferver. Saetan pousou a taça. O yarbarah deixara de ser bebível.
– SaDiablo – disse Andulvar num tom calmo –, acha que precisamos ter cautela?
Não lhe ocorreu oferecer ao amigo uma mentira tranquilizadora.
– Não sei.
Ladvarian corria incansável em direção a Halaway, respondendo aos chamados suaves, mas insistentes. Por vezes, rosnava de modo a ventilar a frustração e a raiva crescente.
Como poderia um lugar tão grande como o Paço não ter aquilo de que precisava? Encontrara muitas coisas que quase serviam, mas nada que fosse adequado. A isso se devia a frustração. A raiva...
Os parentes tinham aguardado tanto tempo pela chegada desse mito vivo. Esse mito especial. E agora ia ser arruinado por humanos. Não. Não seria arruinado. Os parentes estavam se reunindo. Assim que a tecelã de sonhos lhes dissesse o que fazer, partiriam para a ação.
Quando chegou à bela casa de campo em Halaway, dirigiu-se à porta dos fundos e latiu uma única vez, de forma educada.
Tersa abriu uma janela do andar de cima.
– Entre, irmãozinho.
Por meio da arte, flutuou até a janela e entrou. A maioria dos parentes se referia a Tersa como “a estranha”. Não pretendiam ser desrespeitosos. Reconheciam que era uma viúva-negra que percorria estradas que a maior parte dos Sangue nunca veria. Era especial. Tinha essa caraterística em comum com a senhora.
Mesmo sabendo tudo isso, não conseguiu evitar que seus pelos se eriçassem ao entrar no quarto. Uma cama baixa e estreita – exatamente o tipo de que precisava. Aproximou-se de maneira cautelosa e abriu os sentidos internos e externos. Não tinha odores. Deviam estar presentes os cheiros de humanos bem como os odores psíquicos residuais de quem tinha feito a cama, o colchão e a roupa da cama.
– Está tudo purificado – disse Tersa, calmamente. – Não restam odores psíquicos que possam interferir na tecelagem de sonhos.
*A tecelagem de sonhos?*, perguntou Ladvarian com cautela.
– Aquele baú serve para guardar coisas e também como mesa de cabeceira. Lembre-se de trazer roupas para o verão e a primavera. Suas peças favoritas. Roupas que retenham o odor dela, mesmo depois de lavadas.
Ladvarian recuou.
*Por que tenho que trazer roupas?*
Tersa sorriu e disse gentilmente:
– Porque a feiticeira não tem pelo. – Seus olhos ficaram desfocados e previdentes. – Está se aproximando o momento de cobrar as dívidas. Os que sobreviverem servirão, mas eles serão poucos. O clamor... Cheio de alegria e sofrimento, raiva e celebração. Ela está chegando. – Voltou a fixar o olhar em Ladvarian. – E os parentes reforçarão o sonho no corpo.
*Sim, senhora*, disse Ladvarian, respeitosamente.
Tersa pegou uma tigela azul-cobalto de uma cômoda. Mediante a arte, fez a tigela flutuar.
– Quando voltar a ver a tecelã de sonhos, diga a ela que esta é a forma de obter aquele “mais” de que precisa.
Ladvarian se apoiou na outra pata, impaciente. A rainha aracniana não mencionara Tersa. Como Tersa podia saber tanto sobre a rainha aracniana?
Tersa mergulhou um dedo na tigela. Ao levantar a mão, tinha uma gota de água presa no dedo. Em vez de deslizar, a gota começou a se expandir, como uma pequena bolha de vidro soprado, uma pérola de água. Com a unha do polegar, Tersa perfurou um dedo da outra mão, fazendo brotar uma gota de sangue.
– E o Sangue cantará ao Sangue.
Ladvarian sentiu o poder que fluía para aquela gota de sangue.
– Deixe que o sangue seja o rio da memória. – Virando a mão, passou a gota de sangue pela gota de água. O sangue fluiu pela bolha de água, até ficar retido no interior.
Depois de envolver a bolha com um escudo protetor, Tersa colocou-a num pequeno estojo e ofereceu-o a Ladvarian.
– Olhe.
Ladvarian abriu a mente, enviou uma tímida sonda psíquica.
Imagens, memórias, passaram a grande velocidade. Memórias de uma menina guiando uma mulher exausta para fora do reino distorcido. Memórias de Jaenelle, mais velha, prometendo encontrar Daemon. Memórias de conversas, gargalhadas, de encanto pelo mundo. As memórias de Tersa.
– Dirá à tecelã? – perguntou Tersa.
Ladvarian fez a caixa desaparecer.
*Sim.*
– Mais uma coisa, irmãozinho. Não recuse o presente de Lorn. A tecelã vai precisar dele também.
Deixando a porta aberta, Daemon entrou na oficina de Jaenelle. Ela vinha passando horas ali todos os dias desde que trouxera Karla para a fortaleza, mas Daemon estava certo de que a distração de Jaenelle ou o frenesi controlado de suas atividades não tinham nada a ver com Karla. Na verdade, tinha certeza de que fora o único a quem havia sido permitido um vislumbre desse frenesi. Algo a estava corroendo por dentro, e, depois daquela pequena cena na sala de reuniões, estava determinado a descobrir o quê.
– Jaenelle, precisamos conversar.
Ela levantou os olhos da pilha de livros numa das mesas.
– Não tenho tempo para conversar adora, Daemon.
Num rápido lampejo, Daemon fez a porta bater com tanta força que todos os objetos na oficina pularam, inclusive Jaenelle.
– Arranje tempo – disse, com excesso de delicadeza.
Interrompeu-a assim que começou a protestar.
– Farei qualquer coisa por você. Qualquer coisa. Mas antes de me opor aos outros membros do primeiro círculo, quero saber a razão.
– Kaeleer não pode entrar em guerra com Terreille. – Sua voz tremia.
– Por que não?
Seus olhos se encheram de lágrimas inflamadas e furiosas.
– Porque, se entrarmos em guerra, todos naquela sala morrerão.
– Você não sabe disso – retrucou Daemon.
As lágrimas caíam pelo rosto de Jaenelle, cortando o coração de Daemon.
– Sei, sim.
Daemon estremeceu. Ela era uma viúva-negra muito poderosa e dotada. Se tinha visto as mortes de todos numa teia emaranhada de sonhos e visões, não havia sombra de dúvida. Isso explicava sua resistência.
Respirou fundo para se acalmar.
– Meu amor... Às vezes é necessário matar. Às vezes é o único caminho possível para salvar o que é bom.
– Eu sei. – Jaenelle fechou um livro com força. – Passei as últimas três semanas procurando uma resposta, mas o tempo está se esgotando. Posso sentir.
– Jaenelle – disse Daemon, cautelosamente. – Você tem a força... – O olhar da mulher beirava o ódio, mas Daemon insistiu. – Uma fração da sua força bastaria para eliminar um exército terreilliano.
– Mas enquanto eu estivesse eliminando esse, outros seis estariam dizimando os Sangue de Kaeleer em outros territórios. Mesmo que eu destrua todos eles, um de cada vez, não vai fazer diferença.
– Não estaria sozinha nessa luta – insistiu Daemon, apoiando-se na mesa com uma das mãos para se inclinar sobre Jaenelle. – Fogo do Inferno, mulher, preste atenção na força dos machos deste reino. Nas joias. As negras. As cinza-ébano. As cinza. Somos a força dominante.
– Kaeleer também era a força dominante na última guerra – respondeu Jaenelle, num tom de voz sereno. – E Kaeleer venceu. Por pouco, mas venceu. Mas todos aqueles machos morreram. E não fez nenhuma diferença. A nódoa que alimentou essa guerra ainda está entre os Sangue, inclusive mais forte.
– Hekatah e Dorothea podem ser destruídas.
Jaenelle começou a caminhar em volta da mesa.
– Neste momento, não serviria de nada. Mesmo que sejam eliminadas, mesmo que Kaeleer vença a batalha inicial, o reino das sombras não triunfará. A nódoa já está alastrada demais. Terreille continuará enviando exércitos. Continuará a enviá-los sem parar, e as batalhas prosseguirão, em Terreille e em Kaeleer, até os Sangue esquecerem quem são ou suas responsabilidades como vigilantes dos reinos.
– Estamos em guerra, Jaenelle – disse Daemon com seriedade. – Não interessa se foi declarada formalmente ou não. Estamos em guerra.
– Não.
– Você tem a força para fazer a diferença. Se libertar...
– Não posso.
– Pode.
– Não posso.
– POR QUE NÃO?
Ela se virou de costas para ele.
– DROGA, PORQUE SOU FORTE DEMAIS! Se libertar minha força, destruirei os Sangue. Todos os Sangue. Em Terreille. Em Kaeleer. No Inferno.
As pernas de Daemon vacilaram. Sem forças, afastou alguns livros para poder se sentar na mesa. Você disse que ela era seis vezes mais poderosa do que nós dois juntos. Ah, pai, como estava enganado. Seis vezes? Seiscentas vezes? Seis mil vezes?
Poder o suficiente para exterminar os Sangue.
Jaenelle caminhava de um lado para outro, abraçada a si mesma.
– A fortaleza é o santuário. Não seria afetada. Mas quantos seria capaz de abrigar? Alguns milhares, no máximo? Quem escolhe, Daemon? E se forem feitas escolhas erradas e a nódoa permanecer, encoberta por alguém com uma certeza maldita de que tem razão?
Estava pensando em Alexandra. Será que alguém teria considerado que Alexandra estava contaminada? Mal orientadas, com certeza, mas a não ser que estivessem obviamente desvirtuadas, as rainhas estariam entre os escolhidos. E em relação a mulheres como Vania? Não estava contaminada da forma como Jaenelle se referia, mas era o tipo de mulher que poderia irritar os machos à sua volta e, um dia, provocar a desgraça de uma terra. Exatamente o tipo de mulher que Dorothea criava.
– Os Sangue são os Sangue – prosseguiu Jaenelle. – Duas pernas, quatro patas, não importa. Os Sangue são os Sangue. A dádiva da arte teve uma única origem, que une todos nós.
Jaenelle também não podia abrir mão dos parentes. Não admirava que tudo isso a estivesse dilacerando.
– E Kaeleer sairá vencedora? – perguntou Daemon tranquilamente.
Jaenelle levou um minuto para responder.
– Sim, mas a vitória terá um preço: todas as rainhas e todos os príncipes dos senhores da guerra de Kaeleer.
Daemon pensou em todas as pessoas decentes que conhecera desde que chegara a Kaeleer. Pensou nos parentes. Pensou nas crianças. Acima de tudo, pensou em Daemonar, o filho de Lucivar. Se, por alguma razão, não conseguissem aniquilar Dorothea e Hekatah e as duas pusessem as garras em Daemonar...
– Faça isso – disse. – Liberte o seu poder. Destrua os Sangue.
Jaenelle ficou boquiaberta. Fitou-o, atônita.
– Faça isso – repetiu. – Se essa for a única maneira de exterminar a nódoa que Dorothea e Hekatah espalharam pelos Sangue, então, pelas trevas, Jaenelle, mostre alguma compaixão por aqueles que ama e faça isso.
Ela voltou a andar de um lado para outro.
– Tem de haver uma maneira de separar os Sangue dos Sangue. Tem de haver.
Uma memória o provocou, mas não conseguia retê-la diante dos movimentos frenéticos de Jaenelle, que pareciam fazer tudo estremecer.
– Não se mexa – disse bruscamente.
Ela parou de repente. Daemon ergueu uma das mãos, exigindo silêncio. A memória continuava a provocá-lo, mas desta vez a alcançou.
– Acho que existe um jeito.
Jaenelle arregalou os olhos, sem desobedecer à ordem de silêncio.
– Alguns séculos atrás, houve uma rainha chamada lady Cinza. Uma vez, quando estava numa aldeia prestes a ser atacada por guerreiros hayllianos, descobriu uma maneira de separar os aldeões dos hayllianos para que, ao libertar seu poder, os primeiros fossem poupados.
– Como ela fez isso? – perguntou Jaenelle, num tom de voz muito baixo.
– Não sei. – Daemon hesitou, perguntando-se qual seria o motivo da hesitação. – Um homem que eu conhecia estava com ela na época. Poucos anos antes de morrer, ele me mandou uma mensagem na qual informava que havia registrado por escrito a “aventura” e que a deixara num local seguro para mim. Era uma boa rainha, a última que manteve Dorothea a distância. Ele queria que ela fosse lembrada.
Jaenelle deu um pulo e o agarrou.
– Então você sabe como ela fez!
– Não, não sei. Nunca fui pegar o registro escrito. Decidi deixá-lo onde tinha sido escondido, fora do alcance de Dorothea.
– Acha que consegue encontrá-lo? – perguntou Jaenelle, ansiosa.
– Não deve ser difícil – respondeu Daemon friamente, enquanto a abraçava com uma vontade súbita de tocá-la. – Ele o deixou aos cuidados do bibliotecário da fortaleza.
– Trouxe-o da fortaleza de Terreille da primeira vez que você veio para Ebon Askavi com Jaenelle – disse Geoffrey entregando a Daemon um pacote cuidadosamente embrulhado. – Na época, eu me perguntei por que não o pediu. O que o levou a pensar nele agora?
A pergunta parecia de uma curiosidade inocente, mas de inocente não tinha nada.
Olhando diretamente para os olhos negros de Geoffrey, Daemon sorriu.
– Acabei de me lembrar dele.
Não o desembrulhou, não olhou para o pacote. Limitou-se a sondá-lo, para ter certeza de que não continham feitiços ocultos que poderiam ser desencadeados se alguém que não Daemon tentasse abri-lo. Em seguida, entregou-o a Jaenelle. Passou as horas seguintes negando acesso à rainha a praticamente todos os membros do primeiro círculo, o que causara algum mal-estar, mas não tinha sido difícil. Apenas o administrador, o mestre da guarda e o consorte tinham livre acesso aos aposentos da rainha. A Lucivar bastara um olhar para se retirar. Tinha sido mais difícil desencorajar Saetan e Andulvar, e pressentia que bastariam mais alguns confrontos educados para corroer a confiança que tinham em Daemon. Considerando o comportamento de Jaenelle nos últimos tempos, entendia a preocupação deles. Ainda doía.
Por fim, quando voltou para junto de Jaenelle, encontrou-a na sala de estar, abraçando o próprio corpo, olhando com um ar desanimado pela janela.
– Não ajudou? – perguntou, pousando a mão em seu ombro com delicadeza.
– Na verdade, ajudou. Encontrei a resposta. Não posso fazer o mesmo que fizeram, mas posso adaptar.
Virou-se e beijou-o com um desespero que o assustou, mas deu a ela aquilo de que precisava. Deu aquilo de que precisava por horas. Quando chegou ao ponto de se sentir satisfeita por estar simplesmente nos braços de Daemon, disse:
– Eu te amo.
Em seguida, adormeceu.
Apesar da exaustão física e emocional, Daemon ficou acordado durante muito tempo, pensando na sensação daquele “eu te amo” que tinha soado como um “adeus”.
6/Kaeleer
– A senhora mudou de ideia – disse Saetan formalmente às rainhas de território que constituíam a assembleia. – As rainhas da assembleia e os machos do primeiro círculo permanecerão na fortaleza, mas as outras rainhas de territórios podem ficar onde estão.
– E por que nós temos que ficar? – perguntou Chaosti. – Nosso povo está morrendo. Devíamos estar nas nossas terras, nos preparando para as batalhas.
– O que a levou a mudar de ideia? – perguntou Morghann. – O que ela disse?
Saetan hesitou.
– As instruções foram transmitidas pelo consorte.
Sentiu o tremeluzir de raiva e as suspeitas crescentes em relação a Daemon. Pior ainda, ele próprio partilhava esses sentimentos.
– A rainha ordena – disse, sabendo como aquilo soava inadequado quando estavam todos recebendo relatos de combates em suas terras natais.
– Tudo bem, senhor supremo – disse Aaron, friamente. – A rainha ordena. Mas obviamente ninguém informou os parentes disso. Nenhum dos que pertencem ao primeiro círculo precisam permanecer na fortaleza.
Entreolharam-se ao mesmo tempo que digeriam a informação. Foi Karla que perguntou, por fim:
– Onde estão os parentes?
Saetan observava as gotas de chuva que escorriam pela janela. Quando Jaenelle ordenara que todas as rainhas viessem para a fortaleza, não havia protestado por uma razão: Sylvia. Queria tê-la na fortaleza, onde estaria em segurança.
Porém, agora que Jaenelle mudara de ideia – ou fora levada a isso –, daria suas próprias ordens como príncipe dos senhores da guerra de Dhemlan, convocando todas as rainhas de Dhemlan para o Paço. Era arriscado. O Paço não possuía as defesas da fortaleza. Nenhum outro lugar tinha essas defesas. Mas fora concebido para suportar ataques, e suas defesas eram melhores do que as de qualquer outro lugar para onde as rainhas pudessem ser obrigadas a fugir no caso da intensificação dos combates. E era bastante espaçoso, o que permitia que trouxessem a família e os filhos.
Queria que Sylvia estivesse a salvo. Bem como seus filhos, Mikal e Beron.
Atrevida, obstinada, adorável Sylvia. Mãe Noite, ele a amava.
Mesmo depois de perceber que a potência do tônico de Jaenelle após realizar a oferenda às trevas trouxera de volta o desejo de um homem – e a capacidade de satisfazê-lo –, poderia ter resistido a se tornar amante de Sylvia. Poderia ter encontrado forças para se manter apenas um amigo, se não tivesse detectado a mágoa infligida em Sylvia por seu último consorte. Ela havia se fechado ao prazer sexual, e nenhum homem lhe despertara curiosidade o bastante para voltar a tentar... até se tornar amiga de Saetan.
Não eram amantes confessos. Em público, por insistência de Saetan, mantinham a ilusão de serem apenas amigos. Suas razões para isso eram bastante lógicas, bastante ponderadas. Sabia que Luthvian ficaria furiosa se ele assumisse publicamente ser amante de outra mulher. Não desejava que ela despejasse sua raiva no resto da família... ou em Sylvia. E não desejava que as pessoas se afastassem de Sylvia por ter escolhido um guardião como amante.
De início, ela concordara com Saetan, sobretudo por estar redescobrindo os prazeres da cama. No entanto, ao longo do último ano, manter o segredo foi deixando-a cada vez mais infeliz; queria uma relação pública.
Saetan esperara que ela o deixasse. Em vez disso, uma noite, durante as celebrações do Winsol há alguns meses, Sylvia o pedira em casamento. E, que as trevas o ajudassem, queria ter dito sim. Queria partilhar a cama, a vida, com ela.
Mas não disse. Não por Luthvian ou por ser guardião, mas devido a uma inquietação vaga que o advertia a ser prudente, a aguardar. Por isso, sorrira e respondera:
– Me pergunte de novo no próximo Winsol.
Durante algumas semanas após esse episódio, não surgiram convites para a cama de Sylvia. Compreendera por que ela estava sempre “ocupada” quando a visitava para passar algum tempo com os rapazes.
Sentira muito mais a falta da amiga que da amante, mas a verdade é que sentira falta daquelas horas na cama de Sylvia.
Foi então que, alguns dias antes do ataque a Glácia, decidiram passar dois dias juntos em Amdarh, longe de tudo e de todos, na tentativa de reconstruir a relação. E tinham feito amor, mas Saetan percebeu assim que a tocou que, apesar de desejá-lo, Sylvia se esforçava para manter uma distância emocional, tentando se proteger para não sofrer de novo. Mesmo quando se deixou levar pelo orgasmo, ela manteve distância.
Agora, enquanto olhava a chuva, quase desejava ter dito “sim” naquela noite de Winsol, quase desejava ter lhe pedido para se apresentar com ele perante uma sacerdotisa quando chegaram a Amdarh. E desejava que fosse possível voltar a fazer amor com ela para apagar a infelicidade que os acompanhara na cama da última vez.
Mas dentro dele crescia a convicção de que não haveria outra oportunidade.
Muita coisa ficara por dizer naquela noite em Amdarh. Nunca lhe dissera o que de fato significava para ele, quanto a amava. Devia ter dito. Agora não podia dar a ela mais do que palavras.
Voltando as costas para a janela, sentou-se à mesa e começou a escrever.
– Preciso de um favor – disse Jaenelle enquanto ia até a mesa de trabalho e pegava dois pequenos frascos de vidro.
– Basta pedir – respondeu Titian.
Tem canalizado muito poder sem dar tempo para o corpo se recuperar. O que estará planejando que a consome desta maneira?
– Um favor discreto.
– Compreendo.
– Preciso de sangue de duas pessoas que tenham sido contaminadas por Dorothea ou Hekatah. De preferência, uma de cada.
Titian pensou por um segundo.
– Lorde Jorval vive na capital da Pequena Terreille, não é?
Jaenelle engoliu em seco. Até esse gesto parecia exigir esforço.
– É, Jorval mora em Goth. Assim como Kartane SaDiablo.
– Ah. – Olhando para a mulher exaurida, Titian se recordou da criança que Jaenelle havia sido. E se lembrou de outras coisas. – Algum problema se nenhum deles voltar a ver o Sol nascer?
Os olhos azul-safira de Jaenelle foram invadidos por um frio mortal.
– Não.
Titian sorriu.
– Nesse caso, com a sua permissão, levarei Surreal comigo. Chegou a hora de cobrar algumas dívidas.
Na enorme câmara do trono das trevas, Ladvarian tremia ao olhar para Lorn. Não porque o temia – isso não era tão habitual. Mas Lorn era o príncipe dos dragões, a raça lendária que criara os Sangue. Era muito, muito velho, e muito sábio, e enorme. Ladvarian era menor do que um dos olhos de meia-noite de Lorn. Isso o fazia se sentir extremamente pequeno.
Quem também estava ali era Draca, a senescal da fortaleza, que fora parceira de Lorn e rainha dos dragões antes de sacrificar sua verdadeira forma para dotar as outras criaturas com a arte.
Sacrifícios. Não, não pensaria em sacrifícios. Não haveria um sacrifício. Os parentes não permitiriam isso.
Mas ter sido convocado por Lorn e Draca no momento em que a rainha aracniana estava prestes a terminar aquela teia onírica especial... isso o assustava. Se proibissem os parentes de avançar... Os parentes não deixariam de fazê-lo, a qualquer custo.
*Irmãozinho*, disse Lorn com sua voz grave, tranquila e ribombante.
*Príncipe Lorn.* Ladvarian tremia visivelmente.
*Tenho um presente para você, irmãozinho. Dê issto à tecelã de ssonhos.*
Uma bela caixa entalhada surgiu à frente de Ladvarian. Aberta, ela revelou a todos um pingente simples de ouro branco e amarelo e um anel de igual simplicidade. No entanto, a joia em cada um dos objetos eriçou-lhe os pelos do pescoço. A joia não tinha cor, embora não fosse incolor. Inquieta, tremeluzia, ansiosa por concluir a transformação. Podia senti-la tentando se ligar à sua mente.
Recuou um passo. Erguendo o olhar para Lorn, zangado e confuso a ponto de emitir um desafio que seria tão tolo quanto inútil, reparou que as escamas de Lorn possuíam o mesmo tremeluzir translúcido. Foi arrebatado pelo entendimento. Recuou outro passo e ganiu.
*Não tenha medo, irmãozinho. É um presente. A tecelã vai precissar dele para a teia.*
Reunindo coragem, Ladvarian se aproximou da caixa.
*Nunca vi uma joia assim.*
*E não voltará a ver*, respondeu Lorn brandamente. *Jamaiss existirá outra igual.*
*Não tem categoria. Não sabe o que é.*
*Ainda não ssabe o que é*, concordou Lorn. *Mas tem um nome: aurora do crepússculo.*
Enquanto Ladvarian voltava para Aracna com a caixa, Draca e Lorn se entreolharam.
– Você se arrissca muito ao dar uma joia dessas para ele – disse Draca.
*Há razõess para assumir o rissco*, respondeu Lorn. *A feiticeira está quase terminando a teia?*
– Ssim. – Pela primeira vez desde que conhecera Jaenelle, Draca sentiu o peso dos anos.
*Não podemoss curar a nódoa, Draca*, comentou Lorn, suave. *Mass ela pode.*
– Eu ssei. Quando concedi o dom da magia, concedi-o sem restriçõess, ssabendo que nunca poderia alterar o que fosse realizado com ele. – Draca hesitou. – Se fizer isso, sserá desstruída.
*Ela é o Coração de Kaeleer. Não pode ser destruída.* Lorn fez uma pausa e acrescentou com delicadeza: *Oss parentess sempre foram sonhadoress poderososs.*
– Sserá que vai sser o ssuficiente?
A pergunta à qual nenhum dos dois podia responder ficou pairando entre eles.
Um movimento furtivo e o súbito clarão de uma pequena bola de fogo encantado acordaram Jorval de um sono agitado.
– Sacerdotisa?
Uma mão puxou o cabelo, inclinou sua cabeça para trás.
– Não – disse a mulher de cabelo grisalho enquanto cortava sua garganta com um punhal. – Sou a vingança.
– Chega – disse Daemon, conduzindo Jaenelle à sala de estar. – Você precisa descansar.
– A teia está quase pronta. Preciso...
– Descansar. Se cometer um erro porque estava cansada demais para pensar, terá sido tudo em vão.
Jaenelle ensaiou um protesto e se deixou cair numa cadeira.
Daemon queria ficar furioso com ela, mas sabia que não adiantaria. Ela tinha perdido, a um ritmo assustador. Colocar obstáculos no caminho de Jaenelle só a forçaria a gastar energias que não podia despender, por isso optou por outro caminho.
– Alguns minutos atrás você me disse que ainda precisava de duas coisas para concluir a teia.
– Essas coisas vão demorar – protestou ela.
Daemon se inclinou e a beijou suavemente, mas de modo persuasivo. Quando a sentiu ceder, murmurou junto a seus lábios.
– Vamos jantar. Depois, vamos jogar duas partidas de “peixinho”. Até deixo você ganhar.
O risinho de Jaenelle despertou outro apetite. Daemon a beijou longamente enquanto acariciava seu seio.
– Acho que estou com fome – disse Jaenelle sem fôlego, quando Daemon lhe deu oportunidade de falar.
Depois de satisfazerem exaustivamente um dos apetites, sentaram-se, por fim, à mesa.
A dor o acordou.
Kartane abriu os olhos. Duas bolas de fogo proporcionavam luz suficiente para perceber que estava na rua... e de cabeça para baixo. Alguém o tinha amarrado.
Ouviu um ruído nos arbustos próximos. Virando a cabeça, notou uma estranha pilha de roupas marrons, cuidadosamente dobradas.
De repente, seu coração disparou e ficou difícil respirar. As sombras em volta oscilaram o suficiente para que percebesse que a estranha pilha não era de roupas, era pele morena. Quando inspirou para gritar, surgiram olhos vermelhos faiscantes no meio da escuridão.
Mesmo com a cabeça submersa, Surreal ouviu os gritos de Kartane. Saltou para fora da água, mas submergiu até o pescoço no instante seguinte. A lagoa, alimentada por uma nascente de água quente, estava deliciosamente cálida, mas o ar frio era de morder os ossos.
Ouviu rosnados, um uivo, um guincho aterrorizado. O ar frio não era a única coisa aqui que mordia.
– Então isto é o Inferno – disse, olhando em volta. Estava escuro demais para discernir o que quer que fosse, mas a área em volta da lagoa tinha uma espécie de beleza crua.
– É o Inferno – respondeu Titian, com um sorriso de felicidade estampado no rosto. Endireitou-se e olhou Surreal com um ar inquisitivo. – A dívida foi paga a seu contento, Surreal?
Os rosnados e guinchos pararam por um momento, mas em seguida recomeçaram.
– Sim – respondeu Surreal, recostando-se com um suspiro. – Fiquei satisfeita.
– Às vezes o coração revela mais do que as vidraças.
Saetan ficou de costas para a janela, tenso.
– Tersa, o que a traz à fortaleza?
Sorrindo, Tersa atravessou a sala e estendeu um grosso envelope.
– Vim lhe entregar isto.
Antes mesmo de pegar o envelope, já sabia de quem era. Sylvia tinha o hábito de adicionar uma gota de óleo de alfazema ao lacre. Pousando uma das mãos no ombro de Saetan, Tersa o beijou na boca. Um beijo demorado que o surpreendeu e o inquietou.
Tersa recuou um passo.
– Esta foi a outra parte da mensagem.
Já estava quase saindo quando Saetan voltou a si.
– Tersa, esta não pode ter sido a única razão que a trouxe à fortaleza.
– Não? – disse ela, com um ar intrigado. – E logo acrescentou: – Não, não é.
Saetan aguardou. Tersa não disse nada.
– Minha querida – incitou delicadamente –, o que a trouxe aqui?
O olhar de Tersa clareou e Saetan sentiu que, pela primeira vez em todos os séculos desde que a conhecia, estava tendo um vislumbre da Tersa que existira antes de ser quebrada. Ela era formidável, e um pouco ofuscante.
– Minha presença é necessária aqui – disse calmamente e saiu da sala.
Saetan ficou imóvel durante vários minutos, olhando para o envelope nas mãos.
– Mostre que tem colhões, SaDiablo – murmurou para si mesmo, abrindo o envelope devagar. – O que quer que a carta diga, não será o fim do mundo.
Era uma carta longa. Leu-a duas vezes antes de guardá-la.
Não pudera dar a Sylvia mais do que palavras, mas, ao que parecia, felizmente, tinha sido o suficiente.
Dorothea caminhava em volta da sala.
– Há exércitos se reunindo por todo o reino de Terreille. Os territórios no reino das sombras vêm sendo atacados há semanas pelas pessoas que escondemos na Pequena Terreille. Kaeleer ainda não declarou guerra formalmente.
– Isto é porque Jaenelle Angelline não tem o temperamento adequado ao poder que possui – disse Hekatah, ajeitando com cuidado a capa comprida. – Não passa de um ratinho atarantado em seu buraco enquanto os gatos se reúnem para o banquete.
– Até um rato morde – retrucou Dorothea.
– Este rato não vai morder – respondeu Hekatah. – Emocionalmente, é suscetível demais para conseguir dar um passo que iniciaria um massacre em larga escala.
Dorothea não estava tão certa quanto Hekatah, mas o fato de Jaenelle ter poupado a vida de Alexandra após o episódio do rapto era um bom indicador da ausência de um temperamento adequado. Se fosse ela, não teria poupado a vadia. Essa característica de Jaenelle era um ponto a favor delas, mas...
– Parece que você se esquece das presas do senhor supremo, que não tem qualquer pudor em usá-las.
– Quando se trata de Saetan, eu não me esqueço de nada – resmungou Hekatah. – Sua honra lhe cria problemas, como sempre aconteceu, e suas próprias fraquezas emocionais irão amordaçá-lo. Com a persuasão certa, enfiará o rabo entre as pernas e fará tudo o que exigirmos dele.
Dorothea esperava que aquele saco de ossos podres tivesse razão. Era crucial eliminar Saetan, Lucivar e Daemon. Depois que esses três desaparecessem, os exércitos terreillianos conseguiriam aniquilar as rainhas e os príncipes dos senhores da guerra de Kaeleer. Exércitos inteiros seriam dizimados, mas sairiam triunfantes da guerra. E chegaria o momento em que ela, Dorothea, dominaria os reinos – depois de despachar a sacerdotisa das trevas para um merecido e eterno descanso.
Satisfeita com a ideia, Dorothea parou de andar pela sala e reparou que Hekatah estava prestes a sair.
– Aonde vai?
O sorriso de Hekatah era malévolo.
– A Kaeleer. Chegou a hora de ir buscar a primeira parte da isca que nos dará controle sobre Jaenelle Angelline.
Finalmente autorizado a entrar na sala de estar de Jaenelle, Andulvar a examinou e pensou em várias coisas que gostaria de fazer com Daemon Sadi. Maldição, o homem era o consorte e devia ter tomado conta dela. Jaenelle estava muito magra, a pele sob seus olhos marcada levemente pela exaustão. E havia um brilho esquisito, quase desesperado, em seus olhos.
– Príncipe Yaslana – disse Jaenelle baixinho.
Muito bem. Seria um encontro formal.
– Senhora – respondeu Andulvar, de modo rígido. – Uma vez que não estou aqui como tio, estou aqui como mestre da guarda? – Vendo Jaenelle se encolher, arrependeu-se da brusquidão das palavras. Ela não parecia capaz de aguentar muitos golpes emocionais.
– Eu... Tem uma coisa que preciso dizer. E preciso da sua ajuda.
Andulvar se esforçou para suavizar o tom de voz.
– Porque sou o mestre da guarda?
Jaenelle balançou a cabeça.
– Porque é o príncipe dos demônios. Depois de Saetan, é quem tem mais autoridade no Inferno. Os demônios-mortos irão escutá-lo... e segui-lo.
Ele se aproximou de Jaenelle e a abraçou delicadamente, receando machucá-la se a abraçasse como desejava.
– E o que é, garota?
Jaenelle relaxou o suficiente para olhá-lo nos olhos.
– Descobri um jeito de nos livrarmos de Dorothea, Hekatah e da nódoa que espalharam pelos Sangue. Mas os outros Sangue estarão correndo riscos se os demônios-mortos não estiveram dispostos a me ajudar.
Passados trinta minutos, Andulvar fechou a porta da sala de estar, deu dois passos e se deixou cair de encontro à parede.
Mãe Noite! Não tinha dúvidas de que o plano daria certo. Jaenelle não teria dito que o poria em prática se tivesse dúvidas. No entanto... Mãe Noite!
Ele combatera na última guerra entre Terreille e Kaeleer. A guerra devastara ambos os reinos, milhões morreram. E não havia feito diferença alguma. Estavam agora à beira desse mesmo precipício, combatendo uma ganância e uma ambição que voltariam se não fossem eliminadas por completo.
Assim como Mephis e Prothvar, sabia que seria inútil combater uma nova guerra do mesmo jeito. Olhara em volta da mesa quando o primeiro círculo defendeu a declaração formal de guerra e ficara imaginando quantos permaneceriam vivos ao final dela.
Jaenelle não imaginara. Sabia que nenhum deles sobreviveria. Fogo do Inferno, não admirava que estivesse fazendo tudo que podia para mantê-los no único lugar onde estariam em segurança.
E agora tinha um plano que... Mãe Noite! Mesmo depois de ter lhe contado, havia algo que não parecia certo – como se ela estivesse omitindo algum detalhe. Saetan saberia dizer, mas...
Jaenelle tinha razão quanto a isso. A assembleia e os rapazes precisariam da sabedoria e da experiência de Saetan para curar as feridas já infligidas a Kaeleer. Não podia dizer ao amigo o que Jaenelle pretendia fazer, não podia correr o risco de Saetan optar por juntar forças aos outros em vez de apenas assistir. Não poderia fazer isso porque, depois que tudo estivesse terminado, os vivos precisariam do senhor supremo.
Ladvarian aguardou na penumbra até se certificar de que Andulvar tinha mesmo ido embora. Então, entrou sorrateiramente na sala de estar de Jaenelle.
Jaenelle olhava pela janela. Ladvarian queria lhe dizer que tudo se resolveria, mesmo sem ter certeza disso. Sim, tinha certeza. Tudo ficaria bem. Os parentes não duvidariam. Os parentes seriam corajosos. Mas não podia lhe dizer isso pois o momento era de mostrar presas e garras. Era o momento de matar. E eles não tinham certeza se Jaenelle seria capaz de matar se dissessem o que iria acontecer depois.
Mas havia outra coisa que tinha de lhe contar.
*Jaenelle?*
Quando olhou para ele, havia uma imensa tristeza e um imenso prazer em seus olhos.
– O que foi, irmãozinho?
*Tenho uma mensagem para você. Da tecelã de sonhos.*
Jaenelle ficou petrificada, e Ladvarian teve medo que a feiticeira olhasse dentro dele e descobrisse o que queria esconder.
– Qual é a mensagem?
*Ela disse que o triângulo tem que ficar unido para sobreviver. O espelho conseguirá manter os outros a salvo, mas só se eles se estiverem juntos.* Hesitou ao ver que Jaenelle apenas olhava para ele. *Quem é o espelho?*
– Daemon – respondeu distraidamente. – É o reflexo do pai.
Pareceu perdida por um momento, tempo suficiente para deixá-lo nervoso.
*Entendeu a mensagem?*
– Não – disse, ficando extremamente pálida. – Mas tenho a certeza de que irei.
Luthvian ouviu a porta do quarto se abrir, mas continuou enfiando roupas na mala de viagem e não se virou. Maldito filhote eyrieno, entrando em seu quarto sem permissão. E maldito Lucivar por insistir que fosse para a fortaleza acompanhada. Não precisava de acompanhantes, especialmente Palanar, que mal tinha idade para assoar o próprio nariz.
Quando se virou para lhe dizer isso, uma silhueta encapuzada se lançou em cima dela. Na mesma hora, instintivamente, ergueu um escudo vermelho. Mas foi atingida por uma explosão de poder vermelho que impediu que o escudo se formasse. A silhueta a agarrou. Luthvian não percebeu que tinha sido esfaqueada até o inimigo puxar a lâmina de seu corpo.
Como curandeira, sabia que era grave – uma ferida mortal.
Furiosa, ciente de que não lhe restava muito tempo, arrancou o capuz do atacante e olhou estarrecida para ele por um momento.
– Você.
Hekatah enfiou a faca no abdômen de Luthvian.
– Vagabunda! Ao meu lado podia ter chegado longe. Agora não passará de um cadáver.
Luthvian tentou lutar, tentou arranhar, mas os braços estavam pesados demais. Não conseguiu fazer nada nem quando Hekatah cravou os dentes na sua garganta e se alimentou do seu sangue, aquela vagabunda desprezível.
Já não podia fazer nada pelo corpo, mas... Reunindo as forças e a raiva, canalizou-as para as barreiras interiores.
Hekatah martelava as barreiras enquanto se alimentava, tentando quebrá-las para consumar o assassinato. Mas Luthvian resistiu, deixando que a raiva formasse a ponte entre a vida e a morte enquanto depositava sua força nas barreiras interiores. O tempo todo, até não restar mais nada. Nada.
Em certo momento, a luta parou e Luthvian sentiu uma satisfação sinistra diante da incapacidade da vagabunda em penetrá-la. Muito distante, sentiu Hekatah rolar por cima dela. Em algum lugar na distância vaga e nebulosa viu unhas afiadas descendo na direção de seu rosto.
O movimento foi interrompido quando as unhas estavam prestes a tocar seus olhos.
– Não – disse Hekatah. – Se você conseguir fazer a transição para demônia-morta, quero que veja o que farei com seu garoto.
A porta do quarto se fechou. Silêncio.
Luthvian se sentiu desvanecendo. Com esforço, dobrou os dedos. A raiva provocara uma transição rápida sem que se desse conta, sem que Hekatah tivesse percebido. Era demônia-morta, mas não tinha forças para resistir. Seu eu logo seria um sussurro nas trevas. Talvez, um dia, depois de ter repousado e adquirido alguma força, pudesse sair das trevas e voltar aos reinos dos vivos. Talvez.
Quantas vezes Lucivar a advertira para erguer escudos de aviso em volta da casa? Todas as vezes, rejeitara a sugestão com um ar de desdém. Mas ficara secretamente contente por Lucivar ter tentado.
Fora um teste, mas ela era a única que sabia. Todas as vezes que ele mencionava os escudos depois de Luthvian ter rejeitado a ideia, todas as vezes que suportava sua língua afiada ao ajudá-la em alguma situação, tudo fora um teste para provar que gostava dela.
Algumas vezes, ao ver a tensão no rosto e a frieza nos olhos de Lucivar, dizia a si mesma que seria a última vez, o último teste. Quando voltasse a mencionar os escudos, faria como lhe pedia para que soubesse que também gostava dele.
E a vez seguinte chegava e Luthvian queria mais um teste, precisava de mais um teste. Só mais um. E mais outro. Sempre mais outro. Agora os testes tinham acabado, mas seu filho, seu belo príncipe eyrieno dos senhores da guerra, nunca saberia que o amara.
Bastaria uma hora entre os demônios-mortos. Uma hora para lhe dizer. Não podia sequer lhe deixar uma mensagem. Nada. Não. Um momento. Talvez fosse possível lhe dizer o mais importante, algo que a vinha dilacerando desde que Surreal a repreendera.
Reuniu todas as forças que tinha, deu a elas a forma de uma bolha para que pudesse reter um pensamento e empurrou-a para cima, para cima, para cima.
Lucivar a encontraria. Tinha certeza.
Não havia âncora. Nada a que pudesse se agarrar. Cheia de remorsos atenuados por uma bolha de amor confesso, desvaneceu, voltando às trevas.
Palanar bateu à porta da cozinha, relutante. Imaginava que era uma honra ter sido escolhido para acompanhar lady Luthvian à fortaleza, mas ela já deixara claro que não gostava de machos eyrienos. Assim, não sabia se esta era a forma de Hallevar mostrar que confiava nele ou se seria um castigo sutil por algo que havia feito.
Abriu a porta e espreitou com cautela.
– Lady Luthvian?
Ela estava na cozinha, de pé junto à mesa, olhando para ele. Sorriu e disse:
– Não tem colhões, pequeno guerreiro?
Ofendido, ele entrou na cozinha.
– Está pronta? – perguntou, esforçando-se para imitar o tom de voz arrogante de Falonar ou Lucivar.
Ela olhou para a mala de viagem a seu lado, depois para Palanar.
Desde quando Luthvian esperava que um macho carregasse o que quer que fosse para ela? Da última vez que havia tentado, ela quase lhe rachara a cabeça. Hallevar estava certo ao dizer: “É melhor se resignar ao fato de que uma mulher pode mudar de ideia mais rápido do que o tempo de um peido.”
Deu alguns passos na direção da mulher e parou.
– Algum problema? – perguntou Luthvian, desconfiada.
Ela fedia. Era esse o problema. Fedia demais. Mas não podia dizer isso. Foi então que reparou que parecia um pouco... estranha.
– Algum problema? – perguntou novamente, avançando um passo.
Palanar recuou dois passos. O rosto de Luthvian se alterou, tremeu. Por um instante, pensou ver outra pessoa. Alguém que não conhecia... e que não desejava conhecer.
E se lembrou de outra frase de Hallevar: “Às vezes, correr era a atitude mais inteligente que um guerreiro inexperiente podia tomar.”
Correu para a porta, mas não conseguiu alcançá-la. Uma explosão de poder atravessou suas barreiras interiores. Agulhas atravessaram sua mente, desenvolveram ganchos e espetaram mais fundo, arrancando pedacinhos de seu eu. O corpo vibrava enquanto se debatia numa espécie de cabo de guerra, enquanto tentava sair pela porta ao mesmo tempo que ela o puxava para dentro.
Impotente, sentiu-se girando... e viu a feiticeira que o mantinha preso. Gritou.
– Você irá exatamente onde eu mandar. Dirá exatamente o que eu mandar dizer.
– Nã-não.
No rosto em decomposição brilharam olhos dourados, e Palanar sentiu a dor a queimá-lo.
– É uma tarefa pequena, filhotinho. Depois que terminá-la, libertarei você.
Mostrou um pequeno cristal flutuando no ar. O eyrieno estendeu o braço esquerdo para pegá-lo.
Disse a ele exatamente aonde ir, exatamente o que dizer, exatamente o que fazer com o feitiço no cristal. Então, voltou a girá-lo, como uma marionete. Ele saiu porta afora.
Um guerreiro não faria isso, qualquer que fosse o preço. Um guerreiro não faria isso.
Tentou levar a mão direita à faca. Podia cortar a garganta, os pulsos, fazer algo para se livrar dela.
A mão se fechou no cabo.
*Morrer não servirá de nada, pequeno guerreiro*, disse a feiticeira. *Sou a sacerdotisa suprema. Não é assim que escapará de mim.*
Deixou cair a mão ao lado do corpo, vazia.
*Agora, vá!*
Palanar abriu as asas e voou tão rápido quanto possível para fazer algo que um guerreiro não faria.
Não era o vento no rosto que o fazia chorar.
Em sua casa na colina, Lucivar se sentou e gritou:
– Marian!
Onde diabo estaria essa mulher?, pensava enquanto caminhava a passos largos até a porta. Devia ter chegado à fortaleza horas antes. Entrou e viu a pilha arrumada de malas de viagem. Por um momento seu coração parou. Quando voltou a senti-lo bater, já estava no limiar assassino.
– Marian!
A casa era grande, mas não demorou muito a percorrê-la. Marian e Daemonar não estavam lá. As malas estavam feitas, então o que a teria impedido de partir? Talvez Daemonar tivesse ficado doente? Teria ido à casa de Nurian para que a curandeira o examinasse?
Sendo o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih, sua casa estava um pouco mais afastada das outras casas na montanha, mas só precisou de dois minutos para chegar à casa de Nurian. Antes de pousar, já sabia que não estavam ali.
– Lucivar!
Ao ver Hallevar correndo na sua direção, Lucivar se virou. Reparou em Falonar e Kohlvar saindo da casa coletiva, que era o que os eyrienos tinham de mais parecido com estalagens e tabernas. Ambos, ouvindo a agitação na voz de Hallevar, se dirigiram a ele.
– Viu aquele filhote, Palanar? – perguntou Hallevar.
Antes que Lucivar respondesse, Falonar se adiantou.
– Não o mandou à casa de lady Luthvian para acompanhá-la à fortaleza?
– Mandei – respondeu Hallevar, com um ar carregado. – E disse para voltar para cá depois. – Olhou para Lucivar. – Eu estava aqui pensando se não estaria fazendo cera na fortaleza para escapar das tarefas.
– Palanar não chegou à fortaleza. Nem Luthvian. Nem Marian nem Daemonar – acrescentou Lucivar, com uma serenidade exagerada.
Os outros homens ficaram agitados.
– Mandei-o logo de manhã – disse Hallevar.
– Algum sinal de problema na casa dele? – perguntou Falonar bruscamente.
– Não – disse Lucivar. – As malas estavam feitas e arrumadas junto à porta. – Praguejou baixinho. – Onde diabo foi que se meteu?
– Foi à casa de lady Luthvian – disse uma voz feminina e jovem.
Viraram-se todos e ficaram olhando para Jillian, a irmã mais nova de Nurian. Ela deu de ombros e parecia prestes a correr de volta para casa.
Hallevar apontou para o chão bem à sua frente.
– Aqui, pequena guerreira – disse, com rispidez.
Assustada, Jillian arrastou os pés até o local, deu uma olhada nos enormes guerreiros que a circundavam e fitou os pés.
– Faça seu relatório – disse Hallevar naquele tom de voz que, embora fosse encorajador, fazia com que todos os jovens machos que tinha treinado se pusessem em sentido.
O efeito foi o mesmo sobre Jillian, que enrijeceu e se concentrou em Hallevar.
– Eu estava fazendo minha corrida esta manhã. – Aguardou até que Hallevar assentisse, em aprovação. – E pensei em ir pelo caminho que leva à casa do príncipe Yaslana, porque, bem, talvez lady Marian precisasse de uma ajudinha com Daemonar, e eu podia tomar conta dele um pouco, para ela conseguir fazer alguma coisa. Não é que estivesse querendo escapar do treino nem nada disso, porque tomar conta de Daemonar é um exercício pesado.
Apesar da preocupação, os lábios de Lucivar estremeceram diante do esforço para não sorrir.
– Eu estava quase chegando quando vi Marian à porta, falando com Palanar, que parecia... doente. Suava muito e... Não sei. Nunca vi ninguém daquele jeito. E foi então que Marian estremeceu como se alguém tivesse batido nela, mas Palanar nem sequer a tocou. Disse: “Traga o garoto.” Marian entrou e voltou com Daemonar. Daemonar olhou para Palanar e começou a chorar. Sabem aquele som que Daemonar faz quando não gosta de alguma coisa?
Lucivar assentiu. Sentiu um suor frio cobrindo sua pele.
– Palanar agarrou Marian por um braço. Não parava de dizer: “Perdão, perdão.”
– Ele viu você? – perguntou Lucivar, com demasiada calma.
Jillian balançou a cabeça.
– Mas Marian viu. Olhou diretamente para mim, e seu rosto tinha o mesmo aspecto doente de Palanar. Ela disse: “Casa de Luthvian.” Depois foram embora.
Terminado o relato, sua confiança desapareceu ao olhar para os homens de rostos carregados.
– Contou isso para mais alguém? – perguntou Lucivar.
Pálida, Jillian balançou a cabeça.
– Eu... Nurian não estava em casa quando voltei e... Eu não sabia que tinha de apresentar um relatório – terminou numa voz quase inaudível.
E teria hesitado em se dirigir a um dos guerreiros, pois arriscava ser mandada embora com indiferença pelo fato de ser uma fêmea. Alguns meses vivendo em Kaeleer não tinham sido suficientes para superar as táticas de sobrevivência que aprendera desde que saíra do berço.
– Quando um guerreiro vê alguma coisa fora do comum, ele ou ela deve relatar a seus superiores – disse Hallevar numa voz firme embora meiga. – É uma das formas de um jovem guerreiro ganhar experiência.
– Sim, senhor – sussurrou Jillian.
– Foi um belo primeiro relatório, Jillian – disse Lucivar. – Agora, pode voltar a suas tarefas.
Jillian endireitou os ombros. Seus olhos brilhavam de orgulho.
– Sim, senhor.
Nenhum dos homens disse uma única palavra até a moça ter entrado em casa.
– Parece um feitiço de coação – disse Falonar baixinho.
– Sim – retrucou Lucivar, com tristeza –, é o que parece. Falonar, fique de olho por aqui.
– Vai à casa de Luthvian? – perguntou Hallevar enquanto Lucivar se afastava. – Então vou com você.
– Não, não vai – disse Falonar. – Kohlvar, traga todos para junto das casas eyrienas. Hallevar, você tem maior influência sobre os jovens. Tome conta deles.
– E você, o que vai fazer? – perguntou Lucivar, com demasiada serenidade.
Falonar se colocou em posição de combate.
– Eu vou com você.
Encontraram Palanar no chão, do lado de fora da porta da cozinha.
– Eu tomo conta dele – disse Falonar. – Entre.
Invocando a espada de guerra eyriena, Lucivar abriu a porta da cozinha com um pontapé e entrou. O fedor ali o deixou nauseado; lembrava carne em decomposição.
Esse pensamento o seguiu pelos outros cômodos do andar de baixo. Não encontrando nada, subiu furiosamente as escadas. Chutou a porta do quarto, e ao abri-la viu Luthvian. Sondou o quarto para se certificar de que não havia ninguém esperando que baixasse guarda e se ajoelhou junto ao corpo.
Primeiro, pensou que ainda estivesse viva. As feridas que conseguia detectar eram graves, mas não havia tanto sangue. Ao afastar o cabelo do pescoço, descobriu por quê.
Pousou a mão na cabeça de Luthvian. Tudo bem. O corpo havia morrido, mas ela tinha força suficiente para realizar a transição para demônia-morta. Se houvesse qualquer sinal de que ainda estava ali, o sangue fresco iria fortalecê-la.
Sondou com cuidado para não perfurar suas barreiras interiores e, sem querer, consumar a morte.
Pouco antes das barreiras interiores encontrou uma pequena bolha de poder. Fez uma pausa, ponderou. A bolha tinha uma afetuosidade que o deixou desconfiado. Não era o tipo de emoção que associaria a Luthvian. Mas como não detectou nada que o fizesse acreditar que corria perigo, roçou levemente uma pequena gavinha psíquica na bolha.
Lucivar... Eu estava errada sobre Marian. Você fez a escolha certa. Espero que sejam felizes.
Sentiu os olhos ardendo em lágrimas. Tocou as barreiras interiores, que se abriram sem resistência. Procurou por Luthvian, procurou o menor bruxulear de seu espírito. Nada.
Luthvian voltara às trevas. Uma lágrima escorreu por seu rosto.
– Fogo do Inferno, Luthvian – disse, com a voz embargada. – Por que esperou até morrer para me dizer isso? Por que...?
– Lucivar!
Pôs-se de pé num salto, reagindo à dor e à raiva na voz de Falonar. Parou à porta e olhou para trás.
– Que as trevas o envolvam.
Falonar o esperava na cozinha.
– E Palanar? – perguntou Lucivar.
Falonar balançou a cabeça. Não precisava perguntar sobre Luthvian.
– Encontrei isso. – Indicou uma folha de papel dobrada em cima da mesa.
Lucivar fitou o papel que tinha seu nome. Não reconheceu a caligrafia, e sentiu uma repulsa instintiva ao tocar o papel. Por meio da arte, desdobrou a folha, leu e saiu intempestivamente pela porta.
– Lucivar! – gritou Falonar, correndo atrás dele. – Onde está indo?
– Volte para as casas na colina – ordenou Lucivar enquanto prendia as manoplas de combate nos braços. – Agora você é o responsável, príncipe Falonar.
– Onde está indo?
Lucivar ascendeu ao limiar assassino, sentindo a raiva fria e doce inundá-lo.
– Vou tirar minha esposa e meu filho das garras daquelas vagabundas.
O ataque começou assim que Falonar voltou para as casas na colina. O escudo azul-safira o envolveu um segundo antes que uma flecha o atingisse pelas costas. Invocou o arco, colocou uma flecha em posição, acrescentou um pouco de energia da azul-safira à seta e disparou.
Levou alguns instantes para sondar a área e avaliar o inimigo. Praguejou violentamente. Havia ali uma companhia inteira de guerreiros eyrienos. Nenhum deles usava uma joia mais escura do que a verde, por isso sua joia azul-safira equilibraria um pouco o confronto, mas seus guerreiros estavam em grande desvantagem numérica. Todos os homens cairiam lutando, mas isso não seria o suficiente para salvar as mulheres e as crianças.
– A casa coletiva! – gritou Hallevar, conduzindo as mulheres e as crianças nessa direção. – Depressa! Depressa!
Boa jogada, pensou Falonar em aprovação, lançando outra flecha. Tinha espaço para todos e dava aos guerreiros um campo de batalha concentrado em vez de vários dispersos.
Seu escudo defletiu mais uma dúzia de flechas. Tendo ascendido ao limiar assassino, deixou-se envolver pela raiva fria e lutou com a mente despida de emoções. Suas flechas atingiram os alvos.
Ouviu alguém gritar. Olhou para a esquerda e viu Nurian lutando com um senhor da guerra eyrieno. Começou a se virar, mas, antes que conseguisse puxar o arco, um outro guerreiro investiu contra ele com um bastão laminado. Fazendo desaparecer o arco e a seta, Falonar invocou seu próprio bastão laminado e fez frente ao ataque. Enquanto recuava numa dança, à procura de um espaço, Nurian voltou a gritar.
Que se danasse a honra. Estavam em guerra. Quando o adversário investiu novamente, recebeu o golpe com uma manobra desonesta e maldosa que aprendera com Lucivar e que liquidou o oponente.
No momento em que se virou, pensando ser tarde demais para salvar a curandeira, ouviu Jillian gritar:
– Abaixe-se, Nurian!
A voz de Jillian transformou Nurian de mulher indefesa em aprendiz de guerreira. Ela chutou furiosamente a virilha do senhor da guerra enquanto caía para trás. O chute não foi certeiro, mas bastou para surpreender o homem, que se desequilibrou diante do movimento inesperado. Enquanto tentava se reequilibrar, uma flecha veio silvando pelo ar e cravou o peito do homem.
Jillian já estava colocando outra flecha no arco e fazendo pontaria enquanto Nurian se levantava e corria agachada, para ficar fora da linha de fogo.
Falonar lançou um escudo azul-safira sobre Jillian a tempo de deter as flechas que lhe acertariam em cheio.
– Bater em retirada! – gritou, quase espumando ao ver Jillian lançar outra flecha, com toda a calma. – Droga, guerreira, bater em retirada!
Jillian estremeceu ao ouvir essa ordem, mas foi o grito de Nurian que a fez correr.
Preparado para cobrir a retirada das mulheres, Falonar olhou para trás e lançou as piores pragas que conhecia. Nurian estava agora envolvida numa luta e tinha apenas um bastão eyrieno. Nem era um bastão laminado. O que aquela mulher achava que podia fazer com aquilo? Estaria pensando que um guerreiro a atacaria com as próprias mãos? Tola. Idiota.
Recuou até Nurian, sempre atento ao próximo ataque.
– Ei! – rosnou para ela. Ele reparou que Jillian, em vez de correr até a casa coletiva, tinha parado a meio caminho para assumir uma posição de retaguarda. – Se me desobedecerem de novo, eu mesmo esfolarei vocês. As duas. Bater em retirada, agora!
As mulheres reagiram como qualquer guerreiro eyrieno: ignoraram a ameaça e mantiveram suas posições. Assim, Falonar bateu em retirada, obrigando-as a segui-lo. Isso elas estavam dispostas a fazer. Lucivar devia estar louco ao pensar que uma mulher obedeceria a uma ordem sensata. E Falonar se sentiu muito agradecido por Surreal não estar ali. Só as trevas sabiam como conseguiria mantê-la longe dos combates.
Quando já estavam bem perto da casa coletiva na colina, Hallevar agarrou Jillian e Kohlvar praticamente atirou Nurian pela porta. Falonar foi o último a entrar. Assim que atravessou a soleira, pôs um escudo azul-safira à entrada, para que ficassem protegidos e pudessem ver o que estava acontecendo, sem impedimentos. Alguns homens tinham tomado posições nas janelas protegidas com escudos do andar de baixo. Outros haviam se instalado nos cômodos dos pisos superiores. As mulheres e crianças estavam amontoadas no salão principal.
Hallevar se juntou a Falonar à porta.
– Acha que estão se reorganizando?
– Não sei.
Atrás deles, ouviu Tamnar dizendo, com algum ressentimento:
– Ora, pequena guerreira, parece que acabou de praticar seu primeiro assassinato.
Falonar e Hallevar se viraram ao mesmo tempo e lançaram a mesma mensagem, em uníssono.
*CALA A BOCA!*
O garoto estremeceu, parecendo surpreso com a reprimenda severa, e se esgueirou até a janela vigiada por Kohlvar. Jillian ficou olhando estupefata para os dois, a pele normalmente morena agora com uma tez pálida e doentia.
– Matei ele?
Antes que Falonar conseguisse elaborar uma resposta cautelosa, Hallevar resfolegou.
– Fez alguns arranhões, o que deu tempo para Nurian fugir.
– Isso é... Ah.
– Agora vá assumir uma posição de retaguarda ali – disse Hallevar, indicando um canto distante do salão.
– Está bem – disse Jillian, parecendo ligeiramente atordoada.
Falonar olhou para fora.
– Acertou a flecha em cheio no coração do filho da puta – disse, mantendo a voz baixa.
– Ela não precisa saber disso agora – respondeu Hallevar, também baixinho. – Deixe acreditar que fez apenas uns arranhões. Não podemos permitir que fique paralisada, se chegarmos a esse ponto.
– Se chegarmos a esse ponto – disse Falonar suavemente enquanto se preparava para aguardar.
Saetan perambulava pelos corredores da fortaleza, inquieto demais para ficar parado num só lugar, nervoso demais para tolerar a companhia de outras pessoas.
Lucivar deveria ter voltado há horas. Sabia que ele tinha saído sorrateiramente da fortaleza de manhã para verificar o que estaria atrasando Marian e Daemonar, mas estava escurecendo e não havia sinal deles.
Duvidava que alguém tivesse percebido. A assembleia e os rapazes estavam reunidos numa das amplas salas de estar, como faziam todos os dias desde que Jaenelle ordenara que não saíssem na fortaleza. Por isso, não perceberiam que Lucivar tinha saído. E Jaenelle e Daemon... Bem, também não era provável que tivessem percebido.
Surreal percebera a ausência de Lucivar, mas encarou o assunto com um dar de ombros, dizendo a si mesma que provavelmente estaria com Prothvar e Mephis. O que fez Saetan se dar conta de que também não vira nenhum deles recentemente.
Precisava encontrar uma maneira de fazer Jaenelle ouvi-lo, precisava descobrir por que mantinha todos sob mão de ferro. Admitisse ou não, a verdade é que estavam em guerra. As rainhas e os machos do primeiro círculo não iriam tolerar essa espera indefinida, enquanto o povo lutava.
Alguma coisa tinha que mudar. Alguém tinha que agir.
Falonar aceitou a caneca de cerveja que Kohlvar lhe ofereceu.
– Não faz sentido – disse Kohlvar, balançando a cabeça. – Acabaram os ataques diretos, não estão fazendo esforços para montar um cerco, apenas umas flechas para se certificarem de que sabemos que ainda estão por aqui.
– Estamos encurralados – respondeu Falonar. – Estamos em desvantagem numérica, e eles sabem disso.
– Mas por que nos encurralam?
Não podemos ir a lugar nenhum, pensou Falonar. Não podemos relatar nada.
– Por quê? – repetiu Kohlvar.
– Não sei. Mas acho que vamos descobrir mais cedo ou mais tarde.
A resposta chegou ao entardecer. Um senhor da guerra se aproximou da casa coletiva, com os braços abertos e desarmado.
– Trago uma mensagem – gritou, segurando um envelope branco.
– Deixe-a no chão – gritou Falonar.
O senhor da guerra pousou o envelope no chão, colocando uma pequena pedra em cima para evitar que fosse levado pelo vento. Voltou pelo mesmo caminho.
Passados alguns minutos, Falonar viu a companhia eyriena levantar voo. Aguardou mais uma hora e só então usou a arte para puxar o envelope até a entrada. Ainda do outro lado do escudo azul-safira, Falonar criou uma bola de fogo encantado para iluminar a inscrição, o nome do destinatário.
Um grande temor percorreu seu corpo. Era a mesma caligrafia da mensagem para Lucivar. Mas desta vez o envelope estava dirigido ao senhor supremo.
Chamou Kohlvar, Zaranar e Hallevar.
– Vou levar a mensagem à fortaleza e relatar os acontecimentos.
– Pode ser uma armadilha – disse Hallevar. – Podem estar aguardando você dar o próximo passo.
Sim, tinha certeza de que era uma armadilha. Mas não para ele.
– Acho que não vão mais nos importunar, mas fiquem alertas. Não deixem ninguém entrar, quem quer que seja. Ficarei na fortaleza até o amanhecer. Se eu voltar antes... façam o melhor que puderem para me matar.
A mensagem havia sido captada. Se ele voltasse antes, deveriam presumir que estava sendo controlado.
– Que as trevas o protejam – disse Hallevar.
Falonar atravessou o escudo azul-safira. Pegou o envelope e voou em direção à fortaleza.
Saetan olhava fixamente para o pedaço de papel. As emoções se acumulavam, por isso tentou escondê-las.
Estou com o seu filho.
Hekatah
O que significava também que estava com Marian e Daemonar, uma vez que essa era a única isca que atrairia Lucivar a Hayll.
Agora era Lucivar que servia de isca para Saetan. Compreendia o jogo. Hekatah e Dorothea estariam dispostas a negociar Lucivar, Marian e Daemonar por ele.
Era evidente que não libertariam Lucivar. Não podiam fazer isso. Assim que conseguisse pôr Marian e Daemonar a salvo, investiria contra Hekatah e Dorothea com todo seu poder destrutivo.
Era um acordo falso desde o início.
Podia ir a Hayll e destruir Dorothea e Hekatah. Duas sacerdotisas de joia vermelha não fariam frente a um príncipe dos senhores da guerra de joia negra. Podia ir até lá, lançar um escudo negro sobre Lucivar, Marian e Daemonar para protegê-los e então libertar seu poder. Matar todas as criaturas num raio de quilômetros.
Mas isso não acabaria com a guerra. Não agora. Talvez nunca fosse possível. E era precisamente a guerra que tinha que acabar, e não apenas as duas feiticeiras que a tinham desencadeado.
Por isso, entraria no jogo... pois assim finalmente conseguiria a arma de que precisava.
Tudo tem um preço.
Retirou o pingente com a joia negra e pousou-o na mesa. Retirou o anel de administrador da mão esquerda, o anel que continha o mesmo escudo ébano que Jaenelle pusera nos anéis de honra.
Mesmo que Daemon estivesse influenciando Jaenelle, mesmo que fosse ele a razão que a levava a resistir a uma declaração formal de guerra, nem mesmo ele conseguiria evitar que Jaenelle reagisse. Não a estes fatos.
Não pense. Seja um instrumento.
Ao avançar para a armadilha que Dorothea e Hekatah haviam armado para ele, desencadearia algo que sem dúvida traria à superfície o lado explosivo e selvagem de Jaenelle: seu próprio sofrimento.
É claro, não voltaria a ser o mesmo depois que aquelas duas vagabundas terminassem com ele. Nunca mais...
Abriu a gaveta da mesa, acariciou o envelope com cheiro de alfazema.
– Às vezes o dever segue por caminhos que não podem ser percorridos pelo coração. Lamento, Sylvia. Teria sido uma honra ser seu marido. Lamento.
Fechou a gaveta, pegou a capa e saiu discretamente da fortaleza.
Daemon deslizou pelos corredores da fortaleza. Passara as últimas horas fazendo uma quantidade suficiente de tônicos para Karla para durar três meses, de acordo com as instruções de Jaenelle. Quando a questionou, lembrando-a de que os tônicos medicinais que continham sangue perderiam o vigor depois de tanto tempo, ela lhe disse que havia calculado isso, de modo que a potência fosse reduzida de acordo com a necessidade. E quando lhe perguntou por que...
Bem, seria de esperar que ficasse esgotada ao libertar a quantidade de energia necessária para deter completamente Dorothea e Hekatah. Mas os três meses que levaria para se recuperar o deixavam preocupado. Agora que estava quase terminando... o que quer que fosse... estava preocupado também que os rapazes pudessem finalmente escapar das rédeas e se lançar na batalha.
Estavam hostis demais em relação a Daemon e não ouviriam nada do que lhes dissesse, mas esperava que Saetan ainda pudesse agir com sensatez. Estava bastante seguro de que poderia fazer o senhor supremo compreender que a evasão de Jaenelle tinha um motivo, que só precisavam de mais alguns dias. Mais alguns dias e a ameaça a Kaeleer terminaria, a ameaça que Dorothea e Hekatah sempre representaram para os Sangue chegaria ao fim.
Bateu à porta de Saetan e entrou com cautela quando ouviu a voz de Surreal responder:
– Entre.
Ela estava diante da mesa menor. Falonar estava a seu lado, parecendo cansado e irritado. Surreal não parecia cansada e estava longe de demonstrar irritação.
– Veja – apontou ela.
Mesmo de onde estava conseguia ver o pingente e o anel de administrador. Enfiando as mãos nos bolsos das calças, contornou a mesa, reconhecendo em silêncio o golpe emocional quando Surreal se afastou deliberadamente dele. Leu a mensagem e sentiu um calafrio afiado rasgando as costas.
– E agora, vai fazer alguma coisa? – perguntou Surreal, batendo com os punhos na mesa. – Já não são desconhecidos que estão morrendo. Aquelas putas estão com seu pai e seu irmão.
Com grande sofrimento, conseguiu manter o tom de voz entediado.
– Lucivar e Saetan optaram por correr o risco quando desobedeceram às ordens. Nada mudou.
Não podia mudar. Não se Jaenelle fosse salvar Kaeleer.
– Marian e Daemonar também foram levados.
É claro. Ficou apreensivo em relação a Marian, mas não verdadeiramente preocupado. Se Marian fosse violentada ou ferida de algum modo, nem mesmo um anel de obediência seria capaz de impedir Lucivar de iniciar um massacre em larga escala. Por isso, não estava verdadeiramente preocupado com Marian, mas a ideia de Daemonar nas mãos daquelas vagabundas, nem que fosse por uma hora...
– É certo que exigirão algum tipo de resgate – disse, com indiferença. – Veremos o que se pode fazer.
– O que se pode fazer? – disse Surreal. – O que se pode fazer? Não sabe o que Dorothea e Hekatah farão com eles?
Era óbvio que sabia, muito melhor do que Surreal.
A voz de Surreal era puro veneno.
– Pelo menos vai informar Jaenelle?
– Sim, acho que a senhora precisará ter conhecimento desse inconveniente.
Saiu enquanto Surreal cuspia pragas.
Desejava que ela tivesse chorado. Desejava que tivesse gritado, berrado, ficado furiosa, praguejado, chorado lágrimas amargas. Não sabia o que fazer com a mulher que embalara em seu colo durante a última hora.
Tinha transmitido a informação da forma mais delicada que conseguiu. Ela não dissera nada. Apenas pousara a cabeça no ombro de Daemon e mergulhara dentro de si, descendo tão fundo no abismo que não conseguia sequer senti-la.
Por isso, ele a abraçou. Às vezes fazia carinhos, afagos, não para excitá-la, mas para relaxá-la. Podia tê-la trazido de volta pelo sexo, mas isso seria violar a confiança que depositava nele. Ao pousar a mão em seu peito, fora para se assegurar de que o coração ainda batia. Cada sopro quente no pescoço era uma promessa tácita de que iria voltar.
Por fim, ao final de quase duas horas, Jaenelle se mexeu.
– O que acha que vai acontecer agora? – perguntou, como se não tivesse existido aquele hiato entre as notícias e a pergunta.
– Mesmo viajando pelos ventos negros, Saetan levaria duas horas ou mais para chegar a Hayll. Não sabemos quando ele partiu...
– Mas a esta hora já deve ter chegado.
– Sim. – Fez uma pausa, ponderou novamente o assunto. – Lucivar e Saetan não são o prêmio. São a isca. E a isca perde valor se for danificada. Por isso, acho que eles estão relativamente seguros por enquanto.
– Dorothea e Hekatah esperam que eu entregue Kaeleer para ter Lucivar e Saetan de volta, não é? – Sem obter resposta, Jaenelle levantou a cabeça e examinou Daemon. – Não. Isso não serviria de nada, não é? Para manter Kaeleer, terão de ser capazes de me controlar, de usar minha força para dominar.
– Sim. Lucivar e Saetan são a isca. O prêmio é você. – Daemon afastou o cabelo de Jaenelle do rosto. – Falta muito para acabar o... feitiço? – Sabia que era muito mais do que um feitiço, mas era uma palavra tão boa quanto outra qualquer.
– Mais algumas horas. – Mexeu-se um pouco mais. – Eu deveria retomar o trabalho.
Abraçou-a com mais força.
– Ainda não. Fique comigo um pouco mais. Por favor.
Jaenelle relaxou em seus braços.
– Vamos trazê-los de volta, Daemon.
Pai. Irmão. Fechou os olhos e pressionou o rosto contra a cabeça dela, procurando seu calor e contato.
– Sim – sussurrou –, vamos trazê-los de volta.
Ladvarian estudou a câmara que seria a casa da feiticeira por uns tempos. Um velho tapete que trouxera do Paço cobria o chão de pedra. Trouxera também dois candeeiros e muitas velas perfumadas. A cama estreita que Tersa lhe dera estava ao centro do quarto. O baú estava ao lado e continha algumas roupas, livros que Jaenelle gostava de ler quando tinha necessidade de se aconchegar para descansar, seus cristais de música preferidos e alguns artigos de higiene. Não trouxera quadros, já que as três paredes e o teto do quarto estavam cobertos com camadas de teias curativas. A parede ao fundo estava coberta pela teia emaranhada de sonhos e de visões que formara o mito vivo, os sonhos tornados realidade, a feiticeira.
*Está pronta?*, perguntou, de modo respeitoso, à enorme aranha dourada que era a tecelã de sonhos.
*A teia está pronta*, respondeu a rainha aracniana, roçando delicadamente uma pata numa das gotas de sangue seladas em bolhas d’água e protegidas por escudos. *Agora acrescento memórias. Mas preciso de memórias humanas.*
Ladvarian ficou indignado.
*Ela era mais sonho nosso do que deles.*
*Mas também era deles. Preciso de memórias de parentes e humanos para essa feiticeira.*
Ladvarian ficou desanimado. Teria sido mais fácil com os parentes. Dissera a eles o que tinham de fazer e que era para a senhora. Era tudo que os parentes precisavam saber. Já os humanos iriam querer saber por quê, por quê, por quê. Levaria tempo para convencê-los, e tempo era algo que não tinha.
*A estranha irá ajudá-lo*, disse a aranha.
*Mas a senhora conhece matilhas de humanos, multidões. Como...?*
*O primeiro círculo tem memórias poderosas. Serão suficientes. Fale com a viúva cinza-escuro. Para uma humana, é uma excelente tecelã.*
Referia-se a Karla. Sim. Se conseguisse convencer Karla...
*Espere a hora certa de pedir. Depois que a feiticeira tiver partido para sua própria teia. Aí os humanos escutarão com mais atenção.*
*Irei para a fortaleza agora e ficarei esperando.* Ladvarian olhou ao redor mais uma vez. Não havia mais nada a fazer. O quarto estava pronto. A teia emaranhada estava concluída. Os parentes que pertenciam à corte da senhora estavam reunidos na ilha dos aracnianos para transmitir força à teia da tecelã, quando chegasse o momento.
*Mais uma coisa*, disse a aranha. *O cão cinza. Conhece esse cão?*
Surgiu uma imagem na mente de Ladvarian.
*É Presa Cinza. É um lobo.*
*Diga a ele para vir aqui. Tem algo que precisa saber.*
Estava num acampamento militar, e não seria num lugar como esse que procuraria Hekatah ou Dorothea. Ao redor do extenso perímetro, havia estacas de metal fincadas no chão, com poucos metros de intervalo. As estacas tinham dois cristais engastados, um de cada lado, enfeitiçados de modo que se alguma coisa passasse entre elas, o cristal perderia contato com o cristal da estaca seguinte, alertando os guardas. O próprio acampamento tinha agrupamentos de tendas para os guardas, algumas cabanas de madeira construídas uma ao lado da outra, perto do centro do acampamento, e duas barracas de madeira com barras nas janelas e camadas de feitiços de proteção em volta. Em frente às cabanas havia seis estacas grossas de madeira ligadas a correntes pesadas. Para prisioneiros. Como isca.
Assim que atravessou as estacas do perímetro, souberam que estava chegando. Na viagem que o trouxera aqui, pensara novamente no que iria fazer. Podia matar Hekatah e Dorothea. Podia libertar a força das joias negras, destruir todos no acampamento e levar Lucivar, Marian e Daemonar para casa. Mas isso não poria fim à guerra. Terreille precisava ser confrontada com um poder tão aterrorizante que as pessoas não se atrevessem a enfrentá-lo. Pensou mais uma vez que bastava provocar Jaenelle o suficiente para que ela libertasse seu poder ébano, dando aos terreillianos um motivo para ficar em seu próprio reino.
Enquanto caminhava para o centro do acampamento, foi seguido por guardas. Ninguém se aproximou nem tentou tocá-lo. Candeeiros redondos fixados em altos postes de metal iluminavam o chão de terra batida e manchado de sangue precisamente no centro do acampamento. Lucivar estava acorrentado à última estaca. As feridas dos golpes de chicote em seu peito e coxas tinham criado crosta e não pareciam muito profundas, então não provocariam danos graves. Tinha manchas negras no rosto, que também desapareceriam.
Saetan parou no limite da luz. Fazia dez anos que não via Hekatah, pouco mais de um suspiro de tempo para alguém com sua longevidade. E a conhecia havia muito tempo. Ainda assim, embora Dorothea estivesse a seu lado, tinha definhado de tal modo, estava de tal madeira deteriorada, que não teve certeza de que era ela até ouvi-la falar.
– Saetan.
– Hekatah. – Caminhou até o centro do chão de terra batida.
– Veio negociar? – perguntou Hekatah, afavelmente.
Ele assentiu.
– Uma vida por uma vida.
Hekatah sorriu.
– Por vidas. Vamos botar a vadia e a criança na negociação. Não temos nenhuma utilidade para eles.
Ele sabia que jamais entregariam Daemonar. Há séculos estavam empenhadas em roubar um filho de Lucivar ou Daemon, para controlar e criar e assim recuperar uma linhagem mais escura.
– Minha vida pelas deles – disse. Tudo tem um preço.
– NÃO! – gritou Lucivar, tentando se libertar das correntes enfeitiçadas. – Acabe com elas!
Ignorando Lucivar, Saetan concentrou sua atenção em Hekatah.
– Temos um acordo?
– Por uma chance de ver o senhor supremo humilhado? – disse Hekatah cheia de doçura. – É claro que temos um acordo. Assim que estiver dominado, libertarei os outros. Tem minha palavra de honra.
Ordenaram que se despisse.
Retirando o anel com a joia negra, jogou-o no chão. Tinha-o envolvido com um forte escudo para que ninguém pudesse tocá-lo. Se precisasse invocá-lo, não queria que o ouro estivesse todo sujo.
Enquanto dois guardas o prendiam ao poste central, Hekatah enfiou um anel de obediência em seu órgão genital.
– Você parece ótimo para a idade que tem – disse, recuando para examinar em detalhes o corpo nu de Saetan.
Ele sorriu de maneira gentil.
– Infelizmente, minha querida, não posso dizer o mesmo de você.
O rosto de Hekatah se contorceu de rancor.
– Já era hora de aprender uma lição, senhor supremo.
Ergueu a mão ao mesmo tempo que Dorothea, que exibia um olhar de satisfação perverso. Lucivar tentara explicar aos rapazes uma vez como um anel de obediência conseguia forçar um macho poderoso a se submeter, por isso Saetan pensava estar preparado para ele.
Nada poderia tê-lo preparado para a dor que atingiu seu pênis e os testículos antes de se espalhar pelo corpo. Os nervos ficaram inflamados, ao mesmo tempo que uma dor atroz se instalou entre as pernas. Não conseguia resistir, mal conseguia pensar.
Seus filhos tinham suportado esse sofrimento, tinham lutado contra o controle de Dorothea sabendo que era isso que os esperava após cada ato de desobediência. Durante séculos, suportaram o sofrimento. Como podia um homem não ficar alterado depois disso? Como...?
Gritou. E continuou gritando até que seu corpo apagou.
Surreal caminhava de um lado para outro na sala de estar de Karla, cada vez mais irritada. Não sabia o que a tinha levado a decidir desabafar suas frustrações com a rainha de Glácia. Talvez fosse por parecer tão indiferente a tudo o que estava acontecendo.
Tudo bem, não era justo. Karla estava de luto por seu primo, Morton. Além disso, continuava se recuperando de um envenenamento cruel. Ainda assim...
– Do jeito que o desgraçado falou parecia um inconveniente que atrasaria sua manicure. – Surreal estava furiosa. – “Veremos o que se pode fazer.” Fogo do Inferno, estamos falando do seu pai e do seu irmão!
– Você não sabe o que ele pretende fazer – disse Karla, serena.
A serenidade fez com que a fúria de Surreal subisse de tom.
– Não pretende fazer nada!
– Como sabe?
Surreal cuspiu, praguejou, andou de um lado para outro.
– É como se Jaenelle e ele quisessem que perdêssemos esta guerra.
Pela primeira vez, a fúria inflamou a voz de Karla.
– Não seja idiota.
– Olha, docinho...
– Não, olha você – respondeu Karla. – Está na hora de todos vocês se lembrarem de algumas coisas. O instinto deles os impele à guerra. Não há nada que podem fazer sobre isso, assim como não podem deixar de ser machos. E a assembleia é constituída por rainhas cujo instinto as impele a proteger seus povos.
– Que é exatamente o que deveriam estar fazendo! – gritou Surreal. – E parece que você não tem esse problema – acrescentou com maldade. Então viu as pernas enfaixadas de Karla e se arrependeu do que tinha dito.
– Quando Jaenelle tinha 15 anos – disse Karla –, o conselho das trevas tentou declarar que tio Saetan não tinha os requisitos necessários para ser seu tutor legal. Decidiram nomear outra pessoa. Jaenelle disse a eles que poderiam fazer isso “quando o sol voltasse a nascer”. Sabe o que aconteceu?
Finalmente imóvel, Surreal balançou a cabeça.
– O sol não nasceu durante três dias – disse Karla calmamente. – Não voltou a nascer até o conselho revogar a decisão que havia tomado.
– Mãe Noite – sussurrou.
– Jaenelle não queria constituir corte, não queria governar. Só se tornou rainha de Ebon Askavi para deter os terreillianos que estavam invadindo os territórios dos parentes e fazendo um massacre. Acha mesmo que a mulher que tomou essas atitudes tenha passado as últimas três semanas olhando pela janela, esperando que isso passe? Eu não penso assim. Ela precisa de nós aqui por algum motivo. Isso será revelado no momento certo. – Karla parou por um instante. – Aqui entre nós, às vezes um amigo tem de se tornar inimigo para permanecer amigo.
Karla estava se referindo a Daemon. Surreal pensou um pouco e balançou a cabeça.
– A forma como anda se comportando...
– Daemon Sadi é totalmente dedicado à feiticeira. Tudo que faz, faz por ela.
– Você não sabe disso.
– Não? – disse Karla, cheia de gentileza.
Viúva-negra. As palavras brotaram na mente de Surreal até já não restar espaço para mais nada. Viúva-negra. Talvez Karla não fosse tão indiferente ao que estava acontecendo. Talvez tivesse visto algo numa teia emaranhada.
– Tem certeza quanto a Sadi?
– Não – respondeu Karla. – Mas estou disposta a considerar a possibilidade de que o que diz em público possa ser muito diferente daquilo que faz em privado.
Surreal passou os dedos pelo cabelo.
– Bem, fogo do Inferno, se Daemon e Jaenelle estavam preparando um plano, pelo menos podiam ter informado a corte.
– Fui envenenada por um membro da minha corte – disse Karla baixinho. – E não podemos esquecer a avó de Jaenelle. Por isso, me diga, Surreal: se estivesse tentando encontrar uma maneira de aniquilar aquelas duas vagabundas, em quem confiaria?
– Podia ter confiado no senhor supremo.
– E onde ele está agora? – perguntou Karla.
Surreal não respondeu, uma vez que sabiam a resposta.
– Acho que chegou a hora de Jaenelle saber que está aqui – disse Hekatah, andando em círculos atrás de Saetan. – Acho que devíamos mandar um presentinho.
Sentiu que segurava o dedo mínimo de sua mão esquerda. Sentiu a faca cortando pele e osso. E sentiu raiva quando ela caiu de joelhos e fechou a boca sobre a ferida para beber o sangue. O sangue de um guardião.
Reunindo forças, enviou uma explosão de calor pelo braço, um fogo psíquico que cauterizou a ferida. Hekatah se afastou bruscamente, aos gritos.
Enquanto ainda tinha tempo, usou um pouco de arte medicinal para limpar a ferida e fechar a carne para evitar infecções. Hekatah continuava a gritar. Dorothea veio correndo da cabana. De todas as direções surgiram guardas.
Por fim, os gritos cessaram. Ouviu Hekatah procurando algo no chão e se levantando lentamente. Enquanto fazia círculos em torno dele, Saetan pôde ver o que a detonação de poder tinha causado. Uma vez que a boca de Hekatah estava fechada sobre a ferida, o fogo psíquico prosseguira depois de cauterizar as veias, derretendo parte do queixo e dando uma nova e grotesca forma a seu rosto.
Numa das mãos, Hekatah segurava o dedo mínimo de Saetan. Na outra, tinha a faca.
– Vai pagar por isto – disse, numa voz indistinta.
– Não – disse Dorothea, avançando. – Foi você que disse que precisamos restringir os danos ao máximo até termos Jaenelle sob controle.
Hekatah se virou para Dorothea. Saetan sabia que a repulsa no rosto de Dorothea deixaria Hekatah além da capacidade de pensar racionalmente.
– Até termos Jaenelle sob controle – disse Hekatah, com esforço. – Mas... isso não quer dizer... que não possa pagar por isto.
Pela segunda vez, a dor atroz vinda do anel de obediência se alastrou pelo corpo. Era devastadora. Hekatah também castigou o filho pelos feitos do pai, e, ao ouvir o grito de guerra de Lucivar, cheio de dor ainda que enfurecido, sentiu uma dor muito mais intensa.
Daemon preferia que Surreal não estivesse por perto quando Geoffrey trouxe a pequena caixa entalhada que havia sido entregue na fortaleza em Terreille. Sugerira que a presença de Surreal não seria necessária, uma vez que a mensagem especificava se tratar de um “presente” para Jaenelle. Surreal retrucara dizendo que fazia parte da família e que tinha tanto direito de saber o que estava acontecendo quanto Daemon ou Jaenelle. O que, infelizmente, era verdade.
– Quer que eu abra? – perguntou a Jaenelle, vendo que ela olhava para a caixa há vários minutos.
– Não – respondeu ela, com demasiada serenidade.
Mediante a arte, levantou a tampa da caixa. Acomodado num leito de seda, os três fitaram um dedo mínimo com uma unha longa, pintada de preto.
– Bem, docinho, eu diria que a mensagem é clara – disse Surreal, encarando Jaenelle. – Quantas outras partes do corpo vai precisar receber antes de agir? Estamos ficando sem tempo!
– Sim – disse Jaenelle. – Chegou a hora.
Está em estado de choque, pensou Daemon. E olhou-a nos olhos, não conseguindo reprimir um arrepio. Gelo azul-safira. Mas atrás do gelo havia uma rainha muito além da raiva fria que os machos podiam libertar. Uma vez que sabia o que procurar, que era capaz de descer fundo no abismo e senti-lo, percebeu que o presentinho de Hekatah despertara completamente o lado selvagem, o lado mortal da feiticeira. Não se tratava mais de uma jovem que acabara de receber o dedo do pai como exigência para se render; agora era um predador estudando a isca lançada pelo inimigo.
Dorothea e Hekatah tinham conhecido a criança. Não sabiam com quem estavam de fato lidando.
– Venha comigo – disse Jaenelle, tocando seu braço antes de sair.
Mesmo através da camisa e do casaco, a mão de Jaenelle estava tão gelada que queimava. Mantendo a expressão cuidadosamente desinteressada, ele olhou para Surreal. Espantou-se com o olhar de fúria que recebeu em retribuição. Foi quando percebeu que, apesar de Jaenelle estar gelada até os ossos, o quarto permanecia quente.
Jaenelle não dera qualquer indicação de que estava reunindo poderes para um ataque. Nada. Daemon olhou para o dedo mais uma vez e sentiu um aperto no estômago. Em seguida, saiu.
Malditos sejam os dois, pensava Surreal enquanto fitava o dedo na caixa. Ah, detectara uma pequena faísca de horror no rosto de Sadi quando viu o dedo pela primeira vez, mas desaparecera rapidamente. E Jaenelle? Nada. Fogo do Inferno! Mostrara mais fúria e preocupação quando Aaron fora encurralado por Vania. Mas ao receber um pedaço do pai... Nada. Nem a menor reação.
Tudo bem. Se era assim que aqueles dois queriam jogar, não havia problema. Usava uma joia cinza e era uma assassina profissional. Não via motivos para não entrar sorrateiramente em Terreille e libertar o senhor supremo, Lucivar, Marian e Daemonar daquelas duas vacas.
Surreal mordeu o lábio inferior. Bem, tirar todos de lá sem um arranhão poderia ser um problema. Tudo bem, pensaria mais sobre isso, esboçaria um plano. Pelo menos, faria alguma coisa!
Talvez mencionasse esse pequeno incidente a Karla, para ver se a viúva-negra ainda achava que uma reação ia acontecer.
Quando Daemon chegou à oficina, o gelo nos olhos de Jaenelle tinha se partido em fragmentos afiados. Ao fitá-los, percebeu algo que o aterrorizou: ódio frio e genuíno.
– O que acha que vai acontecer agora? – perguntou Jaenelle com uma serenidade exagerada.
Daemon enfiou as mãos nos bolsos das calças para não mostrar que tremiam. Pigarreou levemente.
– Acho que não vai acontecer mais nada até que o mensageiro volte a Hayll e confirme a entrega da caixa. Estamos quase no meio da manhã. Elas não devem esperar que a decisão seja tomada de imediato, o que nos dá algumas horas. Talvez um pouco mais.
Jaenelle caminhou devagar. Parecia estar discutindo consigo mesma. Por fim, suspirou, como se tivesse perdido uma discussão.
– A tecelã de sonhos me enviou uma mensagem. Disse que o triângulo tem de permanecer unido para sobreviver, que os outros dois lados não são fortes o bastante sem a força do espelho, e este protegerá todos.
– O espelho? – perguntou Daemon, cauteloso.
– Você é o espelho de seu pai, Daemon. É um dos lados do triângulo.
Na mesma hora, se lembrou de Tersa, anos atrás, desenhando um triângulo na palma da sua mão, repetidamente, explicando o mistério do triângulo de quatro lados dos Sangue.
– Pai, irmão, amante – murmurou. Três lados. E o quarto lado era o centro do triângulo, aquele que dominava todos os outros.
– Exatamente – respondeu Jaenelle.
– Você quer que eu vá a Hayll.
– Sim.
Assentiu lentamente, sentindo-se numa ponte frágil, em que um passo implicaria um mergulho no abismo.
– Se eu tentasse uma nova troca de prisioneiros, talvez ganhasse mais algumas horas.
– Eu não disse nada sobre se entregar a elas – vociferou Jaenelle. Tinha o rosto pálido desde que vira o dedo de Saetan. Agora empalidecera ainda mais. – Daemon, preciso de 72 horas.
– Set...? Mas está tudo preparado. Tudo o que precisa fazer é reunir as forças e libertar o poder.
– Preciso de 72 horas.
Olhou-a fixamente, aceitando aos poucos aquilo que estava lhe dizendo. Se fizesse um mergulho controlado no abismo, poderia descer ao nível das joias negras numa questão de minutos, reunindo assim todo seu poder. Jaenelle levaria 72 horas no processo.
Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas. Mas havia uma forma de... Percebeu o entendimento nos olhos de Jaenelle e lutou contra a vergonha que provocava nela. Devia saber que não era possível esconder o Sádico da feiticeira. E percebeu, por fim, o que ela estava lhe pedindo.
Incapaz de olhar Jaenelle nos olhos, virou-se e começou a andar pelo quarto.
Não passava de um jogo. Um jogo sujo e cruel, o tipo de jogo que o Sádico sempre jogara tão bem. Assim que libertou essa sua faceta, o plano ganhou forma tão naturalmente como respirar.
Mas... tudo tem um preço. Se fosse perder a companhia de quase todos aqueles que sempre amara, a recompensa teria de justificar o custo.
– Posso fazer isso – cantarolou, andando lentamente em volta de Jaenelle. – Conseguirei manter Dorothea e Hekatah tão desorientadas que os outros ficarão a salvo, ao mesmo tempo que evitarei que essas senhoras consigam dar ordens para enviar os exércitos terreillianos para Kaeleer. Conseguirei suas 72 horas, Jaenelle. Mas isso vai custar caro, terei que tomar atitudes que talvez nunca sejam perdoadas, por isso quero algo em troca.
Conseguiu sentir a ligeira perplexidade de Jaenelle antes de dizer:
– Está bem.
– Não quero mais usar o anel de consorte.
Um golpe de dor, rapidamente abafado.
– Está bem.
– Quero uma aliança de casamento.
Um lampejo de alegria, imediatamente seguido por tristeza. Sorriu ao mesmo tempo que seus olhos se enchiam de lágrimas.
– Seria maravilhoso.
Estava dizendo a verdade. Então qual seria o motivo da tristeza, da angústia? Teria de pensar nisso quando voltasse. Daemon estava ficando nervoso, perigoso.
– Tomarei isso como um “sim”. Preciso de algumas coisas para esse jogo que não consigo criar muito bem.
– Apenas me diga do que precisa, Daemon.
Não queria fazer aquilo. Não queria voltar àquele tipo de vida, nem mesmo por 72 horas. Iria mutilar a vida que começara a construir aqui, e a assembleia, os rapazes, nunca mais...
– Confia em mim? – vociferou, de súbito.
– Sim.
Sem hesitações, sem sombra de dúvida. Parou de andar e a encarou.
– Sabia que eu te amo desesperadamente?
Jaenelle tinha a voz embargada ao responder:
– Tanto quanto eu te amo?
Abraçou-a, agarrou-se como se fosse sua tábua de salvação, sua âncora. Ficaria tudo bem. Contanto que Jaenelle permanecesse a seu lado, tudo ia ficar bem.
Por fim, relutantemente, largou-a.
– Vamos, temos muito trabalho pela frente.
– É o último – disse Jaenelle, várias horas depois. Guardou cuidadosamente o estojo com os artigos enfeitiçados que criara para Daemon. – Quase o último.
Daemon bebia café forte. Fisicamente, estava cansado. Mentalmente, tinha a cabeça girando. À medida que Jaenelle ia criando os feitiços que lhe pedira, tinha de aprender a usá-los. Ela explicava o processo enquanto criava um feitiço e depois obrigava-o a praticar enquanto criava os outros. Avaliava os esforços de Daemon, dava instruções adicionais para aperfeiçoar os resultados. E nem uma única vez lhe perguntou o que pretendia fazer, o que o fez se sentir grato. É claro que Daemon também não sabia exatamente o que Jaenelle faria. Havia assuntos sobre os quais uma viúva-negra não perguntava a outra.
Jaenelle segurava num frasco do tamanho de seu dedo indicador contendo um pó escuro.
– É um estimulante. Poderoso. Uma dose irá mantê-lo de pé por cerca de seis horas. Pode misturá-lo com qualquer tipo de bebida. – Olhou para o café. – Se misturá-lo com um líquido dessa intensidade, produzirá ainda mais energia.
– O frasco tem uma dose? – perguntou Daemon. Mordendo a língua para não rir, desejou poder fotografar a careta que ela fez.
– Neste frasco há doses suficientes para os próximos três dias e ainda sobram algumas – disse, friamente.
– Bem, é melhor eu descobrir qual é o efeito.
Daemon estendeu a caneca de café. Jaenelle abriu o frasco e deu uma leve pancadinha nele sobre a caneca. O pó se dissolveu instantaneamente. Daemon bebeu um gole. Um gosto de avelã, ligeiramente ácido. Na verdade, bem...
Arquejou. O corpo ficou de repente em alerta, com uma necessidade intensa de se mexer. A mente já não estava nublada pela exaustão. Passados os primeiros segundos explosivos, sentiu-se mais calmo, mas aquela reserva viva de energia permanecia.
Esvaziou a caneca, aguardou alguns segundos. Não sentiu nenhuma alteração física, somente a sensação maravilhosa de que a reserva estava aumentando.
Jaenelle guardou o frasco na caixa com cuidado.
– Tudo tem um preço, Daemon – disse, com firmeza.
Bastou para que ele ficasse atento.
– Causa dependência?
O olhar que lançou a ele bastava para abrir um homem ao meio.
– Não. Eu mesmo tomo um pouco, às vezes. Mas não conte a ninguém da família sobre isso. Dariam ataques se soubessem. A substância lhe dará forças, mesmo que você não coma ou durma, mas se não renovar a dose de seis em seis horas, as pernas vão ceder e nesse caso é melhor se preparar para dormir um dia inteiro.
– Em outras palavras, se eu esquecer um a dose, não vou conseguir acordar nem se estiver sendo chicoteado, independentemente do que esteja acontecendo à minha volta.
Ela assentiu.
– Está bem, não vou me esquecer.
Jaenelle mostrou a Daemon outro frasco, cheio de um líquido escuro.
– Isto é um tônico para Saetan. Imagino que deva estar fisicamente fraco, por isso fiz uma mistura potente. Vai ficar forte como uma parelha de cavalos. Misture a uma quantidade igual de bebida. Vinho ou sangue fresco.
– Se eu beber o estimulante, posso usar meu sangue para o tônico?
– Sim – disse Jaenelle, quase conseguindo evitar que os lábios tremessem. – Mas, se usar seu sangue, certifique-se de enfiá-lo garganta abaixo antes de lhe dizer o que é, pois ficará forte como duas parelhas de cavalos... e não muito satisfeito com você nos primeiros minutos.
– É justo.
Jaenelle inspirou fundo e expirou lentamente.
– Então é isso.
Daemon pousou a caneca na mesa.
– Quero supervisionar a preparação da comida que vou levar. Não vai tomar muito tempo. Espera por mim?
O sorriso nos lábios de Jaenelle não chegou a seus perturbados olhos azul-safira.
– Espero.
– Príncipe Ssadi.
Daemon hesitou, mas se virou na direção da voz.
– Draca.
Ela estendeu a mão, de maneira frouxa. Obedientemente, Daemon colocou a mão sob a dela. Miçangas coloridas caíram na mão de Daemon, do tipo que as mulheres costuravam nos vestidos para refletir a luz.
Perplexo, ele olhou para as miçangas, depois para Draca.
– Quando chegar o momento certo, dê issto a Ssaetan. Ele vai entender.
Ela sabe, pensou Daemon. Ela sabe, mas... Não, Draca não diria nada à assembleia nem aos rapazes. A senescal de Ebon Askavi manteria seu próprio conselho por suas próprias razões.
Enquanto Draca se afastava, Daemon enfiou as miçangas no bolso do casaco.
Surreal deu um salto quando a porta do quarto se abriu.
– Que diabo pensa que está fazendo? – perguntou Daemon, batendo com a porta.
– Que diabo parece que estou fazendo? – retrucou Surreal.
Praguejou em silêncio. Mais alguns minutos e teria conseguido sair sem ser notada.
– Parece que está prestes a arruinar várias horas de planejamento cuidadoso – retrucou Daemon.
Ao ouvir aquilo, parou.
– Que planos? – perguntou, desconfiada.
Daemon praguejou com uma vileza tão criativa que a surpreendeu.
– O que acha que estive fazendo desde que recebemos aquele presente esta manhã? E o que achava que conseguiria fazer sozinha?
– Fui assassina por muitos anos, Sadi. Podia ter...
– Assassinatos um contra um – resmungou. – Não chegará muito longe desse jeito num acampamento militar. E se libertar a cinza para se livrar dos guardas, pode ter certeza de que as quatro pessoas que está indo salvar morrerão antes de chegar perto delas.
– Você não sabe...
– Eu sei – gritou Daemon. – Cresci sob o controle daquela vagabunda. Sei muito bem.
A raiva de Surreal não era comparável à de Daemon, sobretudo depois de ter acabado com todas as dúvidas que tinha quanto ao êxito da missão.
– Tem alguma ideia melhor?
– Sim, Surreal, tenho uma ideia melhor – respondeu Daemon com frieza.
Surreal passou a língua nos lábios, respirou com cautela.
– Eu podia ajudar, criar diversões ou alguma coisa assim. Fogo do Inferno, Daemon, também são minha família, a primeira que tive na vida. São importantes para mim. Deixe-me ajudar.
Enquanto a fitava, alguma coisa estranha invadiu os olhos de Daemon.
– Sim – disse num cantarolar sedoso –, acho que pode ser de grande ajuda. – A voz ficou irritada e eficiente enquanto examinava as provisões amontoadas na cama de Surreal. – Pelo menos teve o bom senso de levar sua própria comida e água, uma vez que não poderá confiar em nada naquele lugar. – Dirigiu-se à porta. – Preciso de mais duas horas. Então, partiremos.
– Mas... – O olhar de Daemon a fez recuar. – Certo. Duas horas.
Foi só depois que Daemon saiu que Surreal começou a pensar que não sabia muito bem o que tinha concordado em fazer.
Tolinha, pensava Daemon a caminho da oficina de Jaenelle. Idiota. Se o pessoal da cozinha não tivesse mencionado que Surreal acabara de solicitar uma provisão parecida com a dele, não teria descoberto que estava planejando ir a Hayll, não estaria preparado para lidar com sua presença. Sim, ela podia ajudá-lo nesse joguinho. Não precisara de mais de um minuto para reconhecer as várias formas de ajuda que Surreal poderia prestar. No entanto, maldição, se ela tivesse partido e conseguido irritar todo mundo antes de Daemon chegar... Precisava ganhar 72 horas para Jaenelle. Uma luta direta e limpa bastaria para libertá-los, mas não teria alcançado aquele objetivo.
Por isso, continuaria seu jogo, e Surreal teria a oportunidade de dançar com o Sádico. Entrou na oficina e resmungou para Jaenelle:
– Preciso de mais duas coisas.
Ela arregalou os olhos ao ouvir o que queria, mas concordou.
– Acho melhor dar a você um anel com um escudo que ninguém possa atravessar.
Considerando que Lucivar e Surreal iam querer arrancar seu coração em poucas horas, era uma excelente ideia.
Estavam os três do lado de fora da sala que abrigava o altar das trevas na fortaleza. Jaenelle abraçou Surreal.
– Que as trevas a protejam, irmã.
– Vamos trazê-los de volta – disse Surreal, retribuindo o abraço. – Pode ter certeza disso.
Depois de um rápido olhar para Daemon, entrou na sala do altar e fechou a porta lentamente. Daemon apenas olhou para Jaenelle, com o coração cheio demais para conseguir falar. Além disso, as palavras pareciam inadequadas no momento. Passou um polegar pela face dela, beijou-a docemente. Suspirou.
– O jogo começa à meia-noite.
– E à meia-noite, 72 horas depois, estará viajando de volta à fortaleza em Terreille pelos ventos. Sem paradas, sem demoras. – Fez uma pausa, aguardou que Daemon assentisse e acrescentou: – Não viaje em ventos mais escuros que o vermelho. Os outros ficarão instáveis.
Foi com esforço que evitou que o queixo caísse. Uma poderosa tempestade de feiticeira podia criar uma perturbação em parte das estradas psíquicas que cruzavam as trevas, podia até levar alguém a cair da teia e se perder nas trevas, mas “instável” soava muito pior.
– Muito bem. Ficaremos no vermelho.
– Daemon – disse Jaenelle delicadamente –, quero que me prometa uma coisa.
– Tudo.
Jaenelle ficou com os olhos cheios de lágrimas. Levou um minuto para recuperar o controle.
– Treze anos atrás, você deu tudo o que tinha para me ajudar.
– E farei isso novamente – respondeu, com igual delicadeza.
Ela balançou a cabeça.
– Não. Chega de sacrifícios, Daemon. Pelo menos da sua parte. – Engoliu em seco. – A fortaleza será o único lugar seguro. Quero que me prometa que, na hora marcada, estará a caminho da fortaleza. Não importa a quem tenha de virar costas, não importa quem tenha de deixar para trás, precisa chegar à fortaleza antes do amanhecer. Prometa-me isso, Daemon. – Segurou o braço dele com tanta força que o machucou. – Preciso ter certeza de que estará a salvo. Prometa.
Gentilmente, Daemon retirou a mão de Jaenelle, ergueu-a e beijou sua palma – e sorriu.
– Não vou fazer nada que possa me atrasar para o meu próprio casamento.
Viu um lampejo de dor nos olhos de Jaenelle, e imaginou se realmente desejava se casar com ele. Não. Não começaria a ter dúvidas, não podia se dar a esse luxo.
– Voltarei para você. Eu juro.
Jaenelle o beijou intensamente.
– Acho bom mesmo.
Estava pálida e exausta, com olheiras negras sob os olhos. Nunca lhe parecera tão bela.
– Até daqui a poucos dias.
– Adeus, Daemon. Eu te amo.
Enquanto se aproximava do altar das trevas, que era um portão entre os reinos, sentia que as últimas palavras de Jaenelle não tinham sido tranquilizadoras.
Karla se acomodou numa cadeira da sala de estar de Jaenelle. Conseguia usar a arte para flutuar de um lado para outro e conseguia até ficar em pé, sozinha, por algum tempo, com a ajuda de duas bengalas. Porém, ao canalizar o poder pelo corpo, ficava rapidamente exausta, e ficar em pé provocava dores nas pernas. De qualquer maneira, o cálice diário do tônico de Jaenelle estava funcionando. O problema era que tinha a incômoda sensação de que precisaria de suas forças para algo bem diferente muito em breve.
Era a primeira vez que a via desde que Jaenelle se recusara a permitir que Kaeleer entrasse em guerra. Mas mesmo agora, tendo sido a própria Jaenelle a convocá-las, ela e Gabrielle, a rainha de Ebon Askavi se mantinha de costas para elas, limitando-se a olhar pela janela.
– Preciso que mantenham os rapazes sob controle por mais alguns dias – disse Jaenelle, calmamente. – Não será fácil, mas é imprescindível.
– Por quê? – perguntou Gabrielle. – Fogo do Inferno, Jaenelle, temos de reunir os exércitos e lutar. Espalhados do jeito que estamos, mal conseguimos nos aguentar, e não estamos sequer combatendo os exércitos que possam vir de Terreille, só os terreillianos que já estavam em Kaeleer. Os desgraçados. Chegou o momento de entrar em guerra. Temos que ir à guerra. Não é só o povo que está morrendo. A terra está sendo igualmente devastada.
– As rainhas podem curar a terra – respondeu Jaenelle, ainda sem olhar para elas. – É esse o dom especial das rainhas. E o número de mortos entre o nosso povo não é tão significativo assim como parecem achar.
– Não – disse Gabrielle acidamente –, estão apenas morrendo de vergonha porque foram ordenados a abandonar suas terras.
– Conseguirão sobreviver a isso.
Karla pousou a mão no braço de Gabrielle. Tentando manter um tom de voz moderado, disse:
– Não creio que reste outra opção, Jaenelle. Se não pararmos de recuar e começarmos a atacar, não teremos uma única posição quando os exércitos terreillianos realmente chegarem.
– Não receberão ordens para entrar em Kaeleer nos próximos dias. Depois, não fará qualquer diferença.
– Porque seremos forçados a nos render – retrucou Gabrielle.
A mão de Karla apertou um pouco mais o braço de Gabrielle. Não tinha muita força, mas o gesto foi suficiente para controlar a fúria da outra rainha.
Pelo menos por enquanto.
– Kaeleer vai finalmente entrar em guerra com Terreille? – perguntou.
– Não – respondeu Jaenelle. – Kaeleer não entrará em guerra com Terreille.
Foi a leve entonação que fez com que Karla sentisse um arrepio gelado percorrendo o corpo. Pela forma como o braço de Gabrielle ficou tenso sob sua mão, soube que ela também tinha reparado.
– Então, quem vai entrar em guerra com Terreille?
Jaenelle se virou. Gabrielle prendeu a respiração. Pela primeira vez, estavam na presença do sonho sob o corpo. Karla olhou estupefata para as orelhas pontudas dos Dea al Mon, as mãos de garras retraídas dos Tigre, os cascos que podiam vir dos centauros, dos cavalos ou dos unicórnios. Acima de tudo, fitou o pequeno chifre espiralado.
O mito vivo. Os sonhos tornados realidade. Mas teria algum deles efetivamente pensado em quem eram os sonhadores?
Não admira que os parentes a amem. Não admira que todos a tenhamos amado.
Karla pigarreou baixinho para fazer a pergunta que, de repente, esperava que não fosse respondida.
– Quem vai entrar em guerra com Terreille? Eu – respondeu a feiticeira.
Desorientado pela dor, Saetan viu Hekatah se aproximar e examiná-lo demoradamente. Sempre que tinham vontade, Dorothea e ela usavam o anel de obediência para fazê-lo sofrer, mas agora estavam mais cautelosas, parando antes que ele desmaiasse de dor. Tinham-no deixado acorrentado ao poste durante as horas de sol, o que era ainda mais grave. Já enfraquecido pela dor, o sol vespertino drenara sua força psíquica e apunhalara seus olhos, resultando numa dor de cabeça tão violenta que nem a dor do anel a absorvia.
Pedaço a pedaço, a dor destruíra todos os efeitos positivos dos tônicos de Jaenelle, devolvendo seu corpo ao estado em que se encontrava quando a conheceu: mais parecido com os demônios-mortos que com os vivos.
Se pudesse ter realizado uma transição rápida de guardião para demônio-morto, podia ter considerado essa opção, o tipo de transição que Andulvar e Prothvar haviam feito no campo de batalha tantos séculos antes. Estavam tão embrenhados na fúria da batalha que nem se deram conta de que tinham sofrido golpes mortais. Se pudesse fazer a transição dessa forma, talvez tivesse feito. Seria fácil cortar uma veia e sangrar até a morte, seria menos doloroso. Mas ficaria mais vulnerável, e, sem uma dose de sangue fresco, a luz do sol o enfraqueceria tanto que, quando Jaenelle finalmente chegasse, seria mais um fardo para ela do que um aliado no combate.
Quando Jaenelle finalmente chegasse. Se Jaenelle viesse. Já deveria ter reagido, já deveria estar ali – se é que estava a caminho.
– Está na hora de mandar outro presentinho para Jaenelle – disse Hekatah, a voz de menina agora borrada pelo queixo disforme. – Outro dedo? – Usava o mesmo tom de voz de uma mulher a escolher a porcelana para o jantar. – Talvez um dedinho do pé, desta vez. Não, muito insignificante. Um olho? Muito desfigurador. Não queremos que ela comece a pensar que você ficou repugnante demais para merecer ser salvo. – Focou o olhar nos testículos do senhor supremo e sorriu. – É só carne morta agora, mas de qualquer maneira vai ser útil para isto.
Saetan não reagiu. Não se permitiria uma reação. Era carne morta neste momento. A última zona revitalizada, a primeira a morrer. Não reagiria. E não pensaria em Sylvia. Agora não. Nunca mais.
Olhando nos olhos de Saetan, Hekatah avançou. Com uma das mãos acariciou-o, afagou-o, fechou-se nele, preparando-o para a faca. Um guincho enfurecido interrompeu os sons habituais da noite.
Hekatah deu um salto para trás e rodopiou na direção do som.
Surreal surgiu voando no acampamento como se tivesse sido atirada por uma mão gigante. Seus pés bateram no chão, mas não conseguiu desacelerar e continuou em frente. Quando finalmente parou, viu-se diante da escuridão além da área iluminada pelos candeeiros.
– DESGRAÇADO INSENSÍVEL E CRUEL! – gritou Surreal. – FILHO DA PUTA COVARDE!
Dorothea irrompeu da cabana, aos gritos.
– Guardas! Guardas!
Os guardas se precipitaram de três lados do acampamento. Ninguém surgiu da escuridão diante deles.
– GUARDAS! – gritou Dorothea novamente.
Daquela escuridão, ouviu-se uma voz grave e divertida:
– Não irão respondê-la, querida. Foram retidos de forma permanente.
Daemon Sadi saiu da escuridão e parou no limite da zona iluminada. Tinha o cabelo negro ligeiramente desgrenhado pelo vento, e as mãos enfiadas nos bolsos das calças. O casaco preto estava aberto, revelando a camisa de seda branca desabotoada até a cintura. A joia negra ao pescoço cintilava de energia, assim como seus olhos dourados.
Ao ver aquela cintilação incomum nos olhos de Daemon, Saetan sentiu calafrios. Alguma coisa estava errada. Muito errada.
Hekatah se virou de lado e pressionou a faca no abdômen de Saetan.
– Mais um passo e arranco as tripas dele. E mato o eyrieno também.
– Vá em frente – disse Daemon cheio de prazer, avançando para o acampamento. – Assim me poupa o trabalho de planejar alguns acidentes, o que de qualquer forma teria de fazer muito em breve, uma vez que o administrador e o primeiro acompanhante estavam se tornando... incômodos. Então, vá em frente. Depois eu acabo com você e volto a Kaeleer para consolar a triste rainha. Sim, isso seria ótimo. Você vai ser acusada das mortes e Jaenelle nunca olhará para mim imaginando por que fui o único macho em quem pode confiar que restou.
– Está se esquecendo do mestre da guarda – disse Hekatah.
Daemon sorriu de maneira doce, mas brutal.
– Não, não me esqueci. Também não me esqueci de Prothvar ou Mephis. Já não são motivo de preocupação.
Por um instante, Saetan pensou que Hekatah tinha de fato arrancado suas tripas. Embora a ferida não fosse física, a dor era bastante real.
– Não. Não. Você não faria isso.
Daemon riu.
– Não? Então onde estão eles, velha?
Tendo feito a si próprio a mesma pergunta, Saetan não conseguia dar uma resposta. Ainda assim, continuou em negação.
– Você não seria capaz. Eles são a sua família.
– Minha família – disse Daemon. – Que conveniente terem decidido se tornar minha “família” depois que me tornei consorte da rainha mais poderosa da história dos Sangue.
– Não é verdade – disse Saetan, impelindo-se para a frente, apesar da faca ainda encostada na barriga.
Era uma loucura ter esse tipo de discussão, mas todos os seus instintos lhe gritavam que tinha de ser agora, pois talvez não tivesse outra oportunidade de mudar aquele olhar nos olhos de Daemon.
– Não? – disse Daemon amargamente. – E onde estavam eles há 1.700 anos, quando eu ainda era criança? Onde estava você? Onde estava qualquer um de vocês durante todos esses anos? Não venha me falar de família, senhor supremo.
Saetan se encostou no poste. Mãe Noite, todas as preocupações que havia tido sobre a lealdade de Daemon estavam se materializando.
– Que comovente – zombou Hekatah. – Espera que acreditemos nisso? Você é filho do seu pai.
Os olhos dourados de Daemon se fixaram em Hekatah.
– Acho que seria mais correto dizer que sou o homem que meu pai poderia ter sido, se tivesse tido coragem.
– Não dê atenção ao que ele diz – disse Dorothea, de súbito. – É uma artimanha, uma armadilha. Está mentindo.
– Parece que reservou o dia para isso – resmungou Surreal, acidamente.
Depois de um olhar depreciativo para Surreal, Daemon centrou sua atenção em Dorothea.
– Olá, querida. Está parecendo uma bruxa velha. Cai muito bem em você.
Dorothea silvou.
– Trouxe um presente – continuou Daemon, olhando de novo para Surreal.
Dorothea olhou para as orelhas pontudas de Surreal e fez uma expressão de desprezo.
– Já ouvi falar dela. Não passa de uma puta.
– É verdade – concordou Daemon calmamente. – É uma vagabunda de primeira categoria que abre as pernas a qualquer coisa que lhe dê dinheiro. É também sua neta. Filha de Kartane. A única que ele gerou na vida. A única continuação da sua linhagem.
– Uma prostituta jamais poderia ser minha neta – rosnou Dorothea.
Daemon ergueu uma sobrancelha.
– Jura, querida? Pensei que esse argumento a convenceria. A única diferença entre vocês é que ela gosta mais de ficar debaixo do macho e você em cima. Mas abrem as pernas da mesma maneira. – Fez uma pausa. – Bem, há outra diferença. Uma vez que recebia por isso, ela teve de adquirir algumas habilidades na cama.
Dorothea estremeceu de raiva.
– Guardas! Detenham-no!
Vinte homens tentaram avançar e caíram por terra. Daemon apenas sorria.
– Talvez fosse melhor matar logo os outros para evitar mais aborrecimentos.
Hekatah lentamente baixou a faca.
– Por que está aqui, Sadi?
– Os esqueminhas de vocês estão interferindo nos meus planos e isso me deixa aborrecido.
– Terreille vai entrar em guerra com Kaeleer. Eu não chamaria isso de “esqueminha”.
– Bem, isso depende de você ter ou não o poder para vencer, não é? – cantarolou Daemon. – Mas não tenho interesse em dominar um reino devastado por uma guerra. Por isso achei que era hora de termos uma conversinha.
Dorothea deu um salto para a frente.
– Não dê ouvidos a ele!
– Como você poderia dominar um reino? – perguntou Hekatah, ignorando Dorothea.
O sorriso de Daemon ficou ainda mais frio, mais cruel.
– Controlo uma feiticeira com força suficiente para exterminar todos os seres vivos no reino de Terreille.
– NÃO! – gritou Saetan. – Você não controla a rainha.
Quando o olhar de Daemon se fixou nele de novo, recomeçou a tremer.
– Não? – ronronou Daemon. – Não ficou se perguntando por que ela não reagiu ao “presente”, senhor supremo? Ah, ela ficou muito perturbada. Não faz nada além de chorar desde a chegada do dedo. Mas ela não está aqui, porque dá mais valor ao meu pau dentro dela do que a qualquer um de vocês. – Pela primeira vez, olhou para Lucivar.
Saetan balançou a cabeça.
– Não. Você não pode fazer isso, Daemon.
– Não me diga o que posso fazer ou não. Você teve a sua oportunidade, velhote, e não teve colhões para agarrá-la. Agora é a minha vez, e eu quero governar.
– É só mais uma mentira – retrucou Dorothea. – Você nunca se interessou em governar.
Daemon dirigiu sua raiva fria e cáustica para ela.
– O que você acha que sabe sobre os meus desejos, vagabunda? Nunca me deu qualquer oportunidade de governar nada. Queria apenas usar meu poder sem jamais dar nada em troca.
– Mas eu ofereci uma coisa.
– O quê? Você? Você me usou, Dorothea. Como poderia imaginar que suportar mais daquilo poderia ser algum tipo de recompensa?
– Seu desgraçado! Você...
Deu um passo na direção de Daemon, com a mão erguida formando uma garra. O golpe de uma mão fantasma a derrubou, fazendo-a cair em cima de Surreal, que praguejou violentamente, empurrando-a.
Desviando o olhar de Daemon, Saetan olhou para Hekatah... e percebeu que tremia, mas não de raiva.
– O que você quer, Sadi? – perguntou Hekatah, incapaz de manter a voz firme.
Passou-se um longo e arrepiante momento.
– Vim negociar em nome da minha rainha.
– Eu avisei... – murmurou Dorothea, sem se tentar levantar.
– E o que dirá à sua rainha? – perguntou Hekatah.
– Que cheguei tarde demais para salvá-los. Estou certo de que conseguirei provocar uma reação adequadamente violenta.
– Ela destruirá mais do que apenas nós se libertar esse tipo de poder.
O sorriso de Daemon era de satisfação.
– Exatamente. Destruirá tudo. E quando todos vocês tiverem desaparecido... Bem, serão necessárias mais algumas batalhas em Kaeleer para eliminar os machos mais problemáticos da corte. Mas, depois disso, acho que tudo se acalmará.
Virou-se para ir embora.
Jamais conseguirá convencê-la a destruir todos em Terreille, pensou Saetan, fechando os olhos em reação à indisposição que fazia seu estômago revirar. Jamais conseguirá manobrá-la a esse ponto. Não Jaenelle.
– Espere – disse Hekatah.
Saetan abriu os olhos. Daemon estava quase no limite da zona iluminada. Virando-se, ergueu uma sobrancelha com um ar interrogativo.
– Foi só por isso que veio aqui? – perguntou Hekatah.
Daemon deu um rápido olhar para Lucivar mais uma vez e sorriu.
– Não. Uma vez que estou aqui, acho que posso cobrar algumas dívidas.
Hekatah devolveu o sorriso.
– Então, príncipe, talvez tenhamos algo a conversar. Mas não agora. – Por que não satisfaz seus desejos enquanto eu... e Dorothea pensamos numa forma de acertar nossas contas amigavelmente?
– Tenho certeza de que encontrarei algo divertido para passar o tempo – disse Daemon.
Ele saiu da luz e desapareceu na escuridão. Hekatah olhou para Saetan, que já não conseguia ocultar seus sentimentos nem manter o rosto inexpressivo.
Dorothea se pôs de pé e apontou para Surreal.
– Prendam essa vaca – disse rispidamente a dois guardas, virando-se em seguida para Hekatah. – Não é possível que realmente acredite em Sadi.
– O senhor supremo acredita – disse Hekatah baixinho. – O que é muito interessante. – Silvou diante dos protestos de Dorothea. – Discutiremos o assunto em particular.
Foi até cabana com Dorothea, que seguia atrás, relutante. Depois de acorrentarem Surreal ao poste à esquerda de Saetan, os guardas recolheram os corpos dos homens mortos e, olhando inquietos para a escuridão ao redor, voltaram por fim a seus deveres.
– Seu filho é um desgraçado insensível – disse Surreal baixinho.
Saetan pensou no olhar de Daemon. Pensou no homem que devia conhecer profundamente, mas que não conhecia. Fechando os olhos, encostou cabeça no poste e disse:
– Só tenho um filho. E é eyrieno.
– Olá, bastardo.
Lucivar virou a cabeça, viu Daemon deslizando da escuridão e andando em círculos até ficar diante dele.
Observou com atenção aquele jogo inicial, esperando algum que Daemon desse algum sinal de que era hora de atacar. As correntes enfeitiçadas não podiam detê-lo e, ao contrário de Saetan, a dor provocada pelo anel de obediência não o debilitava por muito tempo. Não, o que o fazia recuar e aguardar era a ameaça a Marian e Daemonar. Havia sempre um guarda dentro da barraca distante onde a esposa e o filho estavam presos, e ele tinha ordens para matá-los caso Lucivar se libertasse. Por isso, aguardava, sobretudo depois de Saetan ter se entregado àquelas vagabundas. Percebera que Saetan sabia o tempo todo que não haveria troca alguma, que chegara esperando ser feito prisioneiro e tinha tido uma razão para isso.
Assim, quando viu Daemon, imaginou que o jogo estava para começar. Mas agora, ao ver aquele olhar entediado, sonolento, terrível... Tinha dançado com o Sádico muitas vezes antes e sabia que aquele olhar significava que estavam todos com sérios problemas.
– Olá, sacana – disse, cauteloso.
Daemon se aproximou. Com as pontas dos dedos, percorreu o braço de Lucivar, o ombro, a clavícula.
– Qual é o plano? – perguntou calmamente, estremecendo quando os dedos de Daemon avançaram para o pescoço, percorrendo o queixo.
– É bem simples – cantarolou Daemon, passando levemente um dedo no lábio inferior de Lucivar. – Você morre e eu governo. – Seus olhares se encontraram e Daemon sorriu. – Tem alguma ideia do que é o reino distorcido, bastardo? Tem a mínima ideia? Por sua causa, passei oito anos de suplício lá.
– Perdoou a dívida – rosnou Lucivar baixinho. – Teve oportunidade para cobrá-la e decidiu perdoar.
A mão de Daemon pousou delicadamente no pescoço de Lucivar. Inclinou-se para a frente até seus lábios quase tocarem os do irmão.
– Acreditou mesmo que o perdoaria?
Da barraca distante, ouviram o berro indignado de uma criança. Daemon recuou. Sorriu. Enfiou as mãos nos bolsos das calças.
– Você vai pagar por esses anos, bastardo – disse Daemon suavemente. – Vai pagar bem caro.
O coração de Lucivar quase pulou do peito quando viu Daemon deslizando na direção da barraca onde estavam Marian e Daemonar.
– Sacana? Sacana, espere. A dívida é minha. Não pode... Daemon? Daemon!
Daemon entrou na barraca. Em seguida, o guarda saiu correndo.
– DAEMON!
Alguns minutos depois, Lucivar ouviu os gritos do filho.
– Posso garantir que é algum tipo de truque. Conheço Sadi.
– Conhece? – retrucou Hekatah.
Acho que seria mais correto dizer que sou o homem que meu pai poderia ter sido, se tivesse tido coragem.
Detectara a desumanidade, a ambição, a sexualidade cruel em Daemon Sadi. Assustava-a um pouco. Excitava-a ainda mais.
– Nunca se interessou em usar sua força em busca de poder. Lutou contra todas as tentativas que fiz para persuadi-lo.
– Isso porque lidou com ele da maneira errada – resmungou Hekatah. – Se tivesse amado Sadi como amou aquele arremedo de filho...
– Você costumava achar divertido quando eu fazia jogos de alcova com o filho do senhor supremo. Dizia que isso o tornaria um homem.
E foi o que aconteceu. Dorothea tinha aguçado a crueldade de Sadi, seu gosto pelo prazer perverso. Da mesma maneira, não seria fácil contornar o ódio profundo que Daemon sentia por ela. Bem, não deixaria que isso interferisse com suas próprias ambições. Além disso, Dorothea estava se tornando difícil, indigna de confiança. Teria de eliminar a vagabunda depois que a guerra estivesse vencida.
– Estou avisando, ele tem algum plano em mente – insistiu Dorothea. – E você está deixando que ande pelo acampamento fazendo sabe-se lá o quê.
– E o que deveria fazer? – retrucou Hekatah. – Sem margem de manobra não podemos enfrentar a joia negra pensando em sair triunfantes.
– Nós temos margem de manobra – disse Dorothea com os dentes cerrados.
Hekatah deu uma gargalhada maldosa.
– Que margem de manobra? Se ele realmente destruiu Andulvar, Prothvar e Mephis, não vai ter qualquer problema em ver as entranhas de Saetan espalhadas pelo chão.
– Você escolheu o homem errado, a ameaça errada – disse Dorothea, irritada, gesticulando. – Talvez ele não dê a mínima para Saetan, mas sempre cedeu quando Lucivar estava em perigo. Lucivar sempre foi o elo com que podíamos contar para controlar Sadi. Se ameaçá-lo... – Vacilou, farejou o ar e olhou para a porta. – Que cheiro é esse?
– Que cheiro é esse? – perguntou Surreal. Já passava da meia-noite. Será que os guardas estavam assando carne para as refeições do dia seguinte? Provavelmente, mas não conseguia pensar em alguém que quisesse comer algo com aquele cheiro nojento. – Não estão sentindo?
Virou a cabeça para Saetan e não gostou do que viu. Nem um pouco. Desde que Daemon abandonara o acampamento, o senhor supremo apenas fitava o vazio.
– Tio Saetan?
Ele virou a cabeça, devagar. Seus olhos focaram Surreal. Confirmando a ausência momentânea de guardas junto a eles, Surreal se inclinou o mais perto possível de Saetan.
– Tio Saetan, este não é momento para passeios mentais. Temos de pensar num jeito de sair daqui.
– Lamento que esteja aqui, Surreal – disse, com a voz cansada. – De verdade, lamento muito.
Eu também.
– Lucivar tem a força física e eu consigo me virar numa luta, mas você tem a experiência para pensar num plano capaz de usar essa força a nosso favor.
Limitou-se a olhar para ela. O sorriso que por fim surgiu em seus lábios era agridoce.
– Querida, envelheci bastante nos últimos dois dias.
Surreal já tinha percebido e estava assustada. Sem ele, não tinha certeza se conseguiriam sair deste lugar.
Ouvindo uma porta se abrir, endireitou-se na mesma hora e afastou os olhos de Saetan.
– Fogo do Inferno – disse Dorothea, irritada –, que cheiro é esse?
Avançou entre os postes onde estavam Surreal e Saetan. Surreal cerrou os dentes. Usava uma joia cinza; Dorothea, uma vermelha. Seria relativamente fácil deslizar sob as barreiras interiores de Dorothea e tecer um feitiço mortal, algo terrível que, quando fosse desencadeado, em meio aos gritos e à confusão, oferecesse uma oportunidade de fuga.
Iniciou uma descida cautelosa para que ninguém a notasse, mas, antes de alcançar a profundidade de sua joia cinza, outra porta se abriu. O cheiro repugnante ficou mais forte e Surreal teve náuseas.
Daemon Sadi veio passeando da barraca que servia como prisão, as mãos nos bolsos da calça. Continuou andando até chegar ao centro da área iluminada. Não olhou para eles. Seus olhos cintilantes estavam intensamente focados em Lucivar, que lhe devolvia o olhar.
Ninguém se atreveu a mexer um dedo.
Por fim, Daemon olhou na direção da barraca e disse, tomado de prazer:
– Marian, querida, saia e mostre ao tolo do seu marido o preço que pagou pelos anos que passei no reino distorcido.
Duas... coisas... nuas flutuaram da barraca para a luz. Uma hora antes eram uma mulher e um menino. Agora...
Surreal ficou ofegante e se esforçou para não vomitar. Mãe Noite, Mãe Noite, Mãe Noite. Os dedos das mãos e dos pés de Marian tinham desaparecido, assim como o longo e belo cabelo. Os olhos de Daemonar já não existiam, nem suas mãos e seus pés. As asas de ambos estavam tão danificadas que o simples movimento para mantê-los no ar fazia com que pequenos pedaços se desprendessem. Isso sem falar na pele...
Com um sorriso frio e cruel, o Sádico libertou Marian e Daemonar de seu controle. O menino caiu no chão com um baque e começou a berrar. Marian aterrissou nos cotos dos pés e caiu. Ao cair, a pele estalou e...
Surreal percebeu que não era sangue, e ficou morbidamente estarrecida. Seivas cozidas escorriam das rachaduras na pele.
O Sádico não tinha apenas queimado Marian e Daemonar, tinha cozinhado mãe e filho... e eles ainda estavam vivos. Não eram demônios-mortos. Estavam vivos.
– Lucivar – sussurrou Marian com a voz rouca, tentando rastejar para o marido. – Lucivar.
Lucivar gritou, mas o grito de dor se transformou num grito de guerra eyrieno. As correntes rebentaram quando explodiu do poste, investindo diretamente contra Daemon. Quando já estava na metade do caminho, um poderoso golpe psíquico o derrubou, lançando-o de volta ao poste. Ficou de pé de um salto e voltou a investir contra Daemon, mas foi derrubado de novo. E de novo. E de novo.
Não conseguindo mais ficar de pé, rastejou até Daemon de dentes cerrados e olhos repletos de ódio. Sadi abaixou, segurou o braço de Daemonar e o torceu até arrancá-lo do corpo, como um homem faria com uma pata de galinha.
Isso instigou Lucivar a ficar de pé. Quando investiu desta vez, bateu num escudo negro e caiu de joelhos. Daemon se limitou a observar e sorrir. Lucivar tentou atravessar o escudo, tentou quebrá-lo, despedaçá-lo com as mãos, investiu repetidamente contra ele. Por fim, encostou-se ao escudo e chorou.
– Daemon – implorou. – Daemon, mostre alguma compaixão.
– Compaixão? – respondeu Daemon gentilmente.
Com uma velocidade de predador, pisou na cabeça de Daemonar. O crânio se desfez como uma casca de ovo.
Então caminhou até Marian, que continuava sussurrando, tentando rastejar. Mesmo com os lamentos angustiados de Lucivar, todos conseguiram ouvir os ossos partindo quando Daemon pisou no pescoço da mulher.
Usando o braço de Daemonar, Sadi apontou para os dois corpos, ao mesmo tempo que observava Lucivar e sorria.
– Eles ainda têm energia suficiente para efetuar a transição para demônios-mortos – disse, cheio de satisfação. – Duvido que o pirralho vá se lembrar de grandes coisas, mas os últimos pensamentos da sua esposa... Com quanto amor se lembrará de você, bastardo, sabendo que foi o culpado por tudo isso?
– Deixe que partam – suplicou Lucivar.
– Tudo tem um preço, bastardo. Pague e deixarei que partam.
– O que quer de mim? – perguntou Lucivar com a voz embargada. – Diga logo de uma vez o que quer de mim.
O sorriso de Daemon se tornou ainda mais frio, mais maldoso.
– Prove que é um menino comportado. Rasteje de volta ao poste.
Lucivar rastejou. Dois guardas que estavam observando a cena ocultos na escuridão se aproximaram de Lucivar e o ajudaram a se levantar, enquanto outros dois recolocavam as correntes partidas.
Foram bastante afáveis quando o prenderam ao poste. Lucivar olhou para Daemon com olhos transtornados por um enorme sofrimento.
– Está satisfeito?
– Sim – disse Daemon, suave demais. – Estou satisfeito.
Surreal sentiu um lampejo de poder escuro, depois mais um. Tocou Marian, quase apavorada com a perspectiva de obter resposta ao toque psíquico. Mas não restava nada, ninguém.
Foi nesse momento que percebeu que estava chorando.
Soltando o braço de Daemonar, Sadi usou um lenço para limpar meticulosamente a gordura da mão. Em seguida, dirigindo-se a Surreal, usou o mesmo lenço para limpar as lágrimas em seu rosto.
Surreal quase vomitou.
– Não gaste suas lágrimas com eles, pequena feiticeira – disse Daemon, calmamente. – Você é a próxima.
Surreal observou enquanto se afastava, desaparecendo novamente na escuridão. Posso ser a próxima, desgraçado insensível, mas não cairei sem lutar. Não sou capaz de vencê-lo, mas juro que não me deixarei vencer sem lutar.
Saetan fechou os olhos, incapaz de suportar a visão das silhuetas imóveis que jaziam a alguns metros.
Sabia que era perigoso, mas não que tinha isto dentro dele. Eu o ajudei, encorajei. Ah, criança-feiticeira, que tipo de monstro permiti que entrasse na sua cama, que ocupasse seu coração?
Assim que voltaram à cabana de Hekatah, Dorothea caiu pesadamente na cadeira mais próxima. Cometera alguns atos cruéis e perversos nas vida, mas isso...
Estremeceu.
Hekatah apoiou as mãos na mesa.
– Ainda acha que ele vai ceder se ameaçarmos Lucivar? – perguntou com a voz trêmula.
– Não – respondeu Dorothea com a voz igualmente trêmula. – Já não sei o que fará. – Durante séculos, ficara conhecido entre os Sangue de Terreille como o Sádico. Agora finalmente entendia por quê.
Karla observava Tersa enquanto esta produzia estranhas criações com blocos de montar de madeira. Sentia-se grata pela presença da mulher mais velha e sabia que Gabrielle também.
Jaenelle desaparecera pouco depois de falar com elas. As duas, por sua vez, falaram com os outros membros da assembleia, alegando apenas que os rapazes precisavam ser contidos por mais alguns dias. Nada disseram sobre a intenção da feiticeira de entrar em guerra sozinha com Terreille. Tinham compreendido a ordem implícita quando Jaenelle lhes mostrara, finalmente, o sonho que habitava sob a pele humana.
Assim, a assembleia, infeliz mas unida, reforçara o cerco aos rapazes. Não fora fácil e a hostilidade dos machos diante do que consideravam traição fora bastante cruel, levando Karla a imaginar se algum dos casamentos do primeiro círculo resistiria. Alguns casamentos poderiam ter terminado ali, naquele momento, se Tersa não tivesse surgido e repreendido os rapazes pela falta de cortesia. Uma vez que os machos não estavam dispostos a atacá-la, acabaram cedendo.
Quase 24 horas de convívio forçado não melhoraram a situação, mas era a única forma que tinham de garantir a presença permanente dos machos. Mesmo pelos padrões da fortaleza, a sala de estar que a assembleia escolhera como local de reclusão era ampla, com vários agrupamentos de mobília e bastante espaço para caminhar. Ainda assim, não era grande o suficiente. Os membros da assembleia ocupavam preferencialmente as cadeiras e sofás, para evitar os rosnados dos machos que andavam de um lado para outro. Quando os rapazes não estavam andando de um lado para outro, estavam reunidos num canto, de segredinhos.
– Por quantos dias ainda teremos de suportar isso? – sussurrou Karla para si mesma.
– Por quantos forem necessários – respondeu Tersa, baixinho. Examinou sua última construção por um minuto e logo a desfez.
Os blocos de madeira ressoaram na longa mesa em frente ao sofá, mas desta vez ninguém se sobressaltou. Ninguém prestava muita atenção às estranhas criações de Tersa. Os rapazes, tentando provar que podiam ser corteses, tinham admirado as primeiras... estruturas... e feito algumas perguntas, mas se afastaram assim que as respostas de Tersa começaram a se tornar cada vez mais confusas, deixando-a em paz.
Na verdade, Karla teria apostado que não estavam prestando grande atenção ao que quer que estivesse acontecendo naquela sala... até Ladvarian entrar e se aproximar dela a passos rápidos.
O sceltita parecia abatido. Seus olhos castanhos manifestavam uma tristeza profunda... e um pouco de acusação.
*Karla?*, disse Ladvarian.
– Irmãozinho – respondeu Karla.
Surgiram duas tigelas na mesinha junto à cadeira de Karla, que pegou uma delas e a examinou. O recipiente continha bolhas d’água envolvidas em escudos protetores que formavam uma espécie de pele. A outra tinha uma bolha vermelha.
*Preciso de uma gota de sangue de cada um de vocês*, explicou Ladvarian.
– Para quê? – perguntou Karla enquanto examinava a bolha. Era uma amostra espantosa de arte.
*Para Jaenelle.*
Ouvindo a resposta, Chaosti interveio.
– Se Jaenelle deseja algo de nós neste momento, pode nos pedir pessoalmente.
– Chaosti – silvou Gabrielle.
Chaosti rosnou. Ladvarian estremeceu com a raiva naquela sala, mas não despregou os olhos de Karla.
– Por quê? – perguntou Karla.
– Por quê, por quê, por quê – respondeu Tersa, irritada, desmontando os blocos. – Os humanos não conseguem sequer fazer uma singela oferenda sem perguntar por quê. É para a sua rainha. O que mais precisam saber?
Em seguida, como se o acesso de raiva nunca tivesse ocorrido, voltou aos blocos.
Karla estremeceu ao fitar Ladvarian. Havia duas formas de interpretar “para Jaenelle”. O cão podia ser apenas o mensageiro e estava levando essas gotas de sangue a Jaenelle porque ela precisava delas... ou Ladvarian as queria para deter Jaenelle. Mas como fazer as perguntas certas e obter mais do que respostas evasivas? Tinha certeza de que Ladvarian se tornaria evasivo se o pressionasse demais.
– Não sei se posso dar uma gota de sangue, irmãozinho – disse Karla, cautelosa. – Meu sangue ainda está um pouco contaminado pelo veneno.
– Nesse caso não vai fazer diferença – disse Tersa distraidamente, usando a arte para manter os blocos suspensos. – Já o que está no seu coração... Isso, sim, terá uma enorme influência.
– Por quê? – perguntou Karla, e estremeceu ao receber o olhar de Tersa. Voltou a centrar a atenção em Ladvarian. – Isso é tudo que temos que fazer? Uma gota de sangue em cada bolha?
*Ao oferecer o sangue, têm de pensar em Jaenelle. Pensamentos bons*, acrescentou com um rosnado, olhando de lado para os outros machos.
Karla balançou a cabeça.
– Não entendo. Por que...?
– Porque o Sangue cantará ao Sangue – respondeu Tersa serenamente. – Porque o sangue é o rio da memória.
Exasperada, Karla olhou para Tersa, mas foi a estrutura que chamou sua atenção. Uma espiral. Uma espiral negra e reluzente. Nesse momento, os blocos de madeira caíram com um estrondo sobre a mesa.
*Karla*, disse Gabrielle, delicadamente.
*Eu vi.* Olhou para Tersa, que devolveu o olhar de maneira assustadoramente previdente. Ela sabe. Mãe Noite, o que quer que vá acontecer... Tersa sabe. E Ladvarian também.
Entendeu que já não havia necessidade de exigir explicações. Pedindo permissão a Ladvarian, Karla enviou a gavinha psíquica mais delicada que conseguiu criar e tocou levemente na bolha vermelha.
Ladvarian, ainda cachorro, aprendendo a caminhar pelo ar com Jaenelle. Sendo escovado e afagado. Sendo ensinado... Karla recuou. Eram memórias particulares, as melhores que ele tinha a oferecer.
Engoliu em seco, e sentiu o sabor de lágrimas.
– O que Jaenelle está tentando fazer... é perigoso?
*Sim*, respondeu Ladvarian.
*Algum outro parente fez esta oferenda?*
*Todos que a conhecem.*
E aposto que nenhum deles pediu uma explicação. Karla olhou para os outros membros do primeiro círculo. Não havia qualquer vestígio de raiva. Não mais. Pensariam nas ações de Jaenelle ao longo das últimas semanas e chegariam à conclusão certa.
– Muito bem, irmãozinho – disse Karla. Mas antes que pudesse usar a unha do polegar para picar um dedo, Gabrielle tocou seu ombro.
– Acho... – Gabrielle vacilou, respirou fundo. – Acho que devíamos fazer um ritual.
Para que fosse tão poderoso quanto possível.
– Sim, tem razão. – Karla voltou a colocar a bolha vazia na tigela.
– Vou buscar os elementos de que vamos precisar – disse Gabrielle.
– Vou com você – disse Morghann.
Quando Gabrielle e Morghann passaram pelos machos, Chaosti e Khary estenderam as mãos, tocando as esposas delicadamente, à guisa de desculpas, e afastaram-se para deixá-las passar.
Com um suspiro abatido, Ladvarian saiu do caminho e se deitou.
Tersa se levantou.
– Tersa? – disse Karla. – Não vai fazer a oferenda?
Os olhos clarividentes se fixaram em Karla. Tersa sorriu e disse:
– Já fiz. – E saiu.
Foi o suficiente para que Karla soubesse quem tinha ensinado aos parentes como criar aquelas espantosas demonstrações de arte. Observando os machos trocando de lugar e assumindo a atitude protetora de hábito, Karla ficou com os olhos cheios de lágrimas e desejou, inutilmente, que Morton pudesse estar com eles.
Vamos todos ficar bem, pensava quando via Aaron abraçado a Kalush. As palavras duras serão perdoadas e vamos todos ficar bem.
Mas Jaenelle ficaria bem?
– É a sua vez, vadia – disse Daemon, desatando as correntes do poste.
Surreal olhou para ele. Passava da meia-noite. Na verdade, fazia quase 24 horas desde que assassinara Marian e Daemonar. O dia fora relativamente tranquilo. Sadi rondara o acampamento, deixando todos nervosos. Dorothea e Hekatah tinham permanecido fora de vista.
– O que vai fazer com a vagabunda? – perguntou Dorothea, aproximando-se dos postes.
Até agora. Daemon olhou para Dorothea e sorriu.
– Bem, querida, vou usá-la para dar a você o que sempre desejou.
– O que quer dizer? – perguntou Dorothea, apreensiva.
– Quero dizer – ronronou Daemon – que vou quebrar a piranha da sua neta. Depois vou montá-la e fecundá-la com a minha semente. Está fértil, vai funcionar. E cuidarei para que tenha todos os incentivos necessários para não tentar provocar um aborto. Sua linhagem e eu, Dorothea. O que você sempre quis de mim. E só precisará tolerar a ideia de que o resultado possa vir com orelhas pontudas.
Às gargalhadas, arrastou Surreal para a mesma barraca onde tinham estado Marian e Daemonar. Ela aguardou até que Daemon se virasse e fechasse a porta para invocar o punhal e atacá-lo. Daemon se virou e ergueu um braço para bloquear o punhal. Surreal fez uma finta, tentando cravar a lâmina entre as costelas de Daemon. Mas o punhal se chocou contra um escudo, deslizou e acabou espetado na porta.
Antes que Surreal conseguisse arrancar a arma da madeira, Daemon atacou, empurrando-a de volta para o centro da pequena sala. Aos gritos, ela investiu mais uma vez. Ele a agarrou e a fez recuar violentamente, até os joelhos se chocarem na beira da cama estreita. Caiu, com Daemon por cima.
Imediatamente, Daemon rolou de cima dela e pôs-se de pé num salto.
– Chega.
Surreal pulou da cama e cuspiu todas as pragas que conhecia, a plenos pulmões, antes de voltar a atacar.
Daemon empurrou-a e vociferou violentamente.
– Porra, Surreal, já chega.
– Se acha que vou abrir as pernas para você, é melhor pensar duas vezes, Sádico.
– Cale a boca, Surreal – disse Daemon, baixinho, mas com veemência.
Sentiu os escudos em volta da barraca. Além do escudo protetor negro, sentiu também um escudo auditivo negro. O que significava que ninguém conseguia ouvir o que acontecia dentro da barraca.
Daemon respirou fundo, passou os dedos pelo cabelo.
– Bem, aquele teatro deve bastar para convencer as vagabundas de que tem alguma coisa acontecendo aqui dentro.
Surreal vinha se recompondo para uma nova investida, desta vez com a intenção de acertar a virilha de Daemon. No entanto, aquele tom de voz e aquelas palavras a lembravam de... Daemon... de tal maneira que vacilou. E lembrou da advertência de Karla sobre um amigo que se tornaria inimigo para poder permanecer amigo.
Daemon olhou para ela e se aproximou cautelosamente.
– Deixe-me ver seus pulsos.
Ela estendeu as mãos e testemunhou a fúria em seu olhar quando arrancou as algemas e viu a carne viva. Surreal se exasperou.
– Droga, Sadi, que tipo de jogo é esse?
– Um jogo perverso – respondeu, invocando um estojo de couro. Retirou um frasco e ofereceu a ela. – Ponha isto nos pulsos.
Surreal abriu o frasco e cheirou. O unguento de uma curandeira. Enquanto o passava nos pulsos, Daemon invocou outro estojo.
– Ainda tem a comida que trouxe?
– Sim. Não tive oportunidade de comer – acrescentou sarcasticamente.
– Coma alguma coisa agora – disse ele, ainda examinando o estojo. – Eu daria um pouco da minha comida para você, mas dei a maior parte para Marian.
Surreal sentiu um calafrio descendo as costas, um zumbido estranho na cabeça.
– Marian?
– Lembra a barraca onde paramos quando chegamos a Hayll?
– Sim. – É claro que se lembrava. Ficava a cerca de 3 quilômetros do acampamento. Fora ali que Daemon se transformara em Sádico. Uma hora ele estava explicando sobre os sentinelas e as estacas do perímetro que alertariam os guardas e, no momento seguinte, ela estava de mãos atadas e Daemon ronronando que devia ter ficado com Falonar e fora do seu caminho. Fora bastante assustador. Por isso, estava furiosa. – Você podia ter me contado, seu filho da puta.
Ele ergueu os olhos.
– Teria sido igualmente convincente?
Surreal se indignou, sentindo-se insultada.
– Ora, mas é claro.
– Bem, teremos oportunidade de descobrir. Você disse que queria ajudar, Surreal. Que estava disposta a criar uma distração.
Era verdade, mas achava que saberia quando estivesse acontecendo.
– E então?
– Então terá a sua chance. – Aproximou-se e mostrou a ela uma pequena argola dourada. – Ouça com atenção. Isto irá criar a ilusão de que foi quebrada. – Enfiou a argola num dos elos do colar de onde pendia a joia cinza. – Ninguém conseguirá detectar que ainda usa a cinza, a não ser que a utilize. Se precisar usá-la, não hesite. Darei um jeito de lidar com a situação aqui.
– O senhor supremo saberá que não fui quebrada.
Daemon balançou a cabeça enquanto procurava outra coisa no estojo.
– É preciso uma joia mais escura do que a negra para detectar esse feitiço.
Mais escura do que a negra? Sadi não era capaz de um feitiço assim. O que significava... Mãe Noite!
– Isto – Daemon mostrou um pequeno frasco de cristal antes de colocá-lo no colar – convencerá quem quiser conferir que você não só está no seu período fértil como está grávida.
Pegando o colar, Surreal examinou o pequeno frasco.
– Você pediu a Jaenelle para criar a ilusão de que estou grávida de um filho seu?
Reparou que seu rosto ficou tenso. Sim, pedira. E fora um pedido difícil. Tentando mudar de assunto, apontou para bolas de argila que estavam no estojo.
– O que são elas?
– Os feitiços brutos para criar sombras.
Sombras. Ilusões que podiam enganar quem as visse.
– Marian e Daemonar – disse debilmente.
– Sim – respondeu com rispidez.
Surreal silvou.
– Você não confiou em mim, uma prostituta, para encenar um belo espetáculo, mas achou que Lucivar seria convin... – Sua voz se perdeu. – Ah, não! Ele não sabe, não é?
– Não – respondeu Daemon. – Ele não sabe.
Suas pernas fraquejaram tão abruptamente que teve de se sentar no chão.
– Fogo do Inferno, Mãe Noite e que as trevas sejam misericordiosas.
– Eu sei. – Daemon hesitou. – Estou ganhando tempo, Surreal. Preciso ganhar tempo suficiente e ainda tirar todos daqui. Para que Dorothea e Hekatah acreditassem que Marian e Daemonar estavam mortos, Lucivar também tinha de acreditar.
– Mãe Noite. – Surreal descansou a testa nos joelhos. – Tempo suficiente para quê?
– Minha rainha precisa de tempo para conseguir salvar Kaeleer.
– Merda, Sadi. – Levantou a cabeça. – Diga-me uma coisa. Mesmo sabendo que era uma ilusão, como conseguiu controlar o estômago depois?
Ele engoliu em seco.
– Não consegui.
– Você é louco – sussurrou Surreal enquanto se levantava.
– Estou servindo a rainha – disse incisivamente.
Às vezes, para um macho, tudo se resumia a mesma coisa.
– Muito bem – disse Surreal, prendendo o cabelo atrás da orelha. – Do que você precisa?
Daemon vacilou.
– É perigoso.
– Daemon, do que você precisa? – Não obtendo resposta, tentou adivinhar. – Quer que eu fique choramingando pelo acampamento como uma mulher que foi violentada até a alma e agora está aterrorizada com o que poderá lhe acontecer se abortar a criança resultante desse estupro. Correto?
– Correto – respondeu Daemon.
– E depois?
– Marian e Daemonar estão naquela barraca. Fuja do acampamento amanhã à noite, pegue os dois e vá para a fortaleza. Não pare nem vá para nenhum outro lugar. Vá diretamente para a fortaleza. Tem de viajar pelo vento vermelho. Os mais escuros estarão instáveis.
– Mas...? Deixa pra lá, não quero saber.
Ponderou tudo minuciosamente. Sim, conseguiria dar conta. Uma mulher quebrada daquele jeito passaria bastante tempo se escondendo. Assim, deixar que a vissem rapidamente durante o dia seria o suficiente... e encobriria o fato de ter desaparecido.
Daemon pegou uma das bolas de argila.
– E para que é isso? – perguntou Surreal.
– Você teria lutado enquanto lhe restassem forças – disse Daemon, sem a olhar diretamente. – Teria o aspecto de quem lutou. Depois que eu criar a ilusão, pode levar isto e...
– Não. – Surreal tirou o casaco e começou a desabotoar a camisa. – Você não pode levar isso até o fim com ilusões. Não se quiser convencer Dorothea e Hekatah pelo tempo de que Jaenelle precisa.
– Vou perder muito com tudo isto, Surreal, mas não quebrarei meu voto de fidelidade.
– Eu sei – respondeu calmamente. – Não foi isso que eu quis dizer.
– Então o que quis dizer? – vociferou Daemon.
Surreal inspirou fundo para se dominar.
– Os machucados precisam ser reais.
Invocando a tigela, Ladvarian a pousou com cuidado no chão do quarto e observou a rainha aracniana tocando delicadamente nas pequenas bolhas já repletas de sangue e memórias.
*São boas*, disse a aranha, em aprovação. *Boas memórias. Memórias poderosas. Tão fortes quanto as dos parentes.*
Ladvarian olhou para a tigela em frente à enorme teia emaranhada. Ainda havia muitas oferendas dos parentes ali. O que a tecelã estava fazendo era demorado.
*Você precisa descansar*, disse a aranha enquanto escolhia uma das bolha com oferendas humanas e flutuava até um fio da teia. *Todos os parentes precisam descansar. Precisam estar fortes quando chegar a hora de ancorar o sonho na carne.*
*Vai ter tempo de adicionar todas as memórias?*, perguntou Ladvarian respeitosamente.
A tecelã de sonhos não respondeu por um longo tempo. Até que disse:
*O bastante. Apenas o bastante.*
Os lamentos não eram totalmente fingidos.
Não imaginara ter de irritar Daemon daquela forma antes que ele terminasse o serviço. E compreendeu que a raiva por trás de seus dentes e mãos se devia ao fato de ter de tocar uma mulher, que não Jaenelle, em alguns pontos mais íntimos. Mas, droga, não precisava ter mordido seu peito com tanta força.
Por outro lado, escolhera os alvos com cuidado. Para quem as via, as contusões eram impressionantes, mas nenhuma impunha dificuldades de movimento nem paralisaria um músculo se tivesse de lutar.
O mais difícil fora o ódio que vira nos olhos de Saetan. Queria contar a ele. Queria que aquele olhar desaparecesse. E talvez tivesse dito, não fosse Daemon ter escolhido esse momento para se aproximar e fazer um comentário incisivo e devastador. Depois disso, pelo resto da manhã, Surreal evitara o senhor supremo, e não se atrevera sequer a chegar perto de Lucivar.
Mas Dorothea a vira. Sentiu a vagabunda tentando sondá-la para descobrir se tinha sido mesmo quebrada e se estava grávida. Tudo indicava que os feitiços ilusórios haviam funcionado, pois Dorothea sugeriu com amabilidade que se deitasse um pouco e descansasse. A vadia estava praticamente babando com a ideia de pôr as mãos em qualquer criança gerada por Sadi.
Ia se esconder durante algum tempo, aguardaria até o pôr do sol e voltaria a surgir para que Hekatah pudesse farejá-la. Nesse momento, tudo o que precisaria fazer era passar despercebida pelas sentinelas e pelos marcadores do perímetro, pegar Marian e Daemonar e levá-los para casa. Era tudo o que... Merda.
Estivera caminhando sem prestar atenção, e agora estava olhando Lucivar diretamente nos olhos.
Lucivar havia passado a manhã a observando. Fora uma boa encenação, embora faltasse um pouco de naturalidade. Não que ninguém mais ali tivesse percebido. Ah, com certeza Dorothea e Hekatah e muitos dos guardas já tinham visto feiticeiras quebradas, mas duvidava que algum deles tivesse prestado atenção a elas depois de terem sido quebradas. Já Lucivar, ao contrário, tomara conta de algumas dessas mulheres em várias cortes. Todas tinham algo em comum: sentiam frio nos dois primeiros dias após terem sido quebradas. Cobriam-se de xales e mantas, ficavam perto de qualquer fonte de calor disponível.
Mas ali estava Surreal, perambulando pelo acampamento, vestindo apenas uma camisa que parecia rasgada nos lugares certos de modo a exibir algumas contusões impressionantes. E isso o fez pensar em muitas coisas.
– Devia vestir um casaco, querida – disse, carinhosamente.
– Casaco? – disse Surreal num fio de voz, tentando cobrir alguns rasgões na camisa com as mãos.
– Um casaco. Está com frio.
– Não, não estou com...
– Frio.
Surreal tremeu, mas não de frio.
– Não precisa carregar o filho daquele desgraçado – disse Lucivar, calmamente. – Pode abortar. Uma feiticeira quebrada ainda é capaz disso. E, assim que ficar estéril, não há motivo para que olhem na sua direção.
– Não posso – disse Surreal, amedrontada. – Não posso. Ele ficaria furioso e...
Olhou para o lugar onde Marian e Daemonar tinham morrido.
Lucivar se perguntou se estaria errado, se a mente de Surreal estaria tão dilacerada que ainda não lhe permitia que sentisse frio. Se isso fosse verdade, compreendia agora o receio que ouvia em sua voz. Temia que o Sádico lhe fizesse o mesmo que fizera a Marian e a Daemonar.
No entanto, o que viu quando Surreal voltou a olhá-lo não era medo, e sim frustração. Sentiu o sangue rugindo novamente nas veias, o mesmo sangue que estivera inerte desde que rastejara de volta ao poste, duas noites atrás.
– Surreal...
Viu Daemon surgir na outra ponta do círculo do chão de terra batida. Com um guincho quase convincente, Surreal fugiu em disparada. Lucivar fitou Daemon. À distância, Daemon devolveu o olhar.
– Desgraçado – murmurou Lucivar.
Daemon não teria conseguido ouvir as palavras, mas não importava. Sadi saberia o que fora dito. Daemon foi embora. Lucivar recostou a cabeça no poste e fechou os olhos.
Se Surreal não estava quebrada, se tudo isto não passava de um jogo, então Marian e Daemonar... Devia ter se lembrado desse detalhe sobre o Sádico. Sabia, melhor do que todos ali, quão feroz Daemon podia ser, mais o Sádico jamais fizera mal a um inocente, jamais machucara uma criança.
Estivera aguardando o sinal, mas o jogo começara antes de Daemon chegar ao acampamento. Ainda assim, desempenhara bem seu papel. E continuaria a fazê-lo.
Porque compreensão e perdão eram duas coisas completamente diferentes.
Em meio a um sono nublado pela dor, Saetan sentiu o cálice junto aos lábios. Bebeu o primeiro gole por reflexo; o segundo, por ganância. À medida que o sabor de sangue fresco lhe invadia a boca, o poder negro ali presente fluiu pelo seu corpo, oferecendo forças.
*Aguente firme*, uma voz grave sussurrou em sua mente. *Precisa aguentar firme. Por favor.*
Ouviu o cansaço naquela voz. Ouviu a súplica de um filho a um pai e reagiu. Sendo o homem que era, não podia agir de outra maneira. Por isso, abriu caminho pela neblina de dor.
Ao abrir os olhos, tudo o que viu foi a luz do dia desaparecendo, e imaginou se teria sonhado com a súplica que ouvira na voz de Daemon. Mas ainda conseguia sentir o gosto do sangue escuro, encorpado e fresco. Voltando a fechar os olhos, deixou que a mente ficasse à deriva.
Estava numa enorme caverna em algum lugar no coração de Ebon Askavi. No chão havia uma gigantesca teia tecida em prata. No centro, onde todas as linhas de orientação se encontravam, havia uma joia iridescente do tamanho de sua mão, uma joia que misturava as cores de todas as outras joias. Na extremidade de cada linha de orientação podia-se ver uma lasca de joia iridescente do tamanho da unha do polegar.
Já estivera uma vez neste local, na noite em que estabelecera ligação com Daemon para trazer Jaenelle de volta a seu corpo.
No entanto, agora sentia uma outra presença na caverna.
Estendidas ao longo da teia prateada no chão havia três enormes teias emaranhadas, interligadas, que se erguiam a cerca de 30 centímetros do chão até quase duas vezes seu tamanho. No centro de cada teia havia uma joia ébano.
A feiticeira estava diante dessas teias, usando seu vestido negro de seda de aranha e segurando o cetro que abrigava duas joias ébano e o chifre espiralado que Kaetien lhe dera de presente ao ser morto, cinco anos atrás.
Atrás das teias, havia dezenas de demônios-mortos. Um deles se aproximou, sorriu e desapareceu. No momento em que a pessoa se extinguia, uma pequena estrela da mesma cor da joia dessa pessoa resplandecia na teia central.
Intrigado, chegou mais perto para ver melhor as teias emaranhadas.
A primeira lhe causou repulsa. Os fios pareciam distendidos, mofados, contaminados. Na extremidade de cada fio dessa teia havia uma lasca de joia ébano.
A teia do meio era linda, repleta de milhares daquelas pequenas estrelas coloridas e salpicos de lascas de joias negras e ébano.
A última era uma teia simples, simetricamente perfeita, elaborada com fios cinza, cinza-ébano e negros. Também tinha lascas negras e cinza-ébano cuidadosamente colocadas nos fios de modo a formar uma espiral.
Lançou um rápido olhar à feiticeira, mas ela estava concentrada na tarefa, por isso mudou mais uma vez de posição para observar.
Viu Char, o líder das cildru dyathe, se aproximando das teias. O rapaz sorriu para ele, despediu-se com um aceno de mão alegre e desapareceu, tornando-se outra estrela brilhante.
Titian se aproximou dele e o beijou no rosto.
– Tenho orgulho de tê-lo conhecido, senhor supremo. – Dirigiu-se às teias e sumiu.
Enquanto a observava, alguma coisa o incomodava. Alguma coisa na estrutura daquelas teias. Mas, antes que conseguisse entender, Dujae, o artista que havia dado aulas de pintura à assembleia, se aproximou.
– Obrigado, senhor supremo – disse o imenso homem. – Obrigado por ter permitido que eu conhecesse as senhoras. Todos os retratos que fiz delas já estão no Paço em Kaeleer. São um presente.
– Obrigado, Dujae – respondeu Saetan, perplexo.
Enquanto Dujae se afastava, Prothvar se aproximou e o abraçou.
– É um campo de batalha diferente, mas não deixa de ser uma nobre luta. Tome conta da pirralha, tio Saetan.
Seguiu-se Cassandra. Cassandra, que não via desde a primeira festa, em que conheceram a assembleia e os rapazes. Ela sorriu, com tristeza, e pousou uma mão em seu rosto.
– Gostaria de ter sido uma amiga melhor. Que as trevas o protejam, Saetan.
Beijou-o. Ao desvanecer, uma gloriosa estrela negra surgiu brilhante, na teia central.
– Mephis – disse ao ver o filho mais velho se aproximando. – Mephis, o que...?
Mephis sorriu.
– Tenho orgulho de ter tido você como pai e me sinto honrado por tê-lo conhecido como homem. Não sei se já disse isto algum dia. Queria que soubesse. Adeus, pai. Eu te amo.
– E eu também te amo, Mephis – disse, com dificuldade, sentindo uma grande ferida crescendo no peito.
Depois que Mephis desapareceu na teia, Andulvar era o único demônio-morto que restava.
– Andulvar, o que está acontecendo?
– E o Sangue cantará ao Sangue – respondeu Andulvar. – De igual para igual. – Olhou para as teias. – Jaenelle descobriu uma forma de distinguir os que foram contaminados daqueles que ainda honram os costumes dos Sangue. Mas precisava de ajuda para evitar que os que seguem os costumes antigos fossem arrastados com os demais quando vier o expurgo. É isso que os demônios-mortos vão fazer. Nossa força irá servir de âncora para os vivos. Seremos extintos nesse processo, mas, como disse Prothvar, é uma nobre luta.
Andulvar sorriu.
– Cuide-se, SaDiablo. E cuide dos seus filhotes. Dos dois. Lembre-se de que seu espelho é efetivamente seu espelho. Basta olhar para ver a verdade. – Andulvar o abraçou. – Homem algum poderia ter desejado um melhor amigo ou um melhor irmão. Aguente firme. Lute. É a você que cabe o fardo mais pesado, mas seus filhos irão ajudá-lo.
Andulvar caminhou para as teias. Abriu as asas escuras, ergueu os braços... e desvaneceu. Tentando evitar que as lágrimas caíssem, viu Jaenelle se aproximar. Tomou-a nos braços.
– Criança-feiticeira...
Jaenelle balançou a cabeça, beijou-o e sorriu. Mas tinha os olhos cheios de lágrimas.
– Obrigada por ter sido meu pai. Foi maravilhoso, Saetan. – Então inclinou o corpo e sussurrou em seu ouvido: – Tome conta de Daemon. Por favor. Vai precisar de você.
Não desvaneceu na teia, apenas desapareceu. Limpando as lágrimas com as costas da mão, Saetan se aproximou das teias e as estudou com cuidado.
A primeira teia, a teia bolorenta, representava os Sangue contaminados por Dorothea e Hekatah. A segunda teia, com todas as estrelas de joias, consistia nos Sangue que ainda honravam os costumes antigos. A terceira teia, com a espiral, era a feiticeira.
Enquanto continuava analisando as teias, começou a balançar a cabeça, a princípio devagar, depois cada vez mais rápido.
– Não, não, não, criança-feiticeira – disse. – Não pode ligá-las deste modo. Se libertar todo o seu poder...
Explodiria pela enorme joia ébano no centro da primeira teia, viajaria por todos os fios, varreria todas as mentes que ressoassem nesses fios, atingiria todas as lascas ébano, encontrando uma pequena parte de si numa colisão de energia devastadora que aniquilaria qualquer um pelo caminho. Em seguida, prosseguiria para a próxima teia, ainda extremamente forte.
A teia do meio, com todos aqueles milhares de contas de poder, ofereceria extraordinária resistência enquanto a força dela a percorresse. Os demônios-mortos, proporcionando um escudo e uma âncora aos vivos, absorveriam um pouco dessa energia, mas nem todos aqueles milhares de contas seriam suficientes. Aquela força descarregada prosseguiria para a terceira teia e...
A energia fluiria pela simetria perfeita, extinguiria a teia e estilhaçaria todas as lascas de joias ao voltar explosivamente pela espiral. E quando a última lasca de joia fosse estilhaçada, a única coisa que restaria para reabsorver a energia remanescente seria...
– NÃO, criança-feiticeira – gritou, andando sem direção, procurando por ela. – Não! Um impacto desses irá dilacerá-la! Jaenelle!
Voltou a olhar para as teias. Talvez, se descobrisse uma forma de se ligar à teia da feiticeira, pudesse retirar até a última gota de poder de reserva de sua joia vermelha de direito por progenitura, e da joia negra... Talvez fosse possível protegê-la e mantê-la a salvo quando o que restasse daquela explosão de poder voltasse desenfreadamente a Jaenelle.
Deu um passo para a frente... e tudo desvaneceu.
Saetan abriu os olhos. Penumbra. Quase noite.
Um sonho? Apenas um sonho? Não. Os longos anos como viúva-negra permitiam-lhe distinguir direito entre um sonho e uma visão. Mas estava desvanecendo. Não conseguia se lembrar direito, mas havia alguma coisa nessa visão de que precisava desesperadamente recordar.
Foi nesse momento que percebeu Daemon à sua frente, a poucos metros, a observá-lo com uma intensidade assustadora.
Lembre-se de que seu espelho é efetivamente seu espelho. Basta olhar para ver a verdade.
As palavras de Andulvar. A advertência de Andulvar. E assim, com os olhos nublados pelas lágrimas, contemplou seu reflexo, aquele que levava seu nome, seu legítimo herdeiro. E viu.
Sem desviar o olhar, Daemon enfiou a mão no bolso do casaco. Ao puxá-la abriu os dedos e inclinou a mão. Pequenas miçangas coloridas se espalharam pelo chão. Saetan as fitou. Provocavam-lhe calafrios, mas não sabia por quê.
Quando ergueu novamente os olhos para Daemon, podia quase ouvir a súplica tácita para que pensasse, para que soubesse, para que se lembrasse. Mas sua mente ainda estava tomada demais por aquela outra visão.
Daemon foi embora. Saetan fechou os olhos. Miçangas e teias. Se conseguisse descobrir a ligação, encontraria as respostas.
Surreal praguejava em silêncio enquanto fitava as estacas do perímetro. Devia haver um truque para passar. Fogo do Inferno, Daemon conseguira fazê-los entrar no acampamento sem que ninguém percebesse, mas ainda estava atordoada demais pela transformação de Daemon em Sádico e não prestou muita atenção. E ele tinha retirado Marian e Daemonar também.
Poderia ser tão simples como saltar para que o contato entre os cristais não fosse interrompido? Não, se fosse isso teria se lembrado.
– O que está fazendo aqui? – perguntou uma voz.
Merda.
Virou-se para o guarda que vinha na sua direção. Estava afastada demais do acampamento para que ele acreditasse que era apenas uma feiticeira quebrada perambulando por ali. Mas tinha que tentar convencer esse desgraçado. Ou matá-lo discretamente. Se fosse obrigada a usar as joias cinza, Daemon teria que mudar os planos, permitindo que as vagabundas percebessem que tinham sido enganadas. Então guerra começaria para valer.
– A barraca se perdeu – disse, acenando a mão num gesto vago.
O homem se aproximou, os olhos cheios de desconfiança e suspeita.
– Responda, vagabunda. Por que está aqui tão longe?
– A barraca se perdeu – repetiu, esforçando-se para imitar o modo como a mente de Tersa tendia a devanear. Apontou. – Devia estar perto daquele poste torto, mas se perdeu.
O guarda olhou na direção indicada.
– Aquilo é uma árvore, vagabunda idiota. Agora...
Parou, olhou-a de alto a baixo e sorriu. Olhando em volta para ter certeza de que não havia ninguém mais por perto, tentou agarrá-la. Surreal recuou um passo, colocou uma mão protetora sobre a barriga e balançou a cabeça.
– Não posso tocar outro macho. Ficará furioso comigo se tocar outro macho.
O homem ofereceu um sorriso perverso.
– Bem, ele não vai saber, não é?
Surreal hesitou. Isso certamente a deixaria perto o bastante para enterrar uma faca entre as costelas do homem, mas tomaria um tempo que não tinha. Nesse caso, joias cinza e uma morte rápida. Que as trevas ajudassem Sadi com o que pudesse acontecer depois no acampamento.
*Abaixe-se, Surreal!*
Sentiu patas traseiras roçando as costas quando se atirou ao chão.
Logo depois, o guarda jazia morto, com a garganta esfacelada. O escudo de visão foi desaparecendo, revelando o lobo manchado de sangue.
– Presa Cinza? – sussurrou Surreal. Tocou na joia sob a camisa. A presa da cinza. O senhor supremo tinha razão.
Contornando o homem morto, estendeu a mão para o lobo.
*Espere*, disse Presa Cinza.
Foi quando ela percebeu o montículo dourado entre as orelhas do lobo. O montículo se levantou, flutuou até a estaca de perímetro mais próxima e desenrolou as patas.
Surreal olhava deslumbrada enquanto a pequena aranha dourada tecia incansavelmente uma teia emaranhada simples entre as duas estacas. Ao terminar, caminhou de maneira cautelosa até o centro da teia.
O guarda desapareceu. No chão, não restava qualquer vestígio de sangue.
*Agora não irão encontrá-lo*, disse Presa Cinza. *Só conseguirão ver aquilo que a teia deixar.* Fechou delicadamente os dentes no braço de Surreal e começou a puxá-la.
– E a aranha?
*Ficará vigiando a teia. Depressa, Surreal.*
Sacudiu o braço para se livrar dos dentes do lobo. Seria mais fácil acompanhá-lo se não estivesse agachada. Por um fio de comunicação, perguntou:
*O que está fazendo? Como conseguiu passar pelas estacas do perímetro?*
*Os humanos são tolos. A trilha da carne não é vigiada. Patas demais pela trilha. Os humanos se cansaram de mostrar as presas quando era só carne.*
Trilha da carne? Ah, a trilha da caça.
*Como sabia sobre a trilha? Como conseguiu me encontrar?*
*A tecelã de sonhos me disse para aprender o cheiro do gato de duas patas e seguir seu rastro. É um bom caçador*, acrescentou Presa Cinza, em aprovação. *Ele tem muito de felino. É Kaelas quem diz.*
Sadi, cuja graciosidade predatória era reconhecida até pelos parentes. Presa Cinza seguira Sadi.
*Quem é a tecelã?*
Rapidamente, recebeu a imagem mental de uma enorme aranha dourada. Maldito lobo idiota. Já era ruim o bastante ter ido a Aracna e trazido uma pequena aranha. Mas conviver com a rainha...
*Foi ela que me pediu, Surreal*, disse Presa Cinza, humildemente, depois que Surreal rosnou para ele. *Não é bom recusar um pedido da tecelã.*
Surreal retomou o passo.
*Falaremos sobre isso mais tarde.*
Assim que viu a trilha da caça, reconheceu-a. Fora por ali que se aproximaram do perímetro do acampamento.
*Nunca acharia este lugar de novo estando sozinha.*
*Você tem um focinho pequeno demais*, disse o lobo amavelmente. *Não consegue farejar rastros.*
Surreal olhou para Presa Cinza e sorriu.
– Vamos – sussurrou. – Sabe o caminho até a barraca?
*Sei.*
Uma hora mais tarde, Surreal, Marian, Daemonar e Presa Cinza viajavam pelo vento vermelho para a fortaleza.
– Acho que está na hora de termos uma conversinha – disse Hekatah, tentando sorrir de modo recatado para Daemon.
– É mesmo?
A arrogância, a grosseria, a maldade naquela voz. Se o pai tivesse sido metade do homem que o filho era...
– Um reino leva muito tempo para se recuperar de uma guerra, portanto seria tolice seguir em frente com algo que podemos evitar – disse Hekatah, estendendo a mão e acariciando o rosto de Daemon enquanto tecia um feitiço de sedução ao seu redor.
Ele recuou.
– Não volte a me tocar sem a minha permissão – rosnou baixinho. – Nem Jaenelle tem autorização para me tocar sem meu consentimento.
– E ela aceita isso?
O sorriso de Daemon era frio e brutal.
– Isso e muitas outras coisas. E implora por mais.
Hekatah olhou para aqueles olhos vítreos e vibrou de excitação. O ar estava impregnado com o odor mundano do sexo. Tinha Daemon nas mãos. Só que ele ainda não sabia.
– Uma parceria seria boa para nós dois.
– Mas você já tem uma parceira, Hekatah. Uma a qual jamais me associarei.
Ela agitou a mão com desdém.
– Podemos cuidar dela facilmente. – Fez uma pausa. – Nossa querida Dorothea não tem dormido bem. Acho que vou preparar uma pequena infusão para ajudá-la.
– Nesse caso...
Daemon segurou seu rosto entre as mãos. Seus lábios tocaram os dela. Ficou desapontada pela delicadeza, até ele começar a realmente beijá-la. Cruel, dominador, implacável, exigente, dolorosamente excitante.
Mas Hekatah era demônia-morta. Seu corpo não era capaz de responder daquela forma, não podia... Deixou-se inundar por aquele beijo, atordoada por sensações ausentes há séculos de seu corpo.
Daemon finalmente levantou a cabeça. Hekatah apenas olhou para ele.
– Como...? Não é possível.
– Acho que acabamos de provar que é – cantarolou Daemon. – Costumo castigar as mulheres que mentem para mim.
– É mesmo? – sussurrou Hekatah, cambaleante. Não conseguia desviar o olhar do prazer cruel naqueles olhos. – Eu cuido da Dorothea.
Voltou a beijá-la. Desta vez, Hekatah sentiu o escárnio na gentileza. Não havia nada de gentil em Daemon. Nada.
– Eu cuido da Dorothea – repetiu. – E então seremos parceiros.
– Pois eu prometo, minha querida – ronronou Daemon. – Você terá tudo o que merece.
Dorothea acordou tarde e gemeu por causa das cólicas. Parecia que as dores do período da lua de todo um ano tinham se instalado nas suas entranhas. Não podia ficar doente agora. Não podia. Talvez uma xícara de chá de ervas ou um caldo. Fogo do Inferno, estava com frio. Porque diabo estava com tanto frio?
Tremendo, arrastou-se para fora da cama... e caiu.
Depois do choque, veio o medo. Lembrou-se da infusão que Hekatah lhe preparara na noite anterior para ajudá-la a dormir. Em que estaria pensando para não testar algo vindo das mãos de Hekatah?
Não pensara. Não... A vagabunda. Aquele pedaço de carne putrefata ambulante devia ter lançado um feitiço de coação para que bebesse...e para que se esquecesse de que fora coagida a beber.
Sentiu os músculos se retorcendo. Não estava doente. Fora envenenada.
Precisava de ajuda. Precisava... A porta da cabana se abriu. Arquejando devido ao esforço, Dorothea rolou de lado e deu de cara com Daemon Sadi.
– Daemon – choramingou, tentando estender a mão. – Daemon... me ajude...
Daemon não se mexeu, apenas continuou a observá-la. Sorriu.
– Parece que o sangue-de-feiticeira fez parte da infusão da noite passada – disse, satisfeito.
Dorothea estava sem fôlego.
– Foi você. Foi você.
– Estava se tornando inconveniente, querida. Não foi pessoal.
Mesmo com dor pôde sentir a estocada do insulto.
– Hekatah...
– Sim – ronronou Daemon –, Hekatah. Mas não se preocupe, querida. Levantei um escudo auditivo e de proteção em volta da cabana para que ninguém a incomode durante o dia.
Saiu da cabana. Dorothea tentou se arrastar até a porta, tentou gritar por ajuda. Não conseguiu fazer nem uma coisa nem outra.
Não demorou muito até seu mundo ficar reduzido à dor.
Daemon fechou a porta da barraca-prisão, que vinha usando toda vez que precisava ficar algum tempo sozinho. Do bolso do casaco retirou as joias que fora pegar de volta na cabana de Dorothea: o anel negro de Saetan; o pingente, o anel e o anel de honra de Lucivar. Conhecia-a muito bem, sabia exatamente onde procurar o esconderijo. Não levara mais do que um minuto contornando os feitiços de proteção de Dorothea e surrupiando as joias enquanto falava com ela.
Examinou as joias e suspirou de alívio. Ambos tinham colocado poderosos escudos em volta das peças antes de entregá-las àquelas vacas, de modo que não havia forma de terem sido adulteradas ou contaminadas. Ainda assim...
Colocando as joias na pia, deixou a água correr, acrescentou algumas ervas adstringentes para purificá-las e as deixou de molho. Este seria o último dia, a última noite. Conseguiria aguentar até o fim. Precisava aguentar.
Fechou os olhos. Em breve, meu amor. Mais algumas horas e estarei a caminho de casa, de volta a seus braços. E depois casaremos.
Ao imaginar Jaenelle colocando a aliança de ouro puro em seu dedo, sorriu. E se lembrou do feitiço de sedução que Hekatah tecera à sua volta. Ah, tinha percebido, podia tê-lo quebrado facilmente. Mas deixara o corpo reagir ao tocar Hekatah. Ao beijar Hekatah. Ao odiar Hekatah.
Era só um jogo. Um jogo sórdido e cruel.
Mal teve tempo de pegar um balde para vomitar, sem fazer alarde, mas violentamente.
– É a sua vez, bastardo.
Porque estava procurando, por saber o que procurar, Lucivar viu o intenso desespero nos olhos de Daemon. Portanto, permaneceu impassível enquanto Daemon retirava suas correntes e o levava para a outra barraca-prisão, a que estava mais perto. E continuou impassível enquanto o irmão desarrumava febrilmente a pequena cama.
Em seguida, soltou um angustiado grito de guerra eyrieno que assustou Daemon o bastante para ele cair na cama.
– Fogo do Inferno, bastardo – resmungou Daemon, levantando-se.
– Foi convincente? – perguntou Lucivar, sereno.
Daemon ficou petrificado. As máscaras caíram. Lucivar viu um homem física e emocionalmente exausto, um homem que mal se aguentava em pé.
– Por quê? – perguntou baixinho.
– Precisei ganhar tempo para Jaenelle. Para isso, precisava do seu ódio.
Tão simples. Tão doloroso. Daemon lastimaria, lamentaria profundamente, mas não hesitaria em arrancar o coração do irmão se fosse esse o desejo de Jaenelle. E fora exatamente isso que tinha feito.
– Está aqui com o consentimento de Jaenelle? – perguntou Lucivar.
– Estou aqui sob ordens dela.
– Para encenar este jogo.
– Para encenar este jogo – concordou Daemon, calmo.
Lucivar assentiu e deu uma gargalhada amarga.
– Bem, sacana, você fez um bom jogo. – Hesitou, depois disse friamente: – Onde estão Marian e Daemonar?
As mãos de Daemon tremiam ligeiramente ao passar os dedos pelo cabelo.
– Considerando que Surreal não precisou aniquilar ninguém com a cinza para sair daqui, imagino que tenham chegado em segurança ao esconderijo onde os deixei. A esta altura, devem estar todos na fortaleza.
Lucivar deixou que as palavras fizessem sentido e se permitiu um breve momento de alívio e alegria.
– E agora, o que vai acontecer?
– Agora vou criar uma sombra de você, e você vai para a fortaleza. Viaje no vento vermelho. Os mais escuros estão instáveis.
Sombras. Daemon jamais conseguiria criar sombras tão convincentes. Pelo menos, não sozinho. E Jaenelle... Jaenelle, tendo crescido com Andulvar e Prothvar, saberia que um guerreiro eyrieno aceitaria a dor do campo de batalha, independentemente do aspecto desse campo.
– De que precisa? – perguntou Lucivar.
Daemon hesitou.
– Um pouco de cabelo, pele e sangue.
– Então vamos jogar.
Trabalharam juntos em silêncio. O único som que Lucivar emitiu durante todo esse tempo foi um suspiro de alívio, quando Daemon colocou o anel de honra em seu pênis, usando-o para remover o anel de obediência de forma a não ser detectado.
Colocando as joias cinza-ébano que Daemon lhe devolvera, observou os passos finais do feitiço que resultaria numa sombra de si próprio. E estremeceu ao ver a criatura torturada e angustiada com lábios retraídos num sorriso forçado.
– Fogo do Inferno, sacana – disse Lucivar, sentindo-se nauseado. – O que fez comigo para eu acabar neste estado?
– Não sei – respondeu Daemon penosamente. – Mas tenho certeza de que Hekatah conseguirá imaginar alguma coisa. – Hesitou, engoliu em seco. – Olha, bastardo, uma vez na vida, faça o que lhe dizem. Vá para a fortaleza. Todos aqueles que mais ama estarão à sua espera.
– Nem todos – disse Lucivar, suave.
– Vou tirar o senhor supremo daqui. – Daemon aguardou.
Lucivar sabia o que Daemon aguardava, o que desejava. Queria ouvir que Saetan não era o único que importava que estava ficando para trás. Mas Lucivar não disse nada. Daemon desviou o olhar e disse, com um ar abatido:
– Vamos. Resta apenas uma jogada.
Saetan olhava para as miçangas espalhadas no chão. Por que Daemon dava tanta importância a elas? E por que lhe provocavam calafrios?
Silvou de frustração, depois estremeceu com o som sibilante.
– Deseja compreender issso? – perguntara Draca.
Miçangas flutuando num tanque de água. Draca segurando uma pedra oval ligada a um fino fio de seda.
– Uma esspiral.
A pedra fazendo movimentos circulares, girando, girando, até toda a água entrar em movimento, e com ela as miçangas.
– Um redemoinho – dissera Geoffrey.
– Não – respondera Draca. – Um turbilhão... Vai quase ssempre fazer esspiraiss... Não dá para mudar ssua natureza... Mass o turbilhão... Proteja ela, Ssaetan. Proteja ela com a sua força e o seu amor e talvez isso nunca aconteça.
– E se acontecer? – perguntara Saetan.
– Será o fim doss Ssangue.
Fim dos Sangue.
Fim dos...
Aquelas miçangas não eram uma mensagem de Daemon. Eram uma advertência de Draca. Jaenelle ia entrar em espiral até a profundidade imensa de todo seu poder para libertar o turbilhão. O fim dos Sangue. Fora por isso que insistira para que o primeiro círculo permanecesse na fortaleza? Por ser o único local que poderia resistir àquele poder devastador? Não. Jaenelle não gostava de matar. Não iria destruir todos os Sangue se pudesse...
Maldição. Maldição. Precisava recuperar aquela visão. Precisava ver novamente aquelas teias para se lembrar do único elemento importante que estava lhe escapando. Haviam posto um véu sobre essa visão para impedir que se lembrasse até ser tarde demais.
Mas se ela ia libertar o turbilhão, o que diabo Daemon estava fazendo aqui?
Um jogo. Ganhando tempo. Distraindo Dorothea e Hekatah. Fazendo joguinhos para... Marian e Daemonar. Depois Surreal. Ouvira os gritos de Lucivar há duas horas, mas desde então não dera qualquer sinal de vida. Faltava...
As miçangas foram cobertas por uma sombra. Ergueu os olhos e encontrou os olhos vidrados de Daemon.
– Hora de dançar – cantarolou Daemon.
Podia ter dito alguma coisa, mas sentia o odor de Hekatah ali por perto. Por isso, deixou que Daemon o levasse à barraca-prisão e continuou em silêncio enquanto era atado à cama. Quando Daemon se estendeu a seu lado, Saetan sussurrou:
– Quando termina o jogo?
Daemon ficou tenso, engoliu seco.
– Daqui a duas horas – disse, mantendo a voz baixa. – À meia-noite. – Pousou delicadamente a mão no peito de Saetan. – Não vai acontecer nada. Só...
Ouviram alguém se encostando à porta. Os dois sabiam quem era. Saetan balançou a cabeça. Tudo tem um preço.
– Seja convincente, Daemon – murmurou.
Viu a triste resignação e o pedido de desculpas nos olhos de Daemon antes que o filho o beijasse.
E soube por que os Sangue o chamavam de Sádico.
Saetan estava deitado de lado, olhando para a parede.
Na verdade, Daemon tinha feito muito pouco. Muito pouco. Mas conseguira convencer a vagabunda do outro lado da porta de que um filho estava estuprando o próprio pai. Uma demonstração de habilidade bem impressionante.
Ficara preocupado, mas, quando Daemon deixou a barraca, ouvira um comentário sussurrado e a gargalhada deliciada e corrosiva de Hekatah.
Assim, enquanto Daemon continuava a percorrer o acampamento, Saetan tinha tempo para reunir forças, para pensar.
O jogo terminaria à meia-noite. Que significado teria a meia-noite? Bem, era considerada a hora mágica, o momento suspenso entre um dia e o outro. E teriam decorrido 72 horas desde que Daemon chegara ao acampamento.
Saetan se levantou bruscamente. Setenta e duas horas.
– Do crepúsculo à alvorada. Era essa a duração da oferenda às trevas. Não importava se a pessoa saía dela com uma joia branca ou uma negra, era esse o tempo que levava.
– Para o príncipe das trevas – dissera Tersa enquanto encaixava as peças de um quebra-cabeças. – E quanto à rainha?
Quando Jaenelle tinha feito sua oferenda às trevas, levara três dias. Setenta e duas horas.
– Mãe Noite – murmurou, sentando-se.
A porta se abriu. Daemon entrou rapidamente e deixou um monte de roupas cair na cama. Antes que Saetan pudesse falar, Daemon segurou sua nuca e levou uma xícara aos lábios do pai. Não teve alternativa, era engolir ou engasgar. Engoliu. Passado um instante, desejou ter engasgado.
– Fogo do Inferno, o que foi que me deu? – arquejou, ao mesmo tempo que se dobrava e punha a cabeça entre os joelhos.
– Um tônico – disse Daemon, massageando energicamente as costas de Saetan.
– Pare – disse Saetan, com rispidez. Virou a cabeça e olhou furioso para Daemon. – Um tônico de quem?
– De Jaenelle... misturado com o meu sangue.
Saetan praguejou baixinho, violentamente e com enorme sinceridade. Daemon estremeceu e resmungou:
– Jaenelle disse que ia deixá-lo forte como duas parelhas de cavalos.
– Só alguém que nunca experimentou um desses tônicos poderia descrevê-lo assim.
Daemon ficou de joelhos diante de Saetan e abriu as correntes.
– Não consegui encontrar suas roupas, então trouxe estas. Devem servir.
Saetan cerrou os dentes enquanto Daemon lhe massageava as pernas e os pés.
– Onde as conseguiu?
– Com um guarda. Ele não precisará mais delas.
– Aqueles porcarias devem ter piolhos.
– Aguente – resmungou Daemon.
Retirando uma bola de argila do bolso do casaco, modelou-a no formato de um cilindro grosso. Em seguida, com cuidado, forçou o anel de obediência a se abrir ligeiramente a fim de deslizar do órgão de Saetan. Ele se prendeu à argila com a mesma ferocidade com que se agarrara à carne.
Pousando o cilindro na cama, Daemon olhou rapidamente para o pênis de Saetan e inspirou ruidosamente.
– Não faz diferença – disse Saetan, calmamente. – Sou guardião. Já passei dessa fase da vida.
– Mas... – Daemon cerrou os lábios. – Vista isto. – Depois de ajudar Saetan a vestir as calças, voltou a se ajoelhar para calçar as meias e as botas do pai. – Já é quase meia-noite. Vai ser apertado, uma vez que ainda temos um longo caminho até o fio mais próximo dos ventos. Mas em poucas horas estaremos na fortaleza. Estaremos em casa.
A ansiedade desesperada nos olhos de Daemon arrancou o véu de visão. Duas teias. Uma delas mofada, contaminada. A outra bela, cheia de contas brilhantes de energia.
Ela havia encontrado uma forma de separar os que viviam segundo os costumes dos Sangue daqueles que haviam sido desvirtuados por Hekatah e Dorothea.
No entanto, a terceira teia...
Era rainha, e uma rainha não podia pedir aquilo que ela própria não podia oferecer. E era provavelmente a única coisa egoísta que fizera na vida. Sacrificando-se, não teria de carregar o fardo de todas as vidas que estava prestes a aniquilar. Mas...
Ele não sabe. Você não disse. Ele veio aqui acreditando que estará à espera dele quando voltar. Ah, criança-feiticeira.
Por isso que lhe pedira para cuidar de Daemon. Ela sabia que precisaria de seu apoio. Mas talvez não fosse tarde demais. Talvez ainda houvesse uma forma de evitar, de detê-la.
– Vamos – disse bruscamente.
Daemon envolveu ambos num escudo de visão e saíram do acampamento. Quando chegaram ao local onde podiam tomar os ventos, uma lufada de ar fria e cortante começou a soprar.
Saetan parou, inspirou pela boca, saboreando o ar.
– É só vento – disse Daemon.
– Não – respondeu Saetan sinistramente –, não é. Vamos.
Duas horas depois, Hekatah irrompeu na cabana de Dorothea, brandindo um cilindro grosso de barro.
– Fomos enganadas. Todos desapareceram. Aquela coisa na barraca-prisão não é Lucivar, é uma espécie de ilusão. E Saetan... – Arremessou o cilindro. – Aquele desgraçado do Sadi mentiu para nós.
Estendida no chão onde estivera o dia todo, Dorothea olhou para Hekatah. Ao mesmo tempo que seus intestinos soltavam mais fluidos corporais, começou a rir.
Uma tempestade vinha se formando. Agora, com a aproximação da aurora, o vento era mais forte, lembrando uma voz.
– Venha – disse Tersa, ajudando Karla a chegar ao sofá. – Precisa se deitar. Morghann, venha até aqui e se deite no chão.
– O que está acontecendo? – perguntou Khardeen ao ver Morghann obedecendo e deitando-se no chão, ao lado do sofá. Foi buscar uma almofada e colocou-a sob a cabeça da esposa.
– Seria aconselhável que todos se deitassem no chão. Até a fortaleza vai sentir esta tempestade.
Todos os membros do primeiro círculo se entreolharam, apreensivos, e obedeceram.
– O que é? – perguntou Karla quando Tersa a envolveu com um braço protetor e pousou a outra mão no ombro de Morghann.
– Chegou o dia do acerto de contas, e os Sangue terão de justificar aquilo que se tornaram.
– Não entendo – disse Karla. – Qual o significado da tempestade?
Clarões de relâmpagos. O vento a uivar.
Tersa fechou os olhos. E sorriu.
– Ela está chegando.
Tinha sido por pouco. Não esperara que a viagem nos ventos fosse tão agitada ou que a resistência física de Saetan, e também a sua, se esgotasse tão rapidamente. Tiveram de sair do vento vermelho, passar ao azul-safira e, por fim, na última parte da viagem, viram-se obrigados a passar ao verde.
Não podiam desembarcar exatamente na fortaleza. Tinham sido erguidos escudos em volta do lugar. Assim, concentrou-se na joia cinza-ébano de Lucivar – e no único lugar dos escudos que Lucivar mantinha aberto com as joias – e saltou dos ventos com Saetan, tão próximo quanto possível. Não fora suficientemente perto, não para dois homens exaustos numa montanha íngreme.
Agora, com o portão à vista e Lucivar pedindo mentalmente que se apressassem, Daemon ajudava Saetan a subir a encosta, lutando a cada passo contra um vento feroz e sibilante.
Estavam quase chegando. Quase. Quase. O céu estava clareando. O sol surgiria no horizonte a qualquer momento.
Depressa. Depressa.
– Saetan! SAE-TANNNN!
Daemon olhou para trás. Hekatah estava escalando a encosta. A vagabunda devia ter vindo pelo vento vermelho para ter chegado ali logo depois deles. Em vez de desperdiçar energia praguejando, apressou o passo o melhor que pôde, arrastando Saetan.
– Sadi! – gritou Hekatah. – Desgraçado mentiroso!
– RÁPIDO! – gritou Lucivar. Estava usando a arte para manter o portão aberto, esgotando-se física e mentalmente para evitar que se fechasse e os deixasse do lado de fora.
Mais perto. Quase lá. Quase. Daemon segurou as barras do portão e usou a força da joia negra para mantê-lo aberto.
– Leve-o para dentro – disse, empurrando Saetan. Em seguida, virou-se e aguardou.
Hekatah surgiu no topo da encosta e parou a alguns metros de distância.
– Desgraçado mentiroso!
Daemon sorriu.
– Não menti, querida. Disse que teria tudo o que merece.
Largou o portão, que se fechou com estrondo e foi resguardado pelo último escudo.
Enquanto se virava e corria pelo pátio exterior, ouviu os gritos de Hekatah. E ouviu um uivo selvagem, um som pleno de júbilo e sofrimento, de raiva e celebração.
Atravessou a soleira da porta para a segurança da fortaleza. No instante seguinte, Jaenelle soltou o turbilhão.
*Precisa acordar*, disse uma voz profunda e sibilante. *Precisa acordar.*
Daemon abriu os olhos. Levou um momento para entender por que tudo parecia tão... estranho. Levou outro instante para confirmar que ainda estava ligado ao corpo, mas que jazia no chão frio de pedra da fortaleza onde tinha tombado, junto com Lucivar e Saetan, quando Jaenelle libertou seu poder absoluto.
*Vocêss ssão o triângulo que ajudou a dar forma à teia de sonhoss. Agora precisam ssustentar o ssonho. Não resta muito tempo.*
Gemendo, Daemon se sentou e olhou em volta. E despertou de imediato.
Mãe Noite, onde estamos?
Tocou Saetan, que estava deitado de bruços, e balançou Lucivar.
*Fogo do Inferno, sacana*, disse Lucivar. Ergueu a cabeça. *Merda.*
Ambos estenderam os braços e balançaram Saetan, até acordá-lo.
*Pai, acorda. Temos problemas*, disse Daemon.
*O que foi agora?*, resmungou Saetan. Apoiou-se nos cotovelos. Arregalou os olhos. *Mãe Noite.*
*E que as trevas sejam misericordiosas*, acrescentou Lucivar. *Onde estamos?*
*Em algum lugar no abismo. Acho.*
Com cautela, ficaram de pé. Estavam à beira de um precipício largo e profundo. Havia uma teia opala estendida sobre o abismo. Abaixo deles havia teias nas cores das joias mais escuras. Acima, teias nas cores das joias mais claras.
*O que estamos fazendo aqui?*, perguntou Lucivar.
*Somos o triângulo que ajudou a dar forma ao sonho*, disse Daemon. *Devemos sustentar o sonho.*
*Não me venha com enigmas, sacana*, rosnou Lucivar.
Daemon devolveu o rosnado. Saetan ergueu a mão. Calaram-se.
*Quem lhe disse isso?*, perguntou Saetan.
*Uma voz sibilante.* Daemon vacilou. *Parecida com a de Draca, mas masculina.*
Saetan assentiu.
*Lorn.*
Voltou a olhar em volta. Muitíssimo acima deles, relâmpagos lampejavam.
*Por que Jaenelle lhe pediu para ir a Hayll, Daemon?*, perguntou Saetan.
*Ela disse que o triângulo precisava se manter unido para sobreviver. Que o espelho tinha a força para manter os outros dois a salvo.*
*Viu isso numa teia emaranhada?*
*Não. A tecelã de sonhos disse a ela.*
Lucivar começou a praguejar. O olhar de Saetan era perspicaz, penetrante, meditativo. Os relâmpagos ficaram ligeiramente mais próximos.
*Pai, irmão, amante*, disse Saetan suavemente.
Daemon assentiu, recordando-se do triângulo que Tersa desenhara na palma da sua mão.
*O pai veio primeiro. O irmão fica no meio.* Quando os dois olharam para ele, agitou-se constrangidamente. *Uma coisa que Tersa me disse há muito tempo.*
*Avisos de Tersa, da rainha aracniana e de Draca*, disse Saetan. *Um homem até pode ignorar um aviso por sua conta e risco, mas três?*, balançou a cabeça devagar. *Acho que não.*
Os relâmpagos se aproximaram um pouco mais.
*Está tudo muito bem*, resmungou Lucivar, *mas eu preferia uma ordem direta.*
*Estass teiass ssão a melhor magia que tenho a dar*, disse Lorn, irritado. *Usem ass teiass para susstentar o ssonho. Se ela atravessar todass, voltará àss trevass. Irão perdê-la.*
Lucivar bufou.
*Foi claro o bastante. Então, onde...* Olhou para cima quando voltaram a surgir os relâmpagos. *O que é aquilo?*
Todos olharam para cima e aguardaram o relâmpago seguinte. Então viram o pequeno ponto escuro caindo rápido na direção das teias.
*Jaenelle*, sussurrou Daemon.
*Vai atravessá-las*, disse Saetan. *Temos que usar nossa própria força para tentar diminuir a velocidade.*
*Muito bem*, disse Lucivar. *Como faremos isso?*
Saetan olhou para Daemon e, em seguida, para Lucivar.
*Pai, irmão, amante.* Não aguardou por uma resposta. Elevou-se a toda velocidade para interceptar a feiticeira antes que atingisse a teia branca.
Lucivar observou por um instante, e se virou para as teias com os olhos semicerrados.
*Se atingi-las no centro, irá rasgá-las. Precisamos fazê-la rolar.* Pousou a mão no ombro de Daemon, apontando com a outra mão. *Não tão perto da beira para que você corra o risco de bater contra as paredes do precipício, mas longe do meio. Então retorça e role enquanto usa a própria força como um freio.*
Daemon olhou para as teias.
*Isso servirá para quê?*
*Primeiro, o movimento contrário deverá diminuir a velocidade. E se ficar enrolada nas teias...*
*Formaremos um casulo de poder.*
Lucivar assentiu.
*Vou subir até a rosa. Não sei quanta força resta a Saetan. Se ainda for capaz de aguentá-la, juntarei minha força à dele. Se não...*
*Onde devo ficar?*, perguntou Daemon, disposto a se submeter às aptidões e experiência de combate de Lucivar.
*Na verde. Devo conseguir aguentá-la até lá.* Lucivar hesitou. *Boa sorte, sacana.*
*Para você também, bastardo.*
Lucivar levantou voo. Um momento depois, Daemon ouviu o rugido de desafio de Saetan quando a teia branca se estilhaçou. Através do clarão, pôde ver duas pequenas silhuetas caindo, caindo.
Desceu, flutuando, até a teia verde.
A teia amarela se estilhaçou. Depois a olho-de-tigre. Ouviu o grito de guerra de Lucivar. Quando a teia rosa estilhaçou, viu um redemoinho de cor enquanto Lucivar rolava, lutando contra a velocidade da queda.
Atingiram a azul-celeste. Agarrado às pernas da feiticeira, Lucivar rolou para o outro lado, pegando grande parte da teia antes de atravessá-la.
A violeta. A opala.
Daemon se juntou a ele entre a opala e a verde.
*Solte-a, bastardo, antes que estilhace a cinza-ébano.*
Com um grito desafiador, sofrido e receoso, Lucivar a soltou. Daemon se sentiu invadido pela fúria. O amor o impeliu. Daemon e a feiticeira bateram na teia verde. Ele rolou, mas não tinha a técnica de Lucivar. Irromperam junto ao centro da teia. Continuou rolando para que, quando atingissem a azul-safira, estivessem mais perto da beira. Rolou em sentido contrário, envolvendo-a no poder da teia.
Atravessaram a azul-safira, mas já não estavam caindo à mesma velocidade. Tinha um pouco mais de tempo para se preparar, para planejar, para liberar a força de suas joias negras na luta contra a queda.
Bateram na vermelha, rolaram, agarraram-na por um momento antes de caírem para a cinza. Somente metade dos fios da cinza se partiu imediatamente. Empregou todas sua energia para trás. Quando a outra metade se partiu, rolou para cima enquanto a teia os puxava para baixo, em direção à cinza-ébano. Fez força contra o movimento, oscilando em sentido contrário, abrandando a queda.
Quando o outro lado da cinza se quebrou, planaram em direção à cinza-ébano. A teia cedeu quando a atingiram, esticou, esticou um pouco mais, até que os fios começaram a se partir.
As joias negras de Daemon estavam praticamente exauridas, mas ele aguentou firme, enquanto flutuavam até a teia negra.
E nada mais aconteceu.
Tremendo, com calafrios, Daemon olhou atônito para a teia negra, sem coragem de acreditar. Levou um minuto até conseguir abrir as mãos. Quando conseguiu soltá-la, flutuou com cuidado sobre a teia. Perto do ombro de Jaenelle, reparou em dois pequenos fios partidos. Com cuidado, alisou os fios negros sobre as outras cores que formavam o casulo.
Mal conseguia vê-la, enxergava apenas o pequeno chifre espiralado. Mas era o suficiente.
*Conseguimos*, sussurrou enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. *Conseguimos.*
*Ssim*, disse Lorn, com uma serenidade imensa. *Agiram bem.*
Daemon olhou para cima, olhou ao redor. Quando voltou a olhar para a feiticeira, ela desvaneceu.
Tudo desvaneceu.
Saetan abriu os olhos, tentou se mexer e percebeu que estava preso entre dois corpos quentes que o envolviam. Seus filhos.
Ah, criança-feiticeira. Espero que tenha valido o preço.
Tentou se mexer novamente, resmungou ao não conseguir e por fim deu uma cotovelada em Lucivar. Este também resmungou e se aconchegou ainda mais.
Empurrou Lucivar outra vez, pois não podia afastar Daemon. Não agora.
O resmungo de Lucivar se transformou num rosnado, mas ele por fim se moveu, despertando Daemon.
– Fico encantado que pensem em mim como uma almofada confortável – disse Saetan sarcasticamente –, mas um homem na minha idade prefere não dormir num chão frio de pedra.
– Nem um homem da minha idade – protestou Lucivar, se levantando e alongando as costas.
Daemon se sentou com um gemido.
Saetan olhou para ele e viu o brilho que crescia em seus olhos, a alegria, a ansiedade. Partiu-lhe o coração. Aceitou a ajuda de Daemon para se levantar, e reparou na frieza com que Lucivar tratava o irmão. Ia passar. Teria de passar. Mas Lucivar não estaria de bom humor novamente até ver Marian e Daemonar, por isso seria insensato provocar a fúria eyriena. Além disso, estava terrivelmente cansado para enfrentar Lucivar neste momento.
Enquanto caminhava em direção às portas, juntaram-se a ele, um de cada lado.
Crepúsculo. Um dia inteiro havia se passado.
Atravessaram o pátio externo. Lucivar abriu o portão.
Uma rajada de vento fez algo esvoaçar, chamando a atenção de Saetan. Um pedaço de tecido de um vestido feminino. Do vestido de Hekatah.
Não disse nada.
– Não tenho forças agora – disse, calmamente. – Será que vocês podiam...
Lucivar olhou para o sul, Daemon para o norte. Um minuto depois, seus rostos exibiam a mesma expressão sinistra, deliberadamente calma.
– Restam alguns Sangue – disse Daemon, espaçando as palavras. – Não muitos.
– O mesmo com os eyrienos – disse Lucivar.
Alguns. Somente alguns. Que as doces trevas permitam uma resposta diferente em Kaeleer.
– Vamos para casa.
Sentiu a diferença assim que atravessaram o portão entre os reinos. Quando saíram da sala do altar, Daemon e Lucivar olharam ao mesmo tempo na direção que os levaria ao primeiro círculo.
Saetan virou na direção oposta, não se sentindo preparado para lidar com o que tinha pela frente.
– Venham comigo.
Embora com alguma relutância, obedeceram. Levou-os até um terraço de muro baixo com vista para Riada, a aldeia dos Sangue mais próxima. Daemon olhou para a aldeia, lá embaixo. Lucivar olhou na direção da comunidade eyriena.
Daemon suspirou de alívio.
– Não sei quantas pessoas havia ali ontem, mas ainda restam muitos Sangue.
– Falonar! – gritou Lucivar. Olhou para eles com um sorriso no rosto. – Toda a comunidade. Estão bem. Bastante abalados, mas bem.
– Graças às trevas – murmurou Saetan. E as lágrimas brotaram, de orgulho e de tristeza, em doses iguais. Prothvar dissera que era um campo de batalha diferente, ainda que uma excelente luta. Estava certo. Era um campo de batalha meritório. Em vez de testemunharem a transformação de mais amigos em demônios-mortos, partiram sabendo que esses amigos sobreviveriam. Char, Dujae, Morton, Titian, Cassandra, Prothvar, Mephis, Andulvar. Sentiria falta de todos. Mãe Noite, como sentiria. – E o Sangue cantará ao Sangue. Cantaram bem a canção, meus amigos. Cantaram bem.
Também teria de contar a Lucivar, a Daemon e a Surreal o que havia acontecido. Mas ainda não. Agora não.
Temia esse momento, mas sabia que não poderia postergá-lo para sempre.
– Venham, filhotes. Tenho certeza de que a assembleia tem alguns comentários a fazer sobre isso.
Fora pior do que esperara.
A assembleia e os rapazes caíram em cima de Lucivar, que abraçava Marian e Daemonar. Cumprimentaram Daemon com um comedimento distante. Exceto Karla, que disse “Beijinho, beijinho” e de fato o beijara. E Surreal, que olhara Daemon friamente e dissera: “Está com um aspecto terrível, Sadi.” Teria repreendido Surreal pelo comentário se Daemon não tivesse retrucado mordazmente, dizendo que os elogios de Surreal eram sempre imensamente calorosos.
E havia Tersa, que segurara o rosto do filho entre as mãos.
– Tudo vai se resolver, Daemon – disse, carinhosamente. – Confie em quem vê. Vai ficar tudo bem.
Saetan não estava certo se Daemon tinha notado a indiferença, nem se tinha reparado em quem o cumprimentara ou não. Ele esquadrinhava a sala incessantemente, à procura de alguém que não estava ali. Alguém que não estaria ali.
Estava tentando pensar numa desculpa plausível para afastar Daemon dos outros quando Geoffrey surgiu à porta.
– Solicitam sua presença no trono das trevas. Draca quer vê-los.
Enquanto saíam da sala, Saetan pôs-se ao lado de Lucivar.
– Fique perto do seu irmão – disse, baixinho.
– Acho que seria melhor...
– Não pense, príncipe, limite-se a cumprir ordens.
Lucivar olhou-o dos pés à cabeça e avançou para alcançar Daemon. Surreal enfiou o braço no de Saetan.
– Lucivar está irritado?
– Podemos dizer que sim – respondeu Saetan, causticamente.
– Se quiser ajuda, eu bem que poderia lhe dar um belo chute no saco. Mas tenho a impressão de que, quando Marian descobrir por que está tão irritado, ela fará isso muito melhor do que eu.
Saetan deu um risinho abafado que era também um lamento.
– Ora, isso vai ser interessante. – Ficou repentinamente sério. – Daemon fez o mesmo jogo com você.
– É verdade. Mas às vezes a melhor forma de enganar um inimigo é convencendo um amigo.
– Sua mãe me disse quase a mesma coisa um vez. Depois ela me deu um soco.
– Sério? – Surreal sorriu. – Deve ser de família.
Decidiu que seria melhor não lhe pedir esclarecimentos sobre a questão.
Perplexo, Daemon aguardava o comunicado de Draca. Não tinha importância. Teria de ir sorrateiramente a Amdarh nos próximos dias e falar com o joalheiro, Banard, para fazer uma aliança para Jaenelle. Tinha comprado brincos com Banard para dar a Jaenelle no Winsol e gostado do trabalho do homem.
O aniversário de Jaenelle estava chegando. Será que ela se importaria de se casar no dia do aniversário? Bem, talvez ele se importasse. Não estava disposto a partilhar a celebração do casamento com mais nada. Mas podiam celebrá-lo pouco tempo depois. Ela ainda estaria cansada e se recuperando do feitiço, mas podiam passar a lua de mel num lugar tranquilo. Não importava onde.
Onde estava Jaenelle? Provavelmente em seus aposentos, descansando.
Deve ser isso que Draca quer comunicar: Jaenelle evitara a guerra e Kaeleer estava a salvo. Assim que o anúncio terminasse, sairia sorrateiramente e iria se aconchegar junto a ela. Bem, primeiro precisava de um banho. Não estava com um cheiro muito agradável.
Onde estava Jaenelle?
Foi nesse momento que viu Lorn e sentiu um lampejo de inquietação.
Não. Eles a tinham salvado. O triângulo a tinha salvado. Consumira-se imensamente, ascendera tão alto que caíra a toda velocidade, mas os três detiveram a queda. Detiveram a queda.
Lucivar surgiu a seu lado, tão próximo que seus ombros se tocaram. Saetan se aproximou e se pôs do outro lado, perto de Surreal. Draca pegou um objeto sobre o assento do trono, hesitou e, por fim, se virou de frente para todos.
Daemon ficou petrificado.
Tinha nas mãos o cetro de Jaenelle. No entanto, o metal estava retorcido e as duas joias ébano, estilhaçadas. Não estavam apenas exauridas. Estilhaçadas. Assim como o chifre espiralado.
– A rainha de Ebon Asskavi partiu – anunciou Draca, serenamente. – A corte dass trevass cessou de exisstir.
Ouviu-se alguém gritar. Um grito repleto de pânico, raiva, negação e sofrimento. Só quando Lucivar e Saetan o agarraram é que Daemon percebeu que a pessoa que gritava era ele próprio.
– Qual o sentido? – perguntou Gabrielle, zangada, enquanto as lágrimas caíam livremente. – Qual o sentido de oferecermos as memórias se não iam ter qualquer serventia?
Surreal passou os dedos pelo cabelo e decidiu que dar um soco em alguém provavelmente não ajudaria muito. Bem, ela se sentiria melhor. Graças às trevas tio Saetan e ela tinham conseguido sedar Daemon. Ele não conseguiria suportar o que estava acontecendo agora.
Gostaria de saber mais esse negócio das memórias, mas estava mais intrigada com a calma e a impassibilidade – e uma leve raiva – de Tersa. Uma pessoa precisaria fazer uma grande bobagem com alguma coisa muito importante para enfurecer Tersa.
– Sim, Tersa – disse Karla, irritada –, qual o sentido?
– O sangue é o rio da memória. E o Sangue cantará ao Sangue – respondeu Tersa.
Gabrielle disse alguma coisa lacônica e indecente.
– Cala a boca, Gabrielle – disse Surreal, ríspida.
Tersa estava sentada na mesa comprida em frente ao sofá, do lado de uma pilha de blocos de montar de madeira. Surreal se agachou a seu lado.
– Para que eram as memórias? – perguntou, com serenidade.
Tersa afastou o cabelo emaranhado do rosto.
– Para alimentar a teia de sonhos. Já não estava mais completa. Vivera, crescera.
– Mas morreu! – resmungou Morghann.
– A rainha desapareceu – disse Tersa, ligeiramente inflamada. – Era apenas isso que representava para vocês?
– Não – respondeu Karla. – Era Jaenelle. E isso era suficiente.
– Exatamente – disse Tersa. – Ainda é suficiente.
Surreal cambaleou, mal se atrevendo a ter esperança. Tocou a mão de Tersa, se certificou de que a mulher estava prestando atenção.
– A rainha desapareceu, mas Jaenelle não?
Tersa hesitou.
– É muito cedo para saber. O triângulo evitou que o sonho voltasse às trevas, e agora os parentes lutam para manter o sonho no corpo.
Ao dizer isso, levantou protestos de Gabrielle e de Karla.
– Esperem um minuto – disse Gabrielle, olhando rapidamente para Karla, que aquiesceu. – Se Jaenelle está ferida e precisa de uma curandeira, devíamos estar com ela.
– Não – disse Tersa, dando vazão à sua ira. – Vocês não deviam estar com ela. Não conseguiriam olhar para o estado do corpo dela e continuar acreditando que ainda pudesse sobreviver. Mas não reina a dúvida entre os parentes. Os parentes só acreditarão nisso e em mais nada. É por isso que, se isso for possível, são eles que saberão como fazer.
Levantou-se de um salto e saiu correndo da sala. Surreal aguardou um instante e a seguiu. Não a encontrou, mas topou com Presa Cinza, que gania ansioso.
Examinou o lobo. Os parentes não têm dúvidas. Ficariam recolhidos e lutariam por aquele sonho com garras e dentes, jamais o abandonando. Bem, talvez nunca viesse a ter um focinho para farejar rastros, mas podia muito bem aprender a ser teimosa como um lobo. Fincaria os dentes na crença de que Jaenelle estava simplesmente se recuperando em algum lugar particular depois de realizar um feitiço difícil. Fincaria os dentes e se agarraria a esse pensamento.
Por Jaenelle.
Por Daemon.
E por si mesma, pois queria a amiga de volta.
Daemon desceu a escadaria que levava ao jardim do Paço, o jardim com duas estátuas. Quando acordou do sedativo que Surreal e Saetan haviam lhe dado, pedira para deixar a fortaleza. Os dois o acompanharam. Assim como Tersa.
Mas Lucivar não tinha vindo. Uma semana havia se passado.
Não sabia bem como passara esses dias. Eles simplesmente passaram. E à noite...
À noite, arrastava-se para a cama de Jaenelle, pois era o único lugar em que conseguia dormir. O cheiro dela permanecia e, na penumbra, quase conseguia acreditar que ela tinha se ausentado por pouco tempo, que uma manhã, ao acordar, iria encontrá-la aninhada junto a ele.
Olhou com atenção para a estátua do macho, com a pata/mão curvada de modo protetor sobre a mulher adormecida. Parte humano, parte animal. A fera protegendo a bela. Porém, via agora outra coisa em seus olhos: a angústia, o preço que, às vezes, precisava ser pago.
Virou-se, foi até a outra estátua e fitou o rosto da mulher: aquele rosto familiar e adorado durante muito, muito tempo.
As lágrimas brotaram mais uma vez. A dor era constante.
– Tersa não se cansa de me dizer que vai ficar tudo bem, para confiar em quem vê – disse à estátua. – Surreal insiste para que não desista, que os parentes conseguirão trazê-la de volta. Mas quando faço uma pergunta direta a Tersa sobre você, ela hesita, diz que é cedo para tirar conclusões, que os parentes estão lutando para que o sonho permaneça no corpo. Lutando para que o sonho permaneça no corpo. – Deu uma gargalhada amarga. – Não estão lutando para que o sonho permaneça no corpo, Jaenelle. Estão se esforçando para recompô-la o suficiente para que exista algo para onde o sonho possa voltar. E você sabia que isso ia acontecer, não sabia? Quando decidiu fazer isso, já sabia.
Andou de um lado para outro, andou em círculos, voltou à estátua.
– Fiz isso por você – disse baixinho. – Ganhei tempo, entrei no jogo. Por você. – Prendeu a respiração, soltando-a num soluço. – Sabia que teria de cometer atos que jamais seriam perdoados. Soube disso quando me pediu para ir a Hayll, mas não deixei de fazê-lo. Po-por você. Porque ia voltar para você, e nada mais importava. Porque ia voltar para você. Mas você deixou que eu fosse sabendo que não estaria aqui quando eu voltasse, sabendo... – Caiu de joelhos. – Você disse que não queria sacrifícios. Me fez prometer que não haveria sacrifícios. Mas o que é isso, Jaenelle? O que é isso? Assim que eu voltasse, iríamos nos casar... E você me abandonou. Maldita seja, Jaenelle, fiz isso por você e você me abandonou. Abandonou.
Caiu no chão junto à estátua, aos soluços.
Lucivar descansou um punho na parede de pedra e curvou a cabeça.
Mãe Noite. Daemon tinha entrado naquele jogo esperando voltar para seu próprio casamento. Mãe Noite.
Estava aqui porque Marian estourara com ele esta manhã, mostrando todo o temperamento forte por baixo da natureza serena. Dissera que, sim, Lucivar tinha sofrido, mas foi um mal necessário para salvá-los. Perguntara se teria preferido perder a esposa e o filho de verdade, e acrescentara que o homem com quem se casara teria a coragem de perdoar.
Fora isso que o trouxera até aqui. Mas agora...
Quando eram escravos em Terreille, tinha participado de vários jogos com Daemon, tinham usado um ao outro, machucado um ao outro. Às vezes, faziam isso para aliviar a própria dor, outras vezes por uma razão mais nobre. Mas foram sempre capazes de superar esses jogos e perdoar o sofrimento, pois não havia mais ninguém envolvido. Tinham lutado um com o outro, mas também um pelo outro.
Agora havia outras pessoas, um círculo maior para amar. Uma esposa, um filho. Talvez isso marcasse a diferença. Não precisava de Daemon. Porém, fogo do Inferno, Daemon precisava dele.
Era mais do que isso. Treze anos antes, acusara Daemon injustamente de ter assassinado Jaenelle. Fora o primeiro golpe forte de uma sucessão que o acabaria levando ao reino distorcido, onde ficou durante oito anos, perdido na loucura. E Daemon o havia perdoado, dizendo que já tinha passara pela perda de um irmão uma vez e não queria senti-la de novo.
Daemon acreditara numa mentira dolorosa durante treze anos. Lucivar acreditara numa mentira dolorosa durante dois dias. Marian tinha razão em estourar com ele.
Portanto, faria o que estivesse a seu alcance para consertar as coisas, por si mesmo e também por Daemon. Durante os longos anos de escravidão, em que só tinham um ao outro, a ira às vezes se inflamava, mas havia sempre amor.
Afastando-se da parede, Lucivar desceu a escadaria e ficou de joelhos na grama ao lado de Daemon. Tocou o ombro do irmão.
Daemon olhou para Lucivar, o rosto devastado pelo sofrimento profundo, e se atirou nos braços abertos do irmão.
– Quero ela de volta – chorou Daemon. – Lucivar, quero ela de volta.
Lucivar abraçou o irmão com força, lágrimas escorrendo pelo rosto.
– Eu sei, meu velho. Eu sei.
– Está indo embora? – Lucivar ficou de pé num salto e olhou espantado para Saetan. – O que quer dizer com “ir embora”? Para onde? – Andando de um lado para outro atrás das cadeiras diante da mesa de madeira escura, apontou um dedo acusador ao pai. – Você não vai para o reino das trevas. Não tem mais ninguém lá. E você não vai ficar sozinho.
– Lucivar – disse Saetan, calmamente. – Lucivar, escute, por favor.
– Quando o sol brilhar no Inferno.
*Bastardo*, disse Daemon num fio masculino cinza-ébano.
*E por que diabo continua aí sentado?*, perguntou Lucivar. *É seu pai também.*
Daemon conteve a irritação.
*Deixe-o falar, bastardo. Se não gostarmos do que ouvirmos, aí agiremos.*
– Está indo embora por causa de Sylvia? – perguntou a Saetan.
Lucivar congelou, praguejou baixinho e voltou a se sentar.
– Em parte – disse Saetan. – Um guardião não deve permanecer entre os vivos. Não dessa forma. – Vacilou, acrescentando em seguida: – Se eu ficar... Não posso ficar, ser um amigo e encorajá-la a... Ela merece estar com alguém que possa lhe dar mais do que eu posso neste momento.
– Podia vir para Ebon Rih e morar com a gente – disse Lucivar.
– Obrigado, Lucivar, mas não. – Saetan respirou fundo. – Fui convidado a trabalhar na fortaleza como historiador/bibliotecário. Geoffrey diz que está começando a sentir o peso dos anos e me culpa por ter mais trabalho do que nunca agora, porque fui eu que apresentei a biblioteca da fortaleza à assembleia e está na hora de fazer alguma coisa útil.
– A fortaleza fica a apenas uma montanha de distância da nossa casa na colina – disse Lucivar.
– Você não vai levar o Daemonar para a biblioteca.
Lucivar sorriu mordazmente para Saetan.
– Me levou lá quando tinha a idade de Daemonar?
– Uma vez – disse Saetan, friamente. – E às vezes Geoffrey ainda me lembra dessa pequena aventura. – Olhou rapidamente para Daemon. – Visitarei os dois, nem que seja para saber as confusões em que andam se metendo.
Daemon sentiu a tensão aliviar. Queria ver o pai, mas não em Ebon Askavi. Jamais voltaria a entrar na fortaleza.
– A família possui três condados em Dhemlan – disse Saetan. – Dividi-os entre vocês. Daemon, você ficará com o Paço e as terras e rendas que vêm com ele. Lucivar, você ficará com as terras próximo à fronteira com Askavi. A outra propriedade será dos dois, em conjunto.
– Não preciso de terras – protestou Lucivar.
– Ainda é o príncipe dos senhores da guerra de Ebon Rih porque seu povo quer que você o seja. No entanto, Daemonar talvez não queira governar. Talvez você tenha outros filhos ou filhas que desejem um tipo de vida diferente. Será o vigilante dessas terras pois a família SaDiablo tem sido vigilante dessas terras durante milhares de anos. Compreendido?
– Sim, senhor – disse Lucivar, calmo.
– E você? – disse Saetan, olhando diretamente para Daemon.
– Sim, senhor – respondeu, no mesmo tom calmo.
Bem, isso explicava por que Saetan insistira em passar os últimos dois meses lhe ensinando o negócio da família. Pensara que aquilo era apenas uma forma de mantê-lo entretido e ocupado demais para grandes devaneios.
Recebera o trabalho com alegria, sobretudo quando percebeu que Saetan assumira o fardo de ajudar Geoffrey numa tarefa bem mais difícil. Lucivar e ele tinham sido comunicados dos resultados, mas sabia que não teria suportado coletar as informações.
Mais de 40% dos Sangue em Terreille tinham desaparecido sem deixar rastro. Trinta por cento tinham sido quebrados e só podiam usar arte básica. Os Sangue de Terreille que haviam sobrevivido ainda estavam aturdidos com a devastação e com a liberdade repentina.
Não perguntara o que havia acontecido com Alexandra, Leland e Philip. Saetan também não o informara. Ou, se o fez, referiu-se apenas a Wilhelmina.
Os números na Pequena Terreille eram idênticos aos do reino de Terreille. Mas as demais regiões de Kaeleer estavam em grande parte intactas, à exceção de Glácia. Karla estava lutando para reunir o povo e reconstituir sua corte. A nódoa que Dorothea e Hekatah haviam espalhado nos Sangue foi destruída, mas as cicatrizes permaneceram.
Tudo tem um preço.
– E a casa de Jaenelle em Maghre? – perguntou Lucivar.
Daemon balançou a cabeça.
– Wilhelmina deveria ficar com ela. Decidiu viver em Scelt e...
– A casa foi alugada para Jaenelle – disse Saetan, com firmeza. – Continua sendo de Jaenelle. Se não tiverem objeções a que Wilhelmina fique lá até encontrar sua própria casa, que assim seja.
Daemon recuou. Amava aquela casa, mas não sabia se conseguiria voltar a viver lá. E não sabia se o pai realmente acreditava que Jaenelle ia voltar ou se não estava disposto a fazer o que quer que fosse para confirmar que não voltaria. Afinal, haviam se passado dois meses sem notícias, apenas a garantia persistente – e inútil – de Tersa de que tudo se resolveria.
– Mais alguma coisa?
Leu a mensagem nos olhos de Saetan.
– Encontro você daqui a um minuto – disse a Lucivar quando o irmão se levantou e olhou para ele.
Quando estavam sozinhos, Saetan disse com prudência:
– Sei como se sente neste momento em relação a Ebon Askavi.
– Espero sinceramente que venha me visitar, pai, pois jamais voltarei a pôr os pés na fortaleza.
Saetan disse gentilmente:
– Entendo. No entanto, precisa ir mais uma vez. Draca quer vê-lo.
– Quero lhe mosstrar uma coisa.
Draca abriu uma porta fechada a chave e deu um passo para o lado. Daemon entrou num enorme salão que era uma galeria de retratos. Dezenas e dezenas de quadros nas paredes.
A princípio, viu apenas um. O último.
Incapaz de olhar, virou as costas e começou a examinar os outros pela ordem. Alguns eram extremamente antigos, mas todos tinham sido pintados com requinte. Enquanto andava pelo salão, percebeu que os retratos mostravam as espécies que constituíam os Sangue... e unicamente fêmeas.
Ao chegar ao último, olhou demoradamente para o retrato de Jaenelle e para a assinatura. Dujae. Claro.
Virou-se e olhou para Draca.
– Todass foram sonhoss tornadoss realidade, príncipe – disse Draca gentilmente. – Algumass só tiveram uma esspécie de ssonhador, outrass eram pontess. Estass foram feiticeirass.
– Mas... – Daemon voltou a olhar os quadros. – Não vejo o retrato de Cassandra.
– Era uma feiticeira de joia negra, a rainha de Ebon Asskavi. Mass não era feiticeira. Não era ssonhos tornadoss realidade.
Balançou a cabeça.
– A feiticeira usa a negra. É sempre uma rainha de joia negra.
– Não. O ssonho não é ssempre esse, Daemon. Existiram ssonhos tranquiloss e ssonhos fortess. Existiram rainhass e autorass de cançõess. – Fez uma pausa, aguardou. – Seu ssonho era sse tornar consorte da rainha de Ebon Asskavi, não era?
O coração de Daemon começou a bater desenfreadamente.
– Pensei que eram a mesma pessoa. Pensei que a feiticeira e a rainha de Ebon Askavi eram a mesma pessoa.
– E sse não forem?
Sentiu os olhos ardendo em lágrimas.
– Se não fossem a mesma pessoa, se tivesse que escolher entre a rainha e Jaenelle... nunca teria posto os pés neste lugar. Com licença, Draca, preciso...
Ao tentar passar por ela, Draca moveu a mão para detê-lo. Poderia ter se esquivado sem dificuldades, mas não podia ser tão desrespeitoso.
A velha mão de Draca se moveu devagar, pousando no braço de Daemon.
– A rainha de Ebon Asskavi desapareceu – disse, com extrema serenidade. – Mass aquela que é o Coração de Kaeleer, aquela que é feiticeira, continua viva.
– Você vai aceitar a renda que providenciei para você – resmungou Saetan enquanto passeava com Surreal em um dos jardins do Paço.
Achara que seria uma tarefa simples, algo com que ocupar o tempo enquanto esperava Daemon voltar da fortaleza. Surreal resmungou de volta.
– Não preciso de renda nenhuma de você.
Saetan parou e se virou para ela.
– É ou não é da família?
– Sim, sou da família, mas...
– Então aceite a droga da renda! – gritou Saetan.
– Por quê? – gritou também.
– Porque eu te amo! – berrou Saetan.
Surreal começou a rogar pragas. Fogo do Inferno, por que seus filhos eram todos tão teimosos?
Controlou a fúria.
– É um presente, Surreal. Por favor, aceite.
Ela prendeu o cabelo atrás das orelhas.
– Posto dessa forma...
Um lobo ergueu a voz numa série estranha de uivos e latidos.
– Não é Presa Cinza – disse Surreal.
Saetan ficou tenso.
– Não. É da alcateia que fica nos bosques a norte.
Os olhos de Surreal se encheram de preocupação.
– Um deles voltou? Que significam esses sons?
– Os Tigre usam tambores para transmitir mensagens, mas só para coisas divertidas: uma dança, uma reunião inesperada – respondeu Saetan, distraidamente. – Os lobos ficaram intrigados com isso e desenvolveram alguns uivos particulares.
Ouviu-se novamente a mesma série de uivos e latidos.
– Presa Cinza podia ter falado comigo sobre isso – protestou Surreal. – O que significam esses?
– Significam que devemos prestar atenção numa mensagem.
O lobo voltou a elevar a voz numa canção diferente, à qual se juntou outro lobo. E outro. E outro. Ao ouvi-la, Saetan começou a chorar... e a rir. Só havia uma razão para levar os lobos a juntar as vozes daquela forma.
Surreal agarrou seu braço.
– Tio Saetan, o que é?
– É uma canção de comemoração. Jaenelle voltou.
Era início de outono. Passara-se quase um ano desde que chegara a Kaeleer.
Daemon aterrissou com cuidado a pequena carruagem e saiu. Na extremidade do campo, Ladvarian o aguardava. Durante semanas, ficara furioso e suplicara, implorara e praguejara. De nada adiantara. Draca teimava em dizer que não sabia o local exato onde os parentes tinham escondido Jaenelle. Dizia também que a recuperação estava numa fase extremamente delicada e que uma presença forte, além de emoções complexas, poderia interferir no processo. Por fim, desesperada, Draca sugerira a Daemon que fizesse algo útil.
Por isso, ele mergulhou no trabalho. Todas as noites escrevia uma carta a Jaenelle, descrevendo como tinha sido seu dia, desabafando seus sentimentos. Duas ou três vezes por semana, ia à fortaleza e importunava Draca.
Por fim, a mensagem chegara. Os parentes tinham feito tudo o que podiam. A recuperação não estava concluída, mas levaria algum tempo até isso e Jaenelle precisava estar numa das tocas aquecidas dos humanos.
Fora informado sobre o local onde deveria levar a carruagem que transportaria Jaenelle de volta ao Paço. Atravessou o campo e parou a alguns centímetros de Ladvarian. O sceltita estava muito magro, mas seus olhos castanhos mostravam enorme alegria – e prudência.
– Ladvarian – cumprimentou Daemon de modo tranquilo, respeitoso.
*Daemon.* Ladvarian se remexeu de modo apreensivo. *Os machos humanos... Alguns machos humanos dão uma importância exagerada à aparência.*
Entendeu o aviso, ouviu o receio. E percebia agora por que não o tinham deixado vir antes. Receavam que não conseguisse suportar a visão. O receio permanecia.
– Não importa, Ladvarian – disse gentilmente. – Não importa.
O sceltita o perscrutou.
*Ela está muito fraca.*
– Eu sei.
Draca havia dito o mesmo exaustivamente antes de permitir que viesse.
*Dorme muito.*
Daemon abriu um sorriso amarelo.
– Eu quase nem dormi.
Convencido, Ladvarian se virou.
*Por aqui. Tenha cuidado. Há muitas teias de proteção.*
Olhando ao redor, Daemon viu as teias emaranhadas capazes de enredar a mente de uma pessoa, arrastando-a para sonhos estranhos... ou horríveis pesadelos.
Caminhou com prudência.
Andaram durante alguns minutos e chegaram a uma trilha que levava a uma angra coberta. Uma enorme tenda estava instalada atrás da linha de água. O tecido colorido afastaria a maior parte da luz do sol, mas parecia ter sido costurado de maneira frouxa para permitir a entrada de ar.
Mais perto da água havia vários castelos de areia malfeitos. Sorriu ao ver Kaelas tentando ajeitar a areia com as enormes patas. As abas frontais da tenda estavam afastadas, permitindo ver a mulher que dormia ali dentro. Ela vestia uma saia comprida de cores em redemoinho. A camisa cor de ametista estava desabotoada e caída para os lados, expondo-a da cintura para cima.
Daemon olhou para ela e correu para longe da tenda. Deteve-se a alguns metros e tentou respirar normalmente enquanto seu estômago se retorcia de maneira selvagem.
Os parentes tinham feito o melhor possível, dedicado meses de atenção concentrada e perseverante para conseguir essa recuperação. Jamais gostaria de saber que aspecto Jaenelle tinha quando a trouxeram para este local.
Sentiu que Ladvarian se aproximava. Uma vez que o sceltita tinha visto o aspecto inicial de Jaenelle, talvez não conseguisse compreender a reação de Daemon.
– Ladvarian...
*Ela levantou das teias curativas cedo demais*, disse Ladvarian num tom de voz amargo e acusador. *Por causa de você.*
Daemon se virou devagar, o coração sangrando com o golpe verbal.
*Tentamos dizer a ela que você não estava ferido. Tentamos convencê-la a permanecer mais tempo nas teias curativas. Tentamos lhe dizer que Tersa o avisaria quando estivesse de volta, que o senhor supremo tomaria conta de sua cria. Mas ela não parava de dizer que você estava sofrendo e que havia prometido. Ficou nas teias até o interior sarar, então se levantou. Mas quando viu...*
Daemon fechou os olhos. Não. Doces trevas, não. Devia ter sofrido dores atrozes, algo que não teria acontecido se tivesse permanecido nas teias curativas.
– Tersa me disse – afirmou, com a voz embargada. – Ela me dizia o tempo todo. Mas... tudo que eu sabia era que Jaenelle havia prometido se casar comigo e me abandonara...
*Talvez pudéssemos ter falado com você*, disse Ladvarian, relutante, após um longo silêncio. *Achamos que os humanos não acreditariam que ela pudesse se recuperar... pelo menos não o suficiente. Mas se tivéssemos lhe contado sobre as teias, talvez você conseguisse acreditar.*
Não era muito provável. Ainda que quisesse acreditar, as dúvidas teriam se infiltrado e poderiam destruir tudo o que queria salvar.
– Tersa me disse que ficaria tudo bem. Não dei ouvidos a ela.
Mais silêncio.
*É difícil acreditar quando temos a pata presa numa armadilha.*
Aquela compreensão, tanto perdão, doía. Olhou para o sceltita, precisando ver a verdade.
– Ladvarian... Ela ficou aleijada por minha causa?
*Não*, disse Ladvarian, gentilmente. *Vai se recuperar, príncipe. Está se recuperando cada vez mais a cada dia. Só vai demorar um pouco mais.*
Daemon foi na direção da tenda e entrou. Desta vez, viu apenas Jaenelle.
*Está intacta*, disse Ladvarian, ansioso.
Assentindo, Daemon tirou os sapatos e o casaco, e se deitou com cuidado ao lado de Jaenelle, apoiando-se num cotovelo para poder olhar para ela. Estendeu a mão, passou os dedos timidamente pelo cabelo louro e curto, receando até esse ligeiro toque. Estava tão fraca. Extremamente fraca. Mas estava viva.
*Tivemos de cortar o pelo dela.*
Considerando as condições em que devia ter chegado, foi uma solução prática para os problemas de higiene que os parentes devem ter enfrentado.
Passou os dedos pela face de Jaenelle. Seu rosto, embora terrivelmente magro, era o mesmo. Nesse momento, reparou na joia sobre o peito de Jaenelle. À primeira vista, pensou que era violeta. Mas, nas profundidades da joia, vislumbrou reflexos rosa, azul-celeste e opala. Verde, azul-safira e vermelho. Cinza e cinza-ébano. E um indício de negro.
*Chama-se aurora do crepúsculo*, disse Ladvarian. *Não existe joia igual.*
E o sceltita saiu, deixando-os sozinhos. Daemon a observou enquanto dormia. Limitou-se a observá-la. Depois de algum tempo, reuniu a coragem para deixar que os dedos explorassem um pouco.
Ladvarian tinha razão. Estava intacta, mas era pouco mais que um delicado invólucro de pele sobre órgãos e ossos. Enquanto um dedo contornava delicadamente o mamilo, deteve-se, pensou na camisa aberta e olhou para a praia de onde Ladvarian e Kaelas o observavam.
*Ela não sabia que eu vinha, não é?*
*Não*, respondeu Ladvarian.
Não precisou perguntar por quê. Se não tivesse conseguido aceitar o que via, os parentes nunca lhe teriam dito que tinha vindo. Ladvarian a teria levado para outro lugar, para que outro pudesse recuperá-la durante os meses de inverno.
Sabia a resposta. Amava Jaenelle, e tudo o que queria era estar com ela. Mas apesar do que Ladvarian dissera, por causa do que Ladvarian dissera, já não tinha tanta certeza de que ela desejaria.
Nesse momento, Jaenelle se agitou ligeiramente e Daemon teve certeza de que não iria a lugar nenhum a não ser que ela o mandasse embora. Apoiando-se com cuidado para não machucá-la, inclinou-se e roçou levemente os lábios nos dela.
Afastou-se um pouco. Os perturbados olhos azul-safira o fitavam.
– Daemon? – Tanta incerteza naquela voz.
– Olá, meu amor – disse, a voz rouca pelo esforço de não chorar. – Fiquei com saudades.
Jaenelle mexeu a mão devagar, com esforço, até pousá-la no rosto de Daemon. Seus lábios se curvaram num sorriso.
– Daemon.
Desta vez, ao dizer seu nome, parecia uma agradável carícia, uma promessa.
Anne Bishop
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