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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAINHA MARGOT - P.2 / Alexandre Dumas
A RAINHA MARGOT - P.2 / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

                                A PARTIDA

Quando, no dia seguinte, um belo sol avermelhado, mas sem raios, como acontece nos dias privilegiados, se levantou por detrás das colinas que circundavam Paris, tudo, desde as duas horas estava já em movimento no pátio do Louvre.

Um magnífico cavalo da Berberia, nervoso, posto que delgado, com pernas de veado, sobre as quais as veias se cruzavam como uma rede, batendo com o pé, arrebitando as orelhas e soprando fogo pelas ventas, esperava no pátio por Carlos IX; mas ele estava menos impaciente ainda do que o dono, demorado por Catarina, que o retivera na passagem para lhe falar, segundo dizia, dum negócio de importância.

 

 

 

 

Estavam ambos na galeria envidraçada. Catarina, fria, pálida e impassível como sempre. Carlos IX agitado, roendo as unhas e dando com o chicote nos seus dois cães favoritos, revestidos de cotas de malha para que a tromba do javali não achasse presa e pudessem eles arrostar impunemente o terrível animal. Na frente dessas cotas via-se um pequeno escudo das armas de França quase semelhante aos usados pelos pajens, os quais por mais duma vez tinham invejado os grandes privilégios desses bem-aventurados favoritos.

- Note bem, Carlos - dizia Catarina -, nós somos os únicos que sabemos da próxima chegada dos polacos. No entanto, o rei de Navarra põe-se em movimento, Deus me perdoe! como se o soubesse. Apesar da sua abjuração, da qual sempre desconfiei, ele está de inteligência com os huguenotes. Não tem notado como ele sai a miúdo de certos dias para cá? Demais, tem dinheiro, quando é certo que nunca o teve; compra cavalos e armas, e nos dias de chuva exercita-se na esgrima desde pela manhã até à noite.

- Valha-me Deus, minha mãe! - disse Carlos IX impacientado - pois julga que o seu intento será matar-me, a mim ou a meu irmão de Anjou? Nesse caso, ainda precisará dalgumas armas, porque ontem contei com o meu florete onze botoeiras no seu gibão, que não tem senão seis. E quanto a meu irmão de Anjou, bem sabe que ainda atira melhor do que eu, ou pelo menos tão bem, segundo ele diz.

- Ouça, Carlos - tornou Catarina -, e não trate ligeiramente o que lhe diz sua mãe. Os embaixadores vão chegar; verá que, apenas eles estiverem em Paris, Henrique há-de fazer tudo quanto puder para lhes cativar a atenção. Ele é insinuante e dissimulado; a mulher, que o coadjuva, não sei porquê, não se há-de também esquecer de ir tagarelar com eles, de lhes falar latim, grego, húngaro e não sei que mais. O que lhe digo, Carlos (e bem sabe que nunca me engano) é que anda aqui alguma trama.

Neste momento deram dez horas; Carlos deixou de prestar atenção à mãe e pôs-se a contá-las.

- Ora aí está: sete horas! - exclamou ele - uma para ir, faz oito; uma para chegar ao ponto, soltar a matilha e desencovar, nove; só poderemos abrir a caça às nove horas Deveras, minha mãe, faz-me perder bastante tempo. Salta para baixo, Risquetout. Leve-te o demo, cachorro! Salta para baixo!

E uma violenta chicotada assentada no costado do molosso fez soltar ao pobre animal, todo espantado de receber um castigo em troca dos seus afagos, um grito de viva dor.

- Carlos - prosseguiu Catarina -, ouça-me, em nome de Deus! e não barateie assim a sua fortuna e a da França. Só me fala de caça!. Não terá bastante tempo para caçar quando os seus deveres de homem e de rei estiverem todos cumpridos?.

- Está bem, minha mãe, está bem! - disse Carlos, pálido de impaciência - expliquemo-nos depressa, porque me está fazendo ferver o sangue. Há realmente dias em que a não entendo. E parou, batendo nas botas com o cabo do chicote.

Catarina viu que o momento era propício e que não devia deixá-lo passar.

- Meu filho - disse ela -, nós temos provas de que o Sr. de Mouy voltou a Paris. O Sr. de Maurevel, que o meu filho bem conhece, viu-o. Não podia voltar senão por causa do rei de Navarra. Creio que nos basta isto para que ele nos seja mais suspeito do que nunca.

- Ora aí está outra vez a contas como meu pobre Henriquinho; quer que o mande matar, não é assim?

- Oh! não.

- Que o mande então desterrar? Mas, como não vê que desterrado ele será muito mais para temer do que nunca o será aqui à nossa vista, no Louvre, onde nada pode fazer que nós não saibamos imediatamente?

- Por isso mesmo não é o seu desterro que eu peço.

- Mas então que quer? diga depressa!

- Quero que seja posto em segurança enquanto estiverem aqui os polacos; na Bastilha, por exemplo.

- Ah! isso não - exclamou Carlos IX -, Henriquinho é um dos meus melhores companheiros. Hoje vamos nós bater o javali. Sem ele, adeus caça. Ora adeus, minha mãe! Parece que Vossa Majestade não pensa senão em contrariar-me!

- Valha-o Deus, meu querido filho! Eu não digo que seja esta manhã!. Os enviados não chegam senão amanhã ou depois. Prendamo-lo unicamente depois da caça, esta tarde. esta noite.

- Isso é outra coisa. Falaremos outra vez nisso. Veremos, depois da caça talvez me resolva. Adeus. Vamos, chega, Risquetout! também te amuas agora?

- Carlos - disse Catarina, retendo-o pelo braço e arriscando-se à explosão que podia resultar dessa nova demora -, creio que o melhor seria assinar já a ordem de prisão, não se executando ela, contudo, senão de tarde ou à noite.

- Assinar, lavrar uma ordem, ir buscar o selo e pergaminho, quando me esperam para a caça, eu, que nunca faço esperar ninguém? Isso de forma nenhuma!

- Não, meu filho, quem o ama como eu não pode querer demorar-lhe o seu prazer; previ tudo: entre no meu quarto, aqui tem.

E Catarina, lesta como se apenas tivesse vinte anos, empurrou uma porta que dava para o seu gabinete e apresentou ao rei um tinteiro, uma pena, um pergaminho, o selo e uma vela acesa.

O rei tomou o pergaminho e correu-o rapidamente com os olhos:

Ordem, etc. etc. para ser preso e conduzido a Bastilha o nosso irmão Henrique de Navarra.

- Bem, está pronta - disse ele, assinando sem hesitar. - Adeus, minha mãe. E saltou para fora do gabinete seguido dos seus cães, exultando por se ver tão facilmente livre de Catarina.

Carlos IX era esperado com impaciência, e como era sabida a sua pontualidade em matéria de caça todos se admiravam desta demora. Assim, logo que ele apareceu, foi saudado pelos vivas dos caçadores, pelas trombetas dos picadores, pelos relinchos dos cavalos e pelos latidos dos cães. Todo esse estrondo, todo esse alvoroço, fez assomar a vermelhidão às suas faces pálidas; extasiou-se; Carlos foi jovem e ditoso pelo espaço dum segundo.

Apenas feita uma saudação à brilhante companhia reunida no pátio, o rei acenou com a cabeça ao duque de Alençon e com a mão a sua irmã Margarida, passou por diante do rei de Navarra sem mostrar que dava fé dele, e montou o cavalo da Berberia, que, impaciente, começou a corcovear. Mas, depois de três ou quatro galões, conheceu o cavaleiro e acalmou.

As trombetas ressoaram imediatamente, de novo, e o rei saiu do Louvre acompanhado do duque de Alençon, do rei de Navarra, de Margarida, da Sr. a de Nevers, da Sr. a de Sauve, de Tavannes e dos principais senhores da corte.

É escusado dizer que La Mole e Cocunás eram da partida.

Quanto ao duque de Anjou, estava, havia três meses, no cerco de Arrochela. Quando se estava esperando pelo rei, tinha ido Henrique saudar sua mulher, a qual, ao mesmo tempo que respondeu ao cumprimento, lhe disse ao ouvido:

- O correio que chegou de Roma foi conduzido pelo Sr. de Cocunás em pessoa à presença do Sr. de Alençon, um quarto de hora antes que o enviado do duque de Nevers fosse apresentado ao rei.

- Então sabe ele tudo - disse Henrique.

- Deve sabê-lo - disse Margarida -, demais lance uma vista para ele e veja como, apesar do seu disfarce, lhe brilham os olhos.

Pudera não! - disse o Bearnês por entre dentes - caça hoje três peças: França, Polónia e Navarra. sem contar o javali!

Saudou a mulher, tornou para o seu lugar e, chamando um dos fâmulos, bearnês de nascimento, cujos avós já estavam ao serviço dos seus havia um século, e o qual ele empregava como mensageiro ordinário nos negócios de amores, disse-lhe:

- Orthon, toma esta chave e vai levá-la à casa do primo da Sr. a de Sauve, que tu sabes que mora na Rua dos Quatro Filhos; diz-lhe que sua prima lhe deseja falar esta noite, que entre no meu quarto, e se eu aí não estiver, que me espere; se eu tardar, que se deite sobre a minha cama enquanto não chego.

- Não tem resposta, meu Senhor?

- Nenhuma, senão dizeres-me se o achaste. Não entregues a chave senão a ele, entendes?

- Sim senhor.

- Espera, não vás já, demónio! Antes de sairmos de Paris, hei-de chamar-te para me apertares as cilhas do meu cavalo; fica para trás, e podes então ir, sem que se repare, levar o recado, e vir ter comigo a Bondy.

O criado fez um sinal de obediência e afastou-se.

Puseram-se todos em marcha pela Rua de Santo Honorato, passaram à de S. Dinis e depois ao arrabalde; ao chegarem à Rua de S. Lourenço, bamboleou o selim do cavalo em que ia o rei de Navarra; Orthon correu, e tudo se passou como se combinara entre ele e o amo, o qual continuava a seguir com o cortejo real pela Rua dos Recoletos, enquanto o fiel servo ganhava a do Templo.

Quando Henrique se reuniu ao rei, estava Carlos empenhado com o duque de Alençon numa conversa tão interessante a respeito do tempo, da idade do javali emprazado, que era um solitário, e a respeito do lugar onde ele havia estabelecido o covil, que não percebeu, ou fingiu não perceber, que Henrique tinha ficado um instante para trás.

Margarida observava de longe o ar de cada cavaleiro, e parecia-lhe descobrir nos olhos do irmão um certo embaraço todas as vezes que encarava com Henrique. A Sr. de Nevers ia toda entregue a uma alegria louca, porque Cocunás, eminentemente jovial nesse dia, fazia mil travessuras para que as senhoras rissem.

Quanto a La Mole, já tinha achado duas ou três vezes ocasião de beijar a mantinha branca, com franjas de oiro, de Margarida, sem que essa acção, feita com a destreza ordinária dos amantes, fosse vista por mais de duas ou três pessoas.

Chegou-se às oito horas e um quarto a Bondy.

O primeiro cuidado de Carlos IX foi informar-se se o javali tinha esperado. O javali estava no covil, e o picador que o tinha emprazado respondia por ele.

Estava pronta uma colação. O rei bebeu um copo de vinho da Hungria; convidou as senhoras para a mesa; e todo entregue à sua impaciência, foi, para empregar o tempo, ver as casas dos couteiros e suas dependências, recomendando que não lhe desaparelhassem o cavalo visto, disse ele, que nunca tinha montado outro melhor nem mais forte.

Enquanto o rei dava o seu passeio, chegou o duque de Guisa. Vinha mais armado em guerra do que à caçador, e era acompanhado por vinte ou trinta fidalgos equipados como ele. Perguntou imediatamente onde estava o rei, foi procurá-lo e voltou conversando com ele.

Às nove horas em ponto deu o rei em pessoa o sinal, tocando a desencovar; e todos, montando a cavalo, marcharam para o ponto designado.

Durante o caminho, Henrique achou outra vez meio de aproximar-se da mulher.

- Então? - perguntou-lhe ele - sabe alguma coisa de novo?

- Não - respondeu Margarida -, a não ser que meu irmão Carlos o está olhando dum modo célebre.

- Já percebi isso - respondeu Henrique.

- Tomou as suas precauções?

- Tenho sobre o peito a minha cota de malha, e à cinta uma excelente faca de caça espanhola, afiada como uma navalha de barba, aguçada como uma agulha e com a qual furo dobrões.

- Então - disse Margarida -, à conta de Deus!

O picador que dirigia o cortejo fez um sinal; tinha-se chegado ao covil.

 

                   MAUREVEL

Enquanto toda essa mocidade alegre e descuidosa, ao menos na aparência, se espalhava como dourado turbilhão pela estrada de Bondy, Catarina, enrolando o precioso pergaminho em que o rei Carlos acabava de pôr a sua assinatura, mandava que introduzissem no seu gabinete o homem a quem alguns dias antes tinha o capitão das suas guardas levado um recado à Rua do Cerejal, Bairro do Arsenal.

Um grande penso de tafetá, semelhante a um selo fúnebre, cobria um dos olhos desse homem, deixando descoberto somente o outro, e mostrando entre as duas salientes maçãs do rosto a curva dum nariz de abutre, enquanto uma barba grisalha lhe cobria a parte inferior do rosto. Trazia uma manta comprida e grossa, debaixo da qual facilmente se adivinhava haver um arsenal completo. Além de que, contra o estilo observado pelas pessoas chamadas à corte, tinha à cintura uma comprida e larga espada de grandes copos. Uma das mãos estava oculta, e não largava por baixo da manta o cabo do comprido punhal.

- Ah! até que enfim chegou - disse a rainha sentando-se. - Sabe que lhe prometi, depois do S. Bartolomeu, em que tão assinalados serviços nos prestou, não o deixar desocupado? Apresenta-se uma ocasião, ou, para melhor dizer, fui eu que a fiz nascer. Agradeça-me pois.

- Minha Senhora, agradeço humildemente a Vossa Majestade - respondeu o homem com uma discrição igualmente baixa e insolente.

- Bela ocasião para o senhor; e como não achará duas na sua vida, aproveite-a pois.

- Estou esperando, minha Senhora; receio unicamente pelo preâmbulo.

- Que seja violenta a comissão? Pois não é de comissões destas que são ávidos os que querem progredir?. Esta de que lhe falo seria invejada pelos Tavannes e até pelos Guisas.

- Ah, minha Senhora! - tornou o sujeito - fique certa de que, qualquer que seja, estou às ordens de Vossa Majestade.

- Pois então leia - disse Catarina.

E apresentou-lhe o pergaminho.

O sujeito descorou à medida que o ia lendo.

- Como! - exclamou - ordem de prender o rei de Navarra?

- E que tem isso de extraordinário?

- Um rei, minha senhora? Na verdade. duvido, receio não ser fidalgo de conveniente hierarquia.

- A minha confiança constitui-o o primeiro fidalgo da minha corte, Sr. de Maurevel - disse Catarina.

- Graças sejam dadas a Vossa Majestade - disse o assassino, tão comovido que parecia hesitar.

- Então, obedecerá?

- Se Vossa Majestade ordenar, não é esse o meu dever?

- Pois sim, ordeno.

- Então obedecerei.

- Como fará?

- Não sei ainda, minha Senhora; bem quisera que Vossa Majestade me aconselhasse.

- Receia que lhe resistam?

- Confesso que sim.

- Leve doze homens seguros; mais, se precisos forem.

- Sem dúvida, compreendo; Vossa Majestade permite-me que tome todas as precauções e vantagens, e por isso lhe fico muito agradecido; mas onde hei-de prender o rei de Navarra?

- Onde lhe parecer melhor.

- Num lugar cuja própria santidade me protegesse, se possível fosse.

- Compreendo: em algum palácio real; que diria do Louvre, por exemplo?

- Oh! se Vossa Majestade me permitisse, seria grande favor.

- Pois então, prenda-o no Louvre.

- E em que parte do Louvre?

- No seu próprio quarto.

Maurevel inclinou-se.

- E quando, minha Senhora?

- Esta tarde. ou antes, esta noite.

- Muito bem, minha Senhora; agora digne-se Vossa Majestade informar-me somente sobre uma coisa.

- Qual?

- Sobre as atenções devidas à sua jerarquia.

- Atenções? jerarquia? - disse Catarina. - Pois o senhor ignora que o rei de França no seu reino a ninguém deve atenções, não reconhecendo em ninguém jerarquia que se aproxime da sua?

Maurevel inclinou-se outra vez.

- Entretanto, insistirei num ponto, se todavia Vossa Majestade mo permitir.

- Permito, sim senhor.

- Se o rei contestar a autenticidade da ordem. não é provável, mas enfim.

- Pelo contrário, Senhor, isso é certo.

- Há-de contestá-la?

- Sem a menor dúvida.

- E por consequência, recusar-se-á a obedecer.

- Assim receio.

- E resistirá?

- É provável.

- Mau! - disse - e nesse caso?

- Em que caso? - perguntou Catarina com olhar fixo.

- No caso de ele resistir, que devo fazer?

- O que faz quando está encarregado duma ordem de el-rei, isto é, quando representa o rei e acha resistência.

- Quando recebo a honra de semelhante ordem, minha Senhora, e essa ordem diz respeito a um simples fidalgo, mato-o.

- Já lhe disse, Sr. Maurevel, e supunha que ainda se não tivesse esquecido, que o rei de França não reconhece jerarquias no seu reino; quer isto dizer que o rei de França é o único rei, e que, depois dele, os mais elevados não passam de simples fidalgos.

Maurevel descorou, pois ia compreendendo.

- Oh! oh! - disse então - matar o rei de Navarra?.

- Mas quem lhe fala em matá-lo? Onde está a ordem de o matar? O rei quer que o levem à Bastilha, e a ordem só diz isso. Deixe-se ele prender, que tudo vai bem; como, porém, não se há-de deixar prender, como há-de resistir, e procurar matá-lo.

Maurevel empalideceu.

- O senhor há-de defender-se - continuou Catarina. - Não se pode exigir dum valente que se deixe matar sem se defender. e defendendo- se, que quer? Há-de acontecer o que tiver de acontecer! Compreende-me, não é assim?

- Sim, minha Senhora, mas.

- Então quer que eu, depois das palavras Ordem deprender acrescente morto ou vivo?.

- Confesso, minha Senhora, que assim desapareceriam os meus escrúpulos.

- Pois seja, sim, já que sem isso não acha exequível a comissão.

E encolhendo os ombros, Catarina abriu com uma das mãos o pergaminho e com a outra escreveu: morto ou vivo.

- Tome lá - disse ela. - Acha agora tudo regular?

- Sim, minha Senhora - respondeu Maurevel -, peço somente a Vossa Majestade que me deixe a inteira disposição da empresa.

- Em que é que o que eu disse embaraça a execução?

- Vossa Majestade disse-me que levasse doze homens.

- Sim senhor, para haver mais certeza.

- Pois pedirei licença para somente levar seis.

- E porquê?

- Porque, minha Senhora, se, como é provável, acontecer alguma desgraça ao príncipe, facilmente desculparão a seis homens o terem tido receio de perder um preso, enquanto que não haverá ninguém que desculpe a doze guardas o não terem deixado morrer metade dos seus camaradas antes de porem a mão numa majestade.

- Bonita majestade essa, que nem reino tem!.

- Minha Senhora - disse Maurevel -, não é o reino que faz o rei, é o nascimento.

- Pois então proceda como lhe parecer; só o devo prevenir de que não desejo que saia do Louvre.

- Mas, minha Senhora, para reunir os homens.

- Sempre há-de ter por aí algum sargento a quem dê essa incumbência.

- Tenho o meu criado, que não só é um rapagão fiel, como até me tem ajudado em empresas semelhantes.

- Pois mande-o chamar e entenda-se com ele. Sabe onde é a sala de armas de el-rei, não sabe? Pois lá lhe levarão o almoço, e de lá poderá dar as suas ordens. O lugar reanimar-lhe-á o espírito, se estiver abalado. Depois, quando meu filho voltar da caçada, entrará no meu oratório e aguardará a hora.

- Mas como entrar no quarto? O rei tem sem dúvida alguma suspeita e fechar-se-á por dentro.

- Tenho uma outra chave de todas as portas - disse Catarina -, e da de Henrique já foram tirados os ferrolhos. Adeus, Sr. de Maurevel, até logo. Vou dar ordem para que o conduzam à sala de armas de el-rei. Por última recomendação, digo-lhe que o que um rei ordena deve, antes de tudo, ser executado; que nenhuma desculpa é aceite; e um mau resultado, um simples revés, comprometeria a honra do rei: isto é sério.

E sem dar a Maurevel tempo de lhe responder, Catarina chamou pelo Sr. de Nancey, seu capitão das guardas, e ordenou- lhe que levasse o Sr. de Maurevel para a sala de armas.

Ora pois! - dizia Maurevel acompanhando o seu guia - vou subindo na jerarquia do assassinato: dum simples fidalgo a um capitão; dum capitão a um almirante; dum almirante a um rei sem coroa; quem sabe se um dia não chegarei a assassinar um rei coroado.

 

                         A CAÇADA

O monteiro, que tinha encovado o javali e que tinha afirmado ao rei que o animal não havia deixado o recinto, não se havia enganado. Apenas soltaram o cão no rasto, meteu-se pela mata, e duma moita de espinhos fez saltar o javali, o qual, como havia sido reconhecido pelo monteiro, que estudara as pegadas, era um solitário, isto é, um animal dos maiores.

Largaram-lhe prontamente a primeira matilha, e uns vinte cães se precipitaram atrás da presa. A caça era a paixão de Carlos. Apenas o javali atravessou o caminho, desatou o rei a galope, acompanhado do duque de Alençon e por Henrique, a quem um sinal de Margarida havia indicado que não saísse de junto do rei.

Todos os mais caçadores seguiram atrás do rei.

As coutadas reais estavam longe de ser, na época em que se passa a história que contamos, como são hoje, grandes parques plantados e cortados por caminhos de rodagem. Então, o aproveitamento das matas era quase nenhum: os reis não tinham tido ainda a lembrança de se fazerem negociantes e de dividir as suas matas em cortes regulares. As árvores, semeadas não por hábeis florestais, mas pela mão de Deus, que soltava a semente ao capricho do vento, não estavam dispostas em xadrez; cresciam, porém, à vontade, e como ainda hoje nos matos virgens da América. Em suma: uma floresta nesses tempos era um covil, onde formigavam javalis, lobos, veados e ladrões; e apenas uma dúzia de veredas, partindo dum centro, estrelavam a de Bondy, que uma estrada circular envolvia como um círculo abrange os raios duma roda.

Levando a comparação mais longe, o cubo representaria sofrivelmente a única encruzilhada situada no centro da floresta, e em que se reuniam os caçadores perdidos para daí se arrojarem ao ponto em que aparecia outra vez a presa.

Ao cabo de meia hora, aconteceu o que sempre acontecia em caso semelhante: obstáculos quase insuperáveis tinham-se oposto aos caçadores; as vozes dos cães tinham-se perdido ao longe, e o próprio rei voltara à encruzilhada, vociferando e praguejando como costumava.

- Então, de Alençon? Então, Henriquinho? - disse o rei. - Estão para aí assim quietos e sossegados como freiras que acompanham a abadessa! Olhem que isso não é caçar! O Sr. de Alençon está tão cheiroso, que se passa entre a presa e os meus cães é capaz de lhes fazer perder o faro. E o senhor, Henriquinho, que fez do venábulo e do arcabuz?

- Meu Senhor - disse Henrique -, para que é preciso um arcabuz? Sei que Vossa Majestade gosta de atirar à presa quando a tem segura pelos cães. E quanto ao venábulo, sou muito desajeitado para me servir dessa arma, que não é usada nas nossas montanhas, em que caçamos ursos só com o punhal.

- Por minha alma, Henrique! quando voltar para os seus Pirenéus, há-de mandar-me uma boa carroçada de ursos, pois há-de ser uma boa caçada a que se faz assim corpo a corpo com uma fera que nos pode matar. Escutem! parece-me que ouço os cães. Não; era engano.

O rei pegou na trompa e deu um certo toque. Responderam-lhe repetindo o mesmo toque de vários pontos. De súbito, um monteiro apareceu e fez ouvir outro toque.

- À vista! à vista! - bradou o rei.

E precipitou-se a galope, acompanhado por todos os cavaleiros que se lhe haviam reunido. O monteiro não se havia enganado. À medida que o rei prosseguia, começava-se a ouvir o latir da matilha, composta então de mais de sessenta cães, porque tinham sido soltos, uns após outros, todos os que se haviam disposto nos lugares pelos quais já havia passado o javali. O rei viu-o passar outra vez; e, aproveitando um espaço em que as árvores eram altas, meteu-se por entre elas tocando a trompa com toda a força.

Os príncipes acompanharam-no por algum tempo. Tão robusto, porém, era o cavalo do rei, que no impulso do seu ardor precipitava-se por caminhos tão íngremes por matas tão densas, que, a princípio as senhoras, depois o duque de Guisa e os fidalgos, e, por fim, os dois príncipes, foram obrigados a abandoná-lo. Tavannes ainda o acompanhou até certo ponto; mas por fim também ele teve de renunciar.

Todos, pois, excepto Carlos e alguns monteiros, que, excitados pela promessa duma recompensa, não queriam deixar o rei, acharam-se de novo ao pé da encruzilhada.

Os dois príncipes estavam ao pé um do outro numa comprida alameda; a cem passos deles tinha parado o duque de Guisa com os seus criados; no centro da encruzilhada estavam as senhoras.

- Não pareceria - disse o duque de Alençon a Henrique, mostrando-lhe com o canto do olho o duque de Guisa - que aquele homem, com a sua escolta coberta de ferro, é o verdadeiro rei? Pobres príncipes que somos! Nem nos faz a honra de olhar para nós!

- Porque nos há-de ele tratar melhor do que nos tratam os nossos próprios parentes? - respondeu Henrique. - Ora, meu irmão, não estamos nós ambos prisioneiros na corte de França, como reféns do nosso partido?

O duque Francisco estremeceu ao ouvir essas palavras e olhou para Henrique, como para provocar mais ampla explicação; Henrique, porém, que se havia adiantado mais do que costumava fazer, calou-se.

- Que quer dizer, Henrique? - instou o duque Francisco, evidentemente aflito por ver que o cunhado, não continuando, obrigava-o a ele a encetar essas explicações.

- Digo, meu irmão - tornou Henrique -, que aqueles homens tão bem armados, que parecem ter por encargo não nos perderem de vista, têm toda a aparência de guardas incumbidos de obstar a que fujam duas pessoas.

- Fugir para quê, e como? - perguntou de Alençon, representando admiravelmente o espanto e a ingenuidade.

- Vossa Alteza tem um magnífico ginete - disse Henrique, prosseguindo no seu pensamento, e parecendo ao mesmo tempo mudar de conversação -, estou certo de que ele andaria sete léguas por hora, e vinte léguas daqui até ao meio-dia. O tempo está belo. tudo convida, palavra de honra! a largar a rédea. Veja que lindo atalho! Pois não se tenta, Francisco? Pela minha parte, as esporas abrasam-me.

Francisco não respondeu nada; corou e fez-se pálido sucessivamente; depois aplicou o ouvido como para perceber onde estavam os caçadores.

A notícia da Polónia está dando de si - disse Henrique - e o meu querido cunhado lá tem o seu plano. Bem quisera ele que eu fugisse; engana-se, porém, pois não hei-de fugir só.

Mal acabava essa reflexão quando muitos recém- conversos, que havia dois ou três meses tinham voltado à corte, chegaram a galope e cortejaram os dois príncipes cheios de amabilidade.

Provocado pelas confidências de Henrique, o duque de Alençon não tinha senão que dizer uma palavra, que fazer um gesto; e era evidente que trinta a quarenta cavaleiros, reunidos nesse momento em redor deles como para fazer oposição ao grupo do Sr. de Guisa, favorecer-lhe-iam a fuga; voltou porém a cabeça e, levando a trompa à boca, tocou sem cessar a reunir.

Entretanto, os recém-chegados, como se houvessem julgado que a hesitação do duque de Alençon provinha da inesperada presença da gente de Guisa, tinham-se a pouco e pouco metido entre ele e os dois príncipes, e formado com uma habilidade estratégica que revelava a longa prática da guerra. Com efeito, para chegar ao duque de Alençon e ao rei de Navarra, teria sido preciso esmagá-los primeiro, enquanto que se estendia a perder de vista diante dos dois irmãos uma longa estrada perfeitamente livre.

De repente, entre as árvores, a dez passos do rei de Navarra, apareceu outro fidalgo, a quem os dois príncipes ainda não tinham visto. Henrique procurava adivinhar quem era, quando ele, tirando o chapéu, se lhe deu a conhecer pelo visconde de Turenne, um dos caudilhos do partido protestante, que supunham estar no Poitou.

O visconde arriscou até um sinal, que queria dizer: Então, vem?

Mas Henrique, depois de haver bem consultado o rosto impassível e os olhos desanimados do duque de Alençon, volveu duas ou três vezes a cabeça nos ombros, como se o estivesse incomodando a gola do gibão.

Era uma resposta negativa: o visconde compreendeu-a e, dando de esporas ao cavalo, sumiu-se. No mesmo momento ouviu-se a matilha aproximar-se; depois, pela extremidade da alameda em que estavam, viu-se passar o javali, e logo após os cães, e atrás deles, semelhante ao caçador infernal, Carlos IX, sem chapéu, com a trompa na boca, tocando a ponto de arrebentar os pulmões; acompanhavam-no três ou quatro monteiros. Tavannes tinha desaparecido.

- El-rei! - bradou o duque de Alençon.

E seguiu atrás dele.

Henrique, tranquilizado pela presença dos seus bons amigos, fez-lhes sinal que não se retirassem e dirigiu-se para as senhoras.

- E então? - disse Margarida, dando alguns passos para ele.

- Minha Senhora - disse Henrique -, estamos caçando javalis.

- E mais nada?

- Mais nada; o vento mudou de ontem de manhã para cá; julgo, porém, que lhe havia predito que assim sucederia.

- As mudanças de ventos são ruins para as caçadas, não é assim? - perguntou Margarida.

- É exacto - disse Henrique -, confundem às vezes todas as disposições que se haviam adoptado, e obrigam a combinar novos planos.

Neste momento começaram a ouvir-se os latidos da matilha, aproximando-se rapidamente, e um como tumultuoso ruído avisou os caçadores que se pusessem atentos. Cada qual levantou a cabeça e aplicou o ouvido.

Quase imediatamente o javali apareceu, e em vez de se meter pela mata, seguiu a estrada que ia direita à encruzilhada em que estavam as damas, os fidalgos que as acompanhavam e os caçadores que haviam perdido a caça.

Atrás dele, e quase que tocando-lhe, vinham trinta ou quarenta cães dos mais valentes, e após eles, a distância, quando muito, de vinte passos, o rei Carlos, sem nada na cabeça, sem capa, todo roto pelos espinhos, com a cara e as mãos cobertas de sangue, acompanhado somente de dois monteiros.

O rei não largava a trompa senão para excitar os cães, não cessava de os excitar senão para fazer ressoar a trompa. O mundo inteiro havia desaparecido aos seus olhos. Se o cavalo houvesse afrouxado, teria bradado, como Ricardo III: A minha coroa por um cavalo!

Mas o cavalo mostrava-se tão ardente como o cavaleiro: as patas mal tocavam no chão e as ventas deitavam fogo.

O javali, os cães e o rei passaram como uma visão.

- Halali! halali! - bradou o rei ao passar. E levou a trompa aos lábios ensanguentados.

A poucos passos dele vinha o duque de Alençon e apenas dois monteiros; os cavalos dos outros tinham afrouxado, ou haviam-se perdido.

Todos foram em seu seguimento, porquanto era evidente que o javali não tardaria muito que não tomasse a ofensiva.

Com efeito, mal passados dez minutos, o javali deixou o caminho por onde ia e atirou-se para o mato; chegando porém a um claro, encostou-se a um rochedo e voltou-se para os cães.

Aos gritos de Carlos, que o seguia, todos correram.

Estava-se, enfim, no momento mais interessante da caçada; o animal parecia resolvido a uma defesa desesperada. Animados por uma carreira de mais de três horas, os cães arrojavam-se contra ele com encarniçamento, que dobrava com os clamores e alaridos do rei.

Todos os caçadores formaram círculo; o rei um pouco adiante, tendo atrás de si o duque de Alençon, armado com arcabuz, e Henrique, que só tinha uma simples faca de caça.

O duque de Alençon desprendeu o arcabuz e acendeu a mecha; Henrique tirou a faca da bainha.

Quanto ao duque de Guisa, que desdenhava dos exercícios de montaria, tinha-se desviado um pouco com os seus fidalgos.

As damas, todas reunidas, formavam um ranchinho, que fazia simetria com o do duque de Guisa.

Tudo quanto era caçador ficara com os olhos fitos no animal, numa expectativa cheia de ansiedade.

Um pouco atrás, estava um monteiro forcejando por conter os dois molossos do rei, que, cobertos com saias de malha, uivando e precipitando-se com tanta força, que a cada instante pareciam arrebentar as correntes, esperavam pelo momento de acometer o javali.

Este fazia prodígios: atacado ao mesmo tempo por uns quarenta cães, que de todos os lados procuravam filar-lhe a pele rugosa coberta de duras sedas arrepiadas, de cada focinhada atirava a dez passos de altura um cão, que caía com a barriga aberta, e que, com as entranhas de rastos, se confundia de novo na matilha, enquanto Carlos, com os cabelos eriçados, os olhos inflamados, as ventas abertas, curvado sobre o pescoço do cavalo coberto de suor, fazia ressoar um frenético halali.

Em menos de dez minutos, vinte cães estavam fora de combate.

- Os dogues! - bradou Carlos - os dogues!

A este grito, o monteiro tirou as correntes aos molossos, que, rápidos, saltaram ao meio da caniçaria, derrubando tudo, desviando tudo e abrindo com as férreas armaduras caminho que os levou ao encontro da fera, sobre a qual se arrojaram, filando-se-lhe cada um a uma das orelhas.

O javali, sentindo-se seguro, rangeu os dentes cheio de raiva e de dor.

- Bravo, Duredent! bravo, Risquetout! - bradou Carlos. - Ânimo, meus cãezinhos! Um venábulo! um venábulo! dêem- me um venábulo!

- Não quer antes o meu arcabuz? - disse o duque de Alençon.

- Não! - exclamou o rei - não se sente entrar a bala, não há gosto, enquanto um venábulo sente-se quando vai entrando. Um venábulo!

Apresentaram ao rei um, endurecido ao fogo e terminando numa ponta de ferro.

- Meu irmão, cuidado! - exclamou Margarida.

- Vá, vá, meu Senhor! - exclamou a duquesa de Nevers - Um golpe rijo nesse hereje!

- Deixe estar, duquesa - disse Carlos.

E pondo em riste o seu venábulo, acometeu o javali, que, seguro pelos cães, não pôde evitar o golpe. Entretanto, ao ver o lustroso venábulo, fez um movimento para o lado e, em vez de lhe penetrar no peito, a arma escorregou e deu de encontro ao rochedo a que se havia encostado o animal.

- Com todos os diabos do Inferno! - bradou Carlos - errei!. Outro venábulo, depressa! Outro venábulo!

E recuando, como faziam os cavaleiros quando abriam campo, atirou a dez passos de distância o venábulo que pusera fora de serviço.

Um monteiro correu a oferecer-lhe outro.

Porém ao mesmo tempo, como se previsse a sorte que o esperava e tivesse querido subtrair-se-lhe, o javali, com orelhas dilaceradas e com os olhos injectados de sangue, horrível, todo arrepiado, com a respiração ruidosa como um fole de ferreiro, fazendo estalar os dentes, precipitou-se, com a cabeça inclinada, para o cavalo do rei.

Carlos era tão destro caçador que havia previsto esse ataque; e por isso fez empinar o cavalo; tendo, porém, calculado mal a pressão do freio, o cavalo, urgido por ele, ou talvez levado de susto, deixou-se cair para trás.

Todos os espectadores soltaram um grito de terror: uma das pernas do rei tinha ficado presa.

- Largue as rédeas, Senhor! largue as rédeas! - disse Henrique.

O rei largou as rédeas, agarrou na sela com a mão esquerda, procurando com a direita tirar a faca de caça: esta, porém, apertada pelo peso do corpo, não quis sair da bainha.

- O javali! o javali! - bradou Carlos. - Acode-me, de Alençon, acode- me! Entretanto, o cavalo, entregue a si mesmo, como se compreendesse o perigo em que estava o dono entesou os músculos, e já havia conseguido levantar-se sobre três pernas, quando, ao chamado do irmão, Henrique viu o duque de Alençon empalidecer horrivelmente e depois encostar ao ombro o arcabuz; em vez, porém, de ferir o javali, que estava a dois passos do rei, a bala foi quebrar o joelho do cavalo, que caiu outra vez ao chão.

No mesmo momento, o javali, com uma focinhada, rasgou a bota do rei. Oh! - disse consigo de Alençon com os lábios descorados - julgo que o duque de Anjou é rei de França, e que eu sou rei da Polónia.

Com efeito, o javali procurava rasgar a coxa de Carlos, quando este sentiu que alguém lhe levantava o braço, e viu depois brilhar um ferro agudo, que se cravava e desaparecia até ao cabo na espádua do animal, enquanto uma mão calçada de luva de ferro lhe desviava o focinho já fumegante de sob o fato do rei.

Carlos, que, no movimento que fizera o cavalo, tinha conseguido desembaraçar a perna, levantou-se pesadamente e, vendo-se coberto de sangue, empalideceu como um cadáver.

- Senhor - disse Henrique, que, sempre ajoelhado, tinha seguro o focinho do javali, ferido no coração - não é coisa de cuidado; pude desviar a tempo os dentes da fera, e Vossa Majestade não está ferido.

Depois levantou-se, largando a faca, e o javali imediatamente caiu, deitando ainda mais sangue pela boca do que pela chaga.

Carlos, rodeado de toda a gente, aflita, acolhido por gritos de terror que teriam vencido a coragem mais impassível, quase que caiu ao pé da fera agonizante. Dominou porém esse impulso e, voltando-se para o rei de Navarra, apertou-lhe a mão com um olhar em que brilhava o primeiro ímpeto de sensibilidade que no espaço de vinte e quatro anos lhe havia feito palpitar o coração, e disse-Lhe:

- Obrigado, Henriquinho!

- Meu pobre irmão! - exclamou de Alençon, aproximando-se do rei.

- Ah! és tu, de Alençon? - disse o rei. - Habilissimo atirador, que é feito da tua bala?

- Há-de ter-se achatado, repelida pelo couro do javali.

- Oh, meu querido! - exclamou Henrique com surpresa admiravelmente simulada - veja, Francisco, como a sua bala foi quebrar a perna do cavalo de Sua Majestade! é singular!.

- Hem? - disse o rei. - É verdade?

- Pode ser - disse o duque consternado -, a mão tremia-me tanto!.

- O facto é que, para um hábil atirador, deu um tiro singularíssimo, Francisco! - disse o rei carregando o sobrolho. - Ainda uma vez, obrigado, Henriquinho! Meus Senhores - prosseguiu o rei -, voltemos; já estou farto desta caçada.

Margarida aproximou-se para felicitar Henrique.

- Ah sim, Margot - disse-lhe Carlos - felicita-o e com toda a sinceridade pois, a não ser ele, o rei de França chamar-se-ia Henrique III.

- Ai, minha Senhora! - disse o Bearnês - o Senhor Duque de Anjou, que já não é muito meu amigo, vai ficar-me com maior ódio. Mas que quer? faz-se o que se pode; pergunte-o ao Sr. de Alençon.

E, abaixando-se, tirou a faca do corpo do javali e cravou-a duas ou três vezes no chão para a limpar do sangue.

                     FRATERNIDADE

Salvando a vida de Carlos, Henrique tinha feito mais do que salvar a vida dum homem: tinha impedido que três reinos mudassem de soberanos.

Com efeito, morto Carlos IX, o duque de Anjou passava a ser rei de França, e era muito provável que o duqe de Alençon passasse a ser rei da Polónia. Quanto à Navarra, como o duque de Anjou era amante da Sr. de Condé, a sua coroa pagaria provavelmente ao marido a excessiva condescendência da mulher.

Ora, em toda essa grande transformação nada haveria de favorável para Henrique: apenas mudava de senhor, e em vez de Carlos IX, que o tolerava, via subir ao trono de França o duque de Anjou, que, formando com Catarina, sua mãe, uma só cabeça e um só coração, jurara matá-lo e não deixaria de cumprir o juramento.

Todas estas ideias juntas lhe ocorreram ao espírito quando o javali se atirara a Carlos IX, e vimos o que resultou dessa reflexão, rápida como o raio, que à vida de Carlos IX estava vinculada a sua própria vida.

Carlos fora salvo por uma dedicação cujo motivo era impossível ao rei descortinar. Porém Margarida havia compreendido tudo, e admirara a extraordinária coragem de Henrique que, semelhante ao raio, só brilhava no meio da tempestade.

Infelizmente não bastava ter evitado o reinado do duque de Anjou, era preciso fazer-se rei a si próprio. Era preciso disputar Navarra ao duque de Alençon e ao príncipe de Condé; era preciso especialmente sair dessa corte em que caminhava entre dois precipícios, e sobretudo sair dela protegido por um filho de França.

Henrique, ao voltar de Bondy, vinha meditando profundamente nesta situação, e ao chegar ao Lhouvre o seu plano estava feito.

Sem mudar de fato, e tal como estava, ainda coberto de sangue e de poeira, foi ter com o duque de Alençon, a quem achou agitadíssimo, passeando a passo largo pela câmara.

Ao vê-lo, o príncipe teve um sobressalto.

- É verdade - disse-lhe Henrique pegando-lhe nas mãos -, compreendo, meu bom irmão, que esteja agastado comigo por ter sido eu o primeiro que fiz com que o rei reparasse que a sua bala havia ferido a perna do cavalo em vez de ferir o javali, como era a sua tenção. Mas que quer? não pude reprimir uma exclamação de surpresa. Além de que o rei sempre o havia de vir a saber, não é verdade?

- Certamente - disse de Alençon. - Todavia, não posso deixar de atribuir a má intenção essa espécie de denúncia que fez de mim, e que, como viu, não teve menor resultado do que tornar suspeitas a meu irmão Carlos as minhas intenções e pôr-nos em discórdia.

- Conversaremos logo a esse respeito; quanto à minha boa ou má intenção para com Vossa

Alteza, venho de propósito tomá-lo por juiz.

- Bem! - disse de Alençon com a sua costumada circunspecção - fale, Henrique, estou-o escutando.

- Quando eu tiver falado, Francisco, verá quais são as minhas intenções; ora, a confidência

que venho fazer-lhe exclui toda a discrição e toda a prudência, e quando eu lha tiver feito, com

uma só palavra poder-me-á perder.

- Então que é? - disse Francisco, começando a perturbar-se.

- E entretanto, muito tempo hesitei antes de lhe vir falar acerca desse objecto, especialmente

vendo como hoje se fez surdo e despercebido.

- Na verdade - disse Francisco empalidecendo -, não sei o que quer dizer, Henrique...

- Meu irmão, os seus interesses são-me tão caros, que devo preveni- lo de que os huguenotes

se dirigiram a mim.

- Dirigiram-se a si? - perguntou de Alençon - e para quê?

- Um deles, o Sr. de Mouy de Saint-Phale, o filho do valente de Mouy, assassinado por Maurevel. (creio que sabe quem é).

- Sei.

- Pois esse veio ter comigo, expondo a sua vida, para convencer-me que eu estava em risco

de ser preso.

- Ora essa! e que lhe respondeu?

- Meu irmão bem sabe que amo extraordinariamente Carlos, que me salvou a vida, e que a rainha Catarina foi para mim uma segunda mãe; rejeitei, pois, os oferecimentos que me vinha fazer.

- E que oferecimentos eram?

- Os huguenotes querem reconstituir o trono da Navarra, e como na realidade me pertence esse trono por direito de herança, ofereciam-mo.

- Sim? e o Sr. de Mouy, em vez da adesão que vinha solicitar, recebeu a sua desistência.

- Formal... por escrito mesmo. Porém depois, pelas considerações que me fez... - prosseguiu Henrique.

- Arrependeu-se, meu irmão? - atalhou de Alençon.

- Não senhor; julguei perceber que, descontente de mim, o Sr. de Mouy lançava para outra parte as suas vistas.

- E para onde? - perguntou Francisco com vivacidade.

- Não sei; talvez para o príncipe de Condé.

- Sim, é provável - disse o duque.

- Todavia - tornou Henrique -, tenho meios de conhecer de modo infalível o chefe que ele escolheu.

Francisco fez-se lívido.

- Mas - continuou Henrique - os huguenotes estão divididos, e de Mouy, por mais bravo e leal que seja, só representa metade do partido. Ora essa outra metade, que não é para desprezar, não perdeu a esperança de pôr no trono esse Henrique de Navarra que, tendo hesitado na primeira ocasião, pode depois ter reflectido.

- Pois julga...

- Oh! cada dia tenho mais provas disso. Vossa Alteza não reparou nos homens que compunham aquele grupo que se aproximou de nós na caçada?

- Reparei; eram fidalgos conversos.

- O chefe, que me fez um sinal, conheceu-o?

- Conheci, era o visconde de Turenne.

- Que me queriam? compreendeu-o?

- Compreendi; convidaram-no a que fugisse.

- Então - disse Henrique a Francisco inquieto -, é evidente que há outro partido que quer coisa diversa do que quer o Sr. de Mouy. Sim, há, repito, e fortíssimo. De modo que para o êxito ser completo, seria preciso reunir os dois partidos. Turenne e de Mouy. A conspiração vai por diante, as forças estão designadas; só se espera um sinal. Ora, nessa posição suprema, que de mim exige pronta solução, ponderei atento as duas resoluções entre as quais hesito, e venho submetê-las a Vossa Alteza, como a um amigo.

- Diga antes: como a um irmão.

- Sim, como a um irmão - tornou Henrique.

- Pois fale, que o estou escutando.

- Primeiro que tudo, devo expor-lhe o estado da minha alma, meu caro Francisco. Não tenho aspirações, nem ambições nem tenho capacidade; não sou mais que um bom fidalgo do campo, pobre e tímido; o ofício de conspirador apresenta-me desgostos mal compensados pela perspectiva ainda que certa duma coroa.

- Oh, meu irmão! - disse Francisco - não faz justiça a si próprio; e é bem triste a situação dum príncipe cuja riqueza é limitada por um marco no campo paterno, ou por um homem na carreira das honras. Não acredito, pois, no que diz.

- O que lhe digo é todavia tão verdade, meu irmão, que, se julgasse ter um amigo verdadeiro, demitir-me-ia em seu favor do poder que me quer conferir o partido que de mim se ocupa; mas - acrescentou suspirando -, não tenho amigos.

- Quem sabe? talvez se engane.

- Não, por certo! A não ser Vossa Alteza, meu irmão, ninguém vejo que me seja afeiçoado. Por isso, em vez de deixar abortar em horríveis dilacerações uma tentativa que talvez faça aparecer algum homem. indigno. prefiro, na verdade, ir inteirar-me de tudo quanto ocorre o rei meu irmão. Não direi nome nenhum, não falarei em lugar, nem em data, mas prevenirei a catástrofe.

- Meu Deus! - exclamou de Alençon, não podendo reprimir o seu terror - que está dizendo! O senhor, que é a única esperança do partido, depois da morte do almirante, o senhor, um huguenote converso, e mal converso (ao que se acredita) ao menos, levantaria o cutelo sobre os seus irmãos? Henrique, Henrique! se tal fizesse, sabe que provocaria um novo S. Bartolomeu contra todos os calvinistas do reino? Sabe que a rainha Catarina só espera uma ocasião dessas para exterminar tudo quanto da primeira vez escapou?

E trémulo, com o rosto cheio de manchas vermelhas e lívidas, apertava a mão de Henrique para lhe suplicar que renunciasse a essa resolução que o perdia.

- Como! - disse Henrique com o tom da mais perfeita ingenuidade - julga, Francisco, que aconteceriam tantas desgraças? Tendo a palavra de el-rei, parece-me que protegeria os imprudentes.

- A palavra do rei Carlos IX, Henrique?. Oh! não a tinha o almirante? não a tinha Teligny? não a tinha o senhor?. Oh, Henrique! sou eu quem lho diz: se faz isso, ficam perdidos, não só eles, como todos quantos tiverem tido relações directas ou indirectas com eles.

Henrique como que reflectiu um instante.

- Se eu fosse um príncipe importante na corte, outro seria o meu proceder. Em seu lugar, por exemplo, francês, príncipe de França, herdeiro presuntivo da coroa.

Francisco sacudiu ironicamente a cabeça.

- Em meu lugar, que faria?

- Em seu lugar, meu irmão, pôr-me-ia à frente do movimento para o dirigir. O meu nome e a minha influência responderiam para a minha consciência pela vida dos sediciosos, e aproveitaria, primeiro para mim, depois talvez para o rei, um acontecimento que, se se passar de outro modo, pode ser funestíssimo à França.

De Alençon escutou estas palavras com uma alegria extraordinária.

- Julga - disse Francisco - que esse meio seja praticável, e que nos poupe todos os desastres que prevê?

- Julgo, sim senhor - disse Henrique. - Os huguenotes amam-no; o seu exterior modesto, a sua posição ao mesmo tempo elevada e interessante, a benevolência, enfim, que sempre mostrou aos da religião, levam-nos a servi-lo.

- Mas - disse de Alençon - não há divisão no partido? Os que são pelo senhor serão por mim?

- Encarrego-me de lhos conciliar por duas razões.

- Quais são?

- Pela confiança que em mim têm os chefes, e pelo receio em que ficariam de que Vossa Alteza, sabendo os nomes deles.

- Mas esses nomes, quem mos descobrirá?

- Eu, cos demónios!

- E fará isso?

- Ouça, Francisco, já lhe disse que só de Vossa Alteza gosto nesta corte; provém isso talvez de ser Vossa Alteza perseguido como eu; e depois, minha mulher também lhe tem uma afeição sem igual.

Francisco corou de prazer.

- Acredite-me, meu irmão - continuou Henrique -, incumba-se desse negócio, reine na Navarra; e, contanto que me conserve um lugar na sua mesa, e uma floresta para eu caçar, dar-me-ei por feliz.

- Reinar na Navarra? - disse Francisco - mas se.

- Se o duque de Anjou for nomeado rei da Polónia?. não é isso que ia dizer? Francisco olhou para Henrique com um certo terror.

- Pois ouça, Francisco: para que nada lhe escape, é precisamente nessa hipótese que eu raciocino; se o duque de Anjou for nomeado rei da Polónia, e se seu irmão Carlos, que Deus conserve; vier a morrer, há somente duzentas léguas de Pau a Paris, e há quatrocentas de Paris a Cracóvia; estará, pois, Vossa Alteza aqui para tomar conta da herança justamente no dia em que o rei da Polónia souber que o trono está vago. Então, se estiver satisfeito comigo, Francisco, dar-me-á o reino de Navarra, que não será mais que um dos florões da sua coroa; desse modo, aceito-o. O pior que lhe pode acontecer é ficar lá na Navarra, tronco de reis, vivendo no meio da sua família, comigo e com minha mulher. Aqui, o que é? Um pobre príncipe perseguido, um pobre terceiro filho de rei, escravo dos dois mais velhos, e que um capricho pode mandar para a Bastilha.

- Sim, sim - disse Francisco -, percebo isso muito bem; tão bem que não compreendo como renunciar ao plano que me propõe. Então nada palpita aqui?

E o duque de Alençon pôs a mão sobre o coração de Henrique.

- Há fardos - disse Henrique sorrindo - demasiadamente pesados para certas mãos. Não procurarei levantar este; o receio do cansaço tira-me a vontade.

- Então renuncia deveras, Henrique?

- Já o disse a de Mouy; e repito-o a Vossa Alteza.

- Mas, em tais circunstâncias, meu caro irmão - disse de Alençon -, não basta dizê-lo, é necessário prová-lo.

Henrique respirou como o atleta que na luta sente dobrar-se o adversário.

- E prová-lo-ei - disse - esta noite: às nove horas, a lista dos chefes e o plano da empresa estarão em seu poder.

Francisco tomou a mão de Henrique e apertou-a cordialmente.

Neste momento entrou Catarina na câmara de d'Alençon, segundo o seu costume, sem se anunciar.

- Juntos? - disse sorrindo - que bons irmãos!

- Procuro sê-lo, minha Senhora - disse Henrique com o maior sangue- frio, enquanto de Alençon empalidecia de susto.

Depois recuou alguns passos, para deixar que Catarina falasse em liberdade com o Filho. A rainha-mãe tirou então da bolsa uma jóia magnífica.

- Esta fivela veio de Florença, faço-lhe presente dela para o cinto da sua espada. E acrescentou em voz baixa:

- Se esta noite ouvir bulha no quarto do seu bom irmão Henrique, não lhe dê cuidado. Francisco tomou a mão da mãe, e disse:

- Dá licença que mostre a Henrique o lindo presente que acaba de me dar?

- Ainda mais: dê-lha, em meu nome e no seu, pois tenho encomendada outra igual, que será para o meu filho.

- Está ouvindo, Henrique? - disse Francisco. - Minha boa mãe deu-me esta linda fivela, e duplica-lhe o valor consentindo que lha ofereça.

Henrique extasiou-se sobre a beleza da fivela, e confundiu-se em agradecimentos. E quando se acalmaram estes entusiasmos, disse Catarina:

- Meu filho sinto-me um tanto incomodada, e por isso vou deitar-me; o seu irmão Carlos está muito cansado da queda, e vai fazer outro tanto. Não cearemos pois hoje em comum: cada um de nós será servido no seu quarto. Ah! Henrique, esquecia-me cumprimentá-lo pela sua coragem e pela sua destreza; salvou o seu rei e o seu irmão, há-de ser por isso galardoado.

- Já o estou, minha Senhora! - disse Henrique, inclinando-se.

- Pelo sentimento de haver cumprido o seu dever - tornou Catarina -, mas isso não basta, e acredite que Carlos e eu tratamos de fazer alguma coisa que nos desobrigue para com o meu bom Henrique.

- Tudo quanto me vier de minha mãe e de meu cunhado será bem-vindo, minha Senhora. Depois inclinou-se e saiu.

Ah, Francisco, meu bom irmão! - disse consigo Henrique ao retirar- se - estou agora certo de que não parto sozinho; e a conspiração, que já tinha um corpo, acaba de achar uma cabeça e um coração. Agora o que é preciso é ter cuidado! Catarina dá-me presentes, Catarina promete-me recompensas. hei-de conferenciar esta noite com Margarida.

           A GRATIDÃO DO REI CARLOS IX

Maurevel tinha ficado parte do dia na sala de armas do rei; depois, quando Catarina vira aproximar-se a hora da volta da caçada, mandara-o entrar para o seu oratório com os esbirros que se lhe tinham vindo juntar.

Quando se recolheu, avisado pela ama de que um homem passara parte do dia no seu gabinete, Carlos IX, a princípio, mostrara-se irritadíssimo por ter havido alguém tão ousado que introdu zisse pessoas estranhas nos seus aposentos. Tendo, porém, mandado à ama que Lhe indicasse as feições desse homem, e dizendo-Lhe ela que era o mesmo que uma noite fora encarregado de lhe apresentar, o rei reconhecera Maurevel; e lembrando-se da ordem que nessa manhã Lhe havia sido extorquida por sua mãe, tudo havia compreendido.

Oh! oh! - disse Carlos - no mesmo dia em que ele me salvou a vida, é ocasião mal escolhida. Dominado por esta ideia, deu alguns passos para ir ter com a mãe, mas deteve-o um pensamento.

Cos diabos, se lhe falo nisto aí temos travada uma discussão que não terá fim; antes trabalhe cada um de nós por seu lado. - Ó ama, fecha bem todas as portas, e vai dizer à rainha Isabel que, um tanto incomodado pela queda que dei, dormirei esta noite só.

A ama obedeceu; e como ainda não era chegada a hora de executar o seu projecto, Carlos pôs-se a fazer versos.

Era a ocupação em que mais depressa corria o tempo para o rei; assim, deram nove horas quando Carlos julgava serem apenas sete. Contou uma após outra as badaladas do sino, e à última levantou-se.

Cos diabos! - disse - é justamente a hora oportuna.

E, tomando o manto e o chapéu, saiu pela porta secreta que tinha mandado abrir no madeiramento, e cuja existência era até ignorada por Catarina.

Carlos foi direito ao aposento de Henrique; este, mal se havia recolhido para mudar de roupa, depois da sua conversação com de Alençon, e saíra imediatamente.

Naturalmente foi cear com Margot - disse consigo o rei - estava hoje muito de bem com ela, ao menos pelo que me pareceu.

E encaminhou-se para os aposentos de Margarida.

Margarida tinha levado para os seus aposentos a duquesa de Nevers, Cocunás e La Mole, e com eles estava ceando doces e pastéis.

Carlos bateu à porta da entrada; Gillonne foi abrir; porém, dando com o rei, ficou tão espantada, Carlos IX desposara Isabel de Áustria, filha de Maximiliano que mal pode fazer-lhe uma mesura, e em vez de correr a ir dar parte a sua ama da augusta visita que ia receber, deixou passar o rei sem dar outro sinal além do grito que soltara.

O rei atravessou a antecâmara e, guiado pelas gargalhadas que ouvia, entrou na sala de jantar. Pobre Henriquinho! - disse consigo - está-se divertindo sem saber o que o aguardava. Sou eu - prosseguiu em voz alta, levantando o reposteiro e mostrando um rosto risonho.

Margarida deu um grito terrível; bem que risonho, esse rosto tinha produzido nela impressão igual à que produziria a cabeça de Medusa. Sentada defronte da porta, havia reconhecido Carlos.

Os dois homens estavam com as costas voltadas para o rei.

- Sua Majestade!. - exclamou ela espavorida.

E levantou-se.

Enquanto os outros convivas sentiam como vacilar-lhes nos ombros as cabeças, Cocunás foi o único que não perdeu a sua. Levantou-se, pois, e com tão estudado desleixo que fez cair a mesa, e com ela os cristais, a baixela e as luzes.

Durante um momento houve escuridão completa e silêncio de morte.

- Safa-te! safa-te! - disse Cocunás a La Mole - e ânimo!

La Mole não esperou segunda recomendação; encostou-se à parede e, orientando-se com as mãos, foi procurando o quarto de dormir, para se esconder no gabinete que lhe era tão conhecido.

Mas, ao pôr o pé no quarto de dormir, foi de encontro a um homem que entrava pela passagem secreta.

- Que quer dizer isto? - disse Carlos no escuro, e com voz que ia tomando formidável tom de impaciência. - Pois sou algum desmancha- prazeres, para que a minha presença cause todo esse barulho? Vamos Henriquinho! Henriquinho! onde estás? responde-me.

- Estamos salvos! - disse a meia voz Margarida, pegando na mão que supôs ser a de Cocunás - o rei pensa que meu marido estava connosco.

- E eu deixá-lo-ei ficar no engano, minha Senhora; sossegue - disse Henrique, respondendo no mesmo tom à rainha.

- Meu Deus! - exclamou Margarida, largando com vivacidade a mão que segurava.

- Silêncio! - disse Henrique.

- Com todos os diabos! que estão para aí a cochichar! - exclamou Carlos. - Henrique, responda-me: onde está?

- Aqui, meu Senhor! - disse a voz do rei de Navarra.

- Mau! - disse Cocunás, que estava a um canto com a duquesa de Nevers - aí temos nova complicação.

- Então estamos duas vezes perdidas - disse Henriqueta.

Cocunás, audaz a ponto de ser imprudente, tinha reflectido que por fim de contas haviam de se acender as velas, e achando que quanto mais depressa melhor seria, largou a mão da duquesa de Nevers, apanhou no meio das ruínas um candelabro, chegou-se ao braseiro, assoprou numas brasas e nelas acendeu o pavio da vela.

O quarto ficou alumiado.

Carlos IX lançou em torno de si um olhar profundo e investigador.

Henrique estava ao lado de sua mulher, a duquesa de Nevers estava sozinha a um canto, e Cocunás, em pé no meio do quarto, com o castiçal na mão, alumiava toda esta cena.

- Desculpe-me, meu irmão - disse Margarida -, não o esperávamos.

- E por isso Vossa Majestade, como pode ver, muito nos assustou - disse Henriqueta.

- Pela minha parte - disse Henrique, que tudo adivinhou -, o susto foi tal que, ao levantar-me, deitei ao chão a mesa.

Cocunás lançou para o rei de Navarra um olhar que parecia dizer: Ainda bem! isto é que é um marido entendido!

- Que horrível balbúrdia! - disse Carlos IX. - Tens a ceia no chão, Henriquinho! Pois vem comigo, vamos acabá-la noutra parte; quero hoje desencaminhar-te.

- Como, meu Senhor! - disse Henrique - Vossa Majestade far-me-ia a honra.

- Sim: a minha majestade faz-te a honra de te conduzir hoje para fora do Louvre. Empresta- mo, Margot, amanhã de manhã to restituo.

- Ah, meu irmão! para isso não carece de licença, pode fazer o que lhe aprouver.

- Meu Senhor - disse Henrique -, vou ao meu quarto pôr outro manto e volto imediatamente.

- Não é preciso, Henriquinho, esse manto serve muito bem.

- Mas, Senhor. - tornou o Bearnês.

- Digo-te que não voltes ao teu quarto; com mil diabos! não entendes o que te digo?. Vamos, vem comigo!

- Sim, sim, vá! - disse de repente Margarida, apertando o braço do marido; pois lera nos olhos de Carlos, ao relancear ele a vista, que alguma coisa extraordinária se passava.

- Estou pronto, meu Senhor - disse Henrique.

Mas Carlos dirigiu os olhos para Cocunás, que continuava o seu ofício de alumiador acendendo outras velas.

- Quem é este fidalgo? - perguntou a Henrique, medindo de alto a baixo o piemontês. Será porventura o Sr. de La Mole?

Quem lhe falaria em La Mole? disse Margarida para consigo.

- Não senhor - tornou Henrique -, o Sr. de La Mole não está aqui, e sinto-o muito, pois teria tido a honra de apresentá-lo a Vossa Majestade ao mesmo tempo que o Sr. de Cocunás, seu amigo; são dois inseparáveis, e ambos pertencem à casa do Sr. de Alençon.

- Ah! ah! ao nosso hábil atirador! - disse Carlos - bem!

E depois, franzindo a testa:

- Esse de La Mole - acrescentou - não é huguenote?

- Converso, meu Senhor - disse Henrique. - Respondo por ele como por mim próprio.

- Quando respondes por alguém, Henriquinho, depois do que hoje fizeste, não há mais que duvidar. Entretanto, bem quisera ver esse Sr. de La Mole; ficará para outra vez.

E com os seus grandes olhos fazendo uma última investigação pelo quarto, Carlos abraçou Margarida e levou o rei de Navarra, dando-lhe o braço.

Na porta do Louvre, Henrique quis parar para falar com alguém.

- Vamos! vamos! Sai depressa, Henriquinho! Digo-te que o ar do Louvre não é bom para ti esta noite, cos diabos! acredita no que te digo.

E esta! - disse Henrique a meia voz - o que sucederá a de Mouy, ficando só no meu quarto?. Deus queira que o ar que não é bom para mim não seja pior para ele!.

- Então - disse o rei, depois de Henrique e ele terem passado a ponte levadiça - não te importa, Henriquinho, que os fidalgos do Sr. de Alençon façam a corte a tua mulher?

- Como assim, meu Senhor!

- Então esse Cocunás não lança um olhar terno para Margot?

- Quem disse isso a Vossa Majestade?

- Ora! - tornou o rei - disseram-mo.

- Pura maledicência, meu Senhor; o Sr. de Cocunás namora alguém, sim senhor, mas é a Sr. de Nevers.

- Pois deveras?

- Posso afiançar a Vossa Majestade que é verdade o que lhe estou dizendo. Carlos desatou a rir às gargalhadas.

- Ora bem! - disse ele - que venha o Sr. de Guisa com os seus falatórios, que eu lhe retorquirei

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contando as façanhas da irmã. Mas - prosseguiu o rei, reflectindo -, não estou bem certo se foi de Cocunás ou de La Mole que me falaram.

- Nem um nem outro, meu Senhor - disse Henrique -, respondo pelos sentimentos de minha mulher.

- Bem, Henriquinho, bem! antes quero ver-te assim do que de outro modo. E, palavra de honra! és tão bom rapaz, que julgo que por fim não hei-de poder estar sem ti.

Dizendo estas palavras, o rei pôs-se a assobiar dum modo particular: quatro fidalgos, que esperavam ao canto da Rua de Bauvais, vieram reunir- se-lhe, e juntos meteram-se pelo interior da cidade.

Davam dez horas.

- Bem - disse Margarida, quando o rei e Henrique se retiraram -, voltemos para a mesa.

- Não - disse a duquesa -, fiquei muito assustada. Viva a casa da Rua do Sino Rachado! Aí não se pode entrar sem um assédio regular, e os nossos valentes podem servir-se das espadas. Mas. que está o senhor procurando assim por baixo das mesas, dentro dos armários, Sr. de Co cunás?

- Estou procurando o meu amigo La Mole - disse o piemontês.

- Procure do lado do meu quarto, Sr. de Cocunás - disse Margarida -, há aí um gabinete.

- Bem, já sei.

E Cocunás entrou no quarto.

- Então - disse uma voz do meio do escuro -, em que ficamos?

- Ora! ficamos na sobremesa.

- E o rei de Navarra?

- Não viu nada.

- E o rei Carlos?

- Esse é outro caso; levou consigo o marido.

- Deveras?

- É como te digo. E ainda mais, fez-me a honra de me olhar de revés quando soube que eu era do Sr. de Alençon e ainda mais quando soube que eu era teu amigo.

- Presumes que Lhe têm falado mal de mim?

- Antes receio que lhe tenham falado excessivamente bem. Não é porém disso que se trata; julgo que as senhoras querem fazer uma romaria para os lados da Rua do Rei da Sicília, e que temos de acompanhar as peregrinas.

- Mas, é impossível. bem sabes.

- Como impossível!

- Sim, porque estamos de serviço a Sua Alteza Real.

- Cos demónios! é verdade! Esqueço-me sempre do serviço, não me lembro que de fidalgos que éramos, tivemos a honra de ser elevados a criados.

E os dois amigos foram expor à rainha e à duquesa a obrigação em que estavam de assistir pelo menos ao recolher do duque.

- Pois bem - disse a Sr. de Nevers -, partiremos nós.

- E pode-se saber onde vão? - perguntou Cocunás.

- É por de mais curioso - disse a duquesa. - Qziaere et invenies.

Os dois mancebos cumprimentaram, e subiram apressados ao aposento do duque de Alençon. O duque parecia esperá-los no gabinete.

- Ah! ah! - disse - chegam muito tarde, meus Senhores.

- São apenas dez horas, meu Senhor - disse Cocunás.

O duque puxou pelo relógio.

- É verdade; entretanto, todos no Louvre já estão recolhidos.

- Sim, meu Senhor, e eis-nos às ordens de Vossa Alteza; quer que introduzamos os fidalgos do serviço do quarto?

- Não, pelo contrário: despeçam-nos a todos imediatamente.

Os dois mancebos foram cumprir as ordens, e depois voltaram para junto do duque.

- Senhor Duque - disse Cocunás -, Vossa Alteza vai sem dúvida recolher-se ou trabalhar.

- Não, meus Senhores; podem retirar-se até amanhã.

- Bom! bom! - disse baixinho Cocunás ao ouvido de La Mole - toda a corte dorme hoje fora do paço, ao que parece.

E os dois fidalgos subiram a correr a escada, tomaram as capas e as espadas que usavam de noite e saíram precipitadamente do Louvre, em procura das duas damas, com quem se encontraram na Rua do Coq-Saint-Honoré.

Entretanto, o duque de Allençon, com os olhos muito abertos e o ouvido à escuta, esperava, fechado na sua câmara, os acontecimentos imprevistos que lhe tinham prometido.

 

                   DEUS DISPÕE

Como havia dito o duque aos dois mancebos, reinava no Louvre o mais profundo silêncio. Com efeito, Margarida e a Sr. de Nevers tinham ido à Rua Tizon; Cocunás e La Mole tinham saído atrás delas; o rei e Henrique corriam pela cidade; o duque de Alençon ficava no seu aposento na ansiosa expectativa dos acontecimentos que lhe havia predito a rainha-mãe; e, por fim, Catarina havia-se deitado, e a Sr. de Sauve, sentada à cabeceira, lia-lhe alguns contos italianos, de que muito se ria a boa rainha.

De há muito que não se mostrava Catarina tão alegre. Depois de ter ceado com as damas, com grande apetite, depois de haver consultado o médico e ter regulado as contas quotidianas da casa, tinha encomendado orações pelo bom resultado de certa empresa importante, segundo dizia, para a felicidade dos seus filhos. Era o costume de Catarina, costume aliás todo florentino, encomendar em certas ocasiões rezas e missas cujo fim só Deus sabia.

Tinha, por fim, tornado a ver Renato, e escolhido entre as suas odoríferas bolsinhas e no seu rico sortimento alguns novos artigos.

- Saibam se minha filha, a rainha de Navarra, está no seu quarto, e se estiver, digam-lhe que venha fazer-me companhia.

O pajem a quem era dada essa ordem saiu, e daí a um instante voltou acompanhado por Gillonne.

- Ora essa! - disse a rainha-mãe - eu mandei chamar a ama, e não a criada.

- Minha Senhora - disse Gillonne -, julguei que devia eu própria vir dizer a Vossa Majestade que a rainha de Navarra saiu com a sua amiga a duquesa de Nevers.

- Sair a esta hora? - tornou Catarina carregando o sobrolho - e para onde iria?

- Foi assistir a uma sessão de alquimia, que deve ter lugar no Palácio de Guisa, no pavilhão em que habita a Sr. de Nevers.

- E quando volta? - perguntou a rainha-mãe.

- A sessão há-de ir até alta noite, por isso é provável que Sua Majestade fique até amanhã de manhã em casa da sua amiga.

- Como é feliz a rainha de Navarra! - exclamou Catarina. - Tem amigas e é rainha; tem coroa, tratam-na por majestade, e não tem súbditos. Como é feliz!.

Depois desta exclamação, que fez sorrirem a furto os que a ouviam:

- E demais - prosseguiu Catarina -, já que saiu. então afirma que saiu?

- Haverá meia hora, minha Senhora.

- Tánto melhor; retire-se. Gillonne inclinou-se e saiu.

- Continue a ler, Carlota - disse a rainha.

A Sr. de Sauve prosseguiu.

Passados dez minutos, Catarina atalhou a leitura.

- Ah! a propósito - disse -, mandem retirar os guardas da galeria.

Era o sinal esperado por Maurevel.

Executaram a ordem de Catarina, e a Sr de Sauve continuou a ler.

Tinha lido durante um quarto de hora pouco mais ou menos, sem interrupção, quando um grito terrível, profundo, ecoou até ao régio quarto e fez arrepiar os cabelos de todos os presentes.

Ouviu-se em seguida um tiro de pistola.

- Que é isso? - disse Catarina - e porque deixou de ler, Carlota?

- Minha Senhora - disse a dama empalidecendo -, pois não ouviu?

- O quê? - perguntou Catarina.

- Um grito!

- E um tiro - acrescentou o capitão das guardas.

- Um grito? um tiro? - disse Catarina. - Eu, pela minha parte, não ouvi nada. Além de que não é coisa muito extraordinária no Louvre um grito e um tiro. Leia, leia, Carlota.

- Mas, escute, minha Senhora! - disse esta, enquanto o Sr. de Nancey estava em pé com a mão na espada, e não se animando a sair sem ordem da rainha - ouvem-se passos, imprecações!.

- Quer, minha Senhora, que vá ver o que é? - disse o capitão das guardas.

- Não senhor, fique - disse Catarina, levantando o braço para dar mais energia à sua ordem.

- Quem me defenderia se houvesse algum perigo? Hão-de ser alguns suíços embriagados que estão a brigar.

O sossego da rainha, oposto ao terror que adejava em toda a assembleia, formava tão notável contraste que, por mais tímida que fosse, a baronesa de Sauve fitou na rainha um olhar investigador.

- Mas, minha Senhora - exclamou ela -, dir- se-ia que estão matando alguém!.

- E a quem haviam de matar?

- Pode ser que o rei de Navarra; a bulha vem do lado do seu quarto.

- Que tola! - disse a rainha, cujos lábios, apesar do poder que tinha sobre si, começavam singularmente a agitar-se, pois estava murmurando uma oração - que tola! Em tudo vê o seu rei de Navarra!

- Meu Deus! meu Deus! - exclamou a Sr. de Sauve encostando-se à cadeira.

- Está acabado! está acabado! - disse Catarina. - Capitão - prosseguiu, dirigindo-se ao Sr. de Nancey -, espero que, se houve escândalo no palácio, fará amanhã castigar com severidade os culpados. Continue a ler, Carlota.

E Catarina recostou-se sobre as almofadas, numa imobilidade que muito se assemelhava à prostração, pois repararam os assistentes que lhe inundavam o rosto grossas gotas de suor.

A Sr. de Sauve obedeceu a essa ordem formal; porém só estavam ocupados os olhos e a voz; o pensamento, errando sobre outros objectos, representava-lhe um terrível perigo suspenso sobre uma cabeça que lhe era tão querida. Enfim, depois de alguns minutos desse combate, achou-se tão opressa pela comoção e pela etiqueta, que a voz deixou de ser inteligível, o livro caiu-lhe das mãos e desmaiou.

De repente, ouviu-se um ruído mais violento, passos rápidos e pesados abalaram o corredor; dois tiros fizeram estalar os vidros; e Catarina, espantada dessa luta mais prolongada do que cal culara, levantou-se também, direita, pálida, com os olhos dilatados, e no momento em que o capitão das guardas ia sair da câmara agarrou-lhe no braço, dizendo:

- Fiquem todos aqui; irei eu própria ver o que há.

Eis o que havia, ou antes, o que tinha havido:

Pela manhã, havia de Mouy recebido das mãos de Orthon a chave de Henrique. Nesta chave, que era brocada, tinha visto um papel embrulhado; com um alfinete havia tirado o papel.

Era o santo-e-senha do Louvre para essa noite.

Além disso, Orthon havia-lhe verbalmente trazido um convite de Henrique, para ir ter com ele ao Louvre às dez horas.

Às nove e meia, de Mouy tinha vestido uma armadura cuja solidez em mais duma ocasião experimentara; por cima tinha abotoado um gibão de seda, havia afivelado a espada, enfiado na cinta as suas pistolas, cobrindo tudo com a famosa capa cor de cereja de La Mole.

Vimos como, antes de se recolher ao quarto, Henrique havia julgado conveniente fazer uma visita a Margarida, e como tinha chegado pela escada secreta justamente a tempo de ir de encontro a La Mole no quarto de dormir de Margarida, e de tomar o lugar dele aos olhos do rei, na sala de jantar. Era precisamente nesse momento que, graças à senha que Henrique lhe mandara, e mais ainda à famosa capa cor de cereja, de Mouy atravessava a grade do Louvre.

O mancebo subiu imediatamente ao quarto do rei de Navarra, imitando, como costumava, o andar de La Mole. Achou na antecâmara Orthon, que o esperava.

- Sr. de Mouy - disse-lhe o montanhês -, o rei saiu; ordenou-me, porém, que o fizesse entrar e lhe pedisse que o esperasse. Se se demorar muito, saiba que ele o convida a descansar na sua cama.

De Mouy entrou sem querer mais explicações, pois o que lhe acabava de dizer Orthon não era mais do que a repetição do que lhe havia dito pela manhã.

Para aproveitar o tempo, de Mouy tomou uma pena e tinta e, chegando- se para um excelente mapa de França pendurado na parede, pôs-se a contar as postas que havia de Paris até Pau.

Isso, porém, somente o ocupou um quarto de hora e, acabado esse trabalho, não soube mais em que se entreter.

Deu duas ou três voltas pelo quarto, esfregou os olhos, abriu a boca, sentou-se, levantou-se e tornou-se a sentar. Enfim, aproveitando o convite de Henrique, desculpado demais pelas leis da familiaridade que então havia entre os príncipes e os seus fidalgos, pôs na banca da cabeceira as pistolas e estendeu-se na grande cama de cores escuras que guarnecia o fundo do quarto; pôs a espada desembainhada ao lado da perna e, certo de que não o surpreenderiam, pois estava um criado na antecâmara, entregou-se a um sono pesado, cuja bulha em breve despertou todos os ecos da alcova. De Mouy roncava como um soldado, e nesse ponto teria porfiado com o próprio rei de Navarra.

Foi então que seis homens, com as espadas nas mãos e pistolas à cinta, se introduziram em silêncio pelo corredor que dava por uma portinha para os aposentos de Catarina, e por uma porta grande para os de Henrique.

Um desses seis homens ia adiante; além da espada desembainhada, e dum punhal forte como uma faca de caça, trazia mais umas pistolas de confiança, seguras à cinta por fivelas de prata.

Esse homem era Maurevel.

Chegando à porta da antecâmara de Henrique, parou.

- Estão bem certos de que não há sentinelas no corredor? - perguntou ele ao que parecia ser o seu imediato no comando daquela gente que vinha sob as suas ordens.

- Nem uma só está no seu posto.

- Bem - disse Maurevel -, agora só nos resta saber uma coisa, e é se está em casa a pessoa que procuramos.

- Mas. - disse o imediato, segurando na mão que Maurevel levava à fechadura da porta

- capitão, esse quarto é o do rei de Navarra.

- Quem diz o contrário? - replicou Maurevel.

Os esbirros olharam atónitos uns para os outros, e deram um passo para trás.

- Oh! oh! - exclamou o que parecia ser o segundo-chefe - prender alguém a esta hora no Louvre, nos aposentos do rei de Navarra?

- E que dirão - tornou Maurevel -, se eu lhes disser que quem vamos prender é o próprio rei de Navarra?

- Eu, capitão, diria que a coisa é muito séria, e que sem uma ordem assinada pelo próprio punho do rei Carlos IX.

- Leia - disse Maurevel.

E tirando do gibão a ordem que lhe dera Catarina, entregou-a ao imediato.

- Bem - respondeu este depois de ter lido - nada mais tenho a dizer.

- E está decidido?

- Estou.

- E vocês? - prosseguiu Maurevel, dirigindo-se aos outros esbirros.

Estes inclinaram-se com respeito.

- Ouçam-me, pois; eis o plano: dois de vocês hão-de ficar nesta porta, dois na porta do quarto de dormir, e os outros dois entrarão comigo.

- E depois? - perguntou o imediato.

- Temos ordem de impedir que o preso chame, grite ou resista; a menor infracção a esta ordem é punida de morte.

- Sim, sim; ele tem carta branca - disse o imediato ao homem designado para com ele acompanhar Maurevel ao quarto do rei.

- É como diz - ajuntou Maurevel.

- Coitado do rei de Navarra! - disse um dos homens. - Está escrito lá no Céu que não poderá escapar.

- E aqui na Terra também - disse Maurevel, tomando das mãos do imediato a ordem de Catarina e metendo-a no seio.

Depois meteu na fechadura a chave que lhe dera Catarina e deixando, como resolvera, dois homens na porta exterior, entrou com os outros quatro na antecâmaca.

- Ah! ah! - disse Maurevel, ouvindo a ruidosa respiração do que dormia - parece que acharemos aqui o que procuramos.

No mesmo instante, Orthon, pensando que era o amo que se recolhia, foi ao seu encontro, mas deu com os cinco homens armados que ocupavam o primeiro quarto.

À vista desse rosto sinistro, desse Maurevel, a quem chamavam o matador do rei, o criado fiel recuou; e colocando-se diante da segunda porta:

- Quem são? - disse Orthon - e que querem?

- Em nome do rei - disse 1laurevel -, onde está teu amo?

- Meu amo?

- Sim, o rei de Navarra.

- O rei de Navarra não está no paço - disse Orthon, defendendo mais do que nunca a entrada -, não podem portanto entrar.

- Pretexto, mentira! Vamos! para trás!

Os Bearneses são teimosos; este rosnou como um cão das suas montanhas, e sem se intimidar:

- Não entra! - disse. - O rei está ausente.

E agarrou-se à porta.

Maurevel fez um gesto; os quatro homens agarraram no recalcitrante, arrancaram-no da ombreira da porta a que se segurava; e indo a abrir a boca para gritar, Maurevel tapou-lha com a mão.

Orthon mordeu com fúria o assassino, que tirou a mão dando um grito abafado, e com os copos da espada deu na cabeça do fiel criado uma pancada tão forte que este vacilou e caiu, gritando:

- Às armas! às armas!.

Os assassinos passaram-lhe por cima; depois, dois deles ficaram nessa segunda porta, e os outros três entraram, precedidos de Maurevel.

A luz duma lâmpada que ardia em cima da mesa de cabeceira, viram a cama. Os cortinados estavam fechados.

- Oh! oh! - disse o imediato - parece-me que não ouço ressonar.

- Vamos! a ele! - disse Maurevel.

A esta voz, um grito rouco, que mais parecia o rugido dum leão, saiu debaixo dos cortinados, que de repente se abriram, e um homem, armado de couraça, tendo na cabeça um desses elmos que desciam até aos olhos, apareceu sentado, com duas pistolas nas mãos e a espada desembainhada.

Apenas o viu, reconheceu Maurevel que era o cavaleiro de Mouy e sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos; tornou-se de hedionda palidez; encheu-se-lhe de espuma a boca, e como se se tivesse achado diante dum espectro, deu um passo para trás.

De Mouy levantou-se de repente, e deu para diante um passo igual ao que Maurevel havia dado para trás, de modo que o que estava ameaçado parecia perseguir, e o que ameaçava parecia fugir.

- Ah! malvado! - disse de Mouy com voz abafada - vens para me matar, como mataste meu pai!

Dois dos esbirros, isto é, os que tinham entrado com Maurevel no quarto do rei, foram os únicos que ouviram essas palavras terríveis; mas, ao mesmo tempo que ele as proferia, a pistola levantou-se à altura da cabeça de Maurevel; este ajoelhou ao mesmo tempo que de Mouy puxava o gatilho: a pistola disparou, e um dos guardas que se achavam atrás do chefe, e que ficara descoberto, caiu morto, ferido no coração. No mesmo instante, Maurevel correspondeu, porém a bala foi achatar-se na couraça de de Mouy.

Então, tomando impulso, e medindo a distância, de Mouy com um golpe da sua larga espada, abriu o crânio do outro guarda; e, voltando-se para Maurevel, travou-lhe da espada.

O combate foi terrível, porém brevíssimo. Maurevel sentiu logo na garganta o frio do ferro; deu um grito sufocado e, caindo para trás, deitou ao chão a lâmpada, que se apagou.

Imediatamente, de Mouy, aproveitando a escuridão, vigoroso e ágil como um herói de Homero, precipitando-se de cabeça baixa para a antecâmara, fez cair um dos guardas, repeliu o outro e passou como um raio por entre os esbirros que estavam de guarda à porta exterior; deram-lhe dois tiros de pistola: porém as balas, mal dirigidas, ofenderam só as paredes do corredor; desde esse momento ficou salvo, pois ainda tinha uma pistola carregada, além dessa espada que despedia golpes tão terríveis.

De Mouy hesitou um momento, sem saber se devia fugir para os aposentos do Sr. de Alençon, cuja porta lhe parecia que acabava de abrir-se, ou se devia tratar de sair do Louvre; decidiu-se por este último partido; continuou na sua carreira, por um momento demorada, saltou com um pulo dez degraus, chegou à grade, repetindo o santo-e- senha, e saiu gritando:

- Vão lá acima, que estão matando gente por conta do rei!

E aproveitando o pasmo que, junto aos tiros de pistola, as suas palavras haviam causado à guarda, foi andando a toda a pressa, até desaparecer pela Rua do Coq sem levar um arranhão.

Era neste momento que Catarina detinha o capitão da guarda dizendo:

- Fique, que eu vou ver o que é.

- Mas, minha Senhora - respondeu o capitão -, o perigo a que Vossa Majestade se expõe, ordena-me que a acompanhe.

- Fique, Senhor - disse Catarina com voz mais imperativa do que da primeira vez -, fique! Há sempre ao lado dos reis uma protecção mais eficaz do que a espada do homem.

O capitão obedeceu.

Então Catarina tomou a lâmpada, meteu os pés descalços numas chinelas de veludo, saiu do quarto, foi direita ao corredor, ainda cheio de fumo, e caminhou, fria, impassível como um espectro, para os aposentos do rei de Navarra.

Tudo havia voltado ao silêncio.

Catarina chegou à porta da entrada, transpôs o limiar e viu logo na antecâmara Orthon desmaiado.

Ah ah! - disse ela consigo - cá está o pajem; daqui a pouco havemos de achar o amo. E passou à segunda porta. Aí deu com o pé num cadáver; abaixou a lâmpada: era o do guarda que tinha ficado com a cabeça partida; estava morto.

Três passos adiante deu com o imediato ferido pela bala, e a soltar o último suspiro. Enfim, diante da cama, um homem, que, com o rosto pálido como o dum cadáver, perdendo sangue por uma dupla ferida que lhe atravessava a garganta, forcejava por se levantar, agarrando-se com as mãos convulsas.

Era Maurevel.

Um calafrio correu pelas veias de Catarina; viu deserta a cama; olhou em torno de si, e debalde procurou entre esses três homens estendidos sobre o seu próprio sangue, o cadáver que ela esperava.

Maurevel reconheceu Catarina; os olhos dilataram-se-lhe de modo horrível, e estendeu para ela os braços com um gesto de desespero.

- Então? - disse ela a meia voz - onde está ele? que foi feito dele? Desgraçado! deixou-o escapar?

Maurevel procurou articular algumas palavras; mas um silvo ininteligível foi o que unicamente lhe saiu da ferida; uma espuma avermelhada cobriu-lhe os lábios; e sacudiu a cabeça em sinal de dor e da impossibilidade de responder.

- Fala! - exclamou Catarina - fala! ainda que só me digas uma palavra! Maurevel mostrou a ferida, e fez de novo ouvir alguns sons inarticulados; fez depois um esforço violento, com que só conseguiu dar um ronco, e desmaiou.

Catarina olhou então em volta de si; estava rodeada só de cadáveres e de moribundos; o sangue corria em ondas pelo quarto, e um silêncio de morte pairava sobre toda essa cena.

Dirigiu ainda uma vez a palavra a Maurevel, mas sem o despertar; desta vez ficou não só mudo, mas até imóvel; saía- lhe um papel do gibão, era a ordem de prisão assinada pelo rei; Catarina tirou-lha e escondeu-a no seio.

Neste momento ouviu Catarina algum rumor atrás de si; voltou-se, e viu à porta do quarto o duque de Alençon, que correra atraído pelos tiros, e que estava fascinado pelo espectáculo que tinha diante dos olhos.

- O senhor aqui? - disse-lhe a rainha.

- Sim, minha Senhora. Mas que é isto, meu Deus? - perguntou o duque.

- Recolha-se para o seu quarto, Francisco; depois saberá o que houve.

De Alençon não estava tão ignorante do que ocorrera como Catarina supunha. Aos primeiros passos que ouviu no corredor, pusera-se à escuta. Vendo entrar homens armados no quarto do rei de Navarra, e comparando esse facto com as palavras de Catarina, adivinhara o que ia haver e tinha-se felicitado por ver um amigo tão perigoso destruído por mão mais forte do que a sua.

Logo depois, os tiros e os passos apressados de alguém que fugia tinham-lhe chamado a atenção, e tinha visto no espaço luminoso deixado pela abertura da porta da escada desaparecer uma capa vermelha, que lhe era tão familiar que não podia deixar de a reconhecer.

De Mouy! - exclamou - de Mouy no quarto do meu cunhado de Navarra!. Não. é impossível!. Seria o conde de La Mole?.

Ficou então inquietíssimo; lembrou-se de que o mancebo lhe havia sido recomendado pela própria Margarida; e querendo ficar certo se era ele que acabava de passar, subiu rapidamente ao quarto dos dois mancebos. Estava vazio; mas em um dos cantos viu pendurada a famosa capa cor de cereja. Cessaram então as suas dúvidas; não era La Mole, e era então de Mouy.

Com a palidez no rosto, tremendo que fosse descoberto o huguenote e atraiçoasse os segredos da conspiração, dirigira-se às portas do Louvre. Aí tinham-no informado que a capa cor de cereja escapara a salvo, anunciando que se estava matando gente no Louvre por conta do rei.

Enganou-se - disse Francisco a meia voz - é por conta da rainha-mãe. E voltando para o teatro do combate, achou Catarina vagueando como uma hiena entre cadáveres.

Por ordem da mãe, o mancebo recolheu-se ao seu quarto, simulando obediência e sossego, apesar das ideias tumultuosas que lhe agitavam o espirito.

Desesperada por ver inútil esta nova tentativa, Catarina chamou o capitão das guardas e mandou que se retirassem os corpos; que Maurevel, por estar somente ferido, fosse levado para sua casa, e ordenou que não acordassem o rei.

Oh! - disse consigo, recolhendo-se e com a cabeça inclinada sobre o peito - escapou ainda desta vez. A mão de Deus defende este homem: há-de reinar! há-de reinar!

Depois, ao abrir a porta do quarto, passou a mão pela testa e compôs um sorriso banal.

- Então que era, minha Senhora? - perguntaram todos os presentes menos a Sr. de Sauve, muito assustada para poder fazer perguntas.

- Nada - respondeu Catarina -, ruído apenas.

- Oh! - exclamou de repente a Sr. de Sauve, apontando com o dedo para o chão - cada um dos passos de Vossa Majestade deixa um vestígio de sangue no tapete!

 

                     A NOITE DOS REIS

Entretanto Carlos IX ia andando ao lado de Henrique, e dando-lhe o braço, acompanhado pelos seus quatro fidalgos e precedido por dois criados com archotes.

- Quando saio do Louvre - disse o pobre rei -, tenho uma sensação análoga à que sinto quando entro numa bela floresta; respiro, vejo, sou livre.

Henrique sorriu.

- Vossa Majestade havia de gostar de viver nas minhas montanhas do Béarn - disse Henrique.

- Pois sim, eu compreendo muito bem que tenhas desejo de para lá voltar; mas se esse desejo se tornar excessivo, Henriquinho, toma todas as cautelas; é um conselho que te dou, pois minha mãe gosta tanto de ti que não pode absolutamente passar sem a tua companhia.

- Que tenciona Vossa Majestade fazer esta noite? - perguntou Henrique, desviando aquela perigosa conversação.

- Quero apresentar-te uma pessoa, Henriquinho; hás-de-me dizer depois o que pensas dela.

- Estou às ordens de Vossa Majestade.

- Para a direita! para a direita! vamos à Rua das Barras.

Acompanhados das duas escoltas, os dois reis tinham passado a Rua da Saboaria, quando, na altura do Palácio de Condé, viram dois vultos cobertos com grandes capotes saírem por uma porta falsa, que um deles fechou sem fazer bulha.

- Oh! oh! - disse o rei a Henrique, que, segundo o seu costume, olhava também, mas sem dizer nada - isto merece alguma atenção.

- Porque diz isso Vossa Majestade? - perguntou o rei de Navarra.

- Não é por ti, Henriquinho; tu estás ceguríssimo da tua mulher - acrescentou o rei com um sorriso -, mas o teu primo de Condé não está certo da sua. ou, se está, faz muito mal, com todos os diabos!

- Mas quem disse a Vossa Majestade que aqueles homens vinham de casa da Sr. de Condé?

- Tenho um pressentimento. A imobilidade dos dois vultos, que se encostaram à porta logo que nos viram, e que dali se não movem. Depois, certo corte da capa do mais pequeno deles. Oh! oh! seria divertido.

- O quê?

- Uma lembrança que me ocorreu: vamos ter com eles.

E caminhou direito para os dois homens que, vendo então que era a eles que se dirigiam, deram alguns passos para se afastar.

- Olá, meus Senhores - disse o rei -, esperem!

- É connosco que falam? - perguntou uma voz que fez estremecer Carlos e o seu compa nheiro.

- Então, Henriquinho? - disse Carlos - conheces agora aquela voz?

- Meu Senhor - disse Henrique -, se o irmão de Vossa Majestade, o duque de Anjou, não estivesse na Arrochela, havia de jurar que era ele quem acabou de falar.

- Pois é que não está na Arrochela. nada mais simples.

- Mas quem está com ele?

- Pois não conheces o companheiro?

- Não, meu Senhor.

- Pois é de estatura que não deixa dúvidas. Espera, que o vais conhecer. Olá! já disse que esperem - repetiu o rei. - Não ouviram, com trezentos diabos?

- Os senhores pertencem à polícia urbana para nos mandarem parar? - disse o mais alto dos dois vultos, tirando o braço para fora do capote.

- Suponham que fazemos a ronda - disse o rei -, e parem quando lho ordenam. Depois, falando ao ouvido de Henrique:

- Vais ver o vulcão lançar chamas - disse-lhe o rei.

- Os senhores são oito - disse o mais alto, descobrindo já não só o braço mas o rosto. Ainda porém que fossem duzentos, haviam de passar de largo.

- Ah! ah! o duque de Guisa! - disse Henrique.

- Ah! nosso primo de Lorena! - disse o rei - dá-se enfim a conhecer! que felicidade!

- O rei! - exclamou o duque.

Quanto à outra personagem, aquelas palavras levaram-no a envolver-se ainda mais na capa e a ficar imóvel, tendo antes descoberto a cabeça respeitosamente.

- Meu Senhor - disse o duque de Guisa -, acabava de fazer uma visita à minha cunhada, a Sr de Condé.

- Sim? e trouxe consigo um dos seus fidalgos; qual deles?

- Senhor - disse o duque -, Vossa Majestade não o conhece.

- Ficá-lo-ei conhecendo - disse o rei.

E dirigindo-se ao outro vulto, fez sinal a um dos dois criados que se aproximasse com os archotes.

- Perdoe-me, meu irmão! - disse o duque de Anjou, abrindo o capote e inclinando-se com mal disfarçado despeito.

- Ah. Henrique! é o senhor? Mas não, não pode ser! estou enganado. Meu irmão decerto não ignora que Anjou não iria ter com pessoa nenhuma antes de estar comigo para os príncipes de sangue que entram na capital, há só uma porta em Paris, a do Louvre.

- Perdoe-me, Senhor - disse o duque de Anjou -, peço a Vossa Majestade que desculpe uma leviandade.

- Pois - respondeu o rei em tom de mofa -, mas que fazia o meu irmão no Palácio de Condé?

- Ora, ora! - disse o rei de Navarra, com o seu sorriso mofador - o que Vossa Majestade dizia ainda agora.

E inclinando-se ao ouvido do rei, acabou a confidência com uma gargalhada.

- Então que é? - perguntou o duque de Guisa com altivez, pois, como todos os da corte, havia-se acostumado a tratar com aspereza o pobre rei de Navarra. - Porque não iria eu visitar minha cunhada? O Senhor Duque de Allençon não visita também a sua?.

Henrique corou um tanto.

- Qual cunhada? - perguntou Carlos - só sei que tem uma, a rainha Isabel.

- Desculpe-me Vossa Majestade: era irmã que eu devia ter dito;   Margarida, a quem, quando vínhamos, vimos passar na sua liteira, acompanhada por dois pintalegretes, que iam trotando a par, cada qual à sua portinhola.

- Deveras? - disse Carlos. - Que responde a isto, Henrique?

- Que a rainha de Navarra pode livremente ir onde lhe parecer; duvido todavia que tenha saído do Louvre a estas horas.

- Pois eu tenho a certeza - tornou o Sr. de Guisa.

- E eu também - disse o duque de Anjou -, e por sinal parou a liteira na Rua do Sino Rachado.

- Então é mister que sua cunhada, não a daqui - disse Henrique mostrando o Palácio de Condé -, mas a dali - e voltou o dedo na direcção do Palácio de Guisa -, esteja na partida, pois deixámo-las juntas e, como sabe, são inseparáveis.

- Não entendo o que Vossa Majestade quer dizer - respondeu o duque de Guisa.

- Pelo contrário - disse o rei -, nada há tão claro, e também por isso havia um pintalegrete correndo de cada lado da liteira.

- Pois se há escândalo da parte da rainha e das minhas cunhadas, invoquemos a justiça do rei para que ele acabe.

- Ora, por quem é! - disse Henrique - deixe descansadas as Sr. de Condé e de Nevers. O rei não está inquieto por causa de sua irmã. e eu tenho inteira confiança em minha mulher.

- Não, não - disse Carlos -, quero tirar a limpo tudo isso; vamos nós mesmos examinar o caso; a liteira parou na Rua do Sino Rachado, não é assim, primo?

- Sim, meu Senhor.

- Poderá conhecer o lugar?

- Posso, sim senhor.

- Pois vamos lá; e se for preciso queimar-se a casa para sabermos quem está lá dentro, queimar-se-á.

Com estas disposições tão pouco favoráveis à tranquilidade das pessoas de que se tratava, dirigiram-se para a Rua de Santo António os quatro principais fidalgos do mundo cristão.

Quando chegaram à Rua do Sino Rachado, Carlos, que queria arranjar o negócio entre as pessoas da família, despediu os fidalgos da comitiva, dizendo-lhes que dispusessem do resto da noite mas que estivessem ao pé da Bastilha às seis horas da manhã, com dois cavalos.

Só havia três casas na Rua do Sino Rachado; a busca era tanto mais fácil quanto em duas se prestaram facilmente a abrir-Lhes as portas: eram as que ficavam contíguas, uma à Rua de Santo António, outra à Rua do Rei da Sicília.

Quanto à terceira, o caso foi diferente: era guardada por um porteiro alemão, e este mostrou-se pouco tratável. Paris parecia estar destinado à oferecer essa noite os mais extraordinários exemplos de fidelidade doméstica.

Por mais que o Sr. de Guisa o ameaçasse em puríssimo alemão, por mais que o Senhor Duque de Anjou lhe oferecesse uma bolsa cheia de ouro, por mais que Carlos se atrevesse e dissesse que era tenente da guarda urbana, o bravo alemão desprezou sugestões, oferecimentos e ameaças. Vendo que insistiam, e de modo a tornarem-se importunos, meteu por entre as barras de ferro o cano dum arcabuz, demonstração cujo resultado foi fazer rir três das quatro visitas (Henrique de Navarra tinha-se afastado como se não tivesse interesse no negócio), porque a arma, não podendo tornar-se oblíqua por causa das barras de ferro, só era perigosa para o cego que se achasse defronte dela.

Vendo que não podia intimidar, corromper nem comover o porteiro, o duque de Guisa fingiu retirar-se com os companheiros; a retirada, porém, não foi longa. Na esquina da Rua de Santo António achou o duque o que procurava, isto é, uma pedra como essas que há três mil anos tomavam por armas fiax, Télamon e Diómedes; pô-la ao ombro e voltou, fazendo sinal aos companheiros que o acompanhassem. Exactamente nesse momento, o guarda- portão, que tinha visto retirarem-se os indivíduos que tomara por malfeitores, fechava a porta, sem ainda ter tido tempo de a aferrolhar. O duque de Guisa aproveitou a ocasião: verdadeira catapulta viva, atirou a pedra de encontro à porta. A fechadura voou, levando parte da parede a que estava presa. A porta abriu-se, atirando ao chão o alemão, que, com um grito terrível, deu rebate a toda a guarnição, que, a não ser assim, corria risco de ser surpreendida.

Justamente neste mesmo momento estava La Mole traduzindo com Margarida um idílio de Teócrito, e Cucunás, a pretexto de que era também grego, bebia vinho de Siracusa com Henriqueta. A conversação científica foi violentamente atalhadas.

Apagar as velas, abrir as janelas, chegar-se a elas e ver no escuro quatro homens; atirar-lhes à cabeça todos os projécteis que acharam à mão, fazer muita bulha com as espadas, que davam unicamente pelas paredes, tais foram os meios de que imediatamente lançaram mão Cocunás e La Mole. Carlos, o mais exaltado dos assaltantes, levou num ombro com uma bacia de prata; o duque de Anjou, com uma salva contendo doce de laranja e de cidrão; o duque de Guisa com um quarto de veado.

Só Henrique não apanhou com coisa nenhuma; estava fazendo perguntas em voz baixa ao guarda-portão, que o duque de Guisa amarrara à porta e que respondia com o seu eterno:

- Ich verstehe nicht.

As damas animavam os sitiados e davam-lhes projécteis, que se sucediam como chuva de pedra.

- Cos diabos! - exclamou Carlos IX, ao levar na cabeça com um tamborete que lhe enterrou o chapéu até aos olhos - abram imediatamente, quando não mando enforcar a todos quantos estiverem aí em cima!

- Meu irmão!. - disse Margarida em voz baixa a La Mole.

- O rei! - disse este a Henriqueta.

- O rei! o rei! - disse esta a Cocunás, que ia arrastando um baú para a janela, a fim de exterminar o duque de Guisa, com quem, sem o conhecer, mais particularmente se batia. - É o rei, torno a dizer-lho!

Cocunás largou o baú e olhou espantado.

- O rei?.

- Sim, o rei.

- Então, toca a retirar!

- E sem demora; La Mole e Margarida já se safaram; venha!

- Para onde?

- Venha comigo.

E Henriqueta, pegando-lhe pela mão, conduziu-o à porta secreta que dava para a casa contígua; e todos quatro, depois de fecharem a porta, safaram-se pela saída que dava para a Rua Tizon.

- Oh! oh! - disse Carlos - julgo que a praça se rende.

Esperaram ainda alguns minutos; mas não ouviram mais bulha.

- Estão talvez preparando algum estratagema - disse o duque de Guisa.

- Ou antes reconheceram a voz de meu irmão e safaram-se - disse o duque de Anjou.

- Mas, para isso, terão de passar por aqui - disse o rei.

- Isso é - tornou o duque de Anjou - se a casa não tiver duas saídas.

- Primo - disse o rei -, vá buscar outra vez a sua pedra e abra a outra porta como abriu esta.

O duque achou que era inútil recorrer a tais meios, e tendo reparado que essa porta era muito mais fraca do que a primeira, meteu-a dentro com um pontapé.

- Os archotes! os archotes! - disse o rei.

Os criados aproximaram-se. Os archotes estavam apagados; mas eles traziam todo o necessário para fazer fogo, e imediatamente os acenderam. Carlos pegou num e deu o outro ao duque de Anjou.

O duque de Guisa entrou adiante, com a espada na mão.

Henrique fechou a marcha.

Chegaram ao primeiro andar.

Na sala de jantar acharam os restos da ceia, pois fora à ceia que especialmente ministrara os projécteis. Os candelabros estavam pelo chão, os trastes da sala em completa desordem, e tudo que não era baixela de prata, feito em pedaços.

Entraram no salão. Aí não acharam mais informações do que na primeira sala acerca da identidade das personagens. Livros gregos e latinos, alguns instrumentos de música, eis o que acharam.

O quarto de dormir estava ainda mais mudo. Estava acesa uma lamparina num globo de alabastro suspenso do tecto; mas parecia que nem tinham entrado nesse quarto.

- Há segunda saída - disse o rei.

- É provável - disse o duque de Anjou.

- Mas onde será? - perguntou o duque de Guisa.

Procuraram por toda a casa mas não a acharam.

- Onde está o guarda-portão? - disse o rei.

- Amarrei-o à porta da entrada - disse o duque de Guisa.

- Interrogue-o, primo.

- Não há-de querer responder.

- Qual!. põe-se-lhe por baixo das pernas um fogozinho bem esperto - disse o rei rindo -, e há-de falar por força.

Henrique olhou com toda a atenção pela janela.

- Já não está lá - disse para o rei.

- Quem o desataria? - perguntou com estranheza o duque de Guisa.

- Com todos os diabos! - disse o rei - ainda desta vez não ficaremos sabendo nada!

- Com efeito - disse Henrique -, Vossa Majestade está vendo que nada prova que estivessem nesta casa minha mulher e a cunhada do Sr. de Guisa.

- É verdade - disse Carlos -, a Escritura no-lo diz: há três coisas que não deixam vestígios: o pássaro no ar, o peixe na água, e a mulher. Não, engano-me: e o homem.

- Assim - atalhou Henrique -, o melhor que temos a fazer.

- Sim - disse Carlos -, é irmos, eu tratar da minha contusão, de Anjou limpar-se da calda de laranja e Guisa fazer desaparecer essa gordura.

E depois saíram, sem tratar de fechar a porta.

Chegando a Rua de Santo António, perguntou o rei a de Anjou e a Guisa:

- Onde vão os senhores?

- Vamos a casa de Nantouillet, que nos espera para cear. Vossa Majestade quer vir connosco?

- Não, obrigado; vamos para o lado oposto; querem um dos meus criados de archote?

- Obrigado, meu Senhor - disse de Anjou com vivacidade.

- Bom; tem medo que o mande espiar - disse Carlos ao ouvido do rei de Navarra. E tomando este último pelo braço:

- Vem, Henriquinho - disse -, esta noite ceias comigo.

- Pois não recolhemos ao Louvre?

- Não, torno a dizer-te, teimoso duma figa! Já que te digo que venhas, vem para onde te levo. E levou Henrique para a Rua Godofredo Lasnier.

 

                     ANAGRAMA

Ao meio da Rua Godofredo Lasnier vinha dar a Rua Garnier-sur-LEau, e, na extremidade desta, estendia-se à esquerda e à direita a Rua das Barras.

Aí, dando alguns passos para a Rua da Mortellerie, erguia-se uma casinha isolada no meio dum jardim fechado por altos paredões, para o qual se entrava por uma única porta.

Carlos tirou da algibeira uma chave, e abriu a porta, que cedeu logo, pois estava fechada só com uma volta; depois, tendo mandado entrar Henrique e os criados que traziam os archotes, fechou outra vez a porta.

Só numa janela se via luz; Carlos apontou-a com o dedo a Henrique, sorrindo.

- Mas, Senhor, não entendo. - disse este.

- Pois vais entender, Henriquinho.

O rei de Navarra olhou para Carlos com espanto; a voz e o rosto do rei haviam tomado uma expressão de doçura que estava tão longe do carácter habitual da sua fisionomia, que não parecia o mesmo.

- Henriquinho - continuou o rei -, disse-te que quando saía do Louvre saía do inferno; quando aqui entro, entro no paraíso.

- Meu Senhor - disse Henrique -, muito me felicito por ver que Vossa Majestade me achou digno de o acompanhar na sua viagem ao céu.

- O caminho é estreito, mas isso mesmo serve à comparação - disse o rei, subindo por uma pequena escada.

- E qual é o anjo que guarda a entrada do Éden de Vossa Majestade?

- Vais vê-lo - respondeu Carlos IX.

E fazendo sinal a Henrique para que o acompanhasse sem fazer bulha, abriu uma porta, depois outra, e parou no limiar.

- Olha - disse Carlos.

Henrique aproximou-se, e ficou com os olhos fitos num dos mais belos quadros que tinha visto.

Era uma senhora de dezoito para dezanove anos, pouco mais ou menos, a dormir com a cabeça encostada aos pés da cama duma criança igualmente adormecida, e cujos pezinhos ela segurava com ambas as mãos, tendo-os encostados aos lábios, enquanto os seus compridos e anelados cabelos louros soltos brilhavam como fios de ouro.

Dir-se-ia um quadro de Albano representando a Virgem e o Menino Deus.

- Oh, meu Senhor! - disse o rei de Navarra - quem é aquela encantadora menina?

- O anjo do meu paraíso, Henriquinho; o único ente que me ama por mim somente.

Henrique sorriu.

- Sim, por mim só; pois amou-me antes de saber que eu era rei.

- E depois que o soube?

- Depois que o soube. - disse Carlos com um suspiro que mostrava quanto essa ensanguentada realeza lhe era por vezes pesadíssima - depois que o soube, ainda me ama; assim o julgo.

O rei aproximou-se devagarinho e depositou na face em flor da formosa senhora um beijo tão leve como o da abelha no lírio.

No entanto, ela acordou.

- Carlos! - disse ela abrindo os olhos.

- Vês? - disse o rei - chama-me Carlos, e a rainha chama-me senhor.

- Oh! - exclamou a dama - não veio só, meu rei.

- Não, minha boa Maria. Quis trazer-te outro rei, mais feliz do que eu, pois não tem coroa; porém mais desgraçado que eu, porque não tem uma Maria Touchet. A tudo dá Deus compensações.

- É o rei de Navarra? - perguntou Maria.

- Ele próprio, minha filha. Chega-te, Henriquinho.

O rei de Navarra aproximou-se. Carlos pegou-lhe na mão direita.

- Olha para esta mão, Maria: é dum bom irmão, dum leal amigo. Se não fosse esta mão. Ouve.

- O quê, Senhor?

- Se não fosse esta mão, Maria, o nosso filho ficaria hoje sem pai.

Maria deu um grito, caiu de joelhos, pegou na mão de Henrique e beijou-a.

- Muito bem, Maria, muito bem - disse Carlos.

- E que fez Vossa Majestade para lhe agradecer?

- Prestei-lhe igual serviço.

Henrique olhou para Carlos com espanto.

- Um dia saberás o que quero dizer, Henriquinho; entretanto, aproxima- te e vê. Ele chegou-se à cama em que dormia a criança.

- Oh! - disse - se este robusto menino dormisse no Louvre em vez de dormir aqui, nesta casinha da Rua das Barras, muitas coisas na actualidade, muitas talvez no futuro, se haviam de mudar.

- Meu Senhor - disse Maria -, não se ofenda Vossa Majestade, mas gosto mais de o ver dormir aqui. dorme melhor.

- Pois não perturbemos o seu sono - disse o rei -, é tão bom dormir quando se não tem sonhos!.

- Então, meu Senhor?. - disse Maria apontando com a mão para uma das portas do quarto.

- Tens razão, Maria, vamos cear.

- Meu querido Carlos, diga ao rei seu irmão que me desculpe, sim?

- De quê?

- De ter despedido os criados, meu Senhor - continuou a dama, dirigindo-se ao rei de Navarra -, pois saiba que Carlos não quer ser servido senão por mim.

- Ora essa! - disse Henrique - acho que tem muita razão.

Os dois reis entraram para a sala de jantar, enquanto a mãe, solícita e inquieta, agasalhava com

' Com efeito, este filho natural, que não era outro senão o famoso duque de Angoulême, suprimia, se fosse legítimo, Henrique III, Henrique IV Luís XIII e Luís XIV uma coberta mais quente o seu Carlinhos, que, graças ao bom sono de criança, tão invejado pelo pai, não tinha acordado.

Maria veio ter com eles.

- Só dois talheres? - disse o rei.

- Consintam Vossas Majestades - disse Maria - que eu os sirva.

- Olha, Henriquinho - disse Carlos -, vê o mal que me vais causar.

- Como assim, meu Senhor?

- Pois não ouves?.

- Desculpe-me, Carlos, desculpe-me.

- Pois sim, desculpo-te; mas senta-te aqui ao pé de mim, entre nós ambos.

- Obedeço - disse Maria.

Trouxe um talher, sentou-se entre os dois reis e serviu-os.

- Não achas, Henriquinho, que é bem bom - disse Carlos - ter um cantinho no mundo em que nos atrevemos a beber e a comer, sem termos necessidade de que alguém prove antes o nosso vinho e a nossa comida?

- Acredite, meu Senhor, que aprecio mais do que ninguém a felicidade de Vossa Majestade.

- E por isso diz-lhe e repete-lhe, meu Henriquinho, que, para continuarmos sempre assim felizes, cumpre que ela não se envolva em política, que não vá à corte e, mais que tudo, cumpre que não seja conhecida por minha mãe.

- Com efeito, a rainha Catarina ama Vossa Majestade com tanto extremo, que talvez ficasse com ciúmes de qualquer outro amor - respondeu Henrique, achando este subterfúgio para evitar a perigosa confiança do rei.

- Maria - disse o rei -, apresento-te um dos homens mais sagazes e mais espirituosos que conheço. Na corte (não é pouco o que te vou dizer) traz a todos iludidos; só eu consegui penetrar-lhe, não no coração, mas no espírito.

- Meu Senhor - disse Henrique -, sinto que, exagerando Vossa Majestade assim o meu espírito, duvide do meu coração.

- Não exagero nada, Henrique - disse o rei. - Um dia virá em que hão-de conhecer-te. Depois, voltando-se para Maria:

- Faz sobretudo anagramas que é uma maravilha. Diz-lhe que faça um do teu nome, e afirmo-te que o fará.

- Ora! que poderá ele achar no nome duma pobre mulher como eu? Que delicado pensamento poderá sair do nome de Maria Touchet?

- O anagrama deste nome é facílimo, e não há grande merecimento em tê-lo achado.

- Ah! ah! pois já está feito? - disse Carlos. - Estás vendo?.

Henrique tirou da algibeira a carteira, rasgou-lhe uma página, e por baixo do nome de Maria Touchet escreveu: Je charme tout - (encanto tudo).

Depois deu a folha à jovem.

- Realmente - exclamou ela -, parece impossível!

- Então que achou ele? - perguntou Carlos.

- Meu Senhor, não me atrevo a repeti-lo.

- No nome de Maria Touchet, há, letra por letra, fazendo do I um J, como é uso, a frase

-Je charme tout.

- Com efeito, letra por letra. Quero que seja a tua divisa, ouves, Maria? Nunca a houve mais bem merecida. Obrigado, Henriquinho. Maria, hei-de dar-ta escrita em brilhantes.

A ceia concluiu-se; davam duas horas na Igreja de Nossa Senhora.

- Agora - disse Carlos -, em paga do meu anagrama, vai dar-lhe uma poltrona em que ele possa dormir até amanhecer; mas olha, distante de nós, pois o maldito ronca que mete medo.

Depois, se acordares antes de mim, desperta-me, pois às seis horas havemos de estar na Bastilha. Boa noite, Henriquinho; arranja-te como puderes. Mas - acrescentou, chegando-se para o rei de Navarra e pondo-lhe a mão no ombro - por tua vida, Henrique, ouve bem! não saias daqui sem mim, sobretudo para voltares ao Louvre.

Henrique havia suspeitado tanta coisa no que não compreendera, que não podia preterir uma tal recomendação.

Carlos IX entrou no quarto, e Henrique, o montanhês afeito a tudo, acomodou-se numa poltrona, e em breve justificou a precaução tomada pelo cunhado de o pôr bem distante de si.

Ao raiar do dia seguinte foi acordado por Carlos; como tinha ficado vestido, não perdeu tempo ao toucador; o rei estava feliz e risonho como nunca estivera no Louvre. As horas que passava aquela casinha eram as suas horas de sol.

Ambos passaram outra vez pelo quarto de dormir. A dama estava na cama, o menino no berço; ambos dormiam com o sorriso nos lábios.

Carlos olhou para eles um momento com infinda ternura; depois, voltando-se para o rei de Navarra, disse-lhe:

- Henriquinho, se algum dia vieres a saber que serviço te prestei esta noite, e se me acontecer alguma desgraça, lembra-te desta criança que ali está dormindo no seu berço.

Depois, beijando-os ambos na testa, sem dar a Henrique tempo de lhe fazer perguntas:

- Até mais ver, meus anjos - disse.

E saiu.

Henrique acompanhou-o pensativo.

Esperavam-nos na Bastilha cavalos seguros pelos fidalgos a quem Carlos IX havia dado ordem de ali estarem; Carlos fez sinal a Henrique que montasse a cavalo; saltou na sela, e saiu pelo Jardim de Arbalète, tomando pelos Boulevards exteriores.

- Onde vamos? - perguntou Henrique.

- Vamos - respondeu Carlos - ver se o duque de Anjou voltou só para a Sr. de Condé, ou se tem no coração tanta ambição como amor, do que eu duvido muito.

Henrique nada entendeu da explicação, e acompanhou Carlos sem dizer mais nada. Ao chegar aos pauis, e como que abrigado pelas estacadas, descobria-se tudo quanto então se chamava Bairro de S. Lourenço. Carlos mostrou a Henrique, por entre a névoa da manhã, homens envoltos em grandes capotes e cobertos com barretes de peles, que vinham a cavalo, precedendo uma carroça carregada com muito peso. À medida que avançavam, esses homens tomavam uma forma mais distinta, e podia-se ver, a cavalo como eles e conversando com o que parecia chefe, outro homem, de largo manto pardo e com a cabeça coberta com chapéu à francesa.

- Ah! ah! - disse Carlos sorrindo - bem o presumia.

- Ah, Senhor! não me engano: esse cavaleiro de capote pardo é o duque de Anjou.

- Ele mesmo - disse Carlos IX -, afasta-te um pouco para que nos não veja.

- Mas - perguntou Henrique -, os sujeitos de mantos pardos e barretes de peles quem são? E nesse carro que trazem?

- Os sujeitos - disse Carlos - são os embaixadores polacos, e no carro trazem uma coroa. E agora - continuou ele, metendo o seu cavalo a galope, e tomando o caminho da Porta do Templo - retiremo-nos, Henrique, pois já vi quanto queria ver.

 

           A VOLTA PARA O LOUVRE

Quando Catarina julgou que tudo estava acabado no quarto do rei de Navarra, que os mortos tinham sido levados, que Maurevel fora transportado para sua casa e que se haviam lavado os tapetes, despediu as criadas, pois era cerca da meia-noite, e procurou dormir. Mas o abalo havia sido tão forte, e tamanha a decepção, que o não pôde fazer. Esse aborrecido Henrique, escapando continuamente às suas ciladas, de ordinário mortais, parecia protegido por algum poder invisível, que Catarina persistia em chamar acaso, bem que no íntimo do seu coração uma voz lhe dissesse que o verdadeiro nome desse poder era o destino. A lembrança de que a notícia desta nova tentativa, espalhando-se dentro e fora do Louvre, ia dar a Henrique e aos huguenotes confiança ainda maior no futuro, desesperava-a; e naquele momento, se esse acaso, contra o qual lutava tão infaustamente, lhe entregasse o seu inimigo, decerto que com o estilete florentino que trazia à cinta teria zombado dessa fatalidade tão favorável ao rei de Navarra.

As horas da noite, essas horas tão vagarosas para quem espera ou para quem perde o sono, soaram, pois, umas atrás das outras, sem que Catarina houvesse podido fechar os olhos. Um mundo inteiro de projectos novos desenrolou-se, durante essas horas nocturnas, no seu espírito cheio de visões. Enfim, ao raiar do dia, levantou-se, vestiu-se sozinha e dirigiu-se ao aposento de Carlos IX.

Os guardas, acostumados a vê-la entrar na câmara do rei a toda a hora do dia e da noite, deixaram-na passar; atravessou, pois, a antecâmara e alcançou a sala de armas. Aí, porém, achou acordada a ama de Carlos.

- Meu filho? - perguntou a rainha.

- Minha Senhora, Sua Majestade proibiu que entrassem no seu quarto antes das oito horas, e ainda não deram.

- Essa proibição não se entende comigo, ama.

- Entende-se com todos, minha Senhora.

Catarina sorriu.

- Sim, bem sei - tornou a ama -, bem sei que ninguém aqui tem direito a pôr obstáculos a Vossa Majestade; suplicar-lhe-ei, pois, que escute os rogos duma pobre mulher e não entre.

- Ama, quero falar com meu filho.

- Minha Senhora, não abrirei a porta sem ordem formal de Vossa Majestade.

- Pois abra, ama; quero e mando - disse a rainha.

Ouvindo essa voz, mais respeitada, e especialmente mais temida no Louvre do que a do próprio Carlos, a ama apresentou a chave a Catarina; porém Catarina não precisava dela. Tirou uma chave da algibeira, abriu a fechadura da porta da câmara do filho e, a uma pequena pressão, a porta cedeu.

No quarto não havia ninguém; a cama de Carlos estava intacta, e os dois galgos, deitados sobre a pele de urso estendida aos pés da cama, levantaram-se e foram lamber as mãos de marfim de Catarina.

Ah! - disse a rainha carregando o sobrolho - saiu!. Esperarei por ele. E foi sentar-se, pensativa e sombriamente reconcentrada, na janela que dava para o pátio do Louvre e da qual se descobria a grade principal.

Havia duas horas que aí estava, imóvel e pálida como uma estátua de mármore, quando viu enfim recolher ao Louvre um rancho de cavaleiros, a cuja frente reconheceu Carlos e Henrique de Navarra.

Então compreendeu tudo. Em vez de com ela discutir sobre a prisão do cunhado, Carlos tinha-o levado consigo, e assim o salvara.

Cego! cego! cego! murmurou ela; e esperou.

Daí a um momento ouviram-se passos na câmara contígua, que era a sala de armas.

- Mas Senhor - dizia Henrique -, agora, que nos achamos no Louvre, diga-me porque me fez sair daqui e que serviço foi que me prestou.

- Não, não, Henriquinho - respondeu Carlos, sorrindo -, um dia talvez o saibas; mas por ora é um mistério. Fica somente sabendo, por agora, que vou muito provavelmente ter por tua causa uma renhida discussão com minha mãe.

Acabando de dizer essas palavras, Carlos abriu o reposteiro e achou-se frente a frente com Catarina.

Por detrás dele, e por cima do ombro, aparecia a cabeça pálida e inquieta do Bearnês.

- Ah! está aqui, minha Senhora? - disse Carlos IX carregando o sobrolho.

- Estou, meu filho - disse Catarina -, tenho que lhe falar.

- A mim?

- Sim, mas a sós.

- Vamos lá - disse Carlos, voltando-se para o cunhado -, já que não havia meio de evitar a entrevista, quanto mais depressa for, melhor.

- Eu já o deixo - disse Henrique.

- Pois sim deixa-nos - respondeu Carlos - e, já que és católico, Henriquinho, vai ouvir missa por minha intenção; eu fico ouvindo o sermão.

Henrique cumprimentou e saiu.

Carlos IX antecipou-se ao que a mãe lhe poderia dizer.

- Então, minha Senhora - disse, procurando meter à balha o ocorrido -, espera-me para ralhar comigo, não é assim? Irreverentemente, fiz que falhasse o seu projectozinho! Ah! com todos os diabos! eu não podia deixar que prendessem e metessem na Bastilha o homem que acabava de me salvar a vida. Não queria também pôr-me em luta com Vossa Majestade, pois sou bom filho; e demais - acrescentou baixinho -, Deus castiga os filhos que têm questões com as mães: como prova, aí temos meu irmão Francisco II. Perdoe-me pois francamente, e confesse depois que a peça foi bem pregada.

- Senhor - disse Catarina -, Vossa Majestade está enganado, não se trata de peça.

- Pois sim, pois sim; mas mal há-de reconhecer isso comigo, ou mil raios me partam.

- Senhor, Vossa Majestade fez de propósito falhar um plano que nos devia conduzir a uma grande descoberta.

- Bom! um plano. pois é coisa de grande embaraço?. Em vez dele formará vinte, e nesses prometo ajudá-la.

- Agora, ainda que me ajudasse, seria tarde, pois ele já está prevenido, e portanto acautelado.

- Vamos, minha mãe - disse o rei -, acabemos com isto. Que tem a senhora contra Henriquinho?

- Tenho que está conspirando.

- Bem compreendo, é a sua eterna acusação; mas, muito ou pouco, não conspiram todos nesta encantadora residência real chamada Louvre?

- Mas ele conspira mais do que ninguém, e é tanto mais perigoso quanto ninguém o percebe.

- Que manhoso! - disse Carlos - que Lorenzino!.

- Ouça - disse Catarina, anuviando-se ao ouvir esse nome, que lhe lembrava uma das mais sanguinolentas catástrofes da história florentina -, ouça: há um meio de me provar que me engano.

- Qual é, minha mãe?

- Pergunte a Henrique quem estava esta noite no quarto dele.

- No quarto dele. esta noite?

- Sim; e se o disser.

- E depois?

- Se o disser, estou pronta a confessar que me enganava.

- Mas, se fosse alguma mulher. não podemos exigir.

- Mulher?

- Sim, mulher.

- Mulher que matou dois dos seus guardas e que feriu, talvez mortalmente, o Sr. de Maurevel.

- Oh! oh! oh! - disse o rei - a coisa vai sendo séria. Houve sangue derramado?

- Três homens ficaram estendidos no chão.

- E quem os pôs nesse estado?.

- Saiu são e salvo.

- Por Gog e Magog! era um valente! - exclamou Carlos. - E tem razão, minha mãe, quero conhecê-lo.

- Pois desde já lhe digo que não o há-de conhecer, pelo menos por Henrique.

- Mas por sua intervenção, minha mãe. Esse homem não havia de fugir assim sem deixar algum vestígio, sem que reparassem em alguma parte do seu trajo.

- Apenas se notou um, na capa cor de cereja muito elegante com que estava coberto.

- Ah! ah! uma capa cor de cereja! Só conheço uma na corte, que se tem notado por dar muito nas vistas.

- Justamente - disse Catarina.

- E então? - perguntou Carlos.

- Então - disse Catarina -, espere-me aqui, que eu vou ver se as minhas ordens foram executadas.

Catarina saiu e Carlos ficou só, passeando pela câmara, distraído e assobiando uma ária de caça, com uma das mãos no gibão e deixando caída a outra, que os galgos vinham lamber de cada vez que parava.

Quanto a Henrique, tinha saído do aposento do cunhado muito inquieto e, em vez de ir pelo corredor ordinário, tinha tomado a escadinha particular de que já falámos mais duma vez, e que levava ao segundo andar.

Apenas, porém, subiu quatro degraus, à primeira volta viu uma sombra. Parou, levando a mão ao punhal; logo reconheceu que era uma mulher, e uma voz encantadora, que lhe era familiar, disse-lhe agarrando-lhe na mão:

- Louvado seja Deus, Senhor! ei-lo são e salvo!. Deus sem dúvida acolheu as minhas súplicas; tive tanto susto por Vossa Majestade!.

- Então que houve? - disse Henrique.

- Sabê-lo-á quando se recolher ao seu quarto. Não lhe dê cuidado a ausência de Orthon, tomei conta dele.

E a dama desceu apressada, com Henrique, como se fosse por acaso que o houvesse encontrado na escada.

Isto é singular! - disse consigo Henrique. - Então que houve? que sucedeu a Orthon? Esta pergunta não podia infelizmente ser ouvida pela Sr. de Sauve, pois ela já estava longe. No alto da escada viu Henrique aparecer de súbito outra sombra; mas essa era a dum homem.

- Silêncio! - disse a sombra.

- Ah, ah! é Vossa Alteza, Francisco?

- Não me chame pelo meu nome.

- Então que houve?

- Recolha-se, e sabê-lo-á; depois, meta-se pelo corredor, olhe bem para todos os lados que o não espreitem, e entre no meu quarto, cuja porta estará entreaberta.

E desapareceu também pela escada, como esses fantasmas que nos teatros se somem por alçapões.

Com a breca! - exclamou o Bearnês - o enigma continua; mas já que a explicação está no meu quarto, vamos depressa.

Entretanto, não foi sem comoção que Henrique prosseguiu no seu caminho; ele tinha a sensibilidade, essa superstição da mocidade. Tudo se reflectia com clareza nessa alma de superfície lisa como a dum espelho, e tudo quanto tinha ouvido lhe pressagiava uma desgraça.

Chegou à porta do quarto e escutou; não ouviu bulha alguma. Além de que, como Carlota lhe havia dito que se recolhesse, era evidente que nada havia que recear recolhendo-se. I. ançou um olhar rápido pela antecâmara; estava ela solitária; nada porém ainda lhe indicava o que tinha havido.

Com efeito - disse - Orthon não está aqui.

Entrou no outro quarto. Aí tudo lhe foi explicado.

Apesar da água com que fora inundado, manchas avermelhadas cobriam o soalho; estava uma mesa quebrada, os cortinados da cama golpeados como por espadas, um espelho de Veneza havia sido despedaçado por uma bala, e mãos ensanguentadas tinham-se encostado à parede deixando nela o seu terrível sinal; tudo anunciava que esta câmara, então muda, tinha sido teatro duma luta mortal.

Henrique foi colhendo com os olhos espavoridos todos esses fúnebres sinais; passou a mão pela testa, fria do suor, e disse a meia voz:

Ah! compreendo agora o serviço que o rei me prestou. quiseram matar-me. e. Mas de Mouy! que fizeram de de Mouy?. Os miseráveis mataram-no, decerto!

E tão pressuroso de saber notícias quanto estava o duque de Alençon de lhas dar, Henrique, depois de lançar um derradeiro e triste olhar para os objectos que o rodeavam, saiu do quarto, alcançou o corredor, examinou se estava bem solitário e, empurrando a porta mal cerrada, que depois fechou com todo o cuidado, precipitou-se no quarto do duque de Alençon.

O duque estava-o esperando na primeira câmara.

Pegou-lhe pela mão e levou-o, pondo-lhe um dedo na boca, para um gabinete do torreão, completamente solitário, e por isso livre de toda e qualquer espionagem.

- Ah, meu irmão! - disse-lhe - que horrível noite!.

- Então que houve? - perguntou Henrique.

- Quiseram prendê-lo.

- A mim?

- Sim senhor.

- E porquê?

- Não sei; onde estava?

- O rei levou-me ontem à noite a passear pela cidade.

- Então é que o sabia. Mas, se não estava no seu quarto, quem era que lá estava?

- Pois estava alguém no meu quarto? - perguntou Henrique como se o ignorasse.

- Sim, estava um homem. Quando ouvi bulha, acudi, mas já era tarde.

- E o homem foi preso? - perguntou Henrique com ansiedade.

- Não; fugiu depois de ter ferido perigosamente Maurevel e morto dois guardas.

- Ah! valente de Mouy! - exclamou Henrique.

- Pois era de Mouy? - disse com vivacidade de Alençon.

Henrique viu que tinha sido indiscreto.

- Presumo que sim - disse - pois tinha-o emprazado para entender-me com ele acerca da fuga de Vossa Alteza, e dizer-lhe que tinha cedido todos os meus direitos ao trono de Navarra.

- Então, se for descoberto - disse de Alençon empalidecendo -, estamos perdidos.

- Decerto, pois Maurevel há-de falar.

- Maurevel levou uma cutilada na garganta; falei com o cirurgião que o trata. Segundo ele me disse, levará mais de oito dias sem que possa dar uma palavra.

- Oito dias! É mais do que o tempo necessário para de Mouy se pôr a seguro.

- Além de que - disse de Alençon -, pode bem ser outro, e não de Mouy.

- Pois acha? - disse Henrique.

- Acho: o homem desapareceu tão depressa, que só lhe viram a capa cor de cereja.

- Com efeito - disse Henrique -, uma capa dessa cor mais assenta em qualquer gamenho do que num soldado. Ninguém suspeitará de de Mouy com semelhante capa.

- Não; e se alguém suspeitasse - disse de Alençon -, seria antes.

E não concluiu.

- Seria antes do Sr. de La Mole - disse Henrique.

- Certamente, pois eu próprio, que vi fugir o sujeito, duvidei.

- Vossa Alteza duvidou? Com efeito, bem podia ser o Sr. de La Mole.

- Ele não sabe nada? - perguntou de Alençon.

- Nada absolutamente; ao menos, nada que tenha alguma importância.

- Pois então, meu irmão - disse o duque -, estou convencidíssimo de que era ele.

- Mau! - disse Henrique - se for ele, vai o caso causar muito desgosto à rainha, que se interessa muito por ele.

- Interessa-se muito? - perguntou de Alençon cheio de confusão.

- Sem dúvida. Pois não se lembra, Francisco, que foi ela quem lhe recomendou?

- Lembra-me - disse o duque com voz abafada -, e por isso quisera ser-lhe agradável; e a prova é que, para que o não comprometesse a capa vermelha, fui buscar-lha ao quarto e escondi-lha.

- Oh! oh! - disse Henrique - isso é que é o cúmulo da prudência; e agora já não aposto: juro que era ele.

- Até perante a justiça?. - perguntou Francisco.

- Por certo que sim; ter-me-ia vindo trazer algum recado da parte de Margarida.

- Se eu tivesse a certeza de ser apoiado pelo testemunho do mano - disse de Alençon -, não teria dúvida em o acusar.

- Se o acusar - respondeu Henrique -, bem vê, mano, que não o hei-de desmentir.

- Mas a rainha. - disse de Alençon.

- Ah! sim, a rainha.

- É necessário saber o que ela fará.

- Eu me encarrego da comissão.

- Olhe, mano, ela faria mal em nos desmentir, pois aí está uma fulminante reputação de valentia dada a esse mancebo, sem grande dispêndio seu, porque a compra a crédito; mas, pode bem ser que venha a pagar capital e juros.

- Ora, que se lhe há-de fazer?. - disse Henrique. - Neste mundo nada se alcança às mãos lavadas.

E saudando de Alençon com a mão e com um sorriso, deitou a cabeça fora da porta que dava para o corredor, e vendo que ninguém estava espiando, saiu rapidamente e desapareceu pela escada que dava para os aposentos de Margarida.

Pela sua parte, a rainha de Navarra não estava mais sossegada do que o marido; a expedição nocturna contra ela e contra a duquesa de Nevers, dirigida pelo rei, pelos duques de Anjou e de Guisa, e por Henrique, a quem havia reconhecido, inquietava-a muito. Sem dúvida, não havia prova alguma que a pudesse comprometer; o guarda-portão, desatado da grade por La Mole e Cocunás, tinha afirmado que nada dissera. Mas quatro grandes fidalgos, da estatura desses a quem La Mole e Cocunás tinham resistido, não se haviam desviado do seu caminho ao acaso e sem saber por que o faziam. Margarida tinha pois voltado para o paço ao alvorecer, depois de haver passado o resto da noite em casa da duquesa de Nevers; tinha-se imediatamente deitado, mas não podia dormir, e à menor bulha estremecia.

Foi no auge dessa ansiedade que ouviu bater à porta secreta: depois de ter mandado por Gillonne ver quem era, ordenou que mandasse entrar.

Henrique parou à porta; nada anunciava nele o marido ofendido; pousava-lhe nos lábios o seu costumado sorriso, e nenhum dos músculos do rosto revelava os terríveis abalos por que acabava de passar.

Mostrou interrogar com os olhos Margarida para saber se Lhe consentia ficar a sós com ela. Margarida compreendeu o olhar do marido, e fez sinal a Gillonne que se retirasse. - Minha Senhora - disse então Henrique -, sei quanto é afeiçoada aos seus amigos, e muito receio trazer-lhe uma triste notícia.

- Que notícia é essa, Senhor? - perguntou Margarida.

- Um dos nossos criados mais queridos acha-se neste momento muito comprometido.

- Qual deles?

- O nosso querido conde de La Mole.

- O conde de La Mole comprometido? e porquê?

- Por causa do ocorrido esta noite.

Apesar do poder que Margarida tinha sobre si mesma, não pôde deixar de corar. Por fim, fazendo um esforço, disse:

- Que foi então que sucedeu?

- Como! - disse Henrique - pois não ouviu a bulha que esta noite houve no Louvre?

- Não senhor.

- Oh! felicito-a, minha Senhora - disse Henrique com admirável ingenuidade. - Prova isso que tem muito bom sono.

- Pois então que houve?

- Houve que a nossa boa mãe mandou o Sr. de Maurevel com seis guardas para me prenderem.

- Ao senhor?

- Sim, a mim.

- E por que motivo?

- Oh! quem pode adivinhar os motivos dum espirito tão profundo como o de nossa mãe?. Respeito-os, mas não os conheço.

- E o senhor não estava nos seus aposentos?

- Não estava, por mero acaso. A senhora adivinhou, não estava nos meus aposentos. Ontem à noite, o rei convidou-me para o acompanhar num passeio pela cidade. Mas se eu não estava, achava-se lá outra pessoa.

- E quem era?

- Parece que era o conde de La Mole.

- O conde de La Mole? - disse Margarida atónita.

- Mas como é valente esse provençalzinho!. Faça ideia que feriu Maurevel e matou dois guardas!.

- Feriu Maurevel, matou dois guardas? não pode ser!

- Como! põe em dúvida a sua coragem?

- Não; mas digo que o Sr. de La Mole não podia estar nos seus aposentos.

- Porque não podia?

- Porque. porque. - tornou Margarida cheia de confusão - porque estava em outra parte.

- Ah! se puder prová-lo - tornou Henrique -, é outro caso: dirá onde esteve e ficará salvo.

- Onde ele esteve! - disse com vivacidade Margarida.

- Sem dúvida. não se passará o dia sem que ele seja preso e interrogado. Infelizmente, como há provas.

- Provas? quais?

- O homem que opôs essa resistência desesperada tinha uma capa cor de cereja.

- Não é só o Sr. de La Mole que tem a capa dessa cor. outra pessoa conheço eu que também a tem.

- Sem dúvida, e eu também. Mas eis aqui o que acontecerá. Se não era o Sr. de La Mole que estava nos meus aposentos, era esse outro sujeito de capa cor de cereja: Ora esse homem... sabe quem é.

- Meu Deus!

- Eis o perigo: a senhora o percebe como eu, e essa exclamação mo prova. Conversemos pois agora como duas pessoas que falam da coisa mais apetecida que há: de um trono; do bem mais precioso: a vida. Preso de Mouy, estamos perdidos.

- Sim, compreendo isso.

- Enquanto que o Sr. de La Mole a ninguém compromete, a menos que o não julgue capaz de inventar alguma história de dizer, por exemplo, que passou a noite em companhia destas ou daquelas senhoras.

- Senhor - disse Margarida -, se é esse o seu único receio, pode ficar certo de que ele nada dirá...

- Como! - disse Henrique - calar-se-ia, quando mesmo do seu silêncio lhe resultasse a morte!

- Há-de calar-se.

- Sabe-o decerto?

- Afianço-o.

- Então tudo vai optimamente - disse Henrique levantando-se.

- Já se retira, Senhor? - perguntou com vivacidade Margarida.

- Sim, retiro-me; pois já lhe disse tudo quanto tinha a dizer.

- E vai ocupar-se.

- Em descobrir meios e modos de sairmos todos da dificuldade em que nos colocou esse homem de capa cor de cereja.

- Oh! meu Deus! meu Deus! pobre mancebo!. - exclamou a rainha, angustiada e torcendo os braços.

- Na verdade - disse Henrique retirando-se -, é um gentil criado, o querido conde de La Mole!

 

               INTERROGATÓRIOS

Carlos tinha entrado no paço risonho e mofador, mas depois duma conversação de dez minutos com a mãe ter-se-ia dito que ela lhe havia cedido a sua palidez e a sua cólera, enquanto para si tomara o bom humor e a alegria do filho.

- O Sr. de La Mole - dizia Carlos -, o Sr. de La Mole! Cumpre-me mandar chamar Henrique e o duque de Alençon; Henrique, porque esse mancebo era huguenote; o duque de Alençon, porque o tem ao seu serviço.

- Chame-os, se quiser, meu filho, mas nada ficará sabendo. Henrique e Francisco (até me causa horror pensá-lo) estão mais ligados do que parece. Interrogá-los, é dar-lhes suspeitas; melhor seria a experiência lenta e segura de alguns dias. Se deixar respirar os culpados, meu filho, se os deixar persuadir que escaparam à sua vigilância, acoroçoados, triunfantes, hão-de dar-nos melhor ocasião de os descobrir e castigar. Então saberemos tudo.

Carlos passeava indeciso, devorando a sua cólera com a mão convulsa, o coração mordido pela suspeita.

- Não, não! - disse por fim - não quero esperar. Não sabe o que é esperar, estando, como estou, cercado de fantasmas. Além disso, de dia para dia mais insolentes se tornam esses meninos; esta mesma noite não se atreveram dois deles a resistir-nos, a rebelarem-se contra nós!. Se o Sr. de La Mole for inocente, bem; mas desejo muito saber onde estava esta noite o Sr. de la Mole, enquanto matavam os meus guardas no Louvre e me insultavam a mim próprio na Rua do Sino Rachado. Vão, pois, chamar o Senhor Duque de Alençon, e depois Henrique. Quero interrogá-los em separado; a senhora pode ficar.

Catarina sentou-se. Para um espírito firme e inflexível como o seu, qualquer incidente podia, fazendo-o curvar com a sua mão poderosa, levá- la ao seu fim, embora parecesse desviá-la. De qualquer choque resulta, ou ruído, ou faísca. O ruído guia, a faísca alumia.

O duque de Alençon entrou; a sua conversação com Henrique havia-o preparado para a entrevista; estava, pois, bastante sossegado.

As suas respostas foram das mais positivas. Prevenido pela mãe que ficasse no paço, ignorava completamente os acontecimentos dessa noite. Somente, como o seu aposento dava para o mesmo corredor que o do rei da Navarra, tinha julgado ouvir, primeiro uma bulha, como a duma porta que arrombam, depois, imprecações e tiros. Então apenas se arriscou a abrir um pouco a da sua câmara, e vira fugir um homem de capa vermelha.

Carlos e a mãe olharam um para o outro.

- De capa vermelha?. - disse o rei.

- Sim senhor, de capa vermelha - tornou de Alençon.

- E essa capa não o fez suspeitar quem poderia ser?

De Alençon reuniu toda a sua força para mentir com o modo mais natural.

- Devo confessar a Vossa Majestade que, à primeira vista, julguei que era a capa dum dos meus fidalgos.

- E como se chama esse fidalgo?

- O Sr. de La Mole.

- Porque não estava o Sr. de La Mole junto de meu irmão, como determinava o seu serviço?

- Eu tinha-o dispensado - disse o duque.

- Está bem; pode ir - disse Carlos.

O duque de Alençon dirigiu-se para a porta por onde havia entrado.

- Por aí não - disse Carlos -, por aqui.

E indicou-lhe a que dava para o quarto da ama.

Carlos não queria que se encontrassem Henrique e Francisco; ignorava que já tivessem estado juntos um momento, e que havia bastado esse momento para que os dois cunhados se combinassem.

Após de Alençon, a um sinal de Carlos, apareceu Henrique.

Não esperou este que Carlos o interrogasse.

- Senhor - disse ele -, Vossa Majestade fez bem em me mandar chamar, pois eu ia descer para pedir justiça.

Carlos franziu a testa.

- Sim, justiça - disse Henrique. - Começo por agradecer a Vossa Majestade o haver-me levado ontem à noite consigo; pois agora sei que assim me salvou a vida. Mas que é que eu fiz para que tentassem assassinar-me?

- Não era assassinar - disse com vivacidade Catarina -, era prender que se queria.

- Pois seja; que crime cometi eu para ser preso? Se sou culpado, ainda o sou esta manhã tanto como ontem à noite. Diga-me Vossa Majestade, qual é o meu crime?

Carlos olhou para a mãe sem saber o que havia de responder.

- Meu filho - disse Catarina -, consta que o senhor se dá com gente suspeita.

- E esses suspeitos comprometem-me, não é isso, minha Senhora?

- É isso, Henrique.

- Pois digam-me quem são esses suspeitos, digam-me os seus nomes, acareiem-me com eles!

- Com efeito - disse Carlos -, Henriquinho tem direito de pedir uma explicação.

- E peço-a! - tornou Henrique, que, sentindo a superioridade da sua posição, queria aproveitá-la - peço-a ao meu bom irmão Carlos, à minha boa mãe Catarina. Depois do meu casamento com Margarida não me tenho havido como bom esposo? perguntem-no a Margarida; como bom católico? perguntem-no ao meu confessor; como bom parente? que o digam quantos assistiram à caçada de ontem.

- Isso é verdade, Henriquinho; mas que queres? dizem que conspiras.

- Contra quem?

- Contra mim.

- Senhor, se eu tivesse conspirado contra Vossa Majestade, bastava-me que deixasse correr os acontecimentos, quando o seu cavalo, com a perna quebrada, não se podia levantar, quando o javali furioso se voltava contra Vossa Majestade.

- Oh! com todos os demónios, minha mãe, olhe que ele tem razão.

- Mas enfim, quem estava no seu quarto esta noite?

- Minha Senhora - disse Henrique -, neste tempo, em que poucos se animam a responder por si, não serei eu quem responda pelos outros. Saí do meu aposento às sete horas da tarde, e às dez meu mano Carlos levou-me consigo; toda a noite estive com ele. Não podia, pois, estar ao mesmo tempo com Sua Majestade e saber o que se passava nos meus aposentos.

- Mas - disse Catarina - não é menos positivo que alguém da sua casa matou dois guardas de Sua Majestade e feriu o Sr. de Maurevel.

- Da minha casa? - disse Henrique. - Quem era esse homem, minha Senhora? Como se chama?

- Todos acusam o Sr. de La Mole.

- O Sr. de La Mole não é da minha casa, minha Senhora; o Sr. de La Mole é da casa do Sr. de Alençon, a quem foi recomendado por sua filha.

- Mas enfim - disse Carlos -, era o Sr. de La Mole que estava no seu quarto, Henriquinho?

- Como quer Vossa Majestade que eu saiba? Não digo que sim, nem que não. O Sr. de La Mole é um cavalheiro muito dedicado à rainha de Navarra, e que me traz muitas vezes mensagens

de Margarida, a quem é grato por o ter recomendado ao Sr. de Alençon, ou do próprio Senhor Duque. Não posso dizer que não fosse o Sr. de La Mole...

- Era ele - disse Catarina -, reconheceram-lhe a capa vermelha.

- Pois o Sr. de La Mole traz capa vermelha?

- Traz.

- E o homem que tratou do modo que me disse os meus guardas e o Sr. de Maurevel...

trazia capa vermelha? - perguntou Henrique.

- Justamente - disse Carlos.

- Nada tenho que dizer - tornou o Bearnês. - Mas parece-me que, neste caso, em vez de me mandarem chamar a mim, que não estava no paço, era o Sr. de La Mole quem deveria ter sido

chamado, visto ser ele que estava nos meus aposentos, como dizem. Somente - disse Henrique

- devo observar uma coisa a Vossa Majestade...

- Qual?

- Se fosse eu quem, vendo uma ordem assinada pelo meu rei, houvesse resistido, em vez de obedecer, seria culpado e mereceria todos os castigos; mas não fui eu, foi um desconhecido, contra quem não era dirigida essa ordem; quiseram prendê-lo injustamente; defendeu-se, até mesmo defendeu-se com algum excesso; mas estava no direito de o fazer.

- Entretanto... - disse Catarina.

- Minha Senhora, a ordem dizia que me prendessem?

- Dizia - disse Catarina -, foi Sua Majestade que a assinou.

- Declarava mais que prendessem, caso não me achassem, a quem quer que estivesse no meu quarto?

- Isso não - disse Catarina.

- Pois então - tornou Henrique -, a menos que se me prove que conspiro, e que o ho    mem que estava no meu quarto conspira comigo, esse homem é inocente.

Depois, voltando-se para Carlos IX:

- Senhor - continuou Henrique -, eu não saio do Louvre; até estou pronto a apresentar-me, recebendo uma simples ordem verbal de Vossa Majestade, em qualquer prisão do Estado que Vossa Majestade houver por bem indicar-me. Enquanto, porém, não se apresentar a prova do contrário, tenho jus de dizer-me e dir-me-ei fidelissímo súbdito, servidor e irmão de Vossa Majestade.

E com uma dignidade que até então nunca mostrara, Henrique inclinou-se e saiu.

- Bravo, Henriquinho! - disse Carlos quando viu desaparecer o rei de Navarra.

- Bravo, porque nos venceu? - disse Catarina.

-     - E porque o não hei-de eu aplaudir? Quando juntos esgrimimos, e ele me toca, não digo também bravo?... Minha mãe, faz mal em desprezar este mancebo.

- Meu filho - disse Catarina, apertando a mão de Carlos IX -, eu não o desprezo, temo-o.

- Pois faz mal, minha mãe. Henriquinho é meu amigo; e, como ele disse, se conspirasse contra mim, bastava-lhe que deixasse agir o javali.

- Pois sim - disse a mãe -, para que o duque de Anjou, seu inimigo pessoal, fosse rei de França.

- Minha mãe, que tenho eu que ver com os motivos pelos quais Henrique me salvou a vida! E, com todos os milhões de diabos! não quero que o moloestem. Quanto a esse Sr. de La Mole, vou entender-me com o duque de Alençon, a quem ele pertence.

Era uma maneira de Carlos IX despedir a mãe. Ela retirou-se, procurando dar certa fixidade às suas errantes suspeitas; por sua pouca importância, o Sr. de La Mole não era suficiente para o que ela pretendia.

Ao entrar na sua câmara, achou Catarina também esperando-a sua filha Margarida.

- olha! - disse a rainha - é a minha filha? Ontem à noite mandei-a chamar.

- Já sei, minha Senhora, tinha saído.

- E esta manhã?.

- Esta manhã venho ter com Vossa Majestade para lhe dizer que vai cometer uma grande injustiça.

- Qual?

- Vai mandar prender o Senhor Conde de La Mole.

- Está enganada, minha filha, eu não mando prender ninguém; quem manda prender é o rei, e não eu.

- Não percamos tempo com jogo de palavras, quando tão sérias são as circunstâncias. Vai ser preso o Sr. de La Mole, não é assim?

- É provável.

- Como acusado de ter estado esta noite no quarto do rei de Navarra, de ter morto dois guardas e de ter ferido o Sr. de Maurevel?

- É com efeito esse o crime que lhe imputam.

- Pois enganam-se, minha Senhora: o Sr. de La Mole não o cometeu.

- Não o cometeu? - disse Catarina com um sobressalto de alegria, e adivinhando que ia resultar algum esclarecimento do que Margarida lhe ia dizer.

- Não - disse Margarida -, não é, nem pode ser culpado, por isso que não estava nos aposentos do rei.

- Onde estava então?

- Nos meus aposentos.

- Nos seus?

- Sim, nos meus.

Catarina devia com um olhar fulminante acolher essa declaração duma princesa; contentou-se, porém, em cruzar as mãos no peito.

- E. - disse, depois de breve silêncio - se prenderem o Sr. de La Mole, e o interrogarem.

- Ele dirá onde e com quem esteve, minha mãe - respondeu Margarida, bem que tivesse a certeza do contrário.

- Já que assim é, tem razão, minha filha, cumpre que não seja preso o Sr. de La Mole. Margarida estremeceu; pareceu-lhe que havia no modo pelo qual sua mãe proferira essas palavras um sentido misterioso e terrível; nada, porém, tinha que objectar, pois lhe era outorgado o que pedira.

- Mas então - disse Catarina -, se não era o Sr. de La Mole quem estava nos aposentos do rei, era decerto outra pessoa.

Margarida calou-se.

      - E essa outra pessoa, sabe quem era, minha filha? - disse Catarina.

- Não, minha mãe - respondeu Margarida com voz pouco firme.

- Vamos, não mostre meia confiança.

- Torno a dizer, minha mãe, que não sei quem era - respondeu Margarida empalidecendo.

- Bem, bem - disse a mãe com ar de indiferença. - Procurar-se-á saber. Pode retirar-se

sossegada, minha filha; e creia que sua mãe não se descuida de proteger a sua honra.

Margarida saiu.

Ah! - exclamou Catarina - ligam-se; Henrique e Margarida estão combinados contanto

que a mulher se torne muda, o marido faz-se cego. Ah! são muito espertos estes meus filhos, e julgam-se muito fortes; mas a força deles está na sua união, que eu preciso quebrar. Além de que, dia virá em que Maurevel fale ou escreva, ou profira um nome, ou forme seis letras, e nesse dia tudo ficará sabido. Sim, mas daqui até esse dia, o culpado pôr-se- á em lugar seguro. O que há de melhor é desuni-los imediatamente.

E em virtude deste raciocínio, Catarina voltou para os aposentos do filho, a quem achou em conferência com de lllençon.

- Ah! - disse Carlos franzindo a testa - é minha mãe?

- Porque não acrescentou outra vez? Assim ficaria completo o seu pensamento, Carlos.

- O que está no meu pensamento só a mim pertence, minha Senhora - disse o rei com esse tom austero e carrancudo que às vezes tomava, ainda mesmo para falar com Catarina.       Que me quer? Diga depressa.

- Quero-lhe dizer que quem tinha razão era o meu filho; de Alençon estava enganado.

- Em quê? - perguntaram os dois príncipes.

- Não era o Sr. de La Mole que estava no quarto do rei de Navarra.

- Deveras? - disse Francisco empalidecendo.

- Então quem era? - perguntou Carlos.

- Ainda o não sabemos, mas havemos de sabê-lo quando Maurevel puder falar. Deixemos, pois, esse negócio, que mais dia menos dia ficará esclarecido, e ocupemo-nos com o Sr. de la Mole.

- Então que lhe quer, minha mãe? Se ele não estava no quarto do rei de Navarra...

- Não estava no quarto do rei - disse ela -, mas estava no... da rainha.

- No da rainha? - disse Carlos soltando estrondosa gargalhada.

- No da rainha? - disse de Alençon tornando-se lívido como um cadáver.

- Isso não - disse o rei -, Guisa disse-me que encontrou a liteira de Margarida.

- É isso mesmo - disse Catarina -, ela tem uma casa na cidade.

- Na Rua do Sino Rachado? - perguntou o rei.

- Creio que sim - disse Catarina -, parece-me que é na Rua do Sino Rachado.

- Oh! é de mais - disse de Alençon cravando as unhas no peito -, e ter ela própria recomendado...

- E agora me ocorre... - disse o rei, parando de súbito - foi então ele quem se defendeu

esta noite contra nós, quem me atirou à cabeça uma bacia de prata! Miserável!...

- Oh, sim! - repetiu Francisco - miserável!...

- Têm razão, meus filhos - disse Catarina, sem mostrar que percebia qual o sentimento

que fazia falar os seus dois filhos -, têm razão; pois basta uma indiscrição desse mancebo para

causar horrível escândalo e perder uma princesa de França! Basta para isso um momento de embriaguez.

- Ou de vaidade - disse Francisco.

- Por certo, por certo; não podemos, porém, entregar a causa a juízes, a não ser que Henrique consinta em apresentar-se queixoso.

- Meu filho - disse Catarina, pondo a mão no ombro de Carlos e carregando-a por modo assaz significativo para chamar toda a atenção do rei para o que lhe ia propor -, ouça bem o que lhe digo: há crime e pode haver escândalo. Mas não é com juizes e carrascos que se pune esta espécie de delitos contra a régia majestade. Se os meus filhos fossem simples fidalgos, nada teria que lhes dizer, pois ambos são valentes; são porém príncipes, não podem, pois, ir cruzar a espada com a dum homúnculo. Vinguem-se como príncipes.

- Com todas as legiões de diabos! - disse Carlos - tem razão, minha mãe; vou pensar nisso.

- E eu o ajudarei, meu irmão - disse Francisco.

- E eu - disse Catarina, desatando o cordão de seda preta que lhe dava três voltas à cintura, e que tinha em cada extremidade uma borla, e lhe descia até ao joelho - retiro-me, mas deixo-lhes isto para me representar.

E atirou o cordão aos pés dos dois príncipes.

- Ah! ah! - disse Carlos - entendo.

- Este cordão. - disse de Alençon apanhando-o.

- É o castigo e o silêncio - disse Catarina vitoriosa -, e somente acrescento: não seria fora de propósito falar de tudo isto a Henrique.

E saiu.

- Por certo! - disse de Alençon - nada mais fácil; e quando Henrique souber que sua mulher o atraiçoa. Assim, pois - acrescentou, voltando-se para o rei -, adopta o parecer de nossa mãe?

- Em todos os pontos - disse Carlos, sem saber que cravara mil punhais no coração de Alençon.

Depois, chamando um oficial das suas guardas, mandou que trouxessem Henrique à sua presença; reflectindo porém melhor:

- Não, não - disse -, vou eu próprio ter com ele; tu, de Alençon, entende-te com de Anjou e com Guisa.

E saindo da câmara, seguiu pela escadinha em caracol que ia ter ao segundo andar e à porta de Henrique.

 

               PROJECTOS DE VINGANÇA

Henrique havia aproveitado o momento de folga que Lhe dava o interrogatório que tão perfeitamente sustentara, para ir ter com a Sr. de Sauve ao seu aposento. Encontrara aí Orthon, completamente restabelecido do seu desmaio; porém Orthon nada lhe pudera dizer senão que alguns homens tinham caído sobre ele, e que o chefe desses homens lhe tinha dado uma forte pancada, a que sucumbira. Quanto a Orthon, não tinham feito mais caso dele; Catarina tinha-o visto desmaiado e julgara- o morto. E como voltara a si no intervalo da retirada da rainha-mãe, à chegada do capitão dos guardas incumbidos de limpar o quarto tinha-se refugiado no aposento da Sr. de Sauve.

Henrique pediu a Carlota que guardasse o mancebo até que tivesse notícias do valente de Mouy, que, do lugar para onde se retirara, havia de por força lhe escrever. Então mandaria Orthon levar a resposta a de Mouy, e em vez dum homem dedicado poderia então contar com dois.

Assentado esse plano, tinha voltado para os seus aposentos, e filosofava, andando a passear, quando de repente se abriu a porta e apareceu o rei.

- Vossa Majestade? - exclamou Henrique correndo para o rei.

- Eu mesmo!. Na verdade, Henriquinho, és um excelente rapaz, e sinto que cada vez te estimo mais.

- Senhor! Vossa Majestade penhora-me completamente.

- Só tens um defeito, Henriquinho.

- Qual? o que Vossa Majestade já muitas vezes me exprobrou - disse Henrique -, de preferir a caçada de montaria à caçada ao voo?.

- Não, não falo desse, Henriquinho, falo doutro.

- Explique-se Vossa Majestade - disse Henrique, vendo pelo sorriso de Carlos que ele estava de bom humor -, e procurarei emendar-me.

- É que, tendo bons olhos como tens, não vês bem.

- Deveras? dar-se-á o caso que eu seja míope sem o saber?

- Pior do que isso, Henriquinho, muito pior: és cego.

-Talvez seja - disse o Bearnês -, mas não será quando fecho os olhos que me acontece semelhante desgraça?

- Ah! ah! - disse Carlos - és bem capaz disso. Em todo o caso, vou eu abrir-tos.

- Deus disse: Faça-se a luz, e a luz foi feita. Vossa Majestade é o representante de Deus neste mundo: pode, pois, fazer na Terra o que fez Deus no Céu; estou escutando.

- Quando Guisa, ontem à noite, te disse que tua mulher havia passado escoltada por um pintalegrete, não o quiseste acreditar.

- Senhor - disse Henrique -, como acreditar que a irmã de Vossa Majestade cometesse semelhante imprudência?

- Quando ele te disse que tua mulher tinha ido à Rua do Sino Rachado, também não o quiseste acreditar.

- Como supor, Senhor, que uma princesa de França arrisque assim publicamente a sua reputação?

- Quando cercámos a casa da Rua do Sino Rachado, levei eu no ombro com uma bacia de prata, de Anjou com uma compoteira na cabeça e de Guisa com um quarto de javali na cara; não viste duas mulheres e dois homens?

- Eu não vi nada, Senhor; Vossa Majestade deve lembrar-se de que eu estava interrogando o guarda-portão.

- Pois sim; mas, cos diabos, vi-os eu!

- Ah! se Vossa Majestade viu, é outra coisa.

- Quero dizer, vi dois homens e duas mulheres. Mas agora sei, de modo a não ter a mais pequena dúvida, que uma dessas duas mulheres era Margot, e um desses dois homens era de La Mole.

- Mas então - disse Henrique -, se o Sr. de La Mole estava na Rua do Sino Rachado, não estava aqui!.

- Não - disse Carlos -, não estava aqui. Não se trata, porém, da pessoa que aqui esteve; saberemos quem era quando esse pateta do Maurevel puder falar ou escrever; trata-se de que Margot te engana.

- Qual! - disse Henrique - não creia Vossa Majestade em maledicentes!

- Não te dizia eu que eras mais do que míope, que eras cego, com todos os diabos! queres acreditar-me uma vez, teimoso? Digo-te que Margot te engana, e que esta noite havemos de enforcar o objecto de suas afeições!

Henrique recuou de surpresa, e olhou para o cunhado estupefacto.

- Ora anda lá, confessa que não te é isso pouco agradável. Margot vai gritar, como cem mil diabos. Porém, pior para ela! Não quero que ela te faça desgraçado. Seja Condé enganado por de Anjou, pouco me importa; Condé é meu inimigo; tu, porém, és meu irmão; és mais do que meu irmão, és meu amigo.

- Mas, Senhor.

- Não quero que te molestem, que te escarneçam. Há bastante tempo que és ludibriado por toda essa súcia de peraltas que vêm das províncias para apanharem as nossas migalhas e fazerem a corte às nossas mulheres. Enganaram-te, Henriquinho; pode isto suceder a qualquer; mas juro-te que hás-de ter uma satisfação completa, e dir-se-á amanhã: Com mil diabos! parece que o rei Carlos gosta muito do seu irmão Henriquinho, pois esta noite obrigou o Sr. de La Mole a deitar a língua de fora!

- Vejamos, Senhor - disse Henrique -, isso é coisa realmente assentada?

- Assentada, resolvida, decidida. O pintalegrete não terá de que se queixar. Eu, de Anjou, de Alençon e Guisa, incumbimo-nos da execução. Um rei, dois príncipes de França, e um príncipe soberano, sem falar de ti.

- Como! sem falar de mim?.

- Sim, pois hás-de ser da empresa.

- Eu?

- Sim, tu; apunhala-me esse birbante dum modo real, enquanto nós o enforcarmos.

- Senhor!. - disse Henrique - tanta bondade confunde-me; mas, como sabe.

- Oh! como é que eu sei? Parece que o tratante se gabou. Às vezes vem ter com ela ao Louvre, outras vezes vai à Rua do Sino Rachado. Fazem versos juntos; bem quisera eu ver esses versos desse mequetrefe. Hão-de ser pastoris, hão-de falar de Bion de Mosco; hão-de fazer alternar Dáfnis e Córidon. Ora, ao menos leva um bom punhal, e dá-lhe o golpe de misericórdia.

- Senhor - disse Henrique -, reflectindo.

- O quê?

- Vossa Majestade compreenderá que não me posso achar em semelhante expedição. Estar lá pessoalmente não seria próprio; sou tão interessado na ocorrência, que a minha intervenção seria tida por ferocidade. Vossa Majestade vinga a honra de sua irmã num fátuo que se gaba caluniando-a: nada mais simples; e Margarida, que ainda me persuado de que é inocente, não fica por isso desdourada. Se, porém, tomar eu parte na empresa, é outro caso: a minha cooperação faz dum acto de justiça um acto de vingança. Não é já um castigo merecido, é um assassinato; minha mulher não é já caluniada. é culpada.

- Realmente, Henrique, o que tu dizes é ouro; e ainda agora o dizia eu a minha mãe; tens espírito como um demónio.

E Carlos olhou comprazendo-se para o cunhado, que se inclinou em resposta ao seu cumprimento.

- Entretanto - acrescentou Carlos -, ficas bem contente se eu te livrar desse birbante, não ficas?

- Tudo quanto faz Vossa Majestade é bem feito - respondeu o Bearnês.

- Bem, bem; deixa o caso por minha conta; descansa, que a obra não há-de ficar mal acabada.

- O que Vossa Majestade fizer está bem feito, Senhor - disse Henrique.

- Diz-me somente a que horas vai ele ter com a tua mulher.

- Parece-me que pelas nove horas da noite.

Antes de eu chegar, pois nunca o encontro.

- A que horas?

- Cerca das onze.

- Bem; hoje por volta da meia-noite a empresa estará concluída.

E tendo cordialmente apertado a mão de Henrique, tendo-lhe renovado os seus protestos de amizade, Carlos saiu, assobiando uma ária de caça de que era apaixonado.

Com todos os diabos! - disse o Bearnês seguindo Carlos com os olhos - ou eu estou muito enganado, ou esta diabrura é toda ela obra da rainha-mãe. Na verdade, ela já não sabe o que há-de inventar para nos desavir a mim e a minha mulher; nós, que somos tão bem-casados! E Henrique pôs-se a rir como ria quando ninguém o podia ver nem ouvir. Pelas sete horas da tarde do dia em que todos esses acontecimentos se haviam passado, um belo mancebo, que acabava de tomar um banho, penteava-se e perfumava-se com satisfação, cantando por entre dentes uma cançoneta, diante dum espelho num quarto do Louvre.

Ao lado dele dormia, ou antes, descansava sobre a cama, outro mancebo. Um era o nosso amigo La Mole, de quem tanto se haviam ocupado nesse dia, e de quem talvez então ainda mais se ocupassem, sem que ele o suspeitasse; o outro era o seu camarada Cocunás.

Com efeito, toda essa grande trovoada tinha- se amontoado em redor dele sem que lhe ouvisse os roncos ou lhe visse os fuzis. Recolhido às três horas da manhã, tinha ficado deitado até às três da tarde, meio dormindo, meio pensando, e construindo castelos nessa areia movediça a que chamam futuro; depois tinha-se levantado e tinha ido passar uma hora nas casas de banho que estavam na moda, tinha ido jantar em casa de mestre La Hurière e, de volta para o Louvre, acabava de se vestir, para ir, como costumava, visitar Margarida.

- E dizes que jantaste? - perguntou-lhe Cocunás bocejando.

- É verdade que jantei, e com muito apetite.

- E porque não me levaste contigo, egoísta?

- Ora, estavas tão ferrado no sono, que não quis acordar-te. Agora cearás, em vez de jantares. Não te esqueças de pedir a mestre La Hurière um certo vinho de Anjou que recebeu ultimamente.

- É bom?

- Pede-o; só te digo isto.

- E tu para onde vais?

- Eu? - disse La Mole, espantado de que o amigo lhe fizesse semelhante pergunta - vou fazer uma visita à rainha.

- Agora me lembro - disse Cocunás -, se eu fosse jantar à nossa casinha da Rua do Sino Rachado, acharia lá os restos da ceia de ontem e um certo vinho de Alicante.

- Seria imprudência, Aníbal, meu amigo, depois do que sucedeu esta noite. Além de que, não nos fizeram empenhar a nossa palavra em como nunca lá voltaríamos sós?. Dá cá a minha capa.

- É verdade - disse Cocunás -, tinha-me esquecido disso. Mas, onde diabo está a tua capa?. Ah! cá está.

- Não é essa. Dás-me a preta, e eu quero a vermelha. A rainha gosta mais de me ver com essa.

- Pois então - disse Cocunás, depois de ter olhado para todos os cantos - procura tu; eu não a vejo.

- Como! - disse La Mole - não a vês? Mas onde estará então?

- Talvez a vendesses.

- Para quê? Ainda tenho seis escudos.

- Pois serve-te da minha.

- Pois sim! uma capa amarela com um gibão verde? Para me ficar parecendo com um papagaio!

- Ora, és ruim de contentar. Arranja-te como quiseres.

Neste momento, quando, tendo revolvido tudo, La Mole começava a vociferar e a invectivar contra os ladrões que até no Louvre se metiam, apareceu um pajem do duque de Alençon com a preciosa capa.

- Ah! - exclamou La Mole - ora enfim, ela cá está!

- A sua capa, meu Senhor - disse o pajem. - Sua Alteza havia-a mandado buscar para verificar exactamente a cor dela por causa duma aposta que tinha feito.

- Oh! - disse La Mole - não a procurava senão porque queria sair com ela; mas se Sua Alteza ainda a quer.

- Não, Senhor Conde; já não é precisa.

O pajem saiu, e La Mole pôs a capa.

- E então - disse La Mole -, em que assentas?

- Não sei.

- Encontrar-te-ei aqui à noite?

- Como queres que to diga?

- Então não sabes o que hás-de fazer daqui a duas horas?

- Bem sei o que hei-de fazer, mas não sei o que me mandarão fazer.

- A duquesa de Nevers?

- Não, o duque de Alençon.

- Com efeito, noto que de algum tempo a esta parte te trata com toda a amizade.

- É assim mesmo - disse Cocunás.

- Então tens a fortuna feita - disse La Mole rindo.

- Pois sim! - disse Cocunás - um filho segundo!.

- Oh! - disse La Mole - tão boa vontade tem ele de ser o mais velho, que o Céu talvez faça um milagre em seu favor. Assim, pois, não sabes onde estarás esta noite?

- Não sei.

- Pois então, vai-te para o diabo.

Este La Mole é terrível - disse Cocunás - em querer sempre que lhe digam onde se há-de estar. Quem é que o sabe? Mas julgo que ainda estou com vontade de dormir.

E tornou-se a deitar.

Quanto a La Mole, dirigiu-se para os aposentos da rainha.

Ao chegar ao corredor que conhecemos, encontrou-se com o duque de Alençon.

- Ah! é o Sr. de La Mole? - disse este.

- Sim, príncipe - respondeu La Mole, inclinando-se respeitoso.

- Então vai sair?

- Não senhor; vou apresentar as minhas homenagens à rainha de Navarra.

- E a que horas tenciona sair, Sr. de La Mole?

- Tem Vossa Alteza algumas ordens a dar- me?

- Não, por ora, mas hei-de ter que lhe dizer esta noite.

- A que horas?

- Entre as nove e as dez.

- Terei a honra de me apresentar a essa hora a Vossa Alteza.

- Bem; conto com o senhor.

La Mole inclinou-se e prosseguiu o seu caminho.

Este duque - disse - tem momentos em que fica pálido como um defunto - é coisa singular! E bateu à porta da rainha. Gillonne, que parecia esperar pela sua chegada, levou-o para onde se achava Margarida.

Esta estava ocupada com um trabalho em que se mostrava muito empenhada; tinha diante dela um papel cheio de garatujas e borrões, e um volume de Isócrates. Fez sinal a La Mole que a deixasse concluir um período; depois, tendo concluído, e isso não levou muito tempo, atirou com a pena e convidou o mancebo a sentar-se ao pé dela.

La Mole estava radiante; nunca se mostrara tão belo, nunca tão alegre.

- Grego! - exclamou olhando para o livro - uma oração de Isócrates! Que pretende fazer disso? Oh! oh! neste papel, latim! Ad Barmatiae legatos reginae Marguritae conscio. Pois vai falar a esses bárbaros em latim?

- Assim é preciso, já que não entendem francês.

- Como pode, porém, estar fazendo a resposta sem ter ouvido o discurso?

- Quem fosse mais vaidosa do que eu, far-lhe-ia acreditar num improviso; mas para com o meu Jacinto não seria eu capaz de tal engano: comunicaram-me de antemão o discurso, para preparar a resposta.

- Pois já estão para chegar esses embaixadores?

- Ainda mais, já chegaram.

- Mas ninguém o sabe.

- Chegaram incógnitos. A sua entrada solene julgo que fica para depois de amanhã. Afinal

- prosseguiu Margarida, com um arzinho de satisfação, com algum pedantismo - o que hoje escrevi é um tanto cicerónico. Deixemos, porém, estas futilidades: conte-me o que lhe aconteceu.

- A mim?

- Sim, ao senhor.

- Que me aconteceu, a mim?

- Ora! por mais valente que se queira mostrar, acho-o um tanto amarelo.

- Então é por ter dormido de mais! Humildemente me acuso disso.

- Vamos! vamos! não se faça fanfarrão; eu sei tudo.

- Tenha então a bondade de me inteirar de tudo, minha pérola, pois eu pela minha parte não sei nada.

- Vejamos, responda-me com franqueza. Que lhe disse a rainha-mãe?

- A rainha-mãe, a mim? pois tinha algo que me dizer?.

- Como! não a viu?

- Não, minha Senhora.

- E o rei Carlos?

- Também não.

- E o rei de Navarra?

- Ainda menos.

- Mas viu o duque de Alençon.

- Esse vi; encontrei-o agora mesmo no corredor.

- E que lhe disse?

- Que tinha algumas ordens a dar-me das nove para as dez horas.

- E nada mais?

- Nada mais.

- É singular!.

- Mas o que é que é singular? diga-me.

- Que não ouvisse falar de coisa alguma.

- Que houve então?

- Houve que todo o dia de hoje, desgraçado, o senhor esteve suspenso sobre um abismo!

- Eu?

- Sim, o senhor.

- E porquê?

- Ouça. De Mouy, surpreendido esta noite nos aposentos do rei de Navarra, a quem queriam prender, matou três homens e fugiu, sem que dele reconhecessem mais do que a capa vermelha.

- Que tem isso?

- Tem que essa capa vermelha, que até uma vez me enganou a mim, enganou também a outros. Foi o senhor suspeito e acusado por essas três mortes. Esta manhã queriam prendê-lo, julgá-lo. talvez condená- lo. pois, para se salvar, talvez que o senhor não quisesse dizer onde tinha estado, não é assim?

- Dizer onde tinha estado? - exclamou La Mole. - Comprometer a minha pobre rainha? Oh! tem razão, eu morreria cantando só para poupar uma lágrima aos seus formosos olhos!

- Ah, meu pobre La Mole! Estes belos olhos bastante têm chorado.

- Como serenou, porém, semelhante tempestade?

- Adivinhe-o.

- Como posso eu sabê-lo?

- Só havia um meio de provar que o senhor não estava nos aposentos do rei de Navarra.

- Qual?

- Dizer onde tinha estado.

- E então?

- Disse-o eu.

- A quem?

- A minha mãe.

- E a rainha Catarina.

- A rainha Catarina sabe que o amo.

- Oh, minha Senhora! depois de ter feito tanto por mim, pode exigir tudo do seu escravo.

Oh! é realmente grande e nobre esse procedimento, Margarida!. Oh, Margarida! a minha vida é toda sua!

- Espero que sim, pois arranquei-a aos que a queriam. mas agora está salvo.

- Salvo, e pela minha adorada rainha! - exclamou o mancebo.

No mesmo momento, fê-los estremecer inesperado estrépito. La Mole recuou cheio de inexplicável pavor. Margarida, dando um grito, fitou os olhos no vidro quebrado duma janela.

Por esse vidro tinha entrado uma pedra do tamanho dum ovo, e ainda rolava pelo chão. La Mole viu então no vidro quebrado a causa do estrépito.

- Quem é o insolente! - exclamou.

E correu para a janela.

- Espere - disse Margarida -, a essa pedra parece que está presa alguma coisa.

- Sim - disse La Mole -, parece ser um papel.

Margarida precipitou-se para o singular projéctil, e tirou a delgada folha que, dobrada à maneira de fita, envolvia a pedrinha.

Amarrava esse papel um barbante, que saía pelo vidro quebrado.

Margarida desdobrou a carta e leu.

- Infeliz! - disse ela.

E apresentou o papel a La Mole, pálido em pé e imóvel como a estátua do Pavor. La Mole, com o coração apertado por doloroso pressentimento, leu estas palavras:

Esperam pelo Sr de La Mole com espadas epunhais no corredor que vai ter aos aposentos do Sr de Alençon. Talvez lhefosse melhor sairpor esta janela e ir ter quanto antes, com o Sr de Mouy em Nantes.

- Ora! - perguntou La Mole - essas espadas de que falam serão mais compridas do que a minha?

- Não; mas talvez sejam dez contra uma.

- E quem é o amigo que nos manda este bilhete?

Margarida tomou-o das mãos do mancebo e, fitando nele um olhar ardente, disse:

- É a letra do rei de Navarra! e se ele dá aviso, é que o perigo é real. Fuja, la Mole, fuja, sou eu que lho suplico!

- Como quer que fuja? - disse la Mole.

- No bilhete não se fala desta janela?

- Mande, minha rainha, e, para lhe obedecer, saltarei desta janela, ainda que corra mil riscos de me fazer em pedaços.

- Espere um pouco, espere - disse Margarida -, parece-me que este barbante traz um peso.

- Vejamos - disse La Mole.

E ambos, puxando a si o objecto amarrado a essa corda, viram, com indizível alegria, aparecer a ponta duma escada de clina e de seda.

- Ah! está salvo! - disse Margarida.

- É um milagre do Céu!

- Não, é um favor do rei de Navarra.

- E se, pelo contrário, for uma cilada? - disse La Mole. - Se essa escada tem de rebentar com o meu peso?. Não confessou hoje a senhora a afeição que me tinha?

Margarida, a quem a alegria havia restituído as cores, tornou-se de mortal palidez.

- Tem razão; pode muito bem ser.

E precipitou-se para a porta.

- Que vai fazer? - exclamou la Mole.

- Verificar se com efeito o estão esperando no corredor.

- Nunca, nunca! para que a cólera deles se dirija contra a senhora!

- Que hão-de eles fazer a uma mulher e princesa de sangue? Sou duas vezes inviolável. A rainha disse estas palavras com tanta dignidade que La Mole, com efeito, compreendeu que ela nada arriscava, e que a devia deixar proceder como entendesse.

Margarida entregou La Mole à guarda de Gillonne, deixando à sua sagacidade, conforme o que ocorresse, ou esperar pela sua volta, ou fugir apressado, e meteu-se pelo corredor que, ramificando-se, ia ter à biblioteca e a algumas salas de recepção, e que, seguindo em todo o seu cumprimento, terminava nos aposentos do rei e da rainha-mãe, e nessa escadinha oculta pela qual se subia aos aposentos de d'Alençon e de Henrique. Ainda que mal fossem então nove horas da noite, estavam todas as luzes apagadas, e o corredor, além dum longínquo fulgor que recebia da ramificação, estava na escuridão mais completa. A rainha de Navarra caminhou com passo firme; quando, porém, se achou a um terço do corredor, ouviu um ciciar de vozes que, pelo cuidado com que as procuravam abafar, tomavam um tom misterioso e assustador.

Imediatamente, porém, esse rumor cessou como por ordem superior, e tudo voltou ao silêncio, e até à escuridão, pois essa luz de que falámos, posto que já bem fraca, como que ainda diminuiu.

Margarida continuou o seu caminho para o lugar onde o perigo, se o havia, a estava esperando. Aparentemente, estava sossegada, bem que as suas mãos convulsas indicassem violenta comoção nervosa. Ao passo que se ia aproximando, aumentava esse silêncio sinistro, e uma sombra, semelhante à dum braço, encobria a trémula e quase extinta luz.

De repente, ao chegar à ramificação do corredor, um homem deu dois passos ao seu encontro, e descobrindo um castiçal de prata dourada que trazia na mão, disse:

- Ei-lo aqui!

Margarida achou-se frente a frente com seu irmão Carlos. Detrás dele, em pé, com um cordão de seda na mão, estava o duque de Alençon. No fundo, no escuro, dois vultos, um a par do outro, eram unicamente revelados pelos reflexos da luz sobre as espadas que tinham nas mãos.

Com um rápido olhar ficou Margarida senhora de todo o quadro. Fazendo o maior esforço, respondeu, sorrindo:

- Vossa Majestade quer dizer: Ei-la aqui!

Carlos deu um passo para trás, todos os mais ficaram imóveis.

- Tu, Margot? Onde vais a esta hora?

- A esta hora? - disse Margarida. - Pois é assim tão tarde?.

- Pergunto-te onde vais.

- Buscar um livro das orações de Cícero, que julgo ter deixado nos aposentos de minha mãe.

- Assim, sem luz?

- Julgava que o corredor estivesse alumiado.

- E vens do teu quarto?

- Venho.

- Que estás fazendo esta noite?

- Preparando o meu discurso aos enviados polacos. Não há conselho amanhã, e não se assentou que cada um apresentaria a sua oração a Vossa Majestade?

- E não tens quem te ajude nesse trabalho?

Margarida concentrou toda a sua força.

- Tenho, meu irmão - disse -, o Sr. de La Mole, que é muito sábio.

- Tão sábio - disse o duque de Alençon -, que eu lhe havia pedido que quando saísse dos aposentos de Vossa Majestade, minha irmã, viesse também aconselhar-me a mim, que não tenho o seu talento.

- E estava esperando por ele? - disse Margarida com a maior simplicidade.

- Estava - disse de Alençon com impaciência.

- Nesse caso - disse Margarida - já lho mando, meu irmão, pois já acabámos.

- E o livro? - disse Carlos.

- Mandá-lo-ei buscar por Gillonne.

Os dois irmãos trocaram um sinal.

- Pois vá - disse Carlos - e nós continuaremos a nossa ronda.

- A vossa ronda? - disse Margarida. - Então que procuram?

- O homenzinho vermelho - disse Carlos. - Não sabe da tradição do homenzinho vermelho que aparece às vezes no velho Louvre? Meu irmão de Alençon diz que o viu, e estamos à procura dele.

- Sejam bem sucedidos! - disse Margarida.

E retirou-se olhando para trás. Viu então na parede do corredor as quatro sombras reunidas como que conferenciando.

Num segundo, achou-se à porta dos seus aposentos.

- Abre, Gillonne, abre!

Gillonne obedeceu.

Margarida entrou no quarto, e achou La Mole, que a esperava tranquilo e resoluto, porém com a espada na mão.

- Fuja! - disse - fuja, sem perda de um segundo. Esperam-no no corredor para assassiná-lo.

- Mande - disse La Mole.

- Sim, é preciso que nos separemos para nos tornarmos a ver.

Durante a excursão de Margarida, La Mole havia firmado a escada na janela; saiu por ela; mas antes de pôr o pé no primeiro degrau, beijou com ternura a mão da rainha.

- Se esta escada for uma cilada, e eu morrer, Margarida, lembre-se da sua promessa.

- Não é uma promessa, La Mole, é um juramento. Nada receie! adeus. E La Mole, animado, deixou-se escorregar, e não descer, pela escada.

No mesmo momento bateram à porta.

Margarida acompanhou La Mole com os olhos na sua perigosa descida, e não se voltou senão depois que o viu pôr o pé no chão.

- Minha Senhora - dizia Gillonne -, minha Senhora!

- Que é? - disse Margarida.

- O rei está batendo à porta.

- Pois abre.

Gillonne obedeceu.

Os quatro príncipes, sem dúvida impacientes com a demora, estavam em pé no limiar. Carlos entrou.

Margarida dirigiu-se para o irmão com o sorriso nos lábios.

O rei lançou um rápido olhar em torno de si.

- Quem procura meu irmão? - perguntou Margarida.

- Procuro. - disse Carlos - procuro. ora, cos diabos! procuro o Sr. de La Mole.

- O Sr. de La Mole?

- Sim; onde está?

Margarida deu a mão a Carlos, e levou-o à janela.

Nesse momento, dois cavaleiros partiam a todo o galope, dirigindo-se para a torre de madeira: um deles desatou a sua faixa, e em sinal de adeus fez tremular o alvo cetim no meio das trevas; esses dois homens eram La Mole e Orthon.

Margarida mostrou-os com o dedo a Carlos.

- Então - perguntou o rei -, que quer aquilo dizer?

- Quer dizer - respondeu Margarida - que o duque de Alençon pode guardar na algibeira o seu cordão, e os Srs. de Anjou e de Guisa meterem na bainha as suas espadas, pois o Sr. de La Mole não tornará a passar esta noite pelo corredor.

 

             PROJECTOS DE VINGANÇA

Depois que chegara a Paris, ainda Henrique de Anjou não tinha estado com Catarina, sua mãe, de quem, como é sabido, era o filho predilecto.

Para ele, esse encontro não era uma vã satisfação de etiqueta, nem um cerimonial custoso de preencher; mas o cumprimento dum dever bem doce para esse filho que, se não amava a mãe, tinha ao menos a certeza de ser por ela ternamente amado.

Com efeito, Catarina preferia esse filho, ou pela sua bravura, ou talvez mais pela sua beleza (pois em Catarina havia, além da mãe, a mulher) ou, enfim, porque, segundo algumas crónicas escandalosas, Henrique de Anjou recordava à florentina certa época feliz de misteriosos amores.

Catarina era a única que sabia da volta de Anjou a Paris, volta que até Carlos IX teria ignorado, a não ser o acaso que o levou à frente do Palácio de Condé, justamente quando dele saía seu irmão. Carlos não o esperava senão no dia seguinte, e Henrique de Anjou esperava ocultar-lhe os dois motivos que tinham antecipado um dia a sua viagem, e que eram a sua visita à bela Maria de Clèves princesa de Condé, e a sua conferência com os embaixadores polacos.

Este último passo, sobre cuja intenção Carlos tinha ficado incerto, era o que o duque de Anjou tinha que explicar a sua mãe; e o leitor, que, como Henrique de Navarra, estava certamente em erro a respeito desse passo, aproveitar-se-á da explicação.

Por isso, quando o duque de Anjou, tanto tempo esperado, entrou no aposento de sua mãe, Catarina, tão fria, tão compassada de ordinário, Catarina, que depois da ausência de seu predi lecto filho, só abraçara com efusão Coligny, que devia ser assassinado no dia seguinte, abriu os braços ao filho do seu amor, e apertou-o ao peito com um impulso de afeição materna que causava admiração achar ainda nesse árido coração.

E depois afastava-se dele, e encarava-o, e punha-se de novo a abraçá-lo.

- Ah! minha Senhora! - disse-lhe por fim o filho - já que me dá o Céu a satisfação de abraçar, sem testemunhas, a minha mãe, consolo o homem mais desditoso e mais infeliz deste mundo.

- Oh! meu Deus! - exclamou Catarina - que lhe aconteceu, meu filho?

- Nada que minha mãe não saiba; amo e sou amado; mas este amor, que faria a ventura de outro qualquer, faz a minha desgraça.

- Explique-se, meu filho.

- Oh! minha mãe! esses embaixadores. essa partida.

- Sim - disse Catarina -, esses embaixadores já chegaram, essa partida urge.

- Não urge; porém meu irmão torná-la-á urgente, pois detesta-me; faço-lhe sombra, e quer ver-se livre de mim.

Catarina sorriu.

- Dando-lhe um trono, pobre infeliz coroado.

- E que vale isso, minha mãe? - respondeu Henrique com angústia - não quero partir. Eu, um príncipe de França, educado no que há de mais fino na polidez, junto da melhor das mães, amado por uma das damas mais formosas do mundo, hei-de ir para o meio dessas neves, para o fim do mundo, morrer lentamente entre essa gente rústica, que leva dia e noite a embriagar-se, e que mede a capacidade dos seus reis pela dos seus tonéis?. Não, minha querida mãe não quero. Se partisse, morreria!

- Vejamos, Henrique - disse Catarina apertando as mãos do filho -, vejamos! é essa a verdadeira causa?

Henrique baixou os olhos como se nem à própria mãe se atrevesse a confessar o que lhe ia no coração.

- Não haverá outra - prosseguiu a mãe -, menos romanesca, mais razoável. mais política?.

- Minha mãe, não é culpa minha se esta ideia me ficou no espírito, e talvez mais o preocupe do que deveria; mas não foi minha mãe a própria que me disse que o horóscopo consultado no nascimento de meu irmão Carlos o condenava a morrer moço?

- É exacto - disse Catarina -, mas um horóscopo pode mentir; e a esta hora faço votos eu própria para que todos esses horóscopos se não realizem.

- Mas, enfim, o seu horóscopo não dizia isso?

- O meu horóscopo falava dum quarto de século; mas não dizia se era para a sua vida ou para o seu reinado.

- Pois então, minha mãe, consiga que eu fique; meu irmão tem vinte e quatro anos; daqui a um ano a questão estará resolvida.

Catarina reflectiu profundamente.

- Pois sim - disse ela -, assim seria melhor, mas era se pudesse ser.

- Oh! pense, minha mãe - exclamou Henrique -, que desesperação para mim se eu trocasse a coroa de França pela da Polónia! Ser atormentado nesse desterro pela lembrança de que podia reinar no Louvre, no meio desta corte elegante e ilustrada, ao pé da melhor das mães, cujos conselhos me teriam poupado metade do trabalho e do afã, que, acostumada com meu pai a carregar com uma parte do peso do Estado, teria tido a bondade de me prestar igual auxílio. Ah! minha mãe! como eu viria a ser um grande rei!

- Ora, ora, meu caro filho! - disse Catarina, para quem esse futuro tinha sempre sido também a mais suave esperança - não se aflija assim. Pois não pensou alguma vez em qualquer expediente para vencer essa dificuldade?

- Oh! decerto que sim; e foi especialmente por isso que voltei dois ou três dias antes de ser esperado, deixando todavia que meu irmão Carlos acreditasse que era por causa da Sr. de Condé; fui ao encontro de Lasco, o mais importante dos enviados; disse-lhe quem era, e fiz quanto pude nessa primeira entrevista para me tornar aborrecido: espero havê-lo conseguido.

- Ah, meu caro filho! - disse Catarina - foi mal lembrado: cumpre pôr o interesse da França acima de todas essas repugnanciazinhas.

- Pois, minha mãe quererá o interesse da França que, caso suceda alguma desgraça a meu irmão, seja rei o duque de Alençon, ou Henrique de Navarra?

- Oh! Henrique de Navarra nunca, nunca, nunca! - murmurou Catarina, deixando a inquietação cobrir-lhe a fronte da tristeza e dos pesares que a envolviam cada vez que se apresentava essa questão.

- Pois olhe - continuou de Anjou -, meu irmão de Alençon não é melhor do que ele, e não a ama com maior desvelo.

- Enfim - tornou Catarina -, que disse Lasco?

- O próprio Lasco hesitou quando instei com ele para que pedisse audiência. Oh! se ele pudesse escrever para a Polónia, e cassar essa eleição!.

- Loucura, meu filho, loucura! O que uma dieta consagrou é sagrado.

- Mas enfim, minha mãe, não se poderia obter que esses polacos aceitassem em meu lugar o meu irmão?

- É, senão impossível, ao menos difícil - respondeu Catarina.

- Não faz mal; veja, experimente, fale ao rei; atribua tudo ao seu amor pela Sr. de Condé; diga-lhe que estou apaixonado, que enlouqueço. Ele até já me viu sair do palácio do príncipe, com Guisa, que me presta todos os serviços dum bom amigo.

- Sim, para fazer a Liga; e meu filho não vê isso, mas eu vejo-o muito bem.

- Vejo, sim, minha mãe; entretanto, vou-me aproveitando dele.

- E que disse o rei quando os encontrou?

- Mostrou acreditar no que lhe disse, isto é, que só o amor me havia trazido a Paris.

- Mas do resto da noite, não lhe pediu contas?

- Sim, minha mãe; mas fui cear a casa de Nantouillet, e fiz um barulho escandaloso, para que se espalhe a notícia desse escândalo, e o rei saiba, sem a menor dúvida, que estive lá.

- Então não sabe da sua visita a Lasco?

- Ignora-o absolutamente.

- Bom, tanto melhor. Verei, pois, se lhe falo em seu favor, querido filho; mas bem sabe que nesse génio áspero não há influência segura.

- Oh! minha mãe! minha mãe! que felicidade seria se eu ficasse! Como eu havia de a amar ainda mais do que amo, se isso fosse possível!

- Se ficar, será decerto mandado para a guerra.

- Isso pouco me importa, conquanto que eu não deixe a França.

- Estará exposto a morrer.

- Ora, minha mãe, não é a guerra que mata. morre-se de dor e de desgosto. Mas Carlos não há-de consentir que eu fique; detesta-me.

- Tem inveja do meu belo vencedor, é coisa sabida; mas porque é o meu filho tão valente e tão feliz? Porque apenas aos vinte anos tem ganho batalhas como Alexandre e como César?. Entretanto, a ninguém se descubra; finja estar resignado, apresente-se respeitoso ao rei. Hoje mesmo há reunião do Conselho Privado para examinar os discursos que têm de ser proferidos na cerimónia; faça o papel de rei da Polónia, e deixe o resto por minha conta. A propósito: e a sua empresa de ontem à noite?

- Foi mal sucedida, minha mãe; o sujeito estava avisado, e safou-se pela janela.

- Ah! - disse Catarina - hei-de um dia saber que génio mau é esse, que assim contraria todos os meus projectos. Entretanto. já desconfio quem seja. ai dele!

- Sim, minha mãe?. - disse o duque de Anjou.

- Esse negócio fica por minha conta.

E beijou com ternura os olhos de Henrique, que saiu do gabinete.

Pouco depois chegavam aos aposentos da rainha os príncipes do seu sangue. Carlos estava de muito bom humor, pois a presença de espírito da sua Margot mais o alegrara do que o afligira. Não queria mal a La Mole; tinha-o esperado com algum empenho no corredor por ser isso uma espécie de caçada.

De Alençon estava, pelo contrário, preocupadíssimo. A antipatia que sempre tivera a La Mole havia-se transformado em ódio, desde que soubera que La Mole era amado por sua irmã.

Margarida estava ao mesmo tempo pensativa e atenta, pois tinha de lembrar-se e de vigiar. Os deputados polacos haviam mandado o texto dos discursos que tinham de proferir.

Margarida, a quem não tornaram a falar da cena da véspera, como se tal cena não tivesse ocorrido, leu os discursos, e, excepto Carlos, cada qual discutiu o que responderia. Carlos deixou Margarida responder como lhe parecesse. A de Alençon mostrou severa censura quanto ás palavras; quanto, porém, ao discurso de Henrique de Anjou, mostrou-lhe mais do que má vontade, pois esforçou-se em retocá-lo e emendá-lo.

Esta sessão, sem todavia promover um rompimento, irritou ainda mais os espíritos. Henrique de Anjou, que tinha quase completamente de fazer outro discurso, saiu para ir trabalhar; Margarida, que não tinha notícias do rei de Navarra depois das que ele lhe dera à custa dos vidros da janela, voltou para os seus aposentos na esperança de que ele viria. De Alençon, que tinha lido a hesitação nos olhos de seu irmão de Anjou, e surpreendido entre ele e a mãe um olhar de inteligência, retirou-se, para pensar no que lhe parecia a revelação dalgum novo plano. Enfim, ia Carlos entrar na sua ferraria para concluir um venábulo que ele próprio estava fazendo, quando Catarina o deteve.

Carlos, que pressentia que ia encontrar na mãe alguma oposição à sua vontade, parou e fitou nela os olhos.

- Então, que mais temos?

- Ainda mais uma palavra, Senhor. Esquecemo-nos dessa palavra, e todavia ela é importante. Que dia se marca para a sessão pública?

- Ah, sim - disse o rei, sentando-se outra vez -, Falemos a esse respeito, minha mãe: que dia quer que se marque?

- Julgo - respondeu Catarina - que no próprio silêncio, no aparente esquecimento de Vossa Majestade, há profundo cálculo.

- Não há - disse Carlos -, e porque o havia de haver, minha mãe?.

- Porque - acrescentou Catarina tranquilamente - me parece que não seria conveniente que os polacos nos vissem correr com tanta sofreguidão atrás dessa coroa.

- Pelo contrário, minha mãe: foram eles os sôfregos, que vieram a marchas forçadas de Varsóvia até aqui. Honra por honra, delicadeza por delicadeza.

- Pode ter razão Vossa Majestade num sentido, e noutro deixar de a ter. Assim, é seu parecer que audiência pública deve ser apressada?.

- É, sim, minha mãe; mas o seu não é talvez o mesmo.

- Bem sabe que eu não dou pareceres senão os que podem concorrer para a sua glória; dir-lhe-ei, pois, que, apressando-se assim, recearia que o acusassem de aproveitar com demasiada diligência a ocasião que se apresenta de aliviar a Casa de França do fardo que lhe impõe seu irmão de Anjou, mas que muito certamente lhe paga em glória e em dedicação.

- Minha mãe - disse Carlos -, quando meu irmão sair de França, dotá- lo-ei tão ricamente que ninguém se atreverá a pensar o que receia que se diga.

- Bem - disse Catarina -, rendo-me, já que tem tão boa resposta a dar a cada uma das minhas objecções. Mas, para receber esse povo guerreiro, que julga do poder dos Estados pelos sinais exteriores, é necessário um desenvolvimento considerável de forças, e julgo que não as há suficientes nas vizinhanças de Paris.

- Desculpe, minha mãe, eu previ o acontecimento e preparei-me. Mandei vir dois batalhões da Normandia, um da Guiena; a minha companhia de archeiros chegou ontem da Bretanha. A cavalaria ligeira, espalhada na Touraine, virá reunir-se aqui em poucas horas; e enquanto julgam que só tenho quatro regimentos, posso apresentar vinte mil homens.

- Ah!. - disse Catarina atónita. - Então só falta uma coisa, e essa há-de achar-se.

-Queé?

- Dinheiro. Julgo que não está muito fornecido.

- Pelo contrário, minha Senhora - respondeu Carlos IX. - Tenho um milhão e quatrocentos mil escudos na Bastilha a minha caixa particular deu-me de sobras oitocentos mil escudos, que guardei no meu tesouro do Louvre; e em caso de urgência, Nantouillet tem mais ao meu dispor trezentos mil escudos.

Catarina estremeceu; pois até então conhecera Carlos arrebatado, violento, nunca porém previdente.

- Bom! Vossa Majestade pensa em tudo; é admirável; e por pouco que se apressem os alfaiates, os ourives e bordadeiras, poderá Vossa Majestade dar a audiência daqui a seis semanas.

- Seis semanas? - exclamou Carlos. - Minha mãe, os alfaiates, os ourives e as bordadeiras estão trabalhando desde o dia em que foi sabida a eleição de meu irmão. Em rigor, tudo podia estar pronto para hoje mesmo; mas, para que não haja alguma falta, dou-lhe mais três dias ou quatro.

- Oh! - exclamou Catarina - está ainda mais apressado do que eu julgava, meu filho.

- Honra por honra, já lho disse.

- Bem. Então é essa a honra feita à Casa de França que mais o lisonjeia, não é?

- Certamente.

- E ver no trono da Polónia um príncipe de França é o seu maior desejo?

- É isso mesmo.

- Então é o facto, é a coisa, e não o homem, que o preocupa; e seja quem for que reine nesse país.

- Não, não, minha mãe, com a breca! Fiquemos onde estamos! Os Polacos acertaram. São destros e valentes, esses homens! Nação militar, povo de soldados, tomam para rei um grande capitão, isso é lógico. De Anjou é o que lhes convém: o herói de Jarnac e de Moncontour serve-Lhes como uma luva. Quem quer que eu lhes dê? De Alençon é um cobarde, que bem triste ideia iria dar dos Valois! Fugiria, mal lhe zunisse ao ouvido a primeira bala. Henrique de Anjou tem mais que se lhe diga! Sempre com a espada na mão, sempre marchando para a frente, a pé ou a cavalo. Denodado acossa, fere, derruba, mata. Ah meu irmão de Anjou é muito hábil e é um bravo que os levará a baterem-se de manhã até à noite, desde o primeiro até ao último dia do ano; e fará com que morram com todo o sangue-frio. Estará pois no seu papel, o nosso querido Henrique! Eia! eia! ao campo de batalha! Bravo! já soam as trombetas e os tambores! Viva o rei! viva o vencedor! viva o grande general! Proclamam-no três vezes por ano imperador! Será admi rável para a Casa de França e para a honra dos Valois. Talvez que na lide sucumba. porém, que glória! será uma morte soberba!

Catarina estremeceu, os olhos relampejaram-lhe.

- Diga antes - exclamou ela - que quer afastar Henrique de Anjou; diga que não ama seu irmão!

- Ah! ah! ah! - disse Carlos com nervosa gargalhada - pois adivinhou que eu queria afastá-lo? Adivinhou que eu não o amava? E quando isso assim fosse? que tinha?. Amar meu irmão! porque o hei-de amar?. ah! ah! ah! está brincando?.

E à medida que falava, animavam-se-lhe de febril rubor as pálidas faces.

- E ama-me ele? E ama-me a senhora? E além dos meus cães, da minha ama, e de Maria Touchet, há alguém que me tenha amado?. Não, não! não amo meu irmão, só me amo a mim. E não me importo que meu irmão faça outro tanto.

- Senhor - disse Catarina, animando-se também -, já que assim me descobre o seu coração, cumpre que lhe abra o meu. Está procedendo como rei fraco e monarca mal aconselhado; manda sair do reino o seu primeiro irmão, o sustentáculo natural do trono, e que é, em todos os pontos, digno de lhe suceder, se acontecesse alguma desgraça, deixando nesse caso em completo abandono a sua coroa, porque, como dizia, de Alençon é moço incapaz e fraco. mais do que fraco, cobarde - e o Bearnês ergue-se por detrás dele, entende?

- Oh! com todos os milhões dos diabos! - exclamou Carlos - que me importa o que há-de acontecer quando eu já não existir? O Bearnês ergue- se por detrás de meu irmão, não é o que diz? Ora, melhor para mim!. Dizia ainda agora que de ninguém gostava. enganava-me. gosto de Henriquinho; sim, gosto dele esse bom Henriquinho tem um ar de francueza, tem a mão tépida; e em redor de mim só vejo olhos refalsados, só aperto mãos geladas. E incapaz duma traição contra mim; jurá-lo-ia! Além do mais, devo-lhe uma indemnização; envenenaram-lhe a mãe, coitado! foram pessoas de minha família, segundo ouvi dizer. Felizmente eu gozo de saúde; mas se viesse a adoecer, chamá-lo-ia; não quisera que saísse de ao pé de mim, nada tomaria a não ser da sua mão. E quando eu morresse, fá-lo-ia rei de França e de Navarra. E sou capaz de jurar que ele, em vez de rir da minha morte, como fariam meus irmãos, havia de chorar, ou pelo menos havia de fingir que chorava.

Catarina ficou como aterrada, e passados alguns segundos disse:

- Henrique de Navarra? Henrique de Navarra rei de França, em prejuízo dos meus filhos? Ah! Santa Virgem! havemos de ver! E é então para isso que pretende afastar meu filho?

- Seu filho. e eu então que sou! algum filho de loba, como Rómulo!. - exclamou Carlos, trémulo de cólera e com o olhar cintilante. - Seu filho. tem razão! o rei de França, esse não é seu filho. O rei de França não tem irmãos, não tem mãe; o rei de França tem somente súbditos. O rei de França não precisa de ter sentimentos: tem vontades. Dispensa que o amem, mas quer que lhe obedeçam imediatamente.

- Senhor, vejo que interpretou mal as minhas palavras; chamei meu filho a esse que ia deixar-me. Amo-o mais neste momento, porque é ele quem neste momento mais receio perder. É porventura crime desejar uma mãe que seu filho a não deixe?

- E eu digo-lhe que ele a há-de deixar! que há-de sair de França, que há-de ir para a Polónia! e isso dentro de dois dias! e se Vossa Majestade acrescentar mais uma palavra, há-de partir amanhã! se a senhora não abaixar a cabeça, se não apagar a ameaça que vejo nos seus olhos, enforco-o esta noite! como Vossa Majestade queria que ontem à noite fosse enforcado o predilecto de sua filha. Somente não lhe há-de acontecer escapar, como se escapou o Sr. de La Mole.

Com esta ameaça, Catarina, pela primeira vez, abaixou a cabeça; mas daí a pouco reergueu-a.

- Ah! pobre filho! - exclamou ela - teu irmão quer matar-te; sossega, porém, que tua mãe te defenderá.

- Ah! afrontam-me? - exclamou Carlos. - Pois bem! pelo sangue de Cristo! há-de morrer, e não esta noite, não daqui a pouco. há-de ser já!. Oh! uma arma! um punhal! uma faca!.

E Carlos, depois de olhar inutilmente em volta de si para procurar o que pedia, viu o punhalzinho que a mãe trazia à cinta; precipitou-se sobre ele, arrancou-o da bainha de couro incrustada de prata, e num pulo saiu da câmara, para ir matar Henrique de Anjou onde quer que estivesse. Ao chegar, porém, ao vestíbulo, as forças, superexcitadas além do poder humano, de repente abandonaram-no. Estendeu os braços, deixou cair a arma aguda, que se cravou no soalho, soltou um grito lamentável e caiu rolando pelo chão.

Ao mesmo tempo, o sangue rompeu-lhe em abundância pela boca e pelo nariz.

- Jesus! que me matam! acudam-me! acudam-me!

Catarina, que o seguira, viu-o cair; olhou para ele um momento, impassível e sem se mover, mas depois, chamada a si, não pelo amor materno, mas pela dificuldade da situação, pôs-se a gritar:

- O rei teve um acidente! acudam! acudam!

A este grito, correram para ao pé do rei um mundo de criados, de oficiais, de cortesãos. Mas, antes de todos, aparecera uma mulher que afastou os espectadores, e levantou Carlos, lívido como um cadáver.

- Matam-me, ama, matam-me! - disse o rei, lavado em suor e sangue.

- Matam-te, meu Carlos? - exclamou a boa velha, percorrendo todos os rostos com um olhar ante o qual até Catarina recuou. - Quem é então que te mata?

Carlos soltou um fraco suspiro, e desmaiou de todo.

Hum!. - disse o médico Ambrósio Paré, a quem mandaram imediatamente chamaro rei está muito mal.

- Agora - disse consigo a implacável Catarina -, ou queira ou não queira, há-de conceder alguma demora.

E deixou o rei, para ir ter com o seu segundo filho, que esperava com ansiedade no oratório o resultado dessa entrevista para ele de tanta importância.

 

                   O HORÓSCOPO

Saindo do oratório, onde acabava de comunicar ao seu filho predilecto tudo o que se havia passado, Catarina encontrou na sua câmara Renato, que a esperava.

Era a primeira vez que a rainha se encontrava com o astrólogo depois que o visitara na sua loja da Ponte de S. Miguel. Tinha-lhe ela escrito na véspera, e Renato vinha em pessoa trazer a resposta do bilhetinho que recebera.

- Então - perguntou a rainha -, viu-o?

- Vi.

- E como vai?

- Pode-se dizer que melhor.

- Fala?

- Não, minha Senhora, a espada atravessou-lhe a laringe.

- Nesse caso, mestre Renato, devia fazer com que ele escrevesse; foi o que eu lhe disse.

- Tentei isso; ele mesmo fez todos os esforços, mas apenas pôde traçar duas letras quase ilegíveis e desmaiou; teve a veia jugular aberta, e a perda de sangue tirou-lhe todas as forças.

- E viu essas letras?

- Tenho-as aqui.

Renato tirou um papel da algibeira e apresentou-o a Catarina, que o abriu apressadamente.

- Um e um O. - disse ela. - Seria com efeito esse La Mole, e toda essa comédia de Margarida não passaria dum meio de desviar suspeitas?.

- Minha Senhora - disse Renato -, se eu ousasse emitir a minha opinião num objecto sobre o qual Vossa Majestade hesita em formar a sua, dir-lhe-ia que julgo o Sr. de La Mole demasiadamente apaixonado para se ocupar seriamente de negócios políticos.

- Julga isso?

- Julgo; e sobretudo demasiadamente apaixonado pela rainha de Navarra, para poder servir o rei com dedicação, porque não há verdadeiro amor sem ciúmes.

- E julga-o profundamente apaixonado?

- Estou certo disso.

- Já foi procurado por ele, mestre Renato?

- Fui.

- E pediu-lhe ele alguma beberagem, algum filtro?

- Não, minha Senhora; limitámo-nos à figura de cera.

- Ferida no coração?

- Ferida no coração.

- E essa figura existe ainda?

- Existe. Está em sua casa.

- Em minha casa? Seria curioso - disse Catarina - que essas preparações cabalísticas tivessem realmente a influência que se lhes atribui.

- Vossa Majestade está tão habilitada como eu para o julgar.

- E a rainha de Navarra ama o Sr. de La Mole?

- Ama-o a ponto de se perder por ele. Ontem salvou-o da morte arriscando a honra e a vida. Vossa Majestade está vendo estas coisas, e no entanto sempre duvida.

- De quê?

- Da ciência.

- É porque também a ciência me traiu - disse Catarina, olhando fixamente para Renato, que suportou admiravelmente esse olhar.

- E quando?

- Oh! você bem o sabe; talvez, porém, que fosse o sábio e não a ciência.

- Não sei o que Vossa Majestade quer dizer - respondeu o florentino.

- Renato, as suas perfumarias perderam completamente o aroma?

- Não o perdem, minha Senhora, quando são empregados por mim; mas é possível que, passando por outras mãos.

Catarina sorriu e abanou a cabeça.

- O seu opiato fez maravilhas, Renato - disse ela -, a Sr a de Sauve tem os lábios cada vez mais frescos e rosados.

- Não é ao meu opiato que se deve atribuir esse resultado, minha Senhora; porque a baronesa de Sauve, usando do direito que têm todas as mulheres formosas de terem caprichos, nunca me falou nesse opiato; e eu, da minha parte, depois da recomendação que Vossa Majestade me fez, julguei que me cumpria não lhe mandar. As caixinhas estão ainda todas em minha casa, no mesmo estado em que Vossa Majestade as deixou, menos uma, que desapareceu sem que eu saiba quem a tirou, nem para que fim.

- Está bem, Renato - disse Catarina -, voltaremos talvez a esse objecto. Agora, falemos doutra coisa.

- Ouvirei, minha Senhora.

- Que é necessário para apreciar a duração provável da vida duma pessoa?

- Saber, primeiro que tudo, o dia em que nasceu, a idade que tem e sob que signo viu a luz.

- E depois?

- Obter uma porção de sangue e de cabelos dessa pessoa.

- E se eu lhe levar essa porção de sangue e de cabelos, se lhe disser sob que signo essa pessoa viu a luz, se lhe disser a idade que tem e o dia em que nasceu, poderia dizer-me a época provável da sua morte?

- Poderei, só com diferença dalguns dias.

- Bem. Já tenho os cabelos, procurarei obter o sangue.

- Essa pessoa nasceu de dia ou de noite?

- Às cinco horas e vinte e três minutos da tarde.

- Pois esteja amanhã às cinco horas em minha casa; a experiência deve fazer-se precisamente à hora do nascimento.

- Está bem - disse Catarina -, lá estaremos.

Renato cumprimentou a rainha, e saiu, sem parecer ter notado o lá estaremos, que, entretanto, indicava que, contra o seu costume, Catarina não iria só.

No dia seguinte, ao romper da manhã, foi Catarina à câmara do filho. À meia-noite tinha ela

mandado saber dele, e tinham-lhe respondido que mestre Ambrósio Paré estava ao seu lado, e que se dispunha a sangrá-lo se continuasse a mesma agitação nervosa.

Ainda estremecendo durante o sono, ainda pálido com a perda de sangue, Carlos dormia com

a cabeça apoiada no ombro da ama fiel, a qual, encostada à cama, não tinha, havia três horas, mudado de posição, com medo de interromper o descanso do seu caro filho.

De vez em quando aparecia nos lábios do enfermo uma espuma subtil, que a ama enxugava com uma toalhinha de cambraia bordada. Na cabeceira da cama estava um lenço cheio de nódoas de sangue.

Catarina teve por um momento a lembrança de se apossar desse lenço, mas pensou que, estando o sangue misturado com a saliva, não teria talvez a mesma eficácia. Perguntou pois à ama se o médico não tinha sangrado o filho como lhe tinha mandado dizer que o faria; a ama respondeu que sim, e que a sangria fora tão abundante que Carlos desmaiara duas vezes.

A rainha-mãe, que tinha alguns conhecimentos de medicina, como todas as princesas dessa época, pediu o sangue para ver; nada era mais fácil; o médico tinha recomendado que o guardassem, para examinar os fenómenos que apresentasse.

Estava esse sangue numa tigela, no gabinete ao lado da câmara. Catarina foi examiná-lo, e examinando-o, encheu do vermelho licor um frasquinho que trouxera para esse fim; tornou depois a entrar, escondendo na algibeira os dedos, cujas extremidades podiam denunciar a profanação que acabava de cometer.

No momento em que ela reaparecia na entrada do gabinete, Carlos abriu os olhos e deu com a vista na mãe. Chamando então a si, como após um sonho, todos os seus pensamentos impregnados de rancor, disse:

- Ah, é a Senhora... Bem, pode dizer ao seu filho predilecto, ao seu Henrique de Anjou, que será amanhã.

- Meu querido Carlos - disse Catarina -, será quando quiser. Portanto, sossegue e durma.

Carlos, como se tivesse cedido a este conselho, fechou os olhos; e Catarina, que lho tinha dado como se faz para consolar um doente ou uma criança, saiu do quarto. Mas apenas ouviu fechar-se a porta, Carlos sentou-se na cama, e de repente, com uma voz sufocada pelo acesso que ainda lhe durava, bradou:

- O meu chanceler, os selos, a corte!... mandem vir aqui tudo!

A ama, com uma terna violência, tornou a encostar ao seu ombro a cabeça do rei, e, para o fazer adormecer, tentou acalentá-lo como fazia quando ele era criança.

- Não, não, ama - disse ele -, não durmo mais. Chame essa gente, quero trabalhar esta manhã.

Quando Carlos falava assim era preciso obedecer; mesmo a ama, apesar dos privilégios que o rei lhe tinha conservado, não ousava opor-se às suas ordens. Mandaram-se chamar as pessoas que o rei designara e fixou-se a sessão, não para o dia seguinte, o que era impossível, mas para daí a cinco dias.

No entanto, à hora convencionada, isto é, às cinco horas, a rainha-mãe e o duque de Anjou dirigiram-se para casa de Renato, o qual, prevenido, como se sabe, dessa visita, tinha preparado tudo para a sessão misteriosa.

Na câmara da direita, a dos sacrifícios, e num grande fogareiro, estava em brasa uma lâmina de aço, destinada a representar, pelos confusos arabescos que a ornavam, os eventos do destino

sobre que se consultava o oráculo. Em cima do altar estava preparado o livro das sortes; e durante a noite, que estivera muito clara, tinha Renato podido estudar o movimento e o aspecto das constelações.

Henrique de Anjou foi o primeiro que entrou. Para que o não conhecessem, trazia máscara, cabelos postiços e vinha embuçado num grande capote. A mãe chegou depois, e se não soubesse antecipadamente que era o filho que a esperava ali, ela mesmo não o teria conhecido. Catarina tirou a máscara e o duque de Anjou conservou a sua.

- Fez esta noite as suas observações? - perguntou Catarina a Renato.

- Fiz, minha Senhora - disse ele -, e a resposta dos astros já me deu conta do passado. Aquele a respeito de quem Vossa Majestade me interroga tem, como todas as pessoas nascidas sob o signo de Câncer, o coração ardente e uma altivez sem exemplo. É poderoso, viveu já perto dum quarto de século, e tem até agora alcançado do Céu glória e riqueza. Será assim, minha Senhora?

- Talvez - disse Catarina.

- Trouxe os cabelos e o sangue?

- Aqui os tem.

E Catarina entregou ao nigromante um anel de cabelos louros e um frasquinho de sangue. Renato pegou no frasco, remexeu-o, para misturar bem a serosidade do sangue com as outras partes, e deixou cair sobre a lâmina em brasa uma boa gota desse fluido, que imediatamente se extravasou em desenhos fantásticos.

- Oh, minha Senhora! - bradou Renato - vejo-o torcer-se com acerbas dores; não ouve como ele geme, como pede socorro? Não vê como tudo se converte em sangue em torno dele? Não vê, finalmente, como à roda do seu leito de morte se preparam grandes combates? Veja: aqui estão as lanças, aqui estão as espadas.

- E durará isso muito? - perguntou Catarina, palpitando com uma emoção indizível, e retendo a mão de Henrique de Anjou, a quem uma ávida curiosidade fizera dobrar-se sobre o braseiro.

Renato foi para junto do altar, e disse uma oração cabalística, empregando nessa acção um fervor e uma convicção tal que lhe incharam as veias das fontes e teve convulsões proféticas e es tremecimentos nervosos, como os que atacavam as antigas pitonisas sobre a trípode, e as perseguiam até no leito da morte.

Levantou-se, finalmente, e anunciou que tudo estava pronto; tomou com uma das mãos o frasco, ainda cheio nas três quartas partes, e com outra o anel de cabelos, ordenando depois a Catarina que abrisse o livro à sorte, e que olhasse para o primeiro lugar que se apresentasse; derramou em cima da lâmina de aço todo o sangue, e lançou no braseiro todos os cabelos, pronunciando uma frase cabalística composta de palavras hebraicas, das quais ele mesmo nada en tendia.

O duque de Anjou e Catarina viram imediatamente estender-se sobre a lâmina uma figura branca como a dum cadáver amortalhado.

Outra figura, que parecia de mulher, estava inclinada sobre a primeira.

Ao mesmo tempo, inflamaram-se os cabelos, dando uma só labareda, clara, rápida, farpada como uma língua vermelha.

- Um ano! - bradou Renato - apenas um ano, e esse homem morrerá, e só uma mulher o há-de chorar. Mas não. ali. ali na extremidade da lâmina, ainda está outra mulher, que parece ter uma criança nos braços.

Catarina olhou para o filho, e como mãe que era, pareceu perguntar-lhe quem eram essas duas mulheres.

Mas apenas Renato acabara de falar, a placa de aço tornou-se branca; tudo se apagara gradualmente.

Catarina abriu então o livro à sorte, e leu, com uma voz cuja alteração não pôde reprimir, apesar de toda a sua força, o dístico seguinte:

Ainsi aperi ce gue lón redoutait Plutôt trop tôt si prudence tait.

Um profundo silêncio reinou algum tempo em torno do braseiro.

- E a respeito daquele que sabe - perguntou Catarina -, quais são os sinais deste mês?

- Florescentes como sempre, minha Senhora. A não ser que se não vença o destino por meio

duma luta de Deus com Deus, o futuro é certamente desse homem. Entretanto...

- Entretanto o quê?

- Uma das estrelas que compõe a sua plêiade esteve, durante o tempo das minhas observações, coberta com uma nuvem negra...

- Ah! - exclamou Catarina - uma nuvem negra... Havia pois alguma esperança?

- De quem fala, minha Senhora? - perguntou o duque de Anjou.

Catarina levou o filho para longe do clarão do braseiro, e falou-lhe em voz baixa.

Durante esse tempo, Renato ajoelhava, e, derramando sobre a mão, à claridade da chama,

uma gota do sangue que tinha ficado no fundo do frasco, disse:

- Estranha contradição, e que prova quão pouco sólidos são os testemunhos da ciência simples que praticam os homens vulgares! Para outro que não fosse eu - para um médico, para um sábio, para o próprio mestre Ambrósio Paré -, eis um sangue tão puro, tão fecundo, tão cheio

de sucos animais, que promete longos anos ao corpo donde saiu; e, não obstante, todo esse vigor deve desaparecer bem depressa, toda essa vida deve extinguir-se antes dum ano!

Catarina e Henrique de Anjou tinham-se voltado e escutavam. Os olhos do príncipe luziam através da máscara.

- Ah! - continuou Renato - é porque aos sábios ordinários sópertence o presente, ao passo que só nós podemos ler o passado e o futuro.

- Então - continuou Catarina - persiste em crer que ele morrerá antes dum ano?

- Tão certo como estarmos aqui três pessoas vivas que um dia descansarão também no seu túmulo.

- Entretanto, ouvi-lhe dizer que o sangue era puro e fecundo, ouvi-lhe dizer que esse sangue promete uma longa vida...

- Sim, se as coisas seguissem o seu curso natural. Mas é bem possível que um acidente...

- Ah! sim; ouve? - disse Catarina a Henrique - um acidente...

- Ah! - disse este - razão de mais para ficar.

- Oh! não pense mais nisso, é impossível.

E voltando-se então para Renato:

- Obrigado - disse o mancebo disfarçando o metal da voz -, obrigado; tome esta bolsa.

- Venha, conde - disse Catarina, dando de propósito ao filho um título que devia derrotar as conjecturas de Renato.

E partiram.

- Oh, minha mãe - disse Henrique - bem vê, um acidente... e se ele se der, não estarei

cá; estarei a quatrocentas léguas...

- Quatrocentas léguas andam-se em oito dias, meu filho.

- Pois sim; mas sabe se aquela gente me deixará voltar?... Que pena não poder esperar

minha mãe!...

- Quem sabe - disse Catarina - se o acidente de que fala Renato não é esse que desde ontem obriga o rei a estar num leito de dor? Ouça; vá para o paço, meu filho; eu vou passar pela porta da Travessa do Claustro das Agostinhas; a minha comitiva espera-me nesse convento. Vá, Henrique, e tome cuidado em não irritar seu irmão caso o veja.

 

                 AS CONFIDÊNCIAS

A primeira coisa que soube o duque de Anjou quando chegou ao Louvre, foi que a entrada solene dos embaixadores estava marcada para o quinto dia. Os alfaiates e joalheiros esperavam o príncipe com magníficos vestuários e soberbos adereços, que o rei tinha encomendado para ele.

Enquanto os provava, com uma cólera que lhe arrasava os olhos de água, aprazia-se Henrique de Navarra com a posse dum magnífco colar de esmeraldas, duma espada com punho de ouro, e dum precioso anel que Carlos lhe tinha mandado nessa mesma manhã. De Alençon acabava de receber uma carta, e tinha-se fechado no quarto para a ler à sua vontade.

Quanto a Cocunás, perguntava pelo seu amigo a todos os ecos do Louvre. Com efeito, não se admirando muito, como é bem de supor, de o não ter visto recolher-se em toda a noite, começara pela manhã a sentir alguma inquietação; por isso saíra em busca de La Mole, começando a sua investigação pela hospedaria da Estrela Brilhante passando da hospedaria da Estrela Brilhante à Rua do Sino Rachado, da Rua do Sino Rachado à Rua Tizon, da Rua Tizon à Ponte de S. Miguel, e, finalmente, da Ponte de S. Miguel ao Louvre.

Nessa investigação, empregara para com as pessoas a quem se dirigiu um modo tão original, tão exigente (o que é fácil de compreender conhecendo-se o carácter excêntrico de Cocunás), que suscitou entre ele e três senhores da corte explicações que acabaram à moda da época: no campo. Cocunás mostrara nesses recontros a consciência que mostrava ordinariamente em casos semelhantes, isto é, tinha morto o primeiro e ferido os outros dois, dizendo:

- Pobre la Mole! sabia tão bem latim!.

Isto a ponto de que o último, que era o barão de Boissey, lhe dissera, caindo:

- Ah! por amor de Deus, Cocunás, varie um pouco! diga ao menos que ele sabia grego. Finalmente, o boato da aventura do corredor tinha-se espalhado. A aflição de Cocunás era, por esse motivo, extrema, pois julgara por um instante que todos esses reis e príncipes lhe tinham morto o seu amigo, e que o haviam lançado para algum subterrâneo ou enterrado nalgum canto.

Soube ele que de Alençon fora da partida, e, esquecendo a majestade que rodeava o príncipe de sangue, foi procurá-lo, para lhe pedir uma explicação como o faria para com um simples fidalgo.

De Alençon teve bons desejos de pôr na rua o atrevido que vinha tomar- lhe conta das suas acções; mas Cocunás falava com tanto desembaraço, os olhos flamejavam-lhe de tal modo, a aventura dos três duelos em menos de vinte e quatro horas tinha dado tanta importância ao piemontês, que, depois de reflectir, em vez de se entregar ao primeiro movimento, respondeu ao seu gentil-homem com um sorriso encantador:

- Meu querido Cocunás, é verdade que o rei, furioso por ter levado com uma bacia no ombro, que o duque de Anjou, descontente por lhe haverem lustrado os cabelos com uma compota de laranja, e o duque de Guisa, humilhado porque apanhou com um quarto de javali na cara, arranjaram uma partida para matarem o Sr. de La Mole; mas um amigo do seu amigo desviou o golpe. A partida falhou, pois, dou-lhe a minha palavra de príncipe.

- Ah! - disse Cocunás, respirando como um fole de forja à vista da certeza que o príncipe lhe dava da existência do seu amigo. - Ah! isso, Senhor, é o que se chama uma boa acção, e bem desejara eu conhecer esse amigo para lhe provar o meu reconhecimento.

O Sr. de Alençon não respondeu nada, mas sorriu ainda com mais agrado do que já tinha feito, o que deixou crer a Cocunás que esse amigo não era senão o próprio príncipe. - Senhor - prosseguiu ele -, pois que Vossa Alteza quis ter a extrema bondade de me dizer o começo da história, digne-se levar a sua benevolência até ao fim, referindo-me o mais que se passou. Quiseram matá-lo, mas não o mataram, diz Vossa Alteza. Que fizeram então dele? Tenho bastante ânimo, Senhor; diga-mo; sei bem suportar uma notícia triste. Meteram-no em alguma masmorra, não é assim? Tanto melhor; isso torná-lo-á circunspecto. Ele despreza sempre

os meus conselhos. Demais, há-de haver quem o tire de lá. Fica por minha conta; as pedras não são duras para todos.

De Alençon abanou a cabeça.

- O pior de tudo - disse ele -, meu bravo Cocunás, é que, depois desta aventura, o teu amigo desapareceu sem que se saiba para onde foi.

- Ainda que fosse para o Inferno! - bradou o piemontês, empalidecendo de novo - juro- lhe que hei-de saber onde está!

- Ouve - disse de Alençon, que tinha, mas por motivos bem diferentes, tanto desejo como Cocunás de saber onde estava La Mole -, quero dar-te um conselho de amigo.

- Diga, Senhor, diga.

- Vai procurar a rainha Margarida, que ela deve saber o que é feito dele.

- Confesso a Vossa Alteza - disse Cocunás - que já tinha pensado nisso; não me atrevia, porém, porque, além do indizível respeito que me impõe a rainha, receava achá-la em pranto. Mas, visto que Vossa Alteza me assevera que La Mole não morreu, e que Sua Majestade deve saber onde ele está, vou armar-me de valor e vou ter com ela!

- Vai, meu amigo, vai - disse o duque Francisco -, e logo que tiveres notícias, dá- mas, porque realmente estou tão inquieto como tu. Lembra-te porém duma coisa, Cocunás.

- De quê?

- Não digas que vais da minha parte: se cometesses essa imprudência, talvez não viesses a saber nada.

- Senhor - disse Cocunás -, uma vez que Vossa Alteza me recomenda segredo a esse respeito, serei mudo como uma estátua ou como a rainha-mãe.

Bom príncipe, excelente príncipe, príncipe magnânimo! foi dizendo Cocunás no caminho para o aposento da rainha de Navarra.

Margarida esperava Cocunás, porque tivera notícias do seu desespero e, sabendo das façanhas por que esse desespero se havia manifestado, quase que perdoara a Cocunás o modo um tanto brutal com que tratava a sua amiga duquesa de Nevers, à qual o piemontês se não tinha dirigido por causa duma grande desavença que entre eles existia havia dois ou três dias. Foi, pois, introduzido no aposento da rainha logo que lhe mandou dar parte de que estava ali.

Cocunás entrou sem poder vencer o embaraço de que tinha falado a de Alençon, que sentia sempre em presença da rainha, e que provinha mais da superioridade do espírito do que da hierarquia; porém Margarida recebeu-o com um sorriso que logo o tranquilizou.

- Minha Senhora - disse ele -, pela sua vida lhe suplico que me restitua o meu amigo, ou que, ao menos, me diga o que é feito dele, porque sem ele não posso viver. Suponha Euríalo sem Niso, Dámon sem Pítio, ou Orestes sem Pílades, e compadeça-se da minha desventura por

intercessão dalgum desses heróis que acabo de citar, e cujos corações, eu lho juro, não ganhavam em ternura ao meu.

Margarida sorriu e, depois de ter obrigado Cocunás a prometer-lhe que guardaria segredo,

contou-lhe a fuga da janela.

Quanto ao lugar da sua residência, por mais instantes que fossem as súplicas do piemontês,

guardou sobre este ponto o mais profundo silêncio. Isto apenas satisfazia em parte Cocunás: por isso alargou-se, sem o querer, sobre pontos de diplomacia da mais alta importância, daí resultou    ver Margarida claramente que o duque de Alençon tinha uma boa parte nesse desejo que o fidalgo da sua casa manifestava de saber o que era feito de La Mole.

- Pois bem - disse a rainha -, se quer absolutamente saber alguma coisa positiva a respeito do seu amigo, pergunte ao rei de Navarra, que é o único que tem direito de falar; da minha parte, tudo o que posso dizer-lhe é que aquele a quem procura está vivo. Creia na minha palavra.

- Creio numa coisa ainda mais certa, minha Senhora, isto é, nos seus belos olhos, que não choraram.

E, julgando que nada havia que acrescentar a uma frase que tinha a dupla vantagem de manifestar o seu pensamento e de exprimir a alta opinião que formava do mérito de La Mole, Cocunás retirou-se, pensando numa reconciliação com a Sr. a de Nevers, não por causa dela pessoalmente, mas para saber dela o que não pudera saber de Margarida.

As grandes dores são situações anormais, de cuja opressão o espírito se subtrai logo que pode.

A ideia de se apartar de Margarida tinha desde o primeiro instante dilacerado o coração de La    

Mole, e foi mais para salvar a reputação da rainha do que para preservar a sua própria vida que ele condescendera em fugir.

Assim, logo no dia seguinte, à noite, tinha ele voltado a Paris para ver Margarida na janela.

Por seu lado, Margarida, como se uma voz oculta lhe tivesse noticiado a volta do mancebo, passara toda a tarde à janela, e daí resultou tornarem-se ambos a ver, experimentando essa ventura que acompanha os gozos proibidos. Ainda mais: o espírito melancólico e romanesco de La Mole achava um certo encanto neste contratempo. Mas, como o amante verdadeiramente ferido não é feliz senão por um momento - aquele em que vê ou possui -, e sofre enquanto dura a ausência, La Mole, ardendo em desejos de tornar a ver Margarida, tratou de dispor o mais breve possível o acontecimento que devia restituir-lha, isto é, a fuga do rei de Navarra.

Pela parte que lhe tocava, Margarida entregava-se toda à ventura de ser amada com tão pura dedicação. Exprobrava-se muitas vezes daquilo que considerava uma fraqueza; ela, espírito varonil, que desprezava as frioleiras do amor vulgar; ela, insensível às minúcias que para as almas       ternas constituem a mais doce, a mais delicada, a mais apetecível de todas as felicidades, considerava agora o seu dia, senão venturosamente cheio, ao menos venturosamente terminado, quando ao chegar à janela, por volta das nove horas, vestida com um simples roupão branco, descobria no cais, e meio oculto na sombra, um cavaleiro cuja mão pousava nos lábios ou no peito; era então uma tosse significativa o que ia levar ao amante a recordação da voz amada.

Algumas vezes era também um bilhete atirado com força por uma pequena mão, no qual      ia embrulhada alguma jóia preciosa, muito mais preciosa ainda por ter pertencido àquela que a mandava do que pela matéria que lhe dava o valor, e que ia tinir na calçada a alguns passos do mancebo. La Mole caía então, semelhante a um milhafre, sobre essa presa; apertava-a contra

o peito, respondia servindo-se do mesmo expediente, e Margarida não saía da varanda senão quando já não podia ouvir os passos do cavalo, que era forçado a correr a toda a brida quando vinha, e que na volta parecia de matéria tão inerte como o famoso colosso que perdeu Tróia.

Eis o motivo por que a rainha não estava inquieta pela sorte de La Mole, ao qual, não obstante, ela recusava obstinadamente qualquer outro encontro além dessas entrevistas à espanhola, que duravam desde a sua fuga, e que se repetiam todas as noites desses dias que se passavam à espera da recepção dos embaixadores, recepção, que, como se viu, fora adiada por alguns dias por ordem expressa de Ambrósio Paré.

Na véspera da recepção, por volta das nove horas da noite, quando todos no Louvre se ocupavam com os preparativos para o dia seguinte, Margarida abriu a janela e foi à varanda. Apenas a viu, La Mole, mais apressado do que costumava, não esperou pela carta que sempre se lhe atirava: enviou a sua, que veio, com a destreza habitual, cair aos pés da Real Senhora. Margarida persuadiu-se logo que a missiva devia conter alguma coisa particular, e recolheu-se para a ler.

O bilhete dizia no reverso da primeira folha:

Minha Senhora, preciso de falar ao rei de Navarra; o negócio é urgente. Espero.

E no reverso da segunda, liam-se estas palavras, que se podiam isolar das primeiras separando as duas folhas:

Minha Senhora e minha rainha, veja o modo com que eu possa dar-lhe um destes abraços que lhe envio. Espero.

Mal acabava Margarida de ler esta segunda parte da carta, ouviu a voz de Henrique de Navarra, o qual, com a sua reserva habitual, batia à porta comum, e perguntava a Gillonne se podia entrar.

A rainha separou imediatamente as folhas da carta, meteu uma no seio e a outra na algibeira, foi à janela, fechou-a e correu para a porta.

- Pode entrar - disse ela.

Apesar de Margarida ter fechado a janela sem o menor ruído, o mais depressa e habilmente que era possível, o movimento fora percebido por Henrique, cujos sentidos, sempre aplicados, tinham quase adquirido, no meio dessa sociedade de que ele sempre desconfiava tanto, a exímia sensibilidade a que são levados no homem que vive no estado selvagem.

Mas o rei de Navarra não era um desses tiranos que proibem às suas mulheres o fresco ou contemplarem as estrelas.

Henrique estava risonho e gracioso como de costume.

- Minha Senhora - disse ele -, enquanto todos os nossos cortesãos provam os seus trajos de gala, quis eu vir trocar com Vossa Majestade algumas palavras acerca dos meus negócios, que Vossa Majestade continua a encarar como seus, não é assim?

- Certamente - respondeu Margarida -, porventura os nossos interesses não são sempre os mesmos?

- Sim, minha Senhora; e é por esse motivo que eu vinha perguntar-lhe o que pensa do Sr. de Alençon, que há dias anda a fugir de mim, a ponto de se conservar retirado em São Germano desde anteontem. Não será isso um meio para poder partir só, visto que é pouco vigiado, ou um meio para não partir? Digne-se de me dar o seu parecer; confesso-lhe que ele será para mim de grande peso.

- Vossa Majestade tem razão em se inquietar pelo silêncio de meu irmão. Tenho pensado nisso todo o dia, e o que me parece é que, tendo mudado as circunstâncias, ele mudou com elas.

- Quer dizer que, vendo ele o rei Carlos doente, o duque de Anjou rei da Polónia, não desestimaria conservar-se em Paris para guardar à vista a coroa de França; não é isto?

- Justamente.

- Seja. É o mais que eu podia desejar - disse Henrique. - Se fica, isso muda todo o nosso plano; porque, para partir só, preciso de três vezes mais garantias do que precisaria para partir com seu irmão, cujo nome e presença na empresa me serviriam de salvaguarda. O que me admira unicamente é não ouvir falar de de Mouy. Não é seu costume estar assim sem se mover. Não teria tido por acaso alguma notícia dele, minha Senhora?

- Eu, senhor? - disse Margarida admirada - e como quer Vossa Majestade.

- E que tinha isso, minha amiga? Nada haveria mais natural; não se dignou Vossa Majestade, para me dar gosto, salvar a vida a La Mole?. Esse mancebo devia ter ido a Nantes. e quando se lá vai, pode-se voltar.

- Ah! eis o que me explica um enigma cuja decifração não podia achar - respondeu Margarida. - Eu tinha deixado a janela aberta, e quando entrei achei sobre o tapete uma espécie de bilhete.

- Então, não querem ver!. - disse Henrique.

- Um bilhete do qual nada compreendi a princípio, e ao qual não liguei importância alguma

- continuou Margarida. - Não tive razão talvez; quem sabe se ele não virá desse lado.

- É possível - disse Henrique -, ousarei mesmo dizer que é provável. Posso ver esse bilhete?

- Sem dúvida, Senhor - respondeu Margarida, entregando ao rei a folha de papel que tinha metido na algibeira.

O rei correu-a com os olhos.

- Esta letra não é do Sr. de La Mole? - disse ele.

- Não sei - respondeu Margarida -, o talhe pareceu-me contrafeito.

- Não importa; vejamos o que diz - acrescentou Henrique.

E leu:

Minha Senhora, preciso de falar ao rei de Navarra; o negócio é urgente. Espero.

- Então não vê?. - continuou Henrique - diz que espera.

- Bem vejo. - disse Margarida. - Mas que quer Vossa Majestade?

- Que quero?. Meu Deus! quero que ele venha!

- Que ele venha? - bradou Margarida, fixando no marido os seus belos olhos admirados

- como pode Vossa Majestade dizer semelhante coisa? Um homem a quem o rei quis matar. que está assinalado, ameaçado? que ele venha! diz Vossa Majestade; pois isso é possível? Fizeram-se acaso as portas para aqueles que foram.

- Obrigados a fugir pela janela. é isso que quer dizer?

- Justamente, acabou o meu pensamento.

- Pois, se assim é, se eles sabem o caminho da janela, tornem a tomar esse caminho, visto que não podem absolutamente entrar pela porta. Isto é muito simples.

- Crê isso? - disse Margarida, corando de prazer com a ideia de se tornar a ver junto de La Mole.

- Pois que dificuldades lhe acha?

- E como há-de subir? - perguntou a rainha.

- Vossa Majestade não guardou a escada de corda que lhe mandei? Se o não fez, desmentiu a sua previdência habitual.

- Tenho-a ali - disse Margarida.

- Então não falta nada - disse Henrique.

- Que ordena então Vossa Majestade?

- Não há nada mais simples - respondeu Henrique -, ate-a à varanda e deixe-a cair. Se for de Mouy que espera (o que estou inclinado a crer), e se esse digno amigo quiser subir, não tardará a fazê-lo.

E sem perder nada da sua fleuma, Henrique pegou na vela para alumiar Margarida, enquanto ela procurava a escada, que não custou muito a achar; estava fechada num armário do famigerado gabinete.

- Aí está - disse Henrique -, é ela mesma. Agora, minha Senhora, se não é abusar muito da sua condescendência, peço-lhe que ate esta escada à varanda.

- Porque hei-de ser eu, e não Vossa Majestade? - disse Margarida.

- Porque os melhores conspiradores são os mais prudentes. A vista dum homem perturbaria talvez o meu amigo; bem vê.

Margarida sorriu e atou a escada.

- Aí - disse Henrique, ficando oculto no canto do quarto -, esteja bem à vista; agora mostre a escada. Belo! estou que de Mouy vai subir.

Com efeito, passados dez minutos, um homem, ébrio de alegria, galgou as grades da janela, e, vendo que a rainha não ia ao seu encontro, ficou hesitante alguns segundos. Mas, na falta de Margarida, apareceu-lhe Henrique.

- Oh! - disse ele graciosamente - não é de Mouy, é o Sr. de La Mole. Boa noite, Sr. de La Mole; queira entrar.

La Mole ficou por um instante absorto. Talvez que se ainda estivesse suspenso na escada, em vez de pousar em cheio sobre a janela, caísse para trás.

- O senhor desejava falar com o rei de Navarra sobre negócios urgentes - disse Margarida

-,   preveni-o disso, e aqui o tem. Henrique foi fechar a janela.

- Quanto te amo! - disse Margarida, apertando vivamente a mão do mancebo.

- Então que temos, Senhor? - disse Henrique, apresentando uma cadeira a La Mole. - Que vem comunicar-me?.

- Que deixei o Sr. de Mouy na barreira - respondeu La Mole -, e ele deseja saber se Maurevel falou, e se se sabe que ele esteve nos aposentos de Vossa Majestade.

- Ainda não, mas não tardará; convém portanto apressarmo-nos.

- A opinião de Vossa Majestade é a dele, meu Senhor, e se amanhã à noite o Sr. de Alençon estiver pronto a partir, de Mouy achar-se-à na Ponte de S. Marcelo com cento e cinquenta homens; esperar-nos-ão quinhentos em Fontainebleau; e daí ganhará Vossa Majestade Blois, Angoulême e Bordéus.

- Minha Senhora - disse Henrique, voltando-se para a rainha -, por minha parte estarei pronto amanhã; e Vossa Majestade também estará?

Os olhos de La Mole pregaram-se nos de Margarida com profunda ansiedade.

- Vossa Majestade tem a minha palavra - disse a rainha -, seja para onde for, hei-de segui-lo; mas bem sabe que convém que o Sr. de Alençon parta ao mesmo tempo que nós. Nada de estabelecer meio termo com ele: ou nos serve, ou nos atraiçoa; se hesitar, não nos movamos.

- Ele sabe alguma coisa deste projecto, Sr. de La Mole? - perguntou Henrique.

- Devia receber há dias uma carta do Sr. de Mouy.

- Que tal! - disse Henrique - e não me falou em coisa alguma!.

- Desconfie, Senhor - disse Margarida -, desconfie.

- Sossegue, eu estou em guarda. Como se poderá dar uma resposta a de Mouy?

- Não lhe dê isso cuidado, Senhor. À direita ou à esquerda de Vossa Majestade, visível ou invisível, amanhã, durante a recepção dos embaixadores, ele há-de lá estar: basta uma palavra no discurso da rainha que lhe dê a entender se Vossa Majestade consente ou não, se ele deve fugir ou esperar. Se o duque de Alençon recusar ele só pede quinze dias para reorganizar tudo em nome de Vossa Majestade.

- Realmente - disse Henrique -, de Mouy é um homem precioso. Poderá Vossa Majestade intercalar no seu discurso a frase esperada, minha Senhora?

- Não há nada mais fácil - respondeu Margarida.

- Bem - disse Henrique -, procurarei amanhã o Sr. de Alençon; de Mouy que esteja no seu posto e faça por ouvir.

- Lá há-de estar, meu Senhor.

- Vá então levar-lhe a minha resposta, Sr. de La Mole. Tem certamente nas imediações do palácio um cavalo e um criado, não é assim?

- Orthon está-me esperando no cais.

- Trate de se lhe reunir, Senhor Conde. Oh! pela janela não, isso é bom para os casos extremos. Poderiam vê-lo, e não se sabendo que se expunha assim por minha causa, iria comprometer a rainha.

- Mas. por onde, meu Senhor?.

- Se não pode entrar no Louvre, pode sair comigo, que tenho a senha. O senhor tem o seu capote, eu tenho o meu: embuçar-nos-emos ambos, e atravessaremos a rede sem dificuldade. Demais, desejo dar algumas ordens particulares a Orthon. Espere aqui; vou ver se está alguém nos corredores.

Henrique saiu, com o ar mais natural do mundo, para ir explorar o caminho. La Mole ficou a sós com a rainha.

- Oh! quando a tornarei a ver? - disse La Mole.

- Amanhã à noite, se fugirmos; uma destas noites, na casa da Rua do Sino Rachado, se ficarmos.

- Sr. de La Mole - disse Henrique, entrando -, pode vir, não há ninguém. La Mole inclinou-se respeitosamente diante da rainha.

- Dê-lhe a sua mão a beijar - disse Henrique -, o Sr. de La Mole não é um servidor comum.

Margarida obedeceu.

- Não se esqueça - disse Henrique - de guardar bem a escada de corda; é um objecto precioso para conspiradores; pode-se precisar dela quando menos se esperar. Venha, Sr. de La Mole, venha.

 

                 OS EMBAIXADORES

No dia seguinte, toda a população de Paris tinha corrido para o arrabalde de Santo António, por onde se havia decidido que os embaixadores fariam a sua entrada. Uma ala de suíços sustinha a multidão, e destacamentos de cavalaria protegiam a circulação das carruagens dos senhores e das damas da corte que iam ao encontro do préstito.

Não tardou a aparecer, na altura da Abadia de Santo António, um corpo de cavaleiros vestidos de vermelho e amarelo, com gorros e capas forradas de peles, e empunhando sabres largos e curvos como alfanges turcos.

Os oficiais marchavam nos flancos da linha.

Na retaguarda deste primeiro corpo vinha outro, equipado com um luxo verdadeiramente oriental. Precedia ele os embaixadores, que, em número de quatro, representavam magnificamente o mais mitológico dos reinos cavaleirosos do século xvi.

Um desses embaixadores era o bispo de Cracóvia. Trazia um vestuário meio pontifical, meio guerreiro, mas resplandecente de ouro e de pedras preciosas. O seu cavalo branco, de longas crinas soltas, e a passo de manejo, parecia lançar fogo pelas ventas; ninguém diria que havia um mês que aquele pobre animal andava quinze léguas por dia, por caminhos que o mau tempo havia tornado quase impraticáveis.

Ao lado do bispo vinha o palatino Lasco, poderoso senhor tão chegado que possuía a riqueza e tinha o orgulho dum rei.

Após os dois embaixadores principais, que eram acompanhados por dois palatinos de alta linhagem, vinha grande quantidade de senhores polacos, cujos cavalos, ajaezados de seda, de ouro e pedras preciosas, excitaram a estrondosa aprovação do povo. Realmente, os cavaleiros franceses, não obstante a riqueza das suas equipagens, eram completamente eclipsados por esses recém-chegados, a quem desdenhosamente chamavam bárbaros.

Catarina esperara até ao último momento que a recepção fosse outra vez adiada, e que a decisão do rei cedesse à sua fraqueza, que continuava. Mas logo que chegou o dia, quando ela viu Carlos, pálido como um espectro, revestir o esplêndido manto real, assentou que convinha dobrar-se na aparência a essa vontade de ferro, e começou a crer que o partido mais seguro para Henrique de Anjou era o magnífico exílio a, que estava condenado.

Além das poucas palavras que proferira, quando abriu os olhos no momento em que a mãe saía do gabinete, ainda Carlos não tinha falado a Catarina depois da cena que produzira a crise a que ele por pouco não sucumbira. Todos sabiam no Louvre que tinha havido uma terrível altercação entre eles, sem penetrarem a causa; e ainda os mais ousados tremiam dessa frieza e desse silêncio, como tremem os pássaros da calma ameaçadora que precede a tempestade.

No entanto, tudo se tinha preparado no Louvre, não como para uma função, mas como para uma cerimónia lúgubre. A obediência de cada um tinha sido triste e passiva. Sabia-se que Catarina havia quase tremido, e todos tremiam.

Tinha-se preparado a sala grande de recepção do palácio, e como semelhantes sessões eram ordinariamente públicas, fora dada ordem às guardas e sentinelas para deixarem entrar com os embaixadores todo o povo que as salas e os pátios pudessem conter.

Quanto a Paris, o seu aspecto era sempre o que a grande cidade apresenta em circunstâncias semelhantes; isto é, movimento e curiosidade. Porém, aquele que considerasse bem nesse dia a população da capital, reconheceria entre os grupos compostos desses honestos burgueses, naturalmente simplórios e de bocas abertas, bom número de homens embuçados em grandes capotes, correspondendo-se por olhares e acenos quando estavam a distância e trocando em voz baixa algumas palavras rápidas e significativas todas as vezes que se aproximavam. Esses homens, quanto ao mais, mostravam-se muito entretidos com o préstito, eram dos primeiros que o seguiam, e pareciam receber as ordens dum velho venerando, cujos olhos negros e vivos faziam sobressair, apesar da barba branca e das sobrancelhas grisalhas, a actividade dos verdes anos. Com efeito, esse velho, ou por seus próprios meios, ou ajudado pelos esforços dos companheiros, conseguiu ser dos primeiros que se introduziu no Louvre e, graças à complacência do chefe dos suíços, digno huguenote, muito pouco católico apesar da sua conversão, achou meio de se postar por detrás dos embaixadores, justamente defronte de Margarida e de Henrique de Navarra.

Henrique, prevenido por La Mole que de Mouy devia, sob um disfarce qualquer, assistir à sessão, olhava para todos os lados. Os seus olhos depararam, finalmente, com os do velho, e não o deixaram mais. Um sinal de de Mouy desvanecera todas as dúvidas do rei de Navarra, porque de Mouy estava tão bem disfarçado, que o próprio Henrique duvidara que esse homem de barbas brancas pudesse ser o mesmo intrépido chefe dos huguenotes que cinco ou seis dias antes se defendera com tanto denodo.

Uma palavra de Henrique, pronunciada ao ouvido de Margarida, fixou o olhar da rainha em de Mouy. Os seus belos olhos alongaram-se depois para todos os cantos da sala; procurava La Mole, mas inutilmente: La Mole não estava ali.

Começaram os discursos. O primeiro foi dirigido ao rei. Lasco pedia- lhe, em nome da Dieta, que assentisse a que a coroa da Polónia fosse oferecida a um príncipe da Casa de França.

Carlos respondeu com uma adesão precisa, apresentando o duque de Anjou, seu irmão, de cujo valor ele fez grande elogio aos enviados polacos. Falava em francês, e um intérprete traduzia a sua resposta no fim de cada período. Enquanto, porém, falava esse intérprete, podia-se ver que o rei chegava à boca um lenço, que de todas as vezes vinha tinto de sangue.

Quando terminou a resposta de Carlos, Lasco voltou-se para o duque de Anjou, inclinou-se, e começou um discurso latino, no qual lhe oferecia o trono em nome da nação polaca.

O duque respondeu na mesma língua, dizendo, com uma voz acompanhada de certa emoção (que em vão buscava conter) que aceitava com reconhecimento a honra que se lhe fazia. Por todo o tempo que seu irmão falou, Carlos esteve de pé, com os lábios cerrados e os olhos fixos nele, imóveis e ameaçadores como os duma águia.

Quando o duque de Anjou acabou, Lasco pegou na coroa, que lhe apresentaram numa almofada de veludo carmesim, e enquanto dois senhores polacos revestiam o duque de Anjou com o manto real, depôs ele a coroa nas mãos de Carlos.

Carlos fez um sinal a seu irmão. De Anjou veio ajoelhar-se diante dele, e Carlos pôs-lhe por suas mãos a coroa na cabeça: feito isto, trocaram os dois reis o ósculo mais odiento que dois irmãos jamais trocaram.

Imediatamente, bradou um arauto:

Alexandre Eduardo Henrique de França, duque de Anjou, está coroado rei da Polónia. Viva o rei da Polónia!

Toda a assembleia repetiu num só brado:

Viva o rei da Polónia!

Lasco voltou-se então para Margarida. O discurso da bela rainha fora guardado para o último lugar. Ora, como era uma galantaria que lhe fora concedida para fazer brilhar o seu belo génio, como então se dizia, todos prestaram grande atenção à resposta, que devia ser em latim. Já dissemos que era composição de Margarida.

O discurso de Lasco foi mais um elogio do que um discurso. Apesar de sármata, cedera à admiração que a todos inspirava a bela rainha de Navarra.

Servindo-se da língua de Ovídio, empregou o estilo de Ronsard e disse que, partindo de Varsóvia no meio da mais profunda noite, nem ele nem os seus companheiros dariam certamente com o caminho se, como os reis Magos, e ainda mais felizes do que estes, não tivessem sido guiados por duas estrelas, cujo fulgor se tornava mais vivo à proporção que eles se aproximavam de França, e que reconheciam agora serem os dois belos olhos da rainha de Navarra. Passado, final mente, do Evangelho ao Alcorão, da Síria à Arábia Pétrea, de Nazaré a Meca, terminou dizendo que estava pronto a fazer o que faziam os ardentes sectários do Profeta, os quais, logo que haviam tido a ventura de contemplar o seu túmulo, arrancavam os olhos, julgando que, depois do gozo duma tão bela vista, não havia mais nada no mundo que valesse a pena admirar.

Este discurso foi coberto de aplausos da parte daqueles que falavam latim, porque partilhavam a opinião do orador; e da parte dos que não entendiam, porque queriam afectar o contrário.

Margarida dirigiu primeiro uma graciosa reverência ao galante sármata, e fixando depois os olhos em de Mouy, ao mesmo tempo que respondia ao embaixador, começou nestes termos:

Quod nunc hac aula inesperatx adestis exultaremus ego et rex conjux nisi ideo immineret calamitas, scilicet non solumframs sed etiam amici oróitas.

Estas palavras tinham dois sentidos; dirigindo-se a de Mouy, podiam ser aplicadas a Henrique de Anjou. Por isso fez este último uma saudação em sinal de reconhecimento.

Carlos não se recordou de haver lido esta frase no discurso que lhe fora mostrado alguns dias antes; mas não ligava grande importância às palavras de Margarida, que sabia não serem mais do que um discurso de simples cumprimento. Demais, ele compreendia muito mal o latim.

Margarida continuou:

Adeo dolemur a te dividi ut tecumprnsá maluissemus. Sed idemfatum guo nunc sine ulla mora Lutetia mora cederejuberis hac in urbe detinet Profscere ergo, frater proscere amice: proscere sine noóis. Prof. sciscentem seg'uuntur apes et desideria nostra. 2

 

  1. A vossa presença inesperada nesta corte encher-nos-ia de júbilo, a mim e a el-rei meu marido, se não viesse pro duzir um grande infortúnio, isto é, não só a perda dum irmão como a dum amigo.
  2. Desespera-nos ficarmos separados de ti, quando muito desejávamos acompanhar-te; porém, o mesmo destino que te manda sair de Paris sem demora, nos prende a nós nesta cidade. Parte, pois, caro irmão; parte, caro amigo; parte sem nós. Acompanhar-te-ão a nossa esperança e os nossos desejos.

 

Como é de crer, de Mouy escutava com profunda atenção estas palavras, que, dirigidas aos embaixadores, eram proferidas só para e ele; Henrique não deixara por duas ou três vezes de fazer um sinal negativo com a cabeça para que o jovem huguenote compreendesse que de Alençon tinha recusado; mas esse gesto, que podia ser um efeito do acaso, pareceria insuficiente a de Mouy, se as palavras de Margarida o não tivessem confirmado.

Ora, enquanto ele olhava para Margarida, e parecia ser todo ouvidos, os seus olhos pretos, tão brilhantes sob sobrancelhas grisalhas, chamaram a atenção de Catarina, que estremeceu como o faria recebendo um choque eléctrico, e que não deixou mais de olhar para esse lado da sala.

Que figura tão célebre! - disse ela consigo, continuando a compor o semblante conforme as leis do cerimonial. - Quem será este homem que olha com tanta atenção para Margarida, e que ela e o rei de Navarra tanto encaram?

A rainha de Navarra continuava entretanto o seu discurso, que desde então não continha mais do que a resposta aos cumprimentos dos embaixadores. Catarina quebrava a cabeça querendo adivinhar o nome daquele belo velho, quando o mestre de cerimónias se chegou por detrás dela e lhe entregou um saquinho de cetim perfumado, que continha um papel dobrado em quatro partes. Abriu o saquinho, tirou o papel e leu estas palavras:

Maurevel ganhou algumas forças depois de tomar um cordial que lhe dei, e pôde escrever o nome do homem que estava no quarto do rei de Navarra. Esse homem é o Sr de Mouy.

De Mouy. - disse a rainha consigo. - Oh! eu tinha um pressentimento que era ele. Mas, aquele velho. por Deus! aquele velho é.

Catarina ficou com os olhos fixos e a boca aberta.

Inclinando-se depois ao ouvido do capitão das guardas, que estava ao seu lado, disse-lhe:

- Olhe, mas de modo que se não perceba, para o Sr. Lasco, aquele que está falando; não vê por detrás dele um velho de barbas brancas, vestido de veludo preto?.

- Vejo, sim, minha Senhora - respondeu o capitão.

- Bom. Não o perca de vista.

- É aquele a quem o rei de Navarra está fazendo um sinal?

- Justamente. Vá postar-se na porta do Louvre com dez homens; e quando ele sair, convide-o para jantar da parte do rei de Navarra. Se ele aceitar, conduza-o para um quarto e conserve-o preso. Se resistir, segure-o e traga-o morto ou vivo. Vá, vá já!

Felizmente, Henrique, pouco atento ao discurso de Margarida, estava olhando para Catarina sem perder uma só expressão do seu rosto. Ao ver os olhos da rainha-mãe tão encarniçadamente pregados em de Mouy teve receio; e ao ver-lhe dar uma ordem ao capitão das guardas, percebeu tudo.

Foi nesse momento que fez o gesto que o Sr. de Nancey surpreendera, e que, na língua dos sinais, queria dizer: está descoberto, fuja imediatamente!

De Mouy percebeu esse gesto, que rematava tão bem a porção que lhe coubera do discurso de Margarida. Não esperou que lho repetissem: perdeu-se por entre a multidão e desapareceu.

Mas Henrique não ficou sossegado senão quando viu o Sr. de Nancey voltar para junto de Catarina, e percebeu, pela contracção do rosto da rainha-mãe, que ele lhe dava parte de que tinha chegado muito tarde.

A audiência estava acabada. Margarida trocava ainda algumas palavras não oficiais com Lasco. O rei levantou-se com dificuldade, cumprimentou a todos e saiu encostado ao ombro de Ambrósio Paré, que não se tirava de ao pé dele desde o acidente que lhe sobreviera.

Catarina, pálida de cólera, e Henrique, mudo de dor, acompanharam- no. Quanto ao duque de Alençon, tinha ficado completamente no escuro durante a cerimónia.

Os olhos de Carlos, que se não tinham desviado um só instante do duque de Anjou, nenhuma vez se empregaram nele.

O novo rei da Polónia sentia-se perdido.

Longe da mãe, arrebatado por esses bárbaros do Norte, estava qual outro Anteu, esse filho da Terra que perdia as forças levantado nos braços de Hércules. Uma vez fora das fronteiras, o duque de Anjou considerava-se excluído para sempre do trono de França.

Assim, em vez de acompanhar o rei, retirou- se para os aposentos da rainha-mãe. Achou-a não menos sombria e não menos preocupada do que ele mesmo, porque não pensava senão nesse semblante sagaz e escarnecedor que não perdera de vista por todo o tempo da cerimónia, nesse bearnês, a quem o destino parecia abrir lugar, varrendo em torno dele reis, príncipes assassinos, os seus inimigos e os seus obstáculos.

Ao ver o filho predilecto pálido sob a coroa, quebrantado sob o manto real, pondo, sem dizer uma palavra, em ar de súplica, as suas belas mãos que se pareciam com as da mãe, Catarina levantou-se e foi ao seu encontro.

- Oh! minha mãe! - bradou o rei da Polónia - eis-me condenado a morrer no exílio!

- Meu filho - disse Catarina -, já se esqueceu tão depressa da predição de Renato? Sossegue, não há-de estar lá muito tempo.

- Minha mãe, rogo-lhe, com toda a instância, que me previna ao primeiro sinal, à primeira suspeita de que a coroa de França esteja para vagar.

- Sossegue, meu filho - disse Catarina. - Até ao dia que ambos esperamos, haverá incessantemente na minha cavalariça um cavalo selado, e na minha antecâmara um correio pronto a partir para a Polónia.

 

           ORESTES E PÍLADES

Logo que partiu o duque de Anjou, pode dizer-se que a paz e a felicidade voltaram a sentar-se no Louvre, ao lado dessa família de atridas.

Carlos, esquecendo a sua melancolia, recobrava a sua vigorosa saúde, caçando com Henrique, e falando de caça com ele nos dias em que não podia caçar; só não lhe levava a bem uma coisa: era a sua indiferença pela volataria, dizendo-lhe que seria um príncipe perfeito se soubesse adestrar os falcões, os gerifaltes e os açores, como sabia ensinar galgos e perdigueiros.

Catarina havia-se tornado boa mãe: dócil para Carlos e para de Alençon, carinhosa para Henrique e Margarida, agradável para as Sr. de Nevers e de Sauve; e, como pretexto de que Maurevel fora ferido no cumprimento duma ordem sua, levou a bondade da alma ao ponto de ir visitar por duas vezes esse oficial, convalescente na sua casa da Rua do Cerejal.

Margarida continuava nos seus amores à espanhola.

Todas as noites abria a janela, e correspondia-se com La Mole por sinais e por escrito; e em todas as cartas lembrava o mancebo à sua bela rainha a promessa que esta lhe fizera de alguns doces instantes, em prémio do seu exílio, na Rua do Sino Rachado.

Uma única pessoa estava só no Louvre, presentemente tão calmo, tão sossegado. Essa pessoa era o nosso amigo conde Aníbal de Cocunás.

Era certamente já alguma coisa para ele, o saber que La Mole vivia; era muito continuar a ser o preferido da Sr de Nevers, a mais jovial e fantástica de todas as mulheres. Mas toda a ventura desses entretenimentos a sós com a bela duquesa, todo o sossego de espírito que Margarida dava a Cocunás a respeito da sorte do amigo comum, não valiam aos olhos do piemontês uma hora passada com La Mole em casa de La Hurière, diante dum canjirão de bom vinho, ou duma dessas aventurosas excursões feitas por todos os lugares de Paris, onde um honrado fidalgo podia apanhar alguns rasgões na pele, na bolsa ou no gibão.

A Sr. de Nevers, devemos confessá-lo para vergonha da humanidade, suportava com impaciência essa rivalidade de La Mole. Não era porque ela detestasse o provençal; pelo contrário: arrastada pelo instinto irresistível que faz com que toda a mulher seja travessa, a seu pesar, com o amante doutra mulher, principalmente quando esta é sua amiga, não tinha ela poupado para com La Mole os raios dos seus olhos de esmeralda, e Cocunás teria razão de invejar os francos apertos de mão e o dispêndio de amabilidades feito pela duquesa a favor do seu amigo, nesses dias de capricho em que o astro do piemontês parecia amortecer-se no céu da sua bela amante; mas Cocunás, que não faria cerimónia alguma para esganar quinze pessoas por um só piscar de olhos da sua dama, tinha tão poucos ciúmes de La Mole, que muitas vezes, em virtude dessas inconsequências da duquesa, não duvidara fazer-lhe ao ouvido certas confidências, com que o provençal havia corado.

Este estado de coisas obrigou Henriqueta, a quem a ausência de La Mole privava de todas as vantagens que lhe procurava a companhia de Cocunás, isto é, da sua inexaurível jovialidade e dos seus insaciáveis caprichos de prazer, a vir um dia procurar Margarida, a fim de lhe suplicar que lhe restituísse esse parceiro obrigado, sem o qual o espírito e o coração de Cocunás se evaporavam diariamente.

Margarida, sempre compassiva, e demais a mais excitada pelas rogativas de La Mole e pelos desejos do seu próprio coração, conveio em encontrar-se com Henriqueta no dia seguinte na casa das duas portas, a fim de tratar ali a fundo dessas matérias numa conversação que ninguém pudesse interromper.

Cocunás não recebeu com muito bom humor o bilhete de Henriqueta, que o convidava para a Rua Tizon às nove horas e meia; não obstante, não deixou de lá ir, e já ali achou Henriqueta, bastante agastada por ter chegado primeiro.

- Ora, Sr. Cocunás - disse-lhe ela -, parece-me que não é muita cortesia fazer esperar assim, já não digo uma princesa, mas uma mulher!

- Esperar? - disse Cocunás - isso é mesmo seu! Eu aposto, pelo contrário, que ambos andámos muito adiantados.

- Eu, sim.

- Ah! e eu também; aposto que não são mais de dez horas.

- Mas o meu bilhete dizia às nove e meia.

- Por isso parti do Louvre às nove horas; e não o fiz antes porque estou hoje de serviço junto do Sr. de Alençon, o que (di-lo-ei de passagem) faz com que me não possa demorar aqui mais de uma hora.

- O que decerto estima bastante.

- Juro-lhe que não. O Sr. de Alençon é um amo muito enfadonho e impertinente; e a ter de aturar enfados e repreensões, antes quero recebê-los duma linda boquinha como a da Senhora Duquesa, do que duma boca torta como a dele.

- Está bem - disse a duquesa -, isso já é um pouco mais agradável de ouvir. Dizia então que tinha saído às nove horas do Louvre?

- É verdade, e com tenção de vir direito aqui; mas, olhando para a esquina da Rua de Grenelle, descobri um homem que me pareceu La Mole.

- Oh! ainda La Mole!

- Não só ainda, mas sempre, com sua licença ou sem ela.

- Atrevido!

- Bravo! - disse Cocunás - tornamos aos nossos galanteios?

- Não; mas acabe com as suas histórias.

- Não sou eu que peço para as contar; a senhora é que me está perguntando porque cheguei tarde.

- Decerto; pois era eu que devia chegar primeiro?.

- E a senhora não espera por ninguém?

- Está hoje impaciente, meu caro!. Mas, continue: descobriu então na esquina da Rua de Grenelle um homem que lhe pareceu La Mole. Mas. que é isso que tem no gibão? é sangue?

- Bravo! mais outro que me salpicou ao cair.

- Então bateu-se?

- Que dúvida!

- Pelo seu La Mole?

- E então por quem quer que me bata? por uma mulher?.

- Muito obrigada!

- Sigo o tal homem que tinha o desaforo de se parecer com o meu amigo. Alcanço-o na Rua Coquillière, passo-lhe adiante, e examino-o à luz duma loja. Não era ele.

- Bem feito!

- Sim, mas saiu-lhe caro o negócio. O senhor é muito tolo - disse- lhe eu - por se atrever a parecer-se de longe com o meu amigo Sr. de La Mole, que é um cavaleiro completo de longe, porque de perto bem se vê que não é senão um grande tolo. Ao ouvir isto, puxou da espada, e eu fiz o mesmo. Ao terceiro bote (veja que desastrado! ), caiu salpicando-me de sangue.

- E acudiu-lhe, ao menos?

- Ia fazê-lo, quando passou um cavaleiro. Ah! desta vez, duquesa, estou certo que era La Mole. Infelizmente o cavalo ia a galope. Pus-me a correr atrás do cavalo; e a gente que se juntara para me ver bater, correu atrás de mim. Receando, ao ouvir o alarido de toda essa canalha, que me tomassem por um ladrão que fugia, tive de me voltar para a dispersar, o que me fez perder algum tempo. Neste comenos desaparecera o cavalo. Fui à procura dele, perguntei a todos, dei a cor do cavalo; mas qual! tudo foi inútil; ninguém havia reparado. Finalmente, não tendo mais que fazer, vim para cá.

- Não tendo mais que fazer!. - disse a duquesa - isso é realmente para agradecer!

- Ouça, querida duquesa - disse Cocunás, atirando-se negligentemente para uma poltrona -, a senhora vai tornar a mortificar-me por causa do pobre La Mole; pois se o fizer, não tem razão. Olhe, a amizade. Eu quisera possuir o espírito ou a ciência desse pobre amigo, só assim é que depararia com alguma comparação pela qual a senhora pudesse conhecer a fundo o meu pensamento. Olhe, a amizade é uma estrela, ao passo que o amor. o amor. Achei a comparação: o amor é apenas uma vela. Dir- me-á que há diferentes espécies.

- De amores?

- Não, de velas; e que entre essas espécies há alguma que se deve preferir: a vela cor-de-rosa, por exemplo - seja a cor-de-rosa -, é a melhor; mas, apesar dessa linda cor, a vela gasta-se, ao passo que a estrela brilha sempre. Talvez que a senhora me responda a isto que, quando a vela está gasta, põe-se outra no castiçal.

- Sr. de Cocunás! isso é ser atrevido.

- Basta!

- É ser descarado.

- Basta! basta!

- É ser insolente.

- Minha Senhora, previno-a de que me vai fazer lamentar três vezes mais a ausência de La Mole.

- O senhor já não me ama.

- Pelo contrário, duquesa; vejo que não entende nada disto: idolatro- a. Mas, posso amá-la, querê-la, idolatrá-la e nas horas vagas fazer o elogio do meu amigo.

- Então chama horas vagas àquelas em que está junto de mim?

- E então, que quer? o pobre La Mole está continuadamente na minha ideia.

- Prefere-o a mim! isso é indigno. Olhe, Aníbal, detesto-o. Ouse ser franco, diga-me que o prefere. Mas, Aníbal, advirto-o de que, se prefere a mim alguma coisa no mundo.

- Henriqueta, duquesa mais do que todas bela! peço-lhe, pelo seu próprio sossego, que não me faça perguntas indiscretas. Amo-a mais do que todas as mulheres, mas amo La Mole mais do que todos os homens.

- Bem respondido! - disse subitamente uma voz estranha.

E uma cortina de damasco, levantada diante duma grande porta corrediça, que abria uma comunicação entre os dois quartos, deixou ver La Mole, postado dentro do quadro dessa porta como um belo retrato de Ticiano na sua moldura dourada.

- La Mole!. - bradou Cocunás, sem reparar em Margarida nem tratar de lhe agradecer a surpresa que ela lhe tinha preparado - La Mole, meu amigo! meu caro La Mole!

E lançou-se nos braços do seu amigo, fazendo cair a poltrona em que estava sentado e a mesa que havia no caminho.

La Mole, correspondendo com efusão aos seus abraços, e ao mesmo tempo dirigindo-se à duquesa de Nevers, disse:

- Perdoe-me, minha Senhora, se o meu nome, pronunciado entre Vossa Alteza e o meu amigo, pôde algumas vezes alterar a encantadora inteligência em que ambos estão; com toda a verdade lhe afirmo - acrescentou ele, olhando com ternura para Margarida - que não dependeu de mim torná-la a ver mais cedo.

- Então, Henriqueta - disse Margarida por sua vez -, não cumpri a minha palavra? Aqui o tens.

- Foi então só aos rogos da Senhora Duquesa que devi esta ventura? - perguntou La Mole.

- Só aos seus rogos - respondeu Margarida.

E voltando-se depois para La Mole, disse:

- La Mole, permito-lhe que não acredite uma só palavra do que digo.

Durante este tempo, Cocunás, que tinha abraçado dez vezes o seu amigo, que tinha andado vinte vezes à roda dele, e que lhe havia aproximado um candelabro do rosto para o ver bem à sua vontade, foi ajoelhar diante de Margarida e beijou-lhe a barra do vestido.

- Ora ainda bem - disse a duquesa -, agora começará a achar-me suportável.

- O quê! - bradou Cocunás - vou achá-la, como sempre, adorável! A diferença é que lho hei-de dizer de muito melhor vontade; oxalá tivera eu aqui uma trintena de polacos, de sárma tas e de outros bárbaros hiperbóreos, para os obrigar a confessar que a duquesa de Nevers é a rainha das belas.

- Olá! devagar Cocunás, devagar! - disse La Mole - e então Margarida.

- Não me desdigo - bradou Cocunás, com esse tom meio sério meio faceto que só ele sabia tomar -, Henriqueta é a rainha das belas e Margarida é a mais bela das belas rainhas.

Mas, por mais que dissesse ou fizesse, o piemontês, todo entregue à ventura de tornar a ver o seu caro La Mole, não tinha olhos senão para ele.

- Venha, minha bela rainha, venha; deixemos por uma hora estes bons amigos para conversarem a seu gosto; eles têm mil coisas a dizer um ao outro que viriam transtornar a nossa conversação. É duro para nós; mas previno-a de que é o único remédio capaz de sarar completamente o Sr. Aníbal. Faça isso por amor de mim, minha rainha, já que eu faço a asneira de amar esta ruim cabeça, como diz o seu amigo La Mole.

Margarida disse algumas palavras ao ouvido de La Mole, o qual, por mais desejos que tivesse tido de tornar a ver o seu amigo, não desestimaria que a ternura de Cocunás fosse menos exagerada. Neste intervalo, Cocunás tentava, à força de protestos, obter um sorriso natural e uma palavra doce dos belos lábios de Henriqueta.

As duas senhoras passaram então para a sala do lado, onde estava posta a ceia. Os dois amigos ficaram a sós.

Os primeiros pormenores que Cocunás exigiu do seu amigo foram, como era de supor, os dessa fatal noite em que ele por um triz que não perdeu a vida. À proporção que La Mole ia narrando o que lhe acontecera, o piemontês, que a este respeito, não era, como sabemos, muito fácil de comover, sentia estremecer-lhe todo o corpo.

- E porque é que - perguntou ele -, em vez de correres pelos campos, como fizeste, e de me dar tanto cuidado, não te foste refugiar nos aposentos do nosso amo? O duque, que te havia defendido, não deixaria de te dar asilo. Assim teria eu continuado a estar junto de ti, e a minha tristeza, posto que fingida, iludiria do mesmo modo esses papalvos da corte.

- Nosso amo - disse La Mole em voz baixa - o duque de Alençon?

- Sim. Depois que o ouvi, fiquei certo que foi a ele que deveste a vida.

- A vida devo-a ao rei de Navarra - respondeu La Mole.

- Oh! - bradou Cocunás - estás certo disso?

- Certíssimo.

- Oh! bom e excelente rei!. Mas, que faria o duque de Alençon no meio de tudo isso?

- Trazia a corda para me estrangular.

- Ah! cão! - bradou Cocunás - estás certo de que dizes, La Mole? O quê! pois esse príncipe desbotado, esse fraldiqueiro, esse gosmento, atreveu-se a querer estrangular o meu amigo? Com mil diabos! prometo-te que amanhã ele há-de saber o que eu penso duma tal acção.

- Estás doido?

- Tens razão, poderia fazer outra. Mas não importa, isso não há-de ficar assim!

- Basta, Cocunás; sossega, e lembra-te de que já deram onze horas e meia, e que estás de serviço esta noite.

- Bem me importa a mim o serviço dele! Conte com isso, que está aviado! O meu serviço!. Eu, servir um homem que trazia corda? Tu estás brincando! Não. isto foi mesmo a Providência. Estava escrito que eu devia achar-te para te não largar mais. Fico aqui.

- Mas reflecte um pouco, desgraçado, pois creio que não estás ébrio.

- Felizmente! porque se o estivesse, lançava fogo ao Louvre.

- Aníbal - tornou La Mole -, atende a razão. Volta para o paço. O serviço é uma coisa sagrada.

- Voltas tu comigo?

- Isso é impossível.

- Querer-te-iam ainda matar?

- Creio que não. Não tenho tanta importância para que haja um trama concertado contra mim, ou uma resolução seguida. Quiseram matar-me num momento de capricho, e nisso ficou tudo: eram os príncipes que se queriam divertir aquela noite.

- Que fazes agora?

- Eu? nada: vagueio por aí, passeio.

- Pois passearei como tu. É uma bela ocupação. E daí, se te atacarem, somos dois, havemos de lhes dar que fazer. Que venha para cá o insecto do teu duque: hei-de pregá-lo como uma borboleta na parede!

- Mas pede-lhe licença.

- Licença sem limite.

- Nesse caso, previne-o de que te separas dele.

- É muito justo. Concordo. Vou escrever- lhe.

- Escrever-lhe? isso é muita sem- cerimónia, Cocunás; a um príncipe de sangue!.

- De sangue? do sangue do meu amigo. Pois cuidas - bradou Cocunás, volvendo os seus grandes olhos trágicos - que eu faço caso de etiquetas?.

Com efeito - disse La Mole consigo - daqui a alguns dias não precisará nem do príncipe nem de ninguém, porque irá connosco se quiser.

Cocunás pegou portanto na pena sem mais oposição da parte do seu amigo, e escreveu expeditamente o seguinte:

Senhor Duque:

Não é crivel que Vossa Alteza, versado como é nos autores da Antiguidade não saiba a história tocante de Orestes e de Pilades, que eram dois heróis famigerados pelas suas desventuras epela amizade que os unia. O meu amigo la Mole não é menos desditoso do gue Orestes e eu não sou menos terno do que Pilades. Ele tem neste momento grandes ocupações que exigem o meu auxilio; portanto, é-me impossível separar-me dele. Isto me obriga a tomar por algum tempo uma dispensa de serviço, se Vossa Alteza não mandar o contrário, pois estou resolvido a ligar-me à fortuna dele, seja onde for que a sorte me conduza. Por aqui fará Vossa Alteza ideia de quão grande é a violência que me arranca do seu serviço, em virtude da qual não desespero de alcançar o meu perdão, e ouso continuar a considerar-me com o maior respeito, de Vossa Alteza Real humilíssimo e obediente criado, Anibal conde de Cocunás, amigo inseparável do Sr de La Mole.

Terminada esta obra-prima, leu-a Cocunás em voz alta a La Mole, que encolheu os ombros.

- Então? que te parece? - perguntou Cocunás, que não vira o movimento, ou que afectava não o ver.

- Digo - respondeu La Mole - que o Sr. de Alençon se vai rir de nós.

- De nós?

- Conjuntamente.

- Antes isso do que nos estrangular separadamente.

- Oh! - disse La Mole, rindo - uma coisa não embaraçará talvez a outra.

- Pois suceda o que suceder, amanhã de manhã mando a carta. Onde vamos nós ficar quando sairmos daqui?

- À hospedaria de mestre La Hurière, no pequeno quarto onde tu me quiseste apunhalar quando não éramos ainda Orestes e Pílades; creio que te lembras.

- Bem, mandarei a minha carta ao Louvre pelo nosso estalajadeiro.

Neste momento abriu-se a porta de corrediça.

- Então? - perguntaram as duas princesas ao mesmo tempo - em que ponto estão Orestes e Pílades?

- Estão morrendo de fome e de amor, minhas Senhoras - respondeu Cocunás. Foi com efeito mestre La Hurière quem, no dia seguinte, às nove horas da manhã, levou a respeitosa carta do Sr. Aníbal de Cocunás.

 

                 ORTHON

A amizade de Henrique para com o duque de Alençon, mesmo depois da recusa deste, que se fundava, além de tudo, no perigo que corria a sua própria vida, tornara-se ainda maior, se era possível, do que fora até então.

Catarina concluiu dessa intimidade que não só os dois príncipes se entendiam, mas que até conspiravam juntos. Interrogou Margarida a este respeito; porém Margarida era sua digna filha; e a rainha de Navarra, que sabia como ninguém evitar uma explicação arriscada, livrou-se de tal modo das perguntas da mãe, que, depois de responder a todas, deixou-a mais embaraçada do que nunca.

A florentina não teve pois outro fio que a dirigisse senão esse instinto de enredadora que trouxera da Toscana, que era o mais enredador dos pequenos Estados dessa época, e esse sentimento de rancor que bebera na corte de França, que era nesse tempo a corte mais dividida em interesses e opiniões.

Ela viu logo que uma parte da força do Bearnês provinha da aliança dele com o duque de Alençon; por conseguinte resolveu isolá- lo.

Desde o dia em que tomou essa resolução, empregou, para pôr o filho em estado de sítio, toda a paciência e habilidade do pescador que, lançando a rede longe do peixe, a vem arrastando insensivelmente até que o envolve por todos os lados.

O duque Francisco percebeu esta reduplicação de carinhos, e pela sua parte voltou-se um tanto para a mãe. Henrique fingiu, porém, que nada via, e vigiou o seu aliado de mais perto do que o fizera até então.

Cada um esperava um acontecimento.

Ora, enquanto estavam na expectativa desse acontecimento, certo para uns e provável para outros, uma manhã em que o Sol nascera rosado e destilando o brando calor e doce perfume que são prenúncios dum belo dia, um homem pálido, encostado a uma bengala e andando a custo, saiu duma pequena casa situada por detrás do Arsenal e tomou pela Rua do Petit-Musc.

Junto à Porta de Santo António, e depois de ter torneado o passeio que rodeava os fossos da Bastilha como um prado pantanoso, deixou o baluarte grande à esquerda, e entrou no Jardim da Besta, cujo porteiro o recebeu com grandes cortesias.

Não havia ninguém no jardim, o qual, como se depreendia do seu nome, pertencia a uma sociedade particular, a dos besteiros. Mas, se por ali estivessem alguns espectadores, o homem pálido despertar-lhes-ia decerto algum interesse, porque, pelos compridos bigodes, pelo passo, que conservava uma cadência militar, posto que um tanto frouxo em virtude do seu padecimento, bem se via que era algum oficial recém-ferido que procurava fortalecer-se com um passeio moderado, e recobrava a vida ao calor do Sol.

Não obstante (que singularidade! ), quando sucedia abrir-se o capote com que esse homem estava coberto, apesar do calor que começava a sentir-se, viam-se-lhe duas compridas pistolas pendentes dos fechos de prata do cinturão, o qual prendia, além disso, um grande punhal, e sustinha uma espada que ninguém diria que ele pudesse desembainhar, por colossal que era, e que, completando este arsenal ambulante, lhe batia com a bainha pelas pernas descarnadas e trémulas. Ainda mais: como adição a todas estas precauções, posto que solitário, lançava a cada passo em torno de si um olhar perscrutador, como se quisesse inquirir cada uma das alamedas, as cercas e os fossos.

Foi assim que esse homem se entranhou no jardim, e que a custo chegou a uma espécie de caramanchão que dava para os baluartes, dos quais estava apenas separado por uma cerca espessa e por um pequeno fosso. Ali, estendeu-se sobre um banco de relva próximo duma pequena mesa, para onde o guarda do estabelecimento, que reunia o título de porteiro e a indústria do taberneiro, lhe trouxe daí a um instante uma espécie de cordial.

Havia dez minutos que o doente estava ali; e já por vezes levara à boca a tigela de louça, cujo conteúdo ia bebendo aos goles, quando, apesar da extraordinária palidez de que estava coberto, o rosto lhe tomou repentinamente uma expressão medonha. Acabava de descobrir um cavaleiro embuçado num grande capote, que, vindo do lado da Cruz Faubin por uma vereda, que é hoje a Rua de Nápoles, parou junto do baluarte e esperou.

Cinco minutos depois, e quando o homem pálido, em quem o leitor já deve ter reconhecido o capitão Maurevel, apenas tivera tempo de sossegar um pouco do abalo que sofrera, chegou pelo caminho chamado depois Rua dos Fossos de S. Nicolau um mancebo vestido com um sobretudo de pajem, e reuniu-se ao cavaleiro.

Oculto no caramanchão, Maurevel observava e mesmo ouvia sem custo uma conversação que não podia deixar de ser da maior importância para ele, visto que o cavaleiro era de Mouy e o mancebo de sobretudo era Orthon.

Ambos olharam em torno de si com minuciosa atenção; Maurevel sustinha o fôlego.

- Pode falar, Senhor - disse Orthon, que, sendo o mais moço, era dos dois o que tinha menos receio -, ninguém nos vê nem ouve.

- Bem - disse de Mouy -, hás-de ir a casa da Sr. de Sauve entregar- lhe este bilhete; se a não achares, põe-no atrás do espelho onde o rei costuma pôr os seus, e depois espera no Louvre. Se te derem resposta, leva-a para onde sabes; senão, vem procurar-me esta noite ao lugar que te mostrei e donde saí há pouco.

- Bem sei - disse Orthon.

- Eu vou-me embora, porque tenho muito que fazer todo o dia. Tu não te apresses, porque não é necessário; basta que chegues ao Louvre antes que ele lá chegue, e eu creio que ele está dando hoje lição de volataria. Vai, e não pareças acanhado. Se te perguntarem alguma coisa, diz que, como já estás bom, procuravas a Sr de Sauve para lhe agradecer o cuidado que teve por ti durante a tua convalescença. Vai, rapaz, vai.

Maurevel escutava de olhos fixos, cabelos eriçados e banhado em suor. No primeiro ímpeto tirou uma pistola e apontou-a para de Mouy; mas um movimento deste, que lhe entreabrira o capote, deixara-lhe ver por baixo uma cota bem segura e bem sólida. Era portanto provável que a bala se achatasse em cima da couraça, ou que batesse em algum lugar do corpo onde a ferida que fizesse não fosse mortal. Demais, lembrou-se que de Mouy, robusto e bem armado, poderia facilmente dar cabo dele, ferido como estava. Exalando, pois, um suspiro, tornou a pôr no seu lugar a pistola já apontada para o huguenote.

Que pena - disse ele consigo - não poder dar cabo dele aqui, sem mais testemunhas do que esse ladrãozinho, em quem o meu segundo tiro ficaria tão bem empregado!

Mas neste momento Maurevel lembrou-se de que talvez o bilhete dado a Orthon, e que este devia entregar à Sr. de Sauve, fosse mais importante do que a própria vida do chefe huguenote.

Ah! - tornou ele - escapas-me ainda esta manhã. Vai-te são e salvo; há-de chegar a minha vez amanhã, ainda que tenha de te seguir até ao Inferno, donde saíste para me perder, se eu te não perco.

Neste momento cruzou de Mouy o capote sobre o rosto, e afastou-se rapidamente na direcção dos pauis do Templo. Orthon tornou a tomar o caminho dos fossos que conduziam à margem do rio.

Maurevel levantou-se então, com mais vigor e agilidade do que se podia esperar, voltou à Rua do Cerejal, entrou em casa, mandou selar um cavalo e, mesmo assim fraco, em risco de se lhe tornarem a abrir as feridas, tomou a galope pela Rua de Santo António, ganhou o cais e entrou no Louvre.

Cinco minutos depois de ele ter desaparecido por debaixo do passadiço, Catarina sabia tudo quanto acabava de se passar, e Maurevel recebia os mil escudos de ouro que lhe haviam sido prometidos pela imediata prisão do rei de Navarra.

Oh! - disse então Catarina - ou eu me engano muito, ou é de Mouy a tal mancha negra que Renato achou no horóscopo desse maldito Bearnês.

Um quarto de hora depois de Maurevel, Orthon entrava no Louvre, apresentando-se como de Mouy lhe recomendara, e entrava no quarto da Sr. de Sauve, depois de ter falado com muitos comensais do palácio.

Só Daríole é que estava no quarto da baronesa. Catarina tinha-a mandado chamar para lhe copiar umas cartas de importância e havia cinco minutos que ela estava no quarto da rainha.

- Bem - disse Orthon -, esperarei.

E, aproveitando-se da familiaridade que tinha na casa, o mancebo entrou no quarto de dormir da baronesa e, depois de se certificar que estava só, pôs o bilhete atrás do espelho.

No momento em que retirava a mão, entrou Catarina.

Orthon sobressaltou-se e empalideceu, por lhe parecer que o olhar rápido e penetrante da rainha-mãe se havia logo dirigido para o espelho com certa preocupação.

- Que fazes aí, pequeno? - perguntou Catarina - não procuras a Sr. de Sauve?

- Sim, minha Senhora; há muito tempo que a não vejo e, se me demorasse mais em vir agradecer-lhe, recearia passar por um ingrato.

- Amas então muito a boa Carlota?

- De todo o meu coração. minha Senhora.

- E és fiel, segundo dizem.

- Vossa Majestade não estranhará decerto isso, sabendo que a Sr. de Sauve teve por mim um cuidado que eu não merecia sendo apenas um fiel famulo.

- E quando foi que ela teve esse cuidado por ti? - perguntou Catarina, fingindo ignorar o que acontecera ao rapazito.

- Quando fui ferido, minha Senhora.

- Oh! pobre pequeno! - disse Catarina - pois foste ferido?

- Sim, minha Senhora.

- E quando foi isso?

- Na mesma noite em que iam prender o rei de Navarra. Vendo soldados, tive tanto medo que gritei e chamei; um deles deu-me uma pancada na cabeça que me fez cair desmaiado.

- Pobre rapaz! Mas agora estás inteiramente bom, não estás?

- Estou, sim, minha Senhora.

- E procuras então o rei de Navarra para o tornares a servir?

- Não, minha Senhora, o rei de Navarra, sabendo que eu me atrevera a resistir às ordens de Vossa Majestade, despediu-me sem piedade.

- Deveras? - disse Catarina com uma intenção cheia de interesse, - pois eu tomo a mim esse negócio. Se, porém, esperas pela Sr. de Sauve, esperas inutilmente, porque ela está no meu gabinete, por cima deste quarto, e não te pode falar agora.

E Catarina, pensando que Orthon não tivera tempo de esconder o bilhete atrás do espelho, entrou no gabinete da Sr. de Sauve para dar toda a liberdade ao mancebo.

No mesmo instante, e quando Orthon, receoso por essa vinda inesperada da rainha-mãe, combinava as suas ideias para ver se aquilo não encobriria alguma trama contra o seu amo, ouviu bater três pancadinhas no tecto; era o sinal que ele devia dar ao amo em caso de perigo, quando este estava no quarto da Sr. de Sauve, e quando ele, Orthon, estava de vigia.

Essas três pancadas fizeram-no estremecer; uma revelação misteriosa o iluminou; pensou que desta vez era para ele o aviso; correu, pois, ao espelho e tirou o bilhete que lá tinha posto.

Catarina seguia por entre uma abertura de tapeçarias todos os movimentos de Orthon; viu-o correr para o espelho, mas não soube se era para pôr o bilhete ou para tirar.

Que demora será esta? - disse consigo a impaciente florentina - porque se não irá ele embora. E tornou a entrar na câmara, com o semblante risonho.

- Ainda estás aqui, pequeno? - disse ela - porque é que esperas? Não te disse já que ficava por minha conta a tua colocação? Duvidas duma coisa que eu te digo?

- Deus me livre disso, minha Senhora! - respondeu Orthon.

E aproximando-se da rainha, pôs Orthon um joelho em terra, beijou-lhe a barra do vestido e saiu rapidamente.

Ao passar pela antecâmara, viu o capitão das guardas, que esperava Catarina. Esta vista, que não era muito própria para lhe desvanecer as suspeitas, não fez mais do que aumentar-lhas.

Apenas caiu o reposteiro da porta por onde saíra Orthon, Catarina voou ao espelho; mas foi sem resultado, porque a sua mão, trémula de impaciência, procurou e tornou a procurar, não achando bilhete algum.

E contudo estava ela certa de que vira o rapaz aproximar-se do espelho. Fora pois para o tirar, e não para o pôr. A fatalidade dava uma força igual aos seus adversários. Uma criança convertia-se num homem desde o momento em que tinha de lutar com ela.

Remexeu, olhou, sondou: nada!.

Oh! desgraçado! - bradou ela - entretanto, eu não lhe queria mal, é ele que, tirando o bilhete, acarreta a sua desgraça. Eh! Sr. de Nancey, chegue aqui!

A voz vibrante da rainha-mãe atravessou a sala e penetrou na antecâmara, onde estava o capitão das guardas.

O Sr. de Nancey acudiu ao chamamento.

- Que determina Vossa Majestade? - disse ele.

- Estava na antecâmara?

- Sim, minha Senhora.

- Viu sair um pequeno, um rapazinho?

- Haverá um instante.

- Não poderá ainda estar muito longe.

- Irá, quando muito, no meio da escada.

- Chame-o.

- Como se chama ele?

- Orthon. Se não quiser vir, traga-o à força. Não o assuste porém, se não resistir. Preciso falar-lhe imediatamente.

O capitão das guardas saiu correndo.

Orthon ainda ia com efeito no meio da escada, porque descia devagar na esperança de encontrar ali ou de descobrir em algum corredor o rei de Navarra ou a Sr de Sauve.

Ouviu chamarem-no e sobressaltou-se.

O seu primeiro movimento foi o de fugir; porém, compreendeu logo, com uma força de reflexão superior à sua idade, que se fugisse deitava tudo a perder.

Portanto parou.

- Quem me chama?

- Eu, o Sr. de Nancey - respondeu o capitão das guardas saltando os degraus.

- Mas eu tenho muita pressa - disse Orthon.

- Da parte de Sua Majestade a Rainha-mãe - tornou o Sr. de Nancey, chegando ao pé dele. O mancebo enxugou o suor que lhe corria pela testa e tornou a subir. O capitão seguiu-o.

O primeiro plano que Catarina havia formado consistia em prender Orthon, mandá-lo revis tar e apossar-se do bilhete de que sabia ser ele o portador; por consequência, lembrou-se de acusá-lo de roubo, e já tinha tirado de cima do toilette um broche de diamantes, de cuja subtracção queria fazer carga ao rapazito; mas reflectiu que o meio era arriscado, pois despertava as suspeitas de Orthon, que não deixaria de prevenir o amo; Henrique desconfiaria então, e uma vez desconfiado não se atreveria a dar um passo em que se expusesse.

Ela podia, sem dificuldade, mandá-lo levar para algum calabouço; mas, por mais em segredo que a prisão se fizesse, a notícia não deixaria de se espalhar no Louvre, e uma só palavra a tal respeito faria com que Henrique tratasse de precaver-se.

Contudo, Catarina precisava do bilhete, porque um bilhete do Sr. de Mouy para o rei de Navarra, um bilhete mandado com tantas recomendações, devia conter uma conspiração completa.

Tornou portanto a pôr a jóia no seu lugar.

Não, não - disse ela - isto seria astúcia de esbirro; má ideia. Mas por um bilhete. que talvez não tenha valor algum - continuou ela, franzindo a testa, e falando tão baixo que mal podia ela mesma ouvir o som das suas palavras. - E Entretanto, não é por minha culpa. a culpa é dele. Porque não pôs esse diabinho o bilhete onde o devia pôr?. E eu quero o bilhete.

Neste momento tornava a entrar Orthon.

O aspecto de Catarina era, sem dúvida, terrível, porque o mancebo parou no limiar empalidecendo. Era ainda muito novo para ser perfeitamente senhor de si.

- Minha Senhora - disse ele -, Vossa Majestade fez-me a honra de me mandar chamar; em que poderei servi-la?

O semblante de Catarina iluminou-se como se acabasse de receber um raio de Sol.

- Mandei-te chamar porque gosto do teu modo, e como te prometi tratar da tua fortuna, quero cumprir sem demora a minha promessa. Nós, as rainhas, somos geralmente classificadas de esquecidas. O nosso coração não tem culpa se o somos, mas sim o espírito, que nos é constantemente arrebatado pelos acontecimentos. Isto posto, lembrei-me de que os reis têm em suas mãos a fortuna dos homens e chamei-te. Vem, pequeno, segue-me.

O Sr. de Nancey que tomava esta cena ao sério, contemplava grandemente admirado essa excessiva ternura de Catarina.

- Sabes montar a cavalo? - perguntou Catarina ao pequeno.

- Sei, sim, minha Senhora.

- Então vem ao meu gabinete. Vou dar-te um recado para levares a São Germano. - Estou às ordens de Vossa Majestade.

- Mande-me aprontar um cavalo, de Nancey.

O Sr. de Nancey saiu.

- Vamos, menino - disse Catarina.

E foi andando seguida de Orthon.

A rainha-mãe desceu um andar; depois entranhou-se no corredor dos quartos do rei e do duque de Alençon, ganhou a escada de caracol, abriu uma porta que dava para uma galeria circular, cuja chave ninguém tinha senão ela e o rei, mandou a Orthon que passasse para diante, entrou depois dele e fechou a porta. Essa galeria cercava, como um reparo, certa porção dos quartos do rei e da rainha-mãe. Era como o corredor do Castelo de Santo Ângelo, em Roma, e do Palácio Pitti, em Florença, um asilo disposto para caso de perigo.

Fechada a porta, achou-se Catarina encerrada com o mancebo nesse corredor escuro. Ambos deram uns vinte passos, Catarina andando adiante, Orthon seguindo Catarina.

Esta voltou-se subitamente, e Orthon tornou a ver-lhe no rosto a mesma expressão sombria que lhe notara dez minutos antes. Os olhos, redondos como os dum gato ou duma pantera, pareciam flamejar-lhe na escuridão.    

- Pára! - disse ela.

Orthon sentiu correr um arrepio pelos ombros; um frio mortal, semelhante ao dum manto de gelo, caía dessa abóbada. O pavimento estava sombrio como a lousa dum sepulcro. O olhar de Catarina era agudo, se nos podemos servir dessa expressão, e penetrava no peito do pequeno.

Este recuou, e postou-se todo trémulo de encontro à parede. - Onde está o bilhete que te mandaram entregar ao rei de Navarra?   

- O bilhete? - balbuciou Orthon.    

- Sim. Ou pôr atrás do espelho, se o rei não estivesse no quarto.      

- Eu minha Senhora? - disse Orthon - não sei o que Vossa Majestade quer dizer.  

- O bilhete que de Mouy te entregou há uma hora por detrás do Jardim da Besta.    

- Não tenho bilhete algum - disse Orthon - afirmo a Vossa Majestade que está enganada.     

- Mentes! - disse Catarina -, dá-me o bilhete e cumprirei a promessa que te fiz.

- Qual, minha Senhora?    

- Far-te-ei rico.      

- Não tenho bilhete algum, minha Senhora - tornou o rapazito. Catarina deixou ouvir um rangido de dentes, que terminou com um sorriso.

- Se mo deres receberás mil escudos de ouro.

- Não tenho bilhete nenhum, minha Senhora.  

- Dois mil escudos.     

- É impossível; se o não tenho, não posso dar- lho.    

- Dez mil escudos, Orthon.

Orthon, que via a cólera subir, como a maré do coração, para a fronte da rainha, lembrou-se

de que não havia senão um meio de salvar o seu amo, que era engolir o bilhete. Levou, pois, a mão à algibeira.   

Catarina adivinhou-lhe o intento e susteve-lhe a mão.

- Está bem, rapazinho - disse ela rindo. - Basta; vejo que és fiel. Quando os reis querem dar a sua confiança a um servo, é justo que experimentem se ele a merece. Agora já sei em que devo ficar a teu respeito. Toma aqui tens a minha bolsa como primeira recompensa. Vai levar esse bilhete ao teu amo, e dá-lhe parte de que me ficas servindo de hoje por diante. Vai; podes sair sem mim pela porta por onde entrámos, que se abre por dentro.     

E Catarina, depondo a bolsa na mão do pequeno, que ficara espantado ouvindo-a, deu alguns passos para diante e encostou a mão à parede.

Orthon não sabia, porém, que fazer. Não podia crer que já estivesse longe o perigo que tão iminente se apresentara.

- Vamos, não tremas assim - disse Catarina -, não te disse já que te podias ir e que, se quisesses voltar, eu faria a tua fortuna?...

- Muito obrigado, minha Senhora - disse Orthon. - Então Vossa Majestade perdoa- me?      

- Ainda mais; recompenso-te; tu és um bom portador de cartinhas de amor, um belo mensageiro de Cupido; esqueces-te, porém, de que teu amo está à tua espera.   

- Ah! é verdade - disse o mancebo, correndo para a porta.

Mas apenas deu três passos, faltou-lhe o chão debaixo dos pés. Escorregou, estendeu as duas mãos, soltou um grito horrível e desapareceu submergindo-se num subterrâneo do Louvre, que a rainha-mãe acabava de abrir por meio duma mola disposta para esse fim.

Que maçada! - disse Catarina por entre os dentes - tenho agora que descer cento e cinquenta degraus, graças ao emperramento deste menino.

Catarina foi ao seu quarto e acendeu uma lanterna de furta-fogo. Tornou ao corredor, puxou ao seu lugar a mola que fizera abrir o alçapão do subterrâneo, abriu a porta duma escada de caracol que parecia ir até às entranhas da terra e, sedenta duma curiosidade que lhe ministrava o seu ódio, chegou a uma porta girante toda de ferro, que dava entrada para o fundo do subterrâneo.

Era ali que jazia o pobre Orthon, todo ensanguentado, moído e esmagado por uma queda de cem pés de altura, mas palpitando ainda. Por detrás da muralha ouvia-se o rolar das águas do Sena, que, por inflilração subterrânea, vinham tocar no fim da escada.

Catarina entrou nessa cova húmida e nauseativa, testemunha, sem dúvida, desde que existia, de muitas quedas semelhantes a esta; deu busca ao corpo, tomou a carta, certificou-se de que era realmente a que desejava possuir, empurrou o cadáver com o pé e aplicou o dedo polegar a uma outra mola; parte do fundo cedeu, abrindo- se em forma de tampa, e o cadáver, escorregando em virtude do seu próprio peso, desapareceu na direcção do rio.

Feito isto, fechou a porta, subiu, fechou- se na sua câmara e leu o bilhete, que dizia assim:

Esta noite às dez horas na Rua da Árvore Seca, Hospedaria da Estrela Brilhante. Se vier não responda nada; se não vier diga não ao portador - De Mouy Saint-Phale.

Catarina sorriu ao ler o bilhete; só pensava na vitória que ia alcançar, esquecendo-se completamente do preço por que a comprava.

Mas também, que era Orthon? Um coração fiel, uma alma dedicada, um belo rapazinho, nada mais.

É bem de crer que isto não podia fazer pender por um instante a concha da fria balança em que se pesam os destinos dos impérios.

Lido o bilhete, Catarina subiu imediatamente ao quarto da Sr. a de Sauve e pô-lo atrás do espelho.

Ao descer, achou o capitão das guardas à entrada do corredor.

- Minha Senhora - disse o Sr. de Nancey -, o cavalo está pronto segundo as ordens de Vossa Majestade.

- Meu caro barão - disse Catarina -, já não é preciso. O rapaz é muito simples, não me atrevo a confiar dele o que queria. Supus que fosse lacaio e é, quando muito, um palafreneiro. Portanto, dei-lhe algum dinheiro e mandei-o sair pelo passadiço pequeno.

- E o recado? - disse o Sr. de Nancey.

- Qual recado? - repetiu Catarina.

- Sim, o recado que ele tinha de levar? Vossa Majestade quer que o leve eu, ou alguém da minha gente?

- Não, não - disse Catarina -, o senhor e a sua gente hão-de ter esta noite outra coisa que fazer.

E Catarina entrou para a sua câmara, contando ter nessa noite em suas mãos a sorte do maldito rei de Navarra.

 

        A HOSPEDARIA DA ESTRELA BRILHANTE

Duas horas depois do acontecimento que referimos, e do qual não ficara vestígio algum,

nem mesmo no semblante de Catarina, a Sr de Sauve, que tinha acabado o seu trabalho na câmara da rainha-mãe, subiu para o seu quarto. Henrique entrou após ela e, sabendo por Daríole

que Orthon o tinha procurado, foi direito ao espelho e tirou o bilhete.

Era ele concebido nos termos que já dissemos e não trazia sobrescrito.

Henrique não deixará de ir - dissera Catarina - porque, ainda que deseje fazer o contrário, não encontrará o portador para lhe dizer não.

E Catarina não se havia enganado sobre este ponto. Henrique perguntou por Orthon, Daríole disse-lhe que ele tinha saído com a rainha-mãe; mas como achou o bilhete no seu lugar, e sabia não ser o pobre pequeno capaz duma traição, não teve o menor receio.

Jantou pois, como costumava, à mesa do rei, que gracejou muito com Henrique sobre os descuidos que tivera pela manhã na caçada ao voo.        Henrique desculpou-se com o ser homem de montanhas e não de planícies, prometeu a Carlos que havia de estudar a volataria. Catarina estava encantadora e, ao levantar-se da mesa, pediu a Margarida que lhe fizesse companhia todo o serão.        

Às oito horas chamou Henrique dois fidalgos e saiu com eles pela Porta de Santo Honorato; fez um longo rodeio, tornou a entrar pela Torre de Madeira, passou o Sena na barca de Nesle, subiu à Rua de Saint Jacques e ali despediu-os, como se se tratasse duma entrevista amorosa.  

No canto da Rua dos Maturinos, achou um homem a cavalo, embuçado num capote; aproximou-se dele.          

- Mantes - disse o homem.

- Pau - respondeu o rei.          

O homem apeou-se; Henrique embuçou-se no capote, que estava todo enlameado, montou no cavalo, que estava alagado de suor, voltou pela Rua da Harpa, atravessou a Ponte de S. Miguel,

enfiou pela Rua Bartolomeu, passou novamente o rio na Ponte dos Moleiros, desceu o cais, tomou pela Rua da Árvore Seca e foi esbarrar na porta de mestre La Hurière.            

La Mole estava na sala nossa conhecida, e escrevia uma longa carta de amores, já se sabe a quem.           

Cocunás estava na cozinha com La Hurière, vendo assar seis perdigotos e discutindo com o seu amigo estalajadeiro sobre o grau de cozedura em que convinha tirá- los do espeto.     

Foi nesse momento que Henrique bateu. Gregório foi abrir, e levou o cavalo para a estrebaria; o suposto viajante entrou, batendo com as botas no soalho como para esquentar os pés adormecidos.       

- Olá, mestre La Hurière! - disse La Mole sem interromper a sua escrita - está aqui um fidalgo que o procura.

La Hurière acudiu ao chamado, mediu Henrique dos pés até à cabeça, e como o seu capote de pano grosso não lhe inspirava grande veneração:

- Quem é o senhor? - perguntou ele ao rei.

- Este senhor não lho disse já? - observou Henrique apontando para La Mole. - Sou um fidalgo da Gasconha e venho a Paris para me apresentar na corte.

- Que quer então?

- Quarto e ceia.

- Hum!. - disse La Hurière - traz criado? Era esta, como se sabe, a pergunta do costume.

- Não trago - respondeu Henrique -, mas espero tomar um logo que faça fortuna.

- Não alugo quarto de amo sem quarto de criado - disse La Hurière.

- Nem se eu lhe der já uma peça pelo quarto e pela ceia, além do que lhe pagar amanhã?

- Como é generoso, meu fidalgo! - disse La Hurière, olhando com ar desconfiado para Henrique.

- Não; é que eu, na crença de que passaria a noite na sua hospedaria, que me foi recomendada por um fidalgo da minha terra, convidei um amigo para vir comigo. Tem bom vinho de Arbois?

- Nem o Bearnês o bebe melhor.

- Bem, pagá-lo-ei à parte. Ah! justamente: aí está o meu convidado.

A porta acabava com efeito de abrir-se e de dar passagem a outro fidalgo, um tanto mais idoso do que o primeiro, que vinha arrastando um grande espadão.

- Olá. Como é pontual, meu amigo! Isso é bem raro em quem acaba de fazer uma jornada de duzentas léguas.

- É o seu convidado? - perguntou La Hurière.

- Ele mesmo - disse o que chegou primeiro, dirigindo-se para o mancebo do espadão e apertando-lhe a mão. - Mande pôr a ceia na mesa.

- Aqui mesmo ou no seu quarto?

- Onde quiser.

- Mestre - disse La Mole chamando La Hurière -, livre-nos destas caras de huguenotes; nem eu nem Cocunás poderíamos dizer uma palavra diante deles, e temos que falar de negócios que nos interessam.

- Ponham a ceia no quarto n. 2 do terceiro andar - disse La Hurière. - Subam, meus Senhores.

Os dois viajantes seguiram Gregório, que foi adiante alumiando.

La Mole acompanhou-os com os olhos até que desapareceram e, voltando-se então, viu Cocunás, cuja cabeça saía da cozinha. Grandes olhos fixos e uma boca escancarada davam a essa cabeça um ar notável de espanto.

La Mole aproximou-se dele.

- Com mil demónios! - disse-lhe Cocunás - viste?.

- O quê?

- Aqueles dois fidalgos.

- E então?

- Seria capaz de jurar que são.

- Quem?

- O rei de Navarra e o homem da capa vermelha.

- Jura se quiseres, mas não muito alto.

- Também os conheceste?

- Também.

- E que vêm eles aqui fazer?

- Pois não adivinhas?

- Tratar de algum namorico?

- Decerto.

- Julgas isso?

- Tenho a certeza.

- La Mole, eu antes quero cutiladas do que esses namoricos. Há pouco juraria, agora aposto.

- O quê?

- Que se trata dalguma conspiração.

- Qual! estás doido!

- E eu digo-te.

- Digo-te que, se conspiram, isso é lá com eles.

- Também tens razão. Com efeito - disse Cocunás -, já não estou ao serviço do Sr. de Alençon; arranjem-se como puderem.

E como os perdigotos pareciam ter chegado ao grau de cozedura em que Cocunás gostava deles, o piemontês, que contava que fossem o melhor prato do seu jantar, chamou por mestre La Hurière para os tirar do espeto.

Neste intervalo, Henrique e de Mouy estabeleceram-se no quarto que La Hurière lhes destinara.

- Então, meu Senhor - disse de Mouy logo que La Hurière acabou de pôr a mesa -, falou a Orthon?

- Não; mas li o bilhete que ele pôs no espelho. Creio que o pequeno teve medo, porque a rainha-mãe chegou quando ele estava no quarto, e que por isso se foi embora sem esperar por mim. Fiquei um tanto inquieto, porque disse-me Daríole que a rainha-mãe o fizera falar muito.

- Oh! não há perigo, ele é esperto; apesar de a rainha-mãe saber o que faz, estou certo de que ele lhe há-de dar que entender.

- E você, de Mouy, já o viu? - perguntou Henrique.

- Não, mas hei-de tornar a estar com ele esta noite: à meia-noite há- de vir buscar-me aqui, e contar-me-á o que se passou quando sairmos.

- E o homem que estava no canto da Rua dos Maturinos?

- Que homem?

- O homem que me emprestou o cavalo e o capote; podemo-nos fiar nele?

- É um dos mais seguros que temos. Demais, ele não conhece Vossa Majestade e ignora com quem teve de entender-se.

- Podemos então conversar sobre o que nos importa com todo o sossego?

- Sem dúvida. Além de que La Mole está sempre de vigia.

- Bom.

- Então, Senhor, que lhe disse o duque de Alençon?

- O Sr. de Alençon não quer partir. Explicou-se claramente a esse respeito. A eleição do duque de Anjou para o trono da Polónia e a indisposição do rei mudaram todos os seus desígnios.

- Foi ele portanto que fez abortar o nosso plano?

- Decerto.

- Então atraiçoa-nos?

- Ainda não, mas há-de atraiçoar-nos na primeira ocasião que tiver.

- Que coração tão fraco! que espírito tão pérfido! Porque não respondeu às cartas que eu lhe escrevi?

- Para ter provas contra nós e não as dar contra si. No entanto, está tudo perdido, não é assim de Mouy?

- Pelo contrário, meu Senhor, tudo está ganho. Vossa Majestade bem sabe que todo o partido, excepto a fracção do príncipe de Condé, era por Vossa Majestade, e não se servia do duque, com quem afectava pôr-se em relações, senão como duma salvaguarda. Isto posto, desde o dia da recepção dos embaixadores, dispus tudo a favor de Vossa Majestade. Bastavam a Vossa Majestade cem homens para fugir com o duque de Alençon; eu fiz uma leva de mil e quinhentos, que dentro de oito dias estarão prontos, e reunir-se-ão pela estrada de Pau. Não será fuga, e sim retirada. Bastar-lhe-ão mil e quinhentos homens, meu Senhor, e julgar-se-á Vossa Majestade seguro com um exército?

Henrique sorriu, e bateu-lhe no ombro.

- Tu bem sabes, de Mouy - disse ele -, e és o único que o sabes, que o rei de Navarra não é por natureza tão assustado como o julgam.

- Bem sei, meu Senhor; e espero que dentro em pouco toda a França o saberá como eu. Mas quando se conspira cumpre ser bem sucedido. A primeira condição para um bom êxito é a decisão; e para que a decisão seja rápida, franca, incisiva, é preciso ter a convicção de que o resultado será tal como se deseja. Diga-me agora, meu Senhor - continuou de Mouy -, em que dias é que vão caçar?

- De oito em oito, ou de dez em dez dias, tanto de montaria como de alcanaria.

- Quando foi a última caçada?

- Hoje mesmo.

- Então, de hoje a oito ou dez dias haverá outra, não é assim?

- Com toda a certeza, e talvez ainda antes.

- Ouça então. Parece-me que tudo está agora perfeitamente tranquilo; o duque de Anjou partiu, já se não pensa nele; o rei melhora diariamente da sua doença; as perseguições contra nós quase que acabaram. Olhe com ternura para a rainha-mãe, trate com bastante agrado o duque de Alençon, diga-lhe sempre que não pode partir sem ele; faça especialmente com que ele o acredite, o que é mais difícil.

- Fica descansado, há-de acreditar-me.

- E pensa que ele confia em Vossa Majestade?

- Creio que não; mas acredita em tudo quanto lhe diz a rainha.

- E a rainha servir-nos-á francamente?

- Oh decerto; tenho provas disso. Demais, ela é ambiciosa; e essa coroa de Navarra que ainda não possui, já lhe abrasa a fronte.

- Bem; três dias antes dessa caçada mande- me dizer onde é que ela se realiza; se é em Bondy, em São Germano ou em Rambouillet, dizendo-me também que está pronto a partir; e quando vir o Sr. de la Mole dar de esporas, siga-o e nada de afrouxar. Uma vez fora do bosque, se a rainha-mãe quiser havê-los às mãos, há-de correr em sua perseguição, mas eu conto que os seus cavalos normandos nem ao menos verão as ferraduras dos nossos cavalos da Berberia e dos nossos ginetes de Espanha.

- Está dito, de Mouy.

- Tem dinheiro, meu Senhor?

Henrique fez a careta que em toda a sua vida fizera a esta pergunta.

- Não tenho muito; mas julgo que Margot tem.

- Bem: ou seja de Vossa Majestade ou dela, leve o mais que puder.

- E tu, que vais fazer entretanto?

- Agora, depois de me haver ocupado com os negócios de Vossa Majestade, tão activamente, como vê, permitir-me-á que trate um pouco dos meus?

- Como quiseres, de Mouy; mas que negócios são esses?

- Ouça, meu Senhor. Orthon, que é um rapaz muito inteligente que eu recomendo a Vossa Majestade, disse-me ontem que encontrou ao pé do Arsenal esse malvado Maurevel, que está restabelecido, graças aos cuidados de Renato, e que se aquece ao sol como uma serpente que é.

- Ah, sim! compreendo - disse Henrique.

- Ah compreende?. Bom. Vossa Majestade há-de ser algum dia rei, e se tiver alguma vingança do género da minha a satisfazer, há-de satisfazê-la como rei. Eu sou soldado, devo vingar-me como soldado. Portanto, quando todos os nossos pequenos negócios estiverem arranjados, o que dará a esse facínora mais cinco ou seis dias para se restabelecer, hei-de também dar um passeio para os lados do Arsenal, e prometo-lhe estendê-lo na relva com quatro boas cutiladas; feito isso, deixarei Paris com o coração mais aliviado.

- Arranja os teus negócios, meu amigo, arranja os teus negócios. A propósito, estás satisfeito com la Mole, não é assim?

- Oh! é um mancebo admirável, que é dedicado a Vossa Majestade de corpo e alma, e com o qual pode contar como se fosse eu; bravo.

- E principalmente discreto; há-de pois acompanhar-nos para a Navarra; logo que lá estivermos, acordaremos no que se há-de fazer para o recompensar.

Mal acabara Henrique de dizer estas palavras, acompanhando-as dum sorriso maligno, abriu-se a porta, ou, para melhor dizer, arrombaram- na; e aquele de quem nesse mesmo momento se tecia o elogio, apareceu pálido e agitado.

- Alerta, Senhor! - bradou ele - alerta! A casa está cercada!

- Cercada? - exclamou Henrique levantando-se - por quem?

- Pela guarda de el-rei.

- Oh! - disse de Mouy tirando as pistolas do cinto - temos batalha, ao que parece.

- Pois não! é mesmo uma bela ocasião para pegar em pistolas e falar de batalhas. Que quer fazer contra cinquenta homens?

- Ele tem razão - disse o rei -, e se houvesse qualquer meio de retirada.

- Há um que já me serviu a mim, e se Vossa Majestade quer seguir-me.

- E de Mouy?

- O Sr. de Mouy pode seguir-nos também se quiser; mas cumpre que ambos se apressem. Ouviram-se passos na escada.

- É muito tarde - disse Henrique.

- Ah! se pudéssemos entretê-los ao menos por cinco minutos - bradou La Mole -, eu responderia pelo rei!

- Então encarregue-se de o salvar, Sr. de La Mole - disse de Mouy -, que eu os entreterei. Vá, Senhor, vá.

- E que há-de ser de ti?

- Não tenha receio, Senhor, vá.

E de Mouy tratou, primeiro que tudo, de esconder o prato, o guardanapo e o copo do rei, para afectar que estava sozinho à mesa.

- Venha, meu Senhor, venha! - bradou La Mole, tomando o rei pelo braço e puxando-o para a escada.

- De Mouy! meu bravo de Mouy! - disse Henrique enternecido, estendendo a mão ao mancebo.

De Mouy beijou-lhe a mão, fê-lo sair do quarto e fechou a porta com o ferrolho.

- Sim, sim, entendo - disse Henrique -, vai entregar-se à prisão, enquanto nós nos vamos pôr a salvo!. Mas quem diabo nos atraiçoaria!

- Venha, meu Senhor, venha, que eles já sobem.

Com efeito, a luz dos archotes começava a mostrar-se já ao longo das paredes da estreita escada, e ouvia-se em baixo uma espécie de tinido de espadas.

- Cuidado, meu Senhor! cuidado! - disse La Mole.

E guiando o rei na escuridão, fez-lhe subir dois andares, empurrou a porta dum quarto, que tornou a fechar com o ferrolho, e, abrindo a janela dum gabinete, disse ao rei:

- Vossa Majestade tem medo de excursões por cima de telhados?

- Eu? um caçador de camurças?. - disse o rei.

- Bem; então siga-me Vossa Majestade; eu sei o caminho, e vou guiá-lo.

- Vá andando, vá andando - disse Henrique -, que eu o sigo.

E La Mole saltou da janela para o telhado, seguiu por uma borda larga, donde partiam as goteiras, chegou a um côncavo formando dois telhados, e aí encontrou uma trapeira sem portas que dava claridade a um celeiro vazio.

- Senhor - disse La Mole -, estamos em terra firme.

- Ah! - disse Henrique - ainda bem.

E enxugou o pálido rosto, em que gotejava o suor.

- Agora - disse La Mole - as coisas vão caminhar por si; o celeiro dá para uma escada que vai ter a um corredor, e este corredor conduz à rua. Já andei todo este caminho, Senhor, numa noite muito mais horrível do que esta.

- Vamos, vamos! para diante! - disse Henrique.

La Mole entrou pela trapeira, ganhou a porta mal fechada, abriu-a, achou-se no alto duma escada e, pondo na mão do rei a corda que servia de corrimão, disse-lhe:

- Venha, meu Senhor.

Henrique parou no meio da escada; tinha chegado defronte duma janela que dava para o pátio da hospedaria da Estrela Brilhante. Na escada fronteira viam-se soldados correndo, uns com espadas, outros com archotes.

De repente, no meio dum grupo, o rei de Navarra viu aparecer de Mouy. Tinha entregado a espada e descia tranquilamente.

- Pobre rapaz! - disse Henrique - bravo e dedicado coração!

- Veja Vossa Majestade - disse La Mole - que ar sossegado que ele mostra, e repare que até ri! Medita decerto alguma boa peça, porque Vossa Majestade bem sabe que ele ri muito poucas vezes.

- E o mancebo que estava com o senhor?

- O Sr. de Cocunás? - perguntou La Mole.

- Sim, o Sr. de Cocunás, que é feito dele?

- Nesse não tenho cuidado algum. Ao ver os soldados, só me disse estas palavras:   - Corremos algum risco?

- De perder a cabeça - respondi-lhe eu.

- E contas salvar-te?

- Conto.

- Pois eu também.

- E juro-lhe que se há-de salvar, meu Senhor. Se Cocunás for alguma vez agarrado, pode Vossa Majestade ficar certo de que é porque lhe conveio deixar-se agarrar.

- Então - disse Henrique - tudo vai bem; tratemos de chegar ao Louvre.

- Nada há mais fácil, meu Senhor; embucemo-nos nos capotes e saiamos. A rua está cheia

de povo, que acudiu ao barulho; julgarão que também somos curiosos.

E, realmente, Henrique e La Mole não acharam outra dificuldade senão a onda de povo que obstruía a rua.

Ambos conseguiram escapar-se pela Rua de Averon; mas, ao chegarem à Rua dos Polés, viram de Mouy e a escolta, comandada pelo Sr. de Nancey que atravessavam a Praça de São Germano L'Auxerrois.

- Ah! - disse Henrique - conduzem-no para o Louvre, segundo parece. Diabo! hão-de fechar as grades. e hão-de tomar decerto os nomes dos que entrarem; e se me vêem entrar depois dele, será uma probabilidade de que eu estava na sua companhia.

- Nesse caso, meu Senhor, entre no Louvre sem ser pela porta.

- E como diabo quer que eu entre?

- Vossa Majestade não tem a janela da rainha de Navarra?

- Tem razão, Sr. de La Mole - disse Henrique. - E eu que nem me lembrava disso!. Mas como hei-de eu prevenir a rainha?

- Oh! - respondeu La Mole, inclinando-se com respeitoso reconhecimento - Vossa Majestade é tão bom atirador de pedras!.

 

           DE MOUY DE SAINT PHALE

Catarina tomara desta vez tão bem as suas medidas, que julgava impossível falhar-lhe o resultado.

Tinha, portanto, despedido Margarida por volta das dez horas, bem convencida, o que realmente era verdade, de que a rainha de Navarra ignorava o que se tramava contra o marido, e dirigira-se ao quarto do rei para lhe pedir que se deitasse mais tarde essa noite.

Intrigado pelo ar de triunfo que, não obstante a costumada dissimulação, tornava sumamente alegre o semblante da mãe, Carlos fez perguntas a Catarina, que lhe respondeu somente estas palavras:

- Só uma coisa posso dizer a Vossa Majestade, e é que esta noite se há- de ver livre dos seus dois mais cruéis inimigos.

Carlos fez o movimento de franzir a testa que faz o homem que diz consigo: Pois sim: veremos, e chamando com um assobio o seu grande galgo, que correu para ele de rastos, sobre o ventre como uma cobra, e que pôs a cabeça viva e inteligente no joelho do seu senhor, esperou.

Ao cabo de alguns minutos, que Catarina passou com os olhos fixos e o ouvido atento, ouviu-se um tiro de pistola no pátio do Louvre.

- Que estrondo é este? - perguntou Carlos franzindo a testa, ao mesmo tempo que o galgo se levantou dum salto arrebitando as orelhas.

- Não é nada - disse Catarina -, não passa dum sinal.

- E que quer dizer esse sinal?

- Quer dizer que desde este momento, já o único, o verdadeiro inimigo de Vossa Majestade, não lhe pode fazer mal.

- Então acabaram de matar um homem? - perguntou Carlos, olhando para a mãe com aquele olhar de senhor que quer dizer que o assassinato e o perdão são dois atributos inerentes ao poder real.

- Não senhor; acabam unicamente de prender dois.

- Oh! - bradou Carlos a meia voz - sempre ocultos, sempre conjurações, sem que o rei seja ouvido! Irra! eu creio, minha mãe, que já não sou nenhuma criança, que já estou em idade de saber tomar conta de mim, que não preciso de andadeiras, nem de testeira, para não quebrar a cabeça. Vá para a Polónia com o seu filho Henrique, se quer reinar! Mas aqui, digo-lhe que faz mal se continua deste modo.

- Meu filho - disse Catarina -, é a última vez que me intrometo nos seus negócios. Se agora o fiz, foi para concluir uma empresa começada há muito, na qual Vossa Majestade nunca me deu razão, e eu estava empenhada em mostrar-lhe que a tinha.

Neste momento pararam muitos homens no vestíbulo, e ouviu-se o descansar de alguns mosquetes no lajedo.

Instantes depois mandou o Sr. de Nancey pedir licença ao rei para entrar na sua câmara.

- Que entre - disse Carlos vivamente.

O Sr. de Nancey entrou, fez uma reverência ao rei e, voltando-se para Catarina, disse-lhe:

- Minha Senhora, foram cumpridas as ordens de Vossa Majestade: está preso.

- Está. - bradou Catarina muito perturbada - pois não prendeu senão um?

- Ele estava só, minha Senhora.

- E resistiu?

- Não, minha Senhora; ceava com muito sossego num quarto, e entregou a espada à primeira intimação.

- Quem? - perguntou o rei.

- Vai já ver - disse Catarina. - Sr. de Nancey, mande entrar o preso. Cinco minutos depois entrou de Mouy.

- De Mouy! - bradou o rei - então que quer isto dizer, Senhor?

- Se Vossa Majestade mo permite - respondeu de Mouy com perfeita tranquilidade -, far-lhe-ei a mesma pergunta.

- Em vez de fazer essa pergunta ao rei - disse Catarina -, tenha a bondade de dizer a meu filho, Sr. de Mouy, quem era esse homem que estava certa noite no quarto do rei de Navarra, e que nessa mesma noite, resistindo às ordens de Sua Majestade como um rebelde que é, matou dois soldados da guarda e feriu o Sr. de Maurevel.

- Sim - disse Carlos carregando o sobrolho -, poderá dizer-me o nome desse homem, Sr. de Mouy?

- Sim, meu Senhor; Vossa Majestade deseja sabê-lo?

- Confesso que teria nisso muito gosto.

- Pois bem, eu lho digo: chama-se de Mouy de Saint-Phale.

- Era o senhor?

- Eu mesmo.

Catarina, admirada desta audácia, recuou um passo.

- E como - disse Carlos IX - se atreveu a resistir às ordens do rei?

- Primeiramente, meu Senhor, eu ignorava que existisse uma ordem de Vossa Majestade; depois, não vi senão uma coisa, ou, para melhor dizer, um homem: o Sr. de Maurevel, o assassino de meu pai e do Senhor Almirante. Lembrei-me então de que havia ano e meio que Vossa Majestade, nesta mesma câmara, durante a noite de 24 de Agosto, e falando comigo, me prometera a punição do matador; ora, como de então para cá se tinham passado graves acontecimentos, assentei que o rei fora desviado, sem o querer, do cumprimento dos seus desejos, e, vendo Maurevel tão perto de mim, não pude deixar de crer que era o Céu que mo enviava; caí, pois, sobre ele como sobre um assassino, e atirei aos soldados da sua escolta como a salteadores.

Carlos não respondeu nada; a sua amizade para com Henrique havia-lhe feito ver bastantes coisas sob um aspecto diverso daquele com que as encarara de princípio, e por mais duma vez com terror.

A rainha-mãe havia registado na memória proposições emitidas por seu filho a respeito dos acontecimentos de S. Bartolomeu, e que pareciam remorsos.

- Mas - disse ela - que ia fazer a semelhante hora ao quarto do rei de Navarra?

- Oh! - disse de Mouy - isso é uma história comprida; mas se Sua Majestade quer ter a paciência de ouvi-la.

- Quero - disse Carlos -, fale.

- Obedecerei, meu Senhor - respondeu de Mouy inclinando-se.

Catarina sentou-se, fixando no jovem chefe um olhar inquieto.

- Vamos a ouvir - disse Carlos. - Para aqui, Actéon.

O cão tomou de novo o lugar que ocupava antes da chegada do preso.

- Meu Senhor - disse de Mouy -, eu fui ao aposento de Sua Majestade o Rei de Navarra como deputado dos nossos irmãos, os fiéis súbditos de Vossa Majestade que professam a religião protestante.

Catarina fez um sinal a Carlos IX.

- Sossegue, minha mãe - disse este -, não perco uma palavra. Continue, Sr. de Mouy continue.

- Para prevenir o rei de Navarra - continuou de Mouy - de que a sua abjuração lhe fizera perder a confiança do partido huguenote; mas que, não obstante, em memória de seu pai António de Bourbon, e especialmente da magnânima Joana d'Albret, cujo nome é caro entre nós, os da religião assentavam que deviam dar-lhe uma prova da sua deferência, rogando-lhe que houvesse de desistir dos seus direitos à coroa de Navarra.

- Que diz ele! - bradou Catarina, que não podia, mau grado todo o poder que tinha sobre si, receber, sem clamar, o golpe inopinado que a feria.

- Bravo! - disse Carlos - com que então, não é mais do que fazer voejar essa coroa de Navarra por cima de todas as cabeças, como se eu não tivesse nada com ela!.

- Os huguenotes, meu Senhor, reconhecem mais do que ninguém esse princípio de suserania que o rei acaba de emitir. E por isso contavam eles convidar Vossa Majestade para fixá-la numa cabeça que lhe é cara.

- A mim? - disse Carlos - numa cabeça que me é cara?. Por Deus! de que cabeça quer o senhor falar? Não o entendo.

- Da cabeça do Sr. de Alençon.

Catarina fez-se pálida como a morte, e devorou de Mouy com um olhar flamejante.

- E meu irmão de Alençon sabia-o?

- Sim, meu Senhor.

- E aceitava essa coroa?

- A não ser que houvesse oposição da parte de Vossa Majestade, para quem ele nos remetia.

- Oh! - disse Carlos - realmente é uma coroa que assentaria muito bem em nosso irmão de Alençon. E eu que não tinha pensado nisso! Obrigado, de Mouy obrigado; sempre que tiver lembranças semelhantes, hei-de vê-lo com muito prazer no paço.

- Meu Senhor, Vossa Majestade estaria há muito informado de todo este projecto, se não fosse esse desgraçado acontecimento do Louvre, em virtude do qual receei ter caído no desagrado de Vossa Majestade.

- Bem; mas que dizia o rei de Navarra desse projecto? - perguntou Catarina.

- O rei, minha Senhora, submetia-se ao desejo de seus irmãos, e a sua renúncia estava pronta.

- Nesse caso - observou Catarina -, deve o senhor possuir essa renúncia.

- Não há dúvida, minha Senhora: trago-a comigo por acaso, assinada por ele e datada.

- Com data anterior à cena do Louvre? - disse Catarina.

- Sim, minha Senhora; julgo que da véspera.

E de Mouy tirou da algibeira uma renúncia do duque de Alençon, escrita e assinada por Henrique, e com a data indicada.

- E está tudo em forma - disse Carlos depois de ler.

- Que pedia então Henrique em troca desta renúncia?

- Nada, minha Senhora; a amizade de el-rei Carlos, disse-nos ele, indemnizá-lo-ia amplamente da perda duma coroa.

Catarina mordeu os beiços de cólera e torceu as suas belas mãos.

- Tudo isso é perfeitamente exacto, de Mouy - acrescentou o rei.

- Então - tornou a rainha-mãe -, se tudo estava concertado entre o senhor e o rei de Navarra, para que foi a entrevista que teve esta noite com ele?

- Eu, minha Senhora? com o rei de Navarra? - disse de Mouy. - O oficial que me prendeu é testemunha de que eu estava só. Vossa Majestade pode chamá-lo.

- Sr. de Nancey! - bradou o rei.

O capitão das guardas tornou a entrar.

- Sr. de Nancey - disse vivamente Catarina -, o Sr. de Mouy estava absolutamente só na hospedaria da Estrela Brilhante?

- No quarto, sim, minha Senhora; mas na hospedaria, não.

- Ah! - disse Catarina - e quem era o seu companheiro?

- Não sei quem era o companheiro do Sr. de Mouy minha Senhora, mas sei que se evadiu por uma porta do fundo, depois de estirar dois guardas da escolta.

- Conheceu certamente esse fidalgo?

- Eu não, minha Senhora; mas os meus fiéis guardas conheceram-no.

- E quem era? - perguntou Carlos IX.

- O Senhor Conde Aníbal de Cocunás.

- Aníbal de Cocunás! - repetiu o rei pensativo - aquele que fez tão horrorosa matança nos huguenotes pelo S. Bartolomeu?.

- O Sr. de Cocunás, gentil-homem do Senhor Duque de Alençon - disse o Sr. de Nancey.

- Bem, bem - disse Carlos IX. - E para outra vez lembre-se duma coisa.

- De quê, meu Senhor?

- De que está ao meu serviço, e de que só deve obedecer a mim.

O Sr. de Nancey retirou-se andando para trás, e cumprimentando respeitosamente. De Mouy sorriu com ironia para Catarina.

Houve um instante de silêncio. A rainha torcia o colar. Carlos afagava o cão.

- Mas qual era o seu fim, Sr. de Mouy? - continuou Carlos. - Tencionava levar as coisas pela violência?

- Contra quem, meu Senhor?

- Contra Henrique, contra Francisco, ou contra mim.

- Meu Senhor, nós tínhamos a renúncia de seu cunhado, o acordo de seu irmão, e estávamos a ponto de solicitar a autorização de Vossa Majestade, quando se passou esse desgraçado sucesso com o Sr. de Maurevel.

- Que lhe parece, minha mãe? - disse Carlos. - Não vejo mal em tudo isto. O Sr. de Mouy estava no seu direito pedindo um rei. Sim, a Navarra pode e deve ser um reino separado. Ainda mais: esse reino parece feito expressamente para dotar meu irmão de Alençon, o qual teve sempre tanto desejo de possuir uma coroa, que quando trazemos a nossa não tira os olhos dela. O único obstáculo a essa entronização era o direito de Henriquinho; visto, porém, que Henriquinho renuncia voluntariamente.

- Voluntariamente, Senhor.

- Parece que é essa a vontade de Deus! Sr. de Mouy, pode voltar para os seus irmãos, a quem castiguei talvez um pouco. asperamente; mas isso é negócio entre Deus e mim; e diga-lhes que, visto desejarem para rei de Navarra a meu irmão, o duque de Alençon, o rei de França cede aos seus desejos. Desde este momento a Navarra é um reino, e o seu soberano chama-se Francisco. Peço unicamente oito dias para que meu irmão possa sair de Paris com a pompa e esplendor próprios dum rei. Vá, Sr. de Mouy vá. Sr. de Nancey deixe passar o Sr. de Mouy; está solto.

- Senhor - disse de Mouy dando um passo para diante -, permita-me Vossa Majestade.

- Sim - disse o rei.

E estendeu a mão ao jovem huguenote.

De Mouy pôs um joelho no chão e beijou respeitosamente a mão do rei.

- Espere - disse Carlos, retendo-o quando ele ia a levantar-se -, não me pediu o castigo desse facínora do Maurevel?.

- Sim, meu Senhor.

- Não sei onde ele está, para lhe fazer a vontade, Sr. de Mouy, porque anda oculto; mas, se o encontrar, faça justiça por suas mãos: autorizo-o para isso, e de muito boa vontade.

- Ah! meu Senhor! - bradou de Mouy - eis o que põe o remate a todos os meus desejos. Deixe Vossa Majestade o negócio por minha conta; também não sei onde ele está, mas hei-de achá-lo, fique descansado.

E de Mouy, depois de cortejar respeitosamente o rei Carlos e a rainha Catarina, retirou-se, sem que os guardas que o haviam conduzido lhe impedissem a passagem. Atravessou os corredores, ganhou rapidamente o passadiço, e, mal se viu fora do Louvre, foi num pulo da Praça de São Germano L'Auxerrois à hospedaria da Estrela Brilhante onde achou o seu cavalo, graças ao qual, três horas depois de sair de Paris, o mancebo respirava em segurança, abrigado pelas muralhas de Mantes.

Catarina, devorando a sua cólera, voltou à sua câmara, da qual passou para a de Margarida. Aí achou Henrique em trajo caseiro, e com ar de quem se vai enfiar na cama. Satanás - disse ela consigo - acode a uma pobre rainha em favor de quem já Deus não quer fazer nada.

 

         DUAS CABEÇAS PARA UMA COROA

- Vá dizer ao Sr. de Alençon que me venha falar - disse Carlos ao capitão das guardas despediu a mâe.

O Sr. de Nancey disposto, conforme a observação que o rei lhe fizera, a não obedecer daí por diante senão a ele, foi num pulo do quarto de Carlos ao do irmão, e transmitiu-lhe simplesmente a ordem que acabava de receber.

O duque de Alençon sobressaltou-se: tinha sempre tremido diante de Carlos, e principalmente depois que pelos seus passos para uma conspiração criara motivos para o temer.

Mas nem por isso deixou de ir à presença do irmão com uma prontidão calculada. Carlos estava de pé, assobiando uma cançoneta de caçador.

Ao entrar, o duque de Alençon surpreendeu nos olhos envidraçados de Carlos um desses olhares rancorosos que eram tão seus conhecidos.

- Recebi ordem para lhe vir falar Senhor; que deseja Vossa Majestade?

- Dizer-lhe, meu bom irmão, que, para recompensar a grande amizade que me tem, estou decidido a conceder-lhe hoje aquilo que mais deseja.

- A mim?

- Sim, ao senhor. Lembre-se de qual é a coisa em que mais pensa de certo tempo para cá, e conte com ela.

- Meu Senhor - disse Francisco -, juro a meu irmão que nada mais desejo do que a continuação da boa saúde do rei.

- Então deve estar satisfeito, de Alençon: a indisposição que tive quando os polacos chegaram, desapareceu. Escapei, graças a Henriquinho, dum javali furioso que me ia dilacerando, e passo de maneira tal, que não tenho inveja ao mais sadio do meu reino. Pode, pois, de Alençon, sem ser mau irmão, desejar outra coisa além da continuação da minha saúde, que é excelente.

- Não desejo nada, Senhor.

- Deseja, deseja, Francisco - tornou Carlos impacientando-se -, deseja a coroa de Navarra, visto que se entendeu com Henriquinho e de Mouy; com o primeiro para que a renunciasse, com o segundo para que lha obtivesse. Pois bem, que mais quer? Henriquinho renuncia, de Mouy transmitiu-me a sua súplica, e essa coroa que ambicionava.

- E que mais? - perguntou de Alençon com voz trémula.

- Ora! que mais. É sua.

De Alençon empalideceu horrivelmente; depois, o sangue que lhe acudira ao coração e que quase lho despedaçara, refluiu de repente para as extremidades, e uma ardente vermelhidão veio queimar-lhe as faces; o favor que o rei lhe fazia desesperava-o num tal momento.

- Mas, Senhor - tornou ele, palpitando de emoção, e buscando serenar- se sem o conseguir

-, eu não desejei, nem tão-pouco pedi, nada que se assemelhe a isso.

- É possível - disse o rei -, porque meu irmão é muito discreto: mas houve quem desejasse e pedisse por ele.

- Senhor, juro-lhe que nunca.

- Não jure.

- Mas, Senhor, Vossa Majestade quer desterrar-me?.

- Pois chama a isso um desterro, Francisco? Que tal!. é bem difícil de contentar. Que esperava então mais?

De Alençon mordeu os beiços de desesperação.

- Por minha fé! - continuou Carlos, afectando bondade - julgava-o menos popular, e principalmente entre os huguenotes; porém, visto que eles o pedem, devo confessar que me enganava. Demais, eu nada podia desejar tanto como ter uma pessoa minha, meu irmão, que me ama, e que é incapaz de me trair, à testa dum partido que nos guerreia há trinta anos. Isto vai como por encanto tranquilizar tudo; além de que seremos todos reis na família. Só o pobre Henriquinho é que não será mais do que meu amigo. Mas ele não é ambicioso, e esse título, que ninguém reclama, tomá-lo-á ele.

- Oh, Senhor! Vossa Majestade engana-se. Esse título reclamo-o eu; ninguém tem mais direito a ele. Henrique é apenas seu cunhado, isto é, irmão por aliança; eu sou irmão de Vossa Majestade pelo sangue, e ainda mais pelo coração. Senhor, rogo-lhe encarecidamente que me deixe ficar ao pé de si.

- Isso não, Francisco - respondeu Carlos -, seria fazer a sua desgraça.

- Como assim!

- Por mil razões.

- Vossa Majestade nunca achará um companheiro tão fiel como eu. Desde a minha infância nunca me separei de Vossa Majestade.

- Sei isso, sei isso, e também que não tenho deixado de o desejar algumas vezes mais longe de mim.

- Que quer dizer Vossa Majestade?

- Nada, nada!. eu cá me entendo. Oh! que belas caçadas que vai fazer, Francisco, que inveja que lhe tenho! Não sabe que se caçam os ursos nessas diabólicas montanhas como aqui os javalis?. Que belas peles que nos há-de mandar! Há-de saber que essa caça é morta a punhal; esperam o animal, excitam-no, desesperam-no, ele vem direito ao caçador, empina-se nos pés, e nesse momento crava-se-lhe o ferro no coração, assim como fez Henrique ao javali na última caçada. É perigoso, mas como meu irmão é valente, esse perigo dar-lhe-á um verdadeiro prazer.

- Ah! Vossa Majestade redobra o meu pesar, porque nunca mais terei o gosto de caçar na sua companhia.

- Oh! lá por isso não - disse o rei -, tanto melhor: não nos convém muito caçarmos juntos.

- Que quer Vossa Majestade dizer?

- Que é tal o gosto que tem em caçar comigo, e tanta a sua emoção, que, não obstante chegar a sua destreza ao ponto de matar uma pega a cem passos, isto com qualquer arcabuz, teve a infelicidade, a última vez que caçámos juntos, de errar, com uma arma com que está acostumado, um javali que passou a vinte passos, e de, ainda por cima, quebrar uma perna ao meu melhor cavalo. Que diabo, Francisco! olhe que isto dá que cismar!

- Oh, Senhor! perdoe à emoção - disse Francisco, que se tornara lívido.

- Sim, sim - tornou Carlos -, sei bem o que é a emoção; e é mesmo por causa dessa emoção, que eu aprecio pelo seu justo valor, que lhe digo agora: Francisco, é melhor caçarmos um longe do outro, especialmente quando há tais emoções. Reflicta nisto, meu irmão, não na minha presença, porque bem vejo que o perturba, mas quando estiver só, e há-de convir que tenho toda a razão para temer que na outra caçada lhe sobrevenha uma nova emoção; ora, não há nada que faça levantar o braço como é a emoção, e então mataria o cavaleiro em vez do cavalo, o rei em vez do animal. Cos diabos! uma bala cravada mais acima ou mais abaixo pode mudar muito a face dum governo, do que temos um exemplo na nossa família. Quando Montgomery matou nosso pai Henrique II por acidente, por emoção talvez, o golpe levou nosso irmão Francisco II para o trono, e nosso pai Henrique para S. Dinis. Deus tirou o mundo do nada; basta-lhe portanto muito pouca coisa para fazer muito.

O duque sentiu correr-lhe o suor pela testa durante esse choque tão terrível como imprevisto. Era impossível que o rei pudesse mais claramente dizer que se adivinhara tudo. Carlos, encobrindo a sua cólera com um ar de galanteio, estava ainda talvez mais terrível do que se tivesse deixado trasbordar a fervente lava rancorosa que lhe devorava o coração; a sua vingança parecia proporcionada ao rancor. À medida que este se exacerbava, engrandecia aquela, e pela primeira vez sentiu de Alençon o remorso, ou antes, o pesar de ter concebido um crime que não pudera consumar.

Sustentara ele a luta enquanto o pôde fazer, mas, recebendo esse último choque, dobrou a cabeça, e Carlos viu assomar-lhe aos olhos essa chama devoradora, que nas pessoas de natureza terna solta os diques ao pranto. Mas de Alençon era daqueles que só choram de raiva.

Carlos tinha fixado nele os seus olhos de águia, aspirando por assim dizer cada uma das sensações que se sucediam no coração do mancebo. E todas essas sensações se lhe manifestavam com tanta precisão, graças ao estudo aprofundado que tinha feito da sua família, como se o coração fosse um livro aberto.

Deixou-o assim por um instante, esmagado, imóvel e mudo; e depois, com uma voz toda impregnada de rancorosa firmeza:

- Meu irmão - disse ele -, demos-lhe conta da nossa resolução, e a nossa resolução é imutável: há-de partir.

De Alençon fez um movimento. Carlos pareceu não o perceber, e continuou:

- Quero que a Navarra se ufane de ter por príncipe um irmão do rei de França. Poder, honras, nada lhe há-de faltar, meu irmão; cerá tudo o que convém ao seu nascimento, como teve seu irmão; e assim como ele, também me há-de bendizer de longe. Mas não importa: para as bênçãos não há distâncias.

- Senhor.

- Aceite, ou, para melhor dizer, resigne- se. Logo que for rei, achar-se-lhe-á uma mulher digna dum filho de França, e talvez mesmo lhe traga um trono.

- Mas - disse de Alençon - Vossa Majestade esquece-se do seu bom amigo Henrique.

- Henrique? pois não lhe disse já que ele não queria nada do trono de Navarra? Não lhe disse que lho cedia?. Henrique é um mancebo jovial, e não uma carinha pálida como Francisco. Ele quer rir, divertir-se a seu gosto, e não definhar, como nós estamos condenados, sob o peso das coroas.

De Alençon suspirou.

- Então - disse ele - Vossa Majestade manda que eu trate.

- Não, não. Não se embarace com coisa alguma, Francisco; eu mesmo arranjarei tudo; descanse em mim como num bom irmão. E agora, que tudo está combinado, pode retirar-se; quer diga quer não aos seus amigos o que se acaba de passar entre nós, hei-de tratar de fazer com que a coisa se torne pública quanto antes. Pode retirar-se, Francisco.

Não havia nada que responder a isto. O duque cumprimentou, e partiu ardendo em raiva. Ele fervia por encontrar Henrique, para conversar com ele sobre o que acabava de se passar, mas não encontrou senão Catarina; com efeito, Henrique fugia de conversar com ele, e a rainha-mãe procurava-o.

O duque, ao ver Catarina, sufocou imediatamente as suas dores e tentou sorrir. Menos feliz do que Henrique de Anjou, não era a mãe que ele buscava em Catarina, mas simplesmente uma aliada. Começava, pois, por dissimular com ela, porque para fazer boas alianças cumpre empregar-se mutuamente uma boa e variada dose de engano.  

Aproximou-se portanto de Catarina com um semblante em que apenas havia um leve vestígio de desassossego.

- Então, minha Senhora, não sabe as grandes notícias que há?

- Sei que se trata de fazê-lo rei.

- É uma grande bondade da parte de meu irmão, minha Senhora.

- Assim parece, não é verdade?    

- E sou quase levado a crer que devo repartir com Vossa Majestade uma parte do meu reconhecimento, porque, enfim, se fosse Vossa Majestade quem lhe tivesse dado o conselho de me fazer presente dum trono, era a Vossa Majestade que o deveria; posto que, na realidade, contristou-me ter que despojar deste modo o rei de Navarra.

- Então, pelo que parece, meu filho tem muita amizade a Henriquinho...

- Decerto; há algum tempo que estamos intimamente ligados.      

- E crê que ele corresponda verdadeiramente à sua amizade?      

- Creio, pois não!  

- Semelhante amizade, meu filho, especialmente entre príncipes, é decerto bem edificante.    

As amizades de corte passam por pouco sólidas, meu querido Francisco.

- Mas deve lembrar-se, minha mãe, que nós não só somos príncipes, mas até quase irmãos.  

Catarina deixou escapar um esquisito sorriso.

- Qual! - disse ela - há porventura irmãos entre reis?  

- Nós não éramos reis, minha mãe, quando nos ligámos assim, nem tínhamos mesmo probabilidades de o vir a ser; eis por que nos amávamos.

- Sim, mas as coisas estão bem mudadas actualmente.

- Bem mudadas?

- Sim, decerto; quem lhes diz agora que não serão ambos reis?

Pelo sobressalto nervoso do duque, pela vermelhidão que lhe invadiu o rosto, viu Catarina que a seta que disparara fora bater em cheio no coração.

- Ele? - disse Francisco - Henriquinho rei? e de que reino?

- Dum dos mais magníficos da cristandade, meu filho.      

- Oh! - bradou de Alençon empalidecendo - que é que está dizendo?

- Aquilo que uma boa mãe deve dizer a seu filho, e em que o meu filho Francisco tem pensado por mais duma vez.

- Eu - disse o duque - não tenho pensado em nada, minha Senhora, juro-lho.

- Quero acreditá-lo, porque o seu amigo, porque seu irmão Henrique, como lhe chama, debaixo da sua aparência de franqueza, é um senhor muito fino e muito astucioso, que guarda os seus segredos muito melhor do que Francisco. Disse-lhe ele, por exemplo, alguma vez, que de Mouy era o seu procurador?... E dizendo estas palavras, Catarina cravou o seu olhar como um estilete na alma de Francisco.

- De Mouy? - disse ele com surpresa, e como se fora a primeira vez que ouvira pronunciar este nome em tal circunstância.

- Sim, o huguenote de Mouy de Saint-Phale, aquele mesmo que quase matou o Sr. de Maurevel e que clandestinamente, e correndo a França e a capital em diferentes trajos, trama e levanta um exército para sustentar Henrique contra a nossa família.

Catarina, que ignorava que seu filho Francisco soubesse a este respeito tanto e até mais do que ela, levantou-se ao dizer estas palavras, dispondo-se a fazer uma saída majestosa.

Francisco reteve-a.

- Minha mãe - disse ele -, responda-me ainda a uma coisa. Visto que Vossa Majestade se digna iniciar-me na sua política, diga-me: como é que com tão fracos recursos, e sendo tão pouco conhecido, poderá Henrique fazer uma guerra bastante séria para inquietar a minha família?

- Criança - disse a rainha sorrindo - saiba que ele é sustentado por talvez mais de trinta mil homens; saiba que no dia em que ele disser uma palavra, aparecerão subitamente esses trinta mil homens como se saíssem debaixo da terra, e esses trinta mil homens são huguenotes, isto é, os mais bravos soldados do mundo. E depois, ele tem uma protecção que Francisco não tem percebido ou não tem podido conciliar.

- E qual é?

- Tem o rei; o rei, que o ama, que o impele; o rei, que por ciúme de seu irmão da Polónia, e por despeito de Francisco, procura sucessores em torno de si. Mas estes sucessores - que cego que é Francisco se o não vê! - quer achá-los fora da sua família.

- O rei? pois crê nisso, minha mãe?.

- Pois não tem percebido que ele adora Henriquinho, o seu Henriquinho?

- Decerto, minha mãe, decerto.

- E que é correspondido por ele?. Porque esse mesmo Henriquinho, esquecendo-se de que seu cunhado o queria arcabuzar no dia de S. Bartolomeu, põe-se de rastos como um cão que lambe a mão que o castigou!

- Sim, sim - disse Francisco por entre dentes -, já o tenho notado: meu irmão Henrique é bastante humilde com meu irmão Carlos.

- Engenhoso em agradar-lhe em tudo.

- Tanto que, despeitado pela zombaria que o rei faz constantemente da sua ignorância das caçadas com falcões, quer tratar de estudar a volataria. E foi por isso que me perguntou. (sim, foi ontem) se eu não tinha alguns livros bons que tratassem desta arte.

- Espere. - disse Catarina, cujos olhos luziram como se uma ideia súbita lhe tivesse atravessado o espírito - espere. E que lhe respondeu, Francisco?

- Que eu o procuraria na minha biblioteca.

- Bem - disse Catarina -, bem; é preciso dar-lhe esse livro.

- Mas eu procurei e não achei.

- Pois hei-de achá-lo eu, deixe estar, hei-de achá-lo. e há-de dar-lho depois como coisa sua.

- E que resultará daí?

- Confia em mim, de Alençon?

- Confio, minha mãe.

- Quer-me obedecer cegamente a respeito de Henrique, a quem não ama, por mais que me diga?

De Alençon sorriu.

- E a quem eu detesto - continuou Catarina.

- Obedecerei.

- Na manhã da próxima caçada venha aqui buscar o livro; dar-lho-ei para o levar ao Henrique.

-E...

- Deus, a Providência ou o acaso, fará o resto.

Francisco conhecia bastante a mãe, e por isso sabia que não era a Deus, à Providência ou ao acaso que ela costumava ceder a tarefa de satisfazer as suas amizades ou os seus rancores; mas não se atreveu a acrescentar uma palavra; e fazendo uma cortesia, como homem que aceita a comissão de que o encarregaram, retirou-se para o seu quarto.

Que quererá ela dizer? - ia ele pensando ao subir a escada - não entendo. É porém claro para mim que ela trabalha em tudo isto contra um inimigo comum. Deixemo-la, pois, haver-se como entender.

Neste intervalo, recebia Margarida, por intermédio de La Mole, uma carta de de Mouy com sobrescrito para o rei de Navarra. Como os dois ilustres cônjuges não tinham, em objectos políticos, segredo algum entre si, abriu ela a carta e leu-a.

Julgou-a decerto interessante, porque, no mesmo instante, aproveitando-se da escuridão que começava a cobrir as paredes do Louvre, introduziu-se Margarida pela passagem secreta, subiu a escada de caracol e, depois de ter olhado com atenção para todos os lados, correu com a rapidez duma sombra e introduziu-se na antecâmara do rei de Navarra.

Essa antecâmara não era guardada por pessoa alguma depois da desaparição de Orthon.

Essa desaparição, de que não tornámos a falar desde o momento em que o leitor a viu efectuar-se tão tragicamente para o pobre Orthon, havia inquietado muito Henrique. Abria-se ele a esse respeito com a Sr. de Sauve e com a esposa; mas nenhuma delas sabia mais do que ele; apenas a Sr. de Sauve lhe dera alguns esclarecimentos, em virtude dos quais estava Henrique perfeitamente convencido de que o pobre rapazito fora vítima dalguma maquinação da rainha-mãe, e que era em consequência dessa maquinação que ele estivera a ponto de ser preso com de Mouy na hospedaria da Estrela Brilhante.

Outro que não fosse Henrique guardaria silêncio a este respeito, porque teria tido medo de falar; mas Henrique calculava tudo: viu que o seu silêncio poderia atraiçoá-lo; não se perde ordinariamente assim um Famulo, um confidente, sem que se proceda a indagações, sem que se trate de procurá-lo. Foi o que Henrique fez, à vista mesmo do rei e da rainha- mãe: perguntou por Orthon a toda a gente, desde a sentinela do passadiço do Louvre até ao capitão das guardas que velava na antecâmara do rei; mas todas as perguntas e todos os passos foram infrutíferos; e Henrique mostrou-se tão ostensivamente afectado por esse acontecimento, e tão afeiçoado ao pobre fâmulo ausente, que declarou expressamente que o não substituíssem enquanto não adquirisse a certeza de que havia desaparecido para sempre.

Não estava pois ninguém na antecâmara, como dissemos, quando Margarida se apresentou no quarto de Henrique.

Por mais leves que fossem os passos da rainha, Henrique ouviu-os e voltou-se.

- Vossa Majestade aqui? - exclamou ele.

- Eu, sim - respondeu Margarida. - Leia depressa.

E apresentou-lhe o papel aberto.

Continha as seguintes linhas:

Senhor: chegou o momento de dar execução ao nosso projecto de fuga. Por estes cinco dias haverá caçada comfalcões ao longo do Sena desde São Germano até Maisons. Isto é em toda a extensão da floresta.

Vá a essa caçada, posto que seja de altanaria; vista por baixo do gibão uma boa cota de malha; cinja a sua melhor espada e monte no cavalo maisfino que tiver. Por volta do meio-dia, sto e no maior calor da caçada, e guando o rei largar atrás dofalcão, afaste-se sozinho, se for só; com a rainha de Navarra, se ela o acompanhar.

Cinquenta dos nossos estarão escondidos no Pavilhão de Francisco I, do qual temos a chave; ninguém saberá que eles ali estão, porque hão-de entrar de noite e asjanelas hão-de estar fechadas.

Passe pela Alameda das Violetas, na qual hei-de estar eu de vigia; à direita dessa alameda, numa pequena quebrada, estarão os Srs. de La Mole e de Cocunás, com dois cavalos à mão para muda, se os seus estiverem cansados.

Adeus, meu Senhor Não se descuide: esteja pronto, que nós o estaremos também.

- E há-de estar - disse Margarida, proferindo, depois de mil e seiscentos anos, as mesmas palavras que César pronunciou nas margens do Rubicão.

- Seja, minha Senhora - respondeu Henrique -, não serei eu quem a desminta.

- Vamos, Senhor, torne-se herói; não é difícil; não tem mais do que seguir o seu caminho; arranje-me um bom trono - disse a filha de Henrique.

Um imperceptível sorriso correu pelos finos lábios do Bearnês, que beijou a mão de Margarida, e saiu primeiro do que ela para explorar a passagem.

A precaução fora boa: no momento em que ele abria a porta da câmara de dormir o duque de Alençon abria a da sua antecâmara; Henrique fez um sinal com a mão a Margarida, e disse depois em voz alta:

- Ah, é Vossa Alteza, meu irmão. Seja muito bem-vindo.

Ao sinal do marido, a rainha compreendera tudo, e correra para um gabinete de toucador, cuja porta estava coberta por uma espessa tapeçaria.

O duque de Alençon entrou com passos temerosos e mirando tudo em roda de si.

- Estamos sós, meu irmão? - perguntou a meia voz.

- Perfeitamente sós. Que há de novo? Parece-me muito perturbado.

- Que há de novo? Há que estamos descobertos, Henrique!

- Como? descobertos?.

- Sim; de Mouy foi preso.

- Já sei.

- E disse tudo ao rei.

- Disse o quê?

- Disse que eu desejava o trono de Navarra, e que conspirava para o alcançar.

- Ah! cos diabos! - disse Henrique - de sorte que aí o temos comprometido, meu pobre irmão! E como é que ainda não foi preso?

- Eu mesmo não o sei; o rei gracejou comigo, ao mesmo tempo que afectou oferecer-me o trono de Navarra. Contava decerto arrancar-me uma confissão, mas eu não disse nada.

- E, por Deus! fez bem! - disse o Bearnês. - Conservemo-nos duros; a nossa vida depende disso.

- Sim - tornou Francisco -, o caso é grave; por este motivo, vim pedir-lhe o seu parecer, meu irmão. Que julga que devo fazer, fugir ou ficar?

- Esteve decerto com o rei, visto que foi a Vossa Alteza que ele falou, não é assim?

- Estive.

- Então deve ter-lhe lido o pensamento. Siga a sua inspiração.

- Eu antes queria ficar - respondeu Francisco.

Apesar de ser tão senhor de si, Henrique deixou escapar um movimento de alegria; e posto que imperceptível, Francisco surpreendeu-o na passagem.

- Então fique - disse Henrique.

- E Vossa Majestade?

- Pois se Vossa Alteza fica, não tenho eu motivo nenhum que me obrigue a sair. Eu só partia para o acompanhar, por dedicação, para não ficar separado dum irmão a quem amo.

- Portanto - disse de Alençon -, estão perdidos todos os nossos planos; Vossa Majestade cede, sem resistir, ao primeiro revés da fortuna.

- Eu por mim não considero um revés da fortuna ficar aqui; graças ao meu carácter pachorrento, estou bem em toda a parte.

- Bem, como quiser - disse de Alençon -, não falemos mais nisso; só o que lhe peço é que, se tomar alguma nova resolução, não deixe de ma comunicar.

- Oh! pois não! fique certo disso - respondeu Henrique. - Pois não conviemos em que não haveria segredos?.

De Alençon não insistiu mais e retirou-se, pensativo, porque houve um momento em que julgou ver mexer a tapeçaria do gabinete do toucador. Com efeito, apenas saiu de Alençon, levantou-se essa tapeçaria e Margarida tornou a aparecer.

- Que pensa desta visita? - perguntou Henrique.

- Que há alguma coisa de novo e importantte.

- E que julga que haverá?

- Ainda não sei, mas hei-de sabê-lo.

- E entretanto?.

- Entretanto, não deixe de vir à minha câmara amanhã à noite.

- Conto não faltar, minha Senhora - disse Henrique, beijando com amabilidade a mão da mulher.

E Margarida entrou para a câmara com as mesmas precauções com que saíra.

 

             O TRATADO DE MONTARIA

Tinham-se passado trinta e seis horas depois dos acontecimentos que acabámos de narrar. Começava a romper o dia, mas já tudo estava acordado no Louvre, como era costume nos dias de caçada, quando o duque de Alençon se dirigiu ao aposento da mãe, conforme haviam concordado.

A rainha-mãe não estava na sua câmara; mas tinha deixado ordem para que o filho a esperasse, caso fosse procurá-la.

Passados alguns instantes, saiu ela dum gabinete onde ninguém mais entrava, e que era destinado às suas operações químicas.

Ou fosse pela porta entreaberta, ou viesse impregnado no fato, entrou ao mesmo tempo que a rainha-mãe o cheiro penetrante dum acre perfume; e pela abertura dessa porta notou de Alen çon um denso vapor, como o que produz qualquer aroma queimado, que flutuava como uma nuvem branca no laboratório donde a rainha saía.

O duque não pôde reprimir um olhar de curiosidade.

- É verdade - disse Catarina -, queimei alguns pergaminhos velhos, e exalaram tão mau cheiro, que tive de lançar um pouco de zimbro no braseiro.

De Alençon inclinou-se.

- Então? - disse Catarina, escondendo nas largas mangas do roupão as mãos cobertas de pintas amareladas - que há de novo desde ontem?

- Nada, minha mãe.

- Tornou a ver Henrique?

- Tornei.

- Ainda recusa partir?

- Absolutamente.

- Que velhaco!

- Que diz, minha Senhora?

- Digo que parte.

- Crê que sim?

- Tenho a certeza.

- Então abandona-nos?

- Exactamente - disse Catarina.

- E Vossa Majestade deixa-o partir?

- Não só o deixo partir, mas, ainda digo mais: é necessário que parta.

- Não a entendo, minha mãe.

- Ouça bem o que lhe vou dizer, Francisco. Um médico muito hábil, o mesmo que me deu o tratado de caça que o meu filho lhe vai levar, asseverou-me que o rei de Navarra estava para ser atacado duma tísica, duma dessas doenças inexoráveis para as quais não há remédio algum; ora, bem vê que, se ele tem de morrer de tão cruel enfermidade, é melhor que seja longe de nós do que à nossa vista, na corte.

- Realmente - disse o duque -, isso contristar-nos-ia bastante.

- E principalmente a seu irmão Carlos - disse Catarina. - Se, porém, Henrique morrer depois de o haver atraiçoado, o rei considerará essa morte como um castigo do Céu.

- Tem razão, minha mãe - disse Francisco com admiração -, ele deve partir. Mas, está bem certa de que partirá?

- Já tomou todas as medidas para o fazer. A reunião é na floresta de São Germano. Cinquenta huguenotes devem servir-lhe de escolta até Fontainebleau, onde o esperam outros quinhentos.

- Oh! - exclamou de Alençon com uma breve hesitação e uma palidez visível - minha irmã Margot parte com ele?

- Parte - respondeu Catarina -, está isso acordado. Porém, logo que Henrique morrer, Margot voltará para a corte, viúva e livre.

- E Henrique morrerá, minha Senhora? Está certa disso?

- Pelo menos assim mo asseverou o médico que me deu o livro de que falámos.

- E onde está esse livro, minha Senhora?

Catarina voltou com passos vagarosos ao gabinete misterioso, abriu a porta, entrou e tornou a sair daí a um instante com o livro na mão.

- Está aqui - disse ela.

De Alençon olhou com algum terror para o livro que a mãe lhe apresentava.

- Que livro é esse, minha Senhora? - perguntou o duque estremecendo.

- Já lhe disse, meu filho, que é um tratado para aprender a criar e adestrar os açores, falcões e gerifaltes, feito por um homem muito sábio, pelo Sr. Castruccio Castracani, tirano de Luca.

- E que devo fazer dele?

- Levá-lo ao quarto do seu bom amigo Henriquinho, que lho pediu, segundo me disse (este ou outro semelhante), para se instruir na volataria. Como ele vai hoje à caça com o rei, não deixará de ler algumas páginas, a fim de lhe provar que segue os seus conselhos tomando lições. O principal é entregá-lo a ele mesmo.

- Oh! não me atrevo a isso - disse de Alençon estremecendo.

- Porquê? - disse Catarina - é um livro como todos os livros; a única diferença é ter as páginas quase todas pegadas umas às outras, provavelmente por estar fechado há muito tempo. Não o procure ler, Francisco, porque não é possível fazê-lo senão molhando o dedo para abrir folha por folha, o que gasta muito e dá muito trabalho.

- Também, só um homem que tiver grande desejo de se instruir é que poderá perder esse tempo e tomar esse trabalho.

- Exactamente, meu filho; vejo que compreende.

- Oh! - disse de Alençon - lá está já Henriquinho no pátio. Dê-me cá o livro, minha Senhora; vou aproveitar-me da sua ausência para lho pôr no quarto; quando voltar, lá o encontrará.

- Eu estimaria mais que lho desse em mão própria, Francisco; era mais seguro - disse Catarina.

- Já lhe disse que não me atrevo, minha Senhora.

- Pois vá, mas ponha-o bem à vista.

- Pô-lo-ei no lugar mais visível, e faz mal que esteja aberto?

- Não faz.

- Então dê-mo cá.

De Alençon pegou com a mão trémula no livro que Catarina lhe entregou com mão firme.

- Tome, tome - disse Catarina -, não há perigo algum, uma vez que eu lhe pego; demais, o meu filho está com luvas.

Esta precaução não bastou para de Alençon, que embrulhou o livro na sua capa. - Não se demore - disse Catarina -, não se demore; Henrique pode subir dum momento para outro.

- Tem razão, minha Senhora, vou já. E o duque saiu, titubeando de emoção.

Já introduzimos algumas vezes o leitor nos aposentos do rei de Navarra, e fizemo-lo assistir às sessões que ali se passaram, festivais ou terríveis, conforme o estado risonho ou ameaçador do génio protector do futuro rei de França.

Mas talvez que nunca essas paredes salpicadas de sangue pelo assassínio, regadas de vinho pela orgia, embalsamadas de aromas pelo amor, nunca esse canto do Louvre, enfim, tivesse visto aparecer um rosto mais pálido do que o do duque de Alençon, com o livro na mão à porta da câmara do rei de Navarra.

E, não obstante, segundo contara o duque, não estava lá ninguém para inquirir com vistas curiosas ou indiscretas a acção que ele ia cometer. Os primeiros raios do dia alumiavam o quarto, que estava completamente só.

Na parede estava dependurada a espada que de Mouy aconselhara a Henrique que levasse. Pelo chão estavam dispersos alguns anéis duma cota de malha. Em cima duma mesa estava uma bolsa bem recheada e um pequeno punhal, e algumas cinzas espalhadas pela lareira, juntas a esses outros indícios, diziam claramente a de Alençon que o rei de Navarra tinha vestido uma cota de malha, pedira dinheiro ao seu tesoureiro e queimara papéis que o podiam comprometer.

Minha mãe não se enganou - disse de Alençon -, o velhaco atraiçoava-me. Esta convicção deu por certo uma nova força ao mancebo, por isso que, depois de haver sondado com o olhar todos os cantos da câmara, depois de haver levantado os reposteiros, depois que a grande bulha que havia nos pátios e o profundo silêncio que reinava nos aposentos, lhe provaram que ninguém o espiava, tirou o livro de baixo da capa, colocou-o rapidamente em cima da mesa em que estava a bolsa, encostando-o a uma estante de carvalho; depois afastou-se, estendeu o braço, e, com uma hesitação que lhe traía o susto, com a luva calçada, abriu o livro no lugar em que havia uma estampa de caça.

Aberto o livro, de Alençon recuou imediatamente uns três passos, e, descalçando a luva, lançou-a no braseiro, que ainda ardia, e que acabava de devorar os papéis. A pele branda crepitou sobre as brasas, torceu-se e estendeu-se como o cadáver dum grande réptil, e em pouco tempo não ficou dela mais do que um resíduo negro e eriçado.

De Alençon esteve ali até que o fogo consumiu inteiramente a luva, enrolou depois a capa em que havia embrulhado o livro, meteu-a debaixo do braço, e voltou apressado para o seu quarto. Ao entrar nele, profundamente alterado, palpitando-lhe muito o coração, sentiu passos na escada de caracol, e não duvidando que fosse Henrique que voltava, fechou precipitadamente a porta.

Correu depois para a janela; mas da janela apenas se via uma parte do átrio do Louvre. Henrique não estava nessa parte do átrio; tornou-se-lhe portanto mais firme a convicção de que era ele que tinha subido e entrado.

O duque sentou-se, abriu um livro e tentou ler. Era uma história de França, desde Faraó até Henrique II, para cuja publicação el-rei Carlos havia concedido privilégio logo que subira ao trono.

Mas o espírito do duque não estava ali; a febre da espera queimava-lhe as artérias. A pancada das fontes retinia- lhe no cérebro; como sucede num sonho ou num êxtase magnético, parecia-lhe que estava vendo através das paredes o que se passava; o seu olhar penetrava no quarto de Henrique não obstante o tríplice obstáculo que o separava dele.

Para desviar o objecto trágico que julgava estar vendo com os olhos do pensamento, o duque procurou fixar os seus noutra coisa que não fosse o livro terrível, aberto, sobre a estante de carvalho, no lugar da estampa; mas foi debalde que pegou, uma por uma, em todas as suas armas, em todas as suas jóias, que contou cem vezes; todos os pormenores daquela gravura, para que o duque apenas olhara, tinham-lhe ficado impressos no espírito. Era um fidalgo a cavalo que, fazendo o serviço dum simples falcoeiro, atirava a negaça, chamando o falcão e correndo a toda a brida por cima dum pantanal. Por mais violento que fosse o desejo do duque, a lembrança dominava-o contra sua vontade.

E demais, não era só o livro que ele via, era o rei de Navarra aproximando-se do livro, olhando para a estampa, tentando voltar as folhas e, embaraçado pelo obstáculo que elas opunham, triunfando do obstáculo molhando o dedo e obrigando-as a separar-se.

E a essa vista, fictícia e fantástica como era, de Alençon, titubeando, via-se obrigado a segurar-se com uma das mãos a uma mesa, enquanto com a outra cobria os olhos, como se com os olhos cobertos não visse ainda melhor o espectáculo de que queria fugir.

Esse espectáculo era o seu próprio pensamento.

De repente, de Alençon viu Henrique atravessar o pátio; o Bearnês parou um instante ao pé dos criados, que estavam carregando duas mulas com as provisões para a caça, que não eram mais do que o dinheiro e os aprestos para a jornada; depois de dar algumas ordens, cortou diagonalmente o átrio, e dirigiu-se visivelmente para a porta da entrada.

De Alençon estava imóvel no seu lugar. Não era pois Henrique quem tinha subido pela escada secreta. Tinha portanto o duque sofrido inutilmente todas essas agonias por que passava havia um quarto de hora. O que ele julgava acabado, ou quase a acabar, ia começar agora.

De Alençon abriu a porta da sua câmara, e foi pôr-se à escuta na do corredor. Desta vez não se enganava, era com efeito Henrique. De Alençon reconheceu-lhe os passos e até o tinido particular das rosetas das esporas.

A porta da câmara de Henrique abriu-se, e tornou-se a fechar. De Alençon entrou para a sua e atirou-se para uma poltrona.

Bem - disse ele - eis o que se passa agora: atravessou a antecâmara, a primeira sala, e chegou ao quarto de dormir; ali procurou com os olhos a espada, depois a bolsa, depois o punhal, e depois, finalmente, achou o livro aberto na estante.

Que livro é este? - terá ele dito consigo. - Quem me traria este livro? Depois, ter-se-á aproximado, terá visto essa estampa que representa um cavaleiro chamando o seu falcão, e há-de ter querido ler, procurando virar as folhas.

Um suor frio passou pelo rosto de Francisco.

Irá ele chamar por alguém? - disse consigo. - Será acaso um veneno de rápido efeito? Não, decerto que não, visto que minha mãe me disse que ele havia de ir definhando lentamente até morrer.

Este pensamento tranquilizou-o um pouco.

Assim se passaram dez minutos: um século de agonias, gasto segundo por segundo, e fornecendo cada um desses segundos todos os terrores insensatos que inventa a imaginação, um mundo de visões.

De Alençon não pôde conter-se mais; levantou-se e atravessou a antecâmara, que começara a encher-se de fidalgos.

- Bom dia, meus Senhores - disse ele -, vou à câmara de el-rei.

E, para iludir a inquietação que o devorava, para preparar talvez um alívio, de Alençon desceu efectivamente à câmara do irmão. Mas que ia lá fazer? Não o sabia. Que tinha a dizer-lhe? Nada! Não procurava Carlos, fugia de Henrique.

Os guardas deixaram entrar o duque sem dificuldade; nos dias de caçada não havia nem etiqueta nem ordens especiais para vigiar os que entravam.

Francisco atravessou sucessivamente a antecâmara, a sala e a câmara de dormir sem encontrar ninguém; pensou, finalmente, que Carlos estivesse na sala de armas, e empurrou a porta que dava para ela.

Carlos estava sentado a uma mesa, numa grande poltrona; tinha as costas voltadas para a porta por onde Francisco entrara.

Parecia embebido num trabalho que o preocupava.

O duque aproximou-se na ponta dos pés; Carlos estava lendo.

- Cos demónios! - exclamou subitamente o rei - que livro admirável! Tinha ouvido falar muito nele, mas não julgava que o houvesse em França.

De Alençon aplicou o ouvido e deu mais um passo.

- Malditas folhas! - disse o rei, levando o dedo aos beiços, e procurando com ele assim molhado separar a folha que tinha lido da que se lhe seguia - parece que lhe colaram as folhas para esconder aos olhos dos homens as maravilhas que contém.

De Alençon deu um pulo para diante.

O livro sobre que o rei estava inclinado era o mesmo que de Alençon tinha ido pôr na câmara de Henrique.

Escapou-lhe um grito surdo.

- Ah, é o senhor, de Alençon? - disse Carlos - seja muito bem-vindo, e venha ver o mais belo livro de montaria que já saiu da pena dum homem.

O primeiro movimento de Alençon foi arrancar o livro das mãos do irmão; mas um pensamento infernal pregou-o no seu lugar, um sorriso medonho assomou-lhe aos lábios descorados; passou a mão pelos olhos como se tivera a vista turva.

Tornando depois pouco a pouco a si, mas sem dar um passo nem para diante nem para trás, disse:

- Como veio ter este livro às mãos de Vossa Majestade?

- Não há nada mais simples. Subi há pouco à câmara de Henriquinho para ver se ele estava pronto; já o não achei no quarto; andava decerto pelos canis e estrebarias; mas em lugar de o encontrar a ele, encontrei este tesouro, e desci para o vir ler à minha vontade.

E o rei tornou a levar o dedo aos lábios, e virou outra vez uma folha rebelde.

- Senhor. - balbuciou de Alençon, cujos cabelos se eriçavam, e que sentiu por todo o corpo uma agonia terrível - Senhor, eu vinha dizer- lhe.

- Deixe-me acabar este capítulo, Francisco - disse Carlos -, e depois diga-me tudo quanto quiser. Já li, ou para melhor dizer, já devorei, cinquenta páginas!

Já tomou vinte e cinco doses de veneno! - disse Francisco consigo. - Meu irmão vai morrer!

Veio-Lhe então ao pensamento a existência dum Deus no Céu que não era talvez o acaso. Francisco enxugou com a mão trémula o frio orvalho que lhe filtrava pela testa, e esperou silencioso, como o irmão lhe ordenara, que ele acabasse de ler o capítulo.

Carlos continuava a ler. Na sua curiosidade, devorava as folhas do livro, e cada uma delas, ou por causa da humidade a que haviam estado muito tempo expostas, ou por qualquer outro motivo, aderia à folha seguinte.

De Alençon acompanhava com os olhos espantados esse terrível espectáculo, cujo desfecho fatal só ele podia entrever.

Oh! - dizia ele consigo - que coisas aqui se vão passar! Como! pois eu hei-de partir, hei-de desterrar-me, hei-de ir em busca dum trono imaginário, enquanto Henrique, à primeira notícia da enfermidade de Carlos, não deixará de vir para alguma praça forte a vinte léguas de Paris, espreitando a presa que o acaso nos entrega, e podendo num pulo estar na capital, de sorte que, ainda antes de o rei da Polónia saber da morte de meu irmão, já estará mudada a dinastia? É impossível!

Tais eram os pensamentos que haviam dominado o primeiro sentimento de horror involuntário que levara Francisco a deter Carlos. Era essa fatalidade perseverante que parecia guardar Henrique e perseguir os Valois, e contra a qual o duque ainda queria outra vez lutar.

Todo o seu plano acabava de mudar num instante a respeito de Henrique. Era Carlos e não Henrique quem tinha lido o livro envenenado. Henrique devia partir, condenado. Desde o mo mento em que a fatalidade acabava de o salvar outra vez, cumpria que Henrique ficasse; porque Henrique era menos de temer preso em Vincenas ou na Bastilha, do que o rei de Navarra à frente de trinta mil homens.

O duque de Alençon esperou, portanto, que Carlos acabasse o seu capítulo, e logo que o rei levantou a cabeça, disse-lhe:

- Meu irmão, eu esperei, porque Vossa Majestade mo ordenou, mas foi com pesar, porque tenho coisas da mais alta importância a dizer-lhe.

- Ah! cos diabos! - disse Carlos, cujas faces pálidas se iam fazendo rubras a pouco e pouco ou pelo grande ardor que tinha empregado na leitura, ou porque o veneno começasse a produzir efeito - cos diabos! não venhas outra vez falar-me na mesma coisa. Hás-de partir, como partiu o rei da Polónia. Livrei-me dele, hei-de livrar- me de ti; e nem mais uma palavra a tal respeito!

- Porém, meu irmão - disse Francisco -, não é da minha partida que eu lhe quero falar mas da partida de outrem. Vossa Majestade feriu-me no meu sentimento mais profundo e mais delicado, que é a minha dedicação a Vossa Majestade como irmão, e a minha fidelidade como súbdito, e tomo muito a peito provar-lhe que não sou traidor.

- Vamos - disse Carlos, pondo os cotovelos sobre o livro, cruzando as pernas e olhando para de Alençon como quem, contra o seu costume, se arma de paciência -, algum novo boato? Alguma acusação matinal?

- Não senhor. Uma certeza, uma conspiração, que só a minha ridícula delicadeza é que me não tinha deixado comunicar-lhe.

- Uma conspiração? - disse Carlos. - Vejamos a conspiração.

- Senhor - continuou Francisco -, enquanto Vossa Majestade estiver caçando com os falcões junto do rio, na planície do Vesinet, o rei de Navarra ganhará a floresta de São Germano.

Um corpo de amigos espera-o aí, e há-de fugir com eles.

- Isso já eu esperava - disse Carlos. - Mais uma boa caluniazinha contra o meu pobre Henriquinho!... Então ainda não acham que é tempo de o deixar sossegado?

- Vossa Majestade não precisará de esperar muito tempo, ao menos para se certificar se o que tenho a honra de lhe dizer é ou não uma calúnia.

- Como assim!

- Porque, quando chegar a noite, já o nosso cunhado terá partido.

Carlos levantou-se.

- Ouça - disse ele -, quero ainda uma vez afectar que acredito nas suas invenções; mas advirto-os, a si e a minha mãe, de que esta vez há-de ser a última.

Depois, levantando a voz:

- Chamem o rei de Navarra!

Um guarda fez um movimento para obedecer; mas Francisco reteve-o com um gesto.    

- Mau expediente, meu irmão - disse ele -, desse modo não saberá nada. Henrique nefará, dará um sinal: os seus cúmplices serão avisados e desaparecerão; depois seremos nós, eu e minha mãe, acusados não só de visionários, mas até de caluniadores.

- Que é que pede então?

- Que em nome da nossa fraternidade Vossa Majestade me escute; que em nome da minha dedicação, que vai reconhecer, não precipite as coisas. Proceda de sorte, senhor, que o verdadeiro criminoso, que há dois anos atraiçoa com intenção a Vossa Majestade, enquanto o não tem podido

atraiçoar por obras, seja finalmente reconhecido culpado por uma prova infalível, e castigado como merece.

Carlos não respondeu nada; foi a uma janela e abriu-a; o sangue invadia-lhe o cérebro.

Voltando-se por fim vivamente, disse:

- Então que é que faria? Fale, Francisco.  

- Eu, Senhor - disse de Alençon -, mandaria cercar a floresta de São Germano por três

destacamentos de cavalaria ligeira, os quais, a uma hora ajustada (às onze, por exemplo) se poriam em marcha e bateriam toda a floresta até ao Pavilhão de Francisco I, que eu, como por acaso, designaria para ponto de reunião ao jantar. Depois, afectando que seguia o meu falcão, veria afastar-se Henrique, e daria de esporas para o ponto designado, onde o apanharia com todos os seus cúmplices.

- A ideia é boa - disse o rei. - Chamem o meu capitão das guardas.

De Alençon tirou do seu gibão um apito de prata pendurado num grilhão de ouro, e apitou.

Entrou o Sr. de Nancey.

Carlos dirigiu-se a ele, e deu-lhe as suas ordens em voz baixa.  

Neste intervalo, o seu grande galgo Actéon achara uma presa com que se entreter, e pôs-se

a arrastá-la pelo quarto, despedaçando-a às dentadas e dando saltos de contente.

Carlos voltou-se e rogou uma praga terrível. Essa presa era nada menos do que o precioso livro de montaria, do qual não existiam no mundo, como já dissemos, senão três exemplares.

O castigo foi proporcional ao delito. Carlos pegou num chicote e deu-lhe de modo que o animal ficou por vezes enrolado no açoite. Actéon gritou com a dor, e refugiou-se debaixo duma mesa coberta com um pano, que lhe serviu de abrigo.

Carlos apanhou o livro, e viu com prazer que só lhe faltava uma folha, e esta mesma não era do texto, mas duma estampa.

Fechou-o cauteloso num armário onde Actéon não podia chegar. De Alençon estava vendo com inquietação o que ele fazia. Bem desejara ele que esse livro, visto que já tinha cumprido a sua terrível missão, saísse quanto antes do poder de Carlos.

Deram seis horas.

Era a hora em que o rei devia descer para o pátio, que estava cheio de cavalos ricamente ajaezados, de homens e de senhoras magnificamente vestidos. Os monteiros tinham nos punhos os falcões encapuzados; alguns picadores levavam trombetas a tiracolo para o caso em que o rei, cansado da altanaria, como às vezes lhe sucedia, quisesse correr um veado ou um cabrito-montês.

O rei desceu, tendo primeiro fechado o seu gabinete de armas.

De Alençon, que lhe seguia todos os movimentos com um olhar, viu-o meter a chave na algibeira.

Enquanto descia a escada, parou e levou a mão à testa.

- Não sei que tenho - disse Carlos -, mas acho-me fraco.

As pernas do duque de Alençon tremiam não menos do que as do rei.

- Isso é do tempo - balbuciou o duque -, creio que teremos tempestade.

- Tempestade, em Março? - disse Carlos - está doido!. Não: tenho vertigens; sinto a pele seca; estou cansado, nada mais.

Depois, a meia voz:

Hão-de acabar por matar-me com os seus ódios e as suas conspirações. Mas ao chegar ao pátio, o ar fresco da manhã, os gritos dos caçadores, as estrondosas saudações de cem pessoas reunidas, produziram em Carlos o efeito costumado.

Respirou mais livre e satisfeito.

O seu primeiro olhar fora para procurar Henrique. Este estava ao pé de Margarida. Os dois excelentes esposos pareciam que se não podiam separar, tanto se amavam.

Ao ver Carlos, Henrique chegou as esporas ao cavalo, e em três galopes achou-se ao pé do cunhado.

- Oh Henriquinho! - disse Carlos -, está montado como para correr veados. Pois não sabe que hoje só temos altanaria?

E sem esperar a resposta:

- Partamos, meus Senhores, partamos - continuou o rei com o sobrolho carregado, e com um tom quase ameaçador. - Cumpre que a caçada comece às nove horas!

Catarina via tudo isto por uma janela do Louvre. Uma cortina levantada deixava ver esse rosto lívido; mas o corpo, vestido de preto, desaparecia na penumbra.

À ordem de Carlos, toda essa multidão deslumbrante de magnificência desfilou do pátio, passando por entre a gradaria do Louvre, e seguiu pela estrada de São Germano, no meio das aclamações do povo, que saudava o jovem rei, inquieto e pensativo no seu cavalo mais branco que a neve.

- Que lhe disse ele? - perguntou Margarida a Henrique.

- Admirou a finura do meu cavalo.

- Nada mais?

- Nada mais.

- Então sabe dalguma coisa.

- Receio.

- Sejamos prudentes.

Henrique desanuviou o semblante com um desses sorrisos finos que costumava empregar, e que queria dizer, principalmente para Margarida: Sossegue, minha amiga.

Quanto a Catarina, logo que a comitiva saiu do pátio do Louvre, deixou cair a cortina. Mas não lhe escaparam a palidez de Henrique, os seus estremecimentos nervosos e as suas conferências em voz baixa com Margarida.

Henrique estava pálido porque, não tendo o ânimo sanguíneo, todo o sangue, nas diferentes circunstâncias em que a sua vida estava em risco, lhe refluía ao coração em vez de lhe subir ao cérebro.

Sofria estremecimentos nervosos porque a maneira por que Carlos o havia recebido, tão diferente do acolhimento costumado, o impressionara vivamente.

Tinha, finalmente, conferenciado com Margarida, porque, como sabemos, a mulher e o marido haviam formado uma aliança ofensiva e defensiva, sobretudo no que respeitava a política.

Mas Catarina interpretava as coisas de modo inteiramente diverso.

Desta vez - disse ela por entre dentes com o seu sorriso florentino - creio que está aviado esse querido Henriquinho.

E para se certificar se tudo se passara como desejava, depois de ter esperado um quarto de hora para dar tempo a que toda a comitiva saísse de Paris, saiu ela da sua câmara, seguiu pelo corredor, e com a sua chave abriu o aposento do rei de Navarra.

Mas foi em vão que procurou o livro por toda a casa. Foi inutilmente que, com o olhar penetrante, passou das mesas para as estantes, das estantes para as prateleiras, e destas para os armários: em parte nenhuma descobriu o que buscava.

Naturalmente de Alençon já o levou - disse ela consigo - Foi prudente.

E desceu, quase certa de que o seu projecto não tinha falhado desta vez.

Entretanto prosseguia o rei o seu caminho para São Germano, onde chegou hora e meia depois de rápida carreira; nem mesmo subiram ao velho castelo, que se erguia sombrio e majestoso no meio das casas dispersas pelas montanhas. Atravessaram a ponte de madeira situada nessa época defronte da árvore chamada ainda hoje o carvalho de Sully". Depois deu-se o sinal para que se pusessem em movimento as barcas destinadas a facilitarem a passagem do rei e das pessoas da comitiva.

No mesmo instante, toda essa mocidade alegre, animada por interesses tão diversos, pôs-se em marcha, com o rei à frente, por esse magnífico prado que pende do cume selvoso de São Germano, e que tomou subitamente o aspecto dum grande pano de Arrás, coberto de personagens matizadas de mil cores, cuja franja prateada era representada pelo rio espumante sobre as margens.

Na frente do rei, sempre no seu cavalo branco e com o seu falcão favorito no punho, iam os monteiros, com os seus casacos verdes muito justos e calçados com grandes botas, os quais, detendo com a voz uma meia dúzia de perdigueiros, batiam os canaviais que bordavam o rio.

Nesse momento, o Sol, até então coberto de nuvens, surgiu repentinamente do sombrio oceano em que se havia mergulhado. Um dos seus raios fez resplandecer todo aquele ouro, todas aquelas jóias, todos aqueles olhos ardentes, e de toda essa luz fez uma torrente de fogo.

Então, e como se apenas tivesse esperado por esse momento para que um belo sol viesse alumiar a sua derrota, levantou-se uma garça de entre os canaviais, dando um pio prolongado e lamentoso.

- Hawhaw- bradou Carlos, tirando o caparão ao seu falcão e soltando-o atrás da fugitiva.

- Haw haw! - bradaram todos para animar o pássaro.

O falcão, deslumbrado um instante pela luz, girou sobre si mesmo, descrevendo um círculo sem avançar nem recuar; descobrindo depois subitamente a garça, voou rapidamente para ela.

Entretanto, a garça, que, como pássaro prudente, se havia levantado a mais de cem passos dos monteiros, aproveitou o tempo que o rei gastara em descobrir os olhos do falcão, e o que este precisara para se habituar à luz, ganhando espaço, ou antes, altura. Daí resultou estar já ela a mais de quinhentos pés quando o seu inimigo a descobriu; e tendo achado nas regiões elevadas o ar necessário para as suas potentes asas, subia rapidamente.

- Hawhaw Bico de Ferro! - bradou Carlos, animando o seu falcão prova-nos que és de raça!

E como se tivesse percebido que a excitavam, a ave partiu como uma seta, percorrendo uma

linha diagonal que devia encontrar a vertical seguida pela garça, que continuava sempre a subir, como se quisesse desaparecer no éter.

- Ah, tu foges! - bradou Carlos, como se a fugitiva pudesse ouvi- lo, largando o seu cavalo a galope, seguindo a caça tanto quanto podia, com a cabeça deitada para trás, a fim de não perder

um instante de vista os dois pássaros - ah tu foges! Mas Bico de Ferro é de raça; espera, espera!... Haw Bico de Ferro... A luta era realmente curiosa. A distância entre os dois pássaros encontrava-se rapidamente.

O ponto era saber qual ficaria de melhor partido nesse primeiro ataque.

O falcão, ferido como se levara uma punhalada, deu três voltas sobre si, inteiramente atordoado; julgou-se por um instante que ia descer. Mas, semelhante ao guerreiro que se levanta mais terrível depois de ter provado o ferro do inimigo, deu um pio agudo e ameaçador e tornou a voar

para a garça.

Esta tirara partido da vantagem obtida e, mudando a direcção do voo, fizera um ângulo para o lado da floresta, tentando desta vez ganhar espaço e escapar pela distância em vez de escapar pela altura.

Mas o falcão era uma ave de raça nobre que tinha um voo de gerifalte. Repetiu a mesma manobra, partiu diagonalmente sobre a garça, que deu dois ou três pios em sinal de aflição e tentou subir perpendicularmente, como já antes tinha feito. No fim de dez segundos dessa du licada luta, os dois pássaros como que desapareciam nas nuvens. A garça não fazia maior vulto do que uma cotovia, e o Falcão parecia um ponto negro que cada vez se tornava mais imperceptível.

Carlos e a sua comitiva já não seguiam as duas aves senão com a vista. Todos se haviam conservado nos seus lugares, com os olhos pregados na fugitiva e no seu perseguidor.

Bravo. bravo, Bico de Ferro. bradou subitamente Carlos. - Vejam! vejam, meus Senhores:

- Por mim, confesso que os não vejo, nem um nem outro - disse Henrique.

- Nem eu também - disse Margarida.

- Mas, se os não vês, Henriquinho, podes ouvi-los - disse Carlos. Ouves? ouves? Com efeito, dois ou três pios lamentosos, que só ouvidos muito afeitos poderiam aperceber, desceram do céu à terra.

- Olha! olha! - bradou Carlos - vais vê-los descer mais depressa do que subiram.

E realmente, mal o rei pronunciara estas palavras, começaram-se a descobrir os dois pássaros.

Eram dois pontos negros unicamente; mas pela diferença de volume que havia entre eles era fácil

de ver que o falcão vinha vitorioso.

- Vejam! vejam! - bradou Carlos. - Bico de Ferro está senhor dela!

A garça, dominada, com efeito, pela ave de rapina, nem mesmo tentava defender-se. Descia

rapidamente; o falcão feria-a sem cessar e ela só respondia com pios. De repente, fechou as asas

e deixou-se cair como uma pedra; mas o seu adversário fez o mesmo e quando a fugitiva quis tornar a voar, atordoou-a com uma última bicada. Continuou a queda rolando sobre si, e no momento em que chegou ao chão, o falcão caiu-lhe em cima, dando um pio em sinal de vitória que cobriu o pio de derrota do vencido.

- Ao falcão! ao falcão! - bradou Carlos.

E lançou o cavalo a galope na direcção do lugar em que os dois pássaros haviam descido. Mas quando ninguém o esperava, parou, deu um grito, largou as rédeas, agarrou-se com uma das mãos às crinas do cavalo, e com a outra agarrou o estômago, como se quisesse rasgar as entranhas.

A esse grito acudiram todos os cortesãos.

- Não é nada, não é nada - disse Carlos, com o rosto inflamado e com os olhos espantados -, mas parecia que me atravessavam o estômago com um ferro em brasa. Vamos, vamos; não é nada.

E tornou a meter o cavalo a galope.

De Alençon empalideceu.

- Que temos ainda de novo? - perguntou Henrique a Margarida.

- Nada sei - respondeu esta - mas, não viu meu irmão? Estava escarlate.

- Não é, todavia, costumado a isso - disse Henrique.

Os cortesãos olharam espantados uns para os outros e seguiram o rei.

Chegaram todos ao lugar em que os dois pássaros tinham pousado. O falcão já estava devorando os miolos da garça.

Ao chegar, Carlos saltou do cavalo para ver o combate de mais perto.

Mas, ao tocar com os pés no chão, teve de segurar-se ao selim; a terra andava-lhe à roda. Sentiu grande vontade de vomitar.

- Meu irmão! meu irmão! - bradou Margarida - que tem!

- Tenho - disse Carlos - o que devia ter Pórcia quando engoliu as brasas: estou ardendo, parece-me que respiro fogo!

E ao mesmo tempo soltou Carlos a respiração, e pareceu admirado de não ver sair fogo de entre os lábios.

No entanto, tinham pegado e encapuzado novamente o falcão, e todos se haviam reunido em torno de Carlos.

- Então, então! que quer dizer isto? Meu Deus! não é nada; ou se é alguma cousa, é o sol que me racha a cabeça e que me cega. Vamos, vamos à caça, meus Senhores. Soltem, soltem tudo! Bravo! temos divertimento!

Tiraram-se, com efeito, os caparões, e no mesmo instante cinco ou seis falcões partiram na direcção da caça, enquanto toda a comitiva tornava a seguir para a margem do rio.

- Então que diz, minha Senhora? - perguntou Henrique a Margarida.

- Que a ocasião é boa - disse Margarida -, e que se o rei não voltar, podemos daqui mesmo alcançar a floresta com muita facilidade.

Henrique chamou o monteiro que levava a garça e, enquanto toda essa multidão dourada e ruidosa descia ao vale, ficou ele só para trás, como se examinasse o corpo do vencido.

Nesse momento, e como para lhe vir em auxílio, levantou-se um faisão.

Henrique largou-lhe o falcão; para se apartar da caçada geral, tinha o pretexto duma caçada particular.

 

           O PAVILHÃO DE FRANCISCO I

Era uma bela coisa a caçada feita pelos reis, quando os reis eram quase semideuses, e o caçar não era já um simples divertimento, mas uma arte.

Devemos, entretanto, deixar esse régio espectáculo, para penetrar num lugar da floresta em que todos os actores da cena que acabámos de contar vão em breve reunir-se.

À direita da Alameda das Violetas, comprida arcaria de folhagem, retiro opaco em que entre os tojos e alfazemas uma lebre inquieta levanta de vez em quando as orelhas, enquanto o gamo erradio levanta a cabeça coroada de aspas, abre as ventas e escuta, há uma clareira, bem distante para que da estrada a possam ver, mas não tanto que dela não se veja a estrada.

No meio dessa clareira, dois homens deitados sobre a relva, tendo por baixo do corpo um capote de viagem, e cada um, ao pé de si, uma comprida espada e um mosquete de grande boca, a que então davam o nome de peitrinal, pareciam-se de longe, pela elegância do trajo, com esses alegres conversadores dos contos do Decâmeron; de perto, pela ameaça das suas armas, com esses bandidos que, cem anos depois, Salvador Rosa copiava nas suas paisagens.

Um deles estava apoiado sobre um joelho e numa das mãos e, como uma das lebres ou um dos gamos de que ainda agora falámos, espreitava.

- Parece-me - disse ele - que a caçada se aproximou, ainda há pouco, extraordinariamente daqui. Cheguei a ouvir os gritos dos caçadores que animavam o falcão.

- E agora - disse o outro, que parecia esperar os acontecimentos com muito mais filosofia do que o seu colega - não ouço nada; afastaram-se decerto. Bem te havia eu dito que era péssimo o lugar para a observação. Não se é visto, é certo, mas também não se vê.

- Repara, meu caro Aníbal, que nos era preciso pôr a recato os nossos dois cavalos e mais as nossas duas mulas, tão carregadas que não sei como nos hão-de acompanhar. Ora eu só conheço as velhas faias e os seculares carvalhos como os únicos capazes de satisfazer convenientemente essa difícil tarefa. Atrever-me-ei, pois, a declarar que não censuro tanto como tu o Sr. de Mouy, quando até reconheço em todos os preparativos desta empresa, por ele dirigida, a profunda inteligência dum verdadeiro conspirador.

- Bom - disse o outro -, eis aí proferida a palavra; por ela esperava eu. Visto isso, estamos conspirando.

- Não conspiramos; servimos o rei e a rainha.

- Que conspiram, o que vem a dar na mesma coisa.

- Cocunás, já to disse - tornou La Mole -, não te obrigo por forma nenhuma a acompanhar-me numa aventura que me faz ter a peito um sentimento particular, que tu nem partilhas, nem podes partilhar.

- E quem é que te diz que tu me obrigas? Primeiro que tudo, não conheço homem algum capaz de obrigar Cocunás a fazer o que ele não quiser. Mas pensas que te deixarei ir sem te acompanhar, especialmente vendo que é o Diabo que te leva?.

- Aníbal! Aníbal! - disse La Mole - julgo que vejo lá ao longe a sua égua branca. Oh! é singular que assim me palpite o coração só com a lembrança de que ela vem aí!

- Pois olha, é singular - disse Cocunás abrindo a boca -, a mim o coração não me palpita nem muito nem pouco.

- Não é ela - disse La Mole. - Que aconteceria? Parece-me que tudo estava ajustado para o meio-dia.

- Aconteceu que ainda não é meio-dia, e mais nada; e que temos ainda tempo para dormir um sono.

E falando assim, Cocunás, como quem vai juntar o exemplo à palavra, estendeu-se sobre o seu capote; mas logo que o ouvido se encostou ao chão, levantou o dedo, fazendo a La Mole sinal de que se calasse.

- Que é? - perguntou este.

- Silêncio!. desta vez oiço alguma coisa, e não me engano.

- É singular! por mais que escute, não oiço nada.

- Não ouves nada?

- Nada.

- Pois - disse Cocunás, levantando-se e pondo a mão no braço de La Mole - olha para aquele gamo.

- Aonde?

- Acolá.

E Cocunás mostrou-o com o dedo.

- E então?

- Espera.

La Mole olhou para o gamo. Com a cabeça inclinada como se fosse pastar, escutava atento. Em breve ergueu a cabeça, carregada de soberbos galhos, e voltou os ouvidos para o lado donde vinha a bulha; depois, de repente, sem causa aparente, partiu rápido como um relâmpago.

- Oh! oh! - disse La Mole - julgo que tens razão, porque o gamo deitou a fugir.

- Logo, se ele deita a fugir - disse Cocunás -, é porque ouve o que tu não ouves. Com efeito, um rumor abafado e quase imperceptível corria incerto pela relva; para ouvidos menos experimentados teria sido vento; para cavaleiros, era um longínquo galopar de cavalos.

La Mole levantou-se logo.

- São eles! - disse - alerta!

Cocunás levantou-se também, porém mais tranquilamente; a vivacidade do piemontês parecia ter passado para o coração de La Mole, enquanto, pelo contrário, a inconsciência deste como que tomava conta do seu amigo. Sim, que nesta conjuntura, um era levado pelo entusiasmo, o outro arrastado contra vontade.

Em breve chegou aos ouvidos dos dois amigos um rumor igual e cadenciado. O relinchar dum cavalo fez que arrebitassem as orelhas os cavalos que estavam a dez passos deles, e pela alameda passou, como um alvo fantasma, uma mulher, que, voltando-se para eles, fez-lhes um sinal inteligível e desapareceu.

- A rainha! - exclamaram ambos.

- Que quer aquilo dizer? - perguntou Cocunás.

- Ela fez assim com o braço - disse La Mole - o que quer dizer: Daqui a pouco.

- Ela fez assim - disse Cocunás - o que quer dizer: Retirem-se.

- O sinal quer dizer: Esperem-me.

- O sinal quer dizer: Fujám.

- Pois então - disse La Mole -, proceda cada qual como entende em sua convicção: retira-te tu, que eu fico.

Cocunás levantou os ombros e tornou a deitar-se.

No mesmo instante, em sentido inverso do caminho por onde seguia a rainha, mas pela mesma estrada, passou, com a rédea solta, um bando de cavaleiros, que os dois amigos viram ser protestantes, ardentes, quase furiosos. Os seus cavalos saltavam como os gafanhotos de que fala Job: apareceram e desapareceram.

- Oh! oh! o caso vai-me parecendo sério - disse Cocunás, levantando-se. - Vamos ao Pavilhão de Francisco I.

- Pelo contrário, não devemos lá ir - disse La Mole. - Se estamos descobertos, para esse pavilhão, especialmente, dirigir-se-á a atenção do rei, pois que é o ponto marcado para a reunião de todos.

- Desta vez parece que tens muita razão - disse Cocunás.

Mal havia Cocunás proferido estas palavras, quando um cavaleiro passou como um raio por entre as árvores; e, saltando fossos, sebes e barreiras, chegou ao pé dos dois fidalgos. Tinha em cada uma das mãos uma pistola, e só com os joelhos guiava o ginete nessa frenética carreira.

- O Sr. de Mouy! - exclamou Cocunás inquieto, e agora mais apressado do que La Mole.

- O Sr. de Mouy fugindo!. Então? há perigo?

- Depressa! depressa! - gritou o huguenote - fujam, que tudo está perdido! Desviei-me do meu caminho para lhes dar esta notícia. Vamos! a galope!

E como não havia deixado de correr enquanto proferia estas palavras, já estava longe quando acabou e, por consequência, quando La Mole e Cocunás compreenderam perfeitamente o sentido delas.

- E a rainha? - disse La Mole.

Mas a voz do mancebo perdeu-se no espaço: de Mouy já estava a tal distância que não podia ouvir, e menos ainda responder-lhe.

Cocunás tinha-se decidido. Enquanto La Mole ficava imóvel, a acompanhar com os olhos de Mouy desaparecendo por entre os galhos, que se abriam para o deixar passar e depois se fechavam por detrás dele, correu aos cavalos, puxou-os, montou no seu, atirou as rédeas do outro a La Mole e preparou-se para galopar.

- Vamos, vamos! repetirei o que disse de Mouy: A galope!. E de Mouy é homem que sabe o que diz. A galope, a galope, La Mole!

- Espera - disse La Mole -, viemos aqui para alguma coisa.

- Se não foi para nos fazermos enforcar - respondeu Cocunás -, aconselho-te que não percas tempo. Adivinho: queres fazer discursos de retórica sobre a palavra fugir: - falar de Horácio, que atira fora o escudo, de Epaminondas, que volta morto no seu. Pois eu só direi uma palavra: Quando Foge o Sr. de Mouy de Saint-Phale, todos podem fugir.

- O Sr. de Mouy de Saint-Phale não ama a rainha Margarida - disse La Mole.

- E bem faz ele, se esse amor deve ser causa de loucuras como as que te vejo estar pensando. Levem quinhentos mil diabos para o fundo do Inferno um amor que pode custar a cabeça de dois bravos fidalgos. os Pelo rabo do tinhoso como diz o rei Carlos nós conspiramos, meu caro; e quem erra em conspirações, foge. A galope, La Mole!

- Foge tu, meu caro: não me oponho e até te convido a que o faças. A tua vida é mais preciosa do que a minha. Salva a tua vida.

- É melhor dizeres: Cocunás, façamos com que nos enforquem a ambos; e não: Cocunás, salva-te a ti somente.

- Qual quê, meu caro! - disse La Mole - a forca é só para a plebe, não é para fidalgos como nós.

- Começo a ver - disse Cocunás com um suspiro - que não foi má precaução que tomei.

- Qual?

- A de ter por amigo o carrasco.

- Estás sinistro, meu caro Cocunás.

- Mas, em suma: que fazemos aqui? - exclamou este com impaciência.

- Vamos ter com a rainha.

- Aonde?

- Não sei. Vamos ter com o rei.

- Aonde?

- Não sei; mas decerto. mas decerto havemos de encontrá-los, e faremos nós dois o que cinquenta homens não se atreveram a fazer.

- Despertas o meu amor-próprio, Jacinto; é mau sinal.

- Vamos; a cavalo, e partamos.

- Ora até que enfim!

La Mole voltou-se para segurar na sela; quando, porém, punha o pé no estribo, uma voz imperiosa bradou:

- Façam alto! entreguem-se!

Ao mesmo tempo, por detrás dum carvalho, apareceu um vulto, e depois outro, e outro, até trinta. Eram soldados da cavalaria, que, tendo-se apeado, haviam vindo de gatinhas por entre as sebes batendo a mata.

- Que tinha eu dito?. - exclamou Cocunás.

Um como rugido abafado foi a resposta de La Mole.

Os soldados estavam ainda a trinta passos dos dois amigos.

- Que é? - disse o piemontês, falando em voz alta para o tenente e em voz baixa para La Mole. - Que querem os senhores? - continuou.

O tenente mandou fazer pontaria sobre os dois amigos. Cocunás prosseguiu baixinho:

- Monta depressa, La Mole! cos diabos! ainda é tempo; mostra-te como tantas vezes te vi, e partamos.

E, voltando-se para os soldados:

- Ora, Senhores, não disparem as armas: arriscam-se a matar amigos.

E depois a La Mole:

- Por entre as árvores é difícil fazer pontaria; não nos hão-de acertar.

- Não pode ser! - disse La Mole - não podemos levar connosco o cavalo de Margarida e as mulas; esse cavalo e essas mulas comprometê-la-iam; enquanto que, com as minhas respostas, desviarei todas as suspeitas. Foge tu, meu amigo, foge!

- Meus Senhores - disse Cocunás, desembainhando a espada e levantando- a -, entregámo-nos. Os soldados levantaram os mosquetes.

- Mas antes digam-nos: porque é que nos prendem?

- Perguntem-no ao rei de Navarra.

- Que crime cometemos?

- O Sr. de Alençon o dirá.

Cocunás e La Mole olharam um para o outro: o nome do seu inimigo, nesse momento, não era muito para os tranquilizar.

Entretanto, nenhum dos dois opôs resistência. Cocunás, convidado a apear-se, obedeceu sem a menor observação. Depois, foram ambos colocados no meio dos soldados e dirigiram-se todos para o Pavilhão de Francisco I.

- Não querias ver o Pavilhão de Francisco I? - disse Cocunás a La Mole, descobrindo por entre as árvores as paredes do lindo edifício gótico. - Parece que o vais ver agora.

La Mole nada respondeu, e só estendeu a mão a Cocunás.

Ao lado deste lindo pavilhão, edificado no tempo de Luís XII, e chamado de Francisco I porque este sempre o escolhia para ponto de reunião nas caçadas, havia uma espécie de cabana para os monteiros, e esta como que se sumia escondida por um montão de mosquetes, de partasanas, de espadas, como um covil de toupeiras por baixo da seara amarelenta.

Para essa cabana tinham levado os presos.

Agora esclareçamos a situação tão nebulosa, especialmente para os dois amigos, contando o que havia ocorrido.

Os fidalgos protestantes tinham-se reunido, como fora ajustado, no pavilhão de Francisco I, cuja chave, como é sabido, havia de Mouy arranjado.

Senhores da floresta, ao menos segundo julgavam, tinham espalhado algumas sentinelas, as quais haviam sido sem resistência surpreendidas pela cavalaria ligeira do rei, mediante a mu dança das suas faixas brancas por faixas vermelhas, precaução devida ao zelo engenhoso do Sr. de Nancey.

Os soldados tinham continuado os seus varejos, rodeando o pavilhão; mas de Mouy, que, como dissemos, esperava o rei na extremidade da Alameda das Violetas, tinha visto essas faixas vermelhas caminhando sorrateiras, e logo se lhe tornaram suspeitas. Escondeu-se, pois, para não ser visto; e havia reparado que o vasto círculo cada vez mais se apertava de modo a envolver o lugar do encontro ajustado.

Depois, ao mesmo tempo, no fundo da alameda principal, viu despontarem os penachos brancos e brilharem os arcabuzes da guarda do rei. Enfim, reconhecera o rei Carlos, enquanto do lado oposto vira Henrique de Navarra.

Cortara então o ar em cruz com o chapéu, o que era o sinal ajustado para dizer que tudo estava perdido.

A este sinal, o rei tinha voltado para trás e desaparecera.

Sem esperar por mais nada, de Mouy cravando as largas esporas no ventre do seu ginete, deitara a fugir, e na fuga mandara a La Mole e a Cocunás as palavras de aviso de que demos conta.

Ora, o rei, que reparara no desaparecimento de Henrique e de Margarida, chegava, escoltado por de Alençon, para os ver sair ambos da cabana em que mandara guardar todos quantos se achassem, não só no pavilhão, como também na floresta.

Cheio de confiança, de Alençon galopava ao pé do rei, cujo mau humor era ainda aumentado pelas dores agudas que sofria. Duas ou três vezes estivera a ponto de desmaiar, e uma vez até lançara sangue.

- Vamos, vamos! - disse o rei ao chegar - despachemo-nos com isto; tenho pressa de voltar para o Louvre; tirem-me todos esses parpalhotes do covil: é hoje dia de S. Brás, primo de S. Bartolomeu.

A estas palavras do rei, todo esse formigueiro de chuços e arcabuzes se pôs em movimento, e obrigaram a sair da cabana um por um todos os huguenotes que tinham sido presos. Mas o rei de Navarra, Margarida e de Mouy não estavam lá.

- Então? - disse o rei - onde está Henrique, onde está Margot? O senhor prometeu entregar-mos, de Alençon, e, com o demo! quero que mos descubra.

- O rei e a rainha de Navarra? - disse o Sr. de Nancey - Nem se quer os vimos, meu Senhor.

- Mas, eles ali estão! - disse a Sr. de Nevers.

Com efeito, naquele mesmo instante, na extremidade duma alameda que dava para o rio, apareceram Henrique e Margarida, tão sossegados como se nada houvesse; ambos com o falcão em punho, e chegados amorosamente um ao outro com tanta arte, que os seus cavalos, não menos unidos do que eles, embora viessem a galope, pareciam estar-se afagando.

Foi então que de Alençon, enfurecido, mandou examinar os arredores e conseguiu que descobrissem La Mole e Cocunás no esconderijo em que se achavam.

Também eles, fraternalmente unidos, deram a sua entrada no círculo formado pelos guardas; somente, como não eram reis, não tinham podido tomar tão boa posição como Henrique e Margarida. La Mole estava muito pálido, Cocunás muito vermelho.

 

               INVESTIGAÇÕES

O espectáculo que chamou a atenção dos dois mancebos ao entrarem no círculo foi daqueles que nunca se esquecem, mesmo quando uma só vez, um só momento, tenham sido vistos.

Carlos IX tinha visto, como dissemos, desfilar todos os fidalgos encerrados na cabana, e que os guardas foram tirando para fora cada um por sua vez.

Ele e de Alençon acompanhavam com ávido olhar cada movimento, esperando ver também sair o rei de Navarra.

Fora porém frustrada a sua expectativa.

Isso, porém, era pouco; cumpria saber o que havia sido feito dele.

Por isso, quando na extremidade da alameda viram aparecer Henrique e Margarida, de Alençon empalideceu e Carlos sentiu dilatar-se-lhe o coração, pois instintivamente desejava que tudo quanto o irmão o obrigara a fazer recaísse sobre ele.

Pois ainda escapará!

disse a meia voz de Alençon, empalidecendo.

Neste momento, sentiu o rei tão fortes dores nas entranhas, que largou as rédeas e, apertando o ventre com ambas as mãos, deu gritos iguais aos do homem que delira.

Henrique chegou-se pressuroso; mas enquanto percorrera os duzentos passos que o separavam do rei, já Carlos se havia restabelecido.

- Donde vem o senhor? - perguntou-lhe o rei com voz tão áspera que Margarida estre meceu.

- Donde?. da caçada, meu irmão - disse ele.

- Mas a caçada era à beira do rio, e não pela mata dentro.

- O meu falcão tomou voo sobre um faisão, Senhor, no momento em que ficávamos para trás a ver a garça.

- E aonde está o faisão?

- Está aqui; é um belo macho, não acha?

E Henrique, com a maior ingenuidade, apresentou a Carlos o pássaro de púrpura, azul e ouro.

- Hum, hum. E logo que caçou o faisão, porque não veio ter connosco?

- Porque ele tomara o voo para a coutada, de modo que, quando descemos à beira do rio vimos Vossa Majestade a meia légua de distância, tomando já para a floresta; pusemo-nos então a galopar para onde estava Vossa Majestade, porque, fazendo parte da caçada, não a queríamos perder.

- E todos esses fidalgos - tornou Carlos - haviam também sido convidados para ela?

- Que fidalgos - perguntou Henrique, lançando em redor de si um olhar interrogador.

- Ora! Os huguenotes!

- Se alguém os convidou não fui eu.

- Talvez fosse o Sr. de Alençon. - tornou Henrique.

- O Sr. de Alençon? E como assim!

- Eu? - exclamou o duque.

- Sim, meu irmão - tornou Henrique -, não anunciou ontem que estava rei de Navarra? Pois os huguenotes, que o pediram para rei, vieram naturalmente agradecer-lhe o haver aceitado a coroa, e ao rei o haver-lha dado. Há-de sem dúvida ser isso.

- Sim! sim! - bradaram vinte vozes. - Viva o duque de Alençon! Viva o rei Carlos IX!

- Não sou rei dos huguenotes - disse Francisco, empalidecendo de cólera. E depois, lançando a furto os olhos para Carlos:

- E espero - acrescentou - que nunca o hei-de ser.

- Não obstante, dir-lhe-ei, Henrique - tornou Carlos -, que me parece tudo isto singularíssimo.

- Senhor - disse o rei de Navarra com firmeza -, dir-se-ia (perdoe-me Deus) que estou passando por um interrogatório.

- E se lhe dissesse que é realmente um interrogatório, que responderia?

- Que sou rei como Vossa Majestade, Senhor - disse com altivez Henrique -, pois é o nascimento e não a coroa que constitui a realeza; que responderia ao meu irmão e ao meu amigo, mas nunca ao meu juiz.

- Bem quisera, entretanto, saber uma vez na minha vida em que devo ficar - disse Carlos a meia voz.

- Tragam o Sr. de Mouy - disse de Alençon -, e ficá-lo-á sabendo Vossa Majestade.

- Está entre os presos o Sr. de Mouy? - perguntou o rei.

Henrique teve um momento de inquietação e trocou um olhar com Margarida; mas esse momento durou pouco.

- Nenhuma voz respondeu.

- O Sr de Mouy não está entre os presos - disse o Sr. de Nancey -, alguns soldados julgam tê-lo visto, mas não têm a certeza.

De Alençon proferiu a meia voz uma blasfémia.

- Ah, Senhor! - disse Margarida, mostrando La Mole e Cocunás, que tinham assistido a esse diálogo, e com cuja penetração julgava poder contar - aqui estão dois fidalgos do Sr. de Alençon; interrogue-os Vossa Majestade, eles hão-de responder.

O duque sentiu o golpe.

- Mandei-os positivamente prender para provar que não são meus - disse o duque. O rei olhou para os dois amigos e estremeceu ao ver La Mole.

- Oh! oh! ainda esse provençal! Cocunás inclinou-se com graça.

- Que faziam quando foram presos?

- Conversávamos, Senhor, sobre proezas de guerra e de amor.

- A cavalo, armados, prestes a fugir?

- Não, meu Senhor, Vossa Majestade está mal informado: estávamos deitados à sombra duma faia.

- Ah! estavam deitados à sombra duma faia.

- E até poderíamos ter fugido, se houvéssemos receado ter de algum modo incorrido no desagrado de Vossa Majestade. Digam, meus Senhores, pela vossa palavra de soldados - disse Cocunás, voltando-se para os que o haviam prendido -, não acham que, se tivéssemos querido, poderíamos ter fugido?

- É certo que esses senhores - disse o tenente - não fizeram o menor movimento para fugir.

- Por terem longe os cavalos - disse de Alençon.

- Peço humildemente perdão a Vossa Alteza: eu estava montado no meu, e o meu amigo La Mole tinha na mão as rédeas do seu.

- É assim, Senhores? - perguntou o rei.

- Sim, meu Senhor - respondeu o tenente. - Foi ao ver-nos que o Sr. de Cocunás se apeou.

- Mas esses dois cavalos de muda, essas duas mulas carregadas? - perguntou Francisco.

- E que temos nós com elas? - disse Cocunás. - Toma-nos Vossa Majestade por alguns criados de estrebaria? Mande procurar o criado que tomava conta disso.

- Não se encontrou mais ninguém - disse o duque furioso.

- Então, é que talvez se assustasse e fugisse; não se pode exigir dessa gente a presença de espírito dum fidalgo.

- Sempre o mesmo sistema - disse Alençon, rangendo os dentes -, felizmente já disse a Vossa Majestade que há alguns dias que estes fidalgos não estavam ao meu serviço.

- Como! - disse Cocunás - pois tenho a desgraça de não pertencer mais à casa de Vossa Alteza?

- Por certo; e melhor do que ninguém o sabe o senhor, pois deu-me a sua demissão numa carta assaz impertinente, que conservo, graças a Deus e que por fortuna minha aqui trago.

- Ah! - disse Cocunás - esperava que Vossa Alteza me houvesse perdoado uma carta escrita no primeiro impulso de mau humor, quando soube que Vossa Alteza havia querido, num corredor do Louvre, enforcar o meu amigo La Mole.

- Que é que ele está a dizer? - atalhou o rei.

- Julguei a princípio que Vossa Alteza estava só - continuou ingenuamente Cocunás - soube, porém, depois, que mais três pessoas.

- Silêncio! - disse o rei - estamos suficientemente informados. Henrique - disse ele ao rei de Navarra -, dá-me a sua palavra que não foge?

- Dou-a a Vossa Majestade.

- Então volte para Paris com o Sr. de Nancey, e recolha-se preso aos seus aposentos. Os senhores - prosseguiu, dirigindo-se aos dois fidalgos - entreguem as vossas espadas.

La Mole olhou para Margarida; esta sorriu. Imediatamente o mancebo entregou a espada ao capitão que lhe ficava mais próximo.

Cocunás fez outro tanto.

- E o Sr. de Mouy, acharam-no? - perguntou o rei.

- Não, meu Senhor - disse o Sr. de Nancey -, ou não estava na floresta, ou fugiu.

- Tanto pior - disse o rei. - Voltemos. Estou com frio e tenho vertigens.

- Senhor, há-de ser por se ter encolerizado - disse Francisco.

-Talvez seja; a vista ofusca-se-me. Onde estão os presos?. Já não vejo. Pois já é noite? Ah! misericórdia! estou ardendo! Acudam-me!. acudam-me!

E o mísero rei, largando as rédeas do cavalo e estendendo os braços, caiu para trás, sustentado pelos cortesãos espavoridos com esse novo ataque.

Francisco, desviado dos mais, enxugava o suor da testa, pois era o único que sabia qual a causa do mal que torturava o irmão.

Por outro lado, o rei de Navarra, já entregue à guarda do Sr. de Nancey, considerava toda aquela cena com a maior curiosidade.

Ah! ah! - disse consigo, com a poderosa intuição que às vezes o tornava por assim dizer iluminado - quem sabe se me não vai resultar alguma felicidade de não ter podido fugir.

E olhou para Margarida, cujos olhos, dilatados pela surpresa, iam sucessivamente dele para o rei e do rei para ele.

Desta vez estava o rei sem sentidos. Mandaram buscar uma maca, em que o deitaram. Cobriram-no com um capote que um dos cavaleiros tirou dos ombros, e o cortejo tomou tranquilamente o caminho de Paris, donde, pela manhã, se tinha visto sair um rei alegre e conspiradores diligentes, e em que se via agora entrar um rei moribundo e rebeldes presos.

Margarida, que em tudo isso não perdera a sua liberdade de corpo nem a sua liberdade de espírito, fez um pequeno sinal de inteligência ao marido, e depois passou tão perto de La Mole que este pôde colher estas duas palavras gregas que ela proferiu:

- Mê déidé.

O que queria dizer: - Não receies nada.

- Que te disse ela? - perguntou Cocunás.

- Disse-me que nada receasse - respondeu La Mole.

- Tanto pior - murmurou o piemontês -, tanto pior; isso quer dizer que a coisa não vai bem para nós. Todas as vezes que alguém me tem dirigido essas palavras em tom de animação, recebi logo ou um tiro em qualquer parte, ou uma estocada no corpo, ou um vaso de flores na cabeça. Nada receies, quer seja em hebreu, quer em grego, quer em latim ou em francês, sempre tem significado para mim: toma cuidado!

- A caminho, meus Senhores! - disse o tenente.

- Sem ser indiscreto, Senhor - tornou Cocunás -, poderei saber para onde nos levam?

- Julgo que para Vincenas - disse o tenente.

- Preferiria qualquer outro destino, mas, enfim! nem sempre a gente vai para onde quer. No caminho, o rei tinha voltado a si do desmaio e recuperado alguma força. Em Nanterre até quis montar a cavalo, porém não lhe consentiram.

- Mandem chamar mestre Ambrósio Paré - disse Carlos ao chegar ao Louvre. Apeou-se da liteira, subiu a escada descansado no braço de Tavannes e recolheu-se à sua câmara, onde não quis que ninguém entrasse.

Notaram todos que ele estava muito sério; pelo caminho havia profundamente reflectido, não falando com pessoa alguma, não se ocupando nem da conspiração nem dos conspiradores. Era evidente que não o preocupava senão a doença, doença tão repentina, tão singular e tão aguda, e cujos sintomas eram em parte os mesmos que se observaram em seu irmão Francisco II algum tempo antes de morrer.

Assim, a proibição a quem quer que fosse, menos a mestre Paré, de entrar no quarto do rei, não causou espanto a ninguém. A misantropia era a base do carácter deste príncipe.

Carlos entrou na câmara de dormir, sentou-se numa espécie de canapé, encostou a cabeça nas almofadas, e, reflectindo que mestre Paré talvez não estivesse em casa e tardasse a chegar, quis aproveitar o tempo da espera.

Por consequência bateu as palmas; apareceu um guarda.

- Vão dizer ao rei de Navarra que lhe quero falar - disse Carlos.

O guarda inclinou-se e obedeceu.

Carlos voltou-se para trás; um peso horrível de cabeça mal lhe deixava a faculdade de ligar as ideias umas às outras; uma espécie de nuvem sanguinolenta flutuava-lhe diante dos olhos; a boca estava árida e já tinha, sem matar a sede, bebido uma garrafa de água.

No meio desta sonolência, abriu-se a porta e apareceu Henrique. O Sr. de Nancey tinha-o acompanhado; ficara porém na antecâmara.

O rei de Navarra esperou que se fechasse a porta. Depois aproximou-se do rei.

- Meu Senhor - disse ele -, Vossa Majestade mandou-me chamar: aqui estou. O rei estremeceu ao ouvir aquela voz, e fez o movimento maquinal de estender a mão.

- Senhor - disse Henrique deixando cair os dois braços -, Vossa Majestade esquece-se de que já não sou seu irmão, mas seu prisioneiro.

- Ah! é verdade - disse Carlos -, obrigado por mo haver recordado; e até agora me lembro que me prometeu, quando estivéssemos sós, de me responder com franqueza.

- Estou pronto para cumprir a promessa; queira pois interrogar-me, Senhor. O rei deitou água fria na mão e levou-a à testa.

- Que verdade há na acusação do duque de Alençon? Vamos, responda, Henrique.

- Metade somente, Senhor: era o Sr. de Alençon quem devia fugir, e eu acompanhá- lo.

- E porque o acompanhava? - perguntou Carlos. - Pois está descontente comigo, Henrique?

- Não senhor; pelo contrário, só tenho que me louvar de Vossa Majestade; e Deus, que lê nos corações, vê no meu quão profunda afeição tenho para com o meu irmão e meu rei.

- Parece-me - disse Carlos - que não é natural fugir de quem se ama e de quem nos ama.

- Eu também não fugia dos que me amam, porém dos que me detestam. Consente Vossa Majestade que lhe fale com o coração nas mãos?

- Fale, Henrique.

- Os que aqui me detestam são o Sr. de Alençon e a rainha-mãe.

- O Sr. de Alençon, não o nego; mas a rainha-mãe presta-lhe todas as atenções.

- É justamente por isso que desconfio dela, meu Senhor; e bem fiz em desconfiar.

- Dela?

- Sim, dela e dos que a cercam. Bem sabe Vossa Majestade que a desgraça dos reis não é tanto serem muito mal, mas muito bem servidos.

- Explique-se, pois prometeu dizer-me tudo.

- E Vossa Majestade bem vê que estou cumprindo o que prometi.

- Continue.

- Vossa Majestade ama-me, já me disse; não é assim?

- Isto é, amava-o antes da sua traição, Henriquinho.

- Suponha que ainda me ama, meu Senhor.

- Pois sim.

- Amando-me, deve desejar que eu viva.

- Ficaria no auge da desesperação se te acontecesse alguma desgraça.

- Pois, Senhor, duas vezes esteve Vossa Majestade em risco de chegar a esse auge de desesperação.

- Como assim?

- Duas vezes só à Providência devo o ter ficado com vida. É verdade que da segunda vez a Providência tomou as feições de Vossa Majestade.

- E da primeira, que feições tomou?

- As dum homem que bem admirado ficaria de se ver confundido com ela: de Renato. Vossa Majestade salvou-me do ferro.

Carlos carregou o sobrolho, pois lembrou-se de noite em que levara Henrique à Rua das Barras.

- E Renato? - perguntou o rei.

- Renato salvou-me do veneno.

- Apre! és feliz, Henriquinho - disse o rei com um sorriso, que uma dor aguda veio transformar em contracção nervosa. - Não é esse o seu ofício.

- Dois milagres, pois, me salvaram, meu Senhor: um milagre de arrependimento da parte do florentino, um milagre de bondade da parte de Vossa Majestade. Pois bem: confesso que tenho medo que se canse o Céu de fazer milagres, e quis fugir, por motivo deste axioma: - Ajuda-te, que Deus te ajudará.

- E porque não me disseste isso tudo há mais tempo?

- Se eu dissesse estas minhas palavras ontem, seria um denunciante.

- E dizendo-mas hoje?

- Hoje, é outra coisa: sou acusado e defendo-me.

- Estás certo dessa primeira tentativa, Henrique?

- Tão certo como da segunda.

- Quiseram envenenar-te?

- Quiseram.

- Com quê?

- Com um opiato.

- E como é que se envenena com opiatos?

- Ora, meu Senhor, pergunte-o Vossa Majestade a Renato; até envenenam com luvas. Carlos franziu a testa; pouco a pouco, porém, desanuviou-se-lhe o rosto.

- Sim, sim - disse como se falasse consigo mesmo -, é da nature-za de todo o ente criado fugir da morte. Porque não fará pois a inteligência o que faz o instinto?

- E agora, Senhor, está Vossa Majestade satisfeito com a minha franqueza e acha que lhe disse tudo?

- Estou, Henriquinho, estou; és um bom rapaz. E então julgas que os que te queriam mal ainda se não cansaram, e que ainda fazem novas tentativas?

- Meu Senhor, todas as noites me admiro de ainda estar vivo!

- É porque sabem que te amo, ouves, Henriquinho? que te querem matar. Sossega, porém, que hão-de ser punidos os que te querem mal. Entretanto, estás livre.

- Livre para sair de Paris, meu Senhor? - perguntou Henrique.

- Não; bem sabes que não posso dispensar-te. Oh! com todos os milhões de diabos! preciso de ter ao pé de mim alguém que me ame.

- Então, Senhor, se Vossa Majestade me quer junto de si, queira conceder-me uma graça.

- Qual?

- A de não me conservar a título de amigo, mas de preso.

- Como assim! preso?

- Oh! pois não vê Vossa Majestade que é a sua amizade que me perde?

- Pois queres antes o meu ódio?

- Um ódio aparente, Senhor. Esse ódio salvar-me-á; enquanto me julgarem mal-aceite de Vossa Majestade, menos pressa terão de me ver morto.

- Henriquinho - disse Carlos -, não sei o que desejas, não sei qual é o teu fim; mas se os teus desejos não se cumprirem, se não alcançares o teu fim, muito me hei-de admirar.

- Posso então contar com a severidade do rei?

- Podes.

- Então estou mais sossegado. Agora, que ordena Vossa Majestade?

- Volta para a tua câmara, Henriquinho: eu estou sofrendo bastante; vou ver a matilha e meter-me na cama.

- Senhor, Vossa Majestade devia ter mandado chamar o médico: esse incómodo pode ser mais grave do que pensa.

- Já mandei chamar mestre Ambrósio Paré.

- Então retiro-me mais sossegado.

- Por minha alma! - disse o rei - julgo que de toda a minha família és o único que realmente me ama.

- É essa a opinião de Vossa Majestade?

- À fé de fidalgo.

- Pois então, recomende-me ao Sr. de Nancey como um homem a quem a sua cólera não deixa um mês de vida: é o meio de eu o poder amar mais tempo.

- Senhor de Nancey! - bradou Carlos.

O capitão das guardas entrou.

- Entrego às suas mãos o maior criminoso do reino - disse o rei -, a sua cabeça responde-me por ele.

E Henrique, com ar consternado, saiu atrás do Sr. de Nancey.

 

                   ACTÉON

Carlos, tendo ficado só, admirava-se de não ter visto chegar nenhum dos seus fiéis: esses dois fiéis eram a ama Madalena e o cão Actéon.

A ama foi naturalmente cantar os seus salmos com algum huguenote conhecido - disse consigo o rei - e Actéon está ainda amuado por causa da chicotada que lhe dei esta manhã.

Então Carlos pegou numa vela e entrou no quarto da ama.

A boa velha não estava lá. Como o leitor se há-de lembrar, uma porta do quarto de Madalena dava para a sala de armas. O rei aproximou-se desta porta.

Mas, no trajecto, invadiu-o outra vez uma dessas crises que já o haviam acometido. O rei sofria como se lhe revolvessem as entranhas com um ferro em brasa. Devorava-o uma sede inextinguível. Viu em cima da mesa um vaso de leite; bebeu-o dum trago e achou-se um pouco aliviado.

Depois, pegou outra vez na vela, que pusera em cima duma mesa, e entrou no gabinete. Com grande espanto seu, Actéon não veio ao seu encontro. Tê-lo-iam fechado? Nesse caso, sentiria que o seu dono tinha voltado da caça e latiria para o chamar.

Carlos assobiou, chamou-o; mas ele não apareceu.

Deu quatro passos para diante e, como a luz da vela alumiava um dos cantos do gabinete, viu nesse canto uma massa inerte deitada no chão.

- Oh! Actéon! Actéon! - disse o rei.

E de novo assobiou; mas o cão não se moveu.

Carlos correu para ele e apalpou-o; o mísero estava frio e inteiriçado. Da boca, contraída pela dor, tinham-lhe corrido algumas gotas de fel misturadas com uma baba espumosa e sanguinolenta. O cão tinha achado no gabinete um barrete do seu dono, e havia querido morrer com a cabeça apoiada nesse objecto que lhe representava um amigo.

Este espectáculo fez-lhe esquecer as suas próprias dores e restituiu-lhe toda a energia; a cólera ferveu-lhe nas veias; quis gritar; porém, presos como estão nas suas grandezas, os reis têm a liberdade desse primeiro impulso que os mais homens aproveitam para a sua paixão ou para a sua defesa. Carlos reflectiu que talvez houvesse alguma traição e calou-se.

Então ajoelhou-se diante do cão e examinou-lhe o cadáver com olhar de homem experimentado: viu-lhe a língua coberta de pústulas e vermelha, os olhos vidrados. Era uma doença singular e que fez com que o rei estremecesse.

Tornou a calçar as luvas, que tinha tirado e enfiado na cinta, levantou os beiços lívidos do cão para lhe examinar os dentes e viu nos interstícios alguns fragmentos esbranquiçados.

Tirou esses fragmentos e viu que era papel.

Ao pé desse papel a inflamação era mais violenta; as gengivas estavam ingurgitadas, e a pele como queimada por vitríolo.

Carlos olhou atento em torno de si. No chão havia duas ou três parcelas de papel semelhante ao que reconhecera na boca do cão: uma dessas parcelas, maior do que as outras, mostrava ser uma estampa.

Os cabelos de Carlos eriçaram-se-lhe, pois essa estampa representava um fidalgo caçando, e Actéon havia-a arrancado do seu livro de caça.

Ah! - disse empalidecendo - o livro estava envenenado.

Depois, reunindo todas as suas recordações:

- Com mil demónios! - exclamou - toquei com o dedo em cada página, e de todas as vezes levei-o à boca para o molhar. Estes desmaios, estas dores, estes vómitos!. Estou morto!

Carlos ficou algum tempo vergado ao peso dessa pavorosa ideia. Depois, erguendo-se com um bramido abafado, dirigiu-se para a porta do gabinete.

- Mestre Renato! - bradou - mestre Renato!. Corram à Ponte de S. Miguel e tragam-me o florentino; quero que nestes dez minutos esteja aqui! Monte um dos meus guardas a cavalo, e leve outra à mão, para mais depressa estar de volta. Quanto a Ambrósio Paré, se chegar, que

espere.

Um guarda partiu a galope em cumprimento da ordem recebida.

Ah! - murmurou Carlos - quando mesmo me fosse preciso pôr todos a tormento, hei-de saber quem deu esse livro a Henriquinho!

E, com o suor na testa, com as mãos trémulas e o peito arfando, Carlos ficou com os olhos fixos no cadáver do cão.

Daí a dez minutos, o florentino bateu timidamente, e não sem inquietação, à porta do rei. Há certas consciências para quem nunca está puro o céu.

- Entre! - disse Carlos.

O perfumista entrou. Carlos dirigiu-se para ele com ar imperioso e os lábios trémulos.

- Vossa Majestade mandou-me chamar? - disse Renato todo a tremer.

- Mandei. Você é um hábil químico, não é?

- Senhor.

- E sabe o que sabem os médicos mais doutos?

- Vossa Majestade exagera.

- Não, minha mãe tem-mo dito. Além de que, confio no seu saber, e antes quis consultá-lo que a qualquer outro. Olhe - continuou, descobrindo o cadáver do cão -, examine o que ele tem entre os dentes e diga-me de que morreu.

Enquanto, com a vela na mão, Renato se abaixava até ao chão, tanto para dissimular o seu abalo como para obedecer ao rei, Carlos, em pé, com os olhos fitos nesse homem, esperava com impaciência, fácil de compreender, a palavra que devia ser a sentença da sua morte ou o penhor da sua salvação.

Renato tirou da algibeira uma espécie de escalpelo, abriu-o, e com a ponta extraiu da boca do cão as parcelas de papel aderentes às gengivas, pondo-se a examinar durante algum tempo, muito atento, o sangue e o fel que destilavam de cada ferida.

- Senhor - disse a tremer -, são tristes sintomas.

Carlos sentiu um calafrio correr-lhe pelas veias e penetrar-lhe no coração.

- Sim - disse -, este cão foi envenenado, não é assim?

- Assim o receio, meu Senhor.

- E com que veneno?

- Suponho que com algum veneno mineral. - Pode ter a certeza de que foi envenenado?

- Sem dúvida: abrindo-o e examinando-lhe o estômago.

- Pois abra; não quero ficar com a menor dúvida.

- É preciso chamar alguém que me ajude.

- Ajudá-lo-ei eu - disse Carlos.

- Vossa Majestade?

- Eu, sim. E se estiver envenenado, que sintomas acharemos?

- Manchas rubras e herborizações no estômago.

- Pois comecemos.

Renato, com o escalpelo, abriu dum golpe o peito do cão, afastou com força os lados, en quanto Carlos, com um joelho no chão, alumiava com a mão convulsa e trémula.

- Veja, Senhor - disse Renato -, veja: aqui estão sinais evidentes. Estas manchas rubras são as que lhe anunciei, e quanto a estas veias sanguinolentas, que me parecem raízes duma planta, é o que eu designava pelo nome de herborizações. Acho tudo quanto procurava.

- Visto isso, o cão foi envenenado?

- Sim senhor.

- Com veneno mineral?

- Mui provavelmente.

- E que sentiria o homem que, por casualidade, tivesse bebido do mesmo veneno?

- Grande dor de cabeça, ardores internos, como se houvesse comido brasas, dores de entranhas e vómitos.

- E teria sede? - perguntou o rei.

- Sede inextinguível.

É isso, é isso mesmo disse consigo o rei.

- Senhor, debalde procuro qual o motivo dessas perguntas.

- Nem lhe é preciso sabê-lo; responda somente.

- Interrogue-me Vossa Majestade.

- Que contraveneno deve ser administrado a quem houver bebido a mesma substância que o meu cão?

Renato reflectiu um momento.

- Há muitos venenos minerais - disse. - Quisera, antes de responder, saber de qual deles se trata. Vossa Majestade tem alguma ideia do modo por que foi o cão envenenado?

- Sim - disse Carlos -, rasgou com os dentes uma folha dum livro.

- Uma folha dum livro?

- Sim.

- E Vossa Majestade tem esse livro?

- Está aqui - disse Carlos, tirando o livro de caça da estante em que o colocara e mostrando-o a Renato.

Renato fez um movimento de surpresa, que não escapou ao rei.

- Comeu uma folha deste livro?. - balbuciou Renato.

- Esta - disse o rei, mostrando a folha rota.

- Consinta Vossa Majestade que eu rasgue outra.

- Rasgue.

Renato rasgou uma folha, chegou-a à vela; o papel inflamou-se, e um forte cheiro a alho espalhou-se no gabinete.

- Foi envenenado com um misto de arsénio.

- Está certo disso?

- Como se eu próprio o houvesse preparado.

- E o contraveneno?

Renato sacudiu a cabeça.

- Como! - disse Carlos, com voz rouca - não lhe conhece remédio?

- O melhor e o mais eficaz são claras de ovo batidas em leite; mas.

- Mas o quê?

- Seria preciso que fosse administrado logo; caso contrário.

- Caso contrário.

- Senhor, é um veneno terrível!

- Mas não mata imediatamente - disse o rei.

- Não; porém mata infalivelmente; às vezes até há cálculo no tempo que leva a matar.

Carlos encostou-se à mesa de mármore.

- Bem - disse, pondo a mão no ombro de Renato -, conheces esse livro?

- Eu, Senhor? - disse Renato empalidecendo.

- Sim, tu; ao vê-lo, atraiçoaste-te.

- Senhor, juro.

- Renato - disse Carlos -, ouve bem isto: tu envenenaste a rainha de Navarra com luvas; envenenaste o príncipe de Porciano com o fumo dum candeeiro; tentaste envenenar o Sr. de Condé com uma maçã de cheiro. Far-te-ei arrancar a carne, lanho por lanho, com uma tenaz em brasa, se não me disseres de quem é este livro.

O florentino viu que não podia brincar com a cólera de Carlos IX, e resolveu recorrer à audácia.

- Se eu disser a verdade, quem me afiança que não serei mais cruelmente castigado do que se me calar?

- Eu.

- Dá-me Vossa Majestade a sua régia palavra?

- À fé de gentil-homem, terás salva a vida.

- O livro pertence-me, Senhor.

- É teu! - disse Carlos, recuando e olhando alucinado para o envenenador.

- Sim, é meu.

- E como saiu das tuas mãos?

- Sua Majestade a Rainha-mãe tirou-mo de casa.

- A rainha-mãe? - exclamou Carlos.

- Sim, meu Senhor.

- Mas com que intenção?

- Julgo que pretendia mandá-lo ao rei de Navarra, que pedira ao Sr. de Alençon algum livro em que aprendesse a arte da montaria.

- Oh! - exclamou Carlos - é isso mesmo. Agora percebo tudo. Com efeito, o livro estava na câmara de Henrique. Há uma fatalidade, e sou eu a vítima dela.

Nesse momento Carlos teve uma tosse violenta e seca, a que sucederam novas dores de entranhas; deu dois ou três gritos sufocados e caiu sobre uma cadeira.

- Que tem, meu Senhor? - disse Renato com voz espavorida.

- Nada - disse Carlos -, só tenho sede; dá-me de beber.

Renato encheu um copo de água e apresentou-o com mão trémula a Carlos, que o esgotou dum trago.

- Agora - disse Carlos, tomando uma pena e molhando-a na tinta -, escreve neste livro.

- O quê, Senhor?

- O que te vou ditar:

Este manual de montaria foi por mim dado à rainha-mãe, Catarina de Médicis. Renato tomou a pena e escreveu.

- E agora assina.

O florentino assinou.

- Vossa Majestade prometeu salvar-me a vida.

- Pela minha parte, cumprirei a palavra.

- Mas - disse Renato -, por parte da rainha-mãe?

- Oh! por aí nada tenho que ver: se te atacarem, defende-te.

- Senhor, poderei sair de França quando julgar ameaçada a minha vida?

- A isso responder-te-ei daqui a quinze dias. Entretanto.

Carlos, carregando a sobrancelha, encostou o dedo aos lábios lívidos.

- Oh! pode ficar descansado, meu Senhor.

E, dando-se por feliz por se ver livre por tão pouco preço, o florentino inclinou-se e saiu. Por detrás dele apareceu a ama à porta do quarto.

- Que tens, meu Carlinhos?

- É que andei em lugar molhado e fez-me mal.

- Com efeito, estás muito amarelo, meu Carlinhos.

- É porque estou muito fraco. Dá-me o braço, ama, quero ir para a cama. A ama chegou-se com vivacidade. Carlos encostou- se a ela e entrou na câmara.

- Agora - disse o rei -, deitar-me-ei sozinho.

- E se vier mestre Ambrósio Paré?

- Dir-lhe-ás que estou melhor e que não preciso dele.

- Entretanto, que queres tomar?

- Um remédio muito simples - disse Carlos -, claras de ovo batidas em leite. A propósito, ama - prosseguiu -, o pobre Actéon morreu; amanhã de manhâ manda-o enterrar num canto do jardim do Louvre. Era um dos meus melhores amigos; mandar-lhe-ei fazer um túmulo, se tiver tempo.

 

               VINCENAS

Como fora determinado por Carlos IX, Henrique foi nessa mesma noite levado para o bosque de Vincenas. Era assim que então se chamava o famoso castelo, do qual só resta um pedaço colossal, fragmento que basta para dar uma ideia da sua grandeza passada.

A viagem fez-se em liteira; iam quatro guardas de cada lado; o Sr. de Nancey, portador da ordem que devia abrir a Henrique as portas da prisão protectora, caminhava adiante.

À entrada do torreão pararam. O Sr. de Nancey apeou-se, abriu a liteira, fechada a cadeado, e convidou respeitoso o rei a que descesse.

Henrique obedeceu sem fazer a menor observação. Qualquer residência lhe era mais segura do que o Louvre, e dez portas que, para prendê-lo, se fechassem, fechavam-se entre ele e Catarina de Médicis.

O real prisioneiro atravessou a ponte levadiça entre dois soldados; passou as três portas inferiores do torreão e as três portas inferiores da escada; depois, sempre precedido pelo Sr. de Nancey, subiu um andar. Chegados aí, o capitão das guardas, vendo que ele se dispunha a subir outra escada, disse-lhe:

- Senhor, queira Vossa Majestade parar aí.

- Ah. Ah, disse Henrique parando - parece que me fazem as honras do primeiro andar.

- Senhor - respondeu o Sr. de Nancey -, tratam-no como cabeça coroada. Cos diabos! - disse Henrique consigo - mais dois ou três andares não me teriam por forma alguma humilhado. Ficarei aqui muito bem, ninguém suspeitará de nada.

- Quer Vossa Majestade acompanhar-me? - disse Nancey

- Com a breca! - disse o rei de Navarra - o senhor bem sabe que aqui não se trata do que quero nem do que não quero, porém do que manda meu irmão Carlos. Manda ele que o acompanhe?

- Sim senhor.

- Nesse caso, acompanho-o.

Meteram-se por uma espécie de corredor, em cuja extremidade havia uma sala bastante vasta, de paredes escuras e de aspecto perfeitamente lúgubre.

Henrique lançou em torno de si um olhar não isento de inquietação.

- Onde estamos?

- Atravessamos a sala dos tormentos, meu Senhor.

- Ah! - exclamou o rei.

E olhou atento. Havia toda a casta de instrumentos nesta sala: cavaletes e potes para o tormento da água, cunhas e malhos para o dos borzeguins; além disso, assentos de pedra, para os míseros que esperavam pelo suplício, corriam em redor da sala; e por cima desses assentos, aos pés desses assentos, e até nos próprios assentos, havia argolas de ferro seguras à parede com a simetria imposta pela arte torcionária. Mas a sua proximidade dos assentos bem indicava que aí estavam para esperar os membros dos que se sentassem.

Henrique continuou o seu caminho sem dar uma palavra, mas sem perder nenhum dos por menores desse hediondo aparato, que, por assim dizer, escrevia nas paredes a história da dor.

A atenção com que olhou em torno de si fez que Henrique não olhasse para o chão, e tro peçou.

- Ah! - disse - que é isto?

E apontou para uma espécie de sulco escavado na pedra húmida que ladrilhava o chão.

- É a goteira, meu Senhor.

- Pois aqui chove?

- Sim, chove sangue.

- Ah! - disse Henrique - muito bem. Ainda nos falta muito para chegar ao meu quarto?

- Não senhor; já chegámos - disse uma sombra que se desenhava no escuro, e que mais visível e palpável se tornava à medida que dela se aproximavam.

Henrique, que julgava ter reconhecido a voz, deu alguns passos e reconheceu o vulto.

- Ah é você, Beaulieu - disse ele -, e que diabo está aqui fazendo?

- Senhor, acabo de receber a minha nomeação de governador da Fortaleza de Vincenas.

- Ah, meu caro amigo, a sua estreia faz-lhe honra; por primeiro preso um rei! Não começa mal.

- Perdoe, meu Senhor - tornou Beaulieu -, mas antes de Vossa Majestade já recebi dois fidalgos.

- Quais?. Oh! desculpe, talvez seja indiscrição.

- Não me recomendaram segredo: são os Srs. de La Mole e de Cocunás.

- Oh! sim, vi-os prender. Pobres mancebos!. E como suportam essa desgraça?

- De modo em tudo oposto: um alegre, o outro triste; um canta, o outro geme.

- Qual é o que geme?

- O Sr. de La Mole.

- Por minha alma! entendo melhor o que geme do que o que canta. Pelo que vejo, a prisão não é coisa muito alegre. E em que andar ficaram?

- Por cima de todos, no quarto andar.

Henrique deu um suspiro; nesse quarto andar queria ele estar.

- Vamos, Sr. de Beaulieu, tenha a bondade de me indicar o meu quarto; pois, cansado como estou das tribulações deste dia, tenho pressa de me ver nele.

- Está aqui, Senhor - disse Beaulieu, mostrando a Henrique uma porta aberta.

- Número 2 - disse Henrique -, e porque não é o número 1?

- Porque está tomado.

- Ah! parece então que espera algum preso de maior nobreza do que eu.

- Eu não disse, Senhor, que era um preso.

- Então quem é?

- Não insista Vossa Majestade, pois serei obrigado, calando-me, a faltar-lhe à obediência que lhe devo.

- Isso agora é outro caso - disse Henrique.

E tornou-se mais pensativo do que estava; esse número 1 evidentemente que o preocupava. Quanto ao mais, o governador não desmentiu a sua primeira polidez. Com mil precauções

oratórias, introduziu Henrique no quarto, deu-lhe todas as desculpas pela falta de cómodos, pôs dois soldados à porta e saiu.

- Agora - disse o governador ao chaveiro - vamos aos outros.

O chaveiro pôs-se a caminho. Atravessaram outra vez a sala dos tormentos, passaram o corredor, chegaram à escada e subiram três andares.

Ao chegar a esse quarto andar, o chaveiro abriu sucessivamente três portas, cada qual enfeitada com duas fechaduras e três enormes argolas.

Mal chegaram à terceira porta, ouviram uma voz alegre que gritava:

- Com mil diabos!. abram, quando não seja senão para entrar ar fresco! Este forno está tão quente, que quase se fica sufocado!

E Cocunás, que o leitor sem dúvida já reconheceu pelo seu modo jovial, deu um salto do lugar em que estava para a porta.

- Espere, meu fidalgo - disse o chaveiro -, não venho para o tirar daqui, venho para entrar com o Senhor Governador.

- O Senhor Governador? - disse Cocunás. - E que vem ele cá fazer?

- Visitá-lo.

- É fazer-me muita honra; seja bem-vindo o Senhor Governador.

O Sr. de Beaulieu entrou, efectivamente, e logo comprimiu o cordial sorriso de Cocunás com um desses cortejos glaciais que pertencem exclusivamente aos governadores de fortalezas, aos carcereiros e aos carrascos.

- O senhor tem dinheiro? - perguntou ele ao preso.

- Não senhor - disse Cocunás.

- Tem jóias?

- Tenho um anel.

- Dá licença que o apalpem?

- Com mil diabos! - exclamou Cocunás, vermelho de raiva - o que lhe vale é estar na cadeia e eu também.

- Sofrerá tudo a bem do serviço de el-rei.

- Então - disse o piemontês - os homens de bem que limpam a gente na Ponte Nova estão ao serviço de el-rei? Injustíssimo era eu para com eles, pois até agora tomava-os por ladrões.

- Boa noite - disse Beaulieu. - Chaveiro, feche a porta.

O governador retirou-se, levando o anel de Cocunás, que era uma belíssima esmeralda que, para lhe lembrar a cor dos seus olhos, lhe dera a Sr. de Nevers.

- Vamos ao outro - disse saindo.

Atravessaram uma câmara vazia, e o jogo das três portas, das seis chaves e dos nove ferrolhos foi repetido.

A última porta abriu-se, e um suspiro foi o primeiro rumor ouvido pelos visitantes. O quarto era de aspecto ainda mais lúgubre que aquele donde acabavam de sair. Quatro frestas compridas e estreitas, que iam diminuindo do interior, fracamente alumiavam essa triste morada. Demais, barras de ferro, cruzadas com tal arte que a vista fosse de contínuo detida por uma linha opaca, impediam que por essas frestas pudesse o preso ao menos ver o céu.

Filetes ogivais partiam de cada canto da sala e iam reunir-se no meio do tecto, em que se abriam em florão.

La Mole estava sentado a um canto, e apesar da visita, aí continuou, como se nada tivesse ouvido.

O governador parou no limiar, e olhou um momento para o preso, que ficara imóvel com a cabeça nas mãos.

- Boa tarde, Sr. de La Mole - disse Beaulieu.

O mancebo levantou lentamente a cabeça.

- Boa tarde.

- Senhor - continuou o governador -, venho apalpá-lo.

- É inútil - disse La Mole -, pois vou entregar-lhe tudo que tenho.

- E que tem?

- Cerca de trezentos escudos e as minhas jóias.

- Dê cá.

- Aqui tem.

La Mole voltou para fora o forro dos bolsos, tirou os anéis dos dedos e arrancou a fivela do chapéu.

- Não tem mais nada?

- Nada mais, que eu saiba.

- E essa fita que lhe passa pelo pescoço?

- Isto não é uma jóia, é uma relíquia.

- Dê cá.

- Como! exige.

- Tenho ordem de somente lhe deixar a roupa do corpo; ora uma relíquia não é roupa. la Mole fez um movimento de cólera que, no meio do sossego doloroso e digno que o distinguia, pareceu ainda mais terrível a essas pessoas acostumadas a comoções violentas.

Mas quase imediatamente acalmou-se.

- Bem, Senhor, vou dar-lhe o que pede.

Então, desviando-se como para se aproximar da luz, desatou a suposta relíquia, a qual não era mais do que um medalhão com um retrato, tirou-o do medalhão e levou-o aos lábios; mas, depois de o ter por diversas vezes beijado, fingiu deixá-lo cair e, apoiando com força a bota em cima dele, fé-lo em mil pedaços.

- Senhor! - disse o governador.

E abaixou-se para ver se podia livrar da destruição o objecto desconhecido que La Mole queria subtrair-lhe; mas a miniatura estava literalmente reduzida a pó.

- O rei queria ter essa jóia - disse La Mole -, não tinha porém nenhum direito ao retrato que encerrava. Aí tem agora o medalhão, pode levá-lo.

- Senhor - disse Beaulieu -, queixar-me-ei ao rei.

E sem se despedir do preso com uma única palavra, retirou-se tão irado que deixou ao chaveiro o cuidado de fechar as portas sem presidir a essa operação.

O chaveiro deu alguns passos para sair e, vendo que o Sr. de Beaulieu já descia os primeiros degraus de escada, disse:

- Por minha alma, Senhor! bem avisado fui quando pedi que me desse adiantados os cem escudos, mediante os quais lhe deixo falar ao seu companheiro; pois se mos não tivesse dado, o governador levá-los-ia agora com essoutros trezentos; e a minha consciência não me consentiria servi-lo mais; mas, como me pagou adiantado e lhe prometi que havia de estar com o seu camarada. venha. a palavra do homem de bem é sagrada. Somente, se lhe for possível, tanto para seu como para meu bem, não conversem em política.

La Mole saiu do quarto e achou-se diante de Cocunás, que contava as lajes do seu. Os dois amigos lançaram-se nos braços um do outro.

O chaveiro fez como se enxugasse o canto dos olhos, e saiu para vigiar que não fossem os presos surpreendidos, ou antes, que não fosse ele próprio surpreendido.

- Ah! eis-te aqui! - disse Cocunás. - Então, já te fez a sua visita esse abominável governador?

- Como a ti, segundo presumo.

- E tirou-te tudo?

- Como a ti também.

- Oh! eu pouco tinha: um anel de Henriqueta e nada mais.

- E dinheiro?

- Tinha dado todo o que possuía a esse bom chaveiro, para nos reunir um momento.

- Ah! ah! - disse La Mole - parece que recebe dos dois lados.

- Pois também lhe pagaste?

- Tanto melhor que o nosso chaveiro seja um miserável.

- Decerto; com dinheiro conseguiremos tudo que quisermos dele, e devemos esperar que dinheiro não nos há-de faltar.

- Compreendes agora o que se está passando?

- Perfeitamente: fomos atraiçoados.

- Por quem?

- Pelo abominável duque de Alençon. Razão tinha eu de lhe querer torcer o pescoço.

- E julgas que a nossa situação é grave?

- Tenho medo.

- Eu do que tenho medo é dos. tormentos.

- Não te nego que já me lembrei disso.

- Que dirás tu se chegarmos a esse ponto?

-E tu?

- Eu guardarei silêncio - respondeu La Mole, com rubor febril.

- Calar-te-ás? - exclamou Cocunás.

- Sim, se Deus me der força.

- Pois eu - disse Cocunás -, se praticarem tal infamia, afianço-te que hei-de dizer muitas coisas...

- Que dirás então? - perguntou assustado La Mole.

- Oh! deixa estar; coisinhas que hão-de tirar por algum tempo ao Sr. de Alençon a vontade de dormir.

La Mole ia replicar, quando o carcereiro, que sem dúvida ouvira alguma bulha, chegou apressado, empurrou os dois amigos cada qual para o seu quarto e fechou-lhes as portas.

Havia oito dias que Carlos se conservava de cama com uma febre que o prostrava, entrecortada por acessos violentos semelhantes a ataques de epilepsia. Nesses ataques dava às vezes berros que eram ouvidos com terror pelos guardas que estavam na antecâmara, e que os ecos do Louvre, despertados de há muito tempo por tantos rumores sinistros, repetiam espavoridos nas suas profundidades. Passados esses acessos, prostrado de cansaço, com os olhos amortecidos, caía nos braços da ama com profundo silêncio que denunciava espanto e terror.

Dizer o que Catarina de Médicis e o duque de Alençon, cada um por seu lado sem comunicar os seus pensamentos, pois a mãe e o filho mais se evitavam do que se procuravam; dizer o que um e outro revolviam no fundo do coração, seria querer pintar esse fervilhar hediondo que incessantemente se agita no fundo dum ninho de víboras.

Henrique tinha sido encerrado no seu quarto e, pela recomendação que ele próprio fizera a Carlos, ninguém, nem sequer Margarida, tivera licença de o visitar. Aos olhos de todos tinha caído em completo desfavor. Catarina e de Alençon respiravam, e julgavam-no perdido; e Henrique comia e bebia, esperando ser esquecido.

Na corte ninguém suspeitava a causa da enfermidade do rei. Mestre Ambrósio Paré e o seu colega Mazille tinham reconhecido uma inflamação de estômago, tomando por causa o que era apenas o seu efeito. Tinham, pois, prescrito um regímen calmante, que não podia senão ajudar a bebida particular receitada pelo perfumista. Carlos recebia-a três vezes por dia da mão da ama, e era esse o seu único alimento.

La Mole e Cocunás estavam em Vimcenas no mais rigoroso segredo. Margarida e a Sr. de Nevers tudo haviam tentado para ir ter com eles, ou pelo menos para lhes mandar um bilhetinho, e nada haviam conseguido.

Uma manhã, no meio das eternas alternativas da doença que experimentava, ou para melhor, ou para pior, Carlos sentiu-se mais forte e quis que deixassem entrar toda a corte, que, como era o costume, continuava, apesar da doença do rei, a apresentar-se no paço todos os dias à hora do levantar. Abriram-se, pois, as portas, e pode-se reconhecer, pela palidez das faces, pelo amarelado da testa de marfim, pela chama febril que lhe saltava dos olhos fundos e rodeados dum círculo escuro, que horríveis estragos tinha feito no jovem monarca a doença desconhecida que o atacara.

A régia câmara estava cheia de cortesãos e interessados.

Catarina, de Allençon e Margarida tiveram aviso de que Carlos recebia.

Todos três, com pouco intervalo uns dos outros, se apresentaram. Catarina sossegada, de Alençon sorrindo, e Margarida abatida.

Catarina sentou-se à cabeceira da cama do filho sem reparar no olhar que ele lhe deitava. O duque de Alençon ficou em pé junto da cama.

Margarida encostou-se a uma mesa e, vendo o rosto pálido e macilento, e os olhos fundos do rei, não pôde conter um suspiro e uma lágrima.

Carlos, a quem nada escapava, ouviu esse suspiro, e fez com a cabeça um sinal imperceptível a Margarida.

Por mais imperceptível que fosse esse sinal, alumiou ele o rosto da pobre rainha de Navarra, a quem Henrique não tinha tido tempo de dizer coisa alguma, ou talvez mesmo nada houvesse querido dizer; ela receava pelo marido, tremia pelo amante.

Por si nada temia; conhecia muito bem o carácter de La Mole para saber que podia contar com o maior segredo.

- Então, meu caro filho - disse Catarina -, como se acha?

- Melhor, minha mãe, melhor.

- E que dizem os médicos?

- Os médicos? oh! são grandes doutores, minha mãe - disse Carlos desatando a rir. Confesso-lhe que tenho supremo prazer ouvindo-os discutir acerca da minha doença. Ama, dá-me de beber.

A ama trouxe a Carlos uma xícara da sua bebida usual.

- E que lhe mandam tomar, meu filho?

- Ora quem é que lhes entende as preparações? - respondeu o rei, bebendo com vivacidade o remédio.

- O que seria bom, meu irmão - disse Francisco -, era poder levantar- se e aproveitar o belo sol; a caça, de que tanto gosta, também lhe havia de fazer bem.

- Havia - disse Carlos com um sorriso cuja expressão o duque não pôde penetrar. A última, porém, fez-me muito mal.

Carlos havia dito estas palavras de modo tão extraordinário, que a conversação ficou suspensa. Depois fez um sinal de cabeça; os fidalgos perceberam que estava acabado o recebimento, e retiraram-se uns após outros.

De Alençon fez um movimento para se aproximar do irmão; suspendeu-o, porém, um sentimento interior; cumprimentou-o e saiu.

Margarida pegou na mão descarnada que o irmão lhe apresentava, apertou-a, beijou-a e depois retirou-se.

Boa Margot! - disse consigo Carlos.

Só ficou Catarina, conservando o seu lugar à cabeceira da cama. Carlos, vendo-se a sós com ela, recuou para a extremidade da cama, com o sentimento de terror com que se recua diante duma serpente.

É que, inteirado pelas confissões de Renato, e depois ainda talvez melhor, pelo silêncio e pela meditação, Carlos nem tinha já ao menos a felicidade de duvidar.

Sabia perfeitamente a quem e a que atribuir a sua morte. Por isso, quando Catarina se chegou para a cama, e estendeu para o filho a mão fria como o seu olhar, ele estremeceu e teve medo.

- Pois fica, minha Senhora? - disse-lhe ele.

- Fico, meu filho - respondeu Catarina -, tenho que lhe falar sobre objectos importantes.

- Fale, minha Senhora - disse Carlos, recuando ainda mais.

- Senhor, ouvi Vossa Majestade afirmar ainda há pouco que os seus médicos eram grandes doutores.

- E ainda afirmo, minha Senhora.

- Entretanto, que fizeram eles depois da sua doença?

- Nada, na verdade. mas se a senhora tivesse ouvido o que disseram. Realmente, vale a pena estar doente só para ouvir tão sábias dissertações!

- Pois, meu caro filho, quer que eu lhe diga uma coisa?

- Pois não! diga, minha mãe.

- Parece-me que esses doutores todos não compreendem a sua doença.

- Deveras?

- Vêem talvez um resultado, mas não lhe penetram a causa.

- Pode ser - disse Carlos, não compreendendo ao que a mãe pretendia chegar.

- De modo que tratam o sintoma, em vez de tratarem o mal.

- Por minha alma! - tornou Carlos atónito - julgo que tem razão.

- Pois eu, meu filho - disse Catarina -, como não convém ao meu coração nem ao bem do Estado que fique tanto tempo doente, pois que o moral poderia por fim alterar-se, reuni os mais sábios doutores.

- Na arte médica?

- Não, na arte mais profumda; na arte que permite ler não só nos corpos, senão também nos corações.

- Oh! que arte sublime! - exclamou Carlos. - E como fazem bem em não a ensinarem aos reis!. E as suas consultas tiveram algum resultado?

- Tiveram.

- Qual?

- O que eu esperava; e trago a Vossa Majestade o remédio que lhe deve curar o corpo e o espírito.

Carlos estremeceu. Julgou que a mãe, pensando que ele ainda vivesse muito, tivesse resolvido acabar conscientemente o que começara sem o saber.

- E onde está esse remédio? - disse ele, levantando-se sobre o cotovelo e olhando para a mãe.

- Está na própria doença - respondeu Catarina.

- Mas que é a doença?

- Escute, meu filho - disse Catarina. - Tem, sem dúvida, ouvido dizer que há inimigos secretos cuja vingança de longe assassina a vítima.

- Com ferro ou com veneno? - perguntou Carlos, sem perder um instante de vista a fisionomia impassível da mãe.

- Com meios muito mais certos, muito mais terríveis - disse Catarin a.

- Explique-se.

- Meu filho - perguntou a florentina -, tem fé nas práticas da cabala e da magia?

Carlos comprimiu um sorriso de desprezo e de incredulidade.

- Muita - disse ele.

- Pois daí vêm os seus sofrimentos - disse com vivacidade Catarina. - Um inimigo de Vossa Majestade, que não se teria atrevido a atacá-lo de frente, conspirou na sombra. Dirigiu contra a pessoa de Vossa Majestade uma conspiração, tanto mais terrível quanto não tinha cúmplices, e quanto eram invisíveis os fios dessa misteriosa conspiração.

- Oh! oh! - disse Carlos, indignado com tamanha astúcia.

- Procure bem, meu filho - disse Catarina - lembre-se de certos projectos de fuga que deviam assegurar a impunidade do assassino.

- Do assassino? - exclamou Carlos - do assassino, diz? Então tentaram assassinar- me, minha mãe?

O olhar de Catarina revolveu-se hipocritamente debaixo das pálpebras.

- Talvez que meu filho duvide; eu não, que tenho toda a certeza.

- Nunca duvido do que minha mãe me diz - respondeu com acrimónia o rei. - Mas como tentaram matar-me? Tenho curiosidade de saber.

- Por mágica, meu filho.

- Explique-se, minha Senhora - disse Carlos, levado pelo asco que já lhe causava o seu papel de observador.

- Se esse conspirador que quero designar, e que no fundo do seu coração já Vossa Majestade designou, tendo tudo disposto, e estando certo do bom resultado, tivesse conseguido fugir, ninguém talvez houvesse penetrado a causa dos sofrimentos de Vossa Majestade; mas, felizmente, seu irmão estava vigilante.

- Qual irmão? - perguntou Carlos.

- O seu irmão de Alençon.

- Ah!. sim! é verdade; esqueço-me sempre de que tenho irmão - disse, sorrindo com amargura. - Depois, minha Senhora?

- Que, felizmente, ele revelou a Vossa Majestade o lado material da conspiração. Enquanto, porém, ele, mancebo inexperiente, só procurava os vestígios duma conspiração ordinária, as provas duma travessura de rapaz, procurava eu provas duma acção mais importante, pois conheço o alcance do espírito do culpado.

- Ah sim? Mas dir-se-ia, minha mãe, que está falando do rei de Navarra. - disse Carlos, querendo ver até onde ia a dissimulação da florentina.

Catarina abaixou com hipocrisia os olhos.

- Mandei-o prender e levar para Vincenas por causa da travessura de que se trata; dar-se-á porém o caso que ele seja ainda mais culpado do que eu o julgava?

- Sente a febre que o devora? - perguntou Catarina.

- Sinto, é exacto, minha Senhora - disse Carlos, franzindo a testa.

- Sente o fogo que lhe abrasa o coração e as entranhas?

- Também sinto, minha Senhora - tornou Carlos, cada vez mais terrível.

- E as dores agudas de cabeça que lhe passam pelos olhos para lhe chegarem ao cérebro como outras tantas setas?

- Sim, sim. oh! sinto tudo isso!. Mas, como sabe a senhora descrever todo o meu sofrimento?

- Ora, é simplicíssimo - disse a florentina -, olhe.

E tirou debaixo do corpete um objecto que apresentou ao rei.

Era uma estatuazinha de cera amarelada, da altura de seis polegadas, pouco mais ou menos. Este boneco trajava um vestido com estrelas de ouro, também de cera, e, por cima, um régio manto da mesma matéria.

- Bem; e que significa essa estatuazinha? - perguntou Carlos.

- Veja o que tem na cabeça - disse Catarina.

- É uma coroa.

- no coração?

- Uma agulha. E então?

- Então, Senhor, não se reconhece?

- Sou eu?

- Sim, é Vossa Majestade com a sua coroa e o seu manto!

- E quem foi que fez esse boneco? - disse Carlos, cansado com toda essa comédia. - Foi sem dúvida o rei de Navarra?

- Não senhor.

- Não? então já não a entendo.

- Digo não - tornou Catarina - porque Vossa Majestade quer saber do facto positivo. Diria sim se Vossa Majestade me tivesse feito a pergunta por outro modo.

Carlos não respondeu; procurava penetrar todos os pensamentos dessa alma tenebrosa, que se fechava constantemente sempre que julgava que se podia ler nela.

- Senhor - continuou Catarina -, esta estátua foi descoberta pelos cuidados do seu procurador-geral Laguesle, em casa do homem que no dia da última caçada tinha as rédeas dum cavalo seguras na mão, pronto para o rei de Navarra.

- Em casa do Sr. de La Mole? - disse Carlos.

- Exactamente; e se quiser, olhe mais para a agulha de aço que atravessa o coração; veja que letra está escrita no papelzinho que tem na extremidade.

- Vejo um - disse Carlos.

- Isto é, MORTE, é a fórmula mágica; o encantador escreve assim o seu voto na própria chaga que faz. Se tivesse querido torná-lo louco, como ao rei Carlos VI fez o duque de Bretanha, teria cravado na cabeça o alfinete com a letra L, em vez de M.

- Assim, pois - disse Carlos -, acha, minha Senhora, que quem ameaça a minha vida é o Sr. de La Mole?

- Sim senhor; com o punhal ameaça o coração; mas além do punhal, há o braço que o impele.

- E é essa a causa da minha doença? Mas que devo fazer então? - disse Carlos. - A senhora conhece tudo isso perfeitamente, mas eu, ao contrário da senhora, que toda a sua vida se ocupou disto, ignoro tudo que diz respeito a mágicas e cabalas.

- A morte do inventor destrói o encantamento. No dia em que o encantamento for destruído, acabará a sua doença - disse Catarina.

- Deveras? - disse Carlos atónito.

- Pois não sabia isto?

- Ora! bem vê que não sou mágico - disse o rei.

- E agora, está Vossa Majestade convencido?

- Decerto.

- E a convicção vai expelir a inquietação?

- Completamente.

- Não é por condescendência que está falando?

- Não, minha mãe, é do fundo do coração.

O rosto de Catarina desenrugou-se.

- Louvado seja Deus! - exclamou ela, como se alguma vez tivesse acreditado em tal.

- Sim, louvado seja Deus! - tornou Carlos ironicamente. - Sei agora, como a senhora sabe, a quem atribuir o estado em que me encontro, e portanto a quem devo punir.

- E havemos de punir.

- O Sr. de La Mole; não me disse que era ele o culpado?

- Disse que era o instrumento.

- Pois sim, o Sr. de La Mole primeiro; é o mais importante. Todas essas crises que me acometem podem fazer nascer em torno de nós perigosas suspeitas. É urgente que se faça luz, e que ao clarão dela se descubra a verdade.

- Assim, o Sr. de La Mole.

- Serve-me admiravelmente como culpado; comecemos por ele; e se tiver cúmplices, há-de falar.

Sim - disse a meia voz Catarina - e se não falar, faz-se com que fale; temos para isso meios infalíveis.

Depois, em voz alta e levantando-se:

- Dá pois licença que comece o processo?

- Desejo-o, minha Senhora - respondeu Carlos -, e quanto antes melhor.

Catarina apertou a mão do filho sem compreender o estremecimento nervoso que agitou essa mão quando tocou na sua, e saiu sem ouvir a risada sardónica do rei e a terrível e abafada imprecação que acompanhou essa risada.

O rei perguntou a si mesmo se não haveria perigo em deixar assim essa mulher, que em poucas horas poderia fazer tanto mal que não fosse possível depois remediá-lo.

Neste momento, estando a olhar para a porta pela qual saíra Catarina, ouviu por detrás de si um leve roçar e, voltando-se, viu Margarida, que erguia o reposteiro da porta que dava para o quarto da ama. Margarida, cuja palidez, olhos alucinados e peito opresso mostravam a mais violenta comoção:

- Ah! Senhor! Senhor! - exclamou, precipitando-se para a cama do irmão - bem sabe que ela mente.

- Ela quem? - perguntou Carlos.

- Ouça, Carlos, é por certo terrível uma filha acusar a mãe; mas logo desconfiei de que ela ficava aqui para ainda os perseguir. Mas, pela minha vida, pela sua, pelas almas de nós ambos! digo-lhe que ela mente.

- Persegui-los? quem persegue ela?

Ambos falavam baixo por instinto; ter-se-ia dito que tinham medo até de se escutarem.

- Primeiro Henrique, o seu querido Henriquinho, que o ama, que é o seu verdadeiro amigo, que lhe é dedicado mais do que ninguém neste mundo.

- Julgas isso, Margot?

- Oh! Senhor, estou certíssima.

- Pois eu também - disse Carlos.

- Então, se está certo disso, meu irmão - disse Margarida atónita -, como o mandou prender e levar para Vincenas?

- Porque ele próprio mo pediu.

- Ele que lho pediu?

- Sim; tem ideias extravagantes esse Henriquinho. Talvez esteja enganado, talvez tenha razão; mas, enfim, uma das suas ideias é que está mais seguro no meu desfavor do que na minha amizade, longe do que perto de mim, em Vincenas do que no Louvre.

- Ah! compreendo agora - disse Margarida. - Então ele está em segurança?

- Ora, em tanta segurança quanto aquela em que pode estar um homem por quem Beaulieu me responde com a cabeça.

- Obrigado, meu irmão, quanto a Henrique. Mas.

- Que mais? - perguntou Carlos.

- Há outra pessoa, Senhor, por quem talvez faça mal em interessar-me, mas por quem, todavia, me interesso.

- Que pessoa é essa?

- Senhor, poupe-me. mal me atreveria a dizer o seu nome a meu irmão, não me atrevo porém a dizê-lo ao meu rei.

- É o senhor de La Mole, não é? - disse Carlos.

- Ah! - disse Margarida - Vossa Majestade já o quis matar uma vez, e só por milagre escapou à sua vingança.

- E foi isso, Margarida, quando era culpado só dum crime, porém, que cometeu dois.

- Senhor, ele não é o culpado do segundo.

- Mas - disse Carlos -, não ouviste, pobre Margot, o que disse a nossa boa mãe?

- Oh! já lhe disse, Carlos - tornou Margarida, abaixando a voz -, já lhe disse que ela mentia!

- Não sabes que foi achada uma estatuazinha de cera no quarto do Sr. de La Mole?

- Sei, meu irmão, sei.

- Que essa estatuazinha tem o coração varado por uma agulha, e que esta agulha tem uma bandeirazinha com a letra M?

- Também sei isso.

- Pois então, que tens que dizer?

- Que essa estatuazinha, que tem um manto régio nos ombros e uma coroa na cabeça, representa uma mulher e não um homem.

- Sim - disse Carlos -, e a agulha que lhe atravessa o coração?

- É um encanto para se fazer amar por essa mulher, e não um malefício para matar um homem.

- Mas esse M?

- Não quer dizer morte Senhor, como pretende a rainha-mãe.

- Então que quer dizer?

- Quer dizer. quer dizer o nome da mulher amada pelo Sr. de La Mole.

- E essa mulher chama-se.

- Chama-se Margarida - disse a rainha de Navarra, ajoelhando aos pés do rei, tomando-lhe a mão nas suas e encostando nessa mão o seu rosto lavado em pranto.

- Minha irmã, silêncio! - disse Carlos, olhando para todos os lados com a vista chamejante e com aspecto carregado - silêncio! que assim como ouviu, pode também ser ouvida.

- E isso que me importa! - disse Margarida, levantando a cabeça. - Oh! que não esteja aqui o mundo inteiro para me ouvir! Diante do mundo inteiro eu declararia que é infame abusar do amor dum homem para nodoar a sua reputação com a suspeita dum assassinato.

- Margot! e se eu te dissesse que sei, tanto como tu sabes, o que é verdade e o que é falso?.

- Meu irmão!

- Se eu te dissesse que sei que o Sr. de La Mole está inocente?.

- Sabe-o?

- Se te dissesse que conheço o verdadeiro criminoso?.

- O verdadeiro criminoso? - exclamou Margarida. - Pois então houve um crime?

- Sim; voluntário ou involuntário, um crime foi cometido.

- Contra Vossa Majestade?

- Contra mim.

- Impossível!

- Impossível?. Olha para mim, Margot.

A rainha olhou para o irmão e estremeceu, vendo-o tão pálido.

- Margot, não poderei durar mais de três meses.

- O senhor, meu irmão? tu, meu Carlos? - exclamou ela.

- Margot, estou envenenado!

Margarida deu um grito.

- Cala-te! - disse Carlos - é necessário que acreditem que morro por arte mágica.

- E conhece Vossa Majestade o criminoso?

- Conheço-o.

- Vossa Majestade disse que não era o Sr. de La Mole.

- Não; não é ele.

- Nem por certo Henrique.

- Também não.

- Meu Deus! seria então.

- Quem?

- Meu irmão. de Alençon?. - disse a meia voz Margarida.

- Talvez.

- Ou então. então.

Margarida abaixou a voz como espavorida do que ia dizer:

- Ou então. nossa mãe?.

Carlos calou-se.

Margarida olhou para ele e, lendo-lhe nos olhos tudo quanto neles procurava, caiu prostrada.

- Oh! meu Deus! meu Deus! - exclamou ela - isto é impossível!

- Impossível? - disse Carlos, com um riso estridente. - É pena que não esteja aqui Renato para te contar a minha história.

- Renato?

- Sim. Contar-te-ia, por exemplo, que uma mulher, a quem ele nada pode negar, foi pedir-lhe um livro de montaria que ele tinha na biblioteca; que um veneno subtil foi deitado em cada página desse livro; que o veneno, destinado não sei a quem, caiu, por casualidade ou por castigo do Céu, nas mãos doutra pessoa que não eram as daquela a quem fora destinado. Mas, na falta de Renato, se queres ver o livro, ali está no meu gabinete, e escrito pela mão do florentino; e verás que esse livro, que contém ainda nas suas folhas a morte de vinte pessoas, foi por ele dado a uma sua patrícia.

- Silêncio, Carlos! silêncio! - disse Margarida.

- Bem vês agora que devem acreditar que morro por arte mágica.

- Mas é iníquo! é abominável!. Perdão, perdão! bem sabe então que ele está inocente.

- Sim, bem sei; mas é necessário que o julguem culpado. Sofre, pois, a morte do teu amante; é pouco, para salvar a honra da casa de França; bem vês que eu sofro a morte, para que o segredo morra comigo.

Margarida curvou a cabeça, compreendendo que nada havia a fazer para salvar La Mole por esse lado, e retirou-se toda chorosa, não tendo mais esperança senão nos seus próprios recursos.

Entretanto, como Carlos tinha previsto, Catarina não perdia um só minuto, e escrevia ao procurador Laguesle uma carta que a História conservou integralmente, e que lança em todo esse negócio sanguinolento muita luz. Ei-la:

Senhor Procurador: deram-me esta tarde como certo que La Mole cometeu um sacrilégio. Em sua casa, em Paris acharam muitas coisas que o comprometem, como livros e papéis. Rogo-llhe que comunique isto ao primeiro presidente e que organize, o mais depressa possivel o processo da estatuazinha de cera à qual traspassaram o coração, e isso contra o rei.

Catarina.Textual.

 

                   OS ESCUDOS INVISÍVEIS

No dia seguinte àquele em que Catarina havia escrito a carta que se acaba de ler, o governador entrou no quarto de Cocunás com aparato mais respeitável: ia acompanhado de dois alabardeiros e de quatro homens de togas negras.

Cocunás foi convidado a descer à sala em que o procurador Laguesle e dois juízes o esperavam para o interrogatório, conforme as instruções de Catarina.

Nos oito dias decorridos depois da prisão, Cocunás havia reflectido muito; sem contar que, todos os dias, La Mole e ele, reunidos um momento por mercê do chaveiro, que sem nada lhes haver dito lhes havia outorgado essa mercê, não por certo devido exclusivamente à sua filantropia; sem contar, dizemos, que La Mole e ele tinham ajustado como haviam de proceder, e assentado na mais absoluta negativa; estava persuadido que, com alguma destreza, o processo tomaria bom caminho: a acusação não era mais concludente contra eles do que contra os mais. Henrique e Margarida não tinham feito tentativa alguma de fuga; não podiam eles, pois, ficar muito comprometidos em negócios em que ficavam livres os principais culpados. Cocunás ignorava que Henrique estava na mesma fortaleza que ele, e a condescendência do seu chaveiro dizia-lhe que por cima da sua cabeça adejavam protecções a que chamavam escudos invisiveis.

Até então, os interrogatórios tinham versado sobre os desígnios do rei de Navarra, sobre os projectos de fuga e sobre a parte que nela podiam ter os dois amigos. Cocunás tinha respondido constantemente com profunda sagacidade; dispunha-se ainda para responder do mesmo modo, e de antemão tinha preparado todas as suas explicações, quando viu que de súbito tomava o interrogatório outra direcção.

Tratava-se de uma ou de muitas visitas feitas a Renato, de um ou de muitos bonecos de cera mandados fazer por La Mole.

Embora preparado, Cocunás julgou que a acusação muito perdia da sua intensidade, pois, em vez de ser uma traição ao rei, já não se tratava senão duma estátua de rainha, e ainda por cima essa estátua tinha apenas oito a dez polegadas de altura.

Respondeu, pois, muito alegremente, que de há muito nem ele nem o seu amigo brincavam com bonecos, e com prazer observou que muitas das suas respostas tiveram o privilégio de fazer rir os juízes.

Ainda não se tinha dito em verso: Ri, estou desarmado; mas em prosa já se haviam repetido muito essas palavras; e Cocunás pôde capacitar-se que tinha meio desarmado os juízes, pois eles tinham sorrido.

Concluído o interrogatório, subiu para o seu quarto tão alegre, e fazendo tanta bulha, que La Mole, para quem ele fazia todo esse espalhafato, teve de tirar as mais felizes conjecturas.

Fizeram-no então descer. La Mole, como Cocunás, viu, com espanto, a acusação abandonar a sua primeira direcção. Interrogaram-no sobre as suas visitas a Renato: respondeu que uma única vez tinha ido à casa do florentino. Perguntaram-lhe se dessa vez não havia encomendado uma estatuazinha de cera; respondeu que Renato lhe havia mostrado essa estátua já pronta. Perguntaram-lhe se não representava ela um homem: respondeu que representava uma mulher. Perguntaram-lhe se o encantamento não tinha por fim matar esse homem: respondeu que tinha por fim fazer-se amar por essa mulher.

Essas perguntas foram feitas, repetidas e revolvidas, de mil modos diferentes; a resposta, porém, a todas as perguntas, por mais que se repetissem, foi constantemente a mesma.

Os juízes olharam uns para os outros como indecisos, não sabendo bem o que dissessem ou que fizessem, diante de tal simplicidade, quando um bilhete, entregue ao procurador-geral, cortou a dificuldade.

O bilhete dizia assim:

Se o acusado negar recorram aos tormentos. - C.

O procurador meteu na algibeira o bilhete, sorriu para La Mole e despediu-o com polidez. La Mole voltou para a masmorra quase tão alegre como Cocunás.

Julgo que tudo vai bem" disse consigo.

Daí a uma hora ouviu passos, e viu um bilhete, que se introduzia por baixo da porta, sem ver que mão lhe dava movimento. Apanhou-o, bem capacitado de que o mensageiro não podia ser senão o chaveiro.

Vendo o bilhete, veio-lhe ao coração uma esperança, quase tão dolorosa como uma decepção: esperava que o bilhete fosse de Margarida, de quem não tinha notícia desde que estava preso. Apanhou-o todo trémulo; a letra quase que o fez morrer de alegria.

Ânimo! (dizia o bilhete) estou vigiando.

Ah! se ela está vigilante. - exclamou La Mole, cobrindo de beijos o papel em que tocara tão querida mão - se está vigilante, estou salvo!

É necessário, para que La Mole compreenda esse bilhete, e para que, como Cocunás, tenha fé no que o piemontês chamava os seus escudos invisíveis que levemos o leitor a essa casinha, a esse quarto, em que tantos perfumes mal evaporados, tantas doces recordações, transformadas em angústias, faziam estalar o coração duma mulher meio reclinada sobre almofadas de veludo.

Ser rainha, forte, rica, mesmo formosa e sofrer o que sofro - exclamava essa mulher - oh, é impossível!

Depois, no meio da sua agitação, levantava-se, andava, parava de repente, encostava a testa abrasada ao mármore frio dos trenós, levantava-se pálida e, com o rosto lavado em pranto, torcia os braços com gritos de angústia e tornava a cair prostrada sobre alguma cadeira.

De repente, o reposteiro que separava o quarto da Rua do Sino Rachado do quarto da Rua Tizon levantou-se, ouviu-se um roçar de seda e apareceu a duquesa de Nevers.

- Ah! - exclamou Margarida - és tu! com quanta impaciência te esperava! E então, que notícias há?

- Más! más! minha pobre amiga: a própria Catarina preside ao processo, e agora mesmo está ela em Vincenas.

- E Renato?

- Foi preso.

- Antes de lhe poderes falar?

- Antes.

- E os nossos queridos presos?

- Tenho notícias deles.

- Pelo chaveiro?

- Como sempre.

- E então?

- Então, estão todos os dias juntos por algum tempo. Anteontem foram apalpados. La Mole, em vez de entregar o teu retrato, esmigalhou-o.

- Querido La Mole!.

- Aníbal escarneceu dos inquiridores.

- Bom Aníbal! Que mais?

- Interrogaram-nos esta manhã sobre a fuga do rei, sobre os seus projectos de rebelião na Navarra, e nada disseram.

- Oh! bem sabia eu que nada diriam; mas esse silêncio mata-os como se falassem.

- Pois sim, mas nós havemos de salvá-los.

- E pensaste no nosso projecto?

- De ontem para cá não me ocupei de mais nada.

- E então?

- Acabo de concluir o ajuste com Beaulieu. Oh! minha querida rainha, que homem ambicioso e difícil! Há-de custar a vida dum homem e trezentos mil escudos.

- Dizes que é difícil e ambicioso, e só pede a vida dum homem e trezentos mil escudos? é de graça!...

- De graça, dizes tu; e trezentos mil escudos?. Todas as tuas jóias e todas as minhas não chegam a tanto.

- Oh! isso não obsta. Há-de pagar o rei de Navarra; o duque de Alençon há-de pagar também; e há-de pagar meu irmão Carlos; ou senão.

- Olha, estás falando como uma louca! Os trezentos mil escudos já eu os tenho.

- Tu?

- Sim, eu.

- E como os obtiveste?

- Eu cá sei!

- É segredo?

- Para todos, menos para ti.

- Oh! meu Deus! - disse Margarida sorrindo no meio de lágrimas - tê-los-á roubado?

- Vais saber como foi. Lembras-te daquele horrível Nantouillet?

- O ricaço, o usurário?

- Esse mesmo. Ora um dia, vendo passar certa senhora loura, de olhos verdes, toucada com três rubis, um na fronte e os outros sobre as fontes (ornato que lhe assenta muito bem), e não sabendo que essa senhora era uma duquesa, o ricaço, o usurário, exclamou: Por três beijos, no lugar em que estão esses rubis, faria eu nascer três brilhantes de cem mil escudos cada um!

- E depois, Henriqueta?

- Depois, minha querida. os brilhantes nasceram, e já estão vendidos.

- Oh! Henriqueta! Henriqueta! - disse em voz baixa Margarida.

- Boa! - exclamou a duquesa, com um tom ingénuo que dá ideia do século e da mulhereu também gosto do meu Aníbal!.

- É verdade - disse Margarida, sorrindo e corando ao mesmo tempo -, gostas muito dele e até com excesso.

E apertou-lhe a mão.

- Assim, pois - continuou Henriqueta -, graças aos nossos três brilhantes, o dinheiro e o homem estão prontos.

- O homem? Que homem?

- O que tem de ser morto. Esqueceste-te de que é necessário que haja um homem morto?

- E achaste homem que sirva?

- Perfeitamente.

- Pelo mesmo preço? - perguntou Margarida, sorrindo.

- Por esse preço teria achado mil - respondeu Henriqueta. - Não, não; foi simplesmente por quinhentos escudos.

- Por tão pouco achaste quem consentisse ser morto?

- Que queres? É preciso ganhar a vida.

- Minha cara amiga, não te compreendo. Vamos, fala claramente; adivinhar enigmas é, há muito tempo, a situação em que nos achamos.

- Pois ouve: o chaveiro a quem está confiada a guarda de La Mole e Cocunás é um soldado velho que sabe o que é uma ferida. Presta-se a salvar os nossos amigos, mas não quer perder o seu emprego. Uma punhalada, dada com jeito, arranjará tudo; dar-lhe-emos uma recompensa, e o Estado uma indemnização. Deste modo, o nosso homem receberá dos dois lados e repetirá a fábula do pelicano.

- Mas - disse Margarida -, uma punhalada!.

- Sossega; dar-lha-á Aníbal.

- Sim - disse, rindo, Margarida -, com a espada e com o punhal feriu ele três vezes La Mole, e La Mole não morreu; assim, pois, não é coisa para desesperar.

- Má! bem merecias que eu me calasse.

- Oh! não, não! pelo contrário, conta-me o resto, por quem és. Como os havemos de salvar?

- Ouve: a capela é o único lugar da fortaleza em que podem entrar as mulheres que não estão presas. Escondemo-nos atrás do altar; debaixo da toalha do altar acham-se dois punhais; a porta da sacristia fica aberta; Cocunás fere o chaveiro, que cai, e finge-se morto; nós aparecemos; cada uma de nós atira a capa ao seu; fugimos com eles pela portinhola da sacristia; e, como temos o santo-e-senha, sairemos sem obstáculo.

- E uma vez fora de lá?

- Esperam-nos à porta dois cavalos; saem da Ilha de França e vão para Lorena, donde de vez em quando voltarão disfarçados.

- Oh! tu restituis-me a vida! - disse Margarida. - Desse modo salvá- los-emos!

- Quase que o afianço.

- E isso é para breve?

- Ora! daqui a três ou quatro dias; Beaulieu mandar-nos-á dizer o dia.

- Mas se te virem nos arredores de Vincenas, pode isso prejudicar o nosso projecto.

- Como queres que me reconheçam? Saio vestida de freira, com um véu que só me deixa ver a ponta do nariz.

- Olha que todas as cautelas são poucas.

- Oh! bem sei isso.

- E o rei de Navarra, informaste-te dele?

- Por certo; nem podia esquecê-lo.

- E então?

- Então, nunca, ao que parece, esteve mais alegre; ri, canta, come bem e só pede uma coisa: que o guardem com cuidado.

- E tem razão; e minha mãe?

- Já te disse que activa quanto pode o processo.

- Mas não desconfia nada a nosso respeito?

- Como há-de desconfiar? Todos os que estão na confidência têm interesse no segredo. Ah! também soube que ela mandou dizer aos juízes de Paris que estivessem prontos.

- Devemos obrar depressa, Henriqueta; se os nossos pobres presos mudassem de prisão, teríamos de recomeçar tudo.

- Sossega; eu desejo tanto vê-los fora como tu.

- Oh! bem sei; obrigada! obrigada cem vezes, pelo que tens feito para chegar a esse ponco.

- Adeus! Margarida, adeus! Vou continuar.

- E contas com Beaulieu?

- Conto.

- E com o chaveiro?

- Ele prometeu.

- E cavalos?

- Hão-de ser os melhores da estrebaria do duque de Nevers.

- Adoro-te, Henriqueta!

E Margarida lançou-se nos braços da sua amiga, depois do que as duas mulheres se separaram, prometendo tornar a ver-se no dia seguinte, e sempre à mesma hora e no mesmo lugar.

Eram estas duas criaturas encantadoras e dedicadas que Cocunás chamava, com bastante razão, os seus escudos invisiveis.

 

                           OS JUÍZES

- Então, bravo camarada? - disse Cocunás a La Mole, quando tornaram a achar-se juntos depois do interrogatório em que pela primeira vez se tratara do boneco de cera. - Parece-me que caminha tudo que é um gosto e que não tardará muito que nos deixem os juízes, o que é muito mais favorável diagnóstico do que ser deixado pelos médicos, pois quando o médico deixa o doente é porque o não pode salvar; e, pelo contrário, quando o juiz deixa o acusado é porque perde a esperança de o mandar à degola.

- Parece-me também - disse La Mole -, pela polidez e facilidade dos chaveiros, pela elasticidade das portas, que reconheço as nossas nobres amigas; não reconheço, porém, o Sr. de Beaulieu pelo que dele me tinham dito.

- Reconheço-o eu muito bem - disse Cocunás -, somente há-de custar caro. Mas que tem isso? Uma é princesa, a outra rainha, ambas ricas, e nunca tiveram ocasião de fazer tão bom uso do seu dinheiro. Agora, recapitulemos bem a nossa lição. Levam-nos à capela; deixam-nos aí entregues à guarda do nosso chaveiro; achamos no lugar ajustado cada qual o seu punhal; abro um buraco na barriga do nosso guarda.

- Oh! na barriga não! seria roubar-lhe os seus quinhentos escudos; no braço.

- Pois não! no braço seria perdê-lo, coitado! bem veriam que ele e eu procedemos amigavelmente. Não, não: no lado direito, correndo destramente pelas costelas, é ferida verosímil e inocente.

- Bom, esse está aviado; depois.

- Depois, tu trancas a porta grande com bancos, enquanto as nossas princesas saem do seu esconderijo e Henriqueta abre a portinhola.

- E depois. - disse La Mole, com a voz trémula que passa pelos lábios como música suave - depois, metemo-nos pelas matas: um beijo dado a cada um de nós tornar-nos-á alegres e fortes. Estás-nos vendo, Aníbal: inclinados sobre os nossos velozes cavalos, com o coração suavemente opresso! Oh! como é gostoso o medo! o medo em campo aberto, com uma espada na mão, quando se grita hurrai ao cavalo provocado com a espora, e que a cada grito salta e voa.

- Isso sim! - disse Cocunás - porém do medo entre quatro paredes, que dizes tu, La Mole? Desse posso eu falar, pois já senti coisa parecida. Quando esse lívido carão do Beaulieu entrou pela primeira vez no meu quarto, detrás dele reluziam partasanas, retinia o sinistro ressoar do ferro de encontro ao ferro. Juro-te que imediatamente me lembrei de Alençon, e que esperava ver aparecer a sua cara hedionda entre as dos soldados. Enganei-me, e foi essa a minha consolação; mas não perdi tudo; à noite sonhei com ele.

- Assim - disse La Mole, que seguia o seu risonho pensamento sem acompanhar o seu amigo nas excursões que fazia pelos campos da fantasia -, elas previram até o lugar do nosso retiro. Vamos para Lorena, meu caro amigo. Na verdade, eu preferia que fôssemos para a Navarra mas a Navarra é tão longe!. Nancy é melhor, porque só ficamos a cinquenta léguas de Paris. Sabes que pesar levo daqui, Aníbal?

- Não, por certo. pela minha parte declaro que deixo cá todos os meus.

- É não poder levar connosco o digno chaveiro, em vez de.

- Ora! ele não havia de querer - disse Cocunás -, pois perderia muito; vê lá, atende: quinhentos escudos nossos, uma recompensa do governo. talvez promoção; como vai viver feliz esse maganão quando eu o matar!. Mas. que tens?

- Nada! uma ideia que me ocorreu.

- Não é divertida, ao que parece, pois estás horrivelmente pálido.

- Pergunto agora a mim mesmo porque é que nos hão-de levar para a capela.

- Ora - disse Cocunás - para cumprir o preceito da Quaresma; parece-me que é o tempo próprio.

- Mas - disse La Mole - não levam para a capela senão os condenados à morte ou os que sofrem tormentos.

- Oh!. oh! - disse Cocunás, descorando também. - O caso é sério: interroguemos a esse respeito o pobre homem a quem tenho de estripar um destes dias. Olá, chaveiro, meu bom amigo!

- O senhor está-me chamando? - disse o chaveiro, que estava de vigia nos primeiros degraus da escada.

- Estou; vem cá.

- Aqui me tem.

- Está ajustado que fugiremos da capela, não está?

- Caluda! - disse o chaveiro, olhando em torno de si.

- Sossega; ninguém nos ouve.

- Sim senhor, da capela.

- Pois então havemos de ir à capela?

- Por certo, é o costume.

- É o costume?

- Sim senhor: depois da condenação à morte, é costume consentir que o condenado passe a noite na capela.

Cocunás e La Mole estremeceram e olharam um para o outro.

- Então julgas que seremos condenados à morte?

- Decerto. e os senhores também assim o pensam.

- Como! nós também?

- Decerto; se o não pensassem, não teriam tudo preparado para fugir.

- Sabes que é de quem pensa com muito juízo, o que ele nos está dizendo? - disse Cocunás a La Mole.

- Pois sim. mas o que também sei, ao menos agora, é que jogamos uma grande parada.

- E eu, então?. - disse o chaveiro - julgam que não me arrisco? Se nesse momento de comoção o senhor se enganasse e me desse a punhalada do lado esquerdo!.

- Ora! bem me quisera eu ver no teu lugar - disse vagarosamente Cocunás -, e não ter que me haver com outras mãos senão com esta, nem com outro ferro senão com o que te há-de ferir.

- Condenado à morte? - exclamou La Mole - não pode ser!

- Não pode? - disse ingenuamente o chaveiro - e porquê?

- Calem-se! - disse Cocunás - julgo que estão abrindo a porta de baixo.

- Assim é - disse com vivacidade o chaveiro. - Recolham-se, Senhores, recolham-se!

- E quando acha que será proferida a sentença?

- Amanhã, o mais tardar. Sosseguem, porém: as pessoas que devem ser prevenidas, hão-de sê-lo.

- Então abracemo-nos, e façamos as nossas despedidas a estes muros.

Os dois amigos lançaram-se nos braços um do outro; depois entraram para os seus quartos. La Mole ia suspirando; Cocunás cantarolando.

Nada de novo ocorreu até às sete horas da tarde. A noite desceu escura e chuvosa sobre os torreões de Vincenas; uma verdadeira noite de fuga. Trouxeram a ceia de Cocunás, que comeu com o seu costumado apetite, lembrando-se do prazer que teria em ser molhado por essa chuva que açoitava as paredes; e já se preparava para dormir ao abafado e monótono sussuro do vento, quando lhe pareceu que esse vento, que escutava às vezes com um sentimento de melancolia como nunca sentira antes de estar preso, assobiava por modo extraordinário pelas frestas de todas as portas, e que o cano do fogão roncava com mais raiva do que era costume. Verificava-se esse fenómeno cada vez que se abria uma das prisões do andar de cima, e especialmente a que ficava na frente. Era por essa bulha que Aníbal reconhecia que vinha ter com ele o chaveiro, pois indicava-lhe que saía do quarto de La Mole.

Entretanto, desta vez, ficou Cocunás com o pescoço inutilmente estendido e o ouvido atento. Correu o tempo e não veio ninguém.

É singular! - disse Cocunás - abriram o quarto de La Mole e não abrem o meu. Terá La Mole chamado? estará doente? que quererá isto dizer?

Para o preso tudo é suspeita e inquietação, como tudo lhe é alegria e esperança. Passou meia hora, depois uma hora, depois hora e meia.

Cocunás, despeitado, ia adormecendo, quando a bulha da fechadura o fez saltar. Oh! oh! - disse - pois já é a hora da partida? E vão levar- nos à capela sem sermos condenados! Oh! oh! dar-me-ia muito gosto fugir numa noite como esta. Está escuro como um forno. mas não sejam os cavalos cegos.

E preparava-se para interrogar alegre o chaveiro, quando lhe viu pôr o dedo na boca e volver os olhos com a maior eloquência.

Com efeito, por detrás do chaveiro ouvia-se bulha, viam-se sombras.

De súbito, no meio da escuridão distinguiu dois capacetes, em cada um dos quais a luz esfumaçada lançou um reflexo de ouro.

- Oh! oh! - perguntou a meia voz - que sinistro preparativo é este? Para onde vamos? O chaveiro respondeu com um suspiro muito semelhante a um gemido.

- Cos diabos! que maldito viver! - disse a meia voz Cocunás - sempre extremos, nunca chão firme! Ou afogar-se a gente num charco de cem pés de altura de lodo, ou pairar por entre as nuvens: não há meio termo. Para onde vamos?

- Acompanhe os soldados, Senhor - disse uma voz ciciosa, que lhe fez conhecer que os soldados vinham acompanhados por um meirinho.

- E o Sr. de La Mole - perguntou o piemontés -, onde está? Que é feito dele?

- Acompanhe os soldados - repetiu no mesmo tom a mesma voz ciciosa. Era necessário obedecer. Cocunás saiu do quarto e viu o homem de preto, cuja voz lhe soara tão desagradavelmente. Eca um escrivão corcunda e baixo, e que, sem dúvida, tinha tomado o ofício em que vestia beca para não verem que também era cambaio.

Desceu vagaroso a escada em espiral. Os guardas pararam no primeiro andar. É descer muito - murmurou Cocunás - mas ainda não basta.

A porta abriu-se. Cocunás tinha um olhar de lince e um faro de galgo; farejou os juízes, e viu no escuro a sombra dum homem com os braços nus que lhe fez subir o suor à testa. Tomou, todavia, o seu ar mais risonho, inclinou a cabeça para a esquerda, segundo o preceito do código de bom gosto da época, e com a mão na anca entrou na sala.

Levantou-se um cortinado, e Cocunás viu efectivamente os juízes e os escrivães. A alguns passos desses juízes e escrivães estava La Mole sentado num banco. Cocunás foi apresentado ao tribunal: diante dos juízes parou, cumprimentou la Mole inclinando a cabeça com um sorriso, e esperou.

- Como se chama? - perguntou-lhe o presidente.

- Marcos Aníbal de Cocunás - respondeu o fidalgo com graça -, conde de Montpensier, Chenaux e outros lugares; mas, presumo que conhecem os nossos títulos.

- Donde é natural?

- De São Columbano, ao pé de Susa.

- Que idade tem?

- Vinte e sete anos e três meses.

- Muito bem - disse o presidente.

Parece que gostou disse consigo Cocunás.

- Agora - disse o presidente, depois dum momento de silêncio que deu tempo ao escrivão para escrever as respostas do réu -, qual era o seu fim quando se retirou do serviço do Sr. de Alençon?

- Reunir-me com o meu amigo Sr. de La Mole, que se havia retirado alguns dias antes.

- Que estava fazendo na caçada em que foi preso?

- Ora! - respondeu Cocunás - estava caçando.

- O rei também estava nessa caçada, e foi nela que sentiu os primeiros sintomas da doença de que está sofrendo.

- A esse respeito, não tendo estado ao pé do rei, nada posso dizer: até ignorava que estivesse doente.

Os juízes olharam uns para os outros com um sorriso de incredulidade.

- Ah! o senhor ignorava? - disse o presidente.

- Sim senhor; e sinto-o muito; se bem que o rei de França não seja o meu rei, tenho-lhe muita afeição.

- Deveras?

- Palavra de honra! Não é como seu irmão, o duque de Este, confesso.

- Não se trata aqui do duque de Alençon, mas de Sua Majestade.

- Pois já disse que era seu muito humilde criado - respondeu Cocunás, embalando o corpo com adorável indolência.

- Se, como pretende, é realmente seu criado, não me dirá o que sabe de certa estátua mágica?

- Bom! voltamos à história do boneco, segundo me parece.

- Sim senhor; e isso desagrada-lhe?

- Não senhor, antes pelo contrário. Continue.

- Porque se achava essa estátua no quarto do Sr. de La Mole?

- No quarto do Sr. de La Mole? Em casa de Renato é que o senhor quer dizer.

- Então reconhece que ela existe?

- E reconhecê-la-ei, se ma apresentarem.

- Aqui está: é a que conhece?

- Exactamente.

- Escrivão - disse o presidente -, escreva que o réu reconhece a estátua por tê-la visto no quarto do Sr. de La Mole.

- Não, não confundamos: por tê-la visto em casa de Renato.

- Pois sim: em casa de Renato. Em que dia?

- No único dia em que lá fomos, La Mole e eu.

- Então confessa que foi a casa de Renato com o Sr. de La Mole?

- Pois já alguma vez o neguei?.

- Escrivão, escreva que o réu confessa ter ido a casa de Renato para fazer artes mágicas.

- Alto lá! alto lá, Senhor Presidente! modere o seu entusiasmo, olhe que eu não disse nada disso.

- Então nega ter ido a casa de Renato para fazer artes mágicas?

- Nego-o; a magia que lá se fez foi casual e sem premeditação.

- Mas enfim, fez-se.

- Não posso negar que houve alguma coisa assim à maneira dum encantamento.

- Escreva que o acusado confessa ter feito em casa de Renato um encantamento contra a vida do rei.

- Como contra a vida do rei? é uma infame mentira! Não se fez encantamento algum contra a vida do rei.

- Estão vendo, Senhores? - disse La Mole.

- Silêncio! - disse o presidente.

E voltando-se para o escrivão:

- Contra a vida do rei - continuou. - Já escreveu?

- Não! não! - disse Cocunás. - Além de que a estátua não é de homem, mas de mulher.

- Então, meus Senhores, não lhes tinha eu dito? - tornou La Mole.

- Sr. de La Mole - disse o presidente -, responda quando for interrogado e não interrompa o interrogatório dos outros. Diz então que é uma mulher?

- Sem dúvida que digo.

- Então porque tem uma coroa e um manto real?

- Ora! - disse Cocunás - nada mais simples; porque era.

La Mole levantou-se precipitadamente e encostou o dedo à boca.

- Sim - disse Cocunás -, o que eu ia dizer!. como se isso fosse da conta destes senhores.

- Persiste em dizer que essa estátua era de mulher?

- Decerto que persisto.

- E nega-se a dizer quem era essa mulher?

- Uma mulher da minha terra, a quem amava, e de quem queria ser amado - disse La Mole.

- Não é o senhor que está sendo interrogado, Sr. de La Mole! - exclamou o presidente - cale-se ou mando-lhe pôr uma mordaça.

- Pôr uma mordaça? Como diz isso, senhor da beca? Pôr mordaça num fidalgo, num amigo meu? Está brincando!

- Tragam Renato - disse o procurador-geral Laguesle.

- Sim, tragam Renato - disse Cocunás -, vamos ver quem tem razão: os senhores três ou nós dois.

Renato entrou, pálido, envelhecido a ponto que mal o puderam reconhecer os dois amigos, pois muito mais o acurvava o peso do crime que ia cometer do que os que já havia cometido.

- Mestre Renato - disse o juiz -, reconhece os dois réus presentes?

- Sim senhor - respondeu Renato, com voz que revelava o seu abalo.

- Por tê-los visto onde?

- Em vários lugares, especialmente em minha casa.

- Quantas vezes foram a sua casa?

- Uma única.

À medida que falava Renato, a cara de Cocunás expandia-se; a de La Mole, porém, tornava-se mais grave, como se tivesse algum pressentimento.

- E em que ocasião foram a sua casa?

Renato mostrou hesitar.

- Para me encomendarem uma figura de cera.

- Desculpe, desculpe, meu Renato - disse Cocunás -, está um tanto enganado.

- Silêncio! - disse o presidente.

E voltando-se para Renato:

- E essa figura era de homem ou de mulher?

- De homem - respondeu Renato.

Cocunás saltou como se houvesse recebido uma comoção eléctrica.

- De homem?

- De homem - repetiu Renato, porém com voz tão fraca que mal foi ouvida.

- E porque tem essa estátua de homem manto nos ombros e coroa na cabeça?

- Porque representa um rei.

- Infame mentiroso! - exclamou Cocunás fora de si.

- Cala-te, Cocunás, cala-te - atalhou La Mole -, deixa falar esse homem, cada qual é senhor de perder a sua alma.

- Mas não o corpo dos outros, cos demónios!

- E que queria dizer essa agulha que atravessava o coração da estátua, com a letra escrita numa bandeirinha?

- A agulha era o punhal ou a espada, e queria dizer mort.

Cocunás fez um movimento para esganar Renato; seguraram-no porém quatro guardas.

- Bem - disse o procurador Laguesle -, o tribunal está suficientemente esclarecido. Levem os presos para os quartos de espera.

- Mas - exclamava Cocunás -, é impossível ouvir semelhantes mentiras sem protestar!

- Proteste, Senhor, ninguém lho veda. Guardas, cumpram o que se mandou. Os guardas agarraram nos dois réus e fizeram-nos sair, La Mole por uma das portas, Cocunás pela outra.

Então o procurador fez sinal a esse homem que Cocunás tinha visto no escuro, e disse- lhe:

- Não se retire, mestre; haverá trabalho esta noite.

- Por qual deles hei-de começar, senhor? - perguntou o homem levando respeitosamente a mão ao barrete.

- Por aquele - disse o presidente apontando La Mole, que ainda se via como uma sombra entre os dois guardas.

Depois, chegando-se para Renato, que tinha ficado em pé e trémulo, aguardando que o levassem para o Châtelet, onde estava preso:

- Bem - disse-lhe ele -, o rei e a rainha hão-de saber que lhe devem o ter conhecido a verdade.

Em vez, porém, de lhe dar força, essa promessa como que encheu Renato de terror, que só respondeu com um profundo suspiro.

 

           O TORMENTO DO BORZEGUIM

Cocunás, tendo acabado de lutar com os seus juízes, livre da cólera que concebera contra Renato e vendo-se agora numa nova masmorra, começou, todo entregue a si mesmo, a série das suas tristes reflexões.

Parece-me - disse consigo - que as coisas vão mal, e que já seria tempo de ir para a capela. Desconfio das condenações à morte; pois incontestavelmente tratam agora de condenar-nos à morte. Desconfio ainda mais das condenações à morte proferidas entre as quatro paredes duma fortaleza, diante de carões tão feios como os que nos rodeiam. Seriamente, querem cortar-nos a cabeça. Oh! oh! Repito o que dizia, já era tempo de irmos para a capela.

Estas palavras, proferidas a meia voz, foram acompanhadas por um silêncio, e este silêncio foi interrompido por um grito abafado e lúgubre, que nada tinha de humano; este grito como que rompeu a espessa parede e veio vibrar no ferro das grades.

Cocunás involuntariamente estremeceu; e entretanto era homem tão valente, que nele o valor se parecia com o instinto da fera. Ficou imóvel no lugar em que ouvira o gemido, duvidando que semelhante gemido pudesse ser solto por uma criatura humana, tomando-o pelo bramido do vento nas árvores, ou por um desses mil rumores que à noite parecem descer ou subir dos dois mundos desconhecidos entre os quais se revolve o nosso globo; então, outro gemido mais doloroso, mais profundo e mais pungente do que o primeiro, chegou aos seus ouvidos, e desta vez, não só bem positivamente distinguiu a expressão da dor na voz humana, como também julgou reconhecer que essa voz era a de La Mole.

Ouvindo essa voz o piemontês esqueceu-se de que estava encerrado por duas portas, três grades e uma parede da largura de doze pés, e precipitou-se com toda a sua força contra ela, como para desmoroná-la e voar em socorro da vítima, bradando:

- Estão degolando alguém!

Encontrou porém no caminho a parede, de que não se recordava, e caiu esmagado pelo encontrão sobre um banco de pedra.

E ficou ali.

- Mataram-no! oh! - exclamou ele - é abominável!. mas é que ninguém o pode defender aqui! não há armas, nem nada!

Estendeu a mão a ver o que encontrava.

- Ah! esta argola de ferro. - continuou - arrancá-la-ei, e ai daquele que se chegar a mim!

Cocunás levantou-se, agarrou na argola de ferro, e com o primeiro esforço tão fortemente a abalou, que era evidente que, com mais dois ou três esforços iguais, a arrancaria.

Mas de repente a porta abriu-se, e uma luz produzida por duas tochas invadiu a masmorra.

- Venha, Senhor - disse a mesma voz ciciosa que já lhe havia sido tão particularmente desagradável, e que por se fazer ouvir desta vez três andares mais abaixo não lhe pareceu ter ganho a doçura que lhe faltava -, o tribunal está-o esperando.

- Bom - disse Cocunás, largando a argola - vou ouvir a minha sentença, não é assim?

- Sim senhor.

- Ah! já respiro! vamos.

E acompanhou o meirinho, que ia comtente adiante dele, tendo erguido a sua vara preta. Oh! oh! não vejo o meu digno chaveiro - disse a meia voz - confesso que me faz falta a sua presença.

Entrou só na sala donde acabavam de sair os juízes, e onde havia ficado em pé um só homem, em quem Cocunás reconheceu o procurador-geral, que mais duma vez, no correr do processo, tinha falado, e sempre com animosidade fácil de reconhecer.

Com efeito, a ele, já por carta, já verbalmente, havia Catarina com particularidade recomendado o processo.

Uma cortina levantada deixava ver o fundo da sala; e essa sala; cujas profundidades se perdiam no escuro, tinha nos lugares que estavam alumiados tão terrível aspecto, que Cocunás sentiu vacilarem-lhe as pernas e exclamou:

- Oh! meu Deus!

Não era sem causa que Cocunás soltara esse grito de terror.

O espectáculo era, com efeito, dos mais lúgubres. A sala, oculta durante o interrogatório por uma cortina, agora levantada, parecia ser o vestíbulo do Inferno. No primeiro plano via-se um cavalete de pau, guarnecido de cordas, moitões e outros acessórios torcionários. Adiante, ardia um braseiro que reverberava os seus lúgubres clarões sobre todos os objectos em redor, e que escurecia ainda mais a sombra dos que se achavam entre Cocunás e ele. Encostado a uma das colunas que sustentavam a abóbada, um homem, imóvel como uma estátua, estava de pé com uma corda na mão. Ter-se-ia dito que era da mesma pedra que a coluna a que aderia. Nas paredes, por cima dos bancos de pedra, entre argolões de ferro, estavam penduradas correntes e reluziam ferros.

Oh! - disse consigo Cocunás - a sala dos tormentos preparada e à espera de padecente! Que quer isto dizer?

- De joelhos, Marcos Aníbal de Cocunás! - disse uma voz que fez erguer a cabeça do fidalgo - de joelhos, para ouvir a sentença que acaba de ser proferida!

Era um desses convites contra os quais instintivamente reagiam o corpo e a alma de Cocunás. Quando, porém, ia a reagir, dois homens lhe apoiaram as mãos sobre os ombros de modo tão inesperado, e especialmente tão pesado, que caiu com os dois joelhos sobre a laje.

A voz continuou:

Sentença proferida pelo tribunal reunido no torreão de Vincenas, contra Marcos Aníbal de Cocunás, convicto de crime de lesa-majestade, de tentativa de envenenamento, de sortilégio e mágica contra a pessoa do rei, de conspiração contra a segurança do Estado, como também de ter, pelos seus primeiros conselhos, levado à rebelião um príncipe de sangue.

A cada uma dessas imputações havia Cocunás abanado a cabeça, batendo o compasso como menino indócil da escola.

O juiz prosseguiu:

Em consequência do que, o dito Marcos Aníbal de Cocunás será levado da prisão à Praça de S. João de Grève, para aí ser degolado; os seus bens deverão ser confiscados, as suas matas cortadas à altura de seis pés, os seus castelos arrasados, ficando na areia um poste com uma lâmina de cobre que autentique o crime e o castigo.

- Quanto à minha cabeça, creio bem que ma cortarão, pois está em França, e acé muito arriscada; quanto às minhas matas e aos meus castelos, desafio todas as serras e enxadas do Reino Cristianíssimo a morderem neles.

- Silêncio! - disse o juiz.

E prosseguiu: E outrossim, será o dito Cocunás.

- Como! - atalhou este - pois ainda me hão-de fazer alguma coisa mais depois de cortada a cabeça? Oh! oh! há- de ser engraçado.

- Depois, não - disse o juiz -, porém antes.

E continuou: E outrossim, será o dito Cocunás, antes da execução da sentença, sujeito à tortura extraordinária de dez cunhos.

Cocunás saltou, fulminando o juiz com um olhar de indignação.

- E para quê? - exclamou, não achando outra frase senão essa ingenuidade para exprimir a multidão de pensamentos que lhe surgiam na mente.

Com efeito, esse tormento era para Cocunás a completa ruína de todas as suas esperanças; não seria levado à capela senão depois de o ter sofrido, e dele, ordinariamente, morria-se; tanto mais facilmente se morria quanto se era mais valente e robusto, pois então considerava-se como cobardia fazer declarações, e enquanto não havia essas declarações os tormentos continuavam, e não só continuavam como dobravam de intensidade.

O juiz evitou responder a Cocunás, pois o seguimento da sentença por ele respondia; continuou pois a ler:

A fim de o obrigar a confessar quais são os seus cúmplices, os seus crimes e maquinações por miúdo.

- Oh! - exclamou Cocunás - isto é que merece o nome de infamia! É mais do que infâmia: a isto é que eu chamo cobardia.

Acostumado às cóleras das vitimas, cóleras que o sofrimento acalma trocando-as em lágrimas, o juiz, impassível, fez um só gesto.

Agarrado pelos pés e pelos ombros, Cocunás foi levado, deitado e amarrado ao leito dos tormentos, antes de ter visto quais eram os que assim o violentavam.

- Miseráveis! - uivava Cocunás, sacudindo com um paroxismo de furor o leito, de maneira a fazer recuar os próprios verdugos. - Miseráveis! torturem-me, quebrem-me, façam-me em pedaços: nada direi! assim lhes juro. Ah! Pensam que é com pedaços de pau e pedaços de ferro que se faz falar um fidalgo como eu? Hão-de ver! desafio-os!

- Prepare-se para escrever - disse o juiz ao escrivão.

- Sim, prepara-te - uivou Cocunás -, e se escreveres tudo quanto vou dizer-lhes a todos, infames carrascos, terás trabalho. Escreve, escreve.

- Quer fazer revelações? - disse o juiz com a sua voz pausada.

- Vai-te com os diabos!

- Senhor, reflicta enquanto duram os preparativos. Vamos, mestre, ajuste os borzeguins ao réu. Então, o homem que tinha ficado até ali em pé e imóvel, com cordas na mão, separou-se da coluna, e com vagaroso passo chegou-se para Cocunás, que se voltou para ele a fim de lhe fazer uma careta.

Era mestre Caboche, o carrasco de Paris.

Doloroso espanto se debuxou nas feições de Cocunás, que em vez de gritar e agitar-se, ficou imóvel, não podendo arredar os olhos do rosto desse amigo a quem esquecera, e que em tal momento lhe tornava a aparecer.

Caboche, sem que se agitasse um só dos seus músculos, sem que desse sinal de ter visto anteriormente Cocunás, colocou-lhe duas tábuas nas pernas e amarrou tudo com as cordas que tinha na mão.

Era o aparelho a que chamavam o borzeguim.

Para os tormentos ordinários metiam-se dez cunhos, e então as tábuas não só esmigalhavam as carnes mas partiam os ossos.

Acabada a operação preliminar, mestre Caboche introduziu a extremidade dum cunho entre as duas tábuas; depois, com o seu malho na mão, ajoelhado sobre um só joelho, olhou para o juiz.

- Quer falar? - perguntou este.

- Não - respondeu resoluto Cocunás, bem que sentisse o suor inundar-lhe a testa e arrepiarem-se-lhe os seus belos cabelos.

- Nesse caso, vamos - disse o juiz. - Primeiro cunho do ordinário.

Caboche levantou o braço armado do pesado malho, e deu terrível pancada no cunho.

O cavalete tremeu.

Cocunás não soltou uma só queixa, bem que normalmente esse primeiro cunho fizesse gemer os mais resolutos.

Até houve mais: a única expressão que apareceu no seu rosto foi de indizível espanto; olhou estupefacto para Caboche, que, com o braço erguido, meio voltado para o juiz, se preparava para repetir.

- Qual era a sua tenção escondendo-se na mata? - perguntou o juiz.

- Sentar-me à sombra - respondeu Cocunás.

- Continue, mestre - disse o juiz.

Caboche deu segunda pancada, que soou como a primeira.

Mas ainda com essa pancada Cocunás não deu sinal de dor, e os seus olhos continuaram fitos no carrasco com a mesma expressão.

O juiz franziu a testa.

Isto é que é sujeito valente disse consigo. O cunho entrou até ao fim, mestre? Caboche abaixou-se como para examinar; abaixando-se, porém, disse a Cocunás:

- Grite, cos diabos! grite, desgraçado!

E levantando-se:

- Até ao fim, sim senhor - disse.

- Segundo cunho do ordinário - tornou friamente o juiz.

As quatro palavras de Caboche tudo explicavam a Cocunás. O digno algoz acabava de prestar ao seu amigo o maior serviço que pode um algoz prestar a um fidalgo.

Poupava-lhe mais do que a dor, poupava-lhe a vergonha de fazer confissões, cravando-lhe nas pernas cunhos de couro elástico, cuja parte superior somente era guarnecida de madeira, em vez de lhe cravar cunhos de carvalho. Demais, deixava-lhe toda a sua força para não enfraquecer diante do cadafalso.

Oh! bom e honrado Caboche! - disse consigo Cocunás - sossega, vou gritar, já que o queres; e se não ficares satisfeito; serás ruim de contentar.

Neste tempo tinha Caboche metido entre as tábuas a ponta dum cunho mais grosso do que o primeiro.

- Prossiga - disse o juiz.

Então Caboche deu com tanta força quanta empregaria se tivesse de desmoronar o torreão de Vincenas.

- Ai! ai! ui! ui! - gritou Cocunás. - Com mil diabos! esmigalham-me os ossos! vejam o que fazem!

- Ah! - disse o juiz sorrindo - o segundo produz o seu efeito; já me ia admirando. Cocunás respirou como um fole.

- Então, que fazia na mata? - repetiu o juiz.

- Ora! já lhe disse que estava tomando fresco.

- Vamos - disse o juiz.

- Confesse - disse-lhe Caboche ao ouvido.

- Mas o quê?

- O que lhe parecer; mas diga alguma coisa.

E deu segunda pancada, não menos forte do que a primeira.

Cocunás quase que se sufocou a poder de gritar.

- Oh! meu Deus, valei-me! Que quer saber. senhor?. por ordem de quem estava na mata?.

- Sim senhor.

- Estava por ordem do Sr. de Alençon.

- Escreva - disse o juiz.

- Se cometi um crime armando uma cilada ao rei de Navarra, não era eu mais do que um instrumento, obedecia ao duque a cuja casa pertencia.

O escrivão pôs-se a escrever.

Ah! tu denunciaste-me, cara amarela. - disse consigo o padecente - espera, espera! E contou as visitas de Francisco ao rei de Navarra, as conferências dele com de Mouy, a história da capa vermelha, tudo atalhando com urros, por simples reminiscência, e levando de vez em quando nova martelada.

Enfim: deu tantas informações positivas, verídicas, incontestáveis, terríveis contra o duque de Alençon; tão perfeitamente mostrou que só a dor lhas extorquia; fez tais contorções, tanto gemeu, tanto bramiu, e com tão diversos tons, que, por fim, o próprio juiz se assustou de ter de registar coisas de tanto comprometimento para um príncipe de França.

Ora ainda bem! - dizia Caboche - aqui está um fidalgo que não carece de segunda recomendação, e que dá que fazer ao escrivão. Jesus! o que não seria, se em vez de serem de couro os cunhos fossem de pau!.

Por isso perdoaram a Cocunás o último cunho dos extraordinários; mas, não contando esse, tinha levado nove, o que era mais que sobejo para lhe pôr as pernas em marmelada.

O juiz encareceu a brandura com que, por amor das suas confissões, trataram Cocunás, e retirou-se.

O padecente ficou a sós com Caboche.

- Então - disse-lhe este - como estamos, meu querido fidalgo?

- Oh! meu amigo, meu bom amigo, meu caro Caboche! - disse Cocunás. - Fica certo que te serei toda a vida agradecido pelo que me acabas de fazer.

- Deveras tem razão, Senhor; pois se soubessem o que fiz em seu favor, tomaria eu o seu lugar neste cavalete, e não me tratariam por certo como eu o tratei.

- Mas como tiveste tão engenhosa lembrança?.

- Ouça - disse Caboche, enquanto enrolava em panos ensanguentados as pernas de Cocunás -, soube que o senhor estava preso, soube que o processavam, soube que a rainha Catarina queria que morresse, adivinhei que o poriam a tormentos, e, nessa conformidade, tomei as minhas precauções.

- Arriscando-te a todos os perigos?

- O senhor - disse Caboche - foi o único fidalgo que me apertou a mão; e embora carrasco, ou talvez mesmo por ser carrasco, tenho coração e memória. Verá amanhã como faço devidamente a minha obrigação.

- Amanhã? - disse Cocunás.

- Sim, amanhã.

- Qual obrigação?

Caboche olhou estupefacto para Cocunás.

- Como! pois já não se lembra da sentença?.

- Ah, sim. a sentença - disse Cocunás -, tinha-a esquecido.

O facto é que Cocunás não a tinha esquecido mas não pensava nela.

Em que pensava era na capela, no punhal oculto no altar, em Henriqueta e na rainha, na porta da sacristia, nos dois cavalos à espera na floresta; em que pensava era na liberdade, na carreira ao ar livre, na segurança além das fronteiras de França.

- Agora - disse Caboche -, trata-se de levá-lo com jeito do cavalete para a maca. Não se esqueça de que para todos, até para os meus serventes, está com as pernas esmigalhadas e que a cada movimento deve dar um grito.

- Ai! - disse Cocunás apenas os serventes chegaram para o pé dele a maca.

- Vamos! um pouco de ânimo - disse Caboche -, se já vai gritando, o que será logo?.

- Meu caro Caboche - disse Cocunás -, não consinta, por quem é! que os seus estimáveis acólitos me toquem, porque talvez não tenham a mão tão leve.

- Larguem a maca ao pé do cavalete - disse Caboche.

Os serventes obedeceram; mestre Caboche tomou ao colo o torturado, como se fosse uma criança, e deitou-o na maca. Apesar, porém, dessas cautelas, deu Cocunás gritos ferozes.

O bom do carcereiro apareceu então com uma lanterna.

- Para a capela.

Os que levavam Cocunás puseram-se a caminho, depois de haver este apertado ainda uma vez a mão de Caboche.

A primeira tão útil lhe havia sido, que não devia mais ser avaro dessas demonstrações.

 

                     A CAPELA

O lúgubre cortejo atravessou no mais profundo silêncio as duas pontes levadiças do torreão e o grande pátio da fortaleza que vai ter à capela, em cujos vidros uma pálida luz fazia sobressair as lívidas fisionomias dos sujeitos de túnicas vermelhas.

Cocunás aspirava avidamente o ar da noite, embora esse ar estivesse carregado de chuva. Olhava para a profunda escuridão, e felicitava-se por serem propícias à sua fuga e à do seu companheiro todas essas circunstâncias.

Foi-lhe preciso toda a sua vontade, toda a sua prudência e todo o seu poder sobre si mesmo para não saltar da maca desde que, levado à capela, viu no coro, a três passos do altar, um corpo estendido envolto em grande capote branco: era La Mole.

Os dois soldados que acompanhavam a maca tinham ficado da parte de fora.

- Já que nos fazem o derradeiro favor de ainda uma vez nos reunirem - disse Cocunás com voz lânguida -, levem-me para ao pé do meu amigo.

Os que o conduziam, não tendo ordem alguma em contrário, não tiveram dúvida em aquiescer da melhor vontade a esse pedido.

La Mole estava reconcentrado e pálido; tinha a cabeça encostada ao mármore da parede; e os cabelos pretos, banhados por abundante suor, que lhe dava ao rosto a embaciada palidez do mármore, pareciam ter conservado a flexibilidade natural, depois de se haverem eriçado.

A um sinal do carcereiro, os homens retiraram-se para irem chamar o padre pedido por Cocunás. Era o sinal ajustado.

Cocunás acompanhou-os ansioso com os olhos; não era, porém, o único cujo ardente olhar estava cravado neles. Mal desapareceram, duas mulheres saíram apressadas de trás do altar e fizeram irrupção no coro com estremecimentos de alegria que agitavam o ar como o vento quente e ruidoso que precede o temporal.

Margarida precipitou-se para La Mole e tomou-o nos braços.

La Mole deu um grito terrível, um desses gritos como os havia ouvido Cocunás na sua masmorra, e que quase o haviam enlouquecido.

- Meu Deus! que é isso, La Mole! - disse Margarida recuando de terror. La Mole deu um profundo gemido, e levou as mãos aos olhos para não ver Margarida. Ainda mais espavorida ficou esta com o silêncio e com o gesto de La Mole do que com o grito que ele dera.

- Ah! - exclamou - que tens! estás todo ensanguentado!.

Cocunás, que se dirigira para o altar, que tomara o punhal e já tinha enleada nos braços Henriqueta, voltou-se.

- Levanta-te! - dizia Margarida - levanta-te, por quem és! Bem vês que é chegado o momento.

Um sorriso pavoroso de tristeza passou pelos lábios lívidos de La Mole, que pareciam não deverem mais sorrir.

- Cara rainha! - disse o mancebo - sofri os tormentos; os meus ossos estão quebrados, todo o meu corpo é uma chaga, e o movimento que ora faço para encostar os lábios na sua mão, causa-me dores piores que a morte.

Com efeito, com esforço e empalidecendo, La Mole encostou os lábios na mão da rainha.

- Os tormentos? - exclamou Cocunás - mas eu também os sofri. E não fez por ti o carrasco o que fez por mim?

E Cocunás tudo contou.

- Ah! - disse La Mole - bem o compreendo: deste-lhe a mão no dia em que o visitámos eu esqueci-me de que todos os homens são irmãos; fiz de desdenhoso. Agora Deus castiga-me pelo meu orgulho. seja feita a Sua vontade.

La Mole pôs as mãos.

Cocunás e as duas mulheres trocaram um olhar de profundo terror.

- Vamos! vamos! - disse o carcereiro, que tinha ido à porta espreitar e que voltara - não percamos tempo, meu caro Sr. Cocunás; avie-me com uma punhalada digna dum fidalgo, pois eles não podem tardar.

Margarida tinha ajoelhado aos pés de La Mole, semelhante a essas figuras de mármore curvadas para um túmulo, ao pé do simulacro daquele que nele está encerrado.

- Vamos, amigo! - disse Cocunás - ânimo! eu sou forte: levantar-te-ei e pôr-te-ei adiante de mim; partamos; bem ouviste o que nos diz o nosso carcereiro; trata-se da vida!

La Mole fez um esforço mais que humano, um esforço sublime.

- Sim, trata-se da tua vida.

E procurou levantar-se.

Aníbal tomou-o nos braços e conseguiu levantá-lo. La Mole, até então, só fizera ouvir como que um bramido abafado; no momento, porém, em que Cocunás o largou para ir ter com o carcereiro, e quando o mísero se achou unicamente sustido pelos braços das duas mulheres, dobraram-se-lhe as pernas e, apesar dos esforços de Margarida, debulhada em pranto, caiu como uma massa inerte, e o grito pavoroso que não pôde conter encheu a capela dum lúgubre eco, que por muito tempo vibrou nas suas abóbadas.

- Está vendo? - disse La Mole com um tom de angústia. - Está vendo, minha rainha? deixe-me, pois; abandone-me com um derradeiro adeus. Não falei, Margarida; o seu segredo ficou envolto no meu amor, e comigo morrerá. Adeus, minha rainha, adeus.

Margarida, quase inanimada, envolveu com os braços essa encantadora cabeça, e imprimiu nela um derradeiro ósculo.

- Tu, Aníbal - disse La Mole -, tu, que as dores pouparam, que ainda és moço e ainda podes viver, foge, foge, meu amigo: dá-me a consolação suprema de saber que estás livre!

- O tempo urge! - disse o carcereiro - vamos! depressa!

Henriqueta procurava arrastar consigo Aníbal, enquanto, ajoelhada diante de La Mole com os cabelos soltos e os olhos arrasados de lágrimas, Margarida parecia uma madalena.

- Foge, Aníbal! - tornou La Mole - foge! não dês aos nossos inimigos o divertido espectáculo da morte de dois inocentes.

Cocunás afastou Henriqueta, que o levava para a porta, e com um gesto tão solene que era até majestoso, disse:

- Minha Senhora, dê primeiro os quinhentos escudos prometidos a este homem.

- Aqui estão - disse Henriqueta.

Depois, voltando-se para La Mole e sacudindo tristemente a cabeça:

- Quanto a ti, meu bom La Mole, fazes-me injúria pensando um só momento que te possa deixar. Não jurei eu viver e morrer contigo? Mas sofres tanto, meu pobre amigo, que te perdoo.

E chegou-se resoluto para o amigo, inclinou- se para ele, e roçou-lhe a testa com os lábios. Depois, como faria uma mãe extremosa para com um filho, puxou para si com todo o cuidado a cabeça do seu amigo até a fazer descansar no seu peito.

Margarida estava reconcentrada na sua dor; tinha apanhado o punhal que Cocunás deixara cair.

La Mole, que penetrou a sua intenção, disse para ela estendendo os braços:

- Oh! minha rainha! não se esqueça de que morro para extinguir até a menor suspeita do nosso amor.

- Mas que posso eu fazer por ti - exclamou Margarida desesperada -, se nem posso morrer contigo!

- Podes fazer - disse La Mole - que a morte me seja doce, e venha dalgum modo ao meu encontro com risonho semblante.

Margarida chegou-se para ele pondo as mãos como para lhe pedir que falasse.

- Lembras-te daquela noite, Margarida, em que em troca da minha vida, que então te oferecia, e que hoje te dou, me fazias uma promessa sagrada?.

Margarida estremeceu.

- Ah! lembras-te, porque estremeces.

- Sim, sim, lembra-me - disse Margarida -, e juro-te por minha alma, Jacinto, que essa promessa há-de ser cumprida.

E estendeu a mão para o altar, como para tomar pela segunda vez a Deus por testemunha do seu juramento.

O rosto de la Mole iluminou-se como se a abóbada da capela se houvesse aberto e tivesse descido sobre ele um raio celeste.

- Aí vêm! aí vêm! - disse o carcereiro.

Margarida deu um grito e precipitou-se para La Mole; mas o receio de lhe aumentar as dores fê-la parar trémula diante dele.

Henriqueta encostou os lábios na testa de Cocunás, e disse-lhe:

- Compreendo-te, meu Aníbal, e orgulho-me de ti; sei que o teu heroísmo te mata; mas amo-te por esse heroísmo. Diante de Deus amar-te-ei sempre mais e mais do que todas as coisas; e o que Margarida jurou fazer por La Mole, sem eu saber o que é, juro fazê-lo por ti também.

E estendeu a mão a Margarida.

- Obrigado! obrigado por tão doces palavras! - disse Cocunás.

- Antes de me deixar, minha rainha - disse La Mole -, quero dever-lhe um derradeiro favor; dê-me uma prenda sua, qualquer que seja, que eu possa beijar ao subir ao cadafalso.

- Oh, sim! - exclamou Margarida - toma.

E tirou do pescoço um pequeno relicário de ouro sustentado por uma corrente do mesmo metal.

- Toma - disse -, aqui tens uma santa relíquia que desde a infância trago comigo; minha mãe pôs-ma no pescoço quando eu era ainda pequenina e ela me amava; foi dada por meu tio, o papa Clemente; toma, toma.

La Mole pegou nela e beijou-a avidamente.

- Abrem a porta! - disse o carcereiro - fujam, minhas Senhoras, fujam! As duas damas esconderam-se por detrás do altar.

No mesmo momento entrava o padre.

 

         A PRAÇA DE S. JOÃO DE GRÈVE

Eram sete horas da manhã; a multidão esperava ruidosa nas praças, nas ruas e nos cais.

Às seis horas da manhã, um carro (o mesmo em que, depois do seu duelo, tinham os dois amigos desmaiados sido conduzidos para o Louvre) saíra de Vìncenas, e vinha atravessando devagar a Rua de Santo Antão; e à sua passagem os espectadores, tão apertados que se esmagavam uns aos outros, pareciam estátuas com os olhos fitos e a boca gelada.

Com efeito, havia nesse dia um pungente espectáculo oferecido pela rainha-mãe a todo o povo de Paris.

Nesse carro de que falamos e que, saído de manhã de Vincenas, vinha percorrendo as ruas, deitados sobre uma pouca de palha, com a cabeça descoberta e vestidos de preto, encostavam-se um no outro Cocunás e La Mole, cuja cabeça excedia as travessas do carro e cujos olhares erravam vagamente dum para outro lado.

Entretanto, o povo, para penetrar com os seus ávidos olhos até ao fundo do carro, apertava-se, levantava-se sobre os frades de pedra, agarrava-se às saliências das paredes e mostrava-se satisfeito quando conseguia não deixar passar virgens dos seus olhos os dois corpos que saíam do sofrimento para irem à destruição.

Tinha-se espalhado que La Mole morria sem ter confessado um só dos factos que lhe eram imputados, enquanto, pelo contrário, se afirmava que Cocunás não tinha podido resistir à dor e havia revelado tudo.

Por isso por toda a parte gritavam:

- Vejam! vejam o corado! foi ele quem falou, quem disse tudo! é um cobarde! é a causa da morte do outro. O outro, pelo contrário, era um bravo, nada confessou!

Os dois mancebos bem ouviam, um os louvores, o outro as injúrias, que acompanhavam a sua marcha fúnebre; e enquanto La Mole apertava as mãos do seu amigo, sublime desdém aparecia no rosto do piemontês, que, do alto do carro imundo, olhava para a estúpida multidão como teria olhado para ela do alto dum carro de triunfo.

O infortúnio tinha feito a sua obra celeste: tinha enobrecido a fisionomia de Cocunás, bem como a morte ia divinizar a sua alma.

- Falta-nos muito para chegar? - perguntou La Mole. - Já não posso mais, meu amigo parece-me que vou desmaiar.

- Espera, espera, La Mole; vamos agora passar pela Rua Tizon e pela Rua do Sino Rachado; olha, olha um pouco.

- Oh! levanta-me, levanta-me! que eu veja ainda pela última vez essa casa bem-aventurada.

Cocunás estendeu a mão e tocou no ombro do carrasco; este ia sentado na frente do carro uiando o cavalo.

- Mestre, faz-nos o favor de parar um pouco em frente da Rua Tizon?

Caboche fez com a cabeça sinal de aquiescência, e ao chegar em frente da Rua Tizon parou. La Mole levantou com esforço o corpo, ajudado por Cocunás, e lançou os olhos, envidrados por uma lágrima, para essa casinha silenciosa e fechada como um túmulo; rompeu-lhe do peito um suspiro, e com voz baixa disse:

- Adeus, ó mocidade, ó amor, ó vida!

E inclinou a cabeça sobre o peito.

- Ânimo! - disse Cocunás - talvez que tornemos a achar tudo isso lá no Céu.

- Crês que sim? - perguntou La Mole.

- Creio, porque o padre mo disse, e mais ainda porque o espero. Mas não desmaies, amigo; esses miseráveis que estão olhando para nós escarnecer-nos-iam.

Caboche ouvia estas últimas palavras e, com uma das mãos dando com o chicote no cavalo, estndeu com a outra a Cocunás uma esponja impregnada em tão violento revulsivo, que La Mole, depois de o haver respirado e esfregado com ele as fontes, achou-se reanimado.

- Ah! agora respiro.

E beijou o relicário que tinha suspenso ao pescoço por uma corrente de ouro. Chegando à esquina do cais, e torneando o edifício encantador construído por Henrique II, via-se o cadafalso como uma plataforma nua e ensanguentada; essa plataforma dominava todas as cabeças.

- Amigo - disse La Mole -, quisera ser o primeiro a morrer.

Cocunás tocou outra vez com a mão no ombro do carrasco.

- Que é, meu fidalgo? - perguntou este, voltando-se imediatamente.

- Camarada! - disse Cocunás - desejas obsequiar-me, não é verdade? Ao menos assim mo disseste.

- Disse e torno a dizê-lo.

- Pois olha: o meu amigo, tendo sofrido mais do que eu, tem agora menos forças.

- E que deseja ele?

- Diz-me que muito o incomodaria o ver-me morrer; além de que, se eu morresse primeiro, não teria ele quem o levasse para o cadafalso.

- Bem, bem - disse Caboche, enxugando uma lágrima com as costas da mão -, sossegue, farei o que deseja.

- E dum só golpe, sim? - disse em voz baixa o piemontês.

- Dum só.

- Bem. se tiver de dar segundo, seja em mim.

O carro parou, tinham chegado. Cocunás pôs o chapéu na cabeça.

Um rumor igual ao das ondas do mar chegou aos ouvidos de La Mole. Quis levantar-se; faltaram-lhe, porém, as forças; e foi preciso que o segurassem por baixo dos braços Caboche e Cocunás.

A praça estava cheia de cabeças; os degraus da Casa da Câmara pareciam um anfiteatro povoado de espectadores. Cada janela dava passagem a caras animadas, cujos olhares como que chamejavam.

Quando viram o belo mancebo, que não podia já suster-se nas pernas esmigalhadas, fazer um supremo esforço para ir por si mesmo para o cadafalso, levantou-se um clamor imenso como um grito de universal desolação: os homens bramiam, as mulheres soltavam profundos gemidos.

- Era um dos mais delicados da corte - diziam os homens -, não devia morrer na praça de S. João de Grève, mas sim no Pré-aux-Clercs.

- Como é formoso! como está pálido! - diziam as mulheres. - Aquele é o que não falou.

- Amigo - disse La Mole -, já não me posso suster, segura-me.

- Espera - disse Cocunás.

E fez um sinal ao carrasco, que se desviou; depois, abaixando- se, tomou La Mole nos braços como se fosse uma criança, subiu sem vacilar, carregado com esse peso, a escada da plataforma, e nela depositou o seu amigo, no meio dos aplausos frenéticos da multidão.

Cocunás tirou o chapéu da cabeça e cumprimentou o povo.

- Olha em torno de nós - disse La Mole -, não as vês em parte nenhuma?

Cocunás percorreu lentamente com os olhos o espaço que os cercava; chegando a um ponto,

parou, e, sem desviar os olhos, estendeu a mão e tocou no ombro do seu amigo.

- Olha! - disse-lhe ele - olha para a janela daquela torrezinha.

E com a outra mão mostrava a La Mole o pequeno monumento que ainda hoje existe entre

a Rua de Vannerie e as Ruas do Mouton, uma ruína dos séculos passados.

Duas mulheres vestidas de preto estavam encostadas uma à outra, não à janela, mas um pouco para trás.

- Ah! - disse La Mole - só receava uma coisa, era morrer sem tornar a vê-la; já a vi, posso morrer.

E com os olhos avidamente cravados na janela, levou à boca o relicário e cobriu-o de beijos.

Cocunás saudava as duas mulheres com toda a graça que teria tido numa sala.

Em resposta a este sinal, agitaram elas os seus lenços inundados de lágrimas.

Caboche tocou pela sua vez no ombro de Cocunás, e fez um sinal muito expressivo.

- Sim, sim - disse o piemontês.

Então, voltando-se para La Mole:

- Abracemo-nos pela última vez; não te há-de isso ser dificil, tu que és tão valente.

- Ah! - disse La Mole - não é grande merecimento o morrer com valor, mas sofro tanto!...

O padre aproximou-se e apresentou um crucifixo a La Mole; este, porém, mostrou-lhe, sorrindo, o relicário que tinha na mão.

- Não obsta - disse o padre -, peça sempre força a Este que sofreu o que vai sofrer agora.

La Mole beijou os pés de Cristo.

- Recomende-me - disse ele - às orações das irmãs da bendita Virgem Santa.

- Apressa-te, La Mole! - disse Cocunás. - Fazes-me tanto mal que me sinto ir enfraquecendo.

- Estou pronto - disse La Mole.

- Pode ter a sua cabeça bem firme? - perguntou Caboche, preparando a espada por detrás

de La Mole ajoelhado.

- Espero que sim - disse este.

- Então tudo irá bem.

- Mas não se esqueça - disse La Mole - do que lhe pedi; esse relicário abrir-lhe-á as portas.

- Fique descansado: mas veja se pode estar por um pouco com o pescoço firme.

La Mole entesou o pescoço e voltando os olhos para a torrezinha:

- Adeus, Margarida, sê aben...

Não acabou: com um golpe de espada, rápido e chamejante, Caboche cortou-lhe a cabeça,

que foi rolar aos pés de Cocunás.

O corpo estendeu-se devagar, como se se deitasse.

Retumbou um grito imenso, formado de mil gritos, e no meio de todas essas vozes de mulher julgou Cocunás ter percebido um som mais do que os outros doloroso e profundo.

- Obrigado, meu amigo, obrigado! - disse Cocunás, que pela terceira vez apresentou a mão ao carrasco.

- Meu filho - disse-lhe o padre -, nada tens que confiar a Deus?

- Realmente não, meu padre - disse Cocunás -, tudo quanto tinha que lhe dizer já esta noite o disse.

E voltando-se para Caboche:

- Vamos, carrasco, meu derradeiro amigo: mais um serviço.

E antes de se ajoelhar, lançou pelo povo um olhar tão sereno que um murmúrio de admiração veio afagar o seu ouvido e fazer sorrir o seu orgulho. Então, apertando a cabeça do seu amigo e depositando um ósculo nos seus lábios lívidos, lançou um derradeiro olhar para a torrezinha e, ajoelhando-se sem largar das mãos a cabeça do seu dilecto La Mole, disse:

- Agora eu.

Mal acabara e já Caboche lhe tinha feito voar a cabeça. Então, um tremor convulso se apoderou do digno homem.

Era já tempo disto acabar! - murmurou ele - infelizes mancebos!

E tirando a custo das mãos contraídas de La Mole o relicário de ouro, cobriu com o seu capote os tristes despojos que o carro devia trazer à sua casa.

O espectáculo estava acabado; o povo retirou-se.

 

           A TORRE DO PELOURINHO

Acabava a noite de descer sobre a cidade, ainda agitada por este suplício, cujas particularidades iam de boca em boca entristecer em cada casa a hora alegre da ceia da família.

Ao contrário da cidade silenciosa e lúgubre, o Louvre estava ruidoso, alegre e iluminado. Havia grande festa, recomendada por Carlos IX, festa que ele determinara para a noite, na mesma ocasião em que determinara o suplício para de manhã.

Desde a véspera à tarde, tinha a rainha de Navarra recebido ordem de assistir a essa festa, e, esperando que La Mole e Cocunás seriam salvos à noite, convencida de que todas as medidas estavam para isso bem tomadas, tinha respondido ao irmão que se conformaria com o seu desejo.

Mas desde que viu perdidas todas as suas esperanças pela cena da capela; desde que, num derradeiro movimento de piedade por esse amor, o maior e o mais profundo que sentira na sua vida havia assistido à execução, tinha consigo mesmo assentado que nem súplicas nem ameaças a poderiam obrigar a assistir a um divertimento no Louvre no mesmo dia em que tivera tão lúgubre espectáculo na Praça de Grève.

O rei Carlos IX tinha dado nesse dia outra prova duma força de vontade que ninguém talvez tenha tido em grau tão eminente. De cama havia quinze dias, fraco como um moribundo, lívido como um cadáver, levantou-se pelas cinco horas e vestiu as suas mais belas roupas. É verdade que enquanto se vestiu desmaiou três vezes.

Pelas oito horas, informou-se do que era feito de sua irmã e perguntou se a tinham visto. Ninguém respondeu, pois a rainha havia-se recolhido aos seus aposentos pelas onze horas, e proibiu que dessem entrada a quem quer que fosse.

Mas não havia para Carlos porta fechada. Apoiando-se no braço do Sr. de Nancey dirigiu-se para os aposentos da rainha de Navarra, e entrou de súbito pela porta do corredor secreto.

Bem que esperasse um triste espectáculo, para o qual preparara com antecedência o seu coração, o que viu era ainda mais deplorável do que o que havia imaginado.

Margarida, semimorta, deitada num canapé, com a cabeça afundada em almofadas, não estava chorando nem rezando, estava arquejante como uma agonizante.

No outro canto do quarto, Henriqueta de Nevers, essa mulher intrépida, jazia sem sentidos no chão em cima do tapete. Voltando da Praça de Grève com Margarida, tinham-lhe faltado as forças, e a pobre Gillonne ia duma para a outra, sem se atrever a dar-lhes uma palavra de consolação.

Nas crises que acompanham as grandes catástrofes, fica-se avarento de dor como dum tesouro, e considera-se como inimigo quem quer que pretenda distrair dela a mínima parte.

Carlos IX empurrou a porta e, deixando Nancey no corredor, entrou pálido e trémulo.

Nenhuma das duas mulheres o tinha visto; somente Gillonne, que então socorria Henriqueta, se levantou sobre um joelho, e toda assustada olhou para o rei.

O rei fez um gesto com a mão; ela levantou- se de todo, inclinou-se e saiu. Então Carlos dirigiu-se para Margarida, olhou para ela um instante sem falar, e depois, com um tom de que se teria julgado incapaz essa voz áspera, disse:

- Margot, minha irmã!.

A dama estremeceu e levantou o corpo.

- Vossa Majestade aqui?

- Vamos, minha irmã, coragem!

Margarida levantou os olhos para o Céu.

- Sim, bem sei. - disse Carlos - mas ouve-me. A rainha de Navarra fez um gesto de quem escutava.

- Prometes-me vir ao baile? - disse o rei.

- Eu? - exclamou Margarida.

- Sim; e, conforme a tua promessa, esperam- te. Tanto mais que, se não viesses, causaria espanto a tua ausência.

- Desculpe-me, meu irmão - disse Margarida -, bem vê que estou sofrendo muito.

- Faz um esforço para te venceres.

Margarida pareceu por um momento querer reunir toda a sua coragem; depois, de repente, cedendo e deixando cair a cabeça nas almofadas, disse:

- Não posso ir.

Carlos pegou-lhe na mão, sentou-se no canapé e disse-lhe:

- Bem sei, Margot, que acabas de perder um amigo. Olha, porém, para mim: não tenho eu perdido todos os meus amigos, e até minha mãe?. Tu sempre pudeste chorar em liberdade, como choras agora, e eu, na hora das minhas maiores dores, sempre fui obrigado a sorrir. Tu sofres; pois olha bem para mim: eu estou a morrer! Margot, vamos! coragem! Suplico-te, minha irmã, em nome da nossa glória!. Carreguemos, como uma cruz de angústias, o renome da nossa casa; levemo- la como o Senhor até ao Calvário; e, se no caminho, como Ele, cairmos, ergamo-nos animosos e resignados como Ele.

- Oh! meu Deus! meu Deus! - exclamou Margarida.

- Bem sei - disse Carlos, respondendo ao seu pensamento -, bem sei que o sacrificio é doloroso, minha irmã; mas cada um tem de fazer o seu: uns, o da honra; outros, o da vida. Julgas que com os meus vinte e cinco anos e o mais belo trono do mundo não lastimo ter de morrer? Pois olha para mim: a minha cor, os meus lábios, os meus olhos, são dum moribundo; mas o meu sorriso. o meu sorriso não faz acreditar que tenho esperança? E, entretanto, daqui a oito dias, a um mês, quando muito, tu hás-de chorar por mim, minha irmã, como estás chorando pelo que hoje morreu.

- Meu irmão!. - exclamou Margot, passando os braços em torno do pescoço de Carlos.

- Vamos, veste-te, cara Margarida; disfarça a tua palidez e aparece no baile. Acabo de dar ordem para te trazerem novos adereços e jóias dignas da tua beleza.

- Oh! vestidos, jóias, brilhantes! Que me importa tudo isso agora!

- A vida é longa, Margarida - disse Carlos sorrindo -, ao menos para ti.

- Nunca! nunca!

- Minha irmã, lembra-te duma coisa: às vezes, sufocando e dissimulando a dor é que mais se honram os mortos.

- Pois bem, Senhor - disse Margarida estremecendo -, irei.

Uma lágrima, de pronto bebida pela árida pálpebra, humedeceu os olhos de Carlos.

Inclinou-se para a irmã e deu-lhe um beijo na testa; parou depois diante de Henriqueta, que nem o vira nem ouvira, e disse:

- Coitada!

E retirou-se silencioso.

Depois de o rei sair, vieram alguns pajens trazendo estojos e cofres.

Os pajens saíram, Gillonne ficou só.

- Prepara-me todo o necessário para me vestir, Gillonne - disse Margarida. A dama olhou para a ama com espanto.

- Sim - disse Margarida com um tom cuja amargura seria impossível explicar -, sim: visto-me; vou ao baile. esperam-me lá. Anda, apressa-te! o dia será completo: de manhã festa na Grève, de noite, festa no Louvre.

- E a Senhora Duquesa? - disse Gillonne.

- Oh! ela é feliz! pode ficar aqui; pode sofrer à sua vontade. Não é filha de rei, mulher de rei, irmã de rei; não é rainha! Ajuda-me a vestir, Gillonne.

A dama obedeceu. O vestido era esplêndido, os enfeites magníficos: nunca Margarida ficara mais bela.

Viu-se a um espelho.

- Meu irmão tem bastante razão - disse ela -, é coisa miserável a criatura humana.

Neste momento entrou Gillonne.

- Minha Senhora, procura-a um homem.

- A mim?

- Sim, à senhora.

- Quem é?

- Não sei; mas o seu aspecto é terrível, e a sua vista bastou para que eu estremecesse.

- Pergunta-lhe como se chama - disse Margarida empalidecendo.

Gillonne saiu, e daí a alguns minutos voltou.

- Não quis dizer o nome, minha Senhora; pediu-me, porém, que lhe entregasse isto.

E Gillonne apresentou a Margarida o relicário que na véspera à noite havia dado a La Mole.

- Oh! manda entrar - disse com vivacidade a rainha.

E ficou mais pálida e mais fria do que estava.

Um passo pesado abalou o soalho. O eco, sem dúvida indignado de repetir semelhante bulha, gemeu, e um homem apareceu à porta.

- Quem é? - disse a rainha.

- Aquele que Vossa Majestade uma vez encontrou ao pé de Montfaucon, e que trouxe para o Louvre no seu carro dois fidalgos feridos.

- Sim, sim, já me lembro; é mestre Caboche.

- Carrasco de Paris, minha Senhora.

Foram as únicas palavras, de quantas havia uma hora se proferiam ao pé dela, que Henriqueta ouviu. Tirou as mãos do rosto pálido, e fitou no carrasco os seus olhos de esmeralda, que pareciam despedir uma dupla chama.

- E a que vem? - perguntou Margarida a tremer.

- Recordar-lhe a promessa feita ao mais moço dos dois fidalgos, ao que me incumbiu de lhe entregar esse relicário. Está lembrada, minha Senhora?

- Oh! sim, estou! - exclamou a rainha - e jamais nenhum inocente condenado terá mais nobre satisfação; onde está ela?

- Em minha casa, com o corpo.

- Em sua casa? Porque não a trouxe?

- Podiam vedar-me a entrada do Louvre, abrir-me o capote. E que teriam dito, se debaixo desse capote vissem uma cabeça?.

- Bem; guarde-a em sua casa, irei buscá-la amanhã.

- Amanhã, minha Senhora? amanhã, talvez já seja tarde.

- Porquê?

- Porque a rainha-mãe, para experiências mágicas, mandou-me pôr de reserva as cabeças dos dois primeiros condenados que eu degolasse.

- Oh! profanação! as cabeças dos nossos amantes! Henriqueta! - disse Margarida, correndo para a sua amiga, a quem já achou em pé como se uma mola a houvesse erguido. - Henriqueta, meu anjo! Ouves o que diz esse homem!

- Ouço.

- E que havemos de fazer?

- Precisamos de ir já com ele.

E dando esse grito de dor com que os grandes infortúnios se ligam à vida, exclamou:

- Ah! e eu que estava tão sossegada! quase que parecia morta!.

A este tempo, Margarida punha nos ombros, que tinha descobertos, um manto de veludo.

- Vem! vem! - disse ela - vamos vê-los ainda uma vez.

Margarida mandou fechar as portas, e que trouxessem uma liteira à portinha secreta; depois, tomando Henriqueta pelo braço, desceu pela passagem secreta, fazendo sinal a Caboche que as acompanhasse.

À porta da rua estava a liteira; dentro da grade tinha ficado o criado de Caboche com uma lanterna.

Os condutores de Margarida eram homens de confiança, mudos e surdos, mais seguros do que se fossem animais de carga.

A liteira caminhou cerca de dez minutos, precedida por mestre Caboche e pelo criado que levava a lanterna; depois parou.

O carrasco abriu a portinhola, e o criado foi andando adiante.

Margarida desceu e ajudou a Sr a de Nevers a descer também. Nessa grande aflição, que a ambos atormentava, via-se que a duquesa era a mais forte por ser dotada de compleição nervosa.

A torre do pelourinho erguia-se diante das duas mulheres como um gigante carrancudo e informe, despedindo a sua luz vermelha por duas sarabatanas que lhe chamejavam na cúpula.

O criado tornou a aparecer na porta.

- Pode entrar, minha Senhora - disse Caboche -, todos na torre já estão dormindo. Neste momento apagou-se a luz das duas sarabatanas.

As duas mulheres, bem juntas uma à outra, passaram por uma pequena porta em ogiva e pisaram um lajedo húmido e áspero. Viram uma luz no fundo do corredor, e guiadas pelo dono dessa hedionda morada, dirigiram-se para ela. A porta da entrada fechou-se.

Caboche, com uma tocha de cera na mão, conduziu-as para uma sala baixa e enfumaçada. No meio dessa sala havia uma mesa preparada com os restos duma ceia e três talheres; esses talheres eram, sem dúvida, para o carrasco, para a mulher dele e para o seu principal ajudante.

No lugar mais saliente estava pregado à parede um pergaminho selado com o selo do rei: era o diploma do carrasco.

A um canto estava uma grande espada de cabo comprido. Era a espada chamejante da justiça. Aqui e ali viam-se grosseiras estampas de santos martirizados por toda a casta de suplícios. Ao chegar ali, Caboche inclinou-se profundamente e disse:

- Vossa Majestade desculpar-me-á, se me atrevi a penetrar no Louvre e a trazê-la aqui; era, porém, a derradeira vontade do fidalgo, e tive de a cumprir.

- Fez bem, mestre, fez bem - disse Margarida -, e aqui tem, para recompensar o seu zelo.

Caboche olhou tristemente para a bolsa cheia de ouro que Margarida acabava de largar em cima da mesa.

- Ouro! sempre ouro! - disse a meia voz. - Ah, minha Senhora! que me não seja dado a mim mesmo remir a preço de ouro o sangue que hoje tive que derramar!

- Mestre - disse Margarida com dolorosa hesitação, e olhando em torno de si - teremos ainda de ir a outro lugar? Aqui não vejo.

- Não, minha Senhora, não; estão aqui mesmo; mas é um triste espectáculo, e eu poder-lho-ia poupar, trazendo-lhe aqui coberto com uma capa o que vem buscar.

Margarida e Henriqueta olharam ao mesmo tempo uma para a outra.

- Não - disse Margarida, que tinha lido no olhar da sua amiga a mesma resolução que acabava de tomar -, não; mostre-nos o caminho e acompanhá-lo-emos.

Caboche pegou na tocha e abriu uma porta de carvalho que dava para uma escada dalguns degraus que descia para um subterrâneo. No mesmo instante passou uma corrente de ar que fez voar algumas faíscas da tocha e levou às princesas o cheiro nauseabundo de bafo e de sangue.

Henriqueta encostou-se, branca como uma estátua de alabastro, ao braço da sua amiga, que parecia mais firme: porém, no primeiro degrau, ela própria vacilou.

- Oh! não posso.

- Quem ama, Henriqueta - tornou a rainha -, deve amar até na morte. Era um espectáculo horrível, e ao mesmo tempo pungente, o que representavam essas duas mulheres, resplandecentes de mocidade, de beleza, de elegância, curvando-se sob a imunda e ignóbil abóbada, a mais fraca encostada ao braço da mais forte, a mais forte ao braço do carrasco.

Chegaram ao último degrau.

No fundo da cavidade estavam estendidas duas formas humanas cobertas com um pano de sarja preta.

Caboche levantou uma ponta desse véu, chegou a luz, e disse:

- Olhe, Senhora Rainha.

Os dois mancebos estavam, com os seus trajos pretos, deitados um ao pé do outro, com a pavorosa simetria da morte. As suas cabeças, inclinadas e chegadas aos troncos, pareciam somente separadas do pescoço por um círculo vermelho. A morte não lhes havia desunido as mãos, pois, ou por casualidade, ou por piedosa atenção do carrasco, a mão direita de La Mole descansava na esquerda de Cocunás.

Margarida ajoelhou-se ao pé do amante, e com as mãos deslumbrantes de anéis levantou essa cabeça que tanto havia amado.

Quanto à duquesa de Nevers, encostada à parede, não podia tirar os olhos do rosto de Cocunás, em que tantas vezes procurara amor e alegria.

- La Mole! querido La Mole!. - exclamou Margarida.

- Aníbal, Aníbal. tão soberbo, tão gentil, tão valente, não me respondes. - exclamou a duquesa de Nevers.

E uma torrente de lágrimas rompeu-lhe dos olhos.

Essa mulher tão desdenhosa, tão intrépida, tão insolente na felicidade; essa mulher, que levava o cepticismo até à dúvida suprema, a paixão até à crueldade; essa mulher nunca havia pensado na morte.

Margarida deu-lhe o exemplo.

Fechou num saco bordado de pérolas e perfumado com as mais delicadas essências a cabeça de La Mole, ainda mais bela quando se aproximava do ouro e do veludo, e à qual uma particular preparação, empregada nessa época nos embalsamamentos reais, devia conservar a beleza.

Henriqueta aproximou-se também, e envolveu a cabeça de Cocunás numa ponta da sua manta.

E ambas, vergadas pela dor, mais do que pelo peso, subiram a escada, lançando um derradeiro olhar para os restos que deixavam à mercê do carrasco nesse triste asilo comum aos criminosos.

- Nada receie, minha Senhora - disse Caboche, que compreendeu esse olhar -, os fidalgos hão-de ser enterrados santamente, asseguro-lhe.

- E mandarás dizer missas por eles - disse Henriqueta -, aqui tens com que pagar.

E tirou do pescoço e deu ao algoz um magnífico colar de rubis.

Voltaram ao Louvre como haviam saído. Na grade a rainha deu-se a conhecer; à porta da sua escada particular desceu da liteira, entrou nos seus aposentos e depositou a triste relíquia no gabinete contíguo à sua câmara de dormir, desde então destinado a ser um oratório, deixou Henri queta de guarda ao seu quarto e, mais bela do que nunca, entrou por volta das dez horas da noite na grande sala do baile, na mesma em que vimos abrir-se, dois anos e meio antes, o primeiro capítulo da nossa história.

Todos os olhos se dirigiram para ela; e ela suportou esse olhar universal com um ar soberbo e quase alegre: havia religiosamente cumprido a última vontade do amante.

Ao vê-la Carlos rompeu vacilante a onda dourada que o cercava.

- Minha irmã - disse em voz alta -, agradeço-lhe.

E depois, em voz baixa:

- Cuidado! tens no braço uma nódoa de sangue.

- Que mal faz, meu Senhor - disse Margarida -, se tenho o sorriso nos lábios?.

 

                 O SUOR DE SANGUE

Alguns dias depois da terrível cena que acabámos de contar, isto é, em 30 de Maio de 1574, a corte estava em Vincenas; e nesse dia ouviu-se de repente uma grande bulha no quarto do rei, o qual, tendo recaído mais gravemente do que nunca no meio do baile que havia querido dar no mesmo dia da morte dos dois mancebos, por ordem dos médicos tinha vindo buscar ao campo um ar mais puro.

Eram oito horas da manhã: um grupo de cortesãos corria pressuroso para a antecâmara, quando de repente se ouviu um grito, e na soleira do quarto apareceu a ama de Carlos com os olhos arrasados de pranto e bradando com voz desesperada:

- Acudam! acudam ao rei!

- Então? agravou-se a enfermidade de Sua Majestade? - perguntou o capitão de Nancey, a quem o rei, como vimos, havia dispensado de estar às ordens de Catarina para o ter ao seu serviço.

- Oh! que quantidade de sangue! que quantidade de sangue!. - dizia a ama. - Vão chamar os médicos! os médicos!

Masille e Ambrósio Paré sucediam-se de contínuo junto do augusto enfermo; e Ambrósio Paré, que estava de serviço, tendo visto o rei adormecer, havia aproveitado o tempo para ir descansar alguns minutos.

Entretanto apareceu um suor abundante por todo o corpo do rei e como padecia duma fraqueza nos vasos capilares, e essa fraqueza produzia uma hemorragia da pele tinha esse suor sanguinolento aterrado a ama, que não podia acostumar-se a esse fenómeno singular, e que sendo protestante, como o leitor sabe, estava-lhe sempre a dizer que era o sangue huguenote derramado no dia de S. Bartolomeu que chamava o seu sangue.

Correram em todas as direcções; o doutor não podia estar longe, e por força o haviam de encontrar. A antecâmara ficou, pois, vazia, desejando cada qual mostrar o seu zelo e trazer o médico.

Abriu-se então uma porta e viu-se aparecer Catarina. Atravessou ela rapidamente a antecâmara, e com vivacidade entrou no quarto do filho.

Carlos estava prostrado na cama, com os olhos amortecidos, o peito arfando, de todo o corpo lhe saía um suor avermelhado, e a mão que tinha estendida caía-lhe para fora da cama; na cabeça de cada dedo tinha pendente um rubi líquido.

Era um espectáculo horrível.

Entretanto, com a bulha dos passos da mãe, e como se os reconhecesse, Carlos pôs-se direito.

- Desculpe, minha Senhora - disse ele encarando a mãe -, quisera morrer em paz.

- Morrer, meu filho? - disse Catarina -, por amor duma crise passageira dessa triste enfermidade? Pois quer assim perder a esperança?.

- Digo-lhe minha Senhora, que sinto que a minha alma vai partir; digo-lhe que vem aí a morte, morte de todos os diabos! Sei o que sinto, sei o que digo.

- Senhor - disse a rainha -, a imaginação é a sua pior doença; depois do bem merecido suplício desses dois feiticeiros, desses dois assassinos, La Mole e Cocunás, os seus sofrimentos deviam ter diminuído. Só continua o mal moral; e se pudéssemos conversar somente dez minutos, provar-lho-ia.

- Ama - disse Carlos -, vigia bem que ninguém entre; a rainha Catarina quer conversar com o seu querido filho Carlos IX.

A ama obedeceu.

- É certo - continuou Carlos - que esta entrevista devia ter lugar por força alguma vez; pois antes hoje que amanhã. Além de que talvez amanhã já fosse tarde. Mas outra pessoa deve assistir à nossa conversação.

- Porquê?

- Porque, torno a dizer-lhe, a morte está a caminho - disse Carlos com assombrosa solenidade -, porque, dum momento para o outro, entrará ela neste quarto, pálida e muda como a senhora, e sem ser anunciada. É pois tempo (já pus esta noite em ordem os meus negócios) de pôr esta manhã em ordem os negócios do reino.

- E que pessoa é que deseja ver? - perguntou Catarina.

- Meu irmão; mande-o chamar, minha Senhora.

- Senhor - disse a rainha -, vejo, com prazer, que as denúncias, ditadas pelo ódio, mais do que arrancadas pela dor, se apagam do seu espírito e vão em breve apagar-se do seu coração. Ama! ama! - exclamou a rainha.

A ama que estava de vigia à porta, abriu-a.

- Ama - disse Catarina -, por ordem de meu filho, quando o Sr. de Nancey vier, dir-lhe-á que vá chamar o Senhor Duque de Alençon.

Carlos fez um sinal que deteve a velha, prestes a obedecer.

- Eu, minha Senhora, disse meu irmão - tornou Carlos.

Os olhos de Catarina dilataram-se como os do tigre que vai enfurecer- se, mas Carlos levantou imperativamente a mão.

- Quero falar com meu irmão Henrique, pois Henrique é o meu único irmão; não o que está reinando na Polónia, mas o que está aí preso. Henrique receberá as minhas últimas vontades.

- E eu? - exclamou a florentina com uma insólita audácia, em face da terrível vontade do filho, pois o ódio que tinha ao Bearnês fazia-a sair da sua habitual dissimulação. - Se está tão próximo do túmulo como diz, julga que cederei a alguém, e mais ainda a um estranho, o meu direito de lhe assistir na sua última hora, o meu direito de rainha, o meu direito de mãe?

- Minha Senhora - disse Carlos -, ainda sou rei: ainda mando, minha Senhora; digo-lhe que quero falar com meu irmão Henrique, e não manda vir o meu capitão das guardas? Com mil diabos! tenho força bastante para o ir eu próprio buscar!

E fez, para descer da cama, um movimento que lhe descobriu o corpo, semelhante ao de Jesus Cristo depois de açoitado.

- Meu Senhor - disse Catarina, detendo-o -, Vossa Majestade injuria- nos a todos; esquece as afrontas feitas à nossa família, repudia o nosso sangue; só um príncipe de França se deve ajoelhar ao pé do leito de morte dum rei de França. Quanto a mim, pelas leis da natureza e da etiqueta, tenho aqui designado o meu lugar; aqui fico, pois.

- E com que título, minha Senhora? - perguntou Carlos.

- Com o de mãe.

- Já não é minha mãe, minha Senhora, bem como já não é meu irmão o duque de Alençon.

- Está delirando, Senhor - disse Catarina -, desde quando a que dá a luz deixa de ser mãe do que a recebeu?

- Desde que essa mãe desumana tira o que deu - tornou Carlos, enxugando a espuma ensanguentada que lhe subia aos lábios.

- Que quer dizer, Carlos? Não o entendo - murmurou Catarina, fitando no filho os olhos dilatados pelo espanto.

- Há-de entender-me, minha Senhora - disse Carlos, tirando debaixo do travesseiro uma chavinha de prata. - Tome esta chave, minha Senhora, e abra o meu cofre de viagem; contém alguns papéis que falarão por mim.

E Carlos estendeu a mão para um cofre magnificamente esculpido fechado por uma fechadura de prata como a chave que o abria, e que estava no lugar mais saliente da câmara.

Dominada pela posição suprema que Carlos tomava sobre ela, Catarina obedeceu; dirigiu-se devagar para o cofre, abriu-o, e olhando para o interior dele, recuou de repente, como se tivesse visto diante de si alguma serpente adormecida.

- E então? - disse Carlos, que não perdia de vista a mãe - que há nesse cofre que a assusta, minha Senhora?

- Nada - disse Catarina.

- Então meta a mão, minha Senhora, e tire um livro; há-de estar aí dentro um livro, não está?

- acrescentou o rei com um sorriso lívido, mais terrível nele do que nunca foi em outro a ameaça.

- Está - balbuciou Catarina.

- Um livro de montaria?

- Exactamente.

- Tire-o, e traga-mo.

Catarina, apesar da sua segurança, empalideceu e tremeu toda ao meter a mão dentro do cofre. Grande fatalidade! disse a meia voz pegando no livro.

- Bem - disse Carlos -, ouça agora. Esse livro de montaria. Era eu um louco. mais do que tudo gostava de caçar. li esse livro de montaria. li-o de mais. Entende agora, minha Senhora?.

Catarina deu um gemido sufocado.

- Foi uma fraqueza, minha Senhora. queime-o; não devem ser sabidas as fraquezas dos reis! Catarina aproximou-se da lareira ardente, deixou cair o livro no meio das chamas e ficou em pé, imóvel e muda, olhando atenta para a chama azulada que devorava as folhas envenenadas.

À medida que o livro ia ardendo, um forte cheiro a alho espalhava-se pela câmara. Em breve estava queimado o livro.

- E agora, minha Senhora, chame meu irmão - disse Carlos com irresistível majestade. Catarina, vencida pelo pasmo, esmagada pela múltiplice comoção que a sua profunda sagacidade não podia analisar, e que a sua força, quase sobre-humana, não podia combater, deu um passo para diante e quis falar.

A mãe tinha um remorso, a rainha um terror, a envenenadora um acesso de ódio. Este último dominou todos os outros.

- Maldito seja ele! - exclamou saindo do quarto. - É ele que triunfa, ele que toca a meta; sim: maldito, maldito seja!.

- Ouve? é a meu irmão, a meu irmão Henrique - bradou Carlos, perseguindo com a voz a mãe -, é a meu irmão Henrique que quero falar, já, já, acerca da regência do reino.

Quase no mesmo instante, mestre Ambrósio Paré entrou pela porta oposta à que acabava de dar passagem a Catarina e, parando no limiar para aspirar a atmosfera corrupta pelo cheiro de alhos, disse:

- Quem foi que queimou arsénio?

- Eu - respondeu Carlos.

 

             A PLATAFORMA DO TORREÃO DE VINCENAS

Entretanto, Henrique de Navarra passeava só e pensativo pelo terraço do torreão; sabia que estava a corte na fortaleza que via a cem passos de distância, e por entre as muralhas o seu penetrante olhar adivinhava que o rei Carlos estava moribundo.

Fazia um tempo de azul e ouro; um brilhante raio de Sol dardejava largamente nas longínquas planícies, enquanto com um ouro fluido banhava o cume das árvores da floresta, vaidosas do viço das suas primeiras folhas. Até as escuras pedras do torreão pareciam embeber-se do suave calor do céu, e florezinhas da Primavera, sedutoras pelo sopro do vento do leste nas frestas das muralhas, abriam os seus discos de veludo vermelho e amarelo aos beijos da tépida brisa.

Mas o olhar de Henrique não se fitava nem nessas verdejantes planícies, nem nesses cumes dourados; o seu olhar atravessava os espaços intermediários e ia fixar-se além, ardente de ambição, nessa capital de França destinada a ser um dia a capital do mundo.

Paris - dizia consigo o rei de Navarra - ali está Paris, isto é, a alegria, o triunfo, a glória, o poder e a ventura! Paris, onde está o Louvre, onde está o trono! E ver eu que só uma coisa me separa deste tão desejado Paris: as muralhas que me cercam, e que encerram coxnigo a minha inimiga!

E correndo a vista de Paris a Vincenas, viu à esquerda, num vale coberto por amendoeiras em flor, um homem em cuja couraça reflectia obstinado um raio de Sol, ponto inflamado que tremia a cada movimento do homem.

Estava montado num ginete cheio de ardor, e segurava as rédeas doutro cavalo não menos impaciente.

O rei de Navarra fitou os olhos no cavaleiro, viu que tirava a espada da bainha e que, depois de atar na ponta dela o lenço, o agitava em forma de sinal.

No mesmo instante, na colina fronteira, repetiu-se o mesmo sinal; depois, em redor da fortaleza, tremulou como uma cinta de lenços.

Era de Mouy com os seus huguenotes, que, sabendo que estava o rei moribundo, e receando alguma tentativa contra Henrique, estava pronto a defender ou a atacar.

Henrique fitou outra vez os olhos no cavaleiro que vira primeiro, curvou-se fora da balaustrada, estendeu as mãos sobre os olhos e, quebrando assim os raios do Sol que o deslumbravam, reconheceu o jovem huguenote.

- De Mouy! - exclamou, como se ele o pudesse ouvir.

E com a alegria de se ver assim rodeado de amigos, tirou ele também o chapéu e fez tremular a sua faixa.

Todas as bandeirolas brancas se agitaram da novo com uma vivacidade que dava testemunho de muita alegria.

Ai! esperam-me - disse consigo - e eu não posso ir ter com eles!. Porque o não fiz, quando talvez o pudesse?. Agora vejo que me demorei de mais.

E fez um gesto de desesperação, a que de Mouy respondeu com um sinal que queria dizer: esperarei.

Nesse momento Henrique ouviu passos pela escada de pedra e retirou-se imediatamente. Compreenderam os huguenotes a causa dessa retirada; as espadas entraram nas bainhas, e os lenços desapareceram.

Henrique viu aparecer no topo da escada uma mulher, cuja respiração anelante denunciava a rapidez com que viera, e reconheceu, não sem esse secreto terror que sempre sentia ao vê-la, que era Catarina de Médicis.

Atrás dela vinham dois guardas, que pararam no alto da escada.

Oh! oh! - disse consigo Henrique - deve haver grande novidade para que a rainha-mãe venha assim procurar-me à plataforma do torreão de Vincenas.

Catarina sentou-se num banco de pedra encostado às ameias para tomar fôlego. Henrique chegou-se a ela, e com o seu mais gracioso sorriso disse:

- Será a mim que a minha boa mãe procura?

- Sim senhor - respondeu Catarina -, quis dar-lhe uma derradeira prova da minha afeição! Chegámos a um momento de imensa gravidade: o rei está moribundo e quer-lhe falar.

- A mim? - disse Henrique, estremecendo de alegria.

- Sim! disseram-lhe, por certo, que Henrique não só sente a perda do trono de Navarra como até ambiciona o de França.

- Oh! - exclamou Henrique.

- Sei que assim não é; mas ele acredita-o; e não há dúvida de que é uma cilada a conversação que quer ter com o senhor.

- Uma cilada?

- Sim; Carlos, antes de morrer, quer saber o que tem de receber ou de esperar do senhor; e da resposta que der aos seus oferecimentos, atenda bem, dependerão as suas derradeiras ordens, isto é, a sua vida ou a sua morte.

- Mas então que me há-de ele oferecer?

- Como o hei-de eu saber? Provavelmente coisas impossíveis.

- Mas enfim, não conjectura, minha mãe?

- Não, mas suponho, por exemplo.

- O quê?

- Suponho que, acreditando nas suas vistas ambiciosas, queira da sua própria boca ter a prova dessa ambição. Suponha que ele o tenta, como outrora se tentavam os culpados, para, sem tormentos, provocar uma confissão; suponha - continuou Catarina, cravando os olhos em Henrique - que lhe oferece o governo duma província, até mesmo a regência.

Indizível alegria se derramou no coração opresso de Henrique; adivinhando, porém, o golpe, essa alma vigorosa e sagaz repeliu o ataque.

- A mim? - disse ele - a cilada seria por de mais grosseira; a mim, a regência, quando estão aí a senhora e meu irmão de Alençon?

Catarina mordeu os beiços para disfarçar a sua satisfação.

- Então - disse com vivacidade - renuncia à regência?

O rei está morto - disse consigo Henrique - e é ela quem me está armando uma cilada. Depois, levantando a voz:

- É necessário, antes de tudo, que eu ouça o rei de França - respondeu - pois, pela sua própria declaração, minha Senhora, tudo que dissermos não será senão uma suposição.

- Sem dúvida - disse Catarina -, mas sempre pode responder pelas suas intenções.

- Ora - disse inocentemente Henrique - eu não tenho pretensões, não tenho intenções.

- Isso não é responder - disse Catarina, sentindo que o tempo urgia e deixando-se levar pela sua cólera. - Sim, ou não? Fale claro.

- Não posso responder sim ou não a suposições; uma resolução positiva é coisa tão difícil, e sobretudo tão séria, que, para tomá-la, cumpre esperar pela realidade.

- Ouça, Senhor - disse Catarina -, não há tempo a perder e perdemo-lo em inúteis discussões, em recíprocas astúcias; joguemos o nosso jogo como rei e como rainha; se aceitar a regência, morre.

O rei ainda vive! disse consigo Henrique.

E, levantando a voz, disse com firmeza:

- Minha Senhora, Deus tem na Sua mão a vida dos homens e dos reis; Ele inspirar-me-á. Digam a Sua Majestade que estou pronto a ir à sua presença.

- Reflicta, Senhor.

- Há dois anos que estou proscrito, há um mês que estou preso - respondeu Henrique com gravidade -, tive tempo de reflectir, minha Senhora, e reflecti. Tenha pois a bondade de prevenir el-rei de que já desço. Esses dois bravos - acrescentou apontando para as duas sentinelas - guardar-me-ão para que não fuja; além de que não tenho semelhante tenção.

Havia tanta firmeza nas palavras de Henrique, que Catarina bem viu que todas as suas tentativas, debaixo de qualquer forma que as disfarçasse, nada venceriam; desceu, pois, precipitadamente.

Apenas ela desapareceu. Henrique chegou-se ao parapeito e fez a de Mouy um sinal que queria dizer: Aproximem-se e estejam prontos para qualquer eventualidade.

De Mouy, que se havia apeado, saltou para a sela e, puxando o segundo cavalo, veio a galope postar-se a dois alcances de mosquete do torreão.

Henrique agradeceu-lhe com um gesto e desceu.

No primeiro degrau achou os dois soldados que o esperavam.

À entrada dos pátios estava uma guarda reforçada de suíços e de cavalaria ligeira; era necessário atravessar uma fileira dobrada de partasanas para entrar na fortaleza e sair dela.

Catarina tinha parado aí e esperava.

Fez sinal aos dois soldados que acompanhavam Henrique que se retirassem e, pondo-lhe a mão no braço, disse:

- Este pátio tem duas portas; nesta, que vê detrás do aposento do rei, se rejeitar a regência, achará um bom cavalo e a liberdade; nesta, pela qual acaba de passar, achará, se der ouvidos à ambição. Que diz?

- Digo que, se o rei me fizer regente, minha Senhora, serei eu quem dará as ordens aos soldados e não a senhora. Digo que, se sair da fortaleza à noite, todas essas alabardas, partasanas e mosquetes abaixar-se-ão diante de mim.

- Louco! - exclamou Catarina desesperadíssima - não jogue com Catarina o terrível jogo da vida e da morte.

- E porque não? - disse Henrique, cravando os olhos em Catarina. - E porque não, se até agora tenho ganho?

- Entre no quarto do rei, Senhor, já que nada quer ouvir, e em nada quer acreditar - disse Catarina, mostrando-lhe com uma das mãos a escada, enquanto com a outra pegava num dos punhais envenenados que sempre trazia nessa bainha de couro preto que se tornou histórica.

- Passe adiante, minha Senhora - disse Henrique -, enquanto eu não for regente, pertencem-lhe as honras da precedência.

Adivinhadas todas as suas intenções, Catarina não procurou mais lutar e passou adiante.

 

                    A REGêNCIA

O rei começava a impacientar-se; tinha mandado entrar no quarto o Sr. de Nancey e ia dar-lhe ordem que fosse buscar Henrique, quando este apareceu.

Vendo o cunhado aparecer no limiar da porta, Carlos deu um grito de alegria e Henrique ficou assombrado como se se visse diante dum cadáver.

Os dois médicos que estavam ao lado do rei retiraram-se; o padre que vinha exortá-lo a morrer como cristão, seguiu o exemplo deles.

Carlos IX não era amado, e entretanto chorava-se muito nas antecâmaras. Quando morrem os reis, como quer que tenham sido, há sempre pessoas que perdem alguma coisa e que receiam não conseguir essa alguma coisa do seu sucessor.

Esse luto, esses soluços, as palavras de Catarina, o sinistro e majestoso espectáculo dos últimos momentos dum rei; enfim, a vista do próprio rei, vítima duma enfermidade que depois se tem reproduzido, mas de que ainda não tinha exemplos a ciência, produziram no espírito de Henrique, ainda fácil de receber impressões, tão terrível efeito que, apesar da sua resolução de não causar novas inquietações a Carlos acerca do seu estado, não pôde, como dissemos, reprimir o sentimento de terror que se lhe desenhou no rosto ao ver esse moribundo todo deitando sangue.

Carlos sorriu com tristeza. Não escapam aos moribundos as impressões dos que o cercam.

- Venha cá, Henriquinho - disse Carlos, estendendo a mão ao cunhado, com uma voz tão meiga que Henrique até então nunca lhe conhecera -, venha cá; creia que sofreria muito se o não visse. Afligi-o muito na minha vida, meu pobre amigo, e estou agora arrependido, pode crer-me. Às vezes prestei as mãos aos que o atormentavam; mas um rei não é senhor dos acontecimentos; e, além de minha mãe Catarina, além de meu irmão de Anjou, além de meu irmão de Alençon, tive sempre acima de mim, enquanto vivi, uma coisa extremamente incómoda, que cessa no dia em que estou para morrer: a razão de Estado.

- Senhor - balbuciou Henrique -, já de nada me lembro senão do amor que sempre tive a meu irmão, do respeito que sempre tributei ao meu rei.

- Sim, sim, tens razão - disse Carlos - e agradeço-te o falares assim, Henriquinho; pois na verdade sofreste muito no meu reinado, sem contar que foi no meu reinado que morreu tua pobre mãe. Mas havias de saber que me impeliam. Às vezes resisti; e também às vezes, cansado, cedi. Mas tu disseste: não falemos mais do passado; agora é o presente que me urge, é o futuro que me assusta.

E falando assim, o mísero rei escondeu com as mãos descarnadas o lívido rosto. E depois dum momento de silêncio, sacudindo a testa como para expelir essas tristes ideias, e orvalhando de sangue tudo que estava ao pé dele, disse:

- É necessário salvar o Estado - continuou com voz baixa, inclinando-se para Henrique -, é preciso evitar que caia nas mãos dos fanáticos e das mulheres.

Carlos, como acabámos de dizer, proferiu estas palavras em voz baixa, e entretanto Henrique julgou ouvir por detrás da cama uma como abafada exclamação de cólera. Talvez alguma aberta feita na parede, sem que o soubesse o próprio Carlos, facultasse a Catarina ouvir essa importante conversação.

- Das mulheres? - tornou o rei de Navarra, querendo provocar uma explicação.

- Sim, Henrique; minha mãe quer a regência enquanto não chega meu irmão da Polónia. Ouve, porém, o que te digo: ele não há-de voltar.

- Como! não há-de voltar? - exclamou Henrique, cujo coração pulava de concentrada alegria.

- Não - prosseguiu Carlos -, os seus súbditos não o deixarão sair.

- Mas - disse Henrique -, acredita, meu irmão, que a rainha-mãe não lhe há-de já ter escrito?

- Decerto; porém Nancey surpreendeu o correio em Château-Thierry e trouxe-me a carta; dizia nessa carta que eu estava para morrer. Mas eu também escrevi para Varsóvia; e por efeito da minha carta, que decerto há-de lá chegar, meu irmão será vigiado. Muito provavelmente, pois, Henrique, o trono vai ficar vago.

Outro estremecimento, ainda mais sensível do que o primeiro, se fez ouvir na alcova.       Está visto - disse Henrique - ela está ali escutando e esperando!

Carlos nada ouviu.

- Ora - prosseguiu - eu morro sem herdeiro varão.

Aqui parou o monarca; suave pensamento lhe alumiou o rosto e, pondo a mão no ombro do rei de Navarra, disse:

- Ah! lembras-te, Henriquinho, lembras-te desse pobre menino que te mostrei uma noite, dormindo no seu berço de seda, embalado por um anjo? Ai, Henriquinho, hão-de matar-mo!

- Oh! Senhor! - exclamou Henrique, cujos olhos se humedeceram de lágrimas - juro-lhe diante de Deus que empregarei os meus dias e as minhas noites em protegê-lo. Ordene, meu rei.

- Obrigado, Henriquinho, obrigado! - disse o rei com uma expansão que estava longe do seu génio, mas que era devida à situação. - Aceito a tua palavra. Não faças dele rei; felizmente não nasceu para o trono. mas faz dele um homem feliz. Deixo-lhe alguma riqueza; tem a nobreza de sua mãe, a do coração. Talvez melhor lhe seja que o destinem para o estado eclesiástico: inspiraria então menos receio. Oh! parece-me que morreria, senão feliz, ao menos tranquilo, se tivesse aqui para me consolar os afagos do filho e o meigo rosto da mãe.

- Senhor, pois não pode mandá-los buscar?

- Ah! desgraçados! não sairiam daqui vivos!. Eis a condição dos reis, Henriquinho; nem podem viver nem morrer à sua vontade! Mas depois da tua promessa estou mais sossegado.

Henrique reflectiu.

- Sim, sem dúvida, meu rei, prometi; mas poderei cumprir?

- Que queres dizer?

- Eu próprio não me verei proscrito, ameaçado como ele, e até mais do que ele? Eu sou um huguenote, e ele uma criança.

- Enganas-te - respondeu Carlos -, morrendo eu, serás forte e poderoso; e aqui tens o que te dará força e poder.

Então o moribundo tirou da cabeceira um pergaminho.

- Toma - disse-lhe ele.

Henrique percorreu a folha revestida com o selo real.

- A regência a mim, Senhor? - disse empalidecendo de alegria.

- Sim, a ti, a regência, até que volte o duque de Anjou; e como provavelmente o duque não há-de voltar, não é a regência, é o trono que te dá esse documento.

- O trono a mim? - disse Henrique.

- Sim - disse Carlos -, a ti, o único, e, mais ainda, o único capaz de governar esses fidalgos, essas mulheres perdidas que vivem no meio do sangue e das lágrimas. Meu irmão de Alençon é um traidor, e há-de ser traidor a todos. Deixa-o no torreão para onde o mandei. Minha mãe há-de querer matar-te: desterra-a. Daqui a três meses ou quatro, ou talvez um ano, deixa Varsóvia meu irmão de Anjou e vem disputar-te o poder: responde-lhe com um breve do papa; já arranjei esse negócio pelo meu embaixador, o duque de Nevers, e daqui a poucos dias receberás o breve.

- Sim, meu rei.

- Receia só uma coisa, Henrique: a guerra civil; mas, permanecendo converso, evita-la; pois o partido huguenote não tem consistência senão pondo-te à sua frente; o Sr. de Condé não tem importância para lutar contigo. A França é um país de planícies, portanto um país católico. O rei de França deve ser rei dos católicos e não o rei dos huguenotes, pois o rei de França deve ser o rei da maioria. Dizem que eu tenho remorsos de haver ordenado o S. Bartolomeu; dúvidas, sim; remorsos, não. Dizem que estou pagando o sangue huguenote com o sangue que me sai por todos os poros; eu sei o que me sai pelos poros: é arsénio, e não sangue.

- Oh meu rei! que me diz?

- Nada. Se a minha morte deve ser vingada, Henriquinho, só por Deus o há-de ser. Não falemos mais dela senão para prever as suas consequências. Deixo-te um bom parlamento e um exército experimentado; apoia-te no exército contra os teus únicos inimigos: minha mãe e o duque de Alençon.

Neste momento ouviu-se no vestíbulo uma bulha abafada de armas e de comandos militares.

- Estou morto! - disse a meia voz Henrique.

- Temes? hesitas? - disse Carlos inquieto.

- Eu, senhor? - replicou Henrique. - Não, nem temo nem hesito: aceito! Carlos apertou-lhe a mão. E como nesse momento se chegava para ele a ama, trazendo uma beberagem que acabava de preparar no quarto contíguo, sem atender a que tão ao pé dela se de cidia da sorte da França:

- Chama minha mãe - disse o rei -, e manda também chamar o Sr. de Alençon.

 

           O REI MORREU: VIVA O REI!

Lívidos de susto e trémulos de furor, Catarina e o duque de Alençon entraram alguns minutos depois. Como Henrique havia adivinhado, Catarina sabia tudo e tudo tinha dito em poucas palavras a Francisco. Deram alguns passos e pararam esperando.

Henrique estava de pé à cabeceira da cama de Carlos.

O rei, ignorando o que acabava de se passar, declarou-lhes a sua vontade.

- Minha Senhora - disse para a mãe -, se eu tivesse um filho, minha mãe seria regente, e em sua falta o rei da Polónia, e na falta desse, o meu irmão Francisco. Não tenho, porém, filho, e depois de mim pertence o trono a meu irmão o duque de Anjou, que está ausente. Como qualquer destes dias há-de ele vir reclamar este trono, não quero que ache em seu lugar quem possa, com direitos quase iguais, disputar-lhe os seus, e portanto exponha o reino a guerras de pretendentes. Eis por que a não nomeio regente, minha Senhora, pois teria que decidir-se entre os seus dois filhos, o que seria doloroso para o seu coração de mãe. Eis também por que não escolho o meu irmão Francisco, porque pode este dizer ao seu mais velho: Tinhas um trono, porque o deixaste? Por isso escolhi um regente que possa receber em depósito a coroa, que a conserve nas mãos e a não ponha na cabeça. Esse regente - cumprimente-o, minha Senhora, cumprimente-o, meu irmão - esse regente é o rei de Navarra!

E com um gesto de mando supremo, saudou Henrique com a mão.

Catarina e de Alençon fizeram um movimento que mais parecia um estremecimento nervoso do que cumprimento.

- Tome, Senhor Regente - disse Carlos ao rei de Navarra -, aqui tem o pergaminho que até à volta do rei da Polónia lhe confere o comando dos exércitos, as chaves do Tesouro, o direito e o poder régio.

Catarina devorava Henrique com os olhos; Francisco estava tão trémulo que mal se tinha em pé; mas a fraqueza dum e a firmeza do outro, em vez de tranquilizar, mostravam-lhe o perigo presente, em pé e ameaçador.

Henrique não fez por isso menos violento esforço, e, subjugando todos os seus receios, tomou o pergaminho das mãos do rei, e, erguendo-se altivo, fitou em Catarina e em Francisco um olhar que queria dizer: Cuidado! sou o seu senhor.

Catarina compreendeu esse olhar.

- Não, não! - disse ela - nunca a minha raça dobrará a cabeça ao jugo de raça estranha; nunca, enquanto houver um Valois, reinará em França um Bourbon.

- Minha mãe! minha mãe! - exclamou Carlos IX, levantando-se do leito ensanguentado mais pavoroso do que nunca - cuidado! sou ainda rei; não por muito tempo, bem sei, mas por tempo bastante para dar uma ordem; nem muito é preciso para castigar assassinos e envenenadores.

- Pois dê essa ordem se se atreve; eu vou dar as minhas. Venha, Francisco, venha. E saiu rapidamente, levando consigo o duque de Alençon.

- Nancey! - exclamou Carlos - Nancey! mando, quero! Nancey, prenda minha mãe, prenda meu irmão, prenda!.

Uma golfada de sangue cortou a palavra a Carlos no momento em que o capitão das guardas abria a porta e o rei arfava no leito.

Nancey tinha somente ouvido o seu nome; as ordens que o tinham acompanhado, proferidas em voz menos distinta, perderam-se na distância.

- Guarde a porta - disse Henrique -, e não deixa entrar pessoa alguma. Nancey inclinou- se e saiu.

Henrique fitou os olhos nesse corpo inanimado, que se poderia tomar por um cadáver se leve sopro não agitasse a franja de espuma que lhe cobria os lábios.

Contemplou-o muito tempo; depois, falando consigo mesmo:       Eis o momento supremo - disse - devo reinar? devo viver?

No mesmo instante, o reposteiro da alcova ergueu-se, uma pálida cabeça apareceu e uma voz vibrou no silêncio de morte que reinava nessa régia câmara.

- Viva! - disse essa voz.

- Renato! - exclamou Henrique.

- Sim, meu rei.

- A tua predição era então falsa? Não hei-de reinar?

- Há-de reinar; mas ainda não é chegada a hora.

- Como o sabes? Fala, para que eu veja se te devo acreditar.

- Ouça.

- Estou escutando.

- Abaixe-se.

Henrique inclinou-se por cima do corpo de Carlos; Renato também se inclinou. Só os separava a largura da cama, e essa distância ainda tinha diminuído com a inclinação dos dois corpos.

Entre ambos estava deitado, sem voz nem movimento, o corpo do rei moribundo.

- Escute - disse Renato -, posto aqui pela rainha-mãe para perdê-lo, antes quero servi-lo, pois tenho confiança no seu horóscopo, e servindo-o, acho ao mesmo tempo o interesse do meu corpo e da minha alma.

- Foi a rainha-mãe quem te mandou dizer isso? - perguntou Henrique cheio de dúvida e de angústia.

- Não - disse Renato -, mas oiça um segredo.

E inclinou-se ainda mais; Henrique fez outro tanto, de modo que quase se tocavam as suas cabeças.

Essa conversação de dois homens, assim curvados sobre o corpo dum rei moribundo, tinha algo de tão sinistro, que os cabelos do supersticioso florentino estavam arrepiados, e um suor abundante aljofrava o rosto de Henrique.

- Escute - disse Renato -, é um segredo que só eu sei, e que lhe revelo se me jurar sobre este moribundo que me perdoa a morte de sua mãe.

- Já uma vez to prometi - disse Henrique, cujo rosto se anuviou de tristeza.

- Prometeu, mas não jurou - disse Renato, fazendo um movimento para trás.

- Pois juro - disse Henrique, estendendo a mão direita sobre a cabeça do rei.

- Pois saiba - disse precipitadamente o florentino - que está a chegar o rei da Polónia.

- Não pode ser! - disse Henrique. - O correio foi aprisionado pelo rei Carlos.

- O rei Carlos aprisionou um na estrada de Château-Thierry; porém, a rainha-mãe, previdente, tinha mandado três, por três estradas diversas.

- Oh! que desgraçado que eu sou! - disse Henrique.

- Um mensageiro chegou esta manhã de Varsóvia. O rei devia-o seguir sem que pessoa alguma em Varsóvia o procurasse estorvar, pois lá não era sabida a enfermidade do rei. Só vem precedendo algumas horas Henrique de Anjou.

- Oh! se eu tivesse uns oito dias!.

- Pois sim, mas não tem nem oito horas. Não ouviu o ruído das armas que se carregavam?

- Ouvi.

- Essas armas foram carregadas contra Vossa Majestade. Hão-de vir matá-lo aqui, no quarto do rei.

- O rei ainda não morreu.

Renato olhou atento para Carlos.

- Daqui a dez minutos estará morto. Tem, pois, só dez minutos, ou ainda menos, de vida.

- Então que devo fazer?

- Fuja sem perder um minuto, um segundo.

- Mas por onde? Se me esperam na antecâmara, matar-me-ão quando eu sair!

- Escute; tudo arrisco para o servir, não o esqueça.

- Não o esquecerei.

- Acompanhe-me por aquela passagem secreta, levá-lo-ei até uma porta falsa. Depois, para lhe dar tempo, irei dizer à rainha que Vossa Majestade descobriu essa passagem secreta e se aproveitou dela. Venha, venha depressa.

Henrique inclinou-se para Carlos e beijou-lhe a testa.

- Adeus, meu irmão; nunca me hei-de esquecer de que o teu último desejo foi que eu te sucedesse; que a tua última vontade foi fazer-me rei. Morre em paz. Em nome de meus irmãos, perdoo-te o sangue que derramaste.

- Cuidado! - disse Renato - ele volta a si; Fuja antes que abra os olhos.

- Ama! - disse Carlos em voz baixa - ama!

Henrique tirou do lado da cabeceira do rei a espada, que já lhe era inútil, meteu no peito o pergaminho que o constituía regente, beijou outra vez a testa de Carlos, deu uma volta em torno da cama e precipitou-se pela abertura, que Renato logo fechou.

- Ama! - chamou o rei com voz mais forte - ama!

A boa velha chegou pressurosa.

- Ama - disse o rei, com as pálpebras abertas e os olhos dilatados pela terrível fixidade da morte -, deve-se ter passado alguma coisa enquanto eu dormia. Vejo uma grande luz. vejo Deus Nosso Senhor. vejo Jesus Cristo. vejo a bendita Virgem Maria. Pedem, suplicam por mim. O Deus Omnipotente perdoa-me. chama-me. Meu Deus! Meu Deus! recebei-me na Vossa misericórdia. Meu Deus! esquecei-Vos de que fui rei, pois vou ter conVosco sem ceptro nem coroa. Meu Deus! esquecei-Vos dos crimes do rei, para só Vos lembrardes dos sofrimentos do homem. Meu Deus! aqui estou.

E Carlos, que, à medida que ia proferindo estas palavras, se tinha levantado mais e mais, como para ir adiante da voz que o chamava, deu um suspiro e caiu imóvel e frio nos braços da ama.

A esse tempo, e enquanto os soldados, por ordem de Catarina, se dirigiam para a passagem de todos conhecida, pela qual devia sair Henrique, Renato levava-o pelo corredor secreto. Chegando à porta falsa, Henrique saltou no cavalo que o esperava e dirigiu-se a galope para o lugar onde sabia que estava de Mouy.

De repente, ao som do cavalo, cujo galope era atraiçoado pela calçada sonora, voltaram-se algumas sentinelas gritando:

- Foge! foge!

- Quem? - perguntou a rainha-mãe chegando a uma janela.

- O rei Henrique! o rei de Navarra! - responderam as sentinelas.

- Fogo! - disse Catarina - mandem-lhe uma bala!

As sentinelas obedeceram; mas Henrique já estava longe.

- Foge! - disse a rainha-mãe - portanto, está vencido.

Foge! - disse consigo o duque de Alençon - portanto, estou rei.

Porém, no mesmo instante, estando ainda à janela Francisco e sua mãe, a ponte levadiça estalou sob os passos de cavalos; e, precedido por um retinir de armas e grande alarido, um mancebo a galope, com o chapéu na mão, entrou no pátio, gritando - França! - Acompanhavam-no quatro fidalgos, cobertos como ele de poeira, de suor e espuma.

- Meu filho! - exclamou Catarina, estendendo os braços pela janela fora.

- Minha mãe! - respondeu o mancebo, apeando-se.

- Meu irmão de Anjou! - exclamou Francisco, assombrado e recuando.

- Será tarde? - perguntou Henrique de Anjou à mãe.

- Não; pelo contrário, é tempo, e não terias chegado mais oportunamente se Deus te houvesse trazido pela mão; olha e ouve.

Com efeito, o Sr. de Nancey, capitão das guardas, dirigia-se para a janela do quarto do rei. Todos os olhares se cravaram nele.

Quebrou uma vara em dois pedaços e, com os braços estendidos, tendo em cada mão um desses pedaços, disse:

- O rei Carlos IX morreu! o rei Carlos IX morreu! o rei Carlos IX morreu! E deixou cair os dois pedaços da vara.

- Viva o rei Henrique III! - gritou então Catarina, persignando-se com piedosa gratidão

- viva o rei Henrique III!

Todas as vozes repetiram esse grito, menos a de Francisco.

Ah! ela zombou de mim! disse ele rasgando o peito com as unhas.

- Venci! - disse Catarina - esse hediondo bearnês não há-de reinar!

 

                   EPÍLOGO

Tinha passado um ano depois da morte do rei Carlos IX e da ascensão ao trono do sucessor; o rei Henrique III, que felizmente reinava por graça de Deus e de sua mãe Catarina, tinha ido a uma procissão em honra de Nossa Senhora de Cléry.

Fora a pé com a rainha sua mulher e toda a corte.

O rei Henrique III podia bem entregar-se a esse passatempo; nenhum cuidado sério o preocupava nessa ocasião. O rei de Navarra estava em Navarra, onde por muito tempo tinha desejado ver-se; e, segundo diziam, ocupava-se muito com uma formosa dama dos Montmorency, a quem chamava a Fosseuse. Margarida estava na sua companhia, triste e melancólica, e achando unicamente nas belas montanhas, não uma distracção, mas um alívio às duas grandes dores da vida: a ausência e a morte.

Paris estava muito sossegado, e a rainha-mãe, verdadeira regente desde que o rei era o seu predilecto Henrique, aí residia, ora no Louvre, ora no Palácio de Soissons, situado no lugar que é hoje coberto pelo mercado do trigo, e do qual apenas subsiste a elegante coluna que ainda hoje lá se vê.

Estava ela uma noite ocupadíssima em estudar os astros com Renato, cujas traiçõezinhas ela sempre ignorou, e que havia sido bem acolhido em paga do perjúrio com que mandara à morte Cocunás e La Mole, quando lhe vieram dizer que a esperava no seu oratório um homem que pretendia comunicar-lhe objecto da maior importância.

Desceu precipitada, e achou o Sr. de Maurevel.

- Ele está em Paris! - exclamou o antigo capitão, sem deixar tempo a Catarina para lhe dirigir a palavra.

- Ele quem? - perguntou Catarina.

- Quem quer que seja, minha Senhora, senão o rei de Navarra?

- Aqui? - disse Catarina - aqui. ele. Henrique? e que vem fazer? imprudente!

- Pelas aparências, vem ver a Sr de Sauve, mais nada. Pelas probabilidades, vem conspirar contra o rei.

- Mas como sabes que ele está em Paris?

- Vi-o ontem entrar para uma casa, e daí a pouco veio ter com ele a Sr.a de Sauve.

- Estás certo de que era ele?

- Esperei-o até que saísse, isto é, parte da noite. Às três horas, os dois amantes retiraram-se, levando o rei a Sr de Sauve até às grades do Louvre. Aí, por favor do almoxarife, que sem dúvida lhes dá as mãos, recolheu-se ela sem obstáculo, e o rei voltou, cantarolando uma ária, e com tanto desembaraço como se estivesse nas suas montanhas.

- E para onde foi?

- Para a Rua da Árvore Seca, hospedaria da Estrela Brilhante, a mesma em que residiam os dois feiticeiros que Vossa Majestade mandou castigar no ano passado.

- Porque me não vieste dizer isso imediatamente?

- Porque ainda não estava bem certo.

- E agora?.

- Agora, estou.

- Viste-o?

- Perfeitamente. Estava emboscado numa taberna vizinha; vi-o primeiro entrar na mesma casa que na véspera; depois, como a Sr.a de Sauve se demorasse, chegou imprudentemente a cara à vidraça duma janela do primeiro andar; desta vez não tive mais dúvida. Daí a um momento, chegou a Sr.a de Sauve.

- Julgas que ficarão, como a noite passada, até às três horas da manhã?

- É provável.

- E onde é essa casa?

- Perto da Cruz dos Pequenos Campos, próximo a Santo Honorato.

- Bem - disse Catarina. - O Sr. de Sauve não conhece a tua letra?

- Não.

- Senta-te aqui e escreve.

Maurevel obedeceu, e tomando uma pena, disse:

- Estou pronto, minha Senhora.

Catarina ditou:

Enquanto o barão de Sauve está de serviço no Louvre, a baronesa está com um dos seus amantes numa casa próxima da Cruz dos Pequenos Campos perto de Santo Honorato. O barão reconhecerá a casa por uma cruz vermelha que há-de estar na parede.

- E agora? - perguntou Maurevel.

- Tira uma cópia dessa carta.

Maurevel obedeceu passivamente.

- Agora - disse a rainha -, manda uma dessas cartas por homem jeitoso ao barão, e que esse homem deixe cair a outra nos corredores do Louvre.

- Não compreendo - disse Maurevel.

Catarina levantou os ombros.

- Então não compreendes que um marido que recebe semelhante carta se há-de exaltar?

- Parece-me que no tempo do rei de Navarra ele não se exaltava.

- Podem-se consentir certas coisas a um rei, e não a outra pessoa. Além de que, se ele se não exaltar, exaltas-te tu em lugar dele.

- Eu?

- Sim, tu; arranja quatro homens (seis se forem precisos); põe máscara, arromba a porta, como se fosses mandado pelo barão, surpreende os amantes a sós, procede em nome do marido; e amanhã, o bilhete perdido no corredor do Louvre e achado por alguma alma caridosa, que já o teria feito circular, atestará que foi o marido quem se vingou. Somente o acaso fez que, em vez dum qualquer, fosse o amante o rei de Navarra; mas quem podia adivinhá-lo, quando todos o julgam em Pau?.

Maurevel, olhando com admiração para Catarina, inclinou-se e saiu.

Ao mesmo tempo que Maurevel saía do Palácio de Soissons, entrava a Sr.a de Sauve na casinha da Cruz dos Pequenos Campos.

Esperava-a Henrique com a porta entreaberta.

Logo que a viu na escada, disse-lhe:

- Não foi acompanhada?

- Não, ao menos que eu saiba - disse Carlota.

- É que eu julgo que o fui - disse Henrique -, não só a noite passada como esta tarde toda.

- Oh! meu Deus! - disse Carlota - quem seria? Como fico assustada!. Se uma prova de amizade dada por Vossa Majestade à sua velha amiga tivesse de vir a ser-lhe nociva, não me consolaria por certo.

- Sossegue, minha amiga - disse o Bearnês -, temos três espadas que nos defendem e que estão vigilantes.

- Três? é bem pouco, meu Senhor.

- Bastam, quando estão nas mãos de de Mouy, Saucourt e Bartolomeu.

- Então de Mouy veio com Vossa Majestade a Paris?

- Por certo.

- Atreveu-se a voltar à capital? Então tem ele também, como Vossa Majestade, alguma pobre mulher louca de amores?

- Não; mas tem um inimigo cuja morte jurou. Só o ódio, minha cara, pode levar-nos a fazer tantas loucuras como o amor.

- Obrigada, meu Senhor.

- Oh! não digo isto pelas actuais loucuras: falo em atenção às loucuras passadas e futuras. Mas não discutamos, pois não temos tempo a perder.

- Então está decidido a partir?

- Esta mesma noite.

- Os negócios que o trouxeram a Paris já estão concluídos?

- Só vim vê-la; não tenho negócios.

- Mentiroso!

- Juro-lho, minha amiga: digo-lhe a pura verdade; mas, esqueçamos essas recordações; tenho ainda duas ou três horas de felicidade, e depois a eterna separação.

- Ah! meu Senhor! eterno, só o meu amor.

Henrique acabava de dizer que não tinha tempo para discutir; e por isso não discutiu; acreditou, ou, céptico como era, fingiu acreditar.

Entretanto, como o havia dito o rei de Navarra, de Mouy e os seus dois companheiros estavam ocultos nas proximidades da casa. Estava ajustado que em vez de sair às três horas sairia à meia- noite; que iriam, como na véspera, acompanhar a Sr.a de Sauve ao Louvre; e que daí se dirigiriam à Rua do Cerejal, onde morava Maurevel.

Só na manhã deste mesmo dia tinha tido de Mouy notícia certa da casa em que morava o seu inimigo.

Estavam pois de vigia havia cerca de uma hora, quando viram um homem, acompanhado a pouca distância por outros cinco, aproximar-se da porta da casinha e experimentar na fechadura diversas chaves.

Ao vê-lo, de Mouy, escondido no vão duma porta próxima, deu um salto do seu esconderijo para esse homem e agarrou-lhe no braço.

- Espere um pouco, aqui não se entra.

O homem deu um salto para trás, e no salto caiu-lhe o chapéu.

- De Mouy de Saint-Phale! - exclamou.

- Maurevel! - uivou o huguenote levantando a espada. - Eu procurava-te; vieste ter comigo: obrigado!

Mas a cólera não lhe fez esquecer Henrique; e voltando-se para a janela, deu um assobio à moda dos pastores bearneses.

- Basta isto - disse para Saucourt. - Agora é comigo, assassino! é comigo! E lançou-se sobre Maurevel.

Este teve tempo de tirar do cinto uma pistola.

- Ah! desta vez. - disse o matador do rei, preparando a arma - desta vez estás morto. E desfechou o tiro. De Mouy desviou-se para a esquerda, e a bala passou sem lhe tocar.

- Agora eu! - disse o mancebo.

E deu-lhe tão violento golpe com a espada, que, embora encontrasse o cinto de couro, a aguda ponta atravessou o obstáculo e embebeu-se nas carnes.

O assassino deu um grito feroz arrancado por tão profunda dor, que os esbirros que o acompanhavam, julgando-o ferido de morte, fugiram espavoridos pela Rua de Santo Honorato.

Maurevel não era valente; vendo-se abandonado pelos seus, e tendo diante de si um adversário como de Mouy, procurou também fugir pelo mesmo caminho que eles tinham seguido, gritando:

- Quem me acode!

Levados pelo seu ardor, de Mouy, Saucourt e Bartolomeu correram sobre ele. Ao entrarem na Rua de Grenelle, que tinham tomado para lhe cortar o caminho, abria-se uma janela, e um homem saltava do primeiro andar à rua, regada de fresco pela chuva.

Era Henrique.

O assobio de de Mouy tinha-o avisado da presença do perigo, e o tiro de pistola, indicando-lhe que era grave o perigo, chamara-o em auxílio dos seus amigos.

Ardente e vigoroso, correu para o lado deles com a espada na mão.

Um grito o guiou: vinha da barreira dos Sargentos. Era de Maurevel, que, sentindo-se perseguido por de Mouy, chamava outra vez em seu socorro os seus homens, a quem o terror fazia fugir.

Ou havia de voltar-se, ou ser apunhalado pelas costas.

Maurevel voltou-se, encontrou o ferro do seu inimigo e deu-lhe golpe tão pronto e tão hábil que lhe atravessou a faixa; de Mouy respondeu-lhe rapidamente, cravando-lhe a espada de novo nas carnes que já ferira; então, por dupla chaga, rompeu dobrado jorro de sangue.

- Está ferido! - gritou Henrique aproximando-se. - A ele, de Mouy! De Mouy não carecia de exortações; acometeu de novo Maurevel; porém este não esperou. Pondo a mão esquerda sobre a ferida, continuou a correr desesperado.

- Mata-o depressa! mata-o! - gritou o rei. - Lá parou a gente dele. e o desespero dos cobardes não faz muita conta aos bravos.

Maurevel, cujos bofes arrebentavam, cuja respiração assobiava e que, a cada momento, ia perdendo mais sangue, caiu de súbito exausto; imediatamente, porém, levantou-se, apresentou a de Mouy a ponta da espada e bradou aos seus:

- Amigos! amigos! são somente dois; fogo, fogo!

Com efeito, Saucourt e Bartolomeu tinham-se desviado pela Rua dos Moitões, correndo atrás dos esbirros; e o rei e de Mouy achavam-se a sós contra quatro homens.

- Fogo! - continuava a bradar Maurevel, enquanto um dos soldados preparava o mosquete.

- Sim; mas antes, morre tu, traidor! morre, miserável! vil assassino!

E segurando com a mão esquerda no ferro da espada de Maurevel, com a direita cravou-lhe a sua de alto a baixo no peito com tanta força que o deitou no chão.

- Cuidado! cuidado! - bradou Henrique.

De Mouy deu um pulo para trás, e deixou a espada no corpo de Maurevel; um dos esbirros apontava-lhe o mosquete, e ia matá-lo à queima-roupa quando Henrique o enfiou com a espada e o fez cair morto ao pé de Maurevel, dando um grito agudo.

Os outros dois fugiram.

- Vamos, de Mouy, vamos! - gritou Henrique. - Não percamos tempo; se formos reconhecidos, estamos completamente perdidos.

- Espere, meu Senhor - disse de Mouy -, pois acha que devo deixar a minha espada no corpo deste miserável, deste assassino?

E aproximou-se de Maurevel, que jazia sem movimento; no momento, porém, em que o mancebo punha a mão na sua espada, Maurevel levantou-se, armado com o mosquete que o esbirro largara ao cair, e, à queima-roupa, desfechou-o no peito de de Mouy.

O mancebo caiu sem dar um grito.

Henrique correu sobre Maurevel; mas este tinha também caído, e a espada apenas feriu um cadáver; Cumpria fugir; a bulha tinha atraído grande número de pessoas; a guarda nocturna podia chegar. Henrique procurou entre os curiosos uma cara conhecida, e deu um grito de alegria.

Acabava de reconhecer mestre La Hurière.

Como a cena se passava ao pé da de Trahoir, isto é, defronte da Rua da Árvore Seca, o nosso antigo conhecido, cujo génio naturalmente taciturno ainda mais singularmente se entristecera depois do suplício de La Mole e de Cocunás, os seus dois queridos fregueses, tinha deixado as fornalhas e as caçarolas em que estava preparando a ceia do rei de Navarra e viera ver.

- Meu caro La Hurière, recomendo-lhe de Mouy, bem que receie que nada haja a fazer. Leve-o para sua casa, e se ainda vive, não poupe nada; aqui tem a minha bolsa; quanto ao outro, deixe-o na lama e que apodreça aí como um perro.

- E Vossa Majestade? - disse La Hurière.

- Eu tenho que me despedir duma pessoa; daqui a dez minutos tenha prontos os cavalos. E Henrique pôs-se a correr na direcção da casinha da Cruz dos Pequenos Campos; mas, ao sair da Rua de Grenelle, parou cheio de terror.

Numerosa multidão estava reunida diante da porta.

- Que aconteceu nesta casa? - perguntou Henrique.

- Uma grande desgraça, meu Senhor! - responderam-lhe. - Acaba uma linda dama de ser apunhalada pelo marido, a quem haviam mandado um bilhete em que lhe diziam que a mulher estava com o amante.

- E o marido? - perguntou Henrique.

- Fugiu.

- E a mulher?

- Está lá em cima.

- Morta?

- Ainda não, mas pouco lhe falta.

Oh! que horror! - exclamou Henrique - estou então amaldiçoado! E entrou na casa.

O quarto estava cheio de gente; todos cercavam a cama em que jazia a mísera Carlota, atravessada por duas punhaladas.

O marido, que durante dois anos tinha dissimulado o seu ciúme contra Henrique, havia aproveitado essa ocasião de se vingar dela.

- Carlota! Carlota! - gritou Henrique, passando por entre a multidão e caindo de joelhos ao pé da cama.

Carlota abriu os seus belos olhos já amortecidos e deu um grito que lhe fez jorrar o sangue pelas duas feridas; depois, fazendo um esforço para se levantar, disse:

- Oh! bem sabia eu que não havia de morrer sem tornar a vê-lo.

E com efeito, como se somente houvesse esperado por Henrique para lhe dar essa alma que tanto o amara, encostou-lhe os lábios na testa e disse-lhe ainda uma vez:

- Amo-te!

E caiu morta.

Toda a demora de Henrique nesta casa inevitavelmente o perdia; tirou o punhal, cortou um anel dos seus belos cabelos louros, que tantas vezes desatara para lhes admirar o comprimento, e saiu soluçando no meio dos soluços dos assistentes, que não podiam ser insensíveis a tamanhos infortúnios.

- Amigo, e amor! - exclamou Henrique - tudo me deixa, tudo me desampara ao mesmo tempo!.

- Sim senhor - disse-lhe baixinho um homem que se destacara dos curiosos reunidos diante da casinha e que o havia acompanhado -; resta-lhe porém o trono.

- Renato! - exclamou Henrique.

- Sim, meu Senhor: Renato vigilante para o proteger. Deve saber que o miserável assassino, ao expirar, declarou o nome de Vossa Majestade: os archeiros procuram-no. Fuja, fuja!

- E dizes que hei-de reinar, Renato? eu, que fujo?

- Olhe, meu Senhor - disse o florentino mostrando ao rei uma estrela que saía brilhante das dobras duma nuvem negra -, não sou eu que lho digo, é aquela.

Henrique deu um suspiro e desapareceu na escuridão da noite.

  

                                                                  Alexandre Dumas

 

 

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