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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAPARIGA DE JAVA / Pramoedya Ananta Toer
A RAPARIGA DE JAVA / Pramoedya Ananta Toer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Tinha apenas catorze anos. De corpo miúdo mas firme, olhos amendoados e pele dourada, era sem dúvida a rapariga mais bonita daquela aldeia de pescadores na costa nordeste de Java, sob a administração de Jepara-Rembang.

Dia após dia, a sua vida, a sua alma, eram envolvidas pelo marulhar das ondas e os seus olhos pela visão dos pequenos barcos de pesca que largavam de madrugada e regressavam ao começo da tarde ou quando a noite já caía, ancorando no estuário do rio, onde o peixe capturado era descarregado, para, na manhã seguinte, ser vendido na lota.

Deixara para trás o século XIX e entrara no século XX. O vento que assobiava através das copas das casuarinas nada fizera para apressar o seu crescimento. Continuava a ser aquela rapariguinha de pequena estatura, de olhos cintilantes, que sempre fora.

Mas, sem que ela se desse conta - envolvida pelo incessante ruído das ondas, pelo assobiar do vento e pela chegada e partida dos barcos de pesca - um homem reparara nela. E tanto assim foi, que um dia um emissário desse mesmo homem foi a casa dos pais da Rapariga. Alguns dias mais tarde ela teve de deixar o seu lar, teve de dizer adeus aos cos tumes da região, à própria terra natal, com o seu forte odor a peixe. Chegara a hora de esquecer as redes que remendava todas as semanas, a vela esfarrapada pendurada na cozinha e até mesmo o cheiro do mar daquele pedaço de costa em que nascera.

Levaram-na para a cidade onde a envolveram em pano de bati e lhe vestiram uma k. eba, ya ricamente bordada, que jamais sonhara possuir. Colocaram-lhe em volta do pescoço um delgado cordão de ouro com um medalhão de ouro em forma de coração que lhe descia até aos pequenos seios.

Casara no dia anterior, por procuração, com uma adaga que representava o seu futuro marido. Foi nesse preciso momento que se apercebeu de que deixara de ser a filha do seu pai, a filha da sua mãe. Passara a ser a esposa de um kenr, uma adaga, símbolo de um homem que nunca vira na vida.

 

 

 

 

O cortejo nupcial consistia apenas em duas modestas carruagens que, além da Rapariga, transportavam os pais, dois tios, alguns parentes e o chefe da aldeia. Os presentes também eram escassos: uns metros de tecido, bolos caseiros e o eterno alimento que o mar oferece - algas e peixe.

À medida que o cortejo avançava pela aldeia em direcção a Rembang, a mãe da Rapariga viu-se constantemente obrigada a retocar a maquilhagem da filha, a reparar uma e outra vez os estragos que as lágrimas causavam, traçando sulcos nas camadas de pó-de-arroz.

- Chiu, não chores - ralhava ela à Rapariga. - Agora és

a esposa de um homem importante.

A Rapariga desconhecia o que a aguardava. Sabia apenas que perdera todo aquele mundo que era o seu. Perguntava a si própria, com medo e apreensão, por que motivo não podia ela viver onde desejava - entre as pessoas que amava, naquela aldeia junto à costa, batida pelas ondas.

- Chiu, filha. Não chores - repetia-lhe a mãe. - A partir de hoje vais passar a viver numa mansão. Não numa cabana em ruínas como a nossa. Não terás que fazer chichi na praia, nem remendar velas ou redes. Na cidade vais estar a bordar com fio de seda. Cala-te, filha, não chores mais.

Mas ela tinha apenas catorze anos e a ideia de ter de fazer chichi na praia nunca a preocupara - a não ser quando estava lua cheia, pois nessa altura as cobras saíam das suas tocas e ela tinha medo de cobras.

- Pára de chorar, filha - pedia-lhe a mãe com insistência.

- Não vês que agora és a esposa de um homem rico? A Rapariga, porém, não conseguia parar de soluçar, até que por fim começou a chorar em altos brados. Tinha só catorze anos e nunca se considerara pobre.

A visão da costa ao longo da estrada, com os seus montes de algas e de arbustos esparsos, de lagartos e caranguejos correndo velozmente na areia quente, não lhe despertava o menor interesse. Mal se apercebia do bater rítmico dos cascos dos cavalos, mas, quando as carruagens pararam subitamente, ergueu por momentos a cabeça.

Viu o pai apear-se do carro da frente e dirigir-se para aquele em que ela ia sentada.

- Vais ou não calar-te? - perguntou ele.

Tal como um caracol assustado, o corpo franzino da rapariga ainda se encolheu mais. O pai era marinheiro, um rude trabalhador, que não suportava lamúrias. Conhecia bem a força das suas palmadas. Mas esta dor que agora experimentava era diferente. Escondeu a cara no colo da mãe.

- Deixa-a lá, pak', deixa-a - ouviu a mãe dizer. E as carruagens puseram-se de novo a caminho.

- O pai tem razão - disse-lhe a mãe. - Nenhum pai lançaria a sua própria filha aos leões. Sabes isso, não sabes? O que o pai quer é a tua felicidade. Olha para mim... Já vivi muitos anos, mas nunca possuí uma peça de batik tão bonita como essa que agora tens vestida.

- Então fique com ela - suplicou a rapariga.

- Olha para ti: repara no batik e na kebaya, no colar, nesses lindos brincos e na pulseira de ouro em forma de serpente... O teu pai e eu trabalhámos tanto para que pudesses ter estas coisas... - agora era a mãe da rapariga que não conseguia falar. Engoliu em seco, tentando controlar-se e falar com naturalidade. - Meu Deus, nunca imaginei que a minha pequenina viria um dia a ter estas coisas. E, não se conseguindo conter por mais tempo, rebentou em lágrimas.

- Ó mãe; não se ponha também a chorar -, balbuciou a Rapariga de Java por entre soluços.

A mãe virou a cabeça, olhando pela janela da carruagem para o mar que ao longo da vida lhe dera o sustento. Não podia dizer que estava a chorar por ver a filha escapar em segurança daquela aldeia de pescadores. Ia subir na escala social, já não precisaria de suar ou labutar e de andar a correr para recolher o peixe seco, sempre que começava a chover.

- A partir de hoje... - começou ela a dizer; mas não foi capaz de dar continuidade a esta corrente de pensamentos.

- Tens sorte em ter casado com um homem piedoso. O teu marido já fez duas vezes a peregrinação a Meca. Quem pode

 

' Pai.

 

dizer quantas passagens do Corão ele sabe de cor? Quando uma mulher casa, minha filha, torna-se má, se o marido é

mau, e boa, se o marido é bom. Que defeitos se lhe podem apontar?

Ele? Mas quem era ele? A Rapariga de Java fechou os olhos. Nem sequer conseguia imaginá-lo. Seria um homem melhor do que o seu irmão Tumpon, que se perdera no mar no meio de uma tempestade? Ou do que Kantang, o outro irmão, que, ao mergulhar para libertar a rede que ficara presa num banco de coral, nunca mais voltara à superfície, cujos únicos restos tinham sido uma onda tingida de vermelho, que até o mar voltou a sugar depois de um tubarão lhe ter rasgado a barriga em dois? Seria este homem que era agora o seu marido capaz de dar a vida pela família, como o fizera Kantang?

- É um homem importante - continuou a mãe - um homem poderoso a quem o próprio Regente recorre para pedir apoio. Até o Residente holandês esteve em sua casa. Toda a gente sabe isso.

Ao entrar na cidade, as carruagens viraram para uma rua ladeada de lojas chinesas. O que ela via agora era igual ao que vira há dois anos quando, com outras pessoas da aldeia, viajara até à cidade para ir a uma feira nocturna. Ainda se lembrava do crocodilo embalsamado pendurado por cima da porta da sapataria, e da fábrica de cerâmica que fazia ladrilhos de flores multicores e dos grandes edifícios com as suas altas colunas brancas, tão largas que ela nem sequer conseguiria circundar com os braços.

Quando as carruagens se aproximavam da praça central da cidade, o pai da Rapariga endireitou as suas roupas. Depois aclarou a garganta e coçou o pescoço. A mãe, sentada ao lado dela, parecia ansiosa e assustada.

As carruagens viraram à direita. Lá estava a escola e a grande mesquita, de que ainda se recordava. Do lado de lá da praça erguiam-se os edificios da Regência e, ao lado, o Colégio Holandês e um prédio de vários andares.

O coração da Rapariga batia- lhe, acelerado. Viu o pai saltar da carruagem e encaminhar-se para a dela. Tinha o rosto pálido e a voz fraca quando lhe disse que chegara a hora de também ela descer da sua. Olhou em redor até os seus olhos se pousarem num portão imponente por onde iam passar. Ninguém os aguardava.

- Vamos, vamos - apressou-a o pai; mas ele próprio não se moveu do sítio onde estava.

Depois de ter descido das carruagens, a comitiva juntou-se no passeio, formando um grupo, sem saber o que fazer. As paredes de pedra eram demasiado altas para se conseguir espreitar para dentro. A mãe da Rapariga pegou na mão do marido. Quase automaticamente ele murmurou:

- Vamos, vamos - mas continuou pregado ao chão.

A mãe, enchendo-se de coragem, começou a andar em frente, mas, ao ver que ninguém a seguia, parou e olhou para o marido, que, na sua ansiedade, apertava a mão da filha. Nesta situação constrangedora, era difícil perceber quem estava a dar apoio, ou quem estava a recebê-lo. Por fim, passo-a-passo, o cortejo nupcial começou lentamente a avançar.

Passaram pela casa de dois andares que, aparentemente, era um anexo da casa principal que lhe estava contígua e pararam no passeio entre os dois prédios. Aproximou-se um criado que os mirou dos pés à cabeça.

- O que querem vocês? - perguntou ele.

- Está aí o seu patrão?

- O Bendoro está a fazer a sesta. - Ao dar essa resposta os olhos do homem inspeccionaram a Rapariga de Java.

Uma estranha quietude pairou na atmosfera. O céu, escurecido pelas copas das figueiras-de-bengala e, ao longe, o marulhar das ondas envolveram num calafrio perturbador o cortejo nupcial. A mãe da Rapariga abriu a boca para falar, mas não saiu dela qualquer som.

- Acabámos de chegar da aldeia e estamos aqui para ver o Bendoro.

O criado virou costas e entrou na casa por uma porta aberta na parte mais baixa da parede. Tudo quanto conseguiam ver diante deles era aquela enorme parede caiada de branco. À direita, o chão da casa principal elevava-se até pelo menos à altura da cintura da Rapariga. Mais adiante, havia um pátio cujo telhado se apoiava em três filas de colunas paralelas, seis em cada fila. A Rapariga tinha a certeza de que não poderia rodeá-las com os braços, e duvidava que o pai tão-pouco o conseguisse. Os pardais esvoaçavam por entre o incessante movimentar das andorinhas e os corvos, empoleirados nas árvores, atroavam os ares com o seu grasnar assustador.

Então surgiu à porta uma mulher idosa, fazendo-lhes sinal para a seguirem.

 

' Título da nobreza.

 

O cortejo encaminhou-se imediatamente na sua direcção, atravessando o portão de entrada.

Foram seguindo atrás da mulher, passando debaixo das enormes janelas da casa principal e atravessando um pátio interior plantado de tangerineiras e de uma sebe de kingkzt. Subiram uns degraus e entraram numa sala tão grande que era pelo menos quatro vezes maior do que toda a casa deles. No centro havia uma mesa com quarenta centímetros de altura. Depois prosseguiram e entraram num corredor de tal modo comprido que parecia ir ficando cada vez mais estreito no extremo oposto.

Estava mobilada com algumas cadeiras e com um sofá encostado à parede. Na outra extremidade havia uma outra sala, cuja porta estava aberta de par em par, divisando-se lá dentro uma cama larga de ferro, com colunas encimadas por reluzentes maçanetas de cobre. Do tecto, preso por ganchos de marfim, pendia uma rede de mosquiteiro.

O grupo formado pela comitiva da noiva foi deixado, especado, nessa sala comprida. Ninguém conseguia proferir uma palavra. Até a Rapariga de Java esquecera as suas lágrimas. Não tinham coragem de se mexer de onde estavam, muito menos de sair da sala. A dada altura ouviram um murmúrio de vozes do lado de fora da porta.

Apareceu por fim uma criada, com uma criança pendurada às costas, que lhes serviu um chá fortemente açucarado.

Os aldeões seguiam atentos cada movimento da criada, perguntando a si próprios de quem seria aquela criança.

- Bebam alguma coisa por favor - disse ela, fazendo

 

' Tipo de arbusto que dá uns pequenos frutos, da família dos átiinos.

 

uma reverência; em seguida começou a recuar para longe deles, como se fosse sair da sala.

- O patrão ainda está a dormir? - perguntou o chefe da aldeia.

- Acorda às cinco horas.

- Eu sou o chefe da aldeia...

- Mas eu não me atrevo a ir acordá-lo.

- De quem é essa criança? - perguntou a mãe da Rapariga em voz baixa e trémula.

A criada reajustou a faixa que prendia a criança, de modo que ela ficasse virada para a frente. Aparentava ter uns dois anos. O nariz era proeminente: Tinha os olhos fechados e dormia de boca aberta, exibindo uma fileira de dentinhos brancos.

- Está tudo muito sossegado aqui, não está? - comentou o maioral.

- Não fale tão alto. Aqui não é a sua aldeia - repreendeu-o a criada.

- De quem é esse bebé? - murmurou de novo a mãe, com a voz tensa, angustiada pela dúvida.

- É do meu patrão, o Bendoro.

A mãe mordeu o lábio e apertou fortemente o xaile sobre os ombros.

- Onde está a mamã dele? - inquiriu o pai.

- Não falem tão alto - fez ela lembrar de novo ao grupo.

- O filho de um nobre não tem uma "unamã". Tem uma mãe.

- E onde está a mãe dele? - quis saber o pai.

- Voltou para a sua aldeia.

- Sendo assim, quando é que ela volta? - tornou o pai.

- Não vai voltar. O Bendoro divorciou-se dela.

- Por que é que se divorciou dela?

- Como havia eu de saber? Isso é lá com o Patrão.

- E quando? - insistiu o pai.

- Há quase dois anos.

- Mas o rapaz não pode ter mais que dois anos - foi a vez de a mãe observar.

- E nunca chegou a ver a mãe - acrescentou a criada.

- O quê? Ela morreu? - perguntou a mãe.

- Não, já lhe disse que voltou para a aldeia. Desde então, nunca mais ninguém a viu.

A mãe inspirou fundo e suspirou alto.

- Por favor, não tão alto - tornou a dizer a criada. - As únicas vozes que podem ser aqui ouvidas são as das pessoas importantes que vêm visitar o Bendoro. E, claro, a do próprio Bendoro.

- Então... - ia dizer o chefe da aldeia.

- Silêncio! - exigiu a criada, enquanto se esgueirava da sala. A mãe ergueu o queixo da filha e olhou-a nos olhos. A Rapariga levantou os braços para a abraçar, mas a mãe afastou-a com uma das mãos. Com a outra ajeitou-lhe a roupa e retocou- lhe uma vez mais a maquilhagem. Olhou para o marido que, por seu turno, olhou para o chefe da aldeia. A Rapariga de Java pousou os olhos na chávena de chá intacta. Mas, por muito seca que sentisse a garganta, não teve coragem de beber. Na sua própria casa, se lhe apetecesse, era capaz de beber até ficar com a barriga inchada.

Ouviram, do lado de fora da sala, uma voz de mulher. Era a criada dizendo:

- É a hora do banho, Agur Agoral O nosso Bendoro Gunr está quase a chegar e ainda não te lavaste.

Regressou à sala, ainda com a criança às costas. Relanceou o olhar para as chávenas de chá intactas e tentando parecer simpática, disse:

- Estejam à-vontade, bebam, por favor.

Todos os convidados sorriram e acenaram com a cabeça, mas não tocaram no chá. O pai estava com sede. Notou que estava a transpirar. Parecia-lhe que todo o corpo estava encharcado de suor, não aquele suor de puxar a rede do mar; este tinha um cheiro que lhe era totalmente estranho.

- Quem era o rapaz com quem estava a falar? - perguntou a mãe, já preocupada com a resposta.

- Era o Agur.

- É filho do seu Patrão?

- É.

- Onde está a mãe dele?

- Voltou para a aldeia.

- E quando regressa?

- Ela não vai regressar.

- Então deve ser o irmão mais velho deste bebé.

- Sim - confirmou a criada.

Todos os olhares se voltaram para a criança, escondida na bandoleira às costas da criada.

- Deve ser tão bonito como este rapazinho - comentou o chefe da aldeia.

- Não, não! Este é muito mais bonito. A mãe não é a mesma, são filhos de mães diferentes.

 

' jovem senhor.

' O Senhor Professor.

 

O maioral começou a revolver as mãos dentro das algibeiras do casaco preto de linho, roupa condigna com a sua posição. Depois endireitou o turbante e pigarreou.

- Caluda! Não façam tanto barulho.

O chá sobre a mesa permanecia intocado.

- Mbok, Mbok! - ouviram alguém a chamar. Era a voz de um adulto.

- Sim, Bendoro Guru - respondeu a criada em voz comedida; e em seguida, sem um olhar para a comitiva, saiu da sala.

Ouviram-na dizer na outra sala:

- O Agu. Rahmat está a tomar banho, Bendoro. Sente-se, por favor.

Um quarto de hora passou; ouviram então a voz do dono da casa dirigindo-se a alguém num idioma que não conseguiam compreender. Foi o rapaz, o Agur Rahmat, quem respondeu numa língua que também lhes era desconhecida.

- É espantoso como o Bendoro educa os filhos - murmurou o chefe da aldeia. Ainda tão novo e já sabe falar holandês. Não consigo perceber uma palavra. - virou-se para a Rapariga de Java: - Quando tiveres filhos - disse-lhe ele - também irão receber a mesma educação.

A jovem empalideceu e apertou com força a mão da mãe. Lá fora, o Sol escondera-se por detrás das copas dos pinheiros e das palmeiras. Com a subida da maré, o barulho das ondas tornava-se agora mais audível.

Do lado de fora da sala onde estavam ouviram uma voz suave perguntar:

- O que é que disseste?

- Disse-te para não jogares futebol. É proibido, é pecado. Não te lembras do que disse o teu pai? Só os miseráveis pagãos jogam futebol. Não te esqueças disso. É como se estivessem a dar pontapés nas cabeças dos santos Hasan e Husin. Também queres ser um pagão, jovem senhor?

Ouviram a mesma voz suave da criança replicar, ao entrar num quarto:

- Que me interessa? Vamos jogar contra a Escola Holandesa. E vamos ganhar.

Por entre o ruído da rebentação das ondas, das conversas em várias línguas estrangeiras e do murmúrio do vento rodopiando no céu, aperceberam-se do som esbatido de pesados chinelos de cabedal.

- O Bendoro acordou - sentenciou o maioral. Os aldeões aprumaram-se, com a atenção centrada no ruído cada vez mais próximo dos chinelos pesadamente arrastados pelo soalho. Depois ouviram um som que parecia nitidamente um traque.

- O que foi aquilo? - perguntou a mãe ao maioral. Suspeitava, o que seria, mas não tinha a certeza. Abanou a cabeça. Não era possível! O marido dela dava traques em casa, o que ela detestava.

Aperceberam-se de que os chinelos tinham parado. Alguém arrastou uma cadeira e uma voz gritou:

- Mardi!

- Sim, Bendoro.

Seguiu-se uma breve troca de palavras cujo sentido não conseguiram captar. Depois:

- Por que é que não me acordaste? Traz-me aqui o chefe. Na sala reinava um silêncio de morte. Estavam todos de olhos arregalados, pregados na porta. Nem deram pelo arquejar do chefe. Este pôs-se de pé e, enfiando de novo as mãos nas algibeiras da sua jaqueta das grandes ocasiões, tirou para fora uma adaga, embrulhada em seda amarela, e ergueu-a à altura do nariz. O punho era de madeira castanho-escuro e tinha uma rã esculpida na extremidade. Um homem espreitou para dentro da sala e, sem mais formalidades, anunciou:

- O Bendoro quer ver-te, chefe.

O chefe da aldeia ergueu-se de um salto, quase derrubando a cadeira. Enxugou a testa com a manga do casaco e encaminhou-se receosamente para a porta, continuando a segurar o keris em frente do nariz.

- Selamat, selamat Oxalá tudo corra bem - suplicou o pai vezes sem conta.

- Selamat - repetia a mãe.

O chefe da aldeia desapareceu da vista deles. Bem se esforçaram por ouvir o que estariam a dizer, mas apenas lhes chegou aos ouvidos as vozes do Bendoro Gurr-t e do Agur Rhamat falando em holandês.

De súbito, uma voz berrou:

- O quê? Não sabes, chefe?

- Selamat, selamat - murmurou outra vez o pai.

- Selamat - acrescentou a mãe com veemência. A Rapariga apertou ainda com mais força o braço da mãe, que lhe segredou resolutamente:

- Diz: Selamat.

- Se-la-mat - repetiu a Rapariga num sussurro.

- Selamat - murmurou a mãe. Depois de novo: - oxalá tudo te corra bem, filha.

- Não me deixes, mãe!

- Cala-te. Oxalá tudo corra bem. Vá lá, diz outra vez.

Não havia janelas na sala. Esta estava localizada na parte de trás da casa e era construída, não em tijolo, mas em madeira. O Sol tentava brilhar através de algumas espessas telhas de vidro do telhado. Nas paredes estavam pendurados quadros compostos por caracteres árabes. Talvez fossem versículos do Corão. Perto da porta havia um grande espelho com uma larga moldura decorada com motivos chineses.

Passou meia hora. O pai estava coberto de suor. Isto era mais dificil do que moer mil libras de milho, pensou a mãe para consigo. A Rapariga de Java contorcia-se e agitava-se na cadeira, como um rato que tivesse caído numa vasilha de suco de cana-de-açúcar. De vez em quando sentiam- se tentados a espreitar pela porta. Nenhum deles o fez. Não ouviam senão os passos dos vários criados que, curiosos, os vinham espreitar.

Finalmente, quando o chefe regressou, a sua cara estava muito pálida. Já não tinha consigo a adaga. Foi logo direito à mãe da Rapariga:

- Maldição - sibilou.

Ela empalideceu subitamente.

- Porquê? - disse, arquejando.

- Você não me disse se a Rapariga já era menstruada ou não.

A mulher olhou para o marido e em seguida para a Rapariga:

-Já és? - perguntou.

Com a cabeça ainda inclinada, ela ergueu as sobrancelhas, franzindo- as.

- Então, já és? - insistiu a mãe. Era evidente que a Rapariga de Java não sabia o significado do vocábulo "menstruada".

Foi a vez de o pai, irritado e inquieto, a interrogar:

- Compreendes ou não a pergunta? Sabes o que significa a palavra "menstruada"?

A Rapariga olhou receosa para a mãe.

- Desculpa, se calhar a culpa foi minha - interveio a mãe. Depois, apaziguadoramente, disse à filha:

- Talvez não saibas o que a palavra quer dizer, é isso. Sabes, quando é "aquele período do mês" e vem sangue... percebes, não percebes?

O chefe observou a mãe e a filha olhando uma para a outra, aflitas. De repente a mãe ergueu-se e arrastou a filha para um sofá que estava num dos cantos da sala. Mal se tinham sentado e eis que a mãe se ergue de um salto, como se tivesse apanhado um choque. Apalpou as almofadas do sofá. Nunca antes experimentara uma sensação semelhante.

Agarrando-se ao braço do sofá, pasmada, fitou a filha que também estava a apalpar as almofadas do sofá. Vendo que a mãe se tinha posto de pé, ela ergueu-se imediatamente.

A mãe segredou-lhe qualquer coisa, mas tudo o que a Rapariga conseguia fazer era abanar a cabeça, de olhos fixos na mãe, que por sua vez também meneou a cabeça, franzindo as sobrancelhas de espanto, e virando-se para o marido. Com o desalento estampado no rosto, afastou-se da filha e aproximou-se dele:

- Diz-lhe que sim - murmurou.

O pai voltou-se então para o chefe da aldeia:

- Sim, já é. Sem dúvida que sim.

Ainda duvidoso, o chefe saiu da sala.

- Por que não foste tu chamado? - perguntou a mãe ao marido.

O pai, parecendo a ponto de rebentar em lágrimas, encarou a mulher sem dizer nada.

Os outros membros da festa de casamento também se conservavam em silêncio. Ninguém pronunciara uma palavra desde que tinham partido da aldeia.

- Seja como for, tu é que és o sogro, não és?

- Não podemos ir para casa, MabI - perguntou a filha.

- Cala-te.

No momento em que o chefe regressou à sala onde todos estavam, o gongo da mesquita situada no centro da cidade, a umas dezenas de metros da casa do Bendoro, começou a tocar, chamando os fiéis para as orações do fim do dia. Em seguida, outro gongo, este apenas a alguns metros da sala, começou a fazer eco ao chamamento mais forte do primeiro.

- Como vês, a minha missão terminou - declarou o chefe da aldeia ao pai. - Trouxe-vos sãos e salvos até ao Bendoro. Portanto já posso regressar a casa. Espero que tudo corra bem convosco. Depois, para a Rapariga: - agora passas a viver aqui. Os teus pais ainda aqui ficam contigo mais uns dias. Depois disso, como esposa do Bendoro, dependerá de ti orientar as coisas à tua maneira.

- Já te vais embora? - protestou o pai.

- Por que não? O que tinha aqui a fazer, já está feito. És tu o sogro do Bendoro, de uma pessoa importante, por isso tens de aprender a agir como tal. Não faças disparates. Ainda te restam alguns dias para ensinar à tua filha aquilo que ela precisa de aprender. Entendes o que quero dizer? - Sem esperar resposta, virou as costas e foi-se embora.

 

' Mãe.

 

Uma criada entrou na sala e levou dali os pais da Rapariga, bem como os outros membros da família.

A Rapariga de Java ficou sozinha na sala, perplexa e atarantada.

O chá pousado na mesa estava frio. De repente, a sala ficou toda iluminada; alguém tinha acendido o interruptor da luz eléctrica. A Rapariga, surpresa, pousou os olhos es pantados na lâmpada até começar a ver estrelas.

Passou as palmas das suas mãos rugosas sobre a toalha de mesa, apalpando-lhe a textura. Era bordada a toda a volta com caracteres árabes, que a ela lhe pareciam pequenos brotos de feijão, círculos, pontos e linhas curvas. Olhou em volta, e ao ter de súbito a percepção de que o vento nunca poderia atravessar as paredes daquela sala, a atmosfera tornou-se-lhe insuportavelmente opressiva.

Na sua própria casa, àquela mesma hora, costumava estar a moer, no almofariz colocado no canto da casa, os pequenos camarões que nesse dia tinha secado ao sol, até ficarem transformados em fino pó. Depois, às sete da manhã, vinha um chinês da cidade para recolher a farinha de camarão. A mãe dela contava o dinheiro da venda, colocando-o na concavidade de um dos suportes de bambu.

Nesta sala não havia nenhum almofariz, nem cheiro a camarão seco. Não havia nada pendurado nas paredes, a não ser a inodora caligrafia árabe.

A criada voltou a entrar na sala, desta vez sem o bebé às costas. A Rapariga de Java ergueu-se da cadeira. A criada inclinou-se diante dela, numa profunda reverência. Por que razão estava ela a fazer isso? Ainda há um momento eram consideradas iguais. Por que estava agora a mulher tão humilde?

A Rapariga de Java sentia-se nervosa, assustada, desconfiada. O que estaria a acontecer? Onde é que a iam levar? Por que é que não podia ir com a mãe e com o pai? Apetecia-lhe pôr-se a gritar.

A criada colocou um embrulho sobre o toucador, abriu-o e tirou para fora uma toalha, escova e pasta de dentes, sandálias japonesas de palha entrançada, uma escova de tartaruga com cabo de prata, várias espécies de perfumes e uma caixa de pó-de-arroz obviamente trazida do estrangeiro.

A mulher acocorou-se então no tapete estendido entre a cama e o toucador e erguendo os olhos para a Rapariga e com um sorriso de orgulho declarou:

- Este é o seu quarto.

Não sabendo o que fazer, a Rapariga aproximou-se embaraçada do toucador. Os frascos de perfume, de diversas formas e tamanhos, cintilando sob a luz do candeeiro, deslumbravam-na. Pegou num deles, examinou-o e em seguida levou-o ao nariz para o cheirar. Olhando para a mulher, acariciou a borla verde sobre a rolha do frasco, apalpando entre os dedos os finos fios de seda. Eram tão suaves ao tacto que quase esqueceu os seus receios.

- O que é isto? - perguntou à criada. A mulher riu-se cortesmente:

- É perfume, Mar Nganten.

- Mar Nganten? A quem está a chamar "Minha Senhora"? A criada reprimiu uma gargalhada. Contemplou a sua nova patroa, tão jovem, e acariciou-lhe o queixo. Finalmente, apontou com o polegar para o peito da Rapariga.

 

' Minha seniiora, jovem senhora.

 

- Esta criada? - inquiriu a Rapariga, aludindo a si própria. A mulher reprimiu de novo o riso. Depois corrigiu a jovem:

- Nunca mais deve referir-se a si dessa maneira diante de mim, minha senhora. Esse é o modo como eu me refiro a mim mesma quando estou com a senhora.

- Porquê? - quis saber a Rapariga. Depois, sem fazer caso da resposta singular da mulher, estendeu a mão para a escova prateada. O brilho do metal reflectiu-se nos seus olhos. - É tão bonito! - murmurou. - Por que é que trouxe estas coisas para aqui?

- São para a senhora.

A Rapariga de Java ficou sem fala; deixou cair em cima do toucador a escova que tinha na mão. A criada parecia-lhe tão estranha que ficou imediatamente desconfiada.

- São para mim?

Em vez de responder, a criada desdobrou a comprida túnica - um sarong de seda azul extraordinariamente leve e suave.

- Aqui está, vista isto, minha senhora, para depois ir tomar banho.

Como se fosse uma grande boneca, a criada despiu todas as roupas que ela usava e depois embrulhou-a no casulo da leve seda azul. Acostumada a arrastar na aldeia as redes de pesada fibra que ela própria fazia, a jovem sentiu-se completamente nua ao usar um vestido tão leve.

- O seu banho está pronto, Ma, mganten. Adicionei à água perfume e pétalas de flores. Está habituada a tomar banho sozinha?

A pergunta da criada despertou-a imediatamente do transe em que se encontrava mergulhada. Deu um passo para trás, olhando por um breve momento para a criada e em seguida para a seda azul que lhe envolvia o corpo.

- O que quer dizer isto? - gritou ela para consigo mesma. Mas apenas inquiriu em voz alta: - Onde está a minha mãe?

- Na cozinha.

- Leve-me junto dela, por favor.

- Chiu!

A Rapariga bateu com o pé no chão:

- Leve-me até junto dela!

- Mar mganten, isso não seria próprio da primeira esposa. Quando ela deseja alguma coisa, a única coisa que tem a fazer é dar um estalo com os dedos e logo o seu desejo será satisfeito. Por agora, é minha obrigação cuidar de si, Mar Nganten. E antes de o Bendoro dar autorização, não pode estar com ninguém. Venha comigo e dar-lhe-ei banho. Pode calçar estas chinelas.

Ao ouvir o nome do Bendoro, a Rapariga de Java perdeu logo a vontade de protestar. Nunca em toda a sua vida calçara sapatos ou chinelas mas enfiou automaticamente os pés nas chinelas japonesas entrançadas e sem oferecer resistência pegou na mão que a criada lhe estendia para lhe mostrar o caminho.

Saíram do quarto de dormir e atravessaram a sala das traseiras, agora deserta, onde anteriormente o Bendoro e o seu filho, o Agur Rahmat, tinham estado a falar. Era uma divisão enorme, quatro vezes maior do que a sua própria casa na aldeia. Depois desceram umas escadas, em frente das quais se erguia um grande edifício com um telhado de telhas pretas. A Rapariga hesitou por um momento.

- Isto é apenas a cozinha - informou-a a criada. Viraram então à esquerda, ladeando a parede exterior da cozinha. Chegaram à casa de banho de largas paredes de pedra, situada na retaguarda, e cuja porta já se encontrava aberta, como que a aguardá-las.

Ao entrarem, a porta pareceu fechar-se automaticamente nas suas costas. A Rapariga ouvia distintamente o barulho de água a correr.

Depois do banho, ao regressar ao quarto, um novo conjunto de roupas aguardava a jovem. Todo o seu corpo lhe parecia estranho. O perfume que emanava da sua pele fazia-lhe andar a cabeça à roda. Sentia-se tão esquisita! Nunca o seu corpo cheirara tão bem. Este não era o seu cheiro habitual. E o leve e delicado tecido do seu traje dava-lhe a impressão de que não tinha nada vestido. Tinha porém que admitir que a sensação de ter as sandálias calçadas era agradável. Mas nem mesmo enquanto ia discorrendo para consigo sobre estas suas novas sensações a voz da criada parou de lhe zumbir aos ouvidos:

- Lembre-se, minha senhora, que isto tem que se fazer desta ou daquela maneira... - e continuava a falar, a falar.

Ao aplicar-lhe kblem volta dos olhos, a criada comentou:

- Isto faz os seus olhos parecerem maiores, minha senhora. Dá-lhe um ar de mais autoridade.

Enquanto se olhava ao espelho, via a sua cara aos poucos transformar-se até que, por fim, deixou de se reconhecer a si própria.

- Sou mesmo eu? - murmurou ela para o espelho.

- É muito bela - suspirou a criada.

Iria ser este o mundo em que passaria a viver.

Nessa noite, quando o relógio bateu doze badaladas na sala longínqua do centro daquela grande casa, a Rapariga de Java, encontrava-se só, deitada na cama e rodeada pelo silêncio. O tiquetaque do relógio era para ela uma tortura, mas o seu corpo não deixou de apreciar a sensação de mergulhar em tão macio colchão; era quase como se estivesse deitada em lama quente. O perfume do seu corpo e das roupas fazia-lhe voar o pensamento até à aldeia. Jamais sonhara que existisse neste mundo aroma tão refrescante. Lá, por onde quer que se fosse ou onde quer que se estivesse, existia apenas um tipo de cheiro: o cheiro de peixe da costa.

Um dia, o pai salvara um homem que se perdera no mar. As pessoas da aldeia tinham cuidado dele até se restabelecer, alimentaram-no, vestiram-no e deram-lhe a beber infusões de ervas medicinais. O homem - como se chamava ele? Não conseguia agora recordar-se - falou-lhe de flores e de diversas espécies de perfumes extraídos delas, mas na sua aldeia junto à costa nunca encontrara uma flor que cheirasse tão bem.

A jovem olhou para o chão. A noite fez-se mais profunda, mas os seus olhos não queriam fechar-se. Já não sabia se era feliz ou não. Da sala do centro chegou-lhe aos ouvidos a voz de um homem recitando o Corão. Era uma voz forte e profunda que ressoava como o trovão, repercutindo por uma gruta escondida na montanha. Nunca ouvira tão esplêndida recitação. A noite, antes refrescante, tornara-se fria e o vento do oceano, soprando por entre as copas das frondosas árvores que ladeavam a costa, rodopiava agora em cima das telhas, sobre a sua cabeça.

Duas horas mais tarde o canto corânico cessou e com ele - pelo menos assim lhe pareceu - o mundo parou de girar e o seu próprio coração de bater. Apercebeu-se de um pesado bater de sandálias, cada vez mais forte à medida que se aproximava do quarto. A porta abriu-se e de novo ouviu os mesmos passos, agora mais cautelosos. Semicerrando os olhos, viu através das pestanas um homem aproximar-se da sua cama. Era alto, de rosto magro, nariz adunco e tez dourada. Vestia uma túnica de seda branca e um opulento sarong preto circundado junto à bainha por estreitas tiras brancas e na cabeça um solidéu, o opia, uma espécie de chapéu sem abas que ela vira nos homens que tinham feito a peregrinação a Meca. O homem acordou a criada com o pé. A mulher enrolou apressadamente a esteira em que estivera deitada, com a almofada dentro, e rastejou até à porta, onde se ergueu numa reverência, desaparecendo.

A Rapariga de Java virou-se rapidamente para a parede. O coração parecia-lhe ter deixado de bater e o corpo ficara alagado em suores frios. Se não era medo o que sentia, então já não sabia o significado da palavra. Estava demasiado assustada para pensar, o medo era tanto que nem conseguia chorar.

Embora não o pudesse ver, apercebeu-se de que o homem tinha entreaberto o mosquiteiro que a rodeava.

- Mar Nganten - murmurou.

Todo o seu corpo foi invadido por uma sensação estranha, como se estivesse coberto por milhares de formigas.

- Mar Nganten - disse ele novamente.

Como um autómato, virou o corpo para o lado de onde vinha a voz, depois sentou-se inclinada para a frente, a cabeça curvada, os braços estendidos ao longo do corpo e as mãos apoiadas no colchão.

- Sim, meu amo - murmurou ela.

- Sou o teu marido.

- Sim, Bendoro.

- Diz.

A Rapariga não compreendeu.

- Graças a Deus.

- Graças a Deus - repetiu ela. Depois disso, não se lembrou de mais nada. Tudo o que conseguia recordar era ter-se deitado de novo, com a cabeça repousando agora não no travesseiro, mas no braço do Bendoro, de uma mão suave a acariciar as suas pequenas mãos e de uma voz meiga a dizer-lhe:

- As tuas mãos são tão ásperas!

- Sim, Bendoro - murmurou ela automaticamente.

- Não trabalharás, enquanto aqui estiveres. As tuas mãos devem ser tão macias como veludo. Nada na primeira esposa pode ser grosseiro.

- Sim, Bendoro.

Não poderia contar as vezes que repetiu estas duas palavras; mas, de qualquer forma, mesmo que quisesse, não o conseguiria, pois nunca aprendera a contar para além de cinquenta.

Perto já da madrugada, ouviu o piar de um mocho no cimo do telhado e o seu corpo foi percorrido por um arrepio. Com a cabeça ao lado do peito do Bendoro, sentia distinta mente o bater do coração dele e esse som fazia-lhe lembrar a explosão distante do fogo-de-artifício nos dias do Ano Novo chinês.

- Sentes-te feliz aqui?

- Sim, Bendoro.

- Gostas de roupa de seda?

- Sim, Bendoro.

Sentiu a suave carícia da mão dele no seu cabelo. Os pais nunca lhe haviam feito festas dessa maneira. O suave toque daquela mão foi gradualmente fazendo desvanecer os medos, aflições e a sensação de opressão que antes se havia apossado dela. Parecia que cada afago lhe chegava até ao coração, aliviando-a. Que mãos suaves as dele! Mãos de uma pessoa de estudos, cujas únicas ferramentas eram os livros e o ponteiro de bambu para indicar as linhas que ia lendo. Não eram como as do pai ou da mãe, prontas a voar pelo ar e a aterrar em alguma parte do seu corpo, sempre que fazia alguma asneira. Apesar disso, as rudes mãos dos pais podem ter-lhe infligido dor no corpo, mas nunca, nem ao de leve, no coração. Minutos depois do incidente, faziam as pazes, como se nada se tivesse passado. Mas estas mãos suaves - como elas acalmavam o coração e lhe faziam correr o sangue mais apressado!

Quando o Bendoro adormeceu, a Rapariga, que ainda continuava com a cabeça pousada no braço dele, lançou-lhe um olhar furtivo. Tinha a pele tão fina, como a de uma criança. Desejava tocá-la e sentir a sua macieza, tal como um dia o fizera com o irmão mais novo quando ele era bebé, mas não se atrevia. Deixou-se ficar deitada, sem ousar mover-se, até os galos, no pátio das traseiras da casa, começarem a cantar. Eram três horas. O Bendoro ergueu-se prontamente e ela seguiu-lhe o exemplo.

- Hora do banho - disse ele.

Estava acostumada a acordar quando os galos começavam a cantar. Ia então lá fora, por trás da casa, e punha-se a olhar para o mar onde, por entre o véu da escuridão, descortinava as luzes bruxuleantes dos barcos de pesca que iam começar a sua faina. Uma dessas luzes era a do barco do pai.

Mas, tomar banho, tão cedo?

Tinha medo de ir sozinha à casa de banho mas, mais receosa ainda do Bendoro, desceu as escadas e dirigiu-se à cozinha. Foi surpreendida pelo súbito aparecimento da criada que a cumprimentou, lhe pegou na mão e a conduziu à casa de banho. Aí, uma pequena lâmpada eléctrica iluminava os coloridos desenhos dos ladrilhos do chão sob os seus pés. Eram belos, tão belos quanto os seus bocados de coral favoritos que guardava lá longe, em casa. Apeteceu-lhe arrancar um bocado do chão para o levar consigo para a aldeia e, na tarde de folga, poder contemplá-lo e passar a mão pela sua superficie. Como era bonito!

Numa bacia de porcelana chinesa decorada com dragões estava já preparada a água perfumada com a qual, tal como na noite anterior, foi banhada.

Em seguida, a criada ensinou- lhe o ritual da purificação para antes da oração:

- Use água benta antes de rezar - aconselhou a criada.

- Mas, com toda a água com que me lavei, ainda não estou suficientemente limpa? - perguntou a Rapariga.

- É assim que sempre se tem feito, Mar Mganten. Pela primeira vez na vida, a Rapariga de Java purificou-se com água benta, ficando assim preparada para a oração.

A criada conduziu-a então de volta ao quarto de dormir onde a penteou, prendendo-lhe o cabelo, e a vestiu. Em seguida fê-la passar pelo quarto das traseiras até chegar a uma porta, na parede do fundo, que parecia muito pequena, em comparação com as grandiosas proporções do quarto, com o seu tecto alto de cor creme ricamente ornamentado.

A criada indicou-lhe a porta com um gesto:

- Aqui é o kalat

- Khalat?

- Sim, a sala de oração. Mas pronuncie como deve ser. É "balal", com "klu".

Sem esperar que a Rapariga repetisse a palavra correctamente, a criada abriu a porta da sala.

Era uma vasta divisão, de forma rectangular, profusamente iluminada por dois candeeiros eléctricos, que pendiam do tecto suspensos por compridos cabos. Não havia na sala qualquer peça de mobiliário, apenas dois tapetes, um perto da porta por onde tinham entrado e o outro do lado oposto.

Do canto da sala onde estava arrumado, a criada retirou um manto branco próprio para a oração, com o qual cobriu a cabeça e o corpo da Rapariga.

- Deixe-se ficar aqui sentada sem falar. E não saia daqui. O Bendoro irá sentar-se ali à frente. Tem que rezar com o Bendoro, Mar Mganten.

- Mas eu não sei!

- Então faça tal e qual como ele fizer.

- Não sou capaz.

- Como primeira esposa, compete-lhe aprender o modo de o fazer. Tem de aprender a agradar em tudo ao Bendoro. Não se esqueça disso.

Depois a criada desapareceu discretamente, tal como um gato no escuro da noite.

Sentindo-se qual rato apanhado numa ratoeira, a Rapariga de Java ali ficou, sozinha, sentada na enorme sala, como jamais vira, sinistra e assustadora. De vez em quando uma andorinha entrava pelo ventilador na parte de cima da parede em frente dela e depois, tão rapidamente como entrara, voava para fora de novo. A Rapariga apercebia-se agora de que não só o silêncio a assustava, mas também o facto de não poder mover-se nem sair do lugar onde estava. Pôs-se a soluçar - sozinha. E ninguém se importava com isso!

As espessas paredes de pedra eram mudas e impiedosas.

- Que faço eu aqui? - gemeu baixinho. Era como se fosse apenas parte da parede, sem existência própria.

Ao ouvir o Bendoro entrar por uma porta lateral, a jovem ergueu a cabeça para olhar para ele. Usava um turbante e vestia uma túnica de seda branca e um sarong preto. Um xaile bordado rodeava-lhe o pescoço. Estava descalço, sem as sandálias. Na mão direita segurava as suas contas de rezar e na esquerda um pequeno leitoril desdobrável para colocar o Corão. Sem pronunciar uma palavra, e nem sequer parar para ver se mais alguém se encontrava na sala de oração, foi direito ao tapete no topo da sala, colocando o leitoril à sua esquerda e as contas à direita, e começou a rezar.

Como que movida por uma força misteriosa, a Rapariga de Java pôs-se também de pé e do seu lugar, no seu próprio tapete de oração, repetia cada movimento que via fazer ao Bendoro. O pensamento, porém, voava-lhe para perto do mar e das suas companheiras de brincadeiras e das criancinhas, sujas da aldeia, rebolando-se nuas, de manhã, na areia quente. Outrora, pertencera a esse bando de crianças. Não saberia dizer se, agora que se banhara em água perfumada, ficara mais purificada. Continuava a ser aquela criança que fora um dia, que seguia o contorno da praia até ao estuário do rio, regressando a casa com os pés cobertos de lodo com o seu cheiro acre.

À sua frente, a uma boa distância dela, o Bendoro inclinou-se. Ela, mecanicamente, imitava tudo o que ele fazia: quando ajoelhava, também ela ajoelhava; quando se sentava, ela fazia o mesmo. Um dia carregara, sozinha, uma raia que pesava trinta quilos; não a levara à lota para ser vendida mas oferecera-a, em nome da família, como contributo para a festa da aldeia. Ficara banhada em suor e a longa cauda do peixe, batendo-lhe continuamente nas pernas, lacerou-as a ponto de ficarem a sangrar. Mas, ciente de que o peixe constituiria uma excelente refeição para toda a aldeia, continuara a andar sem desfalecer. Mas agora? O facto de ter de se limitar a imitar os gestos do marido representava para ela uma carga ainda mais pesada. Dantes, como adolescente que era, podia dizer o que lhe apetecia, chorar quando tinha vontade de chorar e gritar de alegria quando se sentia feliz. Agora, porém, tinha de permanecer em silêncio; não havia ali ninguém que a quisesse ouvir. A única coisa que agora a deixavam fazer era falar em voz baixa. E nesta sala de oração, até os seus movimentos e gestos eram determinados pelos gestos de uma outra pessoa.

Apesar de ser ainda madrugada, o corpo cobrira-se-lhe de suores frios.

Ontem! Ontem podia ela olhar na direcção que muito bem lhe apetecesse. Agora, só lhe restava contemplar o chão, pois não sabia para quê ou para quem estava autorizada a fazê-lo.

Estremeceu ao ver o Bendoro mudar de posição e sentar-se em frente dela. Quando ele desdobrou o leitoril e tirou do Livro Sagrado um pequeno marcador de bambu, sentiu que os olhos dele lhe enviavam uma ordem. Nunca em toda a sua vida tremera desta maneira. A recordação das suas mãos suaves acariciando-lhe o cabelo desvaneceu-se por completo.

Subitamente, ouviu o galo cantar na parte de trás da casa. Rezou para que o Sol se erguesse, tal como acontecera no dia anterior. O Bendoro proferiu a oração final - "Bismillahirohmanir mhim, - em nome de Alá, o Clemente, o Misericordioso. À distância, sentado no seu tapete, fitou-a de novo. Mas ela não foi capaz de repetir a frase, nunca lhe tinham ensinado a rezar em árabe. Sem se dar conta, começou a chorar e as suas lágrimas foram cair na orla do véu que lhe cobria a cara, humedecendo-o.

Sentiu mais uma vez o olhar do Bendoro cair sobre ela. Compreendeu que estava à espera que ela repetisse o que ele acabara de dizer. Ouviu- o tossir e ela automaticamente ergueu os olhos mas, quando encarou aquele olhar e o viu fazer com o ponteiro de bambu o gesto de a mandar sair da sala, o coração fez-se-lhe ainda mais pequenino.

Ajoelhou e fez uma reverência e depois recuou em direcção à porta, estacando por momentos e olhando, lá ao longe, através da sala, para o Bendoro. Pela segunda vez, com um gesto do ponteiro, ele ordenou-lhe que saísse.

Como lhe pesava a mão quando a ergueu até ao puxador da porta! E ao tentar pôr-se de pé, tinha as pernas dormentes. Mas então o puxador rodou, como que por si e, sem saber como, viu-se fora da sala de oração, nos braços da criada. Servindo-se das poucas forças que ainda lhe restavam, afastou-a para o lado e correu para o quarto, lançando-se para cima da cama.

- Ó Emae... Bapa9! - repetiu num murmúrio, como se assim os pudesse trazer de volta para perto dela.

- Mar Mganten, Mar Mganten - repetiu a criada.

- Leva-me para junto da minha mãe. Quero voltar para casa, para a aldeia!

- Não chore - disse-lhe a criada, tentando acalmá-la. Mas a Rapariga de Java já rebentara em lágrimas.

- A primeira esposa tem que aprender a ser sensata, a remar contra a maré, se for necessário...

- Ema! Eu quero a minha mãe!

- Silêncio! O Bendoro não tarda nada está aqui. A Rapariga calou-se subitamente, controlando os soluços que teimavam em brotar dentro dela para depois se afundar no silêncio da manhã, como fragmentos da sua própria alma despedaçada.

Momentos mais tarde, perguntou numa voz um pouco mais calma:

 

' Mamã. ' Papá.

 

- Onde está a minha mãe?

- Está na cozinha.

- Se não posso ir eu até lá, então traz-ma aqui.

- Ainda está a dormir.

- A esta hora já costuma estar acordada.

- Eu sei, eu sei. Já estaria acordada e pronta para se despedir do seu pai antes de ele ir para a faina, no mar, não é verdade? Mas é conveniente que a primeira esposa permaneça sozinha no seu quarto em determinadas alturas. Afinal de contas, até as galinhas estão ainda recolhidas nos galinheiros.

Quando cessou a voz sonora que vinha da sala de oração, e o som, cada vez mais próximo, do bater das sandálias pelo chão se fez ouvir, a Rapariga pôs-se de novo a tremer. Estava com medo e, por fim, como já antes lhe acontecera, a própria noção desse medo ainda a deixou mais assustada. Enxugou as lágrimas e sentou-se na cama, imóvel, enquanto a criada lhe despia o manto para a oração e lhe ajeitava a túnica de seda que tinha vestida por baixo. Depois, tal como um gato que roubou um pedaço de carne da cozinha, a mulher retirou-se apressadamente do quarto.

- Marr Nganten. - chamou o Bendoro - Minha noiva, vem cá. Ela reconheceu o tom da sua voz: suave, meigo. E, como que arrastada até ela por um fio invisível, ergueu-se lentamente, languidamente, e encaminhou- se para a porta. O Bendoro estendeu a mão e tomou as dela na sua.

Desceram juntos a escada das traseiras e viraram à direita. De súbito, a Rapariga de Java entreviu de novo o mundo real - pelo menos, tanto quanto a alta parede que rodeava a propriedade o permitia. Tinha a sensação de que já há séculos não vislumbrava uma árvore sequer. E à luz ainda fusca da madrugada, sob a pálida Lua que brilhava no céu, viu em frente dela uma árvore que se erguia muito acima das outras. É um sapotieiro, pensou. Mas nunca vira nenhum assim; este tinha qualquer coisa de assustador. Apertou o braço do Bendoro com mais força e este, com a mão que tinha livre, acariciou-lhe os ombros.

Juntos, respiraram o ar fresco da manhã, no jardim das traseiras que, em tamanho, era bem maior do que a aldeia inteira onde tinha nascido e crescido; mas ao contrário desta, a sua nova casa era completamente rodeada por um muro alto. À medida que ia caminhando, os seus pés desenhavam pequenas ondas sobre a areia macia que cobria o chão. As mangueiras em fileira assemelhavam-se a soldados perfilados em formatura, enquanto as bananeiras, menos frondosas, se encostavam à parede, como que cônscias da sua insignificância.

- Gostas de passear?

- Gosto sim, Bendoro - respondeu a Rapariga, lembrando-se de que, habitualmente, àquela hora do dia, depois de seguir com os olhos a vela do barco do pai a afastar-se no mar, até se tornar tão distante que nem a luz da lanterna se conseguia divisar, trepava de novo, meio tonta de sono, para o estrado-cama. Deixava-se então dormir mais um bocado até a mãe a acordar de novo: - Mas que rapariga esta! Então já deste de comer às galinhas? Se não te levantas já, ainda vem aí um crocodilo para te apanhar. Vá, toca a levantar. Então ela punha-se a pé num instante e ia dar de comer à criação, que já andava a correr pelo pátio.

- O que é que comes na aldeia?

A Rapariga não sabia o que dizer. Como não lhe tinham ensinado a falar a linguagem utilizada pelas pessoas da cidade, tinha medo de responder e por isso calou-se.

- Comes milho?

- Sim, Bendoro.

- E arroz, costumas comer arroz?

- Não, Bendoro.

- Bem, podes dar-te por feliz, pois aqui há sempre arroz para poderes comer à-vontade. Dá graças a Alá. Deus sempre provê às necessidades.

E continuaram no seu passeio, com todo o vagar.

- Aquela mangueira tem três anos, foi plantada na mesma altura que se instalou a electricidade. Mas ninguém planta uma árvore apenas para si mesmo. Alá é muito compassivo. Não criou o mundo e a humanidade apenas para Si mesmo. Ele... Ainda estás com sono?

- Não, Bendoro.

- Tens fome?

- Não, Bendoro.

- Conta-me alguma coisa, fala-me da tua aldeia. A Rapariga ficou outra vez sem fala, a garganta apertada de medo, mal conseguindo respirar. Por que é que não conseguia falar? Se estivesse em casa, não se atrapalharia a falar em alta voz para Kunr'ing, a sua galinha, ou para as companheiras de brincadeira. Ou a chamar Pak Karto, o vizinho, a quem sempre recorria quando precisava de ajuda para transportar alguma coisa mais pesada...

- Se não te apetece, não és obrigada a falar. Conheço todas as aldeias ao longo da costa, são todas iguais. Há dez anos atrás, visitei a tua aldeia. Era suja, as pessoas pobres e ninguém rezava. Quem acredita na religião reprova a sujidade. Quem vive rodeado de sujidade incorre na ira de Deus. Alá não concede a prosperidade a pessoas assim; estão condenadas a ser pobres.

- Sim, Bendoro.

- A limpeza é uma parte importante da fé e reflecte-se em pureza interior. Minha noiva, compreendes o que estou a dizer?

- Sim, Bendoro.

- A pureza espiritual aproxima as pessoas de Deus.

- Sim, Bendoro.

- Então, o que é que hoje gostarias de fazer? A Rapariga de Java de repente apercebeu-se de como se sentia cansada e sonolenta. Queria apenas deitar-se, sozinha, no macio colchão do seu quarto. Mas não teve coragem de exprimir esse desejo.

O Bendoro conduziu-a até um banco debaixo de uma árvore que ela não conseguiu identificar e em seguida tirou do bolso da jaqueta de seda um pequeno embrulho. Quase sem a Rapariga se dar conta do que estava a acontecer, enfiou-lhe um anel no dedo anelar e uma pulseira em cada um dos seus pulsos esguios.

Minutos mais tarde, o par de recém-casados sentou-se à mesa da sala de jantar. Em frente deles havia pão cortado em fatias, acabado de chegar da padaria, taças de geleia, chocolate em pó e cubos de açúcar mascavado, um jarro de sumo natural de laranja, um prato com biscoitos de camarão e uma tigela de papas de aveia. Das chávenas de café de porcelana japonesa desprendia-se uma onda fumegante e perfumada. O refulgir das fileiras bem ordenadas dos talheres - colheres, facas e garfos - entontecia-a, sobretudo a fruteira de prata, que até lhe fazia doer os olhos com o seu brilho. Sentia-se a cambalear. Estava cheia de fome. Mas para que serviam todos estes instrumentos reluzentes? E porquê tantos?

- O que deseja, Mar Nganten? - perguntou-lhe a criada num murmúrio - Papas de aveia ou pão? Ou talvez apenas um sumo?

Qualquer coisca, pensou a Rapariga, contanto que pudesse comer sem ninguém a observá-la. A criada, porém, sussurrou-lhe novamente:

- Pergunte ao Bendoro o que ele deseja e sirva-o. A Rapariga relanceou o olhar para ele, desejando que os seus olhos pudessem dizer aquilo que ela não conseguia exprimir e depois baixou outra vez a cabeça. Quando ele apontou para o pão, ergueu-se e olhou interrogativamente para a criada.

- Agora pergunte o que é que ele gostaria de pôr no pão: polvilho de chocolate, melaço, geleia...

A Rapariga estremeceu. Nem sequer sabia a que correspondia cada uma daquelas coisas que a criada mencionara.

- Chocolate - murmurou o Bendoro.

A criada pegou na mão dela e guiou-a até ao frasco com chocolate em pó. Colocou-lhe os dedos à volta do cabo de uma pequena faca de manteiga - cuja forma lhe parecia tão estranha - e com ela passou o chocolate sobre duas fatias de pão, já barradas de saborosa manteiga derretida.

Nessa manhã, a Rapariga de Java voltou para o seu quarto ainda com a barriga a doer-lhe de fome. Tinha-lhe apetecido mais uma fatia de pão com chocolate, mas o Bendoro comera tão pouco! Não estava propriamente com fome, assegurou a si mesma, mas o pão estava tão bom que tinha vontade de mais; o estômago é que não estava a saber portar-se como devia.

No entanto, a fome continuava a apertar-lhe as entranhas, recusando ir-se embora. Nunca sentira tanta fome, nem quando havia dois anos a aldeia tinha sido varrida por uma enorme onda durante as marés vivas. Alguns dos barcos foram destruídos no mar e os que estavam na praia ficaram enterrados na lama.

Ainda se lembrava do estrondo do chocalho de bambu que o chefe da aldeia não parou de agitar até a última criança ser arrancada das garras da morte que a todos rondara. E das enormes folhas das palmeiras que voavam no meio da escuridão, prontas a decepar as cabeças humanas que se interpusessem no seu louco caminho. Quando os aldeões regressaram à aldeia nem uma folha de erva estava de pé. Na praia, troncos de palmeiras, entrecruzados uns em cima dos outros, formavam como que uma barreira. De todas as árvores que o seu pai possuía, só restou uma; sofrera um abalo tão fundo que ela estava convencida de que se a empurrasse com o dedo o tronco racharia. Não perdera os frutos mas os cocos, que antes eram verdes, ficaram de um castanho-sujo e duas semanas mais tarde, já podres, desprenderam-se dos pés, sem se poderem comer.

Sim, nessa altura, e pelo menos durante uma semana, ela soubera o que era sentir fome. Os viveiros de peixe da aldeia desapareceram, e dos diques que os rodeavam, nem sequer ficara qualquer traço. E mesmo que não tivessem sido destruídos, não restou peixe miúdo com que se pudesse reabastecê-los. A fome que então sentiu era causada pela falta de milho e de arroz, pois o mar foi- lhes fornecendo o sustento, sob a forma de mexilhões, caranguejos e algas.

Agora, tinha à sua disposição uma grande abundância de comida; na verdade, mais do que suficiente, mas não conseguia comer nada daquilo. Aqui, neste lugar, havia demasiadas restrições, férreas, rigidas, demasiadas mãos misteriosas que a agarravam, espíritos todo-poderosos que a faziam retroceder, cheia de medo.

- Ma, ma - chamou ela num murmúrio.

- Aqui está a sua mãe, Mar Mganten - ouviu a criada a dizer.

Erguendo os olhos e vendo a mãe à porta, a Rapariga pôs-se em pé de um salto e correu para ela, apertando-a nos braços.

- Mãe, mãe, quero ir para casa!

- Chiu!

- Por favor diga à sua filha - recomendou a criada à mãe da Rapariga - que a primeira esposa tem de aprender a ser forte e a esconder sempre os seus sentimentos por detrás de um sorriso.

- Sim, com certeza - assentiu a mãe.

- Então tem que dizer isso mesmo à sua filha.

- Sem dúvida que lho direi. - olhou para a filha com ternura: - Agora sossega, filha. Não tens razão para estar com medo.

- Mas, mãe, não gosto de estar aqui!

- Isso é porque ainda tens muito para aprender. Verás que com o tempo passas a gostar.

- Leva-me para casa, mãe!

- O que disse ela? - ouviu a voz do pai a dizer. A Rapariga olhou em volta e viu de repente o pai, de pé, a seu lado.

- Que disseste tu? - perguntou-lhe ele, em voz dura e ameaçadora.

- Nunca deve levantar a voz para a esposa do Bendoro - advertiu-o a criada.

O pai da Rapariga deixou-se cair numa cadeira. A força que empregava para lutar contra as ondas e os furacões desvanecera-se agora, de nada servia neste quarto nupcial. Respirou pesadamente; as mãos repousavam, inertes, nos braços da cadeira.

- Se a primeira esposa quisesse - continuou a criada - podia mandar expulsá-lo deste quarto.

Ao ouvir este reparo, a Rapariga deu um grito e desprendeu-se dos braços da mãe. Soluçando, ajoelhou diante do pai e pôs-lhe os braços em volta das pernas.

- Perdoa-me, papá. Sou tua filha, podes bater-me. Duas lágrimas soltaram-se dos olhos do pai. Ergueu a mão direita, como que exausto, e acariciou o cabelo da filha. Depois fê-la pôr-se de pé e sentou-a na cadeira onde ele próprio se sentara, derrotado.

- Boa sorte para ti - segredou-lhe.

- Diz obrigada - instou a mãe.

- Obrigada, pai - repetiu ela.

Sem olhar para trás, ele saiu do quarto.

Nesse dia, ao almoço, a Rapariga de Java comeu sozinha na sala de jantar, servida pela criada, que a ia vigiando, postada num canto da sala. De vez em quando, aproximava-se para lhe mostrar como ela se devia servir de determinada faca, garfo ou colher. - O Bendoro não almoça em casa, Mar Nganten, a esta hora costuma visitar o Regente.

- Por que é que tens de estar sempre a seguir-me por todo o lado? - perguntou a Rapariga à criada.

- Não a estou a seguir, Ma. Nganten. É obrigação desta sua criada ajudá-la em tudo.

- Não fales de ti dessa maneira.

A criada ficou ao mesmo tempo surpreendida e impressionada. A Rapariga só chegara ontem e já era capaz de dar ordens.

- Mas eu sou a sua criada, Mar Mganten.

Agora foi a vez de a Rapariga ficar espantada. Começava a aperceber- se de que ali, naquela casa, nunca teria uma amiga a quem pudesse considerar como sua igual. Sentiu na observação da criada um afastamento, um fosso quase intransponível, entre ela própria e a criada. Ali estava uma mulher incrivelmente amável, bondosa, que quáse não dormia para poder cuidar dela e atender às suas necessidades, sempre pronta a cumprir o que quer que lhe pedisse, a explicar-lhe o que quer que não compreendesse; que lhe contava histórias - como a de Joko Tarub - quando o seu coração estava triste e precisava de distracção e que a acarinhava de uma forma tão terna sempre que sentia vontade de chorar. Por que não podemos ser amigas? Apetecia-lhe gritar. Por que razão é que esta mulher é minha criada? Quem sou eu para merecer uma tal ajudante? E que fez ela para ter de trabalhar para mim como se fosse minha escrava? Eram as interrogações que ela se punha a si mesma.

- Devia comer mais um pouco, Mar mganten. Está a sonhar acordada?

A Rapariga de Java parou de comer. Levantou-se da mesa e, sem olhar em volta, foi directamente para o quarto, lançando-se a chorar sobre o seu amado colchão. Sentia-se como um pintainho retirado da ninhada, das asas protectoras da mãe, e obrigado a viver sozinho, sem um amigo, entre toda aquela gente que não conhecia. Não lhe era permitido ter amigas. Só lhe restava dar ordens ou esperar que lhas dessem a ela. Sentia-se tão só! Com tanto frio! Nunca sentira tanto, nem mesmo na praia, de madrugada, quando o ar estava tão húmido que o óleo de palma congelava na garrafa. Chorou até à exaustão, e por fim adormeceu. Foi acordada pela leve carícia da criada e conduzida uma vez mais à casa de banho para tomar o seu banho, e depois de novo ao quarto.

- Quero ver o meu pai - murmurou.

- Ele partiu hoje cedo. Ninguém sabe para onde foi. O Bendoro vai ficar zangado quando souber, zangado connosco por não termos sabido cuidar dos hóspedes.

- E a minha mãe?

- A sua mãe parece muito perturbada. Queria vir aqui ter consigo mas eu não deixei, visto que estava a dormir, Mar Mganten.

- Por favor, pede-lhe que venha aqui.

- Deixe-me prepará-la primeiro, Mar Mganten.

- Chama-a, se fazes o favor - ordenou a Rapariga. A criada saiu, regressando momentos mais tarde com a mãe.

Parecia muito preocupada:

- Para onde foi o papá? - perguntou à mãe - mas não obteve resposta. Em vez disso, a mãe aproximou-se e ajudou a criada a vesti-la e a aplicar a maquilhagem. A criada tornou a pintar-lhe os olhos com ohlárabe e a avivar-lhe a cor das faces com rouge francês.

- Olhe-se ao espelho - pediu a criada.

A Rapariga contemplou o seu reflexo no espelho e subitamente cobriu a cara com ambas as mãos.

- O que foi, filha? - quis saber a mãe, quando a viu voltar as costas ao espelho.

Apontando com a mão esquerda, a Rapariga de Java gritou:

- Eu não sou aquela! Não sou eu! É o Diabo! A lembrança da perturbação da mãe por causa do desaparecimento do pai fê-la esquecer os seus próprios problemas.

- Para onde teria ele ido? - inquiriu veementemente.

- Voltou à aldeia, sem dúvida - assegurou-lhe a criada, para a tranquilizar. A mãe podia ter-lhe respondido o mesmo, mas como é que ela ia ser capaz de dizer ao Bendoro que o marido saíra dali sem antes lhe pedir autorização?

A Rapariga de Java nunca amara tanto o pai como naquele momento.

- Se for a Mar Mganten a pedir perdão ao Bendoro -, sugeriu a criada - ele conceder-lho-á.

A mãe ergueu os olhos interrogativamente para a Rapariga. Esta hesitou por momentos mas depois acedeu, acenando afirmativamente com a cabeça. Assaltavam-na pensamentos contraditórios. Seria o Bendoro tão poderoso, mais poderoso do que o mar, que o pai tinha de fugir? Perdera dois irmãos no mar e no entanto nem eles nem o pai jamais tinham fugido! Por que tinha desaparecido agora? Ela própria não tinha medo do mar. Porquê então este receio ao Bendoro? Porquê? O Bendoro era alto e magro, de rosto pálido e pele macia, enquanto o pai era musculado, muito mais forte do que ele. Por que seria então que ele e toda a gente, incluindo ela própria, temiam de tal maneira este homem?

- Em que está a pensar, Mar Mganten? - perguntou-lhe a criada. - Estou certa de que o seu pai chegou bem a casa. Escute o que lhe vou dizer, deixe-me ensinar-lhe o que deve dizer. Deve falar assim ao Bendoro: - Perdoa-me, Bendoro... É tudo o que tem a dizer. E então o Bendoro perguntar-lhe-á: - Sim, minha noiva, o que há? O que desejas? A Rapariga olhava para a criada sem pestanejar.

- Depois diga-lhe: - O meu pai viu-se forçado a partir, Bendoro. Perdoa-me a mim e à minha mãe, Bendoro; ele estava com tanta pressa que se esqueceu de te pedir autorização para se ir embora. E o Bendoro rirá: - Não faz mal, não há problema nenhum. E depois...

- Depois o quê?

A criada, sem proferir uma palavra, virou a cabeça da Rapariga para o espelho.

- Olhe para ali. Não é um espírito mau. É um anjo descido do paraíso!

A Rapariga examinou a sua cara reflectida no espelho mas não se reconheceu nela. Essa cara não era a mesma com que tinha chegado àquela casa, há dois dias apenas. Parecia o rosto de um manequim. Não havia nele quaisquer traços de infantilidade. A alegria do seu olhar de criança tinha desaparecido para não mais voltar. Nem a mãe a podia ver agora como a sua pequenita. Não, a imagem que o espelho transmitia já não era a da sua filha. Em menos de três dias, desde que tinham saído da aldeia, toda a energia e vitalidade que antes possuía parecia terem-se extinguido.

De repente, a Rapariga de Java ouviu as suas gargalhadas sonoras, aquelas vagas de alegria que a assaltavam, causadas por alguma piada ou brincadeira. Mas esse riso era o riso de uma criança, algo que ainda não tinha ouvido nesta mansão, a casa do Bendoro, e que provavelmente nunca mais iria escutar.

- Qual o homem que não desejaria uma mulher assim? comentou a criada. - Olhe só - disse, voltando-se para a mãe da Rapariga. - Com este corpinho firme, tão leve como uma bola de algodão, a sua pele dourada macia como seda. Só as mãos é que exigem alguns cuidados, mas se as mergulharmos em água de tamarindo, depressa perderão a aspereza. E com estes olhos amendoados parece tal qual a Princesa da China, que era lindíssima. Quem não reconheceria tamanha beleza?

- Esta noite, Mar Mganten - disse a criada - hei-de contar-lhe a história da batalha entre a Princesa da China e Amir Hainzah. É uma história muito triste. Nem têm conta as pessoas que vi rebentar a chorar ao ouvi-la. A Princesa foi atingida no ombro por uma seta, caindo no chão e ficando ali, cheia de dores, a sangrar, sem ter ninguém que a ajudasse.

A criada começou a cantarolar a música javanesa Megaub, desde a altura em que a Princesa da China caiu do cavalo abaixo durante a batalha; depois, de repente parou.

- É melhor levar a sua mãe de novo para a cozinha. Nunca se sabe quando o Bendoro decide vir até aqui.

As duas mulheres foram-se embora, deixando a Rapariga de Java sozinha e desanimada em frente do espelho.

Em casa dela havia apenas um espelho. Na aldeia, quanto maior era o espelho da familia, maior o seu prestígio. Os espelhos eram colocados em lugar de destaque, para que as outras pessoas os pudessem ver. Os visitantes reparavam sempre no tamanho e na espessura de um espelho. Os espelhos de melhor qualidade tinham molduras de madeira; mas só as pessoas que não eram da aldeia admiravam os elaborados trabalhos em talha. Os próprios pescadores estavam sempre demasiado ocupados para se preocuparem com esse tipo de coisas; além disso, não tinham grande habilidade para esculpir; faziam-no apenas para ocuparem os seus escassos tempos livres.

Mas esse espelho que estava diante da Rapariga não exercia sobre ela a menor atracção. A imagem que via reflectida nele suscitava-lhe desconfiança e antipatia. Aqui, nesta casa, tudo era supostamente melhor do que na aldeia. Mas não, isso não era verdade! Essa imagem ricamente adornada que contemplava não era de todo o mesmo rosto que tantas vezes vira em casa dos seus pais. Apesar de o espelho da família ser modesto e sem moldura, estava acostumada a ele e sabia que ele lhe diria a verdade. Em casa, podia afastar os vestígios de sono dos seus olhos e a fuligem da cozinha das suas faces. Aqui, pintavam-lhe os olhos com ohlárabe - que era preto, tal como a fuligem da cozinha. Diziam-lhe que a sua tez era lisa, macia e de um tom dourado de fruta madura. Em casa, gostava de limpar a cara quando estava coberta de suor. Mas aqui uma camada de rouge cobria-lhe a pele, que já não era dourada mas sim rosada como uma maçã. Também lhe haviam traçado uma fina linha preta por entre as sobrancelhas, que se assemelhava a uma espinha de peixe. Não, nem sequer lhe era permitido reconhecer-se ao espelho, ver o seu próprio rosto.

Deitou um olhar para o colar, as pulseiras e o anel, todos feitos de ouro e pedras preciosas. Lembrou-se de Pak Kintang. Toda a gente da aldeia o detestava. Era um homem que media o valor das coisas pelo seu peso em ouro. E no entanto, quando um dos anciãos da aldeia morreu, o avarento não contribuiu com absolutamente nada. Na sua aldeia, ouro e fingimento iam de mãos dadas.

A Rapariga tentou recordar-se: quem mais lhe tinha andado a falar em ouro? Vasculhou na memória e finalmente recordou-se de um rosto estreito, de faces encovadas, de permanente sorriso nos lábios. Um homem da cidade. Vinha à aldeia para emprestar dinheiro e vender ouro a crédito. Sim, lembrava-se de que tinha ido a casa dela. O pai ainda não regressara do mar. A mãe tinha-o convidado a sentar-se.

- Ouro, minha senhora. Gostaria de comprar alguma coisa? Não tem de pagar já; basta ter crédito. É sempre bom juntar ouro. Tem uma filha por casar, não tem? Com ouro, consegue obter tudo o que deseja. Está-me a compreender, minha senhora? Tudo!

A Rapariga estava sentada a brincar aos pés da mãe, enquanto o homem falava e, de onde estava, viu aproximar-se o ancião mais respeitado da aldeia, andando em passos pouco firmes, apoiado a um pau. Entrou em casa dela e, dando uma risada, ergueu a bengala e apontou-a em direcção ao homem da cidade:

- Ouvi o que estavas a dizer. É de ouro que precisamos, afirmas tu? Olha para os barcos além, aqueles sem velas, com rombos e meio- afundados na praia. Barcos! Barcos é que nós precisamos. Não lhe dês ouvidos. Os barcos é que nos fornecem tudo quanto nos é necessário. O ouro, pelo contrário, tira-nos tudo. - E empurrou o homem da cidade para fora de casa com a bengala. Quando este chegou à soleira da porta, o ancião apontou-a à mãe da Rapariga e disse-lhe: Vais arruinar o teu homem se lhe deres ouvidos. Estás a perceber o que te estou a dizer? Nunca esqueças isto. Só o Diabo é que fala de ouro. Afasta-te dele. Temos de manter a nossa aldeia livre dele...

E agora, ante os seus olhos, no toucador, havia ouro e jóias cintilando à luz do candeeiro. Estava a olhar para elas fixamente quando ouviu uma voz murmurar-lhe ao ouvido:

- A maior parte das pessoas só em sonhos pode possuir coisas dessas.

- Mbok, assustaste-me.

- Gosta de jóias, não gosta, Mar Mganten?

A Rapariga de Java nunca tinha possuído quaisquer jóias. Admirava-lhes a beleza. E achava que eram umas peças esplêndidas.

- São muito bem-feitas - continuou a criada. - O Bendoro mandou-as fazer em Solo especialmente para a senhora.

- Se quiseres, podes levá- las.

Os olhos da criada brilharam. Apertou as mãos com força em frente da boca e disse em voz trémula:

- Quem não as quereria! Mas não devia dizer essas coisas Mar Mganten. Assusta-me.

- Por que hás-de ter medo? É apenas ouro.

- Mas assusta-me, Mar Mganten, tenho medo de verdade. Medo de fazer alguma coisa de mal. - e com a voz tremendo ainda, acrescentou. - Eu sou aquilo que sou, uma criada. Se não houvesse criados, poderia haver patrões? É esta a vontade de Deus, o meu destino. A minha avó não era uma criada e nenhum dos seus filhos tão-pouco o foi. Mas eu sou aquilo para que estava destinada - servir o Bendoro e servi-la a si, Mar Nganten.

- Leva-as, se quiseres podes levá-las - repetiu a Rapariga.

- Como poderia eu fazer uma coisa dessas? Nem os seus próprios pais ousariam aceitar essa oferta.

A Rapariga ficou chocada ao ouvir aquele comentário. Aos poucos, com muito custo, começava a compreender que todos, excepto o Bendoro, viviam com medo. Por que motivo toda a gente, incluindo ela própria, o receava? Ele não aparentava ser duro ou cruel; bem pelo contrário, era meigo e cortês, delicado.

A criada falava agora com mais segurança:

- A minha irmã desejava muito ter uma pequena cadeia de moedas de ouro para pendurar ao peito. Ela era muito bonita. Um dia foi a Lasem, para tentar apanhar um milionário chinês que aí vivia. A vedação em frente da casa era feita de lanças de ferro. Era uma mansão imponente, com um telhado curvo revestido de reluzentes telhas azuis e decorado com dragões serpenteantes.

- Era maior do que esta casa?

- Muito maior.

- E mais bela?

- Muito mais bela.

- O que lhe aconteceu?

- Entrou naquela casa e nunca mais de lá saiu.

- Teria conseguido a cadeia que ela desejava?

- Quem poderá saber! Nunca mais ninguém a viu. E já lá vão vinte anos!

A Rapariga de Java ficou estarrecida e agarrou com força a mão da criada:

- Sairei algum dia daqui? Toma, leva daqui estas jóias. A criada abriu a gaveta do toucador, tirou de dentro uma chave e entregou-a à Rapariga.

- Ao fim de três meses pode ir onde quiser, Mar Nganten, desde que seja com a autorização do Bendoro. Guarde as jóias no armário. Nem sequer me atrevo a tocar-lhes.

- Por que é que as pessoas gostam tanto de ouro?

- Porque... olhe, porque sim! O que posso dizer-lhe? Porque se uma pessoa possui ouro... bem... significa que não é uma qualquer, não se parece com uma criada.

- O que quer dizer ser uma qualquer?

- Não sei como responder-lhe, Mar Nganten. Uma qualquer são as pessoas como eu.

- Mas que mal tem ser como tu?

- São tal e qual como eu. Matam-se a trabalhar e comem pouco.

- Então por que não levas as jóias? Assim já não serias como uma qualquer. Não terias de te matar a trabalhar. Já poderias comer o que quisesses. Vendia-las ou podias usá- las.

- Oh Mar Nganten, só o Bendoro o pode fazer! Vendo que a sua patroa lhe estava a demonstrar tanta simpatia, a criada começou a sentir-se mais à-vontade. Mas essa sensação foi de pouca dura. As duas mulheres calaram-se quando ouviram uma voz que tão bem conheciam a chamar:

- Mardi! E depois a resposta com que também estavam familiarizadas:

- O seu humilde criado, Bendoro.

- A carruagem! Prepara a carruagem. Tem de estar pronta dentro de uma hora - foi a ordem inesperada.

- Sim, Bendoro.

De algures, lá para os lados das traseiras da casa, chegou-lhes aos ouvidos o ruído de uma certa agitação. Foi a primeira vez que a Rapariga se apercebeu do grande número de pessoas que devia viver naquela casa.

- Quem é essa gente toda que eu estou a ouvir? - inquiriu.

- Parentes do Bendoro, sobrinhos na sua maioria, que lhe foram confiados.

- O que fazem eles aqui?

- Trabalham. E de tarde estudam.

- Onde é que eles estiveram todo este tempo?

- Na sala de oração.

- Onde é que fica?

- É aquele pequeno edifício du lado esquerdo da casa. Estudam aí e também aprendem a recitar o Corão.

- Nunca os ouvi a treinar-se.

- O professor de recitação foi despedido. Era preguiçoso e glutão.

- Era isso que ele lhes ensinava?

- É muito possível; parece que só era bom nisso. Desculpe, Mar Nganten, na verdade não sei. Mas também não interessa muito. Chegue aqui para eu lhe arranjar o cabelo.

A criada, marcando de novo a distância que as separava nas posições que cada uma delas ocupava na sociedade, começou a pentear a Rapariga que, de coração apertado, a ficou a observar, sem dizer nada. Enrolou- lhe o cabelo em volta de um círculo feito de casca de casuarina para dar mais volume ao carrapito, enfeitando-o com flores de jasmim.

- Na aldeia, ninguém põe flores no carrapito - protestou a Rapariga.

- Na cidade, Mar Nganten, todas as mulheres casadas o fazem.

O comentário da criada fê-la tomar consciência da sua nova posição: esposa de um homem importante.

- Preferia estar na minha aldeia - começou outra vez a protestar a Rapariga.

- Certamente. Toda a gente gostaria.

- Por que não voltas para a tua aldeia, Mbok?

- Já sou demasiado velha. Quem me iria sustentar? Na minha terra, a vida é dura.

- Dura em que sentido?

- Oh, Mar Mganten... é tão infantill Ainda sofreu tão-pouco! À medida que se vai crescendo, vai também aumentando o sofrimento. E quando se chega à minha idade, tudo se torna ainda mais difícil.

- Batiam-te na tua aldeia?

A criada, enquanto endireitava as pregas da túnica de batz da Rapariga, respondeu:

- Não propriamente - fez uma pausa e acrescentou: mas qualquer pessoa ou qualquer coisa podem ferir uma pessoa vulgar como eu.

- Mardi! - ouviram de novo o Bendoro gritar.

- Seu humilde criado, Bendoro.

- A carruagem já está pronta?

- O Bendoro parece estar com pressa de ir a algum lado - murmurou a criada - talvez ao casamento de algum nobre.

- Com um en: c?

- Não. Só a gente do povo casa dessa maneira... - A criada calou-se subitamente, como se se lembrasse de alguma coisa.

- Não, não é bem assim. Se o noivo não pode estar presente na cerimónia pode ser representado por um amigo.

- Por que têm as pessoas de casar, Mbok?

A criada riu e abanou a cabeça:

- Vejam só, as coisas que a senhora diz! As pessoas como eu casam- se para tornarem a vida ainda mais difícil. Ao contrário da classe alta, que casa por prazer.

- Então porquê casar se isso torna a vida mais dura?

- Por causa daquilo a que chamamos destino, Mar Mganten.

- parou por momentos e depois continuou: - O meu avô contou-me que o pai dele tinha sido enforcado quando o Governador holandês mandou construir a estrada que atravessa Java. O meu avô fugiu - prosseguiu ela, apontando para o mar.

- Por que razão o enforcaram?

- Ele era empreiteiro e mandaram-lhe construir uma secção da estrada em apenas uma semana. Passado o prazo, os holandeses vieram inspeccionar o trabalho, mas a estrada não estava pronta. Era numa zona pantanosa e a maior parte dos trabalhadores estava doente, com as febres. Os holandeses enforcaram-nos a todos.

- Não é possível!

- Pois foi mesmo o que eles fizeram. É isso que sorte significa para a maior parte de nós, gente do povo. Depois o meu avô fugiue juntou-se aqui às forças rebeldes que eram lideradas pelo Principe Diponegoro. Então, quando ele perdeu a guerra, o meu avô teve que fugir novamente, desta vez com um nobre javanês que se tinha ligado às forças rebeldes. Quando o nobre se rendeu, o meu avô fez o mesno. E quando o nobre foi designado para desempenhar um cargo no governo, o meu avô passou a ser o seu assistente na realidade não mais do que um escravo, tal como eu. Costumava acompanhar o patrão nas suas patrulhas. Uma noite, numa dessas rondas, o nobre foi assassinado por um bando de malfeitores. Quando regressou sozinho, os holandeses espancaram-no e meteram-no na prisão. Ficou lá cinco anos. Quando saiu, já não podia trabalhar como secretário, por isso começou a cultivar um pedaço de terra ao sul da cidade. Todos os seus filhos se fizeram agricultores. Nenhum deles jamais foi criado de alguém ou coisa semelhante. - apercebendo-se de que a Rapariga tinha baixado a cabeça e evitava o seu olhar, a criada prosseguiu. - Tem sorte, Mar Mganten e devia dar graças a Alá. Nem todas as mulheres têm a sorte de viver numa casa como esta, a menos que seja criada.

- Mesmo assim, preferia estar na minha terra.

- Não devia dizer uma coisa dessas.

- Lá, não tenho medo...

Do lado de fora do quarto ouviram o som do bater das sandálias cada vez mais próximo. A Rapariga de Java agarrou com força o braço da criada.

- Sorria - murmurou ela -, tem de aprender a sorrir, Mar Mganten, e a estar pronta a receber o Bendoro aqui dentro.

- E levou a Rapariga até à porta.

Por isso, quando o Bendoro chamou por ela, a jovem respondeu do seu lugar, junto da porta:

- Sim, Bendoro.

- Esta noite não estarei em casa - disse ele, sem olhar para dentro do quarto. Momentos depois, ouviram o som das suas sandálias desvanecendo-se à medida que se afastava.

Nessa noite, a Rapariga de Java perguntou à criada se podia dormir com a mãe, mas esta recusou.

- Se não posso dormir na cozinha - sugeriu a Rapariga - então deixa-a dormir aqui comigo.

- Isso não seria próprio da primeira esposa.

- Mas ela é minha mãe - protestou a Rapariga.

- Pode ser verdade, Mar Nganten, mas é uma plebeia e nesta casa não é mais do que uma criada.

- Não, não pode ser. Eu é que devia ser a criada dela. Na nossa aldeia, obedeço às suas ordens, faço tudo o que ela me manda fazer. E não vou mudar agora.

- Isso não está certo, Ma Nganten. Os nobres têm outros usos e costumes e além disso estamos numa cidade, não numa qualquer aldeia à beira-mar.

- Então o que esperam que eu faça aqui?

- Apenas duas coisas, Mar Nganten, nada mais: servir o Bendoro e dar ordens aos criados e às outras pessoas que aqui moram.

- Como é que eu sirvo o Bendoro?

- Como? Obedecendo-lhe e satisfazendo todos os seus desejos.

- Não consigo. Não sei como.

- Na devida altura saberá.

- Isso dizes tu.

- Vai ver que é muito fácil.

- O que é que digo aos outros para fazer?

- O que achar conveniente, Mar Nganten.

- Há apenas uma coisa que eu desejo.

- Só uma? Então é fácil.

- É voltar para casa com a minha mãe.

- É precisamente a única coisa que não pode fazer.

- Mas é a única coisa que eu desejo.

A criada foi conversando com ela, enquanto desenrolava a esteira ao lado da cama da Rapariga.

- Escute o que lhe vou dizer. Alá deseja apenas uma coisa, Mar Mganten. Quer que as pessoas sejam boas. É para isso que serve a religião - para que as pessoas se possam voltar para Ele e levem uma vida ordeira e piedosa. Mas é evidente que o único desejo de Alá não é totalmente satisfeito. Há muita gente má neste mundo.

- Então eu sou uma dessas pessoas más com quem Alá não está satisfeito?

- Quem pode saber o que vai no íntimo dos outros? Nem o Diabo o sabe. A maioria de nós não conhece sequer o que vai nos seus próprios corações. Se soubéssemos, então talvez não tivéssemos de viver neste mundo. Mas vamos acabar com a conversa. São horas de dormir.

- Conta-me uma história.

E foi assim que a criada foi conseguindo domar a natureza irrequieta da Rapariga e ensinar-lhe as boas maneiras, próprias de uma primeira consorte. Quantas vezes já contara ela antes aquelas mesmas histórias? Quatro mulheres tinham precedido a Rapariga de Java e a todas repetia sempre as lendas de príncipes que se apaixonavam perdidamente por raparigas da aldeia; de raparigas da aldeia que iam viver para uma grande mansão, dos filhos que davam à luz. Falava-lhes da magnanimidade de Alá e do Seu desprezo pelos maus; do Governador holandês e da sua forca; dos túmulos em massa, alinhados ao longo da costa; da revolta do Príncipe Diponegoro. Comentava com elas a maneira como os nobres da cidade tratavam dos seus problemas domésticos; a cerimónia de casamento de kartini, que tinha fundado escolas para raparigas; e o seu funeral, alguns anos atrás.

Quando as histórias acabaram, a mulher pôs-se de pé e olhou para a patroa deitada no seu fofo colchão. A Rapariga de Java dormia profundamente. Então deu graças a Alá por, naquele dia, ter desempenhado bem as suas obrigações. O Bendoro iria ficar satisfeito quando soubesse.

O Bendoro esteve fora durante uma semana. A Rapariga de Java andava contente e a criada também. Essas ocasiões - a ausência do amo durante vários dias - permitiam-lhe realizar com sucesso o que já fizera anteriormente: domar o coração da primeira esposa. Uma semana tinha-se revelado suficiente para ensinar as várias primeiras esposas a comportarem-se com o decoro que lhes era devido e a captar-lhes a confiança e a amizade.

Uma tarde, o professor de Religião foi lá a casa para ensinar a Rapariga de Java a ler os caracteres sagrados que estavam impressos em papel sagrado. Ela repetiu cada palavra várias vezes, sem apreender o seu significado ou finalidade. Nessa noite, como de costume, a criada estendeu-se ao lado da cama, enquanto os mosquitos zumbiam ruidosamente à volta do mosquiteiro. A Rapariga voltou as costas para a parede e debruçando-se da cama, olhou para a criada deitada no chão ao pé dela. Estava de olhos abertos, a olhar para o tecto, imersa nos seus pensamentos.

-Já foste casada, Mbok?

A criada estremeceu e sentou-se, muito rápida:

- Sim, Mar Nganten, fui casada duas vezes.

- Não tiveste filhos?

- Não consegui, Mar Nganten.

- Que queres dizer com isso? Os teus maridos morreram?

- Sim, Mar Nganten. Mas é assim a história de tanta gente como eu. Logo que casei, o chefe da aldeia decidiu que eu já tinha idade suficiente para ser mandada para os trabalhos forçados, em Jepara. Fui trabalhar para uma plantação de cacau. O meu marido foi comigo. Estivemos lá quatro meses. Eu estava grávida, mas perdi o bebé antes de chegar ao fim do tempo. O capataz deu-me um pontapé na barriga. O que posso dizer? Senti-me tonta e sentei-me à sombra de uma árvore. O capataz aproximou-se de mim e um funcionário holandês, vindo não se sabe de onde, apareceu também com uns subordinados seus. O capataz agarrou-me pela mão e tentou arrastar-me outra vez para o trabalho, mas eu estava demasiado fraca. Então ele deu-me novo pontapé na barriga e comecei a ver tudo enevoado, mas mesmo assim ainda ouvi o meu marido a correr para mim gritando como um louco. A seguir desmaiei.

- Mas que horror!

- É o que costuma acontecer à gente do povo como nós, Mar Nganten.

- Na minha aldeia nunca aconteceu nada de semelhante.

- Com certeza que não, Mar Nganten. O meu marido quis que eu fugisse dali. Disse que podíamos ir viver para uma aldeia de pescadores, ou algures, para uma ilha. Mas respondi-lhe que não me parecia que viver numa ilha fosse bom para o nosso filho. E veja o que afinal veio a acontecer! O seu pai tem um barco mesmo dele, Mar Nganten?

- Sim, Mbok.

- O meu marido queria ter o seu próprio barco. Com ele, podíamos ter fugido para uma ilha. Quantas vezes andou no barco do seu pai, mar Nganten?

A Rapariga de Java pensou um bocado e depois respondeu em voz baixa:

- Três vezes. Talvez mais.

- Isso quer dizer que fugiu para uma ilha por três vezes. Lembra-se de alguma coisa acerca disso?

- Lembro-me que vivemos numa pequena ilha. De manhã, a praia estava coberta de alforrecas. Eu abria-lhes os sacos, tirava os peixes que tinham dentro e depois assava-os. Mas o meu pai nunca disse que tínhamos "fugido".

- Por que haveria de dizer? Se somos gente do povo habituamo-nos à ideia, a ter que o fazer.

- O que aconteceu ao teu marido, Mbok?

- Não sei. Quando vim a mim, estava coberta de sangue, do meu sangue, do sangue do meu bebé, do meu marido e do capataz.

- Havia assim tanto sangue?

- Foi o que me disseram. Eu própria não sei. Contaram-me que o meu marido ficou como louco e apunhalou o capataz, abrindo-lhe a barriga ao meio; depois atacou todos os que tentaram ajudar o homem. Por fim os soldados foram-lhe no encalço mas ele, completamente possesso de fúria, atacou-os com a faca de mato. Conseguiram cercá-lo e, quando não conseguiu chegar suficientemente perto de alguém para o apunhalar, arremessou a faca contra um dos soldados e também o feriu, mas não o matou. O meu marido estava tão magrinho, era só pele e osso, Mar Nganten! Já poucas forças lhe restavam. E estava coberto de feridas e nódoas negras, de ser chicoteado.

- Voltaste a vê-lo depois disso; Mbok?

- Não, Mar Nganten. Quando acordei do desmaio, já tudo tinha acabado. Só lá estavam três mulheres, amigas minhas. Tentaram ajudar-me, mas não puderam fazer nada, por isso ficaram ali comigo à espera. Muito mais tarde, à noite, chegou um carro de bois. Alguns homens apearam-se e correram as minhas amigas a pontapé, ordenando-lhes que desa parecessem dali para fora. E que pensa que me aconteceu a mim? Um dos homens pegou-me na perna direita, outro na esquerda. Mais dois agarraram-me pelos braços, depois pegaram em mim e disseram - um, dois, três, atirando-me pelo ar para a parte de trás da carroça. A seguir não me lembro de mais nada.

Quando a mulher terminou a sua história, apercebeu-se de que a Rapariga de Java estava a chorar.

- O que foi, Mar Nganten? Por que está a churar? A Rapariga não conseguiu responder.

- Mas o que tem?

- Não te importas se eu o fizer, pois não?

- Se fizer o quê, Mar Nganten?

- Se eu também chorar? Porque estou a chorar por ti! A mulher pôs-se de pé, rápida como o relâmpago, abriu a rede do mosquiteiro e lançou os braços à volta das pernas da Rapariga, beijandu-lhe os pés.

- Oh! minha querida! Que más recordações! Fora daqui, digo-lho eu, só há crueldade -... crueldade para com gente do povo, como nós.

- Para onde é que a carroça de bois te levou?

- Para que outro sítio levam os plebeus, a não ser para a cadeia?

- Fizeram-te sofrer lá, Mbok?

- Não pude andar durante três meses. Mesmo assim pren deram-me as pernas com cadeias. Quando mas tiraram, levaram-me para outro sítio, não sei para onde. Só me lembro de me terem atirado para o chão frio e depois três funcionários do governo javanês me interrogarem por turnos. Também lá estava um holandês, a observar-me sem falar. A única coisa que disse foi: "cão".

- Há um ditado na minha aldeia que diz assim: o mar alimenta-nos, mas também é cruel.

- Talvez seja cruel, mas não tortura as pessoas.

- Isso é verdade. O meu pai costuma dizer que temos uma dívida para com o mar e que ele insiste em que essa dívida tem de ser paga na totalidade; mas nada mais. Tens razão, ele nunca disse que o mar nos torturava. - a Rapariga sentou-se na cama. - Por que dormes no chão, Mbok? Não preferias dormir na cama?

- Sou apenas a sua criada. Estaria a pecar contra o Bendoro e contra Alá, se alguma vez me levantasse mais alto do que os joelhos do meu amo.

- Nunca tive uma criada antes de vir para aqui - insistiu a Rapariga. - Nunca ninguém me tratou assim.

- Com certeza que não, Mar Mganten.

- Não sei o que devo fazer.

- Eu sei, Mar Nganten.

- Mas por que estou eu a falar de mim quando tu é que sofreste tanto? Diz-me, como é que saíste da cadeia?

- Uma manhã, atiraram-me para fora aos pontapés. E é tudo, Mar Mganten.

- E depois, o que fizeste?

- Deitei-me ao caminho, a pé, sem saber para onde ia, sem sequer saber o nome da cidade onde estava. Não queria voltar para a minha terra porque tinha medo de ser outra vez recrutada para os trabalhos forçados. Nas primeiras noites dormia debaixo da grande figueira-de-bengala, na praça da cidade. Ali adiante. - e a mulher apontou em direcção ao mar. - De dia, escondia-me no mercado. - Apontou para o sul. - Era aqui, nesta cidade, que tinha estado presa. Depois conheci um homem, cocheiro do Bendoro, e casei com ele.

Vivemos juntos cinco anos, mas nunca mais engravidei.

Então, um dia, o meu marido caiu de um coqueiro e morreu.

- E por isso continuaste a viver aqui?

- Sim, Mar Mganten, a tomar conta de crianças. Nem têm conta as que ajudei a criar nestes quinze anos que aqui tenho estado.

As duas mulheres ficaram por momentos silenciosas. Chegava-lhes aos ouvidos o estrondo das vagas batendo com força na praia. O constante assobiar do vento fez com que a Rapariga se lembrasse do pai.

- Quem estará agora a cozinhar para o meu pai? - perguntou de súbito.

A criada permaneceu silenciosa, enquanto a Rapariga continuava a falar:

- Devia ser eu. Agora que a mãe está aqui, o pai está sozinho.

- Ele é um homem, Mar Mganten. Não se preocupe com ele, apesar de se tratar do seu pai. Os homens são sempre capazes de tomar conta de si próprios, até no inferno.

- Mas é meu pai, Mbok, é natural que me preocupe.

- O seu pai está bem, Mar Nganten, assim como a sua mãe. Estão todos bem, graças a si.

- Porquê graças a mim?

- Porque agora é a primeira esposa do Bendoro e vive aqui, nesta grande casa. Ninguém se atreveria a incomodar o seu pai, mesmo vivendo ele naquela aldeia de pescadores à beira-mar. Nem os nobres, nem os soldados. O seu pai nunca será obrigado a fugir com a família ou a ter de se esconder em alguma ilhota perdida. Não agora. Terá o respeito de toda a gente da aldeia. Todos prestarão atenção ao que ele disser. Pode descansar tranquila, Mar Nganten.

- Como é que sabes tudo isso, Mbok?

- Eu sei muitas coisas, Mar Nganten, demasiadas, até. Às vezes, até o Bendoro me faz perguntas sobre algum assunto que ele próprio desconhece.

- Gostas de mim, Mbok?

- Mais do que possa imaginar, Mar Nganten.

- Então fica com esta pulseira! Ou com o colar.

- Por favor não me diga tal coisa, Mar Nganten. Se eu fosse expulsa desta casa, nem sequer saberia para onde ir. O mundo é muito grande, mas para onde havia eu de ir? Não seria fácil arranjar outro lugar, seria mesmo muito dificil.

- Gosto muito de ti, Mbok. Corrige-me por favor quando eu fizer algum disparate.

- Se nunca desapontar o Bendoro, nunca fará nada malfeito. - Voltou a almofada ao contrário e sacudiu-a. - Se o ofendermos, teremos sempre problemas, onde quer que estejamos. Entende o que lhe digo, Mar Nganten?

A Rapariga de Java adormecera.

Depois da chegada do Bendoro, a criada não voltou a entrar no quarto da Rapariga durante dias, semanas até. Entretanto, a mãe dela regressara à aldeia, levando com ela um saco de arroz, cerca de cem rupias, roupas usadas do Bendoro para o marido, um quilo de pasta de tamarindo e latas de especirias.

A Rapariga só conseguiu ver a mãe poucos minutos antes da partida. Quando ela foi ao quarto para se despedir da filha, esta insistiu várias vezes em oferecer-lhe as jóias de ouro, mas a mãe fingiu que não ouvia e pôs-se a falar de outras coisas: do marido, que entretanto regressara à aldeia; de como ele estava precisado de uma rede nova para substituir a que tinha, já velha e gasta; do preço do pano para a vela, que tinha descido, e da subida do preço da resina, que fazia com que ele não pudesse calafetar os rombos do barco...

- Queres algum recado para o teu pai?

- Sim, mãe. Diz-lhe que me perdoe e que lhe peço a bênção.

- Gostas de viver aqui?

- Tu e o pai querem que eu aqui viva. Mas preferia estar em casa, na aldeia.

- A mulher deve estar ao pé do seu marido. Comigo aconteceu o mesmo - tentou consolá-la a mãe. - Não importa se vives numa cabana em ruínas, ou se és ou não feliz; tens é que aprender a agradar ao teu homem.

A Rapariga deu à mãe dois cortes de tecido para vestido que esta aceitou sem dizer nada.

- Tenho de ir - disse finalmente.

- Mas, mãe!

- Não levantes a voz dessa maneira. Já não és uma criança pequena.

- Está bem, mãe.

- Daqui em diante tens de aprender a chorar às escondidas. Ninguém te deve ver ou ouvir. Deixa de pensar em ti e aprende a agradar aos outros.

A Rapariga voltou-se de costas para a mãe e pôs-se em frente do espelho. Olhou para a imagem nele reflectida, examinando as suas feições, a expressão do rosto, mas depois afastou-se rapidamente, atirando-se para cima da cama.

Aprendera gradualmente, nestas poucas semanas, que a única coisa que podia e devia fazer era servir o Bendoro, o seu marido. Na aldeia estava acostumada a ajudar os pais, os parentes, toda a gente. Ela própria tinha de puxar a rede de pesca, carregada com os seus pesos de metal, e pô-la a secar em cima de uma estaca; utilizando um bocado de madeira, levantava-a, sem a ajuda de ninguém, para uma roldana, içando-a em seguida. Agora, a mãe teria de moer e secar sozinha os camarões, pela meia dúzia de moedas que iria receber do chinês vindo da cidade.

Foi despertada dos seus pensamentos por uma mão que lhe acariciava o rosto. Estava demasiado esgotada para erguer os olhos. Momentos depois, já mais recomposta, quis falar com a mãe. Mas ela já tinha partido. A única pessoa que ainda ali estava era a criada que, da porta, a olhava em silêncio.

- A sua mãe já se foi embora, Mar Nganten. Mardi mandou-a para a terra na carruagem.

Era de manhã. O céu estava claro. O som das ondas começou a esbater- se à medida que o vento soprava com mais força de terra.

- Que trabalho é que eu poderia fazer? - perguntou a Rapariga.

- Quanto mais importante uma pessoa é, Mar Nganten, menos necessidade tem de trabalhar. Só a gente do povo é que trabalha.

- Desde há tanto tempo que não faço nada! Estou aborrecida! Não posso ajudar a moer farinha?

- Moer farinha? Há milhares de pessoas que podem fazer esse serviço. Não há nenhuma necessidade de a senhora o fazer.

- Então o que posso eu fazer?

- Tem a certeza de que quer mesmo trabalhar?

- Não posso continuar assim engaiolada, Mbok. Não posso mesmo.

- Para falar verdade, Mar Nganten, durante três meses não tem autorização de fazer o que quer que seja. Passado esse tempo, falarei nisso ao Bendoro. Que tipo de trabalho gostaria de fazer?

- Não sei - respondeu a Rapariga. Pensou na mãe, agora obrigada a moer o milho sem a ajuda de ninguém. E à noite, quando o pai estivesse em casa e já a dormir às sete horas seria ela que, também sozinha, teria de pendurar as redes para secar.

- O que fazem as pessoas aqui? - perguntou.

- Servimos o Bendoro, Mar Nganten.

Era isso trabalho? Servir o Bendoro era trabalho? A Rapariga de Java não conseguia compreender.

A Rapariga de Java começou a aprender a transformar uma peça de pano num tecido de coloridos desenhos de bali. I, logo de manhã, lá estava ela, absorvida a traçar com um lápis desenhos no tecido. As suas mãos estavam mais macias por causa da sua inactividade forçada. Uma vez por semana tinha aulas de culinária e de três em três dias vinha outra professora contar-lhe histórias relacionadas com a religião, vindas de um reino muito distante no deserto.

Com o tempo, as saudades de casa - da mãe, do pai, dos parentes - atenuaram-se. E quando pensava neles e na sua vida de outrora na aldeia, pedia à criada que lhe contasse de novo todas as histórias de pescadores que ela conhecia.

A Rapariga de Java foi-se aos poucos habituando a uma maneira de viver que era agora preenchida pelas tarefasque lhe eram sempre aligeiradas - que ia aprendendo a desempenhar. Familiarizou-se com o holandês que ouvia falar aos jovens quando saíam da sala de oração. As vozes deles, que chegavam até ela através das paredes do seu quarto, fizeram-na tomar conhecimento de muitas coisas que antes não sabia: um dos colegas deles, que tinha ido estudar para uma escola na Holanda, voltara para casa, não com um diploma, mas com uma jovem esposa. Um navio de guerra estava ancorado a cerca de sete quilómetros da costa; uma parte da costa perto de Lasem tinha desabado no mar, causando uma grande inundação; três barcos de piratas tinham ancorado numa aldeia de pescadores perto da terra dela e morto mais de um décimo da população, pilhando ouro, prata e tudo o que encontraram de valor; um grupo de jovens de uma determinada aldeia alistara-se no exército, indo combater para o Ultramar...

- Se voltasse à sua aldeia, Mar Mganten - disse-lhe um dia a criada - toda a gente de lá pensaria que a senhora era uma princesa.

A Rapariga de Java aprendeu também a bordar, a fazer renda e a tricotar. Tanto a rapidez com que compreendia o que lhe ensinavam como a sua habilidade e destreza de mãos muito agradaram às professoras.

Tinha ido à cozinha mais de uma vez, com o intuito de ajudar, mas deixou de o fazer. Os olhares que as criadas lhe lançavam fizeram-lhe sentir que a sua presença ali não era muito apreciada.

- Não vá à cozinha, Mar Nganten - aconselhou-a a criada.

- Não passam de criadas, mas apesar disso não fazem senão resmungar. Deviam era estar a viver nas suas barracas; não merecem a sorte que têm.

Durante todo esse tempo, o Bendoro não tornara a ir ao quarto da Rapariga.

- O Bendoro anda muito ocupado, Mar Mganten - informou-a a criada. - O Regente está para casar com uma das princesas de Solo. Que pena Kartini ter morrido tão nova. Era tão corajosa! Ninguém tinha mais coragem do que ela. Nem dos holandeses tinha medo. Todas as pessoas importantes a respeitavam.

Até a Rapariga de Java ouvira falar dessa mulher chamada Kartini. Chegara à cidade há vários anos, num coche real. Toda a gente do distrito foi convocada para ir saudá-la à sua passagem pela estrada, ficando ali a acenar bandeiras holandesas tricolores de papel com as suas mãos castanho-escuras. Compreendia agora as histórias que o pai tinha contado ao regressar da cidade, havia já uns anos. Ele e outros companheiros seus tinham recebido ordem de se reunirem na praça da cidade, a fim de prestarem as suas saudações à jovem noiva que chegara de Jepara. Seria essa noiva Raden A Jéng'o Kartini? Que vida tão curta tivera, mas como se fizera respeitar! Nessa altura, a Rapariga não sabia ainda o que tinha acontecido a Kartini.

' Título de uma javanesa nobre, solteira.

Quando a criada lhe falou dos filhos do Bendoro, a Rapariga sentiu um forte desejo de os acarinhar e de brincar com eles. Mas mantinham os filhos e as filhas das anteriores esposas do Bendoro deliberadamente afastados dela. Era muito raro ver o Agu. Rahmatembora todas as tardes o ouvisse a falar com o professor numa língua estrangeira, no quarto das traseiras.

Os dias foram passando e a Rapariga de Java ia preenchendo o tempo com os seus novos dotes. A sua pele, liberta dos raios ardentes do Sol, tornou-se de um rosa-dourado e a sua cara infantil adquiriu uma expressão de mulher.

A um mês seguiu-se outro e outro e ela quase nunca via o Bendoro nem este a foi procurar ao seu quarto.

À medida que a data do casamento do Regente se aproximava, o Bendoro passava cada vez menos tempo na sua própria casa. A cidade estava toda engalanada. A princesa que vinha do palácio de Solo iria ser recebida de uma maneira ainda mais grandiosa do que Kartini, filha do Governador de Jepara, menos importante.

Os portões do palácio do governo, bem como os passeios das ruas, foram ornamentados com folhas de palmeira e troncos de bananeira. Na praia, a muralha que rodeava o ancoradouro sagrado (símbolo da cidade) estava a ser substituída.

A Rapariga de Java vivia na mansão do Bendoro havia uns seis meses quando de repente a cidade ficou inundada de luz e de visitantes que chegavam de todos os lados. Nessa noite, a criada levou-a do quarto, através do pátio central, até a um pavilhão à direita da casa principal; da janela do andar superior conseguiam ver os festejos que se desenrolavam em baixo, na praça. A Rapariga desejava poder estar entre a multidão de visitantes, muitos dos quais conhecera desde pequena. Mas não era possível. Agora estava num nível social mais elevado do que eles.

Nessa noite foi deitar-se, mas a sua cabeça não parava, com pensamentos vários rodopiando dentro dela. O Regente, que acabara de casar, era muito mais velho do que o Bendoro e a noiva, a princesa de Solo, muito mais velha do que ela própria; no entanto, nem o casamento deles tinha sido festejado desta maneira, nem a sua chegada àquela casa no dia do casamento fora marcada por quaisquer celebrações.

Acordou às três da manhã. A criada tinha desaparecido do seu lugar habitual aos pés da cama, e o Bendoro estava deitado na cama ao seu lado.

Às cinco da madrugada, a criada regressou ao quarto.

Vendo a sua patroa ainda deitada, aproximou-se e ouviu-a a chamá-la num murmúrio:

- Ajuda-me, Nbok, ajuda-me.

A criada afastou a rede do mosquiteiro, prendendo as pregas no gancho para manter a cortina aberta:

- Está doente, Mar Mganten? - perguntou.

A jovem continuava a gemer, repetindo o nome da criada.

Esta tocou-lhe os pés.

- Está tudo bem, Mar Mganten, a sua temperatura está normal.

- Sinto-me mal, Mbok. Por favor, ajuda-me a ir à casa de banho -, pediu ela, erguendo os braços para a criada. Esta agarrou nos braços da Rapariga pelos cotovelos e fê-la sentar-se. Prendeu-lhe o cabelo, que estava todo despenteado e compôs-lhe a blusa e a túnica de balik que a envolvia, alisando com as mãos as pregas do lençol.

- Não está doente, Mar Nganten - disse novamente a criada, enquanto ajudava a Rapariga a levantar-se da cama.

- Mas, Mbok... - queixou-se ela docemente.

- Não se preocupe, Mar Nganten. Da próxima vez não vai ser assim.

- Mas o que é que aconteceu? - quis saber ela.

Depois de a ajudar a pôr-se de pé, a criada apontou para o lençol, onde se viam várias pequenas manchas vermelho-acastanhadas e depois comentou:

- Um pouco de dor e algumas gotas de sangue ao cabo de seis meses não é nada, realmente.

- Mbok... - gemeu ela de novo.

- Sim, Mar Nganten.

- Estou assustada.

- Não admira, Mar Nganten.

- Leva-me à casa de banho.

A criada ajudou-a a caminhar até lá.

- Mbok...

- Sim, Mar Nganten.

- Quando é que a minha mãe voltará?

Continuaram a caminhar lentamente, em silêncio.

- Mbok...

- Sim, Mar Nganten.

- Sou bonita?

- É muito bela, Mar Nganten.

- Mas as outras não eram mais bonitas?

- Neste mundo, Mar Nganten, todas as outras têm de se afastar quando surge alguém mais belo do que elas.

Chegadas ao centro do pátio central, pararam um pouco para descansar.

- Mbok, eram mais simpáticas do que eu?

- A senhora é muito mais simpática, Mar Mganten.

- Mbok...

- Sim, Mar Mganten.

- Gostas de mim?

- Ainda duvida, Mar Mganten?

- Não, Mbok, não duvido. As outras pessoas gostam de mim?

- Ninguém a ama mais do que o Bendoro, Mar Mganten.

- Mbok...

- Sim, Mar Mganten.

- Ainda estou com medo.

- De que é que tem medo, Mar Mganten?

- Serei sempre bela?

- Certamente. Por que não?

- Quando eras jovem, eras bonita?

- Nunca fui bonita, Mar Mganten.

- Tenho tanto medo!

As duas mulheres desapareceram atrás da porta da casa de banho.

 

             PARTE II

Passara um ano.

Agora, a Rapariga de Java sentia-se só nas noites em que o Bendoro não vinha ter com ela ao quarto.

Já não precisava dos cuidados habituais, do apoio e da ajuda constantes da criada. Adaptara-se extraordinariamente bem à sua nova vida, para além mesmo de todas as expectativas. Mas a velha criada continuava a ser para ela uma amiga e prudente conselheira.

A Rapariga passava a maior parte do tempo fora do quarto; de manhã, tinha aulas e estudava; de tarde, passeava no jardim da parte de trás da casa ou conversava com os parentes do marido; e à noite participava com os criados e às vezes com os vizinhos nas recitações do Corão.

No decorrer desse ano e desde que vivia em casa do Bendoro nunca pusera os pés nas salas do centro ou da frente da casa, muito menos em quaisquer outros quartos, a não ser na sala de oração - o halrvat Ninguém lhe recomendara que se mantivesse afastada dessa parte da casa. Parecia que uma força misteriosa a impelia a não o fazer.

Uma tarde, o Bendoro ordenou a Mardi para preparar a carruagem. Estaria ausente pelo menos uma semana. Já acontecera nesse ano mais do que uma vez e não era provável que esta saída fosse a última. A Rapariga sentiu como que uma punhalada no coração. Ao ouvir a ordem, mudou imediatamente de roupas, retocou a maquilhagem e compôs o cabelo, sentando-se em seguida na cadeira do seu quarto à espera que o marido viesse despedir-se dela e dizer-lhe que ia estar fora uns dias.

Quando teve a certeza de que a carruagem do marido partira, afastando-se ao longe, saiu do quarto, desceu a escada das traseiras e, virando à direita, entrou no jardim. Foi até ao banco onde pela primeira vez se sentara ao lado do marido.

Esperava que o fresco ar do entardecer ajudasse a acalmar o seu coração incerto, perturbado, ansioso. Queria estar só, envolvida pela natureza, como estivera quase sempre, enquanto vivera na aldeia à beira-mar. Desejava pensar apenas em coisas agradáveis, para assim tentar esquecer a agitação que lhe ia no íntimo. O marido partira nem há dez minutos e já tinha saudades dele. Como lamentava não estar mais tempo com ele! Apenas algumas noites por semana, e era tudo. Fosse o que fosse que acontecesse, aconselhava-lhe o marido, ela não devia perder tempo a pensar em coisas más.

É parvoíce, dizia. Pensa nas coisas belas e boas da vida, para conservares o teu coração puro e a mente limpa. Só os burros passam o tempo a pensar em como foram maltratados pelo destino. Por isso não passam de animais de carga.

A Rapariga nunca vira um burro mas a criada tinha-lhe explicado que era uma espécie de cavalo estúpido, que fazia interminavelmente o caminho para dentro e para fora da cidade, do norte para o sul, carregando com pessoas e carvão. Seria ela um burro? Não! O Bendoro não ia querer ter um burro como esposa.

Tentou vezes sem fim dizer a si mesma que não era um burro, mas continuava a sentir um peso no coração. Não se apercebera ainda de que estava com ciúmes, muitos ciúmes.

Passado um quarto de hora de estar ali sozinha, no jardim, a criada veio ter com ela:

- Procurei-a por todo o lado, Mar Mganten. O seu professor está aí.

- Diz-lhe que hoje não vou ter aula. Estou com dores de cabeça.

- Ele não se vai embora enquanto não fizer o que lhe mandaram, Mar Mganten. Contou-me que é assim que ele ganha a vida.

- Vai-te embora! - gritou-lhe a Rapariga; mas depois, assustada com a estridência da sua própria voz, acrescentou rapidamente. - Desculpa, Mbok. Perdoa-me, por favor. Estou maldisposta, é tudo.

A criada não respondeu e foi-se logo embora, visivelmente sentida. A vergonha por ter falado à idosa criada com tão maus modos ainda fez aumentar a perturbação em que se encontrava. Levantou-se rapidamente e foi atrás dela. Quando viu o professor disse-lhe, com a gentileza habitual, que nessa tarde não queria ter a aula.

- Mar Mganten - replicou o professor - o Bendoro vai ficar zangado. Que vou eu dizer-lhe?

- Não quero estudar hoje, nem amanhã, nem depois. Nem enquanto o Bendoro não regressar.

Depois de o professor se ter ido embora, a jovem foi para o quarto e deixou-se ficar ali sentada. Vendo a criada que entrava, disse-lhe:

- Desculpa, Mbok - implorou - Não fiques zangada comigo. Não era minha intenção tratar-te com maus modos.

- As mulheres por vezes ficam com ciúmes, Mar Mganten.

É natural. Mas mesmo que esteja aborrecida, não devia atirar a sua má-disposição para cima das outras pessoas, para elas não ficarem mal dispostas também.

- Obrigada, Mbok. Mas para onde vai o Bendoro, dias a fio?

- São assuntos de homem, Mar Mganten, e era melhor que não interferisse neles. As mulheres não entendem destas coisas. O nosso trabalho é aqui, em casa. É este o nosso território, a área que nos compete.

- Mas eu nem com esse território estou familiarizada!

Nunca fui sequer aos quartos da frente e do centro da casa.

- Então vou mostrar-lhos, Mar Mganten.

- Para quê? - perguntou. Mas como a oferta lhe tinha despertado a curiosidade, levantou-se da cadeira e seguiu-a.

A criada conduziu-a através da sala das traseiras até chegarem ao meio da casa. Atravessaram um enorme portal. A porta, em si mesma, era muito maior do que qualquer mesa da sua aldeia. Entraram numa grande sala, cujo tecto era dividido em quadrados e decorado com coloridas grinaldas de flores em ferro fundido. No centro do tecto havia um desenho ainda mais elaborado, um enorme círculo compondo uma barra circular formada por feixes de arroz entrelaçados, cujos grãos tombavam de quando em quando para fora, nos quadrados adjacentes. Suspenso do centro havia um comprido tubo de metal amarelo de onde pendiam várias lâmpadas eléctricas, cada uma delas rodeada de pingentes de cristal, como diamantes nas orelhas de uma mulher.

Ao lado da porta estava uma mesinha baixa sobre a qual se encontrava um grande frasco de farmácia cheio de água com umas coisas pretas agarradas ao fundo. A Rapariga olhou mais de perto. Era um monte de sanguessugas.

- O que é que isto aqui está a fazer? - perguntou.

- O Bendoro costuma aplicá-las uma vez por mês, para limpar o sangue.

- Por que faz ele isso?

- Um curandeiro chinês disse-lhe para fazer isso.

- O Bendoro está doente?

- Sim, está. Já ouviu a opinião de vários médicos holandeses, de Jepara e Semarang, mas nenhum deles foi capaz de achar a cura para ele.

- O que é que ele tem?

- Ninguém sabe.

A Rapariga perdeu subitamente a vontade de continuar em explorações pela casa e ficou imóvel no meio da sala, observando o que a rodeava: as cristaleiras encostadas às paredes, os numerosos panos cobertos de caligrafia árabe, os diversos tapetes - azuis, pretos e vermelhos e brancos - que ostentavam cenas do deserto com camelos e cavalos. A separar a sala do meio da tradicional sala de recepções havia uma outra porta enorme, meio escondida por um biombo de mogno ricamente esculpido, cujos caixilhos eram preenchidos por fibra de bambu excepcionalmente fina, decorada com uma paisagem marítima, tecida em fio dourado.

Sem prestar atenção ao que estava a dizer, a Rapariga começou a falar de forma desconexa:

- Está tudo tão limpo! As crianças da casa vêm às vezes brincar para aqui?

- Nenhuma criança tem ordem para pôr aqui os pés. Ficam na cozinha. Quando querem brincar, é lá fora que brincam, no pátio da frente ou do lado de lá da rua, na praça da cidade.

- O que é feito do bebé de quem estavas a tomar conta quando aqui cheguei?

- Mandámo-lo embora para não a perturbar, Mar Mganten.

- Eu podia tomar conta dele.

- Ó Mar Mganten, nunca repita isso em frente do Bendoro! As crianças constituem um assunto muito delicado nesta casa e frequente causa de discussões, mesmo sendo as criadas que aqui tratam deles.

A Rapariga não compreendeu o que a mulher queria dizer com aquilo, mas não insistiu no assunto.

- No devido tempo, também terá um filho, Mar mganten. A Rapariga sorriu, encantada. Os ciúmes foram momentaneamente esquecidos. Ao invés, o seu instinto maternal ficou desperto, bem como o desejo de saber mais acerca do marido.

- O Bendoro tem alguém que lhe faça companhia durante o dia, quando está cá?

- Não. Às vezes recebe aqui hóspedes. Mas nunca do sexo feminino.

- Por que não? Na minha aldeia, os homens e as mulheres visitam-se uns aos outros.

A criada olhou com tristeza para a Rapariga. A sua longa experiência ensinara-lhe muito acerca das diferenças existentes nesta parte do país entre os plebeus e a nobreza. O Bendoro, que tinha casado com uma plebeia, não era sequer considerado como casado, mesmo que viessem a ter uma dúzia de crianças. Um casamento destes era encarado apenas como preparação para o casamento próprio de um nobre – com uma mulher da mesma classe social. Um aristocrata casado com uma rapariga do povo não podia receber as mesmas visitas que receberia se a sua mulher fosse de igual nível social. A presença de uma plebeia seria considerada um insulto.

- Disse alguma coisa de errado, Mbok? - perguntou a Rapariga.

- Estava a pensar, Mar Mganten...

- Em quê?

- Como seria bom se todas as pessoas tivessem uma casa como esta.

- Não seriam capazes de cuidar dela sozinhas!

- Sim, suponho que seria uma carga pesada. Olhe para isto. - A criada voltou-se e apontou para uma caixa de sândalo em cima de uma mesa baixa, toda coberta de entalhes representando borboletas e flores. - É aqui que o Bendoro guarda os remédios.

- Remédios? Mas ele não parece doente!

- Quer ver o resto da sala? - Antes que a Rapariga pudesse responder, a criada já tinha aberto uma outra porta. Ela espreitou para dentro. A primeira coisa que viu foi uma estante de madeira, cheia de lanças. Deu um salto para o lado e virou as costas à porta.

- Não, não me parece, muito obrigada.

A criada fechou a porta e a Rapariga voltou para o seu quarto.

Lá fora o Sol estava a pôr-se.

Os toques da mesquita e da sala de oração chamavam-se uns aos outros.

Quando chegou à porta do quarto, a Rapariga não conseguiu esconder por mais tempo o receio e a ansiedade:

- Virá outra primeira esposa tomar o meu lugar? - perguntou.

- Não! Não! - replicou a criada - Na verdade não posso dizer - acrescentou, enquanto virava a cara rapidamente e se apressava a descer as escadas para a cozinha.

Aquele último ano trouxera grandes transformações no modo como a Rapariga deJava pensava e sentia. Tinha deixado a sua aldeia de pescadores à beira-mar e penetrado num mundo de medo. Esse medo traduzia-se em incerteza em relação ao futuro. Vir para a cidade e para a mansão em que agora vivia significava entrar num reino onde já não podia ter a certeza de nada. Na aldeia, as pessoas ajudavam-se umas às outras, fossem elas quem fossem. Aqui ajudar era irrelevante. Constituía, quando muito, a quota-parte do serviço que cada homem e cada mulher devia ao Bendoro. Na aldeia, podia dizer à-vontade do que gostava, de quem gostava. Podia, se lhe apetecesse, insultar o Bendoro, ou qualquer outra pessoa. Aqui, tinha que ter cuidado com o que dizia e a quem o dizia.

- Não, Mar Nganten - lembrava-lhe incansavelmente a criada. - A primeira esposa não fala apenas com alguém. Dá ordens. Firmemente. Não interessa o que pensam; estão aqui para fazer aquilo que lhes ordenam. Tal como eu, Mar Nganten.

A Rapariga foi-se apercebendo gradualmente de que era uma rainha. Dava ordens a toda a gente. Apenas uma pessoa lhe dava ordens a ela: o Bendoro, seu esposo e senhor. A sua mente juvenil não podia aceitar uma situação em que os seres humanos só davam ou só recebiam ordens de outros seres humanos. Faltava algo de importante: o prazer que advinha de trabalhar com as outras pessoas. Aqui, ninguém trabalhava com os outros. Alguns serviam. E outros davam ordens.

Um dia, sentindo-se só, perguntou à criada:

- Mbok, por que é que, quando estou por perto, ninguém ri ou sorri sequer?

- E por que é que haveriam de o fazer? - retorquiu-lhe ela. - São apenas criados, que estão aqui para fazer o que a senhora mandar. Além disso, não seria bom comprazer-se com os sorrisos ou risos deles. A primeira esposa, Mar Nganten, é como uma montanha que ninguém pode tirar do lugar, a não ser pela mão do Bendoro. E absolutamente ninguém pode tirar o Bendoro do seu lugar, excepto Deus Todo-Poderoso.

A Rapariga ficou pensativa.

- O que é, Mar Nganten?

- Devo ser estúpida. Não consigo compreender.

- Se fosse tão fácil compreender, Mar Nganten, toda a gente seria da nobreza.

- Então em que posição é que eu fico?

- Que a senhora é que é a primeira esposa do Bendoro. A sua posição e o seu poder baseiam-se na autoridade do Bendoro. Como deve saber, Mar Nganten, o caminho que conduz à honra e à nobreza não está aberto a qualquer um.

Na sua aldeia, a Rapariga estava convencida de que só os marinheiros mais corajosos mereciam honra e respeito. Cruzavam os mares e apanhavam nas suas redes centenas, talvez milhares de peixes. E o pescador por quem demonstrassem mais respeito era o que levava para casa o peixe mais graúdo. Era um herói. Esse peixe não podia ser vendido, mas dividido entre os aldeões, excepto a espinha, que ele colocava sobre a ombreira da porta da sua casa. Ela e as amigas costumavam parar em frente das portas dos pescadores e contemplar aquelas longas e largas espinhas. Na sua imaginação, acrescentava os dentes e os olhos ao esqueleto despido. Tratando-se de peixes às vezes duas e três vezes superiores ao seu próprio tamanho, ela podia imaginar como teriam sido grandes e fortes. Gostaria de, por uma vez, ter visto uma criatura como aquelas ser trazida viva para a praia. Isso, porém, nunca acontecera; chegavam sempre já mortos. Um dia tinha pedido ao pai que trouxesse um peixe grande para casa, mas ele tinha-a silenciado com o tom ríspido da sua voz:

- Mesmo que sejas suficientemente forte, nunca olhes de frente para a morte, a não ser que tenhas mesmo de o fazer. Embora não tivesse entendido bem o que ele queria dizer com aquilo, um arrepio de medo percorreu-lhe o corpo. Naquela noite, e uma vez que o pai partira para o mar, foi aninhar-se ao pé da mãe no estrado que lhe servia de cama. Não dissera uma palavra mas, durante a noite, apertara-se de encontro a ela, até que por fim a mãe ficou aborrecida:

- Miúda mimada! - ralhou-lhe.

Não, não conseguira pregar olho em toda a noite, constantemente assaltada pela visão de peixes enormes e ferozes, cobertos de sangue, que governavam os oceanos e os peixes mais pequenos. Virou-se e revirou-se, sem sossegar, até que a mãe finalmente acordou e se pôs a pé. Olhou para a filha durante um bom bocado, à luz fraca do candeeiro e depois perguntou-lhe:

- O que tens tu?

Como de costume, o pai não tinha ainda chegado a casa. Juntara-se a alguns dos amigos para irem ajudar os pescadores que precisavam de membros extra para a tripulação. Então a Rapariga contou à mãe a conversa com o pai, que tinha originado aqueles pensamentos assustadores.

- Minha tonta - murmurou a mãe, dando-lhe palmadinhas na cara. - Vá, dorme, filha. De qualquer forma, em que estavas tu a pensar? Nunca mais fales ao teu pai sobre isso. Que estás a querer fazer? Assustá-lo? Esses peixes são perigosos. E no mar alto não há ninguém que nos socorra. Um homem podia gritar durante um ano que ninguém sequer o ouviria. O ruído das ondas abafa qualquer grito. No mar há mais peixes, desses muito grandes, do que pescadores. Os seus dentes são mais fortes do que a lança do teu pai. Percebes o que estou a dizer-te, filha?

Ao ouvir isto, os cabelos da Rapariga puseram-se de pé. A partir de então, passou a rezar todos os dias para que não acontecesse nada ao pai, para que ele regressasse sempre são e salvo e, também, a vislumbrar um pouco da sua coragem. E nunca mais sugeriu que ele capturasse vivo um desses peixes enormes e aterrorizadores.

A sua mente juvenil começou a tecer comparações entre os tempos antigos e os actuais, como tinha sido a sua vida antes e como ela era agora.

Por fim, acabou por desistir de as fazer. Não conseguia compreender. Só tinha interrogações. Chegou à conclusão de que nem sempre havia respostas para elas. Como, por exemplo, para a pergunta que um dia fizera à criada:

- Por que razão é que todos têm medo do Bendoro?

Queria saber se ele já fizera um dia algo de heróico; queria saber onde estava a coragem, os feitos extraordinários, num homem tão magro e pálido, de aspecto tão delicado e de pele tão macia. Mas não se atrevia a perguntar. Ouvia em silêncio a velha criada quando ela, batendo com a mão no peito, como se estivesse a tentar convencer-se a si mesma de que ainda podia confiar na sua memória, lhe dizia:

- Em todas as guerras, Mar Mganten, tal como pode ver no teatro de sombras dos fantoches, aTé os gigantes são sempre derrotados por jovens e delicados guerreiros. E os draÁgões, apesar dos seus dentes afiados e do fogo a sair-lhes pela boca, são derrotados pelo simples toque da mão de um nobre guerreiro. Enquanto o gigante salta para cima e para baixo, virando rodas de carro e pulando para a frente e para trás, o herói permanece calmo, mal se mexendo do seu lugar.

- É o que acontece no tva, yang.

- Não há teatro de fantoches na sua aldeia?

-Já ouvimos falar dele, mas ninguém representa nas paredes figuras das personagens do tvayang. Um dia um homem da cidade foi à nossa aldeia e levou um teatro de fantoches.

O homem mais velho da aldeia, o ancião, ficou muito zangado e bateu no homem com a bengala. Este, furioso, apertou os punhos e parecia estar a ponto de dar um murro na boca do ancião; mas depois, repentinamente, não teve coragem de o fazer, dando-lhe em vez disso um empurrão que

' LYiayang. O teatro de fantoches é conhecido no extremo Oriente onde, sobretudo no Japão e em Java, se cultiva este espectáculo por meio de sombras reflectidas na parede em sala escura, o fez cair na areia: - Velho doido! - gritou-lhe ele. - Que fiz eu de mal? O que têm de mal os meus fantoches?

O ancião continuou caído no chão, a gemer e a resmungar. Eu estava lá perto e assisti a esta cena. Os dois encontravam-se num pequeno carreiro escondido por um renque de arbustos. Mais ninguém pôde ver o que se estava a passar. Então fui ter com o ancião e tentei ajudá-lo a levantar-se. Ao ver-me fazer isto, o homem da cidade, por sua vez, aju dou-me a pôr o ancião de pé.

Disse então o ancião:

- O que estás a fazer de mal, homem da cidade, é que queres enganar-nos com os teus fantoches.

- Estou a tentar enganar-vos? - berrou o homem da cidade.

- Sim, é exactamente isso que estás a fazer - gritou por sua vez o ancião. - Estás aqui para nos contares histórias? Não. Estás aqui é para iludir o povo da aldeia com bocados de couro que tu mesmo pintaste e coloriste, querendo convencer-nos de que essas figuras feitas por ti são poderosas! Que têm poder! dizes tu. Mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Tudo mentira! Aqui, o que há de mais poderoso é o mar, não os teus fantoches.

A criada interpôs:

- Esse ancião da sua aldeia, Mar Nganten, parece ser bem arrogante. Se fosse aqui que ele dissesse isso, alguém ainda lhe pregava tamanha surra que nunca mais se levantava!

- Os pescadores da aldeia pensam da mesma maneira que o ancião. Não gostam nada desses teatros.

- É porque não compreendem, Mar Mganten. As personagens do teatro de marionetas são os nossos próprios antepassados.

- Os nossos antepassados já morreram, Mbok, mas o mar ainda continua aqui.

- Nem sequer estaríamos aqui, Mar Mganten, se não fossem os nossos antepassados.

- O ancião afirmou uma vez que tudo vem do mar. Não há nada mais poderoso do que o mar. Os nossos antepassados não teriam aqui vivido se não fosse o mar.

- Não sei, Mar Mganten, realmente não sei - respondeu a criada cortesmente, mas sem ser capaz de esconder a contrariedade.

Embora sem ter disso consciência, as perguntas da Rapariga eram suscitadas pelo seu próprio ciúme. Queria saber tudo acerca do marido que era também, simultaneamente, seu senhor e amo, mas não se atrevia a interrogá-lo.

- Não estejas aborrecida comigo, Mbok. Só estou a perguntar. - Era esta a resposta que dava constantemente, o modo que arranjara para se defender.

- A senhora atrapalha-me, é só isso. Nunca me fizeram tais perguntas em toda a minha vida.

Havia tantas coisas que ela desejava saber: para onde ia o Bendoro dias seguidos; com quem se encontrava; com quem falava; o que pensava dela... Por fim, foi forçada a concluir que naquela casa o conhecimento tinha um preço bem elevado. Tudo tinha de ser aprendido desde o princípio: desde fazer bati e bordar a ler e recitar o Corão. Mas não havia maneira de saber coisas sobre o marido, como, por exemplo, se ele pensava nela. Na aldeia as mulheres falavam com os maridos com toda a franqueza e à-vontade. Era verdade que por vezes a conversa levava à discussão. Mas aqui, neste lugar, como era?

- Já viveste numa aldeia de pescadores, Mbok?

- Vivi, sim, Mar Nganten, há muito tempo.

- Na aldeia, os maridos e as mulheres tratam-se de maneira diferente. Não é como aqui.

- Eu sei. Comem ao pé um do outro, sentam-se juntos, bebem juntos. Quando o marido não anda no mar, conversam acerca de todo o tipo de coisas.

- Sim, acerca de tudo: das estações, da Lua, do vento e das estrelas...

- É verdade, Mar Mganten.

- E também acerca de velas e de remos, de como a rede dele ficou presa num coral, ou como pisou um ouriço-do-mar.

- Sim, Mar Mganten.

- Na cidade, os maridos e as mulheres nunca falam?

- Bem, Mar Mganten, nesta cidade, talvez em todas as outras cidades, suponho eu, são os homens que controlam o mundo. Na cidade, as mulheres estão num mundo que pertence aos homens. Numa aldeia de pescadores, provavelmente não se passa isso, Mar Mganten.

- Então o que é que as mulheres possuem na cidade?

- Nada, Mar Mganten, excepto talvez...

- Excepto o quê?

- Excepto a obrigação de cuidar do que é do marido.

- Então, têm alguma coisa que lhes pertença?

- Não, Mar Mganten. Elas próprias são pertença do marido. A Rapariga de Java tinha a certeza de duas coisas: o Bendoro tinha partido havia três dias. Ela era sua propriedade. Mas continuava a não entender por que é que a tratava como se, para ele, ela não tivesse mais valor do que uma mesa, uma cadeira, um armário ou até mesmo o colchão em que em certas noites os dois se juntavam.

Tinham passado três dias e, em cada um desses dias, o ciúme foi roendo-a por dentro cada vez com mais intensidade.

No quarto dia, por volta das quatro horas, precisamente quando o gongo começou a tocar para a oração, o Bendoro regressou. Ouviu a sua carruagem parar ao lado do salão de festas e o som do ranger das rodas e o bater dos cascos dos cavalos à medida que passava devagar do lado de fora do quarto dela. Depois chegou-lhe aos ouvidos o ruído dos passos pesados das sandálias na sala do meio. O coração pôs-se-lhe a bater, descompassado. Fechou apressadamente a porta do quarto mas não à chave. Não. Ele não pode ter traido uma nova mulher para casa, gritou ela no seu íntimo. Não, não podia ter feito isso!

Sentou-se na cadeira e pousou a cabeça no toucador, de olhos fixos na porta, enquanto aguardava que o marido aparecesse. A porta abrir-se-ia lentamente. Primeiro veria o seu rosto, de tez pálida e nariz proeminente, quando ele espreitasse para dentro. Em seguida, o seu corpo, tão alto e magro, mover-se-ia agilmente até ela e, tal como costumava fazer, encostaria a cabeça no ombro dela e murmurar-lhe-ia suavemente ao ouvido:

- Estás bem, Mar Nganten?

Esperou e tornou a esperar, o corpo tremendo com o violento pulsar do seu coração. Porém o rosto do homem que ela esperava não surgiu à entrada da porta.

Uma força misteriosa fê-la erguer-se da cadeira, levando-a até à porta, que entreabriu. Esforçou-se por captar o mais leve som do lado de fora do quarto. Nada! Não conseguiu ouvir nenhuma voz feminina - apenas o ruído do bater arrastado das sandálias, para trás e para a frente, dentro do quarto, o barulho ocasional de uma porta abrindo-se e fechando-se e o arrastar das pernas de uma cadeira no soalho.

Mas de repente ouviu-o, chamando em voz de comando, num tom estranho e ameaçador:

- Mardi!

Soube imediatamente o que significava e sentiu o coração apertar- se-lhe: o Bendoro ia sair de novo.

Quantos dias teria que esperar até que ele regressasse! Sem sequer se aperceber disso, as lágrimas inundaram-lhe o rosto. Fechou outra vez a porta. O seu único e fiel refúgio era o colchão e a almofada. Ainda a confortavam mais do que a velha criada. À medida que iam aumentando os seus conhecimentos, que se ia tornando mais inteligente, menos a criada conseguia consolá-la.

Regressou ao seu refúgio e agarrou-se à almofada, rodeando-a com os braços. Lembrou-se da mãe, do pai, dos parentes. E ficou com vergonha de não o fazer com mais frequência.

Como desejava estar com o marido! Que espécie de ciúme era este que tanto a torturava! Quem era ela, a outra mulher, que exercia tal poder sobre o todo-poderoso Bendoro, a ponto de o fazer deixar a sua casa, de viajar para tão longe, de o manter enfeitiçado dias e dias? Ah! Mas onde estavam as respostas? Quem lhe podia responder? Ali ficou, sozinha com os seus pensamentos, até ao pôr do Sol.

Quando soou o gongo para a oração, a Rapariga tornou a ouvir as passadas do Bendoro, caminhando sobre o soalho para trás e para a frente. Ainda não partira.

Correu do quarto para a casa de banho onde fez as abluções e se purificou segundo os rituais. Em seguida foi para a sala de oração e ali se deixou ficar sentada, esperando. A porta distante, na parede em frente, permanecia fechada. Aquela porta, aquela porta! Nem o mais pequeno som con seguia atravessar as paredes da sala, embora só uma parede a separasse da sala de visitas.

Quando finalmente a porta se abriu, a Rapariga baixou rapidamente os olhos, não sem antes ver de relance a figura por que ansiara nesses últimos dias. Ele vestia um sarong novo, encarnado com riscas azuis. Sem um olhar sequer na sua direcção, começou a rezar. Tinha mudado! Então ela também rezou. Envolta na túnica branca de oração, sentia-se segura, muito mais segura com ela, pois escondia-lhe o corpo, os pensamentos, até os sentimentos.

Depois da oração, foi direita ao quarto, mudou de roupa e esperou pelo Bendoro na mesa da sala de jantar. Para sua surpresa, ele apareceu quase imediatamente e dirigindo-se a ela, segredou-lhe:

- Hoje tenho um hóspede para o jantar - e ficou ali, de pé, olhando para ela.

A Rapariga levantou-se da cadeira, inclinou a cabeça, fez uma reverência e voltou para a sua gaiola.

Do quarto, conseguia ouvir o Bendoro conversando com o hóspede e verificou, para seu grande alívio, que não era uma mulher. De que estariam a falar, durante a refeição? Acerca da nova primeira esposa? Tentava captar o que diziam, esforçando-se com todas as fibras do seu corpo para compreender o significado das palavras.

- Sim, um motim - disse o hóspede.

- Não revelam a menor gratidão, nem para com Deus, nem para com o governo. O que é que o governo não tem feito para cuidar do seu bem- estar? Eu diria mesmo, tuan", que o melhor seria liquidá-los.

Era a voz do homem com quem tanto desejava estar; reconheceu-a imediatamente.

- É exactamente o que eu penso. Sabe, tuan, fui enviado aqui pelo Governador...

- Porquê, senhor?

Era evidente que o Bendoro estava a ouvir com toda a atenção.

- Sim, o Governador. O Conselho das Índias Orientais decidiu resolver rapidamente o assunto; mas antes de o fazer, gostaria de saber o que pensam os líderes daqui de Java acerca da recente sublevação em Lombok.

- Com certeza, compreendo.

- É a primeira pessoa que fala francamente. Os outros regentes que visitei pareciam nem sequer saber onde fica Lombok.

- Agradeço-lhe essas palavras.

- Então os dois homens estão a falar de guerra - murmurou a Rapariga de Java para consigo mesma. Ao longo do

 

' Senhor. Tratamento cerimonioso.

 

ano, desde que ali residia, ouvira falar muitas vezes de guerra, mas ainda não vira, no entanto, quaisquer sinais dela. A guerra a que se referiam era longe, muito longe, em algum lugar distante de que nunca ouvira falar e que não estava interessada em conhecer. Tudo o que sabia era que esse lugar era algures perto do mar, muito mais distante do que o seu pai conseguiria navegar num dia. O bater do seu coração foi acalmando à medida que readquiria a paz de espírito.

- Gostaria de dormir cá esta noite, tuan? - perguntou o Bendoro. - Temos ainda muito que discutir.

- Mas não mandou já chamar a carruagem? Não, devo realmente partir ainda esta noite. Amanhã de manhã tenho que fazer o relatório para Sua Excelência o Bendoro Buati '2 de Blora.

- Tenciona percorrer toda a Ilha de Java?

- Não, tuan. O governo designou seis de nós para essa missão. A mim coube-me a zona costeira do norte. Não toda, evidentemente, apenas a da Java central.

- Então não poderemos falar de outros assuntos? - inquiriu o Bendoro.

- Receio que não - replicou o hóspede.

A Rapariga achou que o hóspede tinha uma voz agradável, forte e máscula, uma voz de comando, cheia de autoridade. Se ele lhe ordenasse para fazer o que quer que fosse, ela obedeceria imediatamente. Com muito cuidado, abriu uma fresta da porta e espreitou para fora. Viu um jovem nobre sentado à mesa em frente do Bendoro. Era de pequena

 

2 Senhor Regente.

 

estatura. Usava na cabeça um pano dobrado, com as pontas ligeiramente puxadas para cima, de uma maneira que não era comum entre as pessoas da nobreza costeira. Mantinha-se de pescoço erecto, raramente baixando a cabeça. Os olhos brilhavam-lhe, mais cintilantes e belos do que os cordões de ouro, os diamantes e as esmeraldas que ela costumava usar. O tom da pele era bastante escuro: Revelava grande destreza no uso da faca, garfo e colher. O coração da Rapariga batia agora num ritmo diferente - mais calmo e sereno.

Apercebendo-se de repente do que estava a fazer, fechou de novo a porta, envergonhada consigo mesma.

Pegou no cesto da costura e começou a bordar. Ao ouvir o som das cadeiras a ser afastadas da mesa, interrompeu por momentos o trabalho. A mesma estranha força se apossou dela novamente e a arrastou até à porta. Entreabriu-a e espreitou de novo. De corpo erecto, o jovem nobre encaminhou-se para o centro da casa. Pousando o cesto de costura, a Rapariga saiu do quarto e foi direita à sala de jantar. Sentou-se na cadeira que o rapaz ocupara até há momentos. Ainda estava quente do corpo dele e esse calor percorreu-lhe as veias, excitando-a e fazendo-a experimentar uma sensação de enorme prazer. Relanceou os olhos para a cozinha e viu a velha criada encaminhando-se para ela. Deitou rapidamente uma colherada de arroz no prato que o hóspede utilizara, mas antes que pudesse acrescentar as verduras, a criada estava a seu lado. Os seus olhos escrutinaram-lhe o rosto. Recuando um pouco, murmurou atabalhoadamente:

- O meu marido serviu-se deste prato.

A voz da criada soou calma:

- Deseja vegetais, Mar mganten? Ou qualquer outra coisa?

- Não, muito obrigada, de verdade.

A criada retirou-se outra vez para a cozinha. A Rapariga serviu-se das verduras e começou a comer devagar. Revia em pensamento o nobre jovem e belo e, ainda que inconscientemente, teve a percepção da vitalidade da sua juventude e extraordinária energia. Nem sequer tinha olhado para ela e no entanto aqueles olhos cintilantes tinham-lhe conquistado completamente o coração. Um homem como aquele não iria embora, abandonando a sua esposa, pensou. Os restos de arroz e de vegetais que ele deixara no prato sabiam-lhe deliciosamente. Quem seria ele? Como se chamaria? - Quem era o hóspede? - perguntou timidamente à criada.

- Como poderia eu saber, Mar mganten? Ouvi dizer que veio de Batavia.

- Batavia é uma cidade tão grande! Gostaria imenso de lá ir.

- Toda a gente sonha ir a Batavia.

- Quando estiveres despachada do teu trabalho na cozinha, podes ir ao meu quarto?

- Com certeza, Mar mganten.

A Rapariga ergueu-se da mesa e voltou para o quarto. Horas atrás, o seu coração pulsara violentamente de ciúme; agora batia serenamente e fora invadido por algo a que se poderia chamar esperança. Abandono, veneração - por um homem cujo nome nem mesmo conhecia!

O hóspede ia sem dúvida passar algumas horas com o Bendoro, na sala de visitas. Mas ela, no seu quarto, não conseguia ouvir nada do que diziam, apenas lhe chegava aos ouvidos uma risada ocasional, que de vez em quando penetrava por entre o ruído do vento vindo do mar.

- Está a dormir, Mar Nganten? - perguntou-lhe a criada da sua esteira no chão.

- O que dizes?

- Está cansada?

- O que estás a dizer?

- O hóspede deve estar quase a ir-se embora. Não pode adormecer... não esta noite. O Bendoro esteve fora quatro dias. Quatro dias inteiros, não é verdade?

- Sim, quatro dias - confirmou a Rapariga.

A velha criada falou devagar, numa voz grave:

- Quando o hóspede partir... - de súbito, o tom mudou:

- Por que lhe estou a dizer isto? - disse ela em tom firme.

- Conta-me uma história -, pediu a Rapariga.

- Qual? A do profeta Salomão?

- Não, essa não. Conta-me da tua vida.

- O que há para contar? Eu sei, é como a maior parte das pessoas fala de si própria; mas por onde quer que eu comece?

- Amavas o teu marido, Mbok?

- O que está a senhora a perguntar-me, Mar Nganten? Onde é que uma mulher como eu iria encontrar amor a não ser no seu marido? Só amei o meu marido.

- Qual deles, o primeiro ou o segundo?

- Isso não interessa. Primeiro ou segundo, isso não importa.

- Alguma vez te bateram, Mbok?

- Às vezes, Mar Nganten, penso que as mulheres foram postas neste mundo para que os maridos lhes pudessem bater. Portanto não falemos dessas coisas. O que é uma tareia comparada com o que ele tem de trabalhar por causa da mulher e dos filhos? Se ao menos Deus me tivesse dado um filho... Um, uma dúzia; o que me importava uma tareia se tivesse tido filhos, meus? Pense no seu pai, Mar Nganten, lembre-se como ele é obrigado a enfrentar todos os dias a morte.

- Eu sei, Mbok, tens razão. Todos os dias, sem excepção, e para quê? Para nós podermos comer um prato de arroz misturado com milho.

- Não falemos de pobreza, Mar Nganten. É Alá quem decide quem vai ser pobre e quem vai ser rico.

- Eu sei, Mar Nganten, mas há tão poucas pessoas que não são pobres!

- Que história quer que lhe conte, Mar Nganten?

- Mbok... como seria se toda a gente fosse rica? Ou todos pobres, sem distinção?

- Isso é impossível, minha jovem patroa! Nem devia pensar numa coisa dessas. É blasfémia! Sabe o que quer dizer a palavra "blasfémia", não sabe?

- Não, mas parece ser uma coisa assustadora.

- Deus criou a terra e os céus, o mundo e a natureza e tudo era perfeito. Criou o dia e a noite, os anjos e os demónios, o alto e o baixo. Se Ele tivesse querido que toda a gente fosse rica, ou toda a gente fosse pobre, então por que ordenou aos homens que dessem esmolas e o dízimo? Como saberíamos quem era o servo e quem era o amo? Seria o fim do mundo, Mar Nganten. Seria talvez um sinal de que o dia do julgamento estava próximo.

- Que histórias terríveis me estás a contar esta noite, Mbok! Por que é que em vez disso não me dás uma massagem?

A velha criada ergueu-se da sua esteira, abriu a cortina do mosquiteiro e começou a massajar-lhe os pés.

- Espero que gostes de mim, Mbok -, murmurou a Rapariga.

- Acha que eu não gosto de si, Mar mganten?

- Gostava que fosses feliz, Mbok.

- Não vê que sou feliz só porque a sirvo?

E assim foram as duas falando pela noite dentro, sem que a Rapariga ouvisse as palavras que ela desejava ouvir da boca da criada - uma simples e directa declaração de amizade, liberta dos laços da convenção e da cortesia - e sem que, por sua vez, a velha serva recebesse por parte da Rapariga provas de apreço pela sua obediência e pelos serviços que lhe prestava, que eram precisamente a sua maneira de lhe demonstrar afecto. Embora sentissem ambas que faltava alguma coisa nas suas vidas, nenhuma delas sabia ao certo o que era.

- E se eu fosse tua filha, Mbok?

A velha criada parou de lhe massajar os pés.

- O que foi, Mbok?

- A senhora diz a primeira coisa que lhe vem à ideia - ralhou-lhe ela. - Como era isso possível, Mar mganten?

- Vamos só imaginar que era assim. O que é que então sentirias por mim?

- Não me faça isso, por favor.

E deixou de massajar a Rapariga.

- O que foi, Mbok? - perguntou, sentando-se na cama.

- O que fiz de mal? Diz-me! - E como a mulher evitava olhar para ela, a Rapariga saltou da cama e pôs as mãos nos ombros da criada. Apercebeu-se de que estremeciam levemente.

- Estás a chorar, Mbok? Porquê?

- Deixe-me voltar para a cozinha, Mar Nganten.

- Mas diz-me primeiro por que estás a chorar. Que mal te fiz?

- Por favor, Mar Nganten, posso ir-me embora?

- Diz-me só por que razão estás a chorar.

- Por causa do que me perguntou, Mar Nganten, por causa do que me perguntou. Não sofri já bastante?

- Quem poderia magoar uma pessoa tão boa como tu, Mbok?

- Quem? Aquele que governa, quem havia de ser?

- A quem te referes? Ao Bendoro?

- Não, não me refiro ao Bendoro. O Destino! A Rapariga acenou com a cabeça.

- Levou-me o meu filho. Roubou-me o marido. Depois, quando voltei a casar, roubou-me também esse. Que vai ser de mim? Para onde irei quando já não puder servir o Bendoro? Já não sou nova, Mar Nganten. Por que tinha de me lembrar a minha idade?

- Desculpa, Mbok. Não tinha a intenção de te magoar. Ainda me tens a mim, não tens? Podes ficar comigo o tempo que quiseres. E quando já fores velha de mais para cuidar de mim, será a minha vez de cuidar eu de ti.

A velha criada queria dizer uma coisa. A Rapariga tinha que ser informada de que o marido estava no seu direito de substituir a sua primeira esposa vinte e quatro horas por dia se assim o desejasse, sem haver qualquer recriminação por parte das pessoas do seu nível social. Havia tanta coisa que a Rapariga precisava de saber, mas que a criada não se atrevia a dizer, nem que quisesse! Tinha medo. O Bendoro podia tomar vinte e cinco primeiras esposas num só dia e ninguém iria censurá-lo ou pensar mal dele. Sem que tivesse qualquer culpa, a Rapariga poderia ser mandada embora de um dia para o outro. Não deveria de modo algum esperar continuar ali, depois de ter dado à luz o seu primeiro filho. Uma vez que a pobre e inocente rapariga se fosse embora, a velha mulher teria ainda de prosseguir pelo caminho que lhe fora traçado pelo destino: o de ser uma criada. A Rapariga ainda iria sofrer mais do que ela. A jovem mãe seria obrigada a deixar para trás o seu filho. Nunca mais o veria. E mesmo que o visse, o filho seria do Bendoro e não seu. Teria de se curvar perante o Bendoro; não haveria qualquer contacto pessoal entre eles. Reprimindo os seus próprios sentimentos, a criada tentou com delicadeza sugerir à Rapariga de Java o que o destino lhe poderia reservar.

- Não se preocupe comigo, Mar Nganten. Eu não sou ninguém, apenas uma mulher do povo. Por isso, quando eu cair, poderei magoar-me, mas não muito. Tem de lembrar-se sempre, minha jovem patroa, de que, quanto mais alta é a posição que se ocupa na vida, mais grave é a queda. Uma pessoa como eu pode cair mil vezes por dia, mas consegue levantar-se outra vez. É assim a vida para as pessoas da minha classe: continuar de pé.

A Rapariga não foi capaz de apreender as palavras da criada e o seu intuito.

- Por que caem as pessoas? Suponho que é porque não são suficientemente cuidadosas - disse ela, na sua ingenuidade.

- Tem razão, Mar mganten - afirmou a velha mulher - as pessoas caem porque não têm cuidado; mas lembre-se, minha jovem patroa, que não se pode passar todos os momentos da vida tentando ser cuidadosa. Há alturas em que começamos a pensar, por exemplo, na mãe ou no pai e esquecemo-nos de nós próprios e do nosso serviço ao Bendoro. Somos criaturas de Deus, mas como fracas criaturas que somos, às vezes descuramos as nossas obrigações.

- Isso que estás a dizer é comigo? O que me estás a querer dizer?

A velha criada hesitou.

- Perdoe-me, Mar mganten. Não queria desgostá-la.

- Por favor, Mbok, que fiz eu de errado?

- Não fez nada de mal, Mar mganten, só que... Sentada no colchão, a Rapariga observava a criada, esperando que esta prosseguisse, mas ela baixou a cabeça.

- Diz-me, peço-te, o que fiz de errado? - perguntou ela nervosamente.

A criada ergueu de novo a cabeça:

- O mesmo que eu. Nascemos plebeias.

- Então, o que é que isso quer dizer, Mbok?

- Que o nosso destino é servir aqueles que ocupam uma posição mais elevada na sociedade. Lembra-se de lhe dizer que sem uma classe mais baixa não haveria uma classe mais alta?

- Então o que sou eu afinal, Mbok?

- Custa-me muito ter de lhe dizer isto, Mar Nganten, mas a senhora é uma pessoa da classe mais baixa que, pelo menos por agora, foi elevada à classe mais alta.

- Então o que é suposto eu fazer?

- Quantas vezes lhe tenho repetido, Mar Nganten! Deve servir fielmente o seu marido. Deve curvar-se perante ele e beijar o chão que ele pisa. Agora deixe-me contar-lhe uma história. Conhece aquela acerca das cebolas e dos alhos?

- Não me apetece ouvir essa. Quero que me digas como posso servi-lo melhor. Como devo curvar-me perante ele?

- Lembra-se da história acerca de Trunojoyo, quando ele tentou atravessar o Rio Bengawan?

- Não, agora não consigo lembrar-me. Mas o que tem isso a ver com a maneira como sirvo o Bendoro? Como posso melhorar?

- É sempre possível melhorar. A prática constante leva à perfeição. A única coisa, jovem senhora, é que quanto maior é a perfeição mais óbvias são as falhas insignificantes. E sobre Surapati? Gostava que lhe falasse dele?

- Era apenas um escravo, não era?

- Era sim, jovem patroa, mas acabou por se tornar rei. Derrotou todos os reis de Java. Até derrotou o exército holandês. Foi extraordinário.

- Diz-me o que estou a fazer de errado - insistiu de novo a Rapariga.

- O mal não está em si, nem em mim, Mar Nganten. O mal está naquilo que as pessoas pensam de nós. - parou de falar e levantou a mão. - Escute!

A Rapariga aguçou o ouvido. Da parte da frente da casa chegou-lhes o som do estalar do chicote. O hóspede do Bendoro ia-se embora.

- Então? Continua o que estavas a dizer - pediu a Rapariga à criada.

- Não há nada mais a acrescentar, Mar mganten. Não é conveniente estarmos a falar sobre o Bendoro. Desculpe-me, mas o hóspede já partiu e eu tenho de voltar para a cozinha.

Sem esperar a permissão da Rapariga para se retirar, a velha criada enrolou a sua esteira e abandonou o quarto.

A Rapariga foi até ao toucador e começou a arranjar o cabelo. Quando se olhava ao espelho, a figura alta e esguia do marido surgiu por detrás dela.

- Mar mganten - ouviu-o murmurar.

Ela voltou-se de repente e lançou-se ao chão, beijando-lhe primeiro os pés e lançando depois os braços em redor das suas pernas. Quando ele se baixou para se sentar na borda da cama, ela ergueu-lhe as pernas e apertou o rosto de encontro às solas dos pés do Bendoro.

- Sou tua - disse-lhe.

- Estás bem, não estás?

- Tenho-me sentido insuportavelmente só, Bendoro - disse a Rapariga, repetindo a frase que tinha decorado para aquele momento.

- Há alguma coisa que te possa alegrar? Ouro, jóias?

Uma bonita peça de bati

- Nada desejo nem peço, Bendoro, a não ser o teu bem-estar - disse a jovem delicadamente.

Chegava aos ouvidos da Rapariga o som das ondas batendo na praia. Parecia-lhe que se estavam a rir dela. Surgiu-lhe nítida diante dos olhos a imagem do hóspede do marido. Na sua imaginação, a figura do Bendoro transformara-se subitamente na do visitante, enquanto os pêlos das suas pernas a acariciavam, como se fossem as mãos do outro a fazê-lo.

- Mas diz-me como estás. Tens tudo o que necessitas?

- Agora tenho, Bendoro, contigo aqui ao pé de mim e desde que tenha o teu amor.

O Bendoro sorriu:

- Quem te ensinou a falar assim, criança?

- Ninguém. Apenas a minha própria consciência de que sou a tua criada.

- Tu não és a minha criada; és a minha companheira. Levanta-te, criança. Põe-te de pé, ao meu lado.

Mas a Rapariga continuava agachada no chão. O Bendoro acariciou- lhe o cabelo. Depois levantou-se da cama e colocando as mãos por debaixo dos braços dela, ergueu-a e puxou-a para ele.

- Vem - disse-lhe suavemente.

- Sim, Bendoro.

- Estou muito cansado, Mar mganten. Ajuda-me a sonhar um pouco, antes de adormecer.

- Sim, Bendoro.

- Vem para aqui comigo, para a cama.

- Sim, Bendoro.

A Rapariga subiu para a cama, onde se sentou, pensativa.

- Não estás também exausta? - inquiriu ele.

- Não, Bendoro.

- Bem, de qualquer modo, deita-te.

Por momentos, um silêncio profundo reinou no quarto; mas pouco depois o vento vindo do mar começou a arranhar violentamente as telhas. As ondas faziam-se ouvir com insistência crescente em direcção à cidade e, na noite sem voz, forçaram o caminho até aos seus corações. Era como se estivessem sozinhos no universo.

- Escuta! - disse o Bendoro.

- Sim, Bendoro.

- Diz-me o que ouves.

- O vento.

- Apenas o vento?

- E as ondas, Bendoro.

- Gostas do mar?

- O mar, Bendoro? O mar é o meu lar!

- Escuta!

- O quê, Bendoro?

- Não ouves mais nada?

- Sons, Bendoro.

- Mas mais nada?

- Não, Bendoro.

- Chega-te aqui, mais perto de mim.

- Sim, Bendoro.

- E agora, o que ouves?

- Ouço o som da tua respiração, Bendoro.

- Chega-te mais ainda.

- Sim, Bendoro.

- E agora?

- O quê, Bendoro? O bater do teu coração?

- Eu também te ouço respirar.

- Sim, Bendoro.

- E ouço o bater do teu coração.

- Sim, Bendoro.

- Diz-me que mais ouves.

O vento roçou ainda com mais fúria nas telhas. E o fragor das ondas fez-se ouvir com mais intensidade, atravessando a cidade.

- Por muito que o vento bata contra os pinheiros que se alinham ao longo da praia, não consegue quebrá-los nem derrubá-los. Sabes de onde vieram essas árvores?

- Não, Bendoro, não sei.

- Os primeiros pinheiros foram plantados por Tuan Berar

Guntzrr' quando terminaram as obras da estrada. Isso foi antes de eu nascer, mas o meu pai contou-me. - Sim, Bendoro.

- O que ouves agora?

- O bater do teu coração, Bendoro

O Bendoro riu.

- É verdade! O bater do meu coração.

- Está a bater muito depressa.

- Eu sei.

- O que ouves agora?

A Rapariga não respondeu.

- Escuta com atenção.

- Estou a ouvir, Bendoro.

- Ouves alguma coisa?

Por momentos, nenhum deles quebrou o silêncio. O vento tinha acalmado e, vindo da figueira-de-bengala da praça da cidade, chegou até eles o piar melancólico do mocho. As ondas ressoavam, cada vez mais ameaçadoras.

- Sim, Bendoro.

' Senhor Trovão, o Javanês - alcunha de Sua Excelência W. Daendels, Governador-Geral de Java, de 1808 a 1811.

 

- O quê?

- Ouço-te a ti, Bendoro. Escuto o amor a falar através do bater do teu coração.

- Estás a ficar mais esperta, perceptiva. Quem te tem ensinado?

A Rapariga riu suavemente.

- Diz-me quem.

- O teu próprio amor.

- E como corresponderias a esse amor?

- Escuto cada palavra que ele pronuncia, Bendoro.

- Mar mganten, ainda não me perguntaste se te trouxe alguns presentes.

- Eu sei, Bendoro. - fez uma pausa. E depois prosseguiu:

- Um marido ausente apenas dá à esposa uma coisa, Bendoro, uma intensa noção da sua própria solidão, mas que mais poderia eu esperar do meu marido senão o desejo de o ter ao pé de mim?

- Poderias, por exemplo, desejar que te trouxesse novas peças de bati, de Jasem ou de Pekalongan. Estou cansado de te ver sempre vestida de bati de Solo. Devias pensar em mudar de vez em quando o teu estilo. E pérolas, Marmganten. Já alguma vez viste pérolas?

- Nunca, Bendoro.

Deliciado e surpreendido, o Bendoro desatou a rir. Parecia feliz e relaxado.

- O quê? Cresceste junto ao mar e nunca viste pérolas? - riu-se de novo. - Chamam-lhes diamantes do mar. O teu pai nunca as apanhou?

- Ele nunca se referiu a elas, Bendoro.

O Bendoro continuava a rir.

- As pérolas são só para os muito corajosos, Mar Nganten. Os mergulhadores têm de mergulhar mesmo até ao fundo do mar e procurar por entre o coral para encontrar as ostras que ali estão escondidas...

A Rapariga sentiu como que um punhal a atravessar-lhe o coração, fazendo-o parar de bater:

- Talvez o meu pai não seja um homem corajoso, Bendoro. Talvez não mergulhe para apanhar pérolas. - escolheu as palavras cuidadosamente, uma por uma. - Mas por favor, não o desprezes. Por favor! Ele não vai à procura de pérolas mas de milho e arroz para alimentar a famíllia.

- Isso não é assim - interrompeu-a o marido. - O milho não cresce no mar.

- Pois não, Bendoro. A sorte nunca favorece os pobres. Mas talvez seja esse o destino dos pobres e ignorantes.

-Já sei agora! Foi o teu professor do Corão que te ensinou essas coisas.

- Não, Bendoro, não foi.

- Então quem foi? Diz-me.

- Um dia, Bendoro, ouvi alguém dizer que as pessoas do povo estão sempre com fome... E é por isso que os seus olhos vêem tudo, os seus ouvidos ouvem tudo e os seus corações sentem tudo, até mesmo quando dão o seu sangue por tudo.

- É isso! A partir de amanhã não quero que esse teu professor de Corão cá venha mais. E tu, Mar Nganten, deves acabar com essa conversa sobre classes baixas e classes altas. Somos seres humanos, todos nós, postos na terra para obedecer às ordens e mandamentos do Todo-Poderoso. Não te quero ouvir falar mais sobre isso!

A Rapariga nada replicou.

O marido olhou para ela detidamente:

- Na verdade és uma rapariga muito inteligente. Enquanto estava ali deitada ao lado do marido, as histórias da velha criada ecoavam-lhe na cabeça - histórias acerca do destino dos plebeus e dos grandes feitos dos nobres; da derrota dos plebeus e da honra devida aos seus superiores, a ponto de darem a vida por eles; acerca do poder e acerca do destino; acerca de Alá o Omnipotente e do governo holandês. A sua jovem mente tinha apreendido e retido quanto lhe ouvira, quer tivesse ou não compreendido tudo...

- Bendoro...

- Sim?

- Posso perguntar-te uma coisa?

- Sim, mas pergunta depressa. Daqui a pouco os galos estão a cantar.

- Por que vais para fora tantas vezes? Vais-te embora durante dias e dias e deixas-me aqui a sofrer.

A atitude do Bendoro subitamente mudou. Os seus modos frios derreteram-se. Foi com uma nota terna e quente na voz que lhe falou de novo:

- O quê, parece-me que estás com ciúmes!

A Rapariga baixou a cabeça.

- Sim, estou. Estou com ciúmes, Bendoro.

- Sempre que o teu pai partia para o mar, perguntavas-lhe para onde ele ia? Tenho a certeza que não.

- Perdoa-me, Bendoro. Não, Bendoro, nunca lhe perguntei.

- Por que não?

- Porque sabia que ia trabalhar.

- Então devias saber que também eu estou a trabalhar

- Sim, Bendoro.

- Está tudo tão sereno! Os galos estão prestes a cantar...

- Ah! Bendoro, Bendoro, Ben... do... roo... - arquejou a Rapariga.

Agora penas o vento, na sua dança, tomara conta do mundo.

E o tempo foi passando, foi-se escoando, dando passos em frente, umas vezes lentamente, outras em saltos loucos, sem compasso...

A Rapariga de Java entrou no segundo ano do seu casamento. Agora, todos os meses o marido a chamava à sala do meio. Sentava-se numa cadeira de costas para ela. Com um par de pinças de bambu, tirava as sanguessugas, uma por uma, do frasco de vidro colocava-as na nuca, fontes, testa e braços do marido.

- Aí. Põe essa aí - e o Bendoro guiava-lhe a mão com a sua voz.

- Aqui, Bendoro?

- Um pouco mais abaixo, uns três dedos mais abaixo. Está bem. Estou sempre muito tenso aí.

E era assim todos os meses: aqueles bichos magros e enrugados, contorcendo-se para cima e para baixo como ondas, enquanto sugavam sofregamente o sangue do Bendoro. Um minuto, cinco, dez, quinze minutos passavam, até se transformarem como que em bolas transparentes, cheias de um fluido castanho-escuro. E, quando já não podiam inchar mais, a Rapariga, com um pedaço de pano na mão, tinha de estar pronta a agarrá- los antes que caíssem, quando se desprendiam. Não podiam de maneira nenhuma cair no chão, ou rebentar, ou sofrer algum dano, antes de voltarem a ser novamente colocados no frasco. A tarefa requeria muita paciência e cuidado. Quando terminava, o Bendoro dava graças a Alá pela utilidade daqueles seres primitivos.

- As sanguessugas - dizia o Bendoro - entusiasmado, são bons comerciantes - olha para elas - e apontava para o frasco.

- Aquela é Kempul. Esta aqui é Karti e a outra ali é Krrtzl. São autênticos mercadores. Eu forneço-lhes o sangue e em troca dão-me a saúde. Não achas que são sábias e virtuosas criaturas?

- Muito virtuosas, Bendoro.

- Nem eu as exploro, nem elas a mim. É justo.

- Sim, é verdade, Bendoro.

- Agora podes retirar-te.

Depois de ser dispensada da sua tarefa, virava à direita e atravessava a sala de trás, umas vezes indo directamente para o quarto, outras retomando o seu trabalho de bafi. Mas, fosse qual fosse o rumo que tomava, partia sempre dali com uma sensação de grande desapontamento. Era este o segundo ano do seu casamento e o seu desejo ainda continuava por realizar.

Um dia, o Bendoro convidara-a a sentar-se com ele na sala do meio. Para melhor o servir, decidira que era necessário eliminar todos os pensamentos e as saudades que tinha dos pais e parentes. Não podia existir uma lacuna sequer no seu serviço. Esperava que o marido se apercebesse da sua incondicional dedicação a ele, através de uma entrega e de um serviço completos e sem mácula. O Bendoro nunca haveria de ver ou notar a menor falha na sua maneira de actuar. A velha criada ensinara-a a comportar-se como uma verdadeira aristocrata, como um membro da classe alta.

O Bendoro já lhe perguntara repetidas vezes se ela desejava ir visitar a família, mas respondia sempre:

- Não, prefiro ficar aqui a servir-te. Esta resposta fazia-o rir, satisfeito.

- Mas também és filha deles - lembrava-lhe. - Não és apenas minha mulher.

- Agora a minha obrigação é servir-te - respondia ela. Os meus pais podem passar bem sem mim, Bendoro.

- Nunca lhes envias mensagens? - perguntava ele então.

- Não, Bendoro.

- Nunca lhes mandas dinheiro ou comida?

- Não, Bendoro.

- Por que não?

- Não me atreveria a fazê-lo, Bendoro. Não por minha iniciativa.

E das várias vezes que essa conversa tivera lugar, ficava-se por ali, sem prosseguir. Naturalmente que ao regressar ao quarto ou aos seus trabalhos, a Rapariga pensava logo nos pais e na família. A oração parecia constituir a sua única consolação. Como ela implorava para que a situação pudesse de alguma forma modificar- se, de modo a ser-lhe possível compensá-los pela dívida moral que contraíra para com eles, por tudo o que haviam feito por ela, sobretudo o pai, que arriscava a própria vida para prover às necessidades da família!

Havia dois anos que casara e tinha agora quase dezasseis anos, mas a situação não se alterara. Começara a pensar com a cabeça. Sabia que teria de tomar as suas próprias decisões e agir por sua conta, de acordo com os seus interesses. A velha criada estava cada vez menos apta a dar-lhe o que ela necessitava. Já que as suas interrogações não encontravam resposta adequada, era obrigada a tirar as suas próprias conclusões. Agora não se contentava que lhe dissessem alguma coisa; necessitava saber o porquê dela.

A criada dissera-lhe em determinada ocasião:

- Para uma jovem como a senhora, não há-de haver problema em se desenvencilhar na vida. É muito bonita, Mar Nganten, e os trabalhos forçados são coisa do passado.

Como aquele comentário a irritara!

Apercebera-se do sarcasmo que acompanhava essa observação da velha criada, mas preferiu não responder. Apetecera-lhe devolver a troça, mas a noção de que dependia ainda do apoio dela fê-la calar-se.

Foi por essa altura que ela pediu aos parentes do marido, os rapazes que viviam na casa, para a ajudarem a fazer a limpeza ao quarto. Tudo quanto ele continha foi posto a arejar e pelo fim do dia tinha sido todo limpo e caiado.

Quando a mobilia foi de novo trazida para os seus lugares, a Rapariga descobriu que a carteira que habitualmente guardava numa das gavetas do toucador tinha desaparecido. Era a primeira vez que acontecia uma coisa destas. Tinha a certeza de que a velha criada era incapaz de a ter roubado. Talvez fosse apenas uma criada, mas sabia que ela não iria arriscar assim o seu futuro. Nunca sentira tanto medo. Sem o dinheiro que estava na carteira, o que iriam comer? Como podia ela comprar comida?

A irritação que antes sentira pelas observações sarcásticas da criada desvaneceu-se. Agora precisava da sua ajuda. Mandou-a chamar e apertando-lhe as mãos com força entre as suas, contou o que se tinha passado e como dera conta do roubo.

A velha criada ouviu-a, os olhos vítreos e vazios pousados nela.

- Não, Mbok, não estou a acusar-te - sossegou-a. - Tenho a certeza de que nunca farias uma coisa destas. Tu sabes que se precisares de alguma coisa, basta pedires e eu te darei o que desejares. Mas nunca me pediste nada. O que vou eu fazer? De que vamos viver? Como vou repor o dinheiro?

- Quem pensa que pode ter tirado o dinheiro, Mar Nganten?

- Nem me atrevo a pensar. A culpa foi minha. Devia ter sido mais cuidadosa. Não me estás sempre a dizer que a falta de cuidado é tão perigosa como a desonestidade?

- Além dos sobrinhos do Bendoro, quem mais entrou no seu quarto?

- Mais ninguém.

- Fique aqui sentada e tenha calma que eu vou ver o que descubro.

Depois de a mulher sair do quarto, a Rapariga vasculhou de novo o quarto todo, mas sem sucesso. Como era possível que jovens aristocratas fossem capazes de roubar? Ficava horrorizada só de pensar nisso. Aristocratas, a nobreza - essas pessoas que faziam parte da classe alta da sociedade e estavam destinadas a governar as classes mais baixas. Como podiam roubar? Não, não podia ser! Tentou afastar esse horrível pensamento. Só pensar uma coisa dessas já era blasfémia. O destino não o permitiria. Devo estar enganada, disse para consigo.

Sou uma plebeia, um membro da classe trabalhadora; só pessoas como eu é que roubam. Ninguém do pessoal que trabalhava na cozinha se atreveria a entrar no quarto dela. A Rapariga tremia como varas verdes. Apetecia-lhe tanto gritar que teve de apertar os lábios com força para não o fazer. Pegou num copo com chá que estava em cima da mesa e bebeu-o de um trago. A tensão em que estava diminuiu ligeiramente. As batidas do seu coração tinham quase voltado ao normal quando a velha criada regressou ao quarto.

- Reuni os sobrinhos do Bendoro, Mar Nganten. Compete-lhe a si interrogá-los.

- O quê? - gritou a Rapariga; mas, ao ouvir o tom estridente da sua voz, baixou-o imediatamente e perguntou num murmúrio assustado: - Como posso fazer isso? São parentes do meu marido.

- Tem de os interrogar, Mar Nganten - insistiu a mulher, ao mesmo tempo que a conduzia para fora do quarto. - Pergunte-lhes o que aconteceu.

A velha criada notou que a mão da Rapariga tremia quando ambas enfrentaram os parentes do Bendoro. Sem qualquer hesitação, a criada dirigiu-se-lhes directamente. Podia ler-se a acusação no tom da sua voz:

- Não causem problemas à jovem patroa. Quem é que lhe tirou o dinheiro? Era o dinheiro para as compras. Se até amanhã não for devolvido, ninguém vai comer nesta casa. Nem o Bendoro. Esse dinheiro tem de ser devolvido!

Os jovens parentes do Bendoro lançaram à Rapariga um olhar de provocação. A velha criada, vendo a sua palidez e sentindo na sua a mão dela a tremer, apertuu-lha com mais força para lhe comunicar coragem.

Um dos rapazes, de olhos coruscantes, perguntou logo:

- Quem pensas tu que nós somos? Gente de aldeia, uns rústicos, pescadores que nem sequer sabem o que é dinheiro?

- O que estás a querer fazer? Insultar-nos? - perguntou outro.

- Não estamos aqui para insultar ninguém - disse a velha criada. De maneira nenhuma. Mas temos um problema. Quem sabe, o dinheiro pode ter-se extraviado. Se o Bendoro sabe, todos nós vamos sofrer por isso.

- Vai para o inferno! - sibilou ainda outro. - Tratas-nos como se fôssemos ladrões esfomeados de alguma aldeia de pescadores.

A Rapariga começou a soluçar.

- Somos educados. Andamos na escola.

- Tratas-nos como se fôssemos bandidos!

- Se as lágrimas pudessem lavar este insulto, como isso seria fácil!

A Rapariga, incapaz de se controlar por mais tempo, gritou:

- Eu venho de uma aldeia de pescadores. Sou eu que devo ter roubado o dinheiro. Eu! - a sua voz subiu de tom num clamor: - Sim, eu! Ninguém mais podia ter feito tal coisa. Fui eu, fui eu, fui eu -, gemeu ela, abraçando-se à criada.

Ao ouvir os gritos da Rapariga, os sobrinhos do Bendoro entreolharam-se, assustados. A criadagem, da porta da cozinha assistia à cena enquanto a velha criada lhe dava palmadinhas e a afagava carinhosamente, para a acalmar. Olhando para o grupo dos jovens, disse:

- Está bem, ninguém quer confessar. Eu não passo de uma aldeã, de uma criada, mas pelo menos sei o que devo fazer.

Os rapazes, empalidecendo, olharam outra vez uns para os outros.

- Restituam já o dinheiro!

Nenhum deles proferiu uma palavra.

- Não? Muito bem. Vou eu pôr tudo em pratos limpos. Vão ver o que uma aldeã é capaz de fazer. Fazem o favor de esperar aqui por mim, jovens senhores. - E encaminhou-se para a sala do meio, levando com ela a Rapariga.

- Esperem! - gritou um dos rapazes. - Por que é que não falamos de uma forma civilizada?

As duas estacaram e depois viraram-se para os rapazes. A Rapariga ainda estava de cabeça baixa, assustada, mas a velha enfrentou-os, aguerrida. Depois, falando devagar, medindo as palavras, cortesmente, perguntou-lhes:

- Há ainda mais alguma coisa a dizer?

- Vão-se queixar de nós ao Bendoro?

- Nós temos o dever de corrigir o que está errado. Não acham?

- Nós? A quem te estás exactamente a referir? O que quer dizer esse "nós"?

Um dos outros rapazes, o que tinha o ar mais enfurecido do grupo, acrescentou ameaçadoramente:

- Acho que devias lembrar-te, Mbok, de que somos parentes do Bendoro. Os aldeões que aqui vivem podem ser postos na rua de um momento para o outro e, por nós, bem podem morrer de fome que isso não nos faria a menor diferença. Nós é que vivemos aqui. Este é o nosso lugar. Podem chegar a esta casa mil aldeões e irem-se embora no mesmo dia em que chegaram, tanto nos faz, pois nós é que aqui permaneceremos.

A Rapariga agarrou-se convulsivamente à velha criada, murmurando entre soluços:

- Eu não vim para aqui porque estava com fome.

- Eu sei isso, Mar mganten. - e a mulher continuou, dirigindo-se aos jovens. - A esposa do Bendoro não veio para aqui para fugir à fome. O mar é muito fundo e rico em alimento. Só o coração do homem é que pode ser pobre e capaz de baixezas. Olhem para estes muros altos à volta da casa. Querem fazer-me acreditar que o dinheiro se evaporou por si?

- Estás a dizer que o roubámos, Mbok? Por que não o dizes logo?

- O que estou a dizer - insistiu a mulher rispidamenteé que o dinheiro tem de ser devolvido. Existem aqui regras, e se elas não são obedecidas, então é melhor convocar um juiz.

- Quem pensas que és, para convocar alguém para nos julgar? É bem provável que sejas tu a condenada e que estejas metida num sarilho.

- Uma mulher do povo como eu, jovem Bendoro, vive mergulhada em problemas desde que vem a este mundo. É o nosso destino. Não podemos meter-nos em mais sarilhos do que aqueles que já temos. Não temos mais nada para conversar. Esse dinheiro vai ou não ser devolvido?

- Se é assim que queres, óptimo. Arranja o juiz, para tu própria seres julgada.

- Muito bhem, então. Venha, Mar mganten. E a criada empurrou a Rapariga em direcção à sala.

O Bendoro estava reclinado numa cadeira de descanso. Na mesinha, a seu lado, havia um pote de cristal contendo bolachas holandesas importadas e, ao lado, um par de pinças de prata. O sol da tarde iluminava o comentário do Corão que segurava nas mãos.

A velha criada e a Rapariga aproximaram-se do Bendoro de joelhos dobrados e, ao chegarem perto da sua cadeira, pararam e permaneceram agachadas.

- Perdoe-me, Bendoro - articulou lentamente a velha criada. O Bendoro fechou o cnmentário, tirou os óculos e colocou-os no colo. Endireitou-se na cadeira e olhou para baixo, para onde as duas mulheres estavam submissamente prostradas.

- Sim? - inquiriu suavemente.

- Perdoe-me incomodá-lo, Bendoro. Eu sei que está quase na hora das orações do pôr do Sol. Não queremos perturbá-las, senhor, mas trata-se de um problema de... um problema de dinheiro.

- O quê, a tua patroa perdeu algum dinheiro? - quis ele saber.

- Lamento... - foi tudo que a Rapariga conseguiu dizer. Inclinou cada vez mais a cabeça até tocar com ela nas mãos que estavam estendidas em frente dela, no soalho.

- És descuidada. A riqueza é um dom de Deus mas; mesmo assim, não cai apenas do céu, como sabes.

- Perdoa-me, Bendoro - repetiu a Rapariga em voz ainda mais baixa.

- Mas por que é essa agitação toda, Mbok?

- Perdoe-me, Bendoro. O dinheiro desapareceu. A voz dele subiu de tom:

Já sei que o dinheiro desapareceu. Mas por que estás a âtmar esta confusão toda?

A velha criada não respondeu. As mãos tremiam-lhe tanto que todo o corpo começou a agitar-se.

- Mardi! - chamou o Bendoro.

Ouviu-se um grito à distância. Momentos mais tarde apareceu um rapaz à entrada da porta, ergueu as mãos até à testa, fez uma reverência, inclinou-se e avançou agachado até se colocar por detrás das duas mulheres.

- Chama os meus sobrinhos para que venham aqui.

Mardi inclinou-se de novo e saiu da sala. Momentos mais tarde os sobrinhos do Bendoro começaram a aparecer um a um. Sem se inclinarem diante do Bendoro, sentaram-se no chão de pernas cruzadas e de olhos baixos, ao lado das duas mulheres.

- Quem tirou o dinheiro? - perguntou o Bendoro em voz neutra, sem sequer olhar para eles.

Ninguém respondeu.

- Nenhum de vocês quer responder à pergunta que vos fiz?

Não houve de novo qualquer resposta. Todos se mantiveram em silêncio.

O Bendoro riu à socapa. A Rapariga ergueu a cabeça e olhou para o marido, que continuava de olhos postos no comentário. Depois pôs-se a ler em voz alta:

- Desde o tempo dos profetas, tem havido sempre homens demoníacos, de que o diabo se serve. - riu-se, zombeteiro. - Ladrões! Enquanto houver demónios, haverá ladrões. Mas até os ladrões merecem o nosso respeito, mais ainda porque não têm respeito por si mesmos. - De súbito, fechou o livro com força. Os jovens ergueram os olhos, mas quando viram o olhar com que ele os fitava, baixaram-nos outra vez.

- Quem é que não compreendeu o que acabei de dizer? - inquiriu o Bendoro em tom ameaçador.

As cabeças inclinaram-se ainda mais para o chão.

- Bem, estou a ver então que todos compreendem. É bom que compreendam mesmo. Mas qual de vocês é capaz de me explicar o que significa a palavra "honra"?

Fez-se um breve silêncio que nenhum deles ousou quebrar

Olhando para um dos rapazes, ordenou:

- Abdullah, diz-me tu.

O rapaz continuou calado.

- Uma pergunta é feita para ser respondida, Abdullah - sentenciou o Bendoro em voz calma. Há quantos anos vives aqui? Sete, não é verdade? E apesar disso não queres responder à pergunta que te estou a fazer? Quero ouvir a tua resposta, nada mais. Não te custa nada responder.

- Eu sei, tio.

- Então o que é "honra"?

Continuou a não haver resposta.

- Sabes o que quer dizer a palavra ladrão, não sabes?

- Sim, tio.

- Mas não sabes o que quer dizer "honra"?

De novo o silêncio.

- Então o que aprendeste do estudo das escrituras? Não sabes realmente o que significa essa palavra?

O jovem remetera-se de novo ao silêncio.

- Então não tens honra?

- É como diz, tio.

- És tu portanto o ladrão!

- Não, tio, não sou ladrão. Sei o que é um ladrão e também sei que o não sou.

- Como podes provar que não és um ladrão?

- Também não há provas de que eu o seja, tio.

- Quem é o teu professor de religião?

- Haji Masduhak, tio.

- E o que é que os profetas aconselham que se faça quando, em determinada situação, não há provas?

- Deve-se fazer um juramento.

- És capaz de fazer um juramento?

- É o tio quem tem de decidir.

- Kariml Haji Masduhak também é teu professor? Karim, como é que o teu professor define a palavra "hipocrisia"?

- Desculpe, tio, mas não fixei isso.

- Que idade tens?

- Dezanove, tio.

- E em que ano estás?

- No sexto, tio.

- Vem cá e põe-te na minha frente.

Ainda sentado, o rapaz chamado Karim deslizou o corpo para diante até ficar mesmo em frente do Bendoro, mas permaneceu sentado no chão.

- Não ouviste o que te disse, Karim? Põe-te de pé! Depois, dirigindo-se aos outros sobrinhos:

- Tu, Said, o teu professor é o mesmo que o de Abdullah?

- É sim, tio.

- O mesmo que o de Karim?

- Sim, tio, é Haji Masduhak.

- Ele já te ensinou alguma vez a definição da palavra "hipocrisia"?

- Ensinou, tio.

- Lembras-te qual é?

- Lembro, sim, tio.

- Então diz-me. Karim recusou-se a obedecer-me. Chamarias a isto hipocrisia?

- Segundo o nosso professor, não, tio.

- Portanto, o que é "hipocrisia"?

- É quando uma pessoa parece leal e virtuosa e na realidade não o é, tio.

O Bendoro fitou em seguida Karim:

- Por que tiraste o dinheiro? - inquiriu violentamente. Karim não deu resposta.

Dirigindo-se depois ao grupo, ordenou:

- Podem sair todos, excepto Karim e as duas mulheres. Eles arrastaram-se pelo chão sem se atreverem a pôr- se de pé até chegarem à porta, desaparecendo o mais depressa que puderam do olhar do tio.

- Kariml - bradou o Bendoro.

- Perdoe-me, tio. Errei, peço- lhe perdão.

- Isto não foi um erro, Karim.

- Perdão, tio.

- Não ouviste o que te disse, Karim? Isto não foi um erro. Agora escuta-me: os teus pais enviaram-te para aqui e eu abri-te as portas da minha casa. Arranjei-te o melhor professor de religião da cidade. Dei-te a melhor educação do mundo, pois que há de melhor do que a palavra de Alá e do Seu Profeta? Se para ti não é o bastante, então é preferível procurares tu mesmo outro professor. Vai-te embora! Desaparece! Nunca mais te quero ver, enquanto for vivo. Sai daqui para fora!

Sem proferir uma palavra, Karim levantou-se e saiu da sala.

Quando ele se foi embora, o Bendoro dirigiu-se à velha criada:

- Mbok, verifico que és capaz de lutar contra o demónio com as tuas próprias mãos, se tivesses força para tal, ou com a tua língua, se fosses capaz. Mas, como não possuis esses dotes, serviste-te do teu coração. Podes não ter ganho, mas pelo menos pode-se dizer que tentaste.

- Sim, Bendoro.

- Isso é muito bom. Quem te ensinou a lutar assim?

- Apenas os meus sentimentos, Bendoro, e muitos anos de experiência.

- Infelizmente a vida e a experiência não chegam.

- Pois não, Bendoro.

- E sabes porquê, sabes qual foi o teu erro?

- Penso que sim, Bendoro.

- Nesse caso gostava que me dissesses.

- O meu erro foi que, ao procurar ser-lhe leal, Bendoro, e cumprir com as minhas obrigações, fui tão atrevida que ousei acusar os seus sobrinhos de um crime.

- Precisamente.

- Sim, Bendoro.

- Então sabes qual deve ser o teu castigo.

- Para pessoas como eu, Bendoro, não há outro castigo do que a própria vida. A vida delas já é em si mesma um castigo.

- Isso é uma blasfémia! Não estás a ser ingrata para com Alá?

- Sim, Bendoro.

- Vai-te embora! Nunca mais tornes a pôr os pés nesta casa! Nem sequer no pátio.

- Sim, Bendoro.

- Não, Mbok! - a Rapariga agarrou as mãos da velha criada. - Perdoa-lhe, Bendoro, por favor, perdoa-lhe - implorou ela.

- Não faças cenas! Vai imediatamente para o teu quarto. A velha criada, ainda agachada, fez uma reverência e, recuando, saiu da sala, seguida pela Rapariga. Uma vez no quarto das traseiras, as duas mulheres ergueram-se da posição em que ainda se encontravam. Aguardavam-nas os sobrinhos do Bendoro, na mesma atitude de desafio.

- Que te disse eu? - escarneceu um deles. - Tu é que levaste o pontapé.

A velha criada não replicou. Deixou-se levar pela Rapariga até ao quarto. Aí chegadas, esta abraçou- se à mulher.

- Mbok, sabias que isto ia acontecer, não sabias? Por que o fizeste? Que vai ser de mim sem ti?

- Deixe-me contar-lhe uma história, Mar Nganten, talvez pela última vez. Lembra-se daquela que lhe contei acerca do meu avô, que seguiu o Prínápe Diponegoro na sua guerra contra os holandeses? Lembra-se, não lembra? Nessa altura, um dirigente distrital deu ao meu avô um conselho precioso: Não te deves comprometer ao meu serviço. Se eu morrer antes de ti, a quem irias servir? A um outro senhor? E, se esse morresse, que farias então? Deves antes dedicar o teu serviço à terra. É a terra que te dá de comer e de beber. Porém os reis, os príncipes e os regentes de Java venderam este solo sagrado aos holandeses. Agora, para o recuperar, tem de se lutar, mas é tarefa pára mais de uma geração. E, depois de derrotarmos os reis, os senhores da terra e os regentes, temos de fazer face aos holandeses. E quantas gera ções serão então necessárias? Mas, mesmo assim, devemos começar já.

A Rapariga apertou com força a mão da criada.

- Não sei o que estás a dizer, Mbok. Não vás já. Quero ir contigo.

- Não, Mar mganten, não pode fazer isso. Em breve compreenderá o conselho dado ao meu avô. O meu pai transmitiu-o a mim e eu agora passo- o a si. Talvez de momento não o compreenda, mas a experiência depressa lho ensinará. Peço a Deus que sempre a proteja e guarde. - Dito isto, saiu rapidamente do quarto.

A Rapariga ficou sozinha, totalmente esvaziada de forças e de energia. Sentou-se enroscada numa cadeira, o peito subindo e descendo num doloroso arfar, os braços imóveis, dobrados sobre a mesa em frente. Através dos olhos inchados e vermelhos de chorar, mal conseguia divisar o que quer que fosse em seu redor. Vinham-lhe constantemente à ideia as últimas palavras que a velha criada lhe dirigira, como uma mantra, mas não conseguia descortinar-lhes o sentido. O pai quando saía para o mar, ia sempre a recitar mantras. Também nunca soubera o seu significado.

Depois da partida da velha criada os dias foram passando lentamente dentro daquela mansão cercada por altas paredes que a Rapariga de Java designava por sua casa. Enquanto antes só raramente falava porque não lhe era permitido fazê-lo, agora permanecia silenciosa porque perdera por completo o desejo de conversar. Não conseguia compreender:

- Uma mulher tão boa... Uma mulher tão boa! - repetia para consigo vezes sem conta. Para preencher os dias morosos que teimavam em não passar, entregou-se de alma e coração ao trabalho de bati.

Queria dar um pano de balz à velha mulher, mas ninguém na casa mencionava sequer o seu nome e muito menos sabia do seu paradeiro. À excepção dos parentes do Bendoro, as pessoas que dali partiam era como se se transformassem em fantasmas, desapareciam sem deixar rasto. Talvez fosse ela a única pessoa daquela casa que ainda se lembrava da velha criada.

A estação das monções começara mais cedo do que o habitual. Ventos fortes vindos de nordeste varriam a cidade, trazendo consigo restos, lixo da praia, areia e poeira da praça da cidade, agora quase despida de relva que o Verão fizera secar. Penetrava pela casa dentro através de portas e janelas, depositando finas partículas dentro dos guarda-fatos e até na comida. Na aldeia, rezava-se muito nesta época. Dantes, a Rapariga nunca levara as orações muito a peito; mas agora sentia um intenso e quase constante impulso de implorar a Deus que impedisse o vento de soprar com tanta força, que não deixasse que as ondas fossem tão traiçoeiras e os peixes tão ferozes e que livrasse dos perigos todos os homens do mar e todos os pescadores.

Numa manhã, quatro mulheres, encharcadas das fortes chuvadas que caíam, chegaram a casa e foram conduzidas à cozinha. Mardi levou então uma delas à presença da Rapariga.

- Mar Nganten - disse Mardi - esta é a sua nova criada.

A Rapariga pousou o aplicador de cera que segurava na mão, enrolou a peça de fino algodão branco em que tinha estado a trabalhar e pendurou-a no estendal.

- Como é que te vou chamar? - perguntou à sua nova criada.

- O meu nome é Mardinah, Mar Nganten.

- Não me parece um nome de aldeia.

- Nasci na cidade, Mar Nganten, em Semarang.

- Quantos anos tens?

- Catorze, Mar Mganten.

- És casada?

- Sou divorciada, Mar Nganten.

A rapariga de Java ficou estupefacta. Observou a jovem detidamente. Mais alta do que ela, os seus movimentos eram ágeis, revelando segurança em si própria. O rosto tinha uma expressão alegre e descuidada.

- Onde é que trabalhaste antes?

- Na casa do Regente, em Demak, Mar mganten.

- Por que é que saíste e vieste para aqui?

- A minha patroa, a Bendon Puteri de Demak, ordenou-me que viesse trabalhar para aqui, Marmganten.

- Por que é que a Bendoro Puteri de Demak se havia de preocupar comigo?

- Como hei-de eu saber, Mar mganten? - respondeu ela em tom de enfado. - Limito-me apenas a cumprir ordens.

- És bonita de mais para seres minha criada. E também demasiado jovem.

A Rapariga ficou admirada com as suas próprias palavras. Percebeu imediatamente que esta despreocupada jovem estava bem ciente dos seus atributos. Lembrou-se da velha mulher, a sua anterior criada. O que faria ela nestas circunstâncias, que atitude lhe aconselharia? Não! Agora tinha de pensar pela sua própria cabeça, agir sem o apoio de ninguém. E, pela primeira vez na vida, soube o que era sentir desconfiança.

Por que razão lhe tinham enviado esta rapariga de catorze anos? As palavras da velha criada ressoavam de novo aos seus ouvidos:

- Pode não compreender agora, mas a experiência em breve a irá ensinar.

Sim, começava agora a compreender, começava agora a experimentar um sentimento de suspeita.

Não mais de dois dias depois da chegada de Mardinah, aconteceu algo de muito significativo. Nessa tarde a Rapariga não se sentia bem e retirara-se para o seu quarto para descansar. Mardinah entrou e sentou-se na cadeira.

- Chega aqui - disse-lhe a Rapariga. Mardinah aproximou-se e sentou- se na cama dela.

- A tua anterior patroa não ficava zangada se te sentasses numa cadeira?

- Ela nunca me viu sentar em nenhuma.

- A tua anterior patroa não ficaria zangada se te visse sentada na cama desta maneira?

- Nunca me viu sentada na cama.

- Não estou zangada contigo...

- Com certeza que não.

- Por que dizes isso?

- Porque a senhora, Mar Nganten, não é o meu Bendoro.

- Então quem é o teu Bendoro?

- O Bendoro. Ele.

- E eu, o que sou eu?

- É uma aldeã, Mar mganten não é?

Ao ouvir isto, o coração da Rapariga começou a bater acelerado. Pôs- se imediatamente de pé e olhou fixamente para Mardinah. Esta devolveu- lhe o olhar, sem sequer desviar o seu, com uma expressão ameaçadora e violenta que aterrou e angustiou a Rapariga.

- Tens razão, eu sou da aldeia. Não me envergonho das minhas origens. Agora diz-me tu o que realmente és.

- Bem, é evidente que não sou uma aldeã.

- Tem algum mal ser plebeia?

- Bem, são coolies", não são?

 

' Trabalhador não qualificado, mão-de-obra barata. Para muita gente, é considerado ofensivo.

 

A Rapariga sentiu de novo a pulsação acelerada. O medo foi-se apossando dela até chegar ao âmago da sua alma, mas procurou couraçar-se e fazer-se forte.

- Então por que vieste para cá?

- É evidente que não foi para a servir a si.

- Sendo assim, o que fazes aqui no meu quarto? Mardinah não respondeu. Abriu os olhos e sorriu. Os seus dentes eram muito certos, de uma brancura que cintilava, sem o menor traço de manchas de betel.

- Sabe, Ma. mganten, eu sei ler e escrever. A senhora sabe?

De novo a Rapariga deJava sentiu-se estremecer por dentro.

- O que faz o seu pai, Mar mganten? É pescador, não é? Pois, eu sei que é. Sabe o que fazia o meu pai antes de se reformar? Era escriturário.

Mardinah pôs-se a rir, obviamente vitoriosa. A Rapariga sentiu-se mais uma vez amargurada interiormente. Levantou-se da cama, inspeccionou o guarda-ves tidos e as gavetas do toucador e, depois de se assegurar de que estavam bem fechados à chave, saiu do quarto e foi para o jardim das traseiras.

A terra tinha um tom quente, cor de chocolate, da chuva que caíra de tarde, e a areia branca espalhada sobre ela brilhava ao sol. A nuvem de vapor que se elevava do solo quente tornava o ar de tal modo pesado que a Rapariga sentia dificuldade em respirar. Sentou-se naquele mesmo banco, debaixo da mangueira que o Bendoro plantara, onde se sentara com ele anos atrás.

Recordou uma vez mais as últimas palavras que ouvira à sua anterior criada. Então, segundo parecia, isto era o princípio.

Ela porém não sabia o que pensar ou a quem pedir conselho. Não estava preparada. Era impensável que algo de semelhante acontecesse na sua aldeia, a aldeia de pescadores à beira-mar. Um por um, os membros da sua família começaram a desfillar ante os seus olhos: o pai, puxando a rede e saltando do barco para a praia; a mãe, moendo o camarão seco; os irmãos mais velhos consertando o fundo do barco enquanto o mais novo retocava a pintura dos entalhes ornamentais da amurada. E viu-se a ela própria, cozinhando uma refeição de milho e arroz. Milho e arroz! Ah! Isso tinha sido há dois anos. Nunca cozinhara neste lugar, nem tivera de moer chilies. Nem tivera de lavar pratos ou limpar o almofariz e o pilão. A aldeia de pescadores tinha desaparecido da sua vida e, com ela, o mar sem fim. O seu mundo estava agora confinado ao quarto, um espaço de apenas alguns metros quadrados.

De repente, lembrou-se de Mardi. Talvez lhe pudesse pedir que explicasse a situação ao Bendoro. Mas, tão depressa lhe veio a ideia, igualmente depressa a afastou.

- Não! Eu mesma resolverei a questão - disse para consigo. - Não vou pôr a casa inteira num alvoroço por causa disto. Não quero sobrecarregar o Bendoro com as minhas queixas. Não! Hei-de resolver eu este problema, ou qualquer outro que venha a surgir, sem a ajuda de ninguém!

Levantou-se, decidida, dirigiu-se em passos firmes para a escada das traseiras e daí, ao quarto. Foi dar com Mardinah preguiçosamente deitada na sua cama. Num andar rápido e decidido, foi direita a ela e ordenou-lhe:

- Acorda, rapariga da cidade! - Pelo menos, na aldeia de onde venho, não é sinal de boa educação dormir na cama de outra pessoa sem a sua autorização!

Mardinah deu uma risadinha e levantou-se, encolhendo os ombros com desdém.

- Estou a ver que julgas que podes andar para aí a deitar-te onde te apetece.

Aparentemente indiferente ao insulto, Mardinah pôs-se de novo a rir. Depois, erguendo a mão e apontando para o seu próprio peito, declarou:

- Este corpo é meu, Mar mganten, e faço com ele o que muito bem me apetece.

A Rapariga ficou chocada com o desplante:

- Estás enganada, não fazes tudo o que queres. Sai imediatamente deste quarto e nunca mais cá voltes a entrar!

O riso desvaneceu-se da cara de Mardinah e, de olhos chamejantes, ripostou:

- Nenhuma campónia me vai dar ordens a mim! A Rapariga espetou o dedo entre os olhos de Mardinah, gritando:

- Fora daqui!

Mardinah empurrou violentamente o braço da Rapariga, mas esta ergueu a outra mão, colocando o outro dedo na testa de Mardinah. Depois, arremetendo com a cabeça, cuspiu na direcção de Mardinah, acertando-lhe em cheio no nariz.

Na semana que se sucedeu a este incidente, Mardinah manteve-se afastada do quarto da Rapariga e do seu caminho. Deixou-se ficar pela cozinha mas, como não fazia parte do pessoal que aí trabalhava, não fazia nada a não ser estar sentada por ali a conversar com os criados.

A Rapariga saía de manhã do quarto e costumava ir à cozinha superintender à preparação das refeições do marido.

Provava cada prato para verificar se estava do agrado dele; em seguida punha a mesa e depois voltava aos seus trabalhos de batik. Ia observando atentamente os criados enquanto estes executavam os respectivos trabalhos, mas sem proferir uma palavra.

Uma manhã, quando se dirigia à cozinha, encontrou Mardinah à espera dela, atrás da porta. Antes que esta lhe pudesse dirigir a palavra, a Rapariga foi direita ao fogão. Quando acabou a sua tarefa e se preparava para regressar à sala das traseiras, reparou que Mardinah continuava de pé junto à porta. Desta vez tentou interceptá-la:

- Mar mganten, eu... -, mas a Rapariga passou por ela sem sequer voltar a cabeça.

Mardinah foi a correr atrás dela e barrou-lhe a passagem.

- Mar mganten... - repetiu.

A Rapariga olhou para ela com indiferença.

- Preciso de si, Mar mganten.

- O quê, acaso sou tua criada?

- Não, com certeza que não, Ma, mganten, mas eu tão-pouco sou sua criada.

- Então vai-te embora. Do que eu preciso é de uma criada, nada mais.

- Podia deixar-me ajudá-la, Mar Nganten.

- Tenho muita pena, mas dispenso a tua ajuda. Sei muito bem por que estás aqui e eu própria hei-de falar sobre isso ao Bendoro.

Mardinah ficou calada. Parecia confusa e sem saber o que dizer. A Rapariga tirou partido da situação, afastando-a e encaminhando-se para a sua sala de trabalho.

Tinha acabado de se sentar no seu banco quando Mardinah apareceu, desta vez com o seu próprio material de batz, preparando-se também para começar a trabalhar. Depois de soprar através do fino cano do aplicador da cera para o limpar de alguma poeira, virou-se para a Rapariga:

- Mar Nganten - murmurou.

- O que estás aqui a fazer? - inquiriu esta.

- Fazendo um pano de bati, Mar Nganten.

- Quem te disse para fazer isso?

Mardinah não respondeu. Mergulhou o receptáculo do seu aplicador da cera num pequeno pote com cera de abelha derretida e em seguida levantou-o e começou a desenhar um bico de águia sobre o pano branco.

- Mar Nganten... repetiu de novo, mas desta vez, sem esperar resposta, prosseguiu: - Sabe ler, não sabe, Mar Nganten?

A Rapariga, consciente da sua desvantagem, nada respondeu.

- Tenho uma carta para si, Mar Nganten.

- Não preciso de uma carta de ninguém.

- Mas esta carta é muito importante.

- Para mim, nada é importante, excepto uma coisa.

- Nada? Nem mesmo o "amor"?

- Não. Eu sirvo o Bendoro e nada mais importa.

- Então é tola, Mar Nganten. As esposas de todos os homens importantes têm os seus entretenimentos. Umas, jogam às cartas, outras arranjam amantes; mas tudo o que a senhora faz, Mar Nganten, é ficar em casa, como se estivesse doente.

A Rapariga fez uma pausa no que estava a fazer. Veio-lhe de súbito à memória um homem bem constituído, de estatura mediana, pele azeitonada e firme voz de comando, que parecia muito, muito sensato: o hóspede do marido. Esta recordação fê-la sorrir levemente.

A Rapariga encheu novamente o aplicador no pote de cera e preparou- se para recomeçar a trabalhar.

- Fui em tempos casada com um homem importante - declarou Mardinah.

A Rapariga estacou subitamente, fazendo com que o aplicador lhe escorregasse dos dedos e caísse no chão. A cera quente derramou-se, começando logo a solidificar.

- Se deixar cair o aplicador quando está a fazer bati, deve interromper imediatamente o trabalho - dissera-lhe um dia a velha criada. - Pense no Bendoro pois é sinal de que um espírito mau a está a tentar. "

Pousando o recipiente da cera dentro de uma caixa de charutos, a Rapariga relanceou o olhar para Mardinah e viu que esta sorria, trocista.

- Em que está a pensar, Mar mganten?

A Rapariga estremeceu, atrapalhada. Adivinharia Mardinah os seus pensamentos? Virou-lhe as costas, evitando encará-la e foi-se embora para o quarto. Aí chegada, sentou-se na cadeira, relembrando a cena que acabara de ter lugar. Passou a mão pelo rosto, uma, duas, três vezes, enxugando o suor. Como desejava conversar, partilhar os seus pensamentos com alguém! Mas não tinha ninguém com quem falar, excepto Mardinah. Nas últimas noites, o Bendoro não viera ao seu quarto e ela própria andava demasiado cansada para pensar no que quer que fosse antes de adormecer.

Se ao menos pudesse ver de novo a velha criada! Gostaria de saber como ela estava, o que fazia agora. Seria tão bom poder conversar com ela! Mas só tinha Mardinah, mais ninguém, a não ser ela.

- Mardinah! - chamou a Rapariga.

- Sim, Mar Nganten.

Momentos mais tarde, Mardinah entrava no quarto e estava de pé a seu lado.

- O que é que me querias dizer? - quis saber a Rapariga.

- Um jovem e belo rapaz gostaria de se encontrar consigo, Mar Nganten.

- E que mais?

- Enviou-lhe uma carta, Mas Nganten.

- É tudo?

- Quer que lha leia?

- Não. Não quero nem preciso. Há mais alguma coisa?

- Não quer saber quem é? Não deseja responder-lhe, Ma. Nganten?

- Não. Nada mais? Mardinah calou-se.

- Quando é que te vais embora desta casa? - perguntou a Rapariga.

- Quando? Esta não é a sua casa!

O comentário de Mardinah deixou- a perplexa.

- Então quem é que pensas que eu sou? Qual é a minha posição aqui?

- Bem, é uma concubina.

- Ai, sim? Uma concubina! E tu, o que és tu nesta casa?

- A sua criada.

- Quando é que posso contar que partas?

- Eu própria falarei com o Bendoro sobre isso.

- Quando?

- Não sei.

- Bom, é a altura de conheceres o Bendoro.

- Não, não é. Não preciso de conhecer o Bendoro.

- Mas eu quero. O Bendoro não sabe quem tu és.

- Isso não é possível.

- Então devíamos apresentar-te a ele.

- Sim, mas não agora.

- Está bem. Então às duas horas da tarde.

- Não, a essa hora não.

- Está bem - concluiu a Rapariga. Mardinah não se moveu, continuando ao pé dela.

- Quem te paga aqui o teu salário? - perguntou então.

- É a senhora.

- Não, não sou. Recuso-me a fazê-lo. Pede à tua Bendoro de Demak que o faça ela. Sei agora quem tu és. Foste enviada aqui para armar sarilhos.

- Isso não é verdade. Fui mandada para aqui para ajudar o Bendoro.

- O que disseste?

- Porque não está certo que ele continue a casar com raparigas de aldeia umas atrás das outras.

A Rapariga empalideceu, enquanto tentava desesperadamente recobrar o fôlego. Sabia que nunca poderia aspirar a ascender ao mesmo nível dos nobres e a ser tratada por eles como sua igual. Agarrou-se à borda do toucador, mas o mármore frio não lhe transmitiu a força de que ela tanto necessitava.

Reconhecendo a vantagem que adquirira sobre a Rapariga, Mardinah continuou o ataque:

- Portanto, agora já sabe por que razão estou aqui, Mar Nganten. Fui enviada por uma pessoa de um nível ainda mais elevado do que o seu Bendoro. Chegou a hora de ele casar com uma mulher de verdadeiro sangue real. Há em Demak muitas meninas nobres prontas a casar com ele. Pode escolher à sua vontade. Até mesmo quatro, se lhe apetecer.

A respiração da Rapariga ficou-lhe presa na garganta, quase a sufocando, e só conseguiu murmurar em voz fraca:

- Pára com isso. Por favor, pára. Nunca mais chegues perto de mim.

- Obrigada, Mar mganten - respondeu Mardinah. - Não se incomode, que eu sei voltar sozinha para a cozinha.

A Rapariga nem sequer olhou para Mardinah quando esta se foi embora. Mal conseguia distinguir o som dos seus passos enquanto se afastava. Teve até a impressão de que ela tinha parado junto à entrada da porta, espiando-a, mas nem teve forças para se mover.

" Aqui, só o próprio Bendoro é que permanece - dissera-lhe um dia a velha criada. - Ele e os deuses. Tudo o mais é temporário, sem uma base firme. O meu próprio nascimento foi um castigo. - Estas palavras ressoavam ainda aos seus ouvidos.

- É pecado ter nascido plebeia? - perguntou-se, enfurecida.

- Porquê? Que mal tem isso, que culpa tenho eu? - E, sem se dar conta, começou a chorar, a chorar por todas as pessoas que tinham nascido nas aldeias, sobretudo numa aldeia de pescadores.

- Agora, tenho de pensar em todas estas coisas pela minha própria cabeça e resolvê-las.

- Pode não compreender agora - dissera-lhe a velha criada - mas a experiência se encarregará de a ensinar!" - E só tinha dezasseis anos! Apreendia o sentido das coisas e dos acontecimentos através dos seus sentimentos, do seu corpo e do seu coração. Relembrou mais uma vez a casa na aldeia à beira-mar, tão distante, os dias cheios de risos, o entusiasmo da labuta diária partilhada, os braços musculados queimados do sol, as mãos, ao mesmo tempo suaves e fortes, mãos amigas, prontas a dar, a ajudar.

Aqui, só lhe restava chorar. Aqui, só havia luta. E por quê? Para quê? Pela honra e ao mesmo tempo pela comida por arroz. Na aldeia, as pessoas trabalhavam demasiado para se preocuparem com belos pontos de honra. E ninguém comia arroz, mas milho. Honra e arroz... Que preço tão alto se tinha de pagar por eles!

E ela tinha apenas dezasseis anos!

A Rapariga decidiu-se a falar ao Bendoro da próxima vez que ele viesse passar a noite com ela. Desabafaria, dir-lhe-ia como se sentia. Interrogá-lo-ia acerca de Mardinah e da posição que ela mesma ocupava. Passou várias noites deitada sem dormir, esperando por ele. Depois de tomar a sua refeição na sala das traseiras, ele ia geralmente para a sala do meio, por vezes sem sequer dar mostras de notar a sua presença. Sabia que ele não passaria com ela a noite de quinta-feira, por começar nessa tarde o dia semanal de oração. Esperou, portanto, que chegasse sábado, mas ele também não foi procurá-la ao quarto. E assim se foram sucedendo os dias, uns após outros, até que passou uma semana inteira e ele sem aparecer. Por fim, quinze dias depois da sua conversa com Mardinah, o Bendoro bateu-lhe à porta suavemente. A Rapariga levantou-se e foi abrir a porta ao marido, que se dirigiu logo para a cama. Depois de tornar a fechar a porta à chave, ela não foi ter com ele, mas sentou-se, como que atordoada, na cadeira. Perdera por completo a coragem de falar.

O Bendoro lançou-lhe um olhar interrogador:

- Estás doente?

- Não, Bendoro.

- É tarde. Vem para a cama. - disse, chamando-a com um gesto.

A Rapariga ergueu-se, mas tornou a sentar-se, de cabeça baixa. Então o Bendoro levantou-se da cama e foi ter com ela:

- Estás pálida. - observou.

- Sim, Bendoro.

- Tens a certeza de que não estás doente?

A Rapariga abanou a cabeça negativamente e olhou para o marido por instantes, mas tornou a baixar os olhos.

- Estás com saudades dos teus pais?

A Rapariga de Java soltou um suspiro. Ainda não se achava com coragem de lhe dizer o que sentia.

O Bendoro pousou uma mão no ombro da Rapariga e com a outra acariciou-lhe os cabelos.

- Eu sei, queres dizer-me alguma coisa. O que é?

- Bendoro... - a Rapariga sentiu-se com um pouco mais de coragem, mas a língua parecia feita de madeira. O medo fazia-lhe contrair as maxilas.

- Diz-me o que é, estou a ouvir-te.

- Bendoro... por que é que Mardinah foi mandada para aqui?

- Para te ajudar.

- Quem é ela?

- Uma parente afastada, Mar Nganten.

Uma parente do seu marido? A Rapariga não pôde continuar. Não tinha direito de se queixar. Levantou-se e encaminhou-se languidamente para a cama.

Quando o Bendoro se deitou a seu lado e a tomou nos braços, apercebeu-se de que ela estava a chorar. Então, limpou-lhe as lágrimas com a mão, acariciando as suas faces molhadas. De súbito, parou e sentou-se, estudando calmamente o rosto da Rapariga à luz do candeeiro eléctrico, filtrada pela rede do mosquiteiro.

- Por que estás a chorar? - perguntou-lhe. A Rapariga tentou falar mas não conseguiu.

-O que é?

- Não, não tem importância, Bendoro. Perdoa-me.

- Não compreendo.

- Perdoa-me, Bendoro, mas posso... Por favor, não te zangues comigo.

- Não, com certeza que não. Mas diz-me o que é.

- Eu queria ver os meus pais - confessou por fim.

- Era por isso que estavas a chorar?

- Gostaria de voltar à aldeia para ver os meus pais, Bendoro. Estava com receio que te zangasses comigo.

- Claro que podes ir. Quando queres partir?

- Amanhã, se me autorizares.

- Está bem, podes ir ver os teus pais amanhã. Mardinah vai contigo.

- Perdoa-me, Bendoro. Preferia que ela não fosse.

- O que é que Mardinah te fez?

- Nada, Bendoro. É que eu gostava de ir sozinha.

- Caluda! Não permito isso. Alguém tem de te acompanhar.

- Certamente, Bendoro. Mas não Mardinah... por favor.

- Quem, então?

- Quem tu quiseres, Bendoro, mas não Mardinah.

- Ela tem causado aqui problemas, essa Mardinah?

- Com certeza que não, Bendoro, mas é uma parente tua e seria uma grande imposição esperar que fosse com uma plebeia como eu.

- De uma coisa podes estar certa: sozinha é que não vais.

- Pois não, Bendoro, eu sei.

- Tu pertences-me. Sou eu quem determina o que podes ou não podes, e o que deves ou não deves fazer. Agora cala-te, está sossegada, já é tarde. - depois, como se pensasse melhor no assunto, acrescentou: - Mas ainda não trataste dos preparativos para ir a casa dos teus pais.

- Que preparativos tenho de fazer?

- Silêncio! Não te esqueças de quem eu sou. Lembra-te de que nunca deves fazer nada que possa de algum modo diminuir o respeito que mereço aos olhos dos outros. Nunca te esqueças de que as pessoas me têm em alta conta e de que isso nunca se deverá alterar. Leva contigo um saco de arroz.

- Está bem, Bendoro.

- Vai amanhã ao mercado e compra vinte metros de pano, sarongs, resina, sandálias e umas latas de biscoitos. parou para pensar e depois acrescentou. - E uns rosários bons, os que têm contas pretas e brilhantes... Certifica- te de que o número das contas é o correcto e de que não estão quebradas. E, como meu presente pessoal, compra também um cesto de tabaco de enrolar perfumado.

- Não vou poder carregar com isso tudo, Bendoro.

- Podes ir de carruagem. Vou-te alugar uma que te leve mesmo até à porta da tua casa.

A Rapariga quis lembrar ao Bendoro que não se podia ir de carruagem até à aldeia e que da estrada até lá ainda distavam uns dois ou três quilómetros que se tinham de fazer a pé; mas absteve-se de acrescentar o que quer que fosse. Era uma estrada muito solitária, com muito pouco movimento e imaginou-se a arrastar-se ao longo do caminho, ajoujada com uma pilha de mercadoria e transportando à cabeça aquela pesada carga, tal como qualquer outra mulher da sua aldeia. Nenhuma delas se podia dar ao luxo de comprar uma daquelas tiras largas de pano que as mulheres com mais posses usavam para transportar às costas a sua carga.

A aldeia estaria sossegada de manhã, quando ela chegasse. Só iria encontrar mulheres à volta dos almofarizes, ocupadas a moer; os homens estariam na faina, no alto mar, ou então a dormir, ou tremendo com um ataque de malária, dentro das suas cabanas. Só haveria mulheres para a receber, quando chegasse à aldeia.

Para a Rapariga, nessa noite, as horas passaram devagar. Quando finalmente o marido adormeceu, esgotado, cansado, mas satisfeito, enrolado a seu lado, ronronando no sono, com a boca e os olhos ligeiramente entreabertos, a Rapariga levantou-se da cama e, com muito jeito e sem fazer ruído, dirigiu-se à casa de banho.

A noite estava muito escura e, ao passar pelo jardim, parou a contemplar o céu negro constelado de estrelas. Os seus lábios moviam-se silenciosamente, numa prece de acção de graças. Revia em espírito os rostos daqueles que amava pessoas que nada tinham para dar excepto trabalho, amor e peixe.

- Oh, bapa's... bapakl - murmurou. Lembrou-se então do que o pai lhe dissera na noite anterior à sua partida para a cidade: - Sabes, filha, mesmo que pessoas como nós vivessem doze vidas, não ganhariam o suficiente para poder comprar todas as coisas que vais encontrar numa só sala de uma casa da cidade. O mar é imenso, a sua riqueza é infindável e inexaurível, mas apesar disso o nosso trabalho é desprezível. A partir de amanhã, filha, viverás numa casa da cidade e serás a esposa de um homem importante. Basta-te abrir a boca e o que pedires - seja o que for - te será trazido. Escolhe, filha, que tipo de mundo queres e escolhes.

- Oh, bapa - repetiu a Rapariga. - Este é o mundo que me ofereceste - quereria ela dizer. - Sim, na verdade é um mundo de facilidade e abastança. Só tenho de pedir e esco lher o que quero, mas não sou feliz. Baj"ak, não preciso para nada de todas essas coisas. Tudo o que necessito é das pessoas que amo, de corações abertos, que podem rir e sorrir à sua vontade, num mundo sem medo e sem tristeza. Bapak... bapak. Que mal empregado foi teres mandado a tua filha para a cidade, para não ser senão a esposa à experiência e adestrada de um nobre!

Saindo da casa de banho, a Rapariga foi até à cozinha, parando do lado de fora da porta. Por aquela porta passara a sua velha criada dezenas de vezes por dia. Onde estaria agora? Reconhecia que fora às vezes dura para com ela, porque também tinha ficado magoada com algumas palavras que

 

' Papá.

 

lhe ouvira. Mas a mágoa estava esquecida e tudo o que agora sentia eram apenas remorsos de ter agido dessa forma.

Ao lembrar-se de repente de Mardinah, a Rapariga afastou-se dali apressadamente. Mardinah estava ali dentro, protestou ela no seu íntimo.

- Que parva sou! - ralhou para consigo. Que estava a fazer, de pé, à porta da cozinha, pensando numa pessoa tão boa, quando a que detestava estava ali, do lado de dentro. Trepou a correr as escadas das traseiras e voltou para o quarto, fechando cuidadosamente a porta à chave. Sentou- se na cadeira, a pensar, até que ouviu a voz do marido chamando-a ternamente:

- Vem deitar-te, Mar Nganten.

- Sim, já vou, Bendoro, - respondeu, deixando-se ficar onde estava.

- É muito tarde. Se não te vens deitar agora, não poderás partir amanhã de manhã. Não quero que apanhes um resfriado.

- Sim, Bendoro - aquiesceu a Rapariga, voltando para a cama, onde se deitou, virada para a porta.

- Por que estás de costas voltadas para mim? - perguntou o Bendoro. - Não gosto quando dormes dessa maneira.

A Rapariga deu uma volta na cama e ficou de frente para o marido.

- Quando chegares à aldeia, - disse o Bendoro numa voz ensonada - dá os meus cumprimentos aos teus pais.

- Muito obrigada, Bendoro.

- E não te portes como uma aldeã. És a esposa de um - nobre.

- Sim, Bendoro.

- Agora dorme.

Em breve o mundo inteiro mergulhara no sono. Apenas as estrelas, as ondas e o vento ainda estavam despertos para desempenharem as tarefas que Lhes competiam.

 

                       PARTE III

Pesadamente carregada com presentes e provisões, a carruagem alugada que transportava a Rapariga de Java até à sua aldeia avançava aos solavancos pela estrada. O cavalito que a puxava estava cansado e cumpria contrariado o seu papel, sob o quente sol do meio-dia. O pântano de mangues ao longo da costa, de um verde-profundo, estava completamente deserto. O aroma do tabaco, que saía em lufadas do cesto, misturava-se com o cheiro do mar.

A Rapariga suspirou. De vez em quando lançava um olhar furtivo a Mardinah, sentada ao seu lado.

- Devia ter respondido àquela carta, Mar Nganten - disse-lhe Mardinah.

A Rapariga ignorou o comentário, voltando a sua atenção para o cocheiro:

-Já foste a uma aldeia de pescadores?

-Já sim, senhora. Nasci à beira-mar.

- Então calculo que não gostes de ir para o mar.

- Se toda a gente fosse para o mar, minha senhora, quem ficaria aqui em terra? Que os outros ganhem seu sustento no mar; eu contento-me em viver com o que o meu cavalo me dá a ganhar. Ele fornece-me todo o alimento de que necessito.

O ar livre fez com que a Rapariga se sentisse a reviver e, pela primeira vez em dois anos, riu-se sem constrangimento.

- Não vejo motivo para se rir, Mar Nganten -, repreendeu-a Mardinah. - Não é próprio da esposa de um nobre. Tente controlar-se.

A Rapariga deixou imediatamente de rir.

Uma rajada de vento não permitiu que o cocheiro ouvisse a reprimenda de Mardinah. Por isso continuou o que estava a dizer:

- Sim, prefiro a terra, minha senhora. Pelo menos, quando se morre, as pessoas sabem onde encontrar o corpo.

- De que cadáver estás a falar - quis saber a Raparigadu teu cavalo?

- Não, senhora, do meu - apressou-se o homem a explicar. - Eu só...

- Quer-me parecer que deves gostar muito do teu corpo!

- interrompeu-o a Rapariga, rindo. Desta vez ignorou completamente o olhar que lhe lançou Mardinah.

- Onde vives agora? - perguntou a Rapariga.

- No bairro de pescadores da cidade - respondeu o cocheiro, de olhos postos na estrada.

- As pessoas têm autorização para rir nessa zona da cidade?

- Santo Deus, minha senhora... As pessoas, em qualquer parte do mundo, têm autorização para rir!

A Rapariga ficou silenciosa. Posso ser muito nova, pensou ela, mas sei melhor do que ele como este mundo funciona.

- Quantos anos tens? - perguntou-lhe então.

- Tenho quarenta anos, minha senhora.

- Fazia melhor ler essa carta do que estar a namoriscar com o cocheiro - atirou-lhe de novo Mardinah.

A Rapariga continuou a fazer de conta que não a tinha ouvido.

- Quarenta anos? - disse ela - então deves ter uma quantidade de netos.

- Não muitos, minha senhora. Cerca de vinte.

- Pare de conversar com ele. Vou dizer ao Bendoro!

- E gostas deles?

- Se gosto deles? Então não havia de gostar de todos eles?

- Foste alguma vez forçado a trabalhar na plantação de cacau?

- Com certeza que sim minha senhora, e roubou-me uma boa parte da minha vida. Uma vez, um professor de religião disse-me que Alá o Misericordioso concede a toda a gente o dom da vida. Mas eu não consegui desfrutar muito desse dom. De certa forma, parece que todas as outras pessoas foram donas da minha vida excepto eu própriu. Isto é tudo o que tenho. O resto, perdi-u fazendo trabalhus forçados.

- Por que é que não fugiste?

- Para onde? Os soldados holandeses estavam por todo o lado. O meu pai viveu até aos cento e vinte anos. Eu, com quarenta, já estou velho. Ele passou toda a sua vida a fugir, minha senhora. Não quis fazer trabalhos forçados. Era um grande homem, cheio de coragem. Mal lhe constava que havia alguma agitação, lá estava ele, tomando parte nela, bem no meio dos acontecimentos. Mas eu não sou como ele. Nunca tive coragem suficiente, com medo de morrer. Tive medo do mar, dos peixes grandes que há nele. Só não tenho medo do meu cavalo, do meu cavalo e dos meus netos.

A Rapariga riu, divertida. Gostava da maneira de falar do homem, rude mas honesta, de quem sofrera. Havia muito que não ouvia alguém falar assim.

- Se pudesses, gostavas de ser alguém importante? - Se eu pudesse? Aiya, aiya. Bem, neste momento o meu cavalo está cansado, minha senhora. Vai bem carregado! Acho que devíamos abrandar o passo, se a senhora não se importasse. Pobre animal! Se vai carregado de tabaco, nunca dá uma fumaça. Se transporta limas, ninguém lhe dá do seu sumo. Alá é quem decide os nossos destinos, minha senhora. Por que o fez a ele um cavalo e não um funcionário do governo?

A Rapariga deu uma gargalhada. Mardinah mostrou-se aborrecida:

- Mar mganten, na verdade isto é de mais! E se o cocheiro começa a falar do Bendoro? Não lhe fica bem rir dessa maneira.

- Se o teu cavalo fosse um funcionário...

- Aiya, bem, graças a Deus que não é, minha senhora! Nunca seria capaz de lhe dar comida suficiente. É graças ao destino deste pobre cavalo que eu posso comer, que eu casei e que tenho todos os netos de que lhe falei. Faz com que eu não tenha o destino, a sorte, de ser eu próprio um cavalo. Olhe só para ele! Aiya!

- O que é essa história de aiya?

- Sabe-me bem dizer esta palavra, minha senhora. Faz-me sentir o peito mais leve, ajuda a aclarar a garganta.

- Quem te ensinou a dizê-la?

- Aiya. Uma vez dei boleia a um chinês que acabara de desembarcar. O rapaz mal sabia a nossa língua mas apesar disso falou o tempo todo, desde Rembang até Lasem. Contou-me que, em Hong Kong, tinha tido um cavalo que puxava um richau. De cada vez que parava de falar, dizia: "ri". Parecia que, ao pronunciar esta palavra, ficava mais feliz. Por que não experimenta também dizê-la, minha senhora?

- Aiya!

- Não é bom?

A Rapariga riu de novo:

- Foi óptimo!

Mardinah estava a ficar cada vez mais irritada:

- Realmente, Mar Nganten Isto não pode continuar! Terei que contar ao Bendoro.

Mas a Rapariga continuou a interrogar o cocheiro:

- Tens um patrão?

- Aiya! Todos são meus patrões, minha senhora. É o problema da minha vida. É por isso que todos os dias rezo para que o meu cavalo nunca fique doente.

A Rapariga bateu as palmas, deliciada:

- Rezas pelo teu cavalo? Então por que não rezas pelos teus filhos e netos?

- Porque eles podem rezar por si próprios, minha senhora. É esse o problema de se ser cavalo. Os cavalos não sabem rezar. Aiya! Ou talvez rezem na língua deles - linguagem de cavalo! Ou então talvez rezem em silêncio.

- Que pena...

- É realmente uma pena, minha senhora.

- O quê?

- Que Alá nunca responda às suas orações. Quem sabe se ele, neste instante, não está a rezar para não ser um cavalo, mas sim um cocheiro, como eu. Enquanto eu peço a Alá que me dê tanta saúde a mim como a ele. Por isso, se a sorte mudasse, eu poderia ser o cavalo e ele o cocheiro. Pense só, minha senhora, o que seria deste meu pobre corpo, velho e doente!

- Isto é revoltante! - murmurou Mardinah entredentes.

- Achas que é revoltante - perguntou a Rapariga ao cocheiro - a maneira como o destino trata os cavalos?

- É assim mesmo.

A carruagem foi rodando cada vez mais lentamente até que por fim, ao começar uma subida, o cavalo, esgotado, estacou, recusando-se a dar um passo mais. O cocheiro teve de saltar da carruagem e colocar pedras por detrás das rodas, para impedir que ela deslizasse pelo caminho abaixo.

- Por que não o deixas descansar um bocado? - sugeriu a Rapariga.

- Obrigado, minha senhora.

- Vai fazer-se noite, e nós sem termos chegado ao nosso destino - protestou Mardinah.

A Rapariga apeou-se da carroça e ficou-se a olhar para o mar, por sobre a vasta extensão de mangue que cobria

a costa. Disse, para si mesma:

- Há dois anos que, no meu quarto, só ouço o barulho do mar.

- O quê? A senhora passou dois anos dentro do mesmo quarto? - exclamou o cocheiro. - Tem estado doente?

- Doente?

- Sim, deve ter estado mesmo doente - comentou o cocheiro.

- À noite, o vento soprava através do telhado e chegava ao meu quarto, trazendo com ele o som das ondas. À medida que a noite ia avançando, mais forte se tornava. Parecia que o mar chamava por mim: - Vem cá, vem ter comigo. Por

que fugiste? Eu criei os teus antepassados, cuidei deles, embalei-os no meu colo, acalmei-os quando estavam assustados...

- E depois enterrei-os - concluiu por ela o cocheiro. É assim que terminam todas as histórias de pescadores, minha senhora. Por isso eu ficava tão aterrorizado com a ideia de ir para o mar.

A Rapariga inclinou-se e apanhou uma mão-cheia de areia junto ao caminho. Pequenos pedaços de conchas faziam-na brilhar à luz do Sol. Deixou-a escorregar lentamente por entre os dedos e o vento, empurrando-a, fê-la tombar de lado, no chão. A Rapariga foi subitamente invadida por uma onda de desalento e, com o pé, afastou dela a areia.

- Olhe para o cavalo, minha senhora - disse-lhe o cocheiro, apontando para ele.

A Rapariga, erguendo a cabeça, aproximou-se do cavalo e ao observá-lo atentamente, reparou que usava anteolhos.

- Pobrezinho! De que lhe serve ter olhos se estão assim tapados? - comentou.

- Quando está a trabalhar, tal como agora, minha senhora, os olhos não lhe são de grande préstimo. Se abrir as cortinas, ele consegue ver o que está a transportar - tabaco! - e então talvez se recuse a continuar o serviço.

- Mas tu não fumas, pois não?

- Nem eu nem o meu cavalo, senhora, mas às vezes gosto de o mascar.

- Então vou dar-te algum.

O cocheiro deu uma palmada na garupa do cavalo, que estava coberto de suor.

- Vamos, Gomba, diz obrigado a esta boa senhora.

- Mas és tu que mascas tabaco, não o teu cavalo.

- É verdade, minha senhora, mas se consigo arranjar algum tabaco para mascar, dou-lhe a beber a ele melaço, para lhe mostrar como estou contente. - Gomba ergueu a cabeça e abanou a sua farta crina. - Está a perguntar se podemos descansar mais um bocadinho, minha senhora. Não se importa?

A Rapariga, sem responder, afastou-se da carruagem. Saiu da estrada e, embrenhando-se por entre os arbustos, encaminhou-se para o mar.

- Mar Nganten! - gritou-lhe Mardinah, saltando da carruagem e correndo no seu encalço. - Onde é que vai? Deve haver cobras entre as raízes do mangue!

Sem se voltar para Mardinah, a Rapariga respondeu em voz baixa:

- Não era isso que gostavas?

- Volte para a carruagem!

- Se eu fosse mordida por uma cobra, não ficavas contente? Podias substituir-me como esposa do Bendoro.

- Não, isso nunca poderia acontecer.

- Por que não?

- Porque sou divorciada.

- Mas nem por isso deixas de ser mulher, pois não?

Mardinah abanou a cabeça:

- Marmganten, há quanto tempo vive em casa do Bendoro?

O quê? Ainda não aprendeu que os homens importantes só tomam como esposas mulheres que vêm directamente das mãos de Alá?

- Mas porquê?

- Porque outro homem me possuiu.

A Rapariga ficou com a curiosidade espicaçada:

- Então por que queres por força impingir-me essa carta?

- Por favor, Mar mganten, volte para a carruagem.

- Entra tu; eu gosto de falar com o cocheiro.

- O Bendoro vai ficar zangado.

- Melhor para ti, não é assim?

- Não está certo que eu esteja em cima, dentro da carruagem, e a senhora aí em baixo.

- Escreves muitas vezes cartas para outras pessoas?

- A quem as iria entregar? Mas, como sabe, realmente sei escrever.

- Será que todos os nobres procedem assim?

- Assim como, Mar Mganten?

- Como demónios.

Vou dizer ao cocheiro que te leve a ti e ao resto do carregamento de volta para a cidade. Posso ir daqui a pé até à aldeia.

A Rapariga virou as costas e encaminhou-se para o carro de cavalos, seguida de perto por Mardinah.

- O cavalo já descansou o suficiente? - perguntou ao cocheiro.

- Suba, por favor, minha senhora. É um animal esperto e quando sabe que o dono vai conseguir arranjar tabaco, recompõe-se logo.

- Não me vou esquecer do tabaco para ti - retorquiu-lhe a Rapariga - mas não me parece que o teu cavalo vá também precisar de algum pedaço.

- Talvez não, minha senhora, mas o dono é que precisa. Suba, por favor - disse de novo - está a levantar- se vento.

Assim que as duas mulheres ficaram instaladas, a carruagem prosseguiu o seu caminho.

A Rapariga continuou então a sua conversa com o cocheiro:

- Olha para o mar! É tão vasto, tão imenso! Não tem fim.

- Là isso é verdade, minha senhora - concordou o homem. depois voltou-se para o cavalo: - vamos, Goml"a, despacha-te! Aiya! Não queremos que a noite chegue e nós ainda na estrada.

-Já sei que é mesmo isso que vai acomtecer - protestou Mardinah, enfadada.

- Em toda a minha vida, minha senhora, nunca vi um dia acabar, sem se lhe seguir uma noite. Não me parece que hoje vá ser diferente. Aiya... - e fez estalar o chicote no ar. Vamos, anda, Gomba!

- Dás-lhe às vezes com o chicote?

- Só as pessoas estúpidas e os animais estúpidos é que merecem ser chicoteados, jovem senhora.

- E as que se portam mal, os malandros?

- A esses, o melhor é impedi-los de fazerem maldades. Basta atar- lhes os pés um ao outro.

- O quê, estás a falar de pessoas ou de animais? E se se tratar de um nobre?

- Bem, isso seria um problema, minha senhora - e por isso é que é tão difícil nascer cavalo ou uma pessoa como eu. Eu já sei o que é apanhar com o chicote, aqui como o Gomba. Mas tudo tem limites, não se pode ficar para sempre debaixo do chicote. Se se açoitar muitas vezes um animal, qualquer que ele seja, acaba por virar-se contra quem lhe bate. Até um tigre doente, se se abusar dele, atacará quem o está a atormentar. Aiya...

O estalar do chicote quebrou a quietude da costa, enquanto a carruagem prosseguia lentamente o seu caminho.

Ao cabo de duas horas de viagem ainda não se tinham cruzado com nenhuma carruagem, nem sequer com uma carroça. Era óbvio que no dia seguinte não havia mercado.

- Se se fizer muito tarde ainda voltas para a cidade? - perguntou a Rapariga ao cocheiro.

- Esta não é a minha primeira viagem, minha senhora, nem será a última. Já fiz muitas vezes viagens como esta.

De uma das vezes, por volta das três da manhã, a maré estava tão alta que chegava à estrada.

- Não tiveste medo?

- Quem não teria?

- Mas mesmo assim continuaste o teu caminho?

- Não me atrevi sequer a parar, minha senhora. Não quis colocar-me mal diante do cavalo. Ele é que não tem medo de nada - nem de piratas, nem do próprio Diabo. Usar anteolhos sempre ajuda, acho eu!

A Rapariga riu e, ao fazê-lo, apercebeu-se de que o seu riso já não era o mesmo de antes, um riso fino e agudo, como o som de uma pedra a bater numa panela de lata. Riu de novo. Como soava agora o seu riso? Abanou a cabeça, incapaz de encontrar comparação para ele.

Ao olhar para o lado, a Rapariga parou de rir, ao ver Mardinah a descansar, dormindo profundamente, encostada ao cesto do tabaco. Observou atentamente o seu rosto redondo, os lábios pequenos mas cheios que lhe faziam lembrar um par de cebolinhas vermelhas; as sobrancelhas escuras e espessas, que quase se uniam e o seu queixo suave harmonizando-se de modo tão perfeito com a curva do rosto. Como era bela! Só umparvo é que não se interessaria por ela. Era bela exteriormente. Mas, o que ia no coração daquela mulher.

Também ela começava a sentir o cansaço da viagem. Contemplou outra vez o rosto da rapariga ao seu lado. Quantos homens teria ela tido? Que pensamento tão obsceno! Como podia estar a ter pensamentos dessa espécie?

Escutou o bater das ondas na praia, cada vez mais forte, à medida que a maré subia. À luz do Sol poente, as ondas pareciam maiores do que era habitual. O que estaria o pai

a fazer a estas horas? E a mãe?

A brisa vinda do mar parecia agora uma canção de embalar, como a que a mãe cantava para adormecer o seu irmão mais novo. Sorriu, consolada, embalada por ele, até que adormeceu, com o corpo também encostado ao cesto de tabaco.

As duas mulheres só acordaram quando a carruagem parou. A primeira coisa que a Rapariga ouviu foi o cocheiro, perguntando-lhe:

- É aqui que paramos, minha senhora?

Ambas se sentaram direitas no assento, olhando em volta.

A Rapariga espreitou pela janela da carruagem. Ainda era capaz de reconhecer aquele lugar. Três gigantescas tecas erguiam-se a poucos metros, de um dos lados da estrada. Não conseguia ver a praia, nem ouvir o barulho das ondas, pois estavam a uns cinco quilómetros de distância do mar. Toda a gente da aldeia conhecia aquelas árvores. Saltou da carruagem e, seguindo o costume da região, encaminhou-se para elas. Erguiam-se direitas e altas, fendendo o céu, sobranceiras a tudo em seu redor. Tentou abanar a primeira árvore, mas esta permaneceu imóvel como uma rocha. Depois experimentou fazer o mesmo com a segunda e por fim com a terceira, mas nenhuma delas se moveu.

- São uma dádiva dos nossos antepassados - disse o cocheiro. - Então sabes a história destas três árvores? - quis saber a Rapariga.

O cocheiro ficou encantado com a pergunta, que considerou um cumprimento, e riu-se:

-Já passei por aqui uma dúzia de vezes, minha senhora. Do seu lugar na carruagem, Mardinah observava a Rapariga e o cocheiro.

- Quando o Governador-Geral ordenou que todos os homens e mulheres da aldeia fossem trabalhar na construção desta estrada, os bebés morreram-lhes em casa de fome.

- Pensava que só as pessoas da aldeia é que conheciam esta história.

- Muita gente a conhece, minha senhora, até há uma canção sobre ela.

- Mar mganten, está a fazer- se tarde - disse Mardinah, interrompendo-os.

A Rapariga apontou para uma vereda que virava à direita:

- Podes conduzir a carruagem por aquele caminho? perguntou ao cocheiro.

- É muito arenoso, minha senhora, as rodas podem enterrar-se. Será mais difícil para o cavalo, mas podemos tentar. Temos é de ir mais devagar.

-Já é perto.

- Está bem, mas se calhar não conseguimos ir até ao fim do caminho. Está alguém à sua espera?

- Não.

- Não?

A Rapariga trepou de novo para dentro da carruagem e o cocheiro retomou o seu posto. Incitando o cavalo, tomou o caminho que cortava à direita.

As rodas da carruagem enterraram-se na areia, enquanto o cavalo se esforçava por puxar a carga que transportava.

O cocheiro começou então a cantar:

Lamentas, ó lamentas; os bebés morrendo estavam as mães transportavam terra, seus pais as árvores cortavam para a grande estrada construir a casa não regressavam, ao lar nãopodiam ir

A estrada era tão comprida; só em Rembang terminava e somente entãopuderam regressar a casa; lamentaz; ó lamentaz seus pobres filhos, sem nada; apenas ossos era tudo quanto deles restava.

- E nem todos regressaram a casa...

- Pois não, minha senhora, mais de metade deles foram enterrados ao longo da estrada. Mas o meu pai teve sorte. Em vez disso, fugiu e lutou contra os holandeses.

A Rapariga lembrou-se imediatamente da sua velha criada. Também o avô se tinha juntado à resistência. Pondo de lado estes pensamentos, tentou lembrar-se a quem poderia pedir ajuda para transportar a bagagem. E a mãe, o pai e os irmãos, como a iriam eles receber?

- Vamos lá, Gomba, já estamos perto - disse o cocheiro, incitando o cavalo. - Quando chegarmos ao nosso destino vais poder dormir descansado debaixo de uma árvore!

Quando a carruagem chegou ao pé de uma cabana, no meio de um campo de arroz, e em que a estrada arenosa se transformou apenas num trilho estreito, o Sol já quase desaparecera no horizonte.

- Se o Bendoro não me tivesse ordenado, nunca aqui teria vindo - resmungou Mardinah.

- Não preciso de ti. Podes voltar, se quiseres - atirou-lhe secamente a Rapariga.

Mardinah não respondeu, mas o cocheiro, ao ouvir as duas mulheres erguendo as vozes, estudou os seus rostos com atenção. A sua alegria desapareceu.

Afastou-se das mulheres, sem querer ouvir a sua discussão e sentou-se num banco dentro da cabana, mascando o tabaco.

- Cocheiro! - chamou a Rapariga.

O cocheiro pulou do banco e foi ver o que queria a Rapariga, mas antes de ter tempo de chegar ao pé dela ouviu a outra mulher sibilar:

- Está a portar-se tal e qual uma camponesa rústica!

- Bem, esta é a minha aldeia, a minha casa - replicou a Rapariga. - Se não queres que te rogue uma praga, minha divorciada, podes retirar os teus lindos pezinhos deste chão sagrado.

Ao ver o cocheiro aproximar-se, Mardinah não lhe deu resposta.

- Leva-a de volta para a cidade - disse a Rapariga ao cocheiro.

- O Bendoro ordenou-me que a acompanhasse, Marmganten. Não posso de modo algum regressar sozinha.

- O teu lugar não é numa aldeia de pescadores, por isso vai-te embora, volta para de onde vieste!

- Estou a falar a sério, Mar mganten. Não posso regressar sozinha. Por que não tratamos de levar a bagagem? - depois, olhando para o cocheiro, perguntou-lhe. - Quais destas coisas consegues transportar?

- Bem, o arroz de certeza que não posso, minha senhora. É pesado de mais para as minhas fracas forças.

- O quê, então achas que eu posso, não? - perguntou Mardinah, furiosa.

- O meu cavalo é bastante forte, mas anda atrelado a uma carroça, não é um animal de carga.

- Podes levar o tabaco, e tira algum, é para ti -, disse a Rapariga.

- Está bem, minha senhora.

- Então amarra-o, vai à aldeia e pede a quatro homens que venham aqui.

- Se for a cavalo chego lá mais depressa, minha senhora. Num ápice, o cocheiro tirou os anteolhos ao cavalo e saltou-lhe para a garupa. Cavalo e cavaleiro encaminharam-se para o trilho, desaparecendo por detrás das árvores.

A Rapariga saiu da carruagem e sentou-se no banco, dentro da cabana. Mardinah olhou em volta e apressou-se em segui-la.

- O que estás aqui a fazer ao meu lado?

- Estou com medo.

- Tu, com medo? Não estás certamente com medo de mim?

- Detesto aldeias, todas elas!

- Então vai-te, sai daqui imediatamente! - ordenou-lhe a Rapariga.

- Como posso eu ir embora?

- Tu não és uma campónia. És superior à gente da aldeia. Tenho a certeza de que hás-de encontrar uma maneira de sair deste lugar.

- Tem razão. Valho mais do que a gente da aldeia. O meu pai era escrivão e sou aparentada com a nobreza.

- Ai sim? Então agora vai à procura dos teus nobres parentes. Os espíritos dos meus antepassados vão por certo fulminar-te, se te atreveres a pôr os pés na minha aldeia. Insultaste-a, e insultaste também as pessoas que nela vivem, os pescadores e marinheiros que dia após dia arriscam as suas vidas - depois, apontando para o céu, acrescentou: já está escuro, já é noite. Tem cautela! Aqui, os raios reduzem a pó a ingrata gente da cidade. - e espetando o dedo no peito de Mardinah, afirmou: - Prevejo que na minha aldeia só te aguardam problemas. Vai-te embora, volta para a cidade antes que seja tarde.

Dois relâmpagos faiscaram subitamente por entre as nuvens escuras.

- Perdoe-me, Marmganten!

- Viste aquilo? Aquelas luzes são os olhos do espírito. O espírito do relâmpago tem olhos resplandecentes e derrama fogo por onde quer que vá. Esconde-se por detrás das nuvens. Quando vê um inimigo, estende as suas doze mãos e, com facas rombas, corta em pedacinhos as pessoas que detestam a aldeia, chegando a levar uma semana inteira até as fazer em picado.

Mardinah encolheu-se toda, como o rato, tremendo, diante do gato.

- Perdoe-me, por favor, Mar mganten. Eu apenas recebi ordem de a acompanhar até aqui.

- És na verdade de Demak?

- Sim, Mar Nganten.

- E quais são as ordens que lá recebeste?

Mardinah estremeceu de ansiedade mas, com esforço,

disse nervosamente:

- É uma longa história, jovem patroa. Apenas estou a cumprir as ordens recebidas.

- Que ordens? Para acabares comigo?

- A família do Bendoro e os seus parentes em Demak estão muito perturbados por ele ainda estar por casar.

- Que queres dizer com isso? Quem pensas tu que eu sou?

- Por favor não me peça para lhe responder a essa pergunta. Um nobre é considerado solteiro enquanto não casar com uma mulher da mesma posição social que a sua.

- Tu és nobre, não és? Gostarias de casar com o Bendoro?

- Sim, gostaria, Mar Nganten.

- Mesmo sendo sua parente?

- Sim, Mar Nganten. Mas nunca poderia casar com ele. Sou divorciada.

- Com que então eu não sou a esposa do Bendoro? inquiriu de novo a Rapariga.

- Bem, de certa maneira é, Mar Nganten, mas apenas uma esposa à experiência.

- E deram-te ordem para te desenvencilhares de mim, para o Bendoro poder casar com uma mulher nobre, é isso?

Tenho a certeza que é. Bem, eu posso ficar aqui, mas tu voltas para a cidade. E mantém-te afastada da minha aldeia.

- Estou assustada, Mar Nganten.

- Assustada? Tu és da cidade, aparentada com a nobreza; onde está agora a tua superioridade? Eu sou da aldeia e não tenho medo.

- Não me deixe aqui, Mar mganten!

- Vivia na cidade há dois anos quando tu chegaste, mas só agora me apercebo de que o que as pessoas da cidade pessoas da classe nobre, mais temem é não serem respeitadas. E, no entanto, têm tanto receio de mostrar respeito para com as pessoas da aldeia!

Caía a noite e, na escuridão que já reinava, a Rapariga de Java só conseguia divisar o vulto de Mardinah, sentada ao lado dela no banco, imóvel, de cabeça inclinada e cara enterrada nas mãos.

Apesar da sua juventude, tal como a maior parte das mulheres que habitam em casas grandes e com muita gente, amadurecidas na adversidade, ambas tinham já uma grande experiência do mundo.

- E quanto a si, o que vai ser de si, Mar mganten? - perguntou Mardinah. - Ao voltar desta maneira para a aldeia, não

tem medo de perder alguma coisa?

- As pessoas como eu, tal como todas as da aldeia, não têm nada a perder. Tudo o que podemos fazer é sonhar. Portanto, que mais temos a perder? Esses sonhos?

- Com o que é que sonha, Mar Mganten?

- Sonho com todas as coisas que nunca tive.

- Bem, na sua vida, Mar mganten, o que é que tem?

- Depois de mais de dois anos a viver na casa do Bendoro, aprendi que tudo o que podemos esperar da gente da cidade é pobreza, indignação e medo. As pessoas certificam-se de que assim aconteça. Pagam-nos dois cêntimos e meio pelos camarões em pó, mesmo que de antemão saibamos que a nossa mercadoria vale o dobro. Isto não está certo, é desonesto. Agora olha para mim. Sou um ser humano, não sou farinha de camarão. Não podem vir arrancar-me da aldeia e enfiar-me numa mansão qualquer da cidade. Vocês, gente da cidade, o que sabem da gente da aldeia?

Como Mardinah não respondesse, a Rapariga continuou:

- Quando cheguei a casa do Bendoro, havia lá uma mulher, já idosa, que tomou conta de mim; mas foi mandada embora por ter acusado os sobrinhos dele de me roubarem o dinheiro.

- Claro, não havia outra alternativa - declarou Mardinah.

- Então porquê?

- Ela estava lá para trabalhar, não para criticar.

- Mas um dos rapazes tinha roubado o meu dinheiro.

- Bem, mas ela, como criada que era, esqueceu-se do significado da palavra "serviço".

- Esse tipo de serviço é ridículo - afirmou, veemente, a Rapariga. - Os meus antepassados nunca tiveram de servir ninguém, mas sobreviveram. O mar é mais rico do que qualquer outra coisa no mundo. - A sua voz tornou-se grave.

- Volta para a cidade. Posso perfeitamente tomar conta de mim.

- O que direi ao Bendoro?

- Implora o seu perdão e oferece-te a ele. Se é teu tio, ou mesmo teu pai, não interessa. Serias apenas a sua esposa à experiência. Gostavas, não gostavas? - relanceou os olhos para o carreiro, mas o cocheiro ainda não regressara. Voltou-se então de novo para Mardinah: - Por que não dizes nada?

- Estou confusa, não sei que fazer, Mar Nganten.

- Porque não gostas da minha aldeia? Pensa nisto: durante dois anos estive afastada da minha terra natal, a viver numa mansão, rodeada de estranhos, enquanto tu estás aqui apenas há uns minutos e já resmungas como uma velha que perdeu o tabaco de mascar.

- Acho que se ficasse aqui endoidecia.

- Pois eu faço tenção de ficar aqui por uns tempos.

- É impossível, Mar mganten. Eu não o suportaria.

- Por essa razão é que te estou a dizer que voltes agora para casa. Eu não me importo.

- Quanto tempo tenciona ficar aqui?

- Uma semana, talvez um mês.

- O Bendoro não me disse isso.

- Se tens algum senso, devias começar a perceber que, neste momento, sou eu a tua patroa, e não o meu marido.

- Isso é impossível! Impossível! Eu tenho um título, ainda

que seja o mais baixo de todos, ainda que seja apenas "Ma. n". Escutaram em silêncio o rumor da brisa por entre os arbustos e a erva alta.

Mardinah teve um arrepio:

- Está frio, Mar mganten.

- Pensa nos pescadores que vão para o mar em tronco nu.

- Por que fazem eles isso?

- Porque não têm roupa - respondeu a Rapariga com simplicidade.

- Oh!...

- Oh? É tudo o que tens a dizer? Bem, afinal de contas, quem pensas tu que és? Se me apetece rir, mandas-me calar. Posso fazer isto, não posso fazer aquilo. E só és capaz de exclamar "Oh"! Aqui, as pessoas são pobres e, para as pessoas da cidade, até isso é crime. Ainda me recordo dos meus primeiros dias em casa do Bendoro. Ele afirmou que as pessoas da aldeia eram porcas, que não eram religiosas e que é por isso que são pobres. Sabes alguma coisa de religião?

- Se aprendi a recitar o Corão? Não, Mar Mganten, não aprendi.

- Eu também não.

A atenção delas foi desviada para o cocheiro que acabara de regressar e desmontava do cavalo.

- Consegui arranjar quatro homens, minha senhora, e todos eles trouxeram paus para transportar a sua bagagem.

- Ajuda-os a organizar as provisões - disse-lhe ela, perguntando-lhe em seguida: - regressas à cidade?

- Esta noite não, minha senhora. Gomba ainda está cansado; precisa de um tempo para repousar e daqui até à cidade ainda é um bom estirão.

- E o teu tabaco? Tira do cesto um dos pacotes.

- Agradeço reconhecido, minha senhora. Isso significa que Gomba vai ter melaço para beber durante uns tempos.

A Rapariga ficou a olhar, enquanto o cocheiro dividia a bagagem pelos quatro carregadores.

- Estes homens são suficientes? - perguntou-lhe a Rapariga quando no fim da distribuição ele veio ter com ela.

- Nem por isso, minha senhora, mas são os únicos que não saem esta noite para o mar. Que posso fazer? Acho que também tenho de dar-lhes uma ajuda.

- Caramba! Que quantidade de coisas! - exclamou um dos carregadores.

- A quem pertencem? - quis saber outro.

- São minhas - respondeu-lhes a Rapariga.

- Para onde quer que as levemos?

- Para a aldeia dos pescadores - retorquiu-lhes. Os homens olharam uns para os outros e, em silêncio, começaram a arranjar a bagagem de modo a poderem levá-la em paus, sobre os ombros.

- Não te esqueças do tabaco - recomendou a Rapariga ao cocheiro. Em passo cadenciado, um atrás do outro, os carregadores desapareceram na escuridão da noite.

- Estou com medo - murmurou Mardinah.

A Rapariga olhou para as provisões que os homens não tinham podido transportar com eles e começou a organizar a sua própria carga. Depois disse para Mardinah:

- Aquelas garrafas ali adiante, é melhor seres tu a levá-las.

Não me parece que consiga levar mais nada.

- Mas...

- Eu sei, eu sei, este tipo de trabalho é degradante, está abaixo do teu nível, mas seria assim tão mau dares-me uma ajuda?

Mardinah, relutante, agarrou com cada uma das mãos num par de garrafas atadas uma à outra.

Puseram-se então a caminho, pelo trilho fora, logo atrás do cocheiro. Os carregadores já iam bem à frente deles. Os pés enterravam-se-lhes na areia morna e macia e os ramos dos arbustos prendiam-se às saias das mulheres.

- Está a ir tão depressa - queixou-se Mardinah. – Não pode ir um pouco mais devagar?

A Rapariga não abrandou o passo, mas olhou para o céu antes de responder:

- É melhor rezares para que cheguemos ao nosso destino antes que comece a chover.

Continuaram a caminhar e passado um bocado Mardinah perguntou:

- Ainda estamos longe, Mar mganten?

- Queres que te deixemos aqui sozinha? - foi a resposta da Rapariga.

E o trio foi prosseguindo a sua marcha.

Mais adiante, Mardinah cmentou:

- Mar Nganten, também deve estar cansada.

- Todos estamos cansados - replicou a Rapariga - mantendo o mesmo passo apressado. - Mas temos uma tarefa a cumprir e não podemos parar enquanto não a acabarmos.

- O que acha, minha senhora -, perguntou o cocheiro. Devo regressar esta noite?

- Sim, é melhor regressares ainda esta noite.

- Está certo, minha senhora.

- E leva esta contigo - acrescentou a Rapariga, apontando com um gesto a outra.

- Mas eu não posso voltar, Mar Nganten - disse Mardinah.

- Recebi ordens para a acompanhar, por isso é o que tenho de fazer.

- Ouve o que te digo - avisou a Rapariga. - O meu marido, o Bendoro, não está aqui comigo, portanto agora eu é que sou a tua patroa. Disse-te para voltares para a cidade. Se não queres, isso é contigo, mas terás de ficar cá a dormir esta noite. A escolha é tua, és tu quem tem de decidir.

- Desculpe, Mar Nganten, mas ficar aqui esta noite, para mim é...

A Rapariga atalhou logo as lamúrias, interrompendo-a:

- Não te aflijas, com certeza que tomaremos conta de ti. E continuaram a caminhar. Lá longe, à distância, entreviram, bruxuleante, a luz de lanternas. De súbito, um vento forte começou de novo a soprar. Mardinah aproximou-se mais da Rapariga e tentou dar-lhe a mão.

- Mar Nganten... - implorou ela; mas a Rapariga continuou a caminhar, sem se deixar impressionar.

O cocheiro voltou a cabeça para trás, dizendo:

- Aquelas casas ali adiante são de dois dos homens que nos estão a ajudar, minha senhora.

As casas eram as que estavam mais afastadas da praia, as últimas casas da aldeia. A Rapariga lembrava-se que os seus donos nunca tinham conseguido possuir os seus próprios barcos. Suli e Kardi - sim, eram estes os nomes deles tinham sido sempre obrigados a agarrar qualquer tipo de trabalho que lhes aparecesse. Nunca falara com eles, mas sabia que tinham ambos muitos filhos. Os mais novos passavam o dia ajudando as mães a procurar lenha e brincando na praia.

Suli, Kardi e os dois homens tinham parado em frente das casas, esperando por eles.

- Para onde vamos agora, minha senhora? - quis saber o cocheiro.

Quando a Rapariga deu um passo em frente e a luz da lanterna incidiu no seu rosto, os homens puseram-se a observá-la atentamente e depois entreolharam-se. Não tinham palavras, mas os seus olhos exprimiam o que a boca não conseguia dizer.

- Pa Suli, Pa Kardi, não se lembram de mim? - perguntou-lhes logo a Rapariga.

- Parece-me familiar, minha senhora - arriscou Suli.

- "Minha senhora"1 Por que é que me estás a tratar assim? Eu sou daqui!

- Com certeza, minha senhora.

- Minha senhora? - perguntou de novo a Rapariga.

- Avia-te, Suli - interpôs o seu amigo Kardi - Vamos andando.

Enquanto falavam, as esposas dos dois homens e os respectivos filhos saíram das casas e juntaram-se-lhes. Uma das crianças apontou para a Rapariga e ia dizer qualquer coisa, mas a mãe dela afastou-a imediatamente e mandou-a ir para dentro de casa, não antes que a miúda gritasse:

- Mãe, esta é a Rapariga de Java!

A mulher empurrou a criança em direcção à porta:

- Chiu, está calada e não digas isso outra vez!

- Por que não? - perguntou a pequena.

A Rapariga deu um passo em frente, aproximando-se da mulher.

- Não faz mal, podes deixá-la ficar. - pegando na criança e colocando-a sobre a anca, a mulher disse. - Estes miúdos nunca aprendem, minha senhora!

- Não me trates por "minha senhora", por favor. - Insistiu

a Rapariga. - O que é isso! Então não me conheces desde pequena?

A mulher tapara a boca da filha com a mão:

- Isso era antes. Agora é diferente, agora já não é a pessoa que era.

- Não digas isso, Ma.

A mulher deitou uma olhadela às coisas que a Rapariga transportava:

- Os meus filhos podem levar a sua bagagem, minha senhora.

A Rapariga sorriu ao ouvir o oferecimento:

- Muito bem, se eles quiserem.

As crianças começaram imediatamente a lutar entre si para ver quem carregava mais embrulhos.

- Está bem, todos podem ajudar! - disse-lhes ela; e virando-se para a mulher, perguntou: - Por que não vens também?

- Eu fico aqui em casa à espera, enquanto os miúdos vão com a senhora.

Todos eles, até os mais pequenitos, queriam ir e, pondo-se logo a caminho, seguiram Suli e de Kardi, que já iam mais à frente. Aquela fila de crianças atrás da Rapariga formava um espectáculo festivo, como um cortejo de casamento.

- Dantes não a tratavam por minha senhora - afirmou uma das crianças com toda a naturalidade.

- É tão bonita - murmurou uma das pequenitas, entusiasmada.

- Ai estas crianças! São todas iguais! - comentou o cocheiro, em tom de brincadeira.

- Vamos cantar! - sugeriu, animada, a Rapariga.

- O que havemos de cantar? - quiseram as crianças saber. A Rapariga lembrou-se de uma canção da sua infância:

- Que tal Sopra o vento, sopra?

As vozes frescas das crianças ressoaram na escuridão e quietude da praia:

Rodando, rodopiando, soprando, vento, soprando; ora descendo e subindo, em torno da montanha indo.

Apressa-te, voa, sai para a floresta vai; As lágrimas saltaram dos olhos da Rapariga, quando pensou no pai lançando a rede na escuridão da noite, o vento agreste uivando à distância, nas suas costas. O céu era de um negrume total e a rede emaranhava-se num ramo de coral. Ele e os irmãos tinham de saltar para dentro da água fria e mergulhar para libertar a rede. Quantas vezes regressara ele a casa, contando essa história?

- Cantem mais alguma coisa - sugeriu o cocheiro. A Rapariga nem o ouviu. Continuava a lembrar-se do pai.

Suli e Kardi iam agora muito à frente deles. De repente, ao longe, surgiu uma fileira de archotes, dirigindo-se para eles. Levadas pelo vento, dançando, voavam fagulhas que os ramos chamejantes das folhas de coco largavam no ar.

- Quem são aqueles, Mar Nganten? - perguntou Mardinah.

- São os meus pais, os meus vizinhos, os meus amigos. As crianças do grupo precipitaram-se para a frente, gritando enquanto corriam:

- É a Rapariga de Java! É a Rapariga de Java!

Os archotes e lanternas multiplicaram-se no escuro, iluminando os rostos luzidios de transpiração da comissão de boas-vindas.

- É a Rapariga de Java! - gritaram outra vez as crianças.

- Estejam calados, meninos! - repreendeu um dos membros do grupo. - Não sejam malcriados!

Aquela voz tirou a Rapariga do estado de melancolia em que por momentos mergulhara. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Jamais tinha sido recebida ou tratada desta maneira. Sentiu-se totalmente uma estranha.

Aproximando-se dela, à distância, viu o pai que caminhava à cabeça do grupo segurando na mão um archote cuja luz, ao incidir no seu tronco nu e musculado, o fazia brilhar.

A Rapariga correu para ele num ímpeto, espalhando a areia do caminho com os pés. No meio de toda aquela gente que a vinha saudar só o via a ele.

- Bapa! Bapa! - gritou, enquanto caía a seus pés, abraçando-os.

O pai ficou de pé, acariciando- lhe o cabelo.

- Estás boa, minha filha? - perguntou ele gentilmente. A comissão de boas-vindas rodeou o pai e a filha. Ao baixarem os braços, os seus archotes iluminaram a cena.

- Bapa, bapa... dá-me a tua bênção.

Ninguém falava; o grupo inteiro permanecia estático.

- Levanta-te, na - disse-lhe o pai.

Ela pôs-se de pé e olhou para os rostos à sua volta. De cada vez que fixava alguém, esse alguém baixava nervosamente a cabeça. A Rapariga estremeceu. Como tinham mudado! pensou. Nunca a tinham tratado assim, nunca! Mudaram - repetia ela para consigo. Agora ainda se sentia mais deslocada e só do que antes, como um macaco numa jaula.

- Vamos para casa, a mãe está a tua espera - disse-lhe o pai.

Fitou o pai bem nos olhos e ele, tal como os outros, também desviou cautelosamente os seus. Sentiu a terra a fugir-lhe debaixo dos pés. A aldeia de pescadores, o seu lar e refúgio último, havia perdido o ar acolhedor, protector. Por detrás dela, a espia do Bendoro colava-se à sua própria sombra, observando cada um dos seus movimentos, e ela não conseguia libertar-se dessa desagradável sensação. Conhecia cada pessoa que a tinha vindo cumprimentar. Todos eram vizinhos. Um deles tinha-lhe puxado uma orelha quando se portara mal; um outro tinha- lhe contado histórias; aquele tinha-a erguido do chão quando caíra de uma árvore abaixo; e aqueloutro ajudara-a a acender o lume na lareira da cozinha. E estas criancinhas, ela própria cuidara delas e trouxera-as ao colo, montadas na anca. Agora, porém, todos estavam a agir de um modo tão estranho, tratando-a de uma maneira tão diferente! De vez em quando ouvia-os a dirigirem-se-he: Bendoro Minha Senhora, Jovem Senhora, Bendoro! Eram como que ferroadas, ecoavam dentro da sua cabeça. E os olhos, respeitosamente baixos de cada vez que olhava na sua direcção, pareciam troçar dela. Hipocrisia... tudo isto não passava de hipocrisia!

Com o pai a guiá-la agora no caminho, à sua frente, a Rapariga caminhava devagar, como que hesitante, atrás dele. Até a escuridão, em que as tochas de folhas de coqueiro derramavam a sua luz, não era a mesma de outrora. E as vagas, com o seu fragor, com as suas cristas de espuma que a luz dos archotes tornava de um branco resplandecente, não eram as mesmas que no decorrer dos séculos lambiam a areia da praia. E as vozes daquela gente, seus antigos vizinhos, por mais baixo que falassem, soavam aos seus ouvidos como que reticentes, relutantes, até trocistas.

Mardinah não tinha proferido uma única palavra. Mesmo o cocheiro parecia hesitar em abrir a boca. As crianças pulavam e corriam à volta da Rapariga, fitando-a como se ela fosse uma sereia acabada de ser apanhada. Pela frente, ou por detrás dela, observavam cada movimento seu e estudavam cada peça de roupa que trazia vestida. Uma, mais atrevida, pegou-lhe na mão esquerda e examinou os anéis. As outras corriam à sua frente, entrando e saindo das casas em tropel.

A Rapariga mal deu pela criança puxando-lhe a mão. Concentrara exclusivamente a sua atenção no caminho que levava a casa, na esperança de ver a mãe aguardando-a à porta de entrada. Mas não havia sinais dela. O coração apertou-se-lhe, receoso.

Todos os adultos, em magote, seguiam agora atrás dela. Só o pai se podia dizer que caminhava ao seu lado, apesar de, mesmo ele, ir um passo ou dois atrás dela.

Voltou-se na sua direcção:

- O que estás aí a fazer, pai? Por que não caminhas ao meu lado?

Ele tossiu, à guisa de resposta.

- Onde está a ema?

- Onde haveria de estar aqui uma mulher - retorquiu ele

- a não ser na cozinha?

A Rapariga gritou:

- Ema! - e correu para dentro de casa, com as sandálias a bater com tanta força que uma delas se soltou do pé e voou atrás dela.

Já dentro de casa, tornou a chamar:

- mak, ma! Ma, mak! Ninguém lhe respondeu. As chamas da lareira lambiam o fundo de um grande caldeirão que só era usado por altura das festas da aldeia. Ficou de pé em frente do lume, escutando; e ouviu então um som - o vento vindo do mar - e depois, outro, muito suave - o de uma mulher cantarolando.

- Ma! - gritou ela de novo, ao ver a mãe ajoelhada no canto da cozinha - Ma, ó Ma!

Mas a mãe continuava a não lhe falar. Só conseguiu responder à filha com soluços. Esta, por sua vez, caiu de joelhos ao seu lado e rompeu também em pranto.

Enquanto assim estavam, abraçadas uma à outra, entraram em casa os outros aldeões mas, ao depararem com aquele quadro, não se aproximaram. O pai da Rapariga voltou as costas e saiu de casa a correr, mergulhando na escuridão da praia.

- Estás boa, na? - conseguiu a mãe por fim perguntar.

- Dá-me a tua bênção, ema - suplicou a rapariga, tal como fizera com o pai.

-Já não te via há tanto tempo! - murmurou a mãe por entre suspiros.

- A mãe e o pai nunca me pediram para vir a casa.

A mãe da Rapariga abanou tristemente a cabeça:

- Como poderíamos? Tu és a esposa de um Bendoro.

- Perdoa-me mãe, por favor! - implorou a Rapariga.

Um a um, os aldeões mais velhos foram saindo de casa, seguindo o exemplo do pai e deixando apenas as crianças como testemunhas da cena da mãe e da filha no canto da cabana do pescador.

A Rapariga, encostada ao peito da mãe, perguntou:

- Por que estás a chorar, mãe? - esta respondeu com uma pergunta um pouco vaga. - Não posso chorar pela minha própria filha, ainda que ela esteja casada com um nobre?

- Não estás contente por me ver, ma?

A mãe soluçava.

As mulheres da aldeia começaram a entrar em casa, mas pararam por trás do grupo de crianças.

- Mas por que estás aqui? - balbuciou a mãe. - O Bendoro não aceitou os teus serviços?

- Fiz tudo o que o pai e a mãe queriam que eu fizesse, da melhor maneira que fui capaz - garantiu a Rapariga.

- Não foram o teu pai e a tua mãe que quiseram, na. Foi por vontade de Deus.

A voz da Rapariga estava já mais serena quando perguntou:

- Estás bem, ma?

A mãe suspirou:

- Estou sempre a pensar em ti... - depois, olhando para a filha - Por que voltaste para casa?

A Rapariga esboçou um leve sorriso.

- Ainda sou tua filha, ma.

- O Bendoro está zangado contigo?

- Não.

- Não te mandou de volta para nós?

- Não.

- Queres dizer que vieste por teu moto próprio?

- Sim.

- Com a permissão do teu marido?

- Com certeza, ma.

A mãe da Rapariga enxugou as lágrimas e erguendo-se, contemplou a filha dizendo:

- Estás tão bonita!

- Parece um anjo - afirmou uma das vizinhas que entre tanto se tinha aproximado.

A Rapariga, sem se mover do lugar onde estava, olhou em volta. Apercebia-se de que as mulheres estavam a fazer os possíveis por tentar imitar as maneiras da cidade, mas isso só contribuía para que se distanciassem ainda mais dela, para a isolarem tal como fariam se ela tivesse lepra.

Sempre que olhava para elas, sorriam e inclinavam a cabeça, as mãos caídas ao longo do corpo, aquelas mesmas mãos habituadas a moer os duros grãos de milho, as mesmas que manejavam destramente um machado ou lançavam um toro de lenha na lareira da cozinha.

A Rapariga respirou fundo e depois tentou aligeirar o ambiente:

- Bem, toca a cozinhar!

Em silêncio, as mulheres reuniram-se na cozinha, até que uma das mulheres mais velhas gritou:

- Ora bem, então para onde foram os homens? Rodem para aqui os pipos e mãos ao trabalho!

As crianças soltaram gritos de alegria.

Enquanto o Diabo esfrega um olho, o saco de arroz que a Rapariga tinha trazido foi aberto, bem como as garrafas de molho de soja e uutras provisões. Os presentes foram postos à vista de todos sobre o estrado- cama, para os poderem admirar. Os homens da aldeia reuniram-se em volta, para ver. A Rapariga pegou em dois sarongr axadrezados que estavam em exibição e estendeu um ao ancião mais velho e outro ao chefe da aldeia, que apalpou tecidu com a mão, olhando em volta para os uutros homens:

- Quanto a vocês - gritou - o vosso presente é uma boa refeição!

- Há arroz mais do que suficiente para todos - acrescentou a Rapariga.

- Obrigado, Bendoro Putri - agradeceu um dos homens em nome de todos.

- Minha senhora! - ironizou a Rapariga. - A única senhora que aqui está é aquela ali - acrescentou, apontando para Mardinah.

Só então é que a atenção dos aldeões se voltou para Mardinah, para a rapariga da cidade, de rosto redondo e boca de lábios rosados.

Pela noite fora, a aldeia esteve banhada pela luz dos archotes. Dentro da casa da Rapariga, as mulheres repetiam-lhe vezes sem conta que não precisavam da sua ajuda. Lá fora, os homens cantavam e até mesmo quando raiou a madrugada nenhum deles partiu para o mar. O cocheiro também se lhes juntou, esquecendo-se completamente do seu cavalo Gomba, amarrado e sozinho, ao fundo do carreiro.

Na aldeia, tamanha festa e alegria só reinava uma vez por ano, no dia da Chegada do Peregrino, o décimo dia do duodécimo mês do calendário muçulmano, quando as famílias dos pescadores se reuniam na praia para oferecer pacotes de arroz cozinhado em folhas tenras de coco aos deuses do mar, pedindo que lhes concedessem a sua bênção e que não perturbassem os seus trabalhos.

Todos os aldeões se sentiam orgulhosos por uma rapariga da sua aldeia se ter tornado um membro da nobreza e viver agora na cidade. E também estavam orgulhosos por Mardinah, de linhagem nobre, ter vindo de visita à aldeia.

Dul, o contador de histórias, cantou enquanto os outros andavam num alvoroço em torno da Rapariga. De pandeireta na mão, contou a história do Governador-Geral Daerldels que tinha construído a grande estrada do sul através do distrito deles.

Os deuses no céu não eram tão mesquinhos pois qualquer desafio significava morte, regentes, inspectores, nobres, era o mesmo, todos se tornaram seus escravos.

Doflanco esquerdo pendia-lhe uma brilhante espada mas a sua era mais ainda afiada, como o relâmpago lá longe no mar, uma respiração por cada milha e nada mais.

Todos os que ouviam a sua voz tremiam montanhas, rios e pantanais eram por ele derrubados a estrada seguia a costa, perfeitamente paralela, todos os chefes de aldeia se curvavam perante ele.

- Esse Daendels era de força! - comentou um dos aldeões. - Se tivesse havido mais uns quatro como ele, não existiria hoje um javanês para amostra.

E quando a estrada ficou pronta, belas carruagens atruavam todos os dias transportando os senhores e as damas, o governador geral e seus ajudantes.

- Canta outra coisa! - pediu outro.

- Sim, outra canção! - secundou-o um outro. - Conta- nos a história da Rapariga de Java.

O cantor de histórias interrompeu-se por momentos. Inspirou profundamente e exalou o ar. Bebeu um gole de café e em seguida começou uma nova história: "O mar estava calmo e o vento sereno... "

- Vão buscar a Bendoro Putri - alvitrou alguém. - Ela também devia gostar de ouvir essa.

- Canta mais alto - sugeriu outro.

O cantor começou a cantar mais alto, com a pandeireta a acompanhar a música:

O mar estava calmo e o vento sereno

- Bendoro putri, vem cá para fora! - chamou alguém. Vem ouvir isto.

O cantor de histórias bateu no tamborim ainda com mais entusiasmo.

A mais bela rapariga da aldeia de pescadores

O sonho de todos os homens.

Ela encontrou o seu amor, mas nunca esqueceu os parentes e amigos,

Tal era a bondade da Rapariga de Java.

Os címbalos da pandeireta ressoavam, à medida que o entusiasmo do cantor aumentava. Com o bater das ondas cada vez mais próximo e a noite mais adiantada, a sua história ia adquirindo cada vez mais vivacidade.

O entusiasmo e a alegria dos festejos atingiram o auge quando foi servida a refeição, verdadeiro festim para os aldeões, que era composta por pratos especiais bem condimentados com as especiarias que a Rapariga trouxera da cidade. Alguns dos homens, embriagados com o vinho de palma, jaziam espalhados pela areia, sob as árvores. Havia por todo o lado embalagens de bambu vazias.

Depois de os aldeões terem comido até se fartar, a animação da festa começou a acalmar e a luz dos archotes a esmorecer, até se extinguir. As crianças, exaustas, dormiam pelo chão. Por fim, toda a aldeia adormeceu. Até os vigias, naquela noite, se esqueceram das suas obrigações.

Dentro de casa, Mardinah aproximou-se da Rapariga:

- Mlar Mganten, onde vou dormir?

- Podes dormir comigo - respondeu ela.

- Não há um quarto?

- Não. Podes deitar-te aí, como os outros.

- Mar Nganten... - murmurou de novo. - Mas a Rapariga tinha adormecido.

Ao amanhecer, sem que ninguém desse por isso, o Sol foi subindo no céu. Só quando uma das crianças começou a gritar - uma galinha estava a debicar numa das suas muitas feridas cobertas por crostas - é que as restantes pessoas dentro de casa foram aos poucos abrindo os olhos, bocejando e pigarreando, indo depois lá fora procurar algum lugar escondido para se aliviarem. A maré estava baixa, bem afastada da praia, e os barcos que haviam sido aparelhados para saírem de manhã descansavam, pousados na areia. As crianças começaram logo a lutar na cozinha por alguns pedaços que tinham sobrado do festim nocturno. Parecia que, de um momento para o outro, a aldeia voltara à vida. Sentada no lugar em que dormira, Mardinah perguntou em voz baixa à Rapariga:

- Onde é que posso lavar-me, Mar Nganten? Esta fitou-a espantada.

- Numa bacia, onde é que havia de ser?

- Mas a água é salobra. Vai ser difícil conseguir retirar o sabão!

- Então não uses sabão.

- Mas depois da viagem de ontem? E sem me ter lavado a noite passada? - Mardinah não sabia que fazer.

- Aqui somos todos uns pobres aldeões - lembrou-lhe a Rapariga. - Às vezes não temos água potável e vemo-nos obrigados a lavar-nos com água do mar ou então com o nosso próprio suor.

Mardinah não sabia se a Rapariga estava ou não a falar a sério.

- Basta uma semana aqui para me transformar num peixe seco! - exclamou.

- Cocheiro! Cocheiro! - chamou a Rapariga, não fazendo caso das lamúrias de Mardinah.

Ainda a embrulhar o sarong em volta da cintura, o cocheiro apareceu a correr. Falou ele primeiro, sem dar à Rapariga oportunidade de o fazer:

- Não vai acreditar, Bendoro. Na noite passada, esqueci-me completamente do meu cavalo!

- Não te preocupes - respondeu ela - tenho a certeza de que ninguém o roubou.

- Pode ser que não - contrapôs o cocheiro - mas se alguma cobra o picou numa perna?

- Bem, então só te resta fazeres-te marinheiro - disse-lhe, sorrindo, a Rapariga.

- Não, Bendoro, não há nada melhor do que ter um cavalo. Como alimento, basta-lhe um bocado de aveia e erva, mas a mim, à minha mulher e aos meus filhos dá-nos tudo aquilo que necessitamos. Melhor ainda, não tenho de ir à procura dele, como vocês têm de fazer com os peixes!

- Lembraste-te do teu tabaco?

- Sim, Bendoro na verdade atê o usei como almofada na noite passada. O aroma era delicioso.

- Agora que jà acordaste, podes preparar-te para levar esta Bendoro Putri de volta à cidade.

- Sim, senhora.

- Mar Nganten, também tem de regressar comigo - interrompeu Mardinah.

A Rapariga fitou-a com olhar penetrante:

- Desde quando é que tens o direito de me dizer o que devo fazer? - voltou-se de novo para o cocheiro, dizendo:

- Faz o que tens a fazer. Agora!

- Onde vou lavar-me? - murmurou ele.

- Acho que tens de perguntar ao teu cavalo – replicou ela.

E assim, Mardinah regressou à cidade nessa mesma manhã, mas a sua partida não produziu na Rapariga o alívio que esperava. Os aldeões continuavam a lançar-lhe olhares cobiçosos e a portar-se de um modo que ela considerava fingido e muitíssimo desagradável, e que a deixava perplexa. Mas eram os pais quem mais a afligia. Estavam a agir de um modo tão distante que a faziam sentir como se fosse um atol de coral, separado da terra-mãe, apenas com o mar solitário a rodeá-lo.

Quando entrava em casa não era a mãe, sempre amorosa e protectora, que aí encontrava, mas sim uma vizinha ansiosa por lhe agradar. E o pai parecia relutante, quase com medo de entrar, a não ser quando ela não estava. Chamou por ele várias vezes nessa manhã, pedindo-lhe que viesse para dentro, mas ele não tinha passado além da soleira da porta. Olhara daí para ela e fizera uma vénia, indo-se outra vez embora.

Ninguém a deixava trabalhar. Observavam-na atentamente, seguindo todos os seus movimentos. A infância passada em sua casa já não constituía para ela um refúgio.

- Pai - chamou mais uma vez, e ele, tal como já várias vezes fizera; apareceu de novo à porta. - Por que é que não entras, pai? - perguntou-lhe.

- Prefiro estar aqui, está muito calor dentro de casa.

- Não é por isso. É porque eu estou aqui que não entras, não é assim?

- Não, claro que não é por isso. Queres mais alguma coisa de mim?

- Que venhas para dentro.

- Está muito calor.

-Já nem sequer me tratas pelo meu nome!

Ele abanou a cabeça.

- Isso não seria correcto - não para com uma pessoa do teu nível.

- Por favor, vem para dentro.

- Prefiro ficar aqui.

A Rapariga aproximou-se do pai, mas ele voltou-se e foi lá para fora, pondo-se a olhar para o mar.

- Gostava que as coisas voltassem a ser como eram disse a Rapariga, falando para o pai, que continuava de costas voltadas para ela -, quando as pessoas não passavam o tempo a olhar para mim.

- Ninguém te está a observar.

- Vamos dar um passeio, pai. Gostava de ver outra vez a praia.

- Não há nada que ver na praia.

- Parti daqui há dois anos, pai. Quero sentir a areia quente e húmida debaixo dos pés.

- É melhor deixares-te ficar em casa - aconselhou ele -, ainda estás cansada da viagem.

A Rapariga saiu de casa e encaminhou-se devagar para a praia. Foi logo rodeada por um bando de crianças saltando ruidosamente à sua volta. Elas, pelo menos, não tinham mudado: tinham o mesmo aspecto e cheiro de sempre, enxameando a areia, como um bando de soldados indisciplinados.

Os vizinhos saíram das suas casas para a seguirem com os olhos. Como o pai caminhava atrás dela, à distância de alguns passos, a Rapariga perguntou-lhe:

- Por que é que caminhas sempre atrás de mim, pai?

Não continuas a ser o meu pai?

O bando de crianças corria e gritava pela praia, brincando. A Rapariga, de olhos postos na linha da costa, não lhes deu atenção, esqueceu-se da sua presença.

- Gostava de tomar banho no mar - disse ao pai.

- Há demasiadas algas. De qualquer modo, não seria conveniente.

- Pois não. Mas mesmo assim apetecia-me.

- Não podes.

- Eu sei. - E a voz da Rapariga era triste.

- Olhem lá, vocês, miúdos! O que estão a fazer, todos aí às voltas? Parecem isco a contorcer-se dentro da panela. Já daqui para fora! - gritou-lhes o homem, fulminando o mais velho com os olhos.

As crianças afastaram-se logo, ficando a observar prudentemente à distância a Rapariga e o pai, enquanto estes continuavam o seu passeio pela praia.

- Tudo mudou, agora que estou casada. A aldeia continua a mesma, as pessoas é que não.

- Estamos mais velhos.

- Olha - disse a Rapariga, apontando para o mar -, o mar não mudou. - A aldeia também não, ninguém substituiu o colmo dos telhados nem plantou coqueiros novos. Morreu alguém enquanto estive fora?

- Não.

- Há mais crianças e as que havia cresceram.

O pai da Rapariga pigarreou.

- Há muito poucas mudanças - comentou a Rapariga.

- Quase nenhumas - concordou o pai.

- Mas as pessoas mudaram, isso é um facto, pelo menos em relação a mim. Mesmo tu, pai. É como se estivessem a apontar-me com o dedo e a dizer que me vá embora, que volte já para a cidade.

- Isso não é verdade - retorquiu o pai, quase a gritar. Não é nada assim.

- Desde que cheguei, ninguém saiu para o mar.

- Estiveste afastada daqui dois anos - observou ele -, sem uma palavra, sem dizeres o que era feito de ti. Achas mal que eles se regozijem por teres voltado e queiram ficar

aqui comigo, partilhando a minha felicidade?

- Dois anos e tal... Mas não me pareces feliz, pai!

-Já estou velho para me pôr aí aos saltos como se fosse uma criança.

- Também não estava à espera que o fizesses. - a Rapariga apontou para o mar. - Aquele barco, ali adiante, pai. Não parece ser um dos da nossa aldeia.

O pai olhou naquela direcção e abanou a cabeça.

- Trouxe fio para as redes - disse ela ao pai.

- É um bom presente da cidade.

- E também trouxe contas para rezar.

- Contas para rezar?

- Do Bendoro, mandou-as para ti. São pretas, contas de madeira dura. De Meca.

- Que vou eu fazer com contas para rezar?

- E o Bendoro também te manda cumprimentos. Disse que se não houver na aldeia uma casa de oração, uma mesquita, pagaria a construção de uma.

- Muito nobre da parte dele - comentou o pai.

- Mas as pessoas daqui não têm tempo para essas coisas - apressou-se a acrescentar a Rapariga. - Andam sempre atarefadas, a sair para o mar e a tentar apanhar peixe.

- Não faças troça de mim.

- Não era essa a minha intenção. Todos sabemos quanto a vida aqui é dura. Quando mal se tem força para deitar o milho no prato, não se vai arranjar tempo para construir casas de oração ou para estudar o Corão.

- Lembras-te do que disse o ancião na noite passada? A Rapariga abanou a cabeça, numa negativa.

- Que disse ele?

- Que nós aqui não temos grandes oportunidades, por muito que nos esforcemos. Nem dinheiro, nem céu, nem sequer o suficiente para sobreviver. E tudo o que podemos esperar depois da morte é o inferno.

- É essa a vida do pescador.

- Quando Dul ontem à noite começou a sua história prosseguiu o pai -, disse que se o ancião pensa que vai para o inferno, então nós todos iremos também com ele. Afinal de contas, ele é o homem mais sábio da aldeia.

- O Bendoro disse que mandaria um professor de religião. - Como é que conseguiríamos pagar-lhe?

- O Bendoro pagaria, em nome da aldeia.

- Suponho que isso faria com que se tornasse mais fácil apanhar peixe.

- Quem sabe, talvez.

- Acho que podemos pedir a opinião do ancião sobre este assunto. É o único que tem respostas para as nossas dúvidas. É o homem mais sábio da aldeia.

- O Bendoro também disse para reconstruir a nossa casa com madeira. Tenho comigo o dinheiro que ele me deu para esse fim - acrescentou a Rapariga.

- O que vai o dinheiro adiantar na aldeia? - perguntou o pai. - Aqui não podemos comprar nada. Além disso, a nossa casa é igual à de todos os outros. Não vamos ser diferentes deles.

- Então podias aplicá-lo, comprando um barco novo.

- Nós próprios fazemos os nossos barcos, como sempre o fizemos.

- Então que devo dizer ao Bendoro?

- O mar ainda tem riquezas; dá-nos tudo o que poderíamos pedir, até o supérfluo, como, por exemplo, pérolas.

- Nunca te ouvi falar de pérolas, papá, é a primeira vez que te referes a elas.

- Por que havia de falar? Não tornam o nosso trabalho mais apreciado.

- O Bendoro comprou-me um conjunto de brincos de pérolas e um colar!

- As pérolas são valiosas, mesmo que o nosso trabalho o não seja. Só os eleitos as podem usar, não os que mergulham em busca delas.

- Não queres tratar-me pelo meu nome, papá?

- Basta que eu o diga para mim próprio.

- Ó papá, é como se eu já não pertencesse a esta aldeia!

- Deixa-me contar-te uma história. Olha para a costa, para norte e para sul e repara que já quase não restam mangues, pois foram todos cortados para fazer lenha. Mas não aqui. Este lugar está quase intacto, ainda cheio de árvores novas. Um forasteiro que um dia foi aqui salvo do mar - e que a aldeia tratou até de lhe restituir a saúde e o devolver à cidade - é que disse para as pessoas daqui não destruírem as árvores.

Disse também que quando ficasse rico voltaria. Seriam as árvores que lhe indicariam o local exacto. O forasteiro nunca regressou, mas as árvores continuam de pé, por cortar. Filha, quem bebeu a água salgada dos nossos poços nunca nos pode esquecer. E alguém que aqui tenha nascido, pertencer-lhe-á para sempre.

- Mas repara, papá, que os meus irmãos ainda nem sequer me dirigiram a palavra - insistiu a Rapariga.

- Têm estado ocupados a esculpir uns desenhos no barco.

- Quase sou levada a pensar que disseram aos meus irmãos mais novos para não me falarem!

- Apenas foram ensinados a mostrar respeito para com a irmã mais velha da cidade.

- Ó papá, não me sinto agora diferente daquela que um dia levaste a casa do Bendoro!

O pai, quase sem conseguir controlar o que lhe ia na alma, baixou a cabeça.

- Talvez seja melhor eu voltar para a cidade.

- Deves estar muito desapontada, filha. Esta aldeia é tão pequena e miserável!

- Não é isso que eu estou a dizer, papá. Só quero ser tratada como dantes. Bate-me, se me portar mal, mas não me magoes dessa maneira. O fardo de ter de viver na cidade não é suficientemente pesado? Tu e a mãe quiseram que eu casasse com um nobre e fiz exactamente o que pretendiam de mim. Então por que é que me estão a tratar assim? E por que é que a mamã não quer falar comigo? Que fiz eu de errado?

O pai ergueu os olhos:

- Nunca pensei, filha, que ao casar-te com um nobre te faria sofrer. - Calou-se de repente, incapaz de prosseguir. Respirou fundo, tentando controlar-se, virou-se de costas e só então voltou a dirigir-se à filha, numa voz tão baixa que muitas das palavras foram levadas pelo vento e ela mal conseguiu ouvi-las: - Eu sei, bati muitas vezes nos meus filhos, às vezes assim que me levantava, logo pela manhã...

A Rapariga lançou um olhar ao pai, que caminhava de cabeça baixa e olhos postos na areia.

- Mas para que estou eu a ter pena de mim mesmo? murmurou ele antes de erguer os olhos para a filha. - Quando é que serei brindado com um neto?

- Só Deus é que pode saber, papá.

- Gostava de ter netinhos brincando pela casa.

- E se os tivesses, papá, o que é que desejarias para eles?

- Que vivam na paz e na prosperidade, não como nós.

- Então como quem? Como os nobres?

- Se tiveres um rapaz, ele será um verdadeiro nobre.

- Se dependesse de ti, papá, gostarias de ser um nobre?

- É o que toda a gente deseja.

- Mas se soubesses como eles na realidade vivem...

- Pelo menos não têm de arriscar todos os dias a vida. Pelo menos não andam sempre cobertos de lama e todos sujos...

- Tens umas ideias estranhas, papá.

- Estranhas e que não levam a coisa nenhuma. Vivemos e trabalhamos; é o que todos nós fazemos, até não podermos fazer mais nada, excepto talvez dar conselhos aos outros, como faz o ancião da aldeia.

- Vamos ver os homens a consertar as redes.

- A esta hora, devem estar a descansar, ninguém está a trabalhar.

- Então podíamos ir ver os viveiros dos peixes.

- É longe de mais, ias cansar- te. De qualquer forma, os peixes ainda estão muito pequenos. Só introduzimos as ovas há oito dias.

A Rapariga deu uma risada:

- Têm vendido muitos este ano?

- Tivemos sorte, mesmo muita sorte. À medida que as crianças vão crescendo, conseguem apanhar mais peixinhos pequenos. Só queria que tivesses visto os teus irmãos mais novos; numa semana apanharam mais de mil!

A Rapariga recordou-se de como ela própria, poucos anos atrás, nua como viera ao mundo e munida apenas de uma concha de ostra, esquadrinhava as rochas ao longo da costa, apanhando os vairões - peixinhos pequenos - para dentro de um pequeno balde com água salgada e folhas de mangue.

- Ainda não vi ninguém a fazer pasta de peixe.

- Não há quem a queira. Já quase ninguém vem por aqui à procura dela.

- Na cidade, as pessoas comprám geralmente pasta de peixe e a mais vendida é a que vem de Lasem - observou a Rapariga.

- A culpa não é nossa. Ouvi dizer que os comerciantes levavam a nossa pasta de peixe e depois misturavam-lhe barro antes de a venderem.

- Isso não acontece só com a pasta daqui; na cidade fazem o mesmo.

- Bem, nunca fizemos tal coisa.

- Claro que não, papá. Não somos dessa raça de trapaceiros. Mas ouvi realmente falar de um comerciante da cidade que fazia isso. Esse homem, que se intitula a si mesmo um ahai, - diz que esteve em Meca e tudo - tem três esposas: uma na cidade e duas em diferentes aldeias de pescadores, perto da cidade. Ouvi dizer que era ele quem punha barro na nossa, para a pasta de peixe das aldeias das mulheres dele se vender melhor.

- Não ganhamos muito com a venda dos peixinhos do viveiro...

- Mas ganham o suficiente?

- Bom, ainda não morremos à fome e estamos bem de saúde, em boa forma.

Continuaram o passeio de regresso a casa, mas o pai da Rapariga manteve-se em silêncio, respondendo apenas às perguntas da filha.

- Papá, continuas a não querer chamar-me pelo meu nome?

Apercebia-se de que a sua insistência incomodava o pai, mas ela própria se sentia ferida e desconsolada. A maré descera, afastando-se aos poucos da aldeia. A longa e vasta praia era agora uma planície castanho-clara, vazia, parada, tranquila, que se estendia pelo horizonte, e o mar, uma estreita tira azul, encimada por uma faixa esfumada e branca. Não se avistava sequer um barco, nem a mais leve aragem agitava as ondas. Os troncos de mangue espalhados pela praia eram tão negros e rígidos, tão completamente sem vida, que pareciam destilar um ar de morte. As gaivotas, que habitualmente pairavam no céu como papagaios, tinham desaparecido. E por cima das cabeças só havia brancura, uma brancura de algodão, sem qualquer vestígio de cor.

- A tua mãe está a fazer sata, de frango para o jantar - disse finalmente o pai da Rapariga.

Longe de ficar contente, as palavras do pai tiveram o condão de a fazer sentir vazia por dentro. Nunca em toda a sua vida a mãe fizera satáy para ela. A família possuía apenas algumas galinhas e os ovos eram usados para dar forças ao pai. Quantas teriam de ser sacrificadas para mostrar que ela era diferente de todos os outros aldeões? As pernas tremiam-lhe e o coração batia com força quando entrou de novo em casa. Olhando em volta, verificou que o pai não a seguira e se tinha ido embora.

Papá! Papá! gritou interiormente.

Foi encontrar lá dentro uma quantidade de vizinhas ocupadas a ajudar a sua mãe. Quando a viram, curvaram as cabeças, olhos postos no chão, e afastaram-se para a deixar passar. Foi ter com a mãe, que estava atarefada a preparar o molho de chilli. Quando a viu, interrompeu imediatamente o que estava a fazer, recomendando.

- Não te chegues perto, ainda te sujas!

Suja? De repente a Rapariga lembrou-se do veredicto do Bendoro acerca da gente da aldeia. Eram pessoas sujas, de pouca fé, e por isso é que eram pobres. Mas se todas as pessoas fossem limpas, perguntara ela ingenuamente ao marido, quem se ocuparia então das limpezas?

Sujos! Pobres! Pagãos! Inferno! - Antes de ir viver para a cidade nunca ouvira tais palavras, que, novas para ela, a deixavam perplexa. Como se vai salgar e secar peixe se não se está preparado para primeiro lhe tirar as tripas e lavá-lo? O peixe iria apodrecer e os esforços heróicos do pai e dos irmãos teriam sido em vão. E quanto ao cheiro a peixe das redes e do próprio mar, o que se podia fazer? A água-de- colónia talvez cheirasse bem, mas não ia fazer com que os peixes quisessem vir a nadar até à casa das pessoas!

- Que diferença faz se me sujar?

- As pessoas da cidade não devem sujar-se. Não é o mesmo do que aqui. Portanto, por que não descansas no estrado? Ainda deves estar cansada da viagem. Se quiseres, posso pedir a Mak Pin'5 para te dar uma massagem.

- Uma massagem? Está bem, gostava muito - respondeu a Rapariga; e em vista disso chamaram a mulher.

Pouco depois, chegou a velha massagista, que começou logo a pôr em prática os seus dotes. Era a primeira vez que as costas e os ombros da Rapariga experimentavam a sensação relaxante de uma massagem. Maravilhou-se de como os dedos da mulher eram capazes de aliviar a tensão acumulada nos seus músculos.

- Já fazes isto há muito tempo, Mak Pin?

- Sim.

 

5 Mak Pin: Ma - termo para designar uma mulher mais velha; Pindepincang, aleijado.

 

- Jà viveste na cidade?

- Sim.

- Por que vives aqui?

- Sim.

- Que resposta é essa?

- Sim - repetiu a mulher.

A Rapariga sorriu. Não adiantava tentar fazer conversa com a mulher, já que ela não ouvia nada do que lhe estava a dizer. Nunca a tinha visto antes. Deve ser nova aqui, concluiu a rapariga. Erguendo a cabeça, olhou para a cozinha e perguntou:

- De onde veio Ma Pin?

- Quem sabe? - respondeu uma das mulheres. - Apareceu simplesmente aqui, um dia.

- Onde mora?

- Onde calha - foi a resposta.

A Rapariga tornou a sorrir. Nos dois anos que vivera na cidade passara a achar que toda a gente tinha de ter um lugar seu, um lugar onde ficar. Acostumara-se a pensar que " as pessoas só estavam em segurança se estivessem fechadas dentro de casa, dormindo tranquilamente, com a certeza de que nenhum estranho ousaria perturbá-las. Mas agora, de volta à aldeia, à sua terra natal, começava a redescobrir a maneira de viver do mundo que outrora fora o seu. Sorriu e depois censurou-se interiormente por ser tão esquecida.

Aqui, ninguém fechava as portas à chave, nem durante o dia, nem à noite. As portas, na sua terra, serviam para proteger do vento, não das pessoas. Quer de dia, quer de noite, o estrado-cama na casa de alguém era partilhado por todos, até mesmo por estranhos e por hóspedes, sem se olhar às suas origens. Na cidade, perguntava-se à pessoa com quem se travava conhecimento:

- Como se chama? De que terra é? - e uma quantidade de outras perguntas. Aqui, na aldeia, ninguém estava interessado em saber de onde viera Ma Pin. Ninguém se importava se ela falava ou não. Tivesse ela nascido no inferno, também ninguém se ralaria com isso.

- Então como sabes que o seu nome é Ma Pin?

A mulher que respondera apontou para a mulher:

- Basta olhar para a perna dela.

- O que tem ela?

- Ela é pincang, é aleijada.

- Ah, pois! Páncang! - A Rapariga percebia agora a origem do nome. Deviam ter sido as crianças da aldeia que lho tinham posto. Riu-se, não por causa da impertinência das crianças, mas pelo tom da resposta da mulher, que não fazia distinção entre ela e o resto das outras pessoas da aldeia.

Não era a voz de uma criada dirigindo-se à patroa.

Ma Pin tentou então dizer alguma coisa que, aos ouvidos da Rapariga, não passava de uma série de sons ininteligíveis.

- Que disse ela?

O grupo de mulheres desatou a rir. A Rapariga suspirou.

O riso das pessoas da aldeia, que música para os seus ouvidos! Livre e descontraído, não o riso controlado de uma criada diante do seu Bendoro.

- Esta Ma Pán! Ela disse uma piada - riu-se, deliciada, uma das mulheres.

- O que disse ela?

- Disse que não tinhas um filho.

- O quê?

- E depois perguntou se não desejavas ter um em breve.

Ma Pin emiúu outra série de sons estranhos, semelhantes ao rugido de um animal selvagem esfomeado. As mulheres desataram de novo a rir.

- Digam lá o que é que disse desta vez - ordenou a Rapariga.

Uma das outras mulheres apressou-se a elucidá-la:

- Que tinhas uma cintura muito fina - quero dizer, ancas estreitas - emendou imediatamente a mulher, soltando uma risada aguda.

A Rapariga ergueu a cabeça para ver como é que Mak Pin conseguia exprimir-se. Os estranhos ruídos que lhe saíam da garganta eram, segundo as aparências, acompanhados por gestos extremamente rápidos das suas mãos.

- Que diferença faz que eu tenha ou não uma cintura fina e ancas estreitas?

Nessa altura, uma das mulheres deu um beliscão no rabo de Ma Pin, fazendo-a saltar com um grito e desatar às risadinhas. A mulher que a tinha beliscado tentou falar com Ma Pin por gestos, mas a massagista não parava de rir. A Rapariga olhava para aquilo, sem compreender nada. Então Ma Pin abanou a cabeça e começou a gesticular com as mãos.

A Rapariga continuava sem entender o que ela queria dizer:

- O que está ela a dizer?

- É uma brincalhona! - casquinou uma das mulheres, com um sorriso atrapalhado, enquanto mexia o pote.

- Ela é de mais! - exclamou outra.

- Mas o que é que ela disse, afinal de contas? - quis saber a Rapariga.

A mulher conteve-se um pouco para conseguir falar:

- Bem, disse que se o Bendoro fizesse... se ele fizesse aquilo, percebes, e tu fizesses isto, então isso aconteceria... E não conseguiu terminar.

- Mas diz-me só, de que está ela a falar?

Uma das mulheres, com um gesto da mão, rematou:

- O disparate do costume, é só isso.

A Rapariga sentiu-se imensamente frustrada.

- Não estou a perceber nada!

- O que ela está a dizer - esclareceu-a então a mulher - é que se ele fizesse aquilo... já podias ter tido filhos.

De repente, a Rapariga sentou-se e fitou Ma Pin bem nos olhos, examinando-a atentamente. Perpassou-lhe pelo rosto um súbito lampejo, mostrando que tinha finalmente captado aqueles subentendidos. Olhou em volta para as outras mulheres:

- Ma Pin não consegue mesmo falar? Há bocado disse-me "sim".

- É tudo quanto já lhe ouvimos dizer. Se calhar levou anos a aprender essa palavra, talvez à custa das centenas de vezes que o patrão lhe teria batido na cabeça.

Ma Pin acenou afirmativamente, como que a concordar, e pronunciou claramente:

- Sim!

A Rapariga olhou de novo para Ma Pin, que lhe estava a fazer sinal para se deitar, mas algo a estava a perturbar, embora não soubesse definir o que era, até que fitou mais uma vez Ma Pin nos olhos. De súbito, foi assaltada por uma onda de medo que lhe fez sumir o sangue das faces. Na cozinha, o riso esmoreceu à medida que todos os olhares se fixaram na Rapariga e em Ma Pin.

A Rapariga desceu do estrado, com os olhos ainda pregados em Ma Pin, enquanto começava a recuar devagar, afastando-se da mulher. A atmosfera tinha repentinamente mudado; a tensão invadira todos os cantos da casa.

- Papá! - gritou a Rapariga tão alto quanto podia, com uma expressão de pavor estampada no rosto.

O grito dela atraiu uma quantidade de homens, que entraram correndo pela casa dentro. O pai, que vinha entre eles, foi direito à filha, que estava de costas voltadas para ele. Sem se virar, a Rapariga estendeu um dos braços para trás, até que o pai lhe agarrou na mão. Com o outro braço apontou para Ma Pin, perguntando:

- Quem é ela?

- É Ma Pin. Todos nós a conhecemos - respondeu-lhe o pai, tentando acalmá-la.

- Ela não é Ma Pin - gritou a Rapariga. - É um homem!

- Um homem! - gritaram todos, com a respiração suspensa.

Ma Pin, vendo-se de repente encurralada, olhou em volta, tentando falar com os olhos, mas todos a fitavam, procurando descobrir no seu rosto uma resposta.

O pai da Rapariga agarrou então no braço de Ma Pin, pondo-a a tremer:

- És um homem ou uma mulher? - inquiriu com autoridade - E há quanto tempo aqui estás? - acrescentou. Quanto, quinze dias?

- Como é que ela vai poder responder -, disse alguém num tom mais calmo - se é muda?

- Pode, sim - gritou a Rapariga. - Ela já me respondeu "sim" há bocado.

- Está bem, então diz! - berrou o pai à mulher.

- Ssiiim! - tartamudeou Ma Pin.

- Ela não é muda - declarou o pai da Rapariga à assembleia. - Vamos lá ver, és homem ou mulher? - tornou a exigir que ela respondesse.

Ma Pin tentou gesticular com as mãos mas o pai da Rapariga, com a mão, deu-lhe uma estalada na cara.

- Estás a ouvir-me? Tu não és muda. És um homem ou uma mulher? - bradou ele, ameaçador. - Muito bem, toca a despir!

Vários braços se estenderam para arrancar as roupas a Ma Pin, mas ela, lutando, desenvencilhou-se deles, conseguindo por fim escapar do círculo que se formara em sua volta. Pôs-se a correr da casa para fora, com alguns dos homens no seu encalço.

- Agarrem-na! - gritava o pai da Rapariga; mas Ma Pin tinha já desaparecido da vista deles.

Os restantes homens correram também em sua perseguição.

- Levem uma corda! - gritou um deles. Apenas as mulheres tinham ficado em casa, olhando embasbacadas para a porta aberta.

- Quem havia de dizer! - sussurrou uma mulher idosa.

- Sim, quem é que poderia imaginar? - corroborou outra. Os comentários das mulheres começaram a chover:

- Ainda ontem dormiu em minha casa. Não, ontem não, antes de ontem.

- E antes disso?

- Em minha casa, mas juro que na verdade não fazia ideia.

- E na noite passada? Onde dormiu ela na noite passada?

- perguntou a Rapariga, mas ninguém foi capaz de lhe dar resposta.

- Será que estava na festa?

As mulheres também não sabiam que responder.

- E durante o dia - perguntou a Rapariga -, onde é que ela estava?

- Não a vi, minha senhora.

- Alguém a viu? - Mas as outras mulheres limitaram-se a olhar umas para as outras, sem saber que resposta dar.

- Isto é uma tal surpresa! - desabafou uma por fim. Ninguém fazia a menor ideia.

- Se é na realidade um homem, O que é que pretendia?

- Acho que aquilo que todos os homens pretendem - sugeriu uma delas, em tom de brincadeira; mas a atmosfera manteve-se carregada.

A Rapariga continuou as suas considerações em voz alta, sobre as implicações que a presença de Ma Pin suscitava:

- Portanto, se não era muda...

- Só fingia que era, suponho eu.

- Mas por que haveria de fingir?

Não obtendo resposta, a Rapariga foi até à entrada da porta e olhou para fora, mas não viu nada. As mulheres apressaram-se em juntar-se em torno dela.

- Devia ser um ladrãu ou um pirata - decidiu uma das mulheres.

- Por favor, não digas uma cuisa dessas! - lamuriou outra. Bastou ouvirem a palavra "pirata, para imediatamente as mulheres fecharem a porta, trancando-a.

- O que é que um pirata pretenderia daqui? Não há nada que valha a pena ser roubado.

As mulheres voltaram-se para a Rapariga, estudando-a atentamente, mirando-a da cabeça aos pés e detendo-se de vez em quando nas jóias que ela usava ao pescoço, nas orelhas, nos dedos, no peito, na cintura. Depois, todas inclinaram a cabeça e pousaram os olhos no chão.

Uma das mulheres pegou na mão da Rapariga e apercebeu-se de que ela estava a tremer.

- Tragam alguma coisa para beber, depressa - ordenou imediatamente. - Sente-se, Bendoro putri - aconselhou. - Os homens encarregam-se de tratar do assunto. Não se aflija! Vão apanhá-lo de certeza.

A Rapariga, repentinamente, olhou em volta dela:

- Ema! Onde está a minha mãe?

- Estou aqui - replicou a mãe, mesmo ao pé dela.

- Ele está aqui há quinze dias?

- Não, não há tanto tempo - disse-lhe a mãe.

- Os homens encontraram-no na praia, uma manhã, quando se preparavam para partir para o mar.

- Estava a tremer de frio.

- Levaram-no a casa do chefe e deram-lhe café.

- Adormeceu imediatamente. Toda a gente pensou que não tinha vontade de falar.

- Mas só na manhã seguinte perceberam que era mudo.

- Por que não me lembrei eu? - disse uma das mulheres de repente. - Quando dormiu em minha casa, pôs-se a falar durante o sono. Portanto, não era mudo.

- De que falou? - perguntou a Rapariga.

- Não sei, Bendoro Putri. Falou tão baixo que não percebi o que dizia, mas posso garantir que pronunciou umas palavras.

- Onde estão as suas coisas, tem alguma bagagem?

- Não tem nada, não trouxe absolutamente nada consigo.

- Vamos comer - sugeriu a mãe da Rapariga, tentando desviar a atenção de Ma Pin. Mas ninguém estava com fome.

- Deram por falta de alguma coisa?

- O que há na aldeia para roubar? Só se forem espinhas!

- Lá isso é verdade - assentiu outra mulher. - Há muito que não passa por aqui um ladrão.

- Ora, que temos nós que interesse roubar?

- Não lhes vale a pena vir aqui. As pessoas da cidade é que são ricas. É lá que está o dinheiro.

- Pois é, aqui não há nada de valor.

- Na cidade toda a gente tem ouro e jóias, não é verdade, Bendoro putri?

- Acabem com esses disparates. Vamos mudar de assunto - sentenciou a mãe da Rapariga.

Entretanto, os bocados de sata, de frango tinham ficado esquecidos ao lado do fogão.

Lá para o pôr do Sol, os homens da aldeia regressaram. O pai da Rapariga, e com ele vários outros homens, foi directamente para casa. Tinha no rosto uma expressão de infelicidade quando se aproximou da filha. As outras mulheres reuniram-se imediatamente em volta deles.

A filha olhou o pai bem nos olhos e perguntou-lhe:

- Era um homem ou uma mulher, pai? - Mulher não era de certeza! - respondeu ele.

- Onde está ele agora?

- Não vai voltar, garanto-te.

- Mas onde está ele?

- Não queria confessar. A culpa foi dele.

- Onde está então? - insistiu a Rapariga. Mas o pai fez de conta que não ouviu e esquivou-se à pergunta respondendo:

- Disse que era de Demak.

- De Demak?

- Sim, de Demak, mas quem vai acreditar? Os piratas não vêm do interior. De qualquer modo, Demak está situada nas montanhas. Ele não quis admitir que era um espião, nem dizer quando planeavam invadir a aldeia.

- O que lhe fizeram? Obrigaram-no a partir?

- Despimo-lo e obrigámo-lo a nadar atrás dos nossos barcos.

- Até que distância ele nadou?

- Não muito longe - foi a resposta do pai da Rapariga.

- O quê, algumas mil, ou umas cem braçadas?

- Nem sequer cem. Mergulhou logo, assim que o lançámos pela borda fora.

- O quê, não sabia nadar? Nesse caso não podia ser um pirata - concluiu a Rapariga.

- Fosse o que fosse, não devia estar disfarçado de mulher.

- Isso não foi justo, talvez tivessem sido precipitados, papá. Ele podia estar inocente.

O pai da Rapariga pôs-se a olhar para a praia e a mãe saiu para fora de casa, para defender o marido:

- Então por que fingiu que era mudo?

- E por que se fez passar por mulher? - perguntou uma das mulheres.

Uma outra também se meteu na conversa:

- Mas onde se meteu ele ontem à noite? Ninguém o viu comer. Era certamente um espião dos piratas, mas a viver em terra, é isso.

Uma expressão de fúria passou no rosto do pai. Levantou os olhos para quem acabara de falar e depois tornou a baixar a cabeça, meneando-a de um lado para o outro.

- Então quem era ele e como se chamava? – perguntou a mesma pessoa.

- Ele designou-se a si mesmo como sendo Mardiun. A Rapariga estremeceu e veio-lhe imediatamente à ideia Mardinah. Seria irmão dela? Por que se chamava ele Mardiun? Seria apenas coincidência ambos os nomes começarem por "Mardi"? Tentou lembrar-se e visualizar o rosto do homem com mais nitidez mas não conseguiu; ele estivera sempre de cabeça baixa enquanto ela lhe falou.

- Mardiun... - murmurou. - Alguém se recorda da Bendoro Mardinah?

- Mardinah? - repetiram todos a uma voz.

O pai da Rapariga relanceou o olhar para a esposa e em seguida para as outras mulheres. Parecia que se estava a fazer luz na sua cabeça.

- Sim, havia entre eles uma semelhança.

A Rapariga inquiriu:

- Tinha a cara redonda, esse Mardiun?

- Bastante redonda, quase como Mardina!

- E Mardinah é de Demak... - A Rapariga pôs-se a meditar nisto. Talvez fosse irmão de Mardinah. Ou o pai. Mas o que estaria a fazer ali na aldeia? - O ancião já sabe o que aconteceu?

- Ainda está a dormir.

- Vamos falar com ele. Ele saberá do que se trata, vai compreender.

Quando o ancião chegou, os olhos brilhavam-lhe e não revelava quaisquer vestígios de sono, nem parecia ter acabado de acordar. Todos os olhares se centraram nele. Erguendo a bengala de madeira de mangue, apontou-a à mãe da Rapariga, sibilando numa voz áspera que revelava desapontamento:

- Quantas vezes tenho eu de te repetir? É o ouro. O ouro é a raiz de todo o mal.

O pai tomou a palavra e, colocando-se na defensiva, perguntou:

- Que tem isto a ver com ouro?

- O que tem a ver? Quantas vezes eu já disse que é o ouro que deixa os barcos em terra, enterrados na lama? É o ouro, ouro, ouro! - Os seus olhos saltaram do pai para a filha e para as jóias que ela usava. - É isso o que torna esta jovem diferente de todos nós. Mas aqui, que diferença existe entre nós? Entre tu e eu? Aqui, todos vivemos do mar, é ele quem nos sustenta.

A Rapariga perguntou em voz baixa ao ancião:

- Então não queres que eu esteja aqui?

- Não fui eu quem o disse - respondeu ele de mau modo

- mas tu, tu o disseste. Estas palavras abalaram profundamente a Rapariga. Começava a entender por que razão a atitude das pessoas para com ela tinha mudado. Apercebia-se agora de que, por causa das suas jóias, já não a consideravam como um dos membros da aldeia.

O pai procurou ser mais esclarecido sobre o assunto:

- Então qual é a ligação entre o ouro, a minha filha e Mardiun, que se fez passar por Ma Pin?

Foi com dificuldade que o ancião conteve a sua cólera contra o pai da Rapariga:

- Ainda não percebeste? - berrou. - Responde-me então, se és capaz. Onde vai o lince senão à procura da presa? Iria sorrateiramente para a selva se de antemão não soubesse que a sua presa estava lá, aguardando-o?

- Quem é a presa? - gritou a Rapariga. - Eu? Sou eu, é isso? E quem é o lince?

Dentro de casa ia ficando mais escuro, à medida que mais e mais aldeões se iam juntando em frente da porta aberta, para ver o que se passava lá dentro. As crianças, assus tadas pelo crescendo das vozes dos homens, tinham corrido a agarrar-se às mães, escondendo-se nas suas casas.

- Cala-te! - vociferou o ancião para a Rapariga. Agora era a vez de o pai desta se zangar:

- Olha, ancião! Não te chamámos para te pores a gritar como um macaco enraivecido. Queremos mas é uma explicação para o que aconteceu aqui.

- Como hei-de saber? - disse ele simplesmente.

- Bem, então se não sabes, por que estás a gritar como um possesso?

O velho bateu com a bengala no duro chão térreo. Fazendo um esforço para se acalmar, falou então num tom de voz menos agreste:

- Volto a perguntar quantas vezes já vos disse isto: em terra, é o ouro a raiz de todo o mal; no mar, são as pérolas. Quanto mais ouro vem para a aldeia, mais probabilidades há de sermos saqueados por piratas.

- Mardiun não era um pirata.

- Então era um ladrão - ripostou o ancião.

- Também não temos provas disso.

- Espera e verás. Não há pirata ou ladrão que manobre sozinho. Vais ver se os seus cúmplices não vão aparecer por aí também! Vais ver! - repetiu o velho com firmeza.

- Eu não possuo nenhuma destas jóias, elas não me pertencem - disse a Rapariga em surdina.

- Os piratas não querem saber disso. Querem-nas e farão tudo para as ter, nem que para isso tenham que te cortar a cabeça.

A Rapariga gemeu.

- Isso assusta-te, não é verdade? Tens medo, não é? Não há necessidade de pores a aldeia inteira em perigo, só para acautelar o teu ouro, que de um momento para o outro pode evaporar-se. Vocês são doidos, todos vocês! E a polícia também é a mesma coisa. É paga para defender o ouro dos nobres, dos logistas chineses, dos holandeses e das filhas.

Idiotas! Loucos! Até um búfalo entenderia isso!

- Tu nunca foste à cidade - disse um dos homens mais novos, em tom de acusação.

- E que idade tens tu, meu garotelho? Antes de a tua mãe te assoar o nariz, já eu fazia a viagem de ida e volta a Kedah, Trengganu e Macassar.

- Eras marinheiro? - perguntou alguém.

- Não, não era marinheiro. Era pirata - afirmou o ancião orgulhosamente.

A atitude daquela gente para com o ancião mudou completamente.

- Por que estão vocês surpreendidos? O que há assim de tão estranho nisso? - desfechou ele. - Quando um marinheiro se farta da sua profissão porque não consegue ganhar o suficiente para viver, que outra alternativa se lhe apresenta? Querem discutir comigo por causa disto? - agitou a bengala na direcção deles. - Vocês fazem lá ideia de como eram as coisas naquela época? Os tempos mudaram entretanto, e para melhor.

- Talvez até tenhas chegado a pilhar esta aldeia - alvitrou um dos homens, meio a brincar.

- Este lugar? Olha, garoto, se ainda não sabes, ficas a saber que, uma vez, há uns quarenta anos, o defendi dos piratas. Tu nem sequer eras nascido. Não sabes a ponta de um corno!

- Então o que achas que devemos fazer agora?

- Que fazer? Salvarmo-nos. Assegurarmo-nos de que nada de mal acontece à aldeia. Os mais velhos de entre vocês devem ter ouvido falar da polícia militar holandesa. Bem, já algum dia os viram a chacinar os habitantes de uma aldeia inteira, até os bebés recém-nascidos? Se descobrem como mataram um homem, pensando que era um pirata, quando ele nem sequer sabia nadar, o que lhes vão dizer quando vierem aqui à sua procura? - Nesse momento, o ancião foi acometido de um violento ataque de tosse.

- O homem morreu. E agora, que podemos fazer?

Ele apontou para a Rapariga com a bengala:

- Volta, volta para a cidade!

- Ela só queria ver a familia - esclareceu o pai. - Há dois anos que não nos víamos.

- Lança as jóias no mar!

- Mas elas não são minhas! - protestou a Rapariga.

- Com certeza que não; não tens nada de teu. Pertence tudo ao Bendoro. Portanto, devolve-lhas.

- Não sejas tão duro para com ela - aconselhou um dos aldeões. - Ela é uma das nossas. Veio visitar a sua gente e a sua aldeia. Não me digas que não ficaste contente quando te deu aquele sarong.

O comentário fez o velho calar-se.

- Sendo assim, por que ficaste com ele? - insistiu o mesmo homem.

- Ela deu-mo. Por que não haveria de o aceitar? - tartamudeou ele. - Achas bem que um homem da minha idade morra de frio? É isso que queres?

- Todos nós gostaríamos de ter recebido de presente um bonito sarong, não apenas tu, ancião.

A aldeia de pescadores nunca conhecera tamanho reboliço. Desconfiavam uns dos outros, todos experimentavam ressentimento em relação uns aos outros, sensações novas e até aqui desconhecidas. A paz e a tranquilidade que antes reinavam na aldeia tinham desaparecido.

Nessa noite, nenhum dos homens aparelhou o seu barco para se fazer ao mar. Era uma noite sem Lua, apenas com as estrelas brilhando inexpressivamente no céu. Ú vento tombara.

Na escuridão daquela noite, por entre o uivar dos cães selvagens, os aldeões ouviram Dul, o contador de histórias, cantando para eles uma nova canção. Ú leve rufar do tamborim e o tinir dos seus sinos serviam de acompanhamento ao melancólico canto.

No dia seguinte os homens reuniram-se para debater de novo o problema. Ú que tinham a dizer tinha de ser dito em voz baixa.

- Ninguém vai proferir uma palavra sobre Mardiun!

- A polícia militar não pode descobrir.

- E a polícia civil também não.

- Nem o Bendoro.

- E sobretudo Mardinah! Há nisto qualquer coisa de estranho, deve haver alguma ligação entre eles: ela é de Demak, ele também. E ambos os nomes começam por "Mardi".

Talvez porque o ancião não fora convidado a tomar parte na discussão, os ânimos não estavam tão exaltados como na véspera. Arreliado, o velho foi passear sozinho pela praia,

por entre o mangal.

Deram então pela falta de Dul, que também não comparecera à assembleia. - Chamem-no! - sugeriu alguém. - Temos de estar unidos neste assunto, darmo-nos as mãos, precisamos da opinião de todos.

Quando Dul chegou, trazendo com ele a pandeireta, perguntaram-lhe o que pensava do assunto. Alguém lhe tirou das mãos a pandeireta, colocando-a cuidadosamente no estrado-cama, onde a Rapariga tinha dormido na noite anterior. Dul lançou um olhar para o círculo de homens que o rodeava, de boca aberta, e depois para o instrumento.

- Vamos, diz alguma coisa - incitou-o um dos homens; mas Dul continuou na mesma estranha atitude, de maxilar descaído, boca escancarada e olhos fixos no tamborim.

- O que se passa com ele? - resmungou um deles.

- O que tens tu? - perguntou outro, dirigindo-se directamente a ele.

- Está tão estranho! - comentou outro homem. Mas Dul parecia não ser capaz de dizer ou fazer o que quer que fosse, a não ser olhar fixamente para o instrumento. A língua prendera-se-lhe.

- Dêem-lhe outra vez a pandeireta - sugeriu alguém por fim.

Assim que ela lhe foi entregue, o seu rosto iluminou-se. A Rapariga foi a única pessoa a reparar na transformação que se operou nele. Conhecia-o desde pequena. Toda a gente dizia que era doido e, além da sua alcunha de o Contador de Histórias - porque a única coisa que fazia era contar histórias -, chamavam-lhe muitas vezes Dul, o Porco. Na aldeia, onde toda a gente trabalhava e o termo "preguiçoso" não fazia parte do vocabulário corrente, Dul era considerado preguiçoso, embora, por estranho que pudesse parecer, fosse um homem forte, são e escorreito.

Contava-se que quando era pequeno tinha tanto medo do mar que o pai o deixava andar a vaguear por onde lhe apetecesse. À noite, depois de o Sol se pôr, iam dar com ele a dormir do lado de fora da porta. E, quando o pai se preparava para partir para o mar, abria sempre a porta de casa com muito cuidado, para não o incomodar.

Dul tinha agora trinta anos, ou mais, mas nenhuma mulher o queria para marido. Apesar de não ser mal- parecido, a sua indolência não tinha remédio: - "Eu tomaria para esposa uma velha, se ela me quisesse" - cantava às vezes, no seu musicar habitual. Mas que idosa da aldeia iria casar com semelhante preguiçoso!

Enquanto as pessoas ali reunidas tentavam achar uma solução para a presente situação vivida na aldeia, Dul começou de súbito a cantar, rufando na pandeireta, no meio dos gritos dos outros, mandando que se calasse:

Volta, jovem senhora, é melhor voltar para a cidade onde há tesouros a encontrar, não traga nem ouro nem diamantes pois a aldeia vão querer arrasar e nada mais será como era dantes.

- Digam a esse doido preguiçoso que cale a boca! - gritou um dos homens. - Ponham-lhe uma mordaça!

- Mas nós chamámo-lo para nos ajudar a resolver este problema - lembrou um outro.

- Talvez, mas não para nos contar histórias! – ripostou o primeiro.

- É a única coisa que sabe fazer - continuou o outro - desde que tenha a sua pandeireta nas mãos!

A conversa começou a desviar-se do assunto que ali os reunira.

- Por que é que ele não usa um tambor?

- Só nas casas dos ricos é que há tambores.

- Ele já foi à cidade, não foi?

- Onde há-de ir quando desaparece daqui, senão à cidade?

- Vamos lá, Dul, conta-nos: vais muitas vezes à cidade?

- Nunca ninguém lhe perguntou onde arranjou a pandeireta.

- Basta desta conversa; estamos aqui para tratar de coisas sérias, não para falar dele.

- Então o que há realmente para discutir?

Ninguém respondeu.

De repente, Dul pôs-se outra vez a bater na pandeireta e a cantar de novo a mesma canção.

A Rapariga ergueu por fim a voz para perguntar:

- Por que tenho eu de voltar para a cidade? Nasci aqui.

Os meus pais vivem aqui.

- Não nos venhas cá com sermões - bradou um deles. Guarda os conselhos para ti e vê se vais arranjar um trabalho!

- Como é que ele conseguiria? Nem sequer era capaz de apanhar uma tartaruga, se se dispusesse a isso!

A pandeireta começou imediatamente a ressoar, em resposta ao insulto do homem:

Apanhar tartarugas não é nada de espantar, um homem vaidoso só peixe mastigar não são de admirar,

- Dou-te um pontapé que te desfaço! - vociferou o homem; mas Dul continuou a tocar na pandeireta com tanta força que quase abafou a voz do outro.

- Estás só a fingir que és doido. Isso é porque tens o cérebro igual ao de um peixe-gato.

- Como o do peixe-gato não!

- Então como o do salmonete! - exclamou um deles.

- Talvez mais como o de um camarão! - sugeriu outro.

- Ou antes de uma anchova podre! - troçou ainda um outro.

Com o contador de histórias agora alvo da troça de todos, o ambiente tornou-se muito animado e o riso e a boa disposição eram gerais.

- Sabem o que ele tem dentro da cabeça? Uma alforreca! Ainda não tinha terminado a piada e já o contador de Histórias, por seu turno, estava a ripostar:

Os soldados chegam a correr, com as espingardas a disparar, começam a destruir a aldeia e a tudo, tudo queimar; os brincalhões vão fugir, irão fugir para o mar.

Uma súbita pancada na porta reduziu a assembleia a um silêncio assustado, excepto Dul, que continuou a tocar na pandeireta. O ancião estacara à entrada e todos os olhares estavam postos nele. Com a bengala, apontou para o Contador de Histórias, dizendo, irado:

- Então é assim que se comportam as pessoas que já foram à cidade? És um Contador de histórias doido e ocioso. Nem sequer és capaz de dar valor ao trabalho dos pescadores. Esse teu tamborim não nos fornece a comida. É o peixe que vem do mar que sustenta a gente daqui. Mas tudo o que sabes fazer é troçar de nós, tal e qual um homem da cidade!

- Ele nunca foi à cidade - veio alguém dizer em sua defesa.

- Quem te disse isso? Olhem só para a sua pandeireta. Ele costumava servir-se de uma lata. Onde está ela agora? Vamos, que lhe fizeste, contador de histórias? - repetiu o velho em tom sarcástico.

- Foi a pedir esmola que arranjou esse pandeiro - anunciou o homem que o estava a ouvir. - Na cidade, não podes entrar dentro de uma mesquita sacudindo uma lata, expulsavam-te logo. Mas com uma pandeireta, já pode entrar e sentar-se ao lado do pregador que está no púlpito. Assim é mais fácil pedir esmola. Não passa de um mendigo, e ainda por cima um mendigo ingrato!

- Mas que bela crítica!

- Vai para a cidade vender as tuas cantigas. Nós, aqui, passamos muito bem sem elas.

Mas o povo ficara curioso. A quem se estaria Dul a referir?

- Vá lá, Dul, diz-nos quem é o hipócrita que finge ser piedoso?

As mãos de Dul moveram-se rapidamente sobre a pandeireta, com um ritmo diferente, primeiro tocante, depois irado, agressivo, estridente.

- Parece que enlouqueceu! - comentou alguém.

- Enlouqueceste, Dul? - perguntou outro.

Dul continuou a tocar na pandeireta.

- Se te pões a falar com um louco, em breve ficarás louco como ele.

- Levem-no daqui para fora!

Em resposta a esta ordem, um dos homens desfechou em Dul um pontapé que o estendeu e a pandeireta, saltando-lhe da mão, foi a rolar para longe em direcção à porta. Ele ficou de olhar fixo no instrumento, como que paralisado, e depois arrastou-se até à porta.

- Olhem para ele; está a portar-se de um modo ainda mais estranho do que o habitual.

- Vagabundo preguiçoso! Até prefere que lhe chamem maluco a ter de trabalhar.

- Sabem por que se comporta desta maneira?

- Ouvi dizer que foi amaldiçoado à nascença. Quando a mãe estava grávida dele, arrancou as pernas a um caranguejo vivo. É por isso que não é capaz de servir-se dos braços e das pernas, que não é capaz de trabalhar.

- Quando morrer, para onde pensam que ele irá, para o céu ou para o inferno?

- É difícil dizer. Nunca o ouvi rezar. Tudo o que faz é contar histórias.

- Vamos lá, não viemos aqui para falar dele, pois não? Ficaram de novo silenciosos.

- Na verdade não há nada sobre que falar. Ontem pedimos ao ancião a opinião e ele disparou que nem um foguete, como se tivesse o diabo metido no corpo. Fosse o que fosse que disséssemos, não parava de falar. Irritou toda a gente.

- Então que temos nós agora para debater?

- Escutem!... Canta bem, não canta?

- É verdade, Dul tem talento. Pena é que seja tão preguiçoso.

- Chiu! Ouçam só...

À medida que se fazia silêncio, a canção, entoada numa voz doce e melancólica, foi chegando suavemente até eles.

As ondas quebram na areia brandamente...

- Escutem, agora parece que está com mais juízo; pelo menos, pode seguir-se a história. Talvez esteja a tentar dizer-nos alguma coisa.

- Um doido vai ser sempre doido toda a vida!

- Deixem-no cantar. Digam-lhe para se aproximar.

Um dos homens deitou a cabeça fora da porta e fez sinal a Dul para entrar, mas ele recusou e pôs-se a bater na pandeireta ainda com mais força.

Afortuna dopescador está no mar, na natureza nunca. cerá rico, ouro ou diamantes não deseja; uma colher de arroz é toda a sua riqueza.

Todos olharam furtivamente para a Rapariga, para ver a sua reacção a estas palavras.

- Eu própria tomarei a minha decisão - declarou ela.

À medida que Dul se afastava, o som da pandeireta ia-se desvanecendo, até que por fim deixou de se ouvir.

- Talvez ele tenha ido para a cidade - alvitrou alguém.

- Não podemos deixá-lo ir! - exclamou outro. - Se não o impedirmos, será o nosso fim.

- Acham que era capaz de ir ter com a polícia?

- Não podemos correr o risco de que isso aconteça. Temos de o apanhar.

- Bendoro, pensas que...

- Cala-te! Também eu sou daqui!

- Desculpa, Bendoro Putri.

- Não façam mal a Dul.

- Não, não lhe vai acontecer nada de mal. Só o vamos atar com cordas, Bendoro, para que ele não vá à cidade pôr-se a falar com as autoridades e dar com a língua nos dentes. O dia passou a correr e a noite veio. Antes que os aldeões pudessem digerir tudo quanto se tinha passado nas últimas horas, a aldeia foi posta de novo em alvoroço, desta vez por Mardinah, que regressara, acompanhada por uma escolta de homens. Chegada lá, foi direita a casa da Rapariga e declarou-lhe imediatamente:

-Jovem senhora, o Bendoro ordenou que regressasse a casa nesta mesma noite.

- Tens as suas ordens contigo? - quis saber aquela. Mardinah tirou da blusa um envelope e entregou-lho, enquanto a Rapariga olhava para ela desconfiada. Os seus pais e os irmãos estavam em casa, mas permaneceram de pé, sem convidar a recém-chegada a sentar-se.

- Eu sei que não sabe ler, Mar Mganten -, disse Mardinah.

- Deixe que eu lha leia.

A Rapariga voltou-se para o pai:

- Quem é que sabe ler aqui na aldeia, papá?

- Aqui? Ninguém! - declarou o pai peremptoriamente. Antes que Mardinah pudesse reaver a carta, os aldeões já se tinham reunido do lado de fora da porta.

- Talvez eu consiga - ofereceu-se um deles - mas há muito que não leio nada, que não pouso os olhos numa folha de papel.

- Deixe-me ler eu - insistiu Mardinah; e pegando no envelope, rasgou-o e tirou a carta que estava dentro dele. Diz assim: "Mar mganten, por favor volta para casa".

Dito isto, Mardinah deixou-se ficar de pé em silêncio.

- É tudo? - inquiriu a Rapariga.

- Sim, é tudo - afirmou Mardinah.

- Mas está aí muita coisa escrita.

- Afirmo-lhe que é tudo o que ele diz - insistiu Mardinah. O aldeão que falara antes tornou a repetir:

- Vá lá, deixa-me experimentar a mim.

- Não é necessário - atirou-lhe Mardinah.

- Está bem. Mas se a jovem senhora tem de regressar esta noite à cidade, então iremos com ela.

Mardinah rejeitou imediatamente a ideia:

- Isso é impossível. O Bendoro só enviou duas carruagens.

- Nesse caso, suponho que teremos de ir a pé.

- A pé, a caminhar?

- Ou isso, ou apertarmo-nos todos dentro das carruagens.

- Pensem nos pobres cavalos.

Ninguém respondeu.

- Tenho mesmo de voltar, bapa? - perguntou por fim a Rapariga.

- Se perguntares à tua mãe, tenho a certeza de que ela te dirá que deves ir.

Os quatro acompanhantes de Mardinah, de pé, aguardavam em silêncio. Quando um deles tossiu, todas as cabeças se viraram para ele.

Os aldeões tinham a impressão de ver nos olhos dos homens uma luz estranha que não agoirava nada de bom.

- Dá-me a carta - ordenou o pai da Rapariga a Mardinah, que franziu o sobrolho:

- Para quê, se não sabes ler?

- A carta é para a minha filha, não para ti.

- Sim, dá-lhe a carta - disse em uníssono toda a gente que ali estava.

Sentindo que Mardinah estava a ser ameaçada, os quatro homens que compunham a sua escolta aproximaram-se dela, pondo-se em círculo de modo a poderem protegê-la.

- Não dou - declarou Mardinah, enfiando de novo a carta dentro da blusa.

O pai da Rapariga tornou a falar em tom decidido:

- Então a minha filha não sai daqui. Podes voltar para a cidade sem ela.

- Isso não é possível - contrapôs Mardinah - ela tem de regressar esta noite.

- Não temos provas dessa ordem.

Mardinah bateu no peito:

- Esta carta é a prova.

Um dos homens de Mardinah tomou o seu partido, afirmando:

- Se o Bendoro diz que ela tem de ir, vai mesmo.

- Tu é que podes ir embora - retorquiu-lhe o pai. - Eu próprio a posso levar de volta, esta noite se for preciso.

- Não há lugar para ti na carruagem - declarou outro dos da escolta.

- Também aqui não há lugar para ti - gritou-lhe o pai. Agora põe- te na rua!

- Não, não vás embora. - interveio a mãe.

Subitamente, os gongos de bambu começaram a ressoar em torno da aldeia e num abrir e fechar de olhos todos os homens da aldeia se haviam reunido à volta da casa, tentando abrir caminho. Seguravam nas mãos bas ões, remos, facas de mato e machados. Os que não conseguiram entrar dentro de casa tomaram posições, cercando a cabana.

- A minha filha irá, se for apresentada prova da ordem do Bendoro. Dá-me a carta - repetiu o pai.

- Sim, dá-lha. - repetiu o povo todo em coro. Em face de tantos homens armados, a escolta de Mardinah afastou-se, receosa. Mardinah não teve outro remédio senão entregar a carta ao pai da Rapariga. Este, olhando em torno de si, perguntou:

- Quem foi que disse que sabia ler? Um homem mais velho respondeu:

- Fui eu, mas isso foi há vinte anos.

E o homem, pegando na carta, chegou-a perto da luz do lampião e mirou a folha de papel e as palavras nela escritas.

- O que diz aí? - perguntou alguém, dando assim início a uma onda de comentários:

- Levas um tempo infinito!

- Eu disse que já há vinte anos que não leio uma linha.

-Já sabemos isso. Diz-nos o que está aí escrito.

- Mas isto não está escrito em javanês.

- Então o que é afinal?

- Raios partam se eu sei!

Mardinah atirou uma risada escarninha:

- já a li para vocês mas não acreditam.

- Conta as linhas - pediu o pai.

- Uma, duas, três... vinte - contou o homem.

- Mas tu só leste uma linha - objectou o pai, dirigindo-se a Mardinah. - Por que não leste o resto?

- Por que havia de o fazer? - E apontando para a folha de papel, acrescentou. - Algumas delas são o endereço do

Bendoro e as outras, o de Mar mganten.

- E qual é o nosso endereço?

Nunca antes as duas jovens mulheres - a Rapariga de Java e Mardinah - se tinham fitado com uma tal fúria. Enquanto elas se mediam com o olhar, os acompanhantes de Mardinah, por sua vez, tinham concentrado a sua atenção no pai da Rapariga.

Mardinah não tornou a pedir a carta de volta e tão-pouco se ofereceu para a ler.

A Rapariga apontou um dedo acusador a Mardinah, dizendo:

- Ordeno-te que leias a carta toda.

- Não é preciso. - retorquiu esta - depois, com as mãos, fez o gesto de enxotar toda a gente dali para fora. - Que estão vocês aqui a fazer? Vão-se embora, saiam imediatamente!

Nenhum dos aldeões se moveu.

Ouviu-se então à porta da casa uma grande gritaria.

- O que é isto? O que se passa aqui? - berrava o ancião, avançando pela casa dentro. Olhando em volta, ergueu a bengala na direcção de Mardinah e respectiva comitiva: - Gente da cidade! Onde estiver gente da cidade, é certo e sabido que vem aí sarilho.

Mardinah, virando-se para os seus acompanhantes, fez-lhes sinal que se fossem embora.

- Muito bem, vamos embora - disse ela -, mas voltaremos e traremos a polícia.

- A polícia? - perguntaram todos a uma voz.

- Sim, a polícia! - repetiu Mardinah, ameaçadora. Tenho a certeza de que vão perguntar-vos muitas coisas.

- Ai vão, vão, podem estar certos disso! - acrescentou um dos homens que tinha vindo com ela.

À medida que a tensão se adensava na sala, o pai da Rapariga parecia estar a tentar encontrar uma solução para o impasse em que se encontravam. Murmurou qualquer coisa ao homem que estava ao seu lado e este, levantando-se imediatamente, saiu da casa. Por muito estúpidos que os aldeões possam por vezes parecer, em face de uma emergência são capazes de pensar e de tomar decisões de modo extremamente rápido.

Depois, voltando-se para Mardinah, o pai da Rapariga pediu-lhe:

- Vamos sentar-nos e conversar sobre isto tudo com calma. Não vale a pena zangarmo-nos.

Mardinah, pronta para atacar, retorquiu-lhe, furiosa:

- Não há nada para conversar! A Mar mganten tem de regressar agora mesmo à cidade!

- Com certeza! - concordou o pai. - Ela pode regressar, mas tens de lhe dar o tempo necessário para se preparar para a partida.

A tensão que se fizera sentir na sala foi gradualmente diminuindo de intensidade e, a avaliar pela expressão que se lhes reflectia nos rostos, até os homens da escolta de Mardinah tinham recobrado a sua autoconfiança.

Subitamente, os gongos de alarme da aldeia começaram a ressoar todos ao mesmo tempo. As pessoas olharam umas para as outras, inquietas, fazendo conjecturas sobre o que estaria a acontecer, até que alguém gritou:

- Piratas! Acabaram de desembarcar e vão atacar! Fujam! Ao ouvirem aquela ordem, os aldeões saíram da casa, brandindo as armas de que anteriormente se haviam munido.

- Vêm aí! - gritou outra voz.

Mardinah empalideceu, ao passo que os da sua escolta, atónitos, não sabiam o que fazer.

- Onde nos havemos de esconder? - perguntou ela, numa aflição.

- Segue os outros - ouviu alguém responder-lhe.

- Mas para onde?

- Para defender a aldeia!

- Não, o melhor é voltarmos depressa para a cidade.

- Nas estradas não estarás em segurança.

- Vou buscar as minhas coisas - decidiu a Rapariga.

- Não tardam estão aqui - preveniu o pai.

- Devíamos apagar a vela.

- Espera um pouco - segredou- lhe o pai.

Lá fora ouviu-se um clamor de vozes:

- Apanhámos dois dos espiões deles!

- Tragam-nos cá! - gritou o pai da Rapariga. Os aldeões empurraram para dentro da sala os dois homens. As caras deles estavam feridas e com nódoas negras. Foram arrastados, cambaleantes, para perto da luz.

- Meu Deus! - gritou Mardinah - são os nossos cocheiros!

- Pois são, são mesmo eles! - confirmou um dos da comitiva da mulher.

- São os vossos cocheiros? - inquiriu o pai da Rapariga. - Não são nada! - berrou um dos homens que os tinha trazido. - São espiões dos piratas!

- Não, não somos! - gaguejou um dos cocheiros, tentando defender-se. - Somos apenas cocheiros. Um bando de piratas atacou a nossa carruagem. Conseguimos fugir, mas quando eles viram que as carruagens estavam vazias, levaram-nos os cavalos.

- O que é feito deles?

- Estão mortos - informou-os um dos aldeões. - Demos com eles perto do mato. Partiram-lhes as cabeças e as pernas à machadada.

- E a vocês, que vos aconteceu?

- Seguiram-nos, mas conseguimos chegar aqui primeiro que eles.

- Apaguem a vela! - bradou o pai.

A casa ficou logo mergulhada em trevas.

- Todos lá para fora! - gritou, e todos correram para a rua. Ouvia-se um bebé chorando à distância.

- Estão a aproximar-se! - murmurou alguém. A escuridão parecia adensar-se ainda mais.

- Vamos, temos de sair para o mar - declarou o pai, começando a empurrar toda a gente em direcção à praia. Vamos lá, apressem-se!

No caminho, um dos cocheiros voltou-se para Mardinah, perguntando- lhe:

- Quem nos vai comprar outros cavalos?

- Cala-te - retorquiu ela rispidamente. - Vocês têm muita sorte por não estarem com a garganta cortada a esta hora!

A aldeia inteira abandonara as suas casas e encaminhava-se pela praia em direcção ao estuário onde os pescadores ancoravam os barcos.

- Salvem a Bendoro Putri. Levem-na para o mar!

- Sim, sim, levem-nas a ambas.

- Podem ir num barco só. Os homens da escolta irão em dois outros barcos.

- Está bem. Vamos separar-nos. Não podemos deixar que nos apanhem.

Mardinah continuava assustada.

- Mas não estarão também piratas no mar?

- Será mais fácil fugir-lhes por mar do que por terra. Os pescadores desamarraram os barcos e prepararam-se para receber os passageiros.

- Entrem, depressa!

No meio da escuridão que reinava, apenas se ouvia o cha pinhar de pés andando dentro de água.

- Não tenham medo, gentes da cidade. Não há crocodilos neste rio.

- É verdade - adiantou outro homem. - Aqui não há crocodilos. Eles preferem habitar nos rios mais perto da cidade.

Um dos homens da escolta de Mardinah disse com estranheza:

- Nenhum de vocês parece estar muito assustado.

- Estamos habituados a isto - respondeu o homem. Acontece por aqui pelo menos duas vezes por ano.

- De onde vêm eles?

- Não sei. Da cidade, suponho eu.

- Parem de falar - disse-lhes o pai da Rapariga - e entrem já nos barcos!

Pouco depois, os três barcos avançavam para o mar alto envoltos na escuridão.

Quando o Sol se ergueu, parecia trazer à aldeia um dia igual a tantos outros. Os homens reuniram-se bem cedo

em casa dos pais da Rapariga e puseram-se a conversar sobre o ocorrido nessa noite.

- Então, o que aconteceu? - quis saber um deles.

- Tudo se passou de acordo com o plano.

- É verdade que mataram os dois cavalos?

- Não. Limitámo-nos a levá-los para outro lado.

- Mas os cocheiros disseram que...

- Tivemos que partir os raios das rodas das carruagens.

- Mas os cocheiros afirmaram que os cavalos tinham sido mortos.

- Bom, na verdade batemos-lhes com um bocado de força!

- Onde estão eles agora?

- Levámo-los para o mato e deixámo-los lá.

- E a minha filha, já desembarcou?

-Já, mas ainda a mantemos na praia por mais um bocado.

- O que aconteceu aos quatro homens de Mardinah?

- Todos estavam armados, por isso tivemos de lhes bater no meio do escuro com os remos.

- O que disseram eles?

- Que estava planeado matarem a tua filha no caminho de regresso à cidade.

- E porquê?

- Não sabiam. Tinham vindo aqui para cumprir ordens recebidas de Demak.

- Foi daí que veio Mardiun, não foi?

- Exactamente.

- Suponho que não sabiam nadar...

- Claro que não.

- Lançaram-nos pela borda fora?

- Sim, aos dois.

- E quanto aos homens que seguiam no outro barco?

- Devem ter tido a mesma sorte.

- E Mardinah? Eles disseram se andava à procura de alguém?

- Sim. Andava à procura do irmão.

- Sabiam quem lhes estava a dar ordens em Demak?

- Não.

- As ordens vinham directamente de Mardinah?

- Acho que sim.

- Parece que, além de Mardinah, ninguém sabe de nada.

- Podíamos obrigá-la a confessar. E fazer com que ficasse aqui.

- Ela é terrível. Tal e qual um homem!

- Que faz aqui? E quem estará por detrás de tudo isto?

- Havemos de descobrir.

- É pena que nenhum de nós saiba ler.

- É uma pena danada.

- Talvez Dul saiba. Nunca nos lembrámos de lhe perguntar.

- Será que ainda está amarrado?

- Sim. Está no barracão onde guardamos os apetrechos de pesca.

- Ele não se chegou a encontrar com os cocheiros, pois não?

- Não.

- Desamarrem-no. E tragam-no aqui.

Todos os olhares se pousaram em Dul, o Contador de Histórias, quando ele apareceu com a sua pandeireta na mão. Batendo suavemente na borda do instrumento, Dul relanceou cautelosamente o olhar em torno de si, para ver se percebia o que se estava a passar ou o que lhe iria acontecer.

- Sabes ler? - bradou-lhe o pai da Rapariga. Alarmado, Dul começou a tremer. Bateu na pandeireta e começou a sair-lhe da boca uma torrente de sons desconexos:

Não, não! - É evidente que não sabe!

- Amarrem-no outra vez!

A pandeireta entoou um vigoroso protesto. Como os aldeões lhe deram de novo a oportunidade de falar, Dul começou a cantar em voz firme, acompanhado pelo seu instrumento, agora tocado mais suavemente:

Por onde quer que as pessoas humildes vão aguardam-nas os ladrões

parecem tão inocentes os ladrões e tão fáceis de apanhar, mas...

O ritmo da pandeireta mudou repentinamente.

- Mas o quê? - perguntou alguém.

- Acaba com isso! - gritou um dos assistentes, impaciente.

Os tempos mudaram, quem havia de pensar que com um camaroeiro o peixe vais apanhar? O homem humilde aprendeu a ser um trapaceiro. Quem havia depensar os tempos estão a mudar

- Meu estupor! Nós nunca enganámos ninguém! - exclamou um dos aldeões indignado. - Estás a inventar tretas, meu Contador de Histórias de uma figa! - Mas Dul, sem se deixar intimidar pelo tom zangado do homem, prosseguiu a sua cantilena:

Umpirata que viesse a esta aldeia camarões secos iriapilhar Umpirata que viesse a esta aldeia

moças parvas e sujas iria encontrar

Não temos ouro, nem temos dinheiro nem as alforrecas cá vêmparar disseram-me que...

Os aldeões não o deixaram continuar e expulsaram-no dali para fora, furiosos com as suas insinuações. À medida que ele se afastava, o som da sua pandeireta foi-se aos poucos desvanecendo.

- Nunca o vi cantar de uma maneira tão estranha - comentou por fim um dos presentes.

- O ancião tinha razão. As pessoas da cidade viram tudo de pernas para o ar. Dul está pateta de todo!

- Na cabeça dele alojaram-se doze demónios.

- Diz antes duas dúzias deles!

- Não - comentou o pai da Rapariga. - Ele pode parecer doido, mas não está. De maneira nenhuma. Os olhos brilham-lhe e quase podemos ver a sua mente a funcionar.

- Mas isso parece perigoso. O que havemos de fazer com ele?

- Se fosse contar o que não deve, podia meter-nos a todos numa boa alhada - afirmou o pai. - Amarrem-no e tirem-lhe a pandeireta! Não interessa em que casa o vamos encerrar, contanto que as crianças não se metam com ele.

Um dos aldeões afastou-se logo dali para ir fazer o que o pai da Rapariga determinara.

O ressoar do tamborim já quase não se ouvia, mas o ambiente dentro de casa ainda estava carregado de tensão, muito quente e opressivo.

Lá fora, não mexia uma folha. Era como se nem mesmo o vento quisesse saber deles! Apenas o calor, e o subir e descer do peito daquela gente faziam supor que havia alguma réstia de vida na aldeia.

- E agora, que fazemos? - perguntou alguém.

- Por que não vamos perguntar ao chefe da aldeia?

- Será que há alguma coisa que ele possa acrescentar ao que aqui já foi dito?

- Sim, mas ele não deixa de ser o chefe da aldeia.

- E corre o mesmo perigo que nós.

- O ancião parece ser a única pessoa que não está preocupada.

- Por que haveria de se preocupar? A sua vida está por um fio.

- O diabo do velho só pensa em si próprio.

- Isso não é verdade. Ele sempre tem querido o melhor para todos nós.

- Como é que as coisas se complicaram desta maneira?

- Caluda! Não vale a pena chorar sobre leite derramado. O que está feito, está feito. Temos é de começar a fazer planos para o futuro. Tomara eu estar certo da sorte dos outros dois homens da escolta!

- Tin! Vai ver se consegues saber o que lhes aconteceu. Tin partiu logo e eles ficaram à espera, uma longa espera que parecia eternizar-se, pois Tin nunca mais voltava.

Aqueles últimos dias pareciam intermináveis. Ninguém apanhara um único peixe. Ninguém comia havia quase vinte e quatro horas, nem ninguém quase dormira. A tensão apossara-se deles sem lhes dar tréguas. O querosene acabara e tinham-se visto obrigados a usar em seu lugar óleo de coco, que não dava mais do que uma luz mortiça e bruxuleante.

Por fim, as notícias chegaram. Os dois outros homens da escolta também tinham sido encontrados com armas afiadas e tinham acabado com eles. A Rapariga deJava e Mardinah regressaram, entrando em casa, pálidas e com ar extenuado, acompanhadas por um grupo de aldeões. - Tu não podes de maneira nenhuma regressar, Bendoro Putri Mardinah -, começou a dizer o pai da Rapariga. – Os piratas destruíram as tuas duas carruagens. Estavas a uma grande distância, no mar, para poderes ter ouvido falar disto.

Mardinah replicou distraidamente:

- Não, realmente não ouvimos falar em nada.

- Tens a certeza?

- Sim, tenho a certeza.

- Tenta recordar-te... muitos aldeões foram mortos. Encontrámos os seus corpos na praia, hoje de manhã. Entre eles, encontravam-se também os homens da tua escolta.

A fisionomia de Mardinah alterou-se. Os lábios e as mãos tremeram-lhe e os olhos brilharam com um fulgor sinistro.

- Tinham os corpos todos retalhados de golpes. Os piratas devem tê- los apanhado no mar.

- Têm a certeza de que nenhuma de vocês ouviu nada?

- Eu ouvi um grito - murmurou a Rapariga de Java. Parecia vir de muito longe. E estava muito escuro. Não tínhamos nenhuma lanterna. Perdemos contacto com os outros barcos.

- Tiveram sorte em não ser também atacadas. Os piratas são cruéis e sanguinários. Graças a Deus estás salva, Bendoro Putri. E tu também, Bendoro. Não é verdade, camaradas?

- É mesmo. Graças a Deus que não te aconteceu nada de mal, Bendoro Putri. Estávamos todos muito preocupados contigo.

- Mas agora não podes de maneira nenhuma regressar à cidade.

Entretanto, a mãe e os irmãos da Rapariga entraram em casa.

- Estamos com fome, ema. Não há nada que se coma?

- Como hei-de saber, se acabei agora mesmo de chegar?

- Cozinha alguma coisa.

- Que tal o arroz que eu trouxe da cidade? Teria sobrado algum? - sugeriu a Rapariga.

- Sim, ainda há arroz. Os piratas já se foram embora. Alguma de vocês, mulheres, quer cozinhar?

Embora exaustas, as mulheres começaram a preparar a comida, enquanto Mardinah se atirava para cima do estrado-cama, mergulhando imediatamente no sono e ali ficando, completamente imóvel. Apenas o seu seio se agitava, subindo e descendo compassadamente. A Rapariga deitou-se ao lado dela e em breve adormeceu também. Apesar de fatigados, os homens continuaram a conversar. Era forçoso encontrar, em conjunto, uma linha de acção para seguirem de futuro.

Depois de terem estado um grande bocado a falar em voz baixa, foram-se retirando aos poucos, um por um. O pai foi o último a sair...

Deixaram as duas jovens mulheres dormir até a refeição estar pronta. Tal como toda a gente, comeram devagar e sem revelar grande interesse pelos alimentos que lhes foram apresentados. Quando Mardinah se ia de novo deitar, o pai da Rapariga disse finalmente:

- Terás de ficar aqui, Bendoro. Não temos posses para te alugar uma carruagem. Mas vamos ajudar-te, se em troca estiveres disposta a ajudar-nos. A nossa aldeia é pobre, Bendoro Putri. Quando muito, comemos arroz uma vez por ano. Temos de nos contentar com milho. Não podemos cuidar de ti, nem continuar a sustentar-te. De amanhã em diante, terás de ser tu a prover às tuas próprias necessidades. Talvez consigas pescar, ou sejas capaz de nos ajudar a remendar as redes. Não faço ideia daquilo que tens habilidade para fazer.

- Eu? Trabalhar? Sabes quem eu sou?

- Com certeza, Bendoro Putri. É por isso que te estamos a explicar todas estas coisas. Depois de amanhã, já não te forneceremos nem comida nem cama, nem um tecto que te abrigue. Se quiseres, podes dormir debaixo de uma árvore, Bendoro Putri.

- Cuidaram de mim até agora. Por que é que não podem continuar a fazê-lo?

- Antes, eras nossa hóspede, Bendoro Putri. Mas a partir de agora deixas de sê-lo.

- Não posso... não posso de modo algum trabalhar!

- Então o melhor é ires embora.

- Como, se não tenho carruagem?

- Podes ir a pé.

- Teria medo.

- Nesse caso, tens de ficar aqui.

- Pagarei a alguém que vá comigo.

- Não há ninguém que possa ir contigo, Bendoro Putri. Ver-te-ás obrigada a ir sozinha.

- Morreria de medo. Não sei trabalhar. Pagarei a minha alimentação, alojamento e a água que eu precisar para beber e lavar-me.

- Quanto dinheiro tens tu, Bendoro Putri?

- Não muito... O suficiente para alguns dias... até a carruagem chegar.

- As carruagens não vêm até aqui. A não ser que mandemos vir uma.

- Não podem fazer isso?

- Não. Já lá vão vários dias desde a última vez que fomos à pesca. Estamos muito cansados. Acabámos de passar por um mau bocado.

- Podemos voltar a falar deste assunto amanhã de manhã?

- Lamento, Bendoro Putri. Amanhã de manhã terás de começar a procurar o teu próprio alojamento e comida. É melhor resolvermos isto já.

- Não sejas tão duro comigo - implorou Mardinah.

- Mil perdões. Lamento que tenha de ser assim.

- Pagar-te-ei.

- Ai sim?

- Sim! Quanto queres que te pague?

O pai da Rapariga ergueu os olhos, pôs-se de pé, caminhou até à porta e depois, hesitante, aproximou-se de Mardinah. Por essa altura, a jovem perdera por completo o sono.

- Muito - respondeu ele.

- Um unggit?

O pai deu uma gargalhada.

- Não é suficiente? Três rupias, então?

Ele riu-se de novo.

- Cinco? Seis? Dez?

- Onde arranjaste tanto dinheiro?

A Rapariga sentou-se ao pé deles e meteu-se também na conversa.

- Ela era minha criada, papá.

- Só uma criada? Como é que sendo criada, arranjaste tanto dinheiro, Bendoro Putri?

Mardinah enrolou à volta de si a orla do sarong e depois baixou a cabeça. Erguendo os olhos, fitou a Rapariga de Java:

- Contei-te do meu pai, não contei, Mar mganten?

- Sim, que era escriturário.

- Isso não significa que seja rico.

- O que é que ele possui, Bendoro putri?

- Campos de arroz. Dezenas deles.

- E que mais?

- Uma casa. E várias carruagens.

- Mas tu não tens maneira de ir ter com ele.

- Pagarei aquilo que entenderes.

- Nesse caso, ficarei com os campos de arroz, com a casa e com todas as carruagens do teu pai. Isso deve cobrir a tua alimentação e o alojamento. Está combinado? Vou enviar à cidade o chefe da aldeia. Dá-lhe cinco rupias! Ele irá ver

Os campos, a casa e as carruagens. Falará com os nobres e uma vez que concordem em transferir tudo para nós, então levar-te-emos de volta para a cidade. Está certo?

- Isso é impossível. Não posso dar-te os campos de arroz.

- Mil perdões, Bendoro Putri. Estava só a perguntar. Nesse caso, acho que é melhor procurares já outro lugar para ficar.

Não vale a pena esperar até amanhã de manhã.

Mardinah curvou a cabeça.

- Ouviste o que eu disse?

Ela ergueu-a de novo, pondo-se à escuta. Ouvia-se ao longe o ladrar abafado de cães.

- Vou ter de pedir que te vás embora, Bendoro Putri. Vai, se fazes favor. Já! Hás-de encontrar algum lugar para dormir no meio do mangue.

Os cães uivaram de novo.

Mardinah comprimiu as mãos contra o peito. A cor desaparecera-lhe das faces. À pálida luz da lamparina, deu a impressão que o cabelo dela se pôs em pé.

- Desculpa, Bendoro Putri, se não vais por ti, tenho de te arrastar à força até lá fora.

- Não a magoes, bapa. Por favor, não a magoes!

- Não tenho outra alternativa, na. Quanto dinheiro tens contigo, Bendoro Putri? Diz lá!

Mardinah encolheu-se com medo. Por esta altura, tinham entrado na casa outros aldeões, armados de vários instrumentos. A cena era bastante assustadora.

- Eles vieram para te ajudar a procurar um lugar no meio do mangue para ficares.

- Por favor! Não me obriguem a dormir lá!

- Quanto dinheiro tens contigo?

- Cinquenta rupias.

- Isso é muito dinheiro! Quem to deu?

- O meu pai. Ele é rico.

- Isso é mentira! - gritaram ao mesmo tempo alguns dos aldeões.

Aproximaram-se mais dela. Mardinah cobriu a cara com as mãos e começou a chorar.

- Não vale a pena pores-te a chorar. Lá fora, no mangue, podes chorar à tua vontade.

- Por favor! - gritou ela aterrorizada.

- Quem te deu o dinheiro?

- Por favor não me façam mal.

- Agarrem-na e levem-na para o pântano de mangues perto do mar.

Os aldeões deram mais um passo em direcção a Mardinah.

- Não me façam mal! Eu... Eu...

- De que estão à espera? Levem-na daqui para fora!

- Está bem, camarada!

- Por favor, não me façam mal! - rogou Mardinah, agarrando-se à borda do estrado.

- Não serve de nada implorar! Diz-nos quem te deu o dinheiro!

- Eu digo-vos.

- Diz-nos, mas já!

- Foi o Bendoro de Demak.

- Qual Bendoro? O Patih'6? O Mantrz'? O próprio Kanéng Bupatz'?

- Foi... não, não posso dizer-te.

- Foi o Bendoro quem te mandou aqui?

- Não.

- Então quem foi?

- Ninguém. Vim por mim mesma.

- Por que querias matar a minha filha?

- Eu não queria! Não queria! Não queria!

- Camaradas! Tragam o único sobrevivente da escolta. Aquele a quem o pirata atravessou o ombro com a lança. Fá-lo repetir aquilo que já nos disse antes. Cara-a-cara. Estás preparada, Bendoro Putri?

Mardinah não respondeu.

- Ele afirmou que se tu não confessasses, ele próprio te cortaria o pescoço!

- Atem-lhe os pés, camaradas. Vamos nós cortar-lhe o pescoço. Ninguém sabe que ela está aqui. Nem sequer o Bendoro.

Mardinah rolou o corpo sobre si mesma, comprimiu-se contra o estrado e agarrou-se às bordas com ambas as mãos.

 

' Vice-presidente. Administrador.

 

- Não estejas a perder o teu tempo, Bendoro Putri!

- Não lhe chamem "Bendoro Putri!

- Não percas o teu tempo, Bendoro putri! Se não te soltas daí, cortamos-te as mãos.

Mardinah gritou por socorro.

- É escusado pores-te a gritar, Bendoro Putri. Agora não estás na cidade. E ninguém vem em teu auxílio.

A Rapariga de Java soluçava. Mardinah berrava histericamente.

- Confessa!

- O Bendoro prometeu que eu... eu podia...

Os aldeões escutavam em silêncio. Mardinah continuava a recusar desprender-se do estrado.

- Despacha-te! Se não falas, vou chicotear-te com a cauda de uma raia.

- Que eu podia ser a sua quinta esposa, se...

- Se o quê?

- Se eu... se... eu conseguisse que a jovem princesa...

- Despacha-te!

- Se eu conseguisse torná-la... esposa do Bendoro, casado com a Mar Mganten...

- És pior que um animall!

- Quanto é que ele te ia pagar para se ver livre da minha filha?

- Cem rupias.

- Quantas te restam?

- Trinta e cinco rupias.

- Quanto pagaste aos teus homens?

- Um ringit a cada um.

- E quando o trabalho estivesse terminado, quanto é que lhes ias pagar?

- Por favor! Tem piedade de mim!

- O que vamos nós fazer com esta criatura nojenta?

- Eu sei! Eu sei!

- O que é? Diz-nos, depressa.

- Dá-a a Dul, para ele poder ser um homem da maneira que sempre desejou.

- Boa ideia! Excelente! Sim, sim! - responderam várias vozes em uníssono.

- Dul vai ficar encantado. Que belo prato!

- Ah! Bendoro putri, Bendoro Putri... para onde quer que vás, saberás sempre que foste casada com um estúpido Contador de Histórias.

- Vamos lá a isso, imediatamente! - troçaram os aldeões, todos divertidos com a ideia. A tensão em que se encontrava Mardinah diminuiu um pouco, e ela começou a chorar baixinho.

- Se não podes casar com um Bendoro, vais ter de te governar com um Contador de Histórias maluco. Já alguma vez viste o nosso Dul?

- Podes ouvi-lo à noite: E puseram-se todos outra vez a rir.

Ao ouvi-los, o seu choro tornou-se ainda mais fraco.

- Então não temos que a levar para o mangue? Nenhuma réplica se fez ouvir.

- Dêem-na ao louco. Deixem-no divertir-se por uma noite.

- Bom, Bendoro Putri, o que achas? Preferes dormir no mangue ou ficar com Dul na cabana onde guardamos os apetrechos de pesca? O que decides?

Mardinah tinha parado de chorar e pousara os olhos no chão.

- É uma escolha assim tão difícil de fazer? O que queres fazer?

- Não é uma ideia esplêndida, camaradas?

- Não podia ser melhor!

- Fantástica!

- Incrível!

- Bem, então que dizes Bendoro Putri? Não és virgem, pois não?

- Ela é divorciada - esclareceu a Rapariga.

- Chegou a altura de Dul arranjar uma ocupação. Um trabalho de homem.

- Sim, já é tempo de ele aprender a ser um homem.

E puseram-se todos a rir às bandeiras despregadas.

- Então?

- A nossa Bendoro Putri ainda não se pronunciou sobre o assunto. Mas como quem cala consente...

Os aldeões fitaram a rapariga que estava sentada, muito quieta, no outro extremo do estrado.

- Por que esperam? Levem-na a Dul, o Contador de Histórias.

- É bem fácil arranjar marido numa aldeia de pescadores!

- Vamos, levanta-te, Bendoro Putri. Eles vão levar-te ao teu marido.

Mardinah pôs-se de pé, visivelmente nervosa.

- Sejam educados, camaradas! Escoltem a Bendoro Putri até à barraca dos apetrechos de pesca e certifiquem-se de que chega lá sã e salva.

Mardinah começou a encaminhar-se lentamente em direcção à porta, de cabeça curvada.

A Rapariga de Java foi a correr, estacando na sua frente.

- Não foi ideia minha, Mardinah.

- Sim, Mar Nganten.

- Foste tu própria a causadora de tudo isto.

Mardinah continuou a andar e a Rapariga deixou-a passar.

- Não te importas de ficar com Dul? - perguntou-lhe.

Nervosamente, Mardinah encolheu os ombros e, prosseguindo a sua marcha, saiu lá para fora mergulhando na escuridão, com alguns aldeões à sua frente e outros atrás.

- Timin! - bradou o pai da Rapariga. Aproximou-se um jovem bem constituído. - Quero que esta noite fiques de guarda a Dul e a Mardinah. Não os deixes fugir para a cidade.

Desamarra o Dul; mas mantém-te a uma certa distância.

E não te esqueças de devolver a pandeireta a Dul. - Depois de receber estas ordens, o rapaz partiu imediatamente.

Algures, lá fora, ouvia-se o rapaz a rir.

- Olha que Dul, até hoje, nunca teve uma mulher - gritou um dos homens.

- Toma bem conta dele, Bendoro putri - exclamou outro.

A Rapariga começou a chorar. O pai contemplou-a por breves momentos e depois encaminhou-se para a porta.

A mãe aproximuu-se dela.

- Estás a chorar - disse.

- Tenho pena dela.

- Ninguém quer o Dul. Vai ser bom ter uma mulher que cuide dele.

- Mas nós somos gente de aldeia, ma. Mardinah é da cidade. Nunca iria querer um homem como ele.

- Não é um castigo assim tão duro.

- Não é duro? Casar com um plebeu é a pior coisa que pode acontecer a um nobre, mãe. - A Rapariga recordou os violentos acontecimentos dos últimos dias. - Foram realmente os piratas que mataram os homens da escolta de Mardinah, mãe?

- Pergunta ao teu pai.

- Um deles recebeu uma lançada nas costas? Ou no ombro?

- Vai dormir, filha.

- Ela nunca disse uma palavra sobre Mardiun - acrescentou a Rapariga, surpreendida.

- Mardiun? - a mãe estremeceu. - O Contador de Histórias sabe alguma coisa acerca de Mardiun. - A mulher pôs-se a correr no meio da escuridão, chamando pelo marido.

Já era quase de madrugada. Os galos cantavam ruidusamente, um atrás do outro. A Rapariga escutava as ondas desfazendo-se na areia e correndo ao longo da praia.

- Mais uma noite em que ninguém foi ao mar - murmurou a Rapariga para consigo mesma. - O que está a acontecer a toda a gente?

Estendeu-se no estrado, tentando compreender a sequência dos factos. Suspirou várias vezes e depois adormeceu. Quando os pais voltaram, já ela estava mergulhada nos sonhos.

- Pobre filha!

- Não devias tê-la casado com o Bendoro.

- Chega de me repetires isso!

Marido e mulher estenderam-se por sua vez no estrado. Os irmãos mais velhos da Rapariga tinham saído e os mais novos dormiam aconchegados aos pais. Toda a aldeia estava envolta no orvalho matinal.

Às nove horas, a casa começou de novo a despertar. Os dois cocheiros fizeram uma passagem rápida pela casa, antes de serem levados a casa do chefe da aldeia para comerem

qualquer coisa e contarem a sua versão da história.

Timin regressou, para fazer o relatório das tarefas de que o tinham incumbido na noite anterior. Puxando o pai para um canto da sala, comentou:

- Espantoso! Absolutamente espantoso!

- O quê?

Os olhos de Timin iluminaram-se de orgulho e ao mesmo tempo de espanto:

- Foi absolutamente extraordinário! Dul sorria, ria-se! e nem sequer estava agarrado à sua pandeireta. Estava bem

da cabeça. Até conversava!

- Conversava? De quê?

- Como havia eu de saber?

- E Mardinah, como estava ela?

- Também se ria. E fazia-lhe cócegas debaixo do queixo.

- A malandra! - e o pai da Rapariga cuspiu para a parede de bambu.

- Falaram sobre Mardiun?

- Como podiam fazê-lo? Estavam demasiado ocupados... a travar conhecimento um com o outro.

- Devolveste-lhe a pandeireta?

- Não estava propriamente interessado nela...

- Desamarraste-o?

- Sim. Sentou-se no chão de pernas cruzadas e estivemos os três a conversar. Mardinah não mencionou o irmão. Por fim, arranjei coragem e perguntei a Dul: - Desejas ter esta bela dama da cidade para companheira? Nem todos os aldeões têm tamanha honra!

- Meu malandro! Tu próprio é que a estavas a desejar para ti!

- Não! Estão realmente bem um para o outro. Quando saí da barraca, ficou tudo muito sossegado. Eles...

- Eles o quê?

- Sabes... - replicou Timin, cheio de reticências, piscando o olho.

- Estafermo! Recomendei-te que te certificasses de que eles não fugiriam para a cidade, e não de que te pusesses a espiar as suas brincadeiras.

- Pergunto a mim mesmo qual será o desfecho disto.

- Terão de casar, suponho eu.

- E de que iriam viver? Dul tem medo da água do mar.

- Talvez possamos torná-lo corajoso à força. Onde estão eles agora?

- Passeando pela praia.

- Encantador!

- Nada mau. Não parece que tenha sido realmente um castigo muito terrível.

- Não. Pelo contrário, é uma melhoria notável para ambos.

- Quando vai ser o casamento?

- Vai perguntar-lhes!

Timin correu lá para fora, deliciando-se com o fresco ar da manhã. Os aldeões que estavam por ali conversavam e riam, mencionando de vez em quando o nome de Dul.

- Que dizem a isto? Agora ela é uma das nossas - comentavam, dando grandes risadas.

A Rapariga de Java observava-os com tristeza. Ao ouvi-los conversar, lembrava-se precisamente da situação oposta: uma rapariga, ela própria - uma aldeã - arrastada até à cidade e oferecida a um nobre. Mardinah tinha aceitado a sua sorte com grande tranquilidade. Como era isso possível? Contemplava os homens fazendo galhofa. Também se teriam posto a galhofar quando ela fora levada para a cidade? Sentia uma dor imensa, só de pensar nisso. Erguendo-se, saiu de casa pela porta da cozinha preparando-se para enfrentar o mundo lá fora. Depois foi andando em direcção ao mar. Por causa da maré vazia, a praia era uma vasta faixa de areia clara onde o seu olhar repousava, transmitindo-lhe paz e serenidade.

À distância, via, movendo-se lentamente, dois vultos, como se fossem dois pequenos pontos, para além de um barco azul. A Rapariga reconheceu-os quase instantaneamente: eram Mardinah e Dul, o Contador de Histórias. Encaminhou-se para eles. Divisou perto deles o jovem Timin. Havia dois anos que não andava num passo assim tão rápido. Os seus pés nus enterravam-se, deliciados, na areia quente e húmida.

Quanto mais depressa caminhava, maiores se iam tornando os pontos, até se transformarem em figuras humanas.

O terceiro vulto apanhou os outros dois, seguindo depois juntos em direcção à aldeia.

Encontraram-se finalmente sob o Sol abrasador. A Rapariga pôde dar-se conta de que os olhos do Contador de Histórias reflectiam felicidade e os de Mardinah entrega, rendição.

As expressões de ambos complementavam-se perfeitamente.

- Como estás, Mardinah?

Ela não respondeu.

- Estão a pensar fazer uma celebração em vossa honra - contribuiu para a conversa Timin por detrás deles.

- Temos realmente razões para comemorar! - exclamou Dul, rindo, feliz. Já não precisava da pandeireta para expressar os seus sentimentos.

- Mardinah... como estás tu, Mardinah?

Continuou a não haver réplica.

- Mar mganten! - disse de repente Dul.

- Sim?

- Eu...

- Por que não acabas o que ias a dizer?

- Vá, continua - encorajou-o Timin, que ainda se mantinha a uma distância respeitosa.

- Bendoro Putri, decidi fazer-me pescador.

- Tu? Ires para o mar?

- Isso mesmo, Bendoro.

- Muito bem! Mas porquê? Abandonaste a tua pandeireta?

- Não, mas resolvi ir para o mar, Bendoro Putri. Muito em breve. Amanhã. Ou no dia a seguir.

- Estás a falar a sério, Dul?

- Não tem muita justificação ser um homem e não ir para o mar.

- Compreendo. Mas porquê agora?

Dul riu-se.

- No fundo, ele foi sempre um pescador, Bendoro Putri - opinou Timin.

- Sim, sou um marinheiro!

- Espero que sejas feliz, Dul.

- Meu pai era pescador. É isso que eu devo ser também. Timin riu da convicção com que Dul estava a falar. Deixara de ser um pateta e transformara-se num homem.

- E tu, Mardinah... estás pronta a casar com este homem? Mardinah encolheu os ombros:

- Assim como a sorte não se pode procurar, o infortúnio também não se pode evitar.

- Não lamentas nada?

- Por que é que eu havia de ter pena, Mar mganten?

- O destino tratou-nos a nós as duas de modo diferente, Mardinah.

- Sim, Mar mganten.

- Tal como tu, também eu fui forçada. A mim, fizeram-me ir para a cidade, a ti, obrigaram-te a ficar na aldeia.

- Sim, Mar mganten.

- Deus criou o Contador de Histórias, da mesma maneira que nos criou a todos nós. Ele é um bom homem e, graças a Deus, está pronto a trabalhar.

- Sim, Mar Nganten.

- Espero que sejas feliz. Tudo quanto ele tem para te oferecer é o seu amor...

- Sim, Mar Nganten.

- Na cidade, não irias encontrar um amor como este.

- Não, Mar mganten.

- E tu, Dul, há amor no teu coração?

- Nunca virei a ter tantos peixes nas minhas redes quanto de amor existe no meu coração, Bendoro Putri.

- Estás a ouvir isto, Mardinah?

- Sim, Mar mganten.

- Fico feliz por saber que estás contente com o teu destino.

- Sim, Mar mganten.

- Terás de trabalhar como as outras mulheres enquanto o teu marido está a pescar. Terás de moer os camarões secos. De madrugada, vais ter de o acompanhar quando ele for para o mar. Quando soprar a ventania, sairás de casa, na esperança de divisares o seu barco. E quando vier tarde, esperarás na praia até, por fim, ele regressar.

- Sim, Mar mganten.

- Não será o mesmo que viver numa mansão da cidade, Mardinah.

- Não, Mar mganten.

- Fechada num quarto de uma grande mansão. Quanto tempo passei eu lá? Nunca vi o mar. Nunca senti a carícia do sol. Nunca estive com os meus pais. Aqui, vais estar o tempo todo com a gente da aldeia.

Dul comentou:

- A sua história pareceu-me um lamento, Bendoro Putri.

- És muito perspicaz, Dul.

Foram-se encaminhando em silêncio para a aldeia. Era evidente que todos, velhos e novos, homens e mulheres, grandes e pequenos, os estavam aguardando na praia, sob as palmeiras verdes. Quando os quatro se aproximaram, com Mardinah e Dul à frente, os aldeões começaram a dar vivas.

- Lá vem a noiva, lá vem o noivo! - gritavam as crianças.

- Vamos com eles a casa do chefe! - alvitrou um dos homens.

- Vamos lá!

De algures, no meio da multidão, fez-se de súbito ouvir o som da pandeireta de Dul, que olhou em volta, acenando com a mão, para lha darem. O instrumento voou pelos ares em direcção ao seu proprietário, como que levado por uma

força misteriosa, e este apanhou-o habilmente, apertando-o de encontro ao peito e beijando-o. Depois, amorosamente, passou os dedos pela pele da pandeireta e encostou o ouvido à sua cercadura, escapando-se-lhe da garganta um queixume. A seguir, inesperadamente e com toda a força, bateu na pandeireta com os dedos, num ritmo primeiro melancólico e depois excitante, que abafou por completo os aplausos da multidão. Nunca tocara assim, agitando-a às vezes por cima da cabeça, de modo a fazer ressoar apenas os címbalos, outras vezes atirando-a ao ar e agarrando-a de novo.

- Então e a história, qual é desta vez? - perguntou alguém.

- Ele já não tem mais histórias para contar - comentou um outro. - É ele a história!

Quando chegaram a casa do chefe da aldeia, a pele da pandeireta rompeu-se. Toda a gente parou, enquanto Dul pousava no chão a sua pandeireta rebentada. Contemplou-a por momentos, depois baixou-se e pegou outra vez nela. As pessoas observavam-no em silêncio, curiosas, enquanto ele, afastando-se, e olhando para um lado e para o outro, se pôs a esgaravatar no chão. Quando finalmente tacteou com a mão um pedregulho, com um movimento rápido arremessou-o de encontro à moldura da pandeireta que se desfez toda em pedaços. Depois, como se fosse um malabarista, e com os olhos fixos nos aldeões, seus espectadores, lançou os fragmentos para o ar, fazendo desaparecer a pandeireta como que por magia. Erguendo os braços primeiro e depois fazendo uma reverência, foi assim que agradeceu a entusiástica ovação de que fora alvo.

Aproximando-se de novo de Mardinah, Dul agarrou-a firmemente por um braço e levou-a até aos degraus da varanda da casa do chefe da aldeia.

- Estamos aqui! - gritou ele.

- Quem está a fazer um tal burburinho à porta da minha casa? - inquiriu uma voz lá de dentro.

- Sou eu, Dul, o Contador de Histórias.

O chefe da aldeia continuou dentro de casa, sem se incomodar em vir até à porta.

- Pareces muito orgulhoso de ti próprio - comentou.

- E estou - afirmou Dul. - Tomei uma mulher da cidade para ser minha esposa.

Ao ouvir isto, a multidão aplaudiu, entusiástica, e alguém confirmou.

- Sim, roubou uma mulher da cidade! Somos testemunhas.

- Como se chama essa mulher da cidade? - quis saber o chefe da aldeia.

- Mardinah.

- Podes provar o que estás a dizer?

- Chega cá fora, e mostrar-te- ei a prova.

O chefe da aldeia surgiu no limiar da porta e deitou um olhar a Dul e a Mardinah. Acenou com a cabeça e depois ergueu a mão, a pedir silêncio. Agora só se ouvia o sussurrar do vento.

Fitando Dul, perguntou-lhe:

- Dul, Contador de Histórias, fizeste isso?

- Fiz, sim - respondeu ele, orgulhoso.

- Bem, muito bem. Leva a mulher para casa contigo, para ser a companheira da tua vida. Tens casa para onde ir?

- Não, não tenho - confessou ele timidamente. O chefe olhou para todos quantos estavam ali na sua frente, dizendo:

- Então, leva-a para casa de quem, pelo menos por agora, estiver disposto a receber-vos a ambos.

- Nós estamos, nós estamos! - gritaram várias vozes.

- Quando tiveres apanhado peixe suficiente já poderás construir a tua própria casa - sentenciou o chefe.

Dul pegou na mão de Mardinah e virou-se para os aldeões, bradando:

- Aqui estamos! Quem nos empresta uma cama e um tecto de colmo para cobrir as nossas cabeças?

Toda a gente gritou, encantada com o pedido de Dul e, dando vivas, afastaram-se com eles da casa do chefe e foram-se embora dali em cortejo.

 

                   PARTE IV

À medida que o tempo ia passando, a vida na mansão do Bendoro fazia com que a Rapariga de Java se sentisse cada vez mais solitária. Os parentes do marido, que dormiam na casa da oração à esquerda da casa e iam de tarde à escola, parecia que não tinham a menor relação com ela, como se fossem seres de um mundo diferente, e como falavam entre si em holandês, não percebia uma palavra do que diziam. O marido só entrava na sua vida de noite, quando ela se encontrava algures entre o estado de consciência e o sono. O pessoal da cozinha era constituído por seres estranhos, que falavam apenas quando se lhes dirigia a palavra, movendo-se como sombras ao lusco-fusco. Nunca recebia hóspedes. O vendedor de hortaliças que vinha todas as manhãs e ficava do lado de fora da varanda da cozinha, e o homem do talho que se sentava nos degraus da escada das traseiras eram como que habitantes de um outro planeta. Às sextas- feiras, depois da oração do meio-dia, costumava distribuir esmolas pelos pobres que se juntavam do lado de fora da casa. Enquanto passava no meio deles, tinha a sensação de que surgiam repentinamente do chão, por baixo dos seus pés.

A bela mobília que havia por toda a casa era pouco acolhedora, fria, como se lhe faltasse vida, tal como o peixe que ontem era apanhado e depois posto a secar.

Tudo lhe era estranho, até o rumor do vento que açoitava as copas das árvores e à noite roçava pelas telhas.

Desde que voltara para casa do Bendoro a sua única e permanente companhia era o fragor das ondas que de noite bramiam tão nitidamente e tão mansamente de dia.

Quando voltou à cidade, o Bendoro não a castigou, mas também não revelou grande interesse por ela. As suas primeiras perguntas foram:

- O que disse o teu pai? Gostariam de ter uma capela?

- Não, Bendoro, já têm uma.

- E quanto ao professor de recitação? Já têm?

- Sim, Bendoro.

- E o que pensam dele? É um bom professor?

- Estão satisfeitos com ele.

- Na tua aldeia alguém fala árabe?

- Peço desculpa, Bendoro, mas esqueci-me de perguntar.

- Para a próxima vez não te esqueças.

- Não me esquecerei, Bendoro.

- E o teu pai, gostou do sarong que lhe mandei?

- Muitissimo, Bendoro, ficou encantado.

Depois desta breve troca de palavras, a Rapariga de Java não voltou a ver o marido senão ao cabo de duas semanas.

Agora, quando ele voltava das suas viagens, quase nunca lhe trazia presentes, mas ela também não contava com isso. A grande mansão em que habitava ensinara-a gradualmente a viver sem quaisquer expectativas. Todas as suas tarefas e obrigações - desde superintender na cozinha até fazer bali, desde as compras do lado de fora da porta da cozinha até o servir as refeições ao marido, desde aquelas vazias noites

de sexta-feira, em que o marido nunca a vinha visitar, às outras noites da semana, quando também ficava à espera que ele viesse - alongavam-se como estradas solitárias e silenciosas em que não havia outros caminhantes: apenas ela.

O Bendoro nunca lhe perguntou por Mardinah, como se ela não passasse de uma partícula de cinza soprada da lareira, para fora e perdida no universo. Ao princípio, a Rapariga achara essa falta de interesse pelo destino de Mardinah absolutamente desconcertante. Então não era ela sua parente? Por que não se interessava pelo que pudesse ou não ter acon tecido? E sobre Mardiun, que morrera no mar, nunca proferiu uma palavra.

Durante umas semanas, haviam circulado histórias acerca de um ataque de piratas a uma aldeia de pescadores, contadas por dois cocheiros, que tinham sido obrigados a fazer a pé a viagem de regresso até à cidade. Todavia, as autoridades ignoraram por completo esses boatos.

Uma noite, quando o marido estava deitado na cama ao pé dela, perguntara-lhe:

- Disseste-me que os teus pais estavam bem, não disseste?

- Disse, sim, Bendoro.

- Então não aconteceu nada enquanto estiveste na tua terra?

- Não, absolutamente nada.

- Ouvi por aí umas histórias sobre um ataque de piratas. Foi lá na tua aldeia?

- Não, Bendoro.

- Graças a Alá que não passou de um rumor. E não lhe fez mais perguntas.

Um dia, um chinês veio visitar o Bendoro e foi por ele recebido na sala de visitas. Sentaram-se em cadeiras de descanso, conversando, enquanto a Rapariga de Java limpava o pó na sala do meio. Falavam num alto- javanês muito formal, dialecto que a Rapariga já dominava bem.

- Ouvi dizer, Bendoro, que os piratas atacaram uma aldeia de pescadores - disse o chinês.

- Que aldeia? - quis saber o Bendoro.

- Lamento ter de o dizer, mas, se não estou enganado, Bendoro, foi a aldeia da sua esposa.

- Da minha esposa? - exclamou o Bendoro, elevando a voz.

- Eu não tenho esposa!

- Mil perdões, Bendoro, mas fui enviado pelo meu jornal, em Semarang, para lhe perguntar se ouviu falar do assunto. Os escritórios centrais devem ter-se enganado.

- Sai! - ordenou o Bendoro. - Sai, antes que me zangue.

- Certamente, Bendoro, mil perdões - implorou o visitante; e inclinando-se respeitosamente, saiu da sala.

Suspeitando que o marido iria querer fazer-lhe mais perguntas sobre aqueles acontecimentos que ela negara, voou da sala para fora, de vassoura e espanador em punho, para o seu quarto, onde se sentia mais resguardada dos perigos, e sentou-se numa cadeira, aguardando que o marido chegasse e desse início ao interrogatório.

Não podia contar-lhe a verdade. Teria de negar tudo o que acontecera. As pessoas da cidade não lhes tinham causado já problemas suficientes?

- Meu Deus, vela pela minha aldeia - rezou ela. - Por favor, afasta de lá a polícia e os militares!

Esperou pelo marido, mas ele não veio ter com ela ao quarto. Em vez disso, foi ele que a chamou para ir ter com ele. Numa voz fria e colérica, que repercutiu pela casa toda, berrou:

- Mar Mganten, vem cá!

O coração da Rapariga deu um salto dentro do peito. Levantou-se imediatamente e saiu do quarto a correr, em direcção ao lugar de onde vinha a voz do marido:

Tenho de proteger a minha aldeia, dizia ela para consigo, Tenho de aproteger!

Apressou o passo, esquecendo o seu próprio medo.

Foi encontrar o marido sentado numa cadeira de baloiço, na sala do meio.

Correu para ele e agachou-se no chão diante dele, curvando respeitosamente a cabeça.

- Estou aqui, Bendoro.

- Que me disseste tu, mulher? Tens a certeza de que nada aconteceu na tua aldeia?

- É verdade, Bendoro. Nada aconteceu enquanto lá estive. Alá concedeu-me a Sua protecção e olhou por mim, Bendoro.

- Então que ouço eu, que me estão a contar? Diz-me o que aconteceu lá.

- Nada fora do comum, Bendoro. Os homens iam para a pesca, as mulheres punham o peixe a secar e moíam camarão.

- Então que conversa é essa de assalto de piratas?

- Se os piratas tivessem atacado, Bendoro, não se tinha salvo ninguém. Teriam morto os homens e as crianças e levado cativas as mulheres. Graças à tua bênção, Bendoro, nunca corri perigo. Não houve nenhuma invasão de piratas na minha aldeia.

- Bom, então. Agora ouve o que te digo: esta noite tenho uma visita, o Bendoro de Demak.

A Rapariga estremeceu. Teria de ver esse homem, estar face-a-face com o homem que pusera em risco a sua aldeia?

A cabeça andava-lhe à roda. Acontecesse o que acontecesse, tinha de proteger a todo o custo a sua aldeia.

- Faz os preparativos que há a fazer. Pega em sabão e esfrega o chão da sala do meio; quero-a impecável. E diz aos rapazes que te ajudem; estão a tornar-se uns preguiçosos, um bando de preguiçosos!

- Sim, Bendoro.

- Arranja o lavabo, na parte de trás da sala do meio. Depois de limpar as prateleiras dos armários, põe cânfora lá dentro. No toucador, põe pó-de-arroz, água-de-colónia, ohl, uma escova e pente, e pomada para o cabelo. Não te esqueças de nada.

- Sim, Bendoro. É tudo?

- Sim, agora põe-te ao trabalho, já!

- Sim, Bendoro.

O Bendoro não disse nada quando a Rapariga ergueu as mãos e comprimiu as palmas e as pontas dos dedos contra a testa, inclinando em seguida a cabeça e recuando aos poucos em direcção à porta. Em seguida, pôs-se de pé e dirigiu-se a um dos quartos do meio.

Depois que o Bendoro despedira a sua antiga criada, a Rapariga encarregara-se da tarefa de governar a casa e estava agora familiarizada com esta parte da mansão. O quarto, num dos cantos, tinha um armário de forma triangular, onde fora colocado um livro muito grande. Já o abrira muitas vezes para olhar para os desenhos, mas não sabia quem eram as pessoas nele representadas, ou o que eram e para que serviam aqueles variados objectos, para ela estranhos e desconhecidos. De todas as vezes que ali ia, de vassoura e espanador de penas na mão, abria o livro. Quem sabe se, um dia, o seu próprio filho seria capaz de o ler e de lhe explicar os desenhos, cismava ela. Mas esse pensamento suscitava-lhe uma interrogação angustiosa: seria possível que as suas mãos nunca pegassem senão em vassouras, espanadores e trapos de limpeza, aplicadores de cera do balik, legumes e os pratos sujos das refeições do Bendoro? Como lamentava nunca ter aprendido a ler e a escrever, ou a recitar devidamente o Corão.

E, tal como fazia todos os dias, começou a trabalhar, as mãos movendo-se rapidamente enquanto limpava o pó aos móveis. Depois pôs o tapete lá para fora a arejar e bateu-o com o batedor de tapetes.

Hoje, as coisas não se passavam como o habitual. Um inimigo, em todo o seu esplendor e glória, vinha de visita, penetrando no coração da sua fortaleza. Sentia-se absolutamente vulnerável. Apesar da ansiedade que a invadia, prosseguiu no seu trabalho limpando cada móvel e cada objecto excepto as armas que o marido herdara - uma fileira de lanças, direitas, no seu suporte - porque ele lho proibira.

Enquanto limpava o espelho oval do guarda-vestidos do Bendoro, reparou como tinha o rosto pálido, de um tom esverdeado, e como parecia cansada.

Estarei doente, pensou consigo mesma. Estava com um aspecto tão estranho! Por baixo da sua pele dourada tinham-se tornado visíveis pequenas veias e, ao atentar nos seus olhos, pareceram-lhe mortiços, baços. Tinham perdido todo o brilho. Estarei doente? interrogou-se de novo. Custava-lhe voltar as costas à sua imagem reflectida no espelho. Sim, estou cansada, admitiu ela em silêncio. Naquelas duas semanas, desde que partira da aldeia, não parara de trabalhar e não conseguira descansar como devia. Sentia a cabeça pesada e inchada, como se tivesse triplicado de tamanho. Passara o dia coberta de suores frios e com tonturas.

Ao ouvir o Bendoro a tossir na sala do meio, retomou o trabalho. Não conseguia, porém, deixar de se olhar ao espelho e foi assim que o marido, ao entrar no quarto sem ela dar conta, a veio encontrar. Ao ver o rosto dele reflectido ao lado do dela, estremeceu, assustada.

- Que estás a fazer? - perguntou ele.

- Perdoa-me, Bendoro.

- Estás cansada? Por que não disseste às criadas para te ajudarem?

- Prefiro ser eu a fazer o trabalho.

Sem se virar para observar os movimentos do marido, a Rapariga apercebeu-se de que ele estava a trocar de roupa, a vestir o sarong para a oração, com o correspondente barrete de peregrino. Sempre sem olhar, adivinhou que ele estava a sair de casa, a descer as escadas que davam para o pátio ensaibrado e a encaminhar-se para a mesquita.

A Rapariga de Java suspirou. A pesada mobília do quarto, apesar das suas enormes dimensões, parecia-lhe quebradiça e fraca. Comparada com a choupana de bambu dos pais, que era pequena, mas refúgio sólido e permanente, a enorme casa de pedra afigurava-se-lhe frágil, inconsistente. Foi até à janela e olhou para fora. Os sobrinhos do Bendoro estavam sentados na varanda da sala de oração, com os livros de estudo nas mãos. Um dos rapazes viu-a, mas imediatamente baixou a cabeça, continuando a ler.

Teve a sensação de que na realidade não existia, de que nunca sequer tinha nascido!

Uma dor súbita e aguda - como uma agulha a penetrar-lhe por entre as costelas - fez com que a Rapariga sustivesse a respiração e apertasse o peito com a mão. O que estava a acontecer? Estarei eu mesmo doente? perguntou a si mesma, enquanto se encaminhava, cambaleante, para a cama do Bendoro. Agarrando-se com a mão direita à borda da cama, deixou-se escorregar para o chão. Gostaria de se deitar no colchão, mas isso agora era indiferente. Desamparada, sem ninguém que a confortasse, aguardou que a dor abrandasse.

Assim que ficou mais aliviada, saiu do quarto apressadamente e chamou duas das criadas para continuarem a esfregar o chão. Enquanto elas terminavam a tarefa, a Rapariga sentou-se num banquinho, de olhos enevoados e os dentes cerrados, sempre que a dor voltava. De vez em quando sentia de novo a agulha a atravessá-la, enterrando-se dentro dela e deixando-a exausta e alagada em suor.

Ali esteve sentada durante duas longas horas, tentando vigiar o trabalho das mulheres enquanto estas faziam a lim peza. Só quando ficou tudo pronto é que se levantou e se foi embora, fechando a porta do quarto à chave e indo para o seu quarto. Ficou deitada na cama, tentando não vomitar, enquanto espessas vagas de bolhas de ar lhe subiam do estômago até à garganta. Umas vezes era só ar que lhe saía pela boca, mas a maior parte das vezes vinha acompanhado de uma massa líquida e malcheirosa, da cor do sumo de tamarindo, que lhe invadia a garganta e a boca e tinha o gosto amargo do fel.

Fez-se-lhe finalmente luz:

- Estou grávida - murmurou para consigo.

Chamou uma criada e disse-lhe para lhe trazer da arrecadação uma bacia de bronze. Quando ela voltou, pediu-lhe que lhe desse uma massagem.

- Em baixo não, só na base do pescoço - pediu ela. Deitou-se de bruços, com a cabeça pendurada para fora da borda da cama e a boca apontada na direcção da bacia que estava pousada no chão.

Enquanto massajava o pescoço da Rapariga, a criada afirmou simplesmente:

- Está grávida, Mar mganten.

- Parece que sim - respondeu a Rapariga.

- Graças aos céus, Mar Mganten. Peço a Deus que lhe conceda um fillho homem.

- Sim, um filho - repetiu ela melancolicamente.

- Quer que a tape com um cobertor, Ma mganten?

- Sim, sabia-me bem um cobertor em cima das pernas; mas dobra-o para ficar mais grosso.

- Sim, Mar mganten.

- Fica aqui comigo.

- Com certeza, Mar Mganten.

A Rapariga sentiu-se de repente envergonhada. Nenhuma mulher da aldeia era apaparicada desta maneira quando estava grávida.

- Não, não é preciso ficares - disse, mudando subitamente de ideias. - Podes ir limpar a parte de trás da casa. O Bendoro está a contar hoje à noite com uma visita.

- Quem será, Mar mganten? - perguntou a criada, curiosa.

- Caluda! Não é nada da tua conta! - repreendeu-a a Rapariga.

Nessa tarde, enquanto todas as pessoas da casa se preparavam para a chegada da visita, a Rapariga jazia, fraca e impotente, na cama. A cabeça pesava-lhe tanto que não lhe parecia possível tornar a levantá-la. Quando o Bendoro foi ao seu quarto para lhe falar, cobriu a cara com a almofada, mas ele, destapando-a, pôs-lhe a mão na testa.

- Estás grávida - murmurou, e depois foi-se logo embora.

A voz do marido chamando pelos seus jovens parentes e dando-lhes ordens, chegou até ela como se tivesse os ouvidos cheios de algodão.

Umas três horas depois, quando o Bendoro se encontrava à mesa a jantar, a Rapariga ficou a saber que a visita era afinal de contas uma mulher.

- Querido Adi Mar - ouviu-a dizer num tom de voz firme e autoritário - estou contente por constatar que não tens uma mulher a viver aqui em tua casa. Mas diz-me, ainda não vi Mardinah. Onde é que ela está?

O Bendoro respondeu francamente:

- Não sei.

- Mandei-a para aqui. Ela não chegou a vir?

 

'" Irmã.

 

- Lamento, Mar A,yr", mas não me ocupo de assuntos ligados à criadagem.

- Respondeste como um autêntico nobre! - declarou a sua hóspede. - Não admira que tanta gente deposite tantas esperanças em ti.

- E que espécie de esperanças é que eu suscito? - perguntou ele, evasivo.

A mulher riu, com um riso cheio de subentendidos. A conversa imterrompeu-se por momentos.

Os olhos da Rapariga tornaram a enevoar-se, ao mesmo tempo que uma golfada de ar lhe empurrava para cima o conteúdo do estômago. Virou-se de lado e esticou a cabeça por cima da borda da cama, mas nada mais lhe saiu pela garganta, a não ser uns arrancos e um bocado de líquido amarelo amargoso, que escorreu para a bacia.

Quando voltou a deitar a cabeça no colchão, a conversa na sala de jantar tinha terminado.

A hóspede, aparentemente, ouvira o ruído dos vómitos, pois perguntou:

- Quem é aquela? É a Mardinah?

- Não - respondeu o Bendoro.

- Ah! Agora percebo! - e em tom acusador, acrescentou:

- mas por que a tens aqui, dentro da casa principal? O seu lugar é na cozinha! Não está certo! De maneira nenhuma! Ulha para mim. Diz-me se está certo que essa mulher, seja ela quem for, durma debaixo do mesmo tecto que eu?

 

' Irmã.

 

Os pressurosos pedidos de desculpas do Bendoro fizeram imediatamente saltar lágrimas dos olhos da Rapariga. Apercebia-se, pela primeira vez em três anos, que acima do poder do Bendoro, existia um, mais alto ainda, e era uma mulher que o detinha nas suas mãos.

Quem seria a mulher? Quem era ela? A Rapariga pôs-se a soluçar. O seu próprio destino estava nas mãos poderosas daquela mulher. A imponência e a solidez da mansão de tijolos não tinham agora qualquer significado. Havia um poder ainda mais forte do que aquela fortaleza de pedra. O seu coração gritou de dor até que finalmente adormeceu, cansada de tanto chorar.

No dia seguinte, de manhãzinha, a Rapariga acordou com a voz do Bendoro a entoar os cânticos do Corão. É o meu marido, pensou. Mas era realmente seu marido? Pelos vistos não era. Era o seu Bendoro, o seu amo e senhor, o seu rei. E ela não era sua esposa. Não passava de uma miserável e humilde serva.

Quando nessa manhã voltou a vomitar, sentiu-se envergonhada, incrivelmente envergonhada de estar deitada na cama, coisa que, na aldeia, nenhuma mulher grávida se podia dar ao luxo de fazer.

O ruidoso cantar dos galos parecia provocar-lhe ainda mais náuseas. Tentou lembrar-se do galo da família e do seu alegre canto pela manhã, quando o pai partia para o mar. Aqui, na cidade, cantavam de uma maneira diferente, que soava aos seus ouvidos como se fosse um sarcasmo, uma troça.

Quando o Sol se ergueu e a criada lhe veio prestar os seus cuidados, a Rapariga soube por ela que a hóspede da noite anterior tinha partido. Agradeceu a Deus no seu íntimo; sabia que o Bendoro não ia mandar embora a sua esposa grávida.

Nos três meses que se seguiram - e segundo o costume das classes privilegiadas - a Rapariga passou o tempo deitada na cama, por detrás da porta e das janelas fechadas. Tinha a impressão de estar a viver numa gruta e sentia vergonha de si mesma quando pensava nas mulheres da sua terra que, grávidas ou não, se levantavam todas as manhãs quando os maridos partiam para o mar e ficavam a aguardá-los na angra, quando eles regressavam. E, no intervalo, andavam atarefadas na cozinha, preparando as refeições para o marido e para os filhos. Ela, porém -, uma rapariga da aldeia - estava ali deitada, só, desamparada e sem forças.

Passados aqueles três meses de reclusão, pôde finalmente retomar as suas ocupações diárias. O Bendoro, agora, só muito raramente estava em casa. Constava que passava a maior parte do tempo na mesquita, e que dera ordem de lhe levarem lá as refeições. No decorrer da gravidez, a Rapariga sentiu-se terrivelmente só. Desejaria sentar-se ao lado do marido, estar com ele, acompanhá-lo. Mas não passava de uma criada. Às vezes, dava consigo a chorar sem saber porquê. Era como se a vida que trazia dentro do seio não fosse o seu futuro filho mas um inimigo em perspectiva.

Queria rezar a Deus, queixar-se da injustiça de que se sentia vítima, mas não era capaz. Como não tinha prosseguido os estudos do Corão e as aulas de recitação, não sabia como fazer oração, nem qual das preces rezar. Lamentava-o agora e, como consequência, entregava tudo nas mãos do destino.

 

       A Raanga de Java

As a criança, o seu filho, havia de ter melhor sorte do que a mãe. Não iria nascer numa aldeia de pescadores, não iria ser levado da sua aldeia e entregue a um Bendoro qualquer da cidade. O seu filho ia nascer numa mansão, tão sólida que o vento não conseguia penetrar pelas paredes dentro. O seu filho nasceria no reino do Bendoro, seu pai. Partilharia o poder do pai, governando ao lado dele, e saberia agir com autoridade. Seria o futuro Bendoro, e os seus filhos, por sua vez, também o viriam a ser. Não teria de ir para o mar em busca de peixe, nem enfrentar as vagas, a escuridão, ou sentir a água salgada a lamber-lhe os pés.

Sempre que a Rapariga era assaltada por estes súbitos ataques de solidão e melancolia, as suas mãos moviam-se instintivamente sobre o ventre, para acariciar o novo ser que abrigava junto ao coração.

- Que estejas em segurança, meu filho, e a tua mãe também!

Aquele terrível período de agonia passara, esperando-a daí em diante a doçura da maternidade. Em breve poderia segurar nos braços um bebezinho, a quem amamentaria e criaria e que, mais tarde, seria grande e forte.

E um belo dia, enquanto o Bendoro estava ausente, o seu filho veio ao mundo com a ajuda de uma famosa parteira tradicional.

Exausta pelo esforço e arfando penosamente, a Rapariga de Java deu à luz a criança, ficando a aguardar que ela chorasse. Um, dois, três, quatro, cinco minutos passaram e o choro não se fazia ouvir. Estaria morta?

Tão cansada que mal podia abrir os olhos, implorou:

- Chora, por favor, chora! - enquanto acariciava aquela trouxinha de carne que era o seu filho recém-nascido, deitado agora sobre o seu ventre.

- Chora, chora - murmurou de novo, mas não obteve resposta.

Avassalou-a um súbito ataque de pânico que lhe fez bater apressado o coração. Queria sentar-se e insuflar vida no peito do seu bebé. Ele não se movia, não emitia qualquer som. Apetecia-lhe gritar, abanar o bebé para o acordar, mas estava sem forças. Quando abriu os olhos, viu a parteira levantando o bebé no ar pelos pés. Era tão pequeno, tão pálido! Meu bebé; aquele é o meu bebé! gritou no seu íntimo. Por que não chorava nem fazia qualquer barulho?

A parteira ia murmurando uma espécie de mantra. A Rapariga tinha vontade de lhe gritar. O que estava ela a fazer, erguendo o seu bebé daquela maneira? Quereria matá-lo? Mas nenhum som lhe saiu da boca, apenas um leve gemido, abafado pelo ruído da sua própria respiração.

- Tenha paciência, Mar mganten -, murmurou a parteira.

- Alá, salva o meu bebé - implorou a Rapariga.

- Se for essa a Sua vontade, o bebé vai salvar-se - sossegou-a ela.

- Por que não chora ele?

A parteira continuava a segurar o bebé pelos pés, abanando-o suavemente para cima e para baixo.

- Engoliu muitas secreções, Mar mganten.

De repente, o bebé soltou um gemido e logo a seguir um grito fraco.

- Meu bebé!

- Assim é melhor! Não é, Mar mganten? - comentou, satisfeita, a parteira.

A Rapariga deu um profundo suspiro, deixou que o seu corpo relaxasse e deitou-se de novo. Fechando os olhos, caiu num breve sono, enquanto a parteira se afadigava à volta dela e do bebé.

Momentos depois, quando acordou, um ser minúsculo repousava a seu lado. Tacteou o corpo do bebé:

- Dois braços, duas pernas - murmurou. Invadiu-a uma onda de alívio. O seu bebé não era aleijado. - duas orelhas, dois olhos, uma boca... Estava tudo bem. E o nariz, era igualzinho ao dela!

O bebé dormia, totalmente alheio às considerações que a mãe fazia sobre ele.

A parteira estava sentada ao fundo da cama, numa cadeira baixa. A Rapariga sorriu-lhe:

- É rapaz ou rapariga? - perguntou baixinho, ansiosa por ouvir a resposta.

- É uma menina - respondeu a parteira.

- O Bendoro já veio vê-la?

- Não.

- Ela já chorou?

- Não.

A Rapariga suspirou. Nada mais podia fazer do que aguardar a chegada do marido. E, de acordo com o costume das mulheres da sua aldeia, dir-lhe-ia:

- Esta é a tua filha. Criei-a durante nove meses no meu ventre. Aceita-a agora como tua filha. Foi para ti que a trouxe dentro de mim.

Antes de o Sol nascer, a criança estava lavada e pronta para a chegada do pai. Mas eram nove horas da manhã e ele ainda não viera. Na aldeia de pescadores o pai da criança ficava com a mãe três dias antes e três dias depois de o bebé nascer. Durante esse período não saía para o mar. Ficava ali, ao lado da mãe, cuidando dela e da criança e velando pela sua segurança. A Rapariga lembrou-se do que acontecera com um vizinho dela: quando a mulher teve o primeiro bebé, ele ficou à espera dia e noite fora de casa, e quando a criança nasceu e começou a chorar, também ele rebentou em lágrimas. Entrou em casa com tanta pressa que se esqueceu de abrir a porta, e ao ir de encontro a ela, quase perdeu os sentidos com a pancada.

A quem iria ela oferecer a filha, senão ao seu pai? Não sentiria ele carinho pela sua própria filha? Não, não era possível. Afinal de contas, era o seu pai natural. Mas por que não tinha vindo, nem que fosse apenas para vê-la?

A parteira levantou-se da cadeira onde estava sentada e pôs-se de pé ao lado da Rapariga, enxugando-lhe as lágrimas.

- O Bendoro não tarda a chegar - disse, para a consolar.

- Mas leva tanto tempo a vir!

- Se calhar está muito ocupado.

Ao fim da tarde o Bendoro foi ao quarto da Rapariga, mas não se aproximou, deixando-se ficar ao pé da porta.

A Rapariga voltou a cabeça na sua direcção. Quereria dizer:

- Perdoa-me, Bendoro, esta é a tua filha, aqui a tens... -, mas as palavras morreram-lhe na garganta. Estava assustada.

- Então já acabou - disse numa voz indiferente. - Disseram-me que era uma rapariga.

- Sim, Bendoro, é verdade.

- Apenas uma rapariga, não é?

A voz da Rapariga vacilou:

- Mil perdões, Bendoro... - Mas, como se não a tivesse ouvido, virou-lhe as costas e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.

A Rapariga rodou o corpo, de modo a ficar virada para a filha, tomou-a nos braços e beijou o seu fino cabelo escuro.

Quatro dias mais tarde, quando a menina já abria os olhos, a Rapariga contemplou-a em silêncio. Tinha os mesmos olhos amendoados, os mesmos lábios, o mesmo nariz, o mesmo corpinho miúdo dela. Iria ser sempre pequenina, tal como ela, e leve como uma bola de algodão.

A Rapariga já não sentia a falta do Bendoro. Quanto tempo esperara por ele, com uma expressão gentil e submissa no olhar? Não desejava vê-la? Mas ela, por seu turno, gostaria de apresentar a criança ao seu pai, de contemplar pai e filha olhando amorosamente um para o outro. Mas o marido nunca veio ver a criança.

E os meses foram passando, sucedendo-se velozmente. A Rapariga já não executava as tarefas a que se dedicara anteriormente. O lume já não ardia sob o pote de cera para fazer o bati. Agora, só muito ocasionalmente ia até à cozinha supervisionar a confecção das refeições.

Então, um dia, o pai chegou inesperadamente, sozinho. Tomou logo a neta nos braços, beijando-a.

- Que idade tem ela? Está com uns três meses, não?

- Três meses e meio, bapak.

- Ninguém nos deu a notícia de que ela tinha nascido.

- Pensei que tinhas vindo para ver a tua neta.

- Teria vindo há mais tempo, se tivesse sabido. Há muito mais tempo.

- Vieste comprar fio para remendar as redes?

- Não.

- Então o quê? Resina, agulhas?

- Também não, ainda estamos a usar as que nos levaste.

- E a mãe? Como está ela?

- Bem, está bem; estão todos de saúde.

- E Mardinah?

- Está grávida - anunciou o pai.

- Que boa notícia! E Dul, já se tornou pescador?

- Sim, vai para o mar no barco do chefe da aldeia. Toda a gente gosta dele. Pena é que já não conte histórias.

A Rapariga voltou a perguntar o que já antes quisera saber do pai:

- O que te trouxe à cidade, baak?

- O Bendoro mandou-me vir aqui.

- Para quê? Para falar da construção de uma mesquita? a Rapariga apressou-se a acrescentar: - Eu disse-lhe que a aldeia já tinha uma mesquita e um professor e que as crianças estavam a aprender a recitar o Corão e a estudar árabe.

O pai retorquiu em tom de repreensão:

- Por que não te limitaste a dizer-lhe que na aldeia não nos sobra tempo para essas coisas e que até os rapazitos têm de ajudar os pais na faina da pesca?

- Tive medo.

- Mas é a verdade.

- Então a mãe sabe que é avó?

- Ainda não, mas vai ficar muito contente. Assim que souber, começa logo a preparar uma festa em acção de graças.

- Ficas aqui muito tempo na cidade, papá?

- Espero que sim, se isso significa que posso vir aqui visitar a minha neta.

- Como é que vieste?

- O Bendoro mandou ontem uma carruagem. O cocheiro disse que ele me queria ver. Dormiu lá na aldeia na noite passada e partimos de manhãzinha para cá.

- Nestes últimos tempos, o Bendoro não tem estado muito por casa, papá.

- Ouve lá, eu alguma vez estive muito tempo em casa?

- Não queres comer alguma coisa, papá? Já comeste?

- Sim, no caminho. A tua mãe preparou-me um farnel.

- E que me trouxeste tu?

- Uns peixinhos. Deixei-os na cozinha. Nesta época do ano, o viveiro de peixes está bem fornecido.

Nesse momento uma criada veio interromper a conversa para informar o pai que o Bendoro chegara e estava pronto a recebê-lo. Ele devolveu a neta aos braços da mãe e saiu com a criada, para se apresentar ao Bendoro.

A Rapariga, do quarto dela, não conseguia ouvir a conversa que estava a ter lugar entre o pai e o marido. Deitou a filha na cama e sentou-se na cadeira. Estava contente por ter dado uma neta ao pai e ainda mais contente ia ficar quando a mãe também tomasse conhecimento do nascimento da sua neta. Toda a aldeia se regozijaria com eles, e se orgulharia por alguém dentre eles ter dado à luz uma criança numa mansão da cidade e por um Bendoro ser o seu pai.

O pai não tardou a regressar da entrevista com o Bendoro. Foi direito à cama e beijou a neta, mas a Rapariga não pôde deixar de notar logo o seu ar abatido.

- O que há, papá?

O pai pousou delicadamente a palma da mão na barriguinha da criança.

- Diz lá, papá, o que se passa? Por que não dizes nada?

- Lamento, mas tens de juntar todas as tuas roupas.

- Mas o que está a acontecer, papá?

- Não me perguntes, filha. Não faças perguntas. Temos de ir embora.

- Ir para onde?

- Para casa.

- Para casa?

- Sim, para casa - respondeu bruscamente - já não gostas da tua aldeia?

- Claro que gosto.

- Então prepara-te para regressar. Aqui já não é o teu lugar.

- Que estás tu a dizer, papá? Porquê?

- Que achas? Porque ele se divorciou de ti.

A Rapariga começou toda a tremer e sentiu-se a desmaiar. O pai pôs-lhe rapidamente um braço em volta, evitando que ela caísse.

- Sê forte - disse-lhe -, sê forte.

- Mas, baa... - foi tudo quanto ela conseguiu dizer.

- O que é, na?

- Eu ainda nem sequer lhe apresentei a bebé! Então faz isso agora. Eu vou contigo.

- A sua filha - murmurou ela - a sua própria filha!

- Vamos, eu vou contigo - repetiu ele.

Com a filha na alça de pano e o pai atrás dela, a Rapariga entrou na sala do meio, onde o Bendoro estava sentado numa cadeira de braços, e prostrou-se a seus pés.

- Lamento incomodar-te, Bendoro - disse-lhe ela. Ao pensar apenas na filha, esquecera os seus próprios receios. - Disseram-me que te divorciaste de mim.

- Tens alguma objecção a fazer?

- Sou apenas uma tua criada. Faço o que me ordenas.

- É tudo?

- Não te apresentei esta criança. É tua filha, Bendoro. Apenas tua.

- Deita-a de novo no berço.

- Esta tua humilde serva é a mãe da menina, Bendoro. Como conseguirei cuidar dela na aldeia? Sendo filha de nobres, não a posso criar numa aldeia de pescadores.

- Não te disse para criares a minha filha.

- Senhor, como posso ir-me embora sem a minha filha?

- Não costumas ser tão faladora.

- Uma mãe é capaz de qualquer coisa para proteger o seu filho!

- Sai desta casa imediatamente! Leva contigo as tuas roupas e as tuas jóias. Dou-tas. Já compensei largamente o teu pai, o suficiente para comprar e equipar dois barcos, se ele assim o desejar. Quanto a ti... - e o Bendoro estendeu-lhe um saco cheio de moedas - toma isto. Aqui está a tua compensação. Arranja um bom marido e esquece que algum dia viveste aqui, nesta casa. Estás a perceber? Esquece que me conheceste!

- Sim, Bendoro.

- Toma atenção em fazeres bom uso desse dinheiro e nunca mais ponhas os pés nesta cidade. Se te atreveres a desobedecer-me, a minha maldição cairá sobre ti, ouviste-me?

- Mas para onde irá ela, Bendoro? - protestou o pai, tentando defendê-la.

- Para qualquer sítio, contanto que não fique aqui nesta cidade.

- Sim, Bendoro.

- Nada mais há a dizer. Estão a fazer esperar a carruagem.

- E o meu bebé, senhor? O que vai ser do meu bebé? lastimou-se a Rapariga, desesperada.

- Mas qual é o problema? Pára de pensar nela. Nesta casa há muita gente para cuidar dela. Tira-a da tua cabeça.

- Como posso eu partir sem a minha filha? Nem sequer poderei voltar aqui de vez em quando para a ver?

- Estou a dizer-te que a esqueças. Faz de conta que nunca tiveste um bebé.

A Rapariga começou a soluçar:

- Eu sei que tenho de ir-me embora desta casa, mas como posso partir sem a minha filha?

- Tu não tens uma filha, estás a ouvir-me? Nunca tiveste uma filha!

- Mas, Bendoro.

- Sai já daqui!

- Este dinheiro, estas jóias, não significam nada, se eu não tiver a minha filha, Bendoro!

- Então podes dá-los a ela.

A Rapariga e o pai ficaram sem palavras, enquanto o Bendoro se balouçava para trás e para a frente na sua cadeira.

A Rapariga abandonou a sala, recuando de joelhos, seguida pelo pai. Ao chegar ao quarto, estreitou com força o bebé contra o seu seio.

O pai tentou consolá-la:

- Perdoa-me, perdoa-me. Nunca pensei que tudo iria terminar desta forma.

- Que fiz eu de mal, baa - perguntou ela em voz trémula.

O bebé abriu os olhos e começou a chorar.

- Temos de ir embora, na.

- Eu sei, bapa, mas deixa-me dar-lhe de mamar pela última vez.

- Está bem, deixa-a mamar pela última vez.

A Rapariga desapertou a blusa e deu o seio à filha.

- Bebe - murmurou - bebe.

Com a criança aninhada num dos braços, mamando no seu seio, foi acariciando o cabelo da criança com a outra mão:

- O que não te daria eu? - sussurrou - que sacrifícios não faria eu por ti, minha filhinha! - era difícil lutar contra as lágrimas que teimavam em saltar. - Até o direito de ser tua mãe eu tenho agora de sacrificar por ti, pelo teu bem...

Enquanto a mãe alimentava a filha, o avô, de pé ao lado da cama, abanou a cabeça tristemente, murmurando:

- Desculpa, na, perdoa-me. Nunca pensei que isto viesse a acabar desta maneira.

A Rapariga ergueu os olhos para o pai:

- És um bom homem, baa. Não era intenção tua fazer nada de mal.

- Mas estás a chorar.

- E tu também.

- Que mais posso eu fazer? Qual é o pai que não ama os seus filhos?

- Este é o meu primeiro filho, baak.

- Fui estúpido, um parvo, perdoa-me - implorou ele novamente.

- Nós perdoamos tudo e todos, ba. Só uma coisa é que nunca poderei perdoar...

O pai acenou com a cabeça, em assentimento.

- És sensata para a idade que tens. E tens razão: nenhuma mãe do mundo deveria ser obrigada a desistir dos direitos sobre o seu filho. Não é justo! - afirmou energicamente. Mas uma coisa é certa... Esta minha neta pertencerá à nobreza, não será como nós.

- A vida que os nobres levam é horrível. Podes crer que é horrível, baa. - depois, olhando para a filha - Ó meu bebé, não queres mamar mais?

- Não podemos ficar aqui por muito mais tempo - lembrou-lhe o pai. - Já não temos o direito de estar aqui.

- Ouve o que te digo, bapa. Esta menina é minha filha. Dei-a à luz. Sofri por causa dela. Olha para o nariz dela, baa. É igual ao meu. É a minha menina. Não perdi sangue que chegasse para poder chamá-la minha? - e ia embalando a criança enquanto falava. - És tão linda, tão querida! Depois, olhando para o pai, acrescentou: - e tu és o avô dela, baa. Por que não dizes qualquer coisa?

- Que posso eu dizer, na? Não achas que é duro para mim ver-te, a ti, minha própria filha, em tamanho sofrimento? E o que será dela? Não haverá um fim para isto?

- É a criança que eu gerei, a minha filha, o meu bebé. Que mais posso dizer-te?

Calaram-se os dois, os corações fervendo num tumultuar de emoções e sofrimento.

- Esta casa é como um cemitério.

- É um lugar sem sentimentos, sem coração, duro como pedra.

- Imagine-se! E queriam que construíssemos uma mesquita! Para quê?

- Temos de partir.

- E o meu bebé?

Ouviram uma voz a chamar por eles do outro lado da porta.

- A carruagem está pronta, em frente da casa, Mar Nganten. A Rapariga rebentou em soluços.

- As tuas roupas - lembrou o pai - eu encarrego-me delas.

- Deixa-as ficar, baa. Quanto mais coisas eu deixar aqui, mais motivos ela terá, um dia, para se lembrar da sua mãe.

- Que vais vestir na aldeia?

- O mesmo que toda a gente.

- Oh! Minha filha!.

Tornaram a ouvir alguém chamar:

- A sua carruagem está pronta, Mar Nganten. O pai olhou para a filha que continuava debruçada sobre o berço, com os braços em volta da criança.

- Que queres que eu faça? - perguntou ele.

- É apenas um bebé, papá. Deixa-me acabar de lhe dar de mamar. Quero que fique com a barriguinha cheia. Talvez seja a última vez que se alimenta ao meu seio.

- Mas aqui já não é a tua casa. Vamos levar o bebé lá para fora. Podes dar-lhe de mamar debaixo da árvore, na praça da cidade.

- Ainda é muito pequenina, papá. Ainda não pousou os seus pezinhos no chão, nem ainda lhe cortei o cabelo. O vento do oceano podia pô-la doente.

- Eu sei, eu sei. Mas não temos o direito de estar aqui mais tempo. Tu própria ouviste dizer que a carruagem estava à espera, pronta a levar-nos para casa.

- Seja como for, papá, o Bendoro foi outrora meu marido. Ainda há bem pouco tempo o era. Pode lá ser assim tão cruel para a mãe da sua própria filha?

- Nós somos gente simples, filha. Não somos capazes de avaliar o comportamento da nobreza.

- Eu sei, papá, mas é minha filha.

- Pelo menos podes ter a certeza de que ela irá crescer sem saber o que é a pobreza. Vai aprender a governar e a dar ordens. Aprenderá a dar ordens até mesmo a ti.

- Mas é o meu bebé, papá. Farei o que ela me mandar.

- Não são as ordens que magoam. Tu também sabes isso. Desculpa eu não me ter apercebido antes.

- Ela é a minha filha, papá, trouxe-a a este mundo. Deixa-me ficar um pouco mais com ela. Se isso significa ofender ainda mais o Bendoro, paciência, ela precisa do seio da sua mãe. Amanhã já não estarei aqui para a amamentar. Compreendes, não compreendes, papá?

Sem conseguir responder, o pai pôs-se a andar nervosamente, para cá e para lá. A Rapariga ergueu-se por fim da cama e foi ter com ele.

- Deixa-me falar uma vez mais ao Bendoro, papá. Vai lá para fora e espera por mim debaixo das árvores da praça da cidade, ao lado da mesquita. - ele olhou para ela, sem saber o que fazer. - Não te aflijas, papá. Espera por mim lá fora.

O pai, fazendo-lhe a vontade, saiu do quarto. A Rapariga seguiu-o com o olhar, até ele desaparecer da sua vista. Depois pegou num selandangl, deu-lhe a forma de uma faixa e

 

' Xaile comprido.

 

colocou a criança dentro, beijando vezes sem conta as suas faces, a testa e os seus dedinhos brancos. De repente começou a chorar: - O que vai ser de ti, meu bebé? - Encaminhou-se em seguida para a porta e dirigiu-se à sala onde o Bendoro continuava sentado na cadeira de balouço, com uma cópia do hadith na mão. Sem dizer nada, aproximou-se do Bendoro e sentou-se no chão por detrás dele.

- Mil perdões, Bendoro.

Sem olhar em volta, o Bendoro pousou o livro e tossiu.

- Mil perdões, mas vim entregar-te a minha filha. Ela é tua filha e não é de mais ninguém. Por favor aceita-a.

- Torna a pô-la na cama! - foi tudo quanto ele foi capaz de dizer.

- Não posso fazer isso, senhor.

- Não ouviste o que te disse?

- Eu sou a mãe desta criança. Se o seu pai nem sequer lhe pega ou toma conta dela, então o melhor que tenho a fazer é levá-la comigo para a aldeia.

O Bendoro ergueu-se de um salto com um rugido. A cadeira onde estava sentado ficou a balouçar para cá e para lá, sozinha. Colocando-se em frente da Rapariga, olhou para ela, sentada no chão a seus pés.

- Não me importo se estás zangado, Bendoro - disse-lhe ela -, mas uma criança não é uma jóia - um anel, colar, ou outra coisa qualquer - que se pode entregar a qualquer pessoa.

- Estás a dizer-me que vais raptar a criança? - perguntou ele.

 

' Livro que explica as escrituras do Corão.

 

A Rapariga ergueu a cabeça e fitou o Bendoro bem nos olhos. Depois ergueu-se devagar e permaneceu de pé em frente dele, com a filha dentro da faixa.

- Até uma galinha protege os seus pintainhos, senhor. E estás a falar comigo, um ser humano, mesmo que eu não seja capaz de recitar os versículos da escritura na mesquita!

- Sai já daqui!

A Rapariga de Java voltou as costas ao Bendoro e dirigiu-se para a porta, segurando sempre o bebé.

- Deixa aqui a criança! - berrou o Bendoro -, mas a Rapariga já tinha saído da sala.

O Bendoro agarrou na bengala, colocou o hadith na mesi nha que estava ao seu lado e foi atrás da Rapariga, alcançando-a precisamente quando ela descia as escadas que davam para a cozinha. Todos os criados da casa se tinham juntado do lado de fora da porta, observando a cena, estarrecidos.

- Detenham-na!

Como se fossem um pelotão de soldados, os criados, ho mens e mulheres, correram atrás da Rapariga, cercando-a.

- Eu não sou nenhuma ladra! - gritou a Rapariga em tom de desafio. Tudo o que era meu ficou no quarto. A única coisa que levo comigo é a minha filha.

Dando pontapés aos criados, tentou mantê-los à distân cia, mas juntaram-se-lhes outros, apertando o cerco em volta dela.

- Tu és uma ladra! - vociferou o Bendoro. - Agora larga imediatamente essa criança! Queres que eu chame a polícia? Ou os militares?

- Este bebé é meu! Meu! Eu gerei-o, dei-o à luz, é o fruto das minhas entranhas, mesmo se o pai é um monstro, um demónio. - Os criados tentavam tirar-lhe o bebé dos braços

- Deixem-me! - gritou ela.

De repente foi atingida na boca por qualquer coisa dura, começando a sangrar. Fora o Bendoro quem lhe batera com a bengala. Enquanto estava atordoada pela pancada, o bebé foi-lhe arrancado à força dos seus braços. Tudo o que restou foi uma faixa vazia, descendo-lhe dos ombros até ao ventre.

- É minha filha, é minha filha! - gritou ela, virada para a multidão.

- Lancem-na lá fora! - ordenou o Bendoro.

Os criados, em massa, empurraram-na para o pátio interior, enquanto ela gritava e se debatia. Levantando a cabeça, a Rapariga viu uma mulher à janela do segundo andar do prédio ao lado, fitando-a com um olhar vago. A Rapariga gritou-lhe:

- É o meu bebé! O pai pode ser um demónio dos infernos, mas a criança é minha!

A mulher que estava à janela enxugou os olhos e depois voltou-se rapidamente e fechou a janela.

- Por que é que ele quer roubar-me o meu bebé? Se quisesse, podia fazer uma dúzia deles numa semana. Está só a torturar-me! Sim, ele, o vosso Bendoro, está a torturar a minha filha! Onde está ela? Dêem-ma, por favor!

Os criados foram-na arrastando, fazendo-a passar por outro portão.

- O meu bebé, o meu bebé! Dêem-me o meu bebé!

Reunindo as poucas forças que lhe restavam; tentou manter-se em pé, mas então alguém a empurrou brutalmente e ela caiu no chão ensaibrado. Antes de poder erguer-se de novo, viu, pelo canto dos olhos, o portão do pátio central fechar-se sobre ela. Para sempre. Ouviu em seguida uma voz murmurando:

- Perdoe-nos, Mar mganten!

- Eu quero entrar. Não posso entrar? - implorou.

- Lamento, Mar Mganten, mas não pode. Perdoe-nos por a termos tratado desta maneira.

A Rapariga começou a soluçar, caída na areia.

- Confie em nós, Mar mganten, cuidaremos da sua filha - disse uma das criadas, tentando confortá-la.

- Eu vou andar com ela ao colo e passeá-la à tarde prometeu outra.

- E eu tomarei conta dela durante a noite - ofereceu-se uma outra.

- Obrigada, obrigada! - foi tudo quanto a Rapariga con seguiu dizer.

- Eu ajudo-a a subir para a carruagem, Mar mganten prontificou-se alguém.

A Rapariga não ofereceu resistência quando uma das criadas a ajudou a pôr-se de pé. Aquelas mesmas pessoas que antes a tinham servido foram-na amparando e guiando para fora do pátio da frente, até à rua, e depois até à praça da cidade.

O pai da Rapariga, que descansava à sombra do loureiro que ali havia, ergueu-se de um salto e correu para ela, rodeando-lhe o corpo com o braço e ajudando-a a subir para a carruagem.

Quando esta se pôs em movimento, disse-lhe em tom de consolação:

- Olha, filha, é assim que acontece a gente como nós. Por mais cruel que o mar seja, é mais generoso do que um nobre jamais será.

- Para onde vamos, baa?

- De volta ao lugar onde nasceste, ao lugar onde estão enterrados os teus antepassados.

- Não vou ser capaz de olhar para eles de frente.

- Não há lugar mais generoso do que a nossa própria aldeia, minha filha.

E a carruagem foi rodando pela estrada postal que o Governador-Geral Daendels mandara construir. Nenhum deles prestava a menor atenção à infindável fila de pinheiros que a orlavam. As manchas alternadas de florestas de teca e de mangues ao longo da costa pareciam-lhes como nuvens vogando sem rumo pelo céu escurecido.

- Que vou eu dizer à ema? - perguntou a Rapariga ao pai.

- Não vais ter de dizer nada, na. Uma boa mãe adivinha aquilo por que a sua filha passou, mesmo que ela própria não tenha estado presente.

- Eu adivinho quando a minha filha está a sofrer, baa.

- Chiu! Tenta descansar um pouco. Vê se dormes... A Rapariga sorriu tristemente, recordando as muitas vezes que, à noite, lutara para não adormecer, enquanto aguardava que o Bendoro viesse ao seu quarto. E agora o pai dizia-lhe para dormir e ela não era capaz. O bater rítmico dos cascos dos cavalos na dura superfície da estrada era como um martelo a golpear-lhe o peito.

A Rapariga sentia as pálpebras incrivelmente pesadas. Que vou eu fazer na aldeia? - perguntou para si mesma.

- Papá?

- O que é, filha?

Mas a Rapariga não conseguiu dizer mais nada. Estava a lembrar-se como os aldeões, da última vez que viera à terra, a tinham seguido com archotes e a tinham tratado por "Bendoro putri". Pensou em Mardinah, mas em seguida os seus pensamentos fugiram-lhe imediatamente para a filha.

Estaria a chorar nesse momento, a sua queridinha? A Rapariga levou a mão ao seio. A blusa estava molhada de leite. Para que serviriam agora os seus seios? Mas não, a sua filha tinha mamado neles; não podia deixar-se arrastar por pensamentos destes.

Lembrou-se então do Bendoro: alto e esguio, nada musculado, mas que domínio ele exercia, embora nunca tivesse andado na faina do mar! O que iria ele ensinar à sua filha? A olhá-la de lado a ela, sua própria mãe? Meu Deus, se ela quando crescesse ficasse igual ao pai?

- Talvez tenha sido melhor assim...

- O que estás a dizer?

- Quando o meu bebé crescer e descobrir que a mãe não é ninguém, apenas uma rapariga de uma aldeia de pescadores, talvez fique envergonhada de ter uma mãe assim.

- Minha filha, por que dizes coisas dessas?

- Sim, talvez tenha sido tudo pelo melhor, apesar de custar tanto. Será preferivel não conhecer a mãe. Pode ficar parecida com o pai. Aprenderá a dar ordens. Viverá numa grande mansão e nem sequer terá alguma vez de olhar para

o mar. É isso que eu tenho de lhe dar, papá. É o que eu lhe devo dar.

O Sol, por sobre as suas cabeças, tinha ultrapassado o zénite e as nuvens esparsas que de vez em quando obscureciam o Sol projectavam sombras escuras.

- Está tanto calor e o ar tão abafado que não tarda nada está a chover!

Era tão bom estar dentro da mansão quando chovia! Nunca ficava molhada. Nunca uma gota de chuva lhe caiu sobre o corpo. À medida que as nuvens se adensavam e o céu ficava mais escuro, o ribombar do trovão fez-se ouvir, à mistura com o bramido do mar. Quando a chuva refrescante começou a cair, o cavalo, extenuado pelo esforço, recobrou ânimo e pôs- se a trotar mais ligeiro. Parou a chuva. A carruagem chegara ao fim da estrada e já não podia seguir para diante. A Rapariga apeou-se e olhou à sua volta. As árvores eram as mesmas, apenas mais escuras e verdes, molhadas como estavam agora pela chuva.

Ouviu um choro de bebé e os seus seios incharam de tal maneira por causa do leite que latejavam. Encaminhou-se vagarosamente e em passo de sonâmbula pelo carreiro que levava à aldeia, descalça. Sem as sandálias que tinha calçado nos últimos anos, e de que, com a pressa com que saíra, se esquecera, sentia nas solas dos pés a carícia da areia fina e húmida. Olhou para o chão e estacou, espantada com a distância entre as pegadas que deixara na areia, agora muito maiores do que quando deixara a aldeia, quatro anos atrás. Sentiu mais uma vez o peito a latejar e um arrepio a percorrer-lhe o corpo. Ouviu de novo o choro do seu bebé.

Ela, a sua filha, viria a pertencer à nobreza e viveria numa mansão. Aprenderia a mandar... Não, não... detestava a classe nobre e aqueles lugares infernais, aqueles edifícios de pedra, a que chamavam lar, dentro dos quais os choros das pessoas nunca se ouviam. Não iriam ouvir o choro da sua filha, quando ela chorasse! E, quando ela crescesse, também ela não ia ouvir os queixumes da mãe. Tal como acontecia desde tempos imemoriais, iria dar-lhe ordens e tratá-la como a uma aldeã, do mesmo modo que o seu próprio pai, o Bendoro, a tratara durante o tempo que vivera com ele.

- Alá Todo-Poderoso, faz com que a minha filha nunca me reconheça! Faz com que eu nunca mais a veja. Mas protege-a, a esta minha filha que nunca conhecerá a mãe, mas que provou um dia o seu leite!

Baixou os olhos, observando novamente as grandes pegadas que deixara na areia. Quando os ergueu, viu o pai, parado em frente dela.

- Vais ser tratada tal e qual como foste quando nasceste, filha - disse-lhe ele. - A aldeia em peso virá receber-te e abençoar-te.

Lembrou-se então do dia em que a filha tinha nascido e de como viera a este mundo, apenas com a sua mãe para lhe dar as boas-vindas. O seu próprio pai não evidenciara o menor interesse por ela.

- A vida na aldeia é dura, tu sabes isso, principalmente depois de teres vivido na cidade.

A Rapariga deu mais dois passos, mas parou de repente, e voltando-se, gritou para o cocheiro:

- Espera, não te vás embora!

- Que estás a fazer, filha? - perguntou-lhe o pai.

- Não posso voltar para a aldeia, papá. Prefiro ir para algum lugar longe daqui. - Deixou-se cair no chão e beijou os pés do pai. A sua túnica de bati ficou coberta de areia molhada.

- Perdoa-me, papá. Não seria capaz de encarar com a mãe, ou com os vizinhos, ou com alguém da aldeia. Perdoa-me, mas tenho de me governar por mim mesma.

- Prometeste não voltar à cidade, lembras-te, filha?

- Volto para lá, mas não para ficar. Amanhã irei para o Sul.

- Para onde?

- Para Blora, papá.

- Conheces lá alguém?

- Tive em tempos uma criada que foi mandada embora, tal como eu. Talvez a encontre lá, papá.

- Devias ficar aqui, filha, na tua própria aldeia. Nunca viveste noutro lugar.

- Mil perdões, papá, mas vai para casa sem mim. Compra um barco novo em Lasem. Vai fazer as vezes da tua filha. E pede perdão por mim à mãe, ao resto da familia e às outras pessoas da aldeia. Façam de conta que morri. O barco vai dar-te mais gosto e alegria do que eu própria poderia proporcionar-te.

A Rapariga pôs-se de pé e abraçou o pai, que estava atónito, sem saber o que fazer. Meteu-lhe a mão na algibeira e tirou umas poucas moedas de prata.

- Perdoa-me por levar este dinheiro, mas é o que preciso por agora.

Depois de um último abraço, virou costas e encaminhou-se, decidida, para a carruagem, subindo para o lugar ao lado do cocheiro.

- Leva-me de volta à cidade - ordenou ela.

O homem olhou para a Rapariga e depois para o pai:

- Que devo fazer? - gritou. Mas o pai apenas abanou a cabeça.

Tirando o chicote das mãos do cocheiro, a Rapariga chi coteou o cavalo ao de leve no flanco, fazendo-o dar um pinote para a frente e começar a trotar. As rodas da carruagem rodaram através da areia, em direcção à estrada postal. A Rapariga de Java, sem se voltar para trás, manteve os olhos fixos no caminho que se abria à sua frente.

Dizem que, no mês que se seguiu, parava frequentemente uma carruagem do lado de fora do portão da frente da residência do Bendoro e um rosto espreitava por detrás das cortinas. Depois, a carruagem nunca mais voltou, e tão-pouco se soube ao certo a quem pertencia aquele rosto que ficava a olhar para a mansão, por detrás das cortinas da carruagem.

 

                 EPÍLOGO

No mês que se seguiu ao seu divórcio e expulsão da casa do Bendoro, a Rapariga de Java foi à mansão dele quase diariamente, esperando vislumbrar apenas mais uma vez a filha que tivera de abandonar. Mas a sorte não estava do seu lado e, por fim, com a bolsa quase vazia e o coração a desfalecer de desânimo, partiu de Rembang, dirigindo-se para o Sul, através da parte central da ilha. Nunca mais regressaria àquela cidade, decidiu ela; a dor que as recordações lhe infligiam seria demasiado forte. Tão-pouco voltaria à aldeia de pescadores onde nascera. Era preferível que a familia e os amigos a recordassem como a Rapariga de Java, uma conterrânea que conseguira fugir ao ciclo de pobreza de lá, do que viver o resto dos seus dias com olhos de comiseração postos nela. Ao empreender a viagem em direcção ao Sul pensou que talvez com um pouco de sorte conseguisse localizar a bondosa criada que outrora a ajudara a enfrentar os sobrinhos do Bendoro. Fora por causa disso que tivera de sair de Rembang e nunca mais ninguém soube do seu paradeiro.

Embora as criadas do Bendoro tivessem ajudado a expulsar da casa do amo aquela que fora a sua patroa, a Rapariga de Java, haviam-no feito levadas pelo medo e não por má vontade. Cada uma delas prometera em silêncio, se não em voz alta, que cumpriria a promessa de cuidar e interessar-se pela filha que a sua jovem patroa fora obrigada a deixar naquela casa.

Na devida altura, o Bendoro acabou por casar com uma nobre de Demak, da mesma classe social que a sua e, conquanto inicialmente ela tivesse ficado muitíssimo aborrecida por ir encontrar tantas crianças em casa do marido - os bastardos (tal como ela os considerava) resultantes dos "casamentos para praticar" do seu marido -, não podia pura e simplesmente bani-los da casa para fora; eram, apesar de tudo, da responsabilidade do Bendoro. Cuidar das crianças, alimentá-las e vesti-las eram atribuições que pertenciam ao pessoal da casa. No entanto, nesses dias de crescente liberalização, em que era suposto os filhos dos nobres falarem holandês correntemente e estarem familiarizados com a etiqueta ocidental, ela procurou, na verdade, que eles recebessem educação, até mesmo a filha da Rapariga de Java, a quem tinha dado o nome de Sa'idah.

Criada no luxo e na opulência, com uma variedade de oportunidades que muito poucas crianças da sua geração puderam usufruir, Sa idah, ao crescer, transformou-se numa rapariga graciosa e inteligente. Era letrada, de modos requintados e falava holandês e javanês com igual facilidade. Enquanto adolescente, foi uma das melhores alunas da HIS, Hoogere Inlandsch School, a escola de língua holandesa para crianças, frequentada pela classe alta e que dava directamente para a praça da cidade, junto à propriedade do pai.

O director da escola - e também um dos professores de Sa'idah - adoptara o nome Toer como nome de família. Quando se transferira para Rembang a fim de tomar posse do cargo foi imediatamente fazer uma visita ao Bendoro, arrendando uma casa de dois andares que fazia parte da propriedade deste.

Mas Toer, como era chamado, era um homem de muitos talentos - educador, compositor e escritor, entre outros - e a sua disciplina de ferro constituía um belo exemplo para os seus alunos. Mas o que o tornava um ser aparte em relação aos colegas era o profundo sentido de nacionalismo que o animava. Embora as ideias que professava o fizessem entrar com frequência em conflito com as autoridades governamentais holandesas, foi precisamente esta sua natureza de livre-pensador que primeiro atraiu a jovem Sa'idah. Reconhecia nele simultaneamente amor pelo país e pelo povo - sobretudo pela classe mais desfavorecida, por cujas mãos ela tinha sido educada - e a urgência de uma independência mais ampla do que aquela que era permitida tanto pelo governo holandês como pela repressão da nobreza javanesa. Apesar de Mas Toer não ser já um rapaz - tinha trinta e cinco anos e ainda era solteiro, por ter a seu cargo vários jovens da família que haviam ficado órfãos - Sa'idah também já não se poderia considerar assim tão jovem. Na verdade, com dezoito anos, estava praticamente no limiar de ser considerada uma solteirona.

À esposa do Bendoro não desagradava a crescente afeição entre Mar Toer e a sua enteada Sa'idah. Como ela própria tinha filhos, esses, sem qualquer mistura de sangue plebeu nas veias, encorajou a relação da rapariga e, quando o marido morreu subitamente, deu a escolher a Sa'idah: ou sair de casa e tratar de arranjar um emprego, ou casar com Ma. Toer. Não poderia continuar a encarregar-se dela.

E foi assim que Sa'idah, filha da Rapariga de Java, veio a casar com Mas Toer, o director nacionalista da sua escola. Mas, ao ter nova desavença com as autoridades holandesas, por causa do conteúdo nacionalista das suas aulas, o professor viu por momentos o futuro apresentar-se mais incerto do que de início se poderia supor. Contudo, e felizmente para ele, os administradores do sistema de ensino Budi Utomo, de orientação nacionalista, aperceberam-se dos seus dotes e chamaram-no para fundar uma nova escola Budi Utomo em Blora. Foi então que ele e Sa'idah fizeram as malas e para lá se encaminharam, dispostos a iniciarem uma nova etapa das suas vidas.

Um dia, pouco depois de se terem instalado em Blora, quando Mar Toer estava na escola a dar aulas e Sa'idah em casa, tentando arranjá-la a seu gosto, apareceu-lhe à porta uma mulher, carregando às costas um grande cesto de vime, à procura de roupas velhas e quinquilharia para vender no mercado de velharias. Algo no aspecto daquela mulher, no seu porte - talvez o espírito de independência que nela transparecia - cativou de imediato Sa'idah e, embora se sentisse muito cansada naquele momento, em vez de a mandar embora sem mais delongas, como se fosse mais um pedinte à procura de uns restos de comida, convidou-a a sentar-se com ela na varanda da frente, para descansar e tomar uma chávena de chá.

Não obstante a evidente falta de educação convencional, Sa'idah em breve se apercebeu de que a mulher conseguia seguir com toda a facilidade a conversa que entabularam e exprimir os seus próprios pontos de vista, coisa que muito estranhou, dada a enorme distância social entre elas.

Quando Sa'idah lhe perguntou onde obtivera aquele traço de independência que entrevia no seu carácter, a mulher respondeu que tinha sido a vida que se encarregara de lho conferir. Embora o destino a tivesse levado para longe da aldeia onde nascera e lhe tivesse arrancado dos braços a única filha que dera à luz, também lhe concedera a força necessária para se governar na vida por sua própria conta. A única coisa que lamentava, para além de ter perdido a filha, era não ter conseguido ter outra criança no seu segundo casamento.

- Mas, ao deixar a sua aldeia, para onde é que foi a seguir? Para onde a levaram? - perguntou-lhe Sa'idah.

- Fui dada em casamento a um nobre de Rembang. Vivi aí numa mansão, cheia de criados, até que a minha filha nasceu e fui expulsa de lá.

Sa'idah fitou a mulher com crescente emoção a transparecer-lhe no rosto:

- E quem era o seu marido? - inquiriu, ansiosa.

- Eu tratava-o por Bendoro, evidentemente, mas era o ajudante do Residente.

- O quê? Esse era o meu pai! - exclamou Sa'idah. Naquele mesmo instante, as duas mulheres compreenderam que havia um laço a uni-las e na conversa apressada que se seguiu ficaram a saber qual era a verdade sobre o seu parentesco.

Finalmente, ao cabo de quase duas décadas, a Rapariga de Java encontrou a filha que lhe fora arrebatada dos braços.

 

' Título dado a alguns funcionários coloniais.

 

Nos dias e meses que se seguiram, Sa'idah passou com a mãe todos os momentos livres de que dispunha. À medida que os anos foram passando e que Sa'idah foi tendo os seus nove filhos, pediu várias vezes à mãe que fosse viver com ela, mas ela, apesar da sua vida dura, recusou sempre; prezava de mais a sua independência. No entanto, ia visitá-la sempre que podia, vindo a desempenhar um papel preponderante na educação dos filhos do casal, sobretudo do seu neto mais velho, um rapaz chamado Pramoedya que, quando o pai foi expulso do seu cargo de professor e a mãe morreu de tuberculose, veio a ser o ganha-pão da família.

Era tal o amor que o neto nutria pela avó que dois anos depois da morte da mãe, quando ela própria se encontrava gravemente doente, lhe prometeu que, um dia, iria tentar contar ao mundo inteiro a história da vida dela.

- Mas porquê? - perguntou a avó humildemente. - Eu não sou ninguém, apenas uma Rapariga de Java.

- Mas tu, avó, simbolizas todos - disse-lhe o jovem Pra moedya. - Tu personificas todos aqueles que tiveram sempre de lutar para fazer desta vida a sua própria vida. 

 

                                                                                Pramoedya Ananta Toer  

 

 

                      

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