Biblio "SEBO"
O avião estremeceu quando uma das rodas tocou na pista e de seguida inclinou-se para o lado contrário. Recuperado o equilíbrio, os travões funcionaram. Eu soltei a respiração contida e olhei pela janela. O vento soprava forte e abanava as palmeiras que desfilavam lá fora, aos solavancos, como uma imagem estremecida num écran de televisão. Daí a pouco surgiu a aerogare. Um edifício baixo, de um só piso, como os que servem os aeroportos de cidadezinhas de província. Quando por fim o 727, após uma curva suave, foi imobilizar-se mesmo defronte da entrada, desapertei o cinto e reflecti. Ali estava eu prestes a desembarcar na sala de trânsito de uma pequena cidade simples e hospitaleira, de longo passado romântico -e histórico. Assim diziam os prospectos. Onde a vida decorre calma e o visitante pode passear os seus ócios no contacto saudável com as gentes e o animado comércio da terra. Onde o mar é azul, a montanha aprazível e a comida agradável. Porta de entrada num país exótico de um continente imenso.
Só que não foi exactamente isso que fui encontrar. Porque nessa cidadezinha pacata vivi o maior pesadelo da minha existência, travei relações com uma organização gigantesca de tráfico de armas e estupefacientes, fui vítima de duas tentativas de assassinato, e uma vítima de assassínio foi abatida no meu quarto de hotel.
Nessa cidade pacata, também, conheci a mulher mais fascinante da minha vida.
Eu acabara de aterrar no aeroporto internacional de Tânger. E o meu nome é Gold. Frank Gold.
Ao descer a escada do avião, a rajada que soprou quase me ia levando. Mas a temperatura era amena: 22". Até ver.
O táxi que me conduziu rumo ao centro da cidade era um Simca com mais de trinta anos de uso e o motorista falava uma mistura de francês e espanhol. O que por um lado era cómodo, porque eu não percebia quase nada, mas por outro se tornava ligeiramente perigoso, pois, ao receber em resposta apenas alguns “sim” ou “não”, ele virava-se todo no banco, largava o volante e inquiria repetidamente:
- Comprende? Comprenez?
Eu retorquia rápida e decididamente que sim, senhor, compreendia tudo, mas creio que só por as ruas serem largas e pouco movimentadas não fomos parar à valeta ou enfeixar-nos em qualquer obstáculo. Percorremos assim, alegremente, todo o percurso, que, segundo percebi, compreendeu quatro avenidas, duas praças e uma mesquita, até que fomos desembocar a um largo onde ele meteu ambos os pés ao travão e exclamou alegremente:
- Voilà.
Friccionei o peito magoado no varão de ferro das costas do banco da frente, olhei para um e outro lado e inquiri:
- Voilà, o quê?
- Place de France.
Havia movimento, cafés de largas vidraças e um vago estilo colonial dos velhos tempos. No meu programa, porém, isso figurava depois.
- E então, amigo?
Cuspiu uma beata mastigada que vinha a usar ao canto da boca, abriu os braços e declarou:
- Centre de la ville.
Eu fiz um esforço mental, ainda com o peito a doer-me, coloquei as mãos no varão, inclinei-me para a frente e forcei um sorriso.
- Oiça. Eu - apontei para uma costela, talvez fracturada - quero ir para o Hotel Continental. Percebeu?
Ignorando o meu sorriso horrível, soltou uma gargalhada imensa entre dois pulos no assento, e quando se deu por satisfeito concluiu:
- Alors, é para trás!
A manobra que fez em seguida ainda hoje não a compreendi bem. Mas o velho Simca não só aguentou como ficou virado no sentido inverso e arrancou disparado. Felizmente, não durou muito, o percurso.
E quando eu já julgava que íamos passar todas as tabuletas que indicavam o sítio, tal como passáramos dois sinais vermelhos, aqueles travões hidráulicos funcionaram novamente, e nós fomos enfiar com um guinchar aflitivo pelos portões do hotel para ir estacar defronte da entrada imponente e de um porteiro trajado à moda da casa, que com o susto perdera todo o brio. Avançou direito a nós, a ajeitar com uma das mãos o barrete e a apontar ameaçadoramente a outra para o meu motorista.
Enquanto gritavam os dois, eu saí do carro e fiquei a aguardar. Quando deram por isso abriram ambos os rostos em sorrisos rasgados e vieram dar-me uma ajuda, acompanhados de mais um elemento da equipa do hotel, que agarrou logo nas malas e era o tipo mais feio que eu já alguma vez tivera à minha beira. Exibiu no entanto uns dentes magníficos, disse “Ahmed”, e eu não soube logo se era uma saudação ou uma apresentação.
Paguei então a corrida, incluí uma gorjeta e tentei despedir-me do condutor, que me fazia uma vénia quase até ao chão. Estranhamente, só nessa altura reparei que era um tipo grande e forte.
- Merci beaucoup, monsieur. O meu nome é Felipe. Às ordens para tudo. É só telefonar. Ahmed sabe. Tudo o que quiser. Ce soir, visitar sítios muito agradáveis. Very ni-ce. - Piscou os olhos e levou a mão à orelha. - Amanhã, Kasbah... Felipe vem logo às oito. Merci beaucoup.
Quando eu ia para falar, o Simca arrancou com o escape a arrastar pelo chão.
Fui escoltado pelo Ahmed através do átrio moderno e espaçoso até à recepção, onde três tipos igualmente fardados se fartavam de trabalhar em ocupações tão importantes como pendurar uma chave no cacifo, introduzir um sobrescrito num dos compartimentos da correspondência, ou limpar as unhas com o bico de uma esferográfica.
- Name, please?-inquiriu um deles, com tanta brilhantina no cabelo negro e liso que eu quase me via ao espelho.
- Gold. Frank Gold.
Foi consultar o registo, enquanto eu depositava o passaporte em cima do balcão.
- Quarto 612. Vista muito boa. Sobre a piscina. Ahmed, acompanha Mr. Gold.
- Algum recado para mim? - quis saber.
Falou para os outros, e o que se entretinha a limpar as unhas enfiou rapidamente as mãos nos bolsos e veio esclarecer com um sorriso polido.
- Sim, Mr. Gold. Uma senhora espera Mr. Gold no bar. Queira acompanhar-me.
Fiz sinal a Ahmed para ir andando, detive-me no caminho apenas o tempo suficiente para passar pelos lavabos, e tomei a direcção que o braço estendido do empregado de unhas limpas me indicava.
Ela estava ao balcão, empoleirada num tamborete. E, meu Deus, que mulher! Francesca. Fisicamente, uma obra de arte. Pensava nela o poeta quando escreveu: “Tal uma chama, tal como vinho derramado sobre a lagoa tranquila a transformou numa torrente de sol-pôr... assim se exaltam os meus sonhos.”
Francesca dispensava a imaginação do poeta e constituía um desafio ao talento de qualquer artista. Eu, que o não sou, ao contemplá-la via nela muito mais do que podia observar. E o que eu e qualquer um podia ver era o limite do que um homem consegue tolerar. Francesca tem cabelos longos, de um castanho-claro que às vezes é cor de cobre e outras é cor de sol. O rosto de Francesca é tão perfeito que os olhos violeta, a boca linda e desejável, e todos os traços suaves que o compõem constituem cada um peça notável de uma harmonia completa. E todo o seu corpo de pele branca muito levemente dourada pela brisa do mar é tão belo como a mais bela estátua e encerra tanta vida como a própria vida contém.
Usava um vestido justo de seda estampada, com um decote rasgado a permitir o espectáculo da metade superior dos seios soberbos, e na saia a abertura do lado esquerdo descobria o pedaço de perna mais excitante que é possível exibir. Usava esse vestido com a mesma distinção com que usa os gestos, os pensamentos e as palavras.
Depois, desprende-se de Francesca tudo aquilo que não se vê, apenas se sente, mas é impossível descrever. Junto de Francesca um homem tem de acreditar que Deus existe.
Voltou lentamente a cabeça, olhou-me e sorriu. Eu fiquei onde estava. Ela escorregou para o chão e veio caminhando até mim, num baloiçar suave, deslizante e natural. Quando chegou mesmo perto ergueu-se nas pontas dos sapatos, colou os lábios aos meus, passou os braços longos por trás da minha nuca e acariciou-a com os dedos finos e macios. Tudo isto durou poucos segundos. Mas, quando terminou, eu sentia-me como se tivesse bebido um bom uísque escocês e fumado uma cigarrilha de Havana depois de longamente massajado após uma sauna reconfortante.
As narinas dilataram-se-lhe suavemente, eu suspirei fundo e ela disse com um sorriso, naquela voz de uma brisa morna que nos envolve e afaga:
- Bem-vindo, Frank.
Puxou-me pela mão até ao local que ocupava antes e convidou-me a sentar ao lado dela.
- Então, Frank? Não dizes nada? Ofereço-te a primeira bebida em Tânger. Talvez ajude...
Fiz que sim, sem lhe confessar que já tinha tomado dois uísques a bordo. Encomendei um JB só com gelo e um martini para ela. Inspirei fundo e fitei-a. O que exige um certo autodomínio.
- Aqui estou-declarei estupidamente.
Colocou uma mão sobre a minha e com a outra meteu-me um cigarro na boca e acendeu-o com o isqueiro de ouro que eu lhe oferecera em Singapura.
- Desabafa, querido.
- Estavas há muito tempo à minha espera?
- Meia hora. Não fui ao aeroporto porque detesto chegadas, partidas e demoras. Por isso aguardei aqui, enquanto pensava em ti. Ainda gostas de mim?
Chegaram as bebidas, e ainda bem. Despejei um bom trago e deixei que o líquido macio escorregasse e diluísse tudo o que ia lá por dentro. Só depois respondi.
- Cada vez mais.- Ia acrescentar “quanto mais conheço as pessoas...”, mas achei que era demasiado banal.
-...mais gostas de mim-concluiu.
- Exactamente.
- Sofreste muito, Frank?
- Um bocado, menina. Mas, como me afirmou um jornalista e grande amigo que tu conheces, a gente tem de chegar à conclusão de que durante uma parte da vida deu importância a muita coisa que não significava nem sequer um bocadinho.
- Já obtiveste o divórcio?
- O mês passado.
- E os miúdos?
- Essa foi a parte pior. Foram entregues à mãe, quando ela os reclamou. Sabes como é...
- Sei. E esses dois anos que eles viveram contigo não contaram nada?
- Não. A outra parte alegou que eu tinha uma vida profissional demasiado intensa. Além disso, Pat é a mãe deles.
- Viste o Kramer contra Kramer?
- Vi. Muito mau. - Virei-me para ela e esbocei um sorriso que já não me custou esforço nenhum. - E agora, pronto. Já desabafei. Vamos conversar?
- Sim. Para uma mesa.-Falou para o barman:
- Tamin, leva-nos outra bebida, está bem?
O tipo contemplava-a como se ela fosse a mãe do Profeta, mas pareceu-me ter percebido. Seguiu-se novamente aquela operação de descruzar as pernas, com a saia a abrir-se mais, e o deslizar por ali abaixo, agora roçando o corpo no meu. Senti vontade de agarrá-la ali mesmo e beijá-la outra vez. Foi o que fiz. Ela não ficou nada surpreendida. Já esperava.
- Gostavas de fazer amor comigo, Frank?
Ergui o sobrolho esquerdo e tentei compor o ar ligeiramente trocista com que já antes tivera de enfrentar a questão.
- Sabes que sim, boneca.
Conduzi-a até à mesa. Para além de nós, apenas se encontrava no local, àquela hora de pouco movimento, um casal estrangeiro, provavelmente europeu, de meia-idade e ar próspero, que desenvolvia todos os esforços para dar a entender que não reparava em nós.
Sentámo-nos. Francesca poisou os cotovelos no bordo da mesa e o queixo nas palmas das mãos, aguardando que eu continuasse a recitar o que ela já sabia de cor.
- Expliquei-te já que acho isso tão natural como tanta coisa boa que podemos fazer na vida. Já tem sucedido, assim, entre cada um de nós e outras pessoas. Mas, entre os dois, ou as coisas aconteciam de uma forma especial, e então era o fim do mundo e entre nós tudo passaria a ser diferente, ou saíamos desencantados da experiência, e então também algo poderia mudar. Acontece que eu não arrisco. Entendido?
Claro que percebia. E concordava.
- E agora, que já fiz um belo discurso, diz-me o que se passa.
Ela acendeu um cigarro e antes de falar percorreu discretamente a sala com os olhos.
- Suponho que te resumiram a situação, quando te telefonaram para Madrid. Pensaram certamente que andavas a perder o teu tempo, pois era aqui que estava a decorrer a acção.
- Bem - interrompi-, em Madrid eu não estava exactamente a perder tempo.-Sorri e acrescentei:-Estava de férias. O único problema era o calor...
- Claro que estavas de férias. Mas, se eu bem conheço o teu chefe, ele não é sujeito que financie digressões turísticas à Europa, a menos que lucre alguma coisa com isso. E tu conhece-lo ainda melhor do que eu. Além disso, meu querido, se em Madrid estava calor, tenho o palpite que isto por aqui vai aquecer muito mais.
- Estou a morrer de curiosidade, meu amor-declarei com um suspiro, para disfarçar a impaciência que sentia.
- Ainda bem que consegui interessar-te. - Humedeceu com a ponta da língua o lábio inferior. Oh, se interessava. Em muitos aspectos, até.-Então aí vai. De há uma semana para cá, aterraram aqui em Tânger, e mais para o Sul, a uns quilómetros de Casablanca, vindos da Bolívia, três aviões da frota particular do teu amigo González.
Sim, isso tinham-me dito pelo telefone.
- E qual o motivo declarado da visita?
- Segundo os jornais, uma reunião preparatória entre os presidentes de vários bancos e consórcios internacionais empenhados em investir em força no desenvolvimento do turismo local. As fontes governamentais confirmam, pelo que é de crer que haja alguma verdade nisso.
Encolhi os ombros.
- Uma fachada, não é?
- Sem dúvida. Mas agora prepara-te para o melhor. - Fitou-me bem a direito. - O próprio Adolfo González acaba de chegar, incógnito, acompanhado da mulher, Trini, e da filha Juana. Que tal?
Tive um estremecimento.
- Férias? - E larguei uma risada nervosa.
Mas não sentia vontade de rir. Havia vinte anos que Adolfo González não saía da sua propriedade de Santa Cruz, e mais de dez que ninguém lhe punha a vista em cima.
Por uma fracção de tempo muito breve, mas através de um daqueles processos mentais que o nosso cérebro frequentemente desenvolve e nós não conseguimos explicar, passaram-me velozmente pela cabeça centenas de imagens relacionadas com o motivo da minha presença ali.
Conhecera Francesca precisamente na Bolívia, no ano anterior. Devido a um conjunto de circunstâncias, eu, em serviço do meu jornal, o Chronicle de Washington, Francesca Spranger, que na altura trabalhava para o Womarís Now, e Al Chasey, um repórter destacado da imprensa diária de Nova Iorque e meu amigo de há muito, encontráramo-nos em La Paz. Todos íamos ao mesmo: tentar penetrar a rede dos mais destacados traficantes de droga e dos maiores exportadores de cocaína do continente americano. Pela minha parte tudo correra sobre rodas, incluindo entrevistas com alguns traficantes, com o ministro do Interior e o secretário da Presidência da República. Até que o Al Chasey me informou que arranjara um contacto que lhe permitiria obter provas de que o próprio presidente protegia o grande patrão da organização, Adolfo González.
Separámo-nos e cada um foi farejar por seu lado. Só que Al se meteu numa embrulhada tal que, decorrida que foi uma semana sem sabermos do seu paradeiro, acabámos por ser detidos os dois, Francesca e eu, quando nos dirigíamos ao palácio do presidente a tentar esclarecer o que se passava. Daí a dois dias meteram-nos num avião que nos levou a Miami. Só aí viemos a saber que o nosso amigo estava preso em La Paz, acusado de ofensas pessoais ao presidente.
Para abreviar a história, apenas direi que só graças ao esforço conjunto de uma parte importante da imprensa americana e de um mês de intensas diligências diplomáticas é que conseguimos recuperar o Al Chasey, que vinha mais desmoralizado do que se tivesse apanhado paludismo, mas apesar disso com uma revolta tão grande que declarava a toda a gente que havia de prosseguir até o matarem. Quis ainda esclarecer-nos que, ao ser advertido pelo ministro do Interior, notoriamente envolvido no assunto, apenas tinha chamado alguns nomes bovinos à mãe do ministro, à do próprio presidente Garcia, assim como ao resto da família deste, e a todo o clã González.
Acresce que, como prémio -noblesse oblige -, o director do Sun, George Brannigan, transferira o Chasey, por tempo indeterminado, para o serviço de necrologia, casamentos e cartas ao director. De modo que o desgraçado, agora, queria também matar o Brannigan.
- O Chasey, tens tido notícias dele?
Francesca franziu o sobrolho e entreabriu os lábios. Decorrida uma breve pausa, perguntou:
- Frank, tens estado a escutar-me?
- Tenho. Mas preciso que vás respondendo ao que eu te pergunto. É mais fácil para mim. A nuvem passou e ela assentiu.
- Bom. O Chasey continua com dono, lá em Nova Iorque.
Abanei a cabeça.
- Duvido. Ele vai aparecer por aí. - Depois acrescentei:-Mas esperemos que não. Quanto ao González? Acreditas que eles estão a estender os braços? É isso?
Acenou afirmativamente, com veemência.
- Penso que é isso, exactamente. O Adolfo González, com o apoio dos próprios responsáveis bolivianos, dos bancos que controla na América do Sul e do Central Bank de Miami, que também está nas mãos da organização, pretende fornecer directamente a Europa e o Norte de África, via Lisboa, Madrid e Tânger.
- Okay - disse eu.- Mas, pela minha parte, acrescentarei: isso não seria difícil. Não suficientemente difícil para uma organização como a de González de modo a justificar que ele fizesse aquilo que nunca fez: expor-se pessoalmente. Eu penso... -Sentia-me um pouco fatigado, mas o facto de Francesca me escutar agora com atenção redobrada deu-me alento -...penso que o que González pretende é o controlo absoluto de todas as rotas de tráfico de drogas -de todo o tipo de drogas- para a Europa e os Estados Unidos, e especialmente das rotas de Singapura e do Norte de África, no que se refere ao ópio da Turquia, do Médio Oriente e do Sudeste asiático.
Francesca brincava com o isqueiro de ouro. Parecia descontraída, mas começava a ficar enervada. O panorama que eu lhe descrevia era tão vasto que impressionaria qualquer um minimamente iniciado no assunto.
Semicerrou os olhos e resolveu finalmente utilizar o isqueiro para acender outro cigarro.
- Acreditas que é isso?
Fiz que sim, duas, três vezes. -Tenho a certeza. -Bom, então...
Esbocei um sorriso animador e percorri-lhe com o indicador as costas da mão apoiada na mesa.
- Então, vamos a isso. Contactos, tens?
A perspectiva de acção imediata diluiu-lhe ligeiros vincos na testa, e o rosto iluminou-se.
- Sim, Frank. Não tenho perdido tempo, desde que fui alertada para o que estava a passar-se. Tenho montes de contactos - afirmou com entusiasmo. E adiantou, com o ar triunfante de um miúdo que ganhou um prémio na escola: - Adivinha o que eu te arranjei para esta primeira noite em Tânger!
- Diz lá... Uma tangerina!
Soltou uma daquelas gargalhadas que eram música aos meus ouvidos.
- Por favor, Frank! Não te basto eu? Não... Uma festa! Raios... podia ser interessante... ou um frete.
- Vamos a isso - avancei confiante. - Onde e a que horas?
- Às dez. No Consulado da Bolívia. Organizada pela filha de González.
As instalações que eu ocupava compreendiam um quarto, sala e casa de banho. Tudo espaçoso, moderno e organizado. Após ter-me despedido de Francesca até logo à noite subira a pôr as coisas em ordem, incluindo o meu corpo, que bem precisava. Desarrumei a bagagem, tomei um duche, liguei para a recepção a deixar recado a Ahmed para que confirmasse para as oito com Felipe, e fui-me deitar.
O sono foi um bocado agitado, e nele misturaram-se imagens agradáveis de um flamenco em Madrid na companhia de duas andaluzas, cenas eróticas em que participavam Francesca e uma bailarina de dança do ventre, tudo acompanhado por um bongó, depois dois, três e muitos, que num ritmo frenético se sobrepunha às violas e cantadores do pátio madrileno, e cenas muito menos eróticas e mais violentas, com a intervenção de Al Chasey e elementos provenientes do gang de Santa Cruz, e que incluíam torturas que me eram infligidas por camponeses que me escancaravam a boca e me enfiavam folhas enormes pelas goelas abaixo até eu já não conseguir respirar. Tudo isso e mais o cheiro horrível a éter, acetona e ácido sulfúrico com que eles fabricavam a coca e me molhavam o corpo com a intenção de pegar fogo a seguir.
Acordei sufocado, transpirado e com náuseas. Percebi, através do reposteiro, que lá fora ainda era dia, mas calculei que já deviam ser umas sete horas. Tive preguiça de consultar o relógio e preferi distender o corpo por mais uns instantes até que os sonhos bons, mas sobretudo os maus, se distanciassem. Só depois me levantei devagar, fui à geladeira e abri uma garrafa de Vitel. Em seguida acendi um cigarro e vi as horas. Sete e um quarto. Três baforadas depois, já mais confiante, dirigi-me à varanda.
A brisa fresca que soprava do mar fez o resto. E a vista magnífica para o parque e as colinas, e não menos estimulante para a paisagem de uma dezena de corpos femininos e bronzeados, lá em baixo, em torno da piscina enorme, onde brincavam algumas sereias estilo Saint-Tropez que transbordavam dos bikinis estritamente obrigatórios em gritos esfuziantes de alegria, conseguiram a minha recuperação total.
Uma delas, de touca amarela, que boiava com dois seios imensos a apontarem para mim, acenou-me simpaticamente. Eu admiti a hipótese de mergulhar da varanda, mas acabei por desistir com uma careta e voltei para dentro.
Ocupei-me até às oito em folhear a papelada que enchia a pasta preta que me acompanha habitualmente nestas excursões, enviei um telegrama para o meu director em Washington a dizer que já estava a trabalhar e enfarpelei-me em tons claros para a minha primeira saída. Quando acabava de abotoar a camisa, depois de uma fricção com uma água-de-colónia desaromatizada que compro sempre que vou a Paris, o telefone tocou.
Era Ahmed a anunciar que Felipe aguardava no átrio.
Enfiei um casaco claro, enchi os bolsos e saí.
Cá em baixo fui alvo de uma recepção entusiástica.
- Monsieur Gold! Bom aspecto... formidable. Monsieur Gold e Felipe, esta noite, beaucoup de sucesso!
Ao contemplar a figura grande e escura, de olhos enormes que a gente quase esperava ver saltar e rolar pelo chão, trajando uma camisa vermelha às florzinhas amarelas e umas calças de ganga largas e gastas apertadas na vasta cintura por um cinto dourado, não me senti muito lisonjeado com a comparação. No entanto, agradeci, assim como a Ahmed, que corroborava, e segui o meu guia, que deslocava sem dificuldade o corpo pesado sobre umas chinelas bordadas a ouro e azul. Pelo caminho, já na saída, cruzou-se um tipo alto, bronzeado, bem constituído, óculos escuros e cabelo louro quase branco cortado muito rente. Reparei nele porque a figura dava nas vistas, fatos de alpaca azul daquela qualidade e com um corte assim só se vêem de vez em quando, e todo o conjunto não me era estranho.
O meu companheiro, porém, não me dava tempo para reflexões. Enfiou-me para dentro do Simca, tendo-me entretanto chamado todo ufano a atenção para o tubo de escape, que já fora preso com alguns arames, bateu a porta com estrondo, ocupou o seu lugar e arrancou com o élan habitual.
Logo que tomámos a estrada, e antes que ele começasse a falar, achei por bem adverti-lo.
- Oiça, amigo. Vou-lhe pedir um favor: gosto muito de si, acho que podemos ser bons companheiros, mas só com uma condição. É que você, quando for a guiar, olhe para diante e fale comigo como se eu fosse a andar de marcha atrás sempre meia dúzia de metros à sua frente. Percebido?
Fez-me a vontade, mas ficou a reflectir no que eu lhe dissera durante uns bons dois minutos. Em seguida exibiu um sorriso radiante pelo espelho retrovisor, abanou repetidamente a cabeça para cima e para baixo e concluiu, virando-se todo para trás:
- Mr. Gold manda. Mr. Gold é o patrão! Desisti e aconcheguei-me melhor no meu banco. Como guia, este Felipe era um espanto. Sabia tudo, e julgo que aquilo que não sabia inventava. O que não deixava de ser um exercício engraçado, porque me obrigava a fazer uso de toda a minha bagagem e bom senso para separar umas coisas das outras. Ao chegarmos próximo do centro, anunciei-lhe:
- Felipe, vamos dar uma voltinha por aí e depois jantamos os dois.
Eu aproveitara uma paragem forçada numa passagem de peões, intensamente utilizada àquela hora, de modo que ele pôde olhar para mim à vontade, com um misto de alegria e incredulidade.
- Jantar, Mr. Gold?
- Exactamente -confirmei.- Onde quiser, desde que seja comida francesa e não essas coisas horríveis que vocês comem acompanhadas com chá de hortelã. Combinado?
- Sim, Mr. Gold. Sim, senhor! Mr. Gold é um gajo porreiro.
Para quem de inglês só conhecia os rudimentos, não estava mal.
Engrenou na primeira, e a partir daí nada o faria deter na ânsia de me mostrar tudo o que havia para ver antes do jantar formidável que já desfrutava antecipadamente.
A medida que íamos percorrendo os locais, e que tudo estava a ficar inundado de gente -cafés, lojas, ruas e passeios - Felipe ia-me explicando como podia que Tânger é antes do mais, como qualquer velha cidade marroquina, a medina, ou parte antiga. O Grande Socco é o principal mercado da medina, e, pelo que eu podia observar, um mercado em Marrocos significa a qualquer hora do dia uma feira exótica diferente de todas as feiras do mundo. Os bazares exibindo cá fora tecidos coloridos, roupas, toda a variedade de objectos de metal, madeira, couro e ourivesaria; os cafés movimentados que servem o chá de hortelã em equipamentos aparatosos e tabuleiros de dominó, mas nunca bebidas alcoólicas; os camponeses das montanhas do Norte, envergando as suas djellabas estriadas de negro - a cor de Deus- e chapéus de palha de abas largas, sentados com um grande monte de alhos-porros diante de si, a fumar tabaco de Quezzane, o melhor de Marrocos, isso quando não fumam rif, que cultivam em esconderijos nas montanhas; as mulheres camponesas, também do Rif, com os trajos típicos que incluem amplos aventais às riscas brancas e vermelhas e resguardos de cabedal para as pernas. E uma algazarra enorme se ergue de toda aquela multidão variada que enche o bairro construído sobre o fórum da antiga Tingis romana.
Espectáculo que prossegue quando se desce pelas ruas estreitas, através da medina, até à pequena praça chamada Pequeno Socco. Aqui estão concentrados os mais velhos hotéis e cafés da cidade.
Felipe indicou-me com orgulho o Hotel Fuentes, que, segundo me jurou, tinha sido gerido em tempos por um tio afastado. Descemos mais, pela Rua da Marinha e passando pela Grande Mesquita, até ao terraço que abarca o porto e a baía. Felipe quis tirar uma fotografia comigo, ao que eu acedi para irmos comer mais depressa.
Jantamos num pequeno restaurante ali perto, pomposamente chamado El Maghreb, cujo patrão era argelino - um primo afastado de Felipe, segundo este me afirmou, e que anunciava lá dentro, por sobre o papel mata-moscas, o melhor vinho do país. Para grande desgosto de ambos os primos, recusei-me terminantemente a encomendar couscous, pastilla e chá de pimenta. Enfim, ao cabo de cinco minutos de discussão consegui convencê-los a mandar preparar uma sopa de peixe e costeletas de carneiro. Felipe gastou um quarto do tempo que durou o jantar a falar da família, da cidade, dos amigos e da sua vida desde pequenino, e metade a mastigar e a beber com satisfação. A outra quarta parte, e essa foi a mais desgostante, ocupou-a a fazer ambas as coisas.
Felipe era espanhol, de Sevilha, e por razões que ficaram para mim menos bem esclarecidas, mas tinham a ver com o facto de andar com a polícia da terra à perna por contrabando de uísque e tabaco, e também ameaçado de morte por uma quadrilha rival, além de perseguido por uma jovem lá da terra dele e mais toda a família porque se descuidara e lhe fizera um filho, chegara a certa altura à conclusão de que para a sua saúde o remédio mais indicado seria uma mudança de ares. Assim, achava-se em Tânger, onde tinha alguns parentes afastados, mas fixes, um dos quais lhe entregara um táxi que ele operava, segundo afirmou entre dois copos de vinho e de um arroto, com mais êxito que qualquer outro motorista da cidade. Isso porque, além do mais, confidenciou-me, falava fluentemente espanhol, português, francês, inglês e árabe.
Às dez menos um quarto, plenamente satisfeito com a saborosa e abundante sopa de peixe e marisco, e mais as costeletas tenras e sete decilitros e meio de um excelente vinho de Casablanca, resolvi que eram horas de irmos andando. Confirmei que Felipe ainda estava em condições de conseguir levantar-se sozinho da cadeira, despedimo-nos do patrão, que nos acompanhou até praticamente dentro do carro, e arrancámos.
Se o proprietário de El Maghreb não retirasse tão prontamente a cabeça, que enfiara pela janela traseira para me oferecer um charuto, teria ficado sem ela.
Foi com Felipe a cantar aos berros e eu recostado confortavelmente a fumar o meu charuto que empreendemos o trajecto para a montanha. Passámos o bairro Marshan e continuámos pela estrada que sobe sempre entre os pinhais, ladeada a espaços por parques e luxuosas moradias. É a zona residencial ocupada pelo corpo diplomático, marroquinos ricos e milionários que têm aí a sua casa de campo.
A entrada para o consulado fazia-se por um largo portão aberto num muro de uns três metros de altura. Dois guardas mandaram-nos parar, mostrei-lhes o salvo-conduto que Francesca me deixara, e pudemos seguir. No termo de uma álea que subia ligeiramente em curvas suaves deparou-se-nos repentinamente a casa. Era um prédio magnífico de três pisos, no estilo colonial, com colunas de mármore e uma escadaria enorme que conduzia à vasta entrada toda iluminada.
Defronte da escadaria, e no parque de estacionamento fronteiro, alinhava-se uma colecção surpreendente de Rolls-Royces, Bentleys, Cadillacs, Mercedes e Citroéns de grande luxo.
O porteiro fardado hesitou em vir abrir-me a porta do velho Simca, o que era compreensível. Tanto mais que nessa altura os arames do tubo de escape já tinham desistido de cumprir a sua tarefa. Depois de me identificar, convidou-me a entrar. Perguntei-lhe se Miss Francesca Spranger já tinha chegado, e ele confirmou. Já eu me despedira de Felipe e subia os degraus quando o ouvi gritar:
- Felipe espera aqui. Virei-me.
- Felipe não espera coisa nenhuma. Amanhã ao meio-dia no hotel.
Olhou-me com um ar de vira-latas escorraçado e resmungou:
- Si, senor.
Entrei no átrio. Mármores, escadarias que subiam de ambos os lados, um candelabro imenso e móveis antigos com porcelanas preciosas. Das traseiras soprava forte um ruído de vozes, como o barulho do mar em noite de vento e com muitas risadas a sobreporem-se ao som da música. O ambiente estava animado. Encaminhava-me para aí quando um indivíduo trajado a rigor num smoking impecável saiu de uma enorme porta lateral e se dirigiu para mim. Era alto, forte, moreno, de cabelo e bigode negros. Falou com sotaque espanhol.
- A quem tenho a honra?
- Gold, Frank Gold. Do Chronicle de Washington. Francesca convidou-me.
Exibiu uma dentadura magnífica, inclinou-se ligeiramente e estendeu-me a mão. - Luis Pérez Camilo, cônsul da Bolívia. Tenho muita honra. Vou acompanhá-lo até Francesca, essa mulher inteligente e fascinante e igualmente minha querida amiga.
Quase ao desembocarmos no terraço deteve-me, para me confidenciar sobre o barulho que subira de intensidade:
- Se usted me permite, desejo explicar-lhe que esta festa foi ideia de Miss Juanita González, que chegou há dois dias para passar aqui uma parte das férias. E nossa convidada durante este período de tempo, pelo que nós pretendemos proporcionar-lhe tudo o que a possa fazer sentir-se bem.
Aguardou que eu concordasse e acrescentou quase em ar de desculpa:
- Explico-lhe a situação para que não estranhe a presença nesta casa de tanta gente jovem e porventura... hum... irreverente. A juventude, de agora, sabe, Mr. Gold...
Sorriu de novo e fez um gesto que não queria significar coisa nenhuma.
Eu aquiesci, disse que sabia, sim senhor, mas que até gostava e o Senhor Cônsul não tinha de se preocupar. Pareceu-me um pouco mais aliviado, e o sorriso brilhante reapareceu. Pensei que se ele decidira explicar a situação a cada um dos convidados bem merecia o ordenado que lhe pagavam e mais um bónus razoável.
No terraço, iluminado como se fosse dia, e onde um conjunto se esforçava nos instrumentos como se fosse aquela a sua última oportunidade, encontravam-se mais de uma centena de pessoas. Em grupos grandes, em círculos pequenos, ou solitárias, com um copo na mão, novas e velhas, trajando desde blue jeans a smokings ou magníficos vestidos compridos e decotados.
Alguns rostos viraram-se para mim, saudaram-me discretamente, e eu retribuí. Não consegui localizar Francesca, porém o meu anfitrião anunciava-me daí a momentos: “Ali está ela”; fez um sinal e, com grande alívio, vi Francesca aproximar-se. Apresentava-se com a elegância habitual. Nada de trajos complicados. Um lindo vestido vermelho muito justo, e era o suficiente para podermos dar lugar à imaginação. Ficou muito contente quando me viu e quis mover-se mais depressa, mas não era possível porque a saia não dava. Abraçou-me.
- Frank, que bom!
Concordei. O Senor Carrillo considerou que eu estava bem entregue, dirigiu a ambos algumas palavras amáveis e pediu licença para atender mais convidados que entretanto iam chegando.
Francesca enfiou o braço no meu.
- Anda, querido. Vou apresentar-te a algumas pessoas. Um criado marroquino de barrete vermelho e farda branca passou por mim com uma bandeja com copos cheios, e eu agarrei num que me pareceu conter uísque. Acho que ele não deu por nada.
- Amor, esta é Juanita. Frank Gold, jornalista de...
Foi como se me tivessem dado uma martelada na nuca. Senti a língua seca, os olhos embaciados e as pernas gastas. Apertei o copo com força para ter a certeza de que o meu cérebro ainda dominava os músculos.
- Muito prazer - fui articulando automaticamente.
O panorama que se exibia na minha frente constituía um espectáculo assombroso. Um metro e oitenta de mulher sul-americana, tropical, exuberante! Exactamente o que Euclides deve ter sonhado quando imaginou uma tangente para cada curva, e o que fez Arquimedes gritar “Eureka” quando a viu entrar na casa de banho. Mais aqueles cabelos negros pelos ombros abaixo, a envolverem um rosto tão sensual que era um convite a aspirar-lhe a boca carnuda. Daí para baixo o conjunto emergia de uma blusa preta toda aberta na frente e apertada na cintura, dez centímetros acima de umas calças também pretas que lhe desciam até ao joelho, tão finas e coladas ao corpo que, se fossem da cor da pele, toda a confusão seria possível. Embora a pele dela possuísse um tom dourado-escuro que seria impossível imitar.
Quando voltei a mim, ela murmurava qualquer coisa ao ouvido de Francesca e, pela forma como ambas se riram e me olharam, devia tratar-se de alguma brincadeira erótica. Levei o copo à boca, e de imediato cuspi para o chão.
- Chá - pronunciei, dirigindo-me a elas. Riram-se ainda mais, e eu senti-me um palhaço. Juanita veio em meu auxílio.
- Tome, Frank -murmurou, estendendo-me o copo dela.-A voz era ligeiramente rouca e possuía o calor das profundezas do Inferno. Levei de bom grado o copo à boca. O aroma do uísque velho diluiu o sabor a morango da leve marca de bâton.
Francesca afastara-se uns metros para atender dois ou três admiradores e, por seu lado, os dois cavalheiros altos e morenos que escoltavam Juanita devem ter concluído que ela se divertia o suficiente, visto que foram discretamente à vida deles.
- Você é a filha do famoso Afonso González - disse eu, só para entabular conversa.
Semicerrou as pálpebras e as longas sobrancelhas fizeram o resto.
- Sou. E você é o famoso Frank Gold, a quem o meu pai fez passar um mau bocado, não é?
Nesta altura largou uma gargalhada.
- Sou - concordei. - Foi muito engraçado.
- Não foi?-disse ela. - Tirou-me o copo da mão, prendeu-me o pulso com força e anunciou:-Vamos dançar.
Levou-me a reboque até ao meio da sala, onde uma dúzia de pares heterogéneos se mexiam com frenesim ao ritmo de uma música sul-americana. Então a orquestra fez de súbito uma pausa, para atacar de imediato um bolero, Juanita grudou-se a mim, segundo creio na intenção generosa de me compensar e fazer esquecer os desgostos que o pai me dera. Conseguiu-o plenamente. A dada altura falou, com a língua a movimentar-se no meu ouvido:
- Onde está alojado aqui em Tânger, Frank? Recitei-lhe o hotel, a rua, o número do quarto, e esclareci que havia dois telefones.
- Bueno, Frank querido. Talvez uma noite destas vá visitá-lo.
- Si, senorita.
Bendisse aquela brisa fresca e suave que soprava no terraço, vinda do mar, assim como o final da melodia, que era também o intervalo da orquestra, e a intervenção de uma quarentona espampanante, cabelo vermelho e o pescoço e os pulsos cobertos de jóias, que veio ter com Juanita a participar com voz estridente:
- Minha jóia... tenho ali tanta gente que queria tanto conhecer-te!
Juanita virou-se para mim, simulando longamente um beijo que mais próximo talvez fosse fatal, e pronunciou num sussurro:
- Desculpe, Frank. E... está combinado, si? Concordei que sim, que estava, embora não soubesse exactamente o quê. Afastou-se bamboleante como um barco que se faz às ondas, e eu respirei fundo e encaminhei-me por entre os grupos direitinho ao bar. Aí encomendei um uísque duplo, que pelas minhas contas apressadas devia ser o sexto ou o oitavo do dia.
Estava a refazer-me do choque quando um tipo baixinho, gordo e careca, que usava óculos de lentes grossas, smoking cor de vinho e laço preto de filetes dourados me dirigiu a palavra.
- Mr. Gold, não é?-Fiz que sim. Apertou-me a mão com várias sacudidelas.
- O meu nome é Castro. Francisco Castro. Sou português e há quarenta anos cônsul honorário nesta cidade.
- Ah, sim. - Correspondi-lhe com simpatia. Francesca falara-me dele. O Senhor Castro era sem dúvida uma figura de Tânger. Quase uma lenda. A sua experiência de relações diplomáticas e humanas e, sobretudo, a sua generosidade e honestidade contra tudo e contra todos haviam triunfado ha muito numa cidade dura onde, mais ainda nesses anos do pós-guerra, o crime organizado e o vício não deixavam lugar para sentimentos.
- Muito gosto em conhecê-lo, Senhor Castro. Diga-me uma coisa: quando posso ir visitá-lo?
Ficou radiante.
- Oh, meu caro Senhor Gold! Às suas ordens... Sempre às suas ordens!
Falava um inglês com sotaque, mas exprimia-se com uma facilidade espantosa.
- Bem, muito obrigado. Passarei amanhã à tarde pelo seu escritório. Pode ser?
Afirmou que sim, que a qualquer hora do dia ou da noite estava à disposição de um jornalista conceituado como eu. Procurei não me envaidecer, dobrei-me um bocado para corresponder minimamente ao cumprimento dele e aguentei mais três sacudidelas de mão.
Foi então que reparei naquela rapariga. Encontrava-se sentada no parapeito do terraço, afastada do bulício e aparentemente a contemplar a baía. Ainda hoje não sei descrever com precisão o que me atraiu nela. Sem dúvida que a essa distância me pareceu uma figura encantadora, de linhas harmoniosas, que a túnica estreita não ocultava nem realçava. Foi talvez na altura em que ela me olhou que senti uma necessidade Íncontrolável de me aproximar. Dei alguns passos hesitantes. O barulho e a confusão pareciam-me ter ficado muito para trás. Ela possuía uma beleza estranha e exótica. Usava o cabelo negro apartado ao meio e a cair-lhe em duas grossas tranças negras pelas costas abaixo. Os contornos do rosto eram de uma rara suavidade. Nele, a boca húmida e os olhos meigos e acariciantes punham um leve encanto sensual. Pelos vistos, o facto de eu me encontrar ali especado a olhar não a deixava muito à vontade, pelo que me apressei a cumprimentá-la.
- Como está, miss? O meu nome é Frank Gold e cheguei hoje dos Estados Unidos. Foi Francesca Spranger quem me convidou a vir aqui. Não conheço mais ninguém.
Fitou-me atentamente durante uns segundos e depois sorriu. Um sorriso doce que lhe formava duas covinhas na cara.
- Sim. Eu chamo-me Karin. Gosto muito de Francesca. Como está?
Exprimia-se num inglês fluente e possuía uma voz macia e musical. Estendeu-me a mão delicada, que procurei não demorar entre a minha. - Posso sentar-me?
- Sim. E penso que deve. É tão lindo, à noite, visto daqui.
Falava como mergulhada num sonho bonito do qual as suas palavras saíam com um sabor longínquo. Olhou novamente para mim.
- Que o trouxe a Tânger, Mr. Gold?
- Estou em serviço do meu jornal, Miss Karin.-E acrescentei: - Interromperam-me as férias.
- Oh... É assim tão grave?
- Talvez, miss. Quando começamos nunca sabemos ao certo onde iremos parar. A maior parte das vezes é uma pequena notícia aparentemente sem importância. Ou nem isso, um palpite apenas.
- Compreendo.
Estranhamente, tive a sensação de que ela compreendia mesmo. Que idade teria? Não mais que vinte e quatro ou vinte e cinco. Talvez menos.
- É marroquina, Miss Karin?
- Sim. Nasci em Tânger. Senti-me ainda mais interessado.
- O seu nome... não é árabe, pois não? Ela volveu, com tranquila ironia:
- Frank é nome germânico, não é?
Admiti que me parecia que sim. Ela acrescentou:
-...e pode tratar-me por Karin, Mr. Gold.
- De acordo, Karin. E você pode tratar-me por Frank. -Sim, Mr. Gold.
Achei que não era conveniente fazer naquele momento um esforço para interpretar o sentido da resposta dela. Tanto mais que a atitude seguinte não sugeria de forma alguma que eu estivesse a maçá-la. Proferiu com um ar compenetrado:
- Acho-o muito simpático. Tenho o pressentimento de que é um jornalista honesto... Diga-me qual é o seu trabalho, exactamente.
Sorri.
- Primeiro que tudo, muito obrigado pelo elogio. Em segundo lugar, sempre lhe direi que sim, Karin, penso que sou honesto, e acho que as pessoas que me conhecem e me lêem pensam o mesmo. E, terceiro, a minha área profissional é o crime, o vício, a corrupção e todos esses cancros que atacam e roem os homens. Como vê -concluí-, pode não ser um trabalho muito higiénico, mas, como em tudo na vida, é preciso haver alguém que o faça.
Escutou-me com atenção e o rosto e, sobretudo, os olhos revelavam um interesse muito grande. Pela minha parte, ali sentado junto daquela personagem encantadora, a aspirar o cheiro do mar e dos pinheiros e com as luzes da cidade semeadas lá muito em baixo, sentia uma enorme tranquilidade e quase não me apetecia falar. O silêncio que se seguiu aconteceu naturalmente e foi tão bom como tudo o resto. A um dado momento Karin fitou-me, pareceu reflectir durante alguns segundos e, após o que me pareceu uma ligeira hesitação, pronunciou:
- Poderia jantar amanhã comigo, Mr. Gold?
Deve ter captado a reacção de surpresa que não consegui ocultar, pois adiantou logo em seguida, com um ar muito sério: - Terei muito prazer em lhe falar da minha cidade. Respondi deliciado:
- Certamente, Karin. E eu não poderia desejar um guia mais atraente. Onde podemos encontrar-nos?
- Às cinco horas, no Café de Paris. Fica no Boulevard Pasteur. Pode ser?
- Sim - disse eu, ainda mal refeito.
- Passa-se alguma coisa, Mr. Gold?
- Sim-retorqui.-Passa-se que daqui até às cinco horas de amanhã vai custar o diabo a passar.
Deve ter achado graça ao desabafo, porque de novo as covinhas lhe surgiram nas faces.
- Bem, então até amanhã...
Levantou-se tranquilamente, dirigiu-me um pequeno aceno e afastou-se, caminhando com extrema leveza.
Eu ainda contemplava o céu e as estrelas quando ouvi a voz de Francesca por cima de mim.
- Então, amor?
Olhei. Ela exibia um ligeiro sorriso trocista.
- Como de costume, não perdes tempo, não é? -Han?...
Indicou a sala.
- Ela, não sabes quem é?
- Karin.
- Sim, Karin... Mais nada?
- Não - respondi, meio ausente.
- Bem, então compete-me esclarecer-te que se trata da herdeira da maior fortuna daqui. Chamam-lhe “a Rapariga de Tânger” e não costuma falar com estranhos. Parabéns, meu querido.
O resto da festa foi uma sucessão de apresentações, conversas banais, um copo aqui e ali, tudo caras novas, Karin desaparecera, e nessa noite não voltei a vê-la. Às tantas resolvi que eram horas, despedi-me de toda a gente e saí.
No carro, Felipe roncava que nem um desalmado.
Ao passar pela recepção, o empregado, que eu não conhecia, quando me identifiquei e pedi a chave, abriu a boca várias vezes sem falar, como se fosse um peixe, e apontou para cima. Olhei, mas não dei por nada. Às tantas, ele conseguiu articular:
- Mr. Gold... a sua filha...
Pousei as mãos no tampo, fixei-o bem nos olhos e pronunciei:
- Não tenho filha nenhuma.
Pareceu desanimado, como se estivesse para ser despedido.
- Bem, nesse caso...
- Nesse caso, o quê?
Apontou outra vez para cima.
- A sua...
- A minha o quê? O ar dele metia dó. -Por favor, Mr. Gold...
Tive pena dele, aconselhei-o a descansar e rumei para o elevador.
Quer acreditem, quer não, depois do dia que tivera, ao entrar no quarto não tive surpresa nenhuma.
Sentada na cama, com o lençol pela cintura, Juanita fumava um cigarro.
No dia seguinte, cerca das onze, precisamente na altura em que eu tomava alegremente o meu duche matinal após o pedaço revigorante de noite em que conseguira repousar, o telefone tocou.
O sabonete saltou-me das mãos e eu soltei uma imprecação e saí contrariado da banheira para ir atender, com a cabeça cheia de espuma. Podia muito bem ser Francesca, ou Karin, ou... não!
- Alô, Monsieur Gold?
Parecia-me espantosa a facilidade com que eu me transformava em monsieur, mister, senor, “Frank querido”, mi hombre e outras coisas mais a que pouparei o leitor.
- O próprio.
- É Ahmed quem fala. Está aqui um senhor que diz chamar-se Mr. Wong e que pergunta se o pode atender. - Pausa. - Desculpe, Mr. Gold... Mr. Wong roga... respeitosamente... ao venerável... Mr. Gold, se pode conceder-lhe o favor... inestimável... de uma entrevista.
Bolas! Depois de um esforço daqueles, eu não iria desapontar o meu amigo Ahmed,
- Okay, Ahmed. Diz ao fulano que pode subir. Decorridos dois minutos, o tempo suficiente para eu enfiar umas calças de flanela lilases que uma amiga me metera na mala à última hora e enrolar a cabeça numa toalha de praia, bateram à porta. Tratei de ir abrir descalço como estava.
Por uma fracção muito breve, o meu visitante olhou-me através da porta entreaberta e das pálpebras sem pestanas como se eu fosse um erro atroz. Porém, como compete a qualquer digno representante dos lados do Sol Nascente, imediatamente se recompôs.
- É com Mr. Gold que tenho o privilégio...
- Bem, Mr... Wong-disse eu, tentando desculpar-me e hesitante sobre se deveria abrir mais a porta.-É que., sabe...?
- Não é então com Mr. Gold que eu tenho o... Resolvi acabar com aquilo.
- Sim, Mr. Wong -disse eu polidamente. - Eu sou Mr Gold, Frank Gold para ser exacto, e é portanto comigo que tem o privilégio de falar. Faça favor.
Mr. Wong foi entrando lentamente com a bengala de bambu diante de si. Apoiada no castão de prata da bengala, uma mão com unhas envernizadas e cinco dedos, três dos quais eram portadores de anéis com pedras preciosas de várias cores, e com dimensões de pedras não preciosas. Todo o conjunto conferia com o botão de punho que se apresentava um pouco acima. Em seguida introduziu o pé direito, enfiado num sapato preto de verniz espelhado. A perna das calças pertencia a um conjunto de fato completo de fazenda de lã de carneiro de Yorkshire entrelaçada com astracã. Acima do colete, o brilhante do alfinete que prendia a gravata de seda pura pintada à mão possuía o mesmo diâmetro dos botões de madrepérola do fato. O rosto pequeno, macilento e de pele macia, possivelmente humana, ostentava óculos de aros de ouro e lentes finas que deviam ser de cristal de Murano. O conjunto era encimado por um pequeno chapéu muito elegante de pel de camelo com uma minúscula pena de faisão entalada na fitinha de renda de Bruxelas.
Quase não resisti a propor-lhe tirarmos uma fotografia juntos; porém, logo que voltei a mim, foi para dizer:
- Esteja à sua vontade, Mr. Wong. Faça o obséquio de se sentar.
- Muito grato. É muito gentil.
Fechei a porta com cautela, para não fazer barulho, e passei adiante a indicar-lhe o sofá. Mr. Wong instalou-se com precaução a vinte centímetros da extremidade e compôs o vinco das calças, permanecendo erecto e apoiado na bengala, com o chapelinho ao alcance da mão.
Eu enfiei entretanto os chinelos e fui ocupar uma cadeira defronte, sem saber bem se havia de traçar as pernas ou mantê-las paralelas. Para disfarçar, tirei um cigarro do maço que se encontrava em cima da mesinha baixa, pedi licença e acendi-o. Só nessa altura me lembrei de oferecer, mas acabei por desistir ao vê-lo dilatar as narinas como se o enjoasse o aroma daquele tabaco ordinário.
- Bom, Mr. Wong -disse eu.- Estou às suas ordens. Pareceu-me que sorria, mas não tive a certeza.
- Mr. Gold, com a sua generosa permissão, se a tiver, irei directamente ao assunto que me fez atrever a incomodá-lo.
Disse que sim, que não incomodava nada. Apenas sentia séria dificuldade quanto a acreditar que Mr. Wong iria direito ao assunto, pois seria o primeiro oriental a fazê-lo.
- Mr. Gold-começou ele. - Tratando-se de um jornalista altamente conceituado como o senhor, não deverá minimamente surpreendê-lo que algumas pessoas em Tânger possuam conhecimento da sua presença nesta cidade.
Pensou provavelmente que eu ia falar, mas as palavras dele haviam-me, por uma associação estúpida de ideias, feito pensar em Juanita, de modo que me limitei a traçar as pernas.
- Nessa medida, a minha empresa, Wong and Associates, Import-Export, com sede nesta magnífica cidade de Tânger, soube naturalmente da visita com que nos honrou o ilustre jornalista.
Sorri modestamente e, aproveitando a pausa, inquiri:
- Mr. Wong, dá-me licença por um momento? - Indiquei o telefone. - Uma chamada urgente...
Aquiesceu com benevolência, eu levantei-me, fiz uma vénia e dirigi-me para o telefone. -Está lá! Ahmed?
- Não, obrigado. Sucede apenas que eu estava preocupado com a Joana. Ela comeu bem esta manhã?
- Outra coisa, Ahmed, veja lá se a sua amiga da copa lhe dá o banho que combinámos, está bem?
- Okay. Depois falamos.
Desliguei e voltei a ocupar o meu posto. Mr. Wong sorriu pela primeira vez. Um sorriso sério, polido.
- Mr. Gold... perdoe-me. Os ouvidos escutam por vezes mesmo o que não deveriam escutar, embora fiquem muitas vezes surdos quando deveriam ouvir. Trata-se talvez de... sua filha...
Soltei uma gargalhada que conseguiu surpreender o meu visitante.
- Não, Mr. Wong. Trata-se de uma pequena cabra que eu encontrei na estação de caminho-de-ferro e que decidi colocar sob a minha protecção. - Sorri. - Da mesma forma que antigamente vários governos forneciam em Tânger protecção a cidadãos que necessitavam dela... e faziam por merecê-la.
Mr. Wong não se deu por achado. Considerou com gravidade:
- Consola-me o coração conhecer um homem raro como o ilustre jornalista. A bondade é uma excelsa virtude, Mr. Gold.
A julgar pelo vocabulário, Mr. Wong estava mais ocidentalizado do que poderia parecer à primeira vista.
- Não sou merecedor, meu caro senhor - declarei. -Mas adiante. Ia dizendo...
- Exacto, Mr. Gold. Dizia eu, e não desejaria alongar -me, que a sua visita seria sempre motivo de grande satisfação e orgulho. No entanto, as razões imediatas que o trouxeram até aqui constituem para nós motivo de particular regozijo.
Aguardei. Se alguma coisa tenho aprendido na longa experiência da vida, é a ter paciência. Alguma, quero eu dizer.
- Isso, Mr. Gold, porque a nossa empresa está em vias de ser altamente prejudicada, a curto prazo, pela interferência nas nossas linhas comerciais de uma organização cujos processos o ilustre jornalista conhece melhor do que nós.
Esborrachei a ponta do cigarro e descruzei as pernas.
- E então, Mr. Wong?
Encostou delicadamente a bengala no braço do sofá, uniu as palmas das mãos com os cotovelos apoiados nas pernas, mas a uns milímetros dos vincos, e pronunciou lentamente, fitando-me como se tivesse a intenção de me injectar na cabeça o que ia dizer a seguir.
- Então, Mr. Gold, tenho uma sugestão que, se me permite, passo a fazer. Uma vez que nos objectivos ou interesses de ambas as partes são comuns, ousei vir a presença do ilustre jornalista americano propor que aceite a colaboração do humilde servidor em troca de alguns elementos que com a sua capacidade virá sem dúvida a obter, e que certamente serão valiosos para auxiliar a nossa empresa a contornar ou ultrapassar os prejuízos que antevê.
Bem, tinha de reconhecer que o meu interlocutor, além de possuir fôlego, era muito mais intencional, mas nem por isso menos subtil, do que eu alguma vez poderia esperar, porém, talvez eu próprio também o pudesse surpreender um bocadinho.
- Certamente, Mr. Wong. Aceito, porque penso que a nossa colaboração me permitirá algumas vantagens em relação a uma actuação isolada. Forneça-me apoio quando eu precisar, que pela minha parte tratarei do resto.
Ele sorriu. Desta vez um sorriso rasgado, que se reflectiu nos olhos miúdos e foi ampliado pelas lentes de cristal. Depois recuperou a bengala, levantou-se e limitou-se a proferir:
- É um prazer muito grande e uma alegria que revigora o espírito travar conhecimento com um homem tão inteligente como o ilustre jornalista, Mr. Gold.
Fez uma vénia discreta, aguardou que eu lhe passasse adiante e deslizou para a porta atrás de mim. À saída, acrescentou:
- Nós estaremos onde os nossos humildes préstimos possam ser úteis ao nosso ilustre e generoso amigo.
E saiu.
Eu recolhi, a assobiar a Marselhesa para disfarçar a tensão.
Já completamente vestido para ir almoçar, pedi o número de Francesca. Havia duas ou três questões urgentes a esclarecer, e só ela me poderia ajudar. A primeira, e a que me parecia mais importante, era a que se referia a Karin, “a Rapariga de Tânger”. Sobretudo depois dos comentários de Francesca, na festa, necessitava de obter dela mais alguns esclarecimentos, e se possível antes do encontro marcado com Karin para essa tarde.
De casa responderam que ela saíra cedo, para ir passar o dia com uns amigos no cabo Espartel. Desliguei, desapontado. Ocorreu-me então que combinara na véspera ir fazer uma visita ao Senhor Castro. Talvez ele pudesse ajudar-me. Desci para almoçar um pouco mais animado, mas também ligeiramente confuso.
O consulado ficava no Boulevard Mohamed V, num edifício parecido com os outros das proximidades e que deviam ter uns vinte anos de idade. No entanto, na larga avenida, alguns prédios mais antigos estavam a ser substituídos por torres envidraçadas. Um funcionário que foi metendo conversa comigo no elevador esclareceu-me que o Senhor Castro, embora estivesse sempre muito ocupado, ia certamente receber-me de seguida.
No segundo andar fui introduzido por um corredor bafiento numa sala escura mobilada com uma pesada mesa de estilo e quatro cadeiras forradas de couro. Debaixo da mesa, e arrumados a um canto da sala, encontrava-se uma dúzia de malas e sacos de viagem cobertos de pó. O lustre do tecto também não devia ser limpo com regularidade, porque o pó acumulava-se em crostas castanhas nos pingentes de vidro. Uma ventoinha de grandes pás, fixa no tecto, girava vagarosamente, sem qualquer resultado a não ser um gemido regular. Todo o ambiente era soturno, ainda mais porque os pesados reposteiros de brocado já gasto não deixavam passar muita luz. Fui convidado a sentar-me, mas respondi que preferia ficar de pé, andei até à janela e afastei um pouco o reposteiro.
A ventania, em que nem reparara ao sair do táxi, fustigava a avenida. Era um vento forte de areia, que fazia estremecer ruidosamente os vidros mas parecia não incomodar os transeuntes que passavam, poucos àquela hora da tarde-alguns europeus, mas a maioria africanos, uns nas suas djellabas e muitos trajando umas simples calças e camisa branca.
Uma voz exuberante interrompeu-me a contemplação Virei-me e dei com o Senhor Castro, que se apresentava em mangas de camisa, as largas calças apertadas abaixo do abdómen proeminente, e um ar de grande contentamento no rosto cheio.
- Viva, meu caro senhor! Então como têm decorrido estes seus primeiros contactos com Tânger?
Logo que consegui soltar a mão, respondi-lhe:
- De uma forma muito agradável, Senhor Castro. Já dei umas voltas por aí, e conheci pessoas interessantes. Ontem à noite, por exemplo.
Concordou imediatamente.
- Oh, sim, sem dúvida. A sua amiga Francesca Spranger é o que nós chamamos... hum... enfim...
- Um grande traço-ajudei.
Riu muito, das pregas do pescoço até às pregas da barriga.
- Sim, sim. Isso mesmo. Uma bela mulher, sem dúvida nenhuma.
Interrompi.
- Embora Francesca já seja minha conhecida de há algum tempo. Por isso somos amigos.
- Claro, sem dúvida. - Enfiou o braço no meu.- Embora, meu caro, por vezes possam surgir amizades num curto espaço de tempo. Por exemplo, reparei que ontem o meu amigo se entreteve em amena conversa com uma encantadora jovem que presumo não conhecia...
Começava a entender algumas das imensas razões por que este funcionário da diplomacia portuguesa era considerado uma figura inestimável.
- É verdade. E já que menciona o facto, não quererá ajudar-me a levantar uma ponta do véu?
Com a prática que vinha adquirindo, qualquer dia merecia com distinção elevada e as felicitações do júri um diploma em relações humanas, fossem orientais, latino-americanas ou simplesmente latinas.
Castro convidou-me a sentar, e ele próprio foi ocupar uma cadeira defronte de mim, do outro lado da mesa. Puxou de um maço de tabaco amarrotado, tirou um cigarro embrulhado em papel negro e perguntou se eu queria. Disse-lhe que preferia dos meus, acendi ambos e fiquei à espera. O meu amigo não tinha pressa. Saboreou deliciado as primeiras fumaças, soltando o fumo pelo nariz, e só depois declarou:
- Uma rapariga notável, essa Karin... Verdadeiramente notável. Sabia que ela tem um grau de master pela Universidade de Bordéus?
Reconheci que não, embora a informação não me esclarecesse quanto ao que eu pretendia.
- Invulgarmente inteligente. E herdeira de uma fortuna incalculável... Os pais, infelizmente, faleceram, e Karin ficou à guarda de um velho amigo do pai, um homem riquíssimo, sem descendentes, que a tem criado como uma filha. Mas já o avô fora um homem muito considerado devido ao facto de ter sido cádi, um supremo magistrado religioso.
- Quem é o tutor dela?
- Ben Youssef. - Pronunciou o nome com respeito. - Um dos maiores comerciantes de Tânger, se não o mais importante.
- Porque lhe chamam “a Rapariga de Tânger”, Senhor Castro?
Ele piscou maliciosamente o olho.
- Vejo que o meu amigo está verdadeiramente interessado. Será que na noite passada...
- Mero interesse jornalístico - expliquei.
- Bom, certamente que ela merece esse nome. É filha desta cidade, e talvez a filha mais destacada. Já pelas famílias de que descende, pela fortuna e influência do homem que tem sido o seu segundo pai... e pelos seu:-méritos próprios. Karin é uma jovem que utiliza o poder que indirectamente possui para auxiliar todos aqueles que precisam de ajuda. Esses, sejam os pobres, os presos, os viciados ou os doentes, sabem que podem sempre contar com ela. Karin é uma instituição, Mr. Gold. Respeitada por todos. Por isso, se me permite, aconselhá-lo-ia a ser muito cuidadoso.
- Não tenciono violentá-la, Senhor Castro. - Ele soltou uma das suas gargalhadas espectaculares. - De qualquer modo, muito obrigado pelo aviso.
- Ora, meu amigo... Estou à sua disposição para o auxiliar no que for preciso!
- De resto - acrescentei -, pelo que sei a seu respeito, o senhor é também uma espécie de instituição.
Sorriu lisonjeado.
- Ora... São exageros. Claro que cumpro bem a minha missão. Mas é tudo...
- É muito modesto - disse eu. E nesta altura achei que podia arriscar uma pergunta.
- Oiça, Senhor Castro, conhece por acaso um tal Mr. Wong?
Respondeu imediatamente.
- Claro que conheço. Então não havia de conhecer um comerciante tão próspero e respeitável? Porque pergunta. Mr. Gold?
Decidi que não valia a pena insistir neste ponto.
- Nada de especial. Apenas porque tive o prazer de trocar umas palavras com ele, esta manhã, no hotel.
- Ah, sim. Um homem muito respeitável e fino no trato, não acha?
Declarei que sim, que era da mesma opinião, e tentei uma última abordagem.
- O problema da droga é certamente uma das questões que mais preocupa as autoridades locais. Tenho razão, Senhor Castro?
- Sim, e não - respondeu com naturalidade. - Exagera-se muito e a ficção ultrapassa largamente a realidade. Tânger teve, na verdade, um passado romanesco. Houve tempo em que, por razões de natureza política, foi uma cidade cosmopolita, o centro do comércio internacional do país e a capital diplomática. Tudo isso contribuiu para conferir a Tânger um ambiente extravagante. Esse estado de coisas durou no princípio do século, quando Marrocos era ainda um estado independente, e prolongou-se através do protectorado, por se ter tornado em 1923 um porto internacional. Claro que o tempo da guerra foi um período que favoreceu muitas situações extraordinárias, mas posso assegurar-lhe que após a independência de 1956, e apesar de continuar a ser uma área de comércio livre, os velhos tempos são já um passado remoto.
- Bom - disse eu. - Não ponho em dúvida que o senhor conhece bem a situação, mas...
- São já quarenta anos, meu caro amigo. - Interrompeu. - E não tem sido fácil. Quarenta anos em Tânger é muito tempo, acredite - concluiu, com ar fatigado.
Concordei. Mas insisti.
- No entanto, Senhor Castro, no que se refere à droga, é do conhecimento geral que esta cidade constitui uma placa giratória importante para o comércio internacional.
Abanou a cabeça e declarou:
- Importante, de forma nenhuma! Posso assegurar-lhe que Madrid e Lisboa, isso sim, constituem actualmente os dois grandes centros de trânsito de droga nesta zona do mundo, além de Marselha, claro. Em Tânger, as autoridades estão atentas, têm excelentes relações com as polícias europeias, e o pequeno comércio que se pratica aqui ficará até muito aquém do que decorre em qualquer cidade europeia. Claro que por esta cidade passam drogados, sobretudo jovens de todo o mundo, que se sentem atraídos
pelo ambiente exótico e negociam entre si em pequenas quantidades. - Apontou os sacos amontoados no chão. - Vê aquelas bagagens? Pertencem a alguns deles. Meia dúzia estão na cadeia e dois suicidaram-se. São casos humanos, meu caro senhor, e eu desde sempre me tenho interessado por eles. Agora, no que respeita a grandes organizações internacionais a operarem em Tânger, pode crer que não, e eu sei o que digo.
- Bem -disse eu, apenas porque seria indelicado insistir.-E se lhe perguntassem se admite que Tânger pode voltar a interessar essas organizações?
Abanou mais uma vez a cabeça.
- Não teriam sucesso. As autoridades marroquinas estão vigilantes e controlam a situação. Nunca o permitiriam.
- Esperemos que não, Senhor Castro... Enderecei-lhe um sorriso e levantei-me. Ele acompanhou-me e estendeu-me a mão.
- Mr. Gold, se puder ser-lhe útil, conte comigo. E já agora não leve a mal um segundo conselho que lhe dou: a polícia marroquina é muito sensível a intromissões...
Tranquilizei-o.
- Tentarei portar-me bem, Senhor Castro. Quanto mais não seja, para que não tenha de me pagar a fiança.
Rebentou noutra gargalhada que o deixou a transpirar.
O Café de Paris, na Place de France, ainda tinha pouco movimento à hora em que me instalei e pedi uma cerveja. Lá fora, nos passeios, o movimento começava a aumentar. À porta do café, do lado de lá dos vidros, um rapaz e uma rapariga loiros, de blue jeans e chapéus de pele, cantavam música europeia acompanhando-se com uma viola e uma pandeireta, que servia também para recolher as raras contribuições dos passantes.
O empregado colocou a cerveja diante de mim na precisa altura em que ela chegava. Apesar de estar à espera, senti um ligeiro estremecimento e uma emoção mais intensa ainda do que na véspera, quando a descobrira. Que diabo se passaria comigo, um tipo equilibrado com alguma experiência da vida, para de um momento para o outro experimentar aquela excitação própria de um colegial de dezasseis anos?
Agora, à luz do dia, Karin pareceu-me tão bonita, encantadora e irreal como na véspera. Vinha de saltos baixos, vestia uma blusa preta e uma saia verde com cinto dourado. O cabelo não estava arranjado em duas tranças, mas atado na nuca por uma fita, e caía-lhe pelas costas. A tiracolo trazia um saco de couro trabalhado.
Eu já me tinha levantado quando ela chegou junto da mesa.
- Desculpe-me vir atrasada, Mr. Gold.
- Ora, Karin -disse eu afastando a cadeira para ela.- Para quem conseguiu esperar quinze horas por este momento, mais minuto menos minuto ainda é tolerável.
Tal como eu esperava, não reagiu. Disse que queria tomar um chá e fitou-me com aquele ar compenetrado no rosto de boneca, quase infantil.
- Diga-me o que fez hoje, Mr. Gold.
Assim, como se o encontro fosse de negócios e ela estivesse à espera de um relatório. Satisfiz o requerido na medida do possível, isto é, omitindo apenas o que não podia revelar-lhe. Quer dizer, qualquer coisa do género de um “andei para aí...” e poucochinho mais.
O meu breve relato teve no entanto o mérito de lhe trazer aquelas covinhas às faces, depois do que me disse, num tom de ligeira malícia:
- Oh, Mr. Gold, deve ter-se aborrecido imenso... Imediatamente procurei não acusar o toque, mas não resisti e soltei uma gargalhada.
- Não adianta. Já devia saber que não ganho nada em ocultar-lhe coisas... Para começar, recebi a visita de um chinês...
- Isso foi depois de a senorita sair? Fiquei a olhá-la com cara de parvo.
- Desculpe - disse ela, sem dar qualquer mostra de arrependimento. - Um chinês... Terá sido Mr. Wong?
Bebi um gole de cerveja para refrescar as ideias e acendi um cigarro. Só quando me senti quase recuperado resolvi falar.
- Exacto. Agora diga-me você o que Mr. Wong pretendia.
- Oh, Mr. Gold - fez ela, assumindo um ar mais grave.-Não vá ficar aborrecido comigo, por favor... Não é minha intenção meter-me na sua vida, ou revelar capacidades surpreendentes. Sucede que ontem à noite decidi que iria ter uma pequena conversa consigo, e hoje ao almoço duas pessoas, na minha presença, falaram de si e dos seus movimentos desde que chegou... Apenas isso. Sei que fui impertinente, mas... não fica zangado?
Fitava-me muito séria, com uma ligeira ansiedade nos olhos doces. Não, eu não ia ficar zangado. Muito pelo contrário. Se de início experimentara um sentimento de perplexidade perante o seu comportamento, agora tinha de reconhecer que havia uma intenção da parte dela e que Karin tivera um objectivo ao propor este encontro.
Disse-lhe isso mesmo e acrescentei:
- Claro que me sentiria muito mais lisonjeado na minha vaidade se não houvesse outras razões.
- Oh, mas também foi por ter gostado de si-disse ela muito depressa, até depressa de mais, porque logo um rubor delicioso lhe coloriu as faces. Era a primeira reacção francamente positiva que lhe conhecia e então, sim, senti-me contente. Karin ia adiantar qualquer coisa, mas eu tive pena dela e resolvi ajudar.
- Compreendo, Karin. Sentiu necessidade de confiar em alguém, e pensou em mim. Agora diga-me uma coisa: já sabia quem eu era?
Deu mostras de se sentir muito aliviada, e falou com animação.
- Sim, já o conhecia, embora apenas soubesse de quem se tratava quando me disse o seu nome. Acontece que eu gosto de estar a par do que se passa no mundo, Mr. Gold, e leio jornais e revistas de Nova Iorque, de Washington, de paris e de Londres. Gosto muito das suas crónicas, que tenho visto publicadas no seu jornal e distribuídas para publicações europeias. Além disso -esclareceu, como se confidenciasse em segredo -, recebi há dias a edição francesa do seu livro.
O que me sucedia com esta menina era que a última surpresa acabava sempre por ser a penúltima.
- Já o leu?
- Claro - retorquiu com entusiasmo. - E, embora já conhecesse o seu trabalho anterior, acho que este é muito importante.
Referia-se a Um Jornalista nos Bastidores da Droga, a tarefa que eu empreendera em consequência do meu trabalho na Bolívia.
- Bem, Karin - disse eu.- Nesse caso, vejo que sabe quase tanto acerca de mim como eu próprio.-Fiz uma pausa. - E que tal se agora me desvendasse um pouco do mistério de “a Rapariga de Tânger”? Talvez desse para escrever um livro, quem sabe?
O rubor voltou, por breves momentos.
- Não há mistério nenhum, Mr. Gold. Nasci aqui, onde tenho vivido sempre, excepto durante um período de quatro anos que passei em França. Toda a gente me conhece, tanto os naturais como os residentes, e até os estrangeiros que vêm habitualmente passar cá as suas férias. Suponho que gostam de mim, embora eu não me considere exactamente uma figura popular. Sem dúvida que o facto de o meu tutor ser um homem muito rico e influente, além de me proporcionar muitos contactos, também ajuda a criar uma certa auréola. - E concluiu: - Suponho que o esclareci no essencial.
- No essencial, sem dúvida - concordei. - Quanto ao acessório, aceito deixarmos isso para depois, porque tenciono saber mais de si. Por agora, quer dizer-me o que a preocupa?
Nesta altura houve uma ligeira alteração em todos os pormenores do seu semblante, e as mãos, que tinha apoiadas em cima da mesa, tremeram um pouco.
- Tenho um papel para lhe entregar, Mr. Gold. Depois lhe direi como o obtive. Quanto ao conteúdo, com uma explicação breve que lhe darei ficará completamente esclarecido quando o ler. No entanto...
- Diga, Karin. Sabe que pode confiar em mim...
O rosto começou a readquirir a expressão desanuviada juvenil de momentos antes.
- Oh, sim. Mas prefiro falar sobre o assunto mais tarde. Vamos jantar, não vamos?
- Claro, menina. Estou completamente ao seu dispor.
- Ainda bem, porque eu também tenho o resto do dia livre. - Hesitou, passando a pontinha da língua pelo lábio inferior. - Pensei que podíamos ir dar um passeio pelo Kasbah. Gosto muito, sabe?
- Uma ideia excelente, Karin - disse eu, chamando o empregado para pagar. Voltava a sentir aquela impressão estimulante e infinitamente agradável.
Um quarto de hora mais tarde misturávamo-nos com a multidão agitada e ruidosa do Grande Socco, ainda mais ruidosa e agitada que na véspera ao fim da tarde. No mercado, as pessoas apinhavam-se de tal maneira que se tornava difícil avançar. Alguns vendedores saudavam a minha companheira com manifestações de respeito e regozijo.
Em dada altura surgiu diante de nós um fotógrafo ambulante, e o gesto de recusa de Karin foi mais lento do que o disparo da máquina. Acabei por aceitar o bilhete, que lhe exibi com um sorriso.
- Lembrança de Tânger. E de si também.
Pareceu-me que o episódio a contrariava, e só quando subimos a Rua de Itália ela retomou a conversa. Ao chegarmos à Praça Tabor, para onde se abre uma das passagens para o Kasbah, pedi-lhe que me deixasse descansar um pouco e fui sentar-me junto de um dos velhos canhões que se mantêm nas posições estratégicas de épocas passadas. Karin movimentava-se fresca e alegre, de vez em quando vinha junto de mim dar mais qualquer explicação, e a imagem dela e a brisa ligeira exerciam um efeito revigorante. Daí a pouco veio puxar-me pela mão e levou-me a continuar o passeio. Sozinho ter-me-ia perdido no labirinto de estreitas ruas empedradas, ladeadas por construções pintadas a ocre, branco e vermelho, donde se desprendia um aroma a especiarias, a fritos e muita coisa mais que eu não saberia distinguir, mas que era diferente e agradável. Encontrávamos pouca gente, apenas defronte das portas e dentro das lojas. Cá fora, como no interior dos edifícios que visitámos, o ambiente era fresco, porque o sol não chegava a penetrar o espaço entre as casas. Karin quis mostrar-me a Mesquita e o Palácio do Sultão. Com ela percorri as salas magníficas e os belos jardins. Decerto que aquele mundo fascinante me prendia e cativava. Mas Karin contribuía muito, e num ou noutro momento fui mesmo surpreendido por ela a contemplá-la, em vez de tomar atenção às riquezas que me ia revelando, e nessas alturas admoestava-me gentilmente.
As lojas exibiam às portas os artigos de artesanato mais diversos, embora o comércio fosse praticado de forma mais recolhida e menos intensa do que nos mercados que eu percorrera. Nalgumas delas os artigos eram fabricados no próprio local, e noutros estabelecimentos, escuros, vastos e repletos, exibiam-se antiguidades preciosas. Havia também ourives a trabalharem à porta, e aí Karin detinha-se a contemplar as abundantes colecções de pulseiras, colares e anéis.
- E se eu comprasse um presente? - resolvi perguntar, num desses momentos.
- Para quem? - quis saber.
- Uma amiga.
- Ah... sim, claro que sim.
- Quer ajudar-me a escolher?
Após breve hesitação, aceitou o encargo e acabou por se incumbir da missão como se fosse para ela.
Finalmente surgiu lá do fundo exibindo um bonito colar de âmbar.
- É bonito.
- Gosta mesmo?
- Muito.
- Então fico com ele.
Felizmente foi ela quem se encarregou da transacção Se eu estava convencido de que fazer uma compra numa loja de Tânger era mais fácil, ou pelo menos não tão difícil como em La Paz ou Saigão, os minutos que se seguiram, serviram para rectificar essa ideia. A discussão animada que se travou não só não possuía a elegância de uma troca comercial na Quinta Avenida ou a finesse de um achat na Place Vendôme, como superava Macau ou o Rio em acção espectáculo e suspense. Finalmente, Karin anunciou vitoriosamente:
- Duzentos dirhams!
Pelo ar feliz que ela exibia, devia ser uma pechincha. Mandei embrulhar e paguei. Cá fora detive-a pelo braço e estendi-lhe o pequeno embrulho.
- Para si. Pelo esforço... e por tudo.
Não disse nada. Nem era preciso. O olhar com que mu agradeceu valia por todas as recompensas do mundo.
Quando descemos o caminho que conduz à Avenida Espanha, junto ao porto, o sol começava a cair para lá da baía. Era aí que ela tinha sugerido jantarmos. Estávamos ambos cansados e bem dispostos, e talvez por isso mesmo seguíamos sem falar, olhando o areal que a partir dali se estendia quase a perder de vista. Até que ela disse “Podíamos ir a este”, e nos dirigimos para um restaurante com um terraço envidraçado que dava para o mar. Era uma construção caiada, de um só piso, dividida no interior em compartimentos alinhados ao longo das janelas da sala. Karin conduziu-me para um deles. Uma empregada novinha veio com uma bandeja onde transportava duas tigelas e pequenas toalhas. Era o ritual do lava-mãos que eu aproveitei para humedecer também o rosto, ante o espanto de Karin e da rapariguinha. Esta achou tanta graça que o patrão, um marroquino pequeno, estreito escuro, de avental muito branco, veio ver o que se passava. Mas ao deparar-se-lhe a minha companheira esqueceu ao que ia, todo o rosto resplandeceu, e a sua figura magra pareceu de repente maior. Terminadas as manifestações mas ainda emocionado, inquiriu sobre o que iríamos comer. Para evitar situações como a da véspera, e o que eu desejava acima de tudo era estar sozinho com Karin, anunciei sem querer ouvir mais nada: - Sopa de peixe e costeletas.
O patrão assumiu um ar compungido, Karin olhou para mim surpreendida e a rapariga ainda se riu mais do que antes. Eu acrescentei:
- Vinho tinto de 74 e dois pastis para aperitivo.
Os que eram da casa desandaram, e nós ficámos a olhar um para o outro. Logo depois desatámos a rir, e quando dei por mim ali estava eu, Frank Gold, o “ilustre jornalista americano”, divorciado e pai de dois filhos, a atirar um guardanapo molhado ao pescoço delicado de uma jovem deliciosa que me fazia voltar aos tempos da adolescência.
Quando aquele momento de euforia passou, e ficámos a olhar um para o outro, senti uma espécie de nostalgia porque sabia que certos momentos não se repetem na vida. Coloquei por instantes a mão por cima da sua e disse-lhe:
- Karin, importa-se de pôr o colar?
Ela tirou do saco o embrulho colorido, abriu-o com muito cuidado, contemplou os grossos bagos de âmbar e colocou-o em volta do pescoço. Teve alguma dificuldade em acertar com o fecho, mas finalmente pôde exibir para mim o conjunto. Maravilhoso. Levei o copo à boca e sugeri:
- Agora, Karin, diga-me o que tem para dizer.
Poisou o copo dela e semicerrou as pálpebras, como se fizesse um esforço para se concentrar. Só passados alguns segundos pronunciou:
- Os documentos que tenho comigo, dentro de um sobrescrito, são fotocópias dos originais que roubei do cofre de Abdul Ahrman, o braço direito do meu tutor.
Disse isto tranquilamente, mas eu percebi que todo o processo por que ela devia ter passado fora por certo muito longo e penoso.
- Abdul Ahrman é o homem que melhor conhece todos os negócios da organização. Talvez seja mesmo o único. Os documentos originais voltaram a ser colocados onde estavam, e ele nunca saberá. - Prosseguiu, com algum cansaço na voz.- Não lhe interessam as razões por que faço isto. Nem eu lhas direi. Só precisa saber que esses papéis contêm os pormenores de uma transacção muito importante que vem a ser preparada há alguns meses e que será a primeira em que colaboram as organizações de Ben Youssef, representado por Abdul, e a de Adolfo González, através de Ricardo Sánchez.
- Quando se efectuará a operação?
- Esta madrugada, num pequeno aeródromo a sete quilómetros daqui. Vem tudo aí explicado.
- Quer dar-me já o sobrescrito?
Hesitou, e por fim resolveu:
- Sim. Mas abra-o apenas no quarto do seu hotel.
Olhou para a entrada do compartimento e tirou do fundo do saco um sobrescrito comprido e amarelo, que me estendeu rapidamente. Notei que estava fechado e guardei-o no bolso interior do casaco.
- Adolfo González encontra-se em Tânger. Já o viu?
- Saiu. Ontem à hora de jantar, em casa do meu tio.
Seguiu-se um espaço de silêncio. Fui eu quem quebrou.
- Tem mais alguma coisa que queira dizer-me? Sacudiu a cabeça.
- Não.
- Bem. Deixe o assunto por minha conta. E agora vamos conversar sobre coisas bonitas. De acordo?
Acenou afirmativamente, com os pequeninos dentes da frente a trincarem o lábio inferior, e eu tive de despender um esforço notável para a ver sorrir outra vez. A princípio fê-lo com algum esforço, mas a chegada do patrão carregando uma terrina enorme e fumegante, com ruidosas manifestações de contentamento, foi uma contribuição decisiva para lhe animar um pouco mais o rosto. Daí a pouco era como se não tivesse existido qualquer pausa custosa, e todo o tempo que durou aquela refeição maravilhosa escoou-se depressa e de forma inesquecível. Castro afirmara repetidamente que Karin era uma rapariga notável. Eu, que durante as breves horas dessa tarde tivera o privilégio de a conhecer talvez melhor do que muita gente que a conhecia, havia ganho a convicção absoluta de que ela era a mulher mais fascinante que encontrara na vida. E a certeza de existir em Karin um mundo inteiro por descobrir.
Saí para a frescura do azul-escuro da noite experimentando uma languidez que era menos o resultado da comida e do vinho do que da presença, física e espiritual, cada vez mais palpável, de Karin. Ela caminhava a meu lado quase encostada a mim, e a espaços os nossos corpos tocavam-se, e eu sentia uma vontade quase irreprimível de agarrá-la pelos ombros, apertá-la contra mim e beijá-la como se fosse a última coisa que fazia na vida. Não sei porque não o fiz. Talvez aquela suave angústia que ela me transmitia e eu não conseguia explicar.
Na baía, as luzes dos barcos que saíam para a pesca eram pontos incandescentes que ao longe se confundiam com as estrelas. Do longo pontão do porto afastava-se lentamente um paquete todo iluminado. Rumo a Ceuta, ou talvez a Casablanca.
- Vai para o hotel? - perguntou-me mais adiante. E acrescentou: -Eu tenho de voltar para casa.
Olhei o relógio. Eram dez horas. Eu precisava de reflectir sobre o que ia fazer a seguir, e naquele momento não me apeteceu empreender essa tarefa sozinho no quarto do hotel. Talvez Francesca me pudesse ajudar. Pelo menos, eu sentia-me melhor depois de a pôr ao corrente. Decidi passar por casa dela.
Karin sugeriu:
- Vamos apanhar um táxi. Eu deixo-o lá, mas não subo. Depois sigo a pé o resto do caminho. É mais seguro.
Fez sinal a um táxi, e depois que o ocupámos deu o endereço em árabe. O motorista arrancou, metendo pelas ruas que sobem contornando a medina. O percurso foi razoavelmente longo, até que o carro abrandou e acabou por imobilizar-se no início de uma rua residencial de vivendas e alguns prédios antigos de quatro andares. Paguei a corrida, não sem antes insistir com Karin.
- Não acha melhor seguir?
Abanou a cabeça, e apeámo-nos. Ela indicou-me um dos edifícios, iluminado por um candeeiro plantado defronte.
- O prédio é aquele. - E após uma pausa: -Acho preferível ir sozinho.
Aceitei a mão que me estendia. Apertei-lha com ternura, e murmurei:
- Obrigado, Karin. Espero vê-la amanhã.
- Espero que sim, Frank - foi a resposta. Soltou a mão, voltou as costas, e eu comecei a andar para o fundo da rua.
De súbito, o carro desembocou em derrapagem de uma transversal próxima e, após uma viragem brusca para evitar o choque com o muro fronteiro, precipitou-se na minha direcção com os faróis nos máximos.
Estaquei com os nervos tensos, e só quando ouvi o grito dela, já com o bólide quase em cima de mim, projectei num reflexo instintivo o corpo contra a parede. O torpedo passou rente, prosseguindo em marcha desenfreada, e eu corri desesperadamente à procura de um buraco antes que eles voltassem.
No beco em que me metera não havia um vão sequer onde pudesse enfiar-me. Percebi que o veículo freava brutalmente e manobrava para voltar, e retomei a corrida com todas as forças, para o fundo da rua, onde o meu vulto gigantesco era projectado pela luz dos faróis.
O roncar potente do motor, repercutindo-se formidávelmente nas fachadas nuas dos prédios, aproximava-se num crescendo medonho. Eu nunca conseguiria lá chegar. Tinha de existir outra saída...
O muro que corria ao meu lado erguia-se a mais de três metros, e essa barreira eu não conseguiria transpô-la. Do lado oposto, mais adiante, deviam ser armazéns, com uma fiada interminável de janelas a uma altura considerável de chão. Foi para aí que me lancei, aos ziguezagues, como um coelho acossado, e a tentar desesperadamente ganhar balanço para alcançar um varão de ferro fixado sob uma das aberturas. Os últimos metros foram percorridos já com o bafo quente do monstro a queimar-me as pernas, no último instante concentrei num esforço tremendo todas as energias num salto que permitiu as minhas mãos agarrarem com força o varão. O carro passou como um projéctil a rasar-me as pernas dobradas.
Inspirei fundo e puxei o corpo para cima até sentir os pés bem firmes no rebordo. Acabei de me içar e fiquei ali uns segundos, encolhido, a ofegar. Mas quando vi lá em baixo o carro deter-se e quatro indivíduos apearem-se, decidi que o poiso não era o melhor, quebrei o vidro com o pé e inclinei-me para dentro.
O interior era um buraco completamente negro; porém raciocinei que entre morte certa ao luar ou uma perna fracturada no escuro a opção estava feita, e deixei-me cair
Devo ter tombado sobre um caixote, que se desfez em estilhas com um estrondo que se repercutiu pelas paredes. Levantei-me, sentindo-me feliz por apenas coxear da perna esquerda, e fui andando até ao local onde se infiltrava, por uma fresta rente ao chão, uma luz amarela que devia provir da rua. Caminhei aos tropeções, até a vista se adaptar à escuridão diluída pela luminosidade vinda de cima, e pude então verificar que me encontrava num entreposto ou algo do género, com caixotes amontoados por todo o lado. Distingui também uma escada de madeira colocada contra a parede e que ia dar precisamente a meio metro do buraco por onde eu saltara. Simplesmente ridículo.
A frente localizava-se por baixo de uma porta enorme e pesada. Percebi ruídos e vozes no exterior e espreitei pelo buraco da fechadura. O grupo reunira-se no passeio e Karin fazia parte dele. Lá estava igualmente um tipo alto, de cabelo esbranquiçado, que nesse momento se lhe dirigia. Em seguida virou-se para os outros e falou rapidamente, após o que conduziu Karin para fora do meu campo de visão. Os companheiros não tardaram a desaparecer também, mas na direcção oposta. Seguiu-se o ruído do carro, a arrancar em marcha atrás, e depois o ronronar do motor em trabalhar silencioso. Compreendi qual era o plano. O homem de cabelo claro aguardava com Karin no veículo ao fundo da rua, enquanto um dos parceiros cobria o portão e o outro a saída das traseiras. Reflecti que afinal de contas a escada ainda ia servir.
Fui buscá-la e transportei-a o mais depressa que pude para debaixo da clarabóia próxima da porta. Subi com cuidado, abri cautelosamente o vidro e trepei para o vão. Lá em baixo ouvia-se apenas o barulho leve do motor e os passos do que patrulhava. Deitei uma olhadela para o passeio a fim de calcular tempos e distâncias. Logo depois endireitei o corpo tanto quanto a altura do vão mo permitia, aguardei que o barulho dos passos chegasse suficientemente perto e atirei-me no que já era o segundo mergulho da noite. A experiência ajudou. Todo o meu corpo foi cair brutalmente sobre a espinha do tipo. O choque para mim foi enorme, transmitindo-se até à nuca, sobretudo a partir da perna ainda aleijada. Para ele, foi fatal.
Rolei alguns metros no solo, acabando por me imobilizar no meio da rua. Mesmo antes de abrir os olhos, apercebi-me de que o automóvel arrancava na minha direcção. Arrastei-me pesadamente até ao passeio, onde o tipo jazia todo quebrado, o focinho virado para mim e a nuca meio enfiada no buraco da sarjeta, e fui apanhar a artilharia do chão. Mal tive tempo de disparar uma rajada na direcção do carro antes de desatar a correr por cima das pedras e das dores que deixei de sentir.
Ao contornar, como nos filmes de cinema mudo, a esquina de onde a quadrilha surgira, senti a deslocação de ar produzida por uma bala que foi cravar-se na parede. Consegui um avanço razoável enquanto o grande Citroen perdia tempo a sair da travessa, de modo que quando alcancei o extremo da rua ainda ele vinha lá atrás.
Não possuía a mínima ideia do local onde me encontrava, pelo que só me restava tocar para diante, e depressa. Às tantas, os prédios e as ruas começaram a rarear, e daí a pouco corria por um descampado onde apenas aqui e ali se erguiam algumas casas baixas de pedra onde havia gente à porta. A noite estava escura e ventosa. Grossos pingos começaram a tombar-me em cima, para logo a seguir darem lugar a uma chuva forte e fria que me fustigava a cara. A arma pesava-me cada vez mais, as pernas começavam a recusar-se, e eu já sentia uma vontade muito grande de me atirar para o chão quando distingui ao longe, tracejado pelas rispas de água, um foco poderoso que rasgava a escuridão, movendo-se para cá.
Ao cabo de uns instantes chegou até mim o resfolegar próximo de uma locomotiva. Procurei descortinar a linha férrea, porém só o consegui quando o olho da máquina iluminou o descampado. Andei depressa, a coxear, os sapatos enterrando-se nas poças de água, e chegado à beira dos trilhos fiquei a aguardar. Uns cinquenta metros atrás, o Citroen havia parado. O comboio aproximou-se em marcha lenta. Deixei que a locomotiva passasse a resfolegar. Atrás trazia uma fila de vagões de carga e no fim uma carruagem. Escolhi um vagão, joguei a metralhadora pela abertura, e, depois de me segurar a uma barra metálica, trepei lá para dentro.
Ia vazio. Então deixei-me esparramar no soalho, com os olhos fechados e a roupa ensopada a escorrer.
Estava em vias de distender os nervos tensos quando um restolhar próximo me fez de um salto ficar sentado, com as costas pregadas à parede do vagão e a arma pronta a disparar. O esforço que fiz para fixar a vista na origem do ruído, após aqueles segundos com os olhos cerrados, provocou-me uma tontura. Porém, logo em seguida um “méé...” prolongado tranquilizou-me, o ritmo das pulsações baixou, e senti de repente uma vontade enorme de beijar a pequena cabra que me fitava com curiosidade e condescendência. Achava-se presa a uma argola fixada no chão, e eu encontrava-me deitado em cima da palha que lhe servia de refeição. Ocorreu-me que nem lhe dera pelo cheiro; porém, isso era natural, visto não ser de esperar que um vagão de caminho-de-ferro em Marrocos cheire a água-de-colónia francesa.
A viagem foi curta. Uns cinco minutos depois, e quando a cabra e eu já éramos amigos, os freios guincharam e a composição abrandou o andamento, para se deter logo a seguir. Eu mantinha-me na mesma posição desconfortável e a companhia que arranjara não me tinha distraído de vir seguindo atentamente, lá fora, a marcha de um Citroèn cujos faróis distinguia perfeitamente no seu percurso para leio e a distância considerável da via.
Na altura em que o comboio se imobilizou não vi casas próximas, apenas areal, de modo que concluí tratar-se de alguma passagem de nível.
Quando me chegou aos ouvidos um barulho confuso de vozes e agitação, resolvi confirmar. Arrastei-me até ao lado oposto, empurrei com esforço a porta de correr e espreitei.
Era ali o fim do passeio. O comboio em que eu seguia fora estacionar numa plataforma da pequena estação do caminho-de-ferro de Tânger.
Larguei uma imprecação e regressei ao meu canto Acendi um cigarro, à espera. A minha amiga parecia mais nervosa do que eu com aquela paragem súbita. Falei-lhe com meiguice e disse-lhe que não ia acontecer nada de grave. Conversa, apenas. Era certo e sabido que os meus perseguidores tentariam visar-me o bilhete à saída, e eu não quis apear-me com uma metralhadora na mão. De modo que decidi conservar-me onde estava, pelo menos de momento.
Daí a pouco a gare esvaziara-se e tudo caiu no silêncio. A beata, já nas últimas, brilhava no escuro. Esborrachei-n nas tábuas húmidas do chão, longe do monte de palha.
Momentos depois, senti passos de uma única pessoa a aproximar-se. Fiquei ainda mais quieto, com todos os nervos esticados, e o dedo colocado no gatilho da arma. Os
passos detiveram-se um pouco antes do sítio onde me encontrava. Percebi que desengatavam o vagão. Quem era, provavelmente um funcionário, afastou-se em seguida, e chegou-me o barulho da máquina e do resto da composição a movimentarem-se devagar.
O vagão ficou onde estava. Olhei para a cabrinha e para a palha, e um pensamento me ocorreu. De início relutantemente, depois ganhou alguma força, mas quando ouvi vozes no cais da estação, e ao espreitar distingui as silhuetas de três tipos e o feixe de luz de uma lanterna, acabei por me resolver.
Rapidamente, desatei a corda que prendia a cabra e disse-lhe um segredo ao ouvido que ela não deve ter entendido, porque foi preciso empurrá-la por trás, com muita energia, para obrigá-la a passar pela abertura e saltar pelo lado oposto ao cais. Resolvido o desembarque da minha companheira de viagem, pus a cabeça de fora. Verifiquei com alívio que o nosso vagão se encontrava isolado e distanciado uns bons metros de uma fila extensa de vagões abertos. Então acendi o isqueiro, cheguei a chama à palha até uns pedaços mais secos começarem a fumegar, e quando o ar se começou a tornar menos respirável desci com vagar. Na altura em que os meus pés pisaram o saibro, as labaredas começaram a iluminar o interior. Já não chovia. Puxei a cabra pela corda e passei-a adiante de mim por debaixo da composição vizinha.
Nessa altura um alarme estridente desatou a soar, ao mesmo tempo que as chamas se elevavam, a consumir as estruturas de madeira e produzindo um clarão crepitante na noite. Por sobre o ruído percebi passos que se afastavam apressadamente e distingui para lá do vagão a arder um tropel de gente que se aproximava correndo. Então, meia dúzia de estoiros estalaram espaçadamente. Eram as balas da arma que eu deixara ficar. Então, foi o pandemó-nio. Inspirei fundo o ar húmido a cheirar a fumo e erva molhada e, com a cabra pela trela, fui descendo até ao porto.
Já era quase meia-noite quando passei pela recepção do hotel, onde apenas o empregado que eu já da véspera conhecia olhou arregalado para o meu aspecto miserável. Começou a mover a boca, mas eu pedi-lhe a chave, informei-o de que estava uma cabra a pastar lá fora, disse-lhe que a entregasse a Ahmed pela manhã e subi sem lhe dar tempo a manifestar-se. Quando entrei no elevador ele ainda tentava dizer qualquer coisa, porém eu já carregara no botão e a porta a fechar-se apagou a imagem.
No corredor do sexto cruzei-me com duas loiras, uma das quais me pareceu a da touca cor-de-rosa dessa manhã. Cumprimentei-as com um sorriso alarve, enquanto metia para dentro uma ponta da fralda da camisa rasgada, e passei adiante.
Meti a chave à porta e entrei. A luz da sala estava acesa e ela estava lá. Ergueu-se de esticão e eu bati com a porta e fiquei encostado à parede, na penumbra do vão da entrada, num esforço enorme para me controlar.
- Mr. Gold... não dispare. Por favor. - Apesar do estado de espírito em que me encontrava, reparei que o corpo tenso era um desenho de contornos suaves, e as linhas das pernas bem feitas, do ventre liso e dos seios redondos e ofegantes destacavam-se contra o fundo azul-escuro do reposteiro. Senti uma revolta muito grande contra ela, e contra mim próprio.
- Que é que pretendes, menina?
- Eu... venho para o ajudar.
Dei dois passos e uma risada que soou a vulgar. A voz saiu-me rouca.
- Ouve, pequena, e trata de ver se percebes. Põe-te a andar, e já, antes que eu quebre o teu pescoço bonito, abra a cabeça e despeje lá para dentro tudo aquilo que me apetece vomitar. Cava! -gritei.
Continuou ali quieta, e só daí a bocado murmurou, como se estivesse muito cansada:
- Eu... estou aqui... para o ajudar. Acredite. Outra vez a tal risada.
- Olha, os teus amiguinhos circulam por aí, à espera de me liquidar. Foram eles que te mandaram. Para quê?
Avançou uns passos, mansamente.
- Quieta - disse eu. Deteve-se, e pude ouvir distintamente o ruído da respiração alterada.
- Eu... não tive culpa. Não sabia. Por isso gritei... Abanei a cabeça com desgosto.
- Gritaste, hem?
- Sim. Quando o carro...
- Pois - atalhei com irritação. - Eu sei. És uma boa rapariga. Preparas o funeral e forneces a música. Agora põe-te a mexer. Mas fica a saber uma coisa. Depois desta história toda arrumada, eu hei-de encontrar-te. E nessa altura havemos de falar. Toca a andar.
- Mas... eu quero ajudá-lo... Quis ajudá-lo, e agora também. - Rompeu em soluços. -...levo-o para um lugar seguro!
Raios. Eu não ia aguentar uma cena daquelas muito tempo.
- Para onde... para casa dos teus amigos?
Abanou negativamente a cabeça e a fala saiu-lhe em catadupa, embora aos solavancos.
- Não... nem para o meu apartamento. Eles sabem onde é... Levo-o para casa de uma amiga que saiu de Tânger por uns dias. Mas, por favor... vamos depressa!
Aproximara-se entretanto, e deixou-se cair de joelhos. Não sei porquê, permaneci onde estava, a olhar-lhe de cima os cabelos negros e o rosto todo molhado que ela erguia para mim.
- Mr. Gold... juro-lhe que não sabia de nada... os papéis que lhe dei julgava que eram verdadeiros. Só há bocado é que ouvi Ricardo dizer ao Michel...
Não percebia nada de nada. Levei a mão ao bolso. O sobrescrito estava lá.
- Ouviste o Ricardo dizer o quê ao Michel?
- Que os papéis se referem a uma operação importante e que Mr. Gold é mencionado neles como intermediário. Papéis que prepararam para o caso de pretender incriminá-los. Compreende?
Não compreendia lá muito bem, mas para já interessava-me mais esclarecer outros pontos.
- Vamos admitir que acredito, e que tudo o que se passou foi apenas um incidente em que eu estive em vias de mudar de vida. Agora, qual é o teu papel no meio disto tudo?
Os soluços tinham cessado. Ergueu-se apoiada à parede e ficou a um metro de mim.
- Eu explico-lhe. Mas, por favor, vamos embora... Eles vêm aí!
A minha cabeça trabalhava à velocidade de um computador. Bem, talvez de uma calculadora em segunda mão. Perguntei:
- Sabem que estás comigo?
Negou, com medo nos olhos.
- Oh, não! Ficaram furiosos por eu ter gritado... mas acreditaram que não tinha sido com a intenção de o avisar.
Decidi-me.
- Bom - disse para ela. - Vou mudar de roupa num instante. E tu vai lavar essa cara.
Ela deu um suspiro, e as covinhas nas faces desenharam-se-lhe com o sorriso. Em seguida deslizou para a casa de banho.
Um táxi levou-nos por ruas e vielas. Eu sentia o corpo partido, o tornozelo inchado e um ardor incómodo no braço. Finalmente ela disse: “É aqui”, eu paguei e descemos.
Havia umas escadas muito estreitas e sem luz, que trepei atrás de Karin, apertando bem o corrimão para não tropeçar. No patamar do segundo piso, ela passou junto da porta do lado direito e tirou a chave da malinha, mas tive eu de abrir porque a mão dela tremia. Deixei-a passar, entrei a seguir e empurrei a porta com o pé. Karin acendeu a lâmpada da entrada.
Passámos um reposteiro de lã de pintura gasta - talvez fosse muito antigo- e seguimos por um corredor comprido, alumiado pela luz frouxa de uma lanterna que pendia do tecto e balouçava ao ritmo das tábuas que nos chiavam debaixo dos pés. Andámos mesmo até ao fim, e aí Karin convidou-me a entrar para uma saleta quadrada.
Era uma sala de estar confortável e decorada com gosto. Havia bons quadros distribuídos pelas paredes e muitas almofadas e pequenos tamboretes espalhados sobre a alcatifa, que era uma verdadeira obra de tapeçaria. Um rectângulo na parede do fundo era um aquário com peixes tropicais, os quais se agitaram nervosamente ao acender-se a luz fluorescente escondida pelo friso de conchas. O bar com embutidos ocupava um dos cantos, e noutro havia um biombo a esconder a passagem para a sala contígua. Um conjunto de sofá, poltronas e uma mesinha baixa ocupavam a quarta parte da divisão, junto à janela tapada por reposteiros modernos de tecido bordado.
Por contraste com aquele ambiente limpo e confortável, eu sentia-me sujo dos pés à cabeça, e por dentro também. A roupa já estava seca, porém a lama fazia as pregas pegarem-se à pele, e todo eu era uma crosta nojenta. Por isso, antes de me atirar para o sofá, dei-me ao trabalho de estender o casaco dobrado com o forro para baixo. Mas o resto de pedaços de lama seca que os sapatos haviam largado na alcatifa podia ser seguido por uma toupeira desde a porta de entrada.
- Mr. Gold... o senhor está ferido!-exclamou Karin com os olhos muito abertos e o uisque a verter directamente da garrafa para a bandeja.
- Ora-disse eu.-Não é nada. Foi só de raspão.
Ela depositou rapidamente a bandeja no tampo da mesa e precipitou-se para fora da sala. Quando voltou, trazia tantos pensos e frasquinhos que eu emborquei um gole enorme para fazer o susto passar.
- Não te preocupes, pequena. Lá em casa tratamos pior do que isto com uisque para desinfectar e um bocado de cuspo por cima.
Mas já ela me tinha arregaçado a manga e inspeccionava cuidadosamente o arranhão. Estava ajoelhada, ali muito chegada a mim, e o cabelo negro e perfumado roçava-me a cara enquanto os dedos delgados limpavam a ferida. Besuntou-me o braço quase todo com tintura, e quando acabou de ligar eu parecia um ferido grave em acidente de viação. Pus a manga no lugar e ela ergueu-se para ir arrumar a farmácia.
Engoli mais um trago de bebida, reflectindo que precisava de um cigarro; porém, esquecera-me de que havia todo o meu peso em cima do maço, e o tabaco estava todo amachucado. Consegui safar um em condições razoáveis, acendi-o e o primeiro trago queimou-me os pulmões. Depois foi melhor. Então distendi o corpo e pus-me a fazer anéis para o tecto.
Karin regressou, indo sentar-se na beira do sofá, bem na pontinha, numa posição desconfortável, à espera do que eu ia dizer. Eu não disse nada. Continuei recostado, a soltar nuvens de fumo e a dar voltas à cabeça, e quando abri a boca foi para anunciar que precisava de tomar banho. Karin ia aproveitar a deixa para desaparecer, de modo que acrescentei:
-...daqui a pouco, quando acabar a conversa. Olhou-me de um modo que me fez lembrar a cabrinha do vagão.
- Ah...- Trincava nervosamente o lábio com os dentes da frente.
- Pois é. Diz lá.
- O... quê?
- Tudo. Assim é mais fácil, e não tenho de te puxar pela língua.
- Eu... já disse.
- Eu sei. Já disseste que julgavas que os papéis eram autênticos e que gritaste quando percebeste que eu ia ser esborrachado contra uma parede. Mas preciso de saber mais... para poder acreditar em ti.
Não sei se ela tinha reparado ou não, porém a saia tinha subido um bocado acima dos joelhos bonitos.
- Eu fui ter consigo, não fui? Arrisquei a minha vida... Trouxe-o para aqui. Eles vão matar-me. Tenho a certeza de que me vão matar!
Poisou nos meus os olhos húmidos, de um brilho tão suave como névoa de madrugada. Lembrei-me outra vez da cabrinha. Mas não ia deixar-me comover demasiado.
- Pequena - disse eu.- Se até agora eu não te matei, existe uma probabilidade razoável de seres uma garota cheia de sorte.
- Oh, Mr. Gold, por favor... Eu não podia adivinhar. E o senhor também não.-Aqui marquei mais um ponto a favor dela. - Como poderei convencê-lo?
Exprimia-se com convicção e eu senti que perdia terreno.
- Okay, deixa lá o mister e trata-me por Frank. Fitou-me com as sobrancelhas levemente arqueadas, a ver se eu estava a brincar, mas percebeu que eu estava convencido, e o alívio transmitiu-se-lhe a todo o corpo e deixou-lhe descair um pouco a cabeça para trás. Finquei o braço válido para conseguir sentar-me direito, inclinei-me para ela até quase lhe tocar o rosto e inquiri:
- Quem és tu, Karin? E qual é o teu papel em toda esta história?
Começou a falar de um modo muito especial, os olhos grandes e tristes fitos num ponto que não se achava ali, como se fosse extremamente penoso ir buscar algo que trazia sempre consigo.
- O meu pai era natural de Marráquexe. Pertencia à burguesia marroquina, que desempenhou um papel importante no movimento nacional que conduziu este país à independência do protectorado da França e da Espanha Em 1951 casou com uma jovem de boas famílias de Rabat Em 1957, um ano depois da independência, desiludido com o que se passava na vida política, veio para Tânger ocupar o lugar de director dos escritórios de uma grande empresa de exportação e importação. Eu nasci nessa altura. Ele morreu dois anos mais tarde e a minha mãe faleceu seis meses depois, vítima de um tracoma pulmonar.
Fez um esforço para prosseguir.
- Fui entregue aos cuidados de um homem muito rico e poderoso, de Rabat, chamado Ben Youssef, um rico negociante que tinha sido um grande amigo e protector do meu pai e durante muitos anos desempenhou o cargo de cônsui honorário de Tânger. Ben Youssef foi o meu tutor. Quando concluí o liceu, mandou-me estudar para Bordéus. E, quando terminei a faculdade fiquei a trabalhar com ele
Interrompeu-se e eu passei-lhe a mão pelo cabelo.
- Sendo assim, devias estar-lhe grata.
Nessa altura, os olhos dela adquiriram outra expressão De raiva. Endireitou o tronco e a cabeça e foi com fúria que respondeu.
- Não. Ben Youssef envolveu-me nos negócios sujos dele. Traiu-me. Deixou que Abdul Ahrman forjasse do cumentos que me incriminam se eu o denunciar. Ben Youssef é um porco, um assassino... e eu hei-de matá-lo!
Por toda a fúria e revolta que ia no seu rosto, acreditei sinceramente que sim. Decidi, porém, que nesta altura era preferível não aprofundar mais essa parte.
Vi as horas e acendi um cigarro, a dar-lhe tempo para se acalmar. Passava da uma. Estendi o braço disponível e puxei-a com doçura para junto de mim. Senti que o seu corpo descarregava toda aquela tensão pela forma como se deixou vir e encostou a mim. Rocei-lhe os dedos pela face, acariciando a orelha pequenina. Ela virou-se devagar com um brilho indefinível nos olhos negros. Quando lhe poisei a mão na coxa semicerrou as pálpebras e pude sentir que o seu corpo tremia.
- Ainda é cedo para sair - murmurei-lhe ao ouvido. - Antes preciso de um banho e descansar um bocado.
- Sim - disse ela, mas não se moveu.
Quase logo os seus lábios macios, doces e quentes colaram-se aos meus. Quando recobrei o fôlego e ergui as pálpebras ela achava-se de pé, diante de mim, as pernas ligeiramente afastadas e os olhos cintilantes.
- Vou arranjar o banho - participou alegremente.
- Para ti também?
- Claro que sim.
- Assim vestida, vais molhar-te...
- Oh... -fez ela, e começou a desapertar o fecho da gaia, donde pendia uma fina corrente dourada a suspender um isqueiro minúsculo. Depois, com um movimento suave das ancas, fê-la escorregar para os pés.
Acendi a luz ao entrar no quarto. Karin dormia com um sorriso tranquilo nos lábios, e quando puxei o lençol para lhe cobrir as lindas costas nuas ela ronronou um resmungo e acabou por abrir os olhos.
- Donde vens? - inquiriu num bocejo.
- Do banho - disse eu.
Soergueu ligeiramente o tronco e, após esfregar preguiçosamente as pálpebras, reparou no que eu trazia vestido. Umas calças de algodão, camisa de ramagens lilases e sandálias de couro.
- Mas... isso não é teu!
- Pois não. Levei tempo a descobrir. Sentei-me na cama a atacar os sapatos.
- Quem é o matulão de cabelos brancos? - perguntei.
- Ricardo Sánchez. Chegou da Bolívia há dois meses, e desde então anda sempre com Abdul Ahrman. Onde vais?
- Onde é o quartel-general?
- Nos armazéns de Ben Youssef. - Olhou-me com ansiedade. - Mas não vais sozinho, pois não?
Levantei-me.
- Não. Tu vais comigo. - E acrescentei, a apagar-lhe o sorriso:-Só para me dizeres onde é. Depois voltas para aqui.
- Como quiseres - declarou desapontada.
- Talvez eu lá encontre também o teu dossier - arrisquei para a animar.
Sacudiu os cabelos soltos e agarrou-me o braço com força.
- Oh, não! Não quero que te arrisques por minha causa.
Exibi um sorriso encorajador.
- Não te preocupes, pequena. Isto que eu vou fazer não é nada que não tenha já feito.
Se o meu pai, que é reformado lá em Boston, Massa-chusets, me estivesse a ouvir, havia de admitir de uma vez por todas que o filho dele era estúpido.
O rosto de Karin animou-se um bocadinho.
- De verdade, Frank?
- Juro - garanti, a pedir desculpa a mim próprio.
- Querido... tenho medo. - De um pulo estava fora da cama, com os braços a prenderem-me a nuca e os lábios ansiosos a comprimirem-me a boca.
Comecei a sentir de novo aquela onda voluptuosa e excitante a derramar-se da espinha pelo corpo todo.
- Pronto... Já chega - consegui articular.
Soltou uma risada divertida e foi enfiar num instante os chinelos e uma camisa. -...Que horas são?
- Duas e meia. Horas de ir.
- Está bem, não demoro nada -e saiu a correr para ir vestir-se.
Regressou passados cinco minutos. Não sei porquê, senti uma certa angústia na altura em que ela apagou a luz para saírmos.
O táxi deixara-nos onde Karin tinha sugerido, tendo nós feito o resto do percurso a pé ao longo de uma série de ruas estreitas, malcheirosas e desertas. Só não fiquei também surpreendido com o aspecto daquilo que eu próprio chamara o “quartel-general” porque pelo caminho Karin me fora adiantando, além de outros pormenores de interesse imediato, que, embora fosse nas instalações que eu pretendia visitar que poderia encontrar o que me interessava, a sede da empresa que funcionava como fachada da organização ocupava dois andares luxuosos no Boulevard Mohamed V.
Esta tratava-se de uma comprida e sólida construção de dois pisos, dos quais, segundo ela me esclareceu, o andar térreo era ocupado pela garagem e armazéns e o superior pelos escritórios. Ficava situado numa rua de aspecto sujo e abandonado, onde do outro lado se alinhavam alguns velhos prédios a aguardar demolição. A única iluminação provinha de um candeeiro colocado precisamente por cima da pesada porta de chapa ondulada, que parecia de resto ser a única entrada do edifício.
A noite continuava ventosa, porém a chuva cessara de vez. Karin explicou baixinho a meu lado:
- A única possibilidade de entrar é pelas traseiras. Existe aí, ao fundo dos degraus, uma porta com uma pequena janela de vidro e duas grades. Forçando depois o postigo, encontras por dentro, e a meia altura do chão, um trinco de correr. Essa entrada dá para um cubículo de arrumações, na cave. Há depois uma escada para a garagem, mas a porta de cima fica sempre trancada. É por isso que eles não se preocupam com a outra, da rua.
- Mesmo assim, não havendo sequer um guarda, nunca foram assaltados?
Ela olhou-me com ar incrédulo, como se eu estivesse a dizer disparates.
- E quem se atrevia a assaltar a propriedade de Ben Youssef?
Engoli em seco e não dei resposta.
Lamentei ter deixado para trás a arma que me havia acompanhado uma parte da noite. Karin e eu en-contrávamo-nos abrigados no portal de um dos prédios. Ela prosseguiu, procurando ultrapassar o nervosismo que a invadia, num esforço para recordar todos os pormenores:
- A parede do lado esquerdo está ocupada com prateleiras até ao tecto. Mesmo por cima fica um alçapão que dá para a garagem. Não me lembro da localização exacta, mas acho que é quase a meio das prateleiras. Podes subir apoiando-te nelas. Já os vi fazerem isso. Depois, no piso de cima, próximo da saída do alçapão, há uma escada de madeira que conduz ao andar superior. São os escritórios. A primeira divisão envidraçada à direita, logo no início do corredor, é a que nos interessa. Atrás da porta costuma ficar pendurada uma lanterna eléctrica. O que vais procurar deve estar no ficheiro à direita da secretária principal... Acho que é tudo.
Já me devia chegar. Virei-me para Karin, segurei-a pelos ombros e puxei-a para mim. Não devia tê-lo feito. Ela desviou os lábios e disse:
- Frank... eu vou contigo.
Sacudi a cabeça.
- Vais para casa.
- Por favor, querido. Posso ajudar-te.
Ainda disse duas vezes que não, ela insistiu outras duas, e acabei por lhe fazer a vontade.
O vidro estalou quase sem ruído ao contacto seco com a mão enrolada no lenço. Os pedaços miúdos foram cair no espaço estreito entre a janela e as madeiras; os maiores, porém, mantiveram-se no caixilho. Depois foi só empurrar os batentes e encontrar o fecho. O trinco correu sem dificuldade, a porta girou suavemente nas dobradiças, e eu entrei seguido de Karin.
Deixei o postigo entreaberto para que uma réstia de claridade iluminasse o cimento. Após uma hesitação, Karin localizou uma passagem no tecto. Havia ao todo cinco prateleiras sobrepostas suportadas em cada extremidade por duas vigas tubulares. Agarrei com firmeza o rebordo do uma delas, apoiei os pés na inferior e comecei a trepar devagar e com extrema cautela. Quando pude alcançar a prancha do alçapão, fiz correr o braço em torno da viga de ferro, de modo a aguentar fortemente o peso do corpo, e empurrei para cima. A madeira deu frouxamente de si, mas só quando concentrei todas as energias na mão espalmada a tábua acabou por ceder. O braço ligado doía-me, mas na posição em que me achava era aquele que podia utilizar para o efeito, por isso projectei-o violentamente, e a tampa pesada cedeu por completo em torno das dobradiças, indo desabar pesadamente sobre o chão por cima de nós, com um estrondo que se repercutia com fragor no espaço fechado pelas paredes de cimento.
Fiquei a aguardar uns segundos, com o braço mais dormente do que dorido, e depois enfiei a cabeça pelo buraco e icei-me a custo, até sentir o piso debaixo de mim. Mantive-me assim até recobrar a respiração e em seguida deitei-me de bruços, fiz sinal a Karin para subir e puxei-a para junto de mim. O ar cheirava a mistura de gasolina e óleos queimados.
Levantámo-nos e subimos a escada de madeira que conduzia ao primeiro andar. A porta da primeira divisão envidraçada era mesmo ali. Rodei a maçaneta e entrei. Karin seguia na minha esteira, demasiado confiante em relação à sua parcela de sucesso, sem dar mostras de se aperceber daquilo a que os meus sentidos apurados em situações análogas reagiam por puro instinto. Tudo vinha sendo fácil. Demasiado. Mesmo a lanterna eléctrica se encontrava onde devia, pendurada atrás da porta. Retirei-a e premi o botão e apontei o foco de luz amarela.
- Quietos, os dois.
A frase foi secamente pronunciada em árabe; porém, em circunstâncias análogas, o significado é que conta, e o certo é que me soou precisamente assim. Então o que fiz foi inspirar fundo e erguer os braços devagar à altura da cabeça. Uma luz fria e intensa acendeu-se, ferindo-me a vista e encharcando o recinto.
A primeira pessoa para quem olhei foi para Karin, que me fitava com desespero. Em seguida rodei a cabeça para abarcar o conjunto.
Em primeiro plano achava-se um marroquino baixo e magro de pele curtida e djellaba escura, com as mãos atrás das costas. Devia tratar-se de Abdul Ahrman. Ligeiramente recuado, Ricardo Sánchez. Tinha uma Luger na mão e mantinha-a bem apontada na direcção da minha cabeça. Atrás dele plantavam-se dois tipos de rostos feios, empunhando um deles um macaco e o outro uma chave inglesa. O terceiro não apareceria mais em cena. Tinha ficado lá no beco. E eles pareciam lembrar-se disso.
- Viva, Sánchez - disse eu com jovialidade, em tom de conversa de sala.-Até que enfim, hem?
- É verdade, Gold - retorquiu sem expressão. - Mas isto não é positivamente uma reunião amigável. Vejo que trouxe companhia - acrescentou fazendo um gesto lateral com a arma.
Olhei para Karin, endereçando-lhe um breve sorriso que não teve qualquer efeito. A expressão do rosto dela era de terror puro e simples, e uma palidez intensa cobria-lhe as faces.
- Abdul, eu...-ia dizer.
- Cala-te, porca.-A voz estalou como um chicote, e o marroquino escarrou no cimento. Avançou uns passos até junto dela, respirando com dificuldade. - Traíste-nos a todos, grande cabra. A nós, ao teu tutor... e a ti. Mas eu vou fazer que te arrependas de ter nascido.
A mão esquerda cortou o ar num silvo e foi abater-se sem piedade no pescoço de Karin. A cabeça foi atirada para trás, os lábios soltaram um ligeiro gemido e ela tombou enrodilhada no chão, ao mesmo tempo que os meus punhos cerrados numa fúria demolidora iam embater com a força de um martelo pesado no crânio do filho da mãe. Um berro bestial escapou-se-lhe da boca aberta e o corpo torceu-se para trás todo desarticulado, acabando por ficar deitado de borco no tampo da secretária.
Nessa altura, porém, os dois auxiliares já estavam em cima de mim, prendendo-me fortemente os braços, e eu não tinha possibilidade de libertar-me daqueles músculos fortes como fios de aço. Depois, um objecto metálico enterrou-se-me no estômago e todo o ar que me restava foi expelido num jacto dolorido e amargo.
- Não o amachuquem... Deixem-no comigo.
Os tipos soltaram-me, e eu fiquei a olhar para Sánchez com o corpo retesado, numa tensão de expectativa. Os olhos dele estavam raiados de fúria. Contornou o corpo do Karin, que começava a mover-se, e aproximou-se com a mão esquerda a cobrir-me com a arma e o punho grosso da direita a tomar balanço. Cerrei os dentes e logo a seguir senti no queixo o impacte dos nós dobrados, uma, duas, três vezes. Quando dei porque o ataque tinha passado, sorri dolorosamente para Karin e tombei para diante. A coronhada na nuca não foi mais que um “plop” tranquilo.
A respiração era pesada e irregular, e alguém cujo rosto não distinguia através das pálpebras semicerradas murmurava-me coisas ao ouvido. O meu nome, possivelmente. Proferi um palavrão e quis erguer o corpo. Mas ele estava rígido como uma prancha e algo impediu que os braços ajudassem. Percebi que a respiração difícil era a minha. Então, com os olhos fechados, esperei pacientemente. Sabia que a vida ia voltar. Mas por aquilo em que a vida se vinha tornando era muito mais agradável esperar que viver. Podiam chamar as vezes que quisessem... Oh, sim, eu voltaria quando entendesse.
De súbito, tudo se tornou claro no cérebro toldado, a névoa sumiu-se, a dor sobreveio e a letargia passou. Soltei um gemido, cuspi para o lado e abri os olhos. Karin estava ali, imobilizada como eu. Observava-me ansiosa, os olhos reflectindo todo o desespero do bocado mau que passara. Estendi os lábios fendidos num sorriso magoado.
- Karin... como estás, pequena?
Fez um esforço maravilhoso para retribuir, aliviada por não estar só.
- Oh, Frank... - a cabeça descaiu-lhe sobre o ombro e pôs-se a choramingar de mansinho. Mas logo as lágrimas pararam e o rosto que voltou para mim era sereno e confiante.
- Como... te sentes?
- Melhor. Onde estão eles? - Cada palavra trazia-me um gosto horrível à boca.
- Foram-se embora - volveu -...mas vão voltar.
Procurei com muito pouco sucesso mover as pernas esticadas, atadas nos tornozelos e a uma viga de ferro que subia até ao tecto, e os braços presos em cordas, atrás das costas, a uma argola de ferro.
- Está bem. Mas enquanto não voltam nós temos de sair daqui.
Os olhos de Karin brilharam.
- Achas que podes?...
Rodei com dificuldade os pulsos dentro das cordas esticadas, experimentando um ardor intenso na carne, e olhei em redor. Achávamo-nos num canto da garagem, e Karin encontrava-se presa a um gancho igualmente fixo na parede, a cerca de meio metro de mim. Admiti que, inclinando o tronco, talvez pudesse alcançar com os dente-os nós dos pulsos dela. Mas não. As cordas que nos prendiam não tinham qualquer folga. De repente, lembrei -me do isqueiro. Era o Dunhill, metido num pequeno bolso superior das calças. Depressa concluí também que me era impossível extraí-lo dali. E, mesmo que o conseguisse, nunca chegaria a acendê-lo. Ou então...
- Karin, o teu isqueiro? Fitou-me sem compreender.
- Tenho-o aqui. Para quê?
Falei rapidamente.
- Ouve, querida. Não faças perguntas e, por favor, tenta soltá-lo para o mais próximo possível de mim. Percebeste?
Ela fez que sim e dobrou o pescoço, procurando chegar à corrente que lhe pendia do cinto. Quase a roçou com o queixo, e depois começou a sacudir a cabeça com o objectivo de conseguir que os músculos se distendessem o suficiente para lhe permitir alcançar a altura desejada. O rosto denotava todo o esforço despendido, o suor alagando -lhe a fronte, onde finas veias azuladas latejavam intensa mente. Porém, o sorriso que o veio transformar, quando ergueu triunfantemente a cabeça exibindo pendurada entre os dentes a fina corrente dourada, significava que valera bem a pena.
Mas faltava o resto. Vi-a balançar para trás e para diante, com energia, e depois soltar o fio. O minúsculo Ronson caiu no chão com um ruído metálico, um pouco mais sonoro do que o do meu coração, e veio deslizando até uns vinte centímetros da minha coxa. Karin acompanhara o movimento inclinando o corpo para mim e eu premiei-a com o largo sorriso. Bem, agora era comigo.
Comecei a desviar devagarinho o tronco para o lado, mas a lentidão com que o fazia não servia o fim em vista. resultava apenas do medo que sentia de atingir mais cedo o limite do desvio. E assim cada centímetro era uma esperança. Até que o limite chegou. Demasiado cedo, talvez. As cordas que me prendiam os pulsos à argola apertaram-se mais. E iam-se retesando sempre, até começarem a rasgar-me a pele à medida que eu ia forçando, milímetro a milímetro. Faltava ainda um pouco, só um bocadinho. No entanto, compreendi que para o vencer ia ser preciso deixar que as cordas roessem a carne. Cerrei os olhos com força e dei um puxão brusco e violento para baixo. Senti a carne rasgar e uma dor aguda na coluna; porém, consegui tocar com os dentes a mancha amarelada que parecia bailar no chão, rente à minha cara. Crispei os maxilares, e quando os distendi para, com o auxílio da língua, entalar o objecto na posição devida, um vómito deixou-me um gosto a azedo na boca.
A dor nos pulsos era o mais insuportável, mas eu tinha de permanecer naquela posição. E agora, ainda, esquecer isso, e tudo o resto, para concentrar todas as energias no esforço tremendo que ia constituir pôr o Ronson a funcionar com os dentes. Tentei, mas a mola apenas cedeu o que a folga permitia. Forcei mais, com os dentes a rangerem raivosamente contra o metal. A minha cara devia ser uma máscara repugnante. O sangue molhava-me os pulsos e o suor viscoso parecia sangue também. Carreguei mais. A mola deu de si, lentamente de início, mas no último segundo produziu-se um leve estalido e a faísca saltou, inflamando o gás, que ficou a arder com um silvo, o calor próximo da chama escaldante a morder-me a pele.
Pude verificar num relance que Karin rodara o corpo na medida do possível, de modo a deixar as mãos voltadas para mim. Manobrei o meu de forma a chegar a chama às cordas que a prendiam. Não sei exactamente o tempo que levou. Mas não podia ter sido muito, porque quase logo a seguir o isqueiro caiu-me dos dentes, mas eu não quis saber de mais nada, nem sequer dos gemidos dela a tentar libertar-se das cordas a arder, e deixei-me apenas ficar, o corpo todo torcido como o de um boneco de pano, os maxilares pendentes e insensíveis e o cérebro a flutuar numa vaga oca e imensa.
Foi Karin que me veio chamar a esta ausência, e a irritação que me invadiu contra ela, por ter feito a dor voltar, desvaneceu-se ao perceber que os meus pobres pulsos, embora rasgados, sangrentos e doloridos, se achavam libertos enfim. Deixei-me tombar no solo, rolando-os no chão frio de cimento. Daí a pouco, Karin veio ajoelhar-se perto de mim. Ergui a cabeça para ela e vi que sorria. Desta vez não consegui retribuir. Deixei que me lavasse com água que trouxera num púcaro e depois enrolasse em torno das feridas umas finas tiras de pano, que apertou com cuidado.
- Frank... como te sentes?
Fiz um esgar que me custou outro logo a seguir.
- Óptimo, pequena... mas agora deixa-me estar um bocadinho, está bem?
- Mas... eles podem voltar! Temos de sair, depressa. Por favor, Frank...
Arranjei maneira de fincar os cotovelos no chão.
- Está bem, pronto. Dá aqui uma ajuda...
Com o auxílio dela, acabei por ir ficando de pé. Porém, logo que isso sucedeu, uma náusea profunda obrigou-nos a repetir o processo. E foi assim, agoniado e a cambalear, que cheguei perto da porta. Aí deixei-me cair sentado sobre um caixote, a descansar um bocado. Karin passou-me a mão macia pela testa molhada. Se o pai Gold me visse naquele estado, dava-me uma reprimenda valente e fazia -me prometer não fazer mais asneiras.
- Frank, eu vou ver se ficou alguém lá fora, a guardar a garagem.
Tentei dissuadi-la, mas já ela se esgueirava para o exterior. Tirei um cigarro e acendi-o. Naquele momento senti pelos isqueiros, todos os isqueiros do mundo, uma raiva tremenda e um carinho fraternal. O simples esforço de chupar o fumo ressentiu-se nos maxilares amachucados, mas o circuito voluptuoso da nuvem desde os pulmões até às narinas ajudou os nervos tensos a descontraírem-se. Karin regressou sem ruído, falando num sussurro.
- Está um homem lá fora. Anda para cá e para lá. Se nós seguirmos rente ao muro, até ao largo, penso que não dará por isso.
Aspirei profundamente o cigarro uma vez mais e depois amachuquei a ponta no chão. Levantei-me.
- Está bem. Vamos embora.
Esgueirámo-nos silenciosamente. Inspirei com força o ar húmido da chuva recente e fui seguindo colado ao muro, segurando a mão de Karin na minha. Quando dobrámos a esquina do prédio, detive-me e virei-me para ela. A lâmpada que iluminava a fachada espalhava a sua luz frouxa pelo terreiro.
- Bem, vamos ter de passar para o outro lado. Eu vou adiante e enfio pelo vão onde estivemos há pouco. Entendido?
Disse que sim, e eu atravessei rapidamente o largo, os passos abafados pela terra húmida. Nesse instante percebi um roncar indistinto que se aproximava, e só quando entrei a porta, num salto, e vi dois faróis potentes varrerem o largo e deterem-se com um frear brusco diante da fachada da garagem onde Karin se encontrava compreendi que era tarde.
Apesar da distância, tive a sensação nítida de distinguir claramente as feições transtornadas do rosto de Karin ao ver cinco homens armados saltarem da carrinha e precipitarem-se para ela.
Dois deles tiveram de lutar para a dominarem, e quando percebi que os outros haviam começado a procurar-me senti-me mal por ter de fugir.
Corri sem destino através do labirinto de casas baixas de adobe, e de repente, sem que pudesse perceber como isso sucedera, dei comigo na extremidade de uma ruela que desembocava na praia. Tornava-se impossível escapar pelo areal, onde eu seria tão fácil de abater como urso numa feira. A única possibilidade, se existia alguma, era o pontão de madeira que dava acesso a uma enfiada de casas, uns dois metros acima do nível da praia. Por baixo do pontão, na areia, arrumavam-se pequenos barcos de pesca.
Olhei para trás e pude verificar que os meus perseguidores iniciavam a busca. Não havia tempo para mais reflexões. Rastejei pela passagem de madeira, e já fora da vista deles percorri a correr uns cinquenta metros, altura em que me deitei outra vez para o chão, porque dois vultos acabavam de chegar à desembocadura seguinte, a um espaço breve do corredor que eu percorria.
Na primeira porta por onde vi sair luz, entrei. Entrei suavemente, de gatas, afastando o reposteiro gasto e sujo.
No interior, alumiado por um candeeiro de petróleo, havia duas mulheres e um grupo de garotas. Uma das Mulheres era muito velha e devia ser a avó. A outra era ainda nova. No silêncio, por instantes, continuou a ouvir-se apenas a voz de uma das miúdas que, com um livro aberto, sobre os joelhos, lamuriava uma oração ou a tabuada escolar.
A velha pareceu não dar por nada e prosseguiu comendo sossegadamente com as mãos. Então pus-me de pé e exibi um largo sorriso.
Foi aí que consegui despertar todos da paz em que se encontravam, para virem acolher-me com sorrisos e gestos de boas-vindas, como se estivessem a aguardar a minha chegada desde manhã cedo. A velha pôs-se a cantarolar umas palavras incompreensíveis, a filha repetia com pronúncia melhorada e as miúdas batiam palmas à minha volta.
Eu articulei, indicando o meu aspecto, que devia ser de meter dó:
- Moi, três fatigue. Moi, assaltado.-Contemplei-as, desmoralizado, e apontei para a porta. - Voleurs!
Não percebi se compreenderam, porque o que fizeram foi puxar-me pelos braços e pelas pernas para cima de uma manta, e quando fizeram menção de me tirar a roupa suja eu achei que a coisa já ia longe de mais, apaguei o sorriso e gritei alto para me fazer ouvir. Porém, quanto mais eu gritava mais elas puxavam, até que às tantas achei que com aquele barulho todo o mais certo eram os funcionários de Abdul Ahrman virem bater à porta. De modo que parei de protestar e ali fiquei, quieto e alerta, à espera que a excitação abrandasse.
Deixaram-me as calças, e o resto da roupa levou a velha, ao que julguei para limpar. Regressou pouco depois com uma chávena de chá bem quente, que engoli sem esboçar uma recusa. Quando terminei, devolvi a chávena a uma das miúdas e fiquei a olhar para as mulheres, que me miravam sorrindo como se eu fosse um ser raro e engraçado, enquanto uma garota me trepava para as costas e enfiava as mãos pelos cabelos, e outra brincava com o dedo grande do meu pé direito.
- Minhas senhoras - disse eu. - Andam uns homens a minha procura.
Era evidente que a velha não compreendia uma palavra. Quanto à mais nova, sem me dar um pouco de atenção sequer, ria sempre e com gestos dava-me a entender que eu não tinha nada a recear e que voltaria já. Depois desapareceu.
- Tu és americano ou és francês?
Dei um salto e ergui a cabeça. Era a pequenita que se achava encavalitada no meu pescoço. Apeei-a rapidamente e sentei-a nos joelhos.
- Falas francês?
- Sim. Aprendo na escola. Tu és francês ou és americano?
Recorri ao francês que sabia, e as poucas palavras que disse saíram com uma facilidade espantosa.
- Sou... Deixa lá isso e ouve com atenção. Sabes onde fica a Rua Moussa Al Abbar?
- Sei.
- Bom. Então vais ao nº 15. É o último prédio. No segundo andar perguntas por Mademoiselle Spranger. Diz lá.
-...Mademoiselle Spranger.
Não pude continuar. A filha da velha regressara e acompanhava-a uma marroquina que era linda. Era muito jovem, e logo que me viu esboçou um sorriso cativante e deslizou direita a mim, fazendo ondular as ancas sob o tecido leve do vestido, os seios leves e redondos projectados para diante, a anunciarem que por baixo do vestido não havia nada. Sem dizer palavra, sentou-se na manta colada a mim, sussurrando coisas que eu não entendia e fazendo escorregar de mansinho pelas minhas costas os dedos finos de unhas afiadas.
Riu-se muito ao ver que eu procurava afastá-la, e mesmo pelo modo como ria, entreabrindo ligeiramente a boca e semicerrando os olhos, suscitava desejo. Entretanto, eu não conseguia evitar que as mãos quentes continuassem a afagar-me a pele, nem que o peito dela e as coxas firmes e cheias se colassem cada vez mais ao meu corpo.
E assim, do mundo do tráfico e violência onde me havia introduzido, mergulhava agora noutro talvez ainda mais fechado... de um comércio também tradicional e muito antigo. Falei para ela.
- Ouve, vais acabar com isso?
As mulheres olharam-me, surpreendidas, e a minha amiguinha árabe deu uma gargalhada.
- Lá no bar tinham-me anunciado um francês. Tu és americano, não és?
Exprimia-se num inglês correcto, e pela minha parte, de momento, isso bastava. Apertei-lhe a mão.
- Sim. Sou americano. E perseguem-me. Querem abater-me. Percebes?
Eu falava uma linguagem que ela conhecia. Nessa altura entrou a miúda a correr.
- Há homens lá fora à procura.
Olhei a rapariga, por um lado satisfeito por ver a minha história confirmada. Ela agora fitava-me com ar grave, os olhos negros formulando uma pergunta que traduziu de seguida.
- És da polícia?
Neguei.
- Cheguei hoje mesmo a Tânger. Tenho o passaporte, posso mostrar-to. Eles são traficantes.
Ela reflectiu uns segundos e por fim decidiu:
- Deixa-te estar quieto... Não te mexas.
Fez-me estender ao comprido sobre a manta, foi correr o reposteiro e, depois de despir o vestido, veio deitar-se junto a mim. As outras mulheres tinham desaparecido, levando consigo as garotas. E ali me encontrava eu, na companhia de uma bela marroquina que comprimia o corpo nu contra o meu, sentindo, apesar da inquietação, os bicos duros dos seios a espetarem-me a pele e uma onda crescente de calor e excitação a invadir-me.
Afastei-me um pouco quando me apercebi de que os tipos estavam à porta; porém, voltei a agarrá-la no momento em que um deles afastou o cortinado. Com a cabeça enfiada no peito dela, ouvi-o soltar uma gargalhada porca e tornar a sair. Lá de fora chegaram-me mais risos e ruído de conversa, e depois os passos martelados afastaram-se e tudo voltou ao silêncio. Desta vez permaneci como estava. Um bom bocado. E senti-me bem. Tão bem quanto me podia sentir sem saber o que era feito de Karin.
Ela já estava a vestir-se, e eu fumava um cigarro, quando as duas mulheres entraram e a mais velha me estendeu a camisa e o casaco. Nesse momento senti o coração apertar-se e levei em sobressalto a mão ao bolso de dentro. O sobrescrito continuava lá. Inspirei fundo e falei para a rapariga, enquanto enfiava a camisa por cima da pele.
- Ouve, preciso que me faças ainda um favor. Ir falar com...
Nessa altura um tipo escanzelado e manifestamente bêbado irrompeu pela porta, a berrar numa voz aguda, quase histérica, e estendendo as mãos na direcção das duas mulheres. A minha companheira confidenciou-me que se tratava do marido da mais nova e foi-me traduzindo por alto o diálogo que se seguiu.
- Perdeste tudo, não?
- Sim, sim, mas vou ganhá-lo outra vez! Dá-me dinheiro. Vais ver... Foi azar, sabes, mas agora vou ganhar... Sei que vou. Passa para cá, anda.
A velha era surda, mas pôs-se a chorar, e a filha também.
- Já não tenho mais... Dei-to todo. Levaste o nosso dinheiro, da tua mãe, das tuas filhas e o meu. Amanhã não podemos comer.
Mas o marido berrava mais forte, remexendo por tudo à sua volta.
- Estou-te a dizer que vou ganhar, ouviste? Agora a sorte voltou-me, e sei que tens aí mais dinheiro. Foi a tua mãe que o escondeu. Diz a ela que mo passe para a mão, anda. Daqui a bocado venho rico, e faço-te rica a ti e à velha também.
Só então se apercebeu da minha presença.
-...Quem é este?
- Um americano - explicou a minha jovem.
- Mas eu também, meu amigo - gritou logo ele, num inglês horroroso. - Também eu, sou americano pelo coração. Combati ao vosso lado como voluntário, em 43. E tu vieste agora salvar-me, não foi? Cem dirhams, é só o que eu preciso... Empresta-os ao teu irmão, meu amigo, pensas que salvas estas mulheres de morrerem de fome amanhã...
Abraçava-me já, e o fedor a vinho fermentado dava-me vómitos. A roupa exalava um cheiro repugnante a suor e porcaria, os olhos estreitos encravados nas órbitas apresentavam-se tracejados de roxo e o cabelo grande encaracolado era um monte de esterco. Apressei-me a dizer:
- Seja. Empresto-te os cem dirhams. Mas com uma condição...
- Ah!-Soltou um berro.-És mesmo meu irmão.-E de seguida arrotou alto e bom som.
- Primeiro, vais à Rua Moussa Al Abbar, nº 15.
Mas o tipo nem queria saber. Só lhe interessavam os Cem dirhams que eu tinha no bolso.
- Agora é que vai ser a sorte! Está lá à minha espera e eu tenho de ir. Primeiro ganho o dinheiro, e depois faço tudo o que tu, meu irmão, mandares!
As mulheres tinham percebido que eu estava disposto a entrar com a massa, e a velha veio até mim a tentar introduzir a mão no bolso onde eu guardava a carteira. Dei-lhe uma palmada e quis ainda fazer-me ouvir, mas cada um berrava para seu lado, e o pessoal de Abdul ainda não devia ter deixado o campo livre. De modo que tirei a carteira, escolhi as notas e estendi-as ao tipo, que saiu disparado.
O grupo empurrou-me atrás dele. No meio da confusão procurei a rapariga, mas já não a vi. Tive de ir com eles.
A banca do jogo funcionava a todo o vapor na casa ao lado. A nuvem de fumo era tão espessa que apenas deixava perceber os vultos dos parceiros que se acotovelavam a mesa. Um cheiro adocicado a haxixe misturava-se com o fedor de transpiração. As duas mulheres puseram-se a vigiar atentamente cada movimento do seu homem, na ânsia de lhe apanharem a massa que viesse sem lhe dar tempo a jogá-la outra vez.
Quanto a mim, se entrasse naquele momento algum conhecido a querer saber o que fazia ali, a resposta tinha-a na ponta da língua: eu era o amigo da família.
Mas as coisas, pelos vistos, não corriam bem ao meu irmão. Começou a perder, e às tantas ficou histérico e deu um murro na mesa que fez o tampo vergar. De seguida armou uma discussão violenta com o parceiro gordo que dirigia o negócio, e no momento em que uma cadeira se desfez em estilhas na parede, por cima da minha cabeça olhei para o relógio e achei que eram horas de ir andando.
De regresso à outra casa, misturado no grupo das mulheres que choramingavam e das crianças que brincavam, constatei que havia um tipo em cada extremidade do pontão.
A miúda que uma hora antes recitava as lições recuperara o seu lugar e, ao ver-me entrar, correu para a porta a mostrar-me a ardósia onde desenhava um nome a giz.
- Tu não me contaste o resto de Mademoiselle Spranger. É assim que se escreve, não é?
Sorria muito contente e exibia a pedra com orgulho. Nessa altura decidi que ia meter uma criancinha naquela história.
- É mesmo! Não me digas que te lembras também da morada?
Recitou, muito feliz:
- 15, Rua Moussa Al Abbar.
Ajoelhei-me ao lado dela.
- Bom, então vais lá e dizes assim: “O teu amigo está em minha casa. É preciso avisar a polícia.” Diz.
Ela repetiu.
- Então vai depressa.
Vi-a desaparecer com entusiasmo. Agora acreditava que a minha mensagem seria transmitida. E só esperava que os homens de Abdul Ahrman prolongassem a espera o tempo suficiente para que a polícia chegasse. Então não seria difícil localizar Abdul e Sánchez. E, para mim muito mais importante, reencontrar Karin.
Aproveitei a pausa para abrir o sobrescrito e analisar rapidamente o que continha. Além do mapa, que desdobrei em cima da cama, havia uma folha de papel amarelo contendo indicações de nomes, horas e quantidades. Li-o com mais atenção. A operação estava prevista para as quatro dessa madrugada. E, na lista de nomes dos intervenientes, um deles era o meu. Cheguei o papel junto do candeeiro, deixei que se inflamasse e fiquei a vê-lo transformar-se em pedacinhos carbonizados. Karin tinha razão. Mas eu possuía o palpite de que nem tudo o que estava ali escrito era falso.
Por volta da meia-noite fui espreitar à porta, após ter tomado a precaução de correr completamente a manta que servia de reposteiro, de modo a não deixar filtrar-se a claridade interior. Distingui um vulto a aproximar-se de uma das extremidades da passagem de madeira, para onde convergiram os quatro que se encontravam de vigilância aos acessos. Estiveram reunidos, e ao cabo de dois minutos três deles desapareceram.
Esta retirada não estava nos meus planos, e agora já não podia pensar em aguardar a chegada da polícia. Se bem que os chuis devessem estar a vir, uma vez que a garota abalara havia uns três quartos de hora. Mas se o que eu pretendia era que me conduzissem até ao local do encontro, e que podia não ser exactamente o que estava assinalado no mapa, havia que partir imediatamente. Talvez eu pudesse deixar um recado para a polícia. Talvez...
Os dois tipos lá ao fundo apresentavam as costas viradas para mim, e eu rastejei mais uma vez, agora até à porta ao lado, à procura de alguém a quem pudesse entregar a mensagem. E aí fui encontrar a minha amiga de há pouco. A sessão de jogo acabara. Havia apenas a luz a incidir sobre a mesa e no divã de um canto da sala o rosto Sobressaía da penumbra e o vulto de um tipo qualquer debruçava-se sobre ela. Logo que me viu, sacudiu rudemente o sujeito, que se levantou a cambalear e desapareceu praguejando pela porta dos fundos. Ela dirigiu-se para mim a compor o vestido e sorriu. Pensei como conseguia aquela mulher ainda sorrir. E ser bela. Disse-lhe:
- Anda daí. Os tipos estão a cavar, e eu tenho de ir atrás deles. Entretanto, quero deixar-te um recado.
Deixou-se arrastar docilmente até à ombreira da porta. Expliquei-lhe em voz baixa o que pretendia.
-...Quando a polícia chegar, dizes que fui atrás dos traficantes. Eu me encarregarei de deixar uma pista. Fazes isso por mim?
Passou-me os braços em volta do pescoço.
- Tudo o que tu quiseres.
Desprendi-me com um “Obrigado, pequena. Depois falamos.”
Nas extremidades da passagem de madeira, os dois tipos cortavam-me a saída. Olhei para baixo e verifiquei que a maré subira, quase alcançando as vigas que sustentavam o pontão. Falei para a rapariga.
- Tu podes ir pelo corredor. Eu vou por aqui.
Escapuli-me pelo rebordo das tábuas, entrei com precaução na água escura e tépida e pus-me a caminhar por debaixo da ponte com a ondulação a bater-me nos joelhos.
O tipo apanhou-me de surpresa. Senti de repente duas manápulas poderosas agarrarem-me o pescoço com uma força dos demónios; ainda quis" lutar, segurar-me onde quer que fosse, mas o meu adversário escorregava-me por entre as mãos, e depressa comecei a sentir o ar a faltar-me e a cabeça a mergulhar aos poucos, lentamente, na água. Consegui prender-lhe um punho e alargar o abraço com uma sacudidela violenta, de forma a trazer a cabeça à tona de água e engolir com sofreguidão uma golfada de ar. Mas logo a seguir a cabeça afundou-se de novo, as manápulas apertaram mais e o crânio e os tímpanos desataram a latejar-me doidamente. Porém, numa fracção de segundo imediata, a pressão desapareceu e eu senti o corpo liberto a voltar ao de cima.
No primeiro momento foi como se uma cegueira momentânea me tivesse paralisado os sentidos. Mas logo, por cima de mim, reconheci o rosto ansioso da rapariga, e depois senti os seus braços passarem debaixo dos meus e puxarem-me para a areia. Aí comecei a articular, pesadamente:
- Como... fizeste?
- Com isto.
E mostrou-me a coronha da arma de guerra que o outro deixara e que ela empunhava como se fosse um martelo. Nesse instante chegou-nos o ruído de areia reme xida. Virei-me e vi que o fulano voltava à carga. Mas desta vez, se queria conversa, ia tê-la. Fiz sinal à minha companheira para ficar quieta e fui ao encontro dele.
Resfolegou quando lhe descarreguei um soco tremendo no estômago, e suspendeu a respiração logo que o desdobrei assentando-lhe o punho nos queixos. Atirei-lhe depois o meu peso para cima e rolámos os dois na areia. Após o que eu me levantei, e ele não. Aos poucos, fui recobrando o fôlego.
A rapariga veio até nós e, tranquilamente, arrastou o corpo uns bons metros dentro de água e ficou a vê-lo afundar-se.
Assim que recuperei algumas forças, soprei-lhe:
- Vou segui-los. - E deitei a correr. O outro tipo que ficara de guarda já lá não estava.
As luzes traseiras da furgoneta já se sumiam ao longe quando desemboquei na rua pavimentada nas traseiras das casas. Nessa altura senti aproximar-se, nas minhas costas, um veículo que avançava com um barulho tremendo a projectar um feixe intenso de luz. Dei um salto para a berma, com a arma empunhada. O Simca fez uma travagem súbita, e a ponta do escape saltou e foi rolando com fragor pelo empedrado. Felipe pôs a cabeça de fora e perguntou alegremente:
- Para onde, Mr. Gold?
Soltei uma manifestação irreprimível de alegria e com para o meu velho táxi. Contornei-o e saltei para o banco da frente.
- Felipe, como diabo...?
Fez um gesto e largou uma gargalhada.
- Felipe está sempre onde é preciso...
- Essa é boa!-disse eu quase num soluço.-Toca a andar.
Foi quando ele reparou bem no meu aspecto e inquiriu, com ar contristado, retirando-me da cara um bocado da areia oleosa.
- Mr. Gold, não acha melhor ir tomar banho?
Passado aquele momento de euforia por se me deparar numa hora crítica um auxílio absolutamente inesperado, comecei a sentir os nervos a dar de si naquele pedaço de corpo sujo e cansado que era o meu.
- Okay, amigo. Já chega. Conversamos pelo caminho. E se não me apanhas aqueles tipos que arrancaram daqui, ponho-te fora do carro e vou sozinho. Percebido? Andando!
Percebeu tão bem que engatou a primeira e acelerou de tal forma que eu fui projectado no encosto e o aceno de despedida que fiz para a rapariga especada na berma levou bem uns cinquenta metros de atraso.
Durante cinco minutos, ninguém falou. Até que, a seguir a termos atravessado uma ponte, distinguimos ao longe, numa curva da estrada que subia a montanha ao longo da costa, as luzes vermelhas de um carro. Era sem dúvida a furgoneta. A partir daí não foi difícil encurtar a distância e continuar a segui-los, uns duzentos metros atrás e só com os mínimos acesos. Aqui devo esclarecer que nenhum corredor seria capaz de executar o trabalho do meu companheiro, mesmo que guiasse de dia, calado e numa auto-estrada. Em estrada de montanha, à noite, sem luzes e a falar para mim durante uma perseguição com a desenvoltura com que o meu condutor o fazia, só um bêbado ou um predestinado. Felipe não estava bêbado.
- Mr. Gold é um homem valente - afirmava ele, batendo com força as mãos no volante. - Muito valente. Mr. Gold tem... como se diz?
- Deixa lá isso. Como diabo me descobriste?
- Ah!-fez ele, e prosseguiu logo que tirou o carro da berma. - Foi Mr. Wong que mandou.
O salto que dei levou-me a cabeça ao tejadilho.
- Quem?
- Felipe trabalha para Mr. Wong - foi a resposta. - Felipe trabalha para muita gente.
No escuro vi-o exibir aquele sorriso enorme e enfiar nele um charuto. Antes que largasse as mãos do volante para o acender, apressei-me a fazer funcionar o isqueiro e estendi-lho.
- Como sabias onde eu estava?
Respondeu prontamente, embora todo inclinado para o lado da janela a ajudar à curva.
- Segui o senhor desde o sítio donde fugiu.
Resolvi acender também um cigarro para ver se não me exaltava.
- Desde qual sítio, seu filho da mãe?
- O armazém dos marroquinos.
- Mas então...! -exclamei. -Viste o que se passou?
Respondeu candidamente.
- Só o fim, Mr. Gold. Vi levarem a menina na carrinha.
Senti a excitação apoderar-se de mim e o corpo todo a tremer. Agarrei-lhe o braço com força.
- Seguiste-os?
- Claro, Mr. Gold!
- Raios, fala! Seguiste-os? Sabes para onde a levaram?
- Sim, senhor. Para fora da cidade, próximo do cabo Espartel. Um sítio a que chamam as Grutas de Hércules.
- E onde fica? Quero que me leves lá. - A resposta foi um sorriso enigmático. Berrei:
- Imediatamente, ouviste?
- É para lá que vamos - retorquiu, virado para mim, com um brilho de satisfação nos olhos.
Aguardava a minha reacção à surpresa que me tinha preparado; eu, porém, naquela noite jà esgotara quase toda a capacidade de reagir fosse a que fosse. Agora nem um ovni a pousar na estrada diante do carro me conseguiria prejudicar. Pelo menos, assim senti naquele instante.
- Satisfeito, Mr. Gold?
- Muito - disse eu fatigado. - E, já agora, não podias ter-me ajudado?
- Felipe seguiu ordens de Mr. Wong. E não podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
- Ah, bom - comentei.- Quanto a vocês, eu bem podia ser riscado do mapa!
Riu com vontade.
- Ora, Mr. Gold, o senhor sabe defender-se muito bem.
- Claro que sim - concordei, adiantando: - E não custa nada.
- Ainda bem.
Após uma pausa para começar a organizar as ideias, tive curiosidade em saber:
- Ouve lá, se já sabes para onde vamos, para que ir nesta perseguição?
Meteu a terceira e cortou a curva rente à rocha, ibicando à saída direito à berma oposta. Eu sabia que em baixo, cada vez mais em baixo, era o mar, e senti suores frios. Mas o carro lá meteu outra vez o focinho na estrada e eu decidi daí em diante fazer um esforço para não me preocupar mais.
- Avisaram a polícia?
- Sim, senhor. Mr. Wong mandou Felipe fazer um telefonema sem dizer o nome.
- Um telefonema anónimo? E os tipos da polícia vão nisso?
- A gente deu-lhes muitos pormenores. Acho que eles acreditaram.
- Então, já lá estarão a esta hora?
Considerou filosoficamente:
- Lá quando eles aparecem, Mr. Gold, é coisa que nunca se sabe.
Remexi-me no assento, inquieto.
- Nesse caso, pode suceder sermos os dois a ter de enfrentar um exército armado... É isso?
Encolheu os ombros.
- Pode ser que sim, e pode ser que não...
Desisti. Mas ouvi-o ainda, a concluir:
-...Deus há-de ajudar-nos.
Inspirei fundo e deitei a cabeça para trás.
O barco em que eu seguia baloiçava no mar agitado, e a breve trecho uma vaga tremenda passou-lhe por cima; o barco alteou a proa até um ângulo incrível e ficou imobilizado. Nessa altura senti uma náusea, a cabeça a latejar, e abri os olhos no escuro. Ouvi uma voz familiar:
- Estão ali em baixo.
Levei uns segundos a retomar a consciência. Deixei que o mal-estar abrandasse, olhei para fora e o que distinguia era o azul-escuro do céu, o azul ainda mais escuro do mar e o negro das formas rochosas que desciam até se confundirem com o resto.
- E agora? - disse eu.
- Agora vamos a pé. A estrada acaba aqui.
- Ainda bem. - Abri a porta e saí. As pernas entorpecidas quase se recusavam a obedecer. Andei uns metros, para trás e para diante, até voltar a sentir consciência do corpo, e embora os resultados não fossem muito animadores sempre consegui alguns progressos. Felipe desligou o motor e veio ter comigo. Apontou para um ponto nas rochas.
- É do lado de lá. Vamos?
Resmunguei:
“Que remédio”, e iniciámos a descida, à custa de um esforço de pernas e de braços, as mãos a agarrarem-se às saliências ásperas e duras que aqui e ali riscavam a pele mais fundo. Num troço mais difícil o pé direito escorregou-me, e, se não fosse Felipe ter-me sustentado com as costas largas e firmes, eu teria concluído a descida num instante.
Cerca de cinco minutos mais tarde, ele deteve-me com a mão e segredou:
- Já chegámos. Eles devem estar por detrás dessas rochas, e nós vamos dar a volta.- Deu-me uma valente palmada no ombro. - Está bem, amigo?
Consegui acenar afirmativamente. O único ruído que me chegava era o marulhar das ondas, a pouca distância. Mas rodeados pelos rochedos, como nos encontrávamos, eu não conseguiria sequer dizer de que lado ficava o mar. Lá fui atrás dele, agachado também. Atravessámos rápidamente uma zona mais descoberta, por entre arbustos baixos e espaçados. Até que julguei ouvir som de vozes bastante próximo. Felipe fez-me sinal e eu parei, encolhido ao lado dele. Afastou a ramagem de um lado dos arbustos e puxou-me para eu espreitar também.
Um grupo de homens distribuía-se pela orla de uma espécie de vasta arena construída pelo mar entre os rochedos. A claridade fosca de meia dúzia de candeeiros de querosene espalhados em volta dava um brilho luminoso aos lençóis colados em quatro cantos do terreno. A furgoneta estava estacionada no acesso ao recinto com os faróis nos médios.
Dirigi-me a Felipe, num murmúrio:
- Não há avião que consiga pousar aqui.
Um ruído por cima de nós não lhe deu tempo para responder. Era um “chop-chop” que, por inesperado, só identifiquei na altura precisa em que o forte holofote varreu com o seu feixe potente a zona marcada. Poucos segundos depois, o helicóptero descia a escassos metros do solo, e nesse momento desprendeu-se dele um pesado volume que foi tombar com um baque surdo no meio do terreno. Logo depois inclinou-se e rapidamente ganhou altura, afastando-se por onde viera.
Logo que isso sucedeu, os homens precipitaram-se para a carga e um deles fez sinal à carrinha, que arrancou e avançou até ao local. Quatro deles enfiaram a carga pela porta traseira, após o que subiram também e o carro se pôs em movimento. Quando nos parecia que a acção terminara, desembocou quase sem ruído no recinto um pequeno camião, sem luzes e com a caixa coberta por um toldo de lona. Os dois que tinham ficado a dobrar os lençóis e a recolher os candeeiros carregaram o material e foram instalar-se na cabina.
Eu assistia a tudo com os sentidos alerta; e, no instante em que o camião partiu, a minha cabeça raciocinou mais depressa, dei uma cotovelada a Felipe e pusemo-nos os dois a correr atrás dele. Alcançámo-lo, agarrámo-nos quase simultaneamente ao rebordo posterior da caixa e conseguimos suspender-nos.
O início do percurso foi penoso. As sacudidelas brutais aleijavam-me os dedos já feridos, e a cada metro sentia que ia ser atirado ao chão. Para Felipe não devia ser mais fácil. Por fim, consegui fincar os pés num gancho, içar-me e ajudar o meu companheiro a trepar. Foi assim, mais razoavelmente instalados, com as pernas a baloiçar, o tronco aos saltos e a cabeça a chocalhar, que prosseguimos o percurso, o qual eu não sabia onde ia acabar. Felipe perdera o seu ar optimista, de modo que eu sorri-lhe, mas nenhum de nós tinha vontade de abrir a boca a não ser para expelir o ar após um solavanco mais violento.
Por fim, percebemos que o carro abrandava para parar, saltámos antes que se detivesse, e corremos para a berma, por onde rolámos até uns ramos mais grossos nos deterem. Certifiquei-me de que o meu parceiro continuava em bom estado, procurei animá-lo com qualquer coisa original do género “Então, tudo bem?”, e lá nos arrastámos para cima, agarrados aos troncos, até atingir de novo o nível do caminho.
Achávamo-nos a uns trinta metros de um espaço plano sem vegetação, onde num dos extremos se erguia um hangar tosco iluminado no interior. De ambos os lados do camião, sem dúvida para serem carregados, alinhavam-se em fileiras sobrepostas o que me pareceu tratar-se de grandes bolas de borracha. Pudemos observar os homens a entrarem no hangar, e regressarem pouco depois, carregando cada um deles pequenos lotes que deviam ter separado entretanto. Com rapidez e precisão abriram algumas das bolas e encheram-nas com o material que transportavam, após o que voltaram a encaixar as metades e acondicionaram tudo num caixote que tinha impressa a indicação “Lisbon”.
Entretanto, a minha atenção foi desviada para um tipo que obrigava uma rapariga a sair da furgoneta. Todas as fibras do meu corpo deram de si. Karin. O filho da mãe era Sánchez. Achei que era chegada a altura de extrair o objecto que vinha desde há muito a fazer um volume incómodo e pesado no bolso esquerdo do casaco. Empunha a arma com firmeza e olhei para Felipe. Pude constatar que ele também estava equipado.
Karin parou de se debater quando os outros tipos se começaram a chegar. Sánchez falou para eles.
-...Correu tudo bem. Agora é com vocês. Fiquem com ela também. É uma traidora.
De entre o grupo, um dos fulanos aproximou-se e agarrou-a.
A minha mão apertou com mais força a coronha da pistola e o indicador tocou nervosamente o gatilho. Destravei. Concentrei-me no que ia fazer, apontei com cuidado para o tipo que segurava Karin, e puxei devagar.
O tiro partiu com uma explosão medonha. A bala derrubou-o e em redor gerou-se um pandemónio. Felipe disparou logo após e o grupo, julgando-se alvo de um ataque em força, distribuiu-se e desatou a fazer fogo ao acaso. No meio da confusão pus-me a gritar o nome de Karin, mas foi preciso mostrar-me para que ela me localizasse, e esse atrevimento ia sendo fatal. Mas Karin convergiu na minha direcção, e eu atirei-me de novo ao chão, enquanto esperava que ela chegasse. No instante em que isso sucedera, alguns deles deram conta do que ocorria e as balas passaram a pouca distância. Prendi a mão dela e arrastei-a atrás de mim. No nosso encalço, a cobrir-nos disparando para trás, vinha Felipe. Ainda pude ouvir Sánchez gritar:
- Atirem! Atirem, ouviram?
Diante de mim, para onde eu a tinha empurrado, Karin tropeçou num tronco e caiu. Levantei-a e continuámos a corrida através da vegetação, que se tornava cada vez mais espessa. Porém, os outros aproximavam-se. Fizemos um desvio, e numa breve paragem para tomar fôlego ouvi passos rápidos a uns metros adiante e o restolhar de ramos secos. A vozearia cessara, o que levava a supor que o grupo se havia dispersado para nos cercar. Empurrei Karin para trás de uma moita e aguardei.
Quando Sánchez apareceu, veio chocar comigo. Eu estava preparado, e a violência do choque fê-lo desequilibrar-se. Ao vê-lo, readquiri a posição normal, cata-pultei a cabeça contra o arcaboiço dele, fazendo-o expelir todo o ar das entranhas. Foi projectado para trás em ricochete, acabando por se deter de encontro à casca dura de uma árvore. Passei as costas das mãos pela testa e olhei para Sánchez. Não lhe dei tempo sequer a tocar a arma no chão. Apontei-lhe o cano do revólver para o ombro direito e apertei o gatilho suavemente.
O berro de dor que ele soltou deve ter sido abafado pelo tiro. No mesmo instante foi projectado a dois metros, para trás dos arbustos, com ambas as mãos a tapar o buraco sangrento.
Ouvi distintamente o grito de Karin. Virei-me com a arma pronta a entrar de novo em acção contra os homens que a cercavam. E, se não me tivessem agarrado fortemente pelas costas, teria morto dois polícias.
O local apresentava agora um aspecto inteiramente diferente. Uma claridade ténue começava a alastrar além das montanhas, empurrando a noite próxima e o pesadelo recente. Diante do hangar estacionavam dois jipes e um camião-rádio da polícia, e todos os vestígios do grupo de traficantes desaparecera, com excepção dos caixotes carregados, que os polícias transportavam para os camiões.
A escolta conduziu-nos até junto do jipe mais próximo onde um sujeito à paisana dava ordens pela rádio. Um dos nossos acompanhantes aguardou que o superior desligasse e falou-lhe em árabe. Ele saiu e veio postar-se à nossa frente, de rosto fechado e os olhos miúdos a piscarem por detrás das lentes. Ficou assim um largo minuto, a balançar o corpo, até que por fim pareceu adormecer e só despertou quando um subordinado o segurou para ele não cair. Em certa medida eu compreendia-o, porque me sentia na mesma.
Extraiu um lenço enorme do bolso das calças, assoou-se com estrépito e só depois me dirigiu a palavra. Falava em francês, e o soldado servia de intérprete.
- Quem diabo é você?
- Frank Gold, jornalista. Muito cansado. E quem diabo é o senhor?
Logo que acabaram de lhe fazer a tradução, tornou-se escarlate, proferiu com vigor duas longas frases e acabou por declarar:
- Inspector Rafik, da Segurança. - E logo:-O senhor está gravemente comprometido.
- Ah, sim?...-fiz eu.-Porquê?
Esclareceu com gravidade:
- Tenho de elaborar o meu relatório, a fim de apurar as suas responsabilidades. Encontro-me neste momento em contacto com a sede, para decidir o que farei.
- Acho bem - disse eu. - E vai levar muito tempo?
- O necessário. - Só então pareceu dar pela presença de Karin. Sorriu-lhe com deferência.-...Mademoiselle Karin, evidentemente, não tem nada a ver com o assunto.
Engoli em seco. Ele acrescentou, falando mais para ela do que para mim:
- Por agora podem ir repousar, se o desejarem.
- Muito obrigado - disse eu.
O inspector contemplou-me com o olhar que se deita a um cão rafeiro, fez uma vénia a Karin e voltou ao jipe. Só então me lembrei de Felipe. Olhei em torno, mas ele desaparecera. Recordando melhor, concluí que não o via desde a cena de tiros. Ainda pensei perguntar por ele ao inspector, porém decidi que Felipe sabia muito bem tratar da vida dele. Virei-me para Karin, puxei-a para mim, rodeei com o braço os seus ombros e conduzi-a até à borda de um poço ali perto, onde nos sentámos os dois a descansar um pouco. Estávamos ambos esgotados, mas ela fazia um esforço para o mostrar o menos possível. Daí a um bocadinho ocorreu-lhe uma ideia súbita: levantou-se com energia e inclinou-se sobre a parede do poço, puxando para si a corda donde pendia um balde velho e esburacado. Desprendeu o balde e desceu-o fazendo correr a roldana. Segundos depois, trazia-o até acima. Ajudei a colocar o balde no parapeito, mas a água esguichava como de um regador, e tivemos de nos apressar para conseguir lavar a cara. Concluíamos a operação, entre duas risadas de Karin, quando o polícia que tomava conta de nós se aproximou com umas calças e uma camisa na mão.
- O inspector manda isto para o caso de querer mudar de roupa.
- Sim, senhor. Agradeça por mim.
Mudei de trajo, enquanto Karin, de costas para mim, se entretinha a beber água com as mãos em concha. Ele permaneceu onde estava.
- Mais alguma coisa? - inquiri.
- O inspector manda dizer que, se quiserem, podemos servir-lhes comida.
E foi-se embora. Pelos vistos, o tratamento melhorava, e isso tinha certamente a ver com a presença de Karin e os telefonemas para a cidade.
Fui ter com ela e fiquei a contemplá-la. Parecia ausente, ali sentada a olhar para o poço. Tão linda, quase fresca, apesar da fadiga, assim com a cara ainda molhada e os cabelos negros a escorregarem ao longo das faces. Meu Deus, como eu gostava desta pequena! Ergueu a cabeça e sorriu ao ver que a olhava. Limpei-lhe a cara com a ponta da camisa e passei-lhe os dedos pelos cabelos, experimentando uns remorsos danados pelo que chegara a pensar dela.
- O dia vai estar bonito, vês? E a noite passou...
- Sim... para ti.
Encarei-a fixamente.
- Tens de acreditar em mim, Karin.
Ela desviou o olhar triste para longe, depois para o motorista do jipe, que nos observava à distância enquanto bebia o seu chá. A seguir mergulhou os olhos nos meus e sorriu de novo.
- Tenho fome...
Uma onda de ternura levou-me a erguê-la pelos braços e a apertá-la nos meus. Senti diminuir a tensão daquele corpo, que agora me parecia tão frágil.
- Também eu.
Andámos até ao jipe e ela falou ao condutor. Este foi ao camião buscar um tacho, duas tigelas e um pano de cozinha, que nos entregou. Voltámos para o nosso poço e sentámo-nos a comer.
- Como é que se faz? - quis saber, porque não vi colher nem garfo.
- Assim.-Agarrou numa das pequenas bolas castanhas, e a dez centímetros da boca fê-la saltar.
Franzi a testa. Noutra altura teria achado repugnantes aquelas bolas oleosas de carne escura, mas naquela altura fiz como me indicavam, mastiguei rapidamente e não me soube mal. À terceira, porém, comecei a sentir-me um bocado enjoado e tive de empurrar com uma boa golada de água.
Karin olhou-me consternada e depois rimo-nos os dois. Aguardei que ela terminasse. Segurei-lhe o queixo e ergui-lhe o rosto.
- Karin... há-de correr tudo bem.
Ela não pareceu prestar atenção.
- Vais partir... Deve ser bom. Partir. E lá longe, em Paris, Nova Iorque, em todas essas grandes cidades, deve ser fácil esqueceres-te de Tânger. E de mim.
- Karin, eu não vou partir. Os meus trabalhos ainda agora começaram. E... achas que posso esquecer tudo o que se passou esta noite? Tu mesma, poderás esquecè-la, e a mim, como se nada tivesse acontecido!
- Oh, não... Frank - murmurou, encostando o rosto ao meu. - Mas tu... O desejo de viver, é o que sinto agora, mais forte que nunca. E isso não deixa esquecer. Mas eu não tenho fuga possível.
Sem que nos déssemos conta da aproximação dele, ouvimos muito próxima a tosse do inspector. Achava-se ao nosso lado, a mirar-nos com gravidade.
- Que há de novo, inspector?
Fungou duas vezes e sentenciou, com Karin a servir desta vez de intérprete:
- Quanto a si, devo dizer-lhe que a sua amiga, Miss Spranger, se inquietou muito quando soube pela polícia dos sarilhos em que o senhor se meteu. Sugiro que, ao menos, vá vê-la. Agora vou conduzi-lo no meu jipe ao seu hotel, desde que se comprometa a apresentar-se no aeroporto às quatro horas em ponto.
- No aeroporto? -soltei. - Para quê?
- Sai um avião para Lisboa às cinco da tarde. Seguirá nele.
O rosto de Karin empalidecera, enquanto traduzia com voz alterada.
Comecei a sentir-me mal.
- E se eu não quiser ir?
O inspector sorriu com paciência e explicou:
- Mas, meu caro Mr. Gold, o senhor é expulso. Não se esqueça de que se envolveu por sua conta em assuntos que são da competência da polícia. Não pode esquecer-se de que somos um país civilizado. Além do que é formalmente acusado de posse ilegal de arma de guerra. O que é grave... E agradeça-me por as coisas ficarem neste pé.
A irritação crescente culminou numa vontade tremenda de lhe abrir a cabeça e enfiar-lhe lá dentro tudo o que ele não queria perceber. Foi Karin quem o salvou.
- Inspector! Se está a par de tudo o que se passou, deve reconhecer que Mr. Gold não poderia ter contactado a polícia mais cedo. Ele foi envolvido, inspector, esteve em perigo de vida e prestou-lhes um grande serviço. Nada disso é tomado em consideração?
Começara a falar serenamente, como a uma criança; a última frase, porém, foi proferida com alguma revolta. Se a deixasse prosseguir, seríamos dois a abrir a cabeça ao sujeitinho.
- Ouça, inspector: e quanto a Mademoiselle Karin?
Desta vez não precisei de tradução. Algumas palavras que apanhei e a expressão aterrorizada de Karin bastavam.
- Mademoiselle Karin teve a infelicidade de ser ata-cada por um bando de malfeitores que se encontram detidos e que pretendiam assaltar os armazéns de uma importante firma que pertence ao tutor de mademoiselle. Confessaram tudo há momentos.
- E os Senhores Ricardo Sánchez e Abdul Ahrman, também confessaram?
Fitou-me com incredulidade.
- Abdul Ahrman? Mas, meu caro Mr. Gold, o senhor deve estar a delirar! O Senhor Ahrman é o secretário do grande amigo do Senhor Ben Youssef.
Karin limitava-se agora a traduzir duas ou três palavras nos momentos em que eu olhava para ela. Ia abrir a boca para dizer algo, mas eu fiz-lhe sinal com os olhos para não intervir.
- Ah, bom. E quanto a Ricardo Sánchez?
- Sánchez é o responsável.- Assoou-se, visivelmente incomodado. - Mas, infelizmente, no meio da confusão, conseguiu escapar. Não tardará a ser apanhado - concluiu peremptório.
Desisti. Por agora. Fiz só mais uma pergunta:
- Mademoiselle Karin pode então fazer o que entender...
- Mademoiselle corre ainda algum perigo. Por isso, o Senhor Ben Youssef deu instruções para que a conduzíssemos imediatamente a casa, onde estará em segurança.
Ela disse isto para mim em inglês, quase em pânico, e articulou numa imploração:
- Frank, não!
- É para seu bem, mademoiselle - sentenciou o inspector. - Agora deixo-os uns minutos a sós, e depois partiremos.
A angústia fazia de nós dois apenas uma pessoa.
O inspector rodou nos calcanhares e principiou a afastar-se. Eu avancei um passo, disposto a alcançá-lo para o agarrar com força pela camisa e o obrigar a ouvir umas quantas coisas que havia um longo bocado estava a precisar de lhe gritar, quando ouvi Karin chamar-me. Olhei. Ela tinha o rosto molhado de lágrimas. Voltei.
- Frank... não me deixes.
Foi a necessidade imperiosa que senti de a ajudar naquele momento que me fez voltar à realidade e conseguir falar-lhe com realismo.
- Ouve, minha querida. De momento não há outra coisa a fazer. Pela parte que me toca, hei-de arranjar resolução. Quanto a ti, podes ter a certeza absoluta de que Ben Youssef, se pretende manter a casa limpa, não se atreverá a tocar-te. Por isso não deves ter medo. Agora, por favor, crês em mim e que eu te vou ajudar. Acreditas?
Limpou as lágrimas, soltou ainda um soluço e acabou por dizer que sim com a cabeça, várias vezes.
A chegada ao hotel processou-se às sete da manhã, comigo instalado no banco traseiro de um jipe da polícia, conduzido por um motorista fardado e um sargento ao lado dele com uma metralhadora no colo. Adiante viera abrindo caminho um motociclista com a sirena a funcionar. O pessoal de serviço àquela hora acorreu todo a ver o que se passava, e até os cozinheiros assomaram nas janelas da cave. Saí escoltado, envergando umas calças de camuflado e camisa da tropa. Cumprimentei toda a gente e fiz a minha entrada no átrio escoltado pelo sargento. O tipo da recepção, o mesmo que na véspera à noite me quisera anunciar que se encontrava uma dama à minha espera, desta vez não manifestou sinal de surpresa. Limitou-se a comunicar-me um recado de Ahmed, o qual me informava que Joana estava bem de saúde e entregue ao jardineiro. Agradeci. Ao reparar no ar indeciso do rapaz, a olhar ora para mim, ora para o sargento, como se tivesse mais para dizer, tratei de pô-lo à vontade.
- Mais alguma coisa?
Apontou para uma coluna do átrio, onde já só nós nos encontrávamos.
- Um senhor...
Percorri com a vista o local deserto.
- Não conheço - disse eu.
- Não... eu, atrás - e apontava para a coluna.
Resolvi ir observar, pois talvez assim conseguisse ir mais depressa para a cama. Dirigi-me para a coluna, o sargento também, e espreitámos.
Confortavelmente instalado numa poltrona, a perna traçada, o cigarro enfiado numa boquilha de lacre, um copo contendo uma bebida amarela poisado na mesinha defronte e a bengala a repousar a seu lado, resplandente Mr. Wong.
Fez um cumprimento polido ao sargento, ergueu-se com a leveza e o aspecto de quem tinha acabado de passar pela sauna, massagista, cabeleireiro e alfaiate, e pronunciou após uma vénia sorridente:
- Como tem passado o ilustre jornalista e meu estimado amigo?
Ia mandá-lo para o diabo que o carregasse; porém, no último segundo, inflecti rapidamente, mostrei os dentes que pretendia que parecesse um sorriso e respondi com uma elegância que me surpreendeu a mim próprio:
- Excelentemente, meu caro Mr. Wong. Tão bem que tenciono partir hoje mesmo. Mas não deseja subir um pouco para conversarmos?
- Ah, Mr. Gold! Com muito prazer... Atrevo-me porém a pensar -e com uma das mãos limpas e bem tratadas indicou o meu aspecto - que sem dúvida prefere dispor de algum tempo para tratar do seu corpo. Porque isso, meu amigo -e acenou gentilmente com o indicador levemente arqueado -, é o primeiro passo para a limpidez do espírito.
Cá por mim, responder-lhe-ia de bom grado qual a parte que o mandaria lavar.
- Não sabe quanto aprecio a sua gentileza, Mr. Wong,. Dentro de trinta minutos poderemos tomar o pequeno-almoço no meu quarto. Isto é, se...
- Muito gentil da sua parte. Até já, então...
Inclinou-se e voltou a colocar-se no sofá com a precaução com que um diamante se encastoaria num anel.
Lá de cima telefonei a pedir dois decilitros de café forte para já e mais dois pequenos-almoços continentais e um bule de chá e torradas para daí a meia hora. Os dois pequenos-almoços eram para mim. De seguida marchei para a casa de banho, largando a roupa pelo caminho Permaneci três minutos debaixo da água fria e dois na água quente, isso enquanto a banheira enchia, após o que mergulhei no banho tépido onde me deixei ficar até começar a sentir a pele eriçada. Ainda embrulhado na toalha felpuda e macia, fui abrir a porta ao toque da campainha. Era o café. Levei a bandeja para perto do telefone, despejei a primeira chávena e antes de iniciar a segunda liguei para a recepção a pedir o número de Francesca. Chamaram, e passados poucos segundos veio a voz, rouca e ansiosa:
- Frank... tinha-me deitado agora mesmo com dois comprimidos. Passei a noite toda tão preocupada... Estás bem?
- Agora estou melhor - disse eu com alguma convicção. - Querida, aconteceu muita coisa que não te posso contar agora.
- Mas porque não me avisaste, Frank?
- Não estavas quando falei. E depois quis falar, mas não pude.
- Oh, Frank... estás mesmo bem? Posso ajudar nalguma coisa? O inspector telefonou há três quartos de hora e fiquei mais tranquila, mas ao mesmo tempo tão desesperada pelo modo como te trataram... Achei contudo preferível deixar-te descansar e telefonar-te mais tarde...
- Obrigado, meu anjo. - Peguei na chávena de café e bebi mais um trago. - Mas, se me queres ajudar, trata de ouvir o que tenho para te dizer.
-...Sim, Frank.
- Toma nota. Até cerca do meio-dia trata de obter todas as informações que puderes sobre um tal Mr. Wong, de Wong & Associates... Estás a ouvir?
- Sim, Frank.
- À mesma hora, preciso de saber exactamente onde se encontra Karin.
- Sim...
- E, por último, trata de falar com o nosso cônsul e vê se ele consegue anular a minha ordem de embarque. Okay?
- Claro, Frank. Vou fazer tudo o que puder. E arranjar-te todas as informações que conseguir até lá.
- Linda menina - disse eu. -Agora vamos para a cama, está bem?
Ouvi um gemido do outro lado.
- Passa-se alguma coisa, boneca?
- Oh, Frank - disse ela num murmúrio.- É a primeira vez que me dizes isso...
Sempre a mesma querida Francesca.
Mr. Wong saboreava com deleite o seu segundo pequeno-almoço, após ter passeado um olhar distraído pelo bule de chá e as torradas. Em último recurso, para saciar o apetite, eu ia barrando uma delas com manteiga antes que ele voltasse atrás.
- E que tal se passássemos aos assuntos pendentes, Mr Wong?-lancei casualmente, com a boca cheia e a aconchegar a toalha.
Alisou as pontas dos dedos com o guardanapo, que dobrou cuidadosamente em duas partes, e depois em quatro, retirou uma migalha minúscula que lhe pousara nas calças, depositou-a no rebordo do prato e, quando eu julgava que ele ia começar a contar quantos grãozinhos de pó havia no bico do sapato, chegou-me aos ouvidos a sua voz musical.
- Há momentos, Mr. Gold, em que tomar decisões r arriscar a vida de alguém que prezamos. - Pausa. - Isso sucedeu comigo esta noite, em relação ao ilustre jornalista. Pode crer o nosso confrade que o coração, que é um órgão do nosso corpo que nunca manifesta dor, doeu nesse instante a este seu criado.
Ocultei o bocejo com as costas da mão.
- Na verdade - prosseguiu -, fui forçado a decidir entre protegê-lo, ou prosseguir a acção no ponto onde o nosso diligente colaborador havia cessado. E, graças a um conjunto de circunstâncias concertadas com felicidade, tudo veio a desenrolar-se de forma favorável.
- Favorável, para quem, Mr. Wong?-comentei aborrecido.
Explicou com condescendência:
- A acção despoletou-se, as personagens subiram à cena, e tudo isso graças ao esforço benemérito do estimado Mr. Gold.
“Mr. Gold, o ilustre jornalista, prezado confrade, colaborador diligente, benemérito e estimado.” Tal e qual um epitáfio, pensei.
- E já agora, que somos sócios - interrompi com impaciência-, que tenciona fazer para me safar desta alhada?
- A nossa empresa, Mr. Gold - esclareceu sem se perturbar-, resolveu que o mais aconselhável seria o nosso ilustre colaborador seguir para Lisboa. - Deteve a minha intervenção com um gesto.- Temos indicações de que o Adolfo González partiu esta madrugada para essa Cidade, onde, ao que conseguimos apurar, está marcada para amanhã uma reunião importante.
- Só isso? - inquiri. - E julgam que eu vou deixar-me ficar com cadastro para ir farejar reuniões?
Abanou lateralmente a cabeça, e dir-se-ia que deplorava paternalmente a minha falta de visão.
- Claro que sim, Mr. Gold. Trata-se de um acontecimento decisivo e insólito. Além do que, nessa reunião participará também Ben Youssef, o qual já mandou reservar passagens no avião que sai de Casablanca esta manhã. Uma das quais, aliás, em nome da sua afilhada... Karin, suponho.
Deixara cair a última frase tão casualmente que eu só instantes depois a apanhei.
- E acresce, caro amigo, que a nossa firma me encarregou de lhe entregar esta... lembrança. Pelo obséquio da sua colaboração.
Estendeu-me um sobrescrito volumoso e aberto, que segurei com relutância. Porém, a curiosidade foi mais forte, e também porque ele aguardava a minha reacção, acabei por espreitar o conteúdo.
O pacote caiu-me das mãos em cima do tabuleiro e eu procurei com os olhos o maço de tabaco, acabando por aceitar o cigarro que ele me estendia e acendeu com o isqueiro laçado.
- Cinquenta mil dólares para despesas. Além da indicação do local onde vai decorrer a reunião de que lhe falei. Vê algum inconveniente em seguir viagem, Mr. Gold?
- Não - respondi logo. Porque tinha muitas perguntas para lhe pôr. Porém, mesmo que tivesse respondido, ele não ouviria. Pela mesma razão porque as minhas perguntas teriam de ficar sem resposta. Uma mancha de sangue apareceu-lhe no lado esquerdo do pescoço. Mr. Wong saltou para trás, como se tivesse recebido uma descarga, e só segundos depois eu associei tudo isso com o “plop” abafado que ouvira atrás de mim e um zumbido que me passara junto à orelha.
Demorou algum tempo antes que o meu cérebro funcionasse outra vez. Imediatamente permaneci a fitar o buraco, observando o alastrar da mancha pelo colarinho imaculado, tão fascinado por Mr. Wong não apresentar a postura habitual como por ser possível a camisa de Mr. Wong apresentar uma nódoa. Depois a minha cabeça virou-se de forma a permitir-me olhar para a janela. Os reposteiros laranja que filtravam a luz forte do Sol estavam corridos e ondulavam ao sabor da brisa que vinha de fora. Em seguida olhei para a parede por trás de Mr. Wong, como se esperasse encontrar aí uma resposta. Afinal, aquilo que eu instintivamente buscava achava-se no encosto do sofá, sob a forma de um orifício chamuscado em toda a volta. Só então me levantei, para espreitar melhor. A confirmação feita de perto deve ter satisfeito as minhas necessidades psicológicas, porque a partir daí comecei a reagir de uma forma racional.
Já vi gente morrer. De morte violenta, algumas vezes perto de mim. Mas uma coisa é a guerra, ou outra situação em que seja previsível isso vir a ocorrer. Não assim, num sofá diante de mim, a fumar um cigarro e no meio de uma conversa. A cara dele estava virada para lá, porque o pescoço sofrera uma rotação esquisita e o tronco também. Em sentidos contrários. Pensei que qualquer criança acharia Mr. Wong um homenzinho muito engraçado. A boquilha com o cigarro aceso caíra exactamente dentro do cinzeiro, e o braço que a segurara ficara a agarrar o outro na altura do cotovelo. Das pernas, uma esticava-se toda por debaixo da mesa e a outra sustentava-se sobre o pé apoiado de lado, de modo que a sola preta e novinha em folha do sapato se mantinha virada para mim.
Mr. Wong, como cadáver, constituía de certo modo a figura quase tão peculiar como quando era vivo. Numa segunda sequência de reacções dirigi-me para a e afastei os cortinados. O sol forte, apesar de serem ainda oito horas, bateu-me em cheio nos olhos. Na minha mente cansada e alterada por toda a sucessão de pesadelos, das quais o último chegara mesmo a perturbá-la, formou-se uma confusão de imagens esféricas de várias cores brilhantes. Cerrei os olhos com força, aguardando que passasse, e só depois espreitei para baixo. A seis andares de distância ficava a piscina, à beira da qual apenas um casal se bronzeava em cadeiras de lona. Mais adiante, o jardineiro podava uns arbustos.
Após decidir que ninguém podia ter vindo por aí, nem descido dos dois andares localizados por cima de nós, observei as varandas contíguas. A da direita comprida, ficava distanciada uns dois metros, porém a do apartamento à minha esquerda, que devia servir apenas um quarto, sem dúvida permitia o acesso. Reparei que as persianas se achavam subidas até meio e por baixo delas mostrava-se, a espaços, a parte inferior dos reposteiros.
Nesse instante todos os meus sentidos despertaram, e então fiz o que deveria ter feito. Corri para a porta e saí para o corredor deserto. Precipitei-me para o elevador a uns dez metros de distância. A seta vermelha iluminada apontava para baixo. Regressei ao quarto e avancei para o telefone. Carreguei repetidamente no botão e aguardei alguns instantes intermináveis, até que atendessem.
- Quem fala?
- É Ahmed, Mr. Gold. O que...
- Oiça, saiu agora alguém?
- Bem, hem.. Sim, Mr. Gold, acaba de passar um
Senhor.
Falei como se pudesse empurrá-lo.
- Vá atrás dele. Agarre-o! Depressa, ouviu? Agarre-o, Ahmed!-berrei, e atirei com o auscultador para o descanso.
Raios, eu perdera o assassino por uns miseráveis
Segundos.
Voltei a sair pela porta que deixara aberta e fui experimentar a do lado. O manípulo rodou facilmente. Fui apanhado pela corrente de ar, porque a entrada dava directamente para um pequeno corredor e daí para o quarto. A janela do quarto era a da varanda contígua à minha. Avancei confiadamente, porque sabia que a pessoa que eu queria apanhar já não estava ali. Tudo se encontrava nos devidos lugares, isto é, o quarto não estava ocupado. Entrei na casa de banho. Aí, apenas a torneira do lavatório pingava e uma das toalhas pendurada ao lado, apresentava sinais de ter sido utilizada. Antes de sair, pude ver a minha cara no espelho. Deitei-lhe um olhar desgostoso e virei as costas.
Ahmed avançava rapidamente pelo corredor e pelo ar desanimado dele compreendi que não valia a pena mostrar-me ansioso.
- Tirou a matrícula do carro? - limitei-me a perguntar. O rosto transpirado desanuviou-se. Já exibindo um sorriso satisfeito, declarou:
- Sim, senhor. Era um Mercedes preto, antigo. Tirei a matrícula. É estrangeira. - Mas logo quis saber, com o ar de quem reivindicava um direito adquirido:
- Quem era ele, Mr. Gold? Um ladrão?
Enquanto falava, ia-se dirigindo para o meu quarto. Eu segurei-lhe afectuosamente o braço e sugeri, apontando para o 612:
- Preferia conversar aqui ao lado, Ahmed. Dispõe de alguns minutos?
Disse que sim, certamente intrigado, mas possivelmente mais do que isso, por não dispor de argumentos para discutir comigo. Arrastei-o para dentro, empurrei a porta com o calcanhar e conduzi-o até ao quarto, onde o mandei sentar no único sofá existente. Após ter-me instalado no bordo da cama mais próxima, comecei com precaução:
- Ahmed, está um homem morto no meu quarto. - Arregalou os olhos e abriu a boca, mas eu não o deixei falar. Nem levantar-se quando impeliu o corpo para cima, - Esse homem veio falar comigo antes de você entrar de serviço. Foi o tipo que você viu, quem o matou.
Apontei a janela aberta.
- Passou desta varanda para a do meu quarto, aproveitando o facto de este estar desocupado.
Ahmed começava a acenar a cabeça. O meu problema em saber o que se passava lá dentro resultava apenas de que tão depressa o aceno era vertical como lateral.
- Percebeu tudo?
- Sim, Mr. Gold - respondeu logo, possivelmente com medo de que eu fosse complicar mais a história.
- Óptimo - comentei. -Então vamos ver o morto.
Pelos vistos, ele já estava por tudo. Pôs-se em pé e andou à minha frente, sempre a abanar a cabeça, para um lado e para o outro, para cima e para baixo.
No local não foram precisas apresentações. Porque o estado de Mr. Wong não deixava margens para dúvidas. E também porque Ahmed, quando o viu, encostou-se à parede como se pretendesse atravessá-la e articulou, com a palma da mão a tapar a boca:
- Mr. Wong!
Esperei primeiro que ele acreditasse no que os seus olhos viam e só depois lhe fiz a pergunta óbvia:
- Conhecia-o?
A voz saiu-lhe a custo.
- Eu... trabalhava para ele - balbuciou. Bem, pelos vistos, metade da população de Tânger trabalhava para Mr. Wong.
- Okay, Ahmed. Agora descreva o tipo que saiu daqui.
- Ele... era europeu. Levava uma pasta na mão.
- Isso não interessa. Você já o tinha visto antes? Era alto, baixo, coxo... como era ele, Ahmed?
- Eu... nunca o tinha visto. Não era alto nem baixo, tinha cabelo preto e vestia um fato escuro. - Olhou-me desanimado. - Praticamente, só o vi de costas, Mr. Gold.
- Você está habituado a observar pessoas. De que nacionalidade acha que era?
- Bem... talvez espanhol - admitiu.
Não valia a pena perder mais tempo. Era preferível resolver o resto, e o “resto” era apenas um cadáver no meu quarto.
- Ahmed, vamos sentar.
Preparei-lhe uma cadeira colocada estrategicamente de modo que ele não tivesse de enfrentar o patrão, após o que peguei da bandeja a chávena que não fora utilizada e despejei nela o que restava na cafeteira.
Ahmed afastou um bom bocado a cadeira, visivelmente incomodado, e sorveu ruidosamente o café forte, com o bordo da chávena a tilintar-lhe contra os dentes.
- Meu amigo - disse eu logo que a poisou intacta -, temos de resolver este assunto.
Desta vez assentiu prontamente. Senti-me tão aliviado que nem permiti que falasse.
- Ainda bem que você tem tanto interesse nisso como eu, Ahmed. - Tracei as pernas e cruzei as mãos.-Agora como vai ser?
Eu estava a andar demasiado depressa. O pobre quase implorou: “Por favor, deixe-me pensar, Mr. Gold...”, pelo que lhe cedi de bom grado essa tarefa, enquanto ia acendendo um cigarro. À terceira nuvem de fumo, o brilho dos olhos dele anunciou-me que o esforço fora compensador.
- A lavadaria - exclamou.
- A lavadaria, o quê, Ahmed? Vamos mandar Mr. Wong para a lavadaria?
- Claro, Mr. Gold. - E foi explicando sem uma pausa, como se receasse deixar fugir a ideia.- Além da lavadaria, que funciona na cave, o hotel possui outra para onde manda todos os dias uma parte da roupa. Vem uma carrinha ao meio-dia e meia buscá-la. Se eu conseguisse meter nela o...-rodou a cabeça, mas logo a endireitou, com um estremecimento -...O Senhor Wong, o meu primo fazia a entrega.
A última parte não entendi.
- Posso saber quem é o seu primo, Ahmed?
- É o condutor da carrinha - explicou.
- Naturalmente - disse eu. - E como tenciona levar o... para a carrinha?
Permiti que reflectisse sem que fosse preciso pedir-mo. Até que ele anunciou:
- Rosita!
- Também é sua prima?
Distendeu os beiços numa careta que apenas os olhos a luzirem e a fiada de dentes brancos permitiam supor tratar-se de um sorriso.
- Oh, não, Mr. Gold. É criada de quartos... uma amiga. - E acrescentou meio envergonhado: - Gosta de mim, e eu às vezes faço-me encontrado com ela. Se me oferecer para lhe transportar o carro das roupas para a cave, ela fica muito contente...
- Ah - fiz eu.-E então você diz-lhe que já agora tem aqui um cadáver e mete-lho entre os lençóis.
Fixou-me desconfiado, a avaliar se eu estaria a gozar com ele.
- Não, senhor - disse muito sério. Mas logo o pensamento seguinte lhe fez a cara animar-se. -É que Rosita tem medo de mim, e se eu ficar aqui para ajudar ela foge para outro quarto.
- Naturalmente - apoiei. Não conhecendo Rosita, achava-a uma rapariga saudável.
Ahmed virou novamente a cabeça e já menos repugnado comentou para mim:
- Pobre Senhor Wong. Tão boa pessoa!
Ocorreu-me perguntar-lhe qual a natureza do trabalho que ele, assim como Felipe, executavam para Wong; porém, em face das circunstâncias, a questão tornava-se quase irrelevante.
Dei uma ligeira palmada no joelho, apaguei a ponta do cigarro e sorri.
- Bem, Ahmed. Parece que está tudo assente. Vá pensando nos pormenores. Eu vou descansar e não atendo ninguém. Certo?
Fez que sim e levantou-se.
- Então pode ser ao meio-dia, Mr. Gold?
- Tem de ser ao meio-dia, não é?-foi a minha resposta, subitamente irritado. A breve consulta ao relógio informara-me que três horas e meia era o espaço de tempo de que dispunha para dormir.
Ahmed não deu por nada. À despedida indicou Wong, desta vez com o queixo, já quase sem cerimónia.
- Vai ser capaz de descansar com o... Senhor Wong aqui, Mr. Gold?
- Meu amigo -esclareci, empurrando-o para a porta - a única coisa que me impede de dormir é a acção e o ruído. A experiência já me ensinou que os mortos não andam nem fazem barulho.
Antes que ele me provocasse pesadelos com aquele sorriso característico, adiantei:
- Se souber onde pára o Felipe, diga-lhe que ligue para mim. Mas só à hora de almoço - tratei de recomendar.
Ganhei consciência da campainha do telefone na altura em que se desvaneceram as imagens dos morcegos gigantescos que me roçavam a cara com as asas viscosas ao mesmo tempo que soltavam gritos horríveis. O despertar Sobressaltado, a visão do cadáver de Wong e a voz terrivelmente excitada que dificilmente reconheci como sendo a de Ahmed provocaram-me uma agonia que subiu do estômago e foi um vómito. O pior, porém, foi o que ele disse, e que eu só entendi à segunda ou terceira vez.
- O inspector Rafik. Vai aí falar com o senhor! Pediu, -me que o avisasse...
- Sim, Ahmed - balbuciei. Só daí a algum tempo consegui articular: - Mas, pela tua saúde, vê se o demoras alguns minutos.
E deixei cair o auscultador.
- Exercício diário, hem, Mr. Gold! - Virou o sorriso amarelo para o sargento gordo que o acompanhava, enquanto eu limpava a transpiração com uma toalha e nu-afastava para ambos entrarem.
- O Senhor Inspector encarrega-me de lhe apresentar muitas desculpas por vir incomodá-lo - foi dizendo o sargento. O inspector Rafik ia entretanto examinando os aposentos, com ar apreciador.
- Três bien, trop bien - comentava, olhando tudo de cima a baixo, por detrás dos óculos sujos de pó.
Passei-lhe à frente e tratei igualmente de ir pesquisando as redondezas; as minhas razões, porém, eram outras.
Ocuparam ambos o sofá e eu sentei-me na cadeira, como se ia tornando hábito.
- Não vamos tomar-lhe muito tempo - disse o intérprete, ao ver que o inspector se detinha a brincar com a boquilha de laca e nunca mais abria a boca. Até que finalmente tossiu e exprimiu-se numa longa frase, que endereçou ao tabuleiro do pequeno-almoço.
- O Senhor Inspector informa Mr. Gold que, apesar de ter sido reconhecida a contribuição que deu para a prisão dos traficantes, as autoridades deste país não podem deixar passar a sua intromissão numa investigação que só a elas compete, sobretudo tratando-se de um cidadão estrangeiro.
Rafik sorriu-me com simpatia. Falou novamente, agora dirigindo-se à minha pessoa. Quando acabou, inclinou-se ligeiramente para diante. Eu correspondi, agradecido.
- O inspector informa Mr. Gold que se voltar a desembarcar em Marrocos nos tempos mais próximos terá de o prender.
Eu estava farto. Dei o recado ao sargento.
- Pergunte ao inspector se não seria preferível preocupar-se em arranjar provas contra Adolfo González, que também é estrangeiro, e Ben Youssef, que é nacional, diga-lhe também que para deixar fugir Ricardo Sánchez mais valia ter sido eu a acabar o trabalho.
O visado, que havia começado a agitar-se ao ouvir-me pronunciar certos nomes, entrou em fúria ao ser-lhe traduzido o discurso. Levantou-se de um salto, vociferou uma dúzia de palavras que não seriam propriamente amabilidades e bateu duas vezes com o punho nas costas do sofá. Em seguida virou os óculos para mim e aproximou-os perigosamente do meu nariz, soltando mais uma tirada rápida de várias sílabas bem soletradas. Aí o sargento achou preferível pôr-se de pé, mas antes que iniciasse a transcrição o superior ergueu a mão e apontou a porta. Depois do que rapidamente virou as costas, batendo com os tacões. O sargento encolheu os ombros, fez um sorriso forçado e deu uma corrida para apanhar o inspector quando este já ia a sair.
Eu fiquei com o ouvido à escuta para ter a certeza de que eles se afastavam. Mesmo assim, por medida de segurança, resolvi aguardar o toque de Ahmed. Chegou transcorridos três minutos contados pelo relógio.
- Então, Mr. Gold. - Era difícil transmitir mais ansiedade por um fio telefónico.
- Tudo bem, Ahmed.
Não foi o suficiente para o tranquilizar.
- Mas, e o... o...
- Foi apanhar ar e já vem. Agora acalme-se, amigo, e faça o que tem a fazer.
Desliguei e vi as horas. O inspector Rafik tinha-se poupado a mais um desgosto. Faltavam quinze minutos para o meio-dia.
Antes de ir à varanda buscar o sofá e Mr. Wong, olhei para cima e murmurei o melhor que me ocorreu. No ponto a que tinha chegado bem devia um agradecimento, vários queixumes e inspiração de providência para conseguir chegar ao fim.
A operação de transferência desenrolou-se com limpeza e precisão. Ao meio-dia e cinco, entrada de Ahmed em cena, a obstruir a entrada com um grande carro de dois tabuleiros e quatro rodas de bicicleta. Às doze e oito, Mr. Wong na prateleira inferior, todo embrulhado num lençol e coberto por cinco quilos de roupa suja. E, quatro minutos passados, Ahmed a ligar para mim, anunciando-me que a roupa seguira para limpar.
Ainda não havia saboreado o alívio quando Francesca telefonou.
- Estás melhor, meu querido?
Já fizera nesse dia todos os esforços que os nervos de um homem podem suportar. Mas para, depois do que passara, lhe responder no tom desprendido que usei, tiver de recorrer a tudo o que a vida me ensinara.
- Já estou óptimo, filha.
- Ainda bem - respondeu do outro lado a voz quente e macia, agora menos ansiosa. - Ouve, meu querido -anunciou com excitação. - Um amigo que tenho no aeroporto confirmou-me que a tua amiguinha partiu. Quanto ao homem importante que devia acompanhá-la -prosseguiu, num tom de voz mais baixo -, eu depois explico-te, mas é provável que tenha embarcado também. Quanto ao teu caso... estás a ouvir-me? O cônsul é de opinião que é muito mais cómodo para todos, incluindo para ti, deixar-te seguir para Lisboa do que intervir na questão e ter de dar explicações. Compreendes?
Com o auscultador entalado entre o ouvido e o ombro, enquanto atava os sapatos, disse-lhe que compreendia. Eu próprio, depois dos últimos acontecimentos, já era dessa opinião. Claro que isso não lhe disse.
- Estou desolada, Frank. Mas escuta, tenho algumas coisas para te contar, e tenho a convicção de que nos vamos encontrar em Lisboa.
Era sem dúvida uma boa notícia.
- A que horas almoças, pequena?
- Vou buscar-te à uma e meia. Está bem?
- Excelente. E... só uma coisa.
- Diz...
- Traz um vestido decotado e bem justo. Quero levar comigo a melhor recordação de Tânger.
Pelo auscultador chegou-me uma risada rouca e excitante.
- Tudo o que quiseres, Frank. Apenas desejo o melhor para ti.
Logo que a conversa terminou, fui à gaveta da mesa-de-cabeceira buscar o sobrescrito com o maço volumoso de notas, que transferi para a mala, onde ficou enfiado entre a roupa interior.
Não se fosse dar o caso de ainda acabar por me esquecer...
No restaurante do terraço do Hotel Les Almohades, virado para a baía, Francesca traduzia-me de um jornal português da véspera uma notícia curiosa. Com o título arrojado “Rede internacional desmantelada no Algarve”, revelava que a Polícia Judiciária havia procedido a apreensões de droga e detenções de alguns indivíduos estrangeiros em diversas localidades do litoral sul do país. Acrescentava que a droga, que era proveniente de um país do Norte de África, “mais propriamente de Marrocos”, entrava pelo sul, onde era comercializada, por via marítima, terrestre e aérea.
Pouco mais adiantava, a não ser que o produto apreendido consistia essencialmente em haxixe e cocaína. Para mim, porém, era o suficiente. Isto é, tratava-se da confirmação das minhas suspeitas e das informações que Francesca me transmitira.
Ante os meus acenos de concordância, ela avançou, passando-me o recorte juntamente com uma nota dactilografada que calculei tratar-se da tradução:
- Parece portanto que estás na boa pista. E com mais um ou dois pormenores que esta tua amiga conseguiu apurar, não ficarás com qualquer dúvida.
Aguardei.
- Ricardo Sánchez foi tratado ao ferimento por um médico daqui e seguiu de barco para Ceuta. Presumo que daí atravessou para Espanha e a esta hora já terá entrado em Portugal.
Não me deixou interromper.
- Quanto a Ben Youssef, o meu amigo do aeroporto ficou com fortes suspeitas de que foi ele quem embarcou também no avião da manhã, com o nome de Abdalah Ibrahim.
Soltei um assobio e ela sorriu de satisfação.
- Estás contente com o meu trabalho?
Se estava! A partida para Lisboa tornara-se uma necessidade urgente.
- Adolfo González - lancei.
- Já lá ia - anunciou com um sorriso. - Adolfo González adquiriu há cerca de um mês uma casa esplêndida em Albufeira. Trata-se de um conhecido centro turístico da costa do Algarve. A propriedade está em nome de Ricardo Sánchez, mas Juanita - deitou-me um olhar trocista -, que às vezes fala de mais, anunciou anteontem à noite a um dos presentes na festa que ia lá passar uns dias. Como vês - finalizou -, tudo se vai ajustando.
- Sim - disse eu. - Quase tudo. Conseguiste saber algo de novo sobre Wong?
- Pouca coisa. Wong dedicou-se desde sempre ao tráfico de armas, com quartel-general em Singapura. Há cerca de dois anos foi residir para o Líbano, onde trabalhou como intermediário do Governo de Khadafi. Porém, quando descobriram que também fornecia Israel, puseram-no a andar. Veio então para Tânger, onde montou a fachada que sabes.
- É então legítimo supor - concluí - que, por força de circunstâncias, mudou de ramo e que trabalha agora... isto é... tem trabalhado - rectifiquei, por descargo de consciência para a organização de Singapura, mas no tráfico de droga.
- Em parte, sim - admitiu. - Porém, tratando-se de um especialista notório no tráfico de armamento, eu não teria tanta certeza de que tivesse abandonado completamente essa actividade.
- Deves ter razão - afirmei, afagando-lhe a mão. -Como sempre.
Francesca atendera o pedido que eu lhe fizera pelo telefone e esmerara-se mesmo em ultrapassá-lo. O vestido que trazia era de seda estampada e tão justo que para conseguir meter-se dentro dele não podia obviamente vestir nada por baixo. Quanto ao decote, o panorama que eu podia contemplar fazia que a baía de Tânger, que se estendia mesmo em baixo, e que a nossa vista abarcava por completo, quase passasse despercebida. A baía de Tânger, no entanto, é ampla, bela e profunda.
Desviei os olhos para o rosto dela, que se mostrava deliciado pelo prazer que a dona me proporcionava.
- Francesca - disse eu -, não te aborreças por eu voltar sempre ao mesmo, mas o facto é que tu consegues excitar um morto.
- Ora, querido - fez ela com um trejeito, ao mesmo tempo que me colocava um dedo nos lábios. - Ainda bem, meu querido. Porque tu estás vivo, muito vivo!
Depois de tudo porque passara, e Francesca nem conhecia metade da história, as três horas agitadas que consegui dormir com um cadáver ao lado não se podiam considerar um repouso satisfatório. Pestanejei duas vezes para ver se o ardor na vista se atenuava.
- Querida, se eu fosse neste momento contigo para a cama, sabes o que faria?
Acenou com convicção.
- Nada disso - confessei. - Repousava a cabeça entre esses teus seios e dormia assim doze horas seguidas.
- Oh, Frank- fez ela, com ar consternado. - Estás assim tão mal?
- Não, minha filha. Estou pior do que isso. E só tu e os dois cafés que vou pedir como sobremesa é que ainda me vão permitir aguentar até ao avião.
Decidi pôr fim às lamentações e aproveitar o tempo que faltava.
- Sempre vais ter comigo a Lisboa?
Exibiu aquele sorriso malicioso e semiprofissional que por vezes usava comigo ao falar de assuntos comuns de serviço.
- Mais uma vez andamos ambos ao mesmo, não é? - Nesta altura inclinou-se para apanhar o guardanapo e eu achei preferível virar a cara para o lado do mar.-...Mas isso, claro, depende do que tu me transmitires depois de lá estares.
- Então - esclareci - podes contar que, mesmo que não se passe nada, vou inventar uma história formidável.
- Óptimo! Cá fico à espera... -Pôs de repente um rosto sério. - E Karin?
Já esperava. Não há dúvida de que, tratando-se de relações entre homens e mulheres, até as mulheres mais inteligentes parecem mulheres normais.
- Não tem nada a ver - afirmei. -Pela parte que me diz respeito, Karin não tem nada a ver contigo e tu não tens nada a ver com ela! Tu és importante para mim em muitos aspectos e ela passou a sê-lo noutros completa-mente distintos.
- Estás apaixonado?
Sorri com brandura.
- Já me viste apaixonado, Francesca? Pensas que estou diferente do Frank que conheceste na América do Sul?
- Quanto à segunda pergunta, claro que não. Mas continuo a pensar que desta vez é grave.
Apertei-lhe a mão com carinho.
- Então não penses. Se for grave, eu aviso-te, mas até lá não tens de te preocupar. Okay?
- Está bem - murmurou, mas não parecia tranquilizada.
Um empregado veio interromper-nos com um papel numa bandeja, que me estendeu. Encarei-o intrigado, por que ainda não pedira a conta. E as contas em hotéis de luxo não se apresentam num bocado de papel de embrulho cheio de nódoas de gordura.
- Um senhor que está lá em baixo pediu para entregar isto a Mr. Gold.
- Felipe! -exclamei, mesmo antes de abrir o papel. E se a pronúncia dele era péssima, a caligrafia era pior. Dizia: “Saí da cadeia para ir levar Mr. Gold ao aeroporto. Espero cá em baixo.”
- Algum problema? - inquiriu Francesca.
- Não - informei, amachucando o papel com ar satisfeito. - Um amigo que me tem ajudado e que quer despedir-se de mim.
Aproveitei para pedir ao criado os cafés e consultei o relógio. Não me podia descuidar com as horas.
Felipe conduzia-me de volta ao hotel, onde eu ia buscar a mala. Deixámos Francesca à porta de casa, onde ela se despedira com um “até breve” que era uma certeza. Agora o meu amigo Felipe fazia-me o relato das peripécias e desgraças de que fora vítima depois que deixáramos de nos ver. Só que desta vez eu seguia sentado ao lado dele, o que diminuía o risco e a preocupação.
- E foi assim, Mr. Gold. Lá na pista deitaram-me logo a mão, meteram-me num jipe e mandaram-me para a esquadra, donde só saí há bocado. Mesmo assim - esclareceu -, foi preciso um primo meu ir falar com o chefe da polícia e pagar a fiança. Já viu isto, Mr. Gold? - E continuou com ar pesaroso: - E o que me diz de Mr. Wong morrer assim daquela maneira? Pobre Mr. Wong... Mas Felipe há-de apanhar o assassino e fritá-lo em azeite. Tão boa pessoa... morto sem ninguém esperar. E ainda por cima - comentou indignado - no quarto do senhor, a dar ainda mais preocupações e sarilhos. Que me diz a isto, Gold?
- Eu? Que quer que lhe diga, amigo? Você sabe tanto como eu... Qual era exactamente o seu trabalho para Mr. Wong?
- Oh! - fez ele largando o volante. - Pouca coisa. Transportar os amigos e clientes dele aqui e ali, ir até Casablanca ou Rabat. Mr. Wong era um homem muito rico, sabia?
Respondi-lhe que sim, e considerei para mim que fazer a Felipe perguntas sobre o assunto resultaria apenas num esforço inútil. De modo que deixei-o falar à vontade, num desfilar de manifestações solitárias e ruidosas de excitação, raiva, desgosto, fúria assassina e satisfação por estar vivo.
Só a dada altura, tirando partido de uma pausa que ele fez para respirar, inquiri casualmente:
- Já sabem alguma coisa sobre a matrícula do Mercedes?
- Portuguesa. É só o que sabemos.
- Okay, Felipe. Trate de a escrever num bocado de papel... Mas agora não! - soltei num grito.
No hotel limitei-me a mandar descer a mala, a apanhar um telex que chegara do meu jornal, em Washington, e a despedir-me de Ahmed.
- Mr. Gold, deseja que reserve o mesmo quarto? Olhei-o sem perceber.
- Felipe diz que o senhor vai voltar daqui a uns dias. Felipe meteu discretamente a cabeça entre os ombros e distraiu-se na contemplação de uma montra. Para abreviar, disse apenas:
- Não merece a pena, Ahmed. Como não sei quando regresso, o melhor é não se preocupar por enquanto, okay? E trate-me bem da Joana...
Despediu-se de mim deixando-me como recordação aquela careta horrorosa onde apenas os olhos vivos e os dentes brancos compunham uma decoração humana. Mas quando abrisse o sobrescrito com mil dólares que eu lhe metera dobrado na mão, nessa altura eu queria estar bem longe dali.
Felipe foi a despedir-se desde a porta do hotel e durante todo o trajecto até ao aeroporto. Aí chegados, queria por força esperar, não só que o avião de Casablanca chegasse mas que partisse levando-me a bordo. Consegui finalmente convencê-lo de que precisava descansar e que era perfeitamente capaz de desempenhar-me sozinho das tarefas necessárias.
Depois do abraço que lhe dei, levou o lenço sujo aos olhos, fungou duas ou três vezes, fez-me prometer que lhe daria notícias e acabou por entrar no carro com aquele ar de cachorro abandonado em noite de chuva. Só então lhe passei para a mão outro sobrescrito, dobrado, este com dois mil, contra a promessa de só o abrir na cidade. “Lembrança de Mr. Wong”, foi a explicação que forneci.
Esperei que ele arrancasse como de costume, porém desta vez fê-lo com suavidade, como se não quisesse perturbar-me. Apenas a ponta do escape, a roçar no alcatrão, estragava um pouco o efeito. Acenei-lhe mais uma vez e fui para dentro.
Ali estava eu, prestes a embarcar, na modesta sala de trânsito de uma pequena cidade simples, humana e hospitaleira, de longo passado histórico e romântico. Assim anunciavam os prospectos. Onde a vida decorre calma e o visitante pode gastar os seus ócios no contacto saudável com as gentes e o alegre comércio local. Onde o mar é azul, a montanha aprazível e a comida agradável. Porta de entrada num país exótico de um continente fantástico.
Só que não fora isso que eu encontrara. Porque nessa cidadezinha pacata vivera o maior pesadelo da minha existência, tivera relações com uma organização gigantesca de tráfico de estupefacientes, fora vítima de duas tentativas de assassínio, e uma vítima de assassínio fora abatida no meu quarto de hotel.
Nessa cidade pacata, também, conhecera a mulher mais misteriosa da minha vida.
Lisboa é a única capital que eu conheço em que o aeroporto internacional se localiza dentro da cidade.
É verdade que Hong-Kong, por absoluta falta de espaço, possui o seu bem pertinho; porém, a entrada faz-se pelo mar, e na descida do avião os naturais do país não vão à janela soltando exclamações de entusiasmo e a apontar o que eu presumia tratar-se da casa em que moravam.
A viagem fora curta e a lengalenga das hospedeiras à partida e à chegada, com a interrupção para o lanche, não me haviam permitido dormir mais do que vinte minutos. Deste modo, sobrou-me uma hora para pensar; porém, não adiantei grande coisa com isso. Factos, dispunha deles em grande quantidade. Acumulavam-se mesmo na minha cabeça de tal forma que eu já sentia alguma dificuldade em relacioná-los. Sem dúvida que Francesca fora um auxílio valioso, mas presentemente todas as esperanças de agarrar o fio da meada depositava-as no que se podia passar aqui, em Lisboa. O fio da meada, cuja ponta eu tivera nas mãos na madrugada passada e que a intervenção do estúpido Rafik me obrigara a largar outra vez.
Também, até aqui, eu trabalhara sozinho. Porque tudo se desenrolara vertiginosamente, e porque aquilo que se me deparara era muito maior do que alguma vez podia ter esperado encontrar. Só contava agora que o nosso correspondente em Madrid, para quem Francesca já devia ter telegrafado a meu pedido, fizesse um pequeno esforço e tratasse de me dar uma ajuda.
Para já, dispunha de dois contactos em Lisboa, o que constituía uma pequena contribuição do meu jornal, directamente de Washington. Tratava-se de Matt Davis, funcionário da Embaixada e correspondente de vários jornais e revistas, que trabalhara comigo em duas reportagens conjuntas - uma em Macau e outra no Brasil -, e o proprietário de um pequeno restaurante situado num bairro antigo da cidade, que, aliás, me fora em tempos falado pelo meu amigo Al Chasey, do Sun, e o qual segundo parecia, adquirira tal reputação como comprador e vendedor de informações que a própria polícia, incluindo a Interpol, recorria a ele com frequência.
Eu sabia que Lisboa não é sítio onde um estranho consiga penetrar, sobretudo sendo estrangeiro. Por isso, o facto de à partida contar com estes fulanos, e talvez a partir do dia seguinte com as informações via Madrid, me fazia sentir menos isolado.
Outro aspecto que de certo modo me confortava, embora não deixasse fazer a cabeça trabalhar sempre que pensava nisso, eram os 47 000 dólares que viajavam comigo. Se por um lado me asseguravam acesso a tudo o que pudesse custar dinheiro, por mais elevada que fosse a factura, por outro eu só esperava que ninguém aparecesse alguma vez a pedir-me contas. Problemas de consciência não me pesavam por aí além. Em primeiro lugar, eu estava a utilizar a verba precisamente para o fim que Mr. Wong o destinara. Além disso, não poderia devolvê-los mesmo que pretendesse fazê-lo.
Neste estado de espírito, nem optimista nem demasiado pessimista, apenas na expectativa, desembarquei em Lisboa. Com uma determinação muito forte, porém, no que respeitava ao meu primeiro objectivo - localizar Karin.
Matt Davis era um americano típico do estilo que sai da Universidade de Princeton formado em Direito e, depois de exercer algum tempo a advocacia, passa a trabalhar para o Governo. Como funcionário diplomático, já estivera em meia dúzia de países africanos e asiáticos. De um deles fora expulso como persona non grata por suspeitas de trabalhar para a CIA. Certa vez que lhe perguntei se era verdade respondeu-me apenas que, de uma forma ou de outra, todo o funcionário de carreira diplomática acaba por prestar serviços às agências governamentais. E não avançou mais, nem as actividades mais ou menos camufladas que Matt pudesse desenvolver me interessavam por aí além.
Matt devia andar pelos quarenta, trajava roupa com prada nos Brook Brothers de Nova Iorque e usava permanentemente óculos de lentes finas e aros pretos e grossos e a pasta castanha de crocodilo. Pessoalmente, eu estava convencido de que ele dormia com ambas as peças. Era espadaúdo e bem-falante, ao ponto de eu um dia lhe ter sugerido na brincadeira que devia candidatar-se a senador. Nessa altura olhou para mim com um ar muito sério e respondeu-me que tencionava fazê-lo daí a alguns anos.
- All right, Frank - disse ele quando lhe contei a história por alto. - Por onde tencionas começar?
Encontrávamo-nos instalados diante de uma mesinha baixa e dois copos de uísque, no vasto átrio do Hotel Tivoli, onde eu ia ficar alojado.
Encolhi os ombros.
- Imediatamente, tenciono ir dormir até logo à noite. Depois de jantar vou ensaiar o meu homem em Lisboa. Depois logo se vê. Entretanto aguardo informações do Ortega, de Madrid.
- Acho bem, Frank. - Ele falava como se estivesse a presidir a uma reunião de negócios. - Entretanto, eu ponho-me em campo para te localizar essa menina e quem a acompanha. - Fitou-me com atenção. - Podes crer que farei tudo o que puder. Para além do aspecto profissional da questão, não me esqueço do que fizeste por mim em São Paulo. Lembras-te? - E aqui teve um tipo de manifestação muito rara num sujeito como ele. Os lábios distenderam-se-lhe num sorriso suave que era o reflexo de reminiscências agradáveis. Agradáveis para ele e neste momento, porque para o safar eu metera-me numa série de sarilhos de que só a muito custo me livrei.
- Isso não foi nada, Matt - comentei com displicência. - Afinal de contas, tratava-se apenas de um bando de marginais.
- E Maria - murmurou sonhador. Mas logo voltou a si e compôs a expressão habitual. - Bem, Frank, ficamos combinados. Logo que tenha algum recado para ti, passo por cá ou telefono. Se não estiveres, deixo na recepção. - Indicou-me um dos tipos atrás do balcão. - Aquele mais alto é o Vítor. Podes confiar nele.
Bebeu o último golo de uísque e levantou-se, estendendo-me a mão.
- Felicidades, meu amigo. E, para já, trata de descansar.
Não era preciso ser ele a dizer-mo. Mal se afastou, tirei a chave do bolso e fiz pontaria para o elevador.
Já estava escuro lá fora e eu começava a sacudir as pálpebras quando bateram à porta.
- Entre - gritei, mas lembrei-me de que a deixara trancada e com o letreiro “Não Incomodar”, de modo que enfiei as calças e dirigi-me para lá.
As pancadas não cessavam, antes se tornavam mais fortes enquanto eu girava o fecho de segurança. Já a berrar “Quem é o animal...” quando, ao espreitar pela fresta, dei com os olhos no animal em questão.
- Frank, meu grande malandro! Deixas-me entrar, iu-tenho de ficar aqui fora a fazer barulho?
Escancarei a porta e ele veio abraçar-me com tanta força que me tirou o fôlego para as palavras que eu ia dizer. Logo que o aperto abrandou, pude então retribuir com alegria e pronunciar:
- Al Chasey! Como diabo...?
- Ora, menino, já te explico tudo - foi dizendo à minha frente, ao mesmo tempo que me arrastava por um braço e me fazia sentar a seu lado no sofá.
Em seguida, olhou para mim com aquele sorriso contagioso que lhe alegrava o rosto todo e perguntou-me:
- Então? Por esta não esperavas, hem?
Ia confessar-lhe não ser nada que não me tivesse passado pela cabeça. Em vez disso, dei-lhe uma palmada no ombro e quis saber, francamente interessado.
- Conta lá tudo, para eu não gastar o tempo em perguntas.
- Okay, aqui vai. - Interrompeu-se. - Não terás por aí dois cubos de gelo à mão?
Havia na geleira, que lhe indiquei. Perguntei-me para que queria o Al duas pedras de gelo se não havia bebida para acompanhar. Ele foi primeiro à casa de banho, trouxe dois copos de dentes, colocou duas pedras de gelo em cada um e deu resposta à minha interrogação abrindo a pequena pasta que trazia consigo, do interior da qual retirou uma garrafa de uísque que vinha embrulhada em papel de jornal. Serviu para ambos, engoliu um bom trago, e depois, com o cigarro aceso e entalado entre os dentes, se resolveu a prosseguir.
- Foi por Francesca que soube onde te achar.
- Por Francesca? - fiz eu.
- Claro. Cheguei a Madrid e telefonei-lhe meia hora depois de tu teres partido de Tânger. Foi só o tempo de apanhar o avião. Ouve lá-sentenciou: - Achas que eu te ia deixar a farejar sozinho um negócio deste tamanho? Amigo, tu nesta altura sabes já melhor do que eu que nós os dois não seremos de mais para enfrentar o sucesso tremendo que este êxito fenomenal nos vai trazer. - Impediu com um gesto que eu abrisse a boca.-Frank, nós viemos cair mesmo no meio da maior operação que já se desenrolou a nível mundial no mundo da droga. A maior operação de todos os tempos!
- Nós viemos cair? - consegui articular bem alto, endireitando-me no sofá. - Tu vieste cair, meu filho... Porque eu estou metido nela!
- Okay, Frank, não te exaltes - aconselhou com ar conciliador. - Claro que não vamos discutir isso. O que eu quero dizer é que posso ajudar-te. Sabes que isso sucedeu noutras alturas e o resultado foi proveitoso... Ou não foi?
O comentário final dele deve ter decorrido da cara que fiz ao recordar-me da experiência boliviana.
- Claro que houve um caso ou outro em que as coisas correram menos bem - admitiu com naturalidade. - Mas lembra-te de Macau. Porque não havemos de colaborar como fizemos lá? E nessa altura - acrescentou com esperteza - eu era quem estava metido e foste tu que caíste. Recordas-te?
Contrariado, tive de admitir que sim.
- Está bem, Al - acabei por dizer, não só por isso, mas lembrando-me do ditado “Se não podes vencê-los...”
- Que propões, exactamente?
Abriu os braços com tal vigor que o uísque do copo que segurava na mão me salpicou a cara.
- Frank, eu não proponho nada... Tu é que estás dentro do assunto, tu diriges as operações. Concordas?
Ainda um bocado desconfiado, concordei. Que diabo, não tinha outra saída. Em seguida, apressou-se a dar-me mais uma boa novidade.
- Para já, vou ficar neste hotel. Que tal?
“Al é bom tipo”, disse para mim, uma vez e mais outra, com a intenção de me mentalizar. “Al é um tipo estupendo, um profissional competente e nunca rasteirou um amigo.” Concentrei-me tanto que um praticante de Zen não conseguiria melhor. A tal ponto que quando Al inquiriu, preocupado:
“Frank, estás com dores de cabeça?”, eu retorqui com um sorriso tão gentil que ele poisou o copo e afastou-se para observar melhor.
- Claro que é para mim um prazer trabalhar de novo contigo.
- A sério, amigo? - exclamou com entusiasmo e uma palmada na mesa. - Ah, Frank, desta vez vamos rebentar com tudo!
Era esse precisamente o meu receio.
Passada a perturbação que o aparecimento dele constituíra, jantámos os dois alegremente no restaurante do terraço. As luzes nocturnas da cidade eram um convite, e lugar tranquilo e requintado e o serviço excelente. No bar contíguo, um pianista competente, que o criado, a uma pergunta minha, segredara tratar-se de um conhecido chefe de orquestra, executava melodias agradáveis. Enfin, o sítio ideal para um casal passar um serão magnífico.
Bem, Frank, disse para mim, o teu par é Al Chasey, e, se gostavas para esta noite de uma companhia explosiva, aí a tens.
Conversámos de um milhão de coisas, recordámos experiências mais ou menos recentes, e talvez porque a marca do excelente Dão que nos serviram me animou até uma quase languidez confortável, até consegui divertir-me com o relato que ele me fez da sequência final do episódio da Bolívia.
Porém, a partir de determinada altura, o velho sentido profissional do dever sobrepôs-se ao prazer da conversa amena em ambiente de luxo. Para recusar o convite de Chasey, que insistia em apresentar-me uma amiga portuguesa, acabei por lhe contar que tencionava ainda nessa noite fazer uma breve visita ao Senhor Dos Santos. Aí ele resolveu que tinha muitas saudades do seu amigo, que já não via há muito tempo. Neste ponto não transigi, de modo que o Chasey foi mesmo ter com a amiga e eu apanhei outro táxi depois que o dele se afastou.
A curta permanência de algumas horas em Lisboa revelara-me já um facto curioso - toda a gente conseguia exprimir-se em inglês. Desde o funcionário da alfândega a todos os empregados do hotel, passando pela menina da tabacaria, até ao motorista de táxi que me conduziu ao Restaurante do Senhor Dos Santos, qualquer um se manifestava melhor ou pior nessa língua. A gramática, a pronúncia e o vocabulário não haviam evidentemente sido aprendidos em Harvard ou Oxford. Porém, com tal empenho e comunicabilidade o faziam que o entendimento resultava fácil. No entanto, se eu achava que isso já era bastante, o motorista esclareceu-me que toda a gente também falava espanhol, francês e italiano. Então senti-me verdadeiramente inferiorizado.
O estabelecimento ficava no velho bairro de Alcântara, próximo do rio e num quarteirão de prédios antigos que se situavam exactamente por baixo dos acessos da ponte que liga as duas margens do Tejo. Momentos antes, quando percorríamos a ampla avenida que liga o centro a esta zona da cidade e dá também saída para a auto-estrada do Estoril, ao observar de longe o espectáculo das longas fiadas de lâmpadas que iluminam os cabos extensos dos tabuleiros, eu julgara-me por instantes a olhar um postal ilustrado de Brooklyn.
A porta estreita era encimada por uma tabuleta luminosa e colorida que dizia “Pérola de Alcântara - Casa de Pasto”. Para entrar tive de pedir licença a um grupo ruidoso que jogava aos dados numa mesa colocada no passeio defronte, mas lá dentro era pior. A televisão gritava em altos berros, a audiência era compacta, e no balcão os dois empregados não tinham mãos a medir. Alguns dos clientes olharam-me desconfiados, mas logo voltaram às suas ocupações. Por sobre o barulho consegui perguntar pelo patrão a um empregado que aviava canecas de cerveja. Ele apontou para baixo, e foi toda a atenção que me deu.
Decidi-me a descer pelas escadas de pedra que deviam conduzir à cave. Fui enfiar directamente nos lavabos, onde um tipo urinava a assobiar. Dei meia volta, desci mais um lanço e alcancei a sala de baixo, que devia ser o restaurante. Era ampla, asseada e muito menos barulhenta. Pela única razão de que apenas uma das mesas estava ocupada. Tratava-se de um casal que discutia acaloradamente enquanto comia. Porém, logo que a mulher deu por mim, fez sinal ao companheiro. E logo que ele se voltou, e me viu, levantou-se prontamente e veio ao meu encontro limpando as mãos a uma toalha. Era baixo, entroncado, de barriga proeminente envolvida num avental com bonecos, o cabelo era negro, a formar grandes entradas, penteado com risco ao meio e bem acamado com fixador. O rosto era daqueles que só exibem os tipos que já viram tudo; nesse momento, porém, abria-se num sorriso agradável e franco de boas-vindas.
- Mr. Gold? Muito prazer em recebê-lo. Eu sou Mister António dos Santos.
E sem me dar tempo a cumprimentar, puxou da algibeira da camisa um cartão-de-visita que me obrigou a ler antes de mo entregar. Proclamava o seguinte: António Bernardo Mayer Horácio dos Santos - Indústrias hoteleiras. O ramo de actividade vinha anunciado igualmente em espanhol, francês e inglês. Seguia-se a adress, que finalizava com Lisboa, Portugal e os números de telefone da residência, do restaurante e, ao que suponho, do escritório. Deveras impressionante. Segurei o diploma, o qual já vinha dobrado no canto superior direito, entre as pontas do indicador e do polegar, e introduzi-o com precaução no bolso onde trago a carteira.
- Mr. Chasey telefonou-me há questão de um minuto - informou com ar de public-relations, enquanto me convidava cerimoniosamente a sentar.
Sem dúvida que também o Senhor António dos Santos falava inglês, porém de uma forma muito fluente e cuidada.
Ocupou o lugar defronte de mim e perguntou-me o que queria tomar. Escolhi uma aguardente velha, que ele próprio se apressou a servir de uma prateleira próxima, muito bem fornecida ao que pude apreciar. A dose que me despejou no enorme balão era sem dúvida abundante, porém não tanto como a que abonou a si próprio.
- Excelente, não é verdade? -elogiou, ainda eu não tinha levado o cálice à boca.
Apressei-me a confirmar e dispus-me a entrar no assunto que me trouxera ali. Não foi fácil, pois o Senhor Dos Santos não ficou descansado enquanto eu não reconheci que Lisboa era a cidade mais linda do mundo, embora mal tivesse acabado de chegar.
- Sim, meu amigo. Lisboa é sem dúvida uma verdadeira maravilha, a bela capital de um país com oitocentos anos de história.
Cheguei a recear que o meu anfitrião resolvesse enveredar pela história de Portugal. Todavia, a sua versatilidade notável.
- Sei que esteve com o meu querido amigo Eduardo de Castro, nosso cônsul em Tânger. Excelente homem, não é verdade?
Não me preocupei sequer em perguntar-lhe como diabo ele tinha conhecimento do episódio. Também não tive tempo para isso.
- Falaram-me de Washington - carregou na última sílaba, que pareceu saborear -e de Tânger. Tem consigo a matrícula?
Logo de repente não compreendi onde queria chegar. Ou a minha cabeça estava cansada ou o Senhor Santos era rápido de mais.
- Claro - respondi. - E apresentei-lhe um bocado de papel amarrotado que Felipe me entregara.
- Hum -fez ele, mal a olhou.-Esta chapa é falsa. Foi roubada o mês passado.
- Ah! - disse eu.
- Pois... O carro era um Mercedes 180-D preto. Correcto?
- Sim, Mr. Santos.
- Bom. Deve tratar-se de um antigo táxi, dos quais umas dezenas ainda circulam para aí. Certamente foi vendido para sucata e aproveitado por alguém. - E concluiu: - Eu vou saber quem é esse alguém.
- Muito bem - apoiei, com respeito aumentado.
- Quanto ao outro assunto - prosseguiu -, Mr. Matt Davis é a pessoa indicada para obter a informação que lhe interessa. Eu só intervirei se for caso disso.
O “outro assunto” era certamente a localização do paradeiro do gang de Tânger.
- Em relação ao que se está a passar no Algarve -e terminou o cálice de uma assentada -, não estou dentro do assunto. Posso tentar averiguar o que se passa, mas desde já lhe digo com toda a franqueza que seria caro e difícil. Contudo -fez uma pausa -, esse é um local e um ambiente em que o senhor se poderá movimentar sem dar nas vistas. E, pelo que sei -concluiu com um sorriso elogioso-, Mr. Gold é um profissional muito qualificado.
Limpou a boca com o guardanapo que tinha ao colo e voltou a encher o balão. Pedi-lhe que não completasse o meu, como era sua intenção.
- Senhor Santos -, avancei, aproveitando o intervalo. -Julgo que está informado de que eu ando atrás de um assassino que matou um tipo no meu quarto de hotel.
Ele parecia não ouvir, entretido a seguir duas moscas que andavam em torno da lâmpada fluorescente do tecto.
- Além disso, meti o nariz nos negócios de uma organização poderosa com a qual já tinha travado conhecimento na América do Sul. Esses senhores parece estarem agora assentar bases em Tânger, associados a uma organização local. Lá em baixo quiseram matar-me.
Santos voltou a encher calmamente o seu copo.
- Entretanto – continuei - vem a público uma notícia sobre o contrabando de droga no Algarve, a partir de Marrocos. Aparentemente, tratava-se de mais uma quadrilha que só por ser rotulada de “internacional” chama atenção das pessoas. A polícia faz o que pode, deita a mão a meia dúzia de traficantes, mas aos outros, os verdadeira mente importantes, não consegue nunca chegar. Por uma razão muito simples - a cadeia é interrompida antes dos que não se mostram, e continuam a viver tranquilamente em castelos nos seus países, onde frequentemente são personalidades economicamente influentes. Nalguns casos estão identificados por aquilo que são, mas gozam de protecção oficial. É o que acontece na Bolívia e na Malásia, por exemplo.
Suspendi o desabafo. Durante a última parte. Santo escutara-me com os olhos fixos no meu rosto e agora servia-me meio copo com um sorriso quase afectuoso. Desta vez não objectei.
- Gostava de ir à Malásia - disse ele.-Por causa de livros do Salgari.
- Onde eu pretendo chegar, Mr. Santos, é que em certas alturas conseguimos penetrar onde a polícia não tem acesso. Isto porque, embora não beneficiando dos poderes e dos meios de que os policiais dispõem, não têm em compensação, muitas das limitações que travam constantemente uma investigação de envergadura.
Neste ponto resolvi concluir.
- É claro que por vezes as coisas não correm bem. Aconteceu-me em mais do que um lugar, e algumas delas porque a polícia desajudou. Vamos ver o que sucede aqui.
O recado estava dado. Santos expôs com brevidade e cautela o seu ponto de vista.
- No seu caso, eu teria muito cuidado, Mr. Gold. A polícia portuguesa trabalha bem, é compreensiva no que se “refere à colaboração dos repórteres, mas, como qualquer polícia do mundo, não gosta que lhe pisem os calos. Sobretudo, procure não dar nas vistas. Se precisar de recorrer a certos processos... menos dentro da margem da lei, é preferível que me diga, e eu mando-lhe um ou dois rapazes. Estou a fazer-lhe um oferecimento que não está nos meus hábitos - esclareceu. - Mas pelo que contaram a seu respeito, e agora que o conheço, fica a saber que tem aqui um amigo.
Ergueu o cálice e brindou. Eu correspondi, e tinha razões para fazê-lo. Ter em Mr. Santos um amigo era meio caminho andado.
Vi as horas. Nem tarde nem cedo para aquilo que o corpo e o espírito vinham exigindo havia muitas e longas horas.
- Poderá mandar chamar um táxi?-pedi ao subir a escada.
- Não é necessário - informou. - Tenho à porta um carro que fica à sua disposição. Um Mercedes com caixa automática. Foi o melhor que pude arranjar - desculpou-se.
- Pensámos, antes de vir procurá-lo, que Mr. Gold estaria mais... receptivo a colaborar connosco - disse o da esquerda com suavidade.
- Claro que não podemos forçá-lo - pronunciou o outro no mesmo tom, expelindo uma delicada nuvem de fumo do cigarro longo que lhe saía de entre os dedos esticados.
- Mas o facto, Mr. Gold, é que, como deve compreender, não podemos por outro lado deixar ficar o assunto assim - volveu o primeiro, que além de ter muito menos cabelo que o companheiro também não usava pestanas.
- Muito embaraçoso, na realidade... Muito embaraçoso - comentou aquele displicentemente.
Eram ambos pequeninos, corteses, impecáveis e amarelos. Exceptuando o pormenor do cabelo e das pestanas eram a cópia um do outro. Perguntei-me se o mais favorecido não usaria capachinho. Trajavam camisa azul-clara gravata azul-escura, fato cinzento de alpaca, peúgas pretas e sapatos pretos com pequenas fivelas douradas.
- Acresce, Mr. Gold - prosseguiu o primeiro, de dedos entrelaçados -, que, se nos prestasse esse pequeno... favor lhe ficaríamos muito gratos.
- E nós sabemos manifestar gratidão - disse o parceiro com os olhos semicerrados. - Pode crer que passaria a dispor de nós, em qualquer altura, local e circunstância.
Tratava-se sem dúvida de uma duplicação. Brinquei com a ideia de saber qual deles seria o original, ou se teriam sido fabricados em série.
O da minha esquerda continuou:
- Conforme já tivemos a preocupação de explicar, o nosso problema reside no facto de não se tornar conveniente agirmos neste país.
A minha cabeça girou mecanicamente para o outro lado, embora a voz daí só tivesse começado a sair três Segundos mais tarde.
- Enquanto o senhor, Mr. Gold, tem aqui os seus contactos e razões especiais para esclarecer o que nos Interessa. E acreditamos que tenciona fazê-lo.
Troquei as pernas, porque a de baixo estava a ficar dormente. Decidi também pedir outro café. Falou aquele que devia falar:
- Afinal, Mr. Gold, que tenciona fazer quando o localizar? Entregá-lo à polícia?
Abri a boca, mais para não perder o hábito do que por vontade de responder.
- Exactamente.
Um sorriso divertido apareceu primeiro no rosto do que eu decidira que usava capachinho. Com uma simples deslocação lateral dos olhos, pude constatar por simples curiosidade que o outro fazia o mesmo. Então resolvi que não valia a pena rodar a cabeça. Bastava olhar em frente e usar a vista.
- Perdoe-me a expressão, Mr. Gold, mas isso não faz sentido...
- Entregar à polícia o homem que procuramos só lhe traria complicações... e nenhuma compensação.
- Ora vamos, Mr. Gold. Não pretenda convencer-nos de que é sua intenção arranjar mais problemas, seja com a polícia de Tânger ou com a de Lisboa.
Enfrentei um de cada vez. Eles acompanharam com respeito o meu silêncio. Até que eu o quebrei.
- Vai outro cafezinho, cavalheiros?
Encararam-se com ar triste, mas logo recuperaram, e anuíram à proposta.
Aguardámos todos calados que o empregado trouxesse os cafés. Engoli o meu com sofreguidão, acendi um cigarro e já ia quase a meio ainda eles bebericavam, a mão esquerda a sustentar o pires e a direita, com o dedo mínimo espetado, a segurar a chávena pela parte inferior com o mesmo cuidado com que agarrariam uma bolinha de sabão.
Aguardei que poisassem os apetrechos, passassem os guardanapos pelos lábios, e soltei uma pergunta.
- E se eu fizer isso que me propõem, posso contar com o vosso apoio em Marrocos?
Foi como se os rostos deles se transformassem em balõezinhos iluminados.
- Oh, sim, Mr. Gold. E não apenas em Marrocos. Se descobrir para nós quem matou o venerável Wong - fez uma pausa recolhida -, será credor da nossa eterna gratidão.
E o outro rematou:
- E os 47 000 dólares serão seus. Fitei-o.
- Não acham que é muito dinheiro só por esse trabalho?
- Oh, de modo nenhum - foi a resposta. - Porque a partir daí cremos poder esclarecer tudo o resto e continuar os sonhos de Mr. Wong.
Afinal, pensei, o que eles pretendiam era que fosse eu a “esclarecer” tudo, isto é, no que lhes interessava, afastar da competição, neste lado do Atlântico, a organização de Afonso González. Isso para eles valia 47 000 dólares.
- Não acham que estão a sobrestimar as minhas capacidades? - lancei, fazendo de conta que aquilo que eu pensava saíra da boca deles.
Não se perturbaram nem fizeram qualquer esforço para negar as intenções que eu lhes atribuía.
- Nós daremos toda a colaboração possível, Mr. Gold.
- Ainda bem - foi só o que eu disse, e não sei se perceberam a ironia.
Compreenderam, no entanto, que era o fim da conversa. Levantaram-se ao mesmo tempo, fizeram uma vénia conjunta, agarraram nas pastas iguais, apertaram-me a mão e retiraram-se.
Orientaizinhos engraçados, murmurei para dentro. Não desejaria porém cair-lhes nas mãos.
Aquela conversa simpática decorrera no bar do terraço onde cerca das dez eu tomava o meu café matinal. Eles tinham-se feito anunciar pelo telefone, “da parte de Mr. Wong”. Claro que isso me fizera entornar uma parte do conteúdo da chávena. No entanto, dado a delicadeza do assunto, havia que reconhecer que a troca de impressões não correra mal.
Fora este episódio eu acordara muito bem disposto após nove horas de sono pesado. Na véspera, o meu amigo Senhor Santos mandara um empregado conduzir-me ao hotel no reluzente Mercedes metalizado, que ficara estacionado no parque das traseiras. E antes de me deixar cair na cama eu só fizera mais uma diligência: introduzir por debaixo da porta do quarto de Al Chasey um papel em que o ameaçava de morte se ele se atrevesse a aparecer-me antes de almoço. Fora provavelmente uma preocupação necessária.
A vida nocturna em Lisboa começa e acaba tarde, e a esta hora o meu sócio ainda devia ir no primeiro sono.
Agora o sol entrava pelos vidros altos, incidindo nas garrafas poisadas no balcão onde eu me fora empoleirar e até onde a minha vista alcançava o Senhor Santos tinha razão: quanto à paisagem, Lisboa é uma linda cidade. Veríamos o resto depois.
Saboreei o prazer desta pausa necessária. Pensei em Karin, rememorei todos os pedacinhos vividos com ela. Os maus e os bons. Tudo se passara em vinte e quatro horas, mas não fora um sonho. E agora ali estava eu, como um estudante no café, a sentir-me percorrer por impressões tão agradáveis que poucas vezes na vida se conseguem experimentar.
Hei-de encontrá-la hoje, repetia, e essa ideia tornara-se numa obsessão. Longe de me inquietar, perturbava-me apenas pela necessidade imperiosa, física, de recuperá-la hoje mesmo. E a vontade era tão forte que uma ou outra dúvida era logo ultrapassada. Eu precisava de Karin, pressentia que ela precisava de mim, encontrava-se em Lisboa e eu ia buscá-la. Tão certo como isso. Vi as horas e olhei para o telefone. Hesitei em ligar para Matt Davis. Adiei a decisão. Ele ficara de falar para mim logo que tivesse qualquer informação para me dar. Eram onze horas e eu ia esperar até ao meio-dia. Na recepção sabiam onde eu estava.
Para ultrapassar a impaciência pus-me a conversar com o empregado, que limpava uma fila de copos atrás do balcão.
Às onze e meia chegou o telex de Madrid. Trezentas palavras para me dizerem o que eu já sabia. A única novidade era um recado do meu director, a recomendar-me moderação, e, a finalizar, duas linhas de encorajamento do chefe de secção estrangeira, Frank McGovern, a felicitar-me pela contribuição para o sucesso na operação de captura dos traficantes de Tânger. Mandei-o para o diabo, rezei-lhe pela saúde para que não se lembrasse de publicar aquela tolice, e mandei para o diabo também a informação ridícula de que o meu crédito era agora de 2725 dólares. Que fossem todos passear. Eu havia de ir para diante, e o meu crédito actual era de 49 725 dólares. Sorri deliciado. O empregado olhou-me com curiosidade e perguntou se eu queria uma bebida. Respondi-lhe que ainda era cedo pus-me a contemplar discretamente as formas da garota loura que fora sentar-se num sofá próximo da varanda, e receber no belo rosto bronzeado e nas longas pernas douradas o esplêndido sol da manhã.
Às onze e quarenta e cinco o telefone do balcão tocou para mim, mas foi o empregado que atendeu, porque o outro lado não falava inglês. Era da parte do Senhor Santos, a informar que um dos rapazes dele vinha a caminho com a informação que eu já sabia. Tomei nota, puxei de outro cigarro e virei a cabeça para a varanda, a garota endereçou-me um sorriso. Eu estava a funcionar noutra frequência, por isso só lhe correspondi uns segundos depois.
Passados dez minutos, a campainha do aparelho deu sinal outra vez. Tinha de ser Matt, - O Senhor Davis, para Mr. Gold. Saquei o auscultador das mãos do criado.
- Matt? Então?
- Calma, Frank. - A voz pausada dele quase me deixou irritado. - Só não te telefonei mais cedo porque quis aguardar a confirmação.
- Encontraste-os?
- Claro.-E adiantou só: -Sei onde se encontram.
- Diz lá!
- Ouve, Frank, eu de qualquer modo tenho de passar por aí para te explicar uns detalhes.
- Então vem já. É aqui perto?
- A trinta quilómetros. Agora não te digo mais nada. Até já.
Desligou, e eu fiquei feito pateta a olhar para o bocal, ver se saía mais alguma coisa. Por fim, entreguei o auscultador ao empregado, que achou por bem perguntar-me se eu queria um uísque. Anuí prontamente.
A tensão da espera foi gradualmente diminuindo. Agora sim, estava a andar para diante outra vez. Não que aprecie particularmente a acção ininterrupta. Acção violenta, quero dizer. Só que desde a partida de Tânger eu vinha sentindo como se algo -uma sequência decisiva- se tivesse quebrado a meio. Ansiava retomá-la, e uma coisa já conseguira - apanhar novamente o comboio. Era só prosseguir a viagem.
A loira veio sentar-se a dois bancos do meu e encomendou um martini. Em seguida voltou-se ligeiramente para mim. Compreendi que me pedia lume. Os olhos azuis perscrutaram-me através das pestanas e por sobre a chama do isqueiro que lhe estendi e a forma como a boquinha oval envolveu o cigarro era pelo menos erótica.
- Frank, meu velho, e eu que te julgava a trabalhar para nós dois!
Após ter-se instalado no lugar disponível e cumprimentando amavelmente à esquerda, Al Chasey indagou que marca eu estava a beber e mandou servir um igual para si.
- Interrompi? - inquiriu com um sorriso descarado, piscando-me o olho.
O baixar de uma das pálpebras pode provocar em nós reacções bem distintas.
Apeteceu-me muito selar-lhe a outra com um murro bem assente. Em vez disso, e para lhe apagar o sorriso, fui ao que interessava.
- Se queres saber, o Matt vem aí. Além disso, vem aí também um rapaz com um recado do nosso amigo Santos. E já passaram por cá Mr. Kim e Mr. Su, dois sujeitos simpáticos, a informarem-se sobre a minha saúde. Como vês -concluí -, sou muito solicitado.
Se o que eu pretendera era captar-lhe a atenção, o facto de ele se esquecer da loira atestava o resultado. A boneca, sentindo-se ignorada, concentrou-se no martini.
Chasey obrigou-me a fazer-lhe um relato sucinto da diligência da véspera, mas no que se referia aos visitantes da manhã pintei-lhe apenas uma aguarela. Em tudo o que respeitava a Mr. Wong eu era muito sensível. Al só levou o copo à boca quando lhe garanti que não havia mais nada.
Nesse momento assomou um tipo à entrada. Era mulato, vestia simplesmente camisa e calças e obviamente procurava alguém. Fiz-lhe sinal donde estava. Logo que se aproximou, agarrei-o por um braço, sustive o meu sócio com o outro e conduzi o mensageiro para um canto da sala.
Articulou umas palavras de que eu só percebi “Senhor Santos”, estudou-me atentamente com o rosto esperto e mesmo depois de me identificar, ainda me observou uns segundos para ver se conferia. Satisfeito com o resultado, desentalou dos cós das calças um papel dobrado que repassou para a mão. Eu estendi-lhe uma nota, ele recusou e deu meia volta.
Do balcão, Al Chasey observava-me com um pé no chão.
Li rapidamente o recado, redigido numa caligrafia bem desenhada:
Caro amigo.
A pessoa que procura é um espanhol, chama-si António Fernández, é conhecido por “Toni” e mora na Travessa do Fala-Só, nº 83, num quarto independente ao cimo das escadas. A melhor altura para o encontrar é à noite, a partir das onze. E preferia que me deixasse mandar tratar do assunto. De qualquer modo, aconselho-o a não ir sozinho. Mr. Chasey será uma boa companhia. A pessoa em questão costuma andar prevenida. Não fala inglês Sempre às suas ordens.
A.S.
Sorri. Impossível exigir mais. E o malandro do Al estava com sorte. Regressei ao balcão e só não lhe entreguei o papel porque ele mo arrancou das mãos.
- Vamos lá esta noite? - quis confirmar, ansioso.
- Claro, parceiro. Mas agora são horas de almoço. E aí vem o Matt!
Qualquer observador, ao ver-me saltar para o chão constataria que se havia ali alguém ansioso era eu.
Matt colocou a pasta em cima da mesinha em torno da qual nos sentáramos, e tanto eu como Chasey ficámos a olhar para ela, à espera do que ia sair. Afinal, Matt falou, sem tocar sequer na maleta.
- Montaram o quartel-general em Sintra, numa casa que pertence a um milionário português.
- Ela está lá, Matt?
- Ben Youssef, a rapariga, Abdul Ahrman, o pessoal de casa e cinco guardas, dois que trouxeram de Tânger e três portugueses. Adolfo González, a mulher, a filha e Ricardo Sanchez partiram esta manhã para Albufeira no avião de González.
Matt falava como era seu hábito, sem emoção, como se Apresentasse um relatório. Bem vistas as coisas, era exactamente isso.
- Precisamos de pormenores - disse Al.
Tenho aqui uma planta do sítio. Depois de almoço vamos até ao quarto de Frank. Mas ficam desde já a saber uma coisa: actuam por vossa conta e risco. - Indicou Chasey. - Ele está metido nisto?
Foi o visado quem esclareceu, quase com indignação: -Claro que estou metido nisto! Mesmo que não fosse do meu interesse, Frank é meu amigo, não é? E, além disso -teve de acrescentar -, quando se trata de salvar donzelas em perigo, Al Chasey nunca faltou à chamada.
- Nesse caso - declarou Matt -, vamos todos almoçar.
“Nesse caso” porquê, perguntei-me, mas fui atrás deles.
O almoço decorreu ali mesmo, no restaurante contíguo, onde eu já jantara na véspera. Embora o local se achasse menos tranquilo do que à noite, e a luz forte que inundava a sala, vinda de fora, lhe conferisse outro ambiente, havia em contrapartida o panorama da cidade. O casario subia irregularmente pela colina até ao castelo, e para baixo, à nossa direita, prolongava-se em formas geométricas de telhados vermelhos em direcção ao estuário do Tejo. Diante de todo esse espectáculo deslumbrante de luz e de cor desejei ainda mais ter Karin ali a meu lado.
- O González vai pagar-mas - declarava Al Chasey com convicção. - Depois de eu lhe pôr as mãos em cima, pouca coisa vai sobrar para a polícia.
- Nada de parvoíces, Chasey - aconselhou Matt, servindo-se do vinho que restava na segunda garrafa. - Por acaso, não anda em Lisboa com armas, pois não?
- Não - assegurou Al, e falava verdade, porque a pistola que arranjara na véspera tinha-a escondida no quarto.
- Ainda bem - suspirou Matt.- Não nos metam em sarilhos. Posso também confiar em si, não é verdade, Frank?
O incidente de Marrocos, do qual já recebera certamente o relatório circunstanciado, não o deixara, pelos vistos, muito descansado.
- Portem-se bem - disse ele como se estivesse a fazer recomendações a dois meninos mal comportados. - Mas tenham cuidado convosco.
- Tens de casar - disse Al.
- Ora essa, porquê?
- E teres filhos, Matt. Uma mulher, casa e três filhos. É isso que tu precisas, Matt.
- Ora, Al -fez Matt, comovido com tanta ternura.- Já não tenho idade. Mas que ideia foi essa agora?
- Precisas de uma família para chatear, Matt -foi a resposta.
Eu levei o guardanapo à boca e anunciei que precisava de um café.
- Vou até lá dar uma vista de olhos - anunciou o meu companheiro.
Matt Davis já se fora, deixando-nos a apreciar os elementos que nos tinha entregue. A planta, que era um esboço bem desenhado com todas as indicações necessárias escritas a lápis, achava-se desdobrada em cima da cama. O desvio que conduzia da estrada principal, por entre as árvores, ao portão da quinta, a localização da casa e respectivos acessos, a disposição das veredas e da vegetação no jardim e no vasto parque que a cercava, tudo se encontrava devidamente assinalado. À parte figurava uma planta do próprio edifício e dos anexos.
- Okay, leva o carro. - Passei-lhe as chaves. - Conhecem o caminho?
- Já passei umas férias em Sintra - retorquiu.-Esplêndidas, por sinal.
- Pois sim, Al. Esquece agora essa parte e recorda apenas o que nos puder servir. Eu vou estender-me um bocado. Acorda-me quando chegares.
- É bom ter um sócio, não é? -gracejou.- A que hora:-é o Toni?
- Às onze - recordei-lhe.
- Dá tempo para jantarmos todos fora. Acabei de dobrar o mapa, que lhe passei para as mãos.
- Quem são todos, Al?
- Ora... nós dois, a Helena e a...
Fui dizendo enquanto abria a cama:
- Tira isso da ideia, menino. Já temos programa para hoje.
- Podemos cear... - alvitrou. Encarei-o.
- Também não. Depois de conversar com o Toni vamos a Sintra.
- Esta noite?
- Claro. - Baixei a persiana. - Ou queres ir lá de dia?
Encolheu os ombros.
- Bem... desta vez quem manda és tu.
- Foi isso que combinámos. Preparou-se para sair. Já da porta, atirou:
Dá para tomarmos o pequeno-almoço... Ou também não?
A almofada já não o atingiu.
Parámos o carro onde Al indicou, perto de um fontanário, num largo espaço calcetado onde estacionavam outros carros com aspecto de abandonados. Como era esse todo o aspecto do sítio, desde os dois candeeiros espetados em cada canto aos prédios tristes e apagados. Só uma taberna com três fregueses dava alguma vida ao local. Para além disso, luz mortiça numa janela e um ou outro carro a passar lá em baixo.
Meti atrás dele pela calçada que abria numa das esquinas do largo e depois pelo ziguezague das vielas sombrias, onde a espaços regulares, em andares térreos de janelas abertas, alguém via televisão com as luzes apagadas. Espectáculo estranho, este, de um bocado de cidade onde a luz e a vida da noite eram pedaços de écran a projectar a sua luminosidade azulada para gente no escuro, e os sons se repetiam de uma qualquer peça de teatro que era a mesma em todas as casas.
A dada altura detive-me junto de um vão para acender um cigarro e perguntei a Al se sabia onde estava. Respondeu-me que conhecia Lisboa tão bem como Hong Kong ou Xangai, e eu fiquei preocupado porque, que eu soubesse, o meu amigo nunca estivera em Xangai.
O certo é que a meio do cigarro deteve-me com um gesto e segredou:
- Deve ser aqui.
Que ele tivesse deixado o carro ao fundo, decidira, apesar de tudo, aceitar. Mesmo tendo um táxi passado ha momentos por nós. Agora que falasse num murmúrio, quando os barulhos do interior das casas, naquela rua, atingiam um volume notável, isso não entendia.
- Nunca estiveste em Lisboa, Frank - antecipou-se ele.- Se percebem que somos estrangeiros, vem toda a gente à janela.
Pensei para mim que como naturais de lá do bairro é não era provável que pudéssemos passar, mas nessa altura já Al Chasey, depois de se ter certificado do nome da rua numa placa da esquina próxima, me puxava para o interior do prédio.
E Só a entrada era quase sinistra, luz não havia. A claridade da rua deixava apenas distinguir os primeiros degraus de madeira velha de um lúgubre lanço de escadas.
pelas frestas da porta empenada que dava para o vão, à nossa esquerda, escoava-se um pouco de luz. Do interior chegava-nos o som dos diálogos da tal peça de teatro. Al pôs-se a ranger os degraus e eu deitei a ponta do cigarro para o passeio e pus-me a subir com cautela. Sempre arrumado à parede, a tactear com as mãos a caliça a despegar-se e com os pés as tábuas, que davam de si.
No patamar do primeiro piso Al parou e disse:
- Já falta pouco.
Eu não disse nada e passei adiante. Se havia que chegar ao topo, quanto mais depressa melhor. Nos dois pisos por que transitámos o ambiente era o mesmo. Aquela luz azulada a filtrar-se pelas fendas das portas e as vozes dos actores da peça. Ou os Portugueses eram doidos por teatro, ou não tinham por onde escolher.
Até que alcançámos o último. Aí a luz do exterior entrava pela clarabóia partida, o que permitia ao menos distinguir onde era a porta.
Porque aqui não havia televisão a funcionar.
Para o patamar abriam-se duas portas. Uma delas tinha um ralo e a outra não. Al indicou a segunda e bateu com os nós dos dedos. Só à terceira série de batidas é que nos respondeu um arrastar de passos lá dentro, e logo uma voz perguntou algo, mesmo encostada à madeira. Al falou em francês.
- É da parte de um amigo, Toni. Ou preferes que traga a polícia?
Em relações públicas não há como Al Chasey. O facto é que a porta se entreabriu. Ia voltar a fechar-se logo em seguida, mas encontrou o pé de Al, e a mão dele avançou pelo intervalo, direita a algo lá dentro, e todo o corpo arremeteu com força, desaparecendo no escuro por cima de um ruído de mobília a tombar no chão e loiça a partir-se. Quando dei por mim estava à procura da luz, e ao ligar o interruptor que fez funcionar a lâmpada fraca do tecto o que os meus olhos viram foi o suficiente para fechar logo a porta com o pé. Havia no quarto miserável uma cama desfeita. Ao lado era uma mesa, com o que restava de uma jarra de loiça a escorrer água para o chão. Das duas cadeiras viradas, uma delas estava partida. Junto de um dos pedaços, caída sobre o caule de uma flor de plástico, jazia uma pistola 6,35. A dois passos da arma havia umas biqueiras de uns chinelos velhos de quarto que subiam por umas calças de pijama listradas, um tronco magro e peludo e um rosto que não era agradável de ver. Não devia ser em circunstâncias normais, mas assim, com a boca aberta e os olhos aterrorizados a saírem das órbitas era uma imagem medonha. As mãos fortes de Al Chasey agarradas ao pescoço dele, mantinham-lhe a nuca de encontro à parede.
- Frank, este é o Toni.
Al falava pausadamente em francês.
- Vamos sentar e conversar um bocado.
Aliviou a pressão da garganta do sujeito, que abriu ainda mais a boca como se quisesse aspirar todo o ar que havia no quarto. E ali permaneceu, lívido e estático, a mover apenas os olhos raiados como se fossem dois peixes num aquário.
Eu fui endireitando uma cadeira, mas mesmo assim alguém teria de se sentar na cama. Al decidiu que esse era o lugar do proprietário da casa, porque o arrastou por uma orelha e o atirou para lá. Depois cada um de nós ocupou a sua cadeira, ambos virados para ele e com as pernas a roçar o colchão.
- Okay, Toni. Chega de conversa fiada.
O outro olhou-o com espanto e ia dizer qualquer coisa enquanto se endireitava. Al dissuadiu-o com uma estalada que o atirou de novo aos lençóis. Um dos chinelos foi parar debaixo da mesa, na poça de água.
- Só respondes ao que eu perguntar. Percebeste?
O tipo conseguiu fazer que sim, mesmo na posição em que estava.
- Bom. Quem é que te pagou a viagem a Tânger?
- Romero. - O som saiu entre rouco e rachado.
- Que é isso, Romero?
- Um... amigo.
Al virou-se para mim.
- Frank, ele diz que é um amigo... Muito bem, Toni- continuou. - E o que faz esse amigo?
- Faz... contrabando.
- Fala mais alto, Toni. Faz o quê -...contrabando.
Al bateu o pé no chão com impaciência.
- Põe-te como deve de ser e explica-te bem. Contrabando de quê?
Toni passou a língua amarela pelos lábios secos.
- Uísque, tabaco... relógios.
- É um bom negócio, Toni. E que mais?
O tipo franziu a testa, como se não percebesse.
- Mais.
Desta vez a pancada foi menos espectacular mas mais forte, com as costas da mão, e a boca dele começou a sangrar. Al não lhe deu muito tempo para se recompor.
- No hotel de Tânger mataste um homem.
Aqui, o fulano reagiu como se tivesse levado uma descarga eléctrica, porque saltou no colchão e voltou a cair. O rosto transtornado era agora uma máscara de terror. Pôs-se a gemer.
- Não fui eu... Não fui eu...
- Diz que não foi ele, Frank - falou Al para mim, com ar desconsolado.
- Não fui eu-repetia o sujeito, já monocórdico e com a voz a sumir-se.
- Okay, não foste tu. Então quem foi? E o carro também não é teu?
- Foi Romero - soltou ele rapidamente com toda a energia que lhe restava. -O carro é meu. Eu só o levei até lá...
Resolvi intervir.
- É verdade, Al. Não corresponde à descrição. Este só levou o carro. Pergunta-lhe onde pára esse Romero.
O meu companheiro fez o que lhe pedi. A resposta tardou o tempo suficiente para outra estalada e uma palmada no ouvido que fez o Toni deitar saliva pelo canto da boca e ficar agarrado à cabeça.
- Em... Albufeira.
Al olhou para mim. Fiz-lhe sinal que chegava. Ele levantou-se e empurrou a cadeira para trás. Eu fiz o mesmo. Ele falou para o espanhol e despediu-se com qualquer coisa como:
- Por hoje, amigo, vamos andando. E se fosse a ti não avisava o camarada Romero. Porque se fizeres isso, nós dizemos-lhe quem falou dele.
Acrescentou mais duas frases que eu não percebi e dirigimo-nos para a saída. No caminho apanhei a arma do chão, embrulhei-a no lenço e enfiei-a no bolso.
Achei que não valia a pena fechar a porta atrás de mim. Desci a escada depressa e fui apanhar Al já na rua, a inspirar profundamente o ar fresco da noite. A receita serviu para mim.
Antes de começarmos a descer a calçada, ele proferiu com ar cansado:
- Puta de vida esta...
Viemos calados durante quase todo o percurso. Quando eu estava à espera de ver a tabuleta que indicava a entrada da vila, Al Chasey virou o volante para a direita e os faróis iluminaram uma estreita vereda e os troncos das árvores através das quais ela se sumia.
- É por aqui? -perguntei.
- Não.- Parou o Mercedes e desligou o motor. - É do outro lado da estrada. Mas não queres estacionar à porta, pois não?
Encolhi os ombros. Ele é que reconhecera o lugar. E pela descrição que me fizera à hora de jantar, as coisas não iam ser fáceis. Os problemas começariam quando saltássemos o muro, pelo lado oeste, para tentar a garagem, onde Al esperava só encontrar um dos guardas. “A aproximação do muro, e contorná-lo, não oferece dificuldades”, explicara. “Há árvores por todo o lado de fora e uma vereda que contorna a propriedade pelo exterior. O cabo dos trabalhos vai ser, lá dentro, aproximarmo-nos da casa sem sermos detectados. Pelo sítio que eu penso, estaremos a uns cem metros do lado oeste do edifício principal. Um pouco recuada fica a garagem. Temos cinquenta metros a percorrer em campo aberto. A partir daí é uma questão de sorte.Era assim. Essa descrição que ele me fizera ao vivo ajudava a ler a planta que ambos estudáramos até quase ficarmos com dores de cabeça. O factor de risco é que não estava calculado lá. E disso ou da sorte, se quiserem, dependia tudo.
Eu tinha perguntado a Al se não era mais prático abordarmos a casa pelas traseiras, em vez de ir dar de caras com o guarda que ele considerava inevitável. Esclareceu que tinha nessa tarde trepado a uma árvore distandon uns vinte metros do muro, na parte de trás, e pudera
observar dois tipos armados a passar no jardim e em volta da piscina.
«Se a distribuição se mantiver», esclarecera «talvez seja
possível alcançar a garagem sem que esses dois dêem por isso. Há uma fila de oito árvores que segue do muro até aos fundos da garagem e separa essa parte do terreno das traseiras. Assim teríamos de passar só por um tipo.»
«Passar por um tipo», nestas circunstâncias, significava neutralizá-lo. O que não sabíamos bem era como.
Tencionávamos entrar na casa precisamente pela garagem, uma vez que esta tinha uma passagem para a cave, e daí havia acesso à cozinha. Tudo bem, se a dita garagem se achasse aberta ou nós conseguíssemos arranjar processo de abri-la. Durante a preparação do plano com Al eu tentara manifestar a opinião de que a operação, desta forma, comportava demasiados «ses». Aí ele resmungou que, se eu não estava satisfeito com a forma como organizara as coisas, havia sempre o recurso de entrar aos tiros pela porta principal. «Talvez fosse menos arriscado», dissera eu, mas não tinha feito mais objecções para não o irritar.
«E como vamos escalar o muro, se as árvores do exterior ficam afastadas?», quisera ainda saber.
«Os troncos das árvores, Frank, mas não os ramos. Tratei de escolher uma mesmo boa para recordares os tempos em que ias aos ninhos.»
«Eu nunca fui aos ninhos», respondi só para o contrariar.
Saímos do carro e trancámos as portas. Em torno de nós era o silêncio dos grilos e do escuro. A Lua estava em quarto crescente, com um halo em torno, e a maior parte das estrelas tinham ido dormir. O ar era fresco e húmido. Os nossos sapatos faziam estalar algumas folhas e ramos secos no chão. Reparando melhor, vi que de um e outro lado do caminho havia troncos carbonizados.
Atravessámos a estrada e enveredámos por uma vereda estreita que subia do outro lado. Aqui eram uns arbustos que constituíam a vegetação, mas logo adiante embrenhámo-nos pelo que dava a ideia de uma floresta espessa.
Mais uma vez, eu limitava-me a seguir Al, o que me valia, com uma certa regularidade, levar com um ramo na cara. Deixou que eu fosse barafustando em voz alta até que anunciou:
- O muro que vamos seguir é aquele.
Não distingui muro nenhum, apenas árvores à minha volta, mais cerradas cada metro que avançava. Obliquei entretanto atrás do ruído dos passos dele e alcancei na verdade um carreiro, para lá do qual se erguia uma parede alta e escura.
Prosseguimos a caminhada, com maiores cautelas agora, porque naquele silêncio em que nem a ramagem se manifestava até o nosso respirar se ouvia. Fomos assim ao longo do muro, num percurso que me parecia interminável. Andáramos bem uns cento e cinquenta metros quando Al se deteve.
- Toca a subir - disse ele, e apontou para cima.
Trepar a árvores não é propriamente a minha especialidade. E de noite ainda menos. Procurei outra solução, mas não havia. O muro teria mais de dois metros de altura e a superfície era lisa. Tratei por isso de enfrentar a realidade. A ramificação mais baixa ficava à altura da minha cabeça. Agarrei-me com ambas as mãos, tentei içar-me a pulso, mas não logrei erguer o corpo à altura necessária. Optei então por iniciar a subida o mais próximo possível do tronco, fincando aí os pés para ajudar a progressão. Foi melhor assim, e pouco depois achava-me encavalitado, cerca de dois metros acima do caminho por onde viéramos. Al seguiu a mesma via que eu. Porém, de nós dois, era ele quem tinha a respiração menos ofegante.
Afastou a ramagem para eu poder espreitar.
O rebordo do muro ficava um escasso metro adiante de nós, praticamente ao nível das nossas cabeças. Para lá dele, por entre as copas das árvores, distinguiam-se com alguma dificuldade, ao fundo, dois ou três pontos luminosos que surgiam e desapareciam ao sabor da aragem que agitava levemente as folhas.
Al deu o sinal de avançar e saltou para o topo da parede de pedra, para daí a segundos desaparecer do outro lado com um ruído abafado como o de um saco a tombar no chão. Pensei que, a proceder daquele modo, ele teria muita sorte em não ter aterrado mal. Todavia, quando me encontrei estendido no cimo do muro e olhei para baixo, constatei que fora cair numa pequena clareira e se levantava a sacudir as calças.
Recordei o que aprendera na tropa, e saltei. O impacte reflectiu-se dolorosamente no tornozelo esquerdo. Memórias de Tânger, pensei logo que a dor abrandou. Pouco mais de um minuto a marchar sem novidade, e atingimos o fim da mata. Uns cinquenta metros à nossa frente erguia-se a casa. Um prédio maciço de três pisos do estilo que se vê nas capas dos romances de «gótico», anelas estreitas e altas, telhado em declive pronunciado e duas chaminés a encimarem o conjunto. Para o nosso lado, até à altura do primeiro piso, estendia-se uma construção mais recente e sem janelas. Era a garagem. Para a direita, a partir da parte posterior do bloco e avançando até próximo do local onde nos encontrávamos, alinhava-se a série de árvores distanciadas umas das outras. Dali não podíamos ver a entrada da garagem, que se abria para o lado da fachada, mas a claridade que de lá permitia localizá-la com precisão. Não era contudo suficiente para iluminar o exterior. Os pontos de luz que eu vira ao longe eram três lâmpadas de pouca potência fixas à parede do edifício principal, imediatamente sob as janelas do primeiro andar, e os pratos metálicos que serviam de quebra-luz faziam que os cones amarelos e frouxos que elas projectavam incidissem no telhado da garagem. O aspecto geral do conjunto era algo sinistro. Talvez devido também ao estado de espírito em que me achava, pois, raciocinando um pouco, não seria de esperar, à uma e meia da madrugada, deparar-se-me no meio de uma quinta uma casa envolvida em grinaldas luminosas e fogo-de-artifício.
O meu companheiro interrompeu-me as reflexões. - Parece que estamos com sorte -soprou-me ao ouvido. - O guarda deve estar lá dentro.
Continuei a não manifestar optimismo, mas desse modo sempre tínhamos algumas hipóteses de chegar até lá. Andamos mais um bocado, só para ter a certeza de que não havia ninguém cá fora, e antes que as circunstâncias alterassem deslizámos para a direita, até ao início da linha das árvores que atravessavam o descampado, e avançámos em ziguezague, contornando os troncos por um outro lado, porque pela nossa direita, da parte das traseiras da casa para onde não se via nada, podia surgir alguém. Alguns dos espaços cobrimo-los em corrida rápida, outros em passos mais lentos e alongados para não fazer estalar demasiado o cascalho fino que cobria o solo.
Alcançámos finalmente a parede da garagem e quedámo-nos cosidos a ela, para descansar um pouco e ter a certeza de que não fôramos detectados. Em seguida pusemo-nos a escorregar sempre nessa posição, detendo-nos metro a metro. Do interior não nos chegava qualquer indicação, excepto a tal claridade que se batia pela entrada, logo ao dobrar da esquina. Foi aqui que permanecemos mais tempo, a procurar processo de anteceder o que nos podia esperar, até a eventualidade de haver mais gente lá dentro.
Para assegurar que Al não executaria uma entrada espectacular como a que fizera horas antes, tomei a dianteira, ao mesmo tempo que desembrulhava a arma do lenço. Ele também vinha prevenido, mas mantinha a mão no bolso a fazer um chumaço enorme.
Adiantei a cabeça e o ombro direito pela esquina. A porta ondulada achava-se erguida a formar uma espécie de alpendre. Do ângulo de que observei não abarquei mais do que um pedaço de parede branca do lado oposto, junto da qual havia um caixote onde se equilibrava uma lanterna de acetileno. A luz provinha daí.
Ganhei coragem e estiquei mais o pescoço. Mesmo ao lado do caixote havia um tipo sentado, encostado à parede. Parecia estar a dormir e abraçava no colo uma espingarda de caça.
Fiz sinal a Al e entrei de mansinho. O sujeito deu por mim a dois metros, mas apenas esboçou o movimento, e som não chegou a soltar nenhum, porque a sola do meu sapato lhe carregou o peito com tanta força que ele expeliu o ar todo que guardava lá dentro. Antes mesmo que tivesse tempo de fechar a boca, tapei-lha, e o nariz, com a mão esquerda espalmada, e com a direita encostei-lhe a pistola ao ouvido. Permiti-lhe tomar bem consciência do que se estava a passar e, quando vi que o suor lhe começava a humedecer a testa e os olhos ficavam maiores, falei-lhe baixinho.
- Não tens hipótese, menino. Vou deixar-te respirar, mas tu ficas caladinho.
Não esperava que ele compreendesse a língua, mas por um lado fazia-me bem desabafar e, por outro, há situações que não requerem muita conversa.
Al veio em meu auxílio. Suponho que se detivera à entrada, para assegurar que não havia surpresas. Falou a mistura de francês e espanhol, para ter a certeza de ser entendido.
- Fala, ou morres-foi a frase que proferiu, colocando o buraco da arma por cima da minha mão e no alinhamento a narina do desgraçado.
Achei que podia retirar a mão. Inspirou com menos sofreguidão do que seria de esperar, talvez por causa da diressão do cano sobre o nariz.
Apontei-lhe a minha arma a certa distância e deixei Al tratar do assunto.
- Onde estão os outros?
O tipo fez sinal com a mão para que esperássemos um bocadinho. Não tardou a falar, e o que saiu era quase um soluço.
Não entendi as duas palavras, mas apontou para fora.
- Quantos são?
; «Dois», esclareceu ele com os dedos.
- E os outros?
Inclinou a cabeça e encostou a mão à cara.
-A dormir? Onde?
Espetou o indicador para cima.
- No segundo? Insistiu no gesto.
- Lá em cima? Fez que sim.
- Os quartos dos patrões onde são? Franziu a testa.
- Os senhores...-traduziu Al.- No primeiro? Confirmou.
- Quem está cá?
- Ma... demoiselle.
- Mademoiselle e quem mais? Abanou a cabeça.
- Mais ninguém? - insistiu Al.
- N... não.
- Ben Youssef?
Distendeu os lábios e enrugou a testa. Não percebia.
- Big boss... Marrocos. Ben Youssef. Patrão de ocos!
- Espanhol? - articulou o tipo, e o suor escorria-lhe pelo queixo.
- Qual espanhol! Marrocos... Africano!
- Ah... Senhor Mohamed! - Quase parecia satisfeito.-Avião...-Desenhou um gesto planado com a mão. - De manhã.
Al virou-se para mim.
- Estamos lixados.
Respondi-lhe sem desviar a atenção da entrada.
- Karin está cá. Ben Youssef fica para depois. Pelo canto do olho pude ver que sorria.
- Qual é o quarto de mademoiselle?- quis ele ainda saber.
-Segundo... no corredor.
- Okay - finalizou o meu sócio. - Ata-me esse gajo. Procurei com a vista. O melhor que descobri foi um fio
eléctrico. Deitei-me ao trabalho, com Al a observar. Quando terminei, ele fez um ar desgostoso, mas pôs-se de pé.
- E a boca? - disse eu.
Uma rodilha suja de óleo foi o que ele utilizou para o efeito, e o serviço que fez não podia ficar melhor.
- Vamos lá despachar isto - declarou depois de se certificar de que por ali não haveria novidade.
A única porta abria-se ao fundo. Reparei então que havia um carro que não me chamara antes a atenção apenas porque um automóvel numa garagem é um pormenor inocente. Porém, este era um Bentley azul-metálico, e ao pé dele o meu Mercedes não passava de um carro familiar.
- Vens ou não? Fui.
Passámos a divisão contígua, e só soube que nos encontrávamos numa cozinha imensa quando Al projectou em redor o foco da lanterna que apanhara na garagem. Atravessámos à vontade o espaço amplo, tendo apenas o cuidado de evitar a comprida mesa que ia quase de ponta a ponta. Por uma porta de vaivém fomos dar a uma copa donde partiam umas escadas estreitas. Era o caminho a seguir. Al alumiava os degraus de pedra e eu apoiava-me com força ao corrimão.
O extenso corredor alcatifado onde desembocámos era tenuemente iluminado por uma minúscula lâmpada de presença empunhada por um anjinho aplicado na parede forrada a papel de veludo. Havia uma série de portas de aspecto sólido, todas do lado direito. Ultrapassámos uma cómoda de estilo encimada por um enorme jarrão de porcelana e eu deitei a mão à maçaneta da segunda porta. Estava trancada. Bati ao de leve e esperei. Não houve resposta. Al afastou-me e experimentou o trinco com força. Logo que desistiu, tivemos ambos a impressão de escutar um ruído do lado de dentro. De seguida, uma voz receosa perguntou em francês:
- Quem está aí?
Karin.
- Sou eu, Frank. Abre.
- Frank? - repetiu em sobressalto.
- Sim, Karin. Abre depressa.
Ouviu-se o fecho rodar e Karin entreabriu a porta. Foram os olhos surpresos o que divisei primeiro através da fresta. Depois uma expressão de espanto, e ao mesmo tempo de alegria, naquele rosto que eu amava tanto. Abriu a porta e erguia os braços para mim quando se lhe deparou Al. Teve um movimento de recuo. Apressei-me a tranquilizá-la.
- Não tenhas medo. é um amigo que me quis ajudar.
Ela ainda hesitou, e logo sorriu. Um sorriso que valia
todas as coisas belas do mundo.
-Frank...
Os braços envolveram-me o pescoço com muita força e os lábios procuraram os meus. Não custou muito, porque os meus, depois de lhe terem beijado com fervor os olhos, o nariz e o queixo, já buscavam ansiosamente os dela.
Esqueci-me de tudo. Assim, com o corpo dela no meu, experimentava uma sensação tão completa de bem-estar que nada mais importava.
- Oh, Frank... -repetia Karin num murmúrio.- Frank, eu sabia que vinhas.
Continuou sussurrando-me frases junto ao ouvido, entrecortadas por beijos, e algumas eu não entendia porque não eram ditas em inglês.
Só quando, atrás de mim, Al me bateu repetidamente no ombro eu voltei à realidade e ao local onde nos [ encontrávamos.
- Frank, são horas de ir andando.
Karin desprendeu-se a custo e com as mãos procurou tapar os seios que a camisa de dormir descobria.
- É... amigo de Frank? -disse ela, pouco à vontade.
- Al Chasey, ao seu serviço, mademoiselle. Ao vosso serviço, quero dizer. Agora, minha querida, ponha qualquer coisa por cima porque são horas de voltar à cidade.
Karin mirou-o com certa estranheza, mas ele continuou a sorrir e ela acabou por corresponder e desapareceu atrás de um biombo.
O quarto era o tipo de aposento mobilado com peças de estilo que se pode esperar encontrar numa casa daquelas e apesar de amplo, dava a ideia de ser acanhado pelo peso dos móveis, dos reposteiros, do lustre e das porcelanas.
- Frank, achas que vai demorar muito?-inquiriu Al a espreitar pela janela.
Não tinha razão, porque Karin surgia nesse instante pronta para sair. Vestia uma saia pelos joelhos, um casaco leve por cima da blusa simples e sapatos de salto baixo. Na mão transportava uma maleta de viagem.
- Vamos?
Antes de resolver, Al quis confirmar.
- Quem mais está cá esta noite?
Karin esclareceu:
- Ninguém. Apenas os criados... e os guardas.
- Okay. Então vamos.
O regresso à garagem fez-se pelo percurso da vinda. O tipo que lá deixáramos permanecia exactamente na mesma posição, como se o tempo tivesse parado com a nossa partida. Só a luz do candeeiro de acetileno vacilava com o combustível a acabar.
- Segura aí, Frank.
Era uma escada de madeira que ele descobrira deitada junto à parede do fundo. Que ideia era esta agora?
- Assim não precisamos de fazer ginástica, não é? Achei preferível aceitar a ideia, não fosse ocorrer-lhe levar o Bentley também.
E lá fomos, Al numa ponta da escada e eu atrás, com uma das mãos a segurar a extremidade e a outra o braço de Karin. A arma seguia no bolso, mas lá adiante o meu sócio ia atento.
O trajecto foi feito com razoável descontracção e muita simplicidade. Chegados ao muro, a escada resolveu o assunto. Fui o último a trepar. Perguntava a mim próprio se os outros tipos estariam todos a dormir, ou de folga. quando soou o primeiro tiro. Alguns chumbos dos disparos seguintes distribuíram-se pela parede, à minha volta. No topo do muro, onde Karin me aguardava, puxei depressa a escada e desci-a para o outro lado.
Chegavam até nós vozes próximas e o ladrar de cães. Logo que vi Karin alcançar o solo, decidi ignorar a escada e pular.
Eram duas e meia e conversámos num bar recolhido e sossegado da Praça da Alegria, próximo do Hotel Tivoli Eu conseguira convencer sem dificuldade o empregado da recepção de que a senhora que me acompanhava era uma amiga que acabava de chegar, mas, para lhe poupar deduções e sobretudo por uma questão de precaução, instalei Karin noutro quarto, no terceiro andar. Ela quis ir lá acima pôr as coisas e arranjar-se um bocadinho melhor, porque de nós três o único que tinha sono era Al Chasey.
De modo que Al despediu-se, depois de combinar comigo o programa para o dia seguinte, e eu aproveitei para mudar de fato e depois fiquei à espera no átrio. Quando ela saiu do elevador ao meu encontro, simplesmente com os cabelos negros a escorrerem pelo rosto para cima do xaile, num lindo vestido branco de renda, decidi que era a rapariga mais linda do mundo.
- Onde vamos, Frank?
- Logo se vê, pequena. Apanhar a noite, tomar um copo, falar de nós e fazer amor.
- Lá fora? - disse ela.
- Onde calhar. Como os bichinhos.
- Oh! - fez com os lábios e os olhos húmidos, e apeteceu-me que fosse ali mesmo.
Saímos. A vida nos locais públicos continua em Lisboa até mais tarde do que na maioria das capitais que conheço. Evitámos boìtes e dancings, até que calhou irmos parar àquele sítio. A porta estava fechada e passava despercebida. Apenas o pequeno reclame na montra ao lado, com a indicação: “Até às quatro da manhã”, me fizera deter. Hesitei antes de tocar, mas Karin empurrou-me o braço e logo um olho espreitou pelo ralo. Deve ter aprovado o que viu, porque a entrada nos foi franqueada. Do guarda-vento, passámos a uma sala pequena, decorada com gosto e discretamente iluminada. Havia apenas o barman e uma roda constituída por dois casais. Encomendámos um uísque e uma cuba libre e ficámo-nos a olhar um para o outro como dois namorados.
Fui eu quem falou primeiro.
- Foi difícil?
Sacudiu a cabeça sem tirar os olhos dos meus.
- Não, Frank. Sabia que vinhas.
As bebidas surgiram na mesa, sem darmos porque o empregado as trouxera.
- Frank... foste só por minha causa?
- Teria ido só por ti.
Trocámos um brinde e beijámo-nos. Uísque e cuba libre. Um cocktail maravilhoso filtrado pelos lábios dela.
- Oh, querido! - E quedava-se com a cabeça encostada a mim, acariciando-me cada linha do rosto.
A minha cabeça flutuava, e vi-me de súbito em Tânger, no Kasbah, com ela, e imagens da noite em que a conhecera, no terraço sobre a baía. Dois dias, apenas. Em dois dias e duas noites Karin surgira, perdera-a, e ali a tinha de novo. Puxei-a para mim, num repente.
- Que foi?
- Muita coisa. Tudo. Não sei o que se passa comigo.
- Eu tenho a ver com isso, Frank?
Soltei uma gargalhada que me soube bem porque no momento em que a soltei me libertava de tudo o que havia de mau dentro de mim. Uma gargalhada que encheu aquele espaço e contagiou o barman, e os outros parceiros, e de um momento para o outro estavam todos a rir como se fosse a passagem do ano. O porteiro assomou à entrada, riu-se também, e eu não me lembrei de mais nada senão de mandar abrir duas garrafas de champanhe para distribuir pela sala.
- Vou para o Algarve de manhãzinha. - Anunciei daí a bocado.
- Eeu?
- Tu ficas em casa de uma amiga do Al.
- Não.
Fitei-a com o cigarro pendurado na boca.
- Estamos em Portugal, lembras-te? Onde os homens ainda mandam. - E adiantei: -E tu és de Marrocos, onde as mulheres ainda são escravas.
Os dois tipos da mesa próxima ouviram-me e perceberam, porque levantaram os copos à minha saúde. As mulheres deitaram-me olhares desconfiados.
Turistas.
- Faço um negócio contigo - disse Karin muito séria.
- Bluff de mulher humilhada - respondi.
- Papéis que trouxe comigo.
A vontade de brincar ficou adiada.
- Papéis... documentos?
- Importantes. Muito importantes - fez ela, já a desfrutar o momento.
- Isso pode ser o epílogo, Karin - disse eu. - Como os obtiveste?
- Foi esta manhã, quando González partiu. Ben Yous-sef foi acompanhá-lo a Camarate, um aeródromo perto de Sintra. Eu fui ao gabinete onde ele trabalhou toda a noite e servi-me de uma pequena máquina que comprei ontem em Tânger.
- Linda menina - foi o meu comentário. E bebi um gole de champanhe para me recompor.
- Então... vou contigo?
Apaguei o cigarro.
- Sim - anuí finalmente. - Vais comigo, mas não é por isso. É porque agora, que te apanhei, não te quero perder de vista. Que idade tens?
- Vinte e um.
- Hum... - fiz eu.- És um bocado novinha, não és?
- Já sou maior. E muito mais velha do que tu julgas. - Aproximou o rosto do meu, e à pálida claridade que começava a entrar pela janela pude observar-lhe as covinhas engraçadas do rosto.
Estávamos deitados no quarto dela, onde eu subira na volta a fim de ir examinar os papéis. Tratava-se de material altamente classificado, sem sombra de dúvida, e com aqueles documentos e o testemunho de Karin muita gente importante ia ver-se metida em apuros para o resto da vida. Havia no entanto alguns aspectos fundamentais a esclarecer melhor. E o meu palpite era que a viagem ao Sul ia ser proveitosa.
Claro que, arrumados de novo os papéis na mala de Karin, eu não tinha saído logo. Esse foi o meu erro. Ela chamou: “Frank...”, e não havia nada a cobri-la. Depois deitou-se num dos lados da cama, enroscada como uma gatinha. Não tive outro remédio senão ir fazer-lhe companhia.
Karin voltara a adormecer. Fiquei por instantes a observar o seu rosto belo e tranquilo, e os seios a subir e descer em movimentos suaves e regulares. Depois resolvi regressar ao meu quarto, para dormir mais um pouco até às nove, hora a que tinha combinado com Chasey partirmos. Olhei para a mala onde se encontravam os documentos. Levá-los comigo podia ser perigoso, e guardá-los nos cofres do hotel já não valia a pena. Resolvi deixá-los onde estavam.
Dei um beijo na testa de Karin, recomendei-lhe que fechasse a porta à chave e rumei ao elevador.
A primeira coisa de que não gostei foi de verificar que a minha porta não se achava trancada. Tirei a arma do bolso e introduzi o braço esticado à medida que empurrava devagarinho. A luz da entrada estava acesa. Dei três passos e enfiei à esquerda, na casa de banho. Vasculhei atrás do plástico do chuveiro e, após uma curta espera, entendi que não valia a pena perder tempo. Avancei com a arma bem segura nas duas mãos, à altura dos olhos e à distância dos braços estendidos. Se alguém disparasse, não o faria primeiro.
Ninguém disparou e o quarto estava vazio. Mas virado do avesso. Desde a cama revolvida às gavetas retiradas da cómoda e do roupeiro, com o conteúdo da mala espalhado pelo chão. Quem tinha ido à procura não dispusera de muito tempo, mas vira tudo o que havia para ver.
Fui ao telefone e aguardei que atendessem.
- Fala do 420. Alguém perguntou por mim esta noite?
- Oh, sim, Mr. Gold - respondeu-me uma voz atenciosa. -Um espanhol, há bocado. Cerca das sete e meia. E por Mademoiselle Karin também.
Durante a breve pausa fiquei agarrado com força ao auscultador, sem saber se devia precipitar-me para a porta ou fazer mais perguntas
- E você...?
- Respondi-lhe que Mr. Gold entrou sozinho e que nenhuma senhora se tinha registado esta noite.
Respirei aliviado.
- De resto, Mr. Gold, não gostei da cara do fulano. E perguntei-lhe se não achava muito cedo para fazer visitas. Ele, antes de se pôr a andar, ainda quis dar a entender que era da polícia, para disfarçar, mas eu topo-os muito bem.
Havia contudo algo que eu não percebia.
- Como é o seu nome, amigo? -Vítor, Mr. Gold.
O homem de Santos.
- Oiça, Vítor. Não sei o que se passa, mas há qualquer coisa na história que não confere. Se o tipo saiu, como é que o meu quarto aparece desarrumado?
- Não é possível!
- Então venha cá. Mas antes ligue-me para o 318. Atendeu a voz ensonada de Karin.
- Ouve-disse eu rapidamente. - Tens a porta trancada?
-...Sim... porquê?
- Deixa-te ficar aí. Eu já vou ter contigo.
- Mas...
não é nada. Apenas não abras a porta.
Vítor apareceu entretanto. Era um tipo delicado por quem eu já passava várias vezes nessa noite sem reparar especialmente nele. Fez uma cara horrorizada ao observar o cenário.
- Mas... Mr. Gold, garanto-lhe que o sujeito saiu...
- E não podia entrar por outro lado?
- Era muito difícil, Mr. Gold. Muito difícil, pode crer. Além disso, acha que alguém viria aqui com esse propósito a uma hora a que sabia que o senhor estava cá? Quanto a mim, quem ele pretendia localizar era a senhora. E este trabalho foi feito noutra altura, mais cedo.
Dei-lhe razão. Prosseguiu:
- Depois de Mr. Gold sair, por volta das duas, asseguro-lhe que o movimento foi apenas de clientes.
- O que quer dizer...
- Que a pessoa que veio visitá-lo é um cliente do hotel. Essa conclusão não me deixou mais bem disposto, mas tive de reconhecer que Santos sabia escolher os seus homens.
Ajudou-me a arrumar a mala e desceu comigo ao andar de baixo.
- Vou ficar aqui, Vítor. Chama-me dentro de meia hora.
Bati no 318 e anunciei-me em voz alta.
A viagem decorreu comodamente em pouco mais de três horas. A estrada não era má, e com o ar condicionada a funcionar até nos esquecíamos de que lá fora a temperatura era elevada e o tráfego reduzido. Fizéramos assim desde Setúbal, a travessia do Alentejo, terra árida, onde apenas avistávamos de vez em quando um pequeno aglomerado, e atravessámos de longe em longe uma povoação que eram duas filas de casas baixas e caiadas de branco de cada lado da estrada. A atmosfera reflectia com tal intensidade a luz do Sol que encandeava a vista.
Al propôs pararmos para almoçar numa pousada atraente, construída à beira de uma barragem, mas eu agora tinha pressa de chegar e respondi que ainda era cedo. Karin, no banco de trás, dormira quase todo o percurso. Só nas curvas da serra, a uns quarenta quilómetros da costa, ela voltou a dar sinal, debruçando-se sobre o banco da frente com a cabeça entre nós dois.
- Que horas são?
- Horas de almoço - insistiu Al, com a mão no estômago. - Se não faltasse tão pouco, eu apeava-me já.
- Sabia que “Algarve” é uma palavra árabe e que foi território mouro até 1249?-perguntou ela, não percebi se para entrar com Al ou com a melhor das intenções.
- Sabia - retorquiu ele com convicção.- O Algarve, o Alentejo e todo o Sul de Espanha.-E adiantou trocista: -E se essa conversa é para me provar que vocês foram um grande povo, eu direi que antes de vós houve os Egípcios, os Viquingues, os Mongóis, os Incas, os Maias, os...
- Está bem, Al, não insisto - atalhou ela; e, após uma breve pausa, ainda suspirou num desabafo: - Mas isso não tem nada a ver...
Executei a descida da serra a escutar a discussão mais acesa sobre história das civilizações a que já me fora dado assistir. Felizmente que, à vista do mar, eles foram abrandando, e à entrada de Albufeira já se falava só no almoço, a ementa parecia estar decidida antes mesmo de arrancarmos da bomba de gasolina à entrada da vila, onde parara para encher o depósito e pedir informações. A Vila Heloísa localizava-se na parte da povoação que se estende pelo cerro que domina a baía. Uma vez aí chegados, explicou-me o empregado com a ajuda de um casal nórdico que assistia à conversa, não seria difícil lá ir porque toda a gente da zona conhecia o nome.
Não me custava acreditar que sim, apesar de saber ser Albufeira um paraíso de milionários. Porque, pelo que já me contara, a casa onde toda a equipa se alojava era propriedade de Mr. “Big”.
Mr. “Big”, tal como a imprensa de todo o mundo o {pintava, era um figurão inglês que dera no mercado financeiro de Londres, uns anos atrás, um golpe de vários milhões de libras e na sequência viera viver para Albufeira. Segundo a mesma imprensa, Mr. “Big” entretinha-se a comprar quase tudo o que aparecia para vender, desde terrenos e prédios a boìtes, e a dirigir, rodeado de um luxo asiático, toda uma vasta rede de negócios lícitos e ilícitos. Mr. “Big” tornara-se assim o “rei” daquelas paragens e a Vila Heloísa era uma vivenda que ele reservava para receber convidados importantes.
- Qual é o esquema? -interrogou-me Al, a meio do segundo bife.
Almoçávamos num restaurante acolhedor e pouco movimentado numa das ruelas que conduzem ao centro da vila. A época alta só começaria no mês seguinte.
- Não há esquema nenhum - expliquei.- Vamos lá, e pronto.
Deteve o garfo a meio caminho da boca e a faca erguida na mão direita.
- Vamos lá, como?
- Em visita. Virou-se para Karin.
- Está doido.
- Concordo com Frank - disse ela. Al poisou o talher no prato.
- Nesse caso, estão os dois doidos.
- Ouve, Al-resolvi ajudar.-Nós não somos assim dois tipos que se possa liquidar de um momento para o outro.
- Pois não - observou. -Já te esqueceste de Tânger?
- É diferente. A polícia já interveio entretanto, e os tipos sabem que se nós desaparecêssemos tinham a Interpol à perna. Podes acreditar, Al, que nas actuais circunstâncias entrar nessa casa por outra forma é que seria fornecer-lhes um pretexto.
- Mas em Sintra, ontem à noite...
- Andas a comer e a dormir muito, e por isso estás a ficar estúpido. Nós viemos aqui propor um negócio, e não recuperar objectos.
- Eu sou então um objecto? - disse Karin a complicar.
- És - respondi. - E o Al é outro. E agora peçam o raio da sobremesa e deixem-me pensar um bocado.
- Um poeta e um pensador - comentou Al para Karin mas fiz de conta que não ouvi.
O aspecto mais interessante nas casas eram as chaminés esguias e trabalhadas como um bordado de renda. Vim algumas assim em Marrocos, mas o estilo tradicional mantinha-se aqui, mesmo nas construções mais recentes.
Alcançado o cimo do labirinto de ruas estreitas que conduziam à parte alta, perguntámos a um homem de camisa de xadrez e calças arregaçadas que apanhava sol à porta de uma taberna onde era a Vila Heloísa. Apontou para o lado do mar com a beata suja que lhe pendia dos lábios secos.
Seguimos a indicação e, contornando uma pequena igreja, fomos sair a um terreiro murado do lado do mar donde se abarcava toda a baía. Decidimos deixar o carro ali, encostámo-lo ao muro, e depois de verificarmos que não havia mais ninguém por ali, saímos.
Do miradouro alcançava-se toda a vila, o areal extenso da praia e o mar tranquilo salpicado próximo da costa de embarcações de pesca pintadas de amarelo, azul e vermelho.
Disse a Al que fosse perguntar ao restaurante e fui juntar-me a Karin, que se apoiava no muro a olhar para baixo. O declive da encosta era pronunciado, coberto de vegetação que descia até às rochas, onde as marés e as vagas haviam cavado túneis e grutas.
- Do outro lado é Marrocos - disse ela, apontando.
- Sim, querida. - Fiz-lhe uma carícia no rosto.- Havemos de lá voltar muito em breve.
Voltou-se para mim, e os cabelos negros fugiam-lhe para trás, descobrindo-lhe o pescoço delicado. -Amanhã?
Sorri.
- É possível...
- Oh, querido... -exclamou feliz, mas logo uma sombra turvou a expressão.
- E... deixam-te entrar?
- Hei-de arranjar maneira - retorqui com ar desprendido, mas não sabia bem como.
- Tão bom...- e aflorou-me os lábios com ternura.
Experimentei uma certa angústia que sempre acontecia quando o receio de a perder me aflorava o espírito e os nervos do corpo. Al vinha chegando.
- Vamos-disse para mim.-Karin pode esperar ali por nós.
Combinámos que ela ficaria à nossa espera no interior da capela e que não sairia de lá.
- Não demores, meu querido.
Deixei a constrangido e com uma sensação indefinível que me perturbava de modo estranho.
O tipo examinou-nos de alto a baixo, e em sentido inverso, através das grades do enorme portão. Exibia uma cabeça larga e maciça encaixada pelo pescoço curto e da mesma largura num tronco cabeludo embrulhado numa camisa de quadrados que daria para fazer um lençol.
- Quem?-repetiu para Al, numa careta de poucos amigos.
- Ligue essa coisa, que eu falo.
Referia-se ao emissor-receptor portátil que o outro transportava a tiracolo. Ele pareceu entender a sugestão e concordar com ela, porque aproximou o aparelho das grades, carregou no botão e comunicou algo pelo bocal.
Não entendi o que responderam do outro lado, mas Al interveio, gritando para se fazer ouvir.
- Fala inglês?
- Sim - responderam. - Que querem?
- Somos jornalistas - articulou ele. - Viemos falar com o Senor González. Está a ouvir?
- Sim - confirmou a voz.- Mas não há aqui ninguémn com esse nome.- O sotaque era característico dos latino -espanhóis ou sul-americanos.
- Diga ao Senor González que estão aqui Gold e Chasey. - Repetiu os nomes com cuidado. - Gold e Chasey, percebeu? Ele conhece-nos.
- Um momento.
Ouvimos um clique e ficámos à espera. O grandalhão arrumou o instrumento a tiracolo e ficou a olhar para nós. Três metros para lá dele, o caminho desviava para a direita e uma parede de buxo impedia de ver mais além. Passaram-se assim uns cinco minutos, com ele a observar -nos e nós a olhar para dentro e a trocar impressões, como dois visitantes no jardim zoológico diante do gorila maior. Por fim escutámos um zumbido, e o gorila levou o transmissor ao ouvido e carregou num botão. Saiu a mesma voz de há pouco, numa frase curta e seca.
Em resposta, o tipo voltou a guardar o instrumento no estojo e puxou do bolso uma grossa chave, com que destrancou o portão. De seguida fez girar um dos batentes, que deslizou sem ruído nas dobradiças.
Fez um sinal com a cabeça e nós entrámos. Ele voltou a fechar o portão com a chave. Olhei para Al, que obviamente experimentava o mesmo que eu, e lá fomos seguindo o guia.
Percorridos alguns metros ao longo do buxo alto e bem aparado, começámos a ouvir uma voz feminina a soltar gritinhos de alegria, e o ruído de água a chapinhar. Poucos metros adiante desembocámos numa piscina que de olímpica só não tinha o formato. Esta era oval, ou talvez em forma de coração, mas não tive a certeza, porque do ângulo onde estava não podia tirar conclusões de pormenor acerca de uma área equivalente a meio campo de futebol.
Da água azul e transparente emergiu uma sereia cujas formas condiziam com as dimensões da piscina e de maneira nenhuma podiam caber num bikini. Talvez por isso ela usava monokini. Travei Al, para que ele não avançasse pela piscina dentro, e correspondi à saudação exuberante de Juanita.
- Olá, Frank! -gritou ela, tirando a touca e a sacudir a água do corpo.
Juanita de seios ao vento a sacudir a água do corpo constituía um daqueles espectáculos que só o cinema panorâmico e a três dimensões poderia reproduzir. Desaconselhável, porém, a espectadores demasiado sensíveis.
- Vens chatear o papá? -atirou de longe, esfregando I vigorosamente as pernas com uma toalha.
- Si, senorita - gritei em resposta.-E conto contigo para o caso de correr mal.
; -Toda tua, Frank. Esse aí é teu amigo?
“Esse aí” prendeu-me o braço e falou:
- Frank, não era melhor ires sozinho?
Respondi a Juanita ao mesmo tempo que o filava pelo pescoço e fazia trotar adiante:
- É meu irmão, boneca. Aquele mano homossexual de que te falei.
- Oh!- disse ela, e o gorila à nossa frente voltou-se para encarar Al com desgosto.
O visado lançou-me um olhar assassino, tropeçou numa cadeira de lona e foi agarrar-se ao suporte de um toldo. Ao passarmos a parede de vidro, as gargalhadas de Juanita ainda estavam no ar.
No interior do terraço, onde havia plantas ornamentais profusamente distribuídas por entre as mesas e cadeiras pintadas de branco, fazia menos calor do que lá fora. Mas na sala espaçosa onde fomos conduzidos ainda estava mais fresco. A decoração era de um mau gosto notável. Havia tapetes rosa e laranja de pêlo alto distribuídos sob a meia dúzia de jogos de sofás lilases, azul-marinho, verde-alface e de cores que eu nunca vira. Outras tantas mesas baixas, de talha dourada e tampos de mármore de tonalidade amarela, completavam os conjuntos. Do tecto pendiam dois lustres enormes de vidrinhos vermelhos e verdes, e nos cantos da casa quatro colunas de alabastro sustentavam peças de barro de colorido berrante: um galo, um elefante de tromba erguida, uma figura popular a fazer as suas necessidades e outra de braços trocados. Se havia pessoas de mau gosto no mundo, e eu conhecia dezenas, Mr. “Big” batia o recorde.
- A que devo o prazer, Mr. Gold?...
A personagem era alta, elegante, bronzeada, usava cabeleira branca a cair por sobre as orelhas e apresentava-se num roupão dos que usavam antigamente os galãs de Hollywood. Eu nunca vira pessoalmente Adolfo González, mas era ele sem tirar nem pôr. Pareceu ignorar por momentos Al Chasey, e só quando eu ia a falar resolveu reparar nele.
- Mr. Chasey, não é verdade?
Chasey interrompeu o que estava a fazer - limpar o pó da tromba do elefante- e retorquiu no seu estilo pessoal:
- Senor González, se não me engano?
Os olhos azuis e frios do barão da droga desviaram-se para mim.
- Nunca nos encontrámos, pois não?
- Nunca, Mr. González. Porque o senhor nunca quis.
- Ora, meu amigo - com ar desprendido, dirigindo-se ao bar.-Para quê guardar ressentimentos?
- Para mim é sem água - anunciou Al. -Suponho que já conheceu Juanita?
A resposta não me saiu logo, mas Al Chasey avançava:
- Com duas pedras de gelo.
- O mesmo para mim-completei.
Adolfo González serviu-nos na mesa mais próxima do bar e convidou-nos com um gesto a ocupar cada um dos cadeirões disponíveis. Quanto a ele, instalou-se no sofá a compor o roupão. Aguardou que tudo estivesse em ordem e proferiu:
- Ainda não me disse ao que veio, Mr. Gold...
Pedi licença para fumar. González estendeu-me o maço dourado que estava em cima da mesa, empurrou para junto de mim um cinzeiro dourado e acendeu-me o cigarn com um Cartier de ouro, Só depois ofereceu a Chasey, que preferiu um dos seus e lhe chegou lume com um Bic publicitário.
Achei que devia ser eu a falar.
- Tenho andado atrás de si, Mr. González. Desde Santa Cruz, na Bolívia, passando por Tânger e Lisboa. Estou a ficar um bocado cansado, e se o senhor quisesse ajudar-me poupava uma quantidade de trabalho a ambas as partes.
Ele fitou-me com os olhos de um azul líquido e sorriu como alguns animais devem sorrir.
- Diga-me então o que posso fazer por si...
Fiz um rodeio.
- Não me parece muito surpreendido com esta visita, Senor González.
Introduziu com precaução o cigarro numa boquilha com ponta de ouro e inspirou o fumo com satisfação.
- Para ser franco, já a esperava.
- Nesse caso, já previu igualmente o que eu venho propor-lhe.
Estendeu o braço pelas costas do sofá e desennou uma figura de fumo.
- Não sou adivinho, Mr. Gold. Sabia que vinha, porque é um homem corajoso e persistente. E Mr. Chasey também - acrescentou, dirigindo-se pela primeira vez a Al. Este permaneceu indiferente.
- Para começar, pretendo que me diga onde posso encontrar Romero.
Franziu a testa. O ligeiro arquear de sobrancelhas poderia ter sido estudado no espelho.
- Romero? Que tem o senhor a ver com Romero?
- Eu, nada. Mas uns amigos meus andam danados por apanhá-lo, e com mais ou menos esforço hão-de conseguir. Além do que, pensando melhor, eu próprio tenho algumas razões de queixa.
- E porquê, posso saber?
- Porque foi Romero quem matou Wong. Por sua ordem.
Endireitou-se no sofá, perscrutou-me durante uns segundos e depois desatou a rir. Olhei para Al.
- Mr. Gold -disse González quando acabou, ja sem sombra de sorriso no rosto impenetrável. - Verifico que, afinal, o senhor está completamente fora do assunto. Porque Romero não passa de um pequeno contrabandista que actua por conta própria, e nunca trabalhou nem trabalha para mim. A primeira e a única vez que ouvi falar dele foi a propósito de um sarilho que arranjou com um dos meus homens.
Exibiu de novo um ar divertido.
- E porque havia eu de mandar liquidar Mr. Wong? -Antes que eu respondesse, abanou a cabeça e continuou:-Não, Mr. Gold. O senhor está cheio de ideias preconcebidas. Nós não andamos a matar pessoas, e muito menos pessoas como Wong. Seria uma estupidez.
Continuei silencioso durante algum tempo. Depois resolvi ir dizendo:
- Wong, para si, era um concorrente a eliminar. O único que podia interferir com os seus projectos.
- Pelos vistos, não era o único - afirmou com segurança. - Quem tratou de mandar assassiná-lo é um concorrente muito mais perigoso. Por duas razões. - Ergueu o polegar. - Porque não sei quem ele é. E porque -levantou o indicador -não hesita em liquidar o adversário.
- Nesse caso, é estranho que esteja tão descansado, González. - Era Al quem falava.
- E quem lhe disse que estou descansado, Mr. Chasey? -Bom-disse eu, um pouco incomodado por me sentir a perder terreno. - Se anda a tratar do assunto, que tal contar-me até onde chegou?
- Neste momento, a Romero.-Fez uma ligeira inclinação do tronco. - Graças a si, Mr. Gold.
E exibiu novamente aquele sorriso. Senti vontade de lho borrar, da boca e dos olhos, com o uísque que tinha no copo.
- Quando tenciona regressar a Tânger? - perguntei, só para ganhar tempo e pôr as ideias em ordem.
- Esta tarde, talvez amanhã-informou com naturalidade. - Logo que tenha arrumado o que me trouxe aqui.
- E o que o trouxe aqui, Senor González? -Investimentos no sector do turismo - esclareceu.-E, para satisfazer a sua curiosidade, posso adiantar-lhe a título confidencial uma notícia que será divulgada em breve. A empresa de Ben Youssef, com capitais marroquinos, e eu próprio, através do Central Bank de Miami, vamos construir a vinte quilómetros daqui o maior complexo turístico da Península.
- Ah! -exclamei. -E naturalmente o Senor Ricardo Sánchez, logo que recupere do braço, é quem fica a dirigir o transporte da mercadoria.
Apenas os músculos do pescoço e a contracção dos dedos que seguravam a boquilha denunciavam o esforço que fazia para se controlar.
- O Senor Sánchez foi vítima de um acidente infeliz que o manterá afastado durante algum tempo e a curto prazo deixará de ser meu colaborador.
Eu assenti.
- Claro. Sánchez tornou-se incómodo.
- Esse assunto está encerrado. Agora sou eu quem deseja abordar consigo uma questão muito importante. Trata-se do seguinte: Karin, a filha do Senor Ben Youssef, desapareceu. - Fitou-me intensamente: - Sabia?
Abanei a cabeça.
- Cremos que os autores do rapto são os mesmos que mataram Wong - proferiu. - Que acha?
Encolhi os ombros.
- Esse problema é vosso. Pela minha parte, não acho nada. Ou tencionava pedir a minha colaboração?
- A sua colaboração seria valiosa, sem dúvida-declarou sem pestanejar.
Sacudi de novo a cabeça.
- Não, González. Eu é que tenho uma proposta a fazer-lhe. -Sim...
- Regresse ao seu país o mais depressa possível. Encarou-me como se de repente eu tivesse ficado a funcionar mal da cabeça.
- Estarei a ouvir bem?
- Perfeitamente. - E expliquei, devagar: - Não tem outro remédio, González. Lá que o seu banco financie a construção de um complexo para milionários, isso é com o Governo daqui. Agora no que respeita ao tráfico de droga, eu já o encurralei, Senor González, e você sabe isso muito bem.
Possivelmente para disfarçar o mal-estar que sentia, levantou-se, foi buscar uma garrafa de uísque e gelo e veio servir-nos. Disse-lhe que o queria puro e Al fez o mesmo. Quem entrasse naquela altura pensaria tratar-se de uma reunião de convívio.
- O que lhe afirmo não é bluff, González. Tenho documentos que o enterram, e a Ben Youssef também. O próprio Sánchez há-de falar. Por isso, você não tem outro remédio. E mesmo na sua terra não vai ser fácil - assegurei-lhe. - A junta do general Mesa, mais dia menos dia, irá ao ar, e o coronel Guerrero e os outros também. Claro que você ultrapassará a crise - comentei -, mas os negócios não voltarão a ser o que são.
Bebi mais um gole e fixei-o bem, no sítio onde se voltara a sentar. A figura dele surgiu menos nítida do que há pouco. Depois tornou-se cada vez mais desfocada, ouvi Chasey começar a dizer “Grande filho da...” e decidi fechar os olhos e largar o copo da mão.
Aquele peso que me descia do crânio e vinha descarregar-se abaixo das sobrancelhas, a pressionar-me os olhos, era o que mais me aborrecia. Porque eu queria abri-los e não conseguia. Que força seria aquela que me carregava nas pálpebras e me empurrava os olhos para dentro da escuridão? O mais estranho, porém, é que havia uma luz a desmultiplicar-se em cores distintas e tão nítidas como a luz do Sol a dispersar-se através de um prisma. No entanto, pior do que isso era o vómito permanente que me subia das entranhas até à boca. Um vómito que eu precisava deitar cá para fora, mas não sabia como. Se conseguisse abrir os olhos, pensei, ou achei que pensava, talvez pudesse deslocá-los e deitar o vómito pelos buracos. E a língua... Eu devia ter uma língua na boca, mas o que sentia, se é que sentia alguma coisa no lugar dela, era um bocado de cortiça endurecida, que podia também ser madeira muito áspera, e que eu não conseguia comandar.
Lembrei-me também de que possuía pernas, braços e mãos. E se os membros se tivessem volatilizado e eu não fosse mais do que um pedaço de vómito e um bocado de cérebro num crânio de cortiça envolvido por uma cápsula de ferro? Porque a respiração era difícil e o ar entrava a custo. Mas quanto mais ar eu queria tragar, mais intenso se tornava o vómito e o pedaço de madeira na boca mais áspero; por isso, o melhor era engolir o ar aos bocadinhos.
O zumbido que me vinha gradualmente penetrando os ouvidos aumentou, e comecei a sentir frio. Insectos, pensei. Bichos voadores que naquele preciso momento acabavam de me chupar o sangue dos membros, e por isso eu não os sentia, e havia aquela sensação de frio que devia ser o anúncio de morte a chegar. Desejei que chegasse.
Ela veio suavemente.
Imediatamente, a imagem que percebi não passava de uma auréola. Mas a pouco e pouco foram-se definindo os contornos, e como o objecto tapava o foco de luz pude fixar a vista através das pálpebras semiabertas. Era um rosto, a princípio uma mancha com sombreados, e depois apresentando olhos, nariz e boca. Fiz o cérebro comandar os músculos do local onde deviam ser os braços, e os nervos actuaram, embora num esforço que era excessivo, porque o circuito interrompeu-se. O vómito agora era apenas uma náusea. As pálpebras desceram de novo. Eram persianas teimosas.
- Então, Gold, isso vai?
Experimentei a língua. Ainda era cortiça, mas humedecida e menos áspera. Quis falar, articulei as palavras, contudo nenhum som me chegou aos ouvidos. Eu chamava-me Gold, estava vivo, mas mergulhado debaixo de água. Era o homem da Atlântida. Tonto, agoniado, a funcionar quase como uma planta, mas vivo. Uma planta aquática.
- Toma. É café.
As plantas não bebem café pela simples razão de não terem vícios. Francesca. Quem era Francesca? Karin. Sim... Sorri. Tudo o que ainda era eu sorriu tontamente.
- Não faças essa cara. Bebe isto.
Abri os olhos, e foi o facto de reconhecer aquele rosto que desencadeou todo o processo de retorno à realidade.
Ricardo Sánchez. Ria para mim. Não gostei que ele se estivesse a rir. De mim.
- Onde... estou?
Sentia os lábios inchados, levei cuidadosamente a mão à boca, e estava tudo na mesma. Apenas anestesiado, como no dentista após a extracção.
A mão dele agarrou-me a nuca e empurrou-a para cima. O tronco foi atrás. Fiquei sentado, a vacilar. E então é que foi. A náusea voltou a ser vómito, cresceu e subiu por ali acima, e eu deitei as tripas para fora. Para o chão, que ondulava doidamente. As calças e os sapatos do tipo ficaram sujos de um líquido amarelo e malcheiroso.
- Grandecíssimo porco!
A mão puxou-me com violência pelos cabelos e endireitou-me a cabeça.
- Grandecíssimo javardo!
Ocorreu-me pedir desculpa, mas logo o meu cérebro associou a porcaria ao nome do rosto e resolveu que eu não diria nada.
- Ainda te ris, meu filho da mãe?
Se eu sorria, quem o fazia não era eu.
- Toma. Limpa o focinho.
Agarrei o pano molhado e passei-o pela cara. Sabia bem. Cobri a pele toda com ele e deixei-me ficar assim. De repente, o pano foi-me arrancado e a tal luz forte incidiu-me em cheio nos olhos, ao ponto de os magoar numa sensação dolorosa que subiu e se ramificou.
- Agarra isto, estupor, enquanto eu vou limpar a porcaria!
Estendi as mãos como um robot e segurei a chávena com precaução. Por mais cuidado que tivesse, aquilo tremia, e o líquido morno escorregava-me por entre os dedos.
- Se entornas isso, ponho-te a lamber o chão.
Levei a chávena aos lábios e com os dentes inclinei-a. O líquido encheu-me a boca, engoli tudo de seguida e engasguei-me. Desta vez não ouvi a voz. Naturalmente porque a voz não estava lá.
O café fez efeito. Mesmo assim, preferi poisar a chávena entre as pernas e deitar-me para trás. Deixei-me estar e senti-me melhor. Devo ter dormido uns segundos.
- Agora já chega. Toca a levantar.
A mão puxou-me o braço com força e eu fiquei outra vez sentado como se fosse um boneco articulado. Estava melhor. Ainda há instantes não passava de um boneco de trapos.
Consegui abrir os olhos, distinguir com nitidez o espaço e os objectos que me rodeavam e finalmente falar.
- Onde é que estou?
Sánchez deitou-me um olhar de comiseração e proferiu:
- Estás em Tânger, menino. Então...
- Em... Tânger? - articulei.
- Sim. Agora muda-te para aquela cadeira.
Atirei quase sem dificuldade as pernas para fora do divã e assentei os pés no chão. Consegui pôr-me de pé. Andar é que não.
Sánchez passou-me um braço por debaixo do sovaco e arrastou-me até à cadeira. Deixei vergar as pernas e o corpo tombar.
- Como... em Tânger?
- Chiça, que és chato. Está aqui e acabou-se! -Largou uma casquinada. - Em Tânger ou noutro sítio, que importância é que tem? Para ti acabou-se o passeio...
Ainda não me sentia em condições de pensar
- E... AlChasey?
- Al Chasey está bem e recomenda-se. O alojamento dele é tão bom como o teu e fica aqui mesmo ao lado.
- E... - calei-me.
- E o quê?
- Nada. Que foi que me aconteceu?
- Aconteceu-te que tinhas o nariz muito grande e foste apanhado pela boca.- Riu-se da própria graça.-Como um peixe... Ah, ah! Um peixe, é o que tu és.
Engraçado como a ideia dele coincidia com a minha de há pouco.
A minha cabeça começava a estar em condições de pensar. Pensar em quê? Karin, aquela casa com piscina, Juanita com toalha, o gorila no portão... o elefante de tromba erguida... Adolfo González.
- Não estamos em Albufeira?
- Porra! Vais continuar a chatear-me?
Reparei agora que ele tinha o braço esquerdo ao peito, a descansar numa tira de pano preto que lhe dava a volta por trás do pescoço. Continuou, mal disposto:
- Estás em Marrocos, sacana! Norte de África. Tânger!
- Mas eu estava em Albufeira.
Irritou-se e atirou-me uma lambada, de que praticamente só senti o efeito porque a cabeça foi atirada para trás.
- Albufeira, uma merda!-berrou ele.- Estavas em Albufeira, mas agora estás aqui. E por pouco tempo, se Deus quiser...
- Drogaram-me?
Considerou-me como se eu fosse atrasado mental.
- Não, que ideia... Aconteceu apenas que tu estavas cheio de sono, e há dezoito horas que estás a dormir.
- Adormeceram-me para me trazerem até aqui? Até Tânger? - Eu persistia em não aceitar a ideia.
- Ouve, meu grandecíssimo filho da puta, e ouve-me de uma vez por todas! Adormeceram-te, ao teu amigo Chasey também, e trouxeram-te para aqui de avião. Percebeste, grande corno?
- Não.
O soco que ele me deu pôs-me de novo a dormir.
As paredes eram nuas, de cimento, e a decoração do ambiente era a lâmpada de cem velas pendurada do tecto, o divã, uma mesa e duas cadeiras. O chão era também de cimento. Aí encontrava-me eu, virado para cima, com a nuca na superfície áspera. Alguém me tinha estendido ali, visto que a cabeça não me doía. Apenas o queixo.
Sánchez desaparecera. Procurei com a vista uma janela, mas não havia. O ar que eu respirava era aquele que entrava por baixo da porta.
Pus-me de joelhos e gatinhei para o divã. O estômago ardia-me. Devia ser fome. Dezoito horas, dissera ele. Talvez o ardor fosse a azia do vómito.
No caminho reparei que em cima da mesa havia um jarro com água e um copo. Interrompi o trajecto e agarrei-me a uma cadeira. Diabos, tinha de pôr-me de pé, como um homem. Ao cabo de muito esforço, fiquei de pé. Não como um homem, só mais ou menos na vertical.
Despejei água no copo e bebi. De seguida sentei-me numa das cadeiras, finquei os cotovelos no tampo da mesa e decidi que ia pensar.
Em Tânger, insistira Sánchez. Parecia não haver dúvida, porque Sánchez não era tão bom actor como isso. Sem dúvida que podiam ter-lhe ensinado a lição. Porém, as reacções que eu recordava, embora se me apresentassem envoltas em bruma, tomava-as por genuínas.
E Karin? Todo o meu corpo estremeceu, o coração bateu mais depressa e as veias dilataram-se até ficarem a latejar no pescoço e a constituírem um baixo-relevo à superfície dos pulsos. E Karin?
Levantei-me, fui à porta e bati com os punhos. Bati, com toda a força que tinha, e quanto mais gritava e batia mais as forças voltavam. Até se esgotarem outra vez. E então escorreguei pelas tábuas com as unhas a rasgarem a tinta.
- Mr. Gold!
O apelo vinha do outro lado da porta e era duma voz que eu vagamente lembrava. “Frank, está aí?” Esta, tinha a certeza de conhecer.
Claro que eu estava ali. Ou eles não sabiam? Devo ter dito isto em voz alta. De lá chegou-me o ruído de passos e vozes e da chave a rodar. Pusera-me de pé entretanto. Não era capaz de explicar porquê, mas soube de repente que quem me chamava não eram “eles”, e sim outros que vinham buscar-me.
A porta escancarou-se com estrondo, eu saltei para trás e vi Al. Al Chasey em carne e osso, com a cara numa lástima, contudo a sorrir para mim. Atrás dele dois tipos magros, pequeninos, bem vestidos e igualmente sorridentes. Ambos com armas na mão. Mr. Kim e Mr. Su. Gostei tanto de os ver a todos que por pouco não lhes caí nos braços.
- Frank, estás bem?
- Estou óptimo, Al - e caí-lhe mesmo nos braços.
- Pois foi assim, meu rapaz. Sem mais nem menos, ouvi dois tiros, a fechadura voou em pedaços e estes amigos entraram por ali dentro a perguntar onde tu estavas.
Kim e Su limitavam-se a sorrir, a confirmar e sorrir, e quem os visse não daria nada por eles.
- Bem - disse eu, confortado com o bife, que, apesar da hora tardia, o dono do restaurante servira. -E Karin?
Su e Kim olharam-se como se um se visse ao espelho no outro, e quem falou primeiro foi um deles.
- Mademoiselle está bem. Na polícia.
- Na polícia? Que diabo...
- Muito inteligente, na verdade - disse o que falou depois.- A atitude mais inteligente a tomar. Sem dúvida alguma.
Acenaram ambos com as cabeças muito bem penteadas, e eu vi-me também a dizer que sim. Sem sombra de dúvida.
- Vai um cafezinho, Frank?
- Claro - disse eu, muito mais bem disposto. - E Karin, está bem?
Entreolharam-se os três. Al encomendou vários cafés, deu-me uma palmada na mão e empurrou o maço de cigarros para mim.
- Frank, Karin está bem. E tu também. O que sucede contigo é que, além da droga que González preparou na bebida, te deram umas injecções que me pouparam a mim. Só por isso fiz a viagem para cá bem desperto, e estava preparado quando eles apareceram. Isto é... - levou a mão a uma das equimoses da cara.
Kim e Su confirmaram, satisfeitos.
- E como raio apareceram eles?
- Seguiram-nos até Albufeira. E ficaram com o olho em Karin. Passadas duas horas, como não aparecêssemos, foram ao aeródromo mais próximo. Não lhes foi difícil adivinhar o que se passava, quando lhes disseram que dois doentes tinham sido embarcados para Tânger.
Os dois acenavam sempre, a cada frase de Chasey.
- E depois?
- Depois, Mr. Gold-disse Kim (ou Su?)-, três simple. Em Tânger sabíamos de dois ou três sítios onde podiam esconder os senhores.
- E Sánchez?
Su e Kim trocaram entre si um olhar de entendimento. Um deles esclareceu-me, com ar desgostoso:
- O Senor Sánchez morreu. Ataque de coração. -Ah! -comentei. - E os outros?
- Não havia mais ninguém - respondeu.
- Havia só mais um homem -corrigiu o companheiro. Era a primeira vez que algo assim sucedia.
- É verdade -emendou o outro. - Morreu.
- De ataque cardíaco?
- Exacto.
- Ah, bem.
Tomei o café, em goles pequenos. Congratulei-me por Kim e Su serem meus amigos. Um ataque cardíaco... aos trinta e oito?
- E Karin?
Chasey também era mais meu amigo do que eles, mas foi o único que se impacientou. Disparou de rajada.
- Bolas, Frank! Karin fartou-se de esperar, viu aparecer estes amigos, sabia que havia Wong na história, relacionou dois com dois e não hesitou em confiar neles. Só que, uma vez aqui chegada, preferiu ir ter com Rafik. Percebeste agora, ou precisas de uma injecção?
Não. Eu estava bem. Havia no entanto várias coisas a esclarecer e um assunto a arrumar. Talvez dois.
- Karin trouxe a mala dela?
- A dela e a tua - confirmou Al.-Os nossos amigos abriram-lhe o carro, mas deixaram-no ficar onde estava.
- Tenho de mandar as chaves a Santos. - Estranhamente, conservava-as no bolso das calças.
- Não te preocupes agora com isso. Já te sentes melhor?
Disse que sim com a cabeça e tirei outro cigarro do maço de Al.
- Romero?
- Kim e Su também trataram disso.
Virei-me para eles.
- Encontraram-no?
- Foi a primeira coisa que fizemos logo à chegada - confirmaram.
- Ele falou? - inquiri com ansiedade.
- Não, Mr. Gold.
- Porquê?
- Porque estava morto.
Franzi a testa.
- Foi antes de vocês chegarem?
- Sim, senhor.
- Então...
- Só encontrámos este bilhete no quarto dele, entre papéis sem importância.
O que o guardava tirou o papel da carteira, desdobrou-o com precaução e estendeu-mo. Eram dez linhas dactilografadas em francês, precisando que o contrato devia ser cumprido “nessa data”, que era dois dias antes. Concluía com a informação de que metade da quantia combinada seguia junta e o resto seria enviado depois. Não continha assinatura ou qualquer indicação à margem do texto. Virei o papel entre os dedos, li o texto mais duas vezes, e à segunda pus-me de pé num salto, enfiei o papel no bolso e disse para os meus companheiros:
- Tenho de ir fazer uma coisa. Observavam-me com espanto.
- Que se passa, Frank?
- Algo que tenho de ser eu a fazer, e sozinho. Não te preocupes. Encontramo-nos depois. Okay? E rumei para a saída, quase a correr.
Subi as escadas a pé e no terceiro escolhi a porta e toquei à campainha. Quem se encontrava lá dentro apressou-se a abrir, sem mesmo perguntar quem era. Porém, quando me viu, abriu muito os olhos e a boca e saltou:
- Frank!
Depois veio para mim e apertou o corpo contra o meu, de tal forma que eu podia sentir-lhe as formas e o calor.
- Frank - suspirou, comprimindo-me a nuca com as mãos. - Julgava-te em Lisboa...
Distanciou um pouco o rosto.
- Deixa-me ver-te, meu querido. Conta-me o que se passou, por favor... Anda, vamos sentar. Sentou-se bem junto a mim.
- Queres tomar uma bebida?
Disse que sim. Um uísque puro. Foi prepará-lo rapidamente e voltou a ocupar o lugar a meu lado, com um sorriso de ternura nos olhos.
- Sentes-te muito cansado, não é? -Sim, Francesca. Muito cansado.
- Mas - disse ela, acariciando-me o rosto - diz-me então porque te encontras aqui... Como aconteceu isso?
- Fui visitar Adolfo González. Drogaram-me, meteram-me no avião e mandaram-me para cá. Certamente porque era mais fácil para eles fazerem-me desaparecer aqui do que lá.
Abanava os cabelos soltos, assumindo um ar de censura.
- Não tens emenda, Frank. Sabendo que te queriam a pele, ir visitar Adolfo González...
- Enganei-me - disse eu.
- O que sucede é que não tens juízo nenhum, meu amor. Julgava que o que se passou aqui te tinha servido de lição. E, já agora, como conseguiste sair desta?
- Um amigo - disse eu.
Fitou-me profundamente. - Ainda bem que tens amigos-pronunciou num sussurro ligeiramente rouco. Inclinou-se para mim, tocou-me os lábios com a ponta da língua quente e húmida, e a camisa de dormir, presa nos ombros por duas alças muito finas, descaiu, expondo-lhe os seios. O perfume dos cabelos e da pele dela, que eu tão bem conhecia, era uma mistura envolvente de mulher e flores silvestres.
Poisei o copo, segurei-lhe as mãos, que escaldavam, e perguntei-lhe suavemente:
- Que voltas deste na vida, Francesca, para chegares ao ponto de mandar matar um homem?
As mãos crisparam-se nas minhas, mas não as retirou. Apenas afastou um pouco o tronco e a cabeça. A transformação maior ocorreu-lhe no rosto. Os olhos perderam o brilho, os lábios contraíram-se, na testa e na face formaram-se rugas que eu nunca vira, e quando falou a voz custou a sair e não era a voz dela.
- Como... sabes?
Levei uma das mãos ao bolso e extraí o bocado de papel. Ela virou a cabeça logo que percebeu do que se tratava.
- Isto - expliquei, sem ser preciso explicar -, porque foi redigido por ti, na tua máquina de escrever.
Não disse nada durante algum tempo. Só as mãos tremiam nas minhas, e o corpo perfeito era percorrido a intervalos por um soluço que o fazia estremecer. Quando voltou a olhar para mim, não chorava. Havia só duas lágrimas grossas a escorregar pelas faces.
- Frank, é tão difícil...
- Desde quando?
- Desde a Bolívia... Ricardo Sánchez.
- É teu amante?
- Sim. Mas, Frank, asseguro-te que...
- E teu sócio.
- Sim. Frank... -Implorava que a ouvisse. -Eu já não gosto dele. Tudo sucedeu naquela altura, não consigo explicar a mim própria porquê. Fui para a cama com ele, propôs-me isto com naturalidade, prometeu-me muito dinheiro, não sabes?
Não se tratava de falsa ingenuidade. Apesar de tudo, eu continuava a acreditar que conhecia Francesca, e o que ela dizia soava-me a verdade.
- Não penses mais em Sánchez - declarei friamente. - Está morto.
- Oh... -Mas não havia sequer pena na expressão dela. Talvez mesmo algum alívio.
- Mentiste-me desde que aqui cheguei... sabias que eu ia correr riscos, e podias tê-lo impedido. - Era uma questão idiota, reconhecia-o, mas não ficaria descansado se não a pusesse.
Olhou-me com desespero e falou-me com calor, ao mesmo tempo que me pressionava as mãos como para me convencer a acreditar.
- Não é verdade, Frank. Não te menti. Sofri muito quando soube que vinhas, porque tinha a certeza de que não arranjaria processo de te dissuadir. Sabes isso, Frank. Eu não conseguiria impedir-te de seguir para a frente, e não resolveria nada revelando-te a verdade. Mesmo que fosse capaz de o fazer. E não era... Por favor, acredita. Disse a Ricardo que te poupasse, e garantiu-me que o faria. De resto, não havia vantagem para ele em molestar-te, porque o nosso propósito era destruir as organizações de Wong e de González.
Adiantei-me.
- Tu tomaste a de Wong a teu cargo, e ele a de González, não foi?
Anuiu.
- Então – acrescentei -, quando aquele grupo foi apanhado anteontem de madrugada, foi porque Sánchez preparou tudo isso como parte do esquema para sabotar os planos de González.
- Sim-disse ela.-E nessa altura escapou por um fio.
- Porque eu apareci...
- É verdade.
Ainda não me sentia esclarecido em relação a alguns aspectos que me diziam directamente respeito.
- Não podiam ter-me ajudado, na noite em que os tipos de González me prenderam e perseguiram?
Abanou a cabeça.
- Não, Frank. Ricardo nada podia fazer, e para não se denunciar teve mesmo de simular que participava. Conversei muito com ele sobre isso.
- Não consegui encontrar-te todo o dia...
- Eu não podia, Frank. Não podia falar contigo, porque então teria de te mentir e não seria capaz...
As lágrimas tinham secado e parecia agora mais calma. -E esta noite? Era Sánchez quem me guardava. Apesar disso, não sabias de nada?
- Não - afirmou com vigor.-A última vez que falei com ele foi esta manhã, por telefone. A teu respeito apenas me disse que Karin desaparecera, e suspeitava que tivesses sido tu.
- Fui eu - respondi à pergunta que ela não chegara a formular.
- Ainda bem - disse simplesmente. O rosto apresentava, no entanto, uma expressão triste.
- Gostas muito dela, não gostas?
- Sim - declarei.
- E eu? Que me vais fazer?
- Penso que Sánchez tencionava liquidar-me - afirmei, iludindo a resposta.
- Porque dizes isso? - inquiriu surpreendida. - O trabalho que tu estavas a fazer só podia ser-lhe útil.
- Não, a partir dali - afirmei. - Ele ia afastar-se de González. De certo modo, isso contribuiria para desviar dele as intenções da polícia, mas não as minhas. Sabia perfeitamente que eu ia envolvê-lo.
- Não sei, Frank...-proferiu, com ar fatigado. Parecia dez anos mais velha.-Já não sei nada... Que vais fazer agora?
Suspirei e olhei-a bem. Continuava a ser Francesca, uma das mulheres mais belas que eu contemplara na vida. Soltei:
- Como pode uma mulher como tu envolver-se com um tipo daqueles?
Os lábios distenderam-se ligeiramente num sorriso cansado.
- A vida tem dessas coisas, Frank. Sabe-lo tão bem como eu...
Sim. Eu sabia. Tirei a mão de entre as dela e pus-me de pé. Ela olhou para cima, com angústia nos olhos, e perguntou:
- E... eu, Frank?
- Tu... - Preferi ir para a porta, e só quando a alcancei, e antes de a abrir, larguei, sem olhar para trás:
- Farás o que entenderes...
Saí rapidamente. Pareceu-me ouvir dizer: “Amo-te, Frank”, mas deve ter sido impressão minha.
A transparência da água verde-esmeralda fazia que nos apetecesse entrar nela, senti-la a lavar-nos o corpo. A vastidão da baía calma, em tonalidades que progressivamente atingiam o azul da safira, o pequeno paquete a largar, davam ânsia de partir para longe. O Sol descia para lá do cabo Espartel, num esplendor vermelho e ouro. Risquei ao de leve a areia húmida e no desenho o meu dedo encontrou a mão dela. Depois foram os nossos olhos, e mesmo sem juntarmos os corpos, apenas pelo contacto das mãos, era como se cada um de nós não pudesse desligar-se do outro.
- Para onde, Frank?
Fiz um gesto que abrangeu a baía.
- Tanto faz... Onde haja uma praia, palmeiras...
- E peixe, e fruta?
- Claro, minha querida.
- E só nós os dois. Sorri.
- Não vai ser fácil...
- Havemos de descobrir... Não achas, Frank?
- Claro que sim, pequena. Havemos de conseguir tudo. Atirou o cabelo para trás e disse:
- A partir de agora, não tenho medo.
- Claro que não. Fizeste o que era preciso. E eu também. A polícia trata do resto.
- Hão-de apanhá-los, não achas?
- Tenho a certeza.
- Quando partimos?
- Amanhã de manhã. Tenho de me despedir dos amigos.
- Quem são os amigos, Frank?
- Felipe, Ahmed... e Joana.
- É bonita?
- Sim, querida. É a cabrinha mais gentil que já conheci.
Contei-lhe, escutou, e no fim proferiu:
- É bonita, essa história.
- Sim-disse eu.- O homem é um animal estranho. Deve ser mesmo o único que gosta dos outros bichos e faz mal aos seus semelhantes.
- Tu não és mau - declarou ela.
- Não sei. - O vento começava a levantar a areia. - Vamos andando?
- Sim, Frank.
- E amanhã, adeus, Tânger... Até à vista. E connosco levamos 47 000 dólares.
Ela virou o rosto lindo para mim, e nele havia preocupação.
- Frank, eu queria dizer-te... Mas não calhou...
- Dizer o quê, meu amor? Não é esse o dinheiro... o nosso dinheiro?
- Não, querido - falou ela baixinho. Senti um peso do lado esquerdo do peito.
- Mas, Karin... Não me disseste que o tinhas guardado?
- Sim, querido - disse por fim.- Mas é que... tirei cinquenta dólares para comprar roupa. - E logo acrescentou: - Eu depois pago...
Soltei uma gargalhada. E com o beijo que lhe exigi fi-la pagar ali mesmo.
Frank Gold
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