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A RAPARIGA DE TIMES SQUARE / Parte III
53
Polícia em primeiro lugar
Spencer tinha três opções. Podia voltar e insistir com Lily até ela contar o que sabia. Não deveria demorar assim tanto tempo. Lily era extremamente persuadível. Mas depois teria de viver consigo mesmo. Ou poderia ir falar com Jan McFadden e fingir que Lily nunca lhe tinha contado nada. Ainda teria de viver consigo mesmo... mas mais facilmente.
Ou podia ainda não fazer nada. Fingir que não tinha ouvido, fingir que não se importava. E ainda assim, teria de viver consigo mesmo.
Spencer foi falar com Jan McFadden. Ela estava mesmo mal. Disse que Jim andava agitado, a ameaçar sair de casa, tirar-lhe as crianças.
Spencer sentou-se na cozinha começando com alguns rodeios. Paul, Rachel, Lily, sim, a Lily não lhe parece tão bem? Sim, e ela também se sente bem. Estava tudo bem quando ela veio visitá-la? O que é que fizeram? O que aconteceu?
Esmiuçando a vida de outra pessoa, fica-se com medo de encontrar algo demasiado pessoal do qual gostávamos desesperadamente de nos afastarmos, como encontrar alguém a masturbar-se, e foi assim que Spencer foi espiolhando e pressionando, de olho na porta, com as palavras dê-me licença constantemente nos lábios.
Era de manhã quando foi ter com Jan que ainda estava de robe. Ela deve ter sentido algo, visto algo nele, algo reconfortante e sem juízo de valor, porque foi buscar dois copos e pousou-os na mesa da cozinha.
— Detetive — disse Jan —, podia fazer um café para nós, mas já não bebo café de manhã. Quando as crianças estão na escola, quando o Jim está no trabalho, ando pela casa, não funciono.
Pegou numa garrafa de Chivas.
— Posso servir-lhe também um copo? Só para fazer companhia?
Spencer engoliu em seco.
— Tenho de conduzir, Jan — disse Spencer. — Mas esteja à vontade.
— Só um pouco? Para não beber sozinha?
— Só um pouquinho, então — disse Spencer. — Para não beber sozinha.
E quando eles se sentaram e sentiram solidários um para com o outro sobre a criança que um dia ali esteve e agora já não está, depois de terem brindado e bebido, Jan falou-lhe sobre a filha Amy, as flores de cerejeiras e a canção O poderoso Quinn (The Mighty Quinn) de há três anos.
Quando Spencer voltou para a cidade, foi de imediato para a sua mesa redonda, com o seu próprio copo, a garrafa cheia, tentando descobrir o que raio poderia fazer.
Para alguém que o observasse de fora podia parecer que ele não tinha escolha. Em vez de fazer alguma coisa, podia não fazer nada. Podia deixar o irmão dela em paz, podia arquivar o processo, podia deixar uma mulher que tinha perdido toda a sua vida a continuar a perdê-la, sem saber, sem fazer o luto adequadamente e continuar a ser incapaz de sentir amor pelo que ainda tem. Mas era claro para Spencer, que se conhecia melhor do que ninguém, que não havia qualquer opção a não ser a da luta que se adivinhava.
Passou a noite em branco até ficar sóbrio, a mastigar lápis e borrachas e capas de blocos oficiais. Não respondeu à mensagem de Lily quando ela ligou e, na manhã seguinte, às oito, ele e Gabe McGill já se encontravam a oitenta quilómetros a leste, em Port Jefferson, a passar pelos agentes do Tesouro à honrosa porta do congressista.
— Bom dia — disse Spencer. — Senhor congressista, este é o Detetive McGill, dos homicídios. Podemos entrar?
Tal como Spencer tinha calculado, a palavra funcionou lindamente. Andrew abriu-lhes a porta e até apertou a mão a Gabe.
— Há meses que não o vejo, detetive — disse ele a Spencer. — O que posso fazer por si?
Spencer entrou e dirigiu-se diretamente ao escritório sem cortesias para com Andrew ou Miera, que estava na cozinha a fazer café.
Andrew e Gabe seguiram-no.
— A que devo esta visita? Pensei que estivéssemos acertados.
— Diga-me onde está a Amy e então ficaremos acertados.
— Se eu pudesse, fá-lo-ia — disse Andrew. — Agora, o que quer saber? Como posso ajudá-lo? Consigo sentir o seu desespero. — Sorriu afavelmente para Gabe que continuou de braços cruzados de forma contundente em frente à secretária de Andrew.
— Até ontem — disse Spencer —, não tinha considerado a possibilidade de o senhor e a Amy se conhecerem antes dela ir para City College e começar a ser amiga da sua irmã. No seu depoimento disse que o vosso caso só tinha durado alguns meses. Ontem, a mãe da Amy deu-me razões para acreditar que o seu envolvimento com a filha remonta há três anos, pelo menos. O vosso primeiro encontro em frente à sua irmã foi uma farsa porque o senhor e a Amy já estavam envolvidos. Por isso, agora, mais uma vez: há quanto tempo conhecia a Amy?
Andrew hesitou.
— Não sei...
— Congressista — disse Gabe —, responda à porcaria da pergunta. Já conhecia a Amy há três anos?
— Eu não... não entendo onde quer chegar. Já disse que não me lembro. Pode ter sido mais do que alguns meses, acho eu. Não sei.
— Congressista! — Por incrível que pareça, era Gabe a gritar. Apeteceu a Spencer dar-lhe uma palmada nas costas. Não há polícia bom e polícia mau esta manhã, só polícia mau, polícia mau. — Pare com o eu-não-sei, nós não vamos ficar por aí. A rapariga está desaparecida há um ano. Não atire areia para os nossos olhos. Sabe tudo e não está a dizer.
— Eu cometi um erro inocente com as datas, só isso.
— No meio do seu erro inocente, a sua amante mudou de universidade e foi morar com a sua irmã, já para não falar de que desapareceu!
O rosto de Andrew estava atordoado, confuso.
— Detetives, detetives ... — Levantou as mãos para que se acalmassem. — Vamos lá — disse em tom conciliador. — A farsa foi por causa da relação, só isso. Obviamente estávamos a tentar mantê-la em segredo. Da Lily. Foi por isso que fingimos que não nos conhecíamos. Confundi-me com as datas. Onde é que há malícia deliberada aqui?
— Quem disse alguma coisa sobre malícia deliberada? — perguntou Gabe de olhos semicerrados.
— E não é o que estamos a perguntar-lhe — disse Spencer. — Estou interessado em entender porque levou a Amy a mudar de universidade, de Hunter para o City.
— O que é que está a dizer? Não fiz isso.
— Sem o senhor, como é que a Amy saberia sobre a sua irmã frequentar o City College, e ter aulas de arte?
— É claro que falámos sobre a minha vida — o rosto de Andrew ficou profundamente contorcido. — Estávamos envolvidos. Ela sabia muitas coisas sobre mim, Detetive O’Malley. É assim que acontece. Está com alguém, conta-lhe coisas. E então, às vezes, as pessoas usam essa informação contra nós ou contra pessoas que nos são próximas. Sabe que isso pode acontecer, não é detetive?
Empalidecendo, Spencer recuou um passo afastando-se do congressista e ficou mudo. Por um minuto, não conseguiu falar. Por um minuto, apeteceu a ele próprio dizer que não sabia do que ele estava a falar. Depois ocorreu-lhe que o congressista estava a falar de si mesmo, mas o olhar amargo de Andrew não desapareceu, nem quando falou com Spencer, nem quando falou sobre Amy.
— Sentiu que a Amy usou as coisas que lhe disse contra si? — perguntou Spencer lentamente.
— Talvez isso seja um pouco forte. — Mas a voz de Andrew continuou segura. — Fiquei muito surpreendido por ela ter mudado de universidade, ter-se feito amiga da minha irmã. Quando descobri, disse-lhe que não achava correto. Que isso tornaria as coisas mais difíceis para nós. Mas quando descobri, elas não só já eram amigas há meses, como estavam a morar juntas.
— Nunca perguntou à Amy por que razão o fez?
— Claro que perguntei à Amy por que razão fez aquilo! Ela disse que queria estar mais perto de mim. Disse que ser amiga da Lily nos daria mais oportunidades de nos encontrarmos. Tornar as coisas mais apropriadas, em vez de menos adequadas. Com a minha vida agitada, às vezes era difícil estarmos juntos. Através da Lily teríamos possibilidade de nos vermos com mais frequência e ainda mantermos um ar de decoro. Eventos familiares, almoços a três, a minha campanha. Tudo para podermos estar mais vezes juntos. — Andrew disse estas palavras entre dentes.
Spencer trocou olhares com Gabe. Ele não sabia dizer o que era verdade e o que não era. Finalmente, disse:
— Mas o engano aqui... é escandaloso. Durante anos a tentar constantemente encobrir a vossa intimidade à sua irmã.
— Foi mais fácil do que pensa. A Lily consegue estar bastante alheada do que se passa à sua volta. — Andrew olhou friamente para Spencer.
O olhar de Spencer ensombrou-se.
— Basta! — disse num tom baixo. Desanimado, pensativo, parou em frente a Andrew com Gabe a puxar-lhe o braço.
Gabe perguntou:
— Se não a conheceu através da Lily, como a conheceu?
Andrew olhou para cada um deles e não disse nada, até Gabe puxar Spencer para o lado e Andrew se ver só com a possibilidade de olhar para Gabe.
— Não me lembro — disse finalmente. — Acho que ela veio ao meu escritório em Port Jeff, pedir alguns folhetos.
Spencer parou para pensar nas suas pistas e virou-se para Andrew:
— Ela foi ao seu escritório?
Andrew respirou fundo:
— Sim.
— A Amy McFadden foi ao seu escritório?
— Sim. Ela estava sempre a aparecer por lá.
Spencer, olhando fixamente para Gabe, ficou temporariamente sem perguntas. Isto ia contra todas as suas hipóteses.
— Quando foi isso?
— Já lhe disse, não sei e não me lembro. Nas férias de inverno, possivelmente. Férias de inverno, 1996.
Durante bastante tempo, Spencer ficou parado diante de Andrew, a absorver o que tinha acabado de ouvir.
— Está a dizer-me — disse incrédulo —, que conhecia a Amy há quase dois anos antes de a sua irmã vos apresentar?
— Não me lembro exatamente.
— Lembra-se com exatidão se a Amy o ajudou na sua campanha em 1992? A sua primeira candidatura a congressista? Ela ajudou-o nessa altura?
— Recordo-me disso com exatidão — disse Andrew. — A Amy não me ajudou na minha campanha de 1992. — Parou de falar. — Ainda não a conhecia.
E então veio a pergunta. Spencer não poderia ter perguntado aquilo antes, quando ele próprio era alheio à verdade das coisas.
— Congressista Quinn, estava ... apaixonado por ela?
Andrew pestanejou.
— Bem, como você diz, foi apenas um caso, uma aventura. Ela era uma miúda, com metade da minha idade. Estávamos em momentos completamente diferentes da vida. Durante um tempo fui arrastado para algo, admito. Sabe como é, não é detetive? Saber que algo é tão errado, porém ser arrastado para isso?
E então Spencer pestanejou.
Gabe apenas olhou de um homem para o outro.
— Francamente, ninguém está a fazer a pergunta que está na minha cabeça — disse Gabe. — A única coisa para a qual me sinto arrastado... E isso, congressista Quinn, é se sabe onde está a Amy?
— Não.
— A sua memória melhorou acerca deste personagem que estamos a investigar, Milo, e a ligação dele com a Amy?
Andrew pestanejou.
— Não.
Gabe e Spencer viram o pestanejar, trocaram olhares.
— Pode ser alguém com quem ela esteve envolvida?
— Não sei.
— A Amy mencionou algo incomum sobre a secundária, talvez sobre as viagens dela com os amigos antes de conhecê-lo?
— Não. — Ele fez uma pausa. — Ela disse-me que durante o tempo que esteve fora, experimentou diferentes religiões. Até tentou uma igreja de índios americanos para ver se eles tinham as respostas.
— Que igreja de índios americanos?
— Não sei...
— A Igreja Nativa Americana, talvez?
— Talvez.
Tudo isto foi perguntado por Gabe. Spencer não estava a falar até que disse:
— Foi a Amy que terminou a relação?
— O quê?
— Oh, por favor! Estes jogos que faz para ganhar um pouco de tempo. É uma pergunta difícil? Ela procurou-o, procurou a sua irmã, foi morar com a Lily sem o seu conhecimento, apresentou-lhe a situação como um fait accompli. Parece que ela é que comandava as coisas. E depois ela terminou a relação. Sinto que estou certo. Porquê?
— Era altura de a relação terminar. Só isso. — Andrew baixou o olhar em direção à secretária.
— Esta figura, Milo, voltou à vida da Amy no abrigo mesmo na altura em que ela terminou consigo. Teve alguma coisa a ver com ele?
— Não sei do que está a falar. Céus! Não sei! Chega! Já me perguntou isso. Disse-lhe em outubro, estou a dizer-lhe agora, não sei nada sobre o Milo.
Spencer aproximou-se da secretária.
— Se sabe quem é o Milo, porque não no-lo diz? Se isso vai ajudá-lo, porque não no-lo diz?
— Quem disse que vai ajudar-me? — disse Andrew, fazendo Spencer parar o seu raciocínio.
— Estou a tentar encontrar respostas para a mãe da Amy — disse —, para que a vida dela possa seguir em frente. E a da sua irmã também...
— Não se atreva! — disse Andrew de dentes cerrados. — De todas as pessoas, logo você a falar sobre a minha irmã. Pensa que eu não sei o que anda a fazer? Que eu não o percebo? A aproveitar-se da doença dela. A Lily não sabe nada. Não vai conseguir respostas através dela.
Spencer cerrou os punhos.
— Não me está a entender de todo, senhor congressista. Porque isto não é sobre mim. E isto não é sobre a sua irmã. É sobre o senhor e a rapariga com quem esteve envolvido durante três anos e que está desaparecida há um ano. É disso que se trata. Está sempre a esquecer-se disso.
O rosto crispado de Andrew encarou o rosto crispado de Spencer.
— Anda atrás do homem errado, detetive — disse Andrew. Havia algo de ameaçador no seu tom. — Percebe?
Spencer avançou na direção de Andrew e foi parado por Gabe, que o agarrou, impedindo-o.
— Não, pá, não. Não vale a pena — disse Gabe calmamente. — Não vale a pena.
Andrew disse:
— Venha lá! Ando à espera disto. Vai passar entre cinco e quinze anos na prisão por agressão, vai ser expulso da polícia, seu filho da puta. Vamos lá, mostre-me quem realmente é.
Spencer afastou-se de Gabe e dirigiu-se à porta.
— Não tenho tempo, o senhor está muito ocupado a mostrar-me quem é. — Lutou para se conter. — Não está a perceber. Você é que escolheu o homem errado para mentir. Acha que as suas ameaças em relação aos Assuntos Internos, as suas solicitações aos meus superiores me vão calar? Não vou sair de cima de si até que a porcaria da sua confissão esteja na secretária do meu chefe. Percebe?
No caminho de regresso, Gabe começou a falar e Spencer interrompeu-o, dizendo:
— Gabe, nem uma palavra. Não quero falar sobre nada agora. Nada, está bem? Escreveremos tudo quando chegarmos. Só preciso de pensar por um minuto.
54
Assuntos infernais
No dia seguinte, Spencer foi novamente convocado ao andar de cima.
Whittaker olhou para ele com simpatia.
— Spence, mas que raio andas tu a fazer para aí que te chamam a cada cinco minutos?
— O que é que eu posso dizer-lhe, não têm nada melhor para fazer. — Spencer encolheu os ombros despreocupadamente. Aquele maldito Andrew! — Chefe, tenho andado a perguntar, mas parece que ninguém sabe. Já ouviu falar da Igreja Nativa Americana?
— Já ouvi falar. — Whittaker encolheu os ombros.
— O que é que eles fazem?
— Não sei muito sobre eles. Tudo o que sei é que são os únicos legalmente autorizados a usar mescal nas suas práticas religiosas nos Estados Unidos.
— Mescal?
— Mescalina. Dizem que o alucinogénio os aproxima do seu deus. É tudo o que sei sobre eles. É melhor ires. A Sra. Monroe está à tua espera. — E Whittaker fez o movimento do bater de uma toalha na direção da virilha de Spencer.
Mais uma vez, sentou-se em frente da brusca Liz Monroe de ar empresarial e de dois dos seus lacaios.
— Detetive, não vou estar com rodeios. Temos uma nova testemunha.
Uma nova testemunha, assim de repente, um dia depois da visita ao congressista.
Monroe continuou:
— A Sra. Edith Stanley vive numa casa diagonalmente oposta à de Nathan Sinclair, do outro lado da rua. Tenho aqui um depoimento da Sra. Stanley. Ela diz que — Monroe fez uma pausa para pôr os óculos enquanto Spencer esperava —, naquela noite, viu uma sombra...
Os detalhes na declaração da Sra. Stanley eram tão vagos que foi espantoso para Spencer estar a ser questionado tendo por base a suposição da sua utilidade.
Spencer interrompeu-a.
— Vamos colocar-me em frente à Sra. Stanley e ver se ela acha que sou o homem que ela viu uma noite como uma sombra, a atravessar o relvado depois da meia-noite. Ela ainda mora lá? Eu ligo-lhe, se quiser. Podemos trazê-la à esquadra em poucas horas.
— Não fará tal coisa, detetive — disse Monroe, a voz a subir de tom. — Primeiro, ela já não mora na Sound Beach Avenue.
— Oh? Onde é que ela está agora? — perguntou Spencer inocentemente.
— Está numa unidade de cuidados de saúde em Greenwich.
— Um lar de idosos? Mas como ouviu falar dessa mulher agora? O que a fez procurá-la?
— Nós recebemos informações de vários modos, detetive, como bem sabe.
— Eu sei. Estou a perguntar como conseguiu essa informação em particular.
— Temos pessoas que... estiveram a falar com a maioria dos moradores da Sound Beach Avenue.
— Têm pessoas... — Spencer franziu a testa. — Mas acabou de dizer que a Sra. Stanley já não mora lá.
— É verdade.
— Então, entrevistou-a pessoalmente?
— Não, pessoalmente, não. Nós temos...
— Pessoas para isso. Eu sei. Alguém falou com o diretor do lar de idosos?
— Não tenho isso nas minhas anotações. Não vejo qual é a relevância.
— Bem, desculpe perguntar por um assunto tão indelicado, mas que idade tem a Sra. Stanley?
— Detetive O’Malley...
— Que idade? Tem pelo menos a data de nascimento nas suas anotações?
Relutantemente:
— Nasceu em 1907.
Spencer manteve a voz no mesmo tom. Foi difícil.
— Então deixe-me perceber — disse lentamente. — Tem um depoimento à sua frente de uma mulher de 93 anos que diz que há quatro ou cinco anos, numa noite qualquer, viu uma sombra?
— A Sra. Stanley diz ter visto um homem de roupas escuras a sair rapidamente da casa de Sinclair, à noite.
— Desculpe interromper outra vez — interrompeu Spencer novamente —, mas continuo confuso. Em que noite?
— A noite em questão...
— Que data é que ela dá no seu depoimento para a noite em questão?
O movimento ansioso das mãos cuidadas disse a Spencer que Monroe não conseguiu encontrar essa informação em concreto.
Ele acrescentou:
— E alguém deveria conversar com o diretor do lar de idosos, não acha? Para saber qual o motivo de saúde que levou a Sra. Stanley aos seus cuidados.
— Não vejo como isso possa ser relevante.
Spencer assentiu com a cabeça.
— Vou mostrar-lhe. Só um momento, Sra. Monroe. — Pegou no telemóvel. — Pode dar-me o número ou devo ligar para as informações?
Ela deu-lho de má vontade e, enquanto ela esperava, Spencer passou dois minutos ao telefone com o Sr. Cerone, o diretor da unidade, a fazer-lhe duas ou três perguntas enquanto assentia com a cabeça.
Quando desligou, disse:
— Vê, é sempre útil ter todos os detalhes. Pode querer ligar pessoalmente ao Sr. Cerone, para que fique nos seus registos. Ele confirmará que Edith Stanley está sob os seus cuidados há quase três anos, uma vez que, pouco depois do seu 90.º aniversário, quando o glaucoma e as cataratas contra os quais lutava há anos, a deixaram funcionalmente cega e ela deixou de poder continuar a viver de forma independente.
Liz Monroe ficou sentada como uma estátua de pedra; os homens que a flanqueavam agitaram-se bruscamente.
— É tudo, detetive O’Malley?
Spencer levantou-se da mesa e fez-lhe um sorriso amarelo.
— É tudo, Sra. Monroe.
55
Teste número dois falhado
Lily leu nos jornais sobre os novos indícios acerca de Andrew e Amy. Certamente que não soube através de Spencer. Há dois dias que não sabia nada dele. Quando já não conseguiu mesmo aguentar mais, ligou-lhe. Enquanto estava a ouvir o sinal de chamada ocorreu-lhe, com bastante clareza que, se algo lhe acontecesse, a vida de Spencer continuaria tal como dantes, enquanto a dela sem ele pararia completamente... como estava agora provado. Ela não tinha vida sem ele. De manhã à noite, todos os dias, ele preenchia os seus minutos, a pensar nele, à espera de ter notícias dele, a falar com ele, a estar com ele, a tocar nele, a pintá-lo. Lily podia ficar mais atraente com o cabelo que estava a nascer, podia maquilhar-se para ele, e comprar uma combinação para vestir para ele, mas apesar de tudo isso, as coisas eram o que eram: sem ela Spencer seria exatamente igual, enquanto Lily não seria nada sem ele. Era demasiado patético até mesmo para uma Rapariga com Cancro. Por isso, quando ele lhe devolveu a chamada, ela não atendeu o telefone. Quando ele lhe ligou de volta, ela tentou não atender o telefone.
— Lil? Vá lá. Atende.
Cedendo, atendeu.
— Olá.
— Olá.
A sua laringe não estava a funcionar. Não disse nada. O punho estava pousado no coração.
— Vou aí hoje à noite, depois do trabalho. Está bem? — disse Spencer. Havia peso na sua voz.
Lily estava no estúdio quando ouviu a chave na porta. Adorava que ele pudesse ir e vir quando quisesse. Que ele pudesse fazer na sua vida o que ele quisesse.
Ela saiu e parou na sala. Ele parecia tão bem, tão sério, tão maduro e, por alguma razão, tão atormentado.
Lily queria dizer-lhe o quanto ele significava para ela e o que sentia por ele, mas começou a chorar, a agarrar-lhe a cabeça e o pescoço sussurrando Spencer... quando ele já estava em cima dela, os braços dele a suportarem o próprio peso, ficando assim, daquela maneira, sem ser cansativo. E chorou depois, enterrada debaixo dele, a segurar-se a ele, estremecendo nos seus membros, nos ombros dela, na sua barriga. Lily achou que ele já sabia.
Estavam deitados na cama e estava tudo errado. Lily sentiu-o. Eles podiam ter feito amor mas, desta vez, a tensão libertada não resolveu a tensão do seu eterno conflito.
Ela tinha medo de lhe perguntar o que se passava. Mas não ia voltar a cometer esse erro. Não ia estragar as pazes com a sua idiotice sem sentido.
De repente, foi Spencer quem falou. Disse-lhe coisas. Disse-lhe calmamente que estava a ser investigado pelos Assuntos Internos. Lily segurou-lhe a mão em simpatia muda, enquanto pensava bem na melhor coisa para dizer. Ela não sabia bem como passar à próxima questão. Sentia agitação na barriga.
— Não compreendo. Estás a ser acusado exatamente de quê?
— Eles pensam que tenho alguma coisa a ver com a morte de Nathan Sinclair.
Lily lutou contra o impulso de lhe largar a mão.
Porque será que pensava que Spencer estava a lutar contra o impulso de largar a dela?
Ganhou coragem nas suas entranhas livres da quimio para dizer:
— Porque não lhes dizes que não foste tu?
— Eu disse-lhes.
— E?
— É claro que não acreditaram ou não estariam ainda a falar comigo.
Spencer não estava mais disponível para o assunto, como se tivesse algo mais a dizer, mas não o quisesse fazer com Lily. Parecia que tinha mais a dizer sobre todo o processo mas não queria.
E o que era interessante é que Lily não queria ouvir. De repente, ela não queria pressionar. Um peso horrível estava a apoderar-se dela por sentir o corpo rígido e soturno de Spencer à sua volta.
— Tenho estado tão concentrada só em mim — disse Lily calmamente —, e durante todo o tempo tu também precisavas de mim. Sabia que alguma coisa se passava contigo. — Virou-se para ele.
Spencer abanou a cabeça.
— Não estou a passar por nada, Lil. Tu, por outro lado, precisas da minha ajuda. Eu estou bem. Tudo isto com os Assuntos Internos vai acabar. Ou não. Seja como for, estou pronto para as consequências.
Ele disse-o. Ela pensou nisso:
— Que consequências?
— Lily, o meu universo não é existencial. Não é vazio de significado. Tal como tu, acredito num universo onde as ações não acontecem em vácuo. Onde todas as ações, mínimas ou gigantes, têm efeitos ressonantes. Acredito que as ações de Nathan Sinclair resultaram, eventualmente, em consequências que ele não pretendia ou procurava. Tal como as de muitas pessoas.
Foi o tom amargo de Spencer que ela não conseguiu entender, mas que sentiu estar de alguma forma relacionado com ela. Estava a magoá-la, a fazê-la sentir um formigueiro na pele. Lily sentiu a pele a ficar fria e a transmitir ansiedade através do seu corpo. Não conseguia parar o suspiro involuntário, não conseguia parar o afastamento. Pôs as mãos sobre os olhos e, quando Spencer estava dobrado sobre ela, Lily pensou que isto era mesmo algo que afetava não só Spencer. Esta coisa dos Assuntos Internos com ele era sobre ela também! Ela. E Amy. E Andrew.
— Isto não é só sobre o Nathan Sinclair, pois não, Spencer?»
Ele largou-a e afastou-se na cama.
— Não, Lily. Nunca é só sobre uma coisa.
— Pronto, vamos lá saber. O que é que a tua investigação dos Assuntos Internos tem a ver com o meu irmão?
— A mesma coisa que ires a casa da Jan McFadden e não me dizeres.
O coração de Lily parou.
— Não havia nada para contar — disse em voz insegura.
— Estamos na cama. Para de mentir. Sei a verdade agora. E o teu irmão está a tentar calar-me, não tenho dúvidas. Ele tem detetives privados a esmiuçarem cada milímetro da minha vida, para me tirarem do caso, para me calarem. Não é uma coincidência que, de todas as vezes que vou falar com ele com novos indícios, não passe nem um dia sem que os Assuntos Internos venham atrás de mim com uma acusação falsa ou antiga suspeição. Ele tem pessoas a trabalhar afincadamente nisto. Se eu alguma vez aceitei um suborno, se usei força excessiva, drogas no trabalho, se disparei a minha arma indiscriminadamente, se estive envolvido em corrupção... Mas a única coisa que o Andrew tem é a morte de Nathan Sinclair, e empunha-a como a espada de Dâmocles.
Lily afastou-se dele.
— Spencer — disse —, quem és tu? Porque estás tão paranoico? Estamos a falar do meu irmão! Isto não é sobre um chefe do crime organizado. Trata-se do meu irmão congressista, honesto e calmo. Estás a ser completamente insensato.
— Lily, a tua amiga Amy andava há três anos com o teu honesto, casado e calmo irmão congressista e, enquanto isso, ele mentia na tua cara e ela mentia na tua cara.
Ela saltou da cama. Onde encontrou ela a força?
— Talvez. Sim, estás certo, ele é um mentiroso e um desgraçado, não agiu bem, tens razão, sim, mas não a matou! — gritou. — Não foi ele. Tu não o conheces como eu. Isto não é o teu Nathan Sinclair, isto é diferente, esta vida é diferente!
Spencer também se levantou, sentando-se.
— Acalma-te.
— Há sempre pessoas a serem raptadas — disse Lily, ofegante. — Vejo na televisão. Raparigas, raparigas novas, levadas, raptadas por estranhos ou conhecidos de um bar.
— Lily, estás a falar com um investigador de pessoas desaparecidas. Eu sei. Recebo centenas de casos desses por ano. Pessoas mais jovens são o padrão. Não estudantes universitárias de vinte e quatro anos. A Amy saiu uma manhã e nunca mais voltou. Deixou todo o seu dinheiro e cartões de crédito para trás. Ao contrário da altura em que foi viajar com os amigos, organizando a sua vida, desta vez saiu numa sexta-feira à tarde e evaporou-se da face da Terra. E já agora, não penses que não reparei que ela desapareceu assim que foste para Maui.
— O que é que estás a querer dizer? — Lily estava perplexa. — O que é que isso tem a ver com o assunto?
— Nada? Tudo? Estou só a dizer que reparei nisso, Lily, tu estares fora do caminho.
— Fora do caminho para quê? — ela suspirou. E depois lembrou-se da Amy lhe dizer: «oh, sim, Lily, claro, vai para Maui, devias mesmo ir»; e do Andrew lhe dizer «Estás sentada... a ouvir? Vai já para Maui, Liliput. Nem acredito que vou dizer isto, mas deves ir. Mesmo. Sai da cidade por uns tempos, acalma a nossa mãe», e ficou a olhar para Spencer ainda mais perplexa.
— Então o que é que lhe aconteceu? — perguntou Spencer. — Onde está a batalha pela sua custódia? Quem está a lutar pela Amy? Onde está o seu pedido de resgate? Quem quer dinheiro por ela?
— Não o meu irmão. — A voz de Lily tremia.
— O que sabes sobre o teu irmão?
— Sei que não a mataria.
— Não?
— Não. — Ela recuperou a todo o gás. — Porque além de se candidatar a um cargo público, além de querer ser presidente dos Estados Unidos, nunca se sentiu apaixonado por nada em toda a sua vida! Nunca, sobre nada em toda a sua vida! Não há extremos para ele, só mesmo o meio, só uma velocidade, uma velocidade constante e sólida como uma rocha, uma suave subida — esse é o meu irmão!
— Mesmo como tu, hã, Lil? — Spencer disse-o ironicamente porque ela não estava centrada naquele momento, estava no escuro a gritar.
— Pessoas assim — continuou Lily a hiperventilar —, não matam outras pessoas. Nem acabam uma relação. Um dia deixam de telefonar e esperam que ninguém gostasse assim tanto delas para reparar. — Baixou os olhos. — Mais ou menos como tu tratas as mulheres na tua vida, Spencer.
Ele também baixou os olhos, mas só por um momento.
— Lily, repito, tu não sabes nada sobre o teu irmão. Não sabes nada sobre a Amy. Não sabes nada sobre o Milo. Praticamente não sabes nada sobre ti. A Amy mudou para a tua universidade, inscreveu-se nas tuas aulas, procurou por ti, foi morar contigo, estava envolvida com o teu irmão debaixo do teu nariz, neste apartamento pequeno, e tu não sabias! E a Jan McFadden ainda está à espera dela. Como é, estás do meu lado ou não?
— Não! Não estou do teu lado! — Lily sussurrou furiosamente, de forma repentina, a dar tanta clareza ao indizível. — Não estou do lado da Amy. — Desta vez baixou a cabeça de uma vez porque a intensidade dos seus sentimentos ultrapassava-a. — Estou do lado do meu irmão.
Spencer levantou-se da cama, ainda nu, os olhos furiosos, a sua própria intensidade a notar-se na rigidez do corpo.
— Bem, demoraste muito a dizê-lo.
— Eu nunca, nunca, faria nada para magoá-lo, não pela Jan McFadden, não pela Amy, não por ti, entendes?
— Perfeitamente.
— Então o que vais fazer agora, Spencer? — disse Lily. — Vais matá-lo também?
Spencer reteve a respiração, com a cabeça inclinada para o lado, como se tivesse sido atacado.
— Ah, se eu tivesse sabido um pouco antes que tu guardavas tanta maldade contra mim — disse. — Que usarias o que eu te disse contra mim na primeira oportunidade que tivesses.
— E tu? Usares o que eu te disse na primeira oportunidade que tiveste? Sabias que eu não queria contar-te sobre a Jan McFadden, sabias que não queria contar-te, apanhaste-me num momento de fraqueza e depois foste tentar destruir a vida do meu irmão mais um pouco! O que chamas a isso?
— Tu mentiste-me, tentaste esconder-mo, mesmo tendo pensado que alguma coisa não estava certa por ele estar a escondê-la!
— Não! Eu já sabia que ias virar as coisas e usá-las contra ele, como usas a mais pequena coisa que te digo contra ele!
Spencer estava de pé, nu, em frente dela.
— Não devias ter escondido quem realmente és durante tanto tempo, Lily. Não me devias ter feito perder o meu tempo contigo.
— E eu não perco o meu tempo contigo? — gritou. — Tenho menos tempo a perder do que tu.
Ele começou a vestir-se num lado da cama. Lily chorava do outro.
— Estamos todos mais próximos da morte a cada minuto — disse Spencer, endireitando-se. — Com cada luta, cada palavra dura, cada maldade, a um passo mais próximos da eternidade. Todos nós. Não só tu.
— Por favor, deixa o meu irmão em paz — disse Lily lavada em lágrimas, a voz a falhar. — Por mim.
Ele estava a arranjar as tiras que prendem a Glock-20 de serviço ao corpo, sem olhar para ela
— Por favor. E eu prometo que ele te deixa em paz.
— Não vou deixar o teu irmão em paz — disse Spencer, pegando nas últimas coisas que lhe diziam respeito: a carteira, as chaves, o beeper. — Mas vou deixar-te em paz.
O que é que ele estava a fazer? Spencer pensava nisto todas as noites quando voltava para casa. A pergunta nunca era porquê. A pergunta era e continuava a ser: e agora?
Decidiu ir para casa pelo Michael’s Pub. Sabia que o Gabe poderia ainda estar lá, e estava. Pediram bebidas, brindaram. Spencer quase nem levou a dele à boca. Era mesmo bom a fingir! Como ele estava bem esta noite, a sentar-se direito ao balcão ao mesmo tempo que fingia beber o seu uísque sem sequer molhar os lábios, ou a pedir mais um duplo ou outra rodada. Sentou-se, brindou, pousou o copo vazio e continuou a falar, como se não se passasse nada, como se fosse apenas um final de noite normal num bar no centro da cidade. Não era sexta-feira ou sábado, mas Spencer simplesmente não sabia como se livrar do que estava a sentir sem a bebida.
— O que é que se passa, O’Malley? Informação complicada sobre a rapariga McFadden?
— Informação, não informação, não sei. — Spencer suspirou. — Meti-me numa enrascada, McGill. Numa verdadeira enrascada. Não sei o que fazer.
— Isto não é sobre uma rapariga, pois não?
— É, McGill. É.
Spencer pediu mais duas bebidas a Ted e, quando o Gabe não estava a olhar, esticou o polegar e o dedo indicador para Ted que, em silêncio, trouxe a Spencer um duplo. Beberam.
E a caminho de casa, Spencer soube que não poderia mais ter as duas coisas. Precisava de decidir o que fazer sobre Lily Quinn. Uma escolha. Tê-la ou ter justiça. Tê-la ou ter Glenlivet a correr em vez de sangue nas suas veias. Hoje tinha sido Glenlivet. Que alívio não pensar nela, não falar, não sentir.
Lily não conseguia dormir.
O fim de semana passou sem uma palavra de Spencer. Terça-feira teve de ir ao hospital fazer análises ao sangue, o que não era bom nem mau: não havia más notícias, mas também não eram boas. Mas Lily percebia que DiAngelo estava a guardar algo para si. Deu-lhe outra vez Alkeran. Ela passou a noite de terça-feira primeiro deitada de costas, depois de mãos e joelhos no chão. Quando finalmente pôde sentar-se, pintou, rabiscou, agrafou a tela que estava a secar, a chorar.
Bocas pretas a gritar outra vez, prédios pretos, árvores pretas. Ninguém iria querer a porcaria dos seus quadros cheios de desespero existencial.
Lily queria Spencer de volta, mas também queria que ele deixasse o irmão em paz.
Na quarta-feira, aquele dia infernal, Lily estava deitada no sofá, sem atender o telefone, sem se levantar, sem comer, sem beber, sem ler, sem ver televisão ou ouvir rádio, certamente sem pintar, apenas a olhar o tique-taque dos relógios através do ritmo lento da sua vida, quando bateram à porta.
Queria levantar-se, mas percebeu que não tinha força. Por favor, que seja ele, rezou Lily enquanto se forçava a levantar. Mas rezou-lhe. Spencer, por favor, que sejas tu.
Ele estava à porta dela.
Ficou calado enquanto a observava e ela percebeu que devia estar mesmo um farrapo porque ele disse:
— O que raio andas a fazer a ti própria?
— Nada — respondeu Lily vacilando. — Porque é que não usas a tua chave, como sempre?
Sem responder, Spencer entrou. Entrou familiar e verdadeiro, como sempre. Pôs os braços à volta dela, puxou-a para si, sentaram-se no sofá.
Lily queria pedir-lhe para irem para a cama, mas tinha medo. Esta é a tua vida, Lily, uma voz gritou dentro dela, a única vida que alguma vez terás, a única vida que queres. Não vais lutar por ela?
De cabeça baixa, Spencer não disse nada durante algum tempo enquanto ficaram sentados em silêncio, só a ouvir o tique-taque dos relógios e a respiração perturbada.
— Desculpa, Spencer.
— Não tens nada que pedir desculpa.
— Tenho. Tenho. Tens sido tão bom para mim e eu... — Lily engasgou-se. — E eu desiludi-te.
— Não me desiludiste.
— Desiludi. Confiaste em mim, falaste-me dos teus problemas e eu usei a tua confiança no meu punho zangado e dei-te um murro na cara.
— Não, não o fizeste.
— Disse coisas horríveis. Peço muita desculpa. Falhei no teste.
Ele abanou a cabeça.
— Não era nenhum teste, Lily.
— Tenho sido testada e tenho querido ser. Afastei-me de ti. Fui deliberadamente cruel contigo. Apesar do que sinto por ti, tratei-te como uma merda. O que é que isso diz sobre mim?
— Não me trataste como uma merda. Apenas te esqueceste de mim.
— Fizeste bem em ir-te embora. Devias ter ido mais cedo.
Spencer não contestou essa.
— Nunca me deveria ter aproveitado de uma rapariga doente — disse.
— Não estou doente. Estou melhor.
— Não sou o santo aqui, tenho andado a torturar-te com coisas com as quais provavelmente não consegues lidar e não tens de lidar. Eu devia saber.
— Eu consigo lidar. Acredita em mim. Por favor. Por favor acredita que eu posso melhorar e ser uma ajuda para ti e apoiar-te. Eu consigo ser alguém com quem podes contar, alguém de quem precisas.
Spencer envolveu as mãos dela nas dele. Lily levantou-se do sofá e ajoelhou-se em frente a ele, ajoelhou-se entre as pernas dele, olhando para ele em súplica.
— Eu consigo, Spencer, por favor perdoa-me — sussurrou. Ela nem sabia como estava a conseguir falar, as palavras eram tão dolorosas. — Vou ser melhor. Por favor, dá-me outra oportunidade para te mostrar, para te provar.
Ele largou-a, levantou-se, afastando-se do sofá, para longe dela.
— Lily, tu sabes que não vou deixar de te ajudar. Mas...
Oh não, não, não, não, por favor, um mas não!
— Não posso continuar com isto.
— Não!
Spencer puxou-a do chão, sentou-a no sofá, mas continuou de pé.
— Não posso. Nós não devíamos ter começado, apesar de eu achar que era inevitável. Eu não sei em que é que estava a pensar. Tu estás a recuperar de uma tragédia e eu aproveitei-me da tua fraqueza. A culpa é minha.
— Não. Vou ser diferente, Spencer. Prometo. Não queria dizer o que disse. Só estava zangada.
— Lily, não me importa o que disseste. Não quero que te transformes em algo que não és. O Andrew é teu irmão! Não podia ser de outra maneira. Eu não seria de outra maneira se estivesse no teu lugar. Mas tu percebes que continuamos num conflito terrível, tu e eu.
— Não.
— Num conflito terrível. Tu sabes. Eu sei. A tua avó sabe. O teu irmão sabe. Durante um tempo fingimos que não era assim, mas não podemos fingir mais.
— Quero a minha mãe! — chorou. — Quem me dera ter uma. Mas eu não quero que sejas minha mãe, Spencer. A minha mãe ou o meu pai. Quero que estejamos juntos como iguais. Também quero ajudar-te.
— Lily...
— Esquece tudo o resto, tudo. Eu vou melhorar, prometo. Quero caminhar ao teu lado, é onde quero estar, por favor.
Ele nem sequer lhe tocou quando disse:
— Lily, tu não compreendes nada. Descobrir o que aconteceu com a Amy é o meu pensamento de manhã à noite. É o que eu faço. É o que eu quero. Se tivesse um desejo... — ele parou. — Queres falar sobre coisas erradas? — disse, friamente. — Bem, aqui está. Se tivesse um desejo, não desejaria dinheiro, nem sequer que tu ficasses melhor, mas sim descobrir o que aconteceu à Amy. E quando estou contigo, tenho de confessar que o meu coração não é puro. Não estou liberto do meu principal motivo. A Amy, o teu irmão, eles estão sempre no fundo da minha mente, outras vezes à tona da minha mente. Estão desde o início, vão estar até ao fim.
Ele respirou fundo antes de dizer:
— Ainda estou a investigar.
— Spencer, não.
— Sim, Lily. Não é fácil para mim dizê-lo, mas é a verdade. Tens o direito de ficar em silêncio, porque tudo o que digas pode e deve ser usado contra ti. E não podemos continuar assim. Eu não posso continuar. Tenho de viver comigo mesmo, também. Durante algum tempo não poderemos sequer continuar como éramos, como amigos. Tenho de colocar a cabeça em ordem. Tens de trazer a Joy de volta para te ajudar, se precisares de ajuda. Estou a perder o meu discernimento desde que estou contigo. Estou a ficar mole. Estou a ficar com a visão turva, com todas estas comédias que temos visto, todo este foco na tua doença.
Lily não podia acreditar no que ele estava a dizer.
— É demais para mim — continuou Spencer. — O meu juízo está nublado por ti, os meus sentidos estão enfraquecidos. Passo a noite contigo e, na manhã seguinte, não consigo pensar como deve ser. Penso em coisas loucas e o meu trabalho escapa-me. As adolescentes desaparecidas estão a tornar-se prostitutas, os desaparecidos estão a ser vencidos pela droga, os raptados estão a ficar adormecidos. A Jan McFadden está a perder o seu casamento. Mais, há esta porcaria dos Assuntos Internos sobre a minha cabeça e tenho de me proteger, pensar na minha segurança. Tenho de me certificar de que não acabo na prisão só porque estava alegremente a sonhar acordado com o teu corpo.
Lily pensou que o tinha ouvido dizer Desculpa depois daquilo tudo, mas não tinha a certeza.
Quando Spencer saiu, tirou a chave de casa dela do porta-chaves e deixou-a na mesa ao pé da porta. Lily nunca se levantou do sofá.
«I love you so much...I’d die for you...and all they can say is...he’s not your kind...»[3]
E eles tinham razão.
A caminho de casa, passando pelos semáforos, Spencer pensava nas mentiras negras que tinha dito a Lily, e sobre como era falsamente libertador estar livre dela, concentrar-se nas áreas da sua vida onde ele ainda podia existir e permanecer escondido. Com ela ali não havia forma de se esconder. E Spencer sabia que se tivesse só um desejo, não seria encontrar Amy. Nem seria que Lily ficasse boa.
Seria parar de beber.
Para poder dar a Lily um homem completo, em vez da fraude fragmentada em que se tinha tornado.
[3] Citação da canção de Neil Diamond - Girl You’ll Be A Woman Soon. (N.T.)
56
Destruição em casa e no exterior
O facto de Maui aparecer no identificador de chamadas era sinal constante de aflição. Quer fosse a chamada de um pai desesperado, no limite, ou de uma mãe vociferante, queixosa ou entaramelada.
Allison disse que ia divorciar-se de George, não lhe interessava o que custasse, porque ele era um mentiroso e prometeu-lhe centenas de coisas que depois não cumpriu.
George abriu uma conta bancária e transferiu 30,000$ do dinheiro deles para lá.
A mãe de Lily estava a gritar tão alto ao telefone sobre os fundos retirados que os vizinhos apareceram (eram onze da manhã pelo horário de Maui) e disseram que, se continuasse assim, iam chamar a polícia. Por isso Lily desligou.
Mais tarde, o pai telefonou e disse que a polícia apareceu e que «a tua mãe levantou a saia para os polícias e disse: ‘ele bate-me, veja as minhas nódoas negras’».
Era o Titanic a enviar sinais de alerta ao Carpathia, o navio que pensava que o Titanic estava a lançar foguetes. Lily não achava que Maui estivesse a lançar foguetes. Lily tinha a certeza de que Maui estava a afundar-se e, por esse andar, no metafórico amanhã, estaria imerso e destruído, e possivelmente partido ao meio. E talvez Lily tivesse reparado mais, se preocupado mais, dado mais atenção, se pelo menos a destruição das coisas em sua casa e o partir em dois não estivessem já tão completos.
Mas a destruição das coisas em sua casa estava completa.
Lily não sabia o que fazer com os minutos da sua vida. Não sabia o que fazer, o que fazer das suas noites ou do seu cabelo a crescer. O que fazer dos domingos sem ele. A formação do hábito da paixão fora cirurgicamente removido dela, e parecia que lhe faltavam os membros e os dias sem membros duravam anos.
— Oh, graças a Deus que já não estás com aquele homem horrível — disse a avó quando Lily lhe contou. — O Senhor olha por ti, Lily, e aqui está mais uma prova disso.
Lily não queria falar sobre o assunto.
Graças a Deus por Paul, por Rachel. Amy desapareceu e Lily herdou-os; eles eram dela, e ela amava-os. Era como se Amy soubesse que se ia embora e tivesse legado a Lily um meio para que a vida fosse um pouco mais fácil. Era melhor ter amigos, até mesmo amigos por herança, do que não ter.
Era melhor ter irmãs, até mesmo como Anne e Amanda, do que não ter. Era melhor ter um irmão do que não ter. Era melhor ter avós agorafóbicas. Mães bêbadas. Agora que Lily estava em profundo desespero, era melhor tê-los a todos.
Passava os dias no estúdio, deitada sobre tinta, a pressionar a sua face contra o chão que outrora fora o suporte da cama de Amy, e agora tinha tinta escorrida dos óleos, acrílicos e aguarelas com as quais pintava Spencer. Era tudo o que tinha sobrado dele, só os vestígios da tinta vívida dos seus lábios, dos seus olhos.
Era como se ele tivesse morrido.
Era como se ela tivesse morrido.
Telefonou a Jan McFadden. Como é que se está a aguentar, Sra. McFadden, perguntou. Não muito bem, Lily. Eu sei. Eu também. E Jan chorou e Lily chorou, as duas tendo perdido o insubstituível.
E se Amy nunca mais voltasse?
E se Spencer nunca mais voltasse?
Era melhor ter Spencer, nos seus termos, quaisquer termos, quaisquer termos que ele impusesse do que continuar assim: sem ele.
Ao sábado eles ficavam à volta das suas mesas, davam-lhe silenciosamente o dinheiro, tiravam-lhe os quadros das mãos.
— Não há amor esta semana, Lily?
— Não há amor esta semana.
Os quadros dela naquela semana: não muitos, só aguarelas. As duas janelas com as cortinas azuis amarradas, para lá delas, sol e primavera, e em frente a elas, a cama vazia.
— Como é que ele conseguiu desistir de mim tão facilmente? — perguntou Lily aos seus amigos numa sexta-feira à noite. Dirigiam-se para o St. Mark’s Comics para comprar um presente para um dos sobrinhos de Rachel.
— Ele passava praticamente todos os dias comigo, como é que consegue não me telefonar, não perguntar por mim? Como conseguiu desligar-se assim?
Paul não disse nada, mas Lily sentiu que ele tinha algo a dizer, só que não estava a fazê-lo.
— O quê? Diz lá, o quê?
— Lil, é como os pais. Como conseguem viver sem nós quando vamos estudar para longe? Tomam conta de nós durante dezoito anos e, de repente, já não dormimos em casa deles, não comemos a sua comida, não estamos lá. Como conseguem estar tão bem sem nós? Como é que começam a viajar, a juntar-se a grupos, a ter aulas, a aprenderem uma língua nova, e quando voltamos ao fim de semana encontramo-los bem e não a lamentarem-se. Como?
— Não sei. Estás a perguntar-me? Ou estás a ser retórico? O que é que isso tem a ver com o Spencer?
— Eu digo-te o que tem a ver com o Spencer — disse Paul — Não vais querer ouvi-lo, mas é difícil cuidar de outra pessoa. É uma grande responsabilidade.
— E estar comigo? Não era tudo sobre o meu cancro — disse Lily. — Tentei tornar o meu cancro engraçado para ele. Cortámos o cabelo juntos, tratávamos da roupa juntos, comíamos comida chinesa juntos, levei-o a um brunch de domingo, e pintei-o, e ensinei-lhe termos médicos que ele provavelmente nunca teria aprendido na vida. E fiz outras coisas com ele, por isso não consigo acreditar que ele tenha desistido tão rapidamente.
O desgosto escorreu-lhe dos olhos em forma de bolas grandes molhadas para o passeio de Nova Iorque, os ombros tremiam.
— Bem, não estou a dizer que não foi divertido para ele, querida — disse Paul, abraçando-a. — Vá lá, anima-te.
Rachel, pegando no outro braço de Lily, concordou ajuizadamente com a cabeça, como se soubesse o que Paul estava a dizer.
— Mas, ainda assim, a relação não estava em igualdade. Ele tinha de cuidar de ti.
— Já não. Eu estava a melhorar. Agora sou uma sobrevivente.
— Sim, claro — disse Rachel. E então, com uma destreza surpreendente de fervor filosófico, disparou: — Mas ele não sabe o futuro. Ele só sabe o passado.
Lily caiu em silêncio. Suspeitava que a gota de água que deitou Spencer abaixo não tinha sido ele cuidar dela, pois ele fazia isso de boa vontade, mas sim o facto de ela ter falhado no teste que ele lhe fez. Ele queria dela o que ela não lhe deu, talvez não conseguisse dar.
Quando Joshua partiu, Lily quase não o sentiu, só agora se apercebia disso. Estar com os seus amigos era bom, ajudava a passar aqueles eternos minutos angustiantes sem membros, mas nada era como estar com ele, com ele, a quem o seu coração amava e precisava.
Depois de comprarem os novos brinquedos do Batman em St. Mark, estavam na esquina de Astor Place, a discutir se iam a um restaurante ucraniano, indiano ou americano, quando uma voz masculina disse:
— Lil?
E antes de Lily se virar, naquele segundo, ela rezou, rezou, REZOU porfavorporfavorporfavor que seja o Spencer, e virou-se, de rosto ansioso para a voz, e era Joshua.
A cara dela deve ter revelado a desilusão, porque Joshua disse:
— Não fiques assim tão feliz por me ver. — Ele parecia surpreendentemente feliz por vê-la. Houve apertos de mão constrangedores. Ele perguntou como ela estava. Ah, ótima. Ele perguntou como ela se sentia. Ah, ótima.
— Sério? — disse ele. — Não me surpreende. Porque pareces ótima!
Telefonou-lhe mais tarde naquela sexta-feira, mas Lily tinha saído com Rachel para ir dançar, e ele deixou uma mensagem, mas quando ela chegou a casa estava demasiado exausta para ouvir. Na manhã seguinte ouviu.
— Lil, posso ir a tua casa? Quero falar contigo.
Era sábado; hoje ela ia vender os seus péssimos quadros. Ligou-lhe a dizer que estava ocupada. Ele perguntou se podia aparecer um bocadinho à noite. Precisava mesmo de falar com ela. Combinaram a hora e ele apareceu meia hora mais cedo, querendo levá-la a sair.
Lily não tinha nada para fazer e estava farta de si própria, por isso saiu com Joshua
para jantar e ir ao cinema. Viram o Bowfinger com Steve Martin.
Joshua queria ver um drama, mas Lily disse que não queria mais dramas.
— Foi um bonito sonho — disse-lhe ela depois, no Republic, um sítio tailandês na Union Square, mas ele não prestou atenção, e tudo sobre o que eles falaram foi sobre ele e os seus pensamentos, sentimentos e empregos, o que estava bem para Lily, que fingiu ouvir, até dizer numa voz cansada:
— «Pensa nisto como uma missão. A tua missão é atravessar a autoestrada até eu dizer ‘corta.’» E Joshua finalmente percebeu e perguntou se ela estava a citar-lhe o Bowfinger, e Lily disse que sim, como se estivesse a gritar «corta», e sorriu, do tipo «finalmente ele percebeu», e ele pergunta: — então queres voltar para casa?
Quando regressaram e já estavam no sofá dela («belo sofá!»), Joshua comentou:
— Lily, honestamente, tu estás ótima. O teu cabelo está tão sexy, assim curto e vermelho, e o teu corpo está fantástico.
— Obrigada — disse ela. — O cancro diz bem comigo.
Ele tossiu, chocado, gaguejou.
— Estou a brincar.
— Mas a sério, estás totalmente melhor?
— Quem sabe essas coisas? — Lily desejava poder ouvir as suas mensagens sub-repticiamente. E se Spencer ligou? Do sofá ela podia ver a luz do atendedor de chamadas a piscar, mas não conseguia ler o número das novas mensagens. Ele pode ter telefonado.
Joshua tocava no cabelo dela. Era tarde, beberam alguns copos de vinho, as luzes não estavam acesas, exceto as da cozinha.
— Então, onde está a Shona esta noite? — perguntou Lily.
— Não resultou. Ela não eras tu, Lil.
— Também eu não sou eu, Joshua — disse Lily, levantando-se. — Espera, tenho de... — Foi até ao atendedor de chamadas — Pode ser a minha avó, pode ter acontecido alguma coisa.
Pressionou NOVA. Por favor, por favor, por favor Spencer.
Mas não havia nenhuma mensagem dele. Só da avó.
Lily não conseguia voltar a sentar-se no sofá com Joshua.
— Está a ficar tarde, é melhor ires andando — disse ela, exausta.
— Ir? Porquê? Acabei de chegar.
— Eu sei, mas tenho de sair.
— Já passa da meia-noite. Onde é que vais?
Ela estava calada Ele estava calado. Então Lily disse:
— Josh, houve um tempo em que teria dado tudo para que me tocasses suavemente, ter-te a dizer-me coisas bonitas, ter-te de volta. Foste-te embora, a Amy foi-se embora, e eu fiquei tão sozinha. Mas esse tempo passou. Outrora tivemos algo, mas agora que sei a diferença, nem posso dizer que foi um sonho bonito. Por favor, podes ir?
— Lily, sei que tem sido difícil para ti e peço desculpa.
— Não fazes ideia de como tudo tem sido para mim. A Lily que conheceste já não existe, Joshua. Foi-se embora. Tal como a Amy se foi embora. Já não me conheces, de todo. Sou uma estranha para ti.
Joshua não entendia. Pensou que era por causa da forma como ele a tinha deixado. Mas ela de repente ficou tão cansada, tão cansada de estar ali, de falar com ele, da sua presença no apartamento. Ela não queria ter de estar a explicar nada, e não o fez.
— Queres mesmo que eu vá?
— Mais do que qualquer outra coisa.
Ele saiu abruptamente. E Lily saiu logo a seguir. Correu para o apartamento de Spencer, por uma longa avenida de prédios, da C até à Broadway. Ele não estava. Ninguém atendeu e a luz não estava acesa. Ela esperou, ligou-lhe, mandou um beep, esperou à porta do apartamento, foi ao Dagostino do outro lado da rua, comprou cerejas, ficou ali à noite a olhar para as janelas dele. Duas da manhã e ainda não havia movimento.
Onde é que ele estava às duas da manhã num sábado à noite?
Havia outras coisas que poderia fazer com a sua vida do que estar especada no meio da Broadway à espera de Spencer.
Podia ir a uma exposição de arte em Dumbo, em Brooklyn.
Um concerto de rock no telhado de um prédio.
Ver comédia de improviso no Caroline.
Ir dançar a Webster Hall, segundas-feiras com ladies night.
A Rachel disse que podia arranjar-lhe um encontro com um tipo da discoteca chamado Martin. Martin era novo, com o corpo trabalhado e muito interessado. Tinham apertado as mãos na noite anterior, namoriscado um bocado. Ele disse que talvez pudessem ir ao cinema na semana seguinte. Me, Myself, and Irene tinha estreado na Union Square. Sim, sim, um filme. E talvez enquanto estivessem à espera na fila para comprar os bilhetes, encontrassem Spencer, que vivia ali perto, a abraçar uma rapariga, e eles sorririam atrapalhadamente, apresentariam os seus acompanhantes e ele perguntaria «Como tens passado, Lily? Bem, bem, e tu?». E paravam alguns segundos a olhar para o pavimento. E então ele diria «Bem, vemo-nos por aí», e continuaria a andar, e Martin perguntaria «quem era aquele?», e Lily diria «oh, ninguém».
Era só alguém que conheci.
O campo de forças ergueu-se em volta do que restava de Lily.
Envolvendo-se nos próprios braços, atravessou lentamente a Broadway e começou a caminhar de regresso a casa.
57
Um encontro em Tompkins Square
«Spencer e Lily estavam uma noite a regressar a casa a pé do Odessa e um tipo chato abordou-os.
— Não vos vou contar tretas — disse o fulano, um sósia do Michael Jackson, alto, esquelético, que mal se mantinha em pé. — Preciso de um dólar para conseguir alguma heroína. Podem dar-me um dólar?
Spencer tirou o distintivo e enfiou-o na cara do tipo.
— Vais passar o resto da tua vida na prisão se não te limpares. Vai-te embora.
— O que é isso que estás a enfiar-me na cara, man? — disse o fulano, como se fosse cego. — Isso não é um dólar.
— NYPD. Afasta-te já daqui, disse eu. — Spencer colocou o braço à volta de Lily para a proteger e fazê-la andar em frente.
Continuaram a andar:
— Lily, nunca passes sozinha à noite por Tompkins Square, está bem?
— Como se eu o fosse fazer.»
Isso foi dantes. Isto é agora. Com o portão para o inferno atrás dela, Lily caminhou às duas da manhã por Tompkins Square, sentou-se num banco e observou os bêbados a arrastarem-se pelos caminhos, a falarem sozinhos ou uns com os outros, a vasculharem os bolsos rasgados, a ajustarem os trapos, à procura de uma nota perdida ou alguns restos que pudessem comer ou beber. Pessoas a cheirar como nada mais neste mundo, corpos humanos cobertos de suor e fezes, por lavar durante meses, em decadência, e ainda a arrastarem-se e a mendigarem para conseguirem alguma heroína por um dólar de um polícia de Nova Iorque. Lily não ficou sentada durante muito tempo, só o suficiente para desejar ir para casa, estar na cama e esquecer aquele dia, o décimo sexto dia da sua vida morta.
A sair do parque pelos portões de ferro, foi de repente empurrada por trás por um homem que também ia a sair do parque, tão perto como se estivesse a caminhar mesmo atrás dela. Ele movia-se rapidamente, quase a correr. Tropeçou nela com mais força do que o seu corpo sobressaltado podia aguentar e depois agarrou-lhe no cotovelo e não largava. Lily gritou. Mas não por causa de quase ter sido deitada abaixo. Era aquele homem — a cara dele era um pesadelo de um filme de terror que Lily nunca tinha visto. Cheirava mal como um mendigo, sobrenaturalmente podre, imperdoavelmente sujo, mas de alguma forma tinha conseguido dinheiro para usar roupas normais — calças de ganga, um casaco preto — e cortar completamente o cabelo. Era careca e tinha palavras tatuadas acima das sobrancelhas. Lily não conseguia lê-las porque estava a ser dominada por um terror que a cegava. Os olhos dele eram rasgados e raiados de sangue, de um azul cristalino, como lascas de vidro polido pelo mar. Eram quase transparentes. Abaixo deles, tinha marcas de sangue e nódoas negras. Um olho tinha sido parcialmente fechado após uma briga, e um dos seus dentes da frente tinha desaparecido; o nariz tinha sido partido uma, duas vezes. Parecia ameaçador e pedrado, parecia esfomeado e cruel. Lily abriu os olhos para uma larga nódoa negra no pescoço dele, mas percebeu que era outra tatuagem, uma foice e um martelo quase apagado a cobrir-lhe a maçã de Adão. A boca dela ficou aberta, ficou paralisada e sem respirar enquanto ele a olhava intensamente, a arfar. E não a largava. A boca dele esticou-se num sorriso aberto, expondo os dentes em decomposição e saiu-lhe um sussurro áspero dela. Sussurrou — ou ela pensou que ele sussurrou — «Lily».
Alguém se apressou para ela na rua noturna, um estranho. «Ei! O que se passa aí?» e o homem libertou-a e correu. E Lily, fora de si de tanto medo, correu também sem olhar para trás, correu bairro abaixo e pela Avenue C, correu aterrorizada com a ideia de que ele pudesse estar mesmo atrás dela. Assim que entrou no edifício, voou pelas escadas acima e atrapalhou-se à procura das chaves, com o coração a bater tão furiosamente que ela teve a certeza que já tinha havido ataques de coração a começar por menos, com o coração prestes a explodir e a sair-lhe do peito.
Depois de trancar, acorrentar e barricar a porta com a secretária do telefone e a única cadeira da mesa de jantar que possuía, Lily telefonou a Spencer, mandou-lhe mensagens e depois foi para a casa de banho e vomitou as cerejas que tinha comido. Às três da manhã, o telefone tocou e quase sem se limpar arrancou o auscultador da base.
— Meu Deus, Spencer! Não fazes ideia do que acabou de me acontecer!
— Lily, é o Papi.
— Oh, céus! Papi, tens noção das horas que são? — Ela ofegava, mas conseguia falar. Havia uma chamada em espera? Não conseguia tirar aquele sussurro ensurdecedor dos ouvidos.
— Lily, são só nove da noite aqui em Maui. Mas aconteceu uma coisa. A tua mãe ligou à polícia há uma hora atrás e disse-lhes que eu lhe batia.
— Oh, Papi. Está bêbada?
— O que é que achas? Não a ouves em segundo plano?
Lily mal o conseguia ouvir em primeiro plano.
— Mas...bateste-lhe?
— Lily!
— Está bem. Então quando eles vierem, diz-lhes isso.
— É oportuno falar agora?
— Nunca é oportuno. — Lily fechou os olhos agarrada à mesa do telefone.
— Acho que ela se feriu a ela própria. Há sangue na casa de banho. E, não sei, mas ela já não consegue andar. Acho que caiu a sair da banheira.
Lily ficou ao telefone. O pai dela fumava.
— Chegaram. A campainha acabou de tocar. Estou na varanda, de costas viradas para eles. — Ele continuou a fumar. — Fica comigo ao telefone, Lily — disse ele. — Fica perto de mim ao telefone.
Vieram até à varanda e ele disse:
— Querem falar com a minha filha? Ela pode contar-vos tudo.
Uma voz masculina respondeu:
— Ela não está envolvida.
— Não, ela está bastante envolvida, sabe de tudo — disse o pai.
Um homem disse:
— Tem o direito de permanecer em silêncio, pois tudo o que disser poderá e deverá ser usado contra si. Tem o direito a um advogado. Percebe estes direitos que lhe foram explicados?
O pai de Lily disse que sim.
O agente da polícia veio ao telefone.
— Por favor — disse Lily —, não podem prendê-lo, é uma pessoa inocente, tudo o que tem feito na vida é tentar ajudá-la.
O polícia não queria ouvir.
— A sua mãe está bastante embriagada. Vemos isso. Tem uma laceração na parte de trás da cabeça mas recusa-se a ir ao hospital e tem dificuldade a andar. Mas se ela diz que foi o seu pai que lhe fez isto, temos de levá-lo. Se ele não conseguir pagar a caução de mil dólares, passará a noite na esquadra e amanhã será presente a um juiz para as alegações. Vai prestar declarações e depois comparecer em tribunal.
Lily disse sombriamente:
— Deixe-me falar com a minha mãe.
Allison veio ao telefone e disse:
— Não posso falar contigo agora. — E desligou.
Lily ligou novamente quatro vezes. Allison disse que estava ocupada, que não podia passar ao pai, que estava demasiado ocupada para lhe passar o telefone. Depois disse:
— Não desperdices dinheiro a ligar, dá-o à tua irmã mais velha.
Quando Lily ligou mais uma vez, o agente da polícia disse-lhe:
— É óbvio que tem de vir cá, ele não consegue controlar a situação sozinho. Ele tem cá algum amigo que possa ajudá-lo?
O pai veio ao telefone.
— Quando eu voltar da prisão, faço as malas e vou-me embora. Não aguento mais isto.
— Papi! — gritou Lily. — Diz-lhe que não o fizeste, diz-lhes que nunca lhe tocaste.
— Não posso. Eles não querem ouvir. Dizem que havendo uma acusação de violência doméstica, têm de me prender. — A voz tremeu-lhe. O seu pai nunca tinha sido preso por nada na vida dele.
— Isto é ridículo. Ela está claramente bêbada.
— Eles não querem saber. Lil, podes falar com eles? Preciso da tua ajuda, filha. Não sei o que fazer. Podes falar com eles, por favor? O teu amigo detetive está aí? Talvez ele possa falar com eles. Eu não o julgo, sabes. Sei que ele está só a fazer o seu trabalho.
A própria voz de Lily quase que se foi abaixo quando disse:
— Ele não está aqui, Papi, mas deixa-me falar com eles.
Ele passou o telefone a um homem educado com sotaque havaiano, que a ouviu cortesmente, que percebeu «mas tenho as mãos atadas. É de lei aqui em Maui. Se uma esposa acusa o marido de violência, temos de prender o acusado. Não se preocupe. Ele irá até à esquadra de polícia pagar a caução e depois pode ir. Mas não pode aparecer à frente da sua mãe durante vinte e quatro horas. Tem de lhe explicar esta situação, menina Quinn. Ele não parece entender que é a lei.»
— Oh, ele entende — disse Lily. — Só que não acredita.
O pai veio ao telefone.
— Lily, o que é que vou fazer? Como é que vou sair disto?
Ela disse para ele não se preocupar, que ia correr tudo bem.
— Preciso de ajuda — disse ele. — Já não consigo lidar com a tua mãe. Isto é a última gota naquilo tudo que ela me tem feito passar desde o ano passado, desde que eu lhe propus que vendêssemos o apartamento e nos mudássemos de volta para leste. Não fazes ideia do que tem sido a minha vida.
Faço uma pequena ideia, quis Lily dizer-lhe.
— Papi, não sou a melhor pessoa para isto. Sou a pior de todos os teus filhos para ajudar a minha mãe. Não sei o que estás a pensar.
— Por favor, Lily, eles estão a prender-me, não percebes? E a tua mãe não pode ficar sozinha, tu não percebes em que estado ela está. Entendes? Tens de vir.
— Papi, como posso ir?
— Eu pago, se é isso que te preocupa. Tenho dinheiro meu. Agora tenho a minha própria conta bancária. A tua mãe não me castrou completamente.
— Não estou preocupada com isso...
— Então vem. Falar com a tua mãe, tentar ajudá-la, ajudares a enfrentar o problema mesmo sabendo que ela não quer, dando-lhe o que ela precisa porque sabes que ela precisa, isso é que é o amor. Voa em primeira classe se tiver de ser. Eu pago. Tenho de ir agora. Tenho de ir e ser registado e tirarem-me as impressões digitais, como qualquer criminoso comum. Agora percebo do que é que o Andrew tem medo.
Lily sentiu a repreensão mesmo que não tivesse havido nenhuma.
O meu pai bate com a cabeça nas paredes. Eu sou filha do meu pai e bato com a cabeça nas paredes. Antes de a polícia o levar, o pai disse-lhe:
— Lily, eu amo-te.
Quando já estava a amanhecer, a mãe ligou-lhe.
— O que é que foste fazer? — disse Lily. — O Papi está na prisão, mãe. Na prisão! O que é que foste fazer?
— Ele bate-me — respondeu ela.
— Mãe, a polícia vai descobrir que estás a mentir e vão prender-te a ti!
— Não preciso que fiques histérica comigo, cala-te, cala-te, cala-te! — E desligou.
Lily telefonou de novo seis ou sete vezes e Allison desligou em todas e cada uma delas. Na última disse:
— Em breve estarei morta e todos ficarão felizes.
— Não podes ir ter com Deus desta maneira, mãe — disse Lily. — Eu pedia-Lhe ajuda, se fosse a ti. — Allison desligou.
Lily mal dormiu, mantida acordada pela ansiedade da cara terrível do parque, das mãos dele nela. Estaria enganada? Estavam nela? A agarrá-la?
Será que ele a seguiu, ficou perto na Broadway, a vê-la à espera de Spencer? Era inconcebível e aterrador.
Na manhã seguinte, Lily estava num avião para Maui. Mal fez as malas. Pegou nalgumas roupas de verão, num fato de banho, nos blocos de esboços e numa mala vazia, no caso de o pai querer voltar para casa com ela, regressar com ela. Levou-a para o salvar.
Spencer não ligou até ela sair.
Lily nem sequer sabia que voo ia apanhar. Pediu apenas ao motorista para a levar ao JFK e, uma vez lá, optou pela Delta, que tinha o primeiro voo a sair. Comprou um bilhete de primeira classe e em duas horas estava no ar.
Destruição em casa e no exterior, destruição no mar e no ar.
Destruição para começar a falhar ou para chegar a um fim.
58
Oito dias em Maui
Domingo. O aeroporto LAX é tão desconfortável e há nevoeiro em Los Angeles, não se consegue ver o céu, mas Lily apostava que o ar cheirava bem e parecia estar calor.
— Puseram-me algemas — contou-lhe George antes de ela entrar no avião. — Magoam. Ninguém falava comigo. Não te consegui ligar antes porque estava na prisão. — E riu-se!
Mas ele não estava na prisão. Saiu imediatamente sob caução. Essa história não era suficientemente boa? Ser preso sob falsas acusações não era dramático o suficiente? Não, tinha de dizer que esteve na prisão, apesar de ser óbvio que esteve o mínimo tempo possível na esquadra da polícia.
E agora George fazia de conta que Lily vinha de visita.
— O que é que queres comer? Faço-te o jantar. Queres camarões? Posso cozinhar-te uns camarões deliciosos com aipo. — Lily respondeu estupidamente «está bem», embora detestasse aipo.
O que é que ele estava a fazer em casa? Lily achava que era suposto manter-se afastado durante vinte e quatro horas. Não interessa, mas uma vez que estava lá, porque é que não estava a arrumar as suas coisas? Não tinha dito a Lily que ia fazer as malas e ir-se embora? No entanto, lá estava ele, a fazer o jantar, a fumar, a dizer que ia buscar Lily ao aeroporto e que ela não precisava de alugar um carro porque ele tinha o Mercedes e que estava à disposição dela. Ele não sabia que Lily nunca tinha tirado a carta de condução?
Tinha-se sentado no lugar do condutor no carro de Spencer. O motor estava a trabalhar. As costas dela contra o volante, as pernas e braços enroladas à volta de Spencer. Isso contava como conduzir?
«I’m ridin’ in your car/ you turn on the radio...»[4]
No voo, Lily leu a maior parte do livro Compreender o Alcoólico, mas o que ela queria mesmo fazer era não pensar sobre a mãe, o que era irónico, considerando a sua missão. Conseguiu porque pensou em Spencer na maior parte do percurso.
O pai estava à espera dela no aeroporto. Ela não o via há tanto tempo. Agora tinha o cabelo grande, queimado do sal, estava mais forte. Abraçaram-se.
— Lily, tens de te preparar para a forma como vais encontrar a tua mãe. Ela está num estado horrível.
— Compreendo.
Ele abanou a cabeça.
— Duvido. Nunca a viste neste estado. Ela está mesmo maltratada e... — Ele foi-se abaixo. — Acho que se passa qualquer coisa de mal com o dedo do pé. Tens de lhe dar uma olhadela e dizer-me.
— O que tem o dedo?
— Não sei. Não sou médico.
— E eu sou?
— Não, mas... estiveste doente. Conheces essas coisas. Por falar nisso, como te tens sentido?
Ele nem esperou pela resposta de Lily. Desde Wailuku, não falaram de mais nada durante o caminho inteiro pelas montanhas vulcânicas de Maui senão de Allison. E por muito que tentasse, não se conseguia lembrar do nome do aeroporto de onde tinham acabado de sair. Lakuhui? Walakui? Qualquercoisalui?
No apartamento, havia roupas por todo o lado, toalhas que tinham sido largadas húmidas durante demasiado tempo, lavatórios cheios de resíduos de pasta de dentes e sabonete, cabelos no chão, tapetes tortos, coisas por todo o lado, maus cheiros.
Antes de Lily ir ver a mãe ao quarto, George insistiu que ela jantasse. Sashimi de atum na varanda. Disse-lhe que tinha andado trinta quilómetros a pé desde a esquadra da polícia.
— Sabes como é caminhar durante tanto tempo e pensar sobre a vida? É muito libertador.
— Papi, achei que te ias embora.
Ele abanou a cabeça.
— Lily, tu não percebes. A tua mãe não pode ser deixada sozinha. Se não a virem, ninguém acredita.
— Vou indo para vê-la então. Obrigada pelo peixe.
A mãe estava a dormir na sua cama alta e não se mexeu até Lily a acordar. Allison disse:
— Quê, vieste consolar o teu pai? — Ela mal conseguia falar, mas deixou Lily tocar-lhe e ver-lhe o dedo do pé. Oh meu Deus, pensou Lily, o dedo! Tinha definitivamente uma fratura exposta, com o osso branco a sair, a parte traseira do dedo quase cortada e o dedo em si todo virado para trás. Por qualquer razão, a parte do pé perto dos dedos parecia não estar bem, empolada e inchada, mas podia ser da má iluminação. Lily tentou acender a luz para ver melhor — estava assustada com o osso a sair para fora —, mas Allison não deixou.
— Mãe, quando é que isto aconteceu?
— Como é que queres que eu saiba? — respondeu Allison devagar. — Talvez quando caí na banheira ou quando estava a tentar sair. É a minha cabeça que está muito pior. Tenho uma racha na cabeça. Queres ver? — Ela virou-se de lado e afastou o cabelo atrás. O sangue tinha coagulado em volta do ferimento e secado no cabelo. Era difícil ver a ferida em si.
— Temos de te levar para o hospital — disse Lily.
— Não! — exclamou Allison, inflexível. — Nada de hospital. Nem pensar.
— O que é que estás para aí a dizer? Tens de ir para o hospital.
— Não tenho de ir coisa nenhuma. Nem todos nós adoramos hospitais como tu, Lily. Nem todos nos sentimos tão confortáveis neles. Não preciso de hospital. A minha cabeça está melhor e o pé vai sarar. Acho que posso ter feito um traumatismo craniano, sabes?
Lily ligou para o Maui Memorial, o hospital de Maui, e disse as palavras fratura exposta. A enfermeira indicou-lhe o Serviço de Urgências de Maiu, em South Kihei Road. A rececionista de lá não sabia o que era uma fratura exposta. «Então, mas o dedo do pé está ou não partido?» Isto foi dito a mascar pastilha elástica. Lily pediu para falar com um médico e não aceitou as tentativas de recusa. Mas o médico do Serviço de Urgências de Maui, Dr. Tavakoli, disse: «Se é uma fratura exposta, não sei por que lhe disseram para ligar para aqui. Você tem de ir para o hospital. Uma fratura exposta pode infetar muito rapidamente, especialmente nas extremidades onde o fluxo de oxigénio é baixo.»
Allison disse que não ia para o hospital. Era demasiado tarde. Eram nove horas da noite. Depois de ter passado o longo dia todo a preencher papelada no gabinete do defensor público, a cozinhar e a tomar conta da mulher doente, George também não queria ir. Disse que iríamos no dia seguinte, se ainda fosse preciso.
Segunda. À luz do dia, não havia como esconder aquele dedo. Havia bolhas distintas debaixo da pele à volta dele, bolhas na parte de cima do pé. Tinha uma cor acastanhada estranha e cheirava mal. Lily recuou de repulsa e disse:
— Já chega, vamos para o hospital.
— Não vou a lado nenhum — declarou Allison.
— Deixa-a em paz, Lil — disse George. — Ela está bem. Deixa-a estar, o dedo vai sarar.
— O pé está a ficar castanho — explicou Lily à linha de emergência.
Vieram em cinco minutos. Os paramédicos entraram com precaução, como se já tivessem estado antes naquela estrada, naquela casa. Em segundos, colocaram Allison numa maca e dentro da ambulância. Já estavam a acelerar para fora dali antes que o pai pudesse dizer:
— Vamos mesmo atrás de vocês.
A stressada, exausta e impaciente enfermeira de triagem olhou para ela de forma desdenhosa até ver o dedo a escorrer líquido e o pé castanho com bolhas de Allison. Aí foi logo chamar o médico de serviço. Uma vez dentro do Trauma 1, Allison começou a chorar e a dizer que era o fim da sua vida miserável, mas o jovem alto, magro e nada sorridente Dr. Aillard estava concentrado no pé dela.
Disse a Lily, afastando-a da cama onde Allison estava a agir em delírio
— Sabe o que é gangrena húmida? Gangrena gasosa?
Lily abanou a cabeça.
— É pior do que gangrena seca, quando há morte uniforme do tecido. Agora, o que se está a passar é que as células que ainda estão vivas estão a perder fluidos, humedecendo as áreas circundantes. As bactérias florescem, daí o termo gangrena húmida. Bem, a gangrena da sua mãe evoluiu para ainda pior. A bactéria nas células agonizantes começou a produzir um gás mortal, e este gás prospera em zonas com pouco oxigénio como o dedo partido dela. Pus castanho, bolhas de gás. — Aillard parou de olhar para Lily. — Este veneno espalha-se rapidamente, causando febre alta.
— É por isso que ela veio ao hospital! — exclamou Lily. — Ponha-a boa.
— Foi bom tê-la trazido — disse simplesmente o médico. — Isso salvou-lhe a vida. Mas... não conseguimos salvar-lhe o pé.
Lily teve de se sentar.
— Vamos dar-lhe antibióticos. Mas o pé terá de ser removido cirurgicamente. Diga-me, o que se passa com a sua mãe? Ela bebe?
Lily fitou-o, sem palavras.
— Ela bebe? — insistiu o médico.
Lily deu por si a acenar afirmativamente.
— Ela está suficientemente sóbria para eu lhe explicar tudo isto?
— Não acho que ela alguma vez vá estar suficientemente sóbria para lhe explicar tudo isto — disse Lily.
A coisa em si não demorou mais do que trinta minutos. George ficou lá fora a fumar.
Quando ele voltou para dentro, tinha acabado.
— Bem — disse ele. — Bom, bom. — Não conseguia dizer mais nada. — Devíamos ir para casa. Deves estar cansada. Devias ligar ao teu irmão, às tuas irmãs. Dizer-lhes o que aconteceu à tua mãe.
— E à avó.
— E à avó — repetiu ele, quase como uma reflexão. — Onde é que vais buscar essa energia toda? Estás a pé há muito tempo.
Lily tinha dormido três horas em quarenta e oito. Tinha faltado às análises sanguíneas, não tinha falado com Spencer. Queria ligar-lhe, mas como os detidos, só tinha uma chamada nela. Ligou à avó. Não havia notícia que se espalhasse mais depressa do que aquela contada à avó.
Em casa, quando procuraram no armário de Allison, encontraram uma grande garrafa quase cheia de gin. O pai primeiro disse que sim, que tínhamos de deitá-la fora, e depois disse que se o fizéssemos, ela nunca ia fazer o depoimento ao Ministério Público para que retirassem as acusações contra ele. Mas levou-a e escondeu-a na mala do Mercedes. Não a esvaziou porque, disse ele, «é um pecado deitar fora álcool em perfeito estado de conservação».
Terça. Lily não reconheceu nenhum dos cheiros matinais em Maui. George queria ir à praia, aparentemente sem se lembrar de nenhuma das angústias que sentiu na noite em que implorou a Lily para ir a Maui, ou da mulher, a amputada.
— Papi, temos de tratar da coisa da polícia antes de começarmos a vadiar pelas praias, e temos de ir ver a mãe.
Ele suspirou.
— A tua mãe não tem os prazeres que outras pessoas conseguem ter quando envelhecem. Nunca vais encontrar um autocolante no carro dela a dizer Felicidade é ser avó.
— Então e tu, Papi? Vou encontrar um autocolante desses no teu carro?
George não respondeu.
Ele movimentava-se em tempo Maui — estava seis horas atrasado em relação ao resto do mundo. Levou um tempo enorme a aprontar-se e sair.
Lily estava a pensar ligar a Spencer. Que horas eram em Nova Iorque? Mais cedo? Ainda meio da noite?
No supermercado começou a tortura.
— Porque é que vais comprar isso? — perguntou George quando Lily pegou em camarão cozido. — Eu já lhe comprei salmão fumado.
Lily respondeu que sabia disso mas que a mãe às vezes gostava de camarão cozido.
— Porque é que lhe vais comprar ice tea? Ela não bebe ice tea.
— Não, mas eu bebo e talvez ela queira um pouco.
— Não precisamos de sabonete. Temos imenso sabonete.
— Se temos imenso, então porque é que eu só encontrei um pedacinho mínimo esta manhã?
— Devias ter pedido. Temos imenso.
— São só barras de sabonete. Fazemos assim, eu levo um comigo e o outro podes deitar fora.
— É esse o problema — disse George zangado. — Compramos montes de porcarias que não precisamos que depois acabam por ir todas para o lixo.
O tráfego arrastava-se ao longo da costa. Conduzindo para norte pelas montanhas até ao hospital, Lily viu uma bela árvore com flores gloriosas de um vermelho vivo parecidas com rododendros. Pensou que tinha de descobrir o que eram antes de se ir embora. Podia pintar aquilo. Viu Maui como um esplêndido teatro, a sua juventude, a sua grande beleza majestosa e fresca vinda da terra ardente e a árvore como um símbolo da sua própria criação.
Ao contrário do valor da árvore, não havia dignidade no calvário de Allison. O seu discurso era confuso e dito entredentes como se ainda estivesse bêbada. Lily teve esperança de que fosse dos anestésicos.
O Dr. Aillard, o das esplêndidas boas maneiras, entrou no quarto e a despropósito, sem dar sequer um olá, disse a Allison:
— Tem de parar de beber, senhora. E tem de parar agora. É altura de enfrentar a vida.
Brilhante, pensou Lily. Sim. Porque é que a minha mãe não pensou nisso?
Allison olhava com incredulidade para o seu coto ligado e elevado. Também Lily estava incrédula, tal como a avó, na noite passada, que continuava a repetir:
— Não pode ser, não pode ser, como pôde isto acontecer, porquê amputação, não havia mais nada que pudessem fazer?
— É demasiado tarde agora para pensar em alternativas, avó. Ela tinha gás venenoso dentro dela.
— Eu sei tudo sobre gás venenoso — disse Claudia. — A tua mãe evitou-o por um triz quando era muito nova. Porque é que teve de ser inevitável que a apanhasse mais tarde na vida, na América? Não me parece justo.
Com o médico cínico não podiam falar sobre o pé. Allison olhava entorpecida para o sítio onde ele deveria estar. Por isso começaram a falar sobre a bebida.
Era muito mais fácil.
Ela não tocou na comida que eles lhe trouxeram.
Outro médico, o Dr. Matthews, veio dizer que iria tomar conta de Allison a partir daquele momento, mas George continuava a tentar contar-lhe a história da vida toda, longa, com explicações detalhadas de Washington e do The Post, e de como houve um incidente em que Allison partiu um braço enquanto ele estava a dormir... O Papi estava cansado e não sabia o que dizer. Não conseguia manter-se no assunto em questão porque o assunto era tão grande, e sem pé, que ele não sabia por onde começar.
Matthews disse que Allison ia fazer uma desintoxicação. Ele ia tomar conta dela. Disse que a morfina ia ajudar e isso fez Allison feliz.
— Morfina! — exclamou.
Matthews disse que ela estaria no hospital por dez dias, até o coto sarar. Ele fê-los tremer a todos e nem sequer reparou. Disse que ia corroborar que os ferimentos de Allison eram inconsistentes com violência física e tentar que o Ministério Público retirasse as acusações. Lily quase perdeu o sentido das suas palavras por causa do medo. Depois, com alívio, escapou do coto para o telefone. Agora tudo o que a mãe tinha de fazer era retirar o seu depoimento e o pai estaria safo.
Finalmente, um agente da polícia veio em resposta às persistentes chamadas de Lily para o gabinete do procurador e Allison disse:
— A culpa foi toda minha. Peço imensa desculpa.
Lily não podia acreditar naquelas palavras. Foram precisas muitas chamadas para conseguir que o polícia viesse e tirasse o depoimento de Allison e era incrível para Lily que os seus esforços não tivessem sido em vão. Teve de discutir com o polícia — Spencer ficaria orgulhoso dela. Fazer com que Spencer se orgulhasse dela era o seu objetivo de vida. Tudo da sua vida real, ele — a sua doença — parecia de repente tão remoto quando ela estava do outro lado do mundo.
Só conseguia pensar em depoimentos da polícia e mandados de captura. E gangrena gasosa. Talvez se ficasse aqui, comprasse uma casa aqui, pintasse aqui — mangas, sushi e palmeiras — esquecesse Spencer, esquecesse que alguma vez tinha estado doente. Agora tinha dinheiro, podia viver onde quisesse, mesmo no oceano, perto das palmeiras, longe dele e de Amy e de Andrew na cama deles.
Depois do agente se ir embora, Lily disse à mãe:
— Aquilo é que foi uma coisa corajosa que fizeste, mãe. Usaste palavras corajosas.
Allison virou as costas a Lily:
— Palavras corajosas são esquecidas instantaneamente. Mas eu perdi o meu pé — disse ela. — Perdi o meu pé para sempre.
Quarta. Apesar das palavras corajosas ao agente, apesar da oferta de Matthews para limpar as acusações de violência de George, à noite o pai agiu como um grande e cansado pessimista.
— Não, Lily, nunca vamos curá-la. Ela nunca vai melhorar. Vejo isso agora.
— Então para que estamos a tentar tanto?
Ele respondeu que era porque a coisa mais importante não era o objetivo, que era o movimento, a luta.
Onde é que Lily já tinha ouvido isto?
Na estrada para a praia, os arbustos eram vermelhos, criando um contraste impressionante com o mar e o céu. Era tudo de ficar sem ar. Lily pensou por que razão estava a notá-lo mais nesta viagem do que na do ano anterior.
E as palmeiras, as palmeiras! Como se dobravam como arcos de violinos, inclinando-se para a cinza vulcânica e para o sol poente.
O sol não era vermelho, era amarelo mesmo até ao fundo do oceano e como se espremia incessantemente para dentro do horizonte, entre a ilha de Lanai e o vulcão de Maui, no lado de Lahaina.
Lily encontrou uma rocha, sentou-se, apreciou o pôr-do-sol e depois entrou na água. A água curativa. Fez-lhe arder os olhos que estavam sensíveis do cansaço e queimou-lhe os lábios com gretas abertas pelo stresse, e fez com que a cara dela ficasse cheia de areia. Era delicioso. Ela não estava dormente, ela sentia.
A água estava quente e o ar estava quente. Lily nadou e por alguma razão teve a sensação assombrosa de que estava a ver as cores de Maui tão vivamente e a sentir a água tão calmante porque estava a vê-las pela última vez. Teve a premonição de que nunca mais veria Maui depois de se ir embora.
Lily não gostou da premonição. Tentou não olhar para o céu azul-violeta quando caminhava de regresso no crepúsculo.
George tinha feito camarões com cogumelos e cebola, um molho delicioso e arroz. Lily serviu-se duas vezes, depois comeu gelado e ligou à mãe no hospital. O cirurgião ortopédico ainda não tinha vindo e Allison disse que o coto estava cheio de pus. Os pensos tinham de ser mudados. Lily disse que estava a sarar — o corpo, doente como estava, estava a tentar curá-lo. Allison não quis ouvir.
O gabinete do procurador de Maui ligou a George.
— Dizem que têm o relatório da polícia e que uma Kim Fallone, que é assistente do Ministério Público pode ver-nos na próxima segunda-feira — contou-lhe George. — Querem saber se a tua mãe pode ir?
— Se a minha mãe pode ir? Eu não sei se a minha mãe pode ir. Estará em condições de usar uma cadeira de rodas nessa altura? Terá alta do hospital, estará limpa nessa altura? Eu não sei nada — disse Lily. — Para além disso, é suposto ir-me embora no sábado, lembras-te?
George pediu-lhe para ficar até segunda. Extremamente relutante, Lily concordou.
Maui à noite tem estrelas que temperam o céu. Quase parece falso, com tantas estrelas e tão brilhantes. Mas a coisa mais impressionante, mesmo abaixo da lua crescente cor de laranja pendurada por cima do oceano, é o grande e redondo Júpiter. Lily nunca tinha visto nada assim em toda a sua vida e pergunta-se se Spencer gostaria de vê-lo um dia, porque ele provavelmente também nunca viu nada assim.
Quinta. Quanto mais disto é que Lily conseguia aguentar? O pai continuava a ser um pessimista. «Ela nunca vai parar de beber. Isto vai tudo falhar e vamos ficar em Maui para sempre, e vamos ter de ir a tribunal e eu vou ser julgado, e tu vais ser julgada e eu não sei o que fazer. É tudo inútil.»
A um metro de entrar no quarto de Allison, ele disse:
— Liliput, vamos fazer um acordo. Damos-lhe de comer, ficamos por uma hora e depois vimos embora, está bem?
Ele queria ir à Praia do Norte. Ele queria uma pequena terapia para si próprio.
Sentaram-se lá e ouviram Allison a falar, ralhar, encolerizar-se e a dizer mentiras sobre mentiras ao médico, e até ao Papi, como se ele não soubesse a verdade, mas com o ar carregado dele, quem sabe se sabe ou não? Diante da mãe, ele é uma pessoa diferente, acha Lily. Ele anda por ali, não sabe o que dizer, não sabe o que fazer, e quer ir-se embora.
A mãe estava a contar ao Dr. Matthews como a bebida se tinha tornado num problema apenas nos últimos quatro meses, porque o marido é muito mau e quer deixar este belo sítio, e porque quando ela está stressada e frustrada, bebe para a ajudar a relaxar.
— Um copo de vinho relaxa-me mesmo um bocadinho — diz ao médico com um pequeno sorriso. O médico acena que sim e diz isto e aquilo.
— Senhor doutor, posso vê-lo lá fora, por favor? — É Lily.
No corredor, Lily conta-lhe que o consumo de álcool da mãe está fora de controlo há muitos anos, uma década pelo menos, e que ficou pior em Maui, mas não começou em Maui nem se descontrolou em Maui.
— Viu as nódoas negras da minha mãe, viu-lhe o pé amputado? Ela perdeu o pé, pelo amor de Deus, acha que conseguia chegar a esse nível de bebida em quatro meses?
De novo lá dentro, o médico diz:
— Sra. Quinn, a sua filha disse-me que não me contou a verdade. Ela diz que a senhora bebe de forma muito mais pesada do que diz.
O olhar que a mãe lhe atira faz Lily recordar-se daqueles momentos na vida em que se sentiu um ser não-humano, como quando a mãe lhe contou no ano passado que Andrew não falava com ela por ela se dar com Spencer; ou como quando Spencer a deixou.
Ao médico, Allison diz:
— Bem, a minha filha nunca me viu beber. Ele é que lhe diz isso. — E aponta para George. — Ela não está a dizer a verdade e ele não está a dizer a verdade.
— Sra. Quinn, porque é que eles haveriam de mentir?
— Pergunte-lhes — disse Allison em tom desafiador.
— Sr. Quinn, esteve sempre ao lado da sua mulher. O consumo de álcool é tão mau quanto a sua filha diz?
O Papi desconversa e depois diz:
— Eu amo muito a minha mulher. Quero ficar e tomar conta dela. Não interessa quão doente está. Eu não me vou embora. Deixá-la é o mesmo que deixar uma pessoa paralisada no meio da floresta no escuro. Não posso fazê-lo. Mas não é tão mau quanto a minha filha diz. É muito pior do que isso. É um pesadelo inimaginável. — Ele começa a chorar e sai do quarto.
Allison está também a chorar e a expressão dela mostra um «se não te tivesses metido, Lily, nada disto tinha acontecido». É um olhar que diz a Lily que a mãe não está exatamente a desejar a sobriedade, apesar da falta do pé direito.
Está agora a gritar por morfina, dizendo que está com dores horríveis.
— Vai-te embora, vai e não voltes! — grita a Lily.
— O que é que quer, Sra. Quinn? — pergunta o Dr. Matthews.
— Só quero ficar sozinha. É tudo — responde Allison.
— Quer ficar sozinha para poder beber?
— Bem, não.
— Quer que o seu marido a deixe? Quer que ele faça as malas e a deixe? O que quer dizer?
Allison não responde. Não consegue olhar para ele por estar tão zangada com Lily.
O Dr. Matthews continua:
— E a propósito, Sra. Quinn, eu não concordo com a analogia do seu marido. A diferença entre si e uma pessoa paralisada na floresta é que você pode ajudar-se a si própria. Um homem paralisado não se consegue levantar.
— Olhe para mim, eu também não me consigo levantar.
— Consegue, pode escolher procurar ajuda e ficar sóbria. Mas eu entendo que não consiga fazê-lo sozinha. Há centros de tratamento aqui em Maui. Há um sítio muito bom, o Aloha House.
Allison abana a cabeça.
— Não, eu não posso ir para o Aloha House.
— Porquê?
— Eu adoro a minha casa, quero ir para lá.
— Para poder beber? — pergunta o Dr. Matthews.
— Não.
— Vou recomendar que seja colocada no Aloha House quando tiver alta daqui — diz o médico antes de sair.
— Porquê? Porque é que tens de abrir a tua grande boca? — lança Allison a Lily mal ele sai.
Lily e o pai sentam-se perto e tentam falar com ela. O pai diz as suas coisas tolas. O pai gosta de falar, adora falar, mas Lily vê tudo agora: no que diz respeito a Allison beber, ele prefere ir para a praia. A bebida é a única coisa sobre a qual ele não quer falar.
Lily sabe que eles não fizeram nada para reprimir a besta dentro de Allison, que ela dirá qualquer coisa que a faça voltar para casa.
O pai, que está meio-feliz por Allison estar sóbria, um estado que ele não via há algum tempo, diz:
— A mãe tem razão. Ela não tem de ir para o Aloha House. Já não há álcool na nossa casa e a tua mãe vai prometer que não bebe.
Allison avança, corajosa e friamente:
— Não, não, eu não vou beber. Aprendi a lição como deve ser agora. Não tenho pé.
— Eu acredito nela — diz George.
— Estás a brincar comigo? Estás a brincar comigo?! — exclama Lily.
— Não — diz ele, abanando a cabeça. — Lily, eu sei estas coisas. Sou mais velho, mais sábio do que tu. Eu entendo.
É a isto que eles se referem quando dizem que o alcoolismo é uma doença de família.
O mesmo homem que nem há quatro dias tinha dito à polícia que não conseguia lidar com ela, que implorou a Lily para vir porque ela era um perigo para ele e para ela própria, que não a conseguia controlar, não a conseguia ajudar, o mesmo homem pensa, de repente, que é uma boa ideia a mulher voltar para casa!
Lily diz-lhe:
— Esta é a mesma mulher que dois dias depois da amputação do pé nos pediu para levá-la de cadeira de rodas a um jardim no segundo andar para que pudesse fumar quatro cigarros de seguida. Quando regressa à cama, toma alguma morfina. A mulher que não foi capaz de se controlar em nenhuma altura no passado vai de repente conseguir parar sozinha de beber?
E depois faz-se luz na cabeça de Lily. A mãe está certa! George é a razão de Allison continuar a beber! Claro que o vício é dela e só dela, mas de cada vez que ela fica sóbria por um dia, por um minuto, como agora, ela não é a única que fica convencida — ele também fica. E ele diz que acha que desta vez vai correr tudo bem. Ele diz que a mãe nunca vai admitir que precisa de ajuda, mas que isto é um grande passo. Diz que pode ajudá-la a ficar sóbria, que pode fazê-lo.
— Fazemo-la assinar uma declaração em como ela não pode tocar em álcool, de outro modo, eu mesmo a levo para o hospital — diz George em tom determinado.
Lily impede-se de dizer: «Oh, assinar uma declaração, muito bom, isso resolve tudo», mas por pouco.
Como ela gostava de poder falar com Spencer acerca disto, pedir-lhe conselho. Ela consegue imaginar o que ele diria. Ele não tem paciência para este tipo de parvoíces.
O Dr. Matthews conta a Lily que a mãe não vai deixar o hospital a não ser que tenha alta diretamente para o Aloha House e que ele vai mantê-la internada até haver quarto lá para ela.
Lily informa alegremente os pais que Allison não poderá sair do hospital.
— Esta era a razão, a razão de eu não querer vir para o maldito hospital. Sabia que isto ia acontecer. Era por isso que eu não queria que abrisses essa grande boca e dissesses tanta coisa. Falas demasiado, Lily. O teu pai, agora diz pouco, mas tu falas mesmo demasiado e é por isso que estamos nesta embrulhada agora — diz Allison.
— Mãe, estamos agora nesta embrulhada porque eu tenho um pé amputado? Estamos nesta embrulhada porque eu escorreguei, caí e bati com a cabeça na banheira e disse à polícia que o meu marido me bate? Estamos nesta embrulhada porque eu tenho nódoas negras por todo o corpo por eu estar bêbada o tempo inteiro?
— É disto que falo — diz Allison, começando a chorar. — Ninguém precisa de mim. Eu só quero morrer.
Eu precisei de ti, mãe, pensa Lily, virando costas. Eu preciso de ti. Onde estás?
Agora Lily sabe.
No caminho de regresso do hospital, George está aborrecido com Lily. Diz que Lily não percebe nada.
Mal acabaram de chegar a casa e Allison liga a dizer que o Dr. Matthews lhe explicou a história de não sair do hospital até haver vaga no Aloha House... Mas que depois pode sair do Aloha House quando quiser!
Lily escuta.
— Portanto, assim que houver lugar para mim no Aloha House, vou para lá e saio imediatamente para que possa ir para casa no mesmo dia — diz Allison.
— Espera, então queres dizer que vais para o Aloha House só para enganar os médicos?
— Arranja-me só o número do Aloha House.
Silêncio de Lily.
— Encontra as minhas páginas amarelas no chão. Encontraste a minha garrafa de gin no armário, encontra as páginas amarelas no chão.
— Mãe, não podemos deixar-te sair do Aloha House, o ideia disto tudo é quereres melhorar, supostamente.
— Então para que é que vou sair do hospital? Aqui estão a dar-me morfina, estão a dar-me comprimidos para dormir — responde Allison.
Lily compreende.
— Então estás a trocar um vício por outro? Porque é que estás a tomar morfina se não tens dores?
— Tenho dores horríveis. Já reparaste que não tenho pé?
— Estivemos sentados contigo cinco horas hoje e nem uma vez gemeste ou te queixaste.
A estoica Allison remata:
— Então devo queixar-me de cada vez que tiver uma dor?
Depois desliga.
Morfina. Um vício pelo outro. A morfina adormece o desejo de Allison pela bebida, apesar de não adormecer o seu desejo de mentir.
As mentiras nunca acabam, nunca. Mentiras aos médicos, à polícia, a mim, ao marido, até a ela própria.
Cada palavra que profere sobre a bebida é mentira, e a mentira é um sinal. Se há um sinal certeiro de que se está perante um alcoólico é a mentira, acerca de quanto bebe, com alibi — a culpa é dele —, e negação — não é assim tão mau —, e a mãe de Lily é a rainha delas todas. E a coroa da rainha?
— Posso parar no momento em que eu quiser. No momento em que eu quiser. Só que não quero. Porquê sujeitar-me a tal teste arbitrário? O quê, só para te satisfazer?
Allison mente sobre a bebida a qualquer pessoa que a escute e, se não lhe apanharem a mentira, ela continua a mentir e pede que mintam por ela. E se a apanharem, fica zangada por estarem a destruir o seu castelo de cartas.
Mas cada palavra que profere é mentira.
A água, as palmeiras, a ausência completa de vento, a água lisa e transparente, o Pacífico. Durante milhões de anos, o oceano subiu à Praia Wailea trazendo vida animal, vegetal, notícias de guerra e morte. Tsunamis e recifes de coral, todos lavados pela mesma água salgada que molhava agora a cara de Lily. De repente fica com medo da sua sombra na água, pensando ser um tubarão.
Vulcões a erguerem-se da água. O suave Pacífico a carregar consigo as almas do universo, a lavar a cara de Lily com o espírito jurássico, o espírito da Segunda Guerra Mundial e o fantasma de cada baleia que ali morreu, tudo na cara dela — eternidade, e é exatamente essa a sensação.
Lily apareceu com uma erupção cutânea por todo o lado nos lábios e queixo. Não se está a sentir no seu melhor. Desmaiou na varanda logo após ela e o pai terem regressado de um passeio. O pai encontrou-a no chão.
Sexta. George não quer passar tempo no hospital com a mulher. Enquanto visita Allison, ele mói-se, fuma, senta-se por dois segundos. Irrita-o, quer que acabe. Lily apercebe-se como o pai finge ser corajoso, a seguir com a vida dele, a falar com a filha enquanto fuma os seus cigarros. Mas estar sentado ao lado da mulher doente não é uma situação de conversa de fumo. Só há o coto, a calma da morfina. George quer ir para casa, beber uma cerveja e falar sobre ela.
Ele não vai pensar em como Allison se vai safar quando chegar a casa. Como é que ela vai subir e descer aquele degrau? Ir até à casa de banho, entrar para a banheira? Quando o coto sarar completamente, ela pode, se quiser, arranjar uma prótese, mas entretanto, como?
Lily quer ir para casa. Tem estado a desenhar Maui no seu bloco, mas agora quer pintar no seu estúdio, sentir a brisa de Nova Iorque na cara, descer a Second Avenue, ir buscar galinha Tikka Masala ao Baluchi. Lily pinta ali em vez disso. Levou com ela alguns pastéis a óleo, alguns lápis de aguarela. Com os pastéis a óleo, apesar de sujarem tudo, Lily faz uma pequena pintura da praia e da água, com Júpiter no céu.
George pinta ao seu próprio modo — cozinha. Cozinha espargos e leva-os para o hospital com molho de mostarda, papaia, manga e ananás. Quando ela prova os espargos, Allison diz:
— Oh, não, ele colocou demasiado sal. Ele sabe que não posso comer sal.
— Mãe — diz Lily —, o que é que estás para aí a dizer? O pai vê a quantidade de sal que deitas nos teus pepinos.
— Bem — diz ela —, isso é um sal especial.
— Sabes que mais? Quando alguém cozinha para ti, tens apenas de agradecer e comer o que te trouxerem.
Allison disse que havia coisas mais importantes na vida do que empanturrar-se.
Lily dá à mãe a pintura que fez. Allison olha para ela por uns momentos.
— Vês o que quero dizer? Sol todos os dias. O que pode ser mais deprimente do que isso? — Deixa a pintura cair sobre o cobertor. Lily pega-lhe, rasga-a em pedacinhos e deita-a no lixo.
— O que se passa contigo? — diz Allison.
O assunto do Aloha House foi posto de lado. O Dr. Matthews diz a Allison que quando tiver alta, tem de ir a reuniões dos Alcoólicos Anónimos todos os dias, que não há «se», «e» ou «mas». Allison acena afirmativamente com a cabeça, mas Lily sabe que a mãe está a pensar: «Eu digo qualquer coisa para sair do hospital».
De volta ao condomínio, Lily esvazia a garrafa de gin escondida na mala do Mercedes e enche-a de água. Aquilo vai ser do mais engraçado
Allison contou a Lily que, quando estava em casa, dormia durante o dia, acordava e dormia de novo, e acordava depois às cinco da manhã quando o pai estava a dormir e não havia nada para ela fazer, por isso bebia.
Bebia às cinco da manhã! O pai não sabia disso e chocou-o, a profundidade do vício dela, mesmo apesar de tê-lo vivido todos os dias, deixando-a continuar, vendo-a a matar-se, impotente para ajudar. Fazia-lhe o pequeno-almoço, sashimi ao almoço e sopa ao jantar, trazia a comida à mulher embriagada, servia-a na varanda, dava-lhe os talheres e um guardanapo e ela comia a contragosto, quase sem mexer a boca, sem a abrir e dizia-lhe que estava demasiado salgada. E depois gritava que desejava morrer como um cão, gatinhava de volta para o quarto e bebia mais gin.
George está amargo agora, não por causa de Allison mas de Maui. Odeia-o tanto como um homem pode odiar a coisa que lhe trouxe tanto desespero. A sua teatralidade, beleza, graça, a sua própria divindade e primitivismo recorda-o apenas do seu absoluto, triste e completo falhanço em agradar a Allison. O mais belo sítio que George alguma vez viu levou a sua mulher às profundezas de um inferno que ele nunca tinha visto, e tudo junto põe-no agora doente, doente com os seus coloridos pássaros e flores paradisíacas e o seu amanhecer resplandecente.
George diz que tudo o que se vai lembrar sobre as suas caminhadas matinais de duas horas — quando tudo no universo parecia não só possível como atingível — era que durante essas manhãs divinas de ressurreição, a sua mulher já estava bêbada desde as cinco, já estava no chão, desgraçada, a arrastar-se, incoerente. Não parece saber como lidar com isso — e não sabe. Sai para fumar e fica lá.
Sábado. Uma madrinha dos Alcoólicos Anónimos chamada Shelly veio durante a tarde falar com Allison.
— Que confusão que eu causei — diz Allison a Shelly, com acentuação no eu.
Talvez houvesse esperança? Será que o pé amputado deu uma nova perspetiva à mãe de Lily?
Mas após duas horas, a madrinha dos Alcoólicos Anónimos vai-se embora e Allison diz a Lily:
— Eu tenho uma doença, Lily. Eu estou doente! — A excitação da justificação sentia-se na sua voz.
Não, quis Lily dizer à mãe. Eu tenho uma doença. Eu estou doente. Não disse nada, incapaz de se juntar quer à excitação quer à justificação.
— Estou doente! A Shelly disse-me. Disse-me para não me sentir mal, não me recriminar demasiado.
— Costumas fazer muito isso, mãe? — perguntou Lily, como por acaso. —Recriminas-te demasiado?
— A Shelly achou que sim. Ela disse que só falei de como tudo tinha sido culpa minha. Disse-me para parar de ser tão dura comigo própria.
— Mãe, porque é que dizes essas coisas à Shelly quando sabes que não são verdadeiras?
— São verdadeiras! Eu tenho uma doença!
— Não é a isso que me refiro. Passaste a vida inteira a culpar o Papi por todos os teus problemas, e quero dizer mesmo todos, por isso porque é que finges o contrário com a Shelly? Como é que isso te vai ajudar? — Lily estava enojada.
— Isto é contraproducente, Lily — disse filosoficamente a mãe. — Temos de olhar para a frente.
— Muito bem. Concordo.
— Eu tenho uma doença! Uma doença!
— Pode ser curada. — Porque é que estas palavras custaram tanto a dizer? Lily tentava não fazer comparações.
Allison abanou vigorosamente a cabeça.
— Aí é que está a coisa. Não há nada que se possa fazer. Sabes o que é que a Shelly me contou? Uma vez alcoólico, sempre alcoólico. Ela tem uma pessoa nas reuniões dos Alcoólicos Anónimos que não bebe há cinquenta anos. Eles ainda se consideram alcoólicos. É incurável. Até morrerem, tudo o que querem é beber.
Lily escutou a mãe.
— Onde é que queres chegar? — perguntou devagar.
— Isto é tudo inútil — disse Allison com um ar descontraído. — Nunca poderei ser curada.
— Mãe, quantos membros terás de perder antes de parares de beber? Já só te sobram três.
— A Shelly disse que uma vez alcoólico, sempre alcoólico — respondeu a mãe altivamente.
— A responsabilidade ainda é tua. A Shelly não te disse que não o podias controlar, pois não?
— Não... Mas eu vou sempre querer beber. E a Shelly disse que tropeçamos, que não se espera que sejamos perfeitos.
Porque é que Lily começava a odiar a tal Shelly? Poderia ela ter sido menos imprestável? Foi quase como se tivesse dado a Allison a absolvição: Estou doente! Tenho uma doença! Está fora das nossas mãos! Eu não controlo!
Quantos mais dias até ela poder ir para casa?
— É esta a tua sala das lágrimas, mãe? — perguntou Lily.
— O quê?
Ela contou à mãe sobre o gentil padre em St. Patrick e sobre o Bispo de Roma.
E Allison virou-se de costas para Lily e disse as palavras mais incompreensíveis da semana inteira.
— Não, minha filha — disse ela. — Esta não é a minha sala das lágrimas. Isto é só o lobo à sua porta.
Na praia. Domingo de manhã. Domingo de manhã em Maui, nem uma vibração no céu, tudo tão tranquilo. Lily esboça e esboça, palmeiras e camas de rede, falésias e vulcões, árvores flamejantes e vales entre montanhas.
Lily pensou nela e na mãe. Pensou que a maioria de nós não está em paz porque não sabemos com o que é que temos de estar em paz. A maioria de nós não está feliz porque não estamos a viver a vida que queremos e não sabemos como lidar com isso. Não sabemos como fazer frente a isso. E por isso vamos em frente, pedindo desculpa a Ralph Nader[5], infelizes a toda a velocidade.
Devíamos todos ter a sorte de ter cancro.
E não o afirmo de forma petulante, pensou Lily.
Isto é, ter cancro e ter a sorte suficiente de lhe sobreviver.
Cancro — uma experiência tão clarividente.
Alcoolismo — menos clarividente.
Mas sem álcool, o que é que a mãe dela tem? Nada, pensa Lily.
Allison entende a vida dela como um desperdício, vê-se como velha. Fez terapia, esteve a tomar medicamentos psiquiátricos — Zoloft, Prozac. Odeia a sua vida; a sobriedade só o acentua. Odeia-se quando está embriagada, odeia-se ainda mais quando está sóbria. Pelo menos quando está bêbada, o tempo dos apagões passa rapidamente.
Tempo passado até à morte.
E com cada apagão, a morte fica ainda mais perto, o que não é mau. Porque é que ela não se mata? É uma cobarde. Medo de Deus. Porque é que arrisca a condenação eterna? Se estiver suficientemente bêbada e mandar o carro para uma vala, pode fingir para com Deus que a morte dela foi acidental. Pensa que pode enganar Deus com as suas pequenas farsas. E o nosso pai sentado ao telefone há anos tentando assustar-nos com as possibilidades da morte da mãe. Ele não vê que é precisamente isso que ela quer? Ela descartou todas as coisas de que esta vida se constrói, deitou-as fora, virou-lhes as costas. Coisas como fazer compras por catálogo, namorar, viajar, ler livros, escrever, comunhão com Deus, com os amigos, com as seis netas! Allison não quer todas as coisas que tornam a vida agradável, exceto o ardor do gin na garganta e o esquecimento que vem de seguida. É uma morta-viva. Morta para nós, morta para ela mesma.
«Posso parar no momento em que eu quiser. Só que não quero.»
O Papi fecha os olhos para ter uma vida tranquila e Allison fica tão satisfeita com isso.
Ela diz que o pai vai viver tão bem sem ela. E Lily acha que ela tem razão. Ele vai. Ele vai pescar, navegar na Internet, ver os seus desportos, cozinhar. Os dias dele vão continuar a ser completos. Só cozinhar será difícil porque é melhor cozinhar para alguém. Só ver filmes à noite será difícil porque é melhor vê-los com alguém. Lily sabe que isto é verdade.
Ela não vai chorar neste domingo Maui, não vai. Desenha os olhos de Spencer a ver o adorado Groundhog Day com ela, a rir, adorado. Ela não vai chorar.
A doença da mãe não é o alcoolismo. Isso é só o sintoma. A doença é o buraco negro dentro dela que a bebida ajuda a fechar. E Allison precisava de beber bastante antes de a bebida o fechar.
No hospital, Lily senta-se com a mãe. O pai está noutro lado.
Lily tenta uma abordagem suave.
— Queres falar comigo?
— Já falei tudo o que tinha a falar.
Lily não sabe que mais dizer. Tenta de novo.
— Queres contar-me? Contar-me sobre... a sala das lágrimas?
Allison faz-lhe só um gesto para ela se afastar.
— Deus, onde está aquele cigarro?
— Não podes fumar aqui, mãe. Há garrafas de oxigénio por todo o lado.
— Oh, todas estas regras. Não as aguento. Só quero estar na minha própria casa outra vez. Ser responsável pela minha própria vida de novo.
— Era isso que eras dantes? — perguntou Lily. — Responsável pela tua própria vida? — Parecia-lhe que a vida era responsável pela mãe.
Allison olha para Lily.
— Não é que estás arisca? Como é que é queres que te conte alguma coisa se falas comigo dessa maneira?
— Desculpa. Conta-me, por favor.
— Agora, esquece. Pergunta à tua avó sobre mim, se quiseres. Ela conta-te. Sabe mais do que eu. Fico admirada de ela ainda não te ter dito nada, da forma como nunca para de tagarelar sobre o passado.
— Dizer-me o quê?
— Deixa-me perguntar-te, não o negues. Por vezes desejas que eu não seja tua mãe, não desejas? Que pudesses ter uma mãe diferente?
Lily fica calada.
— Eu sei que sim. Eu sei que sim. A forma como me tratas, a forma como estás sempre do lado do teu pai, do lado do teu irmão. Contra todo o sentido e razão.
— Mãe...
— É bom que sejas boa para mim, Lily — sussurra a mãe, apontando-lhe o dedo, batendo de seguida no próprio peito. — Porque sou a única que tens.
Era amanhã que ela se ia embora? Se fosse no minuto seguinte não seria cedo o suficiente.
Segunda. O hospital permitiu à mãe inválida uma dispensa especial para ir ao gabinete do procurador falar com Kim Fallone. Se Fallone retirasse as acusações, tudo ficava bem.
Na segunda de manhã, uma Allison de cadeira de rodas fica com Kim Fallone durante uma hora. Antes disso, tentava convencer Lily que todos os ferimentos dela vinham de uma queda na banheira, o dedo do pé, a cabeça e todas as nódoas negras das pernas e braços. Como se fosse possível. Allison sóbria é completamente incapaz de perceber que ela, como um ser humano racional, nunca poderia ter infligido tais ferimentos horríveis a ela própria. Está presumivelmente a tentar explicar uma simples queda catastrófica à Sra. Fallone.
Lily e George esperam e desesperam. Lily descobre num livro que a árvore vermelha brilhante se chama Poinciana ou acácia-rubra. Adora-a.
Adora aquela árvore.
Vai pintar aquela árvore de mil formas diferentes quando chegar a casa. Vai pintar Maui, o oceano e os vulcões quando chegar a casa.
— Sabes a garrafa de gin da tua mãe? Deitei-a fora — conta George.
— Ainda bem — responde Lily de olhos escondidos pelos óculos de sol.
— Sim, mas há uma coisa inexplicável. Eu provei e, não sei, é um mistério para mim, mas parecia ser água — continua ele.
— Isso é surpreendente — diz Lily.
Depois de uma pausa, ele pergunta:
— Foste tu?
Ela assente, tentando não sorrir.
George abana a cabeça.
— Mas és doida? Não é a mim que tens de controlar.
— Tive medo que depois de eu me ir embora, tu lha desses de volta. Dar-lhe-ias uma das tuas cervejas se ela te pedisse? Só um pouco de cerveja? Só uma, porque ela diz que aguenta? — pergunta Lily.
George sai para comprar um ice tea. Tinha gostado bastante do ice tea Snapple que o levou a ralhar com Lily quando o comprou há seis dias.
Quando volta, comenta que se alguém há dez anos lhe tivesse dito que seria o tipo de homem que não podia guardar vodca em casa, conhaque em casa, gin em casa, que não poderia beber uma cerveja em frente à televisão (!), ele teria dito que a mandava a ela e esta vida ao inferno, que não queria tomar parte nela.
— E agora, olha para mim. Amaldiçoo a minha vida, amaldiçoo não poder fazer as coisas de que gosto por causa da tua mãe não ter autocontrolo, e ainda assim, vivo-a.
Lily não disse nada. Não havia nada a dizer.
— Sabes porquê? Porque a amo. Sim — disse George. — Mas o que é que ela vai fazer quando regressar a casa? Vai estar coxa, sim, mas ela não sabe fazer mais nada para além de beber.
— Acho que esse é um dos problemas — concorda Lily.
— Ela diz-me, o que é que vou fazer agora? Como posso eu como adulto responder a essa questão a outro adulto? — George estava indignado. — Ela não tem interesses e de repente a culpa é minha? É minha a culpa de ela precisar de atenção constante?
— Não vai ser fácil. Talvez ela possa tentar tricotar? — Mas Lily está a pensar noutra coisa. Está a pensar na mãe. Na tristeza interior de que Allison não se consegue livrar. Lily conhece um homem igual.
Kim Fallone recomendou arquivar o caso por falta de provas. O que queria dizer que poderiam reabrir o processo se houvesse uma queixa semelhante dentro do prazo de um ano. A mãe de Lily limpava os olhos, parecendo aliviada. Estava Deus a olhar por Allison? Teria Deus mostrado a sua presença em Maui? O tipo de presença 49, 45, 39, 24, 18, 1? Allison não tem um pé, mas não está morta. E se não fosse por ela, por quem estaria Deus a olhar?
Lily disse:
— Bem, é tudo, maltaaaa. Não que não tivesse sido divertido. Foi animado. Mas tenho de ir andando agora. Tenho um avião para apanhar.
[4] Citação de Fire, canção das The Pointer Sisters. (N.T.)
[5] Político americano, ativista anticonsumismo. (N.T.)
59
E agora, sobre Spencer
Quando Lily voltou para Nova Iorque, o atendedor de chamadas estava CHEIO. Havia dez mensagens de DiAngelo a dizer-lhe que ela tinha de ir vê-lo. «Lily, análises ao sangue uma vez a cada duas semanas e não te vejo há três. Liga-me.» Das 27 mensagens, havia uma curta de Spencer.
Do novo Spencer. «Olá, é o Spencer». Como se ela não soubesse. A formalidade é só para criar distância. Lily percebe. «Ligaste-me no sábado, já tarde. É só para saber se estás bem. Se ainda precisares de alguma coisa, liga-me para a esquadra no....» Ele deixa o número! Quem é ele, quem é ela?
Havia mais uma: «Olá, aqui é, hum, outra vez o Spencer. Parto do princípio que estás bem, uma vez que não tive notícias tuas.»
Pronto, está bem. Assim seja. São precisos dois para jogar um jogo.
Lily aperaltou-se com uma aparência casual. O cabelo estava a crescer. Andava a sentir-se tão cansada. Isso desde o momento em que tinha chegado a Maui. Aquele maldito jet lag. A mãe não ajudou. Mas o cabelo dela estava ruivo escuro, curto, espetado e mais grosso e usava umas sandálias de tiras de verão e um minúsculo vestido de padrão havaiano que tinha escolhido no aeroporto de Kahului (!). Colocou maquilhagem, brincos e foi a pé até à esquadra.
Informou Carl, o agente na receção, que queria apresentar uma queixa do homem que a tinha abordado na rua. Carl conhecia-a, disse olá, perguntou já a pegar no telefone se ela queria que mandasse uma mensagem ao Detetive O’Malley. Lily olhou para cima, tentando ver através dos três andares até ao sítio onde Spencer estava no momento.
— Não, deixa estar — disse ela com ar sério. — Não é o Detetive Sanchez o vosso detetive responsável pela mendicidade?
— Sim... Mas...
— Ele serve. Podes mandar-lhe uma mensagem a ele, por favor? Diz-lhe que a Lily Quinn quer apresentar uma queixa.
Lá em cima, no terceiro andar, sucedeu-se assim: Sanchez recebeu a chamada, ouviu atentamente, olhou para Spencer no gabinete de Whittaker a tomar o café da manhã. Desligou o telefone, levantou-se, foi lá e bateu à porta, pediu para falar com Spencer por um momento e, baixando a voz, disse:
— O Carl lá de baixo acabou de me ligar porque alguém quer apresentar uma queixa sobre mendicidade.
Spencer deu-lhe uma palmada nas costas.
— Detetive Sanchez, obrigada por me trazer à atenção pormenores do seu trabalho. Muito bem. Vá-se a ele.
Sanchez tossiu e disse:
— A jovem diz ser a Lily Quinn. Pediu especificamente para falar comigo — disse Carl.
Spencer não lhe deu uma palmada dessa vez. Ficou a olhar para Carl e depois disse:
— Está bem, espertinho, regressa à tua secretária.
— Foi o que pensei — disse Sanchez.
Lily estava muito sossegada com as mãos sobre a secretária dos visitantes quando Spencer desceu as escadas principais. O coração dela batia violentamente e se as mãos não estivessem agarradas uma à outra, ela sabia que estariam a tremer. Mas por fora, conseguiu permanecer composta.
Ele parecia... bem, era o Spencer. Vestia um fato elegante, camisa branca, gravata de seda azul a combinar com os seus olhos de seda azuis. Tinha o cabelo ondulado, mais comprido. No entanto, estava em baixo, sombrio, extremamente pálido e os círculos debaixo dos olhos estavam mais escuros do que ela se recordava. Ele veio ter com ela.
— Olá, Lily.
— Oh, olá — disse ela em tom descontraído. — Pensava que o Detetive Sanchez estava encarregue da mendicidade.
— Queres que chame o Detetive Sanchez para ti? — perguntou Spencer.
— Não, não.
— Está bem, então.
Ficaram ali por um momento, sem dizer nada.
— Então, o que se passa? — disse ele finalmente e Lily teve de desviar o olhar por causa do tom de voz inseguro. De repente, já não parecia tão boa ideia, em frente a Carl, que não tirava os olhos deles.
— Lily — disse Carl —, não tens vendido os teus quadros aos sábados. A minha mulher foi lá para ver o que tinhas e não estavas. Devias ver quantas pessoas estavam lá à tua espera na semana passada.
— Sim, vou lá estar este sábado, Carl.
— Tens coisas novas giras, Lil?
— Tenho algumas surpresas.
Spencer disse:
— Vem lá acima.
Subiram os três lanços de escadas. Lily estava mais ofegante do que gostaria ao chegarem ao terceiro andar, e teve de se agarrar ao corrimão o tempo todo.
Ele abriu-lhe a porta da sala das Investigações Especiais. Gabe McGill apareceu.
— Olá, Lily. — Olhou para Spencer, e depois de volta para Lily. — Tens bom aspeto. Muito bronzeada.
— Sim, estive uns dias fora.
— Divertiste-te?
— Sim, foi muito bom.
Tudo isto em frente a um Spencer sem qualquer expressão.
Gabe sentou-se à secretária, que era mesmo ao lado da de Spencer. Whittaker estava a olhar para eles através do vidro. Sanchez, Smith, Orkney, todos eles a olharem. Quer dizer, havia ali alguém que não soubesse que eles tinham andado juntos?
Depois de puxar uma cadeira para ela se sentar, Spencer sentou-se também.
— Então, o que se passa? — perguntou calmamente. — Como tens passado? Como te tens sentido?
— Bem, tudo bem — respondeu Lily desajeitadamente e bem alto. — Ótima, está tudo ótimo. — Esperava que ele não lhe visse as mãos contorcidas no colo. — Só vim cá porque queria apresentar uma queixa do homem que eu penso ter-me abordado em Tompkins Square.
Spencer suspirou e abriu o bloco de notas.
— Certo, está bem. Quando é que foi isso?
— Fez no sábado uma semana.
— A que horas?
Lily tossiu desconfortavelmente.
— Cerca das duas e meia da manhã.
Spencer, que estava a apontar aquilo, parou levantando os olhos para ela.
— Estavas em Tompkins Square às duas e meia da manhã?
— Talvez fosse mais perto das três, não sei exatamente. Não olhei para o relógio.
— Tomar cuidado é uma necessidade a ter para manteres a tua própria segurança — disse ele.
— Eu sei.
— O que é que estavas a fazer na rua às duas e meia da manhã?
Lily não podia dizer-lhe. Nem sequer conseguia olhar para ele.
— Estava a ir para casa — disse ela. Mas subitamente a memória do meio quilo de cerejas no seu estômago de chumbo e estar do outro lado da rua das suas janelas apagadas a pensar onde é que ele estava às duas da manhã de um sábado à noite, encheu-lhe a garganta com tamanha desgraça que se levantou e disse: — Desculpa, tenho de ir agora. Já tens o suficiente?
Spencer olhou perplexo para o bloco de notas.
— Não tenho nada. Que homem? O que é que ele fez? Podes descrevê-lo?
— Acho que pode ter sido...M... — Mas Lily já estava a titubear. — Acho que ele pode ter andado a seguir-me. Mas tenho de ir, detetive — disse ela. — Lembrei-me agora, tenho de correr. Nem acredito nas horas que são.
— Que horas são?
— São horas de me ir embora.
Ele também se levantou mas ela já estava a afastar-se dele, tentando desesperadamente controlar-se tempo suficiente até sair da esquadra. Spencer não a seguiu. O que foi o melhor, porque ele não ia gostar de ver a sua Lily calma e equilibrada a chorar como um bebé, com o rímel a escorrer-lhe em riscas de guaxinim pela cara abaixo enquanto cambaleava para a Second Avenue para apanhar um táxi para ir ter com Paul e Rachel.
Passou o resto do dia todo fora com eles, a almoçar, a ir à livraria, a comprar revistas para a avó. Depois de terem saído do trabalho, foram todos comer fora ao indiano e depois foram para casa dela, onde prepararam margaritas, como sempre, e falaram sobre Amor e Amy, como sempre. Os olhos de jet lag de Lily pareciam lixas, muito doridos agora até para lágrimas.
E Milo — ele era um novo assunto sobre o qual falar.
Às onze, o intercomunicador tocou.
Ah. Primeiro foi o coração a sentir.
— Quem poderá ser, pergunto-me? — brincou Rachel.
— Quem é? — perguntou Lily carregando no botão.
— Sou eu.
Lily virou-se para dizer a Paul e Rachel que era melhor irem embora, mas eles já se estavam a levantar.
Abriu a porta toda. No patamar dela estava um despenteado e arfante Spencer.
— Lembras-te da Rachel, do Paul — Lily disse pateticamente
Ele quase nem lhes acenou; não disse nada. Ainda estava à entrada, no corredor bege.
— Queres, hum... entrar?
Spencer tinha o olho neles e não entrou.
— Estamos já de saída — disse Paul. — Rach, anda lá, despacha-te! Quanto tempo demora a enfiares um par de sapatos?
Spencer não entrou até eles terem dito adeus a Lily e estarem a descer as escadas. Depois entrou. Entrou e atirou a porta para se fechar, olhando desconcertado para as barricadas — a cadeira e a mesa —, mas as mãos dele já estavam no cabelo de Lily, a cara dele toda na dela, e os lábios nos dela. Cheirava a álcool. Lily reparou porque ele nunca lhe tinha cheirado a álcool antes, mas esta noite o seu hálito era forte. Ele agarrava-a com tanta força que ela quase choramingava debaixo da boca dele, levantando as mãos em rendição.
Ele puxou-a para o sofá e ajoelhou-se em frente a ela, abraçando-a como se tivesse acabado de chegar da guerra.
— Onde estiveste? — perguntou com voz rouca, os braços a envolvê-la.
— Eu? Onde é que tu estiveste?
— Aqui. A vir todos os dias a tua casa tocar à campainha.
— Spencer...
— Oh, Lily, não chores...
— Oh, céus, Spencer...
Fizeram amor no sofá com a televisão sem som e o Lonely Guy congelado no ecrã.
— Quanto açúcar, Lil...
— Mais, Spencer... mais.
— Quanto mais...
— Vazio, vazio, vazio. — Estava agarrada a ele, as mãos nas suas costas nuas, a boca no pescoço, a beijá-lo, e não tão silenciosamente nem tão suavemente a chorar.
— Shh, Lily, shh...
— Agora percebo — disse ela. — Só percebo agora o que estavas a dizer-me na altura. Não era o Steve Martin, eras tu a dizê-lo. A mim.
«Todas as damas são parecidas: chegam-te à garganta, agarram-te o coração, puxam-no para fora e depois atiram-no para o chão, pisando-o com os seus sapatos de salto alto. Cospem nele, mandam-no para o forno e cozinham aquela merda toda. Depois cortam-no em pequenos pedaços, enfiam-no num bocado de pão e servem-to, esperando ainda que digas: ‘obrigada, querida, estava delicioso’.»
— Lily, vá lá, não.
— Sim, Spencer.
Levantou-a e carregou-a até ao quarto.
— Perdeste peso — disse ele.
— Isso é bom, mau, indiferente?
— Indiferente. Eu tomo-te de toda e qualquer maneira.
Foi buscar água e voltou para a cama dela. E beijou-a e acariciou-a, um pouco mais suavemente agora, e desceu nela com a sua boca enlouquecedora com hálito a uísque, segurando-a aberta com as suas enlouquecedoras mãos de uísque, fazendo-a mesmo enlouquecer, fazendo-a vir até ela quase desmaiar e depois fazendo amor com ela de todas as maneiras até ela ficar murcha. Mas passava-se qualquer coisa com ele, ainda não tinha acabado, continuava inacreditavelmente duro e apesar de já não sobrar nada dela, deu-lhe tudo na mesma — e mesmo assim ele ainda não estava satisfeito.
— Spencer? — sussurrou Lily, saturada em transpiração, as janelas abertas, os gemidos dela a saírem para o pátio de verão onde os gatos estavam a ouvir. — Spencer, o que se passa contigo?
— Nada — disse ele. — É só o uísque. Não me consigo vir com uísque.
— Bem, é a última rodada, cavalheiro, porque eu não aguento mais.
— Vais ter de aguentar mais um bocado, Harlequin — sussurrou ele.
Os gatos miavam no pátio.
— Spencer... tem piedade de mim... Eu não tenho este tempo todo...
E finalmente ele teve piedade dela.
Abraçou-a tão juntinho a ele e ela chorou outra vez.
— Desculpa, Lily.
— Não peças desculpa. Tu não tens nada de que pedir desculpa. Nada.
— Tenho.
— Nada! — repetiu ela. — Eu estava errada e a ser egoísta. Era tudo sobre mim, sobre o Andrew, sobre a Amy, eu, eu, eu. Não sobrava nada para ti. Fui uma amiga horrível para ti, uma horrível tudo. — Afastou-se um pouco dele para lhe olhar para a cara. Estavam colados um ao outro como como se fossem papéis, a tremer.
Ela beijou-o suavemente.
— Spencer — sussurrou Lily —, desculpa.
Ele olhou para ela, não dando mostra de ter ouvido. Ela beijou-o de novo.
— Ouviste-me?
— Ouvi-te. — Ele não sorria. — Onde estiveste? Tive saudades tuas.
— Fui a Maui.
Ele não disse nada.
Ela cerrou o punho, bateu-lhe nas costas e começou a chorar.
— Como é que pudeste estar tanto tempo sem me ligar? Como é que pudeste apenas esquecer-me, não sabes como sou?
— Deus sabe que sei. E não te esqueci.
— Como é que pudeste não ligar? — Lily soluçava. — Não sabes como gosto de ti?
— Sei — disse Spencer, fazendo-lhe festas nas costas. — Foi por isso que não te liguei. Eu não te mereço.
Lily segurou-o num abraço nu. Spencer perguntou se ela queria falar e ela disse:
— Não, sim, o que quiseres, fala, não fales. Não quero saber. Nunca quis mesmo saber. Só te quero por perto.
— Lily, por favor... — disse ele, voltando-se. Estiveram em silêncio por minutos? Horas? Depois ela falou.
Contou-lhe sobre Maui. De repente ele fechou os olhos, pôs o braço sobre a cara e não quis ouvir mais. Afastou-se dela e disse:
— Não me contes mais.
LIly não percebeu o que se passava.
— Não me contes mais sobre a tua mãe — disse finalmente Spencer. — É demasiado difícil de ouvir para mim. Eu sei tudo sobre ela.
— Estás a falar de quê?
Spencer disse qualquer coisa, calmamente, de cabeça baixa.
Lily achou que tinha percebido mal.
— Bebida? — Sentou-se na cama. — O que é que estás a dizer? Tu não!
— Sim, eu bebo.
— Spencer, eu nunca te vi a beber.
— Mesmo assim.
Ela abanou a cabeça.
— Para!
Ele não disse nada mas sentou-se na cama, puxando os joelhos para cima, olhando para baixo.
— Spencer — Lily riu-se com o nervosismo. — O que é que estás para aí a dizer?
A boca dele fechou-se.
— Tu não bebes assim, Spencer. Seja o que for que faças, não é beber. A minha mãe é alcoólica. Eu sei o que é beber. Acabei de chegar do beber dela. Não a viste a sentar-se com o osso do pé saído durante dias, o próprio pé a borbulhar no corpo porque ela estava demasiado bêbada para perceber a diferença entre um dedo magoado e um gangrenado; e ela a não querer ir para o hospital por não querer ficar sóbria, mesmo que isso significasse perder o pé nesse processo. Agora, isso é beber. Tu tens um emprego, uma vida e tens todos os teus membros...
Spencer interrompeu-a com um abanar de cabeça.
— Eu não tenho vida. Tenho trabalho, é verdade. Tenho trabalho de segunda a sexta, e depois tenho a bebida. É a minha vida. Até tu teres aparecido, essa era a minha vida.
— Bebes aos fins de semana?
— É só o que faço.
Spencer estava em silêncio.
Lily estava em silêncio.
— Não pode ser verdade. Não pode.
A brisa de junho soprou da janela aberta e os gatos gemiam.
— Oh, meu Deus! — disse Lily finalmente. Ela tentou perceber, tentou envolver o cérebro naquilo. — Eu não percebo — disse. — Não é o beber da minha mãe. Trabalhas, tens um emprego, stresse, responsabilidade. Funcionas, apenas parece como...
— Tens razão — disse ele. — Tu não percebes.
Lily pensou em todos os fins de semana do passado que Spencer tinha estado com ela. As ausências dele, os esquecimentos, os silêncios, o remoer, o mau humor, a alma calada dele que ela viu mas não viu.
— Mas paras durante cinco dias da semana.
— Sim.
— E às vezes quando estás aqui até mais tempo.
— Sim.
— O teu hálito nunca me tinha cheirado a álcool — disse Lily, reprimindo com vergonha a sensação de desejo nos genitais. Ele estava a contar-lhe os seus demónios mais negros e ela deu por si a desejá-lo. Era a isso que se referia quando falava em falhar-lhe. Os homens faziam isso? Desnudas-lhes a alma para eles e tudo o que querem é saltar-te em cima?
— Nunca tinha bebido antes de te vir ver.
— Porque é que bebeste esta noite, numa terça? Por causa dos nervos?
Ele sorriu ligeiramente.
— Não tenho qualquer medo de ti, Liliput. Foi só porque sim. Desde que deixei de te ver... a bebida descontrolou-se.
— Descontrolou-se? — Ela olhava para ele como para algo que estivesse prestes a trabalhar, intensamente.
— Spencer, este beber, é algo sério?
— O que é sério?
— Tipo, algo que não podes parar? — Lily disse-o mas não a sério mesmo quando as palavras estavam a sair. Eram apenas palavras.
— Isto é algo que eu não consigo parar — disse Spencer.
— Não acredito em ti.
— Acredita, Lily.
— Mas tu paras de cada vez que vais trabalhar e quando me vens ver!
— Eu paro porque sei que a minha recompensa está à minha espera. Eu paro e como recompensa por parar, bebo até ao esquecimento. Bebo até não conseguir mais, até o uísque ter acabado ou eu desmaiar, o que vier primeiro.
Lily estava estupefacta.
— É assim que bebes?
— É assim que bebo.
Abanou a cabeça com veemência.
— Não. Não pode ser verdade. Não pode ser verdade porque isso é como a minha mãe bebe. Ela bebe até apagar.
— Sim.
— Mas Spencer, a minha mãe é alcoólica.
Por um momento só se ouviram os gatos a chorar lá fora.
— Lily — disse Spencer —, eu também sou alcoólico. Eu sou a definição viva de um alcoólico. Eu não posso beber. E quando bebo, não consigo parar. Escondo a minha bebida das outras pessoas porque elas ficariam chocadas se soubessem quanto bebo. Dizes que não consegues imaginar a tua vida sem mim. Bem, eu não consigo imaginar a minha vida sem a bebida. Nunca consegui ter uma relação com uma mulher por mais do que algum tempo por causa da bebida. Todas seguem o seu caminho em cerca de um ano. Assim que acham que podem mudar-me, eu desapareço.
Lily observava-o.
— Não pode ser — deixou ela sair.
— À sexta à noite, bebo. Durante todo o dia de sábado e noite, bebo. Passo o domingo a ficar sóbrio. Domingo é o meu dia mais duro da semana inteira. Que é a razão de ser mais fácil quando o passo contigo. — Spencer sorriu então um pouco. — És uma verdadeira «Harlequin», como um bobo, com as tuas comédias e o teu cancro, a fazer-me esquecer da bebida. À segunda vou trabalhar.
— Vais trabalhar todas as segundas?
— Vou trabalhar todas as segundas.
— Nunca faltaste numa segunda?
— Nunca faltei numa segunda. — Ele abriu as mãos. — O que te posso dizer? As aparências são tudo. A aparência de ser normal, de agir normalmente, é essencial para continuar a beber. Porque se fores visto descontrolado, vão-te pedir para parares — a tua família, amigos, mulheres, empregador. Portanto, fazes tudo para te esconderes, para que nunca to peçam.
Lily estava pensativa, alerta, sentou-se mais direita, o seu corpo excitado. Ele viu-o; alcançando-a, colocou-a cuidadosamente em cima dele. Deitou-a em cima dele e, agarrando-lhe na cabeça, beijou-lhe suavemente a cara, beijou-lhe os lábios, as faces, os olhos, a testa.
— Liliput, és adorável. Queres ajudar-me? Queres ajudar-me a ultrapassar? Não estou a dizer que não és admirável. És uma rocha. Eu costumava ser alguém que bebe normalmente, mas agora estou perdido. Eu bebo desde o final da minha adolescência. Embora há uns anos — quando eu achei que tinha batido no fundo — precisasse de uma garrafa de uísque por fim de semana, agora, preciso de duas, talvez três, às vezes quatro, dependendo da intensidade do uísque. Gasto duzentos e cinquenta por semana, doze mil dólares por ano em bebida. Gasto em bebida quase o mesmo que gasto com a minha renda. Não me posso dar ao luxo de ter uma vida mesmo que quisesse uma.
— Podes dar-te ao luxo de me teres a mim — disse Lily. — Não te custo um cêntimo.
— Tu és de facto uma poderosa droga por si só — disse ele —, baixando as mãos até às ancas, apertando-as, abrindo-as, sem a largar, acariciando-a.
Lily não se conseguia concentrar nas palavras.
— Defendeste-me admiravelmente. Apareceste sempre. Não há nada de mau em ti.
Ele beijou-a.
— Sim, apareci. Mas porque sei que é temporário. Regresso sempre à minha casa. A bebida é a coisa que é para sempre.
— É por isso que nunca viveste com ninguém?
— Sim. Não posso ter ninguém a ver-me quando estou assim.
Ela matutava.
— Tentaste aquela abordagem dos doze passos? A minha mãe está a tentar.
— A tua mãe está a mentir-te.
Ele disse-o tão rapidamente, tão brutalmente. Como é que ele sabia aquilo?
— Não, não — protestou Lily, tentando dar-lhe esperança, mesmo sabendo que ele tinha razão. — Ela foi muito honesta. Viu a vida dela a andar para trás. Ela perdeu um pé, Spencer. Ela quer fazer tudo o que puder para parar.
— Não, não quer.
— Tu não és a minha mãe, tu és muito mais forte.
— Não, Lily. Sou igualmente fraco. Apenas bebo de forma diferente da dela, porque eu tenho responsabilidades, porque tenho um emprego. Mas diz-me, se eu não tivesse nada que fazer, como a tua mãe, quanto tempo é que achas que o domingo sóbrio ia durar? Quantas segundas sóbrio?
— Spencer, não digas isso. Tu não és como a minha mãe.
— Sou, Lily. Sei que não queres acreditar.
— Porque não é verdade.
— É verdade. Acredita.
— Bem, a minha mãe vai para os Alcoólicos Anónimos.
— Então ela é mais forte do que eu.
Foi a coisa mais absurda que Lily ouviu na noite inteira. A sua mãe era tão fraca. Desviou a cara dele, tentando recompor-se, mas estava a tremer descontroladamente agora. Recompõe-te, Lily, recompõe-te. Isto é o que quer dizer falhar-lhe. Esta é a definição de falhar para com ele. Finges que o amas? Por amor de Deus, ergue os olhos para ele e para com a parvoíce. Não é acerca de ti. Isto não é sobre ti.
— E se tentasses os Alcoólicos Anónimos? — lançou ela, meio recomposta.
— Como é que achas que sou capaz de estar aqui e dizer-te quanto é que eu bebo? Tentei. Mas eu não posso ir para os Alcoólicos Anónimos. Eles exigem abstinência total e eu abstenho-me totalmente por quatro dias. Passados alguns meses, eles percebem. Sabem que sou um impostor.
Ainda em cima dele, com o corpo todo a continuar a tremer e ele disse:
— Não chores por mim, Lily.
E ela quis dizer-lhe: «Não estou a chorar só por ti, estou também a chorar pela minha mãe.» E ele ficou quieto e depois ela sentiu-o a ficar duro, desassossegado e muitas coisas foram de repente esquecidas, e o êxtase angustiado cortou o ar de novo, e colou os seus corações e os seios dela a ele, as ancas e lábios a ele e os seus dois corpos doentes.
— Spencer Patrick O’Malley, tu não és um impostor. Tu és a coisa mais real que eu conheço — sussurrou-lhe ela.
— Estou desfigurado — sussurrou ele para ela. — Porque é que não o vês?
— Eu vejo. Vejo mesmo através de ti. Conheço a tua sala das lágrimas.
Ficaram deitados lado a lado, de cara um para o outro, a arfar na noite escaldante.
— Então, o que é que vamos fazer?
Quem disse aquilo? Ele? Ela?
— Olha, se isto é o ideal? — disse ela. — Não. Se preferia que não fosse assim? Sim. Se preferia que a minha colega de casa e melhor amiga não tivesse andado envolvida com o meu irmão? Se preferia que ela não tivesse desaparecido? Se preferia não ter estado doente? Mas é tudo o que há. Eu não sabia como viver a minha vida e subitamente fui lançada para dentro dela e não tive outro remédio senão vivê-la.
Observava-a com as mãos dele nas ancas dela, na barriga dela.
— Foste ver o DiAngelo? — Estava tão calmo.
— Não, tenho de ir, eu sei — Lily disse-o igualmente calma. Somos lançados para dentro da vida, aos pontapés, a gritar e não temos outra escolha senão vivê-la até ao amargo fim.
60
John Doe
Quarta-feira, meio da manhã, e Spencer ainda estava — espantosamente! — na cama dela. Telefonou para a esquadra, disse que estava a trabalhar no terreno e que ia mais tarde.
— A trabalhar no terreno? É assim que lhe chamam agora?
Puxando-a para si, ele respondeu:
— Eu chamo-lhe assim. Porque agora vais contar-me tudo sobre o tal vagabundo que te abordou. Ou inventaste-o só para apareceres naquele teu pedaço de vestidinho e dar comigo em doido?
— Bom, não posso dizer que esse não fosse um desejado benefício secundário — disse Lily com prazer —, mas não o inventei.
Contou a Spencer o que se tinha passado. Contou-lhe como se sentira tola pela ligeira ansiedade de ter a sensação de estar a ser observada, contou-lhe sobre aquela manhã de um dia de semana a pendurar os laços amarelos.
— Mas naquela noite, Spencer, ele tinha o braço no meu cotovelo. Ele não estava a ajudar-me. Estava a conter-me. Sei ver a diferença. E ele sussurrou mesmo «Lily». Quer dizer, eu imaginei isto? Se um estranho não tivesse interferido, não sei o que poderia ter acontecido.
— És incrível — disse Spencer —, andar por um sítio daqueles à noite, apesar de todos os meus avisos.
— Bem, se tivesses aberto a porta, eu não teria tido de atravessar Tompkins Square — disse Lily.
— Sim, talvez se eu fosse um homem diferente nada disto estivesse a acontecer. Mas vamos lidar só com os factos, pode ser? Consegues lembrar-te da aparência dele?
— Consigo. Infelizmente tenho a imagem dele gravada na minha memória. Posso desenhar-to, se quiseres.
Levou uma hora. Teve de levantar-se da cama para fazê-lo porque ver a cara dele a assustava, mesmo com Spencer a seu lado, e também porque não queria que a sua cama branca, fofa e confortável ficasse associada a ideias tão tenebrosas. Desenhou-o no estúdio enquanto Spencer tomava duche e se preparava para ir para o trabalho.
Ele olhou para o rosto desenhado por um brevíssimo instante.
— Oh, merda.
— O quê, já o viste?
— Já o vi algures.
— Achas que pode ser o Milo?
— Vou confirmar com o Clive. — Spencer tirou-lhe o desenho das mãos. — Quando o vi, ele não estava bem assim. É uma memória tão vaga. Mas eu nunca esqueço. Deixa-me ver o que consigo descobrir. Tu, vai ver a tua avó, vai ter com o DiAngelo e eu trato disto.
— Mas Spencer... o que é que esta pessoa poderá ter a ver com a Amy?
— Vamos descobrir, não vamos?
— Oh! — exclamou ela. — Não seria ótimo descobrir finalmente alguma coisa, saber finalmente alguma coisa. — O não-dito ficou por dizer, a ideia de finalmente se poder saber algo que pudesse afastar uma Amy desaparecida do irmão.
— Sim. Entretanto, faz-me um favor, a mim e a ti: promete-me que não sais de casa à noite sob pretexto algum.
— Prometo — disse Lily. — Mas então e aquele dia de semana na Second Avenue?
— Isso podia ter sido só a tua ansiedade a falar. Isto é real.
Podia. Por alguma razão, Lily não achava que tivesse sido.
Enquanto Spencer prendia a arma, ela perguntou-lhe timidamente o que iam eles fazer a respeito da coisa que os tinha afastado — a essência dele e a essência dela a chocarem de frente, o irmão dela, o trabalho dele. Spencer abraçou-a.
— Vou dar-te o mesmo conselho que dou a toda a gente que se encontra em situações semelhantes. Tem o direito de permanecer em silêncio. — Beijou-a. — Sugiro que tires proveito disso. Eu tenciono fazê-lo.
Spencer passou o resto da manhã a ver registos fotográficos de suspeitos dos anos 2000, 1999, 1998. Enfiou-se na sala de provas, incontactável, enquanto analisava cada rosto fotografado pela polícia de Nova Iorque após uma detenção. Não encontrou nada, mas não se ia deixar desencorajar. Porque ele conhecia o rosto desenhado por Lily. Ele conhecia-o. Tinha passado os registos a pente fino durante cinco anos. E, se já o tinha visto, isso significava que haveria de encontrá-lo de novo. O que é que o Clive lhe tinha dito lá no abrigo? Tinha dito que no início, quando começara a dirigir aquilo, não havia Amy nem Milo. Eles tinham aparecido depois dele, e depois disso Milo desapareceu por dois anos. Portanto, 1997.
Spencer encontrou-o em fevereiro de 1997. Era um registo de uma das esquadras do Bronx. Não havia nódoas negras na face, tatuagens ou barbicha; a cara estava coberta de pelos e a cabeça não estava rapada, ao contrário do desenho de Lily, mas os olhos eram os mesmos, a expressão morta era a mesma. Antes de ligar para a esquadra que o tinha detido, Spencer permitiu a si próprio um pequeno instante de espanto pelo dom que esta rapariga possuía, o de destilar para o papel a própria essência do que era verdadeiro na vida. Embora aquilo se tivesse mantido latente até o cancro o ter despertado.
Arrastou Gabe até ao South Bronx.
Spencer pediu os documentos originais do indivíduo em questão e descobriu que o homem tinha sido detido numa rusga num covil de crack da Cortland Avenue, em fevereiro de 1997, numa casa cheia de viciados a tentarem manter-se quentes. O homem tinha resistido violentamente à detenção e tinha tido de ser fisicamente dominado. Depois de registado e de recolhidas as impressões digitais, tinha-se recusado a falar. Lúcido ou não, viciado ou não, não tinha aberto a boca, não tinha dito o nome, não se tinha identificado voluntariamente, nem mesmo depois de ser interrogado de forma bastante bruta. Simplesmente nunca falara, como se não soubesse inglês. Eles tinham tentado com um intérprete de espanhol, de alemão, de grego, mas sem resultado.
Spencer continuou a ler. Teria o homem usado a sua chamada telefónica? Não tinha. Teria pedido fiança? Não tinha. Ao ser acusado, não deu o nome, nem apresentou defesa. O gabinete do Defensor Público do Bronx apresentou uma por ele. Inocente, disseram eles. Foi acusado de resistir à detenção, de agredir um agente da polícia e de posse e uso ilegal de substâncias ilícitas.
Recusou-se a falar até com o advogado oficioso. Ficou detido durante meses, foi chamado um psiquiatra, mas sem resultado, e nem mesmo a ameaça de passar dez anos na cadeia o forçou a dizer quem era. Foi colocado na Bronx House of Detention enquanto os tribunais tentavam perceber o que fazer com ele. Finalmente, um juiz permitiu que fosse institucionalizado enquanto pendesse uma decisão sobre o seu caso. O gabinete do Defensor Público protestou, não fosse aquele departamento do Bronx famoso por defender vigorosamente os que não se conseguiam defender. Que a institucionalização involuntária era contra a lei. O homem foi libertado e enviado de volta para a Bronx House of Detention, onde andava só metido consigo próprio, comia pouco e não incomodava ninguém, preferindo ficar na solitária a partilhar uma cela.
Tentaram ameaçá-lo com a perda dos poucos privilégios que tinha, dos livros, do trabalho na cafetaria, se ele não lhes desse o que eles queriam em troca do que ele queria — e não só recusou como também deixou de comer. Deixaram as coisas andar assim por uns tempos e depois tiveram de o alimentar por via intravenosa. O defensor oficioso arranjou uma ordem proibindo qualquer tratamento ou exame médico, alegando que era uma invasão da sua privacidade e uma violação dos direitos humanos. Não lhe era permitido ser medicado, tratado, examinado ou testado. Tentaram que fosse libertado com base na cláusula da Sétima Emenda contra punições cruéis e na da Décima-Quarta Emenda pelo direito a um processo equitativo. O gabinete do Defensor Público do Bronx argumentou que era impossível dar um processo equitativo a um homem que se recusara inclusivamente a dar o seu nome aos tribunais. Os seres humanos tinham de participar, mais que não fosse superficialmente, no seu próprio direito a um Habeas Corpus. «Os macacos não nos dizem o nome. Os golfinhos não nos dizem o nome. Os seres humanos sim!» Em março de 1999, fugiu ao ser transferido da Bronx House of Detention para homens, onde tinha passado a maior parte dos últimos dois anos, para o Vernon Bain Center, um estabelecimento prisional flutuante, mais seguro, saltando para o rio East, mas não sem antes agredir com uma barra de ferro um dos guardas que o transportavam. Só por milagre não o matou.
O seu nome era John Doe.
61
Olenka Pevny
Lily foi a Brooklyn ver a avó, como prometido, para lhe levar umas nozes de macadamia, uns grãos de café de Kona, e umas fotografias de Allison sem um pé.
— Lil, como é que podes ter ido a Maui e voltares tão pálida? — foi a primeira coisa que a avó lhe disse.
— Não estou pálida, avó, estou bronzeada.
— Estás pálida. Mas também estás a sorrir. Oh, não. Não estás com aquele homem outra vez, pois não?
— Estou, avó. — Estava a sorrir.
— Então não sei porque é que não estás com melhor cara. Sentes-te bem? — A avó fungou.
— Sinto-me bem — disse Lily. Mas era mentira. Não se sentia nada bem.
— Senta-te.
Sentaram-se no sofá Mylar com as chávenas de chá. Falaram sobre Maui, sobre Andrew, sobre a avó, e sobre Allison. Havia uma coisa que Lily queria pedir à avó: que esta lhe contasse sobre a sala das lágrimas da mãe. Lily explicou o que era a sala das lágrimas e viu a chávena da avó tremer ligeiramente, e ao ver isso, a chávena de Lily tremeu também.
Lily insistiu e insistiu. Oh, disse Claudia, não tens de ir a algum lado?
— Porque é que tens as mãos a tremer?
— Lily, porque é que estás a preocupar-te com estas ninharias? Não tens mais com que te preocupar?
— Sim. Não. Eu quero saber. Diz-me. Fala-me da minha mãe.
Claudia ficou calada.
— Avó, por favor!
— Não grites comigo, sou tua avó. — Suspirou profundamente. — Tens a certeza que queres ouvir isto?
— Francamente, com o tipo de coisas que ouvi na última semana, não consigo imaginar por onde ainda possa piorar. Vamos a isto.
Após uma prolongada pausa de vários minutos, Cláudia finalmente falou.
— Bem, como sabes, o Tomas e eu casámos em junho de 1939 e eu fiquei logo grávida. O bebé devia nascer em março, exatamente nove meses e um dia depois do nosso casamento. Mas a guerra começou em setembro e o Tomas e os três irmãos foram para a frente de batalha. O pai e a mãe deles ficaram à espera de notícias dos filhos. E eu estava na porta ao lado, com a minha família, à espera de notícias do Tomas. Eu era nova, e ainda andava pela casa a trabalhar, a carregar pesos, a tratar das cabras, das vacas, das galinhas. Sentia-me muito ansiosa por causa dele. Não chegavam cartas dele, estás a ver? Perdi o bebé em outubro, depois de estar cinco semanas sem saber dele.
— Que bebé perdeste nesse mês de outubro? — perguntou Lily, atónita.
— Lily. Escuta. Queres que te conte ou não?
— De repente estou a pensar reconsiderar, avó.
Claudia continuou.
— O bebé que eu perdi nesse outono era filho do Tomas, querida. A tua mãe ainda nem tinha nascido.
— Avó... — murmurou Lily. — Estás a confundir-me.
— A mãe do Tomas era uma mulher deslumbrante, nos seus quarenta e poucos, mas, surpreendentemente, ao olhar para ela no portão quando estávamos ambas à espera do carteiro, para ter notícias, reparei que, embora estivesse dolorosamente magra, ela tinha uma barriga. Tomas e os irmãos tinham 18, 19, 20, 22 anos, e de repente a mãe deles estava grávida de novo! Oh, que escândalo. Nenhuma mulher de trinta e poucos anos engravidava, quanto mais aos quarenta. Os alemães chegaram a Stalka em dezembro de 1939. Os nossos soldados combateram bravamente, mas nós tínhamos cavalos e os alemães tinham tanques. Imagina a estupidez de fazer frente a um tanque em cima de um cavalo. Combatemos, não íamos deixar-nos ir abaixo sem lutar, mas ao fim de três dias Danzig caiu e com ela a nossa aldeia de Stalka. Os alemães entraram nas cabanas, levaram a nossa porcelana, a nossa loiça, e depois exigiram-nos comida. Expulsaram várias famílias das suas casas e acamparam ali. Não na nossa. Porque não éramos judeus. Mas expulsaram o pai e a mãe do Tomas, porque eles eram.
Claudia suspirou profundamente.
— O teu Tomas era judeu?
— Era. E os judeus tinham ido todos combater pela Polónia. O pai do Tomas disse que não ia sair da sua casa. Os alemães espancaram-no até à morte lá dentro.
— Oh, Deus! — Lily nunca antes tinha ouvido falar desta parte da história da avó.
— A mãe de Tomas, grávida, não tinha para onde ir e veio viver connosco. Os alemães fizeram-na usar uma braçadeira amarela para a distinguir dos não-judeus. — Claudia tossiu. — Como era judia, nunca conseguia comida nenhuma, apesar de estar grávida. Partilhávamos a nossa comida com ela.
— Avó, como é possível nunca me teres contado nada disto? Tenho vinte e cinco anos.
— São uns jovens vinte e cinco anos.
— As minhas irmãs sabem disto, o meu irmão?
— Sabem.
Lily não queria acreditar.
— Que queres que te diga, Liliput? Às vezes, as pessoas que te são próximas, as pessoas que te amam, guardam segredos.
— Jura!
— Algumas coisas são demasiado dolorosas para serem contadas.
— Vais contar-me o resto? É porque tenho de ir ao hospital não tarda nada.
— Então porque não vais?
— Não, não. Avança. Continua. Então a mãe do Tomas viveu convosco durante a guerra toda?
— Ficou connosco o tempo que conseguiu. Era uma mulher muito doente, só, deprimida e, ainda por cima, bebia desesperada e irremediavelmente.
Lily gemeu. Tinha a cabeça entre as mãos.
— Nunca pensámos que ela se aguentasse até ao nascimento do bebé. Costumava desaparecer durante dias inteiros, mesmo quando estava grávida, para ir para Danzig. Mendigava por vodca nas ruas. Oferecia-se nas ruas a troco de vodca. Mas, de alguma forma, lá teve o bebé em janeiro de 1940. E, Lily, esse bebé é a tua mãe.
Lily deixou cair a chávena de chá. Nem sequer se baixou para limpar.
— O que é que disseste? — sussurrou. Não podia estar mais afundada naquele sofá, desfalecida, curvada, rebaixada, humilhada. — A minha mãe é a irmã mais nova do teu marido?
— Exato.
— Avó... — Lily não conseguia tirar as mãos da boca. A sua avó, que a tinha criado, que a adorava, que tomava conta dela, que era a única matriarca da família, não era mãe da sua mãe!
Após cinco minutos de um silêncio em transe, a avó continuou em voz mais baixa.
— Gostava de te dizer que o pai do Tomas era o pai da tua mãe, mas receio que ninguém fosse dessa opinião, nem mesmo o próprio pai. Daí todos aqueles rumores maldosos sobre a mulher. Toda a gente suspeitava que ela tinha engravidado numa das suas excursões a Danzig para pedir esmola para a bebida. O bebé nasceu no pino do inverno, em Danzig, durante uma das viagens dela. Quando o meu pai e a minha mãe as encontraram, estavam ambas quase congeladas, a bebé nua embrulhada no casaco e nas saias da mãe. Acredites ou não, como por milagre, ela parou de beber depois de a bebé nascer. Todas as vacas há muito que já tinham sido comidas, as cabras também, não havia leite e ninguém estava a ter filhos. Não havia amas de leite. Alguém tinha de alimentar a recém-nascida ou ela ia morrer.
Entorpecida, aparvalhada, muda, Lily encarou a avó.
— Avó, a mãe dela chamava-se... Anya, ou algo do género? Anna? Anika? Anne?
— Correto — disse a avó franzindo a testa. — Como é que sabes?
— Não sei — disse Lily muito baixinho. Aquele espantoso Spencer. Tinha visto na altura, no princípio de tudo, alguma coisa, tudo. Tinha visto sem saber, simplesmente tinha visto a figura de Anne com o seu próprio coração despedaçado.
— A tua mãe deve ter adquirido o gosto por vodca ainda no útero e mais tarde ao ser amamentada — disse Claudia. — Tu pensas que eu não sei, mas eu sei de tudo, Lily. Como é a tua mãe e como tem sido. Não me parece que fosse leite aquilo que brotava das mamas da Anya para a boca da bebé.
— Avó, por favor...
— A sobriedade durou precisamente até ao desmame. Depois, a Anya levava a Olenka e desaparecia em Danzig, usando a bebé para mendigar dinheiro para vodca. Mas o interessante é que ela tinha noção suficiente de que não se devia embriagar na cidade, como dantes. Primeiro voltava para Stalka, deixava a Olenka comigo e depois saía para a floresta com a garrafa, como um urso. — A avó juntava as ideias. Lily estava toda enroscada no sofá. — Por uma ou duas vezes, eu e a minha própria mãe tivemos de ir buscá-las a Danzig. Encontrávamos a Anya toda fria no chão, numa viela, e a Olenka sentada a seu lado, imóvel, apenas dizendo de vez em quando «Mamã, Mamã».
— Avó, não posso. Não consigo mesmo. — Lily colocou as mãos sobre os ouvidos. A avó tinha razão. Aos vinte e cinco anos, ela era apenas uma criança que não podia suportar aquilo.
— Lamento. Foi por isso que não te dissemos nada durante tanto tempo.
— Teria vivido feliz o resto da minha vida sem nunca ter sabido — exclamou Lily. — Se eu imaginasse, nunca teria perguntado, nunca. Então a minha mãe é judia? Eu sou judia?
— Bem, não.
— Não?
— Tu sabes que és batizada pela igreja Católica. E também batizámos a tua mãe. Tivemos de a batizar.
— Porque é que tiveram?
— Porque no final de 1942 todos os judeus da aldeia foram enviados para o Gueto de Varsóvia.
— Então a minha mãe e a mãe dela foram levadas para o gueto?
— Oh, Lily.
— Não me venhas agora com ‘Oh Lilys’, avó. Já estás tão lá em baixo no precipício, não há volta atrás.
— Em dezembro de 1942, os alemães vieram a nossa casa e disseram que todos os judeus tinham de partir imediatamente no comboio para Varsóvia. A mulher da braçadeira amarela e a filha tinham de ir. Naquele momento, a Anya riu-se muito alto, empurrou a Olenka e disse: «A minha filha? Ela não é minha. Eu nunca teria uma criança pequena, eu tenho quatro filhos crescidos, tenho quarenta e cinco anos, parece-lhe a si que sou capaz de ter bebés?» Agarrou na miúda, enfiou-ma nos braços, e disse: «Já não posso tomar conta dela por ti, Klavdia, estás a ouvir? Nunca mais!» Voltou-se para os alemães e disse: «É a filha dela, olhem lá! É igualzinha a ela. Tenho estado a ajudá-la um pouco porque ela é muito nova e não sabe nada sobre crianças, e tenho estado a usar a menina para me ajudar a conseguir o vodca de que preciso. Sou bêbada, sabem? Tenho roubado a miúda deles para pedir esmola para o vodca. Não é verdade? Diz-lhes, Klavdia.» Eu não sabia o que dizer. Disse: «É verdade.» Os alemães olharam para mim e perguntaram: «Este bebé é seu?»
Na altura eu tinha o cabelo claro, e a tua mãe também, era loura, ao passo que a Anya tinha o cabelo e os olhos escuros. Foi o cabelo que salvou a Olenka porque, tirando o contraste loura-morena, ela era realmente uma fotocópia da mãe. Tinham o mesmo rosto, os mesmos traços. Mas os alemães acreditaram na Anya e levaram-na com eles, deixando a Olenka comigo. — A avó desatou a chorar. Lily nunca tinha visto a avó chorar; aquilo assustou-a. — Quando levaram a mãe, a criança libertou-se do meu colo e gritou: «Mamã!»
Os nazis voltaram-se e eu agarrei-a e abracei-a com muita força, abafando-a e tapando-lhe a cara, e disse: «Shh, shh, está tudo bem. A mamã está aqui, mesmo aqui, bebé.» Sabes, acho que não acreditaram em mim, lembro-me da maneira como olhavam para mim, para a bebé. Mas deixaram a menina comigo. E durante os três dias seguintes, a Olenka ficou sentada ao pé da janela cheia de gelo à espera da mãe.
As duas mulheres estavam sentadas lado a lado no sofá, sem falar, sem se tocarem. A casa estava silenciosa, excetuando o som do choro angustiado de Lily.
— Alguma vez descobriram o que aconteceu à Anya? — perguntou.
— Não. Suspeito que o mesmo que aconteceu a todos os judeus no Gueto de Varsóvia.
Passou muito tempo antes que Lily conseguisse falar de novo. Por fim, levantou-se e disse que tinha de ir andando. Agradeceu à avó pelo chá, pela tarde agradável. Disse que lhe ligaria no dia seguinte para lhe contar como tinham corrido as análises. E antes de sair, já com a porta aberta e a voz a quebrar, Lily disse:
— Sabes, avó, acho que a minha mãe ainda está sentada naquela sala das lágrimas, ao pé daquela janela.
Lily caminhou, não em direção ao comboio F, mas em sentido oposto, para o Porto de Nova Iorque e sentou-se durante muito tempo num banco na Promenade do rio East com vista para a foz do Hudson e toda a ilha de Manhattan. Deve estar a ficar tão tarde. Estará o DiAngelo lá a uma hora destas? São quatro da tarde. O melhor é ir para casa. Espera até o Spencer saber. Nem sequer me consigo lembrar do que é suposto eu fazer. A minha pobre mãe.
62
Lindsey
Nessa noite, Lily fez uma coisa que não se lembrava de ter feito em muito tempo. Telefonou à mãe para Maui.
Foi o pai que atendeu. A mãe estava de regresso a casa, mas não se estava a sentir bem naquele momento, estava a dormir; não, não, que estava tudo bem, ela estava mesmo só a dormir, nada de mais. Tem corrido tudo muito bem. Tem ido sete vezes por semana aos encontros dos Alcoólicos Anónimos. As reuniões são nos relvados verdes em frente ao azul do oceano, uma hora por dia.
— A tua mãe está a portar-se muito bem. A Shelly está muito orgulhosa dela.
Essa Shelly só arranjava sarilhos. — Bem, diz-lhe que liguei, sim?
— Eu digo. Vai ficar contente por saber que ligaste, Liliput.
Quando desligou o telefone, Spencer estava a olhar para ela.
— Ela continua a ir todos os dias — disse-lhe Lily. — Pronto.
Ele não disse nada, limitando-se a abrir os braços para ela.
Lily tentou pintar a janela congelada em Stalka, na Polónia, mas acabou a chorar para cima da tela no chão, e todo o gelo azul se transformou em borrões cinzentos que secaram com uma textura salgada, como se fosse mar seco.
No conforto da cama dela, Spencer ouviu falar de Olenka Pevny e Lily ouviu falar de John Doe.
Depois dormiram, acordaram a meio da noite, tentaram lidar com as coisas.
— Spencer, esta pessoa é, sem sombra de dúvida, o Milo?
— É, sim. Falei com o Clive, mostrei-lhe o teu desenho. Reconheceu os olhos. Não se conseguem esconder olhos de metanfetamina. Mostrei também ao Paul, mas ele não o conhece.
— E então, como vamos nós encontrá-lo?
— Nós? Tu não vais fazer nada a não ser ir ter com o DiAngelo de manhã. Amanhã de manhã, eu vou ver a Jan McFadden, mas sozinho, sem o Gabe, para não a assustar. Talvez ela consiga identificar o homem misterioso do passado da Amy, mas tenho as minhas dúvidas. Já falei com ela até à exaustão. Não faz ideia no que a filha andava metida.
— Fala com ela outra vez, Spence. Usa os teus talentos refinados de interrogatório.
— Já te mostro o que é refinado. — Spencer beijou-a ao longo dos ossos salientes das clavículas.
Com dificuldade em concentrar-se naquele assunto, Lily disse:
— Estou convencida de que este Milo é a razão pela qual a Amy desapareceu. — Fechou os olhos e gemeu suavemente com o contacto da boca dele.
Ainda de roupão, de duche por tomar, sem qualquer vontade de falar, Jan disse a Spencer:
— Porque continua a vir aqui se não tem informação alguma sobre a minha filha?
— Jan, tenho aqui um desenho de um sem-abrigo com que a Amy se costumava dar bem. Reconhece este homem? Tinha esperança de que talvez soubesse o seu nome.
Jan olhou de relance para o desenho de Milo que Spencer lhe mostrava.
— Bom, não tenho dúvidas de que não sei o nome. Não o reconheço. Tem-no lá preso?
— Não. Temos um alerta sobre ele. É conhecido como Milo. Se o encontrarmos, penso que descobriremos onde está a Amy.
— Pois eu não conheço nenhum sem-abrigo! Nem acredito que a Amy conhecesse. Não, a minha Amy, não.
— O amigo dela, Paul, disse que a Amy tinha boas relações com uma série de pessoas um pouco marginais, que ele não conhecia. — Spencer guardou o desenho.
— Já me perguntou isso! Eu também não os conhecia!
— Certo. Mas talvez... conhecesse alguém?
— Mesmo que me pergunte mil vezes, continuarei sem conhecer.
Jan apagou o cigarro.
— Continuam ao menos a procurar em Central Park? — perguntou, um pouco ausente.
Spencer não respondeu. Não continuavam. A polícia tinha feito buscas durante um ano, passando a pente fino 340 hectares de terreno arborizado e, não conseguindo encontrar nada de suspeito, tinham finalmente terminado as buscas no mês anterior.
Jan perguntou-lhe se queria beber qualquer coisa.
— Café.
— Café, se quiser. Quero dizer...
— Não, obrigado.
— Só para não estar a beber sozinha.
— Não.
Se alguém para além dos demónios de Spencer sonhasse com que esforço os seus lábios formaram a palavra não, nem sequer a teria chegado a formar. Conseguiu abanar a cabeça enquanto a garganta ficava seca.
Esperou, pensando noutra coisa que quisesse perguntar, enquanto ela olhava soturnamente para o seu copo de Chivas, enquanto ele olhava soturnamente para o copo de Chivas dela.
Perguntou se Amy tinha pertencido a algum grupo. Desportivo? De arte? Um coro?
Jan disse que a um coro.
— Algum grupo político? Candidatou-se à associação de estudantes? A tesoureira? A presidente? Pertencia ao grupo de jovens conservadores da América?
— Um coro, já lhe disse. Nada de político.
— Ela votava?
— Não sei.
— Sabes, sim, querida — disse Jim. Tinha entrado há pouco na cozinha, ainda a suar da corrida, e estava agora a encher um copo de água gelada enquanto ouvia. — Ela votou nas eleições de 92, quando estava a acabar a escola secundária.
Jan McFadden olhou-o estupefacta.
— Ai foi? Não sabia disso. Ela estava no coro. Cantava. Era criativa, artística. Até pode ter votado, mas a política não lhe interessava.
Bom, devia interessar-lhe um pouco, se tinha ido falar com Andrew Quinn, pensou Spencer. Queria dizê-lo a Jan, mas achou que não valia a pena, ela já parecia nervosa que bastasse.
— Talvez se parasses de beber Chivas de manhã te conseguisses lembrar de mais umas coisas que pudessem ajudar este senhor a encontrar a tua filha — disse Jim.
— Para com isso! Achas que não o ajudava, se pudesse? Se soubesse alguma coisa!
Spencer aproveitou a deixa.
— A Amy já conhecia... o congressista Quinn... na altura? — perguntou Spencer com cautela.
— Claro que não! Meu Deus, onde quer chegar? Acho que nem sequer votou nele. Ela não tinha nada a ver com isso. Onde quer chegar?
— Tudo o que quero de si é um nome: uma das pessoas com quem ela viajasse, com quem passasse tempo, com quem saísse. O nome de um namorado, qualquer coisa. — Céus!
— Já lhe disse mil vezes, não sei! Esqueci-me ou nunca soube. No último ano de escola da Amy eu tinha de estar em casa a tomar conta de dois bebés. E ela tinha dezoito anos! Francamente! — Jan sentou-se, quase a chorar. — Não me lembro. Já foi há sete anos. Com tudo o que aconteceu, admiro-me muito lembrar-me do meu próprio nome.
— Um nome que seja. O nome próprio de alguém com quem deixou a sua criança mais velha, a sua filha, viajar pela América numa carrinha.
— Deixou? Quem a deixou? Eu não deixei! Ela foi e pronto. Eu queria que ela fosse para a faculdade.
— Um nome.
— A verdade é que... — disse Jim de repente —, não querias saber. Conta ao detetive. A Amy era rebelde, desobedecia constantemente, gritava contigo. Lavaste as mãos do assunto. Tinhas os gémeos, não querias estar a pensar na Amy. Quando disse que ia viajar pelos Estados Unidos, disseste-lhe que não voltasse, como se estivesses contente por te veres livre dela. Expulsaste-a de casa, praticamente, quando ouviste que não queria ir para a faculdade.
— Não expulsei nada! — gritou Jan.
— É por isso que não sabes. Tu não querias saber. Nem te preocupavas!
— Lindsey! — gritou Jan.
Spencer recuou contra o balcão. LINDSEY!
Ofegando e baixando a voz, Jan disse:
— Lindsey era uma das raparigas com quem ela costumava andar.
Ora bem.
— Lindsey quê?
— Queria um nome próprio, já tem um nome próprio. Lindsey.
— E essa Lindsey vivia...?
— Ao fim da rua, algures, aqui em Port Jeff Village. — Num tom de voz ainda mais baixo, e depois de uma longa pausa, Jan acrescentou: — Senhor detetive, se não tiver mais nada para tratar, se não se importar... Estou muito cansada. Tenho de me ir deitar.
Jim acompanhou Spencer até ao carro.
— Peço desculpa por ela.
— Não se preocupe.
— Já não consegue ver nada à frente.
— Eu sei.
— Não sei quanto tempo mais aguentarei isto. Estou a chegar ao fim das minhas forças.
— Devia aguentar mais um pouco — disse Spencer. — Ela precisa de si.
Em Nova Iorque, na 22nd Street, no cabeleireiro, Paul dissera «Lindsey? Lindsey quê? Não a Lindsey Kiplinger? Acho que a Amy não era amiga dela, estava um ano à frente na escola e, para além disso, só sei quem é porque está morta, morreu há uns anos num acidente de carro, ou coisa assim, lá para oeste. Novo México? Utah?»
Spencer telefonou aos Kiplingers em Port Jeff. O atendedor de chamadas disse que estavam fora, de férias.
De volta à esquadra, esperava-o uma mensagem de DiAngelo.
— Está ocupado? — perguntou DiAngelo quando Spencer lhe ligou de volta. — Eu sei que estamos a meio do dia. Mas a Lily precisa de ter alguém com ela, e consegui que a transferissem para Sloan Kettering.
— Vou lá ter. Sloan Kettering? O que se passa?
— Ela está muito doente, Detetive O’Malley.
— Sim, eu sei, mas...
— Está a morrer.
63
Um estado terminal no tratamento do cancro
— Lily, onde tens andando?
— Pensei que estivéssemos num programa de teste de duas semanas.
— Não te via há um mês!
— Queria ter vindo, mas depois estive em Maui e depois estive... — Estava demasiado ocupada a viver para o cancro. — Mas então diga-me... — Ela fez uma pausa. — As coisas não estão muito boas?
— As coisas não estão lá muito boas.
Ela susteve a respiração por um momento, por dois.
— Como assim, não muito boas? Passaram só três semanas.
— Passaram quatro. E antes disso não estavas a melhorar, estavas a aguentar-te.
— Pois. E agora?
DiAngelo não disse nada.
— Voltou?
— Voltou.
— O meu sangue voltou a parecer caviar preto?
Ele não disse nada.
Quatro semanas de indução, treze de consolidação, uma pneumonia, mais seis semanas de manutenção com um novo tratamento radical para a leucemia, que era suposto atacar apenas as células cancerígenas e deixar o resto intacto, doze meses da minha vida, da vida do Spencer, da vida da Amy, da vida da minha família e, depois de todo esse esforço, o médico não diz nada.
Lily estava sentada em silêncio no gabinete de DiAngelo.
— Então e agora? Quimioterapia de consolidação outra vez?
— Não, os blastócitos são imunes.
— Imunes à quimioterapia?
— Sim. São obviamente imunes ao Alkeran.
— O que nos resta?
— Bom, há duas outras coisas que podemos fazer.
Porque é que Lily se sentia subitamente incapaz de o ouvir? O que lhe estava a acontecer? As suas mãos começaram a tremer.
— Quero que penses nisto de espírito aberto. Não é fácil, depois de tudo o que passaste. Mas disse-te desde o princípio que esta seria uma luta difícil.
— Sim, sim, protegeu-se admiravelmente.
— Não estava a proteger-me. Queria que soubesses a verdade. Não era o que querias?
— Sabe, Doutor D... — disse Lily. — Apercebo-me, pouco a pouco, que, afinal de contas, quanto menos verdade, melhor. — Levantou-se com as pernas trémulas.
— Vamos lá! Não pensas mesmo assim! — Ele deu a volta à mesa, até onde ela se encontrava já de pé, pronta a sair, e pôs-lhe um braço em volta. — Não te disse que isto quer que desistas primeiro? Mas eu não quero que desistas primeiro.
— Não.
— Tornaste-te na minha cruzada pessoal. Isto não nos vai ganhar, Lily. Agora senta-te.
Mas ela não conseguia sentar-se. Queria ir-se embora. Não era capaz de ouvir mais. Não era capaz de suportar isto sozinha no gabinete com ele, sentado na sua cadeira, a dizer-lhe que havia apenas duas outras coisas que podiam fazer.
Não conseguia ouvir.
— Posso usar o seu... posso só...
E, na casa de banho, Lily encostou-se à parede, com a cabeça contra o frio dos azulejos brancos, de olhos fechados. As palmas da mão estavam também contra a parede. Deixou-se escorregar, de joelhos, a respirar, intermitentemente, tão fundo, tão ligeiramente, a tentar recuperar o fôlego que perdia, com a testa contra os azulejos frios. Por favor, afasta de mim este cálice.
Que adversário. Que inimigo formidável.
De joelhos, dobrou-se sobre si mesma, tocando os ladrilhos do chão com a testa, prostrada. Não o tinha previsto... sentir tanto medo.
— Arsénico? — Lá conseguiu, de uma maneira ou de outra, abandonar os ladrilhos da casa de banho, voltar para a cadeira dele. DiAngelo estava ainda à beira da secretária.
— Arsénico... o veneno letal? — perguntou ela incrédula.
— Sim.
Lily tentou lembrar-se do pouco que tinha aprendido na escola sobre o arsénico.
— A exposição continuada ao arsénico não causa cancro nos seres humanos?
— Sim. Lembras-te? Tratamos o veneno com veneno. As células cancerígenas também são vulneráveis ao veneno. Por isso vamos envenená-las.
— O coquetel de medicamentos não funcionou. O Alkeran não funcionou, o seu medicamento-maravilha.
— Não te preocupes. Isto funcionará. Acaba de ser feito um novo estudo no Sloan Kettering que prova que os pacientes com quem falharam todos os tratamentos para a leucemia promielocítica aguda em estado avançado, e que recidiram, como tu, tiveram uma remissão quase completa com trióxido de arsénico. Acho que devíamos tentar.
— Temos alternativa?
DiAngelo fez uma pausa antes de dizer que não, não muita.
Lily refugiou-se no estudo das suas mãos. Por terem desenhado Milo, estavam cobertas com o preto difícil de apagar do lápis 8B, que não tinha saído nem no duche. — Quão alargado foi esse estudo?
— Lily, então! É uma terapia experimental!
— Quão alargado?
— Dez pessoas.
— Dez pessoas? — repetiu ela, olhando para ele. — Dez?
Ele disse que sim com a cabeça, revirando os olhos.
— Quantos desses conseguiram a remissão, doutor?
— Seis. De entre os quais quatro que continuaram a ter resultado negativo nos exames.
— E os outros dois?
— Morreram.
— Do cancro ou do arsénico?
— Lily!
— Estou só a perguntar — respondeu ela com calma. — Então, o que me está a dizer é que, neste estudo alargado de dez pessoas, seis morreram?
— O que se passa contigo? Isto não é um tribunal. Uma remissão de quarenta por cento quando tudo o resto falhou é muito encorajador.
Quando tudo o resto falhou.
— Qual é a segunda coisa que podemos tentar? Disse duas coisas. Qual é a outra?
— Um transplante de medula.
Lily endireitou-se um pouco.
— E qual é o problema? Li umas quantas coisas boas sobre isso na Internet.
— Já te disse para parares de ir à Internet.
— Eu sei, eu sei. Mas aquilo soava muito bem. Onde se vai buscar boa medula?
— Às tuas duas irmãs. Ao teu irmão. São os mais prováveis de serem dadores compatíveis. É bom que tenhas tantos por onde escolher.
— Então estamos à espera de quê?
Era agora a vez de DiAngelo se dedicar ao estudo silencioso das suas mãos.
E agora Lily observava também, silenciosamente, as suas mãos de Milo de novo.
— Um transplante de medula é extremamente invasivo e debilitante — disse ele, finalmente. — Os pacientes sujeitos a um transplante de medula têm de estar em bom estado de saúde, sem doenças ou infeções. As funções hepáticas, cardíacas e pancreáticas têm de estar todas bastantes normais. A tua contagem de leucócitos está altíssima outra vez. Nunca a tinha visto tão alta, como se o seu corpo tivesse andado a lutar contra uma infeção durante semanas. As tuas plaquetas são inexistentes. As células malignas atingiram um número recorde. O que tens andado a fazer a ti própria? O que tem andado o teu corpo a fazer desde que te vi da última vez?
— Nada — disse Lily. Quem seria eu sem cancro, sem Spencer, sem a minha mãe, o meu irmão? — É um beco sem saída, é o que me está a dizer.
— Um belo sarilho, Lil.
— De facto. É arsénico, então.
— É arsénico, então.
Ela levantou-se, agarrando-se à cadeira.
— Como são os efeitos secundários de injetar um sólido venenoso nas veias?
— Surpreendentemente suaves.
— Bom, que alívio. Quando começamos? Amanhã?
— Agora mesmo.
Ela tentou com muita força ser corajosa. — Crise blástica, Doutor D.?
— Crise blástica, Lily.
Joy regressou à sua vida. Não voltou a viver com Lily, mas vinha tomar conta dela quando Spencer estava a trabalhar. Levou-a a Sloan Kettering, na 68th. Paul e Rachel vieram em dias em que não trabalhavam para estar com Lily quando ela recebesse as infusões diárias de doses baixas de arsénico, administradas intravenosamente através do seu recém-instalado cateter Hickman.
A sua família estava exausta. Cada vez que a vinham ver, sozinhos ou aos pares, choravam. DiAngelo acabou por proibir que viessem até que Lily se sentisse um pouco melhor. Ele próprio estava lá todos os dias, mesmo não se tratando do seu hospital ou do seu arsénico a ser administrado. Lily sentiu-se tão próxima dele que doou duzentos mil dólares à unidade de tratamento de cancro infantil de DiAngelo no Mount Sinai. Pensando melhor, e com o apartamento de onze milhões de dólares a desaparecer no horizonte dos seus sonhos perdidos, passou um cheque de um milhão de dólares para a unidade de tratamento de cancro, e DiAngelo rebatizou-a de «Unidade Lily», e ela chegou mesmo a cortar a fita vermelha na cerimónia de batismo.
O arsénico era, portanto, um veneno lento? Lily começou a sentir o cheiro de metal no cérebro, na boca, nos braços, na almofada. A língua parecia um chupa-chupa de aço cinzento. Mal se dava conta de efeitos secundários como o cansaço ou as tonturas, mas no travo venenoso da boca era impossível não reparar.
DiAngelo vinha todos os dias. Não havia dias de folga para ele. Se Lily tinha de tomar arsénico sete dias por semana então, por amor de Deus, ele andaria cinco quarteirões até Sloan Kettering, mesmo nos seus dias de folga.
— Não tem de vir todos os dias — disse-lhe ela. — O cheque de um milhão de dólares já foi descontado.
O corpo dela era uma fonte de metal de terminações nervosas descarnadas, sem quem a tocasse, sem amor, mas havia ainda amor para dar a Spencer, e por isso, uma noite, depois de ela lhe ter dado algum amor, estavam deitados juntos na cama, com os cobertores para cima, confortáveis e quentes na escuridão por debaixo dos lençóis, e ela disse:
— Spencer, tu tens escolha, sabias? Podes deixar de beber.
Ele sorriu.
— Uma troca, ei, Lily Quinn? Está bem, vamos falar sobre o assunto. Achas que eu escolho beber?
— Sim, claro que sim. Quando estás sóbrio e bebes o primeiro copo. Está aí a tua escolha. Escolhemos o que queremos ser, como queremos viver. A minha avó é que não tinha escolha. A mãe da minha mãe. — A voz de Lily vacilou. — Mas havia uma guerra. Percebes a diferença? — Dessa vez, Spencer não lhe virou as costas, nem sequer se preparou para uma defesa. Continuou deitado, com um ligeiro sorriso nos lábios. Lily não conseguiu resistir, inclinou-se sobre ele e beijou-o. — Tens sorte por seres tão giro — segredou-lhe.
Ele retribuiu o beijo e só depois recuou.
— As escolhas de que falas são coisas teóricas. Isto é real, como a tua doença. Não se trata de uma conversa à mesa de póquer com cinco senhoras septuagenárias.
— Octogenárias, mas não importa.
— Lily, achas que escolhi isto? Não poder beber em casamentos, em festas de Natal? Não poder sentar-me contigo ao jantar e beber um coquetel? Não poder voltar a jogar bólingue bêbado, divertir-me com os amigos, não poder voltar a beber mimosas em Palm Court? Achas que escolho beber até ficar inconsciente durante um sexto da minha vida?
— Oh, Spencer!
— Sei quem sou, Lily. Não tenho ilusões. Sou um polícia. Sou um bêbado irlandês. É assim que sou. Queres saber qual é a minha escolha? Onde entra o meu livre arbítrio? É quando luto todos os dias, todas as semanas, para afastar a necessidade de beber uísque até já não conseguir aguentar mais. Até que o esforço para afastar essa necessidade se torna ele próprio a razão para me recompensar com um Glendfiddich, por ter conseguido portar-me bem por tanto tempo. Quanto mais tempo consigo adiar, mais sinto que mereço o uísque mais caro do mercado. Adiei um mês? Mereço um Johnny Walker Blue Label. Não há Alcoólicos Anónimos, Deus, razão, medo ou ameaça que me impeça de querer beber. De lhe sentir a falta. Isto é uma guerra antiga, uma guerra moderna. A vontade de cada um de ter um sangue saudável, de continuar, de continuar a viver ainda que não reste nada, isso é guerra. Eu, em casa todos os domingos, a tentar desesperadamente impedir o meu cérebro idiota de me convencer de que posso beber só um, eu, a levantar-me todas as segundas-feiras e a ir para o trabalho, isso é guerra. Aquilo que a tua mãe aguenta todos os dias, diz-me que não é guerra... contra si própria, contra ti, contra o teu pai.
Lily fechou os olhos com força.
— Ela não se saiu lá muito bem.
— Não, é verdade.
— Tu estás a fazer melhor.
— Um bocadinho melhor. Desde que te conheço, tenho-me portado melhor, não posso negar. — Spencer sorriu. — Mas não me estaria a portar melhor se estivesse a viver em Maui. Seria tal e qual como ela, estendido no terraço, a perguntar-me de onde viria o meu copo seguinte. Achas que agora que não tem um pé ficou com menos vontade de beber? Achas que viu onde estava o erro da sua conduta? — Spencer expirou, cético. — A vontade está lá, ela precisa disso mais do que nunca. Todo o seu ser se concentra nessa única necessidade e ela não descansará enquanto não descobrir como se poderá arrastar, com perna-de-pau e tudo, até à loja para consegui-lo. Ela faz a mesma coisa que todos nós... porque somos fracos e humanos e não o conseguimos evitar.
Lily olhou para ele.
Ele fez-lhe uma festa na cara.
— Então qual é o subtexto do que me estás a dizer? — perguntou. — Quando eu estiver melhor e o nosso momento de paixão tiver passado, queres que voltemos a ser só amigos, Spencer? Queres que encontre outra pessoa?
— Não. Só quero que percebas que, por muito que nos ajudemos um ao outro a lamber as feridas, e fazemo-lo, não consigo viver sem beber. Aquela sala das lágrimas? Não posso abandoná-la. Ou melhor, posso sair dela, mas não posso deixar de voltar. E isso não é vida para ti.
— O que sabes tu sobre o que eu quero ou preciso para a minha vida? Não sabes. Ficar contigo, pelo menos é a minha escolha, ou nem isso me é já permitido?
— É a tua escolha. Não te zangues comigo. Isto não é apenas a única vida que conheço, é a única vida que sei como viver. Estou a ser tão honesto quanto possível.
— Quem me dera que fosses um pouco menos honesto — disse Lily.
Ele deixou-se ficar em silêncio na escuridão. Era o pior de tudo, vê-lo em silêncio.
— Spencer, diz-me, achas que esta história do arsénico vai funcionar? Quarenta por cento de hipóteses. Achas que vai funcionar comigo?
— Claro que sim, Liliput.
Ela tentou afastar-se, arrastar-se para longe dele na cama, mas ele não deixava, enlaçando-a por trás para junto dele, acariciando-lhe os seios, roçando-lhe a cabeça com os lábios.
Os dois juntos, no seu próprio pas de deux, solitários, isolados, tocando ao de leve a alma um do outro, na sua própria Dança Húngara, ela com um cancro, ele cheio de puro e desesperado desejo de beber.
É o exercício do meu livre arbítrio, pensou Lily, rebolando e enrolando o fantasma de si própria em volta dele. E eu escolho-te a ti. Não importa como, quão diminuído, destruído, ferido, a sangrar, a morrer, a beber, na sala das lágrimas com o lobo para sempre à nossa porta, é a ti que escolho.
Spencer não aparecia nas noites de sexta-feira, nas noites de sábado. Lily não falou no assunto com ele. Não puxou a conversa. Não disse, Spencer, estou a tomar injeções de arsénico e tu andas a fazer só Deus sabe o quê. Não disse isso. O que disse, com uma interjeição resignada foi:
— Spencer, o DiAngelo precisa que lá vá na sexta-feira para uma injeção e umas análises de sangue.
— Na sexta?
— Sim. Arsénico sete dias por semana. Análises de sangue, agora, três vezes por semana. Achas que é possível vires comigo e levares-me a casa? O Paul e a Rachel estão a trabalhar.
E ele ia.
E com outra interjeição resignada:
— Spencer, sinto-me tão fraca, nem consigo levar os quadros para baixo no sábado de manhã. Olha quantos tenho desde que voltaste! Achas que podes vir ajudar-me a levá-los para baixo? Ou pô-los no carro por mim? Ajudar a montar a banca?
E ele vinha no sábado de manhã, esgotado como uma maré baixa, para a ajudar, e depois sentava-se, abatido, na sua cadeira desdobrável junto da mesa dela, e as mulheres que estivessem a comprar as pinturas diziam:
— Lá está ele! Cá está o senhor, o muso dela.
Cá estou eu, murmurava Spencer quase sem se ouvir.
Lily pintou uma série: sete pequenas telas a óleo que, em conjunto, se chamavam Uísque nas mãos.
Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo, cada dia com mãos diferentes agarradas a um copo de uísque, ou a uma garrafa, um copo vazio, cheio, partido, as mãos a sangrar. Um homem sério, extremamente bem vestido, comprou o conjunto sem lhe dizer nada a não ser:
— Dou-lhe dez mil dólares por todos.
— Spencer? — Bom... — Sabes que nunca vi o Bruce ao vivo? Ele vai dar dez concertos no Madison Square Garden. Ouvi dizer que os sábados são as melhores noites para o ver. Que pena. É impossível arranjar bilhetes.
E como o NYPD estava a cargo da segurança de Bruce, Spencer conseguiu lugares, na primeira fila, à direita do fosso da admissão geral, e levou Lily na noite de sábado de 1 de julho a ver Bruce Springsteen dar o seu último concerto em Madison Square Garden. Durante três horas e meia, ela pulou de alegria, cantou em coro vinte e oito canções, dançou durante dois encores, e acabou exausta, mas a sentir-se viva.
Mas isso não era nada, nada, comparado com o melhor de tudo, o mais encantador de tudo, ainda melhor do que o cancro.
— Bom, Spence, tenho tanto medo de estar aqui no meu apartamento, sozinha. Depois de ver a cara daquele Milo, fiquei doente de medo. E se ele aqui vier? Sabes, no outro dia, precisava de leite e estava tão assustada que quase chamei a polícia para me escoltar ao supermercado.
— Liliput, eu sou a polícia. Chama-me a mim.
Pausa, pausa, pausa.
— Estou a chamar, Spencer.
Quando ele voltou, trouxe as suas roupas.
No princípio de julho, DiAngelo não apareceu para a injeção de arsénico de Lily de domingo. Ela sentiu profundamente a sua ausência, era como passar um dia sem beber um copo de água.
Na segunda de manhã, ele veio mais cedo, sem Joy, sem alegria, com a boca quase incapaz de esboçar um sorriso. Mas lá o esboçou, de uma maneira ou de outra.
— Vamos falar com as tuas irmãs e com o teu irmão, Lil. Vamos ver se são compatíveis com a tua medula.
Muitas coisas me deixaram, pensa Lily, no presente do indicativo, enquanto olha para o médico, para o seu médico, que está com um ar tão derrotado, e não sabe o que dizer porque ele não sabe o que dizer.
Os níveis de leucócitos de Lily sobem em equações matemáticas exponenciais, inversamente proporcionais à velocidade a que decrescem os seus níveis de plaquetas.
A guerra continua onde pensamos que não a vemos, em pleno verão em Nova Iorque, uma vida bela, confortável e pacata e o rufar dos tambores, por favor! Alerta para o iminente banho de sangue que se segue. Lily fechou os olhos. Lily susteve a respiração.
— O Spencer convidou-me para o piquenique anual dos Benevolent Patrolmen daqui a umas semanas — disse.
— Eu não faria muitos planos, Lil — foram as palavras finalmente pronunciadas por DiAngelo. — O transplante de medula é o mais importante.
Ele parou com o arsénico e levou Lily de volta para o seu Mount Sinai, começando uma nova combinação moderada de terapia medicamentosa para doentes ambulatórios, para lhe dar alguma coisa. Moderada porque era a única que o seu corpo conseguia aguentar.
Spencer voltou a rapar a cabeça, depois rapou a dela. A diferença entre o antes e o agora: quando ele acabou e ela ficou careca, ele pegou na cabeça dela entre as suas mãos e beijou cada centímetro do seu couro cabeludo eriçado.
Lily não tinha autorização para ir ao cinema, para vender os quadros, para andar no meio de multidões, para ir a restaurantes. Pintava quando se conseguia levantar. Spencer pôs uma cadeira em frente dos seus cavaletes. Quando não se conseguia levantar, pintava no chão. Ao sábado de manhã, era ele que descia à 8th Street e que se sentava na sua banca, que vendia as suas peças, e algumas das mulheres que vinham choravam.
— Ela vai ficar bem — disse ele. — Está só na cama em repouso. Vejam, ela continua a pintar. A pintar Amor.
O Amor de Lily. Spencer no sofá, muito grande, com Lily ao colo, transparente e a regredir, e excessivamente pequena.
O amor de Lily. Uma bela mulher de cabelo castanho sentada num banco numa cidade demasiado desenvolvida, no verão, ao lado de uma pequena rapariga loura.
De volta a casa, na sua cama, Lily está estendida, rodeada de relógios que roubam o tempo. Julho. Um julho quente, as árvores cheias de verão.
Oh, vida. Adivinha lá esta. Quem sou eu? Não quero morrer sem descobrir.
Não quero morrer.
Amanda voltou cedo do campismo em Montana para colherem a sua amostra de medula.
Anne entrou no Mount Sinai, mas não sem antes ter encostado DiAngelo à parede para perguntar pelo prognóstico de Lily.
DiAngelo não conseguia obter as contagens certas. Ela tinha tudo às avessas: dois dígitos nas plaquetas, sete dígitos nos leucócitos. Os glóbulos vermelhos mantinham-se regulares com as transfusões quase constantes. Porque é que DiAngelo não queria dizer uma única palavra sobre o assunto a Anne?
— Ela é uma miúda corajosa. Não se queixa — disse ele.
— Qual é o prognóstico, doutor? Qual é mesmo o prognóstico?
— Sra. Ramen, a sua irmã precisa de uma amostra da sua medula para ver se é compatível para um transplante. Vamos lidar primeiro com o que é vital, e depois com o trivial. — Ele fê-la apressar-se para dentro do laboratório sanguíneo do hospital.
— Agora os prognósticos são triviais? — disse Anne. — Desde quando? Não é o prognóstico essencial para determinar o tratamento?
— Sim, só temos uma coisa a fazer, e é conseguir aquilo de que ela precisa para viver: um transplante. Portanto, vamos lá tratar disso.
— Mas quais são as probabilidades, doutor, as probabilidades.
— Penso que as probabilidades, apesar da diferença nos temperamentos, são muito boas para uma compatibilidade de dador. Mesmo muito boas.
Lily é Marco Aurélio, com as mãos unidas pela ponta dos dedos a formar uma espécie de tenda zen. É como um filósofo.
Não vaciles nem cedas ao desespero.
Adapta-te ao estado que te coube em sorte.
Lembra-te disto: os que vivem mais tempo e os que morrem mais cedo têm uma perda igual, pois é apenas do presente que serão privados.
Lily está calma, de humor estável, cabeça fria. É uma estoica.
Até que uma tarde, depois do fim de semana do 4 de julho, Spencer aparece durante o dia enquanto ela recebe a quimioterapia para doentes ambulatórios e traz-lhe flores, lírios brancos, e a sua Lily branca pega neles e atira-os para o chão, dizendo:
— Nunca mais me voltes a dar flores. — E depois vira o corpo para Marcie.
Primeiro calado, Spencer pergunta depois a Marcie se lhes pode dar um minuto. Quando a porta se fecha atrás da enfermeira, Spencer apanha as flores e atira-as para o caixote do lixo. Os olhos de Lily estão cheios de lágrimas quando ele se vira para a cama.
— O que aconteceu? — pergunta ele. — O Andrew vem amanhã tirar a sua amostra de medula. Está tudo bem.
— Não está nada tudo bem. Não está bem. Onde tens estado? Tens reparado no que me está a acontecer?
Ele está muito triste por ela, até os seus ombros estremecem.
— Não te volto a trazer flores — diz ele. — É assim mesmo. E tira as tuas coisas de minha casa.
Pausa.
— Está bem.
— E não voltes aqui. Tenho a Joy, tenho a Marcie.
— Está bem, Lil.
Ela tenta sentar-se direita na cama mas não consegue sem a ajuda dele. Ele ajuda-a e ela agarra-o pelo casaco com os punhos cerrados e abana-o sem força. Ele senta-se com ela na cama, amparando-a enquanto ela se atira contra ele.
— Diz-me uma coisa, Spencer O’Malley — diz Lily, agarrando-o pelo pescoço, encostando a cabeça contra ele para depois o afastar e o olhar desesperadamente nos olhos —, diz-me uma coisa... sentas-te aqui e finges à minha frente que oh, oh, oh, está tudo bem e que este transplante vai correr bem e que tudo vai ser fantástico, mas diz-me... porque é que te recusaste a vender os meus quadros nos passeios de Nova Iorque no sábado passado? Escondes-te por trás da tua garrafa, mas diz-me porque te recusaste a ir vender?
Spencer pisca os olhos... e levanta-se da cama, dando um passo atrás, e sente que isto é demasiado para ele, que ele também já não aguenta. Não conseguia vender os quadros dela. Depois de saber que o arsénico não tinha servido para nada, Spencer já não conseguia vender os quadros de Lily. Quer dizer-lhe «eu vendo-os esta semana, Liliput», mas é mentira e ele não o fará, ela sabe-o. Não o fará e não o fez e não o consegue fazer porque teme que os quadros sejam em breve a única coisa que resta dela.
A ranger os dentes, Lily diz:
— Quem me dera ter sido atropelada pela merda de um autocarro. Isto é pior do que tudo. Quem me dera ter desaparecido como a Amy. Instantaneamente, imediatamente e irreversivelmente. E de certa forma penso que desapareci, ainda que continue a respirar. As pessoas à minha volta têm-se portado como se eu estivesse morta há um ano e estivessem só à espera que o meu corpo desse de si.
— Eu porto-me assim? — Spencer recua mais um passo.
— Quando trazes flores apesar de eu ainda estar viva, quando trazes os meus quadros para aqui em vez de os venderes ali, quando andas com pezinhos de lã à minha volta, sem me tocar, sim. Sim. Estás a pensar «é só mais um bocadinho. E depois volta tudo ao normal». Bom, vai para o inferno. Não sou a tua penitência, Spencer.
— Lily... — diz ele, quase incapaz de pronunciar o nome dela.
— O quê? Não estou a ser justa? Eu sei... isto é excruciante. Deem-me um acidente de automóvel, um desastre de avião, o desaparecimento repentino e permanente da Amy. Prefiro qualquer uma dessas coisas, para que possas seguir com a tua vida e não me estejas a enterrar em lírios brancos.
— A mãe da Amy seguiu em frente com a sua vida? — Spencer não fala de si próprio e das duas últimas décadas da sua vida.
— Se a Amy alguma vez for encontrada, é o que fará.
— A morte é a morte — diz Spencer, falando de si enviesadamente. Mas Lily não o ouve.
— Sabes, o DiAngelo vai parar a minha quimioterapia. Diz que não me está a fazer bem nenhum e que ainda me deixa pior. É verdade. Deste-lhe algum dos teus conselhos? Não me disseste tu uma vez que se eu me quisesse afogar, não me devia torturar em águas pouco fundas?
— Não foi esse o meu conselho. Estava a contar-te uma história sobre outra coisa qualquer.
— Deves tê-lo dito ao DiAngelo. Porque ele ouviu. Acabou a quimioterapia. E olha para mim, não estou viva, não estou morta, estou o quê? O que sou eu sem o meu Hickman? Alimentam-me pela veia, fazem-me transfusões de cinco em cinco minutos, não consigo produzir um simples glóbulo vermelho sozinha.
O meu fígado, os meus rins, não estão a falhar suficientemente depressa. Por falar em águas pouco fundas... Estou a fazer diálise, o meu coração é monitorizado eletricamente, e eu só... eu sei... foi assim que passei os primeiros vinte e três anos da minha vida, a um passo de distância de todos os sentimentos, mas era tão feliz! Meu Deus, viveria outros cento e vinte e três anos sem ter a vida tão perto de mim. Tudo o que quero é... — Lily deixa-se cair, com as mãos já não em forma de tenda zen mas de palmas juntas numa oração. — Ser estúpida e ignorante — diz finalmente. — Ir ao cinema, dormir, pintar, sentar-me no Central Park ao domingo, cheirar a chuva, viver como qualquer outra pessoa, como se fosse imortal. Não quero mais nada disto. — Ela afunda-se na cama. Ele não é capaz de se aproximar.
— O que é que queres, Lily? — murmura Spencer.
— Não quero nada. Só viver.
64
Amy e Andrew
Andrew chegou ao Mount Sinai para a recolha de medula e depois bateu à porta de Lily. Miera estava com ele. Dois agentes do Tesouro vinham a seu lado. Estava mais magro do que antes e de semblante cinzento, e ficou pálido quando a viu e ela devia estar mais magra do que nunca, também ela cinzenta, também ela pálida.
Veio com Miera!
Era inacreditável.
Lily e Spencer olharam um para o outro e depois ele olhou para as suas mãos.
Lily apontou para os agentes do Tesouro.
— Porque andam eles sempre contigo nos dias que correm, Andrew?
— Para me proteger. Deixei de me sentir seguro — respondeu ele.
E Spencer disse:
— Acho que é boa ideia.
Andrew, sem mesmo reparar em Spencer, perguntou se podiam ter um minuto a sós e Lily disse:
— Andrew, pode a Miera deixar-nos a nós a sós por um minuto?
— A Miera faz parte da família — disse Andrew.
— Sabes que mais? O Spencer não se vai embora.
— Então vou eu.
— Isto é fantástico, Andrew — disse Lily. — Não te vejo desde novembro e agora vais-te embora?
Spencer levantou-se.
— Vou-me embora.
— Não!
— Lily, fico mesmo aqui fora. — Inclinou-se para ela e segredou: — Se ele sabe o que lhe faz bem à saúde, diz-lhe que é melhor que não te chateie.
— Chiu — disse ela, mas pelo olhar furioso de Andrew perante a saída de Spencer, Lily não tinha a certeza se ele não teria ouvido.
— Lily — disse Miera, bem penteada e de saltos altos, envolta em Armani —, não estás com mau aspeto.
— Estavas à espera de pior?
— Não sei do que estava à espera. Sabíamos que estavas doente, mas não pareces... — ela interrompeu-se. — Estou só a tentar ser simpática, Lilianne.
— Obrigada.
— E então, Lil, como estás? — disse Andrew, pegando-lhe na mão.
— Bem, obrigada. — Ela suspirou. — Como estás tu?
— Estou bem. Estou a aguentar-me.
— Eu também. — Ela fazia um esforço para manter a voz equilibrada. — Estou contente por te ver.
Andrew sentou-se na beira da cama e abraçou-a.
— Liliput — murmurou. — Liliput.
Ela estava calma. Hoje com gotas lentas de citarabina. Agoniada. Amanhã, casa. Deu-lhe palmadinhas nos ombros. Esperou.
— Miera, dás-me um minuto, se faz favor? — disse ele por fim.
Obrigada, Andrew.
— Andrew, mas disseste...
— Eu sei. Só um minuto, Miera.
Depois de ela sair, Andrew baixou a voz e um gemido audível saiu de dentro dele.
— Fiz uma série de asneiras horríveis, Lily. A culpa é toda minha. Espero que a medula seja compatível. Olha para ti. Lamento tanto. Perdoas-me?
— Perdoo-te o quê?
Ele recuou.
— Não ter aparecido todos estes meses.
— Ah, isso. Perdoo.
— Estava demasiado envergonhado para vir, Lil. Demasiado envergonhado para te enfrentar. Teria vindo se fosse capaz, mas não fui.
— Eu sabia. Disse isso ao Spencer.
— Para de falar nele.
— Não o julges tão duramente. Está só a fazer o seu trabalho.
— Não, ele odeia-me bem para lá do dever profissional.
— Andrew, isso não é verdade.
— Ouve, não quero falar sobre ele contigo. Estás doente, vamos tratar de te pôr melhor e depois tratamos do resto.
Lily virou a cara para longe do irmão, desprezando-se a si própria pela sua fraqueza, desejando ser forte, incapaz de falar com ele sobre a única coisa de que precisavam de falar. Porque pensara ela que Andrew lhe diria fosse o que fosse?
Ele não a largava.
— O que são estas coisas todas a entrar dentro de ti?
— Bem, o meu coração está ligado diretamente ao veneno aqui neste saquinho.
— O que está nos outros sacos? Os que estão ligados ao cateter do teu braço?
— Antibiótico, glucose.
Andrew começou a chorar.
— Vá lá — disse Lily, dando-lhe uma palmadinha nas costas. — Vai ficar tudo bem. A sério. Não estejas triste.
— Posso pegar em ti? Posso pegar-te ao colo?
— Vais dar cabo dos fios.
Ele pegou nela com muito cuidado, sentou-se na cama, e embalou-a, baloiçou-a. A cabeça dela descansava no ombro dele.
— Liliput, lembras-te de como te costumava pegar ao colo?
— Andrew, por favor, o meu coração não está com força que chegue.
— Oh, Lily — disse ele. — Há tantas coisas de que não te posso falar... por causa dele. Eu sei que sentes que te traí, eu sei disso, mas tens de saber que me senti traído por ti. Não, não comeces a protestar. És uma criança, como podes tu perceber as motivações dos homens adultos? Cheguei aqui com a Miera para me proteger de ti, mas não me quis ir embora, ao ver-te assim, sem te contar uma coisa importante sobre mim e a Amy.
— Que coisa? — disse ela, quase sem se ouvir.
Na sua voz baixa e funda, ele disse:
— Lily, como pudeste ser tão cega? Ainda não percebeste? Eu estava desesperadamente apaixonado por ela! Estava prestes a deixar tudo na minha vida por ela. Amava-a mais do que alguma vez amei o que quer que fosse. Mais do que o meu trabalho, a minha carreira, o meu futuro, a minha família. Tudo o que eu amava no mundo era ela.
A clareza estava ainda míope, amblíope num olho incorrigível.
— Era?
— Claro que sim. Ela entrou na minha vida e alterou-a para além do concebível. Não estava à espera. Ela certamente não estava à espera, julgo eu, que me fosse apaixonar por ela daquela maneira. Acho que até ela se surpreendeu. Pensava que se estava a preparar para um pequeno caso com um homem poderoso. Tudo sob controlo. E de repente, lá estava.
— Mas, se a amavas, porque acabaste com ela? — Lily debatia-se. — Foste tu que... acabaste?
— Não. Em abril ela disse-me que não me queria voltar a ver.
— Disse?
— Sim. Completamente vindo do nada. Ela disse... que já não me amava e que não queria continuar.
— Acreditaste nela?
— A princípio, não. Pensei que era uma estratégia. Talvez para me fazer deixar a minha mulher mais depressa, para não me candidatar ao Senado. Não sabia. Fiquei devastado. Mas, por fim, lá acabei por acreditar nela. Ela convenceu-me de que já não me amava.
— Como?
— Convenceu-me apenas. Com as ações. Era muito fria. Cortou-me da vida dela. Com as palavras. Disse algumas coisas que me fizeram acreditar.
— Como o quê?
— Para, Lily. És minha irmã, não és detetive. Para de falar como se fosses.
— Mas porque não lhe contaste isto a ele?
— Não sei se sabes isto sobre ele, mas ele consegue sempre virar todas as coisas pessoais que alguma vez lhe disse e usá-las contra mim.
— Oh, Andrew.
— Lily, confia em mim quando te conto o meu lado das coisas... eu e a Amy não tinha nada a ver contigo. Eu sei que é difícil de acreditar e que te sentes traída. Enganámos-te durante tanto tempo. Mas é que me apaixonei... e perdi a cabeça. Tudo o resto foi atrás. Se fores contar alguma coisa ao teu amigo, conta-lhe isso.
— Sabes, Andrew, o Detetive O’Malley segue os seus próprios conselhos em todos os assuntos.
— Honestamente, acho que isso é capaz de ser o melhor, dadas as circunstâncias.
— Eu também.
Sorriram.
— Desculpa, Lil. Que tenha tudo corrido assim tão mal.
— Eu também, meu querido Andrew. Eu também.
— O polícia agora está sempre contigo?
— Quando eu não estou aqui, ou com a Joy, sim. Mais ou menos.
E então mais uma saída incompreensível vinda de Andrew:
— Isso é bom, Liliput. Isso é bom.
Depois de Andrew se ir embora, Spencer voltou a entrar no quarto e sentou-se na cadeira ao lado da cama dela. Lily esticou-se, tirou-lhe os óculos, e encostou-lhe as mãos aos olhos.
— O que estás a fazer? — Ele não se afastou.
— Tira esse olhar de detetive dos olhos, detetive. Não te deixo em paz até ao regresso do Spencer.
Ele beijou-lhe as mãos, afastou-se, sorriu, pôs os óculos.
— Para de olhar para mim — disse ela.
— Os teus olhos estão fechados. Como sabes que estou a olhar para ti?
— Porque estás sempre a olhar para mim com ar apatetado por causa disto, por causa daquilo. Para.
Ela encostou-se sossegada nas almofadas. Ele sentou-se na cadeira ao lado dela.
— Então, o que vais fazer agora? — perguntou ele.
— Nada. — Um sorriso esboçava-se na cara dela. — Seguindo o teu caro conselho, estou a exercer livremente o meu direito americano de permanecer calada.
Spencer trouxe uma sandes para si e uma sopa para Lily, e ela comeu devagar, bebendo colheres de chá de sopa para não irritar os intestinos tão facilmente irritáveis. Quando acabou a sopa, disse:
— Está bem, queres saber o que ele me disse? — Fechou os olhos, tentando não ficar triste. Nos dias que corriam era tão fácil ficar triste.
— Querida Lily. — Spencer puxou a mão dela até aos lábios. — Queres que eu te diga o que ele te disse, quando entrou aqui? Disse-te que a Amy lhe chegou à garganta e lhe agarrou o coração, puxou-o para fora e atirou-o para o chão, pisando-o com os seus sapatos de salto alto, lhe cuspiu em cima, o meteu no forno e o cozinhou. Depois cortou-o em pequenos pedaços, enfiou-o num pedaço de pão e serviu-lho, esperando ouvi-lo dizer «obrigado, querida, estava delicioso». E que ele assim fez.
Ela abriu os olhos. Olhou incrédula para ele. Spencer, com os seus fulminantes olhos azuis a fulminá-la, treinados nela, estava pensativo.
— Spencer...
— Lily, eu nunca achei que a Amy amasse o Andrew. Sempre suspeitei que fosse ao contrário.
— Porquê? Porque pensavas isso?
— Por várias razões.
— Diz-me uma.
— Porque ela deu as joias que ele lhe comprou.
— O quê?
— Sim. Não vais dar as joias Tiffany que o homem que amas te ofereceu a um vagabundo num abrigo, a não ser que não ames o homem que oferece Tiffany e ames o vagabundo.
— Estou a ver, enlouqueceste. A Amy amar o Milo é a coisa mais absurda que alguma vez ouvi. — E depois ela disse: — Sabes o que há de mal em ti? Não percebes nada de mulheres.
— Obrigadinho.
— Tu até podes ser imune ao charme do meu irmão, mas nenhuma mulher lhe resiste. A Amy até pode ter sacudido o seu cabelo ruivo em frente ao coração dele, mas ele também tem truques. É impossível alguém não se apaixonar por ele.
— O que estás a dizer, então? Que eu não consigo ver o amor?
— É isso mesmo.
— Mostra-me a Amy. Encontra-a por mim. De qualquer forma, e tornar-me-ás um crente.
65
Nathan Sinclair
— Não acredito que estou aqui outra vez — disse Spencer a Liz Monroe.
— Bem, temos alguns depoimentos juramentados de que lhe queríamos falar.
Ele olhou à volta da sala. Ela disse nós, mas estava sozinha, desta vez. Só ele e ela na retangular sala de reuniões com ar condicionado.
— Porque não se senta? — Ela abriu uma carta. — Esta é de Constance Tobias.
— Está bem. — Ele sentou-se.
— Sabe quem ela é?
— Bem, obviamente, Sra. Monroe.
Monroe pigarreou e mergulhou na carta.
— O depoimento dela feito sob juramento diz que, algumas semanas antes da morte de Nathan Sinclair, você foi visitá-la à prisão de alta segurança de New Hampshire, onde ela estava a cumprir seis anos por um crime que ela diz no depoimento não ter cometido.
Spencer não comentou.
— Quer acrescentar alguma coisa a isto?
— Não. Deveria? Até agora não há nada a que precise de responder.
— Por um crime que ela não cometeu.
— Não, Sra. Monroe. Por um crime que ela diz que não cometeu. São duas coisas diferentes. As prisões estão cheias de pessoas inocentes, se perguntar aos reclusos.
— Está convencido de que ela é culpada?
— Estou convencido de que ela reduziu a acusação de homicídio para homicídio involuntário, salvando-se da pena perpétua. Estou convencido de que ela evitou ser julgada por um júri de pares porque a prova estava esmagadoramente contra ela. Estou convencido de que, embora existam algumas pessoas inocentes na cadeia, ela não é uma delas.
— Ela diz na carta que parecia perturbado com a sua conversa com ela.
— Nem mais nem menos perturbado do que fico com muitas coisas daquela natureza, Sra. Monroe. Há mais alguma coisa?
— Vamos insistir neste assunto por um momento. A carta da Sra. Tobias refere-se ao facto de que também possa ter acreditado que ela não era culpada do homicídio, o que, neste caso, deve tê-lo levado a procurar quem achava ser culpado e escapou impune. Isto é possível, detetive?
— Se é possível? — Spencer encolheu os ombros e ergueu as sobrancelhas. — Não é impossível.
— Bem, deixe-me dizer isto, enquanto estamos nos depoimentos juramentados. Tenho aqui dois de colegas seus. Um do seu antigo parceiro Chris Harkman e um de Gabe McGill. Entrevistámo-los.
— O detetive Harkman retirou-se e continua a dar entrevistas da sua cama de hospital?
— Não vejo a relevância disso, Detetive O’Malley. Isto é o que o Detetive Harkman nos disse. Ele contou-nos que uma ou duas vezes, quando tomavam umas bebidas depois do trabalho há alguns anos, lhe disse, e passo a citá-lo: «O canalha de Greenwich teve o que merecia».
Spencer riu-se.
— Espere um minuto. Quando bebi um pouco demais disse ao meu colega que o canalha de Greenwich teve o que merecia?
— Sim.
— Está bem. Supondo que eu tenha dito isso, pensa que pode ser uma prova de culpa de um crime capital?
De forma impassível, Monroe continuou.
— Estou só a dizer-lhe o que tenho no seu processo, Detetive O’Malley. Gabe McGill, contudo, que também tomou bebidas consigo e que o conhece há cinco anos, jura pela sua conduta irrepreensível, bêbado ou sóbrio. Assim como o seu chefe.
— Isso é bom — disse Spencer de modo arrogante —, mas voltando aos meus devaneios bêbados. Estou a perguntar-lhe outra vez, como é que o depoimento do Harkman constitui a minha confissão?
— Não per se.
— Oh, per se.
— Mas é só mais uma prova circunstancial contra si.
— Uma prova circunstancial muito ténue, Sra. Monroe, se não se importa que eu lhe diga. Não acredito que seja aceite em tribunal que eu tenha bebido um pouco e dito que um tipo qualquer de Greenwich tenha tido o que merecia.
— Detetive O’Malley, passando um pouco à frente. Considera-se o tipo de homem que planearia uma visita pública durante o dia à sua futura vítima, sabendo que as fibras da sua roupa — ou cabelos, ou impressões digitais — poderiam ser encontradas no local e precisaria de uma negação plausível completa com testemunhas, que foi o que levou a Polícia de Suffolk a investigar este assunto?
— Não.
— Não? Bem, considera-se o tipo de homem que compraria roupas escuras e botas que fossem grandes de mais de propósito, e um saco escuro para o qual pudesse atirar as roupas e depois deitar fora, ou trazer uma arma impossível de ser localizada e facilmente desmontável, ou estacionar num local público, ou provocar Nathan Sinclair a disparar primeiro?
— Não.
Liz Monroe sentou-se do outro lado da longa mesa de reuniões, a olhar para Spencer.
— Detetive — disse —, deixe-me perguntar-lhe uma coisa. Considera-se o tipo de homem que mataria outro por uma questão de sentido de justiça, se pensasse que essa justiça não tinha sido feita? Sentir-se-ia torturado, deixar-se-ia enlouquecer pelos seus pensamentos se alguém se safasse de um homicídio de um inocente? Arriscaria o seu trabalho, as suas credenciais de profissional, o seu lugar na esquadra, a sua liberdade e o seu meio de subsistência, para fazer justiça pelas próprias mãos?
As palmas das mãos de Spencer descansavam calmamente sobre a mesa.
— Sra. Monroe, passo cada dia da minha vida a ver pessoas safarem-se de todo o tipo de coisas. Pessoas que vendem droga a crianças, pais que levam os filhos para a prostituição para arranjar heroína, pais que abusam tanto dos filhos que os filhos preferem fugir e serem expostos a predadores inimagináveis do que encará-los. Mães que afogam os seus bebés em lagos e depois participam o seu desaparecimento. Homens que atiram corpos de raparigas mortas para o oceano a partir de aviões fretados. Diga-me, todas estas pessoas estão atrás das grades? Com certeza que não. Eu sou só um homem, é pouco o que posso fazer. — Levantou-se. — Faço o que posso. Mas aquilo de que me está a acusar não reflete os meus registos, a minha história, os meus três anos nesta força, ou as recomendações dos meus superiores e dos meus colegas. — Spencer fez uma pausa para dar ênfase. — Portanto, a resposta à sua pergunta, baseada em tudo o que sabe sobre mim ou pode deduzir ao observar o meu trabalho durante quase um quarto de século, é não.
Ele continuou em pé, ela continuou sentada. Os olhos dela estavam postos nele, os dele, nela. O olhar dela era tão fixo, tão penetrante.
— Detetive, falei com o seu comandante, o chefe Whittaker. Falei com o seu comandante sobre si. Falei com o presidente do seu sindicato, o PBA. Falei com os seus colegas. É verdade, é altamente respeitado. O seu superior mais direto não podia falar melhor de si. Em cerca de duas décadas não houve nada contra si, exceto isto. Não esteve envolvido em nenhuma queixa que tivesse sustentação, nem suspeita de força excessiva, nem suborno, nem extorsão. Mas estas queixas não vão desaparecer. Não no distrito de Suffolk. Não aqui. Sei que veio transferido da polícia de Suffolk por causa destes rumores. Nathan Sinclair, seja por que razão for, parece ser a pedra no seu sapato.
— O facto de Nathan Sinclair ter tido um mau fim não me deixa pesar, admito. Não choro a morte dos perversos. Mal sou capaz de chorar a dos virtuosos sequer. —Spencer engasgou-se um pouco naquelas palavras. — Agora, posso ajudá-la em mais alguma coisa?
Monroe fechou o processo dele.
— Não. Vou avaliar toda a informação e depois fazer as minhas recomendações. Continuará ao serviço até ou a menos que seja notificado em contrário.
— Estou desejoso de ver o seu relatório chegar à minha secretária, Sra. Monroe.
Ela deu-lhe a mão. Sem a tirar, disse:
— O Harkman disse que achava que você bebia demais. Tenha cuidado.
Spencer largou-a e, por alguma razão, pensou que ela se tinha arrependido de dizer aquelas palavras em forma de advertência e não como repreensão.
— Obrigado, tenho sempre cuidado.
— Estou certa que tem, Detetive O’Malley.
— Por favor — disse —, depois de tudo por que me tem feito passar, trate-me por Spencer.
66
Um barco em Key Biscayne
— Lil, acho que vou perder o meu emprego.
— O quê?
Ele contou-lhe o que lhe tinha acontecido com os Assuntos Internos. Ela ouviu com atenção.
— É tão ridículo, não é? — disse ela, por fim.
Spencer ficou em silêncio.
Lily estudou-lhe o rosto e depois desviou o olhar.
Mais tarde, horas mais tarde, chegada a noite com Lily a entrar e sair do sono, puxou-o para ela e segredou-lhe:
— Spencer Patrick O’Malley, confio plenamente em ti, acredito plenamente em ti. Os anjos já sabem a verdade. E eu não preciso de saber nada.
— Ainda bem. Já sabes demasiado, assim como assim.
— Talvez pela forma como a Liz Monroe te persegue, possas entender como o meu irmão se sente a ser perseguido por ti — disse ela.
Spencer não disse nada durante muito tempo. Lily pensou que ela tinha adormecido, que ele tinha adormecido. Mas as respirações dele eram as de mil uísques, respirações de um sofrimento sepulcral.
— O que eu percebo — disse Spencer —, é que o solo incha. Mentiras, segredos, deceções, falsidades sobem à superfície. O universo equilibra-se por si, os demónios são libertados, a verdade é revelada.
Era pleno verão, a janela estava aberta e a brisa de julho entrava. Polinização, néctar, a brisa da vida entrava. Lily não queria pensar em coisas frias. Ela queria calor. Spencer, nu na cama dela. Do outro lado, na parede, o seu quadro A rapariga de Times Square, que ele tinha mudado para o quarto, e o quadro de cortiça cheio da sua vida na juventude, a vida que ela tinha quando Amy ainda estava com ela, a vida que ela tinha quando não estava a morrer. Preso com pioneses ao quadro de cortiça, estava o seu bilhete da lotaria que lhe tinham dado como recordação, 49, 45, 39, 24, 18, 1. E ao lado dele, uma tira de fotografias de máquina, a preto e branco, com quatro imagens tolas dela e de Spencer.
Com a voz a fraquejar pelo toque das mãos dele no fundo das costas, deitou-se nos seus braços sem olhar para ele, por ser mais fácil falar sem ver a cara fechada e tensa tão próxima, e disse:
— Se perdesses o teu emprego podíamos sair daqui. Podíamos deixar Nova Iorque e ir para um sítio quente.
Ele não disse que não.
— You’re the sweetest girl, you’re a beautiful girl — segredou-lhe. Depois acrescentou: — Em que sítio estás a pensar?
— Talvez sul de Miami. Algum lugar nas Keys? Key Biscayne? Ouvi dizer que é simpático. Podíamos arranjar lá uma casa, construir uma casa perto da água. Podias ter um barco.
— Podia ter um barco — disse Spencer devagar. — E tu, o que farias?
Estar contigo, quis Lily dizer. Beijar-te. Talvez aprender a cozinhar. Podia fazer-te guisado irlandês, esparguete e almôndegas e talvez alguma coisa polaca da minha avó, embora ela nunca tivesse aprendido a cozinhar assim tão bem em Ravensbruck. Pintar-te-ia e pintaria para ti, e limpava o teu peixe se aprendesses a pescar. Nadaríamos todos os dias e a água lá é quente durante todo o ano, e o ar também, e estaríamos lá fora todo o dia. Faríamos móveis e discutiríamos sobre se de madeira ou vime. Estaríamos juntos. Estaríamos vivos. Eu estaria viva.
Foi um sonho bonito.
Ela não disse nada daquilo. É suposto estarmos em paz agora, fazer escolhas pacíficas. Já não é suposto estarmos em guerra, queria ela gritar. Não tinha já o Tomas feito isso? Podemos escolher e ir para o calor, podemos arranjar novos empregos, podemos melhorar as nossas vidas só com as caixas na mala do carro e a nossa livre vontade, podemos torná-las melhor. Não precisamos de combater os alemães. O Tomas já fez isso. Não precisamos de ir para Ravensbruck. A Klavdia Venkewicz já fez isso. Não precisamos de recusar os nossos filhos com toda a nossa força no momento em que eles correm para nós. Anya Pevny já fez isso. Eles fizeram-no para que possamos ter a escolha de Nova Iorque ou Miami, de trabalho na polícia ou num barco.
Beber ou não beber?
Ter cancro ou não ter cancro?
Amar ou não amar?
Com uma clareza surpreendente, começava a ocorrer a Lily que talvez até a paz fosse uma ilusão. Talvez eles ainda tivessem de lutar constantemente e pagar um preço por essa simples alegria de viver. E talvez até o simples fosse uma ilusão. A luta era tudo.
Eis a vida eterna para que eles possam conhecer a verdade, possam testemunhar a única verdade.
— Está bem, sem barco — disse ela, mudando da melancolia para uma alegria simulada numa respiração dolorosa. — Mas podemos abrir a nossa própria agência de investigação na Flórida, Spencer e Lily Investigações Privadas, nenhum caso, seja qual for, ficará por resolver. Podemos mascar tabaco e ter cobras num tanque, e pontuar cada frase com uma cuspidela para dentro da urna. Eu podia usar aquelas botas giras à cowboy e uma saia curta, e andar de saltos altos a dizer: é tudo, Detetive O’Malley, é tudo?
— Agora, sim — disse Spencer, beijando-a —, isso é que é um sonho bonito.
67
Cabo San Lucas
DiAngelo parou a quimioterapia de Lily. Deu-lhe Vicodin para as dores, antibióticos para as infeções e mandou-a para casa.
— Se a dor for muito forte, volta, damos-te morfina.
— Então e os resultados das amostras de medula?
— Precisam de um pouco mais de tempo.
— A sério?
— A sério. Estamos também a procurar no Registo Internacional de Dadores, por segurança. E vamos tirar uma amostra ao teu Detetive O’Malley.
Lily observou DiAngelo.
— Está tudo bem?
— Tão bem quanto pode estar. — Fez um sorriso amarelo. — Não te preocupes. Vamos conseguir um dador. Só precisamos de esperar mais um pouco pelos resultados.
Sem quimio, Lily não sentia tantas náuseas e a boca tinha parado de sangrar. Mas estava a ficar com nódoas negras nas pernas outra vez. Pareciam as pernas da mãe. Estava cansada. Estava a enfraquecer, dia após dia.
Sabia que estava a enfraquecer porque parou de pintar.
Ainda assim, foi com Spencer ao piquenique anual da Benevolent Patrolmen’s, criada e financiada por Bill Bryant.
Foi num domingo quente de verão de Nova Iorque, no Great Lawn, em Central Park. Spencer entregou a Lily os seus óculos, a camisa e a arma e jogou futebol com os polícia-patrulha de Brooklyn, e um jogo de basebol contra os detetives de roubos de Queens. Os agentes estavam todos lá com as suas famílias, havia pipocas e algodão doce, um trampolim e Frisbee, e cerveja e nozes. E a música estava Alta.
O mayor de Nova Iorque marcou presença. O comissário da polícia passou por lá. Bill Bryant, o vereador da cidade de Nova Iorque e amigo do NYPD — aquele que forneceu a Spencer o seu colete Kevlar — não se sentia bem e não conseguiu ir, mas a sua amável mulher Cameron foi substituí-lo.
Lily sentou-se à sombra debaixo de um carvalho, com um copo de sumo de laranja e os óculos de Spencer nas mãos. Apesar de estar calor, usava umas calças brancas à pirata para cobrir as pernas e uma blusa branca de manga comprida para tapar os braços magros. Na sua cabeça sem cabelo usava um chapéu de palha. Estava a evitar as multidões, sentindo-se um pouco tonta, mas ia vendo Spencer no campo com a bola nos pés. Estava a pensar nele, sobre como ele um dia tinha sido este homem, este rapaz, e jogava assim o tempo todo. Perguntou-lhe quando tinha sido a última vez que tinha participado num evento como aquele e ele disse que nunca. No entanto, ali estava ele a correr pelo campo todo, a dar pontapés na bola, a rir, como se ainda tivesse vinte anos. Vinte, com a vida toda pela frente.
Uma mulher aproximou-se com uma mimosa nas mãos e sentou-se no banco ao lado de Lily.
— Sou a Cameron Bryant — disse, apresentando-se. — É o meu marido que está a pagar esta festa. Estão todos a divertir-se, certo? Ele vai gostar de saber. Ele não se sente bem. Como a senhora. — Deu um gole na bebida.
— Estou a passar uma ótima tarde — disse Lily.
— Está doente?
— Estou doente.
— É o início?
Lily inspirou devagar antes de falar.
— Não.
Cameron estava nos seus setentas, uma mulher bem arranjada, bem-apresentada e de voz suave. Cameron disse a Lily tudo sobre a sua própria luta contra o cancro. Lily lamentou. As pessoas gostavam de falar sobre elas mesmas e Lily gostava de sentar-se e ouvir. Cameron disse-lhe que ela própria tinha tido cancro da mama há vinte anos. Fez uma mastectomia radical, um plano de quimio, outro, outro, lutou contra isso durante os primeiros dez anos, e ali continuava ela, limpa nos últimos dez.
— Fico feliz por estar bem — disse Lily.
— Vai ficar bem, também. Vai ver. Então é a esposa de quem?
— Não sou esposa de ninguém. Só tenho vinte e cinco anos.
— Quando tinha a sua idade, já era casada e tinha três dos meus quatro filhos — disse Cameron.
Lily sorriu, bebeu o seu sumo.
— Bem, sabe como são as raparigas de Nova Iorque atualmente. Já não casamos novas. Nem temos filhos. Estamos demasiado ocupadas a encontrarmo-nos.
— E encontrou-se, querida?
— Sim — disse Lily —, encontrei-me com ele.
Apontou para o campo e fez um gesto a Spencer para se aproximar.
— Ele adoraria conhecê-la. Gostaria de agradecer-lhe pessoalmente pelo colete. Mas acho que não me consegue ver sem os óculos. É míope... Spencer — Lily tentou gritar, mas tinha descoberto recentemente que já nenhuma das suas palavras acabava em ponto de exclamação.
Mas Spencer viu-a, ouviu-a e aproximou-se, todo transpirado, ofegante e feliz. Vestiu a camisa, e Lily apresentou-o a Cameron, que disse:
— Sabe, quando não estava bem, assim como ela, os médicos disseram-me que ir para fora era a melhor coisa. Às vezes, é só preciso ir para fora alguns dias.
Spencer concordou com a cabeça.
— Bem, isso é uma boa ideia. Já tinha dito à Lily que, assim que ela ficasse um pouco melhor, levava-a a Maui. — Ele sorriu abertamente. E Lily riu-se.
Cameron, sem estar dentro da piada, disse seriamente:
— Oh, não, porquê aí? Quero dizer, Maui é agradável, já estivemos lá muitas vezes, mas se realmente querem o paraíso na Terra, têm de ir ao Cabo San Lucas. Esse, sim, é um lugar para os deuses.
Spencer nunca tinha ouvido falar. Cameron falou-lhes do lugar, que ficava no extremo sul da península de Baja, rodeado por água por todos os lados, e onde ela e Bill tinham uma pequena cabana mesmo no oceano.
— Sim, o Bill e eu viajamos por todo o mundo mas, no nosso aniversário de casamento, vamos sempre para lá, é mágico. — Ela sorriu. — Acabámos de celebrar o nosso 51º aniversário em maio. Conseguem imaginar estar casados durante cinquenta e um anos?
— Com o mesmo homem? — disse Lily.
E Spencer riu-se, e depois tirou cuidadosamente os seus óculos de Lily e colocou-os:
— Disse que o seu aniversário é em maio? — Os seus olhos concentraram-se em Cameron.
— Sim, 15 de maio. Os Idos de maio.
— Ah — disse Spencer —, então vão só nesse dia? É um voo longo até ao México, não é?
— Oh, não, ficamos uma semana. Chegamos lá dois ou três dias antes e, depois, ficamos mais dois ou três dias.
— Parece mesmo fantástico — disse Spencer, sem olhar para Lily, que lhe pôs as mãos no braço e disse baixinho «Spencer, por favor». — Vão todos os anos? No ano passado, também? Perto de 14 de maio? — Olhava para Lily sem pestanejar.
— Claro. — Cameron franziu a testa — No ano passado foi o nosso 50º! Ficámos durante dez dias. Do décimo ao vigésimo, penso. Fizemos uma pequena reunião familiar lá. — Sorriu. — Temos sete bisnetos e eles adoraram.
Lily não largava Spencer, enterrando os dedos no seu braço.
— Bem, obrigada, Mrs. Bryant — disse rapidamente, com o rosto tenso. — Temos de ir agora. Foi um prazer conhecê-la.
— Oh, sim. Aprendi tanto que não sabia sobre o Cabo San Lucas — disse Spencer.
— O prazer foi meu. É um bom ouvinte, Detetive O’Malley. São os dois. E eu sempre acreditei, que se não ouvirmos, não aprendemos — disse Cameron.
— Tem toda a razão — concordou Spencer. — Principalmente na minha área de trabalho.
Depois de ela se ir embora, ele ficou sem expressão e Lily virou-se para ele agarrando-lhes nos braços. As mãos dela apertavam-no, a agarrá-lo, todo o seu peso em cima dele. Spencer, por favor, continuava a repetir. Ele afastou-se gentilmente, sentou-a, sentou-se ao seu lado. Durante alguns minutos ficaram ali os dois, em colapso no banco. Não falaram. Andaram devagar para dizerem adeus aos rapazes, a Gabe, e apanharam um táxi para casa.
Em casa, colocaram as chaves, as armas e as carteiras cuidadosamente em cima da cómoda, fizeram chá, pegaram em Coca-Colas e sentaram-se no sofá. Ele perguntou o que ela queria ver e ela disse: o que estiver a dar que seja idiota. Viram Ace Ventura, e até riram. Prepararam-se para a cama, entraram, ele virou-se para um lado, ela virou-se para o outro, mas só por um momento.
— Spencer...
— Sabia que cederias primeiro.
— Vá lá, vira-te.
— Não. Já sei como és.
Mas ele virou-se para ela.
— Spencer... — a voz dela suplicava. — Não estou a dizer para não ires falar com o meu irmão. Não estou a dizer isso. Tudo o que peço é que procures primeiro o Milo. É só isso. Vai falar com os pais da Lindsey Kiplinger, já devem ter voltado de férias. Talvez eles te digam algo que seja útil. Procura o Milo. Por favor, Spencer, só... alguns dias, para procurar o Milo. Deve ter escapado à memória de Bill Bryant, só isso, quando ele apontou o Andrew na sua agenda pessoal num dia em que não estava no seu escritório em Nova Iorque.
Spencer ficou calado.
— Sei no que estás a pensar — disse Lily.
— Não fazes ideia do que estou a pensar.
— Faço. Faço. O alibi do Andrew é forjado. Sei que parece mau, muito mau, eu sei, mas por favor. Por favor. Por mim, só alguns dias para procurar o homem a quem a Amy deu os presentes de Andrew.
Por fim ele disse:
— Sabes quem sabe quem é o Milo? O teu irmão. Ele sabe, e contorce-se em agonia sempre que digo alto o nome do Milo.
Dormiram.
Cedo, na luminosa manhã seguinte, Spencer e Gabe já iam a caminho de Port Jefferson para falarem com a mãe de Lindsey Kiplinger.
— Prepara-te — disse Spencer —, estamos a lidar com uma mãe de luto. Aperta a gravata, mantém um ar distinto e solene.
A mãe de Lindsey Kiplinger não ficou feliz por vê-los. Levou-os para a cozinha, mas movia-se como se desejasse poder chamar a polícia por causa deles. Estava desconfiada e confirmou-o ao dizer agressivamente:
— Não sei que tipo de perguntas possam ter. A minha filha está morta há cinco anos.
— E nós lamentamos muito, Sra. Kiplinger — disse Gabe de uma forma solene, tal como fora instruído. Ele era péssimo. Era péssimo a arranjar a gravata e na simpatia. Tinha um ar e falava sempre como se quisesse bater em alguém. Quando a mãe se virou, Spencer deu-lhe uma cotovelada, segredando:
— Vê se te calas, está bem?
— Estou só a tentar ajudar.
— Ajuda não dizendo nada.
Sentaram-se à mesa da cozinha. Relutantemente, ela ofereceu-lhes café. Gabe aceitou, Spencer recusou pelos dois.
— Não, não, Sra. Kiplinger, obrigado, mas nós estamos mesmo com pressa. — Para prová-lo, levantou-se e fez com que Gabe se levantasse também. — Oiça, perder alguém tão novo é terrível, principalmente num acidente que envolve álcool. Bateram e fugiram?
A Sra. Kiplinger olhou para eles como se estivessem a falar russo.
— De que é que estão a falar? — perguntou. — Ela não morreu num acidente que envolvesse álcool.
— Não? Tenho a certeza que é o está escrito nas minhas notas. — Spencer pegou no seu bloco e começou a virar as páginas à procura.
— Pode virar as páginas até do Guerra e Paz, se isso lhe fizer bem. Sei do que a minha filha morreu e não foi pela bebida. — Apertou com força a caneca que tinha na mão. — Foi um tipo de droga alucinogénia. Fizeram a autópsia e tinha quantidades elevadas de uma coisa chamada mescalina no sangue.
Spencer fechou devagar o seu bloco.
— Isso é horrível. Mas, normalmente, a mescalina não provoca morte, acidentes de carro... — disse Gabe.
— Sim, provoca, quando a pessoa que está sob o seu efeito manda o carro por um penhasco das Montanhas Superstition abaixo.
— Oh. Não tinha percebido que ela...
— Ela não. Que tipo de informações é que tem? Ela não ia a conduzir, quem conduzia era o raio do namorado!
Spencer abriu o seu bloco, desta vez a sério. Ele precisava mesmo de escrever aquilo.
— Isso é horrível. Sabe o nome dele para podermos dar as nossas condolências à família?
— Condolências? O sacana não morreu.
Spencer olhou por cima do seu bloco:
— Não?
— Não, ele sobreviveu, o filho da mãe. Nunca voltou para casa. Eles fizeram uma espécie de viagem de drogas, tiveram o acidente, a minha Lindsey morreu, e ele sofreu graves ferimentos, não sei. Eu não quis colocar a família dele numa situação em que tivessem de mentir sobre os ferimentos, por isso não os processámos. Mas ele não voltou, isso eu sei.
Ela semicerrou os olhos para eles.
— Mas afinal, a que propósito vem isto?
— Iam só ele e a Lindsey no carro?
— No carro, sim. Acho que havia um grupo envolvido em... seja o que for.
— Diga-me, Sra. Kiplinger, sabe alguma coisa sobre a Igreja Nativa Americana?
— Oh, um disparate em que os miúdos estavam envolvidos. Só ouvi falar nisso depois.
— A Lindsey estava envolvida nisso?
— Seja como for, porque quer saber?
— Porque estamos a tentar encontrá-lo. — Spencer mostrou-lhe uma fotografia de Milo. Ela recuou, semicerrou os olhos, e depois disse que se lembraria se tivesse visto um rosto assim. Mas Spencer percebeu que alguma coisa nos olhos de Milo pareceu familiar à Sra. Kiplinger.
— Se nos der o último nome do namorado da sua filha, iremos embora.
— Clark. Eles vivem em Old Post Road. Porque quer saber?
Spencer não compreendia por que razão as pessoas tinham de fazer tantas perguntas. Gabe, que, de repente, era o menos brusco, respondeu:
— Nada de grave. Só algumas perguntas. Muito obrigado, ajudou-nos bastante. Tenha um bom dia. E boa sorte.
Depois de já estarem no carro, Spencer disse:
— Tenha um bom dia e boa sorte?
— Oh, eu fico petrificado nestas situações. Não sei o que dizer. Só quero fazer as minhas perguntas e desopilar. Todas essas delicadezas me ficam presas na garganta.
— Não me digas.
— O’Malley, achas que a Igreja Nativa Americana tem alguma coisa a ver com tudo isto?
— Não tenho a certeza. Se os miúdos se juntaram à igreja, podiam ter acesso ao peiote, ou mescalina, legalmente e de graça.
— De quantos miúdos estamos a falar?
— Bem, a Lily disse-me que eram seis. Lindsey e o namorado. A Amy e possivelmente Milo. E mais dois. Destes seis, o miúdo Clark, Milo e Amy estão desapareceidos. A Amy disse à Lily que os outros três estão mortos.
— Meu, esse é um caminho difícil — disse Gabe.
— Vamos descobrir. Vamos falar com a Sra. Clark. Mas faz-me um favor. Sorri e acena com a cabeça educadamente, mas o que quer que faças, não fales.
A Sra. Clark estava ainda mais relutante em falar com Spencer e Gabe do que a Sra. Kiplinger, e não queria abrir-lhes a porta até eles a ameaçarem com um mandado. Com a situação assim definida, ela saiu e, com os braços ligeiramente dobrados, ficou no alpendre no meio de um bairro suburbano de Long Island, com relvados bem cuidados e entradas de garagem para dois carros.
Ela não olhou para eles, mas para o seu relvado aparado quando disse:
— A vida dele foi arruinada. Quase não tem paz agora. Porque não podem deixá-lo em paz?
Spencer tentou explicar-lhe que podia ter sido cometido um crime. Gabe McGill dos HOMICÍDIOS acrescentou peso àquela declaração nebulosa.
— Um crime foi cometido — disse a Sra. Clark. — Contra o meu filho.
— Cometido por quem?
— Pelos desgraçados com quem ele viajou. Envenenaram-lhe a cabeça, fizeram-lhe uma lavagem cerebral.
— Algum desses desgraçados era assim? — Spencer mostrou-lhe o desenho que Lily tinha feito de Milo, e depois a fotografia do registo fotográfico de John Doe.
— Não sei quem é esse — disse, quase sem reação, como se a cara de Milo não fosse a coisa mais assustadora que já tivesse visto. — Nunca ouvi falar de nenhum Milo.
Ela parecia alerta.
— O seu filho conhecia bem Amy McFadden?
Ela ergueu as sobrancelhas:
— Ah, então, isto é por isso? — Sorriu. — A miúda McFadden desaparecida? Acham que ela foi visitar o meu filho?
— Não sabemos. Ele conhecia-a bem?
— Não muito bem. Ela era um ano mais nova do que ele e não andavam no mesmo ano na escola. Mas podem ter sido amigos.
— Sabe com quem mais a Amy se dava?
— Não sei. Só a conheci porque ela costumava andar com a tal Lindsey, que se dava com o meu filho.
— Foi por isso que o seu filho quis ir viajar com elas?
— Oh, ele fingiu gostar da miúda Kiplinger, mas ela não significava nada para ele. Ele era bom demais para ela.
— Então porque é que ele foi?
— Lavagem cerebral, já lhe disse. Envolveu-se com gente que não prestava. Eu disse-lhe, também. Disse-lhe e disse-lhe, não é saudável não contar aos pais as coisas em que te metes na escola. Acho que essa Amy não era boa rês. O Jerry nunca falava sobre o que eles faziam. Era sempre segredo. O que é que fizeste, filho? Oh, nada. — Soprou. — E depois ele foi-se embora. Foi-se embora e nunca mais o vimos. Quando não soube nada dele durante um ano, percebi que estava perdido. Disse ao meu marido, espera, a chamada telefónica a meio da noite vai chegar. Esperámos mais um ano por essa chamada.
— E o que disseram nessa chamada?
— Nunca deveria tê-lo deixado ir se soubesse o que sei agora. Pensava que eram apenas miúdos, a divertirem-se, querendo ver um pouco do mundo.
— O que sabe agora? — Spencer não conseguia nada de concreto dela.
— Morreram todos, ouvi dizer.
— Bem, sabe que não morreram todos. O seu filho está vivo.
— Se lhe quiser chamar isso. Mas os outros estão mortos.
— Bem, a Amy não morreu. Regressou a Nova Iorque.
— Onde é que ela está agora? — disse azeda a Sra. Clark.
— E o Milo não morreu.
— Não sei nada sobre esse Milo.
Recusou-se firmemente a dizer onde estava o filho.
Não queria que o incomodassem. Primeiro Spencer foi gentil com ela, depois insistiu, depois ameaçou-a de consultar todos os seus registos bancários, pois o pagamento mensal que, com certeza, ela fazia para o sítio onde o seu filho estava, estaria nos extratos. Só essa ameaça explícita forçou a língua da Sra. Clark a dizer a Spencer e Gabe que o seu filho permanecia num convento de St. Augustine no México, mesmo a sul de Nogales, no Arizona.
À questão sobre a razão de a mãe não trazer o filho de volta para casa, a Sra. Clark respondeu:
— Conhece alguma missão católica aqui em Long Island, Detetive O’Malley?
— O seu filho... precisa de uma missão católica, Sra. Clark? — disse Spencer com cautela.
— Ou é a ordem Agostiniana ou um hospital psiquiátrico para ele.
Aquilo não parecia nada promissor.
No carro, Spencer disse:
— Gabe, acho que eu e tu vamos ter de fazer uma pequena viagem.
Gabe riu-se bastante com esta.
— Sim, o Whittaker vai logo aprovar, uma criança que pertence a Bellevue e está a ser tratada por freiras mexicanas que não falam inglês, e nós vamos andar 400 quilómetros para lhe perguntarmos... o quê? Onde está o Milo? Como foi a sua última pedrada com o peiote? Eu digo-te já e não temos de ir até ao raio do México. Foi mááááá, meu.
Whittaker não aprovou.
— Não é New Jersey, ou Pensilvânia, ou Delaware, ou seja onde for que vais nas tuas perseguições selvagens, O’Malley. — E declarou que, se Spencer quisesse ir numa caça aos gambozinos a Nogales, teria de ir no seu próprio tempo e com o seu próprio dinheiro. — Ah, já te sentes diferente em relação a isto, quando tens de pôr do teu dinheiro? — Sorriu ironicamente. — De repente parece bem menos importante? Embora, tenho de admitir, esteja impressionado por estares finalmente a seguir uma pista no caso McFadden que não seja sobre o Quinn.
— Sim, bem... — Mas Spencer não disse nada. Ia guardar Bill Bryant para si por mais alguns dias.
— Porque não telefonas a esse Jerry Clark?
— Ele está num mosteiro.
— O quê? Não há telefones no mosteiro? — Whittaker encolheu os ombros. — Oh, o que sei eu? Talvez devessem. Seja como for, não podes ir, O’Malley. Tens uns dias de férias. Queres tirá-los para isso? Há cinco anos que não tiras uma semana inteira de férias. Tira algum tempo de folga, vai ao Arizona, passa um bom bocado, apanha sol. Precisas mesmo, pois estás com um aspeto horrível.
Spencer não sabia o que fazer. Mesmo que pudesse ir, havia a questão da Lily. Podia ir e deixá-la quando ela estava tão doente? E se encontrassem um dador? E se ela piorasse?
Quando ele lhe contou sobre Jerry Clark, Lily disse, oh meu Deus vai, claro, tens de ir. Vai buscar respostas. Há tanto tempo que não temos respostas. Vai. Vou ser o teu Bill Bryant, o teu benfeitor privado dos polícias-patrulha.
Ele gaguejou, hesitante.
— E tu?
— Eu o quê? — Ela sorriu. — Quanto tempo tenciona ficar fora, detetive? Só aprovo de quinta a domingo. Voltas para a nossa comédia de domingo. Vou ficar bem. Desde que a quimio parou, não me sinto tão mal, reparaste? Não há cá nada de atirar os teus lírios brancos para o chão.
— Não acho que isso tenha sido a quimio — disse, abraçando-a. — Preciso que o Gabe também venha.
— Faz o que tens a fazer.
— Mas tu não te afastes de casa.
— Como se eu fosse.
— E não saias à noite, por nada. Vou pedir a um carro patrulha para ficar lá fora enquanto eu estiver fora, por precaução, mas, por favor, toma cuidado, para tua própria segurança.
— Está bem. — Lily estava sentada no sofá a olhar para ele com uma expressão derretida.
— Estou a falar a sério. Trago tudo o que precisas antecipadamente. Caso contrário, ligas à Joy. Ligas à Anne, à velha Colleen ao fundo do corredor, qualquer pessoa.
— Sei o que fazer.
— E manda-me uma mensagem se precisares de mim. Desta vez tenta não te esqueceres do número.
68
Um dia na abadia
Os matizes no deserto de Sonora eram a areia da praia em baixo e o céu azul em cima, o ar estava quente, ainda que fosse já noite, e as flores brancas agitavam-se na ponta das espirais e dos braços dos catos saguaro gigantes. Spencer viu qualquer coisa na paisagem para lá da desolação, qualquer coisa de envolvente, de sagrado e transcendente. Talvez esse não fosse um mau sítio para encontrar um rapaz despedaçado chamado Jerry. Afrouxou a gravata enquanto conduzia e tirou o casaco do fato, arregaçando as mangas e abrindo a janela. Um Gabe sem camisa dormia no lugar do passageiro, sem prestar atenção ao deserto.
O pequeno convento agostiniano chamado Asunción era constituído por uma pequena igreja em tijolo e pelos edifícios de um mosteiro do século XVI, dispostos em torno de um pátio, cuja entrada se fazia através de uma passagem oval. Ficava na região noroeste do México, a sessenta quilómetros da fronteira com os Estados Unidos, quatro mil quilómetros afastado de Lily. A abadessa, uma pequena mulher com um véu preto na cabeça e uma inflamação aguda no olho, bem como duas austeras madres superioras cobertas de preto vieram ter com eles à porta. Afinal, falavam inglês bastante bem.
Nenhuma das freiras ficou impressionada com as credenciais de Spencer, fosse como detetive ou como católico — principalmente como católico, pensou ele.
Enquanto fazia um crítico sinal da cruz sobre ele e Gabe, a diminuta abadessa recusou-se a dar-lhe qualquer informação sobre o estado de Jerry Clark, exceto para lhe dizer que Hobbit era o único nome pelo qual respondia agora.
— Não lhe respondemos a si, detetive — disse a Madre Agnes, sem medo dele.
Spencer calou-se. Disseram-lhes que já era tarde e que «de maneira alguma» Jerry seria perturbado. As freiras voltariam a analisar o assunto de manhã. Spencer e Gabe foram levados para os seus aposentos, com uma rapidez deliberada, especialmente quando passavam por duas portas duplas abertas, que davam para uma sala de jantar onde trinta e tal jovens freiras partiam o pão sentadas em longas mesas. As freiras olharam para cima, «indelicadamente inquisitórias», sussurrou Gabe, e a madre superiora disse:
— Não vamos perder tempo. — Eles despacharam-se a chegar aos quartos, onde chouriço com feijões e arroz e um pouco de tequila e chá lhes foram depois trazidos. Havia muito chouriço, quase nada de tequila.
— Spence, sentes alguma coisa no ar? — perguntou Gabe, acabando o chá, depois de toda a outra comida e bebida ter acabado.
— Não, o quê?
— Não sei. O ar eroticamente carregado pela respiração de três dúzias de raparigas que não veem um homem, para não falar em dois homens, há anos? — Gabe sorriu. — A não ser os que aqui estão internados.
— Acho que estás a blasfemar num convento sagrado — disse Spencer, devolvendo o sorriso. — Vai dormir. Temos um longo dia pela frente.
— Vai ser uma longa noite — comentou Gabe.
A noite passou devagar, na verdade, com Spencer a ansiar por mais tequila ao longo das solitárias horas escuras. Na manhã seguinte, quando se reuniram com a abadessa e as madres superioras, a primeira coisa a sair da boca de Gabe foi:
— Então, o que se passa com ele?
— Gostávamos de ir vê-lo agora — disse Spencer, menos agressivamente.
As freiras não responderam, olhando o detetive McGill de soslaio. Spencer, com espasmos de apreensão repentina em relação às freiras devido à sua rígida infância católica, hesitou e acabou por dizer, com as mãos colocadas em posição de oração:
— Abadessa, isto é muito sério. Eu sei que o vosso paciente está doente, mas está em jogo a vida de uma rapariga. Pensamos que ele talvez possa dar-nos alguma informação que nos ajude a encontrá-la.
A abadessa não se comoveu.
— A rapariga acabou de desaparecer?
— Sim! — exclamou Spencer, pensando que talvez isso a ajudasse a perceber a urgência daquilo, mas, em vez disso, a abadessa respondeu:
— Então pronto. Ele não sai do quarto há quatro anos, exceto para apanhar ar no pátio. Não sabe de nada.
Soltando um suspiro, Spencer tentou outra vez.
— Esta rapariga era alguém que ele conhecia há cinco anos.
— Ele não teve visitas, exceto os pais pelo Natal. Não falou ao telefone, mal falou com os médicos. Raramente fala na experiência que o trouxe até nós ou sobre a sua vida passada. Está à procura no sítio errado, detetive. Não encontrará respostas aqui.
Spencer espicaçou, incitou, tentou persuadi-la, e foi ficando cada vez mais frustrado, até que finalmente teve de convencê-la com a ameaça de uma ordem de tribunal para tirar Hobbit do convento e transferi-lo para um hospital em Nogales, onde ficaria sob a jurisdição da polícia do Estado do Arizona. Só então a abadessa cedeu, mas não sem antes ter imposto a Spencer uma série de ordens estritas para não o transtornar («Ele está a fazer grandes progressos»). Na subida para o terceiro andar, Gabe sussurrou:
— O’Malley, é melhor que consigamos as respostas que precisamos de ter dele. Não aguento outra noite aqui, este sítio está à beira de me corromper. Sou demasiado pecador e, para além disso, não ponho um pé numa igreja há dez anos.
— Vieste ao sítio certo para pedir perdão — respondeu Spencer num sussurro. — Se fosse a ti, começava já. Dez anos é muito tempo. — Ele não punha o pé numa igreja há vinte.
No terceiro andar, em frente de uma tela sem pintura, a abadessa parou.
— Detetive, ele é uma alma à beira da queda.
Não somos todos? Spencer interessou-se perifericamente pela tela. Lily poderia fazer maravilhas com ela. Porque teria sido deliberadamente deixada em branco e depois pendurada na parede, como se fosse arte? Porque tinha sido deixada em banco? Para que ele lhe pudesse dar conteúdo?
— O Jerry já não tem proteções. Está a descoberto, não tem defesas. Arrancaram-lhas todas. Recorremos a orações e a palavras tranquilizadoras para o trazermos do abismo. Mas ele paira por cima dele todo o dia. Já nem sabe quem é. Passa os dias catatónico ou num profundo estado de pânico. Imagina que está a ser morto, queimado vivo, vê serpentes venenosas no quarto, víboras na cama, escorpiões nas paredes. Tudo o assusta terrivelmente. Às vezes, quando vê pessoas novas — médicos, assistentes sociais, até freiras —, isso desencadeia uma sequência de memória, com detalhes bem vivos do seu trauma original. É por isso que normalmente não autorizamos visitas. Pode levar semanas ou meses a recuperar dos flashbacks. Ele flagela-se com os seus terrores. Confortamo-lo com as orações.
— E como tem funcionado, abadessa? Já passaram cinco anos. Curaram-lhe o ego?
— É um processo, detetive.
— Um longo processo, imagino. — Os olhos de Spencer estavam postos na tela branca.
— Ainda não recuperou. Talvez nunca recupere. Digo-lhe isto porque ele não é muito falador e fica afetado pelas mais pequenas coisas.
— Vou entrar consigo, preciso que tenha calma com ele. Detetive, está a ouvir-me?
— Entendido, abadessa. — Spencer virou-se para ela. — Ouvi todas as palavras que disse e serei tão tranquilizador quanto me for possível. Mas tenho de ir falar com ele sozinho.
— Ele precisa de mim lá dentro.
— Terá de passar sem si durante cinco minutos. Se falar comigo, não precisarei de mais de cinco minutos do seu tempo. A propósito, há por aqui receção de rede telefónica móvel?
— Rede telefónica móvel? — disse ela, como se ele perguntasse se havia receção de Lúcifer.
Spencer suspirou. Até o seu beep estava a funcionar apenas intermitentemente. Não tinha tido notícias de Lily desde que chegara a Tucson cedo na véspera. Esperava que tudo estivesse bem.
O quarto despojado era pequeno e dava para as montanhas que, por uma qualquer razão, não eram majestosas, mas sim monásticas. Uma cama de linho branco, um candeeiro branco, um tapete de tecido, uma cadeira ao pé da janela. Na cadeira estava um homem pequeno e emagrecido sentado, que parecia ainda mais pequeno porque não tinha pernas. Apesar de ter supostamente apenas vinte e seis anos, ainda um rapaz, Spencer distraiu-se pelo seu ar mais velho, mais envelhecido. De repente, Spencer começou a desejar não ter deixado Lily sozinha.
69
Um anarquista em ação
Lily tinha saído de tarde para comprar cerejas. Sentia-se, na verdade, com vontade de comer alguma coisa. Não havia que enganar: o seu sangue até podia estar parecido com xarope, mas Lily sentia-se melhor sem quimioterapia. Acenou aos patrulhas sentados do lado de fora do seu prédio, e, lentamente, arrastou-se pelas escadas acima até ao seu apartamento. Lily pensou que era definitivamente tempo de mudar de casa. As escadas cheiravam mal. Mil e quinhentos dólares por mês e o prédio cheirava pior do que nunca, como se pessoas sem-abrigo que haviam vivido um dia na rua o ocupassem agora sem nenhum outro sítio para onde ir. O cheiro piorou, conforme subia as escadas, como se tivesse trazido Tompkins Square Park para casa.
Quando abriu a porta do seu apartamento, o cheiro chegou-lhe ao nariz com toda a força. Expirou de nojo, engasgou-se e tentou gritar. O homem com olhos de vidro estava sentado no sofá dela, a sua imundice pousada sobre as mantas dela, sobre as suas almofadas.
Lily virou-se instantaneamente para desatar a correr, a correr, mas ele levantou-se num salto, rápido e ágil, e saltou sobre ela, cobrindo-lhe a boca com a mão. A cara dele, o seu nariz inchado e partido, os seus dementes olhos de vidro junto dos dela. Tinha palavras tatuadas a azul sobre as sobrancelhas. Agora que estava tão perto dele, ela conseguia lê-las.
Ariana numa sobrancelha, Honra na outra. Foice e martelo escrito a tinta sobre a sua garganta, Honra Ariana na cara. Arrastou-a para dentro e trancou a porta. O fedor era devastador, como se mil homens sujos saltassem sobre ela e, com uma pequena satisfação inconsciente, ela vomitou-lhe sobre a mão imunda. Ele largou-a, então, visivelmente enojado... por causa dela! Empurrou-a para a cozinha, onde ela se limpou o melhor que conseguiu. Ele limpou-se com um guardanapo de papel e voltou a sentar-se no sofá. Pronto, lá se foi o sofá. Os olhos dele estavam fixos nela. Lily lá conseguiu falar. Disse:
— O que quer?
Ele continuou sentado, sem se mexer, rígido, com os seus olhos de cristal gelado postos nela como miras em fogo. O que poderia esta pessoa ter a ver com a sua amiga divertida, que gostava de se vestir e arranjar, que escolhia o perfume pela leveza da sua fragância? Ele carregava o seu cheiro horrendo como se fosse uma maldição.
Ele falou. Perguntou:
— Onde está a Amy? — numa voz americana gutural. Ela percebeu o que ele disse, ainda que ele enrolasse algumas letras, e o s soasse como um zumbido e o a parecesse um latido. Falava como se tivesse alguma coisa na boca, um trapo sujo, ou assim.
— O quê? — Era um arfar, não uma resposta. A pergunta dele ressoou como tambores no coração dela.
— Aunde é qhue não m’echplique baim? Aunde echtá a Amy?
Ela gaguejou.
— Não sei. — Pensámos que você saberia. Como pode você perguntar-me uma coisa dessas? Se você não sabe, quem saberá?
Ele suspirou teatralmente. Inclinou-se para a frente e olhou para ela com olhos mortos. — Aouve quom atenchão — disse ele, e falou devagar para que Lily percebesse cada palavra. — Gosto que tenhas deixado as coisas dela na porta dela — apontou para a pequena placa gravada de Amy que ainda ali estava pendurada, ainda que os olhos que Lily não acompanhassem o seu dedo espetado —, mas transformaste o quarto dela no teu espaço de trabalho. Toda esta arte — tão trocista — que tens andado a vender nas ruas como uma vagabunda foi feita aqui. Agora já sei. Estás a usar o quarto dela. Como se ela não voltasse. Por isso tens de saber alguma coisa. Onde está a Amy?
— Quem é você? — Como entrou ele aqui? Os polícias estavam à porta! Deve ter entrado pela porta das traseiras, pela cave.
— Quando me viste na outra noite no parque, reconheceste-me. A Amy deve ter-te falado de mim. Sou o Milo. Agora o que é que lhe fizeste?
Ela estava encurralada contra a parede oposta a ele, ao lado da porta de Amy, ao lado da placa de Amy.
— Estamos há mais de um ano à procura dela — acabou ela por dizer.
— Não me mintas. Eu sei o que têm feito. Não têm estado à procura dela. Ficaste doente, tens andado a tratar-te. Conseguiste dinheiro algures, tens andado a gastá-lo, a investi-lo com Smith Barney. Tens andado a montar um teatrinho com esse teu detetive, como se ele fosse capaz de descobrir a verdade do seu próprio cu. Mas estou farto de brincar. A brincadeira acabou. Vais dizer-me agora onde está a Amy.
— Não sei! — a voz de Lily saiu aguda e estridente. Lançou um olhar aos cinquenta relógios dispostos na parede por cima da cabeça dele. Que horas seriam no Arizona? Aqui era já final da tarde.
Milo riu-se, num som áspero e engasgado.
— Sim! É muito artístico da tua parte teres relógios a marcar-te o tempo. E pela tua cara, diria que não te sobra muito. Talvez queiras comprar mais alguns relógios e atrasá-los, torná-los mais lentos, ver se consegues mais um par de minutos.
Os olhos de Lily mediram a distância até à porta.
— Ele não vem. À sexta-feira tira folga de ti. Esta noite vai beber, levando a sua amante ao colo até Soho. — Milo sorriu, mostrando os seus dentes podres. — Também ando a segui-lo. Ando a seguir-te, e a ele. Mas deixa-me que te diga uma coisa, não estou interessado nele, ou em ti. Só estou interessado em duas pessoas. Uma delas é a Amy. Sabes quem é a outra?
Lily abanou a cabeça, afundando-se até ao chão, antes de conseguir ouvir o nome da outra.
— A outra é o teu irmão, o muito honrado congressista Andrew Quinn.
Ela soltou um gemido. Meu Deus. Onde estás tu, Spencer, onde estás tu?
— Achas que o teu irmão sabe onde está a Amy? Porque se ele souber, tu também sabes.
— Ele não sabe. E não me diz nada. — Ele não me disse nada, a Amy não me disse nada. Que farei eu? Spencer, Spencer.
Lily fez a única coisa que podia. Desmaiou.
Quando voltou a si, estava no chão de madeira e ele continuava sentado no sofá a olhar para ela sem interesse.
— Queres um copo de água? — perguntou. — Oferecia-te umas drogas, mas temo que a única coisa que tenho não fosse fazer bem nenhum ao teu estado, ainda que faça muito bem ao meu. — As suas mangas em farrapos estavam arregaçadas. Lily desejou que a luz da tarde não brilhasse tanto, deixando ver as marcas negras e azuis do vício no braço dele. O outro braço estava coberto por um mosaico de símbolos tatuados, suásticas negras misturadas com crescentes islâmicos verdes e com foices e martelos vermelhos.
Tinha um elástico já amarrado à parte superior do braço e a agulha nas mãos.
— As agulhas não te fazem impressão, pois não, Lily? Provavelmente não, já que são as agulhas que te andam a afastar da morte. — Milo mostrou os dentes outra vez. — Ainda que não afastem muito. Está só no corredor.
A agulha entrou na carne, ele desceu o pistão com o polegar. Quase instantaneamente, os seus olhos ficaram turvos e a cabeça descaiu para trás. Da boca começou a gorgolejar.
Talvez vá ter uma overdose aqui, pensou Lily, com o pânico a crescer dentro dela. Enquanto a cabeça dele continuava caída, ela gatinhou até ao telefone e escondeu-o por baixo da sua fina blusa. Continuou a arrastar-se até à porta, mas a cabeça dele voltou acima, com os olhos meio fechados, e ela congelou. Então carregou no botão de chamadas e tateou o número do beep de Spencer. Esperou um segundo, com os dedos sobre o microfone para abafar a voz de Spencer a dizer-lhe para deixar um número e então marcou 9-1-1-9-1-1-9-1-1.
Decidiu telefonar para as urgências. Foi capaz de marcar o número, mas não de falar, porque Milo estava agora a olhar furioso para ela.
— O que estás a fazer?
Carregou no botão para desligar e continuou no chão.
— Já lhe disse, não sei onde está a Amy. Pensa que se soubesse não a teríamos já encontrado?
Milo voltou a suspirar, mas parecia de novo contente. O seu corpo estava tão descontraído e atordoado como a sua cara destruída.
— O que quer? — murmurou ela.
— O quê? A Amy nunca te falou no seu melhor amigo, Lily?
— Quem é você?
— Nós somos a revolução, a Amy e eu — disse Milo, num tom ridículo de triunfo. — Viemos alterar a ordem das coisas.
O telefone tocou. Tocou por baixo da blusa de Lily, onde estava escondido. Spencer!
Milo ergueu as sobrancelhas. Os seus olhos de vidro estreitaram-se, parecia um espetro, branco como um fantasma, definitivamente abatido, com cicatrizes, tatuado. Parecia que tinha vindo do mundo dos infernos buscar Lily, como se fosse um cavaleiro do apocalipse. Lily não conseguia ver a identificação da chamada. Limitou-se a carregar no botão para atender e gritou:
— Spencer, ajuda-me...
Milo levantou-se devagar, como se estivesse num sonho, e acertou-lhe na cara, deixando-a inconsciente.
70
Massacre Grounds
A abadessa tinha razão, Hobbit não queria falar. Sentou-se ao pé da janela sem fazer som algum, sem sequer deitar um olhar sub-reptício na direção de Spencer ou Gabe. Eles sentaram-se na cama para parecerem menos ameaçadores, mas parecia que o intimidavam ainda mais, pois o seu corpo começou a estremecer em espasmos até eles se levantarem.
Por isso ficaram de pé, e ele sentado, mais calmo, a olhar pela janela. Quando lhe perguntaram sobre Amy McFadden, pestanejou mas não respondeu. Quando lhe perguntaram sobre Lindsey Kiplinger, os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas não respondeu. Quando lhe perguntaram sobre Milo, começou a tremer. Quando lhe mostraram o retrato de Milo, começou a chorar.
Finalmente! Alguém que reconhecia Milo! Lily era tão esperta.
Mas Hobbit chorava silenciosamente. Spencer disse-lhe que não se iriam embora até terem a informação de que precisavam.
— Estamos aqui porque a Amy desapareceu, Hobbit. As suspeitas recaíram neste homem, conhecido por nós apenas como Milo. O que queremos que nos diga é quem é o Milo e que relação tinha com a Amy. — Isto era a coisa mais simples que Spencer podia pedir ao homem destroçado sentado à janela. Esperou pela resposta, com o silêncio a prolongar-se.
Gabe não tinha paciência, fervia de frustração. Queria conseguir as respostas de Hobbit com ameaças e ir-se embora. Gabe lidava com demasiada gente na brigada de homicídios com quem nada funcionava a não ser a ameaça. Mas Spencer sabia que todos os interrogatórios eram diferentes. Que era preciso identificar-se com a outra pessoa, e se por vezes isso significasse ficar de pé num convento até a pessoa sentada estar suficientemente confortável para falar, então assim seria.
Gabe e Spencer andavam de um lado para outro. Isso não agradava a Hobbit. Spencer sentou-se no chão, em posição de lótus, ao pé da cadeira dele. Hobbit pareceu gostar um pouco mais disso.
Com as mãos em forma de tenda, sentado de pernas cruzadas, Spencer voltou a perguntar:
— Quem é o Milo, Jerry?
Hobbit proferiu a primeira frase coerente do dia.
— Hobbit é o meu nome.
— Quem é o Milo, Hobbit?
Passaram uns longos cinco minutos antes que Hobbit respondesse.
— A igreja disse que o Milo era o Anticristo.
— A Igreja Nativa Americana?
— O Milo foi expulso.
— Porque é que a igreja chamava o Milo de Anticristo?
Silêncio.
Hobbit tinha-se fechado em copas. Evitava olhá-los nos olhos.
— Não sabia que a igreja seguia preceitos cristãos — disse Spencer, pressionando calmamente as pontas dos seus dedos umas contra as outras.
Passaram-se sete minutos. Spencer sentiu-se a ficar agitado por dentro. Qualquer coisa se preparava nele, um pequeno estremecer a transformar-se, como uma bola de neve, num grito na sua garganta. DESEMBUCHA!
Como se obedecendo aos pensamentos de Spencer, Hobbit disse em voz baixa:
— Sim, segue os preceitos cristãos. É por isso que Asunción me acolheu. A igreja lê a Bíblia, faz chamamentos a Cristo. Comunga. Só não o faz da mesma forma que vocês, católicos.
Ah. Surpreendentemente eloquente quando obrigado a falar. Com ego ou sem ele, com psicose ou sem ela, a linguagem, tal como andar de bicicleta, não foi esquecida.
— De que forma o faz, então?
Depois de uma longa pausa, Hobbit disse:
— De uma forma diferente.
— Em forma de peiote, talvez? — disse Gabe, que nem estava sentado no chão, nem tinha os dedos em forma de tenda. Em vez disso, fechava e abria os punhos. Spencer fez-lhe um gesto para se acalmar.
— O peiote — disse Hobbit altivamente —, é a encarnação de Deus. Tal como Cristo tomou a forma de um homem e ressuscitou depois da morte como o próprio Deus, na crença da Nativa Deus reencarnou como peiote. Quando tomamos peiote, recebemos Deus. Não é suposto fazê-lo por causa das visões. Fazemo-lo para nos purificarmos, como uma forma de comunhão, para nos unirmos a Deus. Através do peiote, recebemos o corpo de Cristo.
— Hobbit, Hobbit — disse Spencer, também ele cada vez mais impaciente. — Não preciso da sua blasfémia, ou que me explique como as drogas que alteram o estado de consciência são agora a Eucaristia. O que preciso é...
— Estou a explicar-lhe porque é que o xamã de Nogales disse que o Milo era o Anticristo. Disse que a única crença de Milo era a não-crença. A rejeição da crença. Disse que o Milo era um niilista. — Hobbit sorriu. — E ele nem sequer nos conhecia.
— Como é que você e o Milo se conheceram?
— Na escola secundária.
— Como se chamava ele antes de ser Milo?
— O nome dele tinha sido Ben Abrams. Mas o Ben Abrams morreu quando tomámos a nossa nova forma, e o Milo nasceu, tal como o Jerry Clark morreu e o Hobbit nasceu.
Spencer e Gabe trocaram um olhar. O nome Ben Abrams era de alguma forma familiar? A sua cabeça girava. Desejou ter rede de telemóvel para poder procurar o nome antes de continuar o interrogatório.
— Tinha a certeza de que o Milo estava... — e parou aí, mas Spencer esperou que fosse apenas uma pausa, e assim foi, porque o rapaz disse outra palavra: — Morto.
— Porque pensava isso?
— Os ferimentos dele. — Hobbit encolheu os ombros.
Ferimentos, pensou Spencer. Teriam de chegar aí.
— Bem, não está morto. E então e ele e a Amy?
— Ele e a Amy eram o centro de tudo.
— O centro de quê?
— Do nosso pequeno bando de irmãos e irmãs radicais. Saímos para ver o mundo que esperávamos conseguir mudar. — Não quis dizer mais nada.
— Tanto a Amy quanto o Milo?
— A Amy tanto quanto o Milo.
— Estavam juntos?
— Sim.
Spencer voltou a mostrar-lhe o retrato de Milo.
— Está a dizer que este tipo destruído, com cara de louco, e a Amy, uma rapariga de classe média normal e atraente estavam juntos?
— Ele era o nosso xamã. Nem sempre teve esse aspeto, detetive. O Milo foi em tempos soberbo.
— Com isto tudo latente?
— Ninguém o viu. Muito menos a Amy. Estava completamente encantada por ele. A sua vida familiar era um desastre, ela estava perdida, sem se conseguir concentrar, sem saber de nada. Era mais nova do que nós, penso eu. E o Milo puxou bem por ela. Trouxe-a para debaixo da sua alçada.
Hobbit estava a ficar irrequieto. Spencer adivinhou que Milo fosse assim com toda a gente e que Jerry Clark também tinha sido bastante dominado por ele.
— Hobbit, o que faziam da vossa vida quando andavam na estrada?
— Quando o Milo dizia «vão ali», nós íamos. Quando dizia «ouçam Bane», nós ouvíamos Bane. Quando disse «adiram ao ATWA - Air, Trees, Water, Animals», nós aderimos ao ATWA. Juntem-se à American Nihilist Underground Society, nós juntámo-nos. Quando disse para estudarmos os Niilistas Russos, nós estudámos. Leiam sobre os Comunistas Libertários, sobre Pentii Linkola, sobre humanistas seculares, nós lemos. Ele disse para aderirmos à Igreja Nativa Americana, nós aderimos à Igreja Nativa Americana. Disse para irmos para Nogales, fomos para Nogales. Éramos livres, jovens, a explorar, odiávamos tudo o que a moral burguesa absolutista nos impingia e rejeitávamos essa vida. Acreditávamos noutras coisas. E seguíamos o Milo.
— ATWA — disse Spencer devagar. — Isso não é o grupo do Charles Manson no Death Valley?
— E American Nihilist Underground Society — disse Gabe —, isso não dá ANUS?
— Como queiras, meu. Estávamos a experimentar. — Sentindo a troça, Hobbit calou-se e recusou-se a responder a mais perguntas.
Spencer franziu o sobrolho. Levantando-se, sentou-se na cama de lençóis brancos. Hobbit estremeceu, mas desta vez Spencer não mudou de lugar.
— Jerry — disse —, eu sei que não quer que o trate por esse nome, e sei que não quer que me sente na sua cama. Mas a minha paciência esgotou-se. Abra a boca e fale comigo. Não saio daqui até saber tudo. Aderiu à igreja para poder adorar peiote?
Hobbit abanou a cabeça descontente.
— Não diga peiote como se estivesse a cuspir. Já lhe disse, o peiote é instrumental para a igreja. É o deus da igreja.
— Pois. Não tem muito a ver com o Deus verdadeiro, pois não?
— Tem, sim. Aproximamo-nos de Cristo com...
— Qual Cristo, Hobbit? O Cristo não ensina o niilismo, que parece ser o que aprendeu tão bem.
— O que sabe você de niilismo?
— Como católico falhado, sei qualquer coisa sobre Cristo. Ele não ensinou que a vida não fazia sentido e que os valores humanos não valiam nada. Ele não era um cético que negava toda a existência.
— O que ele fez, no entanto, foi apelar à rejeição das práticas morais e religiosas daquele tempo — contrapôs Hobbit.
— Sim, através de uma aplicação mais rigorosa da moral pessoal, não menos rigorosa! — Spencer quase que tinha vontade de rir perante o absurdo de tudo aquilo.
Muito enervado, Hobbit falou.
— Queríamos alcançar um novo nível de consciência.
— Pare com isto, Hobbit, pare com esse disparate! — Era Gabe a falar. — Niilismo, ATWA, ANUS, Bane... poupe-nos a essas tretas. Estava no meio de uma viagem de ácidos. Dois anos a vaguear pelo país, a levantar-se de manhã para nada de bom. Não somos as suas freirinhas crentes e tolerantes. O que aconteceu na sua última viagem com peiote, quando matou Lindsey?
As contrações no braço e no tronco de Hobbit transformaram-se numa convulsão. Os olhos rolaram nas órbitas.
Spencer lançou um olhar perturbado a Gabe. Disse em voz baixa:
— Hobbit, foram todos expulsos da igreja com o Milo?
— Estivemos muito tempo com os Comanches de Oklahoma. Sessenta, setenta pessoas. Sentámo-nos à volta da fogueira e partilhámos o peiote, e a quantidade dada a cada pessoa era pequena. Não era suficiente para o Milo. Por isso teve a bela ideia de que devíamos ir até Nogales, no Arizona, e fazer a nossa própria busca do peiote, onde encontraríamos todos os catos que precisaríamos para nós os seis.
— O que me está a dizer? — disse Spencer. — O peiote não é heroína. — Nem álcool. — Não vicia.
— Não... — Hobbit fez uma pausa. — Mas... toda a gente é diferente. O cato ajuda a ver o que está dentro de nós, mas não conseguimos ver por nós mesmos. O mara’akame, ou o xamã, disse que as visões que temos quando tomamos peiote são visões que trazemos connosco. E essas visões são bem impressionantes. Ficamos todos apaixonados por nós próprios, vemos coisas belas, magníficas, a nós mesmos como águias, como golfinhos, como leopardos. Se nunca tomou, recomendo vivamente.
Spencer revirou os olhos em desespero.
— Sabe que mais? Obrigado pelo conselho. Mas já tenho todas as visões que consigo aguentar de momento. Continue. Foram para Nogales, e depois?
— Foi aí que o Milo foi expulso da igreja. Queria começar a busca imediatamente e queria saber para onde ir, mas o mara’akame disse-lhe que nem toda a gente podia ir, que nem toda a gente merecia um cato acabado de encontrar. Então o xamã, que estava em contato com Tatewari, ou o grande pai fogo, e que parecia sábio e calmo, disse que tínhamos de esperar, mas o Milo não concordou. Queria ir no dia seguinte. Foi aí que o xamã disse que ele não merecia. Disse que as visões do Milo não tinham nada a ver com a unificação com Deus, com encontrar a sua vida. Não confiava no que o Milo via dentro de si. Pensava que o que estava dentro do Milo não devia ser trazido para fora. Disse que o Milo estava a corromper o peiote, que não estava a dar corpo ao coração do Criador. Disse que o desprezo por toda a humanidade dentro do Milo não tinha lugar na Igreja Nativa Americana.
Spencer olhou para Jerry austeramente.
— O Milo desprezava toda a humanidade?
Hobbit não respondeu.
— Disseram-nos a todos para nos irmos embora, que não haveria busca ao peiote, que não voltávamos a dançar. — Estava perturbado enquanto falava. — O Milo ficou furioso e, num ataque de fúria, obrigou o xamã a levar-nos ao deserto de madrugada para ir em busca de peiote.
— Obrigou o xamã?
— Sim. Levou-o para o México contra a sua vontade. Como é que se chama a isso?
— Rapto agravado.
— Pois. Bem me parecia.
— A polícia envolveu-se?
— Não sei. É a primeira vez que falo nisto. Não sei se se envolveram. Não me lembro de tudo o que aconteceu antes, de nada do que aconteceu depois. As irmãs não lhe disseram há quanto tempo aqui estou?
— Cinco anos.
— Sim. É apenas o princípio da minha penitência, detetive.
— Penitência?
— Ouça, éramos jovens e estúpidos e, infelizmente, cometemos alguns erros irreversíveis. Envolvemo-nos tanto nas nossas filosofias, nas nossas viagens anárquicas, nas coisas que as drogas nos ajudavam a ver mais claras, melhor. E então, por um capricho depravado e impiedoso do nosso livre arbítrio, obrigámos o xamã a ajudar-nos a encontrar peiote no México. Pensávamos que a igreja nos devia isso. Pensávamos que conseguíamos lidar com o peiote. O Milo disse-nos que conseguíamos. Ele era muito convincente, o Milo, era o nosso mara’akame. Ele era o nosso peiote. Era capaz de convencer os anjos a sair do céu. Por isso pegámos no xamã e fomos de carro até ao planalto mexicano do Noroeste, não muito longe daqui, e passámos o fim da tarde em busca de peiote. Alguma vez viram um peiote?
— Não. — Spencer tinha visto outras coisas, no entanto: excelente e raro uísque de malte Speyside.
— É impressionante, quando se encontra. A alguns quilómetros a sul de Tubutama, caminhámos pelas árvores nuas e pelos arbustos e, passada uma meia hora, encontrámos um aglomerado de centenas de catos. Como se fossem pequenas abóboras verde-claras, cada uma com uma florzinha branca em cima. É uma bela visão. O xamã disse para levarmos só o que conseguíssemos transportar com as nossas mãos, só uns quantos. Mas trouxemos sacos e conseguimos carregar tudo. Levámos todos. O xamã disse que estávamos a perverter, a deturpar a vontade de Deus. — Jerry baixou a cabeça. Já não olhava pela janela, mas para as suas mãos contorcidas. — Depois de conseguirmos o que queríamos, deixámos o xamã partir. Milo queria matá-lo, mas Amy convenceu-o a não o fazer. O xamã avisou-nos, quando foi solto, dizendo: «Oh, a arrogância do homem! Acham que podem controlar o incontrolável, as forças que não compreendem. Mas serão elas a controlar-vos.»
Spencer sentiu um arrepio na espinha naquele dia de calor. Desejou uma brisa empoeirada dos prados de arbustos da pampa.
— Continuámos para norte, para as Montanhas Superstition, uma viagem de quatro horas...
Spencer interrompeu-o.
— Porquê ir tão longe? Porquê ir até Phoenix?
Hobbit sorriu. Os seus dentes eram negros.
— Por superstição, detetive. Tomámos a via rápida Superstition, entrámos nas montanhas, à noite, ao longo do trilho de terra batida chamado Massacre Grounds e fizemos a nossa própria dança do peiote toda a noite. Fizemos uma fogueira, partimos o peiote e moemo-lo, e recolhemos o líquido com canecas de barro. Entoámos cânticos, cantámos, dançámos e rezámos. Tocámos os tambores e as cabaças, confessámos os nossos pecados, fizemos o culto... mas agora que penso nisso, houve um momento em que todos nos apercebemos de que passáramos o ponto sem retorno e, quando tentámos voltar, era demasiado tarde.
71
A Rapariga do Cancro e o Revolucionário
Quando Lily voltou a si, estava num sítio húmido e frio, e doíam-lhe os membros. Estava sentada sem outro apoio a não ser a parede de cimento da cave contra a qual estava encostada. Milo estava sentado no chão do outro lado. Estavam na entrada, e a distância entre eles era de apenas alguns centímetros. Devia ter havido uma fuga de um cano, ou qualquer coisa igualmente desagradável, porque havia água estagnada acumulada por baixo deles. O chão era irregular, estavam numa cavidade. Ele podia tê-los instalado uns centímetros acima, onde o cimento estava molhado, mas não havia poças. Milo, no entanto, não parecia reparar. A expressão na sua cara tatuada e manchada era de distanciamento em relação a este mundo.
Escorria qualquer coisa da boca dela. Lily limpou-a. Era sangue do sítio onde ele lhe tinha batido. Ela ainda estava presa a este mundo.
— O que vou eu fazer contigo, Lily? Estavas em casa, estávamos sentados a conversar, e olha o que fizeste... chamar a polícia. Agora estás molhada, desconfortável. E a sangrar.
— Tenho de ir para o hospital — murmurou ela.
— Oh, eu sei! — Milo não disse nada depois disso, ficou a olhar para ela. — Mas acho que te vou levar mas é a ver o teu irmão. Não achas? Tens um telemóvel? Devíamos telefonar-lhe. Dizer-lhe que estás em apuros. Dizer-lhe que foste raptada pela Amy. A ver o que ele acha disso.
Lily lambeu o lábio. O sangue era espesso.
— Tss, tss — cacarejou ele, soando um pouco a falso. — Pensas que toda a gente à tua volta é cega. Mas até as paredes têm ouvidos. A Amy falou-me da tua família. Uma das tuas irmãs está sempre a trabalhar, a outra demasiado ocupada com os seus rebentos. A tua mãe não sabe quem tu és. A tua avó não tem nada para dar em troca. E assim chegamos ao teu irmão.
Amy, a Amy dela, falou sobre Lily com esta pessoa. O sentimento de violação de Lily estava agora completo.
— O que quer? Dinheiro? Eu dou-lhe dinheiro. Quanto quer?
Milo riu-se sem som.
— Eu e a Amy somos revolucionários, Lily. Os revolucionários não se interessam por dinheiro. Alguma vez leste um livro chamado Catequismo de um revolucionário, do niilista russo Mikhail Bakunin?
Ela abanou a cabeça. Estavam sentados num esgoto! Do que diabo estava ele a falar? Devia ser a heroína a falar por ele. Quando é que o efeito ia passar? E quando é que o seu lábio pararia de sangrar? Voltou a lambê-lo. Nunca, era isso. Nunca. Até que todo o sangue tivesse corrido, tombando gota a gota no chão imundo da cave.
— Bakunin era a antítese de Marx, de Lenine, do Czarismo, do Imperialismo, do Colonialismo, do Islamismo, do Fundamentalismo, de todos os ismos. Odiava-os a todos por causa das correntes que impunham ao homem. No seu livro, Bakunin escreveu que o revolucionário é um homem condenado. Não tem interesses privados, negócios, propriedade, nem sequer um nome que seja seu. É por isso que passei a ser Milo, em vez de quem era.
— Quem era antes?
— Todo o seu ser é devorado por um propósito, um pensamento, uma paixão: a revolução. Alma e coração, não apenas uma palavra mas um ato, cortou tudo o que o prendia à ordem social e a todo o mundo civilizado, com as leis, as boas maneiras, as convenções, a moral desse mundo. Ele é o seu inimigo impiedoso e continua a habitá-lo com um único propósito: destruí-lo. — continuou Milo.
Lily endireitou-se. Havia um matiz na voz de Milo, uma postura no seu corpo que denunciava algo mais do que os narcóticos ou a condição de sem-abrigo. Que mundo queria este Milo destruir?
— É isso que eu sou — disse ele. — Queres saber quem sou? Sou eu. — Ele tossiu. — Com uma exceção.
Lily estava com medo de ouvir.
— É isso mesmo. A Amy. Ela era a minha paixão. Ela era a minha musa, o meu desejo, a minha esmola, a minha igreja. Não podia viver sem a Amy. Continuo a não poder. Para onde foi ela? Para onde desapareceu?
— De quem é esse mundo que quer destruir, Milo? — murmurou Lily. — O meu?
Ele riu-se.
— Não vales um caracol. Ia começar com qualquer coisa maior do que tu.
Lily levantou os olhos para ele, fixou-os nas suas feridas, no seu corpo ferido. — Tenho de ir para o hospital. Rebentou-me o lábio e eu não consigo parar de sangrar. O meu sangue não coagula. Estou doente.
— Acredites ou não, neste momento não se trata de ti.
— Se não for para o hospital — disse ela —, não terá nada para negociar.
— Primeiro vamos ter com o teu irmão. Talvez ele nos possa dizer onde está a Amy.
— Ele não sabe.
Milo soltou um riso oco.
— E se soubesse, não lhe ia dizer. O meu irmão amava-a...
Lily teve de parar porque Milo soltou um gemido tão excruciante que parecia vir, não da sua garganta, mas do seu baço dissecado. O grito era tão gutural que Lily, apesar da sua fraqueza, tentou arrastar-se pela água estagnada para longe da criatura capaz de emitir um som tão infeliz.
Sem pestanejar, com os olhos arregalados, Lily pronunciou umas palavras de reconciliação, mas era demasiado tarde. Milo, completamente preso ao seu mundo, precipitou-se sobre ela, com as suas mãos nojentas, agarrou-a pelo pescoço alongado e emagrecido e começou a abaná-la. — Não me mintas, Lily — disse num sibilo. — Porque dizes tantas mentiras?
Ela tentou dizer:
— Está bem...
— Eles não estavam apaixonados! — gritou ele. — Ela não estava apaixonada por ele! Ela estava apaixonada por mim, percebes? Por mim.
— Está bem... deixe... — Inaudíveis. — Eu percebo... deixe...
Milo aproximou a cara, abriu a boca, e o ângulo em que Lily estava, e a luz ténue, permitiram que, quando ele abriu a boca e uivou, ela visse que Milo não tinha língua.
Lily gritou... abafada.
— Ela não estava apaixonada por ele — disse Milo num gemido sibilante. — Ela ia matá-lo.
72
A dança peiote
— O que aconteceu durante a dança peiote, Jerry?
— O Milo passou o tempo a dizer que não estávamos a tomar o suficiente. Não sei quanto acabou ele por tomar. A dose habitual em Oklahoma era muito pequena, microgramas. Muito pequena. Mas nós tomámos... Não quero pensar nisso, nem agora nem nunca, mas depois do que se passou, preciso de acreditar que as nossas visões ficaram distorcidas porque tomámos demais. Que nos enganámos e que fizemos excessos.
— Isso é obviamente verdade. Que visões?
— Bom, de repente eu acreditava que era alto e elegante, e não pequeno e achatado como sou, e que tinha asas e sabia voar. — Ele estremeceu com violência. — Ainda agora, por vezes, ouço uma voz na cabeça que diz: «Consegues voar, Hobbit? Alguma vez quiseste? Alguma vez pensaste que eras capaz?»
— De quem é a voz?
— Do Milo.
Spencer estava petrificado, sentado na cama. Até Gabe se sentara ao lado dele.
— Pergunto-me se ele nos encheu de mescalina de propósito, se nos envenenou com mescalina...
— Porque faria ele isso? Eram amigos... — disse Spencer.
— Mas, e se estivesse farto de nós? Se quisesse que lhe saíssemos da frente, ou tivesse medo que alguém falasse sobre como levámos o xamã, ou contasse outras coisas que fazíamos? Eu sei que ele e a Amy queriam regressar a Nova Iorque, e se ele não quisesse que andássemos por aí a saber coisas sobre ele? Não sei. Mas o que aconteceu, aconteceu. A Petra cortou os pulsos e ficou a olhar para si própria a esvair-se em sangue. Ficámos todos a olhar. Vimo-la sangrar, acreditando que estava certo e que ela estava a dançar, ou a rir, e nós dançávamos enquanto ela sangrava, e ríamos. O Simon espancou-se a si próprio com as cabaças e com pedras e depois enforcou-se numa árvore de mesquite. Oscilava tão docemente, parecia uma criança num parque, num baloiço, tudo estava tão calmo e parecia tão certo, era só a corda a mexer, o seu corpo a mexer, uma suave brisa noturna, e nós continuávamos a comer peiote.
— Quem eram esses, o Simon e a Petra?
— Não sei bem. Só um casal que apanhámos em Death Valley. Ele vinha de Inglaterra. Ela da Alemanha.
— O que aconteceu à Amy?
— Não sei. Na minha memória, parece-me que está bem. Acho que a Amy não tomou tanto como nós. Parecia ainda estar controlada.
— O Milo?
— O Milo... Não posso, não, não posso. — Jerry tombou da cadeira de repente, com os cotos das suas pernas destruídas em convulsão, as mãos na cara, a cabeça a abanar, o tronco em espasmos. — Não posso, não posso. Não consigo ver! Não! Por favor.
Spencer estava no chão com ele. — Conte-me, fale comigo. Nunca mais vai voltar a falar nisto, mas fale comigo agora.
Ainda com as mãos na cara, Hobbit pronunciou umas palavras abafadas que Spencer achou ter ouvido mal.
— O Milo pegou na faca de caça que a Petra tinha usado para cortar os pulsos e cortou a língua.
Ele estava no chão de pedra castanho em convulsões.
— Mas não se ficou por aí. Baixou as calças e cortou o pénis.
Era a vez de Spencer virar costas a Jerry e de olhar, estupefacto, para a cara atónita de Gabe.
— Depois disso, o riso acabou. É assim que me lembro das coisas. O riso acabou e começaram os gritos, os gritos da Amy. O Milo não, ele estava a fazer barulhos com a garganta, jorrava-lhe um repuxo negro da boca, e eu pensei que era a língua dele a subir ao céu, enquanto a Amy tentava — nem sei — abraçá-lo, ajudá-lo, estancar o sangue? Lembro-me de a ver deitar o que sobrava do peiote nas virilhas dele. Pensei que era uma ideia engenhosa, como uma estrela-do-mar que se regenera, é suposto o peiote curar os doentes. Ela estava sem camisa, usou-a para pressionar contra a barriga dele, ele estava estendido no chão, ela inclinada por cima dele, e nós perguntámos se a dança acabou, e ela gritou qualquer coisa na minha confusão, qualquer coisa sobre levá-lo dali para fora. Acho que ela nos levou de carro pelo trilho de terra batida até à autoestrada. Ela era muito boa condutora, a Amy. E depois foi-se embora com o Milo, deixou-me a mim e à Lindsey na carrinha, algures na Highway 88.
A Lindsey e eu fomo-nos embora. Ainda estávamos completamente enfeitiçados. Subimos o sinuoso Trilho Apache para arranjar mais, para encontrar mais, não sei. Acho que estávamos perdidos. Eu acreditava que não estava numa carrinha mas sim num avião, e estávamos tão alto nas montanhas, o oxigénio era pouco e estava a afetar-me o cérebro. Pensei que eu e a Lindsey estivéssemos a voar, está a ver? Quando avancei com o carro para a beira da falésia, não tinha medo, só excitação. E voámos. Eu voei pela ravina com a Lindsey. — As mãos de Hobbit continuaram a cobrir-lhe a cara. — E cá estou eu.
Spencer não conseguia acreditar no que acabara de ouvir.
— Tem a certeza de que Milo cortou a pila? — perguntou estupefacto.
— Lembro-me de ele a atirar para a fogueira, de dançar à volta dela, de depois cair ao chão. Lembro-me de vê-la cair nas chamas e arder, e do cheiro da carne humana, pungente e amargo, um cheiro que sufocava tanto que até hoje não consigo comer carne. E depois de o ver cair. E lembro-me da Amy a tentar tirá-la da fogueira e de não conseguir... e de gritar «Ben... oh, Ben...»
— Estavam sob o efeito de um alucinogénio extremo. Podia tê-lo imaginado.
— Talvez. Mas eu nunca tinha cheirado carne humana a ser cozinhada antes. E não me imaginei a voar do desfiladeiro.
O beeper de Spencer tocou de repente, fazendo Jerry gritar. Era da esquadra. Dizia que era urgente.
73
As lições do czar russo
O que está para aí a dizer? Matá-lo? Mas Lily não conseguia dizê-lo. Engasgou-se, tossiu o medo e a dor, afundou-se no chão, expeliu sangue com o seu terror. Limpou a boca com a manga, sentiu-se mais fraca, cada vez mais fraca, mais desligada dele, como se o seu sangue vital lhe estivesse a ser esvaziado por sanguessugas. Andrew! A cabeça dela não estava a funcionar. Matar o irmão dela? De que estava ele a falar?
— Não sei do que está a falar — disse Lily. — Ele e a Amy eram...
— Não eram nada! — uivou Mio. — Nada até ao fim. Ela procurou-o, fez-se amiga dele, com um único objetivo.
Mais uma vez, toda a vida de Lily, todas as coisas em que era suposto acreditar e que aceitava como verdadeiras, estavam a ser-lhe arrancadas como camadas de pele do corpo.
— A Amy não era politizada. Não sabia nada de política. Está a falar de quê? — disse, sem forças.
— Lily, o universo é tão vasto e tu és tão pequena e mal conheces o teu próprio canto. A Amy era radicalmente, inteiramente, intensamente politizada. Era politizada na escola secundária, era politizada em Hunter, viveu o que eu vivi, acreditava em todas as coisas que eu acreditava. Era absolutamente leal. A mim. A arte era só uma artimanha, Lily. E que bela artimanha. — Milo sorriu. — Nunca reparaste que ela não sabia desenhar?
Oh, meu Deus.
O mundo na cave húmida tinha deixado de fazer sentido. A vida não estava certa e Lily não sabia como consertá-la. Limpou a boca e não conseguiu falar durante muitos minutos.
Havia coisas assim. A vida tinha-lhe mostrado estas coisas no ano anterior, coisas inimagináveis. Anda-se por aí alegremente, a acreditar numa coisa, sem sequer acreditar assim tanto, mas simplesmente a viver, sem pensar, em estado de graça e, de repente, todas as coisas que faziam sentido se estilhaçam. De repente ganhas a lotaria. De repente tens um cancro. De repente o Spencer diz-te que o único imperativo da sua vida tem sido aquilo de que nunca terias suspeitado. De repente a tua mãe tem janelas cobertas de gelo na alma. De repente a Amy desaparece e o chão continua a subir e a subir, a inchar e a inchar, e Lily sente-se cegar com as erupções, sentada com as costas contra a parede da cave. Tens de perder toda a tua vida antes de poderes ter a esperança de a recuperar.
Oh, meu Deus.
— Mas o que é que eu tinha a ver com isso? Porquê vir viver comigo? Porquê escolher-me a mim?
Milo sorriu.
— Eras o pelo-sim-pelo-não da Amy, Lily. Ela não sabia como correriam as coisas e queria-te do nosso lado. E olha quão útil te tornaste. És o meu último recurso e eu vou chegar ao teu irmão graças a ti.
— Mas então porque não o fizeram? — perguntou Lily, estupefacta. — Apanharem-no. Estavam à espera de quê?
— Quem disse que estávamos à espera? Tentámos. Tentámos fazer-lhe mal, para lhe mostrar como era ter a vida destruída por outro ser humano, como ele destruiu a nossa. Mas não conseguimos. Falhámos na nossa tentativa planeada. E depois ainda outra. E depois eu tive azar e fui-me embora um par de anos. Mas estávamos a voltar a isso, até que a Amy desapareceu.
— Milo, você é doente.
— Não, tu é que és doente, Lily.
— Esteve na prisão dois anos. Porque é que a Amy não deitou uns grãos de mescal no café dele se o queria matar? Porque não o matou ela enquanto esteve ausente? — Se Lily não estava a perceber a história toda, tinha, no entanto, a certeza de que Milo também não.
— Ela estava à espera de que eu voltasse. Estávamos nisto juntos.
— Então porque é que ela acabou com ele se o ia matar?
— Fez uma coisa estúpida — vociferou ele. — Ah, mas eu sei que jogo estás a jogar, Lily, a tentar plantar a semente da dúvida em mim. Mas foi só uma coisa estúpida, mais nada.
— Não foi estúpido, Milo — disse Lily, sentindo-se cada vez menos assustada entre o sangue que escorria, o estar a falar e o facto de não estar a perceber. Abanou a cabeça. — Não, não foi estúpido. Foi deliberado. Porque o fez ela?
— Não sei o que estás a insinuar.
— Milo, estava na prisão. E enquanto estava na prisão, não será possível que a Amy e o meu irmão se tenham apaixonado? Talvez há muito tempo, quando estava consigo, ela tenha acreditado nas mesmas coisas, mas, a certa altura, deixou de acreditar. Ela não queria matá-lo. Ela não o matou. Quando voltou a aparecer, ela acabou com ele para o proteger. Não será essa a verdade?
— Não! É MENTIRA! É mentira!
Lily lembrou-se de outra coisa que Spencer lhe tinha dito.
— Não só ela acabou com ele, como me pressionou para ir para Maui no ano passado.
— Sim, queria que lhe saísses da frente.
— É isso mesmo, Milo. Nenhum alibi. Sem ofensa, sem defesa, mas só que lhe saísse da frente. Estaria a salvo em Maui.
— Ela não te queria a salvo! Ela não queria saber de ti.
— Não é verdade — suspirou Lily. — Não é verdade.
O tempo passava apenas no sentido teórico. O tempo estava parado na cave húmida de um prédio ao pé da 9th Street, onde Lily estava sentada no cimento húmido, encostada à parede, a tentar não desmaiar, e Milo estava de cócoras do outro lado, a tamborilar com os dedos nos joelhos, a bater o ritmo do tempo que restava da vida de Lily nos seus farrapos de sem-abrigo. — Tenho de ir para o hospital, Milo — disse ela. — Não sou colateral, não sou um alibi, não sou refém. Estou doente e não lhe servirei para nada daqui a cinco minutos. Tenho de ir para o hospital, agora.
— Não vais a lado nenhum.
Havia algo errado nele. Algo mais do que a língua parcial. Lily desejou ser forte, saudável, ter sangue vermelho em vez de sangue de Beluga, ter oxigénio a bombear-lhe o cérebro em vez de xarope de ácer, desejou ser capaz de se levantar de um salto, de lhe acertar com qualquer coisa, talvez com o extintor de incêndio pendurado a três metros dela, bater-lhe com ele, e depois correr pela sua vida, aos gritos.
— O Andrew está armado, está protegido — disse ela. — Ele nunca sai de casa sozinho, tem dois agentes federais com ele o tempo todo. Nunca lhe tocará. Nunca. Não vão deixar uma pessoa como você aproximar-se e menos de quinhentos metros do meu irmão. Há um alerta a seu respeito, estão à sua procura por toda a parte. Para onde se vai virar, Milo? Como lhe pode chegar?
Milo riu-se e Lily teve outro vislumbre da escuridão dentro da sua boca. Quando acabou o seu cacarejar triste, ele disse:
— Lily, alguma vez estudaste História na escola? Alguma vez ouviste falar no czar russo, Alexandre II? A história do seu assassinato é uma lição de persistência, uma lição que te diz que podes matar quem quer que seja, desde que persistas. Alexandre II é um estudo clássico sobre a determinação revolucionária.
Lily estava imóvel, à espera de que o seu sangue esgotado chegasse ao cérebro.
— Por... que... estamos... a falar sobre um czar russo?
— Porque ele é o pai do revolucionário moderno, é o pai do zelo niilista, dos ideais que eram mais justos do que a mera vida humana, de uma ideologia que era mais nobre, mais visível e mais permanente de que a mera humanidade.
— Existe tal coisa?
— Está por toda a parte, acorda! — disse Milo. — Nunca viste? Dá forma a tudo o que faz girar este mundo. Está em toda a parte no mundo moderno, está em toda a parte no mundo antigo. E o czar russo foi o pai. Não o perceberás por enquanto, Lily, a deitar fora a vida a pintar seres humanos aos beijos na tua caverna primordial, mas vais perceber em breve.
— Acho que começo a perceber — disse Lily no cimento molhado, a mover-se na direção do extintor de incêndio. Afastou as pernas uns centímetros e o tronco seguiu o movimento. Mais um centímetro. E mais um. Milo não parecia reparar. O extintor estava a três metros de distância. Três metros. Doze vezes a extensão do seu corpo sentado de lado. Estava na diagonal em relação a ele. Em breve ele repararia e ela tinha de estar preparada para isso. Como se podia ela preparar? Deitou-se no chão húmido. Ele não falou no assunto, não reparou, não se importou. Quando se voltou a levantar, estava uns centímetros mais perto.
— Em 1879, um professor tentou assassinar Alexandre II — disse Milo. — Falhou e foi logo enforcado, tal como dezasseis dos seus cúmplices. Um professor, Lily! Era o estado a que tinha chegado as coisas.
— Até os professores podem ser corrompidos, nem os professores são infalíveis — disse Lily.
— Uns meses mais tarde — continuou Milo, a arrastar as palavras —, uma fação do grupo niilista original, chamada A Vontade do Povo, estava determinada a ter sucesso naquilo em que o professor Soloviev tinha falhado. A Vontade do Povo pôs nitroglicerina no comboio do czar, mas erraram os cálculos e fizeram estoirar o comboio errado. Depois tentaram rebentar a ponte sobre a qual o czar passava e falharam mais uma vez.
— Era um grupo terrorista sem jeito para a coisa?
— Terrorista, não! Revolucionário! Radical. Eram cientistas, académicos, engenheiros, a lutar sem desistir por uma nova ordem política.
— Uma nova ordem política que aterrorizava pessoas inocentes?
— Não há nada de inocente em relação ao teu irmão.
— Completamente inocente. O que é que ele fez?
— Fez uma fraude numa eleição, por exemplo.
— Não foi uma fraude, ganhou-a. Por uma unha negra, mas uma vitória é uma vitória, ainda que por pouca margem.
Milo rugiu como um animal.
— Há cento e vinte anos, um carpinteiro começou a trabalhar no Palácio de inverno, perto do czar, para onde levou pacotes de dinamite que escondeu debaixo dos seus lençóis. Por fim, construiu um fosso sob a sala de jantar do Palácio de inverno e a bomba rebentou exatamente quando calculara que o czar estaria a jantar. Mas, mais uma vez, o jantar estava atrasado e o czar não estava lá. Outras sessenta e sete pessoas foram mortas ou mutiladas pela explosão.
Lily estava imóvel.
— Apenas danos colaterais?
— Completamente irrelevante. Ninguém se lembra deles. Não passam de pó. Mas toda a gente se lembra de Soloviev, toda a gente se lembra do carpinteiro. Um dos membros principais d’A Vontade do Povo foi apanhado durante este período curto de tempo e disse à polícia que não havia nada que eles pudessem fazer para salvar a vida do czar. — Milo parou. — E é isso que te estou a dizer, Lily. Não há nada que possas fazer para salvar a vida do teu irmão. Não há nada que a Amy possa fazer para salvar a vida do teu irmão.
Lily voltou a estender-se, porque tinha de o fazer. O que estava a ouvir, a adrenalina, o pânico, eram demais para ela. O que faria o Spencer?, pensou.
Ah. Spencer tinha uma arma automática de 10mm, uma das mais poderosas pistolas alguma vez feitas. Spencer não estaria doente, Spencer estaria forte e saudável. Era isso que era suposto fazer agora? Ficar saudável depressa? Lily moveu-se mais um ou dois centímetros enquanto continuava estendida no chão. Milo, distraído, tal era a intensidade que dedicava às suas palavras, moveu-se para o lado ao mesmo tempo do que ela, no lado oposto da parede, para se aproximar dela, para que ela o ouvisse melhor.
— No dia 1 de março de 1881 — continuou Milo —, Alexandre II viajava numa carruagem fechada de um palácio em São Petersburgo para outro. Quando o sinal foi dado, membros d’A Vontade do Povo atiraram bombas à carruagem do czar. E falharam.
— Era mesmo um grupo ineficaz — murmurou Lily, aproveitando a oportunidade para se mover outra vez.
— Ineficaz ou não, as bombas rebentaram em torno dos guardas do czar, dos cossacos. Ele saiu da carruagem para examinar os estragos, para verificar o estado dos seus soldados feridos. Enquanto ele estava cá fora, outro revolucionário atirou a sua bomba. E esta, minha querida Lily, não falhou. O czar foi morto instantaneamente e a explosão foi tão grande que matou também o assassino.
Lily parou de avançar por um momento.
— É isso que quer? — perguntou. — É esse o preço que está disposto a pagar pelas coisas em que acredita? Está disposto a trocar a sua vida pela do meu irmão?
— Tudo pela vida do teu irmão. — Milo bateu com a cabeça na parede, de um lado e de outro.
Lily estava por baixo do extintor quando parou.
— Não há justiça na política americana — continuou Milo. — Já tinhas reparado? Quando um congressista sobe ao poder com apenas cinquenta e dois votos que roubou, onde está a justiça?
— Quer mais gente a votar contra o meu irmão? Vá tratar dos votos, Milo.
— Ele fez uma fraude nas eleições!
— Oh, vá lá. Pare. O que é que isso lhe interessa? O que lhe interessa? Desde quando é que o chato do Edward Abrams inspira paixões destas em miúdos do secundário... — ela interrompeu-se, a olhar para ele de boca aberta.
— Quando a sua mulher, Bernadette Adams, se suicida porque já não aguenta mais.
— Oh, meu Deus — gemeu Lily. — Oh, meu Deus. Você é...
— Ben Abrams. Muito bem, Lily Quinn. Prazer em conhecê-la.
Lily parou de ouvir. Milo era Ben Abrams! Amy estava com Ben Abrams, o filho de Edward Abrams, o adversário de Andrew! Ela lembrava-se da mãe dele porque, depois da recontagem e da vitória de Andrew, ela tinha sido responsabilizada por parte das razões da derrota de Abrams. Lily lembrava-se que a Sra. Adams tinha sido comparada, para sua desvantagem, com a Sra. Quinn. Que ela não era tão elegante como Miera Quinn, tão atraente, tão jovem. Miera pensou que isso queria dizer que ela merecia mais crédito pela vitória de Andrew, o que a tinha tornado ainda mais insuportável. Mas Bernardette Adams, infelizmente, já tinha problemas de depressão e de dependência de remédios para emagrecer. Três ou quatro meses depois da eleição, teve uma overdose de medicamentos.
O seu filho devia ter entrado num processo de espiral. E levara Amy atrás de si.
Milo sorriu, horrível, quase sem dentes.
— Vou conseguir apanhá-lo. Com ou sem Amy. A fé dela vacilou um pouco, mas eu disse-lhe que com ou sem ela, com um pouco de persistência, Andrew Quinn seria o novo Alexandre II. — Ele empalideceu, soltando um ruído de angústia profunda. — Oh, como ela era quando voltámos de Phoenix a Nova Iorque. Ainda vinha mais determinada do que eu! A reforma forçada do teu irmão da política era o objetivo de toda a nossa existência. Dava sentido às nossas vidas, era a nossa beleza e a nossa alegria.
— Planear matar o meu irmão trouxe alegria à sua vida? — perguntou Lily. — Os antigos egípcios não seriam felizes consigo, Milo. — A atenção dela concentrava-se no extintor a apenas uns centímetros das suas mãos. Mas teria de saltar, agarrá-lo, virar-se para Milo, de correr para ele, talvez, e depois de atingi-lo. Parecia demasiado? — Planear matar o meu irmão, um esposo, um irmão, um filho, o pai de duas crianças, trouxe alegria à sua vida?
— Oh, sim — disse Milo. — Tudo o que me aconteceu foi por causa dele. Tudo. — Ele gemeu de agonia.
O momento fugaz da sua própria existência passou por Lily como um pardal ferido. Voou e caiu ao chão. Ela sentou-se, levantou-se com um impulso das ancas, acocorou-se. Enquanto Milo permanecia imóvel, sentado, ela levantou-se. Mesmo assim, ele não se mexeu. O extintor estava à direita dela. Estaria preso à parede? Teria ela de lutar com ele, de o puxar, de o arrancar? O coração dela, a bombear alcatrão nas veias a 200 batimentos por minuto, não conseguia aguentar mais a pressão. Os joelhos de Lily começaram a ceder e os braços a tremer. O lábio continuava a deitar sangue espesso. O terror e a ameaça de Milo afastavam-se dela.
— Viveu a sua única vida para matar o meu irmão?
— A solidariedade para com o assassinato é fundamental! Sem ela, a apatia toma conta das coisas, a complacência, a resignação. Rejeitamos a autoridade porque a autoridade nos obriga a moderar as nossas palavras, arrancando-lhes o significado. Queremos mudança, queremos uma mudança radical e monumental, recusamos qualquer compromisso. E por causa dos nossos ideais, as nossas ações ditam as nossas vidas. Para ter uma vida sem moderação — disse Milo —, temos de agir sem moderação.
Lily balançou para a direita e arrancou o extintor do seu suporte na parede. De pé, puxou por ele e ficou-lhe nas mãos, e Milo, esticado, dopado com heroína, não mudou de posição, a sua vida apaixonante e excitante ainda por viver atolada numa poça na cave. Lily segurou o extintor com as duas mãos, como uma arma, mas segurou-o entre as mãos por apenas um momento, porque a coisa era tão pesada, feita de ferro, feita de tijolos, feita de areia e cimento, era um bloco de cimento nas suas mãos, e ela só o segurou por uns segundos... e quando o deixou cair ao chão, caiu com ele. Milo olhou, ainda prostrado, com a cabeça a abanar, e então abriu a boca e riu-se dela.
74
Agir sem moderação
Milo não se levantava, mas Lily, tendo tomado uma decisão que precipitava o seu último dilema, sentia que, para além do que quer que fosse ainda acontecer, o que não se podia passar era que ela se tornasse na moeda de troca numa negociação entre Andrew e a criatura desvairada que tinha em frente. Mas também era um facto que não conseguia levantar o extintor de incêndio. Ajoelhando-se à frente dele, tateando o mecanismo de desbloqueio, inclinando-o para si de forma a que, quando se virasse, a mangueira de borracha apontasse na direção de Milo, que continuava sentado, indeciso, a olhar para ela com um ar de divertimento frio, completamente desinteressado e sem se sentir ameaçado pelas suas palhaçadas. Lily gritou e puxou o travão do extintor, apertando o gatilho. Por favor, que não seja só água!
Não foi água. Foi um pó químico seco que disparou para a goela aberta de Milo a menos de um metro e meio de distância, a uma velocidade que parecia ser de duzentos quilómetros por hora. O jato não se limitou a derrubá-lo. Arremessou-o para trás, fazendo-o bater com a cabeça na parede de cimento. Ele estremeceu uma vez com o corpo inteiro, e depois ficou caído, numa imobilidade estranha. Lily não desperdiçou dois segundos a olhar outra vez para ele. Deixou cair o extintor no cimento, com um baque surdo, levantou-se e desatou a correr. Correr seria provavelmente uma palavra forte demais. Em câmara lenta, cambaleou em frente, passando por cima das pernas de Milo, protegendo os olhos, ofegante, a chorar, e apressou-se, tentando abrir todas as portas ao longo do comprido corredor da cave, até encontrar uma que conduzia da sala da caldeira até à lavandaria. A partir daí, conseguiu sair para o exterior, para a chuva, atravessou a rua a correr até aos três carros da polícia de luzes acesas, e colapsou, inconsciente, no pavimento molhado em frente deles.
Lily voltou a si, deitada num quarto bege que lhe era familiar, com cortinas feias mas luz solar a vir de uma janela através delas. Spencer estava a seu lado, e também o Dr. D., a Avó, e Gabe McGill, e os lençóis cheiravam acolhedoramente a lixívia e a hospital, nada cheirava a humidade, e ela tentou pronunciar algumas palavras, mas a única coisa que conseguiu dizer foi:
— Porquê, meu Deus, porque fazem eles os extintores tão pesados?
Spencer, que estava sentado tão próximo ao ponto de estar quase em cima dela, disse:
— Sim, teremos de fazer com que pesem menos de um quilo.
Lily sorriu e dormiu, praticamente nos braços dele, e lembrou-se de estar vagamente mais consciente numa noite, e Spencer, ainda sentado ao lado dela, lhe ter falado na dança peiote, e de ela dizer «acho que o matei» e de ele dizer «espero que o tenhas matado.» «Encontraste-o,» balbuciou ela, e ele disse que não. Oh, não. Ele escapou outra vez?
Ela tinha mais perguntas. Pegou no braço dele, aproximou-o de si, mesmo junto à orelha, sorriu ligeiramente, disse «é errado da minha parte sentir-me um bocadinho contente por ele ter cortado o seu...?»
— Acho que é errado que te sintas um bocadinho contente, sim — disse Spencer.
— Temo pelo meu irmão.
— Ele vai ficar bem, Liliput. O homem vive numa fortaleza.
Também o Alexandre II, quis Lily dizer.
Abriu os olhos outra vez, de repente. O seu pensamento estava mais claro.
— Spence, já encontraram um dador de medula para mim?
— Ainda não, Lily...
— O meu irmão? As minhas irmãs?
— Ainda estão à procura...
Lily voltou a dormir, sem perguntar a Spencer: com todas as coisas que eles sabiam hoje em dia e sobre as quais pensavam ser tão espertos, uma enorme e desencorajadora lacuna permanecia:
Se Milo não sabia, então onde estava Amy?
Marcie, ainda a cheirar a Milky Ways (mas não a nicotina, devia ter deixado de fumar) abrira as janelas do quarto e Lily sentia o cheiro árido do ar do verão.
Joy sentava-se ao pé dela e tricotava. A Joy a tricotar?
— Joy, estás a tricotar?
— Humm.
— Mas quem és tu? A Madame Defarge? O que estás tu a fazer?
— Ficará frio em breve. Estou a treinar contigo. Precisas de uma camisola.
Uma manhã, Joy fez entrar um homem. Disse que Lily o conhecia, mas Lily não o conhecia. Quem era ele? Era um cavalheiro mais velho, de fato, muito bem vestido. Disse-lhe que era ele que tinha comprado os quadros Uísque nas mãos.
— Oh — disse Lily. — O que aconteceu? As cores debotaram?
O homem apresentou-se como David Lake, da Lake Gallery em Soho. — Tenho passado pela 8th Street nos últimos três sábados. Alguém que a conhecia na mercearia me falou de si, disse-me que estava doente. Arrisquei pensar que talvez estivesse em Mount Sinai. É verdade que tentei Sloan-Kettering primeiro. — Ele contou-lhe que as suas sete pequenas pinturas tinham sido vendidas por 78,000 dólares na sua galeria, na segunda-feira anterior. Se ela soubesse assobiar, tê-lo-ia feito.
— E sabe que mais? Era a minha décima oitava oferta pelo conjunto. Acabei por ter de aceitar. Deve ter conseguido comover alguém com aquelas mãos deslocadas em torno de uma bebida. Tão intensamente pessoal.
Ela não disse nada, lembrando-se vivamente de uma rapariga e de um homem para quem ela não era nada senão uma partícula insignificante, intensamente impessoal como um grão de pólen ao longe no ar. Um meio para um fim para Amy, de quem Lily tinha gostado tanto.
David Lake tinha uma proposta para Lily: se ela lhe desse umas trinta peças do seu trabalho, só óleos sobre tela, ele faria uma exposição dos seus quadros na sua galeria e dividiriam os lucros a meio.
Em segundo plano, Joy acenava vigorosamente que sim com a cabeça.
Lily, erguida nas almofadas, não sabia o que dizer. Disse:
— Pus os meus pincéis de lado, Sr. Lake.
— Porquê?
— Já não preciso deles.
75
O Carteiro
Lily ouve a avó chegar e sentar-se ao lado dela.
A boca de Lily não se mexe, e ela suspeita que os seus olhos estejam fechados. Consegue sentir a sua avó por perto, e a imaginação fornece-lhe os outros detalhes, o cabelo grisalho, as calças elásticas e confortáveis, os ténis impecáveis que nunca saíram da pedra castanha das ruas de Brooklyn, a pequena cruz de ouro à volta do seu pescoço. Conta-me qualquer coisa engraçada, avó, pensa ela. E a avó, como se a ouvisse, diz:
— Lily, uma mulher estava num voo da Qantas que ia de Wellington, na Nova Zelândia, para Melbourne, na Austrália, e sabes o que encontrou pousado num pepino verde da salada?
Não sei. O quê?
— Uma rã viva. Um anfíbio aéreo. A Qantas está muito chateada com o fornecedor de alface. Acham que o controlo de qualidade não é como devia ser.
Se Lily pudesse rir, teria rido. Tinha sido em económica ou em primeira classe, queria saber.
A avó pousa os lábios na cabeça de Lily.
— Aguenta-te, querida, o DiAngelo está a tratar-te. Vai consertar-te toda, vais ver. Está cheio de orgulho, o homem, o falhanço não é coisa dele.
Lily ouve bastante bem.
— Lily — diz a avó —, lembras-te de te ter falado na tua mãe por baixo das tábuas em Ravensbruck?
Lembro-me, avó. Ravensbruck, a noventa e seis quilómetros de Berlim. Escondeste a minha mãe nas tuas saias para a proteger dos guardas alemães. Deste-lhe todas as tuas rações. Escondeste-a no chão do barracão quando ias trabalhar com as outras mulheres. Ravensbruck, a primeira e única prisão exclusivamente feminina no sistema de campos nazi, mas tu estavas na Alemanha, tinhas esperança de ser salva. Dizia-se que os americanos vinham aí. Os soviéticos também. Querias só aguentar-te tempo suficiente. Por isso, escondeste a minha mãe por baixo das tábuas do chão, com outra menina. Uma noite, quando voltaste ao barracão e levantaste as tábuas, viste a rapariga ali deitada, imóvel, e começaste a gritar. Mas não era a Olenka, era a menina de quatro anos com quem a Olenka estava escondida, ali estendida, morta. E quando percebeste que a minha mãe ainda estava viva por debaixo das tábuas, ficaste tão aliviada.
— Lily, isso é o teu médico, é isso que ele está a fazer, a esconder-te por debaixo das tábuas de madeira.
Mas então e se eu for a outra rapariga?, pensa Lily. Alguém a escondia também. Os rumores de que os soviéticos vinham aí, de que os americanos vinham aí eram cada vez mais fortes. Quanto mais fortes os rumores, mais frequentes se tornaram as execuções. Foi pura sorte que tu e a mamã tenham sobrevivido, ainda que a mamã tenha apanhado escarlatina e quase tenha morrido. Entregaste-te a um guarda alemão em troca de caldo de galinha para a minha mãe. Em março de 1945, os soviéticos devem ter-se aproximado muito, porque todo o campo foi evacuado e todas as mulheres foram enviadas numa viagem para o sul da Alemanha, enviadas sem sapatos, sem comida, sem roupa quente. Choveu o mês inteiro. Os alemães estavam à beira da estrada e atiraram-te pedras, «eles que não tinham pecados», acrescentaste sempre ironicamente, cada vez que me contaste isso. Atiraram-te pedras, à espera de que caísses.
— Virei-me para a proteger — disse a avó. — Peguei nela porque a amava e porque era minha, e amo-te porque és minha... Liliput, não tenho outra.
Estou a ouvir-te, avó.
Escapam-se pequenas lágrimas e a avó dela inclina-se e beija-lhe os olhos, murmurando:
— Ah, meu anjo, minha menina, então consegues mesmo ouvir-me. O DiAngelo disse-me que lá por estares inconsciente não queria dizer que não podias ouvir e tinha razão. Estou a ganhar um novo respeito por ele.
A avó chora enquanto conta outra história a Lily. E esta, Lily nunca ouviu. A avó está a falar-lhe do Tomas. Lily pensa que é sobre o Tomas, mas não consegue ter a certeza porque começa em Montague Street, em Brooklyn, em 1992. Porque é que tantas coisas começam em 1992? Porque é que esse número não entrou na lotaria dela?
Montague Street, Brooklyn Heights, 1992. Claudia encontra o seu carteiro, aquele que não lhe costumava trazer as cartas da frente, aquele por quem ela costumava esperar todos os dias ao pé da grade, ao lado da Anya que estava grávida.
Claudia tinha saído no sábado de manhã para comprar fruta, quando ouviu uma voz atrás dela.
— Klavdia? — Ninguém a tratava por Klavdia desde Stalka.
O carteiro. Pararam na rua e conversaram. Claudia lembrava-se bem desse dia porque era uma manhã de verão de São Martinho e estava calor, e estavam ao pé da igreja enquanto as folhas mudavam de cor. O ar tinha um cheiro agridoce, como uma nostalgia triste, e ele disse-lhe «Vou contar-te uma coisa, Klavdia.»
E Claudia não a queria ouvir.
Sei como te sentes, avó. Há tantas coisas que preferia nunca ter ouvido. Há tantas coisas que preferia que nunca tivessem sido verdade.
O carteiro disse-lhe que Tomas o tinha chamado à parte, antes de ir para a frente, e pedido que, caso um telegrama a informar de uma morte alguma vez fosse enviado para a sua casa, não o entregasse. «Ele fez-me prometer.» Tomas disse-lhe que nem a sua jovem mulher nem a sua mãe doente sobreviveriam à notícia.
— Se alguma vez chegasse um telegrama sobre Tomas ou um dos seus três irmãos, era suposto passar por vossa casa e, se tu estivesses no jardim ao pé da grade à espera, eu tinha de mostrar a minha cara mais feliz e sorrir. Prometi que o faria. — O carteiro olhou para a igreja e disse: — E foi o que fiz, Klavdia. Deitei fora quatro telegramas, um sobre cada um dos irmãos Pevny, e quando passava pelo vosso portão, acenava e sorria.
Claudia empalideceu e deixou de conseguir sentir o cheiro da fruta madura ou da frescura.
— Não fiques triste — disse ele. — Passaram-se quarenta e três anos. Fiz isso porque o teu Tomas mo pediu. Disse que era mais gentil.
Claudia perguntou se o carteiro tinha lido os telegramas.
— Sim. Diziam todos: morreu de ferimentos de batalha.
Foi por isso que Claudia deixou de sair. Quem sabe que outras pessoas poderia encontrar, pessoas com tatuagens nos braços que poderiam contar-lhe histórias de terror sobre telegramas de morte. É demasiado velha para surpresas dessas, mal pode carregar o fardo que já tem.
Claudia solta um som horrível e Lily abre os olhos. Está ligada a uma máquina para respirar. Não consegue falar. Apenas os olhos se movem, a olhar para a cara da avó à procura de um sinal, de um gesto, de alguma coisa, com os olhos a pedir, a suplicar, cheios de esperança.
Claudia engole em seco, levanta a mão, acena a Lily e sorri.
76
A única
DiAngelo debatia-se consigo próprio, a tentar arranjar coragem, à espera de um milagre do banco de medula, mas acabou por entrar no seu pequeno escritório no andar dos registos do hospital e marcar o número da mãe de Lily. Spencer tinha-lho dado depois de alguma hesitação, dizendo que achava que não era uma boa ideia telefonar-lhe. Mas Lily estava a chegar a um ponto em que uma transfusão de plaquetas bem-sucedida já não era uma opção. Os seus órgãos estavam a ficar entupidos com detritos. A diálise não estava a ajudar, os seus níveis de sal estavam demasiado altos, fazendo-a inchar, e o sangue não estava a circular. Lily ia atravessando sucessivos momentos de perda de consciência, passando cada vez mais dias num sono profundo, num torpor do qual não conseguia acordar. Durante quatro semanas, o Banco Nacional de Dadores de Medula tinha sido incapaz de encontrar uma medula compatível em mais de quatro dos seis marcadores de enzimas. DiAngelo precisava de pelo menos cinco.
Ele não queria telefonar a Allison Quinn, mas não tinha escolha. Tinham chegado à crise blástica.
Depois de chamar algumas vezes, Allison atendeu. DiAngelo apresentou-se, explicando quem era e há quanto tempo tratava Lily. Disse-lhe quão doente ela estava, como tinham tentado todas as combinações medicamentosas para matar as células cancerígenas, e sem sucesso. Como tinham experimentado tratamentos, terapia de vitamina A, Alkeran, e até arsénico, e como agora a única opção que restava era um transplante de medula, que envolvia substituir a medula doente de Lily por uma medula saudável de um dador adequado. Allison ouviu tudo com atenção.
— Sra. Quinn, aqui está o meu problema. Os dadores de medula não são como os dadores de sangue. Não conseguimos obter medula compatível de qualquer pessoa — explicou DiAngelo. — Há um banco internacional que faz a lista de todos os dadores possíveis mas, até ao momento, não conseguimos encontrar nenhum compatível com a Lily...
— Sabe, não percebo bem estas coisas de médicos. Fiz uma operação por causa de uma perfuração do estômago e tirei a vesícula biliar, e passei por enfermeiras desleixadas que me deixaram esponjas cá dentro e, não sei se sabe isto, mas tive uma infeção no pé tão terrível que tiveram de o tirar... amputada, doutor! Mas não sei nada sobre estas coisas de cancro, sobre medulas. Francamente, nunca ouvi falar. Penso que seria melhor se falasse com o meu marido. Ele percebe muito mais destas coisas, foi jornalista. Vou chamá-lo...
— Não! Sra. Quinn, não quero que vá chamar o seu marido. O que tenho a dizer, tenho de dizê-lo a si. Não quero que vá buscar o seu marido. Por favor, deixe-me acabar.
— Está bem — disse Allison. — Mas não percebo mesmo...
— O que lhe estou a tentar dizer é que testámos todos os irmãos dela, que são normalmente a nossa melhor hipótese. Mas não conseguimos encontrar entre eles um dador compatível para a Lily.
Allison estava muda do outro lado da linha. DiAngelo suspeitava que ainda que ela não soubesse nada sobre «estas coisas de cancro», talvez soubesse mais do que queria admitir de momento sobre por que razão o irmão e as irmãs de Lily eram tão pouco compatíveis com ela.
— Não percebo porque me está a ligar — disse Allison entre dentes, ao telefone. — Quem é o senhor? Não sabia que ela ainda estava tão doente, pensei que estivesse melhor. Acabei de a ver, veio visitar-me e estava bem melhor. De que espécie de sarilhos é que está à procura?
— Não está nada bem melhor. Não falou com a sua... a sua... mãe, com os seus outros filhos? Ela está muito, muito pior. E o que estou a tentar fazer é salvar a vida da sua filha. A medula dos irmãos dela não é compatível. — DiAngelo fez uma pausa, engoliu em seco e atreveu-se a dizê-lo. — Mesmo sem o testar, tenho de assumir que a do seu marido também não será compatível.
Allison não disse nada.
— O único dador compatível possível é a senhora, Sra. Quinn. Estou a telefonar para lhe pedir que venha a Nova Iorque e que nos deixe retirar uma amostra. E se corresponder mesmo que só a cinco dos seis marcadores necessários, peço que nos deixe recolher a sua medula para dar à Lily.
— O senhor está bom da cabeça? — silvou Allison ao telefone.
— Estou a suplicar-lhe. Estou a implorar. É a única pessoa que pode ajudar. É a única esperança dela. Por favor. Por favor, venha ajudá-la.
— O meu sangue também não deve ser compatível — murmurou Allison. — Já tinha pensado nisso?
— Ela foi adotada?
— Céus, não! Ela é a minha filha.
— Então venha. Vai ser mais próximo do que qualquer outra coisa que aqui temos. Apanhe o próximo avião e venha para Nova Iorque.
— Percebe o que me está a pedir? Não posso... Perdi um pé. Tive gangrena e perdi um pé, amputaram-me o pé. Agora sou uma inválida. Não me ouviu? Mal posso andar pela minha própria casa.
— Peça ajuda ao seu marido. Eles têm cadeiras de rodas no aeroporto e a Lily paga-lhe tudo.
— Pensei que ela estivesse inconsciente nos cuidados intensivos, como é que ela vai sequer saber?
DiAngelo esfregava a cabeça com força.
— Pensei que não sabia como estava a sua filha, Sra. Quinn. Não se incomode com isso. Acredite em mim, eu trato de tudo. Vai voar em primeira classe, vai ficar num hotel de primeira classe, tudo o que precisar será tratado.
— Não posso ir assim. Não posso. Tenho de pensar no assunto.
— Vai ter de pensar no assunto no avião. A sua filha só tem mais uns dias de vida. Precisa de si, não daqui a cinco dias, não daqui a uma semana, não amanhã, mas sim ontem. Por favor, venha. — DiAngelo fez uma pausa à procura de forças, a tentar buscar dentro de si tudo o que se conseguisse lembrar para a convencer. — Eu sei que tem estado doente. Eu sei como a sua vida tem sido difícil. Sei que tem estado deprimida, que tem sido infeliz. E que tem dificuldade em viajar. Mas uma mãe é toda a esperança que resta a Lily neste mundo. Se pudesse escolher, não a teria incomodado, eu sei que já tem problemas que chegue.
— O que é que quer dizer com isso? Estou ótima, só tenho um problema no pé...
— Claro. Peço desculpa.
— Dê-me o seu número. Volto a ligar-lhe daqui a dez minutos.
Allison voltou a ligar uma hora depois. DiAngelo não se tinha afastado da secretária.
— Irei — disse ela —, com uma condição.
— Diga — disse ele. Teria prometido todo o dinheiro de Lily se ela o tivesse pedido.
— Que não diga uma palavra do que acha que descobriu sobre mim. A mulher que me trouxe aqui passou por demasiado para ter a minha única indiscrição a desfazer a minha família.
— Não direi uma palavra.
— Não são compatíveis, é tudo, e eu vim ajudar. A minha pode ser também incompatível. É simples.
— É muito simples. — Ele mal a podia ouvir, ela falava tão baixo.
— Até há uma hora, quando ligou, não sabia que a Lily não era filha do meu marido. Podia ter sido, não era? Era muito possível que fosse dele.
— Sim. Absolutamente. Tem quatro filhos fantásticos. Devia estar orgulhosa.
— Eles não gostam da mãe deles, mas eu estou orgulhosa deles. Eu gosto deles.
— O tempo está a acabar, Sra. Quinn. Ficará um bilhete à sua espera e do seu marido no balcão da United Airlines para o voo das oito desta noite. Vou também marcar um quarto no Pierre, na 61st com a 5th. É um hotel excelente, e apenas a uns quarteirões do hospital. Pergunte por mim quando chegar à receção e não hesite em pedir uma cadeira de rodas.
— Uma cadeira de rodas? Não tenho um pé, doutor, mas não estou incapacitada.
DiAngelo tratou de tudo com Spencer, que usou o cartão American Express de Lily para marcar os bilhetes e o quarto de hotel. Mas Spencer era quem era e nada que alguém dissesse lhe passava despercebido:
— Pensava que a medula era mais compatível entre irmãos.
Atordoado por um segundo, DiAngelo olhou para outro lado, mas isso bastava para Spencer.
— Neste caso, não.
Spencer sentou-se.
— Oh, minha mãe de Deus. — Tinha as mãos no colo. Levantou-se, passado um minuto. — Os golpes não param de vir. — Suspirou. — A Lily talvez sobreviva ao transplante de células estaminais, mas não vai sobreviver a isto.
— Não sei quanto a si, detetive, mas a experiência diz-me que os seres humanos conseguem sobreviver a uma porrada de coisas.
Spencer não discordou.
— Doutor, garanta-me que nem uma palavra sobre isto sairá deste quarto.
— Garanto-lhe.
— Embora se tenha desmanchado como um ovo caído ao chão, não foi? — disse Spencer. — Eu mal abri a boca para fazer uma pergunta.
— Detetive O’Malley, espero que esta seja a última vez que serei interrogado por um investigador profissional.
— Isto era ser interrogado? — Spencer sorriu. — Nem uma palavra a ninguém.
— Não se preocupe.
Apertaram as mãos.
— Mas a mãe sabe, não sabe? — disse Spencer.
— Acha que devíamos pô-la inconsciente depois de recolher a medula?
— Bem, o senhor não. Mas eu não fiz o juramento de Hipócrates. Talvez pormos alguma coisa no copo dela? Talvez arsénico?
E riram-se os dois com isso, com a ironia de tudo isso.
Lily podia ter pintado isto: o pai ao lado da mulher no transporte do aeroporto. Allison tinha recusado um carrinho e agora estava agarrada à passadeira rolante, com a prótese da perna a empurrá-la para cima frouxamente. E o pai tinha a mão nas costas da sua mulher, à medida que iam sendo transportados para a frente. E do outro lado da passadeira, depois das escadas, para lá do tapete da bagagem, três das suas crianças, duas filhas e um filho, esperavam juntos pela sua mãe, para a levarem ao hospital onde a irmã estava a morrer.
77
O ringue de Wollman
Lily está a tentar formar uma palavra nos lábios. O médico está a ajustar a máscara do ventilador. Ela respira com dificuldade. DiAngelo deixa-a respirar sem o oxigénio por alguns minutos por hora, para ver como ela está. E desta vez, antes de ele a voltar recolocar, ela forma e forma a palavra que quer que o médico ouça. A única palavra que quer ver em frente dela.
— Spencer... — sussurra Lily.
E ele vem. Está sentado ao lado dela. Ela pode ver que lhe contorce o coração de cada vez que inspira ruidosamente, mas ele fica tranquilamente sentado apesar disso.
Só a boca dele se contorce.
— Spencer?
— Sim, Liliput.
— Sabes o que é que eu acho? Sobre a Amy?
— O que é que tu achas?
— Acho que ela pode ter desaparecido para se livrar dos dois.
— Achas? — disse ele calmamente.
— Acho que ela se fartou, sabes? E não sabia como resolver as coisas. Como acabar. Não sabia como poupar o Andrew. Como se afastar do Milo; ele estava tão dependente dela, especialmente depois de tudo o que se passou. A Amy não queria ser parte do Milo. Não queria magoar o meu irmão. Acho que ela o amava. Pareces cético, mas acredito verdadeiramente nisso. Penso que ela desapareceu do mesmo modo que o Hobbit. Talvez a Amy tenha uma nova identidade e viva algures pela curva do Mississippi, com uma nova vida sem os dois. Mas talvez ela ainda esteja à espera dele nesta nova vida. À espera que o meu irmão vá ter com ela. Ela foi ter com ele com maldade no coração e não esperava encontrar o amor, era a última coisa que ela esperava. E talvez esteja agora algures à espera dele, para lhe dizer isto.
Spencer permaneceu em silêncio.
— O que achas?
Ele abraçou-a com cuidado.
— Talvez tenhas razão. — Depois calou-se de novo.
— Lembras-te do Oliver e da Jenny? — perguntou Lily.
— Sim.
— Tens mais pena de quem? Dele, sentado no ringue de patinagem no gelo, ou dela?
— Dela, Harlequin — disse Spencer. — Só tenho pena dela.
Agarrou na mão dele.
— E eu só tenho pena dele — segredou ela.
Spencer observava-a e depois, inclinando-se para que ela sentisse os lábios dele roçarem-lhe na face, cantou em voz baixa e destroçada:
Tomorrow my love and I/ Will sleep ’neath auburn skies/ Somewhere across the border/ We’ll leave behind my dear/ The pain and sadness we found here/ And we’ll drink from the Bravo’s muddy waters/ Where the sky grows gray and white/ We’ll meet on the other side/ There across the border[6]...
— O Bruce já não serve só para fazer amor? — perguntou Lily num sussurro.
— Ele serve para todas as ocasiões — respondeu Spencer, com a testa colada contra a face dela. — Como tu.
DiAngelo teve de fazer inúmeras transfusões de sangue a Lily para lhe aumentar a quantidade de células saudáveis e depois poder enchê-la de químicos que lhe esvaziassem completamente a medula.
No quarto de hospital, DiAngelo colheu medula óssea saudável da anca de uma Allison Quinn anestesiada, que tinha cinco ou seis marcadores genéticos em comum com a filha. Colheu quase quatro pints de medula saudável pastosa e compatível, deixando Allison fraca e cheia de nódoas negras no sítio onde a agulha tinha entrado repetidamente. Depois injetou o líquido espesso na linha venosa central de Lily, mesmo ali, onde estava deitada, sem anestesia.
E esperaram. Será que o corpo dela ia rejeitá-la? Ia o corpo aceitá-la? Ia começar a regenerar-se outra vez como uma estrela-do-mar?
Os poderes vitais começavam a afundar-se aos pés dela, o sangue corria cada vez mais devagar, como melaço, o sal já se tinha esgotado nos seus fluidos corporais, o coração abrandava, bombando quarenta difíceis batimentos por minuto, empurrando o melaço através do corpo.
Trinta...
Vinte...
Dezanove...
Dezoito...
Dezassete...
Quinze...
Dez...
Deram-lhe um choque às dez.
Vinte...
Quinze...
Código azul. Código azul. Choque.
Sete...
Seis...
Outro choque.
Cinco...
Quatro...
Cinco...
Seis...
Quatro... um batimento a cada quinze segundos.
Um batimento a cada vinte segundos.
Uma batimento a cada trinta segundos.
Um batimento.
Eu não pintei o suficiente, eu não dancei o suficiente, eu não amei o suficiente.
Spencer!
A vida vivida como uma exclamação, em vez de desespero.
Pensou ouvir alguém cantar, alguém próximo, muito perto, cuja voz era tão familiar, amada e tão desesperadamente desejada.
Lily pensou que tinha aberto os olhos e que na sua cama, ao seu lado, estava a mãe sentada a segurar-lhe a mão. A sua mãe, arranjada, penteada, maquilhada e sóbria. Estava sentada e os olhos brilhavam-lhe, e parecia tão forte e bela como dantes, quando era jovem. E sorria.
— Shh, shh — disse ela. — Shh, shh, Liliput, minha menina, meu bebé, minha criança querida, minha filha, tudo vai ficar bem agora. Tudo vai ficar bem.
Lily sorriu e de olhos fechados, ouviu a mãe cantar uma canção de há muito tempo, de profundo consolo, da infância.
...Quando acordares, deverás ter Todos os Pequenos Cavalos Bonitos...
[6] Letra da canção Across de Border, de Bruce Springsteen. (N.T.)
78
ONR
— Não conseguimos estabilizá-la — disse DiAngelo. Disse isto à mãe e ao pai que estavam na sala de espera, apesar de estar com dificuldade em encarar o pai, receando que o seu olhar de pena o traísse. À espera com os pais estavam Anne, a avó, e Amanda. E sozinho num canto, tão longe quanto era possível estar e continuar na mesma sala, estava Spencer. Andrew não estava lá. DiAngelo pensou como ficava bem a Spencer não mostrar medo do desprezo da família, embora o ar de Spencer naquele momento fosse o de alguém que não estava nada bem.
Anne aproxima-se. DiAngelo fica tenso.
— O que se está a passar agora com ela?
— Está a entrar em paragem cardíaca mais ou menos de hora a hora. A pulsação desceu abaixo de vinte. Estamos sempre a reanimá-la. Está a oxigénio, a receber fluidos, antibióticos. O corpo dela parece estar a aguentar-se com a nova medula, mas não conseguimos fazer com que os órgãos normalizem, por isso não estou a ser produzidas novas plaquetas ou glóbulos brancos. Continua a precisar de transfusões a cada quatro horas. A função hepática está em baixo, os pulmões não estão a trabalhar sozinhos, o coração não está a bater sozinho. Diálise, transfusões, descargas elétricas, é assim que ela está a ser estabilizada.
— Parece-me mais que é assim que está a ser destabilizada — disse Anne.
Seria para si, não seria, pensou DiAngelo.
Allison Quinn estava em frente dele, a ouvi-lo de mãos apertadas. DiAngelo pensou que era corajoso da parte dela estar de pé. Ele podia ver que ela tinha sido uma bela mulher, e ainda era, se não se olhasse para o que ela tinha feito de prejudicial ao seu exterior — a pele envelhecida prematuramente, os olhos inchados e raiados de sangue, a cara inchada. Tirar dois quartos da sua medula enfraqueceu-a — parecia frágil e esgotada.
— Então o que acha que devemos fazer, senhor doutor? — perguntou.
— Vamos continuar a fazer o que estamos a fazer. Estou só a alertar-vos.
— Qual é o prognóstico? — Allison agarrou o braço de George.
DiAngelo olhou para Spencer, de lado, no canto.
— Desolador — respondeu.
Anne deu-lhe gentilmente palmadinhas nas costas (!).
— Fez o que podia, senhor doutor. A sério, ninguém podia ter feito mais. Ela está em coma há duas semanas.
— Sim.
— Não acha que ela já sofreu o suficiente?
— Não — disse ele. — Acho que não. Acho que pode sofrer um bocadinho mais.
Anne suspirou. Allison franziu a testa. Claudia revirou os olhos. Amanda pôs o braço à volta da avó de Lily e não se meteu. George, como sempre, não se meteu.
DiAngelo disse com firmeza:
— Manter-vos-ei informados sobre a evolução.
— Não vai haver nenhuma evolução! Duas semanas em coma! Está um vegetal, não sabemos se lhe resta atividade cerebral.
Mas DiAngelo estava pronto, não, não era só pronto. Estava desejoso por uma briga.
— Ela tem atividade cerebral. Fez ontem uma TAC ao cérebro. Está a aguentar-se.
— O coração dela pararia se você parasse aquelas descargas elétricas infernais!
— «Parasse» está no caso conjuntivo, Sra. Ramen. Está a insinuar que gostava que o coração da sua irmã parasse?
— Eu gostava que ela tivesse alguma paz, por amor de Deus!
A mãe e o pai proferiram uns «shh, shh», em forma de consolo e não para a calar.
— Ela terá paz suficiente quando morrer — disse DiAngelo.
— Se deixasse as coisas correrem, ela teria paz, não teria?
— Mais uma vez, Sra. Ramen, o que está a insinuar?
— Estou a dizer, não a insinuar, que tivemos um ano disto, um ano! Um ano do seu corpo a definhar, um ano dela a lutar contra o inevitável, e o único, o único a beneficiar desta terrível confusão é o senhor! A família dela está a sofrer há meses, ela está a sofrer há meses, a batalhar numa luta invencível.
DiAngelo olhou para a ficha de Lily.
— Aqui está — disse, pegando num formulário do hospital. — Diz, de uma forma muito clara, para a manter viva através de todos os meios necessários. Assinado por Lily Quinn. Que não é menor e estava consciente quando o preencheu.
Anne aproximou-se do médico. Arrancou-lhe a folha de papel das mãos, e antes que ele conseguisse fazer algum movimento, rasgou-a em pequenos pedaços e atirou-lhos à cara.
— Isto é o que eu penso da porcaria do seu formulário — disse ela. — Devia ter-nos dito no início que era um cancro fatal. Li sobre ele. Ninguém lhe sobrevive. A medula óssea é a última gota, e ela entrou em coma mesmo antes do transplante. O corpo dela desistiu. Vou a tribunal, se for preciso, com total apoio da minha família, para lhe dar o que ela precisa.
— O que ela precisa é de morrer?
— O que ela precisa é de parar de sofrer! Porque é que o senhor é o único que não consegue vê-lo?
— Está bem, Annie. Vamos, já chega — disse Allison. — Acalma-te.
— Mãe, diz-lhe. És a mãe dela. Ela não tem um marido para lhe gerir a saúde. Diz-lhe que não queres mantê-la artificialmente viva, diz-lhe que queres que ela tenha paz, que pare de sofrer. Diz-lhe, mãe. — Porque é que voei dez mil quilómetros para dar a minha medula se estamos quase a tirar-lhe o ventilador? — disse Allison irritada.
Spencer, aproximando-se, por fim, disse a Anne:
— Sra. Ramen, isto não se trata de deixar a sua família mais confortável no seu processo de sofrimento. Isto é sobre a Lily. Ela queria que a mantivessem viva. Ela vai ser mantida viva.
— Oh, cale essa boca! — exclamou Anne. — Ninguém lhe perguntou nada. Ninguém está a falar consigo. Nem acredito que tem o descaramento de estar aqui.
— Tenho o descaramento de estar em muitos lugares onde não sou desejado.
— É desejado aqui pela Lily — disse DiAngelo. — Será a primeira pessoa por quem ela perguntará quando acordar.
— Bem, ele devia ter a decência de esperar noutro sítio qualquer — acrescentou Amanda, dando a conhecer os seus sentimentos por Spencer. Claudia manteve-se calada de cabeça baixa.
— Ele tem todo o direito de esperar aqui — disse DiAngelo. — E a senhora precisa de parar de discutir. Porque está aqui, Sra. Ramen? Porque não vai para casa, onde estará mais confortável?
— Não vou a lado nenhum até a minha irmã ter o que merece.
— A sua irmã escolheu a ONR. Vá gastar o seu dinheiro a processar o hospital para parar a reanimação. Ficará falida muito antes de nós.
— Bem, claro, está a ganhar milhões de dólares com a minha irmã.
— Para mantê-la viva.
— Milhões de dólares! — gritou Anne. — Do dinheiro dela, quando sabe que ela não tem hipótese, nenhuma hipótese no mundo. Ela vai ficar aqui deitada durante doze anos na porcaria da sua diálise, enquanto estará a juntar para o seu curso de golfe, sentado a beber champanhe no seu clube de campo, a pagar a sua mansão Bronxville com o dinheiro dela. Vou processá-lo, seu sacana, e vou ganhar...
— Anne, não vais ganhar nada. Agora, para com isso. É a tua irmã, pelo amor de Deus.
Era George, inclinado sobre Anne, mas olhou para DiAngelo como que a pedir-lhe para parar.
DiAngelo virou-se para se ir embora, mas depois pensou melhor, voltou e disse:
— Lembrei-me, Sra. Ramen, que me esqueci de dizer uma coisa que pode ser de alguma ajuda. — DiAngelo olhou para Spencer, que estava atrás da família, a abanar a cabeça veementemente. Mas o bom do doutor não pararia.
— A sua preocupação em relação à sua irmã é admirável e, como é tão próxima dela, tenho a certeza que sabe que, se ela morrer — se aquele coração que quer que pare, for parado —, todo o dinheiro dela irá para o Detetive O’Malley.
O silêncio sepulcral na sala de espera era justificado.
— Isso não pode ser verdade — disse Anne quase sem voz.
— Não? Acontece que ela fez um testamento, Sra. Ramen. E deixou tudo ao Detetive O’Malley. Não é verdade, Detetive O’Malley? — perguntou DiAngelo em tom indiferente.
— Humm — disse Spencer, abanando a cabeça para DiAngelo.
— Oh, sim. Aí tem — DiAngelo deu um passo em direção às portas duplas dos Cuidados Intensivos. — Se nós pusermos em prática uma ONR, ele, que a senhora detesta, ficará com todo o dinheiro dela. As ironias não acabam. Mas talvez valha a pena para aliviar o sofrimento dela? Bem, agora tenham um bom dia. Virei falar com vocês novamente depois das minhas rondas da noite.
DiAngelo saiu e um incrédulo Spencer afastou-se para se sentar no canto. Depois pensou melhor e decidiu sair para fumar. Esse era um momento muito bom para começar a fumar. Ou isso ou...
Uma voz chamou-o. Anne.
Virou-se, com alguma hesitação.
A voz dela tremia, as mãos tremiam. Toda ela tremia.
— Seu sacana! Não chega ter conseguido arruinar a vida do meu irmão, ainda nos rouba o alívio dos nossos encargos financeiros?
A linguagem da tragédia! Pensou Spencer, quando Anne se encostou a ele, a tremer, a falar.
— Acha que vai conseguir ficar com esse dinheiro? Você e ela não são casados, não moram juntos, não tem absolutamente direito nenhum àquele dinheiro.
— Estou certo de que isso é verdade — disse ele, exausto.
— Vai passar o resto dos seus dias no tribunal — ameaçou Anne. — Vou lutar contra si, seu bandido, até já não aguentar mais. Vou conseguir tirar-lhe a merda do dinheiro nem que seja a última coisa que eu faça.
Spencer cerrou os dentes e mesmo na cara lívida de Anne, disse:
— Não me ameace. Não adianta ameaçar-me. A sua irmã não está morta.
Ele não sabia como tinha conseguido evitar dizer a palavra ainda. Teve de sair da sala de imediato e ir lá para fora arrefecer a cabeça. Caminhou da 66th Street até ao Central Park, para o ringue Wollman e, naquele setembro húmido, sentou-se nas bancadas azuis olhando para baixo para a pista de gelo vazia. Tirou o casaco. Estava calor.
Lily, rezou. Perdi a minha mulher grávida aos 23 anos e não achei que alguma vez fosse recuperar. Talvez de alguma maneira nunca tenha recuperado. Pelos meus trinta anos, conheci e apaixonei-me por outra rapariga e ela também morreu, assassinada quase aos 21. E agora existes tu. Pareço ser tão azarado com as minhas mulheres.
Por favor. Não morras também e me deixes, Lily.
Ficou ali sentado durante muito tempo. Pensou em regressar; talvez houvesse notícias. Mas DiAngelo sabia o número do seu beeper. Ele teria ligado.
O seu telemóvel tocou. Atendeu de imediato.
— O’Malley! — Era Gabe. — Vem imediatamente ao reservatório. Não vais acreditar nisto. Encontrámo-la.
Durante um momento Spencer não sabia de que é que Gabe estava a falar.
— Deixa de ser esse burro-irlandês, O’Malley! Ligou o dono de um cão, que corria com o seu rafeiro, e diz que o cão encontrou algo suspeito, parecido com ossos humanos. Aposto o meu salário que é a tua rapariga McFadden. Vai lá já. É na 87th Street, no West Side, fora do trilho equestre.
79
E agora, sobre Amy
Ossos enterrados foram encontrados debaixo de uma árvore na parte mais funda e densa de Central Park, ao pé do Trilho Equestre. Só cavalos passavam Trilho Equestre, não cães, não corredores, não polícias. Tinha chovido durante dias e os ossos ficaram destapados na terra lamacenta. Um homem e o seu cão tinham tropeçado neles quando o cão fugiu para o bosque e o homem o seguiu, pondo a descoberto as formas cinzentas no meio da terra e folhas mortas. Com os ossos foram encontrados um fato de treino, um sutiã, uns ténis e um par de brincos de diamantes.
Foram precisas oito horas para a equipa forense confirmar, através dos registos dentários, ser o corpo de Amy McFadden.
A mãe chorou como se Amy tivesse morrido no dia anterior e não há dezasseis meses.
O Bar 57/57 ficava ao cimo das largas escadas de mármore na entrada do Four Seasons Hotel. O bar em si era muito moderno, com chão em mármore bege e paredes que se esticavam por doze metros de mármore até ao teto de mármore da entrada. As mesas dos clientes tinham o tampo em carvalho claro sobre pernas cromadas e os centros de mesa eram feitos com rosas e lírios brancos. No canto mais escondido, perto de uma pequena janela, de costas para o bar, sentava-se Andrew numa cadeira cromada, com uma bebida a seu lado. Em frente a ele, sentava-se a mulher. Quando o empregado veio perguntar se ela queria uma bebida, abanou a cabeça mas não falou. Andrew e Miera não falavam. Ela vestia um fato cinzento de gabardina e o seu cabelo cuidadosamente penteado estava sem coloração. Mexia na mala. Pelo comportamento dele, podia pensar-se que Andrew não sabia que ela estava ali, até ele dizer:
— Como estão as meninas?
— Bem.
— Tem havido algum problema?
— Não, está tudo bem. Ele não vai aparecer, Andrew. É um mendigo e um viciado em heroína sem dinheiro. Como é que podia apanhar um comboio para Port Jefferson?
— Ele vai encontrar uma maneira. Nunca saias de casa desprotegida. — Ele olhou para o guarda que os observava ao pé do bar.
— Vivemos sob guarda pretoriana — disse Miera devagar. — E em todo o caso, porque é que ele iria — ela fez uma pausa —, se tu não estás lá?
Andrew assentiu.
— Tens razão. Espero conseguir desviá-lo.
— Não se trata apenas de desviar. Estás fora de casa há um mês — disse ela. — Não vais voltar, pois não?
Passou um longo tempo entre sons de empregados, de tilintares de bar e fumo antes de Andrew responder:
— Não, Miera.
— Andrew...
— Mi, por favor. Por favor. Não consigo. Agora não. Apenas não consigo.
Ela fez um movimento de quem se ia levantar, como se tivesse acabado, mas depois sentou-se de novo. O empregado veio perguntar...
— Não! — exclamou ela. — Nada, obrigada.
Ela ainda não tinha acabado com Andrew. Chegou-se mais perto para lhe captar a atenção.
— Não vais voltar? Muito bem, então. Nesse caso queres que ligue ao nosso advogado? Que prepare os papéis?
— Pode ser — respondeu ele, num tom que parecia mais estar a dizer: «sim, queria uma azeitona no meu Martini. Mas tanto faz.»
— Não posso acreditar que te demitiste do Congresso.
— Sim, pois.
Miera ansiosa a mexer na sua mala, nos botões do seu casaco de fato, no seu cabelo. Andrew estava sentado de perfil para ela; não se virou uma única vez.
— Aquela rapariga foi encontrada — disse ela.
Ela ficou mudo.
— Andrew... — chamou, baixando a voz.
— Não.
— Tenho de te perguntar. Tenho mesmo. Nunca falei com ninguém sobre isto. E assim que eu voltar costas e me for embora, estará tudo acabado entre nós, não te voltarei a perguntar nada outra vez... — Ela forçou-se a continuar. — Eu não quero mais nada contigo, Andrew. Só quero que me respondas. Há um ano, numa sexta à noite, por alguma razão eu não conseguia dormir por isso vim cá abaixo para te procurar e ouvi-te no escritório. Quando abri a porta para espreitar, não me ouviste, de costas voltadas para a porta e para mim, mais ou menos na mesma posição em que estás agora. Vi-te sentado na cadeira e os teus ombros tremiam... estavas a chorar tanto que eu fiquei com medo que se tivesse acontecido algo terrível a um membro da tua família. Disse o teu nome, mas não me ouviste e depois de repente... senti que me estava a intrometer em algo que eu não queria ver. Não sei porque é que tive aquela sensação, mas tive-a e, por isso, saí em bicos de pés e fechei a porta, achando que me dirias no dia seguinte, de manhã, à noite. Mas nunca me contaste. — Miera calou-se. Depois disse: — Queres contar-me agora?
— Contar-te o quê?
— Como a última coisa que fazes por mim no nosso casamento. — Fechou a mala.
— Eu estava a chorar por ela, Miera — disse o Andrew.
— Era a noite de 14 de maio de 1999, não era Andrew? — A voz de Miera era quase inaudível. — O dia em que dizem que a rapariga desapareceu. — E depois ela foi-se embora, tropeçando ligeiramente no chão escorregadio de mármore com os seus sapatos de couro com uma plataforma de três centímetros. Um agente do Tesouro saiu com ela. Dois ficaram para trás com Andrew.
Algumas horas depois de Miera ter saído, Spencer subiu as mesmas escadas para o bar lounge; no seu fato limpo azul escuro sem marca e com os seus sapatos clássicos pretos, sem escorregar, sem ter uma mala onde mexer, nem procurar o seu vício. Ele não sabia porque é que não tinha trazido Gabe com ele. Não sabia porque é que queria falar com Andrew sozinho.
E isto da Elizabeth Monroe que ele trazia consigo no bolso do casaco há três semanas: «Os Assuntos Internos levaram a cabo uma investigação concreta e exaustiva sobre as alegações contra Spencer Patrick O’Malley e, para além de vagas informações circunstanciais, não foi encontrada prova suficiente de abuso do distintivo na sua profissão ou noutro crime qualquer cometido em seu nome, quer como civil ou profissional, que sustenha uma queixa contra ele de séria má conduta. O assunto fica sumariamente encerrado sem prejuízo.»
Um dos agentes federais no bar, ali com o propósito de proteger o antigo congressista, contou a Spencer que: «o tipo esteve sentado ali como uma pedra naquela mesa durante todo o dia, quase como se estivesse à espera de alguém».
— Obrigado. Vou então falar com ele agora.
— Quer uma bebida, detetive?
— Sim, uma Coca-Cola — disse Spencer. — E com a bebida nas mãos, foi e sentou-se à mesa em frente a Andrew, que virou ligeiramente a cabeça para ele.
— Perguntava-me quando é que ia vê-lo — disse Andrew. — Fico surpreendido que tenha demorado tanto tempo.
Spencer deu um gole e não disse nada. As mãos envolveram o copo. Coca-Cola nas mãos.
— Quer uma bebida? — perguntou Spencer.
— Não, obrigado, já bebi muitas — respondeu Andrew. — Como está a minha irmã?
— Na mesma.
Andrew suspirou dolorosamente.
— Estive a pensar — começou Spencer —, em certas coisas, em coisas que falámos, coisas que eu sei, coisas que adivinho, peças que tento juntar, e sinto sempre que me faltam algumas, aqui e ali.
— Sim. E onde é que esse pensamento o levou?
— A certas coisas que me disse, de que me lembro agora que combinam com as coisas que soube desde que falámos da última vez. Por exemplo: quando lhe perguntei se conhecia a Amy em 1992, disse que não a conhecia nessa altura. Ouço agora a enfâse que não ouvi na altura. «Não a conhecia na altura» foi o que me disse. — Spencer não tirava os olhos de Andrew. — Como se soubesse que ela o conhecia a si na altura.
— Estava a candidatar-me ao Congresso. Claro que ela me conhecia. — Andrew estava fechado.
Spencer aclarou a garganta.
— O Bill Bryant alguma vez lhe ligou? A dizer que eu e a Lily falámos com a mulher dele?
— Ligou, alertou-me. Foi uma das razões de eu ter saído de casa. Tenho estado à sua espera desde então. Pensei que ia vê-lo mais cedo.
— A sua irmã não está bem. Tenho andado ocupado.
— Sim.
— Achei que podia estar interessado nalgumas das descobertas do médico legista. Ele vai proceder a um inquérito em dez dias e fazer uma apresentação formal, mas quer ouvir o preliminar?
— Força. — Isto dito sem expressão.
Na parte de trás do crânio, o médico legista encontrou um traumatismo, como se ela tivesse sido deixada inconsciente, talvez depois de ser violentamente empurrada contra um objeto sólido, talvez a árvore debaixo da qual foi enterrada. Não havia mais ferimentos. Talvez tivesse sido sufocada. A sua vértebra superior, o pescoço, estava intacta. O crânio, para além da fratura de sete centímetros na área do traumatismo, estava intacto. Os outros ossos ilesos foram encontrados todos juntos. — Spencer caiu em silêncio, como se estivesse a dar a Andrew a oportunidade de falar, mas pelo olhar e boca fechada, talvez nunca falasse, por isso Spencer continuou. — Uma vez que não há carne que permita examinar os sinais indicadores de morbidez, o médico legista supõe que uma série de coisas a poderiam ter levado à morte. Sabe o que é mais perturbador? Ele não rejeita a possibilidade de ela ter sido deixada apenas inconsciente, e não morta, e sido assim enterrada nos terrenos lamacentos macios debaixo do carvalho. Não há forma de saber. Mas não rejeita a hipótese de Amy McFadden poder ter sido enterrada viva.
Os ombros de Andrew levantaram-se numa tentativa para se controlar, e tremeram em tentativa de autocontrolo.
— Ela não pode ter sido enterrada viva.
— Não? — perguntou Spencer, nunca de uma forma tão casual, dando mais um gole.
— Detetive...
— Senhor congressista...
— Já não — disse Andrew. — Só Sr. Quinn. Ou Andrew.
— Andrew — disse Spencer. — Porque é que forjou um alibi? O vereador é um bom amigo. Todos devíamos ter amigos como ele. Mas porque é que precisava de um alibi para aquelas horas? Encontrou-se com ela, não foi?
Sem se virar para Spencer, Andrew disse:
— Ela não foi enterrada viva. Ouviu-me?
— Ouvi.
— Ligou-me na quinta, 13 de maio. Não falava com ela nem a via há quatro semanas. Ligou a pedir que fosse ter com ela. Não aqui, como sempre, mas em Central Park, no bosque perto do Trilho Equestre. Eu andava louco sem ela. Fui ao Trilho Equestre como um homem que descobriu a vida outra vez. — Ele não olhava para Spencer. — Fiquei tão feliz por vê-la. Perguntei-lhe porque é que ela queria encontrar-se ali e não no nosso hotel e ela disse porque estava prestes a contar-me algumas coisas que me iam fazer zangar e não me queria a ficar zangado em público. E sabe o que é que eu disse? Nada do que me possas dizer me vai fazer zangar, Amy. Estou tão feliz por me teres ligado. Estou tão feliz por te ver. Senti a tua falta mais do que alguma vez imaginarás.
Foi ali, naquele bosque, que Amy me contou que votou contra mim em 1992. Foi naquele bosque que me contou sobre ela e Benjamin Abrams, sobre ela e Milo. Oh, as coisas que ela me contou! Que tinha estado apaixonada por ele. E que a única razão de ter aparecido na minha vida foi para ajudá-lo a matar-me. E sabe qual foi a minha reação? — Andrew continuou rapidamente antes que Spencer pudesse dar uma resposta. — Não acreditei nela! Foi essa a minha reação. Estás a ser absurda, Amy. Se isto é um esquema para eu me afastar de ti, não vai funcionar. Mas ela disse que não era um esquema. Disse que nunca me iria dizer, mas que Milo tinha saído da prisão e agora andava a fomentar e a empurrá-la para uma coisa que ela disse já não conseguir fazer. Disse que me estava a contar para me avisar, que Milo disse que nada o ia parar até me apanhar outra vez.
Andrew inspirou profundamente e parou de falar.
— Sabe qual foram as palavras, detetive, que se destacaram um pouco para mim — disse Andrew por fim —, o suficiente para parar de não acreditar nela? Foram o «outra vez». O que queres dizer com «outra vez», perguntei eu. E ela contou-me que Milo tinha sido quem tinha baleado as janelas do meu SUV uns anos antes, quase matando a minha mulher e as minhas filhas. Estávamos todos na carrinha. Foi à intenção de magoar a minha família que eu reagi. A Amy sabia onde é que íamos estar, porque eu lhe tinha contado onde nós íamos estar. Eu contei-lhe e ela contou ao Milo. Foi quando caí em mim e percebi que ela estava a dizer a verdade.
Quando Spencer permaneceu calado, Andrew continuou:
— Detetive, a minha família toda estava em perigo, a viver sob o microscópio venenoso deles. As coisas que eu partilhei com ela! Contei-lhe a maioria das coisas privadas sobre a minha mulher, sobre as minhas filhas, a minha irmã. Durante anos a ser perseguido por eles. Gritei: «Amy, Amy, não sabes quanto eu te amo?» Ela disse que sabia. E era a razão de ela estar ali a avisar-me sobre Milo... Perdi a cabeça. Está bem, disse eu, entendo comigo, mas porquê com eles, com a minha família, a minha mulher, as minhas filhas, a Lily, o que eram elas? Vítimas incidentais, acidentais?, perguntei. E sabe o que é que ela respondeu? «Nem isso sequer. São todas apenas ferramentas contra ti, Andrew. A mãe do Ben está morta, o Milo é um morto-vivo, mas a tua mulher, as tuas filhas, a Lily, ainda estão vivas». — A cabeça de Andrew estava baixa. — Devo tê-la agarrado. Já não me lembro claramente. Devo tê-la agarrado. A minha razão abandonou-me. — Ele não levantou o olhar. — Parti-lhe o crânio, acho, na árvore por trás dela, atirei-a contra a árvore, peguei-lhe e mandei-a contra o tronco e quando ela caiu amassada no chão, cobri-a de folhas e vim-me embora. Não a enterrei, não verifiquei se ainda respirava. Ela simplesmente caiu e eu atirei. Empurrei terra, pedras e folhas para cima dela e vim-me embora. E foi tudo. Lavei as mãos no lago de Central Park, tirei o pó de cima de mim e as folhas dos meus sapatos. Tinha estado a chover durante dias, o solo estava húmido. Os meus sapatos ficaram enlameados. Lavei as solas no lago e depois caminhei de volta ao pavimento seco da 57th street, sentei-me lá num bar durante quatro horas e a seguir fui para casa.
A Coca-Cola de Spencer há muito que tinha chegado ao fim. Como ele desejava outro tipo de bebida.
— O que ela me contou foi diabólico. Enquanto eu sonhava com ela, ela sonhava em matar as minhas filhas, em trazer-me sofrimento por algo que eu não provoquei diretamente. Oh, havia uma treta ideológica. Ela mostrou-me uma faceta engraçada e bondosa. Eu traí a minha mulher por essa faceta e durante o tempo todo, ela estava a trair-me. Ela disse que tinha mudado, que o coração dela tinha mudado, mas que estava tudo despedaçado agora que eu conhecia a duplicidade e malícia daquela amada faceta.
Spencer pediu e acabou outra Coca-Cola. Ele e Andrew estavam sentados lado a lado na mesma mesa. Ele tateou as algemas no bolso do seu fato, tateou a arma, tateou o seu gravador a zumbir.
Spencer ficou sentado com Andrew na pequena mesa redonda do Bar 57/57 durante muito tempo. A noite caiu. A gravação há muito que tinha terminado.
Finalmente Spencer levantou-se da mesa.
— O inquérito é dentro de dez dias — disse ele. — O médico legista está a classificar esta morte como homicídio agravado por causa do traumatismo craniano. Mais alguém poderá ter questões para si. Provavelmente vão haver questões para si.
— Não percebo.
— Mas eu vou-me embora agora. Sugiro que vá também.
Andrew olhou para cima para Spencer.
— A Justiça está próxima?
E tirando o seu gravador, Spencer arrancou a cassete e entregou-a a Andrew.
— Não por mim — disse ele. — Misericórdia da minha parte. Por causa de Lily. Percebe agora?
80
O outro lado
O administrador disse mais tarde que primeiro pensou ser um ninho de ratos mortos. Durante semanas o corredor teve um cheiro cada vez mais fétido. Finalmente abriu uma das portas de ferro à prova de fogo que levavam a um pequeno quarto de arrumos, engasgou-se e começou a vomitar mesmo a correr pelo corredor abaixo.
Teve de parar e vomitar antes de continuar a subir até ao piso térreo e chamar a polícia. O fedor era horrível, disse-nos, quase como uma morgue cheia de corpos à temperatura ambiente. A polícia com máscaras de gás descobriu que era apenas um corpo em decomposição. O cheiro a miséria e entusiasmo niilista em alto alívio era o mesmo odor que ainda estava colado ao apartamento de Lily, mesmo passadas semanas depois de Milo ter desaparecido com ela (e com ele próprio, e Amy, e Andrew). Deve ter ficado consciente tempo suficiente para gatinhar de fugida para dentro de um armário para morrer e apodrecer na escuridão, e a carne começar a cair-lhe dos ossos. Ninguém sequer sabia que há muito que estava morto. As ratazanas roeram o que restava dele.
Dois carros da polícia, três ambulâncias e um carro de bombeiros foram chamados a um local em Palisades Parkway, a norte da ponte George Washington, a caminho da Bear Mountain. Parte da autoestrada tinha sido fechada ao tráfego. Spencer estacionou o carro num ângulo bom e conveniente e ele e Gabe desceram cuidadosamente a quase falésia vertical até lá abaixo ao rio Hudson. Pararam a vinte passos do carro acidentado que estava a ser tirado da água. Ele e Gabe andaram lentamente até ao carro, a ajustarem os olhos à escuridão da noite, tentando discernir de que tipo era e quem estava nele.
Spencer tinha muita experiência com acidentes, depois de ter passado anos a patrulhar a autoestrada de Long Island aos sábados à noite. A alguns passos do carro conseguia dizer não só em que estado os passageiros iam estar, mas também os ferimentos que iam ter. Gabe, nunca tendo saído da cidade de Nova Iorque fechada a cadeado, era inexperiente nesta área e não ia ser de grande ajuda, o que se tornou evidente com o seu assobio afinado seguido de um «Oh, merda!». Spencer mandou-o calar. Quando chegou a dez passos do carro, percebeu que as coisas iam ser bastante más. Era um carro desportivo azul, um Mercedes 500SL descapotável. Ele odiava descapotáveis. Gostava de poder explicar as leis da física a cada idiota que pensava ser fixe guiar um descapotável à noite na autoestrada a cento e quarenta quilómetros por hora. Achou que este descapotável podia ter ido a mais velocidade. Este parecia ter ido a trezentos, no momento em que embateu contra a força imóvel da divisória de cimento, voando uma, duas vezes; girando uma, duas vezes, virado ao contrário, arranhado no seu capô conversível por uma deslizante paragem até ir pela falésia abaixo até à água. O carro estava irreconhecível em algo que já tinha tido metal à volta de bancos de pele, talvez um painel e um para-brisas. Apesar de o para-brisas poder proteger o condutor do vento, não era bom a protegê-lo da física. E era sempre um ele, invariavelmente. As mulheres tendiam a conduzir Volvos tipo tanque e a conduzi-los mais devagar, como se ainda se lembrassem dos filhos que tinham deixado em casa, mesmo quando o vento majestoso da noite lhes chicoteava o cabelo.
Spencer e Gabe ficaram silenciosamente ao pé do destroço do carro tentando processar o que estavam a ver. Até o inexperiente Gabe poderia apontar aquilo que não fazia sentido acerca daquele descapotável.
— Ei — disse Gabe. — Não tem condutor.
— Chiu. Não digas nada.
— Achas que havia passageiros?
— Gabe! Isto não é um carro telecomandado. Claro que havia passageiros.
Era um carro de dois lugares. Estava vazio.
— Bem, onde estavam eles?
Spencer olhou em volta. Estava tão escuro só com os focos da polícia e as luzes dos holofotes a iluminar o destroço, e lá em cima, sobre a falésia, o zunir de luz ocasional dos carros que passavam à meia-noite. Mas quer estivesse escuro ou luz do dia, uma coisa era certa: não tinha condutor.
Não havia condutor no carro e o carro estava destruído.
— Porque é que me trouxeste aqui? — perguntou Gabe. — Porque é que estamos a olhar para um acidente de carro em New Jersey à meia-noite? Nem acredito sequer que esta frase me está a sair da boca! Porquê nós? Porquê à meia-noite?
E Spencer respondeu.
— Porque, McGill, Sr. Detetive de Homicídios, este é o carro de Andrew Quinn.
Andrew Quinn nunca foi encontrado.
O PASSADO COMO PRÓLOGO
— Spencer, vê isto?
— Vejo, Katie.
— Os investimentos dela dispararam. Nunca vi uma coisa assim. O fundo dela está a crescer à taxa de trinta e quatro por cento ao ano.
— Joy, vamos almoçar?
— Para de sorrir para mim assim, Larry. Eu sei o que é que o teu almoço implica. Não posso. Estou a tricotar.
Risinhos.
— Leste o jornal esta manhã? Na Etiópia, uma granada explodiu num casamento, matando a noiva e mais três pessoas.
— Mãe, por favor!
— O que foi? Aparentemente, é um costume os convidados dispararem armas nos casamentos, em grande júbilo, embora as granadas sejam mais raras.
— Peço perdão pela minha mãe, Detetive O’Malley.
— Obrigado, mas eu entretenho-me bastante com ela, Sra. Quinn.
— Sra. Quinn, como se sente?
— Podia estar melhor, Dr. DiAngelo. Ando sempre cansada. E queria mostrar-lhe isto.
Há uma pausa, o som de sapatos a andar pelo chão.
— O que acha que é? Alguma espécie de estranha alergia, não?
— Allie, achas que podes parar de mostrar aos médicos as tuas maleitas com a polícia no quarto?
— Oh, o Detetive O’Malley já viu pior do que isto, mãe. Não viu, Detetive?
— Muito pior e pode tratar-me por Spencer, por favor.
— Não, Allie, não te percebo de todo. Porquê fazer isto agora? É só uma alergia!
— Oh, tu podes falar sobre as tuas noivas etíopes a explodir, mas eu não posso mostrar ao senhor doutor um problema real? O doutor está aqui, bem que posso tirar partido disso, não é Dr. DiAngelo?
— Com certeza, Sra. Quinn. Vamos ver o que se passa aí.
Há suspiros, ruídos de roupa a roçar, um silêncio, um aham, um «então, o que é?»
— Bem, Sra. Quinn, lamento mas parece ser bastante sério.
— Oh, não! O que é, senhor doutor?
— Receio que... acho, não tenho bem a certeza, talvez possa ser Leishmaniose cutânea.
Há silêncio e depois um risinho ligeiramente familiar saído da garganta de um homem.
— Ser o quê?
— Sim. Um pequenino mosquito do Médio Oriente com um potente parasita a fervilhar dentro dele que causa feridas feias e persistentes que permanecem durante meses, às vezes anos.
Há um guincho de repulsa incrédula.
— Senhor doutor, o que é que está para aí a dizer? Que mosquitos do Médio Oriente? Estamos no meio de Nova Iorque! É só uma pequena irritação, é o que é, muito normal, só uma pequena irritação.
— Larry!
— Sim, Joy?
— Para de torturar a pobre mulher, isso é completamente inaceitável. Diz-lhe que és um oncologista, não um dermatologista. Allison, não ligue a uma única palavra que ele diz, ele não sabe nada a não ser sobre cancro. Está só a tentar arreliá-la.
— Oh. — E depois: — Isso parece-me completamente inaceitável.
Há gargalhadas por todo o lado.
Ninguém sequer reparou quando Lily abriu os olhos. Estava elevada na cama, no seu limpo quarto de hospital de paredes beges, os quadros dela por todo o lado, lírios brancos por todo o lado pois eles pura e simplesmente não ouvem. Parecia ser meio da manhã. À frente dela estava a televisão, à direita a janela aberta com lírios brancos e uma nesga de céu atrás deles, a mãe e avó estavam ao lado dela, e do outro, à esquerda, estava Spencer, sentado. Atrás dele estava Katie, em pé, a olhar por cima do ombro dele para os mapas financeiros. À direita dele sentava-se Joy, ainda a tricotar a agora considerável camisola amarela. Ao lado dela estava DiAngelo, muito perto. Lily não se mexeu, só os olhos piscavam. Foi Spencer quem levantou os olhos dos mapas e reparou numa Lily acordada.
— Lily, acho que a tua agente aqui merece um aumento. Porque enquanto andaste por aí deitada no hospital, a enxertar medula, ela fez-te ganhar 750.000 dólares.
— A Bela Adormecida está acordada! — exclamou a mãe.
— Lily, finalmente! Quer dizer, sempre dissemos ‘oh, como gostava aquela criança de dormir’, mas acho que desta vez te superaste — disse a avó.
Lily não conseguia falar. Tinha o tubo do ventilador na boca. Mexeu a mão para tirar o tubo e começou imediatamente a engasgar-se.
— Santo Deus — murmurou ela. — Há quanto tempo é que estou aqui?
DiAngelo colocou-lhe o tubo de volta na garganta, ajustou-lhe a máscara sobre a cara, a mola no nariz e pôs-lhe as mãos para baixo novamente sobre o cobertor.
— Desde o teu transplante? Dezoito dias. Não fales. Escreve no teu quadro mágico.
Arrancou a máscara, a mola do nariz e a mangueira do ventilador outra vez. Respirando a engasgar-se.
— Onde está o Papi?
— Oh, já sabes como é o teu pai — disse Allison. — Não consegue estar quieto um segundo. Está lá fora a fumar. Esta manhã disse-me: «vamos só por uma hora, Allie, e depois damos um passeio por Central Park». Ele é impossível.
Lily e a mãe olharam uma para a outra por uns momentos, com Maui nos olhos.
— É muito bom teres acordado. Estás prestes a perder o teu vigésimo sexto aniversário — disse Allison. — Consegues perder tudo de tanto dormir.
Lily disse entre inspirações:
— Viste o quadro que fiz para ti? — Apontou para um óleo sobre tela de uma pequena menina loura ao colo de uma mulher de cabelo castanho num banco de um pátio de aldeia.
— Vi — disse Allison. Não disse nada por um segundo. — Não estou a ver quem é suposto ser aquela. Não se parece nada comigo.
— Lily — disse Joy. — Vamos lá, levanta-te. Não podes ficar aí deitada o dia todo. Reservámos uma sala muito grande no Plaza para celebrar o teu aniversário.
Lily virou a cabeça para olhar inquisitivamente para Joy.
Marcie entrou.
— Oh, olha para isto, saio por cinco minutos e a Corajosa acorda!
— Sim, Corajosa — disse Spencer —, levanta-te. É que o Keanu está no The Replacements and The Watcher. Tens um duplo Keanu à tua espera.
Lily tirou o tubo.
— Ei — disse ela. Podem dar-nos um minuto?
Eles esvaziaram o quarto de bom grado e Spencer aproximou-se dela, colocando a cabeça no espaço entre o braço aberto e o pescoço dela. Ela segurou-lhe a cabeça, fez-lhe festas no cabelo já crescido. Havia lágrimas nos seus olhos que ele não queria que ela visse. Desta vez foi ela que disse: «Shh, shh».
— Diz-me — disse ela, fazendo rápidas inspirações de oxigénio entre as palavras —, perdi alguma coisa?
— Nada — respondeu Spencer com a mão a acariciar-lhe a face. — Está tudo como tu deixaste.
Em outubro, tiraram-lhe o ventilador. No Dia de Ação de Graças, deram-lhe alta do hospital. Nunca mais voltou para a 9th Street na Avenue C. Ficou com Spencer até encontrarem um apartamento num dos edifícios no incrível e novo Battery Park City acabado de estrear, com vista até à baixa e sobre o rio Hudson, com tetos de quatro metros, dois quartos, duas casas de banho, muitos armários e uma sala enorme que se tornou num espaço artístico apropriado para uma rapariga a preparar a sua primeira exposição numa galeria. A sala tinha uma vista de 39 andares para o amanhecer a leste e o pôr do sol a oeste. Tudo aquilo era qualquer coisa e não lhe tinha custado onze milhões.
— Isso é porque não tem sancas — fez Spencer notar.
Uma vez Lily perguntou-lhe o que ele faria se ela tivesse morrido e ele resmungou, brincou e esquivou-se desse modo à resposta, mas no escuro da noite na cama deles, disse:
— Teria pegado no teu dinheiro, dado um quarto dele à tua família, um quarto à Fundação Americana de Leucemia e aposentava-me da polícia. Ter-me-ia mudado para a Flórida e aberto uma agência de detetives nas águas de Key Biscayne. Estaria quente o tempo todo, talvez construísse uma casa espanhola contemporânea. Dessa forma, eu viveria da maneira como querias que eu vivesse, numa casa de que ias gostar. Teria plantado palmeiras para ti, ido ao mar por ti e pensado em ti como a minha última rosa de verão.
Spencer bebia menos. Os intervalos entre as suas quedas ficaram mais longos e uma vez esteve quatro meses sem beber. Contou a Lily que ele não poderia esperar mais da vida do que estar com uma rapariga que o fizesse estar quatro meses sem uísque nas suas mãos.
— Bem, porque agora tens a Lily nas tuas mãos — disse ela. — Estás ocupado, tens as mãos cheias.
Lily continuou a ir ter com Paul ao Christopher Stanley para a sua coloração, apesar de Spencer afirmar que não devia confiar em alguém que mudava a própria cor do cabelo tantas vezes quanto Paul — de louro descolorado para castanho e preto, de novo e constantemente.
Spencer ainda corta o cabelo de Lily.
Para continuar como parceiro de Gabe, Spencer pediu a Whittaker que o transferisse das pessoas desaparecidas para a brigada de homicídios. Depois do almoço de celebração no McCluskey, Gabe afirmou a Lily que foi tudo para que Spencer pudesse finalmente proclamar: «Sou o Detetive O’Malley dos homicídios.»
A avó saía de casa e vinha todas as quintas encontrar-se com Lily para almoçar. Depois, ela e Lily iam ao cinema, e Lily acompanhava-a a Brooklyn onde Spencer a apanhava depois do trabalho.
E às vezes, quando a ilha de Manhattan brilhava sobre o rio, Lily e Spencer ainda estacionavam nas docas de Greenpoint no Buick dele enquanto Bruce Springsteen tocava na rádio.
Anne deixou o KnightRidder e encontrou um novo emprego como escritora financeira na Cantor Fitzgerald. Tinha um escritório no lado sul da torre norte do World Trade Center, no 105.º andar, e em dia limpo, achava ter vista aberta até Atlantic City. O porto de Nova Iorque, a ilha de Ellis, a Estátua da Liberdade, a ponte Verrazano e o oceano Atlântico estendiam-se perante ela. Tinha a secretária virada ao contrário nessa direção para poder sentar-se todas as manhãs quando chegava às oito, beber o seu café e preparar-se assim para o dia. Contou a toda a gente que tinha começado uma vida nova e mais feliz. As irmãs iam visitá-la todas as segundas para almoçarem juntas. Foi assim que repararam os seus laços fraternais. Lily deixava a sua pintura, Amanda os filhos com uma babysitter e encontravam-se ao meio-dia, escolhendo o restaurante à vez. Anne não deixava ninguém pagar.
— É o mínimo que posso fazer — disse a Lily. E numa ou outra terça de manhã, Anne levava Lily ao Mount Sinai para fazer as análises ao sangue. Quando Cantor reclamou por ela chegar às onze em terças alternadas — apesar de ficar no escritório até às nove da noite nesses dias —, Anne disse que podiam despedi-la se quisessem, mas que tinha uma promessa a cumprir: ia levar a irmã que estava em remissão ao hospital.
Cantor Fitzgerald não a despediu.
George e Allison venderam o apartamento no condomínio em Maui e voltaram para o continente, comprando uma pequena casa na Carolina do Norte, perto das Montanhas Blue Ridge. A casa deles ficava num pequeno lago onde George tinha uma doca onde pescava e um barco a remos onde saía de vez em quando.
Tinha uma horta e plantava cem vezes mais coisas do que aquelas que podia comer, abençoando a América pela sua fartura. Dava todos os vegetais aos seus vizinhos de verão. Comprou uma televisão por satélite e via os desportos ao vivo, filmes em abundância, ia à Internet e cozinhava para Allison e para o irmão e a mulher, que viviam perto. Tinha uma vida ocupada. Não viajava muito e Allison também não, tendo aprendido a comprar gin pela Internet com um homem de entregas a deixá-lo mesmo à sua porta.
George tem saudades da sua mulher. Mas os tomates são muito bons no verão. E há a pesca.
Larry DiAngelo casou com Joy. Adotaram uma menina da Coreia do Sul e chamaram-lhe Lily. Joy reformou-se da enfermagem e ficou em casa com a sua bebé, em convicta felicidade diária, a cozinhar e a ver vídeos da Disney.
Jim deixou Jan McFadden. Ela não teve outra escolha senão endireitar-se e criar os filhos gémeos. Vai todos os sábados ao cemitério de Port Jefferson, na Route 112, e senta-se na pedra violeta com os lilases em flor, certamente a mais decorada campa de todo o cemitério, tão colorida e vibrante que se pode ver da estrada sinuosa à distância de um quilómetro, com os tons roxos e violetas a gritar como painéis animados contra o cinzento em redor. Nossa filha amada e amiga, Amy Jean McFadden, 1975—1999».
Quando Lily fala de Amy, ainda diz: «Ela partiu». Ou «Ela desapareceu». Quando Lily suporta falar de Andrew, ainda diz: «Ele partiu». Ou «Ele desapareceu».
Uma pequena placa, uma citação favorita, escrita à mão por Amy: «Quando o ódio sem sentido dominar a Terra, onde vai residir a redenção?» pendia na porta do estúdio de Amy como uma última recordação da vida dela na 9th Street, na Avenue C. Foi depois guardada bem fundo no grande armário de Lily em Battery Park City, por trás das T-shirts de verão, até Lily a ter encontrado um dia e dado a Anne que gostou tanto dela que a pendurou no seu escritório no 105.º andar da torre norte.
Numa dessas manhãs de Nova Iorque demasiado bonita para ficar em casa, até mesmo para Lily que normalmente gostava de voltar para a cama depois de Spencer sair para o trabalho, viu o céu brilhante e limpo, com vinte e quatro graus sem vento — uma maravilhosa manhã de Maui em Nova Iorque, em que tudo parecia não só possível como atingível. Decidiu caminhar três quilómetros com Spencer até à esquadra e depois talvez seguir para o Madison Square Park e desenhar o Flatiron enquanto ainda houvesse luz tão boa, que em breve desapareceria. Esperou por ele, desfrutando no lado soalheiro da rua enquanto ele ia a um estabelecimento buscar cafés. Tinham mesmo de arranjar uma máquina de café que funcionasse.
As análises sanguíneas de Lily estavam tão boas ultimamente que DiAngelo finalmente aprovou umas férias, e Spencer — que nunca tinha ido a lado nenhum —, finalmente e depois de alguma insistência, também aprovou umas. Não para Maui, não para o Cabo San Lucas, não para o Arizona, mas para Key Biscayne. Duas semanas, sozinha com Spencer! Iam sair daí a uns dias e ficariam para o seu 27.º aniversário.
Um descapotável zumbiu ao passar por ela na sossegada Albany Street em direção à autoestrada de West Side. Toda a baixa de Manhattan estava à vista de Lily, de norte a sul. Um homem distribuía panfletos das eleições primárias presidenciais, nessa segunda terça-feira de setembro de 2001, afixando cartazes ao poste mesmo ao lado dela. O seu coração trouxe-lhe a memória dos postes, dos cartazes, o descapotável, os há muito desaparecidos. Lily baixou a cabeça por um momento, depois levantou-a para o céu e inspirou o ar. Estava um dia demasiado majestoso.
Spencer saiu do café e sorriu-lhe, fazendo-lhe um gesto para atravessar a estrada, como se dissesse anda, não tenho o dia todo. Ela sorriu-lhe de volta, acenou, prolongando o momento só mais um pouco, com o sol na sua cara, os blocos de esboços nas mãos.
Lily sabia que Spencer, sempre pronto para pequenas bênçãos, estava agradecido por isto: que ela tivesse estado em coma e à beira da morte quando os ossos de Amy foram descobertos no Trilho Equestre, pois isso deixou que Lily se recordasse de Amy apenas como tinha sido outrora — completamente imaginada e amada —, e não como realmente era, como uma pessoa que Lily nunca conheceu.
E na sua nova vida, Lily Quinn, agora a viver cada último dia com nova alegria, podia continuar a esperar, com uma esperança encantadora, que o seu irmão Andrew e a amiga Amy talvez tomassem conta um do outro num sítio onde não havia outros amantes, que talvez ela tenha esperado por ele até ele próprio se perder e abandonar o seu descapotável depois da igreja de domingo nas águas do Hudson e ela estar a acenar-lhe do outro lado do rio. A rapariga abrandou, o homem entrou e aceleraram num pequeno Honda alugado. Amy e Andrew, Allison e George, Claudia e Tomas, e Lily e o seu Spencer talvez pudessem acelerar, procurando eternamente por um lugar onde nunca seriam encontrados. Sem exigências, sem becos sem saída, sem álcool, sem protocolo, um lugar seguro sem mágoa sem monócitos, sem blastocistos, sem uísque, sem guerra, só com um pouco de misericórdia, uma vida soalheira e húmida e os restos dos seus insondáveis corações humanos livres de fragilidades.
Paullina Simons
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