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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAPARIGA QUE INVENTOU UM SONHO / Haruki Murakami
A RAPARIGA QUE INVENTOU UM SONHO / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em A Rapariga Que Inventou Um Sonho estão reunidos os vinte e quatro melhores contos de Haruki Murakami, escritos entre 1981 e 2005, onde a mestria do autor do best-seller Kafka à Beira-Mar envolve a fantasia com a mais natural das realidades. Do surreal ao mundano, estas histórias exibem a sua habilidade de transformar o curso da experiência humana na mais pura e surpreendente arte literária.
Há corvos animados, macacos criminosos, um homem de gelo... Há sonhos que nos moldam e coisas que sempre sonhámos ter... Há reuniões em Itália, um exílio romântico na Grécia, umas férias no Havai... Há personagens que se confrontam com perdas dolorosas, outras que se deparam com distâncias inultrapassáveis entre os que querem estar o mais próximo possível.
Quase todas as histórias são melancólicas, com personagens submersas pela solidão. Murakami junta os seus temas favoritos: os acontecimentos inexplicáveis (o tal toque de fantástico que provoca por vezes a sua inclusão na corrente do realismo fantástico), as coincidências, o jazz, os pássaros e os gatos. Tal como foi escrito no Los Angeles Times Book Review, "Murakami abraça o fantástico e o real, cada um com a mesma envolvência de intensidade e luminosidade."

 

 

 

 

Quando fechei os olhos, senti o cheiro do vento. Uma aragem de Maio, inchada como uma peça de fruta, com a parte de fora áspera e o interior doce e carnudo, a rebentar de sementes. A polpa aberta e escancarada aos elementos da natureza, libertando as suas sementes de encontro à pele nua dos meus braços e deixando ficar no ar um ténue rasto de dor.
- Que horas são? - perguntou o meu primo. Vinte centímetros mais baixo do que eu, via-se obrigado a olhar para cima quando falava comigo.
Olhei para o relógio.
- Dez e vinte.
- O teu relógio está certo? - perguntou ele.
- Acho que sim.
O meu primo agarrou-me no braço e espreitou outra vez para ver as horas. Os seus dedos, elegantes e macios, revelaram-se espantosamente fortes.
- Foi caro?
- Não, foi muito barato - respondi eu, tornando a olhar para o horário da camioneta.
Não obtive resposta.
Quando olhei para ele, reparei que o meu primo parecia confuso. Os dentes brancos que se viam por entre os lábios entreabertos tinham o aspecto de ossos atrofiados.
"Foi muito barato", repeti eu, sempre a olhar para ele de frente e pronunciando cuidadosamente as palavras. "Foi muito barato mas trabalha na perfeição."
O meu primo fez sinal que sim com a cabeça e não disse nada.
O meu primo não ouve lá muito bem do seu ouvido direito. Pouco depois de ter entrado para a escola, apanhou com uma bola de base-bol na cabeça e desde então ficou com problemas de audição. Isso não o impede, contudo, de funcionar normalmente quase todo o tempo. Anda numa escola vulgar e leva uma vida perfeitamente normal. Na sala de aulas, senta-se sempre na fila da frente, na carteira do lado direito, de modo a ficar com o ouvido esquerdo virado para o professor. De resto, basta dizer que as suas notas não são más de todo. O que acontece é que ele tem períodos em que consegue ouvir os sons relativamente bem, ao passo que noutros tal não se verifica. É por fases, como acontece com as marés. E muito raramente, para aí umas duas vezes por ano, deixa praticamente de ouvir o que quer que seja dos dois ouvidos. Como se o silêncio no seu ouvido direito fosse de tal maneira profundo que esmagasse todo e qualquer som no que toca ao ouvido esquerdo. Quando isso acontece, a chamada vida normal vai às urtigas e ele vê-se obrigado a deixar de ir à escola. Os médicos são os primeiros a não saberem explicar o fenómeno. A verdade é que jamais lhes passou pelas mãos um caso semelhante, daí que não possam fazer nada para remediar o caso.
- Lá por um relógio ser caro não quer dizer que funcione bem - referiu o meu primo, como se estivesse a tentar convencer-se a si mesmo. - Em tempos tive um relógio que custou os olhos da cara, mas passava o tempo a atrasar-se ou a adiantar-se. Deram-me quando entrei para o secundário médio, mas passado um ano já não sabia o que era feito dele. A partir daí, deixei de usar relógio. Não me quiseram comprar mais nenhum.
- Não deve dar muito jeito, essa história de andar sem relógio -comentei.
- O quê? - perguntou ele.
- Disse que não devia dar muito jeito, essa história de andar sem relógio - repeti eu, sem nunca deixar de olhar para ele.
- Por acaso não é bem assim - replicou ele, abanando a cabeça. - Não é propriamente a mesma coisa que viver isolado no meio das montanhas, nem nada que se pareça. Quando preciso de saber a quantas ando, posso sempre perguntar a alguém.
- Tens toda a razão.
Ficámos os dois outra vez calados durante um bocado.
Tinha perfeita consciência de que devia acrescentar mais qualquer coisa, esforçar-me por ser simpático com ele, para ver se conseguia ajudá-lo a ficar mais descontraído antes de chegarmos ao hospital. Acontecia, porém, que não nos víamos há uns bons cinco anos. Entretanto, ele crescera: estava agora com catorze anos, em vez dos nove da altura, e eu já não tinha vinte anos, mas sim vinte e cinco. E nesse espaço de tempo formara-se entre nós uma barreira invisível que se tornava difícil ultrapassar. Mesmo quando me esforçava por dizer alguma coisa, não me saíam da boca as palavras certas. E de cada vez que eu hesitava, de cada vez que engolia o que me preparava para dizer, o meu primo olhava para mim com um ar vagamente assarapantado, ao mesmo tempo que inclinava ligeiramente o ouvido esquerdo na minha direcção.
. - Que horas são neste momento? - quis ele saber.
- Dez e vinte e nove - respondi.
Passavam trinta e dois minutos das dez quando o autocarro apareceu.
Era um autocarro dos modernos, muito diferente dos que eu costumava apanhar quando andava no secundário. O pára-brisas à frente do motorista era muito maior, e o próprio veículo parecia todo ele um enorme bombardeiro, só que não tinha asas. Além disso, estava mais cheio do que eu imaginava. Não vinha ninguém de pé, na coxia, mas não pudemos ficar sentados ao lado um do outro. Como não íamos para muito longe, deixámo-nos estar ao fundo, junto à porta de trás. Quanto às razões que levariam um autocarro a viajar apinhado daquela maneira, àquela hora e num dia de semana, confesso que eram para mim um mistério. O percurso do autocarro tinha início numa estação de caminho-de-ferro da rede privada, atravessava uma área residencial no sopé da encosta e depois percorria o caminho inverso, de volta à estação, além de que não existiam pontos de interesse turístico ao longo do percurso. Em tempo de aulas, os autocarros andavam cheios de miudagem, mas àquela hora do dia o autocarro deveria estar mais vazio.
O meu primo e eu agarrámo-nos bem às correias e aos postes. O autocarro tinha aspecto de novo, parecia acabadinho de chegar da fábrica, e as superfícies metálicas eram tão brilhantes que se podia ver o nosso rosto reflectido. A cobertura dos assentos era macia e muito confortável, e todos os parafusos, até o aparentemente mais insignificante, transmitia aquele sentimento de orgulho e de pertença que apenas as máquinas novas possuem.
O facto de o autocarro ser novo e se encontrar inesperadamente cheio apanhou-me desprevenido. Se calhar, também a rota tinha mudado, desde a última vez que fizera aquele percurso. Inspeccionei com cuidado à minha volta e olhei lá para fora, pela janela. A paisagem, contudo, era a mesma de sempre, e os meus olhos encontraram pela frente a tranquila zona residencial nos subúrbios da cidade que eu tão bem conhecia.
- Vamos bem, não vamos? Este é o autocarro certo? - perguntou o meu primo, vagamente preocupado. Desde que subira para o autocarro, eu devia ter estado sempre com uma expressão apreensiva. ,
- Não te preocupes - disse eu, tanto para o acalmar a ele como a mim. - Por aqui só passa uma carreira, portanto tem de ser este o autocarro.
- Costumavas apanhar este autocarro quando andavas a estudar? - interessou-se o meu primo.
- Acertaste.
- Gostavas de andar na escola?
- Não especialmente - respondi. - Mas era lá que tinha os meus amigos e, além disso, a viagem fazia-se bem.
O meu primo ficou a pensar naquilo que eu acabara de dizer.
- Ainda te encontras com eles?
- Não, há muito tempo que isso não acontece - respondi, escolhendo as minhas palavras com muito cuidado.
- Porquê? Por que é que deixaste de os ver?
- Porque moramos longe uns dos outros. - A razão era outra, mas não arranjei melhor desculpa assim do pé para a mão.
A meu lado viajava um grupo de pessoas de idade. Ao todo, deviam ser uns quinze idosos. Subitamente fez-se luz no meu espírito. Então era por causa deles que o autocarro ia assim tão cheio. Estavam todos bronzeados, até a nuca se encontrava queimada do sol. E tinham a particularidade de serem todos magros. A maior parte dos homens traziam vestidas camisolas grossas, tipo para escalar montanhas; as mulheres usavam blusas simples, sem estampados nem riscas ou quaisquer outros elementos decorativos. Traziam pequenas mochilas ao colo, do género usado para dar pequenos passeios pelas montanhas. Era espantoso verificar as enormes parecenças entre todos eles. Parecia que estávamos a olhar para uma gaveta cheia de amostras de qualquer coisa, muito bem arrumadas umas ao lado das outras. Estranhamente, não existia ao longo daquela linha de autocarro nenhum percurso montanhoso. Era caso para perguntar a caminho de onde é que eles estariam? Agarrado à correia, ali de pé, interroguei-me sobre a questão, mas não me ocorreu nenhuma explicação plausível.
- Quem me dera saber se desta vez me vai fazer doer, a intervenção, quero dizer - voltou à carga o meu primo.
- Não faço ideia - respondi eu. - Não estou a par dos pormenores.
- Alguma vez foste ao otorrino?
Abanei a cabeça. Nunca na minha vida tinha ido a uma consulta de otorrinolaringologista.
- Costuma doer? - perguntei.
- Nada de especial - disse o meu primo com um ar pesaroso.
- Claro que não se pode dizer que nunca dói; dói sempre um bocadinho, mas não é nada do outro mundo.
- Pode ser que desta vez também assim aconteça. A tua mãe disse que não iam fazer nada de muito diferente do habitual.
- Mas se eles se limitarem a fazer o mesmo de sempre, de que é que isso serve?
- Nunca se sabe. Às vezes acontecem coisas inesperadas.
- Como quando se tira uma rolha, é isso que queres dizer? -insistiu o meu primo. Olhei para ele, mas não detectei ponta de sarcasmo na sua expressão.
- Vais ver que sentirás a diferença, pelo facto de teres um novo médico a tratar-te; às vezes, basta uma pequenina alteração no modo de actuar para fazer toda a diferença. Se fosse a ti, não adoptava uma atitude tão derrotista.
- Não tenho uma atitude derrotista - protestou o meu primo.
- Mas dás sinal de estar assim um bocado farto disto tudo, não é verdade?
- Talvez - confessou ele com um suspiro. - O pior é o medo. A dor que eu imagino é pior do que a dor que eu sinto. Sabes o que eu quero dizer?
- Podes crer.
Nessa Primavera muita água correu debaixo das pontes. Verificou-se uma situação aborrecida e acabei por largar o meu posto de trabalho numa pequena empresa de publicidade, ao serviço da qual trabalhara nos últimos dois anos. Mais ou menos pela mesma altura acabei tudo com a minha namorada; andávamos juntos desde os tempos da universidade. Passado um mês, a minha avó morreu de cancro nos intestinos, e, pela primeira vez nos últimos cinco anos, regressei à minha cidade natal, levando apenas uma pequena mala comigo. Fui encontrar o meu antigo quarto tal como o havia deixado. Os livros que eu tinha lido continuavam na estante, a cama em que eu dormia estava no mesmo sítio, o mesmo acontecendo com os meus velhos discos. Ao mesmo tempo, porém, era como se tudo naquele quarto estivesse ressequido e as coisas tivessem perdido as cores e o cheiro de antigamente. Apenas o tempo permanecera imutável.
Estava nos meus planos regressar a Tóquio dois ou três dias depois do funeral da minha avó, para ver se tratava de procurar nova colocação. Além disso, também estava nos meus planos arranjar um novo apartamento, até porque precisava de uma mudança de cenário. Contudo, passavam-se os dias e não havia maneira de eu tirar o rabo da cadeira, decidir-me a dar corda aos sapatos e fazer-me à estrada. Falando com mais propriedade, a verdade é que mesmo que eu quisesse levantar-me e ir à minha à vida, não podia. Passava o tempo todo enfiado no meu quarto, a ouvir os discos antigos, a ler os livros velhinhos, saindo de casa volta e meia só para arrancar umas ervas daninhas no jardim. Não me encontrei com ninguém nem falei com ninguém, fora os membros da família.
Um dia apareceu lá em casa a minha tia e perguntou-me se não me importava de acompanhar o meu primo ao novo hospital. Era para ser ela própria a levá-lo, explicou, mas tinha surgido um impedimento no dia da consulta e via-se impossibilitada de o fazer. Como o hospital ficava perto da minha antiga escola, e eu sabia o caminho, além de não ter mais nada que fazer, vi-me sem razões para recusar. A minha tia passou-me para as mãos um sobrescrito com dinheiro e recomendou-me que levasse o meu primo a comer qualquer coisa.
A troca de hospital aconteceu porque o tratamento que ele estava a fazer no primeiro hospital não tinha produzido melhoras que se vissem. De facto, a situação clínica do meu primo piorara a olhos vistos. Quando a minha tia se queixou disso ao médico assistente, ele sugeriu que o problema do meu primo estaria mais relacionado com o ambiente familiar do rapaz do que com razões médicas, e os dois travaram-se de razões. Escusado dizer que não se estava propriamente à espera que uma mudança de hospital, só por si, operasse melhorias na condição auditiva do rapaz. Apesar de ninguém o afirmar com todas as letras, havia pouca esperança de o ver curado.
O meu primo vivia relativamente perto, mas eu era uns bons dez anos mais velho do que ele e não se podia dizer que alguma vez tivéssemos sido unha com carne. Quando calhava estarmos todos juntos, podia acontecer que o levasse a dar um passeio ou que brincasse um bocado com ele, mas a coisa ficava por ali. Contudo, não tardou que toda a gente começasse a olhar para nós como se formássemos uma parelha, dando a ideia de pensar que não só ele estava muito agarrado a mim como era o meu primo preferido. Durante muito tempo, nunca percebi porquê. Naquele momento, porém, ao ver como ele punha ligeiramente a cabeça à banda, com o ouvido esquerdo virado para mim, achava a cena estranhamente tocante. Como o som da chuva na minha infância, a sua falta de jeito tocou-me fundo. E só então comecei a perceber por que razão as pessoas da nossa família se mostravam tão empenhadas em aproximar-nos.
Após o autocarro ter percorrido mais umas sete ou oito paragens, o meu primo voltou a olhar para mim com uma expressão angustiada.
- Ainda falta muito?
- Um bocado, sim. Mas estamos a falar de um grande hospital, por isso não corremos o perigo de passar por ele sem dar por isso.
Pelo canto do olho, entretive-me a observar a brisa que entrava pela janela aberta e brincava com a aba dos chapéus dos velhotes, ao mesmo tempo que fazia esvoaçar os cachecóis que traziam ao pescoço. Quem eram aquelas pessoas? E qual seria o destino delas?
- E tu, fazes tenções de ir trabalhar para a empresa do meu pai? - inquiriu o meu primo.
Olhei para ele com surpresa. O pai dele, e meu tio, era dono de uma grande tipografia em Kobe. Na realidade, nunca considerara semelhante possibilidade, e nunca ninguém abordara a questão comigo.
- Nunca ninguém me falou no assunto - referi. - Por que é que perguntas?
O meu primo corou.
- Pensei que isso pudesse acontecer - disse ele. - E, vendo bem, porque não? Assim, sempre podias ficar por cá, o que deixaria toda a gente satisfeita.
. Apareceu o nome da estação seguinte no painel luminoso, mas ninguém carregou no botão. Na paragem também não havia ninguém à espera do autocarro.
- A verdade é que preciso de voltar, tenho coisas para fazer em Tóquio - afirmei. O meu primo acenou afirmativamente com a cabeça e não disse nada.
Não havia uma única coisa que tivesse de fazer por lá. Mas, desse por onde desse, ficar ali é que não podia.
À medida que o autocarro subia a encosta, começou a diminuir o número de casas, e os frondosos ramos de árvores lançavam sobre a estrada sombras profundas. Passámos por meia dúzia de casas, pintadas por fora, cercadas por muros baixos, que, a julgar pelo aspecto, deviam ter sido mandadas construir por estrangeiros. Fazia-se sentir uma aragem agradável. De cada vez que o autocarro fazia uma curva, o mar ficava à vista, para logo a seguir tornar a desaparecer. O meu primo e eu seguimos o resto da viagem calados, a ver desfilar a paisagem, até o autocarro chegar junto ao hospital.
- O exame deve demorar e eu prefiro entrar sozinho - adiantou o meu primo, sugerindo que eu fosse dar uma volta enquanto esperava por ele. Depois de ter cumprimentado o médico de passagem, saí do consultório e fui até à cafetaria. Não tinha comido praticamente nada de manhã e estava com uma fome de lobo, mas não havia nada na ementa que despertasse o meu apetite. Contentei-me com uma chávena de café.
Era um dia de semana e, para além de mim, só lá se encontrava uma família de quatro pessoas; era caso para dizer que o barzinho estava por nossa conta. O pai andava na casa dos quarenta, vestia um pijama azul-escuro às riscas e chinelos de plástico. A mãe e as filhas, duas gémeas ainda pequenas, estavam de visita. As gémeas vestiam de igual, dois vestidinhos brancos, e, com os cotovelos apoiados na mesa, bebiam cada uma o seu sumo de laranja com uma expressão séria. Os males -ou a maleita - do pai não tinham aspecto de ser tão graves quanto isso, e tanto os progenitores como as crianças pareciam enfastiados.
Em frente da janela estendia-se um relvado. Um sistema de rega automática girava produzindo um barulhinho característico, salpicando a erva verde de jactos de água prateados. Duas aves com longas caudas voaram baixinho a rasar o aspersor lançando o seu grito estridente e desapareceram ao longe. Atrás do terreno relvado ficavam dois ou três campos de ténis ao abandono, sem redes e ninguém por perto. Passando os campos de ténis distinguia-se uma fileira de olmos japoneses(1) e por entre os seus ramos podia alcançar-se o mar. Os primeiros raios de sol de Verão faziam estremecer as folhas novas dos arbustos, obrigando o repuxo de água do aspersor a mudar ligeiramente de direcção.
Tinha a sensação de já ter assistido àquela cena, muitos anos antes. Um vasto tapete de relva a perder de vista no horizonte, duas gémeas entretidas a beber sumo de laranja, pássaros de cauda comprida cruzando os céus rumo ao infinito, campos de ténis sem redes, o mar ao fundo... Porém, era apenas imaginação minha. Uma ilusão extremamente intensa e real, mas não passando disso mesmo. Nunca na minha vida tinha estado naquele hospital.
Estiquei as pernas e pus os pés em cima da cadeira à minha frente, respirei fundo e fechei os olhos. Conseguia ver uma mancha

*1. Zelkova. (N. da T.)

esbranquiçada no meio do escuro. Dilatava-se e contraía-se, sem fazer barulho. Era como observar um micróbio ao microscópio. Mudava de forma, expandia-se, fragmentava-se, voltava à forma inicial.
A minha ida ao outro hospital tinha sido há oito anos. Tratava-se de um pequeno hospital junto à costa. Da janela, a única coisa que se via eram os oleandros. Era um hospital, e cheirava a chuva. A namorada do meu amigo fora operada ao tórax e tínhamos ido os dois visitá-la. Aconteceu isto nas férias de Verão antes de entrar para a universidade.
Estou a falar de uma intervenção pequena, apenas para corrigir a posição de uma costela, que estava um bocadinho curvada para dentro. Não se tratava propriamente de uma operação urgente, mas sim do tipo de coisa que mais cedo ou mais tarde convinha ser feita, daí que a rapariga tivesse achado que chegara a hora. A operação em si não foi muito demorada, mas aconselharam-na a permanecer no hospital durante dez dias, a fim de recuperar plenamente. O meu amigo e eu deslocámo-nos até ao hospital numa Yamaha 125. Para lá foi ele a guiar, a mim coube-me trazer a moto na viagem de regresso. Tinha sido ele a pedir-me para o acompanhar. "Nem pensem que me apanham no hospital sozinho", afirmara ele.
O meu amigo parou numa loja de doces perto da estação e comprou uma caixa de chocolates. Eu fui o caminho todo agarrado com uma mão ao cinto dele, enquanto com a outra segurava na caixa de chocolates. Estava um dia quente e as nossas camisas tanto ficavam ensopadas em suor como logo a seguir secavam sob o efeito do vento. Enquanto conduzia, o meu amigo foi sempre a cantarolar uma canção horrível, se é que se podia chamar àquilo uma canção. Ainda me lembro do cheiro do seu suor. Passado pouco tempo, ele morreu.
Ela trazia vestido um pijama azul e uma espécie de roupão fininho que lhe dava pelos joelhos. Sentámo-nos os três numa mesa da cafetaria, a fumar cigarros Short Hope, a beber Coca-Cola e a comer gelados. Ela estava esganada e não resistiu a dois donuts com cobertura de açúcar, tudo acompanhado de cacau com carradas de natas. Que, diga-se de passagem, nem mesmo assim pareceu saciar a sua fome.
- Quando saíres daqui, vais parecer uma verdadeira baleia - observou o meu amigo, com um ar crítico.
- É preciso, estou em fase de convalescença - replicou ela, ao mesmo tempo que lambia a ponta dos dedos, envoltos na calda açucarada dos bolos.
Enquanto os dois se entretinham a trocar galhardetes, pus-me a olhar para os oleandros através das vidraças. Estavam muito crescidos, mais parecendo formar uma pequena floresta entre si. Também se ouvia o barulho das ondas. O gradeamento em frente da janela estava completamente enferrujado devido à permanente erosão provocada pela brisa salgada. Uma ventoinha de aspecto antiquado dispersava o ar quente e pegajoso. A cafetaria tinha o cheiro característico dos hospitais, que se entranhava em tudo o que era comida e bebida. O pijama da rapariga que namorava o meu amigo tinha dois bolsos à altura do peito, e por um deles espreitava uma pequena esferográfica dourada. Sempre que ela se debruçava, dava para eu ver os seios brancos e pequenos pela abertura em V do seu decote.
As recordações ficam-se por aí. Esforcei-me por fazer desfilar diante dos meus olhos as imagens do que aconteceu a seguir. Bebi a minha Coca-Cola, contemplei os oleandros, deitei uma olhadela furtiva ao peito dela - e depois? Mudei de posição na cadeira e, com a cabeça entre as mãos, procurei mergulhar fundo nos estratos da memória. Era o mesmo que pretender tirar a rolha de uma garrafa com a ponta de uma faca pequena e afiada.
Olhei para o lado e esforcei-me por visualizar a cena, imaginando os médicos afadigando-se numa operação a peito aberto, com as mãos enfiadas em luvas cirúrgicas, a fim de lhe corrigirem a posição da costela. Na verdade, porém, tudo aquilo me parecia demasiado irreal, envolvendo uma espécie de alegoria.
É verdade, lembrei-me agora - depois a conversa encaminhou-se para o sexo. Pelo menos o meu amigo falou disso. E o que terá ele dito? Qualquer coisa a propósito da minha pessoa, quase apostava. Como eu me esforçara ingloriamente por engatar uma miúda. Não se podia dizer que a história tivesse ponta por onde se lhe pegasse, mas ele conseguiu dar a volta ao texto e, pecando por exagero, lá pôs a rapariga às gargalhadas. Até eu me desatei a rir. Não havia dúvida de que ele tinha jeito para contar histórias.
- Não me faças rir assim - pediu-lhe ela, um bocado atrapalhada. - Dói-me o peito quando me rio.
- Onde é que te dói? - quis saber o meu amigo.
Ela tocou com o dedo num ponto do pijama mesmo por cima do coração, à direita do seio esquerdo. Ele fez uma piada qualquer a propósito e ela escangalhou-se outra vez a rir.
Vi as horas. Eram onze e quarenta e cinco e o meu primo continuava sem aparecer. Estava a aproximar-se a hora do almoço e a cafetaria começava a encher-se de gente. Todo o tipo de vozes e sons, misturados como fumo, envolviam o ambiente. Tornei a procurar refúgio nas minhas recordações desse dia. E a evocar a canetinha dourada que ela tinha no bolso da frente do seu pijama.
Ah, é verdade, já me esquecia de dizer que ela usara precisamente aquela mesma caneta para escrevinhar num guardanapo de papel.
Um desenho. Ela tinha desenhado qualquer coisa. O guardanapo era demasiado fino e a ponta da caneta estava sempre a emperrar. Ainda assim, ela lá conseguiu desenhar uma montanha. E uma casinha no topo da montanha. Dentro da casa uma mulher dormia. E a toda a volta da casa cresciam salgueiros cegos. Tinha sido por causa dos salgueiros cegos que a mulher adormecera.
- Que raio de coisa é um salgueiro cego? - perguntou o meu amigo.
- Existe uma árvore com esse nome.(2)
- Bom, se existe eu nunca ouvi falar dela.
- Isso é porque fui eu que a inventei - disse ela, com um sorriso. - Os salgueiros cegos estão cheios de pólen, e quando umas moscas pequenas transportaram o pólen agarrado às patas para dentro do ouvido da mulher, ela caiu num sono profundo.

*2. O salgueiro é o nome dado às plantas do género Salix, da família Salicaceai. Julga-se que o nome seja de origem celta, significando "próximo da água", e na Bíblia existe uma referência a esta árvore de beira-rio (Salmo 137). São muitas as espécies de salgueiros, tantas quantas as simbologias que lhe estão associadas, da antiga civilização romana à China dos nossos dias, passando pelo judaísmo. (N. da T.)

Agarrando num outro guardanapo, ela traçou os contornos de um salgueiro cego. Era do tamanho de uma azálea. A árvore estava em flor e as suas flores despontavam no meio de folhas de um verde-carregado que mais pareciam caudas de lagartos dispostas em cacho. Vendo bem, o salgueiro cego não se parecia nada com um salgueiro.
- Arranjas-me um cigarro? - pediu o meu amigo. Atirei-lhe um maço todo amassado e ensopado de Hope e meia dúzia de fósforos por cima da mesa.
- Visto de fora, à superfície da terra, um salgueiro cego pode parecer pequeno, mas tem umas raízes espantosamente profundas -explicou ela. - Na verdade, a partir de um determinado ponto deixa de crescer e começa a enterrar-se cada vez mais. Dir-se-ia que se alimenta de escuridão.
- E as moscas transportam o pólen para dentro do ouvido da mulher e põem-na a dormir - atalhou o meu amigo, vendo-se aflito para acender o cigarro com os fósforos húmidos. - E depois, o que acontece às moscas?
- Devoram. Saciam-se e comem a carne da mulher por dentro, naturalmente - disse a namorada do meu amigo.
- Ora toma. Embrulha e leva para casa - rematou o meu amigo.
Agora me recordo: nesse Verão, ela também escreveu um longo poema acerca do salgueiro cego e fez questão de o traduzir para nós, do princípio ao fim. Foi o único trabalho de casa que ela fez nessas férias grandes. Inventou uma história com base num sonho que teve certa noite e depois passou uma semana na cama a escrever esse tal poema que nunca mais acabava. O meu amigo bem que o queria ler, mas ela não deixava, dizendo que ainda estava a corrigi-lo; em vez disso, esboçava aqueles desenhos e resumia o essencial do poema com a ajuda das imagens.
A fim de salvar a mulher adormecida pelo efeito do pólen, um jovem aprestava-se a subir a montanha.
- Só posso ser eu - comentava o meu amigo. ! Ela abanava a cabeça.
- Não, não és tu.
- Tens a certeza?
- Tenho - afirmou ela, pondo uma cara muito séria. - Não me perguntes porquê, mas sei. Não ficas zangado, pois não?
- Ai isso é que fico - retorquiu ele, meio a sério, meio a brincar.
Abrindo caminho por entre os frondosos salgueiros cegos, o rapaz subiu vagarosamente a montanha. Era ele o primeiro a chegar lá acima, depois de os salgueiros terem invadido tudo. Com o boné sobre os olhos, usando as mãos para afastar os enxames de moscas que à sua volta zumbiam, o jovem continuou a sua escalada, apostado em ver a mulher adormecida. A fim de a acordar do seu longo e profundo sono.
- Porém, ao chegar ao topo, já o corpo da mulher tinha sido devorado por completo pelas moscas, acertei? - alvitrou o meu amigo.
- Num certo sentido, sim - respondeu ela.
- Ser comido pelas moscas faz dessa história, num certo sentido, uma história muito triste, não te parece? - observou o meu amigo.
- Sim, parece-me que tens razão - disse ela, depois de pensar um bocadinho. - E tu, qual é a tua opinião? - perguntou-me, virando-se para mim.
- Acho que se trata de uma história triste - respondi.
Passavam doze minutos do meio-dia quando o meu primo apareceu outra vez junto de mim. Trazia na mão um saquinho com medicamentos e via-se que estava com uma certa dificuldade em focar o olhar. Depois de se ter mostrado à porta da cafetaria, precisou de um certo tempo para descobrir onde é que eu me encontrava e vir ter comigo. Caminhava de uma forma desajeitada, como se tivesse dificuldade em manter o equilíbrio. Ao chegar junto de mim, sentou-se e deixou escapar um suspiro enorme, como se durante aquele tempo todo tivesse estado demasiado ocupado para pensar sequer em respirar.
- Como é que correu? - inquiri.
- Mmm - articulou ele. Fiquei à espera que dissesse mais alguma coisa, mas isso não aconteceu.
- Tens fome? - perguntei.
Ele fez que sim com a cabeça e continuou calado.
- Queres comer qualquer coisa aqui? Ou apanhamos o autocarro e vamos almoçar à cidade?
Ele olhou à volta, sem saber para onde se virar.
- Pode ser aqui - disse ele. Comprei senhas para o almoço e mandei vir duas ementas do dia para nós os dois. Enquanto a comida não vinha, o meu primo deixou-se estar ali, mudo e quedo, a olhar pela janela para a mesma paisagem sobre a qual recaíra o meu olhar - o mar, a fila de olmos japoneses, o aspersor de rega.
Na mesa ao lado da nossa estava um casal de meia-idade todo aperaltado, a comer sanduíches e a conversar acerca de um amigo que tinha um cancro no pulmão. De como ele deixara de fumar havia cinco anos, mas que já não fora a tempo, de como ele costumava cuspir sangue logo de manhã, mal acordava. A mulher fazia as perguntas, e o marido dava as respostas. De certa maneira, explicava o homem, ficamos a saber a vida de uma pessoa pelo tipo de cancro de que ela padece.
O nosso almoço consistiu em bifes picados e peixe branco frito, acompanhado de salada e pão. Sentámo-nos e, de frente um para o outro, comemos a nossa refeição em silêncio. Durante todo o tempo, o casal ao nosso lado não se calou com a história sobre o cancro, explicando como é que começava, por que razão tinha aumentado a percentagem de cancros, porque é que não existia ainda uma cura para combater a doença.
- É sempre a mesma história em toda a parte - disse o meu primo numa voz monocórdica, a olhar para as suas mãos. -Todos fazem as mesmas perguntas, os mesmos exames.
Estávamos sentados num banquinho defronte do hospital, à espera do autocarro. De vez em quando soprava uma aragem que fazia mexer as folhas verdes por cima de nós.
- É verdade que por vezes ficas sem ouvir rigorosamente nada? -perguntei.
- É verdade - respondeu o meu primo. - Deixo por completo de ouvir.
- Qual é a sensação?
Ele inclinou a cabeça de lado, a remoer naquilo.
- De repente, sem mais nem menos, uma pessoa deixa de ouvir. Mas demora o seu tempo, até se dar por isso. E nessa altura já não se ouve nada. É um bocado a sensação de estar no fundo do mar com tampões de mergulho nos ouvidos. A coisa prolonga-se e durante esse tempo deixamos de ouvir, mas não é só uma questão de ouvidos. Não ouvir nada é apenas parte da verdade.
- Incomoda-te muito?
Ele abanou a cabeça, só uma vez e de forma categórica.
- Não sei porquê, mas não me perturba por aí além. Bom, reconheço que é, de facto, pouco prático. Quero dizer, a história de uma pessoa não conseguir ouvir bem.
Tentei imaginar a cena, mas não consegui.
- Alguma vez viste o filme Forte Apache, realizado por John Ford? - perguntou o meu primo.
- Há muitos anos - disse eu.
- Passou recentemente na televisão. É realmente um grande filme.
- A-hã - confirmei.
- O filme começa com a chegada de um novo general a um forte do Oeste americano. É recebido no local por um capitão da velha-guarda, papel esse desempenhado por John Wayne. O coronel não está a par das coisas que se passam naquelas paragens. É- bom não esquecer que o forte se encontra localizado em pleno território índio.
Neste ponto, o meu primo tirou um lenço branco muito bem dobrado do bolso e usou-o para limpar a boca.
- Ao chegar ao forte, o general vira-se para a personagem do John Wayne e diz-lhe: "Encontrei alguns índios apaches quando me dirigia para cá." E o John Wayne, com aquele seu ar despreocupado estampado na cara responde: "Não se preocupe. Se conseguiu ver índios, isso significa que eles não andam por estas paragens." Agora já não me lembro das palavras exactas, se não era isso, andava lá perto. Estás a perceber onde ele queria chegar?
Confesso que não me lembrava de uma única deixa do filme. Confesso que tudo aquilo me parecia um bocadinho absurdo para um filme do John Ford, mas a verdade é que já tinha visto o filme há muito tempo.
- Significa que se conseguimos ver uma determinada coisa, é porque essa coisa não é assim tão importante... acho eu.
O meu primo franziu a testa.
- Também não percebo muito bem, mas o certo é que sempre que alguém dá mostras de se preocupar com os meus ouvidos, vem-me sempre à cabeça essa frase. "Se conseguiu ver índios, isso significa que eles não andam por estas paragens."
Ri-me.
- Achas divertido? - perguntou o meu primo.
- Acho - repliquei, ainda a rir, o que teve o condão de o contagiar. Há muito tempo que não o ouvia rir assim.
Passado um bocado, o meu primo virou-se para mim e disse-me, como se quisesse libertar-se de um fardo:
- Importavas-te de espreitar para o interior dos meus ouvidos?
- Olhar para dentro dos teus ouvidos? - repeti, um tanto ou quanto abismado.
- Só para saber o que se consegue ver de fora.
- Claro que não me importo, mas por que é que queres que faça isso?
- Não sei - disse ele, todo vermelho. - Gostava que tu visses o aspecto que têm.
- Tudo bem - disse eu -, vamos lá dar uma espreitadela.
O meu primo sentou-se de costas e inclinou o ouvido direito para mim. Por sinal, um ouvido muito bem-feitinho. Era bastante pequeno, mas tinha o lóbulo macio como uma madalena acabada de sair do forno. Nunca tinha olhado para dentro das orelhas de ninguém tão ao pormenor. Quando se olha com atenção, o ouvido humano - a sua estrutura - consegue surpreender pelos mistérios que esconde. Com todas as suas curvas e contracurvas, relevos e depressões. Pode muito bem ter sido a evolução a determinar que esta estranha forma fosse a melhor maneira de captar sons ou de proteger os órgãos internos. Rodeada por aquela parede assimétrica, a entrada do ouvido abre-se como a entrada de uma caverna escura e sinuosa, escondida.
Imaginei a namorada do meu amigo, com uma quantidade de larvas microscópicas a fazer ninho na sua orelha. O pólen adocicado, agarrado às suas patinhas, enquanto elas se aventuram a descer pela obscuridade tépida, absorvendo à passagem todos os sucos e depositando os ovos minúsculos dentro do cérebro dela. A verdade, porém, é que não se consegue ver as moscas, nem tão-pouco ouvir o som das suas asas.
- Pronto, já chega - disse o meu primo.
Ele mudou de posição no banco e virou-se até ficar sentado de frente para mim.
- Então, encontraste alguma coisa fora do vulgar? Pelo menos de fora, à vista desarmada. Podes dizer à vontade, caso haja alguma coisa que te pareça esquisita.
- A meu ver, os teus ouvidos estão perfeitamente normais.
O meu primo pareceu ficar desapontado. Se calhar, não devia ter dito aquilo assim.
- O tratamento foi doloroso? - perguntei.
- Não, não doeu. Foi a mesma coisa de sempre. Andaram para aqui às voltas, a mexer no mesmo sítio. Qualquer dia, ainda me gastam os ouvidos. Há alturas em que tenho a sensação de que os ouvidos já nem sequer são os meus.
- Vem aí o número vinte e oito - disse o meu primo passado um bocado, de frente para mim. - É o nosso autocarro, não é?
Por essa altura, encontrava-me perdido em pensamentos. Quando ele disse aquilo, levantei os olhos e vi o autocarro diminuir a velocidade, à medida que fazia a curva e começava a subir a encosta. Não era um daqueles autocarros mais modernaços, em que tínhamos feito a viagem para lá, mas um dos antigos, que eu conhecia do meu tempo. Exibia à frente um letreiro com o número 28. Queria levantar-me do banco, mas não era capaz. As pernas não me obedeciam, como se tivesse sido apanhado no meio de uma corrente muito forte. Tinha estado a pensar na caixa de chocolates que leváramos connosco, naquela tarde de Verão longínqua em que nos deslocáramos ao hospital. Lembro-me de que a alegria da rapariga não durara muito tempo, ao abrir a caixa e descobrir que os doze chocolates estavam completamente derretidos, colando-se ao papel que separava a caixa do conteúdo. No caminho para o hospital, o meu amigo e eu tínhamos estacionado a motorizada ao pé do mar, aproveitando para ficarmos à conversa, deitados na areia. Durante todo esse tempo, a caixa de chocolates ficara à mercê do impiedoso sol de Agosto. Devido ao nosso descuido, a que se somara o egoísmo da nossa parte, os chocolates tinham-se estragado e transformado numa papa homogénea imprópria para consumo. Devíamos ter percebido que isso poderia acontecer. Um de nós - não importava quem - devia ter-se lembrado e dito alguma coisa. A verdade, porém, é que naquela tarde nenhum dos dois viu o que estava para acontecer. Limitámo-nos a trocar duas ou três piadas foleiras, despedimo-nos e tornámos a descer por aquela colina povoada de salgueiros cegos. O meu primo agarrou-me com força pelo braço.
- Está tudo bem contigo? - perguntou.
As palavras dele trouxeram-me de volta à realidade, e eu levantei-me do banco. Dessa vez, não tive dificuldade e as pernas obedeceram-me. Voltei a sentir na pele a doce brisa de Maio. Por dois ou três segundos, imaginei-me num lugar estranho e sombrio. Onde tudo o que os meus olhos viam não existia, mas o que era invisível sim. Até que, finalmente, o verdadeiro autocarro número 28 se imobilizou diante de mim e a sua porta, inteiramente real, se abriu para me deixar entrar. Subi os degraus e deixei-me transportar para outras paragens.
Pousei a minha mão no ombro do meu primo.
- Está tudo em ordem - disse eu.


A MENINA DOS ANOS


Era sexta-feira e ela encontrava-se, como sempre, a servir às mesas, no dia em que completava 20 anos. Trabalhava sempre às sextas, mas nesse dia particular tinha combinado com uma colega de trabalho, de modo a ficar com a noite livre. Por sorte, a outra rapariga tinha-se mostrado desde logo disposta a trocar de turno: apanhar com os gritos de um cozinheiro furibundo enquanto distribuía pelas mesas dos comensais pratos de gnocchi de abóbora e espetadas de frutos-do-mar não era a maneira ideal de celebrar o dia dos seus anos. infelizmente, a sua colega piorara da constipação e ficara de cama com 40 graus de febre e uma diarreia que não havia meio de parar. Avisada em cima da hora, ela não teve outro remédio senão apresentar-se ao trabalho.
"Não te preocupes", tinha ela dito quando a outra telefonara a pedir desculpa pelo transtorno. "Também não estava a pensar em fazer nada de especial, apesar de ser o dia do meu vigésimo aniversário."
E, de facto, não se pode dizer que tenha ficado particularmente desgostosa. A principal razão para isso era o facto de ter discutido, e de que maneira, com o namorado, com quem planeara, em teoria, fazer qualquer coisa nessa noite. Andavam juntos desde o secundário. A discussão nascera do nada, mas depois, palavra puxa palavra, a coisa assumira contornos mais dramáticos e transformara-se numa longa e amarga disputa em que ambos gritaram a sua fúria - suficientemente má para ter estraçalhado de uma vez por todas os laços que desde há muito os uniam. Algo dentro do seu coração se transformara em pedra e morrera para sempre. Ele não voltara a entrar em contacto com ela desde que se tinham travado de razões e, pela parte que lhe tocava, ela não sentia a mínima vontade de tomar a iniciativa de lhe telefonar.
O restaurante italiano em que ela trabalhava era um dos mais conhecidos no cosmopolita bairro de Roppongi(1), em pleno coração de Tóquio. Estava a funcionar desde meados dos anos 60 e, apesar de continuar fiel aos pratos da velha cozinha, o restaurante continuava a valer pela qualidade da sua cozinha tradicional, pelo que os clientes não tinham qualquer razão de queixa. A sala de jantar tinha uma atmosfera calma e acolhedora, sem sinais de novo-riquismo. Mais do que apelar às camadas jovens, o ambiente atraía, em grande parte, clientes com uma certa idade, entre os quais se contavam algumas pessoas famosas nos meios artísticos, entre actores e escritores.
Havia dois empregados que trabalhavam a tempo inteiro, seis dias por semana. Ela e uma outra, contratadas em regime parcial, eram estudantes que trabalhavam alternadamente durante três dias. Para além disso, havia ainda a registar a presença de um gerente e, na caixa, uma senhora magra de meia-idade, que, segundo corria à boca pequena, se mantinha firme no seu posto desde que o restaurante abrira as suas portas. Firme no seu posto, à imagem e semelhança de uma daquelas ilustres e vetustas personagens, com o seu quê de sombrio, saída do romance A Pequena Dorrit(2) de Charles Dickens. Estava encarregue de duas coisas: fazer a caixa e atender o telefone. Só abria a boca quando estritamente necessário e estava sempre vestida de preto. Havia nela qualquer coisa de duro e de frio; se fosse deixada a vogar à noite em pleno mar, o mais provável era ir contra todos os barcos que se cruzassem na sua rota e mandá-los direitinhos para o fundo.
Quanto ao gerente do restaurante, devia andar pelos quarenta e muitos. Alto e largo de ombros, via-se, só de olhar para a sua constituição, que devia ter feito desporto na sua juventude, se bem que,

*1. No coração da vida nocturna de Tóquio, misturam-se japoneses e turistas ocidentais na procura de todo o tipo de música (mas também há restaurantes, cinemas, museus e lojas, num cenário que parece tirado do filme Blade Runner). (N. da T.)
2. Little Dorrit no original. Edição portuguesa Círculo de Leitores, Lisboa, 1987. (N. da T.)

com o passar dos anos, tivesse acumulado pregas de gordura tanto na barriga como no queixo. Também o cabelo, curto e espetado, começava a rarear no alto da cabeça, e desprendia-se dele um odor vagamente bafiento que fazia lembrar um solteirão - parecido com o cheiro de jornais guardados durante muito tempo numa gaveta, à mistura com rebuçados de mentol para a tosse. Ela tinha na família um tio solteirão que cheirava à mesmíssima coisa.
O gerente usava sempre fato escuro, camisa branca e lacinho -não um daqueles que se compram já prontos a usar, juntamente com a camisa, mas um verdadeiro laço, que ele, muito ufano, fazia questão de apertar à mão, com toda a perfeição, sem ter sequer o espelho à frente. Dia após dia, executava eficazmente com grande eficácia as suas tarefas, que consistiam em receber os comensais e conduzi-los às suas mesas, e mais tarde despedir-se deles, tratar das reservas, saber de cor o nome dos clientes mais antigos e fiéis e recebê-los com um sorriso, mostrar-se receptivo a toda e qualquer reclamação que pudesse surgir, usar os seus conhecimentos para dar conselhos avisados em matéria de vinhos e supervisionar o trabalho dos empregados e das empregadas de mesa. A essas incumbências, juntava-se ainda uma outra, que consistia em transportar ele o jantar até ao apartamento onde o dono do restaurante vivia.
- O proprietário tinha um apartamento alugado no sexto andar do mesmo prédio onde ficava o restaurante.
Sem saber muito bem como, acabámos os dois a falar sobre o dia do nosso vigésimo aniversário. A maior parte das pessoas lembra-se muito bem desse dia. O dela tinha sido há mais de dez anos.
- Acontece que ele nunca, mas nunca se mostrava no restaurante. O gerente era a única pessoa a conhecer o aspecto dele, uma vez que tinha por obrigação levar-lhe a comida. De resto, nenhum dos outros empregados lhe tinha alguma vez posto a vista em cima.
- Quer então dizer que o dono do restaurante mandava entregar todos os dias em sua casa a comida feita no seu próprio restaurante?
- Isso mesmo - confirmou ela. - Todas as noites, por volta das oito, o gerente estava incumbido de lhe aparecer em casa com o jantarínho pronto. Como era a hora de maior movimento no restaurante, a ausência do gerente representava sempre um problema para nós, mas o certo é que não havia volta a dar-lhe, uma vez que todo aquele ritual já vinha de trás. A refeição era colocada num daqueles carros de rodas como os que são usados pelos hotéis no serviço de quartos, depois o gerente encarregava-se de empurrar o carrinho, sempre com uma expressão muito séria, para regressar quinze minutos mais tarde de mãos a abanar. Depois, passada uma hora, tornava a ir lá acima para recolher os pratos vazios e os copos. Isto repetia-se todos os dias, sempre exactamente igual, como o mecanismo de um relógio. A primeira vez que assisti à cena, confesso que tudo aquilo me pareceu um bocado estranho. Como se tivesse qualquer coisa de uma cerimónia religiosa, estás a ver? Mas depois, com o tempo, habituei-me e deixei de me preocupar.
O dono do restaurante comia sempre pratos de galinha. O modo de confeccionar e os acompanhamentos podiam variar, de dia para dia, mas o prato principal era sempre à base de galinha. Um jovem cozinheiro tinha-lhe confidenciado uma vez que experimentara enviar frango assado no forno durante uma semana inteira, só para fazer um teste, mas que jamais recebera qualquer reclamação. Como seria de esperar, todo o cozinheiro que se preze gosta de fazer experiências e de preparar as coisas à sua maneira, acontecendo por isso que, de cada vez que o cozinheiro mudava, a primeira coisa que fazia era dar largas à imaginação e arranjar mil e uma maneiras de cozinhar galinha. Inventavam novos molhos, cada um mais requintado do que o outro, mandavam buscar as galinhas a novos fornecedores, mas tais esforços revelavam-se inúteis. Era o mesmo que passar o tempo a atirar pedras para dentro de uma caverna deserta. No final, acabaram todos por desistir e optaram por enviar ao dono do restaurante a mesma versão do velho e requentado prato de frango. Vendo bem, ninguém lhes exigia mais do que isso.
No dia do seu aniversário, a 17 de Novembro, o trabalho correu como de costume. Ao princípio da tarde, a chuva começara a cair a intervalos regulares, e, mal escurecera, transformara-se num verdadeiro temporal. Às cinco da tarde, o gerente reuniu os empregados a fim de os elucidar acerca dos pratos do dia. Aos empregados de mesa, era pedido que memorizassem a ementa, palavra por palavra, e que não recorressem em caso algum a quaisquer notas
rabiscadas num pedaço de papel: escalopes de vitela à Milanesa, massa com couves e sardinhas, mousse de avelã. Por vezes, acontecia o gerente fazer as vezes de comensal e, à laia de teste, fazer perguntas a que os empregados eram obrigados a responder. Finalmente, os empregados tomavam a sua refeição: decididamente, nunca um empregado daquele lugar correria o risco de ser apanhado em flagrante pelos clientes, em chegada a hora de fazer o pedido, com o estômago a dar horas!
O restaurante abriu as suas portas às seis, mas os primeiros clientes tardaram em chegar devido à forte chuvada que se fazia sentir e que levou até algumas reservas a serem canceladas. Era provável que as senhoras não quisessem aventurar-se e expor os seus vestidos de cerimónia aos efeitos devastadores da chuva. Enquanto o gerente andava de um lado para o outro, de expressão fechada e lábios cerrados, os empregados aproveitaram para matar o tempo polindo tudo o que fossem saleiros e pimenteiros ou trocando impressões com o chef. Quanto a ela, mantinha-se atenta à sala de jantar, onde se encontrava um único casal sentado à mesa, enquanto escutava a música de cravo que provinha discretamente através das colunas instaladas no tecto. O profundo odor das chuvas tardias de Outono enchia o restaurante.
Já passava das sete e meia quando o gerente começou a sentir-se adoentado. Sem forças, deixou-se cair numa cadeira e ali se deixou ficar durante um bocado, sempre agarrado ao estômago, como se tivesse sido atingido a tiro. Uma camada de suor gorduroso colava-se-lhe à testa. "Acho melhor que me levem ao hospital", pediu ele com a voz num murmúrio. Não era nada coisa dele adoecer assim de repente e ver-se obrigado a dar parte de fraco: desde que começara a trabalhar naquele restaurante, que é como quem diz, já lá iam uns bons dez anos, não havia memória de ter faltado um dia ao trabalho. De resto, isso representava um ponto de honra para ele, nunca estar doente nem ferido, mas bastava olhar e ver a sua expressão de dor para perceber que ele estava realmente atrapalhado.
Ela pegou num chapéu-de-chuva e foi lá fora para ver se chamava um táxi. Um dos empregados de mesa ajudou o gerente a pôr-se de pé e subiu com ele para dentro do carro, a fim de o acompanhar ao hospital mais próximo. Antes de entrar para o táxi, o gerente disse-lhe com maus modos: "Quando forem oito horas, quero que leves o jantar ao apartamento 604. Só tens de tocar à campainha, dizer "Aqui tem o seu jantar" e deixar ficar o carrinho."
"Apartamento 604, diz o senhor?"
"Às oito em ponto", repetiu ele, antes de voltar a fazer uma careta de dor. Em seguida apareceu um táxi e eles foram-se embora.
Depois de o gerente ter partido, a chuva continuou sem dar mostras de querer abrandar, e só muito de vez em quando é que algum cliente entrava no restaurante. Não havia mais de uma ou duas mesas ocupadas, por isso não se podia dizer que fizesse muita diferença que tanto o gerente como um dos empregados estivessem ausentes; do mal o menos, como se costuma dizer. A verdade é que a azáfama costumava ser tão grande que o pessoal de serviço não chegava para as encomendas, nem de longe nem de perto.
Quando a refeição destinada ao dono do restaurante ficou pronta, pouco antes das oito, ela empurrou o carrinho de serviço para dentro do elevador e subiu até ao sexto andar. A refeição compunha-se do mesmo de sempre: meia garrafa de vinho tinto com a rolha parcialmente tirada, um termo de café; uma entrada à base de galinha com vegetais cozidos ao vapor, pão e manteiga. O aroma intenso do prato de galinha cozinhado encheu por completo o espaço exíguo do elevador, misturando-se com o cheiro da chuva. O chão estava repleto de gotas, dando a entender que alguém com um chapéu-de-chuva molhado tinha utilizado o elevador recentemente.
Ela empurrou o carrinho pelo corredor fora, detendo-se ao chegar diante da porta com o número 604. Era ali. Depois, fez um esforço de memória e voltou a confirmar o número: 604. Só podia ser ali. Aclarou a garganta e tocou à campainha.
Não obteve resposta. Deixou-se estar ali durante uns bons vinte segundos. Quando se preparava para tocar outra vez, a porta foi aberta de dentro e apareceu um homenzinho magro. Devia ser para aí uns dez centímetros mais baixo do que ela. Vestia fato escuro e, nitidamente em contraste com o branco da camisa, destacava-se a gravata, de um castanho-amarelado que fazia lembrar folhas caídas. Tudo nele respirava limpeza, com a roupa impecavelmente engomada e sem um vinco, e o cabelo, todo branco, cuidadosamente penteado. Quem o
visse, seria tentado a pensar que se preparava para fazer uma noitada. As rugas profundas na testa faziam lembrar ravinas, daquelas que se vêem nas fotografias tiradas do ar.
- Aqui tem o seu jantar - disse ela numa voz rouca, antes de pigarrear baixinho uma vez mais. Sempre que ficava nervosa, a sua voz tinha tendência a enrouquecer.
- Jantar?
- Sim, o gerente sentiu-se maldisposto de um momento para o outro. Por isso tive de ser eu a vir até aqui no lugar dele, trazer o seu jantar.
- Ah, estou a ver - disse o ancião, quase como se falasse consigo próprio, sem nunca tirar a mão da maçaneta da porta. - Com que então, sentiu-se mal. Quem diria?
- Começou a sentir dores no estômago de repente e levaram-no para o hospital. Pode ser apendicite, a acreditar no que ele disse.
- Isso não augura nada de bom - declarou o velhote, passando os dedos pelas rugas que tinha na testa. - Mesmo nada de bom.
Ela voltou a aclarar a garganta.
- Posso levar a comida para dentro? - perguntou ela.
- Ah, claro que sim - disse o velho. - Sim, pois claro, se estiver disposta a isso. Por mim, pode ser.
"Se estiver disposta a isso?", pensou ela. Que maneira estranha de pôr as coisas. O que é que a vontade era para ali chamada?
O velhote abriu a porta de par em par e ela entrou por ali dentro a empurrar o carrinho. O chão estava coberto por um tapete cinzento e não se via nenhum espaço para tirar os sapatos. A primeira divisão tinha todo o aspecto de ser uma grande sala de escritório, como se o apartamento funcionasse mais como local de trabalho do que como residência. Da janela avistava-se a Tokyo Tower, cujo esqueleto de aço se recortava, não muito distante dali, profusamente iluminado. Junto à janela via-se uma secretária, e ao lado da secretária estava um sofá para duas pessoas de aspecto confortável e resistente. O velho apontou para a mesinha de café com tampo de plástico colocada à frente do sofá. Ela tratou de dispor a refeição em cima da mesa: um guardanapo branco e talheres de prata, o termo do café e a chávena, a garrafa de vinho e o copo, o pão e a manteiga, sem esquecer o prato de frango com o respectivo acompanhamento de vegetais.
- Se o senhor quiser fazer o favor de deixar os pratos na entrada, como de costume, regressarei daqui a uma hora para recolher tudo.
As palavras dela tiveram o condão de o desviar da apreciação contemplativa do seu jantar.
- Claro que sim, não se preocupe. Deixarei ficar tudo na entrada. Em cima do carrinho. Daqui a uma hora. Se assim o desejar.
"Pois sim", respondeu ela para dentro, "é mesmo isso que eu desejo."
- Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si?
- Não, muito obrigado - retorquiu ele, depois de pensar um pouco. Os seus sapatos pretos brilhavam de tão engraxados. Eram pequenos e muito elegantes. "Vê-se que se trata de uma pessoa que dá valor à apresentação", pensou ela. "E que está muito bem conservado para a idade que tem."
- Nesse caso, vou regressar ao meu posto de trabalho.
- Espere um momento, por favor - pediu ele. -Sim?
- Por acaso, minha cara menina, estaria disposta a conceder-me cinco minutos do seu tempo? Tenho uma questão que gostaria de abordar consigo.
Confrontada com um pedido tão sincero, deu por ela a corar sem querer.
- Sim, acho que isso é possível - concordou ela. - Quer dizer, desde que não ultrapasse os cinco minutos. - Pensando bem, ele era o patrão dela, a pessoa que lhe pagava as horas que trabalhava por dia. A questão não se colocava. Além de que o ancião não parecia capaz de fazer mal a uma mosca.
- A propósito, que idade tem? - perguntou o velho, mantendo-se de pé junto à mesa, com os braços cruzados e sempre a olhar de frente para ela.
- Tenho vinte anos, acabados de fazer - respondeu ela.
- Vinte anos, acabados de fazer - repetiu ele, semicerrando os olhos como se estivesse a querer espreitar por uma pequena fresta. -Vinte anos acabados de fazer. Quando, exactamente?
- Bom, para ser franca, acabei de os fazer - referiu ela. E, após uma ligeira hesitação, acrescentou: - Faço hoje anos.
- Estou a perceber - disse ele, esfregando o queixo como se aquilo se revestisse aos seus olhos de grande importância. - Hoje, não foi o que disse? Completa vinte anos?
Ela fez que sim com a cabeça.
- Quer então dizer que veio ao mundo faz agora exactamente vinte anos.
- De facto - reiterou ela -, assim é.
- Estou a ver, estou a ver - disse ele. - Mas isso é maravilhoso. Nesse caso, os meus parabéns.
- Muito obrigada - agradeceu ela. Só então deu conta de que era a primeira vez, ao longo de todo o dia, que alguém lhe dava os parabéns. Naturalmente que se os seus pais tivessem ligado de Oita, poderia muito bem acontecer que tivesse uma mensagem deles à espera dela no atendedor automático quando chegasse a casa do trabalho.
- Quer-me bem parecer que a ocasião merece uma celebração à altura - avançou ele. - Que me diz a acompanhar-me num pequeno brinde? Podemos aproveitar este belo tinto.
-Agradeço muito, caro senhor, mas não posso, ainda tenho trabalho à minha espera.
- Ora, um golinho nunca fez mal a ninguém. Se for eu a dar autorização, ninguém se atreverá a dizer nada. Vamos, só um brinde para festejar este dia.
O velho acabou de tirar a rolha da garrafa e deitou um pouco de vinho no copo que lhe era destinado. Depois tirou um outro copo da cristaleira e serviu-se a si próprio.
- Feliz aniversário - desejou ele. - Muitos anos de uma vida feliz e cheia de realizações, e que nada nem ninguém permita que nuvens escuras constituam uma ameaça.
Os dois brindaram e encostaram os copos.
Muitos anos de uma vida feliz e cheia de realizações, e que nada nem ninguém permita que nuvens escuras constituam uma ameaça, repetiu ela mentalmente o brinde feito pelo velho senhor. Que estranha escolha de palavras para brindar ao aniversário.
- Uma pessoa só faz vinte anos uma vez na vida. É um dia que não se repete.
- Bem sei - replicou ela, dando um primeiro gole no vinho.
- E, contudo, neste dia tão especial para si, deu-se ao trabalho de vir até aqui trazer-me o jantar, como se fosse uma fada boa.
- Limito-me a fazer o que me mandam, meu caro senhor.
- Mesmo assim - referiu o velhote, acenando rapidamente com a cabeça por mais de uma vez. - Por isso mesmo, minha encantadora menina.
O ancião instalou-se na poltrona de cabedal junto à secretária e, com um gesto, convidou-a a sentar-se no sofá. Sem largar o copo, ela aproximou-se e sentou-se na beirinha. Com os joelhos alinhados, ajeitou a saia e aclarou a garganta pela enésima vez. Reparou nas linhas traçadas pelas gotas de chuva que escorriam pela vidraça. O ambiente que se fazia sentir na sala era de uma estranha calma.
- Acontece que hoje é o dia em que faz vinte anos e, como se não bastasse, ainda me traz esta maravilhosa refeição quente -observou ele, para que não restassem dúvidas, ao mesmo tempo que pousava o copo em cima da escrivaninha com força, produzindo um som distinto. - Só pode ser obra do destino, não lhe parece?
Se bem que não muito convencida, ela lá assentiu.
- Daí que - prosseguiu ele, ajeitando o nó da sua gravata em tons desmaiados - me sinta na obrigação de ter uma atenção para consigo. Uma ocasião especial exige uma oferta especial.
Apanhada de surpresa, ela abanou a cabeça.
- Não, de forma alguma, nem pense nisso. Limitei-me a trazer-lhe o jantar, tal como me foi pedido.
O homem de idade ergueu as mãos, com as palmas viradas para ela.
- Não, jovem, por quem sois. Está decidido e nem é bom que a menina pense mais no assunto. Quando falo em presente, não me refiro a uma coisa em concreto, algo com uma etiqueta a indicar o preço. Nada disso. Quero eu dizer - explicou ele, assentando ambas as mãos em cima da secretária e inspirando longa e profundamente - que teria todo o gosto em conceder a uma jovem fada tão encantadora a realização de um desejo, que é como quem diz, está nas minhas mãos ajudar o seu desejo a tornar-se realidade. Tudo o que possa imaginar e sempre desejou. Isto, claro está, partindo do pressuposto de que tem realmente um desejo concreto.
- Um desejo? - repetiu ela, sentindo a garganta seca.
- Sim, algo que gostasse de ver concretizado. Diga-me qual é o seu desejo, um desejo que seja, e eu comprometo-me a transformar os seus anseios em realidade. É um presente de anos desse género que me proponho dar-lhe. Contudo, é melhor pensar duas vezes antes de responder, porque só lhe posso conceder um desejo. - Dito aquilo, ele levantou um dedo. - Apenas um. Depois já não pode voltar atrás e mudar de ideias.
Ela sentia que lhe faltavam as palavras. Um desejo? Fustigadas pelo vento, as gotas de chuva batiam violentamente e de forma desigual de encontro ao vidro da janela. Durante todo o tempo em que ela permaneceu calada, o velho senhor olhou-a nos olhos, sem dizer palavra. Ela sentia o pulsar desencontrado do tempo nos seus ouvidos.
- Posso então pedir uma coisa, que esse pedido me será concedido?
Em vez de responder, o velho - sempre com as duas mãos em cima da mesa - limitou-se a sorrir. Era um sorriso perfeitamente natural, o dele, e afectuoso.
- Então, sempre tem um desejo ou não, minha menina? - perguntou ele com toda a gentileza.
- Isto aconteceu realmente - referiu ela, olhando-me de frente. - Não estou a inventar nada.
- Claro que não - disse eu. Ela não era pessoa do género de inventar assim uma história daquelas sem razão aparente. - E tu, chegaste a fazer algum pedido?
Durante um bocado, ela continuou sempre a olhar fixamente para mim. Depois, suspirou baixinho.
- Não me interpretes mal - disse. - É preciso não esquecer que na altura eu não conseguia levar o velhote completamente a sério. Quer dizer, aos vinte anos já ninguém acredita em contos de encantar. Se aquela era a maneira que ele arranjara para se meter comigo, há que reconhecer que sabia fazer bem as coisas e que tinha um apurado sentido de oportunidade. Vendo que ele era um velho todo pimpão com um brilhozinho nos olhos, resolvi alinhar na brincadeira. Afinal, e uma vez que sempre era o dia em que eu fazia vinte anos, pensei para comigo que não era nada do outro mundo se me acontecesse alguma coisa mais fora do vulgar. Não se punha sequer a questão de acreditar ou não.
Acenei afirmativamente com a cabeça sem acrescentar nada.
- De certeza que entendes o meu estado de espírito. Estava a chegar ao fim o dia do meu vigésimo aniversário e ainda não tinha acontecido nada que merecesse a pena referir, nem uma única pessoa me tinha dado os parabéns, e eu não tinha feito outra coisa senão andar a servir pratos de tortellini com molho de anchovas a torto e a direito.
Voltei a fazer um sinal de assentimento.
- Não te preocupes - disse eu -, compreendo perfeitamente.
- E foi então que pedi um desejo.
O velho continuou a olhar fixamente para ela, sem dizer uma palavra, sempre com as mãos pousadas na secretária. Sobre a mesa viam-se ainda várias pastas grossas (porventura livros de contabilidade), juntamente com outro material de escritório, um calendário e um candeeiro que tinha um abajur verde. No meio de tudo aquilo, as suas pequenas mãos pareciam fazer parte do inventário. A chuva continuava a embater com força na vidraça, deixando que as luzes da Tokyo Tower se infiltrassem por entre as gotas dispersas.
As rugas na testa do ancião revelavam-se mais profundas.
- É portanto esse o seu desejo?
- Sim - disse ela. - Esse é o meu desejo.
- Um tanto ou quanto insólito para uma jovem da sua idade -comentou ele. - Para ser sincero, estava à espera de algo diferente.
- Se não servir, posso sempre reformular o meu pedido - disse ela, aclarando a voz. - Não me importo. Qualquer coisa me serve.
- Não, não! - atalhou o velhote, levantando as mãos e agitando-as como se fossem bandeirinhas. - Não há nada de errado com o seu desejo, nada mesmo. Fiquei admirado, confesso. E não deseja mais nada? Como, por exemplo, ficar mais bonita, mais inteligente, mais rica - enfim, o género de coisas que uma rapariga da sua idade teria normalmente pedido?
Ela precisou de alguns momentos para encontrar as palavras adequadas. O velho senhor limitou-se a esperar pacientemente, sem dizer nada, sempre com as mãos em posição de repouso sobre a escrivaninha.
- Claro que gostava de ser mais bonita, mais inteligente ou de ter mais dinheiro. Mas devo dizer que não consigo imaginar o que aconteceria no caso de alguma dessas coisas me calhar em sorte. Se calhar, seria demasiado para a minha cabeça e não saberia como lidar com a situação. A verdade é que ainda não sei muito bem como encarar as coisas da vida. Não sei como é que funciona.
- Estou a perceber - disse o velhote, entrelaçando os dedos e voltando a descruzá-los logo a seguir. - Estou a perceber.
- Quer então dizer que aceita o meu pedido?
- Naturalmente que sim - respondeu ele. - Naturalmente. Pela minha parte, não me dá trabalho nenhum.
De um momento para o outro, o velho pareceu fixar um ponto algures na sala. As rugas da testa tornaram-se mais vincadas. A imagem fazia lembrar as próprias ondulações no interior do cérebro, à medida que ele dava mostras de se concentrar nos seus pensamentos. Parecia ter o olhar cravado em qualquer coisa - porventura fragmentos invisíveis do passado, pairando no ar - que estivesse à frente dele a flutuar no ar. Abriu os braços, levantou-se ligeiramente da cadeira e bateu as palmas com força produzindo um som seco. Depois, voltando a sentar-se, passou ao de leve a ponta dos dedos pelas rugas da testa, como se fizesse menção de as atenuar, e só então se virou para ela, arvorando um sorriso franco e meigo.
- Já está - disse ele. - O desejo foi-lhe concedido.
- Tão depressa?
- Sim, não custou nada. Já pode contar com o que pretendia. Feliz aniversário, minha simpática menina. Agora pode regressar ao seu posto de trabalho. Não se preocupe, que eu volto a pôr o carrinho no corredor.
Ela apanhou o elevador e regressou ao restaurante. Sem nada para transportar, sentia-se estranhamente leve, como se estivesse a caminhar por cima de uma misteriosa superfície fofa e macia.
- O que foi? Estás com uma expressão ausente - observou o empregado mais novo.
Ela lançou-lhe um olhar ambíguo e negou com a cabeça.
- A sério? Não, estou óptima.
- Conta-me tudo. Fala-me lá do dono do restaurante. Como é que ele é?
- Não te sei dizer, não lhe vi bem a cara - disse ela, matando a conversa logo no início.
Passada uma hora tratou ela mesma de ir buscar o carrinho, que foi encontrar já no corredor, com tudo no devido sítio. Ao levantar a tampa em forma de meia-esfera do prato coberto, verificou que tanto a galinha como os vegetais tinham desaparecido. Da mesma forma, também a garrafa de vinho e o termo de café estavam vazios. A porta que dava para o apartamento 604 permanecia fechada e sem sinal de vida. Ela ainda se deixou ficar ali durante alguns momentos, com a vaga esperança de que a porta se abrisse, mas tal não se verificou. Meteu o carrinho outra vez dentro do elevador e trouxe-o para baixo, deixando-o ficar junto da máquina de lavar loiça. O cozinheiro olhou distraidamente para o prato, só para confirmar que estava vazio, como sempre.
- Nunca mais tornei a ver o proprietário - contou ela. - Nem uma única vez. Acontece que o problema do gerente não passou de uma vulgar dor de estômago e no dia seguinte voltou a ser ele a encarregar-se de levar o jantar ao dono do restaurante. Despedi-me e abandonei o restaurante logo a seguir ao Ano Novo, e desde então nunca mais lá voltei. Não sei explicar bem porquê, mas achei melhor manter-me afastada. Uma premonição, se quiseres.
Perdida nos seus pensamentos, entretinha-se a brincar com uma base de copos, daquelas de papel.
- Às vezes tenho a sensação de que tudo o que me aconteceu no dia em que fiz vinte anos não passou de uma ilusão. Pergunto a mim mesma se terá acontecido alguma coisa que me possa ter levado a pensar que aconteceram certas coisas que, de facto, nunca ocorreram. Acontece, porém, que tenho a certeza de que foi realmente assim que as coisas se passaram. Ainda me consigo lembrar com uma nitidez incrível de todas as peças de mobiliário e de todo o tipo de bricabraque que existia no quarto 604. O que me aconteceu foi verdade e, além do mais, revestiu-se para mim de grande importância.
Ficámos os dois em silêncio, cada um a beber o que tinha no copo e mergulhado nos seus pensamentos.
- Importas-te que te faça uma pergunta? - disse eu. - Ou, melhor dizendo, duas perguntas?
- Pergunta à vontade - respondeu ela. - Imagino que me queiras perguntar qual foi o desejo que formulei na altura. Imagino que seja essa a primeira coisa.
- Até parece que não tens grande vontade de falar no assunto.
- Achas?
Respondi afirmativamente com a cabeça.
Ela pousou a base do copo e semicerrou os olhos até se reduzirem a duas fendas, como se estivesse a esforçar-se por ver uma coisa muito ao longe.
- Nunca se deve dizer a ninguém aquilo que se desejou, não sei se sabes.
- Fica descansada, não é minha intenção arrancar-te o segredo - expliquei. - Gostaria de saber se o teu desejo sempre se realizou, mais nada. E já agora - independentemente de qual foi o desejo - se te arrependeste de ter pedido o que pediste. Alguma vez lamentaste não ter desejado outra coisa qualquer?
- A resposta à primeira questão é ao mesmo tempo sim e não. O mais certo é ainda ter muitos anos de vida pela frente. Como tal, não te posso dizer com toda a certeza o que o futuro me reserva.
- Quer então dizer que o teu desejo precisa de tempo para se realizar?
- Acertaste. O tempo encarrega-se de desempenhar um importante papel.
- Como acontece quando se quer cozinhar certos e determinados pratos?
Ela fez que sim.
Fiquei a pensar naquilo por momentos, mas a única coisa que me veio à cabeça foi a imagem de uma tarte enorme que vai a cozer lentamente no forno em lume médio.
- E a resposta à segunda pergunta?
- Importas-te de a repetir?
- Queria saber se alguma vez te arrependeste do que pediste? Durante alguns momentos, fez-se silêncio. O olhar que ela me
deitou era desprovido de toda e qualquer profundidade. A sombra de um sorriso mudo passou-lhe pelos lábios, sugerindo uma certa resignação.
- Agora estou casada - afirmou. - Casei-me com um técnico de contas três anos mais velho do que eu e temos dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Também somos donos de um setter irlandês. O meu carro é um Audi e costumo jogar ténis com as minhas amigas duas vezes por semana. É esta a vida que levo presentemente.
- Não me parece tão má quanto isso - foi o comentário que fiz.
- Mesmo se te disser que o pára-choques do Audi tem duas amolgadelas?
- É para isso que eles existem, os pára-choques são feitos para bater.
- Isso dava um grande autocolante - disse ela. - Os pára-choques são para bater.
Olhei para a boca dela no momento em que pronunciava aquelas palavras.
-Vê se entendes o que te quero dizer - afirmou ela, num tom mais calmo, ao mesmo tempo que coçava o lóbulo da orelha, por sinal um lóbulo extraordinariamente bem-feito. - Por mais que as pessoas se esforcem por isso, por mais que queiram, nunca alguém pode ser aquilo que não é. É tão simples quanto isso.
Dito aquilo, riu-se muito alto, nitidamente divertida, e, acto contínuo, a sombra desapareceu como que por magia.
Ela encostou o cotovelo ao balcão e olhou para mim.
- Diz-me uma coisa - quis saber ela. - O que terias pedido, caso estivesses no meu lugar?
- Na noite em que fiz vinte anos, é isso que queres dizer?
- A-hã.
Demorei um certo tempo a pensar, mas não me lembrei de um único desejo que gostasse de ver concedido.
- Não me lembro assim de nada de especial - confessei. -Acontece que o dia em que eu fiz vinte anos já foi há muito tempo.
- Não te lembras de nada mesmo? Abanei a cabeça.
- Nem uma única coisa?
- Nadinha.
Ela olhou de novo para mim bem nos olhos, um olhar daqueles
directos, e disse:
- Então é porque já formulaste o teu desejo.
"Pense muito bem, minha bela menina, porque só lhe posso conceder um pedido." Algures no meio da mais absoluta escuridão, um velho com uma gravata em tons de folhas secas levanta o dedo. "Só um. Depois já não lhe é permitido voltar atrás e dar o dito por não dito."


TRAGÉDIA MINEIRA EM NOVA IORQUE


Conheço um homem que tem o hábito de se pôr a caminho do jardim zoológico sempre que se registam ameaças de tufão. Vai para dez anos que anda nisto. Numa altura em que as pessoas quase todas se apressam a fechar as persianas e correm a abastecer-se de grandes provisões de água mineral, ou se afadigam em torno dos aparelhos de rádio e das lanternas para verificar se está tudo a trabalhar, o meu amigo embrulha-se num corta-vento comprado numa loja de excedentes do exército norte-americano ao tempo da guerra do Vietname, enfia duas ou três latas de cerveja nos bolsos e faz-se à estrada. É preciso dizer que a casa dele fica a cinco minutos a pé do jardim zoológico.
Quando tem azar, encontra o jardim zoológico fechado - "devido ao mau tempo" - e os portões encerrados. Nesse caso, o meu amigo procura assento na base da estátua de pedra que representa um esquilo e ali fica a beber a sua cerveja morna até serem horas de voltar para casa.
Quando está com sorte e chega a tempo de encontrar os portões abertos, paga o bilhete de entrada, acende um cigarro amolecido pela humidade e passa revista aos animais, um a um. Na sua maioria, encontram-se recolhidos no fundo das respectivas jaulas. Alguns olham fixamente a chuva que cai. Também há os mais nervosos, que não param sossegados, sempre aos saltos de um lado para o outro, à medida que as rajadas de vento se fazem sentir. Outros, ainda, mostram-se aterrorizados pela queda repentina da pressão atmosférica. Sem esquecer aqueles que dão livre curso à sua fúria sanguinária.
O meu amigo faz questão de beber sempre a primeira cerveja defronte da jaula do tigre de Bengala. (É sabido que os tigres de Bengala reagem sempre com inusitada violência às tempestades.) A segunda, bebe-a à vista dos gorilas. Parece que os gorilas só muito raramente se deixam perturbar pela força dos tufões. Limitam-se a olhar para ele, ali sentado placidamente, como uma sereia na sua placa de cimento, a beber a sua cerveja, e uma pessoa quase é tentada a dizer que sentem por ele uma certa pena.
"É como ser apanhado dentro de um elevador que se avaria juntamente com uma quantidade de desconhecidos", costuma dizer o meu amigo.
Tirando a história dos tufões, o meu amigo é uma pessoa perfeitamente normal e igual a tantas outras. Trabalha para uma empresa de exportação e tem a seu cargo o departamento de investimentos estrangeiros. Não estamos a falar de uma firma de primeiro plano, mas ainda assim é uma empresa bastante sólida. Ele mora sozinho num apartamento pequeno e simpático e troca de namorada de seis em seis meses (e, atenção, quando digo seis meses são mesmo seis meses certos). Não sei se sou capaz de vos dizer porquê. As miúdas são todas parecidas umas com as outras, quase se poderia falar em perfeitos clones. Pelo menos eu, e falo por mim, nunca sou capaz de as distinguir.
O meu amigo é dono de um pequeno carro utilitário, possui a obra completa de Balzac, um fato preto, uma gravata preta e um par de sapatos pretos que são perfeitos para ir a funerais. Sempre que morre alguém, ligo para ele e peço-lhe que me empreste o fardamento completo, apesar de os sapatos serem um número acima do meu.
- Desculpa voltar a incomodar-te - disse-lhe eu da última vez que entrei em contacto com ele. - Tenho outro funeral.
- À vontade - retorquiu ele. - Imagino que estejas apertado de tempo. Não queres aparecer cá em casa para vir buscar as coisas?
Quando lá cheguei, o fato e a gravata encontravam-se em cima da mesa, muito bem passados a ferro, os sapatos tinham sido engraxados e o frigorífico estava a abarrotar de cerveja importada. Isto é só para verem o género de pessoa que ele é.
- No outro dia, vi um gato no jardim zoológico - disse ele, ao mesmo tempo que abria uma lata de cerveja.
- Um gato?
- Sim, aconteceu há coisa de duas semanas. Tive de me deslocar a Hokkaido em viagem de negócios e aproveitei para fazer uma visitinha a um jardim zoológico que ficava ao pé do hotel. Havia lá um gato que estava a dormir dentro de uma jaula com um letreiro a dizer "Gato".
- Que espécie de gato?
- Um gato vulgaríssimo, com malhas castanhas e cauda curta, como há para aí aos pontapés. A única coisa era o facto de ser incrivelmente gordo. Estava deitado de lado, todo enroscado, a dormitar.
- Se calhar em Hokkaido(1) os gatos são uma raridade.
- Deves estar a gozar, não? - disse ele, fazendo cara de espanto. - Em Hokkaido há gatos a dar com um pau. Não acredito que seja uma coisa assim tão rara quanto isso.
- Nesse caso, analisa a questão por outro ângulo: por que é que não há-de haver gatos num jardim zoológico? - perguntei eu. - Que eu saiba, também são animais, não é verdade?
- É aí que chegamos à parte mais corriqueira na história. Afinal, não pode haver animais mais vulgares do que os gatos e os cães. Quem é que estaria disposto a pagar para os ver? - perguntou ele. -Basta que olhes, que eles estão à tua volta. Acontece o mesmo com as pessoas.
Quando acabámos a embalagem de seis cervejas, peguei no fato, na gravata e nos sapatos e enfiei tudo dentro de um saco de papel.
- Desculpa passar a vida a chatear-te com isto - disse eu. - Bem sei que por esta altura já deveria ter comprado o meu próprio fato, mas passo a vida a adiar. Dá-me a impressão de que comprar propositadamente roupa para ir a um funeral equivale, de certa maneira, a dar o meu aval à morte de outra pessoa qualquer.
- Não te preocupes com isso - disse ele. - São tudo coisas que eu praticamente nunca visto. Sempre faz mais sentido ter alguém que

*1. Remota ilha do Norte do Japão, pátria do povo indígena aino (os homens são normalmente grandes, com barba e cabelo ondulado). De uma beleza gélida e agreste (ver Em Busca do Carneiro Selvagem, Casa das Letras, Lisboa, 2007), convida ao turismo de Inverno durante quase todo o ano. (N. da T.)

lhes dê uso do que estarem enfiadas no fundo do roupeiro, não te parece?
Verdade seja dita que, durante aqueles três anos desde que tinha o fato, ele quase nunca tivera oportunidade de o vestir.
- Não deixa de ser estranho, mas, a partir do momento em que comprei o fato, nunca mais soube de ninguém que tivesse morrido -referiu ele.
- As coisas são mesmo assim.
- Pois são - concordou ele.
No meu caso, podia dizer-se que era o ano de todos os funerais. Entre amigos da altura e amigos de outros tempos, as mortes sucediam-se umas às outras, como espigas de milho definhando em tempo de seca. Tinha vinte e oito anos. Os meus amigos andavam quase todos pela mesma idade - vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove. Não tinham idade para morrer.
Pode acontecer que um poeta morra aos vinte e um anos, um revolucionário ou uma vedeta do rock'n'roll pode morrer quando tiver vinte e quatro, mas depois disso parte-se do princípio de que vai tudo seguir o devido curso. Uma vez ultrapassada a lendária e fatídica Curva da Morte, é de esperar que esteja à vista o fim do escuro túnel e que uma pessoa se imagine a percorrer uma auto-estrada de seis pistas, rumo ao seu destino (quer se queira quer não). Cortamos o cabelo e fazemos a barba todas as manhãs. A fase em que éramos poetas, revolucionários, estrelas do rock and roll ficou para trás. Já não temos idade para nos deixarmos dormir, podres de bêbados, à porta de uma cabina telefónica nem de ouvir os Doors aos berros às quatro da matina. Em vez disso, compramos seguros a um conhecido que trabalha numa seguradora, tomamos a nossa bebida em barzinhos de hotéis e juntamos todas as contas do dentista para efeitos de redução nos impostos. Quando se tem vinte e oito anos, é normal.
Acontece, porém, que é precisamente nessa idade que o inesperado massacre começa, parecido com um ataque de surpresa num início de Primavera envergonhada. Como se alguém, colocado estrategicamente no cimo de uma montanha metafísica, empunhando uma metafísica metralhadora, desatasse a disparar sobre nós. Num minuto estávamos a mudar de roupa, e no minuto seguinte a roupa deixou de nos servir. As mangas estavam viradas para fora, e tínhamos uma perna enfiada numas calças e a outra perna num par diferente. Uma perfeita confusão.
No fim de contas, a Morte é isso mesmo. Um coelho é um coelho, quer saia de dentro de um chapéu ou salte de um campo de trigo. Um fogão quente é um fogão quente, e o fumo preto que sai de uma chaminé não passa disso mesmo - fumo preto a sair de uma chaminé.
A primeira pessoa que vi dar um passo no sentido de ultrapassar o profundo abismo entre realidade e não-realidade (ou não-realidade e realidade) foi um amigo da universidade que dava aulas de Inglês no ensino secundário. Estava casado há três anos e a mulher tinha regressado a casa dos pais, em Shikoku, a fim de dar à luz o filho do casal.
Certa tarde de um domingo de Janeiro invulgarmente quente, ele entrou num armazém para comprar duas embalagens de creme para a barba e uma navalha alemã que, a julgar pelo tamanho, daria para decepar a orelha de um elefante. Depois, voltou para casa e pôs um banho a correr. A seguir foi ao frigorífico buscar gelo, esvaziou uma garrafa de uísque escocês, meteu-se na banheira e cortou os pulsos. O corpo foi encontrado pela mãe dele, passados dois dias. A Polícia pôs-se em campo e foi lá a casa tirar uma quantidade de fotografias. A água do banho estava vermelha, da cor do tomate, por causa do sangue. A Polícia arquivou o caso como suicídio. Vendo bem, as portas estavam todas fechadas à chave por dentro, além de que tinha sido o próprio defunto a comprar a navalha da barba. Nesse caso, por que motivo teria ele comprado o creme de barbear que não fazia tenções de usar? Duas embalagens, ainda por cima. Isso ninguém sabia explicar.
Talvez ele não tivesse sequer imaginado, na altura em que se encontrava na loja, que daí a algumas horas estaria morto. Ou então teve medo que o empregado pudesse pensar que ele ia matar-se.
Não deixou testamento nem bilhete de despedida. Em cima da mesa da cozinha ficaram apenas um copo, a garrafa de uísque vazia e o balde do gelo, sem esquecer as duas embalagens de espuma de barbear. Enquanto esperava que a banheira enchesse, foi aviando um copo de Haig atrás do outro, a dada altura o seu olhar deve ter recaído sobre as ditas embalagens e quem sabe se ele não terá pensado qualquer coisa como "a partir de agora nunca mais terei de fazer a barba". A morte de um homem aos vinte e oito anos é triste como a chuva no Inverno.
Durante os doze meses seguintes, registaram-se mais quatro mortes.
Uma dessas pessoas faleceu em Março, num acidente num campo petrolífero na Arábia Saudita, e duas delas morreram no mês de Junho, uma vitimada por um ataque de coração e a outra num acidente de viação. De Julho a Novembro, viveram-se dias de paz, até que em Dezembro foi a vez de morrer outra pessoa das minhas relações, também num desastre de automóvel.
Ao contrário do meu primeiro amigo, que tirara a sua própria vida, os restantes não tiveram tempo para se aperceber de que iam morrer. No caso deles, foi como subir uma escada por onde já tinham subido mil vezes e de repente falhar um degrau.
- Importas-te de seres tu a fazer a cama? - tinha perguntado à mulher o meu amigo que morreu em Junho de ataque cardíaco. Era desenhador de móveis de profissão. A cena passou-se às onze da manhã. Ele levantara-se por volta das nove, estivera a trabalhar durante um bocado no seu quarto, e depois tinha dito que se sentia cansado. Foi até à cozinha fazer café e bebeu uma chávena, mas o café não surtiu efeito. "Acho que me vou deitar um bocadinho", disse ele. "Estou sempre a ouvir um zumbido esquisito na parte de trás da cabeça." Foram as suas últimas palavras. Enroscou-se na cama, adormeceu e nunca mais acordou.
Quanto à pessoa que morreu em Dezembro, era a mais nova de todas, e a única mulher do grupo. Tinha vinte e quatro anos, como qualquer revolucionário ou músico conhecido de rock que se preze. Numa noite fria e chuvosa, a poucos dias do Natal, ficou esmagada no espaço trágico (que existir, existe) entre um camião de cervejas e um poste de cimento.
Uns dias mais tarde, já depois do funeral, apareci no apartamento do meu amigo a fim de lhe devolver o fato, que tinha ido levantar à tinturaria, e também para lhe oferecer uma garrafa de uísque.
- Muito agradecido. Tens sido de uma grande ajuda - disse eu. Para não variar, o frigorífico dele estava a abarrotar de cerveja
bem fresca, e um raio de sol tímido entrava pela janela e derramava-se sobre o seu confortável sofá. Em cima da mesinha de café havia um cinzeiro limpo e um vaso com estrelas-de-natal. Com gestos lentos, fazendo lembrar um urso a sair do período de hibernação, o meu amigo tirou-me das mãos o fato, ainda metido dentro da cobertura de plástico, e guardou-o sem pressas no armário.
- Espero que o fato não venha ainda a cheirar a funeral - observei.
- A roupa não tem importância. O que interessa é o que está lá dentro.
- A-hã - murmurei.
- Este ano tens tido funerais que nunca mais acabam - comentou ele, estendendo-se no sofá e deitando a cerveja para um copo. -Quantos, ao todo?
- Cinco - respondi, esticando os dedos da mão esquerda. - Mas parou aí.
, -Tens a certeza?
- Já chega de mortes.
- É como na história da maldição das pirâmides ou coisa que o valha - continuou ele. - Lembro-me de ter lido qualquer coisa acerca disso. A maldição só acaba quando tiver morrido um determinado número de pessoas. Ou é isso ou até que uma estrela vermelha apareça no céu ou a sombra da Lua se projecte sobre o Sol.
Depois de termos emborcado a embalagem de seis cervejas, passámos para o uísque. A luz suave do Sol de Inverno infiltrou-se de mansinho na divisão onde nos encontrávamos.
- Noto-te um bocado abatido por estes dias - observou ele.
- Achas? - disse eu.
- Deve ser por andares a pensar demasiado nas coisas pela noite dentro - adiantou ele. - Pela parte que me toca, deixei de pensar quando cai a noite.
- Como é que consegues?
- Assim que começo a sentir-me deprimido, desato a fazer limpezas. Nem que sejam duas ou três da manhã, ponho-me a lavar pratos. Limpo o fogão, passo um pano pelo chão, ponho os panos da loiça em lixívia, organizo as gavetas da minha secretária, passo a ferro todas as camisas que há para engomar - referiu ele, ao mesmo tempo que agitava o gelo da sua bebida com o dedo. - Entretenho-me com isso até já não poder mais de cansaço, depois tomo uma bebida e vou dormir. De manhã, acordo, levanto-me e, quando chega a altura de calçar as meias, nem sequer me lembro de nada.
Voltei a passar revista à sala. Como de costume, estava tudo impecavelmente limpo e arrumado.
- As três da manhã, passa tudo e mais alguma coisa pela cabeça das pessoas. Acontece aos melhores. Daí que cada um de nós se veja na necessidade de encontrar a sua própria maneira de lutar contra isso.
- É muito possível que tenhas razão - comentei.
- Até os animais começam a ruminar nas coisas às três da madrugada - acrescentou ele, com todo o ar de quem se tinha acabado de lembrar de uma coisa. - Alguma vez foste ao jardim zoológico por volta das três da manhã?
- Não - respondi distraído. - Não, obviamente que não.
- Pois eu já experimentei uma vez. Tenho um amigo que trabalha no jardim zoológico e pedi-lhe para me deixar entrar quando ele estivesse a fazer o turno da noite. Não sei se sabes, mas é proibido. - Ao dizer aquilo, agitou o copo. - Foi uma experiência muito estranha. Não sei explicar bem, mas tive a sensação de que o chão se abrira abruptamente e que havia qualquer coisa a trepar para sair daquele buraco. E depois foi como se aquela coisa invisível desatasse a esbracejar no meio das trevas. Parecia que o ar frio da noite tinha coagulado. Não vi, mas senti, e os animais também sentiram o mesmo. Aquilo deu-me que pensar, recordando-me que o chão que pisamos vai direito até ao centro da terra, e, de repente, tornou-se claro para mim que o coração da terra é responsável por sugar uma incrível quantidade de tempo.
Fiquei calado.
- Isto para te dizer que nunca mais quero repetir a experiência. Quero dizer, ir até ao jardim zoológico, a coberto da noite.
- Preferias um tufão?
- Sem dúvida que sim - disse ele. - Mil vezes.
O telefone tocou entretanto e ele foi atender a chamada no quarto. Era a interminável chamada da ordem feita por uma clone da sua namorada. A minha vontade era dizer-lhe que eu ia andando para casa, mas a verdade é que não havia maneira de ele largar o telefone. Às tantas, desisti de esperar e liguei o televisor. Era um aparelho a cores de 27 polegadas, daqueles que mal é preciso tocar no controlo remoto para mudar de canal. O aparelho de televisão estava ligado a seis colunas e tinha um som fora de série. Nunca na minha vida tinha visto um televisor assim tão espectacular.
Fiz a ronda por todos os canais, isto por duas vezes, antes de me decidir por um canal de notícias. Confrontos na fronteira, um fogo, a dança das taxas de juro para cima e para baixo, novos limites à importação de carros, um encontro de natação realizado ao ar livre no Inverno, um suicídio colectivo por parte de membros da mesma família. Todas aquelas notícias pareciam ter, de certa forma, ligação umas às outras, como um grupo de pessoas reunidas para uma fotografia de fim de curso.
- Alguma coisa de jeito? - perguntou o meu amigo, de regresso à sala.
- Nem por isso - respondi.
- Vês muita televisão?
Abanei a cabeça.
- Não tenho televisão em casa.
- Uma coisa boa a televisão tem - afiançou ele depois de reflectir sobre o assunto. - Uma pessoa pode desligá-la sempre que lhe apetecer, que ninguém se queixa.
Ele próprio pegou no controlo remoto e desligou o televisor. Acto contínuo, a imagem desapareceu do ecrã. A sala mergulhou no silêncio. Lá fora, distinguiam-se através da janela as luzes que aos poucos começavam a acender-se nos outros edifícios.
Ficámos ali sentados uns bons cinco minutos, a beber o nosso uísque, sem trocarmos uma palavra. O telefone voltou a tocar, mas o meu amigo fez como se não fosse nada com ele. Assim que o telefone deixou de tocar, carregou na tecla On e ligou o televisor de repente. A imagem regressou acto contínuo e apareceu um comentador junto a um gráfico a explicar aos telespectadores, com a ajuda de um ponteiro, as oscilações no preço do petróleo.
- Vês? O homem nem sequer deu por nós o termos desligado durante cinco minutos.
- É um facto.
- Porque será?
Dava muito trabalho pensar no assunto, por isso limitei-me a abanar a cabeça.
- Quando desligas, um dos lados deixa de existir. Ou ele, ou nós. Basta premir o botão e a comunicação deixa de existir. Tão fácil quanto isso.
- Essa é uma maneira de ver as coisas - observei.
- Há milhares de maneiras de analisar o problema. Na índia plantam-se coqueiros. Na Argentina, prisioneiros políticos são atirados dos helicópteros - disse ele, e desligou o televisor. - Não me está a apetecer pôr-me para aqui a falar dos outros - prosseguiu -, mas é bom não esquecer que existem maneiras de morrer que não acabam necessariamente em funerais. Mortes que ninguém consegue detectar pelo cheiro.
Fiz o gesto de quem concordava com a cabeça. Por um lado, palpitava-me que sabia onde ele queria chegar. Ao mesmo tempo, porém, tinha a impressão de não estar a perceber rigorosamente nada. Sentia-me cansado e vagamente confuso. Continuei sentado no mesmo sítio, a alisar com o dedo uma das folhas verdes das flores natalícias.
- Ainda tenho para aí o resto de uma garrafa de champanhe -referiu ele com ar sério. -Trouxe-a da minha última viagem de negócios a França, já lá vai algum tempo. Não percebo muito de champanhe, mas tudo indica que se trata de uma boa marca. Apetece-te? Imagino que champanhe seja a melhor coisa depois de todos esses funerais de uma enfiada.
Ele tratou de ir buscar a garrafa de champanhe que estava no frigorífico e dois copos lavados e depositou tudo em cima da mesa. Depois esboçou um sorrisinho cúmplice.
- O champanhe é uma daquelas bebidas sem história, como sabes - referiu ele. - A única coisa boa é o momento em que se faz saltar a rolha.
- Nesse ponto, dou-te razão - concordei eu.
Fizemos saltar a rolha e ficámos durante algum tempo entretidos a conversar sobre o jardim zoológico em Paris e os animais que lá viviam. O champanhe era de facto excelente.
No final do ano, como manda a tradição, realizou-se uma pequena festa num barzinho, em Roppongi, expressamente alugado para a ocasião. Havia um trio de pianistas contratado para tocar, e boa comida e bebida à discrição foi coisa que não faltou. Sempre que encontrava pela frente alguém conhecido, ficava um bocadinho à conversa. O meu trabalho exigia que eu fizesse uma aparição em público uma vez por ano. Não sou grande defensor dos partidos, mas esta incumbência não era desagradável de todo, e além disso rapidamente ficava despachado. Não tinha nada combinado para a noite de fim do ano, além de que sempre era pretexto para ficar descontraidamente sentado a um canto, a beber e a ouvir música. Sem ter de encontrar pela frente gente desin-teressante que nunca se viu na vida que nos obriga a ter de ficar ali durante meia hora a ouvir discorrer sobre as vantagens de uma dieta vegetariana na prevenção de alguns tipos de cancro.
Naquela noite, porém, fui apresentado a uma mulher. Depois da habitual dose de conversa de circunstância, fiz os possíveis por voltar para o meu canto, mas acontece que a mulher foi atrás de mim, sem nunca largar o copo de uísque.
- Fui eu que pedi para lhe ser apresentada - confessou ela, cordialmente.
Não era propriamente mulher de fazer virar as cabeças, mas nem por isso deixava de ser atraente. Vestia um elegante vestido de seda verde que devia ter custado os olhos da cara. A julgar pelo aspecto, devia ter os seus trinta e dois anos. Podia facilmente parecer mais nova, mas era óbvio que isso não era importante aos seus olhos. Três anéis enfeitavam-lhe os dedos, e nos lábios desenhava-se um sorriso discreto.
- É extremamente parecido com uma pessoa que eu conheço -adiantou ela. - As suas expressões faciais, a postura das suas costas, o modo de falar... enfim, é espantoso como se parece com ele em tudo. Digo isto com conhecimento de causa, visto que tenho estado sempre a observá-lo desde que entrou nesta sala.
- Bom, se ele é assim tão parecido comigo, então gostaria de o conhecer - disse eu. Na altura não me lembrei de mais nada para dizer.
- Está a falar a sério?
- A sério. Gostaria de saber qual é a sensação de conhecer alguém que é a minha cara chapada.
Por uma fracção de segundos, o sorriso dela tornou-se mais aberto, para logo a seguir se desvanecer.
- Infelizmente, não é possível - referiu ela. - A pessoa em questão morreu há cinco anos. Devia ter mais ou menos a sua idade.
- Não me diga.
- Fui eu que o matei.
O trio de músicos estava a acabar a segunda actuação, e ouviram-se na sala alguns aplausos de circunstância.
- Gosta de música? - perguntou-me ela.
- Se estivermos a falar de música agradável num mundo aprazível, gosto - respondi.
- Música agradável é coisa que não existe num mundo aprazível - retorquiu ela, como se estivesse a revelar um grande segredo. -Num mundo aprazível ideal, o ar não vibra.
- Estou a ver - disse eu, sem saber que mais havia de dizer.
- Alguma vez viu o filme em que Warren Beatty aparece a tocar piano num clube nocturno?
- Confesso que não.
- Elizabeth Taylor, uma das frequentadoras do dito clube, é uma pobre rapariga, a quem a vida não corre bem.(2)
- Estou a ver.
- E então a personagem interpretada por Warren Beatty pergunta a Elizabeth Taylor se gostaria de ouvir alguma música em especial.
- E então, ela tem algum desejo especial?
- Já não me lembro. Estamos a falar de um filme muito antigo. -O anel dela cintilava, ao sabor dos movimentos que fazia a beber o uísque. - Detesto esse género de situações que metem pedidos pelo meio.

*2. Realizado em 1970 por Ceorge Stevens, com base na peça (e argumento) de Frank D. Giluy, Quando o logo é o Amor,conta a história de uma corista e de um pianista viciado no jogo que apostam em levar por diante uma relação baseada no sexo. (N. da T.)

Fazem-me sempre sentir melancólica. Acontece o mesmo quando trago um livro da biblioteca. Assim que o começo a ler, só penso em chegar ao fim.
Ela levou um cigarro à boca, e eu, pela minha parte, risquei um fósforo e acendi-lho.
- Onde é que nós íamos? - voltou ela à carga. - Estávamos a falar do tal homem que era parecido consigo.
- Como foi que o matou?
- Atirei-o para o meio de uma colmeia.
- Está a brincar, não é verdade?
- Sim - confessou ela.
Em vez de suspirar, bebi mais um gole de uísque. O gelo tinha derretido e o meu uísque já quase não sabia a nada.
- Claro está que, do ponto de vista legal, não se pode dizer que seja uma criminosa. Nem moralmente falando, já agora.
-Juridicamente e moralmente, não é uma criminosa. - Sem querer, repeti o juízo de valor que ela acabara de formular. - O que não a impediu de ter matado uma pessoa.
- Sim - confirmou ela, acenando com uma expressão aliviada. -Uma pessoa que era extremamente parecida consigo.
Do outro lado da sala alguém soltou uma sonora gargalhada. As pessoas à volta riram-se também. Copos que se entrechocam. O barulho chegava aos nossos ouvidos, vindo de longe, mas, ao mesmo tempo, extraordinariamente nítido. Não sei explicar porquê, mas o meu coração batia desalmadamente e andava aos saltos para cima e para baixo, como se estivesse prestes a fugir-me do peito. A sensação que tinha era de que o chão por baixo dos meus pés flutuava sobre a água.
- Nem chegou a cinco segundos - referiu ela. - Para acabar com ele.
Continuámos calados durante algum tempo. Ela parecia saborear o silêncio.
- Alguma vez pensou na liberdade? - perguntou ela.
- As vezes - respondi. - Por que é que pergunta?
- Sabe desenhar uma margarida?
- Acho que sim. Trata-se de algum teste de personalidade?
- Quase - replicou ela a rir-se.
- Nesse caso, quer dizer que passei?
- Sim - respondeu ela. - Correu bem, não há motivo para se preocupar. Diz-me a minha intuição que o senhor tem uma longa vida pela frente.
- Obrigado - disse eu.
A banda recomeçou a tocar. "Auld Lang Syne".
- Faltam cinco minutos para a meia-noite - referiu ela, depois de ter olhado para o relógio de ouro que trazia ao pescoço. - Gosto imenso do tema "Auld Lang Syne". E você?
- Prefiro "Home on the Range". Por causa dos veados e antílopes.
Ela sorriu.
- Deve gostar muito de animais.
- Pois gosto - disse eu, lembrando-me do meu amigo, que tanto gosta de jardins zoológicos, e do seu fato para ir aos funerais.
- Tive muito gosto em conversar consigo. Adeus.
- Adeus - repliquei.
Apagaram as lanternas a fim de poupar ar, e a escuridão envolveu-os. Ninguém disse nada. A única coisa que se ouvia no escuro era o som da água a pingar do tecto, de cinco em cinco segundos, sem parar.
"Atenção, respirem o mais devagar que for possível", disse um velho mineiro. "Não temos muito ar." A voz dele estava reduzida a um murmúrio, o que não impediu que as traves do tecto rangessem ligeiramente. No meio do escuro, os mineiros juntaram-se, encostados, a um canto, esforçando-se por ouvir um som que fosse. O som das picaretas. O som da vida.
Esperaram durante horas a fio. A realidade começou aos poucos a desvanecer-se e a perder contornos definidos. Era como se tudo tivesse acontecido muito tempo antes, num mundo longínquo. Ou dar-se-ia o caso de estar a acontecer no futuro, num outro mundo distante?
Lá fora, as pessoas escavavam um túnel, na esperança de conseguir chegar até eles. Parecia uma cena de um filme.

O AVIÃO: Ou COMO ELE FALAVA
CONSIGO PRÓPRIO COMO SE ESTIVESSE
A DIZER UM POEMA

Nessa tarde ela quis saber: "É um velho hábito teu, esse de falares sozinho?" Fez-lhe a pergunta ao mesmo tempo que levantava os olhos da mesa, como se lhe tivesse ocorrido naquele preciso instante, mas era óbvio que não, que já devia andar a pensar naquilo há uma quantidade de tempo. A voz dela possuía aquele tom ligeiramente seco, que ele se habituara a reconhecer em situações semelhantes. Era costume dela reter as palavras na boca e fazê-las rolar na língua repetidas vezes, antes de as deixar sair da boca.
Estavam os dois sentados à mesa da cozinha, de frente um para o outro. Descontando a passagem habitual do comboio suburbano numa via-férrea próxima, o bairro era um lugar calmo - por vezes demasiado calmo. Por cima deles, as linhas, por onde não passavam quaisquer comboios, estavam impregnadas de um estranho silêncio. Através do chão da cozinha, revestido de quadrados de linóleo, um friozinho agradável transmitia-se aos pés nus. Ele tinha despido as meias e enfiara-as no bolso das calças. Fazia um tempo demasiado quente para uma tarde de Abril. Ela enrolara as mangas da sua camisa clara de xadrez até aos cotovelos e os seus dedos brancos e esguios afagavam o cabo da colher de café. Ele não tirava os olhos daqueles dedos em movimento, e o fio dos seus pensamentos revelava-se estranhamente parado. Quanto a ela, dava a impressão de estar à beira do mundo, a tentar sustê-lo, antes de começar a perder, aos poucos, os pontos de apoio - mecanicamente, como se tivesse de levar a sua missão por diante, custasse o que custasse.
Ele observava-a sem dizer uma palavra. Se não dizia nada, era por não saber o que dizer. O resto de café na chávena estava frio e adquirira um aspecto lamacento.
Ele tinha acabado de fazer vinte anos. Ela era sete anos mais velha, casada e mãe de uma criança. Por outras palavras, ela estava tão longe dele como o outro lado da Lua.
O marido dela era funcionário de uma agência de viagens especializada em voos para o estrangeiro. Por essa razão, passava metade do mês fora de casa, a viajar por lugares como Londres, Roma ou Singapura. Era óbvio que se tratava de um amante de ópera. Nas prateleiras da sala, alinhavam-se três ou quatro fileiras de discos arrumados por compositor - Verdi, Puccini, Donizetti, Richard Strauss. As longas filas tinham menos aspecto de uma colecção de discos e pareciam antes o símbolo de um modo de vida: calmo e imutável. Quando lhe faltavam palavras ou não sabia o que havia de fazer, entretinha-se a percorrer com os olhos a lombada dos discos que o marido dela possuía - da direita para a esquerda e da esquerda para a direita -, ao mesmo tempo que catalogava mentalmente os títulos: La Bohème, Tosca, Turandot, Norma, Fidelio... Nunca tinha ouvido música daquela. Uma vez que nunca lhe fora dada sequer oportunidade de escutar, não saberia dizer se gostava ou não. Na sua família, e entre os seus amigos ou conhecidos, não existia ninguém que gostasse de ópera. Sabia que existia um género de música chamado ópera, e que havia muito boa gente que gostava de a ouvir, mas fora através dos discos do marido dela que esse mundo lhe tinha sido pela primeira vez dado a conhecer.
Ela própria não gostava especialmente de ópera.
"Não se pode dizer que deteste", costumava dizer. "Só acho as óperas demasiado longas."
Ao lado das prateleiras onde se encontravam os LP, existia uma aparelhagem estereofónica que impressionava qualquer um. Imponente, o amplificador de fabrico estrangeiro mostrava pesadamente as suas formas arredondadas, à espera de ordens, como um crustáceo obediente. Escusado será dizer que o aparelho se destacava, no meio do restante mobiliário, nitidamente mais modesto, que havia na sala. Constituía, de facto, uma presença deveras imponente. Era impossível não reparar naquele objecto. Isto apesar de ele nunca ter ouvido um som que fosse vindo dali. Nem ela sabia ligar a aparelhagem, nem a ele lhe passou pela cabeça mexer naquilo.
Ela estava sempre a dizer que em casa a vida não era nenhum vale de lágrimas. "O meu marido trata-me bem e gosto da minha filha", dizia ela. "Pode dizer-se que sou feliz." Dizia aquilo num tom de voz calmo, quase satisfeito. Nem por uma vez deu a entender que era sua intenção desculpar-se. Quando falava do seu casamento, fazia-o com a mais perfeita objectividade, como se estivesse a discutir as regras de trânsito ou a linha internacional de mudança de data. "Sou feliz, acho eu, não temos problemas de espécie alguma."
"Nesse caso, por que carga de água é que ela anda a dormir comigo?" Era essa a pergunta que ele fazia muitas vezes a si próprio. Por mais que pensasse no assunto, não chegava a qualquer conclusão. De resto, nem sequer era capaz de perceber o que quereria ela dizer quando dizia que não tinha "problemas de espécie alguma". Por mais de uma vez, chegou a pensar em ter uma conversa com ela sobre o assunto, mas não sabia bem como abordar a questão. "Visto que és assim tão feliz com ele, por que é que vais para a cama comigo"? Obviamente que aquela não era pergunta que se fizesse. O mais certo era ela desatar num pranto.
Chorar já ela passava a vida a chorar. Era capaz de ficar lavada em lágrimas durante muito tempo, baixinho, quase sem fazer barulho. Verdade seja dita que ele quase nunca sabia por que motivo chorava ela. Quando começava naquilo, dificilmente parava. Por mais que ele se esforçasse por consolá-la, ela continuava sempre a chorar. De facto, ele nem sequer precisava de fazer nada: passado um certo tempo, as lágrimas dela acabavam por secar. Por que seriam as pessoas tão diferentes umas das outras? Ali estava outra pergunta sem resposta. Já tinha estado com um número razoável de mulheres, e todas elas tinham por hábito chorar, ou mostrarem-se agastadas, cada uma à sua maneira. Havia coisas que eram parecidas, mas as diferenças eram de longe em maior número. A idade parecia não desempenhar nenhum papel. Aquela era a sua primeira experiência com uma mulher mais velha, mas a diferença de idades incomodava-o menos do que ele esperara. Muito mais significativo do que os anos a mais ou a menos, achava ele, eram as diferentes características que cada um revelava. Ele não tirava da cabeça que aquilo representava uma importante chave para desvendar o enigma da vida.
Depois de ela ter chorado tudo, regra geral acabavam por fazer amor. Só nessa altura é que era ela a dar os primeiros passos.
De outra forma, tinha de ser ele a tomar a iniciativa. Volta e meia, acontecia ela recusar os seus avanços. Sem dizer uma palavra, limitava-se a abanar a cabeça. Ao mesmo tempo, os seus olhos assemelhavam-se a luas brancas pairando na orla do céu às primeiras horas da manhã - duas luas planas e convidativas que reluziam ao primeiro grito de um pássaro, mal raiava a manhã. Assim que ele via aqueles olhos, sabia que não havia mais nada que pudesse dizer. Não se podia dizer que a recusa dela lhe fosse desagradável ou fizesse crescer nele a raiva. "É assim que as coisas funcionam", contentava-se ele em pensar. Às vezes, lá no fundo, até se sentia aliviado.
Ficavam os dois sentados à mesa da cozinha, a beber café, tranquilamente à conversa. Falavam quase sempre por meias-palavras. Nenhum deles era grande conversador, e verdade seja dita que não tinham muitos temas em comum. Era raro ele lembrar-se das conversas anteriores, quando muito de meia dúzia de frases soltas. E do facto de, através da janela, haver sempre um ou outro comboio interurbano a passar.
Entre ambos, o sexo era silencioso e tranquilo. Não se podia dizer que eles experimentassem os chamados prazeres da carne. É evidente que também não estaria correcto afirmar que nada sabiam do deleite que um homem e uma mulher conhecem na pele quando têm relações sexuais. Acontece, porém, que, à mistura com isso, existiam demasiados pensamentos, demasiados elementos e estilos de vida. O sexo com ela era diferente do que ele alguma vez conhecera. Fazia-lhe lembrar um pequeno quarto, que era ao mesmo tempo um espaço simpático, confortável para se estar. Do tecto pendiam fios de muitas cores, fios de diferentes feitios e comprimentos, e cada filamento, à sua maneira, transmitia-lhe uma espécie de corrente de prazer. Ele sentia o desejo de puxar por uma, e as fitas pareciam estar à espera de que ele as puxasse. Mas a verdade é que ele não sabia por onde começar. Tinha a sensação de que bastaria tocar num desses fios para que um assombroso espectáculo se desenrolasse diante dos seus olhos; ao mesmo tempo, porém, e com a mesma facilidade, tudo poderia ficar estragado num abrir e fechar de olhos. Em resultado disso, mostrava-se vacilante, e enquanto se sucediam os momentos de hesitação, mais um dia chegava ao fim.
A estranheza daquela situação, por assim dizer, pecava por excesso. Ele acreditava piamente ter vivido até à data de acordo com o seu próprio sistema de valores. Porém, quando se encontrava no seu quarto, a ouvir passar os comboios e a estreitar nos braços aquela mulher silenciosa e mais velha, a sensação de errar pelo meio do caos era mais forte do que ele. Nessas alturas perguntava a si mesmo, repetidamente: "Será que estou apaixonado por ela?" Contudo, a resposta a essa pergunta nunca assumia aos seus olhos contornos nítidos. A única coisa que distinguia eram os tais filamentos coloridos, pendurados no tecto do quartinho. Mesmo à frente do seu nariz.
Quando aquela estranha actividade sexual chegava ao fim, ela tinha o hábito de ver as horas. Ainda nos seus braços, virava ligeiramente a cabeça e olhava para o rádio despertador preto junto à cabeceira da cama. Por esses dias, os despertadores ainda não tinham aqueles mostradores luminosos com números digitais, mas apenas pequenos painéis numerados que se sucediam produzindo um ligeiro dique. No momento em que ela olhava na direcção do relógio, passava um comboio. Era uma coisa estranha: sempre que ela olhava para o relógio, logo a seguir fazia-se ouvir o som de um comboio a aproximar-se. Nunca falhava. Era uma espécie de reflexo condicionado. Ela via as horas no relógio; automaticamente, passava um comboio.
Ao lançar uma olhadela na direcção do relógio, ela queria certificar-se de que ainda não eram horas de a filha de quatro anos chegar a casa vinda do jardim-de-infância. Ele só tinha visto a miudinha uma única vez, por mero acaso. Tinha todo o aspecto de ser uma menina muito querida, pelo menos foi essa a impressão que provocou nele. Quanto ao marido, o tal amante de ópera que trabalhava numa agência de viagens, nunca o tinha visto mais gordo. Felizmente.
Foi numa tarde de Maio que ela quis saber por que razão ele falava consigo próprio. Nesse dia tinha voltado a ter um dos ataques de choro dela, e, para não variar, tinham uma vez mais feito amor logo a seguir. Ele já não se lembrava do que a fizera chorar. O mais provável era ter-lhe apetecido chorar, mais nada. Às vezes passava-lhe pela cabeça que ela só tinha começado a andar com ele a fim de poder chorar nos braços de alguém. "Se calhar", pensava, "não consegue chorar quando está sozinha, e é por isso que precisa de mim."
Nesse dia, ela trancou a porta, correu as cortinas e trouxe o telefone para ao pé da cama. A seguir uniram os corpos e fizeram amor. Lenta e ternamente, como era costume. Tocaram à campainha, mas ela não quis saber. Parecia que nada a conseguia surpreender nem chocar. Limitou-se a abanar a cabeça, como que a dizer: "Não ligues, não tem importância." O toque da campainha voltou a fazer-se ouvir, até que por fim a pessoa desistiu e foi-se embora. Não devia ser nada de importante, como ela tinha dito. Um vendedor, provavelmente. Mas como é que ela podia saber? Volta e meia ouvia-se um comboio a passar. Alguém tocava piano, numa casa ao longe. Ele reconheceu vagamente a melodia. Lembrava-se de a ter ouvido, há muito tempo, nas aulas de música, apesar de não se recordar do nome. A buzina da camioneta de um vendedor de legumes ressoou forte, lá fora na rua. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Ele veio-se calmamente.
O primeiro a ir à casa de banho tomar duche foi ele. Quando regressou ao quarto, ainda a secar-se com a toalha, foi dar com ela deitada na cama de barriga para baixo, com os olhos fechados. Sentou-se ao lado dela e, como costumava fazer, acariciou-lhe as costas, ao mesmo tempo que o seu olhar percorria o título dos discos de ópera.
Assim que ela se levantou da cama, vestiu-se e arranjou-se como devia ser, e foi à cozinha fazer café. Só um grande bocado mais tarde é que ela lhe perguntou:
-Tens esse hábito de falar assim sozinho há muito tempo?
- Falar assim sozinho? - perguntou ele, apanhado de surpresa. - Queres dizer, enquanto nós...
- Não, nada disso. Não falo dessa altura. Por exemplo, quando estás a tomar duche, ou quando eu estou na cozinha e ficas sozinho, entretido a ler o jornal ou isso.
- Não fazia ideia - confessou ele, abanando a cabeça. - Nunca reparei. Dizes tu que eu falo comigo mesmo?
- É uma realidade - reafirmou ela, a brincar com o isqueiro.
- Não penses que não acredito em ti - disse ele, num tom que traduzia uma certa falta de confiança. Levou um cigarro à boca, tirou o isqueiro da mão dela e usou-o para acender o seu cigarro. Tinha mudado para a marca Seven Stars há já algum tempo. Eram os cigarros que o marido dela fumava. Até aí sempre fumara Hope. Não o tinha feito a pedido dela; ele próprio chegara à conclusão de que era melhor tomar essa precaução. Achou que seria mais prático. E se o pensou, melhor o fez. Como costuma acontecer nas telenovelas que passam na televisão.
- Eu também tinha por hábito falar comigo mesma muitas vezes -referiu ela -, quando era pequena.
- A sério?
- Mas a minha mãe encarregou-se de acabar com isso. "Não é de bom-tom uma menina andar para aí a falar sozinha", costumava ela dizer. E sempre que isso acontecia, ficava danada comigo! Fechava-me num armário - o sítio mais tenebroso do mundo -, no meio de uma escuridão medonha e daquele cheiro a mofo. Outras vezes, batia-me nos joelhos com uma régua. E olha que funcionou. Acabei por me deixar disso. Acabou de uma vez por todas a história de andar a falar sozinha pelos cantos. Nem uma palavrinha. Passado pouco tempo já não era capaz, nem que quisesse.
Como ele não sabia o que dizer, ficou em silêncio. Ela mordeu o lábio.
- Mesmo agora - continuou ela -, sempre que vou para dizer qualquer coisa, engulo as minhas palavras. É um reflexo. Por causa de se terem fartado de gritar comigo quando eu era pequena. Agora, se queres que te diga, não vejo que mal tem uma pessoa falar consigo própria. É uma coisa perfeitamente natural, as palavras vêm-nos à boca e sentimos necessidade de as deitar da boca para fora. Se a minha mãe ainda estivesse viva, era bem capaz de lhe perguntar por que razão é que uma pessoa não pode falar consigo mesma...
- A tua mãe já morreu?
- A-hã. Quem me dera ter discutido o assunto com ela. Quem me dera ter-lhe perguntado: "Qual é o problema de uma pessoa falar sozinha?"
Ao dizer aquilo, ela estava a brincar com a colher do café. A seguir lançou um olhar na direcção do relógio de parede. Nesse preciso instante passou um comboio ao largo.
Ela esperou que o comboio acabasse de passar. Depois disse:
- Às vezes penso que o coração das pessoas é como um poço sem fundo. Ninguém sabe o que se encontra no seu interior. Não temos outro remédio senão dar largas à nossa imaginação a partir do que aparece, volta e meia, à tona.
Durante algum tempo ficaram os dois mergulhados nos seus pensamentos que metiam poços pelo meio.
- E o que é que eu digo quando falo sozinho? - perguntou ele. -Dá-me só um exemplo.
- Hmm - murmurou ela, sacudindo a cabeça por mais de uma vez, como se estivesse discretamente a testar a amplitude de movimentos do pescoço -, vamos lá ver, temos a história dos aviões...
- Aviões?
- Isso mesmo. Sabes? Aquelas coisas que voam pelo céu. Ele desatou a rir.
- Por que raio é que eu hei-de falar com os meus botões acerca de aviões?
Ela também se riu. E então, com a ajuda dos indicadores, traçou a distância de um objecto imaginário no ar. Fazia aquilo muitas vezes. Era uma mania que tinha, e pegara-lhe a mania a ele.
- Além do mais, pronuncias as palavras de uma forma extremamente clara. De certeza que não te recordas de nada?
- Rigorosamente de nada.
Ela pegou na esferográfica que estava em cima da mesa e durante alguns segundos fê-la rolar por entre os dedos, mas depois tornou a olhar para o relógio, que tinha entretanto cumprido a sua função: no decorrer dos cinco minutos desde a última espreitadela, tinha-se adiantado cinco minutos.
- Quando tu falas, é como se estivesses a dizer um poema. Ao dizer aquilo, ela corou um bocadinho, o que o deixou de
pé atrás. O que haveria de vergonhoso no facto de ele falar sozinho ao ponto de a fazer corar?
Experimentou dizer aquelas palavras em forma de verso: "Quando falo comigo mesmo / é quase como se / estivesse a dizer / um poema."
Ela voltou a pegar na caneta. Era uma esferográfica amarela de plástico, dessas distribuídas pela filial de um conhecido banco para fazer publicidade ao seu décimo aniversário.
- Gostaria que tomasses nota do que eu disser, da próxima vez que me ouvires a falar comigo próprio, pode ser? - pediu ele, apontando para a caneta.
Ela olhou-o de frente nos olhos.
- Queres mesmo saber?
Ele fez que sim com a cabeça.
Ela deitou a mão ao bloco de notas e começou a escrevinhar qualquer coisa. Escrevia devagar, mas sem nunca largar a caneta pelo facto de estar cansada ou emperrar por causa de alguma palavra. Com o queixo apoiado na mão, ele deixou-se ficar ali sem tirar os olhos das suas longas pestanas. De dois em dois segundos, mais coisa menos coisa, ela pestanejava. Quanto mais ele olhava para ela - aquelas mesmas pestanas até há alguns instantes ainda molhadas de lágrimas -, menos entendia. Que significado poderia ter o facto de andar enrolado com ela? Apoderou-se dele uma estranha sensação de perda, como se algum elemento de um complexo sistema tivesse sido de tal forma esticado até tudo se tornar terrivelmente simples. "Podia muito bem acontecer que eu nunca mais pudesse ir a lado nenhum." Quando esse pensamento lhe ocorreu, ele experimentou um sentimento de horror quase insuportável. A sua existência, o seu próprio eu corria o risco de se desagregar. Sim, era verdade: ele era ainda novo e permeável como lama acabada de se formar, e falava consigo próprio como quem recita um poema.
Quando ela acabou de escrever, empurrou a folha de papel por cima da mesa. Ele estendeu a mão e pegou nela.
Na cozinha, a sensação de que alguma coisa verdadeiramente importante estava para acontecer persistia no ar. Ele sentia muitas vezes a existência daquela imagem retiniana quando se encontrava na presença dela. A reprodução da imagem de uma coisa que entretanto se perdera. Algo de que ele não tinha memória.
- Lembro-me de tudo, palavra por palavra - afirmou ela. - Foi isto que disseste quando te puseste a falar sozinho acerca de aviões.
Ele leu as palavras em voz alta:
Um avião
Um avião no ar
Eu dentro do avião
O avião
Voa
Mas será que voa
O avião
No céu?
- Tudo isso? - perguntou ele, com os olhos em bico.
- Sem tirar nem pôr - afirmou ela.
- Espantoso! Custa-me a acreditar que tenha dito tanta coisa para comigo e que não seja capaz de me lembrar de uma palavra.
Ela mordeu ao de leve o lábio inferior e sorriu involuntariamente.
- Mas disseste.
Ele suspirou.
- É mesmo muito estranho. A verdade é que não me lembro de pensar em aviões. Não faço a mínima ideia de onde é que apareceu essa história do avião...
- A única coisa que sei é que disseste o mesmo antes, quando estavas a tomar duche. Pode muito bem ter acontecido que tu não estivesses a pensar em aviões, mas algures, numa floresta longínqua, o teu coração pensava neles.
- Talvez, quem sabe? Se calhar, encontrava-me nas profundezas de uma floresta perdida a construir um avião.
Ela pousou a esferográfica em cima da mesa com um ligeiro ruído e só depois levantou a cabeça e olhou para ele de frente.
Ficaram calados durante algum tempo. O café que havia nas chávenas ficou turvo e arrefeceu. A Terra girou no seu eixo enquanto a Lua mudava imperceptivelmente a força da gravidade e levava à mudança no curso das marés. O tempo passou em silêncio; na linha de caminho-de-ferro circulavam os comboios.
Tanto ele como ela estavam a pensar na mesma coisa: um avião. O avião fabricado graças ao seu coração nos confins da floresta. Interrogavam-se sobre o tamanho do avião, a sua forma e a cor de que estava pintado, o destino que tinha, quem viajaria nele. Pouco tempo depois, ela voltou a desfazer-se em lágrimas. Era a primeira vez que acontecia ter dois ataques de choro no mesmo dia. E foi também a última. Para ela, era uma coisa especial. Ele estendeu a mão por cima da mesa e fez-lhe uma festa no cabelo. Aquele gesto tinha qualquer coisa de espantosamente real. Era a um tempo duro e terno, próximo e distante, à imagem e semelhança da própria vida.
"Sim", reconheceu ele. "Naqueles dias tinha o hábito de falar comigo próprio como se estivesse a dizer poesia."


O ESPELHO


Todas as histórias que têm estado aqui a ser contadas parecem caber em duas categorias. Há aquelas em que nos aparece o mundo dos vivos de um lado e o mundo dos mortos do outro, e em que se assiste à intervenção de alguma força desconhecida que permite a passagem entre os dois. A esse mundo pertencem os fantasmas e outros seres que tais. O segundo congrega os fenómenos paranormais e todo o tipo de premonições que permitem antever o nosso futuro. Todas as histórias pertencem a um ou a outro grupo.
De facto, todas as vossas experiências tendem a encaixar-se em qualquer uma destas categorias. Quero dizer, as pessoas que vêem fantasmas, vêem apenas fantasmas e nunca têm premonições. Em contrapartida, aquelas que têm premonições não vêem fantasmas. Porquê, não sei dizer, mas a verdade é que parece existir uma queda individual para que essa escolha se verifique. Pelo menos é a impressão que eu tenho.
Claro que existem pessoas que não se enquadram em nenhuma das duas categorias. É o meu caso. Ao longo dos meus trinta anos de vida, nunca me deparei com um fantasma nem nunca tive uma premonição que fosse, nem sequer um sonho profético digno desse nome. Lembro-me de uma certa viagem de elevador com dois amigos meus que juraram ter vislumbrado um fantasma, mas eu confesso que não vi rigorosamente nada. Eles bem diziam que ia uma mulher vestida de cinzento mesmo ao meu lado, mas nunca tal mulher existiu, pelo menos que eu tivesse dado por ela. No elevador seguíamos só os três.
Palavra de honra. E garanto que esses meus dois amigos não eram do género brincalhão e, como tal, incapazes de se porem para ali propositadamente a pregar-me partidas. Tudo aquilo não deixou de ser muito estranho, mas o certo é que eu continuo sem ter visto um fantasma.
Houve uma única vez em que passei por uma experiência que me deixou completamente fora de mim. Aconteceu há dez anos, e até à data nunca contei nada a ninguém. Até de tocar no assunto tinha medo. Receava que a coisa pudesse às tantas repetir-se, daí que nunca tenha trazido a história à baila. Mas atendendo a que hoje calhou a todos a oportunidade de contarem as suas histórias mais arrepiantes, e na qualidade de mestre-de-cerimónias, não posso deixar que a noite acabe sem contribuir com material da minha lavra. Chegou, por isso, a hora de partilhar convosco a história que se segue. Reza então assim.
Quando acabei o secundário, estava-se então em finais da década de 1960, o movimento estudantil vivia dias de grande agitação e efervescência política. Na qualidade de filho da geração hippie, recusei-me a ir para a universidade. Em vez disso, passei alguns anos a percorrer o Japão de lés a lés, sobrevivendo à custa de sucessivos empregos de ocasião em que apenas precisava de fazer uso da força manual. Vivia plenamente os meus verdes anos e estava convencido de que era esse o caminho certo. Podem chamar-me jovem e inconsciente, que não me importo. Quando olho para trás, acho que tirei partido da vida e que vivi esses dias num ambiente de entusiasmo indescritível. Quer tenha ou não sido a escolha correcta, o certo é que, caso me fosse dada a oportunidade de repetir a experiência, podem ter a certeza de que faria a mesmíssima coisa.
No Outono do meu segundo ano de errância pelo país fora, trabalhei durante cerca de dois meses como guarda-nocturno num estabelecimento de ensino secundário. Tratava-se de um estabelecimento de ensino localizado numa pequena cidade na prefeitura de Niigata. Fartara-me de dar o corpo ao manifesto durante todo o Verão e durante algum tempo queria ver se abrandava o ritmo. Nessa medida, ser guarda-nocturno não era propriamente um trabalho difícil nem cansativo.
Durante o dia ficava a dormir no cubículo do porteiro e, quando chegava a noite, só tinha de fazer a ronda por duas vezes a fim de verificar se estava tudo em ordem. O resto do tempo, passava-o a ouvir discos no quartinho, a ler livros na biblioteca, a lançar bolas ao cesto no ginásio. Vendo bem, passar a noite sozinho na escola não era mau de todo. Medo? Não tinha. Quando se tem dezoito ou dezanove anos, não se sabe o que isso é.
Como não faço a mais pequena ideia se alguma vez trabalharam como guarda-nocturno, passo a explicar em meia dúzia de linhas as minhas funções. Tal como já disse, tinha por obrigação fazer a ronda pela escola por duas vezes, uma às nove da noite e a outra às três da manhã. Era esse o horário a cumprir. A escola ficava num edifício de cimento construído há relativamente pouco tempo, com dezoito ou vinte salas de aula espalhadas por três andares. Tendo em conta a dimensão média das instalações escolares, nem sequer era nada do outro mundo. Para além das salas de aula havia ainda uma sala de música, outra de trabalhos oficinais, uma oficina de artes visuais, uma sala de professores e o gabinete do reitor. Sem esquecer a cantina, uma piscina, um ginásio e um auditório. O meu trabalho consistia em passar revista a todos esses locais e verificar se estava tudo normal.
No decorrer das minhas rondas, tinha de verificar qualquer coisa como vinte pontos de controlo. De cada vez que passava por um, assinalava com a caneta na minha lista - sala de professores, visto, laboratório de ciências, visto, e por aí fora... Teoricamente, poderia perfeitamente ficar a dormir na salinha do porteiro, e fazer as tais marcas na mesma, sem me dar ao trabalho de fazer a ronda. Acontece, porém, que eu não era pessoa para deixar as coisas a meio. Nem sequer se podia dizer que gastasse muito tempo com aquilo e, além do mais, se alguém se lembrasse de arrombar as instalações comigo a dormir lá dentro, quem se lixava era eu.
Recapitulando, em sendo nove da noite e três da manhã, lá ia eu dar a minha voltinha, de lanterna em punho na mão esquerda e, na direita, uma espada de madeira em riste. Tinha praticado /cencfo(1)

*1. Esta arte marcial japonesa surge por volta do século II, pelas mãos dos kenshi (espadachim) que transformaram a "arte da espada" (kenjutsu) no "caminho da espada" (kendo), uma arte da guerra próxima do treino clássico do guerreiro no mundo moderno. (N. da T.)

quando andava no secundário e sentia inteira confiança nas minhas capacidades para impor respeito ao primeiro que me aparecesse pela frente. Caso o atacante não passasse de um mero amador, e mesmo imaginando que também ele estaria armado com uma espada a sério, devo confessar que essa ideia não me tirava o sono. Lembrem-se da idade que eu tinha. Caso a história se passasse nos dias de hoje, desatava a fugir dali para fora.
Aconteceu tudo numa noite ventosa dos primeiros dias de Outono. A bem dizer, fazia até um calor abafado para a época. Ao cair da noite, os mosquitos atacavam em enxames, e lembro-me de ter duas embalagens de repelente para me livrar deles. O vento soprava com força. O portão que dava acesso à piscina tinha sido arrombado e abria e fechava ao sabor do vento. Ainda pensei em repará-lo, mas estava demasiado escuro. Resultado: ficou a bater a noite inteira.
A minha ronda das nove da noite correu bem, sem nada a assinalar. Os vinte pontos da minha lista receberam o respectivo visto. As portas encontravam-se trancadas e estava tudo no seu lugar, como devia ser. Nada de especial a assinalar. Regressei à salinha do porteiro, pus o despertador para as três e adormeci quase logo a seguir.
Às três da madrugada, quando o alarme soou, acordei com uma sensação estranha. Não consigo explicar lá muito bem, só sei que me sentia diferente. Não tinha a mínima vontade de me levantar, como se houvesse alguma coisa que me impedisse de o fazer. Por norma, sou daqueles tipos que saltam logo da cama. No caso, tive de me obrigar a pôr de pé e a prosseguir com a minha ronda. O portão que dava para a piscina continuava a bater insistentemente, mas produzia agora um ruído diferente. "Verdadeiramente estranho", lembro-me de ter pensado, muito pouco inclinado em fazer-me ao caminho. Lá acabei por me decidir a cumprir a minha missão, contra ventos e marés. Basta uma pessoa deixar as suas obrigações para trás uma vez que seja na vida, e logo aquela primeira vez se transforma em hábito. Escusado dizer que eu não queria que isso acontecesse comigo. Por isso, agarrei na minha lanterna e na minha espada de madeira e ala que se faz tarde. Na verdade, foi uma noite muito estranha, aquela. A medida que as horas passavam, o vento aumentou de intensidade, o ar tornou-se mais húmido. Comecei a sentir um ardor na pele e não me conseguia concentrar.
Resolvi começar a ronda pelo ginásio, auditório e piscina. Tudo em ordem. O portão que permitia acesso à piscina batia, ao sabor do vento, como um daqueles alienados que desatam a abanar e a acenar com a cabeça, à vez, sem saber a quantas andam... A comparação pode soar de forma estranha, bem sei, mas na altura foi a sensação que tive.
No interior da escola estava tudo normal. Dei uma olhadela a tudo o que era sítio e verifiquei todos os pontos que constavam da minha lista, um após o outro. Nada de inusitado a assinalar, apesar da sensação de estranheza que me assaltava. Mais aliviado, percorri o caminho de volta ao cubículo do porteiro. O último sítio da minha lista era a sala da caldeira, que ficava mesmo ao lado da cantina, na zona leste do edifício, precisamente do lado oposto. Isso significava que teria de percorrer todo o longo caminho de volta no primeiro andar, se queria voltar ao ponto de partida. Escusado será dizer que a escuridão era total. Naquelas noites em que a Lua aparecia, pouca ou nenhuma claridade chegava ao corredor; por isso, quando não havia lua, mal se via um palmo à frente do nariz. Eu via-me obrigado a apontar o caminho com ajuda da lanterna para ver onde punha os pés. Naquela noite a que me refiro concretamente, pressentia-se a chegada iminente de um tufão e a Lua escondia-se atrás das nuvens. Volta e meia, lá surgia uma pequena aberta nas nuvens, mas não tardava a ficar tudo mergulhado no escuro outra vez.
Lembro-me de ter percorrido o corredor num passo mais vivo do que era costume, com as solas de borracha dos meus sapatos a chiarem devido ao contacto com o chão. Era um pavimento de linóleo verde, da cor de um tapete de musgo ressequido. Ainda hoje tenho essa imagem gravada na memória.
A meio desse corredor ficava a entrada para a escola. Ao passar por lá, pareceu-me ver uma sombra e senti medo. "E se houvesse qualquer coisa a mover-se na obscuridade?" Comecei a transpirar. Acto contínuo, agarrei a minha espada de madeira com mais força e virei-me na direcção onde julgara ter visto a misteriosa sombra. Fiz incidir a luz da lanterna na parede onde ficava o armário para guardar os sapatos.
E lá estava eu. Que é como quem diz, a minha imagem reflectida num espelho. Como não existia ali qualquer espelho na noite anterior, imaginei que o devessem ter acabado de instalar na véspera.
Mas que valente susto! Tratava-se de um espelho enorme, a todo o comprimento. Aliviado ao ver que o espelho só reflectia a minha imagem, senti-me um perfeito idiota por me ter assustado daquela maneira. Que estupidez! Apaguei a lanterna, tirei um cigarro do bolso e acendi-o. Dei uma passa e fiquei a olhar para mim no espelho. Um ténue raio de luz penetrava através da janela, incidindo em cheio no espelho. Nas minhas costas, a porta que dava para a piscina batia ao vento.
Depois de ter dado três ou quatro passas, reparei numa coisa esquisita. A imagem reflectida no espelho não era a minha. Quer dizer, à primeira vista era eu, sem tirar nem pôr, mas bem via que aquele não era eu. Melhor dizendo: obviamente que era eu, mas um outro eu. Um "eu" que existia fora de mim, que nunca devia ter existido. Não consigo explicar melhor. Torna-se difícil traduzir um sentimento desses em palavras.
Uma coisa, porém, eu sabia: aquela outra figura detestava-me até dizer chega. O seu ódio transparecia como um icebergue à tona num mar de escuridão. O tipo de ódio que nada nem ninguém poderia alguma vez apaziguar.
Deixei-me estar ali um bocado, sem saber de que terra era. O cigarro escorregou-me dos dedos e caiu no meio do chão. O cigarro que se via no espelho também caiu ao chão. Ali ficámos, a olhar um para o outro. Pela minha parte, não me conseguia mexer, como se estivesse atado de pés e mãos.
Por fim, ele mexeu a mão. Os dedos da sua mão direita tocaram no seu queixo, e, depois, amarinharam como um insecto pelo seu rosto. Ficámos a olhar um para o outro. De repente, dei-me conta de que eu estava a fazer a mesma coisa. Até parecia que era eu o reflexo no espelho e que ele estava a tentar controlar os meus gestos.
Apelando à minha última reserva de coragem, lá consegui lançar uma espécie de grunhido cavernoso, e libertei-me finalmente dos grilhões que me prendiam àquele lugar. Ergui no ar a minha espada de madeira, desferi uma violenta pancada em cheio no espelho e desatei a fugir. Ainda ouvi o vidro a estilhaçar-se no chão, mas nem olhei para trás, apostado em alcançar quanto antes a segurança do meu casinhoto. Uma vez lá dentro, apressei-me a trancar a porta e enfiei-me a correr dentro da cama, com a roupa por cima da cabeça.
Preocupava-me a ideia de ter deixado cair o cigarro, mas não voltaria atrás nem por nada deste mundo. Durante todo este tempo, o vento lá fora nunca deixou de soprar e uivar com violência. O portão que dava acesso à piscina continuou sempre a bater e a fazer um barulho até ser dia. Sim, sim, não, sim, não, não, não...
Chegada esta altura terão decerto adivinhado o final da minha história. Nunca houve espelho nenhum.
Quando o dia nasceu, já o tufão se tinha afastado. O vento diminuíra e pusera-se uma manhã soalheira. Fui até à entrada. O cigarro que eu tinha deitado fora continuava no mesmo sítio. A espada de madeira também. Mas o espelho, nada. Nunca tinha havido espelho nenhum.
Aquilo que eu vi não foi um fantasma. Vi-me pura e simplesmente a mim próprio. Até hoje nunca mais me esqueci do terror que senti naquela noite. E quando me lembro do ocorrido, vem-me sempre o mesmo pensamento ao espírito: neste mundo, o mais assustador de tudo somos nós próprios. Não lhes parece?
Se calhar repararam que não tenho um único espelho em casa. E, acreditem, não tem sido nada fácil fazer a barba sem um espelho à frente.

UM CONTO POPULAR PARA A MINHA GERAÇÃO: NA PRÉ-HISTÓRIA DO CAPITALISMO TARDIO

Nasci em 1949. Comecei a frequentar o ensino secundário no ano de 1961 e entrei para a universidade em 1967. E quando finalmente chegou o tão aguardado dia dos meus vinte anos - que é como quem diz, a minha porta de entrada para a idade adulta -, viviam-se dias agitados no auge dos tumultos e manifestações organizadas pelo movimento estudantil. O que, segundo os meus cálculos, me classifica como o típico filho dos anos 60. E foi assim que vivi a fase mais vulnerável, mais imatura e, ao mesmo tempo, mais importante da minha existência, na altura em que decorria uma década gloriosa em que a palavra de ordem era viver para o momento, no auge da loucura colectiva promovida pelo movimento juvenil. Tudo o que então sabíamos era que pela frente havia uma quantidade de portas que era preciso derrubar, e podem crer que as deitámos todas abaixo. Uma verdadeira loucura, sempre ao som de Jim Morrison, dos Beatles e de Bob Dylan, convertidos numa espécie de banda sonora das nossas vidas.
Os anos 60 foram especiais. E se agora, olhando para trás, isso salta aos olhos, devo dizer que já naquela altura, apanhado no turbilhão dos acontecimentos, eu estava plenamente convencido disso. Agora, se me pedirem para entrar em pormenores, e quiserem saber concretamente o que foi que tornou a década de 1960 uma época tão especial, pelo menos para a minha geração, consigo alinhavar duas ou três banalidades e é tudo. Na altura, não passávamos de meros observadores, totalmente absorvidos num filme excitante, com as palmas das mãos suadas, para virmos a descobrir quando as luzes se acendiam, à saída da sala de cinema, que toda aquela sensação de euforia e arrebatamento afinal pouco ou nenhum significado tinha. Será que, de certa forma, isso nos impediu de aprender alguma valiosa lição de vida? Confesso que não sei. Não tenho ainda o distanciamento necessário para o afirmar em boa consciência.
O que aqui me traz, só para ficarem a saber, não é fazer propaganda pelo facto de ter vivido esses tempos. A única coisa que me interessa é relatar os factos. Dar conta de como foi viver nesse período e deixar aqui o meu testemunho em como "sim, aqueles tempos foram realmente especiais". E, contudo, sempre que me ponho a esmiuçar o que aconteceu de facto, a fim de chamar a atenção para algo que mereça destaque, em boa verdade não me parece que consiga. Aqui têm o que se me ofereceria a dizer, caso me propusesse a dissecar os acontecimentos dessa altura: o turbilhão e a energia dos tempos, o tremendo clarão da esperança. Acima de tudo, um sentimento de inevitável frustração, como acontece quando se olha pelo lado errado de um telescópio. Heróis e vilões, êxtase e desilusão, martírio e descrença, teoria geral e estudos especializados, silêncio e eloquência, pessoas ocupadas a matar o tempo da forma mais monótona - houve de tudo um pouco, naturalmente. Sempre assim foi e sempre assim há-de ser. A história repete-se. Acontece o mesmo nos tempos que correm e a cena repetir-se-á no futuro. Acontece, porém, que no nosso tempo (para usar uma imagem desproporcionada) as coisas adquiriram cores mais vivas e contornos mais nítidos, e era quase como se conseguíssemos, de facto, agarrar nelas. Era como se estivessem ali diante dos nossos olhos, literalmente alinhadas numa prateleira, à mão de semear.
Hoje em dia, quando se tenta captar a realidade seja do que for, apanhamos sempre por tabela com toda a espécie de situações complicadas. A saber, publicidade enganosa, talões de desconto de origem duvidosa, cartões de crédito oferecidos por lojas de oportunidades, que só têm à venda coisas que não nos servem para nada, mas que guardamos na carteira, bem como todas as oportunidades que nos são praticamente atiradas à cara sem que nos consigamos defender delas. No nosso tempo, não andava ninguém a ver se nos impingia uma enciclopédia de três volumes praticamente ilegíveis. Fosse o que fosse, limitávamo-nos a deitar-lhe a mão e a pormo-nos a caminho de casa - como pegar num frango, daqueles que se compram naqueles pequenos mercados abertos durante toda a noite, e levá-lo para casa. Tão simples e prático quanto isso. Causa e efeito andavam, por aqueles dias, sempre de mãos dadas; tese e realidade, idem idem, aspas aspas, como se fosse a coisa mais natural do mundo. E palpita-me que os anos de 1960 foram a última vez que isso aconteceu.
Inventei o nome de "Pré-história do Capitalismo Tardio" para designar esses tempos.
Deixem-me que vos fale um bocadinho das raparigas daquela geração. E também de nós, rapazes, apetrechados com os nossos órgãos sexuais praticamente novinhos em folha, e do sexo selvagem, alegre e triste que praticávamos. É um dos assuntos que gostaria de partilhar.
Vejam o caso da virgindade, por exemplo - por uma qualquer razão insondável, esse vocábulo traz-me sempre à mente a imagem de uma bela e soalheira manhã de Primavera. Nos sixties, a virgindade era um assunto bastante mais sério do que nos dias que correm. Na minha opinião - e é evidente que estou a generalizar, uma vez que não realizei nenhuma sondagem nem nada que se pareça -, julgo que o número de raparigas da minha geração que terão perdido a virgindade antes de atingirem os vinte anos deve andar à volta de cinquenta por cento. Pelo menos entre as miúdas que eu conhecia, tudo aponta para essa percentagem. O que significa que pelo menos metade das raparigas, conscientemente ou não, ainda eram virgens.
Quer-me parecer que, para a maioria das raparigas da minha geração (pelo menos as mais moderadas, chamemos-lhes assim), fossem elas virgens ou não, essa revelava-se uma questão muito dolorosa e complexa. Por um lado, não clamavam que se tratava de um bem precioso, por outro, também não faziam questão de se referir à virgindade como uma estúpida relíquia do passado. Por isso, o que de facto aconteceu foi que - peço que me desculpem se lá estou eu a generalizar outra vez - deixaram as coisas seguir o seu curso natural. Tudo dependia das circunstâncias e do parceiro. Aos meus olhos, faz todo o sentido.
De cada lado da barricada, entre liberais e conservadores, existia uma maioria silenciosa, em que cabia de tudo um pouco - desde raparigas para quem o sexo era uma espécie de desporto até àquelas que acreditavam piamente em conservarem-se puras até ao dia do seu casamento. É óbvio que também havia rapazes para os quais era imperioso casar com uma rapariga virgem.
Como acontece em todas as gerações, havia todo o tipo de pessoas, adeptas de todo o tipo de valores. Mas a grande diferença entre os idos de 1960 e as décadas que os antecederam e vieram depois consiste no facto de as pessoas estarem convictas de que essas diferenças poderiam um dia ser ultrapassadas.
Paz!
Segue-se a história de um tipo meu conhecido, antigo colega meu dos tempos do secundário, em Kobe. Era uma daquelas pessoas "cinco estrelas" com tudo a seu favor: tinha boas notas, era bom no desporto, um líder natural. Não era propriamente uma estampa de homem, mas tinha bom aspecto e uma cara simpática. A voz também era agradável, o que fazia dele um bom orador em público, e pode mesmo dizer-se que até a cantar se safava. Nas discussões de turma era o nosso representante por excelência, e, quando nos defrontávamos com outros alunos, cabia-lhe sempre a ele apresentar o argumento final. Não se pode dizer que primasse pela originalidade, mas, também, quem é que vai para uma discussão de turma à espera de opiniões originais? De resto, o que há mais para aí são situações em que a originalidade não é tida nem achada. Pensando bem, isso acontece nas mais das vezes. Tudo o que pretendíamos era sair dali o mais depressa possível, e a verdade é que podíamos contar com ele para levar a sua avante e acabar de vez com a discussão. Nesse sentido, convenhamos que dava jeito ter um tipo como ele à mão.
Com ele, era sempre tudo certinho e feito segundo as regras. Caso alguém desatasse a fazer barulho na sala de aula, logo ele se levantava para mandar essa pessoa ficar calada, isto sem nunca perder a calma. O tipo era perfeito até dizer chega, mas confesso que havia uma coisa que me inquietava, e que era o facto de não conseguir perceber o que lhe ia na alma. Às vezes quase que me apetecia arrancar-lhe a cabeça pelo pescoço e abaná-lo bem para ver o que andava a chocalhar e a fazer barulho lá dentro. Também era muito popular com o sexo feminino. Bastava ele abrir a boca para dizer qualquer coisa, que de imediato os olhares de todas as raparigas recaíam sobre ele e o resto da malta deixava de existir.
Todo aquele que tenha alguma vez andado a estudar no ensino oficial sabe do que eu falo. Existe sempre algum aluno parecido com ele em cada turma, sem o qual nada parece funcionar. Os muitos anos passados na escola, agarrado aos manuais escolares, a aprender para a vida, ensinou-me uma data de coisas, e uma das lições foi precisamente esta: quer se goste quer não, em todos os grupinhos existe um exemplar desses.
Pessoalmente, não sou grande fã do género. Acontece que a relação não produz faísca, pelas mais variadas razões. Prefiro os tipos imperfeitos, são essas as pessoas que me ficam na memória. Isto para explicar que, apesar de andarmos a estudar na mesma turma, eu e ele nunca fomos unha com carne. O mais próximo que os dois tivemos de uma conversa decente foi depois de ter acabado os exames, durante as férias de Verão, já na nossa condição de caloiros na universidade. Andávamos a ter aulas de condução na mesma escola e trocámos algumas impressões. Por vezes aconteceu mesmo tomarmos uma chávena de chá juntos, enquanto estávamos à espera. Não deve existir lugar mais chato à face da Terra do que as escolas de condução, de modo que basta vermos uma cara conhecida para aproveitarmos logo a deixa. Não me lembro do que dissemos, mas sei que não fiquei nem com boa nem com má impressão.
Outra coisa de que me lembro acerca dele é da namorada. Andava numa turma diferente e pertencia ao grupo das raparigas espantosamente bonitas que se contavam pelos dedos. Não só era lindíssima como tinha boas notas e se revelava uma espécie de líder natural, daquelas que no fim dos debates dava sempre voz à opinião geral. Todas as turmas têm uma rapariga como ela.
Resumindo, faziam o par ideal. O Sr. Perfeito e a Sr.a Perfeita. Saídos do anúncio a uma qualquer marca dentífrica.
Eram inseparáveis. Durante o intervalo da hora de almoço, ficavam sentados lado a lado, a um canto do recreio da escola, à conversa. Esperavam um pelo outro a fim de poderem regressar a casa no mesmo comboio, ainda que saíssem em estações diferentes. Ele fazia parte da equipa de futebol, ela nas aulas de conversação inglesa, e aquele que se despachasse mais cedo ficava na biblioteca a estudar, à espera do outro para regressar a casa. A ideia que dava era a de que passavam juntos todos os momentos livres que tinham. Além de que estavam sempre embrenhados na conversa. Ainda hoje não sei como é que faziam para terem sempre qualquer coisa para contar um ao outro, mas a verdade é assim acontecia.
Nós (e quando digo "nós", refiro-me aos membros do grupo com quem costumava andar) não tínhamos nada contra os dois. Nunca fazíamos troça nem dizíamos mal deles. Na realidade, nem se pode dizer que fizessem parte dos nossos pensamentos. Eram como o tempo, como algo que pura e simplesmente existia à nossa volta, mas que de forma alguma captava a nossa atenção.
Estávamos todos demasiado empenhados em perseguir os nossos ideais, os interesses verdadeiramente importantes que os tempos ofereciam à nossa disposição. Por exemplo? Sexo e rock'n'roll, os filmes de Jean-Luc Godard, os movimentos políticos, os romances de Kenzaburo Oe(1). Mas sobretudo sexo.
Obviamente que não passávamos de uns miúdos ignorantes e convencidos, que não faziam a mínima ideia do que era a vida. No mundo real, não existia nada que se parecesse com o Sr. e a Sr.a Perfeitos. Isso só na televisão. O género de ilusões que nós então ainda tínhamos e o tipo de ilusões que este rapaz e a sua namorada tinham não eram tão diferentes quanto isso.
Esta é a história deles. Não se pode dizer que seja uma história com final feliz, e, olhando para trás, torna-se difícil extrair dali alguma lição de vida. Apesar disso, é a história deles, ao mesmo tempo que é também a nossa história. Tudo isso faz com que seja uma espécie de folclore que me dei ao trabalho de recolher e que agora, na qualidade de narrador algo atabalhoado, me encarrego de vos transmitir.

*1. Um dos mais destacados escritores japoneses, agraciado com o Nobel da Literatura em 1994. Em início de carreira, Murakami foi por vezes comparado com ele, quando os críticos pretendiam acusá-lo de ceder aos interesses de uma população eminentemente jovem, em detrimento dos valores de uma escola literária mais antiga e profunda, representada pelos romances de Oe. Por ironia do destino, coube-lhe entregar a Murakami o mais alto galardão japonês (Prémio Literário Yomiuri). (N. da T.)

Dou-vos a conhecer a versão da história tal como ele ma vendeu, entre dois copos de vinho e outros tantos dedos de conversa. Por isso, falando bem e claro, não é de admirar que nem tudo corresponda à verdade. Houve partes que não apanhei e duas ou três coisas que graças à minha imaginação posso ter exagerado, mas não creio que isso tenha importância na narração em si. No fundo, estou em crer que as coisas se passaram mais ou menos como eu contei. E se digo isto, é porque, apesar de eventualmente se me ter varrido um ou outro pormenor, recordo-me perfeitamente do grosso da história. Quando ouvimos uma história contada por outra pessoa e a seguir tentamos passá-la para o papel, o importante é conseguir reproduzir o tom. Uma vez captado o tom, podem ter a certeza de ter nas mãos uma verdadeira história. Pouco importa que haja alguns episódios que não batam certo; nalguns casos, isso até pode servir para reforçar o grau de verosimilhança. E o contrário também se aplica; o que mais há para aí são histórias que batem certo em quase tudo e que não são verdade. Refiro-me a histórias que são, na sua maioria, uma seca monumental e que podem até, em certas circunstâncias, revelar-se perigosas. Consigo cheirá-las ao longe.
Uma outra coisa que me sinto ainda na obrigação de deixar claro é o facto de esse tal meu companheiro de escola ser um péssimo contador de histórias. Deus pode muito bem tê-lo contemplado generosamente com outros atributos, mas diga-se em abono da verdade que o talento para reproduzir uma história não se conta entre eles. (Não quero com isto dizer que a arte idílica do contador de histórias sirva para algo de concreto na vida real.) Por isso, era frequente eu deixar escapar um ou outro bocejo, sempre que ele era levado a efabular. Ele costumava perder o fio à meada e pôr-se para ali às voltas, demorando uma eternidade a lembrar-se dos factos que interessavam. Não era raro vê-lo interromper a narrativa, interrogando-se sobre um determinado aspecto em particular, para começar de novo a discorrer sobre o assunto mal conseguia dispor outra vez os factos e alinhavá-los em cima da mesa. Acontecia, porém, que muitas vezes não era esta a ordem pela qual as coisas se passavam. Por isso, na qualidade de romancista - um especialista na arte de contar histórias, se preferirem -, dei-me ao trabalho de dispor esses fragmentos cronologicamente e encadeá-los de maneira a dar forma a uma narrativa coerente.
Encontrámo-nos por mero acaso em Lucca, uma cidadezinha no coração de Itália. Na altura, eu estava a morar num apartamento em Roma. Uma vez que a minha mulher tinha regressado ao Japão, decidira oferecer a mim próprio o prazer de uma viagem solitária, percorrendo de comboio a distância entre Veneza e Verona, depois o itinerário que vai de Mântua até Pisa, com paragem em Lucca. Era a segunda vez que visitava a simpática e tranquila cidade; lembrava-me de que, nos arredores, havia um restaurante magnífico onde serviam toda a espécie de pratos sofisticados e caríssimos à base de cogumelos.
Pelo que lhe dizia respeito, costumava deslocar-se a Lucca em negócios, e aconteceu ficarmos hospedados no mesmo hotel. O mundo é pequeno.
Naquela noite, tínhamos jantado no mesmo restaurante. Estávamos ambos cansados e maçados da viagem. À medida que os anos passam por nós, mais aborrecido se torna viajar sozinho. Quando se é novo, é tudo diferente - sozinha ou acompanhada, as viagens dão sempre prazer a uma pessoa. No entanto, com o passar dos anos, o factor divertimento começa a esmorecer, e só nos primeiros dois ou três dias é que a coisa dá gozo. Depois disso, o cenário torna-se monótono, e as vozes à nossa volta começam a arranhar nos ouvidos. Não há escapatória possível, basta uma pessoa fechar os olhos para ser de imediato assaltada por toda a espécie de recordações desagradáveis. Comer nos restaurantes dá um trabalho desgraçado, além de que damos por nós a olhar para o relógio vezes sem conta enquanto esperamos pelo carro eléctrico que nunca mais chega. Já para não falar na odisseia que representa uma pessoa tentar fazer-se entender numa língua estrangeira.
Foi por isso que, ao descobrirmos que os nossos caminhos se tinham cruzado, suspirámos os dois de alívio, tal como de resto acontecera da outra vez que déramos de caras um com o outro na escola de condução. Sentámo-nos a uma mesa junto à lareira, mandámos vir uma boa garrafa de vinho e encomendámos um jantar só de cogumelos: um prato de cogumelos a abrir, massa com cogumelos e arrosto com cogumelos.
Acontecia que ele era dono de uma empresa de mobiliário que importava móveis da Europa, razão pela qual se encontrava no continente europeu.
Dava para ver que os negócios corriam bem. Não que ele se vangloriasse disso ou se armasse em bom (ao entregar-me o cartão-de-visita, limitou-se a dizer que estava à frente de uma pequena firma), mas saltava à vista que o indivíduo estava bem na vida. A forma como vestia, a sua maneira de falar, a sua atitude e os seus modos, tudo nele contribuía para tornar isso óbvio. Via-se que ele se sentia perfeitamente à vontade no papel de homem de sucesso, e tirava mesmo disso um certo prazer.
Tinha lido todos os meus romances, confidenciou-me ele. "A nossa maneira de pensar e os objectivos que perseguimos são muito diferentes", disse ainda, "mas acho uma coisa maravilhosa ser capaz de contar histórias às outras pessoas."
Nada a objectar. "Isso caso uma pessoa seja capaz de contar bem uma história", acrescentei.
De início, limitámo-nos a trocar impressões sobre Itália. Quei-xámo-nos pelo facto de os comboios nunca andarem a horas, do tempo de espera nos restaurantes. Mas depois, não me lembro ao certo quando mas deve ter sido quando já íamos na segunda garrafa de vinho, ele engatilhou e começou então a contar a sua saga. E eu ali a ouvir tudo, fazendo de vez em quando sinal de estar com atenção. Julgo que ele terá querido deitar cá para fora tudo o que lhe ia na alma desde há muito, sem nunca ter tido oportunidade. Se não estivéssemos os dois sentados num simpático restaurantezinho numa pequena e bonita cidade do centro de Itália, a beber um suave Coltibuono de 1983 diante de uma bela lareira, duvido que ele se tivesse disposto a entrar em confidências. Mas a verdade é que lá acabou por me contar a história dele.
"Sempre me tive na conta de uma pessoa desinteressante", começou ele. "Desde pequenino que nunca fui do género de me aventurar e correr riscos. Era como se eu sentisse que à minha volta existia como que uma espécie de barreira que eu me esforçava por não ultrapassar. Ou então como se eu seguisse por uma auto-estrada bem sinalizada que me indicava onde sair, qual a curva seguinte, quando não devia ultrapassar. Basta seguir as indicações, costumava eu pensar, que a vida haveria de correr bem. Toda a gente me elogiava por ser capaz de me manter no rumo traçado, e, verdade seja dita, quando eu era pequeno lembro-me de pensar que as outras pessoas também faziam o mesmo. Porém, com o andar da carruagem, não tardei a descobrir que não era esse o caso."
Empunhando o copo de vinho à altura do fogo que ardia na lareira, deixou-se ficar a olhar para ele, ensimesmado, durante algum tempo.
"Num certo sentido, posso afirmar que a minha vida, pelo menos na sua fase inicial, decorreu sem acidentes de percurso. Mas também é preciso dizer que eu não fazia a mínima ideia de qual o sentido da minha vida. Só mais tarde, ao crescer, é que a vaga percepção do que isso significava se tornou mais forte. O certo é que não sabia o que pretendia. Se me perguntassem o que é que eu queria da vida, ficava sem resposta. Era bom a matemática, inglês, desporto, enfim, a quase tudo. Os meus pais não se cansavam de me elogiar, os meus professores sempre disseram que eu não podia ir melhor nos estudos, e tinha perfeita consciência de que as minhas notas me permitiriam entrar numa boa universidade. Só não sabia para onde ia nem o que fazer na vida. No que ao curso universitário dizia respeito, estava a zero. Deveria seguir Direito, Engenharia ou Medicina? Estava ciente de que me safaria em qualquer dos cursos, mas nenhum deles me interessava por aí além. Por isso, segui o conselho dos meus pais e professores e entrei para a faculdade de Direito da Universidade de Tóquio. Não se podia dizer que estivesse verdadeiramente vocacionado para isso - acontecia que toda a gente dizia que era o melhor que eu tinha a fazer.
Bebeu mais um gole de vinho.
- Lembras-te da namorada que eu tinha quando estávamos quase a acabar o secundário?
- Era uma que se chamava Fujisawa? - alvitrei eu, sem saber muito bem como o nome dela me tinha ocorrido. Apesar de não ter a certeza, acertei em cheio.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Isso mesmo. Yoshiko Fujisawa. Com ela passava-se mais ou menos a mesma coisa. Gostava imenso dela, de estar com ela. Conversávamos sobre tudo e mais alguma coisa. Eu podia abrir-me com ela e dizer-lhe tudo o que me ia na alma, que ela compreendia os meus estados de espírito. Com ela, o assunto nunca se esgotava, o que era um sentimento maravilhoso. Pensando bem, antes de a conhecer nunca tinha tido alguém com quem conversar a sério.
Ele e Yoshiko eram almas gémeas. De resto, era espantoso, para não dizer inquietante, constatar como os dois tinham sido educados da mesma maneira. Tal como disse, eram ambos bem-parecidos, inteligentes e nascidos para liderar. As estrelas das respectivas turmas. Provinham de boas famílias, com pais que não se entendiam. Nos dois casos, as mães eram mais velhas do que os pais, e tanto o pai de um como do outro tinham uma amante e procuravam manter-se afastados de casa o mais tempo possível. Só não se divorciavam com medo do que as pessoas pudessem dizer. Lá em casa, eram as respectivas mães quem mandava e escusado será dizer que esperavam dos filhos que fossem os melhores em tudo. Yoshiko e ele eram, de facto, bastante populares, mas não sabiam o que era ter amigos. Nenhum deles sabia explicar porquê. Talvez porque as pessoas vulgares e imperfeitas escolhessem de preferência pessoas imperfeitas para fazer amizade. Em todo o caso, os dois andavam quase sempre sozinhos e raramente pareciam usufruir de um momento de descontracção.
Apesar disso, um dia os dois tornaram-se amigos. Almoçavam sempre juntos, iam para casa juntos. Passavam na companhia um do outro todos os momentos livres, à conversa. Assunto era coisa que não lhes faltava. Aos domingos, aproveitavam para estudar juntos. Sentiam-se mais à vontade quando se encontravam sozinhos. Cada um conhecia os sentimentos do outro tão bem como os seus. Eram capazes de estar horas infinitas a falar acerca da solidão que sentiam, do sentimento de perda, dos seus medos e dos seus sonhos.
Faziam amor uma vez por semana. Geralmente, ou no quarto de um ou no quarto do outro. Ficarem sozinhos não era difícil, uma vez que, com os pais metade do tempo ausentes, quase sempre nunca estava ninguém nas respectivas casas. Durante as sessões de marmelada, havia duas coisas que eles seguiam à regra: ficavam com a roupa vestida, e só usavam os dedos. Entretinham-se com aquelas brincadeiras amorosas durante dez ou quinze minutos, a explorar o corpo um do outro, após o que se sentavam outra vez à secretária e continuavam a estudar juntos.
"Já chega", costumava ela dizer, ao mesmo tempo que alisava a bainha da saia. "Vamos estudar um bocado?" Como tinham os dois quase sempre as mesmas notas, para eles o estudo era uma espécie de jogo, passando o tempo em competição para ver quem era capaz de resolver os problemas de matemática mais cedo. Estudar nunca era um sacrifício; era como se fosse uma espécie de segunda natureza. Contou-me ele que lhes dava um gozo tremendo. "Podes achar estúpido, mas a verdade é que gostamos os dois realmente de estudar. Imagino que, se calhar, é preciso ser como nós para compreender isso."
Apesar de tudo, não se podia dizer que ele estivesse totalmente satisfeito com a natureza da relação deles. Faltava ali qualquer coisa. Dito de outro modo, faltava o sexo propriamente dito. "O sentimento de serem um só, fisicamente", dizia ele. Depois, costumava acrescentar, sentia que tinham de dar esse passo para a liberdade. "Se formos capazes disso, passaremos a estar mais próximos um do outro, poderemos compreender-nos melhor." Para ele, seria essa a ordem natural das coisas.
Aos olhos dela, porém, era diferente. Com os lábios cerrados, punha-se a abanar ligeiramente a cabeça. "Gosto muito de ti", dizia ela com toda a naturalidade, "mas quero permanecer virgem até ao casamento." Por mais que ele se esforçasse por ver se lhe dava a volta, ela recusava-se a ouvir os seus argumentos.
"Gosto imenso de ti, a sério", dizia ela, "mas estamos a falar de duas coisas diferentes. Não vou mudar de ideias. Tenho muita pena. Habitua-te à ideia. Se gostas realmente de mim, vais ver que consegues viver com isso."
- Quando ela punha as coisas naquele pé, não tinha outro remédio senão respeitar a sua vontade. A questão é que se tratava da vida dela e não havia nada que pudesse dizer ou fazer. Para mim, era igual ao litro que a minha parceira fosse virgem ou não. Se viesse a descobrir que a mulher com quem me ia casar não era virgem, não ligaria muito a isso. Não sou uma pessoa radical, acho eu, nem tão-pouco nenhum romântico sonhador, mas também não se pode dizer que seja conservador. Sou apenas realista, mais nada. Na minha maneira de ver as coisas, a virgindade de uma mulher não é assim tão importante. Para mim, é muito mais importante que um homem e uma mulher se conheçam e se entendam. Seja como for, é apenas a minha opinião, e não é minha intenção impô-la a ninguém. Ela tinha a sua ideia de como a vida deveria ser, por isso só me restava pôr cara alegre e contentar-me em tocar nela com a roupa vestida. De certeza que tens uma ideia de como as coisas se passavam.
- Imagino, sim - concordei. Também eu tinha recordações parecidas que andavam lá perto.
Ele corou ao de leve e sorriu.
- Não era tão mau quanto isso, atenção, mas como nunca passávamos dali, nunca chegava a descontrair-me. Achava que a coisa ficava sempre a meio caminho. O que eu queria era estar com ela, sem que nada se interpusesse entre nós. Possuí-la e ser possuído. Precisava de receber um sinal. Claro que o desejo sexual também entrava em cena, mas não era o principal. Do que mais sentia falta era do sentimento de comunhão física. Nunca experimentara isso com ninguém. Tinha estado sempre sozinho, sempre tenso, esmagado de encontro a uma parede. Tinha a certeza de que a partir do momento em que nos tornássemos um, conseguiria derrubar esse muro que me oprimia e libertar-me, descobrir o meu verdadeiro eu, de que até então apenas me apercebera vagamente.
- E a coisa não foi avante? - perguntei.
- Não - confirmou ele, sem tirar os olhos, estranhamente vazios, dos troncos que ardiam na lareira. - Nunca fomos até ao fim.
Contou-me ele que estava a pensar seriamente em casar com ela, e que lhe comunicara isso mesmo. Tinha-lhe dito que podiam casar-se mal acabassem a licenciatura, sem o mínimo problema. Podiam até ficar noivos mais cedo. As suas palavras fizeram-na muito feliz, como se viu pelo sorriso perfeitamente radioso que transpareceu no olhar dela. Ao mesmo tempo, aquele sorriso deixava entrever alguma tristeza, com um certo cansaço à mistura, emoções próprias de uma pessoa mais velha e mais experiente, que se prestasse a escutar as ideias imaturas de um jovem. "Não podemos casar", disse ela. "Faço tenções de me casar com um homem alguns anos mais velho e tu, tu vais casar-te com uma mulher mais nova. É assim que as coisas são. As mulheres são mais maduras do que os homens, e envelhecem rapidamente. Tu ainda não tens qualquer experiência de vida. Mesmo que nos casássemos logo a seguir à faculdade, não daria certo. Nunca seríamos tão felizes como somos agora. É evidente que gosto de ti, e que nunca amei mais ninguém. Mas estamos a falar de duas coisas diferentes. ("Mas estamos a falar de duas coisas diferentes" era a frase preferida dela.) Ainda estamos a estudar e vivemos as nossas vidas resguardadas. É preciso ver que o mundo lá fora é diferente, maior, mais complexo, e nós temos de estar preparados para o enfrentar."
Ele sabia onde é que ela queria chegar. Comparado com os outros rapazes da sua idade, era caso para dizer que ele tinha os pés assentes no chão. Se alguém tivesse usado esse mesmo argumento num outro contexto, o mais provável era ele mostrar-se de acordo. Mas, atenção, estamos a entrar no campo das generalizações abstractas. Afinal, era da vida dele que se tratava.
"Não há meio de entender", confessou-lhe ele. "Amo-te. Gostaria tanto que fôssemos um. Isso para mim é mais do que evidente, além do grande significado que tem. Pouco me rala que seja ou não realista. É só para veres o amor que tenho por ti."
Ela tornou a abanar a cabeça, em sinal de que estava fora de questão. Ao mesmo tempo, tocou-lhe no cabelo e disse-lhe: "Sempre gostava de saber o que cada um nós sabe realmente acerca do amor. O nosso amor nunca foi posto à prova. Nunca tivemos de nos responsabilizar por nada. Somos duas crianças, tu e eu."
Aquele argumento deixou-o sem resposta. O que mais o entristecia era o facto de não ser capaz de derrubar aquele muro à volta dele. Até ali sempre olhara para o muro como uma protecção, mas agora via nele um obstáculo, uma barreira que obstava à sua progressão. Apoderou-se dele um sentimento de impotência. "Não há nada que eu possa fazer", pensou. "Estou condenado a ficar escondido por este muro alto e grosso e a envelhecer sem nunca me aventurar a pôr o pé do lado de lá. Para o resto da minha vida insípida e desprovida de significado."
O relacionamento entre os dois continuou na mesma até ao fim do secundário. Tinham por hábito encontrar-se na biblioteca, estudarem juntos, fazerem marmelada com a roupa no corpo. Ela não parecia minimamente incomodada com o facto de nunca levarem a coisa até ao fim. Pelo contrário, quase parecia gostar que o acto ficasse assim, por consumar. Toda a gente pensava que o Sr. e a Sr.a Perfeitos viviam uma juventude alegre e sem problemas. Na verdade, porém, ele continuou sempre a debater-se com as suas emoções por resolver.
Na Primavera de 1967, ele entrou para a Universidade de Tóquio, ao passo que ela foi aceite na universidade para mulheres de Kobe. Era sem dúvida uma excelente escola, mas a verdade é que, com as suas notas, ela poderia ter-se candidatado a uma instituição muito melhor. Em querendo, até mesmo a Universidade de Tóquio estaria ao seu alcance. Pelos vistos, ela contudo não achou que isso fosse necessário e nunca fez o exame de admissão. Explicou que não tinha uma vontade por aí além de prosseguir os estudos superiores, da mesma forma que não estava nos seus planos entrar para os quadros do Ministério das Finanças. "Sou uma rapariga", dizia ela. "A minha situação é diferente da tua. Tu estás apostado em ir longe, mas eu quero é passar os próximos quatro anos a gozar a vida. Uma vez casada, acabou-se."
Ele ficou seriamente desapontado. Tinha alimentado esperanças de irem os dois para Tóquio, a fim de recomeçarem do zero. Bem se fartou de lhe pedir que o acompanhasse, mas, como de costume, ela ficou-se por um abanar de cabeça.
Nas férias grandes daquele seu primeiro ano na Universidade de Kobe, ele regressou a Kobe, e os dois passaram a encontrar-se quase todos os dias. (Foi no decorrer desse Verão que eu me cruzei com ele na escola de condução.) Ela levou-o a passear de carro por tudo quanto era sítio e as sessões de marmelada continuaram, tal como dantes. Apesar disso, o meu amigo deu por si a desconfiar que algo mudara na relação entre eles. Aos poucos, sorrateiramente, a realidade começara a interpor-se e a ganhar terreno entre os dois.
A mudança não aconteceu de forma repentina. De facto, o problema consistia precisamente na ausência de mudança. Tudo o que a ela dizia respeito - a maneira de falar e de vestir, os temas de conversa, as opiniões - continuava rigorosamente igual. A relação deles era uma espécie de pêndulo, que, a pouco e pouco, com o passar do tempo, diminuía a amplitude de oscilação, ameaçando parar, e ele sentia que já não estavam em sintonia.
A vida em Tóquio era solitária. A cidade estava suja, a comida não prestava para nada, as pessoas mostravam-se vulgares e incultas. Pelo menos era o que ele achava. Passava o tempo todo a pensar em Yoshiko. À noite, fechava-se no seu quarto e escrevia-lhe cartas. Ela respondia-lhe, mais espaçadamente, aproveitando para o pôr ao corrente de todos os pormenores da sua vida de todos os dias, e ele devorava as missivas. Eram as cartas dela que o impediam de dar em maluco. Tinha entretanto começado a fumar e a beber. Volta e meia, baldava-se às aulas.
Quando as férias de Verão chegaram, e ele pôde finalmente regressar a Kobe, esperavam-no desilusões em catadupa. Apesar de só ter estado ausente três meses, a cidade natal parecia-lhe abandonada e sem vida. As conversas com a sua mãe revelaram-se a coisa mais aborrecida do mundo. Até mesmo a paisagem à sua volta, que ele costumava recordar com nostalgia quando estava em Tóquio, se tornara aos seus olhos profundamente insípida. Vendo bem, Kobe não passava de uma cidadezinha de província sem história. Não lhe apetecia falar com ninguém, e até uma simples ida ao barbeiro que lhe cortava o cabelo desde miúdo se anunciava deprimente. A zona à beira-mar, onde costumava levar o cão a passear, estava às moscas e cheia de entulho.
Que se desengane quem pense que os seus encontros com Yoshiko ainda provocavam nele uma certa titilação. De todas as vezes que se despediam, ele ia para casa e amuava. Os seus sentimentos não tinham mudado e continuava apaixonado por ela - isso era um facto. Ao mesmo tempo, porém, já não era suficiente. "Tenho de fazer alguma coisa", pensou ele. A paixão alimenta-se a si mesma, mas não dura para sempre. Se não fizermos qualquer coisa de drástico, a nossa relação chegará a um impasse e toda a paixão acabará por morrer asfixiada.
Um dia, decidiu voltar à carga e trazer de novo à baila a história do sexo, que andava desde há muito arredada das conversas. Pela última vez, decidiu.
"Passei estes últimos três meses em Tóquio a pensar em ti", disse ele. "Gosto muito de ti e não é por estarmos longe um do outro que os meus sentimentos vão mudar. Mas tenho de confessar que, no decorrer da nossa longa separação, comecei a ser assaltado por toda a espécie de pensamentos negros e negativos. Provavelmente terás dificuldade em entender esta minha posição, mas o facto é que a solidão torna as pessoas fracas. Nunca na minha vida me senti tão sozinho. Tem sido muito duro para mim. É por isso que gostaria que houvesse algo que nos aproximasse mais. Preciso de sentir com toda a certeza que pertencemos um ao outro, mesmo quando não estamos juntos."
Contudo, a namorada deu-lhe para trás. Suspirou e beijou-o ternamente.
"Tenho muita pena", afirmou ela, "mas não te posso dar a minha virgindade. Estamos a falar de duas coisas diferentes. Sinto-me disposta a tudo por ti, excepto isso. Se me amas, não tornes a falar no assunto, peço-te encarecidamente."
Ele aproveitou então para abordar a questão do casamento.
"Conheço raparigas da minha turma que já são comprometidas", referiu ela. "Duas, para ser exacta. Mas é preciso ver que os noivos delas têm empregos como deve ser. É isso que significa ficar noivo. O casamento implica responsabilidade. Tornamo-nos independentes e aceitamos partilhar a vida com outra pessoa. Se não formos responsáveis pelos nossos actos, não chegaremos a lado nenhum."
"Sou perfeitamente capaz de assumir as minhas responsabilidades", declarou ele. "Não te esqueças que ando a estudar numa boa universidade e que tenho obtido um bom aproveitamento. Se quiser, posso arranjar emprego em qualquer empresa ou escritório governamental. Diz o nome de uma firma ou de uma entidade e garanto-te que estarei à altura. Sinto-me capaz de tudo, desde que me proponha a isso. Por isso, não vejo qual é o problema."
Ela fechou os olhos, encostou-se para trás no assento do carro e ficou calada durante algum tempo.
"Tenho medo", confessou por fim. Depois tapou a cara com as mãos e começou a chorar. "Tenho um medo atroz. A vida é uma coisa assustadora. Daqui a dois ou três anos, não tenho outro remédio senão mergulhar na realidade e só de pensar nisso fico aterrada. O que é que te custa compreender isso? Por que é que não te esforças por entender o meu estado de espírito? Por que razão me atormentas assim?"
Ele embalou-a nos seus braços.
"Enquanto me tiveres ao teu lado, não precisas de ter medo", disse ele. "Para ser sincero, também eu tenho medo. Tal como tu. Mas desde que estejamos juntos, nada há a recear."
Ela abanou outra vez a cabeça.
"Não entendes. Sou mulher. Comigo é diferente. Não há maneira de entenderes."
Era escusado ele insistir no assunto. Ela chorou tudo o que tinha para chorar e quando finalmente parou, saiu-se com uma tirada verdadeiramente espantosa:
"Se alguma vez nos separarmos, quero que saibas que estarás sempre no meu pensamento. É pura verdade. Nunca te esquecerei. Amo-te sinceramente. Foste o primeiro homem que amei e sinto-me feliz pelo simples facto de estar a teu lado. Tens consciência disso, não tens? Mas estamos a falar de duas coisas diferentes. Se for preciso jurar, juro. Um dia havemos de dormir juntos, mas não para já. Depois de casada, vou para a cama contigo, prometo."
- Na altura, não fazia a mínima ideia do que ela queria dizer com aquilo - confidenciou-me ele, sem despegar os olhos da lenha que ardia na lareira. O empregado trouxe as nossas entradas e aproveitou enquanto ali estava e juntou mais algumas achas de madeira para espevitar o lume. Faúlhas incandescentes saltaram estrepitosamente e voaram pelo ar. Na mesa ao lado, o casal de meia-idade debruçava-se sobre a ementa e via-se e desejava-se para escolher a sobremesa.
- O que ela disse foi como uma espécie de enigma para mim. Depois de chegar a casa, dei voltas e mais voltas à cabeça a pensar nas palavras dela, mas sem chegar a conclusão alguma. E tu, entendes o que ela queria dizer?
- Bom, acho que se calhar ela estava a querer dizer que pretendia ficar virgem até ao casamento. Depois de casada, uma vez que a história da virgindade deixava de fazer sentido, não se importaria de ter um caso contigo. Foi a maneira de ela te dizer que terás de esperar até lá.
- Pode ser que tenhas razão. Não estou a ver que possa ser outra coisa.
- Não deixa de ser uma ideia um tanto fora do vulgar - comentei -, mas tem lógica.
A sombra de um sorriso dançou-lhe nos lábios.
- Podes crer. Tem a sua lógica.
- Ela casa virgem. E a partir do momento em que passa a ser mulher de alguém, tem um caso. Até parece um daqueles clássicos franceses da literatura, mas sem os vestidos de baile sofisticados nem as criadas de quarto a cirandar de um lado para o outro.
- Foi a única solução prática que ela se lembrou de engendrar - referiu ele.
- Uma vergonha danada - disse eu.
Ele ficou um bocado a olhar para mim e depois abanou a cabeça.
- Podes crer. Ainda bem que percebeste. - Acenou outra vez com a cabeça. - Consigo ver claramente as coisas - agora que estou mais velho. Mas naquela altura não estava ao meu alcance. Era apenas um miúdo. Não tinha condições de entender as mais ínfimas e subtis flutuações do coração humano. Daí que a minha reacção tenha sido de puro choque. Para ser franco, sentia-me completamente desorientado.
- É compreensível - afirmei.
Durante um grande bocado, continuámos a nossa refeição calados.
- Como deves imaginar - continuou ele -, acabámos por nos separar. Nenhum de nós precisou de falar sequer no assunto, a coisa chegou ao fim naturalmente, sem grande alarido. Julgo que estávamos demasiado cansados para levar a relação por diante. Na minha perspectiva, a forma como ela encarava a vida não era - como hei-de dizer? - muito honesta. Não, não é isso... Melhor dizendo, eu é que desejava uma vida melhor para ela. Confesso que aquilo me deixou um bocadinho decepcionado. Gostaria que ela não ligasse tanta importância às questões da virgindade ou do casamento, e que, em vez disso, aproveitasse para levar a vida com mais naturalidade e em toda a sua plenitude.
- Não me parece que ela tivesse podido fazer as coisas de outra maneira - observei.
Ele assentiu.
- Pode ser que tenhas razão - admitiu, cortando um bocadinho de um grande cogumelo e levando-o à boca. - Passado um tempo, tornamo-nos menos flexíveis e deixamos de ser capazes de voltar atrás nas nossas decisões. Falo por experiência própria, uma vez que isso até a mim me podia ter acontecido. Desde pequenos que as pessoas passaram a vida a pressionar-nos no sentido de fazermos tudo bem. E, pela nossa parte, nós sempre correspondemos a essa expectativa, na medida em que éramos inteligentes e estávamos à altura do desafio. Mas, às tantas, há um dia em que o grau do nosso desenvolvimento não consegue progredir e é então que descobrimos que não se pode voltar atrás. Pelo menos no que diz respeito às questões morais.
- Mas isso não aconteceu contigo, pois não? - perguntei.
- De certa maneira, pode dizer-se que eu consegui contornar o problema - disse ele depois de pensar. Pousou a faca e o garfo e limpou a boca com o guardanapo. - Depois de nos separarmos, comecei a andar com outra rapariga que conhecia em Tóquio. Vivemos juntos durante algum tempo. Para dizer a verdade, não me tocava fundo comoYoshiko, mas gostava bastante dela. Entendíamo-nos bem e éramos sempre honestos um com o outro. Com ela aprendi muito acerca de nós - ensinou-me como os seres humanos podem ser maravilhosos e a reconhecer os seus pontos fortes e as suas fraquezas. Acabei por fazer alguns amigos e comecei a interessar-me por política. Não vou dizer que mudei de personalidade nem nada que se pareça. Sempre me tive na conta de uma pessoa com os pés bem assentes na terra, e continuo a pensar que nada mudou. Não escrevo romances, e tu não importas mobiliário. Sabes do que eu estou a falar. Na faculdade aprendi que, neste mundo, existem várias realidades. É um mundo vasto, o nosso, onde coexiste toda a ordem de valores, e não é preciso ser sempre o melhor. E foi assim que me aventurei no mundo.
- E safaste-te muito bem.
- Acho que se pode dizer isso - comentou ele, suspirando. Depois encarou-me com um olhar cúmplice. - Comparado com outras pessoas da minha geração, levo uma boa vida. Por isso, de um ponto de vista prático, sim, acho que se pode dizer que tive êxito.
Dito aquilo, calou-se. Sabendo que a história dele ainda não tinha chegado ao fim, deixei-me estar pacientemente sentado, à espera que ele retomasse o fio à meada.
- Depois disso fiquei sem ver Yoshiko durante muito tempo -prosseguiu eie. - Muito, muito tempo. Acabei o meu curso e comecei a trabalhar para uma firma de exportações. Trabalhei ali quase cinco anos, e algum desse tempo vivi no estrangeiro. Os meus dias eram passados a trabalhar. Dois anos depois de me ter licenciado, soube que Yoshiko tinha casado. Foi a minha mãe que me deu a notícia. Não lhe perguntei com quem. A minha primeira reacção, ao receber aquela informação, ao saber da história, foi pensar se ela teria conseguido manter a virgindade até ao casamento. Confesso que isso me fez ficar um bocadinho triste. No dia seguinte, a tristeza era ainda maior. Tinha a sensação de que algo de importante chegara ao fim, sem apelo nem agravo, como uma porta que se tivesse fechado atrás de mim para sempre. O que era de esperar, uma vez que gostava dela a sério. Tínhamos andado juntos durante quatro anos e, no fundo, acho que sempre me tinha agarrado à esperança de que um dia viéssemos a casar. Ela desempenhara um importante papel na minha vida, por isso era muito natural que me sentisse triste. Ao mesmo tempo, porém, desejei que ela fosse feliz. A sério, foi o que senti. O que não me impedia de ter um bocadinho de medo por ela. Havia algo nela de uma extrema fragilidade.
O empregado aproximou-se para levantar os pratos, trazendo com ele o carrinho dos doces. Recusámos sobremesa e pedimos só café.
- Casei-me tarde, com trinta e dois anos. Por isso, quando Yoshiko me ligou, ainda estava solteiro. Tinha na altura vinte e oito anos, o que significa que já foi há mais de dez anos. Tinha acabado de me despedir da empresa e estabelecera-me por conta própria. Convencido de que o sector de importação de mobiliário iria crescer, pedi ao meu pai dinheiro emprestado e fundei a minha pequena empresa. Porém, apesar dos meus palpites, as coisas não correram lá muito bem nos primeiros tempos. As entregas registavam atrasos, havia mercadoria que ficava em armazém, os custos de armazenagem não paravam de aumentar, era preciso amortizar os empréstimos. Para ser franco, sentia-me sobrecarregado e sem saber para onde me virar, e nunca a minha confiança andara tão por baixo. Foi sem dúvida a fase mais difícil da minha vida. E precisamente durante esse período negro Yoshiko entrou em contacto comigo, um dia, já perto das oito da noite. Não sei como é que ela terá arranjado o meu número de telefone, mas a verdade é que ela me telefonou. Reconheci de imediato a sua voz. Como é que a poderia ter esquecido, quando me trazia tantas recordações boas? Estava de tal maneira em baixo, que me soube maravilhosamente bem tornar a ouvir a voz da minha antiga namorada.
Ele olhou fixamente para a lenha que ardia na lareira, como se procurasse reunir as recordações. Entretanto, o restaurante enchera-se de gente e só se ouvia as vozes e o riso das pessoas, o barulho ; dos pratos e talheres. Pelos vistos, tratava-se na sua maioria de clientes habituais, habituados a tratar os empregados pelo nome próprio: Cluseppe! Paolol
- Quem lhe teria contado, não sei, mas a verdade é que ela estava a par de tudo relativamente à minha pessoa. A história de eu continuar solteiro e de ter ido trabalhar para fora do país. De me ter despedido há cerca de um ano a fim de criar a minha própria empresa. Sabia tudo. "Não te preocupes", disse-me ela, vais ver que consegues. "Tem confiança nas tuas capacidades. Tenho a certeza de que vais conseguir o que pretendes. Só podes." Ouvi-la dizer aquilo deixou-me feliz da vida. Falava com tanta ternura. "Vou conseguir", pensei, "vou ter êxito naquilo que me proponho." A voz dela fez-me recuperar a confiança. "Desde que continue a ser realista", pensei ainda, "sei que vou conseguir. Sinto que lá fora o mundo espera por mim." - Ao dizer aquilo, sorriu.
"Depois foi a minha vez de fazer perguntas acerca da vida dela. Com quem estava casada, se tinha crianças, onde morava e por aí fora. Não tinha filhos. O marido era quatro anos mais velho e trabalhava como realizador num canal de televisão. Fiz um comentário qualquer acerca de ele ser com certeza uma pessoa muito ocupada. Tão ocupado que nem sequer tempo tinha para fazer filhos, confirmou ela, com uma risadinha. Viviam em Tóquio, num apartamento no distrito de Shinagavva. Na altura eu vivia em Shiroganedai. Sem se poder dizer que fôssemos vizinhos, até vivíamos relativamente perto um do outro, o que não deixava de ser uma coincidência. Comentei esse aspecto com ela. Em todo o caso, a nossa conversa andou à roda dessas e de outras coisas do género que duas pessoas que andaram a estudar juntas costumam falar. Por vezes caía em mim e ficava com uma sensação estranha, mas até me soube bem ter estado à conversa com ela. Conversámos como dois amigos que há muito não se viam e que seguiam agora por diferentes caminhos. Há muito tempo que não me lembrava de falar assim tão livremente e tão abertamente com alguém. Estivemos à conversa tempos infindos. Depois de termos dito um ao outro tudo o que havia para dizer, ficámos em silêncio. Estamos a falar - como é que hei-de dizer - de um silêncio extremamente profundo. Um daqueles silêncios que, mal uma pessoa fecha os olhos, faz com que lhe venham à cabeça toda a espécie de imagens. - Ele deixou-se estar um bocado sem tirar os olhos das suas mãos, em cima da mesa. Depois levantou a cabeça e olhou-me de frente. - Quando me dei conta, só me apeteceu desligar. Obrigado por teres telefonado, foi muito bom falar contigo passado tanto tempo. Essas coisas todas, tu sabes.
- Se quisermos ser práticos, isso teria sido a atitude mais realista - alvitrei.
- Mas a verdade é que ela não desligou. Em vez disso, convidou-me para ir a casa dela. "Podes vir cá ter?", perguntou. "O meu marido está fora em viagem de trabalho e eu aborreço-me sozinha." Como não sabia o que dizer, deixei-me ficar calado. E ela a mesma coisa. Durante algum tempo fez-se silêncio, até que ela disse: "Ainda não me esqueci da minha promessa."
Ainda não me esqueci da minha promessa, tinha ela dito. A princípio, ele não percebeu a insinuação. Foi então que lhe voltou tudo à memória. Ela tinha-lhe prometido dormir com ele depois de estar casada. Nunca lhe passara pela cabeça que a promessa fosse para cumprir; tinha mais aspecto de ser uma daquelas frases desgarradas que ela deixava escapar num momento de desvario.
Na verdade, porém, ela não proferira a dita frase num momento de desatino. Aos olhos dela, tratava-se de uma promessa a sério, uma obrigação a que se comprometera.
Por momentos, ele ficou sem saber o que pensar, quanto mais o que fazer. Olhou em volta, completamente perdido, mas em parte alguma encontrou um sinal que lhe indicasse a direcção a seguir. Naturalmente que ele gostaria de ir para a cama com ela - isso nem se pergunta. Depois de se terem separado, ele deitava-se muitas vezes a imaginar como seria fazer amor com ela. Mesmo quando se encontrava deitado com outras raparigas, às escuras, punha-se a imaginá-la nos seus braços. Não que ele a tivesse alguma vez visto nua - o que conhecia do seu corpo, era o que as suas mãos lhe tinham permitido sentir por baixo da roupa.
Ele sabia perfeitamente até que ponto dormir com ela, naquela conjuntura, representaria um perigo para ele. Podia significar um grande desgosto. Além do mais, não tinha vontade nenhuma de reacender aquilo que em tempos deixara para trás, enterrado na escuridão do passado. No fundo, sabia que não era uma coisa de que se pudesse orgulhar. Havia ali qualquer coisa de pouco realista, qualquer coisa que destoava da pessoa que ele era.
Apesar de tudo, acedeu a encontrar-se com ela. Acaso poderia ser de outra maneira? Pensando bem, todo aquele episódio tinha o seu quê de conto de fadas, daqueles que só acontecem uma vez na vida. A sua antiga namorada, por sinal uma princesa, com quem ele passara os melhores dias da sua juventude, acabara de lhe dizer que estava interessada em ir para a cama com ele e que gostaria que ele aparecesse lá em casa o mais cedo possível - sem esquecer que ela morava muito perto. Se mais não fosse, havia ainda a considerar aquela mítica promessa, trocada há muito, muito tempo, no coração de um bosque misterioso.
Ele manteve-se durante muito tempo de olhos fechados, sem falar. Dava-lhe a impressão de ter perdido a fala.
"Ainda aí estás?", quis saber ela.
"Sim estou", respondeu ele. "Tudo bem, vou aí ter. Devo chegar dentro de meia hora, se tanto. Dá-me a morada."
Assentou a morada do condomínio onde ela morava e o número do apartamento. Fez a barba rapidamente, mudou de roupa e desceu a rua para apanhar um táxi.
- Se estivesses no meu lugar, terias feito o quê? - perguntou-me ele.
Abanei a cabeça. Não tinha resposta para uma pergunta difícil como aquela.
Ele riu-se e pôs-se a olhar para a chávena de café.
- Quem me dera a mim ter-me safado sem responder, também. Infelizmente não pude. Vi-me obrigado a ter de tomar uma posição, ali mesmo. Ou ia ter com ela ou não ia. Era uma das duas coisas, não havia lugar para meios-termos. De maneira que lá acabei por ir ter a casa dela. Estava eu a bater à porta e a pensar como seria bom se ela não estivesse em casa. Mas estava. Tão bonita como dantes.
Cheirava maravilhosamente bem, tal como me lembrava. Tomámos duas ou três bebidas e conversámos acerca dos velhos tempos, enquanto ouvíamos velhos discos de vinil. E o que é que aconteceu a seguir, não me dizes?
Disse-lhe que não fazia a mínima ideia.
- Há muito tempo, quando era criança, li uma vez uma história - contou ele, sem nunca deixar de olhar fixamente para a parede da frente. - Já não me lembro bem de tudo, mas nunca me esqueci da última frase. Se calhar, por ser a primeira vez que lia um conto de fadas com um final tão fora do vulgar. Rezava assim: "E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos." Não achas este final um tanto estranho?
- Achar, acho.
- Adorava lembrar-me do resto, mas não há maneira de atinar. A única coisa que me ficou foi aquela estranha frase final. "E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos." Que género de história poderia ter sido?
Entretanto já tínhamos acabado de beber os nossos cafés.
- Ficámos nos braços um do outro - continuou ele -, mas não tivemos relações sexuais. Não lhe tirei a roupa. Tal como nos bons velhos tempos, limitei-me a explorar o corpo dela com os meus dedos. Achei que era a melhor coisa a fazer, e pelos vistos ela também era dessa opinião. Deixámo-nos ali estar durante muito tempo, a tocar no corpo um do outro. Foi a única maneira que encontrámos de enfrentar uma situação que visivelmente nos escapava. Se a cena se tivesse passado há mais tempo, teria sido diferente - e nós teríamos dormido juntos e, quem sabe, começado a sentirmo-nos mais próximos. Talvez até tivéssemos sido mais felizes. A verdade, porém, é que já tínhamos passado essa fase. Essa hipótese encontrava-se encerrada e definitivamente arquivada. E nunca mais voltaria a ser abordada.
Ele dava voltas e mais voltas à chávena de café na mão, de tal maneira que o empregado apareceu para ver se era preciso alguma coisa. Por fim, voltou a pousar a chávena, chamou outra vez o empregado e mandou vir mais um expresso.
- Devo ter estado para aí umas duas horas no apartamento dela. Não me lembro. Se por lá tivesse ficado mais tempo, o mais certo era passar-me da cabeça - confessou ele com um sorriso. - Despedi-me dela e vim-me embora. Foi a última vez que nos vimos. Eu sabia disso, e ela também. Quando olhei para trás pela derradeira vez, estava ela parada à porta, de braços cruzados. Parecia querer dizer alguma coisa, mas não o fez. Ela não precisava de dizer as coisas em voz alta - eu sabia perfeitamente o que tinha para dizer. Aquilo fez-me sentir muito mal... extremamente vazio. Oco. Os sons chegavam até mim de forma estranha, tudo à minha volta parecia distorcido. Vagueei ali por perto sem rumo certo envolto numa espécie de torpor, a pensar em como a minha vida até aí não tivera qualquer sentido. Queria voltar para trás, regressar a casa dela, apertá-la nos meus braços e possuí-la, mas não consegui. Nunca seria capaz de semelhante coisa.
Ele fechou os olhos e abanou a cabeça. Depois bebeu o seu segundo café expresso.
- Não me é fácil contar-te isto, mas nessa noite fui até à cidade e dormi com uma prostituta. Foi a primeira vez na minha vida que paguei para ter sexo. E provavelmente também a última.
Fiquei durante algum tempo a olhar para a minha chávena de café, enquanto reflectia sobre mim e pensava em como até aí costumava ser tão orgulhoso. Bem gostaria de lhe ter falado nesse aspecto, mas não me quis parecer que conseguisse encontrar as palavras certas.
- Agora que desabafei contigo e te contei tudo, parece-me uma história daquelas que só acontecem aos outros - confessou ele, a sorrir. Nos minutos seguintes ficou calado, perdido nos seus pensamentos. Pela minha parte, também não acrescentei nada.
- "E quando acabou, o rei e os seus conselheiros escangalharam-se a rir que nem uns perdidos" - rematou ele. - Esta frase vem-me logo à cabeça sempre que me lembro do que aconteceu. É uma espécie de reflexo condicionado. Tenho para mim que tudo o que acontece de triste tem sempre qualquer coisa de cómico.
Tal como eu avisei logo ao princípio, não há qualquer moral a extrair desta história. Acontece que isto foi uma coisa que se passou de facto comigo. Uma coisa que se passou com todos nós. Por isso é que não me deu vontade de rir quando ela me foi contada. Ainda hoje não lhe consigo achar graça.


A FACA DE CAÇA


Ao largo, as duas plataformas ancoradas pareciam duas ilhas gémeas. Estavam a uma distância ideal da praia para se ir até lá a nado -exactamente cinquenta braçadas para chegar a uma, depois trinta braçadas para se ir de uma à outra.
Com cerca de quatro metros quadrados, cada jangada tinha uma escada metálica num dos lados e um tapete verde de relva artificial. A água, que naquele ponto atingia três ou quatro metros de profundidade, era tão transparente que uma pessoa conseguia alcançar com a vista as correntes que mantinham aquela estrutura ancorada a um bloco de cimento armado no fundo do mar. No meio de um recife de corais via-se uma pequena baía onde se podia nadar, e como praticamente não havia ondulação, as plataformas mal balançavam. Pareciam conformadas com o seu destino, ali ancoradas dia após dia naquele lugar, à mercê do sol impiedoso.
Eu gostava de nadar até lá e ficar a olhar para a linha de água, para a comprida praia de areias brancas, para a torre vermelha pintada de vermelho que assinalava a presença do nadador-salvador, para o friso verde de palmeiras - era um cenário espectacular, talvez até um nadinha perfeito de mais, a fazer lembrar um cartão-postal com o seu quê de piroso. À direita, a praia terminava numa fileira de rochedos escuros e aguçados que conduziam às vivendas brancas onde a minha mulher e eu nos encontrávamos hospedados. Estava-se no fim de Junho, cedo ainda para a estação turística, e tanto o hotel como a praia tinham pouca gente.
Nas imediações ficava uma base militar norte-americana, e as plataformas situavam-se praticamente a meio da trajectória de voo dos helicópteros, que apareciam vindos do alto-mar e traçavam a bissectriz entre as duas plataformas, aproximando-se em voo rasante das palmeiras antes de desaparecerem de vista. Voavam tão baixinho que uma pessoa quase conseguia distinguir a expressão no rosto dos pilotos. Porém, tirando o ruído característico das pás dos helicópteros por cima de nós, podia dizer-se que a praia era um lugar tranquilo, que convidava ao descanso - o sítio perfeito para umas férias tranquilas.
As vivendas estavam divididas em quatro apartamentos, dois em cada andar. O nosso quarto ficava no piso térreo, com vista para o oceano. Rente à janela assomavam flores brancas de plumérias, e mais adiante estendia-se um jardim com um relvado grande e bem tratado. De manhã e à noite, ouvia-se o barulho monótono do sistema de rega. Do lado de lá do jardim, ficava a piscina e erguia-se uma fila de palmeiras muito altas, cujas frondes densas abanavam suavemente ao sabor do vento.
Dois americanos, mãe e filho, eram os nossos vizinhos do lado. Pareciam já ali se encontrar bastante antes da nossa chegada. A mãe andaria perto dos 60 anos, o filho devia ser da nossa idade e ter os seus 28 ou 29 anos. Tinham ambos a cara magra e comprida, testa larga e lábios finos e crispados. Nunca nos dias da minha vida me fora dado ver uma parecença tão gritante. A mãe, altíssima, andava sempre muito direita, e os seus gestos eram rápidos e bruscos. O filho também parecia ser alto, mas não era possível saber ao certo, uma vez que passava os dias confinado a uma cadeira de rodas. Sobre a mãe recaía invariavelmente a tarefa de o transportar para todo o lado.
Eram ambos pessoas muito invulgarmente caladas, e o quarto, de tão sossegado, mais parecia um museu. O televisor estava sempre desligado. Só por duas vezes me lembro de ouvir música - da primeira, um quinteto para clarinete de Mozart; da outra, uma peça para orquestra que não reconheci. Talvez Richard Strauss, mas não tenho a certeza. Fora isso, silêncio absoluto. Não ligavam o ar condicionado; em vez disso, deixavam a porta da frente aberta, a fim de deixar entrar a fresca brisa do mar. Contudo, nem assim os ouvia conversar. Se tinham alguma coisa a dizer um ao outro - isto partindo do princípio de que volta e meia teriam de trocar meia dúzia de palavras -, faziam-no por certo em voz baixa, quase num murmúrio. Isto contagiava tanto a minha mulher como a mim, que sempre que estávamos no nosso quarto dávamos por nós a falar baixinho.
Acontecia encontrarmos muitas vezes mãe e filho no restaurante, no vestíbulo ou no decorrer de um dos nossos passeios pelo jardim. Num hotel familiar e sossegado como aquele, era quase impossível evitar que os nossos caminhos se cruzassem. Quando isso acontecia, costumávamos trocar uma breve saudação de cabeça. Mãe e filho tinham maneiras diferentes de cumprimentar. A mãe acenava pronta e afirmativamente, ao passo que o filho mal inclinava a cabeça. A impressão causada por esses dois modos distintos de cumprimentar, era, por assim dizer, quase idêntica: quer um quer outro começavam e acabavam ali mesmo, e não havia mais nada a esperar. Nunca tentámos chegar à fala com eles. Assunto de conversa era coisa que não nos faltava, à minha mulher e a mim - desde discutir se devíamos mudar de apartamento quando chegássemos a casa, qual o nosso futuro profissional, se devíamos ou não ter filhos. Aquele era o último Verão antes de entrarmos na casa dos trinta.
A seguir ao pequeno-almoço, mãe e filho costumavam sentar-se na entrada do hotel a ler jornais - cada um percorria sistematicamente as páginas, uma após outra, do princípio ao fim, como se estivessem apostados em ganhar o concurso para ver qual deles demorava mais tempo a ler aquilo tudo por atacado. Havia dias em que, no lugar dos jornais, se entretinham a ler grossos romances de capa dura. A imagem que transmitiam era menos a de mãe e filho, e antes a de um velho casal que havia muito não tinha nada para dizer um ao outro.
Todas as manhãs, por volta das dez, a minha mulher e eu pegávamos na mala térmica e púnhamo-nos a caminho da praia. Besuntávamo-nos com creme bronzeador com protecção solar e deitávamo-nos ao sol em cima das esteiras. Eu punha-me a ouvir Marvin Gaye no meu Walkman, enquanto a minha mulher se entretinha a passar as páginas de uma edição de bolso do romance E Tudo o Vento Levou. Argumentava ela que com aquele livro tinha aprendido, e muito, sobre a vida. Nunca tendo lido o livro, não faço ideia do que isso significa. Todos os dias, o Sol aparecia no horizonte, traçava uma trajectória no céu por cima das plataformas - na direcção oposta à dos helicópteros - e afundava-se paulatinamente no oceano.
Às duas da tarde, todos os dias, mãe e filho apareciam na praia. A mãe usava invariavelmente um vestido simples de cores claras e um chapéu de palha de aba larga. O filho nunca trazia chapéu na cabeça; em compensação, usava sempre óculos escuros. Sentavam-se à sombra das palmeiras, deixando que a brisa os acariciasse, e ali ficavam, de olhar perdido no mar, sem fazer rigorosamente nada. A mãe ficava sentada numa cadeira de praia, daquelas de dobrar, mas o filho nunca largava a cadeira de rodas. Volta e meia trocavam de lugar a fim de permanecerem na sombra. A mãe costumava trazer um termo prateado com ela, e de vez em quando deitava uma bebida qualquer num copo de papel ou comia a sua bolachinha.
Havia dias em que saíam da praia passado meia hora; noutros, ficavam por ali até depois das três. Sempre que ia tomar banho, sentia-me observado por eles. Ainda era bastante longe, da zona das jangadas, por isso também podia ser tudo fruto da minha imaginação. Ou, então, dava-se apenas o caso de eu ser demasiado sensível. A verdade, porém, é que, sempre que trepava para uma das plataformas, ficava com a sensação de que eles me seguiam com os olhos. Por vezes o termo metalizado faiscava ao sol como uma faca.
Os dias passavam tranquilamente como as nuvens no céu, cada dia igual ao dia anterior, mal se distinguindo um do outro. O Sol erguia-se a leste e punha-se a oeste, os helicópteros verde-azeitona voavam a baixa altitude, enquanto eu emborcava umas cervejas atrás das outras e nadava quase até cair para o lado.
Na última tarde que passámos no hotel, fui nadar mais uma vez, em jeito de despedida. Visto que a minha mulher estava a fazer a sesta, fiz-me sozinho ao caminho. Como era sábado, havia mais gente na praia. Viam-se jovens soldados com o cabelo cortado à escovinha e tatuagens no braço a jogar voleibol. As crianças brincavam à beira-mar, entretidas a construir castelos de areia e a dar gritinhos de puro gozo sempre que se aproximava uma onda maior. Contudo, não havia quase ninguém a tomar banho, e as plataformas encontravam-se desertas. No céu não se via nem uma nuvem, o Sol estava a pique, a areia escaldava.
Já passava das duas, mas a dupla, mãe e filho, ainda não tinha dado um ar da sua graça.
Meti-me dentro de água e fui andando até ela me dar pelo peito, altura em que comecei a afastar-me a nado em direcção à plataforma da esquerda. Prossegui num crawl lento, testando a resistência da água com as palmas das minhas mãos, sem nunca deixar de nadar, ao mesmo tempo que contava o número de braçadas. A água, gelada, sabia lindamente em contacto com a minha pele queimada. Através da água límpida, conseguia ver a minha própria sombra projectada na areia do fundo do mar, como se eu fosse um pássaro a voar no céu.
Depois de ter contado quarenta braçadas, olhei para cima e vi a plataforma mesmo à minha frente. Mais dez braçadas e toquei com a ponta da mão esquerda num dos seus lados. Deixei-me ficar ali a boiar durante um minuto, para ver se recuperava o fôlego, depois agarrei-me à escada e subi lá para cima.
Fiquei admirado ao ver que já lá se encontrava alguém - uma mulher loira, excessivamente gorda. Da praia tinha ficado com a impressão de que a plataforma estava vazia, o que significava que ela devia ter chegado enquanto eu me dirigia para lá a nado. A mulher trazia vestido um biquini muito reduzido - vendo bem, mais parecia uma daquelas bandeirinhas vermelhas que os agricultores japoneses usam, em jeito de alerta à navegação, para avisar que acabaram de encher os campos de químicos - e estava deitada de bruços. De tão obesa, fazia o fato de banho parecer ainda mais pequeno. Parecia estar ali relativamente há pouco tempo, visto que tinha a pele ainda muito branca, sem sinais de bronzeado.
Ela levantou os olhos por um segundo, viu-me e voltou a fechá-los. Fui sentar-me no extremo oposto da jangada, com os pés a dar a dar sobre a água, e pus-me a olhar para a costa. Mãe e filho ainda não se encontravam no seu posto habitual debaixo das palmeiras. Também não estavam à vista em mais lado nenhum. Não podia deixar de os ver, uma vez que o reflexo da cadeira de rodas metálica, provocado pela luz do Sol, acabaria sempre por denunciar a sua presença. Fiquei desapontado. Sem eles, era como se ficasse a faltar uma parte do quadro. Se calhar, tinham liquidado a conta do hotel e regressado a casa, onde quer que isso ficasse. Quando me encontrara com eles à hora do almoço, no restaurante, não me deu a impressão de que se estivessem a preparar para partir. Tinham mandado vir o prato do dia e bebido o café nas calmas. A mesma rotina de sempre.
Fiz como a mulher e deitei-me de barriga para baixo. Deixei-me estar assim uns bons dez minutos, a ouvir o barulhinho que as ondas faziam ao bater de encontro à plataforma. Senti as gotas de água na minha orelha ficarem quentes, expostas à luz forte do Sol.
- É de mim, ou está imenso calor? - disse a mulher do outro lado da plataforma. Tinha uma voz aguda, embora um tanto adocicada.
- De facto, está mesmo - respondi.
- Por acaso sabe dizer-me as horas?
- Não tenho relógio, mas devem ser umas duas e meia. Duas e quarenta, talvez.
- A sério? - disse ela, ao mesmo tempo que deixava escapar um suspiro ou coisa parecida, como se não estivesse à espera que fossem aquelas horas. Também podia acontecer que a questão do tempo lhe fosse completamente indiferente.
Sentou-se. Gotas de transpiração agarravam-se ao seu corpo, como moscas à roda da comida. Pregas de gordura tinham começado a formar-se por baixo das suas orelhas, estendiam-se pelos seus ombros e espalhavam-se pelos seus braços rechonchudos, formando uma interminável série de regos. Até mesmo os pulsos e os tornozelos pareciam desaparecer por debaixo daquelas pregas de carne. Sem querer, veio-me à ideia o Homem da Michelin. Gorda como era, não posso dizer que a mulher tivesse um aspecto pouco saudável. Nem era feia, de resto. Pura e simplesmente tinha demasiada carne em cima dos ossos. Tirei-lhe as medidas e calculei que seria mulher para os seus trinta e muitos.
- Está tão bronzeado. De certeza que já cá deve estar há bastante tempo...
- Nove dias.
- Que belo bronze - repetiu ela. Em vez de responder, aclarei a garganta. A água nos meus ouvidos produziu uma espécie de gorgolejo.
- Estou hospedada no hotel militar - continuou ela. Conhecia o local. Ficava ao fundo da estrada, não muito longe
da praia.
- O meu irmão é oficial da Marinha e convidou-me para vir até cá. A Marinha não é tão má quanto dizem, sabe? Pagam bem, e na base uma pessoa encontra tudo o que precisa. Até mesmo verdadeiras pérolas, como é o caso deste complexo turístico. Nada que se compare com o tempo em que eu andava a estudar na universidade. Nessa altura, em plena guerra do Vietname, ter algum militar na família era quase uma ofensa. Éramos obrigados a contornar a questão. Não há dúvida de que as coisas mudaram, e muito.
Concordei vagamente como quem não quer a coisa.
- O meu ex-marido também estava na Marinha - prosseguiu ela. - Era piloto de combate. Esteve dois anos no Vietname em comissão de serviço, antes de passar a trabalhar como piloto para a United Airlines. Na altura, eu era assistente de bordo nos aviões da companhia de aviação e foi assim que os nossos destinos se cruzaram. Tenho estado a ver se me consigo lembrar do ano em que nos casámos... Mil novecentos e setenta e tal. Há seis anos, mais coisa, menos coisa. Acontece muitas vezes.
- O quê?
-Você sabe. Os membros da tripulação de uma companhia aérea têm horários impossíveis, por isso acabam por se envolver uns com os outros. O número de horas de trabalho e o estilo de vida são perfeitamente desfasados. Seja como for, casámo-nos, eu deixei de trabalhar, ele começou a andar com uma outra assistente de bordo e acabou por se casar com ela. Ora aí tem outra coisa que acontece muitas vezes.
Fiz os possíveis por mudar de assunto.
- Onde é que vive agora?
- Los Angeles - respondeu ela. - Já lá esteve?
- Não, nunca - respondi.
- Foi lá que eu nasci. Depois o meu pai foi transferido para Salt Lake City. E a Salt Lake City, já alguma vez lá foi?
- Não.
- Não lhe recomendo - afirmou ela, abanando a cabeça. Com a palma da mão, afastou o suor da cara.
Causava uma certa estranheza pensar que um dia ela tinha sido assistente de bordo. Já tinha a minha dose de assistentes de bordo com o arcaboiço de atletas de luta livre. Não era a primeira vez que encontrava pela frente uma hospedeira de bordo com braços rechonchudos e bigode no lugar do buço. Mas nunca tinha visto uma tão corpulenta como ela. Provavelmente a United Airlines aceitava assistentes de bordo assim pesadas. Ou então podia dar-se o caso de ela ser muito mais magra no tempo em que ali trabalhara.
- Onde é que está instalado? Apontei na direcção do hotel.
- Sozinho?
Expliquei que estava de férias na companhia da minha mulher.
- Em lua-de-mel?
Respondi que não, que já estávamos casados há seis anos.
- A sério? - retorquiu ela, com ar espantado. - Tem um ar tão novinho.
Percorri a praia com o olhar. Da mãe e do filho, nem sinal. Os soldados continuavam entretidos a jogar voleibol. Do alto da sua torre, o nadador-salvador concentrava a sua atenção em qualquer coisa no mar com ajuda de uns binóculos enormes. Dois helicópteros militares apareceram finalmente nas imediações da praia e, quais mensageiros numa tragédia grega, trazendo com eles uma qualquer notícia brutal e inesperada, sobrevoaram solenemente o espaço por cima de nós e desapareceram no horizonte, em direcção a terra. Sem uma palavra, seguimos com os olhos a rota seguida pelas verdes máquinas de guerra.
- Aposto que, vistos lá de cima, deve parecer que nós aqui deitados estamos no paraíso - observou a mulher. Dito aquilo, voltou a pôr-se de barriga para baixo e fechou os olhos.
O tempo passou devagar. Tive um palpite de que era o momento certo para me despedir. Acto contínuo, levantei-me e disse-lhe que estava na hora de regressar. Depois atirei-me à água e afastei-me a nado. A meio caminho, virei-me e lá estava ela, a dizer-me adeus com a mão. Correspondi e fiz um breve aceno com a mão. Vista assim à distância, ela parecia um golfinho. Só lhe faltava um par de barbatanas para dar um salto e mergulhar no mar.
Uma vez no quarto, passei pelas brasas, e quando eram seis da tarde desci até ao restaurante com a minha mulher e fomos jantar. Nem a mãe nem o filho se encontravam lá. Mais tarde, quando regressámos ao quarto, já eles tinham a porta fechada. Via-se a luz acesa através do pequeno rectângulo de vidro fosco que a porta tinha, mas não era o suficiente para me deixar ver se o quarto continuava ocupado.
- Quem sabe? Vais ver que às tantas eles se foram embora -disse a minha mulher. - Não se pode viver assim para sempre.
- Tens razão - concordei. No fundo, porém, não se podia dizer que estivesse lá muito convencido. Era-me difícil imaginar mãe e filho noutro sítio qualquer sem ser ali.
Começámos a arrumar as coisas. Assim que enchemos as malas e as colocámos junto da cama, o quarto pareceu ficar de repente frio e inóspito. As nossas férias estavam a chegar ao fim.
Acordei e vi as horas no relógio que estava na mesinha-de-cabeceira. Era uma e vinte. O meu coração batia desalmadamente. Deslizei da cama, sentei-me de pernas cruzadas em cima do tapete e respirei fundo várias vezes. Depois inspirei e retive o fôlego, procurei relaxar os ombros, sentei-me direito e foquei o olhar. "Devo ter feito um esforço superior ao habitual a nadar", pensei, "ou isso ou apanhei sol a mais." Pus-me de pé e olhei à minha volta. Aos pés da cama, distinguiam-se na obscuridade os contornos das nossas duas malas, como animais furtivos e acocorados. "Pois é", lembrei-me subitamente, "amanhã por esta hora já cá não estaremos."
À luz pálida do luar que entrava pela janela, a minha mulher dormia profundamente. A sua respiração mal se ouvia, quase como se estivesse morta. Por vezes acontece ela adormecer assim, que nem uma pedra. Quando nos casámos, era uma coisa que me metia um certo medo; de vez em quando, confesso que chegava a pensar que ela, de facto, estava morta, quando afinal era apenas aquele seu jeito de dormir, profundo e silencioso. Despi o pijama todo suado e vesti uma camisa lavada e uns calções. De passagem, enfiei no bolso uma garrafinha miniatura de Wild Turkey que estava em cima da mesa, abri a porta sem fazer ruído e saí lá para fora. O ar da noite estava fresco e transportava o odor denso e húmido das plantas. A lua cheia lançava sobre o mundo uma luminosidade estranhamente inquietante, como durante o dia nunca se via. Era como estar a olhar através de um filtro de cor especial, capaz de tornar as coisas mais vivas do que na realidade são, e, ao mesmo tempo, deixando outras baças e acastanhadas, como corpos sem vida.
Estava sem sono nenhum. O meu espírito estava de tal forma desperto e alerta que era caso para dizer que parecia que o sono nunca tinha existido. O silêncio era total. Nem o vento, nem insectos, nem o grito dos pássaros. Aos ouvidos apenas me chegava o som distante das ondas, e para isso era preciso fazer um esforço.
Dei a volta à nossa vivenda, nas calmas, e só depois atravessei o relvado, que, ali à luz da Lua, mais parecia um lago gelado e redondo. Avancei com todo o cuidado, não fosse o gelo quebrar-se. Do outro lado do relvado havia meia dúzia de degraus de pedra e ia-se dar a um bar decorado com motivos tropicais. Era lá que, todas as noites, antes do jantar, eu bebia a minha vodka tonic. Àquela hora da noite, contudo, o bar estava encerrado. Os chapéus-de-sol, perfeitamente alinhados por cima de cada mesa, encontravam-se fechados e unidos, fazendo lembrar pterodáctilos adormecidos.
O jovem na cadeira de rodas encontrava-se ali, com um cotovelo apoiado na mesa, de olhar perdido no oceano. A uma certa distância e à luz da Lua, a cadeira de rodas refulgia como um instrumento metálico de precisão especialmente desenhado para as horas mais profundas e sombrias da noite.
Nunca tinha visto o homem sozinho. No meu espírito, ele e a mãe formavam uma espécie de unidade - ele na sua cadeira de rodas, com a mãe a empurrá-lo. Era uma sensação estranha vê-lo assim, para não dizer que representava uma indiscrição brutal da minha parte. Ele trazia uma camisa havaiana, que já lhe vira vestida, e calças brancas de algodão. Estava sentado sem se mexer, pura e simplesmente a contemplar o mar.
Deixei-me ali estar durante um bocado, indeciso, sem saber o que deveria fazer. Porém, antes que eu tomasse uma decisão, ele deu pela minha presença e virou-se. Ao ver-me, saudou-me com o cumprimento minimalista do costume.
- Boa noite - disse eu.
- Boa noite - respondeu ele em voz baixa. Era a primeira vez que o ouvia falar. À parte o tom um bocadinho ensonado, tinha uma voz perfeitamente normal. Nem muito baixa nem muito alta.
- Um passeiozinho nocturno? - perguntou ele.
- Não conseguia dormir - confessei eu.
Ele olhou para mim de alto a baixo, e nos seus lábios desenhou-se um ligeiro sorriso.
- Comigo passa-se o mesmo - confessou ele. - Sente-se aqui, se quiser.
Hesitei por segundos, antes de me encaminhar para a mesa dele. Puxei uma cadeira de plástico e sentei-me à sua frente. Virei a cabeça para olhar na mesma direcção. Ao fundo da praia ficavam as rochas pontiagudas, com aspecto de queques partidos ao meio, batidos a intervalos regulares por pequenas ondas. Eram umas ondinhas bonitas e perfeitas, que mais pareciam ter sido desenhadas a régua, mas, à parte esse pormenor, nada do outro mundo.
- Não o vi hoje na praia - comentei.
- Fiquei todo o dia no quarto a descansar - explicou ele. -A minha mãe não estava a sentir-se bem.
- Lamento saber isso.
- Não se trata de um problema físico. Tem sobretudo que ver com a parte nervosa.
Ele esfregou o rosto com o dedo médio da mão direita. Apesar do adiantado da hora, tinha as faces brancas e lisas como porcelana, sem indícios de barba por fazer.
- Agora encontra-se melhor. Está a dormir profundamente. Não é como com as minhas pernas; depois de uma noite bem dormida notam-se sinais de melhoras. Claro que não está completamente curada nem nada que se pareça, mas pelo menos recompôs-se e voltou ao que era. De manhã vai sentir-se fina.
Calou-se para aí durante trinta segundos, talvez um minuto. Descruzei as pernas por baixo da mesa e interroguei-me se não estaria na hora de me despedir. Era como se toda a minha vida girasse à volta da questão de saber ao certo qual o momento para pôr um ponto final numa conversa. De qualquer forma, perdi a oportunidade: precisamente quando me preparava para lhe dizer que tinha de me ir embora, o homem abriu a boca e pegou na palavra.
- Existe todo o tipo de doenças nervosas. Mesmo quando têm a mesma causa, os sintomas podem ser inúmeros. Como acontece na sequência de um tremor de terra: a energia que está na sua origem é a mesma, mas os efeitos variam de lugar para lugar. Num caso, uma ilha afunda-se; num outro caso, forma-se uma nova ilha.
Dito aquilo, bocejou. Um longo bocejo, de certa maneira formal, quase elegante. Depois pediu desculpa. Parecia extremamente cansado; tinha os olhos embotados, dando a impressão de ir adormecer a qualquer altura. Fiz menção de ver as horas no meu relógio e só então reparei que não o tinha trazido. No sítio onde costumava usar relógio via-se apenas uma tira de pele branca.
- Não se preocupe comigo - disse ele -, apesar de estar com este aspecto, acredite que não estou cansado. Quatro horas de sono por noite chegam-me e sobram-me, e isso consigo dormir, razão pela qual costumo vir sentar-me aqui a esta hora da noite.
Ele pegou no cinzeiro da Martini que estava em cima da mesa e observou-o atentamente, como se estivesse a olhar para um achado raro, antes de tornar a pousá-lo.
- Sempre que a minha mãe tem aquele problema nervoso, fica com o lado esquerdo do rosto paralisado. Não consegue mexer nem o olho nem a boca. Quando se olha para ela de lado, dá a sensação de estarmos a olhar para um vaso quebrado. É estranho, apesar de não ser fatal nem nada disso. Uma boa noite de sono e volta tudo ao normal.
Como não sabia o que responder, limitei-me a acenar com a cabeça. Um vaso quebrado?
- Não diga à minha mãe que lhe contei isto, está bem? Detesta que se fale na doença dela.
- Claro que não - retorqui eu. - Além do mais, vamo-nos embora amanhã cedo, por isso duvido que tenhamos oportunidade de falar com ela.
- Que pena - disse ele, como se achasse realmente isso.
- Pois é, mas tenho de voltar ao trabalho, que se há-de fazer? -repliquei eu.
- É natural de onde?
- Tóquio.
- Tóquio - repetiu ele. Semicerrou os olhos e voltou a fixar a sua atenção no mar, como se, à força de olhar com muita atenção, conseguisse ver as luzes de Tóquio no horizonte.
- Ainda fica por cá durante muito tempo? - quis eu saber.
- É difícil dizer - respondeu ele, traçando com a mão os contornos do apoio de braços da sua cadeira de rodas. - Um mês, talvez dois. Depende. O marido da minha irmã é accionista deste hotel, por isso a nossa estada fica-nos muito barata. O meu pai é dono de uma grande fábrica de cerâmicas, em Cleveland, e o meu cunhado está praticamente à frente daquilo. Para ser franco, não gosto particularmente dele, mas ninguém escolhe os seus familiares, pois não? Pode até muito bem acontecer que ele não seja tão mau como o estou a pintar. As pessoas doentes, como é o meu caso, tendem a ser um tanto estreitas de vista. -Tirou do bolso um lenço e assoou-se cuidadosa e delicadamente, e depois voltou a guardá-lo. - Em todo o caso, ele tem acções numa série de outras empresas, já para não falar nos investimentos imobiliários. Numa palavra, um tipo dinâmico e empreendedor, tal como o meu pai. Estamos divididos - na nossa família - em dois tipos de pessoas: os saudáveis e os doentes, os funcionais e os disfuncionais. Os que têm saúde produzem azulejos e telhas, enquanto aumentam a fortuna e fogem aos impostos - por favor, não diga a ninguém que eu lhe disse isto - e tomam conta dos doentes. É o que se chama a divisão perfeita do trabalho.
Por momentos interrompeu o seu relato e respirou fundo. Depois pôs-se a tamborilar com as unhas no tampo da mesa. Pela minha parte, continuava em silêncio, à espera que ele prosseguisse o monólogo.
- Eles decidem tudo por nós. Dizem-nos para ficar um mês aqui, outro mês acolá. Somos como a chuva, a minha mãe e eu, que agora cai aqui, para depois cair num outro sítio qualquer.
As ondas rolavam na areia e lambiam as rochas, deixando um rasto de espuma branca. Mal a espuma desaparecia, logo apareciam novas ondinhas. Deixei-me estar ali a olhar como que hipnotizado para aquele vaivém. O luar projectava sobre as rochas sombras irregulares.
- Como a coisa funciona com base na divisão do trabalho, é evidente - continuou ele - que também a minha mãe e eu temos os nossos deveres. É uma rua com dois sentidos. Torna-se difícil explicar, mas, de certa maneira, estou em crer que nós compensamos os excessos deles pelo facto de não fazermos nada. É, por assim dizer, a nossa raison d'être. Compreendo onde eu quero chegar?
- Estou a fazer por isso - respondi -, mas não tenho a certeza.
Ele riu-se baixinho.
- A família é uma coisa estranha - disse ele. - Uma família tem de existir nos seus próprios termos; caso contrário, o sistema não funciona. Nesse sentido, as minhas pernas são uma espécie de bandeira que a minha família exibe como troféu. As minhas pernas são o eixo à volta do qual tudo acontece.
Tornou a bater no tampo da mesa com os dedos, mas via-se que não era sinal de irritação. Limitava-se a mexer os dedos enquanto observava, na sua própria dimensão do tempo, as coisas que o rodeavam.
- A minha teoria é que uma das principais características deste sistema é o facto de a ausência dar origem a uma ausência maior, o excesso levar na direcção de um excesso maior. Quando, certo dia, durante a composição de uma ópera, Debussy sentiu que não progredia, pôs a questão nos seguintes termos: "Passo os dias na demanda do nada - rien - que isso cria. A minha função consiste em dar forma a esse vazio, a esse rien."
Voltou a afundar-se no seu silêncio de insone, enquanto o espírito vagueava por qualquer lugar distante. Até ao tal vazio dentro dele, quem sabe. De vez em quando, a sua atenção voltava ao aqui e agora, mas com alguns graus de desfasamento por comparação ao ponto de onde partira. Experimentei passar a mão pela cara. O arranhar da barba rala confirmou-me que sim, o tempo continuava a sua marcha inexorável. Tirei a garrafinha de uísque do bolso e pousei-a em cima da mesa.
- Vai uma bebida? Infelizmente não tenho copo à mão - disse eu.
Ele abanou a cabeça.
- Obrigado, mas não bebo. Não sei qual seria a minha reacção, por isso prefiro não experimentar. Mas não me importo que os outros bebam, esteja à vontade.
Tirei a tampa da garrafa e deixei o uísque escorrer-me pela garganta. De olhos fechados, saboreei aquele calor. Do outro lado da mesa, ele apreciou a cena.
- A pergunta pode parecer estranha - disse ele -, mas por acaso percebe alguma coisa de facas?
- Facas?
- Facas. Facas de caça, concretamente?
Disse-lhe que realmente tinha usado facas quando fora acampar, mas que não sabia grande coisa acerca do assunto. A minha resposta pareceu desapontá-lo, mas foi uma coisa passageira.
- Não faz mal. Simplesmente acontece que tenho uma faca de caça que gostava de lhe mostrar. Encomendei-a há cerca de um mês através de um catálogo. Na verdade, porém, não percebo nada de facas.
Não sei se ela presta para alguma coisa ou se foi dinheiro deitado à rua. Por isso é que gostaria que outra pessoa lhe deitasse uma vista de olhos e me desse a sua opinião. Isso se não lhe fizer diferença.
- Não me faz diferença nenhuma - afirmei.
Com muito cuidado, ele tirou do bolso um objecto com os seus doze centímetros, por sinal com uma magnífica lâmina curvada, e depositou-o sobre a mesa.
- Não se preocupe. Não é minha intenção magoar ninguém com isto, nem magoar-me a mim mesmo. Houve um dia em que me deu vontade de ser dono de uma faca afiada. Morria se não tivesse um canivete assim, pronto. Comecei então a ver catálogos e mandei vir esta. Ninguém sabe que esta faca anda sempre comigo, para onde quer que vá, nem sequer a minha mãe. O senhor é o único que sabe.
- E eu estou de partida para Tóquio amanhã.
- Isso mesmo - disse ele, e riu-se. Pegou na faca e sopesou-a por momentos na palma da mão, como se o gesto se revestisse de grande significado. Depois passou-ma para as minhas mãos, por cima da mesa. Causava uma certa estranheza, o simples gesto de empunhar a faca - tinha a sensação de ter nas mãos uma coisa viva, com vontade própria. O punho de latão encaixava numa pega de madeira, e o metal era frio ao toque, apesar de a faca ter estado dentro do bolso do homem durante todo o tempo.
- Experimente abrir o canivete e observe bem a lâmina.
Fiz pressão num sulco que havia na parte de cima da pega e a pesada lâmina saiu disparada produzindo um som seco. Toda aberta, media sete ou oito centímetros. Com o gume afiado dava para sentir que a faca era pesada. Mas não era apenas o peso que me deixava espantado; era o facto de o canivete encaixar perfeitamente na minha mão. Fiz girar a faca duas ou três vezes, para cima e para baixo, da esquerda para a direita. Adaptava-se tão bem à minha mão que nem sequer me vi obrigado a empregar mais força para a segurar melhor. A lâmina de aço afiada, com a marca de um sulco de sangue incrustado(1), descreveu um arco acentuado à medida que eu cortava o ar com ela.

*1. A julgar pelas pistas espalhadas pelo texto, trata-se de um canivete cachalote da conhecida marca Farol, fabricado em França (La Rochelle) por artesãos, a partir de madeiras nobres e utilizando aço sueco forjado a fogo. (N. da T.)

- Como lhe disse, não sei quase nada acerca de facas - observei -, mas consigo dizer que se trata de uma grande faca. É uma sensação espantosa sentir a faca na mão.
- E não será demasiado pequena para uma faca de caça?
- Isso já não lhe posso dizer - confessei. - Julgo que depende do uso que uma pessoa lhe der.
- De facto, quer-me parecer que tem razão - afirmou ele, acenando repetidas vezes com a cabeça, como que para se convencer a si próprio.
Pus a lâmina para dentro e entreguei-lhe a faca. O jovem tornou a abri-la e fez girar a faca com movimentos rápidos e precisos. A seguir, como se estivesse a fazer pontaria com uma espingarda, fechou um olho e apontou a faca na direcção da lua cheia. O luar incidiu sobre a lâmina e por um momento reflectiu-se nas suas têmporas.
- Importa-se de me fazer um favor e cortar alguma coisa com ela? - pediu ele.
- Cortar alguma coisa? O quê, por exemplo?
- Qualquer coisa que esteja à mão. Só para ver se corta bem. Amarrado a esta cadeira, não tenho grandes oportunidades de pôr o gesto em prática. Era óptimo se pudesse fazer isso por mim.
Não me consegui lembrar de nenhum motivo para recusar, por isso peguei na faca e fiz dois ou três golpes no tronco de uma palmeira ali perto, espetando a faca no sentido da diagonal, arrancando um bocado da casca. Em seguida, deitei a mão a uma daquelas placas de Stymfoam que havia à beira da piscina e cortei-a ao meio no sentido do comprimento. A faca era ainda mais afiada do que eu calculara.
- Esta faca é espantosa - exclamei.
- Fabrico artesanal - explicou o jovem. - E foi muito cara.
Apontei a faca na direcção da Lua, como ele tinha feito, e olhei a abrir caminho através do solo. Como alguma coisa que funcionasse como elo de ligação entre o nada e o tudo.
- Corte mais qualquer coisa - instou ele.
Golpeei tudo aquilo a que pude deitar a mão. Os cocos que estavam caídos no chão, as frondes densas de uma planta tropical, a ementa colocada à entrada do bar. Até cortei em pedaços um par de esteiras de plástico que encontrei na praia. Quando fiquei sem nada para cortar, comecei a movimentar-me lentamente, deliberadamente, como se estivesse a praticar Tai Chi, rasgando em silêncio o ar da noite. Nada se atravessou no meu caminho. A noite era profunda, e o tempo flexível. A luz da lua cheia só tornava essa profundidade, essa flexibilidade ainda maior.
À medida que repetia o gesto de ceifar o ar com a faca, veio-me à ideia a mulher gorda, antiga assistente de bordo da United Airlines. Era como se distinguisse a sua pele branca e inchada, deformada como nevoeiro. Estava tudo envolto nessa bruma. As plataformas, o mar, o céu, os helicópteros, os pilotos. Tentei golpeá-los ao meio, tinha a sensação de não dominar a distância, sem nunca conseguir atingir coisa alguma com a ponta da faca. Não passaria tudo de uma ilusão? Ou seria eu a ilusão? Provavelmente nem sequer importava. No dia seguinte já não me encontraria ali.
"Às vezes tenho um sonho", disse o jovem na cadeira de rodas. A sua voz produzia um estranho eco, como se chegasse do fundo de um buraco cavernoso. "Sonho que tenho uma faca espetada numa parte mole da cabeça, onde se armazenam as recordações. Espetada até ao fundo. Não me faz doer nem lhe sinto o peso - está só enterrada, mais nada. E eu estou ali especado, de lado, a assistir a tudo aquilo como se estivesse a acontecer a outra pessoa. Gostaria que houvesse alguém que a arrancasse, mas ninguém sabe que tenho uma faca espetada na cabeça. Por mais que gostasse de ser eu a tirá-la, a verdade é que não consigo chegar com as mãos àquele ponto dentro da minha cabeça. É a coisa mais estranha do mundo. Consigo apunhalar-me, mas não tirar a faca de dentro de mim. É então que tudo começa a desvanecer-se. E também eu começo a desaparecer. Apenas a faca continua sempre ali, até ao fim. Como os ossos do esqueleto de um animal pré-histórico abandonados na areia da praia. São sonhos destes que eu tenho", disse ele.


UM DIA PERFEITO PARA OS CANGURUS


Dentro da jaula viam-se quatro cangurus - um macho, duas fêmeas e uma cria recém-nascida.
A minha amiga e eu estávamos sozinhos à frente da jaula. Para começar, aquele jardim zoológico não era dos mais populares e, depois, era segunda-feira de manhã. Daí que houvesse mais animais do que visitantes. Não estou a exagerar. Palavra de honra.
Escusado será dizer que aquilo que mais nos interessava era espreitar o canguru acabado de nascer. Vendo bem, que outra razão teríamos nós para nos encontrarmos no jardim zoológico?
Há coisa de um mês tínhamos lido na secção "Local" do jornal a notícia acerca do nascimento de um canguru-bebé, e desde essa altura tínhamos esperado pacientemente pela manhã ideal para irmos visitar o canguru recém-nascido. O certo, porém, é que a tal manhã perfeita não havia meio de acontecer. Um dia era porque estava a chover e, para não variar, chovia ainda mais no dia seguinte. Claro que no outro dia ficava tudo enlameado, e seguiam-se mais dois dias seguidos em que o vento soprava desalmadamente. Outra manhã era porque a minha namorada tinha dores de dentes, e depois era a minha vez de ter uns assuntos para tratar na câmara e não poder. Reparem, não é minha intenção ser profundo, mas, ainda assim, sempre aproveito para afirmar o seguinte:
É assim a vida.
Como eu estava a dizer, entretanto passou-se um mês.
Um mês pode passar num ápice, e o certo é que eu mal me conseguia lembrar do que tinha feito durante o mês inteiro. Às vezes ficava com a sensação de que tinha feito uma data de coisas, outras vezes que não fizera a ponta de um corno. Foi só quando no fim do mês apareceu o homem que vinha receber o dinheiro da entrega dos jornais que me dei conta de o mês já ter chegado ao fim.
Podem crer, é mesmo assim, a vida.
Até que, finalmente, chegou a tal manhã em que nos propusemos ir ver o canguru-bebé. Levantámo-nos às seis, abrimos as cortinas e decidimos que estava um dia perfeito para os cangurus. Fizemos as nossas abluções matinais a correr, tomámos o pequeno-almoço, i demos comida ao gato, lavámos umas roupitas, protegemo-nos do sol com chapéus e metemo-nos a caminho.
- Achas que o canguru-bebé ainda está vivo? - perguntou a minha namorada na viagem de comboio.
-Tenho a certeza. Senão já tínhamos lido alguma coisa no jornal.
- Pode não ter morrido, mas estar doente num hospital qualquer.
- Bom, mas nesse caso o mais provável era ter saído alguma
notícia acerca disso.
- E se o canguru teve algum esgotamento nervoso e se escondeu num canto qualquer?
- Uma cria de canguru com problemas de nervos?
- Não estou a falar da cria, mas sim da mãe! Se calhar ficou com algum trauma e correu a esconder-se com o seu bebé num canto escuro da jaula.
"As mulheres são realmente especialistas em imaginar sempre o pior cenário", pensei eu, impressionado. Um trauma? Que espécie de trauma poderia afectar um canguru?
- Se deixarmos escapar esta oportunidade, podemos muito bem nunca mais ver o canguru-bebé - disse ela.
- Pode ser que tenhas razão.
- Viste alguma vez um canguru pequeno?
- Não, nunca - respondi.
- Estás assim tão seguro de ter outra oportunidade?
- Não sei.
- Aí tens. É isso que me deixa preocupada.
- Tudo isso é muito bonito - ripostei -, mas também nunca vi uma girafa a dar à luz, ou baleias a nadar no alto-mar. Não me queres dizer por que razão um bebé canguru é assim tão importante?
- Precisamente por se tratar de um canguru-bebé - afirmou ela. -Por isso mesmo.
Desisti e comecei a folhear o jornal. Ainda estava para nascer o dia em que conseguisse ganhar uma discussão com uma mulher.
Obviamente que o canguru estava vivo e de saúde.
Entretanto, ele (ou seria uma ela?) parecia mais crescido do que na fotografia de jornal e não fazia outra coisa senão andar aos saltos no espaço reservado aos cangurus. Tinha muito mais o aspecto de um canguru em ponto pequeno do que de um bebé. A minha amiga ficou desapontada.
- Já deixou de ser pequenino - observou ela.
- Olha que ainda é - retorqui, para ver se a animava.
Com o braço à volta da cintura dela, pus-me a fazer-lhe festinhas. Ela abanou a cabeça. Gostaria de fazer qualquer coisa para a consolar, mas nada do que eu pudesse fazer mudaria esse facto essencial: o canguru-bebé tinha crescido, e crescido muito. Mais valia calar-me bem calado.
Fui até à loja de conveniência, comprei dois cones de gelado com sabor a chocolate e quando voltei ainda ela estava encostada à jaula, a olhar fixamente para os cangurus.
- Já deixou de ser bebé - repetiu ela.
- Tens a certeza? - perguntei, entregando-lhe um dos gelados.
- Senão ainda estaria dentro da bolsa da mãe. Concordei com a cabeça e lambi o meu gelado.
- Mas a verdade é que não está.
Vimos se conseguíamos encontrar a mãe canguru. Com o pai, demos facilmente - era o maior e o mais sossegado dos quatro. Com aspecto de um daqueles compositores sem ideias que deixaram escapar o talento, estava parado, a olhar fixamente para as folhas verdes dentro da gamela com a comida. Os outros, dois cangurus-fêmeas, eram do mesmo tamanho e tinham a mesma cor e expressão. Qualquer um podia ser a mãe da cria.
- Uma delas é a mãe e a outra não - comentei.
- A-hã.
- Nesse caso, qual delas não é a mãe?
- Não faço ideia - disse ela.
Indiferentes a tudo isto, o canguru-bebé andava aos saltinhos dentro da vedação, parando volta e meia para se espojar no meio da terra suja sem razão aparente. Pelos vistos, ele (ou ela) não dava mostras de saber o que era o aborrecimento. O bebé canguru saltava junto ao sítio onde o pai se encontrava, tasquinhava uma porção de folhas verdes, esgravatava no lixo, metia-se com as duas fêmeas, espojava-se no meio do chão, depois levantava-se e desatava de novo aos pinchos.
- Como é que se explica que os cangurus consigam saltar tão longe? - perguntou a minha namorada.
- Para ver se deixam os inimigos para trás. a - Que inimigos?
- Os seres humanos - respondi. - Os homens matam cangurus com bumerangues e comem a carne deles.
- Por que é que os cangurus bebés trepam para dentro da bolsa marsupial da mãe?
- A fim de poderem fugir juntamente com ela. É sabido que as crias não conseguem correr assim tão depressa.
- Sentem-se protegidas?
- Exacto - afirmei. - As fêmeas protegem os filhotes.
- E durante quanto tempo é que os protegem?
Bem me queria parecer que devia ter lido qualquer coisa acerca dos cangurus numa enciclopédia antes da nossa excursãozinha. Já devia saber de antemão que ia ser bombardeado com uma quantidade de perguntas daquele género.
- Um mês ou dois, calculo eu.
- Bom, a cria só tem um mês - continuou ela, apontando para o pequeno canguru. - O que significa que ainda deve saltar para dentro da bolsa marsupial da mãe.
- A-hã - fiz eu. - Provavelmente.
- Não achas que deve ser espantosa, a sensação de estar dentro daquela bolsa?
- Acho.
Chegados àquela hora, já o Sol ia bem alto. Aos nossos ouvidos chegavam os gritos das crianças que se divertiam numa piscina ali perto.
Pelo céu deslizavam brancas nuvens de Verão, perfeitamente recortadas.
- Queres comer alguma coisa? - perguntei.
- Um cachorro-quente - disse ela. - E uma cola.
O vendedor que estava de serviço na carrinha de cachorros-quentes era um jovem estudante. Ao lado tinha um leitor de cassetes. Enquanto os cachorros estavam a ser preparados, deixei-me embalar pelas canções de Stevie Wonder e Billy Joel.
- Olha! - gritou ela, espetando o dedo na direcção de uma das fêmeas, assim que regressei à jaula dos cangurus. - Estás a ver? Enfiou-se dentro da bolsa dela.
E, de facto, assim era. O pequenote tinha-se aninhado dentro da bolsa da mãe. (Isto partindo do princípio que era a mãe dele.) Ocupava o espaço todo da bolsa marsupial e viam-se as orelhinhas espetadas e a ponta da cauda. Era uma cena de encher o olho. Decididamente, a nossa pequena excursão tinha valido a pena.
- O canguru-bebé deve pesar na bolsa - comentou ela.
- Não te preocupes. Os cangurus são fortes.
- A sério?
- Claro. Só assim se explica que tenham sobrevivido até aos nossos dias.
Apesar de o sol estar quente, a mãe canguru não dava sinais de estar incomodada com o calor. Parecia uma pessoa que, depois de ter passado a tarde às compras no supermercado numa artéria principal de Aoyama, fazia uma pausa para tomar café.
- Ela protege a sua cria, não protege?
- Sim.
- Será que o bebé está a dormir?
- É o mais provável.
Comemos os nossos cachorros e bebemos as nossas Coca-Colas, e só depois nos afastámos da jaula dos cangurus.
Quando nos viemos embora, o pai canguru continuava sempre a fitar a gamela da comida, à procura das notas perdidas. A mãe canguru e o seu bebé tinham-se transformado num só e deixavam-se ir ao sabor do tempo, ao passo que a outra misteriosa fêmea dava saltos e mais saltos no interior da vedação, como se estivesse a testar a elasticidade da sua cauda.
O tempo ameaçava calor. Era o primeiro dia verdadeiramente-
quente desde há muito.
- Queres ir beber uma cerveja a qualquer lado? - perguntou ela.
- Vamos embora - disse eu.


O MERGULHÃO


Quando cheguei ao fundo da apertada escadaria, dei por mim num corredor estreito que parecia não ter fim - um longo corredor com tectos tão altos que mais parecia um canal de drenagem seco do que um corredor propriamente dito. Não tinha qualquer tipo de elemento decorativo. Tratava-se de um autêntico corredor, apenas um corredor e nada mais do que um corredor. A iluminação era fraca e desigual, como se a própria luz, para alcançar o seu destino, tivesse sido obrigada a ultrapassar uma série de obstáculos, visto ter de passar através de uma espessa camada de poeira que recobria os tubos fosforescentes espalhados pelo tecto a intervalos irregulares. Além disso, um em cada três tubos estava fundido. A claridade mal permitia distinguir a palma da minha mão. Reinava ali um profundo silêncio. O único rumor que se ouvia naquela sombria passagem era o som estranhamente cavo produzido pela sola de borracha dos meus ténis no chão de cimento.
Continuei sempre em frente: duzentos, trezentos metros, não, talvez um quilómetro, sem pensar, limitando-me a andar. Nem a distância nem o tempo existiam, nada que me fizesse ter consciência de estar a avançar. Na verdade, porém, era isso que devia estar a acontecer, porque, de repente, encontrei-me numa encruzilhada em forma de T.
Uma encruzilhada em forma de T?
Pesquei um cartão-postal do bolso do casaco e tornei a ler a mensagem que lá vinha escrita: "Siga pelo corredor, até chegar a um cruzamento, onde existe outro corredor para a direita, e encontrará uma porta." Olhei atentamente para a parede diante de mim, mas não vi nada que se parecesse com uma porta, nem sinal de que ali pudesse alguma vez ter existido uma porta. Era uma parede de betão perfeitamente normal, sem nada que a distinguisse de outra, a não ser o facto de se tratar de uma parede de cimento. Nada de portas metafísicas, nada de portas simbólicas, nada de portas metafóricas, nada de nada. Fiz deslizar a mão ao longo da parede, mas encontrei apenas uma superfície lisa e despida.
Só podia tratar-se de um engano.
Encostado à parede, fumei um cigarro. Que fazer? Deveria continuar em frente ou regressar pelo mesmo caminho?
Obviamente que a resposta nunca esteve seriamente em dúvida. Eu não tinha escolha, verdade seja dita. Só me restava seguir adiante. Estava farto de viver na penúria. Cansado das prestações mensais, da pensão de divórcio que pagava à minha ex-mulher, do meu apartamento minúsculo, das baratas na casa de banho, do metro às horas de ponta, enfim, cansado de tudo. Pelo menos agora sempre tinha arranjado um emprego decente. Não só o trabalho era fácil como o ordenado de pôr os olhos em bico. Fora os dois bónus anuais e sem falar nas longas férias de Verão. Não estava disposto a abdicar de tudo isso, lá porque tinha dificuldade em atinar com a porcaria da porta. Caso não encontrasse a dita porta, continuaria sempre em frente até dar com ela.
Tirei uma moeda de dez ienes do meu bolso, atirei-a ao ar e apanhei-a com a outra mão. Cara. Virei no corredor à direita.
A passagem fazia dois desvios para a direita, um para a esquerda, depois havia dez degraus que era preciso descer. O ar que se respirava fez-me lembrar a gelatina de café da Jell-O, fria e anormalmente espessa. Pus-me a pensar na perspectiva de um ordenado, de um escritório agradável e fresco, com ar condicionado. Ter emprego era de facto uma coisa maravilhosa. Estuguei o passo e atravessei rapidamente o corredor.
Finalmente deparei-me com a porta. Ao longe, parecia um selo antigo, rasgado, mas, à medida que me aproximava, começou a revelar os contornos de uma porta, até já não haver qualquer dúvida de que se tratava de uma.
Aclarei a garganta e, depois de uma ligeira pancada na porta, dei um passo atrás e fiquei à espera de resposta. Passaram quinze segundos. Nada. Tornei a bater, desta vez com mais força, antes de recuar outra vez. Nenhuma reacção.
À minha volta, o ar arrefecia a olhos vistos.
Movido pela minha insegurança, dei um passo à frente para bater pela terceira vez quando a porta se abriu sem ruído, tão naturalmente como se o sopro da brisa tivesse tocado ao de leve nos gonzos. Isto apesar de o mais certo ser a mão da natureza não ser tida nem achada nesta história.
Primeiro ouviu-se o dique do interruptor, e só depois vi o homem especado diante de mim.
Devia andar na casa dos vinte e ser para aí cinco centímetros mais baixo do que eu. A água escorria-lhe do cabelo acabado de lavar, e vestia apenas um roupão castanho-avermelhado. As pernas eram anormalmente brancas e os pés, pequenos, pareciam de criança. O seu rosto não deixava transparecer nada, mostrava-se vazio como a folha em branco de um caderno de caligrafia, mas lia-se na boca um vago sorriso de desculpas. Provavelmente não era mau tipo.
- Desculpe, mas apanhou-me a tomar banho - disse ele, enquanto secava a cabeça com a ajuda de uma toalha.
- Banho? - Deitei automaticamente uma olhadela ao relógio.
- É regra. Depois de almoçar, temos de tomar banho.
- Estou a compreender.
- Posso saber qual é a natureza da sua visita?
Tirei o cartão-postal guardado no bolso do casaco e entreguei-lho. Ele pegou nele com a ponta dos dedos, para ver se não o molhava, e leu o texto várias vezes.
- É possível que me tenha atrasado cinco minutos - disse eu. - Peço-lhe que me desculpe.
Ele fez um aceno com a cabeça e devolveu-me o bilhete.
- Quer então dizer que vai começar a trabalhar aqui?
- Assim é.
- Engraçado, ninguém me disse nada acerca de um novo funcionário. Em todo o caso, terei de falar com o meu superior hierárquico. É minha obrigação, como por certo compreenderá. A minha função aqui consiste em estar de serviço à porta e anunciar a presença dos visitantes ao chefe.
- Nesse caso, pode anunciar a minha presença.
- Muito bem. Queira então dizer-me a senha.
- Senha?
- Não sabe que existe uma senha? Respondi que não com a cabeça.
- Ninguém me falou em senha nenhuma.
- Nesse caso, não o posso ajudar. O meu superior é muito rigoroso nesse particular. Tenho ordens para só deixar entrar quem saiba qual é a palavra-chave.
Tudo aquilo era novidade para mim. Voltei a tirar o cartão-postal do bolso e estudei-o atentamente. Continuava a não fazer referência a nenhuma palavra-chave.
- Se calhar esqueceram-se de a escrever - arrisquei eu. - Já as indicações com a morada não eram lá muito nítidas. Se quiser ter a delicadeza de anunciar ao seu chefe que eu me encontro aqui, estou confiante de que a situação se resolverá por si. Fui contratado para começar hoje a trabalhar aqui. Tenho a certeza de que o seu superior está a par de tudo. Só tem de anunciar a minha chegada...
- Por isso mesmo é que eu preciso da senha - explicou ele, ao mesmo tempo que começava a apalpar o roupão até se aperceber de que não tinha bolsos. Passei-lhe para a mão um dos meus cigarros e acendi-lho com o meu isqueiro.
- Obrigado, é muito simpático da sua parte - agradeceu ele. -Veja lá, tem a certeza de que não se lembra de nada que pudesse funcionar como senha?
Pergunta desnecessária. Limitei-me a abanar a cabeça.
-Também a mim não me agrada esta questão picuinhas, mas o chefe lá deve ter as suas razões. Compreende-me, não é verdade? Não sei que tipo de pessoa é que ele é, visto que nunca lhe fui apresentado. Mas bem sabe como essas pessoas costumam ser - fazem uma tempestade num copo de água. Por favor, não leve isto muito a peito.
- Não, claro que não.
- O indivíduo que aqui estava antes de mim foi despedido na hora por ter dito a alguém, não sei a quem, que a pessoa invocava "ter-se esquecido da senha". E o senhor, melhor do que ninguém, sabe como é difícil arranjar trabalho nos dias que correm.
Acenei afirmativamente.
- E então? - voltei eu à carga. - Alguma pista que me possa dar? Por mais pequena que seja?
O homem estava encostado à porta, envolto por uma nuvem de fumo.
- Desculpe, vai contra as regras.
-Vá lá, só uma pequenina pista. Que mal pode ter isso?
- Se a história viesse a saber-se, quem se veria metido em trabalhos era eu.
- Pela minha parte, não digo nada a ninguém. Pela sua parte, a mesma coisa. Quem é que vai saber?
Para mim, era uma questão da máxima importância. Não ia desistir assim tão facilmente.
Depois de uma certa hesitação, o homem aproximou-se de mim e segredou-me ao ouvido.
- Está preparado? É uma só palavra e tem que ver com água. Cabe na sua mão, mas não se pode comer.
Era a minha vez de puxar pela cabeça.
- Qual é a primeira letra?
- M - murmurou ele.
- Madeira - lancei-me a adivinhar.
- Errado - anunciou ele. - Mais duas.
- Mais duas quê?
- Tentativas. Caso não acertar, acabou-se. Tenho muita pena, mas já estou a arriscar muito, só pelo facto de quebrar as regras. Não posso deixá-lo ficar aqui eternamente a adivinhar.
- Acredite que estou muito grato por me ter dado esta oportunidade - disse eu -, mas será que não me pode dar outra achega? Quantas letras tem a palavra, por exemplo?
Ele franziu o sobrolho.
- Está aqui, está a querer que lhe diga a palavra toda.
- Nunca seria capaz de lhe pedir isso. Só o número de letras, por favor.
- Muito bem. Nove - disse ele, com um suspiro. - O meu pai sempre me disse: "Dás a mão e querem logo o braço."
- Lamento imenso.
- Seja como for, começa por M e tem nove letras.
- Está relacionado com água, cabe na palma da mão e não serve para comer.
- Exacto.
Esforcei-me por resolver o enigma.
- Mergulhão - acabei por dizer.
- Não. Além disso, o mergulhão pode ser comido.
- Tem a certeza?
- Acho que sim. Pode é não saber lá muito bem - acrescentou ele, pouco ou nada convencido. - Sem esquecer que não cabe na palma da mão.
- Já viu algum mergulhão?
- Não - confessou ele. - Não percebo grande coisa de pássaros. Sobretudo aves marinhas. Cresci no meio de Tóquio. Posso dizer-lhe todas as estações da linha de Yamanote por ordem, mas confesso que nunca pus a vista em cima de um mergulhão.
Escusado dizer que eu também nunca tinha visto um mergulhão em toda a minha vida. Nem sequer sabia que a palavra existia antes de ter dado comigo a pronunciá-la. Acontece, porém, que "mergulhão" foi a única palavra de nove letras, começada por um "m", que me ocorreu naquelas circunstâncias.
- Só pode ser "mergulhão" - insisti. - Os mergulhões do tamanho da palma das mãos sabem tão horrivelmente que nem um cão lhes tocaria.
- Calma aí, um momento - contrapôs ele. - Pode dizer o que quiser, mas o certo é que "mergulhão" não é a senha. Continua a estar errada.
- No entanto, preenche todos os requisitos - tem relação com a água, cabe na mão, não dá para comer, nove letras. Tem de estar certo.
- Só há uma coisa errada.
- O quê?
- O facto de "mergulhão" não ser a palavra-chave.
- E, nesse caso, qual é?
Ele viu-se obrigado a recuperar a sua presença de espírito.
- Isso não lhe posso dizer.
- Porque não existe - declarei eu no tom mais glacial que consegui arranjar. - Não existe outro vocábulo com nove letras para uma coisa relacionada com água que caiba na palma da mão e não seja comestível.
- Ai isso é que existe - disse ele, quase a chorar.
- Não existe.
- Existe.
- Não tem provas disso. Além de que "mergulhão" reúne todas as condições.
- Bem sei, mas isso não quer dizer que não possa haver um cão que aprecie carne de mergulhões que sejam do tamanho da palma das mãos.
- Muito bem, uma vez que é tão esperto, dê-me um exemplo prático. Onde é que posso encontrar um cão assim? E estamos a falar de que raça de cão? Quero provas concretas.
Ele resmungou e revirou os olhos. Insisti na minha:
- Sei tudo e mais alguma coisa sobre cães, mas nunca - repito, nunca - encontrei um cão que gostasse de ferrar o dente em mergulhões que cabem na palma da mão.
- Sabem assim tão mal? - ganiu ele.
- Pior não podiam saber. Aaargh.
- Alguma vez provou?
- Nunca. Acaso terei feito mal a alguém para me ver obrigado a provar algo tão repugnante?
- Talvez não.
- Em todo o caso, queira ter a bondade de me apresentar ao seu superior hierárquico - exigi. - Mergulhão.
- Desisto - afirmou ele, continuando a secar o cabelo com a toalha. - Vou fazer uma tentativa no sentido de o apresentar, mas desde já lhe garanto que não vai funcionar.
- Obrigado - disse eu. - Fico em dívida.
- Diga-me uma coisa - pediu ele. - Mergulhões que caibam na palma da mão, isso existe?
- Existem. Sem dúvida que existem, algures por aí - disse eu. Sempre gostava de saber onde é que eu teria ido desencantar semelhante palavra.
O mergulhão do tamanho da palma de uma mão limpou os óculos com um pedaço de veludo e deixou escapar novo suspiro. O molar direito inferior latejava de dor. "Lá teria de fazer mais uma visita ao dentista", pensou ele. Já não aguentava mais. O mundo estava cheio de pragas: dentistas, declarações de impostos, pagamento mensal da prestação do carro, aparelhos de ar condicionado com defeito... Encostou a cabeça ao cadeirão de couro, fechou os olhos e pôs-se a cismar na morte. A morte, tão silenciosa como o fundo do mar, tão doce como uma rosa de Maio. Nesses últimos dias, o mergulhão havia pensado bastante na morte. No seu espírito, via-se confrontado com a sua morte e imaginava-se a gozar enfim o eterno repouso.
"Aqui jaz o mergulhão do tamanho da palma de uma mão", lia-se na inscrição gravada no túmulo.
Nesse preciso momento ouviu-se o zumbido do intercomunicador.
- O que é? - berrou ele irritado na direcção do aparelho. -Tem uma pessoa que deseja vê-lo - anunciou o porteiro. - Diz
que começa hoje a trabalhar aqui. Sabe qual é a senha.
O mergulhão que cabia na palma da mão resmungou e viu as horas no relógio.
- Quinze minutos atrasado.


OS GATOS COMEDORES DE HOMENS


Num jornal, que tinha comprado junto ao porto, deparei-me com um artigo acerca de uma velha que tinha sido devorada por gatos. A trágica história passava-se num lugarejo qualquer nos arredores de Atenas. A mulher tinha setenta anos e, até essa data, levara uma vida calma na sua casinha de uma só divisão - ela e os seus três gatos. Certo dia, a velhota caíra redonda no sofá, de barriga para baixo - um ataque cardíaco, muito provavelmente. Ninguém sabia quanto tempo demorara a morrer, depois de o coração lhe ter falhado. Como a velha senhora não tinha familiares nem amigos que a visitassem regularmente, demorara uma semana até o seu corpo ser descoberto. A porta estava fechada, as janelas corridas, e os gatos, encurralados, não puderam sair. Não havia comida em casa - era possível que sobrasse alguma coisa no frigorífico, mas os gatos, por muito evoluída que a raça seja, não possuem a destreza suficiente que lhes permita abrir a porta do frigorífico. Cheios de fome, devoraram a carne da sua dona morta.
Li o artigo em questão a Izumi, que estava sentada mesmo à minha frente. Nos dias de maior calor, íamos a pé até ao porto, comprávamos um exemplar do jornal em língua inglesa que se publicava em Atenas, mandávamos vir café no estaminé que ficava ao lado da repartição de finanças locais, e eu traduzia para japonês alguma notícia que despertasse a minha atenção. Era a isso que se resumia a nossa rotina diária na ilha. Caso houvesse um pormenor qualquer num dos artigos que merecesse a pena ser esmiuçado, entretínhamo-nos a esgrimir os nossos pontos de vista o tempo que fosse. Izumi falava fluentemente inglês e não tinha qualquer dificuldade em ler os artigos no original. Verdade seja dita, porém, que nunca a vi pegar no jornal.
"Gosto que me leiam as notícias", dizia ela. "Desde pequena que é esse o meu sonho - estar esparramada num sítio bonito cheio de sol, a olhar para o céu ou para o mar, e ter alguém que leia para mim. Pode ser um jornal, um compêndio escolar, um romance, tanto faz. Até à data, isso nunca tinha acontecido. Isto para dizer que tu estás a compensar-me por todas as oportunidades perdidas. Além disso, gosto imenso da tua voz."
Tínhamos o céu e tínhamos o mar, era um facto. E eu gostava de ler em voz alta. Quando vivia no Japão, costumava muitas vezes ler em voz alta ao meu filho livros de bonecos. Ler alto não é a mesma coisa que seguir frases inteiras com os olhos. Algo de inesperado se forma dentro da nossa cabeça, uma espécie de ressonância única e indefinida, irresistível aos meus olhos.
Interrompendo de vez em quando a leitura para beber um gole de café amargo, dei-me ao trabalho de ler o artigo de uma ponta à outra. Lia a meia dúzia de linhas para mim próprio, puxava pela cabeça para encontrar a tradução em japonês, e depois traduzia em voz alta. Vindas não sei de onde, as abelhas zumbiam à volta da mesa, regalando-se com um pedacinho de doce que algum cliente anterior deixara cair. Primeiro ficavam por instantes a dar voltas por cima da mesa com um zumbido cerimonioso, e depois, como se alguma coisa espicaçasse a sua memória, voltavam a atacar o festim que o doce lhes proporcionava. Depois de eu ter acabado de ler o artigo do princípio ao fim, Izumi deixava-se ficar sentada, sem se mexer, cotovelos apoiados na mesa. Com as mãos, formava um triângulo e punha-se a tocar nas pontas dos dedos da mão direita com as pontas dos dedos da mão esquerda. Pela minha parte, deixava cair o jornal no colo e limitava-me a olhar para os seus dedos esguios. Ela olhava para mim através dos espaços por entre os dedos.
- E depois, que aconteceu? - perguntou ela.
- É tudo - respondi eu, dobrando o jornal. Tirei um lenço do bolso das calças e limpei com ele os resquícios de café que tinham ficado na boca. - Pelo menos, é o que vem no jornal.
- Mas o que terá acontecido aos gatos? Voltei a guardar o lenço.
- Não faço ideia. Aqui não diz.
Izumi cerrou os lábios e repuxou a boca toda para o mesmo lado, num tique muito dela. Antes de deixar sair da boca a sua opinião - quase sempre na forma de uma minideclaração -, fazia sempre aquilo, como se estivesse a dar um puxão num lençol para tirar um vinco imaginário. Quando travei conhecimento com ela, achei este hábito encantador.
- Os jornais são iguais em toda a parte, esteja uma pessoa onde estiver - proclamou ela. - Nunca dizem o que uma pessoa quer realmente saber.
Ela tirou um Salem da caixa, pôs o cigarro na boca e acendeu um fósforo. Fumava um maço diário - nem um cigarro a mais, nem um cigarro a menos. Todas as manhãs abria um novo maço e em chegando o dia ao fim acabava-se o tabaco. Eu não fumava. A minha mulher tinha-me obrigado a acabar com o vício, cinco anos antes, estava ela grávida.
- Só gostava de saber - começou Izumi, deixando o fumo do seu cigarro enovelar-se no ar - o que terá acontecido aos gatos. Terão sido mortos pelas autoridades, pelo facto de terem comido carne humana? Ou será que lhes fizeram uma festa na cabeça, disseram: "Vão lá à vossa vida, já tiveram a vossa dose de desgraça", e deixaram-nos ir embora? Que te parece?
Eu reflecti na questão sem deixar de olhar fixamente para as abelhas. Só por um instante, as incansáveis abelhinhas que andavam por ali a rondar e a alambazar-se com o doce e os três gatos que haviam devorado a carne da velhota formaram uma única imagem no meu espírito. O grito agudo de uma gaivota ao longe sobrepôs-se ao zumbido das abelhas e, por um segundo ou dois, a minha consciência andou perdida no limite entre o real e o não-real. Onde é que eu estava? O que estaria ali a fazer? Respirei fundo, contemplei o céu e a seguir procurei Izumi com os olhos.
- Não faço ideia.
- Pensa nisso. Se estivesses no lugar do presidente da câmara ou do chefe da Polícia, o que terias feito relativamente a esses gatos?
- Que tal colocá-los num reformatório e dar-lhes o devido correctivo? - sugeri. -Transformá-los em vegetarianos.
Izumi(1) não se riu. Deu uma passa no cigarro e deixou escapar muito lentamente uma golfada de fumo.
- A história faz-me lembrar uma aula de catequese que tive quando comecei a andar no colégio de freiras. Alguma vez cheguei a contar-te que andei num colégio católico muito rígido? Logo a seguir à cerimónia de abertura do ano escolar, uma das irmãs pegou em nós e arrebanhou-nos no auditório, antes de subir ao estrado para nos pregar um sermão sobre a moral católica. Contou um sem-número de histórias, mas aquela de que melhor me lembro - para ser sincera, a única coisa que me vem assim à memória - é esta história que ela nos pespegou sobre alguém que foi parar a uma ilha deserta com um gato.
- Parece interessante - observei.
- Imagina que o navio onde seguias naufragou. Tu e um gato foram os únicos seres vivos que conseguiram salvar-se num bote salva-vidas. Foram parar a uma ilha deserta, onde não existe nada que se possa comer. Têm água potável à justa para dez dias e biscoitos secos, isto só para uma pessoa. "Agora fechem todos os olhos e imaginem-se a viver essa situação", pediu a freira. "Estão sozinhos na tal ilha deserta, sozinhos com o gato. Quase não têm nada para comer. Estão a compreender? Têm fome, têm sede, e quando se vos acabarem os víveres o mais provável é que morram. O que fariam numa situação dessas? Compartilhariam as magras reservas de víveres com o gato? Não, não deveriam fazer isso. Seria um erro. Sois todos criaturas sagradas, escolhidas por Deus, o que não é o caso de um gato. Por isso é que deveis ser só vós a comer tudo." Nessa altura, a freira lançou-nos um olhar terrivelmente sério. Confesso que fiquei um bocado chocada. Que necessidade tinha ela de se pôr a contar uma história daquelas a um bando de meninas acabadas de entrar para a escola? Sempre gostava que me respondessem a isto. Aquilo deu-me que pensar. Onde é que eu tinha ido parar?

*1. Uma cena parecida desenrola-se no romance Sputnik, Meu Amor (Casa das Letras, Lisboa, 2002), mas neste conto, e como explica no prefácio, Murakami cruza personagens e mistura elementos de uhi outro romance - South of the Border, West of the Sun -, dando forma a uma história original. (N. da T.)

Izumi e eu encontrávamo-nos instalados numa casinha de férias com um quarto e cozinha, numa pequena ilha grega(2). Estávamos em plena estação baixa e não se podia dizer que o local fosse propriamente poiso de turistas, por isso a renda era barata. Nenhum de nós alguma vez ouvira falar na ilha antes de aqui chegar. Ficava perto da fronteira com a Turquia, e nos dias claros e sem nuvens era possível distinguir os contornos esverdeados das montanhas turcas. Quando o vento soprava, como os habitantes locais costumavam dizer na brincadeira, chegava até um cheirinho a shish kebab. Agora a sério. A ilha estava mais próxima da costa turca do que da ilha grega quase ao lado, e ali - como uma miragem mesmo diante dos nossos olhos - ficava a Ásia Menor.
Na praça que ficava junto ao porto, erguia-se a estátua de um herói local na luta pela independência da Grécia. Liderara uma insurreição armada contra o exército no continente, ao mesmo tempo que encabeçara uma revolta contra o exército turco que na altura ocupava a ilha, mas acabara por ser capturado e condenado à morte. Os turcos colocaram uma estaca afiadíssima no meio da praça e por ela fizeram descer o corpo do infeliz herói, entretanto despojado das suas roupas. Com o peso, a estaca penetrara no ânus e abrira lentamente caminho através do resto do corpo, até sair pela boca - uma maneira horrivelmente lenta e excruciante de morrer. A estátua fora mandada erguer no local exacto onde tudo teria acontecido. Na altura da sua construção, devia ter sido imponente, mas com o passar dos anos, e devido à acção conjunta da brisa marinha, da poeira e dos excrementos das gaivotas, no presente mal dava para reconhecer as feições do homem. Os habitantes da ilha quase nem prestavam atenção à pobre estátua e, pela parte que lhe tocava, até o herói parecia de costas viradas para as gentes, para a ilha e para o mundo.
Quando Izumi e eu nos encontrávamos sentados no exterior do nosso cafezinho habitual, a beber café ou cerveja, enquanto seguíamos com o olhar os barcos na zona do porto, as gaivotas e as distantes cordilheiras turcas, tínhamos a sensação de estar literalmente nos confins da Europa. O vento soprava como o vento no fim do mundo.

*2. Destino bem conhecido de Murakami e da mulher, Yoko. Foi aí que o escritor japonês se refugiou, depois de ter alcançado a fama (e vendido milhões) e, também, sido alvo de críticas por parte de alguns escritores da velha-guarda. (N. da T.)

As cores que tingiam a paisagem eram cores que invocavam o passado, sem apelo nem agravo. A impressão que eu tinha era de estar a ser lentamente absorvido por uma realidade exterior, que escapava ao meu controlo, sem, no entanto, deixar de se revelar a um tempo vaga e estranhamente doce. E a sombra dessa substância reflectia-se no rosto, nos olhos, na cor da pele daquela amálgama de gente que se via no porto.
Por vezes, sentia dificuldade em apreender a realidade e não percebia que eu próprio fazia parte da cena. Por mais que me esforçasse por mergulhar na paisagem e por respirar aquela atmosfera, parecia não existir uma relação orgânica entre a minha pessoa e o que me rodeava.
Dois meses antes, ainda eu estava a viver com a minha mulher e o nosso filho de quatro anos, no bairro de Unoki, em Tóquio. Nada de muito espaçoso, tratava-se de um apartamento normal e funcional, de três divisões. A minha mulher e eu tínhamos o nosso quarto, o nosso filho tinha o seu, e o quarto que sobrava fazia mais ou menos as vezes de local de trabalho. Era um apartamento sossegado, com uma bonita vista. Aos fins-de-semana, costumávamos ir os três passear ao longo do rio Tama. Quando chegava a Primavera, as cerejeiras espalhadas pelas margens floriam e eu pegava no meu filho e na bicicleta e lá íamos os dois assistir aos treinos da segunda equipa dos Ciants(3).
Eu trabalhava numa empresa de design gráfico, nem grande nen pequena, especializada em livros e revistas. Dizer que tenho a profissão de designer faz a coisa parecer mais interessante do que na realidade era, uma vez que as minhas funções eram essencialmente práticas e de artístico e criativo pouco ou nada tinham. O horário a cumprir era quase sempre alucinante, para não dizer demasiado, várias vezes por mês via-me obrigado a fazer uma directa e a ficar no escritório toda a noite. Algumas das minhas funções na qualidade de desenhador gráfico faziam-me morrer de tédio. Apesar disso, não desgostava do emprego e até achava a firma um local agradável para trabalhar. Por ser dos funcionários mais antigos, podia dar-me ao luxo

*3. Popular equipa de basebol no Japão; a par do futebol (paixão mais recente), é uma adaptação do jogo nacional americano. Está organizado em duas ligas (Central League e Pacific League) e a época vai de Abril a Outubro. (N. da T.)

de escolher trabalho e também, é bom que se diga, exprimir a minha opinião. Além de que o ordenado era muito razoável. Por isso, se nada tivesse acontecido, o mais provável era eu ter ficado a trabalhar naquela mesma empresa até ao fim dos meus dias. A minha vida, como o rio Moldava - mais concretamente, as águas sem nome que dão forma a esse rio -, continuaria sempre a fluir, contínua e paulatinamente, em direcção ao mar.
Isto se eu não me tivesse cruzado com Izumi a meio caminho.
Izumi era dez anos mais nova do que eu. Conhecemo-nos numa reunião de trabalho. Houve qualquer coisa que fez faísca entre nós, assim que pousámos o olhar um no outro. E não é o género de coisa que aconteça tantas vezes quanto isso. Marcámos dois ou três encontros depois disso, por motivos que se prendiam com o trabalho. Eu deslocava-me ao escritório onde ela trabalhava, ou então era ela que vinha ter comigo. As nossas reuniões eram sempre curtas e havia sempre outras pessoas na sala, razão pela qual o nosso relacionamento assumiu um cariz muito profissional. Quando o projecto chegou a bom termo, contudo, apoderou-se de mim uma terrível solidão, como se alguma coisa de absolutamente vital me tivesse sido arrancada à força. Há muito tempo que não sabia o que era ter aquela sensação. E julgo que com ela aconteceu a mesma coisa.
Uma semana mais tarde, ela telefonou para o meu escritório por causa de uma trivialidade qualquer e ficámos um bocado a conversar. Eu disse uma piada, e ela riu-se. "Queres ir tomar uma bebida?", perguntei. Fomos até um barzinho e tomámos várias bebidas. Não posso dizer ao certo do que então falámos. Sei, isso sim, que temas não nos faltavam e que poderíamos ter ficado ali eternamente a conversar. Pela minha parte, apreendia tudo o que ela dizia com a qualidade do laser, que confere a tudo uma clareza espantosa. E, da mesma forma, ela revelava-se capaz de captar à primeira aquelas coisas que, por regra, eu nunca conseguia fazer os outros entender. Éramos ambos casados e não se pode dizer que tivéssemos grandes queixas, nem ela nem eu, da vida de casados. Adorávamos os respectivos cônjuges e sentíamos por eles respeito. Apesar disso, não deixava de ser um verdadeiro milagre (mesmo classificado como pequeno) - quer dizer, a história de encontrar pela frente uma pessoa com quem se consegue uma partilha de sentimentos tão evidente e tão profunda. A maioria das pessoas passa a vida inteira sem saber o que é encontrar uma pessoa dessas pela frente. No entanto, teria sido um erro chamar a isso "amor". Era mais uma situação de total empatia.
Começámos a encontrar-nos regularmente para tomar um copo. Atendendo a que o marido só chegava tarde a casa por razões de natureza profissional, ela tinha plena liberdade de movimentos. Sempre que estávamos juntos, o tempo passava a correr. Quando olhávamos para o relógio, era para descobrir que nos arriscávamos a perder o último comboio. Para mim, o momento da despedida era sempre doloroso. Havia sempre tanta coisa mais que tínhamos para dizer um ao outro.
De vez em quando dormíamos juntos. Nenhum de nós pressionou o outro nesse sentido, aconteceu naturalmente. Até essa data, tínhamos sido fiéis, mas, de certa maneira, não ficámos com nenhum sentido de culpa, pela simples razão de que tínhamos de o fazer. O simples gesto de a despir, acariciar a sua pele, abraçá-la junto a mim, penetrar nela, ejacular- era apenas um prolongamento das nossas conversas. Por isso não é de estranhar que o facto de irmos para a cama não fosse uma fonte de inesgotável prazer físico; era um acto tranquilo, que nos proporcionava prazer, sem fingimento. O melhor de tudo eram as conversas serenas que tínhamos na cama, depois do sexo. Eu abraçava o seu corpo nu, ela aninhava-se nos meus braços e, numa linguagem que era só nossa, dizíamos um ao outro coisas que mais ninguém podia ouvir.
Encontrávamo-nos sempre que podíamos. Por estranho que pareça (ou talvez não seja tão estranho quanto isso), estávamos ambos convencidos de que a nossa relação poderia prolongar-se para sempre, que se estabelecêssemos uma linha e deixássemos as nossas vidas de casados de um lado e a nossa relação do outro, não haveria qualquer problema. Assim como também estávamos convencidos de que o nosso caso nunca seria descoberto. Era evidente que mantínhamos uma relação de natureza sexual, mas de que forma é que isso podia fazer mal a alguém? Não posso dizer que não sentia um peso na consciência, naquelas noites em que dormia com Izumi e depois, ao chegar tarde e a más horas a casa, inventava uma mentira para dizer à minha mulher, mas aos meus olhos não se tratava de uma traição. Izumi e eu tínhamos uma relação extremamente íntima, é certo, mas que cabia num compartimento estanque.
E, se nada tivesse acontecido, o mais provável seria termos continuado assim eternamente. Agarrados às nossas conversas, às nossas vodcas com água tónica, procurando refúgio entre os lençóis de um quarto de hotel sempre que era possível. Ou, então, se calhar acabaríamos por nos cansarmos de mentir aos nossos cônjuges e teríamos deixado o caso morrer de morte natural, a fim de regressarmos às nossas vidinhas confortáveis. Fosse como fosse, eu acreditava que a coisa haveria sempre de se resolver a bem. Não tenho provas do que afirmo; é apenas a sensação que me dá. Contudo, por obra e graça do destino - era inevitável, olhando para trás -, aconteceu que o marido de Izumi descobriu tudo. Depois de a bombardear com perguntas, foi ter comigo, perfeitamente descontrolado. Por azar, a minha mulher encontrava-se sozinha em casa, e acontece que as coisas ficaram muito feias. Quando eu cheguei a casa, ela pediu-me explicações. Como Izumi já tinha confessado tudo, vi-me impossibilitado de engendrar mais uma história das minhas. Por isso, contei à minha mulher o que tinha acontecido exactamente. "Não estou apaixonado, nem nada que se pareça", expliquei. "Trata-se de uma relação especial, completamente diferente da que temos os dois. Tão diferente como o dia da noite. E tanto assim que tu nunca desconfiaste de nada, pois não? Isso só vem provar o género de relação que é."
A minha mulher, porém, recusou-se a dar-me ouvidos. Ficou em estado de choque, paralisada, e deixou literalmente de me falar. No dia a seguir, fez as malas, arrumou tudo no carro e foi viver para casa dos pais, em Chigasaki, levando o nosso filho com ela. Ainda lhe liguei duas ou três vezes, mas ela não atendia as minhas chamadas. Em vez disso, apanhava com o pai ao telefone. "Não estou disposto a ouvir as tuas desculpas esfarrapadas", atirava-me ele à cara, "e não penses que algum dia volto a deixar que a minha filha volte a viver com um sacana como tu." Desde a primeira hora que fora contra o nosso casamento e, por fim, o seu tom de voz dizia que ele sempre previra aquele desfecho.
Desnorteado como estava, tirei dois dias no emprego e fiquei na cama. Izumi telefonou-me. Também ela se encontrava sozinha. O marido tinha-a deixado, não sem antes lhe ter levantado a mão e, depois de pegar numa tesoura, ter retalhado as roupas dela. Tudo, desde o casaco de sair às peças de roupa interior. Ela não fazia ideia de onde é que ele poderia estar. "Sinto-me de rastos", confidenciou-me. "Não sei o que hei-de fazer. Está tudo estragado, e só sei que nada voltará a ser como dantes. Ele nunca mais voltará." E dizia aquilo a soluçar, ao telefone. Ela e o marido tinham sido namorados desde os tempos do secundário. Gostaria de a ter consolado, mas como? "Vamos beber um copo", acabou ela por sugerir. Fomos até Shibuya(4), entrámos num bar que estava aberto toda a noite e ali ficámos até de manhã. Vodka gimlets para mim, daiquiris para ela. Perdi a conta ao que ela bebeu. Pela primeira vez, não tínhamos grande coisa a dizer um ao outro. De madrugada, para cozinharmos a bebedeira, fomos a pé até Harajuku, e aí ficámos a tomar o pequeno-almoço num restaurante da cadeia Denny's. Foi então que ela sugeriu irmos visitar a Grécia.
- Grécia? - perguntei eu.
- No Japão é óbvio que não podemos ficar - sublinhou ela, olhando-me bem nos olhos.
Tentei digerir a ideia. Confesso que a minha mente, sob o efeito dos vapores do álcool, não atinava com a lógica daquilo. Grécia?
- Sempre quis ir até à Grécia - explicou ela. - Era o meu sonho. Gostaria de lá ter ido na viagem de lua-de-mel, mas na altura não tínhamos dinheiro. Vamos os dois até à Grécia. Ficamos lá a viver, sem preocupações de espécie alguma. Não sei se estás a ver a cena. Permanecer no Japão só servirá para ficarmos mais deprimidos, e não prevejo que daí resulte alguma coisa de bom.
Eu não tinha nenhum interesse especial na Grécia, mas vi-me forçado a dar-lhe razão. Entre os dois, contabilizámos o nosso dinheiro. Ela possuía dois milhões e meio de ienes numa conta-poupança, ao passo que eu conseguia arranjar um milhão e meio. Ao todo, quatro milhões de ienes - cerca de quarenta mil dólares.
- Com esse dinheiro todo de certeza que podemos ficar dois ou três anos a viver na Grécia - referiu Izumi. - Já a pensar nos voos mais baratos, os bilhetes de avião devem andar à volta dos quatrocentos

*4. Zona de Tóquio nas imediações da estação de Shibuya, conhecida pelos seus restaurantes, lojas de moda e de marca, cinemas e locais de encontro para a "juventude inquieta". (N. da T.)

mil ienes. Logo, sobram-nos 3,6 milhões. Fazendo as contas a "x" por mês, deve dar para três anos. Dois anos e meio, se quisermos jogar pelo seguro. Que me dizes? Vamos embora. Deixemos que as coisas se resolvam mais tarde por si só.
Olhei à minha volta. Era de manhã cedo e o Denny's estava cheio de parzinhos. Devíamos ser o único casal com mais de trinta anos. E, de certeza absoluta, o único casal entretido a discutir se devíamos ou não pegar em todo o dinheiro que tínhamos e fugir para a Grécia, depois de uma história pouco edificante. "Que grande confusão", lembro-me de ter pensado. Durante muito tempo, fiquei ali, a olhar para a palma da minha mão. Era aquela a vida que eu realmente queria?
- Tudo bem - disse eu por fim. - Grécia, aí vamos nós.
No dia seguinte, entreguei na empresa a minha carta de demissão. O meu chefe já tinha ouvido uns zunzuns e achou melhor conceder-me uma licença sem vencimento. Os companheiros de trabalho ficaram espantados ao saber do meu pedido de demissão, mas ninguém se esforçou por me convencer do contrário. Desistir de um emprego não era assim tão difícil quanto isso, como vim a descobrir. Uma vez tomada a decisão de cortar amarras, não existe muita coisa de que não nos possamos livrar - isto para não dizer praticamente nada. A partir do momento em que uma pessoa começa a fazer o rol das coisas que pode riscar, descobre que só lhe apetece mandar tudo às urtigas. É parecido como quando se perdeu ao jogo o dinheiro quase todo e se pensa: "Que diabo, vamos lá apostar o que falta. Perdido por cem, perdido por mil."
Enfiei tudo o que pensava que me iria fazer falta dentro de uma Samsonite azul, nem muito grande nem muito pequena. Izumi levou com ela sensivelmente a mesma bagagem.
Quando estávamos a sobrevoar o Egipto, de repente assaltou-me um medo terrível ao pensar que alguém poderia ficar com a minha mala por engano. Não era um cenário improvável de todo: como a minha Samsonite azul devia haver dezenas de milhares de malas por esse mundo fora. Se calhar, quando chegasse à Grécia e abrisse a mala, viria a descobrir-me na posse das coisas de outra pessoa qualquer. Fui vítima de um forte ataque de pânico. Caso a minha mala se perdesse, eu ficaria sem nada que me ligasse à minha própria vida - para além de Izumi. De repente, senti-me como se tivesse desaparecido do mapa. Nunca tinha experimentado sensação tão estranha. A pessoa que ia sentada naquele avião já não era eu. Por engano, a minha consciência tinha seguido viagem juntamente com a bagagem de outro passageiro qualquer. Estava fora de mim. Tinha de regressar quanto antes ao Japão e recuperar o meu verdadeiro corpo. E, contudo, ali estava eu, a voar sobre o Egipto, sem meio de poder regressar. A carne que me envolvia dava a sensação de ser feita de barro. No momento em que comecei a coçar-me com as unhas, pedaços parecidos com flocos voaram por todo o lado. Desatei a tremer sem me conseguir controlar. Tinha perfeita consciência de que, a continuar com esses tremores, o meu corpo se fragmentaria e ficaria reduzido a pó. Apesar do ar condicionado do avião, estava encharcado em suor. Tinha a camisa colada ao corpo. Cheirava horrivelmente. Durante o tempo que aquilo durou, Izumi foi sempre de mão dada comigo e, de vez em quando, punha-me a mão no ombro. Ela não disse uma palavra, mas parecia saber como eu me sentia. O meu estado manteve-se durante uma boa meia hora. Apetecia-me morrer - enfiar o cano de um revólver dentro do ouvido e disparar; só queria que a minha mente e o meu corpo explodissem e ficassem reduzidos a pó.
Depois de a violência do abalo ter diminuído, contudo, senti-me mais leve. Descontraí os ombros e abandonei-me à corrente do tempo. Deixei-me cair num sono profundo e, quando abri os olhos, tinha diante de mim as águas indescritivelmente azuis do Egeu.
Enquanto vivemos na ilha, o nosso maior problema era a total ausência de coisas para fazer. Quando não se tem um emprego digno desse nome, não existe contacto com outras pessoas. Na ilha não havia cinemas nem campos de ténis nem livros para ler. Tínhamos abandonado o Japão tão abruptamente que nem sequer me passara pela cabeça trazer os meus livros. Depois de ter lido os dois romances comprados no aeroporto, peguei numa edição das tragédias de Ésquilo que Izumi em boa hora se lembrara de trazer. Li-as duas vezes e fiquei sem nada para ler. Para chamar a atenção dos turistas, o quiosque junto ao porto exibia nos seus escaparates meia dúzia de romances ingleses em edição de bolso, mas nada que merecesse a minha atenção. Ler era a minha grande paixão, e sempre imaginara que passaria a vida mergulhado em livros, mas, por ironia do destino, ali estava eu - com todo o tempo do mundo e nada para ler.
Izumi começou a aprender grego. Trouxera na bagagem um dicionário de verbos gregos e andava com o livrinho para todo o lado, recitando as conjugações dos tempos verbais como se estivesse a dizer um feitiço. Chegou uma altura em que começou a ser capaz de se entender na língua grega, se bem que tropeçando aqui e ali, com os donos das lojas e, também, com os empregados dos cafés onde tínhamos o hábito de ir. Isso contribuiu para ficarmos a conhecer algumas pessoas. Para não lhe ficar atrás, aproveitei para desenferrujar o meu francês. Calculava que, mais dia menos dia, me serviria para alguma coisa, mas acontece que nesta ilha nunca encontrei uma alma que falasse francês. Na cidade, era com o inglês que nos safávamos. Alguns dos habitantes mais velhos conseguiam compreender italiano ou alemão. Francês, porém, era escusado.
Com pouca coisa de importante para fazer, fartámo-nos de passear. Ainda tentámos pescar junto às águas do porto, mas não apanhámos nem um peixe para amostra. A falta de peixe não era aqui problema: acontecia que a água era demasiado límpida e os peixes conseguiam ver, lá do fundo, onde ficava o anzol, a cara do pescador. Só um peixe muito estúpido, para se deixar apanhar daquela maneira. Comprei um caderno de desenho e uma caixa de aguarelas no quiosque local, e andei a deambular pela ilha enquanto retratava paisagens e pessoas. Izumi ganhou o hábito de se sentar ao pé de mim, a ver-me desenhar, ao mesmo tempo que ia decorando os seus verbos gregos. Era frequente aparecer alguém da terra enquanto desenhava. A fim de matar o tempo, fazia retratos deles, coisa que pareceu ter-lhes dado grande satisfação. Quando lhes oferecia o retrato deles pintado por mim, convidavam-nos amiúde para uma cerveja. Certa vez, um pescador ofereceu-nos um polvo inteiro.
- Podias ganhar a vida a fazer retratos - comentou Izumi. - És bom nisso. Além do mais, sempre tiravas partido do facto de seres um artista japonês. Não deve haver muitos por estas paragens.
Ri-me, mas ela disse aquilo com uma expressão séria. Imaginei-me a fazer a ronda pelas ilhas gregas e a retratar as pessoas que ia encontrando no meu caminho, recebendo uns trocos à laia de recompensa. "Não era uma ideia má de todo", pensei para comigo.
- E eu - continuava Izumi a efabular - podia ser a guia turística para turistas japoneses. É provável que com o tempo comecem a aparecer em cada vez maior número. Sempre dava para arredondar as contas. Claro que para isso teria de aprender a falar Grego como deve ser.
- Achas realmente que podemos aqui ficar durante dois anos e meio, sem fazer nada? - perguntei.
- Desde que ninguém nos roube o dinheiro ou nenhum de nós adoeça ou coisa parecida, acho que conseguiremos aguentar. Mesmo assim, devíamos estar preparados para os imprevistos.
Respondi-lhe que, desde que ali tínhamos chegado, nunca tinha ido ao médico.
Izumi olhou-me nos olhos, mordeu o lábio e arrepanhou-o todo para um lado.
- E se eu ficasse grávida? - quis ela saber. - O que é que fazias? Por mais bem resguardado que estejas, o certo é que as pessoas cometem erros. Se acontece uma coisa dessas, o nosso dinheiro desapareceria num instante.
- Caso isso aconteça, o melhor que temos a fazer é regressar ao Japão - alvitrei eu.
- Ainda não percebeste, pois não? - disse ela calmamente. -Nunca mais poderemos voltar ao Japão.
Izumi continuou a estudar Grego, e eu continuei com os meus esboços. Foi o tempo mais pacífico de toda a minha vida. Passado pura e simplesmente a comer e a apreciar com todo o cuidado, mesmo até os vinhos mais baratos. Todos os dias subíamos a uma colina próxima. Havia uma aldeiazinha lá em cima e, dali, víamos as outras ilhas na distância. Graças ao ar puro e ao exercício, não tardei a ficar em boa forma. Quando o Sol se punha, não se ouvia um som. E, no meio desse silêncio, Izumi e eu fazíamos amor mansamente, à nossa maneira, e depois falávamos sobre tudo e mais alguma coisa. Já não precisávamos de nos preocupar com a cena de apanhar o último comboio, ou de ter de inventar uma mentira para contar ao marido ou à mulher. Era maravilhoso, e isso é dizer pouco. Pouco a pouco, o Outono foi passando e chegou o Inverno. Os dias tornaram-se mais ventosos e começaram a aparecer carneirinhos no mar.
Foi mais ou menos por essa altura que lemos no jornal a história sobre os tais gatos "devoradores de homens". No mesmo jornal, vinha uma notícia sobre o agravamento do estado de saúde do imperador japonês, mas a verdade é que só tínhamos comprado aquela edição para consultar as taxas de câmbio. O iene continuava a ganhar ao dracma. E isso era vital para a nossa sobrevivência; quanto mais forte a moeda japonesa, com mais dinheiro no banco ficávamos.
- Por falar em gatos - disse eu, uns dias depois de ter lido o artigo. - Quando era miúdo, tive um gato que desapareceu de uma maneira muito estranha.
Izumi deu mostras de estar interessada na história. Levantou a cabeça do dicionário de verbos e olhou para mim.
- O que é que aconteceu?
- Eu devia andar no segundo ou terceiro ano do básico. Vivíamos numa casa que pertencia à empresa e que tinha um grande jardim. Nesse jardim existia um pinheiro muito antigo, tão alto que mal conseguíamos descortinar a ponta. Um dia, eu estava sentado na varanda a ler um livro, enquanto o nosso gato siamês brincava no jardim. O animal andava para ali aos saltos, como os gatos às vezes fazem. Estava completamente concentrado em qualquer coisa. Pousei o livro e fiquei ali a olhar para ele, sem que ele desse por nada. Quanto mais o observava, mais assustado ficava. O gato parecia possuído, só a dar saltos, o pêlo todo eriçado. Se calhar tinha visto qualquer coisa que não estava ao meu alcance. Finalmente, desatou a correr à volta do pinheiro, como o tigre no desenho animado Little Black Sambo(5) Em seguida, pôs-se de pé e, de um salto enorme, subiu

*5. Livro e, aqui, filme animado que tem na figura de Sambo um rapazinho negro de cabelo encarapinhado. No ]apão, à questão do racismo juntou-se um caso de pirataria no mercado editorial. No romance de Ralph Ellison Homem Invisível (Casa das Letras, 2006), bonecos em forma de Sambo são vendidos simbolicamente nas ruas; em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (um dos escritores preferidos de Murakami), o romance é mencionado a título de livro a ser destruído pelo fogo. (N. da T.)

ao topo da árvore. Eu conseguia ver o seu pequeno focinho, por entre os ramos mais altos. Via-se que estava excitado e nervoso. Estava escondido no meio da folhagem, a olhar fixamente para algo. Chamei-o pelo nome, mas ele nem sequer parecia ouvir a minha voz.
- Qual era o nome do gato? - perguntou Izumi.
- Já não me lembro - confessei. - Aos poucos, caiu a noite e começou a ficar escuro. Eu estava preocupado e fiquei ali que tempos, à espera que o gato descesse. Por fim, escureceu totalmente. E nunca mais voltámos a rever o gato.
- Não é uma história assim tão invulgar como possas pensar -afirmou Izumi. - Há muitos gatos que desaparecem assim. Sobretudo quando estão com o cio. Ficam mais do que excitados e depois não se lembram do caminho para casa. O teu gato deve ter descido da árvore e desaparecido quando não estavas a ver.
- Pode ser que sim - disse eu. - Mas na altura era ainda muito novo, e estava certo de que o gato decidira ficar a viver na árvore. Tinha de haver uma razão para ele não querer descer. Ia todos os dias sentar-me na varanda e ficava ali a olhar para o pinheiro, sempre à espera de ver o gato a espreitar por entre os ramos.
A páginas tantas, Izumi perdeu o interesse na história. Acendeu o seu segundo Salem, depois levantou a cabeça e olhou para mim.
- Costumas pensar no teu filho? - perguntou-me. De início, não soube o que lhe responder.
- Por vezes - disse com honestidade. - Mas nem sempre. Volta e meia há coisas que mo fazem lembrar.
- Nunca te apetece vê-lo?
- Às vezes, sim - respondi-lhe. - Mas era mentira. Pensava que era assim que me devia sentir, mais nada. Quando vivia debaixo do mesmo tecto com o meu filho, achava que ele era a criança mais adorável do mundo. Mal chegava a casa, depois do trabalho, era sempre ao quarto dele que ia primeiro, para ver a sua carinha a dormir. De vez em quando dava-me uma tal vontade de o apertar que até chegava a recear partir qualquer coisa. Naquele momento, porém, as coisas relacionadas com ele - o rosto, a voz, os movimentos - só existiam numa terra distante. Tudo o que recordava com nitidez era o cheiro do seu sabonete. Gostava de tomar banho ao mesmo tempo que ele e de o esfregar e ensaboar muito bem. Como tinha a pele sensível, a minha mulher costumava comprar sempre um sabonete especial para ele. Tudo o que me lembrava acerca do meu filho era do perfume desse sabonete.
- Se algum dia quiseres regressar ao Japão, estás à vontade -afirmou Izumi. - Não te preocupes comigo. Cá me hei-de arranjar.
Assenti. Mas sabia que tal nunca iria acontecer.
- Sempre gostava de saber se o teu filho algum dia pensará em ti dessa mesma maneira, isto é, quando crescer-filosofou Izumi. - Como se tu fosses um gato e tivesses desaparecido no alto de um pinheiro.
Ri-me.
- Pode ser que sim.
Izumi esmagou o cigarro no cinzeiro e suspirou.
- Vamos para casa fazer amor, não te apetece?
- Agora, a meio da manhã? - perguntei.
- Que mal tem?
- Mal nenhum.
Mais tarde, quando acordei a meio da noite, Izumi não dormia ao meu lado. Vi as horas no meu relógio em cima da mesinha-de-cabeceira. Meia-noite e meia. Procurei com a mão o interruptor do candeeiro, acendi a luz e olhei à minha volta. Reinava um silêncio profundo, como se um pó mágico capaz de calar todos os rumores se tivesse introduzido no quarto e espalhado por todo o lado. Viam-se duas beatas da marca Salem no cinzeiro, ao lado de um maço de cigarros vazio e amarfanhado. Saí da cama e fui até à sala de estar. Izumi não estava lá. Também não se encontrava na cozinha nem na casa de banho. Abri a porta e olhei lá para fora. Ao luar, viam-se apenas duas espreguiçadeiras, daquelas de plástico. "Izumi", chamei baixinho. Nada. Voltei a chamar o nome dela, dessa vez mais alto. Tinha o coração a bater com força no peito. Seria aquela a minha voz? Soava de uma forma tão estridente, tão pouco natural. Continuei sem resposta. Uma leve brisa oriunda do mar agitou as ervas. Fechei a porta, regressei à cozinha e servi-me de meio copo de vinho, para me acalmar.
A claridade intensa da Lua penetrava pela janela da cozinha, lançando estranhas sombras nas paredes e no chão. Aos meus olhos, tudo aquilo parecia o cenário de uma peça de teatro de vanguarda.
De repente, apercebi-me de uma coisa: a noite em que o gato se evaporara depois de subir ao cimo do pinheiro tinha sido muito parecida com esta, uma noite de lua cheia sem nuvens. Depois do jantar, eu tinha voltado à varanda para ver se encontrava o gato. À medida que a escuridão caía, a claridade da Lua tornava-se cada vez mais intensa. Por uma qualquer razão que me escapa, não conseguia tirar os olhos do cimo do pinheiro. Volta e meia, ficava com a impressão de ter visto os olhos do gato, a brilhar no meio dos ramos. Escusado será dizer que não passava tudo de uma ilusão.
Fui buscar uma camisola grossa e um par de calças de ganga, agarrei nas moedas que estavam em cima da mesa, guardei-as no bolso, e saí de casa. Izumi devia ter sentido dificuldade em dormir e decidido ir dar uma volta pela zona do porto. A única coisa que ouvia era o som produzido pelos meus ténis esmagando ruidosamente o cascalho ao longo do caminho, como uma espécie da banda sonora exageradamente alta. "Izumi deve ter ido até ao porto", pensei. Não havia mais nenhum sítio onde ela pudesse estar. Como só havia uma estrada que ia ter ao porto, não havia possibilidade de nos desencontrarmos. As luzes nas casas à beira da estrada estavam todas apagadas, a luz da Lua cobria o asfalto com um manto cor de prata. Parecia que estávamos no fundo do mar.
A meio caminho, pareceu-me ouvir ao longe o som de música e estaquei. De início, julguei tratar-se de uma alucinação acústica -como acontece quando a pressão atmosférica muda de repente e começamos a ouvir um zumbido. Mas, à medida que o som chegava aos meus ouvidos de uma forma mais distinta, identifiquei uma melodia. Sustive a respiração e prestei muita atenção, como se quisesse afundar-me na escuridão do meu corpo. Era música, sem sombra de dúvida. Música interpretada ao vivo, sem ser difundida através de amplificadores. Alguém a tocar um instrumento. Mas que instrumento, era a questão? Uma espécie de bandolim, como o que Anthony Quinn tocava no filme Zorba, o Grego? Um bouzouki(6)? Mas que diabo! Quem se lembraria de estar ali a tocar bouzouki na calada da noite?

*6. Instrumento de corda grego. (N. da T.)

A música parecia vir do cimo da colina que todos os dias subíamos para fazer exercício. Fiquei de pé na encruzilhada, sem saber o que fazer nem por onde seguir. Izumi devia ter ouvido a mesma melodia, naquele mesmo lugar. E eu tinha a nítida sensação de que, a ser verdade, ela teria seguido na direcção da música.
Arrisquei e virei à direita no cruzamento, dirigindo-me para o cimo da colina que conhecia como a palma das minhas mãos. Não existiam árvores que ajudassem a traçar o caminho, apenas arbustos espinhosos à altura do joelho, escondidos nas sombras dos rochedos. À medida que ia subindo a encosta, o som de música aumentava progressivamente. Dava até mesmo para distinguir claramente a melodia. Havia nela uma espécie de corporalidade festiva. Imaginei um banquete a decorrer na aldeia situada lá no cimo de tudo. Depois lembrei-me de ter visto ao princípio do dia, nas imediações do porto, um cortejo de um casamento. O copo-d'água devia estar a decorrer, prolongando-se pela noite dentro.
E de repente - sem aviso prévio - desapareci. Talvez tivesse sido por efeito da Lua, ou então por causa daquela música da meia-noite. A cada passo que dava, sentia que me enterrava mais nas areias movediças onde a minha identidade se desvanecia; precisamente o mesmo sentimento que se apoderara de mim no avião, ao sobrevoar o Egipto. O eu que se passeava ao luar não era eu. Não era eu, mas sim um figurante, feito de barro. Passei a mão pelo rosto, mas deixara de ser o meu rosto. E tão-pouco era a minha mão. O coração batia com força no peito, obrigando a bombear mais sangue a cada batida, até atingir um ritmo frenético. Aquele corpo não passava de um boneco de barro, um boneco de vodu ao qual um feiticeiro insuflara um sopro fugaz de vida. A centelha vital extinguira-se. Os meus músculos temporários eram falsos, limitavam-se a fingir os movimentos. Era uma marioneta, destinada a ser oferecida em sacrifício.
Nesse caso, onde estaria o meu verdadeiro eu? De repente, fez-se ouvir a voz de Izumi, vinda do nada. "O teu verdadeiro eu já não existe, foi comido pelos gatos. Enquanto aqui te encontravas, aqueles gatos esfaimados devoraram-te todo. Só deixaram os ossos."
Olhei à minha volta. Tinha forçosamente de ser fruto da minha imaginação. Em redor, só se via o terreno rochoso, os arbustos pequenos e as sombras pequenas, em proporção. A voz tinha de estar na minha cabeça.
"Deixa de alimentar pensamentos tão negros", ordenei a mim próprio. Como que procurando escapar a uma grande onda, agarrei-me a uma rocha no fundo do mar e sustive a respiração. A onda por certo acabaria por passar. "Estás apenas cansado", disse para comigo, "e com os nervos à flor da pele. Agarra-te ao que é real. O quê, não importa - agarra-te a qualquer coisa de palpável." Meti a mão no bolso e toquei nas moedas. Ao contacto com a minha mão transpirada, ficaram húmidas.
Esforcei-me desesperadamente por pensar em qualquer coisa. O meu apartamento cheio de sol em Unoki. A colecção de discos, que tinha deixado para trás. A minha pequena e preciosa colecção de discos de jazz. Tornara-me especialista em pianistas brancos das décadas de 1950 e 1960. Lennie Tristano, Al Haig, Claude Williamson, Lou Levy, Russ Freeman. A maior parte dos álbuns não tinha sido reeditada, e gastara muito tempo e dinheiro para reunir aquele acervo. Sem descanso, fizera a ronda das lojas de discos, passando a vida a trocar trinta e três rotações com outros que tais, coleccionadores como eu, construindo a pouco e pouco o meu arquivo. Nas mais das vezes, as actuações não eram aquilo a que se convencionou chamar "de primeira categoria". Para dizer a verdade, porém, eu adorava a atmosfera única, íntima, que esses velhos discos cobertos de pó sugeriam. O mundo seria um lugar bem menos excitante e estimulante se nele só houvesse lugar para as coisas de primeira categoria, não acham? Cada pormenor da capa de um desses discos tornou-se palpável - o toque que transmitiam, o peso de cada um deles na minha mão.
Mas agora tinham desaparecido, para todo o sempre. E eu próprio os tinha eliminado da minha vida. Não mais voltaria a ouvir aqueles discos.
Recordei o odor do tabaco, quando Izumi me beijara. O toque dos seus lábios e da sua língua. Fechei os olhos. Desejava tê-la ao meu lado. Queria que ela pegasse na minha mão, como acontecera na viagem de avião, algures por cima do Egipto, e assim ficasse para sempre.
A onda finalmente passou por cima de mim e afastou-se, levando consigo a música.
Sempre gostaria de saber se os músicos teriam deixado de tocar. Era possível que sim. Afinal, era quase uma da manhã. Ou, então, também podia dar-se o caso de nunca ter existido música, para começar. Também essa era uma possibilidade perfeitamente plausível. Na verdade, já não podia confiar nos meus ouvidos. Voltei a fechar os olhos e mergulhei fundo na minha consciência - tracei uma pequena e ponderada linha nessa escuridão. Mas continuava sem ouvir nada. Nem sequer o eco.
Quis ver as horas, mas não tinha o relógio posto. Com um suspiro, enfiei as mãos nos bolsos. Estava-me nas tintas para o tempo. Olhei para o céu. A Lua era uma esfera de pedra fria, cuja face tinha sido carcomida à implacável passagem do tempo. As sombras que se viam à sua superfície eram como cegas células cancerígenas querendo esticar os seus tenebrosos tentáculos. A luz da Lua brinca com a mente das pessoas, despoja-as da razão. Faz com que os gatos se evaporem. E fez desaparecer Izumi. Talvez tenha sido tudo cuidadosamente coreografado, a começar por aquela noite, há muito, muito tempo.
Espreguicei-me, estiquei os braços, os dedos das mãos. Deveria continuar a escalada, ou regressar pelo caminho por onde chegara até ali? Por onde andaria Izumi? Sem ela, como é que podia continuar a viver, sozinho, naquela ilha abandonada pelos deuses? Era ela a única coisa que mantinha unido o meu frágil e provisório eu.
Continuei sempre a subir. Uma vez que tinha subido até ali, bem que podia continuar até ao cimo. Teria sido mesmo música, o que me chegara aos ouvidos? Queria ver com os meus próprios olhos, por mais ténues que fossem os indícios. Pus-me lá em cima ao fim de cinco minutos. Para sul, ao fundo da encosta, via-se o mar, o porto e a cidade adormecida. A luz dispersa dos candeeiros públicos alumiava a estrada que passava junto à costa. O outro lado da montanha estava envolto em trevas. Onde me encontrava, ninguém imaginaria que até há bem pouco tempo aquele mesmo espaço fora palco de uma animada celebração.
Regressei a casa e bebi um copo de brandy. Tentei, em vão, adormecer outra vez. Até o céu começar a clarear, a leste, fiquei prisioneiro da Lua. Pus-me a imaginar os gatos, fechados dentro de um apartamento, condenados a morrer à fome. Eu - o meu verdadeiro eu - estava morto, e eles estavam vivos, devoravam a minha carne, trincavam o meu coração, abocanhavam o meu pénis. Prestando atenção, conseguia ouvir, lá muito ao longe, o ruído que faziam a lamber os miolos do meu cérebro. Tal como as bruxas de Macbeth, os três gatinhos rodeavam, com a ponta das suas línguas ásperas, o meu crânio fragmentado, lambendo com deleite cada prega do meu pensamento. E, à imagem e semelhança de uma nuvem de ar quente, a cada lambidela a minha consciência vacilava como uma chama e ia-se apagando.


A HISTÓRIA DE UMA "TIA POBRE"


Começou tudo numa tarde perfeitamente idílica de domingo - por sinal, a primeira tarde de Julho. No horizonte, deslizavam duas ou três pequenas nuvens brancas que mais pareciam sinais de pontuação colocados no céu com o maior cuidado. Sem obstáculos de qualquer espécie, a luz do Sol derramava-se em profusão sobre o mundo. Com o mês de Julho a reinar em toda a sua glória, até mesmo a prata amachucada de uma tablete de chocolate abandonada sobre a relva cintilava orgulhosamente, como um cristal lendário no fundo de um lago. Olhando para a cena tempo bastante, uma pessoa conseguia ver que o Sol abrigava um outro tipo de luz, ligeiramente diferente, como uma caixa chinesa que sai dentro de outra. Essa luz interior brilhava como mil e um grãos de pólen - grãos macios e opacos, flutuando ao sabor do ar, quase imperceptivelmente, até por fim descer e assentar sobre a face da Terra.
No caminho de regresso a casa depois de um passeio de domingo, fizemos uma paragem na praça diante da galeria de pintura. Sentados à beira do lago, a minha companheira e eu admirámos por cima da água os dois unicórnios de bronze que havia na outra margem. A longa estação das chuvas tinha chegado ao fim. Uma fresca brisa de Verão agitava as folhas dos carvalhos, fazendo aparecer pequenas rugas aqui e ali sobre a superfície das águas pouco profundas. O tempo corria ao sabor da brisa: ora estava quieto e em sossego, ora agitado, ora quieto, ora agitado. Algumas latas de refrigerantes podiam ver-se à transparência das águas límpidas do lago. Aos meus olhos pareciam as ruínas inundadas de uma qualquer cidade antiga perdida. Mesmo à nossa frente passou uma equipa de softball, equipada a rigor, um rapaz a andar de bicicleta, um velho que andava a passear o cão, um cidadão estrangeiro com calções de corrida. A aragem trouxe até nós pedaços de uma música que saía de um rádio portátil pousado em cima da relva: uma xaroposa canção pop que falava de amores perdidos ou a caminho disso. Pareceu-me reconhecer a melodia, mas fiquei na dúvida. Podia dar-se o caso de ser apenas parecida com uma outra que eu conhecia. Apenas com um ouvido à escuta, sentia o sol derramar-se nos meus braços - sem um som, lenta e suavemente. De vez em quando, esticava os braços à frente do corpo e espreguiçava-me, depois voltava à posição inicial. O Verão tinha chegado.
Por que carga de água haveria uma tia pobre, no meio daquela tarde de domingo, de ter invadido e enternecido o meu coração, escapa-me por completo. Perto de mim não se via nenhuma pobre tia, nem qualquer outra coisa que me fizesse crer na sua existência. E, contudo, a verdade é que ela apareceu diante de mim, vinda do nada, e desapareceu logo a seguir. Quanto muito, tinha-se apoderado do meu coração por um milionésimo de segundo, antes de ir à vida, deixando no seu lugar uma estranha sensação de vazio humano. Parecia que alguém se tinha evolado por uma janela e foi um ar que lhe deu. Corremos até à janela, metemos a cabeça de fora, mas já não se encontrava ninguém à vista.
Uma tia pobre?
Passeei os olhos em volta, depois levantei a cabeça e olhei para cima, na direcção do céu. Tal como tinha aparecido, desaparecera. Como acontece com a trajectória invisível de uma bala, as palavras tinham sido absorvidas por aquele início de tarde de domingo. Os começos são sempre assim. Num determinado momento está lá tudo, no minuto seguinte foi tudo ao ar.
Virando-me para a minha amiga, experimentei traduzir os pensamentos.
- Gostaria de escrever sobre uma tia pobre. - Acrescente-se que sou uma daquelas pessoas que sente necessidade de escrever histórias.
- Uma tia pobre?
Ela pareceu ficar um nadinha surpreendida e lançou-me um olhar inquiridor, como se estivesse a tentar captar o sentido das minhas palavras.
- Porquê uma tia pobre?
Nem eu próprio sabia a resposta. Por qualquer razão, as coisas que captam a minha atenção e despertam os meus sentidos são sempre coisas que escapam à minha compreensão.
Fiquei calado durante um tempo. Entretive-me a passar o dedo pelo vazio feito de ausência humana que em mim ficara.
- Pergunto-me se alguém gostaria de ler uma história assim... - disse ela.
-Tens razão - retorqui -, de facto pode não ser uma leitura especialmente interessante.
- Nesse caso, porquê escrever acerca disso?
-Vamos lá ver se consigo explicar-me direito - disse eu. - Para explicar as razões que me levam a desejar escrever uma história sobre uma tia pobre, teria de escrever primeiro a história propriamente dita. Porém, uma vez escrita, deixaria de ser preciso explicar a razão que me levou a escrevê-la, não é verdade?
Ela sorriu, tirou do bolso um cigarro todo amassado e acendeu-o. Maltratava de tal maneira os cigarros que às vezes nem sequer ficavam em condições de os acender. Aquele deu para acender.
- A propósito - referiu ela. - Por acaso tens alguma tia pobre na tua família?
- Nem uma para amostra - respondi.
- Bom, tenho eu. Uma, para ser concreta. Uma pobre tia digna desse nome. Até cheguei a morar com ela durante alguns anos.
Olhei-a nos olhos. O seu olhar tinha a expressão calma de sempre.
- Mas a verdade é que não tenho qualquer desejo de escrever acerca dela - acrescentou. - Nem uma palavra que seja.
O rádio portátil começou a passar outra canção. A música era parecida com a primeira, mas desta vez não fui capaz de a identificar.
-Tu, que não tens uma tia pobre na tua família - continuou ela -, ainda assim queres a todo o custo escrever uma história sobre uma Pobre tia. Ao passo que eu, que tenho uma pobre tia na vida real, não quero escrever sobre ela. Uma situação um tanto ou quanto bizarra, não te parece?
Fiz que sim.
- Porque será?
Ela limitou-se a inclinar ligeiramente a cabeça. De costas para mim, entretinha-se a deixar que a água corresse entre os seus dedos. Era como se as minhas perguntas percorressem os seus dedos até serem conduzidas à tal cidade em ruínas no fundo do mar. Ainda por lá deve estar, de certeza. Tenho a certeza de que o meu ponto de interrogação por lá se encontra, cintilando como um pedaço de metal. Tanto quanto sei, azucrinando as latas de Coca-Cola espalhadas à volta com a mesma pergunta.
Porque será? Porque será? Porque será?
Com a ponta do cigarro amarfanhado, ela deixou cair a cinza no chão.
- Para ser sincera - adiantou -, há muitas coisas que gostaria de dizer acerca da minha tia, mas não consigo encontrar as palavras certas. Só sei que não sou capaz... pelo facto de conhecer uma pobre tia de verdade. - Ela mordeu o lábio. - É complicado... muito mais complicado do que possas imaginar.
Tornei a dirigir o olhar para os unicórnios de bronze. Tinham os chifres em riste, em jeito de protesto contra o facto de a maré do tempo os ter deixado para trás, abandonados à sua sorte. A minha companheira limpou os dedos à bainha da blusa, depois tornou a secar a mão, antes de se virar para mim:
- Vais esforçar-te por escrever acerca de uma pobre tia - asseverou ela. - Vais encarar isso como uma missão. No meu entender, tomar a responsabilidade de qualquer coisa significa oferecer-lhe a salvação. No entanto, tenho as minhas dúvidas de que estejas em posição de alcançar o que te propões. Quer dizer, a começar pelo facto de nem sequer existir uma pobre tia a que possas chamar tua.
Soltei um profundo suspiro. -Tenho muita pena - disse ela.
- Não tem importância - disse eu. - És capaz de ter razão.
E tinha. Eu nem sequer tinha uma pobre tia a que pudesse chamar minha.
Até parecia o estribilho de uma canção.
Se calhar, o leitor também não tem uma tia pobre na família. Nesse caso, temos alguma coisa em comum. Bem sei que é algo estranho para partilhar - como uma poça de água da chuva numa manhã tranquila.
Ainda assim, é provável que já tenham posto a vista em cima de uma pobre velha no casamento de alguém. Tal como em todas as estantes existe sempre um calhamaço à espera de ser lido e em todos os armários se esconde uma camisa há muito não usada, também todo o copo-d'água de um casamento que se preze conta com a presença de uma tia pobrezinha.
Quase ninguém se dá ao trabalho de a apresentar, e quase ninguém mete conversa com ela. Ninguém lhe pede que faça um discurso. Encontra-se sentada à mesa, no lugar que lhe foi destinado, mas limita-se a estar para ali - como uma garrafa vazia de leite. Devagar, mergulhando tristemente a colher no consommé, que bebe em triste golinhos. Come a salada com o garfo de peixe. Não consegue engolir o feijão-verde todo. E é a única pessoa sem colher de sobremesa quando chega a hora do sorvete. Com sorte, o presente que ofereceu aos noivos acabará perdido no fundo do armário. Mas se a sorte tombar para o outro lado, será o presente dado por ela que deitarão fora na hora da despedida, juntamente com aquele objecto obscuro e poeirento que ninguém sabe o que é, de quem foi e toda a tralha do género.
É um facto que a fotografia dela está ali, sempre que se abre o álbum do casamento. Contudo, mostra-se tão animada como um corpo acabado de resgatar das águas.
"Querido, quem é esta senhora aqui, na segunda fila, com óculos?"
"Ninguém que interesse", responde o jovem marido. "Apenas uma pobre tia que eu tenho na família."
Nem sequer nome tem. É apenas uma pobre tia. Nada mais.
Todos os nomes se esbatem com o tempo. Tão certo como o destino. Agora, o que existem são muitas maneiras de isso acontecer. Primeiro, temos aqueles cujo nome deixa de existir a partir do momento em que morrem. Esses são os fáceis. Cabe-nos chorar a sua morte: "O rio secou, os peixes morreram...", ou então: "As chamas cobriram os céus, incendiando a floresta e matando todas as aves". Seguem-se aqueles que se apagam como um televisor muito usado, deixando ver uma espécie de fantasmas tremeluzentes por cima da imagem, até que um dia também isso se desvanece e o televisor dá o berro. Não se pode dizer que seja mau de todo, para os que se encontram nessa situação: trata-se de nomes que fazem lembrar as pegadas de um elefante indiano que anda perdido. Decididamente, não é mau de todo. E, finalmente, temos aqueles nomes que se varrem da nossa memória ainda antes da hora da morte, e a essa categoria pertence os das pobres tias.
Confesso que volta e meia eu próprio me encaixo nesta última categoria dos sem-nome que é o das pobres tias. Costuma acontecer no meio da confusão vivida no terminal de uma estação. De repente, deixo de saber para onde vou, o meu nome e morada, tudo desaparece da minha cabeça. O que vale é que nunca dura muito tempo; cinco ou dez segundos no máximo.
E depois temos outro caso, quando alguém diz: "Por mais que queira, não me consigo lembrar do seu nome."
"Deixe estar, não se preocupe. O nome não tem grande importância."
Apontando para a boca repetidas vezes, diz o outro: "Está mesmo aqui, na ponta da língua, palavra de honra..." Sinto-me como se estivesse enterrado no chão, apenas com metade do pé esquerdo de fora. As pessoas tropeçam e desatam a pedir desculpa. "Desculpe, está mesmo aqui, debaixo da língua..."
Muito bem, assim sendo, para onde vão todos esses nomes perdidos? A probabilidade de sobreviverem nos labirintos da grande cidade revela-se extremamente reduzida. Alguns são atropelados por camiões enormes, outros há que morrem a um canto, à beira da sarjeta, por não terem dinheiro para tomar o autocarro, e outros ainda escolhem afundar-se, com os bolsos pesados, carregados de orgulho, no fundo de um rio.
Mesmo assim, um ou outro poderão ter sobrevivido e encontrado o caminho de volta para a cidade dos nomes perdidos, onde erigiram uma pequena e pacata comunidade. Uma cidadezinha à entrada da qual existirá por certo um letreiro a dizer:
ENTRADA PERMITIDA APENAS A FUNCIONÁRIOS EM EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
Escusado será dizer que todo aquele que ali entrar sem ser por motivo de negócio receberá, naturalmente, a devida puniçãozinha.
Pode acontecer que a tal pequena punição seja a que me foi reservada, ao ver-me amarrado a uma pobre tia.
A primeira vez que dei por ela foi em meados de Agosto. Não que tivesse acontecido alguma coisa de anormal que me pudesse ter alertado para a sua presença. Houve um dia em que simplesmente dei por mim com uma pobre tia às costas.
Não se pode dizer que fosse uma sensação desagradável. A tia nem sequer era especialmente pesada e também não despejava mau hálito por cima dos meus ombros. Limitava-se a estar ali, às minhas costas, como uma sombra esbatida. As pessoas viam-se obrigadas a olhar com mais atenção para dar pela presença dela. Nos primeiros dois ou três dias, os gatos que vivem na minha casa olharam para ela com uma certa desconfiança, mas, assim que perceberam que a pobre tiazinha não tinha pretensões a conquistar o seu território, habituaram-se a ela.
Alguns dos meus amigos mostraram-se inquietos, verdade seja dita. Por vezes, acontecia estarmos todos sentados à mesa a tomar um copo e ela aparecer atrás de mim e pôr-se a espreitar os meus amigos por cima do meu ombro.
- Deixa-me nervoso - lembro-me de um deles confessar na altura.
- Não deixes que isso te afecte - disse eu. - Ela é inofensiva. não faz mal a uma mosca.
- Bem sei, mas, o que é que tu queres, deprime-me.
- Nesse caso tenta não olhar para lá.
- Pode ser que tenhas razão. - Depois suspirou. - Onde é que foste arranjar alguém que anda sempre atrelado a ti?
- Não se pode dizer que tenha ido a uma determinada parte. Limitei-me a pensar em certas coisas. Só isso.
Ele acenou com a cabeça e suspirou de novo.
- Estou a imaginar. Prende-se com a tua maneira de ser. Foste sempre assim.
- A-hã.
Passamos as horas seguintes a emborcar uísque atrás de uísque, sem grande entusiasmo.
- Diz-me uma coisa - perguntei eu. - O que é que ela tem que te deprime assim tanto?
- Fico com a sensação de que a minha mãe anda a vigiar-me.
- Como é?
-Ainda perguntas? O mais provável é teres a minha mãe à perna.
A julgar pela opinião de uma quantidade de pessoas (uma vez que eu próprio não a conseguia ver), a tia pobrezinha que eu trazia atracada às costas não possuía uma forma constante: pelos vistos, tratava-se de uma presença etérea que mudava de forma consoante as imagens mentais de cada observador.
Aos olhos de um amigo, tratava-se da sua cadela, de raça Akita(1), que tinha morrido no Outono anterior de cancro no esófago.
-Imagino que ela estivesse a dar as últimas, na medida em que já era entradota, com os seus quinze anos. O que não impede que tenha tido uma morte pavorosa, a pobrezinha.
- Cancro do esófago, dizes tu?
- Sim. É extremamente doloroso. Tudo menos isso. Passava a vida a ganir, apesar de já quase ter perdido a voz. Queria tê-la mandado levar uma injecção para morrer durante o sono, mas a minha mãe não deixou.
- Porquê?
- Sei lá. Provavelmente porque ficaria com remorsos. Mantivemo-la viva durante dois meses, graças a um tubo de alimentação. Ficou sempre lá fora, num barracão que existe no alpendre. Homem, que fedor.

*1. Reconhecido como património nacional do Japão. Excelente cão de guarda, manso e leal, na era Edo apenas os nobres podiam ser donos de um, enquanto na era Meiji era usado como cão de combate. Acerca deles contam-se muitas lendas. (N. da T.)

Durante algum tempo ficou em silêncio.
- Não era nada do outro mundo, como cadela. Parecia que tinha medo da própria sombra. Ladrava a toda a gente que passava por perto. Um animal que, a bem dizer, não servia para nada. Barulhento, coberto de sarna...
Concordei com a cabeça.
- Melhor seria ter nascido cigarra. Sempre podia ter-lhe arrancado a cabeça e ninguém se importaria. Além de que não saberia o que era ter cancro no esófago.
Mas ali estava ela, ainda e sempre às minhas costas, uma cadela com um tubo de plástico enfiado na boca.
Para outro, agente imobiliário de profissão, era a sua velha professora da primária.
- Deve ter sido por volta de 1950, no primeiro ano da guerra da Coreia - referiu ele, usando uma toalha espessa para limpar a transpiração do rosto. - Tive-a como professora dois anos seguidos. Tornar a vê-la faz-me sentir uma certa nostalgia, é como voltar ao passado. Não que eu tivesse saudades dela, atenção. Pode até dizer-se que me tinha esquecido que ela existia.
A julgar pela chávena de chá de cevada frio que me ofereceu, até parecia que eu era da família da tal professora que ele apanhara nos primeiros anos de escola.
- Era um caso bicudo, coitada, agora que penso nisso. Tinha casado há pouco tempo quando o marido foi mobilizado. Ele embarcou num navio de transporte de tropas e bum! Deve ter sido em 1943. Depois disso, ela continuou sempre a ser professora. Lembro-me de que ficou com queimaduras graves nos ataques aéreos do ano seguinte, em 44. Recebeu queimaduras graves no lado esquerdo, da cara até ao braço. - Ao dizer aquilo, ele descreveu com a mão um arco que ia da face ao braço esquerdo. Em seguida, bebeu de um só gole o chá que tinha na chávena e enxugou uma vez mais o suor. - Pobre criatura. Deve ter sido bonita antes de lhe acontecer aquilo. Além de lhe ter alterado a maneira de ser, segundo dizem. Se ainda estiver viva, deve ter os seus sessenta anos. Hmmm... 1950, não foi o que eu disse?
E foi desta forma que toda a espécie de listas de lugares marcados e de mapas das redondezas se materializaram. As minhas costas tornaram-se o centro do cada vez mais alargado círculo em torno da pobre tia.
Ao mesmo tempo, porém, verifiquei que os meus amigos, um a um, se afastavam de mim. À imagem e semelhança de um pente que começa a perder dentes.
"Ele não é mau tipo", diziam eles acerca da minha pessoa, "sou eu que não quero ver-me obrigado a encontrar pela frente a minha deprimente mãe (ou o velho cão que morreu de cancro no esófago ou a professora com as marcas da queimadura) sempre que der de caras com ele."
Começava a sentir-me cada vez mais como se estivesse na cadeira do dentista - ninguém me odiava, mas todos evitavam a minha companhia. Quando encontrava por mero acaso alguma pessoa amiga na rua, ela logo tratava de arranjar uma desculpa para se pôr a andar o mais depressa possível. "Não sei explicar bem", confidenciou-me uma rapariga muito honestamente, não sem uma certa dificuldade, "mas nos últimos tempos torna-se mais difícil para mim conviver contigo. Não me importava tanto se andasses antes com um bengaleiro às costas ou coisa que o valha..."
Um bengaleiro.
"Ora, que se danem", dizia eu com os meus botões. "Assim como assim, nunca fui um animal social por excelência. E de certeza que não ia querer andar com um bengaleiro às costas o resto da vida."
Ao contrário dos meus amigos, que evitavam a minha presença, os meios de comunicação demonstravam por mim um interesse desmedido. Sobretudo as revistas semanais. Dia sim, dia não, aparecia alguém para me fotografar, a mim e à pobre tia, manifestando o seu desagrado quando a imagem dela não ficava nítida e bombardeando-me com perguntas absurdas. Pela minha parte, confesso que estava sempre à espera que a minha cooperação com as revistas daquele género conduzisse a uma nova descoberta ou permitisse mais desenvolvimentos no que à pobre tia dizia respeito, mas tal não se verificou. A única coisa que apanhei foi uma seca monumental.
Um dia, cheguei a aparecer no programa da manhã. Tiraram-me da cama às seis da matina, arrastaram-me até ao estúdio de televisão e deram-me a beber doses de um café intragável. À minha volta, só via toda a espécie de pessoas inconcebíveis a correr de um lado para o outro, ocupadas com tarefas não menos inconcebíveis. Ainda pensei em escapulir-me dali como quem não quer a coisa, mas, antes que pudesse passar da teoria à prática, chamaram-me e disseram que era a minha vez. Quando as câmaras estavam desligadas, o apresentador do talk show mostrava-se um tipo petulante, mal-humorado e arrogante até dizer chega, que só sabia berrar com toda a gente. Porém, mal a luzinha vermelha da câmara se acendia, revelava-se todo sorrisos, simpatia e inteligência, transformando-se no exemplo acabado de perfeito cavalheiro de meia-idade e trato cordial.
"E agora está na hora de darmos início à nossa emissão diária - "As coisas que o mundo tem para nos oferecer", anunciou ele para a câmara. "Hoje temos connosco em estúdio o Sr. ..., que descobriu de um dia para o outro que acartava com uma pobre tia às costas. Não se pode dizer que haja muita gente com o mesmo problema, daí que eu gostasse de começar por perguntar ao nosso entrevistado como é que isso aconteceu e quais as dificuldades que ele tem de enfrentar." Virando-se para mim, continuou: "É muito incomodativo andar com uma pobre tia às costas?"
"Não", respondi eu, "de facto não se pode dizer que seja incomodativo nem difícil. Ela não é pesada e, além disso, não precisa de ser alimentada."
"Portanto, nada de dores nas costas?" "Não, nada disso."
"Quando é que deu por ela aí em cima?" Contei resumidamente a minha tarde passada no lago com os unicórnios de bronze, mas o moderador não deu mostras de perceber a mensagem.
"Quer então dizer", observou ele, pigarreando, "que a pobre tia se encontrava a vaguear pelas imediações desse tal lago, onde o meu amigo estava sentado, e apropriou-se das suas costas? É isso?"
Não, disse eu com a cabeça, não era nada daquilo. Ó valha-me Deus, quem me mandara a mim meter-me naquelas andanças? Tudo o que aquela gente queria era piadas fáceis ou histórias horripilantes. Não sabia quanto tempo mais conseguiria aguentar.
"A tia pobre não é nenhum fantasma", esforcei-me por explicar. "Ela não anda por aí a deambular, oculta na sombra, à espera de se "apoderar" do corpo de alguém. A pobre tia é apenas uma força de expressão", expliquei eu. "Uma entidade abstracta." Ninguém disse nada. Não tinha outro remédio senão tentar ser mais concreto.
"As palavras são como eléctrodos que se encontram ligados à cabeça. Se uma pessoa enviar sempre o mesmo estímulo, gera-se uma determinada resposta e, por seu turno, assiste-se a uma reacção. Claro está que cada indivíduo tem uma resposta diferente e, no meu caso, a resposta funciona como uma espécie de existência independente. É o mesmo que sentir a língua inchar e ficar intumescida passando a formar um volume dentro da boca. Isto para dizer que o que eu tenho às costas é apenas a expressão "pobre tia" - precisamente essas palavras, sem significado nem forma. Se eu tivesse de lhe pôr um rótulo, diria que se trata de um "sinal conceptual", um conceito ou uma coisa do género."
O apresentador do programa apresentava uma expressão algo confusa, para não dizer aflita.
"Diz que não tem forma nem conteúdo", observou ele, "mas a verdade é que podemos nitidamente ver... qualquer coisa... uma imagem real nas suas costas. Imagem essa que desperta em cada um de nós um significado..." Encolhi os ombros.
"Claro", disse eu, "é isso que acontece com os sinais." "Nesse caso", interrompeu a jovem assistente do meu anfitrião, na esperança de quebrar o clima de impasse que ameaçava o desenrolar do programa, "podia muito bem pegar nessa imagem, ou nesse ser ou lá o que é, e fazê-la desaparecer, se assim quisesse."
"Não, isso não é possível", disse eu. "A partir do momento em que uma coisa ganha consistência e se materializa, continuará sempre a existir independentemente da minha vontade. Acontece o mesmo com a memória. Por exemplo, todos temos uma ou outra recordação que preferíamos não ter, mas que não conseguimos esquecer. É assim que as coisas se passam."
Sem se dar por convencida, ela prosseguiu: "Esse processo de que falou, que consiste em transformar uma palavra num símbolo, acha que é uma coisa que está ao meu alcance?"
"Não lhe sei dizer como é que a coisa funciona, mas, em princípio, acredito que sim, que existe essa possibilidade."
Depois foi a vez de o apresentador meter a sua colherada.
"Imaginando que eu me punha a repetir a palavra "ideia" ao longo do dia, a configuração de "ideia" poderia a dada altura colar-se às minhas costas, é isso?"
"Pelo menos, em princípio, existe essa possibilidade", ouvi-me repetir mecanicamente.
"Quer então dizer que a palavra "ideia" passaria a ser um símbolo conceptual."
"Exactamente", respondi eu, mas as luzes agressivas e o ambiente abafado do estúdio começavam a dar-me dores de cabeça. As vozes penetrantes dos outros convidados intervenientes no programa só contribuíam para tornar a dor ainda mais aguda.
"E qual poderia ser o aspecto de uma "ideia"?", quis saber o moderador do programa, despertando o riso na plateia.
Respondi que não sabia. Não me estava nada a apetecer pensar no assunto. A existência de uma pobre tia que possuía uma existência separada já me dava preocupações de sobra. Nenhuma das pessoas ali presentes queria saber disso para nada. A única coisa que lhes interessava era manter acesa a fofoquice até ao intervalo seguinte.
O mundo inteiro é uma farsa, escusado será dizer. Quem é que consegue escapar a isso? Desde o brilho artificial de um estúdio de televisão até à escura e sombria cabana de um eremita, a raiz do mal é a mesma. E eu, condenado a passear com a minha pobre tia às costas por este mundo de loucos, era o maior palhaço de todos. Se calhar, quem tinha razão era a rapariga: quem sabe se não ficaria melhor com um bengaleiro em cima das costas. Talvez então as pessoas me acolhessem de braços abertos no seu círculo. Era uma questão de pintar o bengaleiro de outra cor duas vezes por mês e ir a todas as festas.
"Fantástico! O varão do teu bengaleiro esta semana é cor-de-rosa", parece-me que já estou a ouvir alguém dizer.
"Elementar", respondo eu, "na próxima semana vou experimentar no tradicional verde-britânico."
Existe até mesmo a possibilidade de as raparigas que por aí andam estarem ansiosas de se meter na cama com um rapaz que anda com um bengaleiro rosa às costas.
Infelizmente, porém, o que eu tinha nas minhas costas não era nenhum bengaleiro mas sim uma pobre tia. À medida que o tempo passava, o interesse do mundo na minha pessoa e na minha pobre tia esmoreceu. Ultimamente ninguém queria saber das pobres tias: nisso a minha companheira tinha razão. Uma vez esgotada a curiosidade inicial, tudo o que ficava era um silêncio pesado como no fundo do mar. Tão profundo como se a pobre tia e eu fôssemos apenas um.
-Vi-te na televisão - disse a minha amiga.
Encontrávamo-nos de novo sentados à beira do lago. Não nos víamos há coisa de três meses. Estávamos no princípio do Outono. O tempo passara a correr. Nunca tínhamos ficado tanto tempo sem nos vermos.
- Estavas com um ar bastante cansado.
- Sentia-me completamente esgotado.
- Nem parecias tu.
Concordei com a cabeça. De facto, nem parecia eu.
Ela estava sempre a pôr e a tirar a camisola sobre os joelhos. Põe e tira. A dobrar e a desdobrar. Como se estivesse a fazer o tempo andar para trás e para a frente.
- Pelos vistos, conseguiste finalmente arranjar a tua pobre tia. ri - Parece que sim.
- E qual é a sensação?
- Sinto-me como uma melancia que caiu a um poço.
Ela sorriu, sem deixar de afagar a camisola fofa e impecavelmente dobrada sobre os joelhos, como se estivesse a fazer festas a um gato.
- E agora já a compreendes melhor?
- Um bocadinho - respondi. - Pelo menos, acho que sim.
- E inspirou-te a escrever alguma coisa acerca disso?
- Não. - Abanei a cabeça ao de leve. - Rigorosamente nada. Não sinto desejo de escrever. Se calhar nunca serei capaz de deitar mãos à obra e escrever.
- Desistente crónico.
- Foste tu que um dia me disseste que a minha escrita nunca serviria para salvar o mundo ou o que quer que fosse. Nesse caso, que sentido faz escrever acerca da pobre tia?
Ela mordeu o lábio inferior e ficou calada. - Tenho uma ideia. Faz-me perguntas. Talvez isso ajude.
- Na qualidade de especialista na pobre tia?
- A-hã. - Ela sorriu. -Vá lá, pergunta. Olha que podes não voltar nunca mais a apanhar-me na disposição de responder a perguntas acerca de tias pobrezinhas.
Demorei algum tempo, sem saber por que ponta pegar.
- As vezes pergunto a mim mesmo como é que se chega a pobre tia. Será que já se nasce assim? Ou será que uma pessoa tem de preencher certas "condições" - como, por exemplo, ser preciso que um insecto gigante passe por uma determinada esquina, arrebanhe os que por ali passam na altura e os transforme em pobres tias?
Ela acenou várias vezes com a cabeça, como que a dizer que a minha pergunta era francamente boa.
- As duas - respondeu. - É tudo a mesma coisa.
- A mesma coisa?
- Exacto. Repara, uma pobre tia pode ter uma infância e uma juventude típicas de "pobre tia". Ou não. Para o caso, vai dar ao mesmo. No mundo existem milhões de razões que explicam outros tantos resultados. Mil e uma razões para viver e mil e uma razões para morrer. Mil e uma razões para apresentar razões. Explicações desse género, há-as a dar com um pau. Basta um telefonema e vão entregá-las ao domicílio, por tuta-e-meia. No entanto, creio que não é disso que precisas, pois não?
- Não - disse eu. - Acho que não.
- Ela existe. Mais nada. Tens de admitir esse facto e aceitá-lo. As razões ou as causas não vêm ao caso. A pobre tia existe, e é quanto basta. É isso que significa ser uma pobre tia. A sua própria existência é a sua razão de ser. Tal como acontece connosco. Estamos aqui e agora, sem que exista alguma razão ou alguma causa especial para que isso aconteça.
Ficámos muito tempo ali sentados, na borda do lago, sem que nenhum de nós dissesse alguma coisa ou se mexesse.
A clara luz outonal projectava uma sombra suave no perfil dela.
- E então - disse ela. - Não me perguntas o que vejo eu nas tuas costas?
- O que tu vês nas minhas costas?
- Rigorosamente nada - afirmou ela com um sorriso. - Só tenho olhos para ti.
- Obrigado - disse eu.
Obviamente que o tempo se encarrega de deitar abaixo todos os homens, sem excepção - tal como o cocheiro espancou a sua velha montada, até abandonar o velho cavalo meio-morto à beira da estrada. Na verdade, porém, as tareias que apanhamos caracterizam-se pela sua extrema benevolência. Com efeito, poucos de nós chegam a perceber que estão a ser fustigados.
No caso de uma pobre tia, porém, conseguimos ver diante dos nossos olhos a tirania do tempo, como se estivéssemos a espreitar pela janela de um aquário. Naquela estreita cela de vidro, o tempo foi comprimindo a pobre tia como se ela fosse uma laranja, até à última gota de sumo. O que me atrai nela é a sua integridade, a sua absoluta perfeição interior.
Acreditem - até à última gota!
Sim, a perfeição. É nela que reside o cerne da existência da pobre tia, como acontece a um corpo sem vida encerrado dentro de um glaciar - um magnífico glaciar feito de gelo que parece aço inoxidável. Seriam precisos dez mil anos de luz solar para derreter um semelhante glaciar. Mas como é sabido que não existe nenhuma pobre tia que viva dez mil anos, ela está condenada a viver paredes-meias com a sua perfeição, a morrer em toda a sua perfeição e a ser enterrada em toda a sua perfeição.
A perfeição e a pobre tia jazem debaixo da terra.
Passam entretanto dez mil anos. Nessa altura, quem sabe, pode muito bem acontecer que o glaciar se derreta no meio das trevas e perfeição irrompa do seu túmulo e se revele em toda a sua plenitude à superfície da Terra. Tudo à face do mundo conhece então uma completa mudança, e se, por mero acaso, a cerimónia que dá pelo nome de "casamento" ainda existir, poderá acontecer que a perfeição deixada para trás pela pobre tia seja convidada a tomar aí o seu lugar. O mais certo é que se sente à mesa e coma a refeição até ao fim comportando-se irrepreensivelmente, sendo de imaginar que se levante a fim de proferir sinceras palavras de felicitações.
Não se preocupem. Estes acontecimentos não deverão ocorrer antes do ano 11 980.
Chegado o fim do Outono, a minha tia desamparou-me as costas. Devido a um trabalho que ainda me faltava entregar antes do Inverno, meti-me no comboio na companhia da minha pobre tia. Era de tarde e, como sempre, o comboio suburbano ia praticamente vazio. Tratava-se da minha primeira viagem para fora da cidade nos últimos tempos, de modo que me deu especial gozo sentar-me tranquilamente à janela a ver desfilar os campos. O ar estava frio e límpido, estimulante. As colinas de um verde quase demasiado vivo para ser natural recortavam-se na paisagem, e aqui e acolá, ao longo da via-férrea, viam-se árvores carregadinhas de bagas vermelhas.
Sentada no banco à minha frente na viagem de regresso estavam uma mulher magra dos seus trinta e tal anos e os seus dois filhos. A criança mais velha, uma rapariga, ia sentada à esquerda da mãe e tinha um vestido de sarja azul-marinho que devia ser o uniforme da escola. Na cabeça levava posto um chapéu novo em folha, de feltro cinzento, com uma fita vermelha - por sinal, um bonito chapéu com aba estreita. À direita da mãe seguia viagem um rapazinho que devia andar pelos três anos. À primeira vista, não havia nada que chamasse a atenção na figura da mãe e dos seus filhos. Tinham uma cara nor-malíssima e estavam vestidos de forma extremamente vulgar. A mãe tinha em cima dos joelhos um grande pacote e mostrava sinais de cansaço - mas, vendo bem, todas as mães têm um aspecto cansado. Confesso que não dei por eles embarcarem, e depois devo ter olhado de relance para eles quando se sentaram à minha frente, após o que voltei a concentrar a minha atenção no livro de bolso que trazia comigo.
No entanto, passado pouco tempo, comecei a ouvir a menina, que tinha na voz uma urgência que era quase uma súplica.
Foi então que ouvi a mãe ralhar com ela: "Está quieta. Já te disse que deves ir sossegada quando andas de comboio." Tinha uma revista aberta em cima do pacote que levava ao colo e parecia pouco inclinada a interromper a leitura.
"Mas, Mamã, olha o que ele está a fazer ao meu chapéu", queixou-se a menininha. "Está calada."
A rapariguinha fez menção de falar, mas lá acabou por engolir as palavras e ficar calada. Separado dela pela mãe, o rapaz tinha nas mãos o chapéu que a irmã trouxera na cabeça e entretinha-se a brincar com ele e a amassá-lo. A menina esticou o braço e tentou agarrá-lo, mas ele lá se contorceu todo e conseguiu esquivar-se, decidido a não deixar que ela lhe deitasse a mão.
"Ele vai estragar-me o chapéu todo", disse a menina, à beira das lágrimas.
A mãe levantou os olhos da revista com um ar aborrecido e esboçou o gesto de pegar no chapéu, mas o rapazinho fincou nele as mãos com toda a força e recusou-se a entregá-lo. Às tantas, a mãe lá acabou por desistir. "Deixa-o brincar com ele um bocado", disse ela à filha. "Vais ver que não tarda a aborrecer-se." Apesar da expressão pouco convencida, a rapariga não protestou. Com os lábios cerrados, não tirava os olhos do chapéu que o irmão apertava nas mãos. A mãe continuou a ler a sua revista. Encorajado pela indiferença da mãe, o rapaz experimentou puxar pela fita vermelha. Era mais do que óbvio que fazia aquilo por pura maldade, sabendo perfeitamente que o gesto só serviria para fazer zangar ainda mais a irmã. Naquela altura até eu me sentia tentado a levantar-me do meu lugar a fim de lhe arrancar o chapéu das mãos.
A rapariga olhava fixamente para o irmão, muito calada, mas saltava aos olhos que tinha um plano. Foi então que se levantou de repente e pregou uma estalada com toda a força no irmão, aproveitando os momentos que se seguiram para lhe tirar o chapéu e regressar ao seu lugar. A rapariga fez tudo isto de uma forma tão rápida e despachada, que demorou o tempo de uma respiração profunda até a mãe e o irmão se darem conta do que acontecera. O rapaz deixou escapar um protesto, enquanto a mãe dava uma palmada no joelho nu da menina. Depois virou-se e fez uma festa na cara do rapazinho, para ver se o consolava, mas ele continuava sempre a lamuriar-se.
- Mas, Mamã, ele estava a estragar o meu chapéu - disse a menina.
- Não fales comigo - ripostou a mãe. - Não quero conversas com quem se porta tão mal no comboio.
A menina mordeu o lábio e baixou a cabeça, sem tirar os olhos do chapéu.
- Sai de ao pé de mim - ordenou a mãe. - Vai para ali. - Ao dizer aquilo, apontou para o lugar vago junto a mim.
A menina olhou para o outro lado, fingindo não ver a mãe de dedo em riste, mas a verdade é que o dedo continuava a apontar para a minha esquerda, como se estivesse petrificado no ar.
- Vamos - insistiu a mãe. - Já não és minha filha. Resignada ao seu destino, a menina levantou-se com o chapéu
e a pasta na mão, atravessou a coxia e veio sentar-se ao meu lado, cabisbaixa. Sempre com o chapéu ao colo, esforçava-se por alisar a aba com os seus dedos. "Quem teve a culpa foi ele", pensava ela de certeza, "que se preparava para rasgar a fita do meu chapéu." As lágrimas escorriam-lhe pela cara.
Era quase noite. Projectada pelos faróis dos carros, via-se uma claridade amarelada, como poeira sacudida ao esvoaçar das asas de uma lúgubre traça. Pairava no espaço à nossa volta, no meio do silêncio, condenada a ser inalada através da boca e do nariz dos passageiros. Fechei o livro. Com as mãos pousadas nos joelhos, deixei-me ficar ali a olhar para as mãos durante muito tempo. Desde há muito tempo que não me lembrava de observar as minhas mãos com tanta atenção. Àquela luz baça, pareciam escuras, quase sujas - dir-se-ia que não eram as minhas mãos. A visão encheu-me de tristeza: aquelas mãos nunca fariam ninguém feliz, nunca salvariam ninguém. Só me apetecia colocar a mão, num gesto reconfortante, sobre o ombro da rapariguinha que soluçava junto a mim, dizer-lhe que a razão estava do lado dela, que tinha feito muito bem em reaver o seu chapéu. Escusado será dizer que nunca lhe toquei nem cheguei à fala com ela. Só teria servido para a deixar ainda mais confusa e assustada. Ainda por cima, com aquelas mãos tão negras e sujas que tinha.
Quando saí do comboio, soprava um vento frio e invernoso. Chegava ao fim a estação das camisolas, começava a ser tempo dos espessos casacões de Inverno. A história dos casacos ocupou por momentos a minha atenção, enquanto pensava se deveria ou não comprar um novo. Mal acabei de descer as escadas e passar a cancela, apercebi-me de que a pobre tia tinha desaparecido das minhas costas.
Não fazia ideia do que tinha acontecido. Tal como aparecera, evaporara-se. Regressara às suas origens, fosse ela qual fosse, e eu voltara a ser eu.
Tinha a impressão de já não saber, de me ter transformado num novo ser, ainda que o meu novo eu fosse bastante parecido com o meu eu original. E agora, que fazer? Encontrava-me completamente sozinho, como um letreiro em branco no meio do deserto. Perdera por completo o sentido de orientação. Levei a mão ao bolso e enfiei todas as moedas trocadas que encontrei na ranhura do telefone público. Deixei tocar oito vezes. Ao nono toque, ela atendeu.
- Estava a dormir - queixou-se com voz de sono.
- Às seis da tarde?
- Passei a noite acordada, a trabalhar. Só acabei o que estava a fazer há duas horas.
- Desculpa, não era minha intenção acordar-te - disse eu. - Bem sei que te pode parecer estranho, mas só liguei para confirmar se estavas viva. Só isso. Mais nada.
Tive a sensação de que, do outro lado do fio, ela sorria.
- Obrigada, perguntar foi simpático da tua parte - disse ela. -Tudo em ordem. Estou viva e a trabalhar que nem um animal para ver se continuo viva. Por isso é que me sinto morta de cansaço. Chega? Ficaste mais descansado?
- Fiquei.
- Não sei se sabes - continuou ela, como se estivesse prestes a contar-me um grande segredo -, mas esta vida é muito dura.
- Bem sei - respondi. E, de facto, assim era. - Que tal vires jantar comigo?
- Desculpa, mas estou sem fome. A única coisa que tenho vontade de fazer é desligar e ir dormir.
- Não se pode dizer que esteja realmente com fome - confessei. - Só queria falar contigo. Por causa destas coisas todas que aconteceram.
No silêncio do outro lado da linha, eu sabia que ela estava a morder o lábio e a passar com o dedo mínimo pela sobrancelha.
- Agora não - disse ela, pronunciando destacadamente cada sílaba. - Mais tarde. Agora deixa-me dormir. Só um bocadinho. Depois de eu dormir um bocado, vais ver que tudo se compõe. Telefono quando acordar, pode ser?
- Tudo bem - disse eu. - Boa noite. Ela hesitou por instantes.
- Era alguma coisa urgente, aquilo que me querias dizer?
- Não, não - disse eu -, não era nada urgente. Pode ficar para mais tarde. - E era verdade, tínhamos muito tempo. Dez mil anos, vinte mil anos. Podia perfeitamente esperar.
- Boa noite - disse ela, e desligou. Durante um tempo, fiquei a olhar para o auscultador amarelo que tinha na mão, até que acabei por pousá-lo no descanso. Assim que fiz esse gesto, senti uma fome devoradora. Se não comesse, se não metesse qualquer coisa à boca, enlouquecia. Qualquer coisa, fosse o que fosse. Se alguém naquele preciso momento me desse que comer, punha-me de gatas no chão e até lhe lambia os dedos.
Exactamente, até capaz de lhes lamber os dedos seria. E a seguir adormeceria que nem uma pedra debaixo de forte temporal. Não acordaria nem que levasse com uma trancada em cima. Nem o pontapé mais violento conseguiria acordar-me. Dormiria profundamente durante dez mil anos.
Encostei-me ao telefone, esvaziei a cabeça e fechei os olhos. A seguir ouvi passos. Os passos de milhares de pessoas abateram-se sobre mim como uma onda. Continuam a andar, sempre em frente, cavalgando o tempo com raiva e determinação.
Por onde andaria a minha pobre tia? Sempre gostava de saber. Para onde teria regressado?
E eu, ao que teria voltado?
Imaginando que, daqui a dez mil anos, a sociedade fosse única e exclusivamente composta de tias pobres, será que estariam dispostas a abrir os portões da cidade a fim de me deixarem entrar? Nessa cidade, haveria um governo e uma câmara municipal eleitos pelas pobres tias e ao serviço das pobres tias, uma linha de eléctricos conduzidos por pobres tias e destinados a pobres tias, romances escritos por pobres tias para serem lidos por pobres tias.
Ou então, quem sabe, elas não precisariam de nada disso - nem do governo nem do eléctrico nem dos romances.
Se calhar, quereriam antes fabricar o seu próprio vinagre, guardado em garrafas gigantes e levarem uma vida tranquila fechadas lá dentro. Do ar, poder-se-iam então ver milhares - centenas de milhares - de garrafas de vinagre todas ao lado umas das outras, abarcando toda a superfície da Terra, até onde a vista alcança. Uma visão invulgarmente bela, de cortar a respiração.
Exactamente, é isso mesmo. E se, por mero acaso, nesse mundo houvesse lugar para um só poema, gostaria de ser eu a escrevê-lo. Ter a honra de me tornar o primeiro poeta laureado no mundo habitado pelas pobres tias.
Nada mau. Nada mau.
E nesse poema cantaria o brilho do Sol reflectido nas verdes garrafas, louvaria o imenso mar de erva aos nossos pés, cintilando sob o manto de orvalho matinal.
Mas já me estou a adiantar, a projectar o meu olhar sobre o ano de 11 980, e dez mil anos é muito tempo, demora uma eternidade a passar. Até lá, ainda tenho de sobreviver a muitos Invernos.


NÁUSEA 1979


Graças ao seu especial talento que lhe permitiu manter durante muito tempo um diário, sem falhar um único dia, ele revelou-se capaz de referir o dia exacto em que começou a vomitar, bem como a data exacta em que deixara de vomitar. Tinha começado a 4 de Junho de 1979 (céu limpo) e terminara no dia 14 de Julho de 1979 (nublado). Eu conhecia aquele jovem ilustrador dos tempos em que ele tinha feito um desenho para uma história da minha autoria publicada numa determinada revista.
Era uns anos mais novo do que eu, mas tínhamos em comum o facto de gostarmos de coleccionar velhos 33 rotações de jazz. Outra coisa que ele gostava de fazer era dormir com as namoradas e mulheres dos amigos. Acontecia, por exemplo, quando o amigo de quem ele ia à procura saíra para comprar cerveja ou se encontrava a tomar duche (na altura da visita), e não tão poucas vezes quanto isso. Acontecia ainda que ele escolhia partilhar amiúde comigo o relato das suas aventuras.
- Uma rapidinha não tem nada que se compare. Quase não despes a roupa e fazes o que tens a fazer o mais depressa possível -defendia ele. - No sexo rotineiro a coisa pode arrastar-se tempos infinitos, certo? Por isso, volta e meia temos de inverter a marcha e adoptar a abordagem contrária. Garanto-te que ficas com uma perspectiva completamente nova. Dá um certo gozo.
É óbvio que esta espécie de "tour de force" não era o único tipo de sexo que lhe interessava. Também apreciava o bom sexo à moda antiga, na variante lenta. Mas o que lhe dava mesmo ponta era o acto de ir para a cama com as namoradas e mulheres dos seus amigos.
- Não tenho o mínimo interesse em enganar os meus amigos, em pôr-lhe os cornos, nem essa treta toda. Ir para a cama com as suas companheiras faz-me sentir mais próximo deles. É como se ficasse tudo em família. É apenas sexo e pronto. Desde que não se saiba, ninguém se magoa.
- Nunca aconteceu?
- Não, nunca. - A minha pergunta deixou-o ficar um nadinha surpreendido. - Essas coisas nunca se sabem, a não ser que a pessoa tenha alguma espécie de desejo inconsciente de revelar o que anda a fazer. É evidente que é preciso um certo cuidado para não dizer nem fazer alguma coisa que possa dar ideias a um tipo. Além disso, também é importante estabelecer certas regras à partida, no sentido de nos assegurarmos de que a mulher percebe que se trata de um jogo amigável, que ali ninguém vai ficar envolvido ou magoar-se. Como é evidente, não é uma coisa que se possa dizer assim tão directamente.
Pela minha parte, achava difícil que a coisa pudesse funcionar com aquela facilidade toda, mas, como ele não parecia do género de pessoa capaz de deitar uma data de patacoadas da boca para fora só para se armar em importante, às tantas comecei a pensar que talvez ele tivesse uma certa razão.
- E, no fundo, a maior parte das mulheres também é disso que andam à procura. Os respectivos maridos ou namorados - que é como quem diz, os meus amigos - são normalmente melhores do que eu nesse domínio: com melhor aspecto, por exemplo, ou mais inteligentes, ou então têm um pénis maior. Na verdade, porém, as mulheres não querem saber disso para nada. Dão-se por satisfeitas desde que o seu homem seja normal quanto baste, boa pessoa e exista entre eles um clima de respeito mútuo e compreensão. Tudo o que desejam é alguém que se interesse por elas fora do - num certo sentido - estático quadro de "esposa" ou "namorada". Isso é mais importante. Claro que depois também existem outras razões mais superficiais que estão ali à vista, escarrapachadas, para quem souber ler no mapa.
- Por exemplo?
- Por exemplo, quem tiver maus fígados pode querer vingar-se de um marido que tenha dado a sua facadinha no matrimónio. Tédio.
Ou o prazer supremo de engatar outro homem. Coisas desse género. Basta-me olhar para elas que sei logo. Chama-se a isso um talento nato. Uns têm e outros não.
Ele próprio não tinha nenhuma namorada fixa.
Tal como disse, éramos ambos coleccionadores de discos e costumávamos encontrar-nos de vez em quando para proceder às nossas trocas. Fazíamos colecção de discos de jazz desde a década de 1950 até ao início dos anos 60, mas os nossos interesses eram de tal modo variados que conseguíamos encontrar sempre pretexto para mais uma permuta. A minha especialidade eram as bandas de músicos brancos da Costa Oeste, menos conhecidos, enquanto ele tinha especial gosto em coleccionar discos de gente mais ou menos conhecida, da geração do Coleman Hawkins ou do Lionel Hampton. Por isso, sempre que ele deitava a mão a um álbum de vinil do Pete Jolly Trio e eu arranjava o Mainstream de Vic Dickenson, chamávamos-lhe um figo e procedíamos à troca. Passávamos o dia a beber cerveja, entretidos a imaginar negócios e a comparar listas com nomes de intérpretes e a passar em revista os nossos discos, em busca de um defeitozinho.
Foi no decorrer de uma dessas sessões de intercâmbio que ele me contou a história do vómito. Encontrávamo-nos os dois no apartamento dele, a beber uísque. A nossa conversa girava em torno da música e das noites de copos e mais copos.
- Houve uma vez em que passei quarenta dias a vomitar. Todos os dias, sem excepção. E não foi por causa da bebida. Também não se pode dizer que estivesse doente. Estive sempre a vomitar sem razão, durante quarenta dias a fio. Acredita, foi qualquer coisa.
A primeira sessão de vómitos aconteceu no dia 4 de Junho. Este episódio concreto não se revelou uma inteira surpresa, a julgar pela quantidade de decilitros de uísque e cerveja emborcados na noite anterior. Para não variar, tinha dormido com a mulher de um amigo. Isto na noite de 3 para 4 de Junho.
Por isso, quando ele na manhã de 4 de Junho, por volta das oito horas, despejou literalmente o conteúdo do estômago no lavatório, toda a gente, pelas mais elementares leis do senso comum, achou aquilo um facto natural. Nem tão-pouco se podia dizer nada pelo facto de ser a primeira vez que ele vomitava por ter bebido de mais desde os dias da faculdade. Carregando no autoclismo, tratou de despejar os indesejáveis produtos do seu estômago pelo cano abaixo, sentou-se à secretária e começou a trabalhar. Não se sentia nada mal-disposto. Pelo contrário, pode até dizer-se que nesse dia ele atacou os desenhos que tinha de fazer com uma energia renovada. O trabalho correu-lhe bem, e chegada a hora do almoço, já ele dava mostras de um saudável apetite.
Preparou uma sanduíche de presunto com pepino e bebeu uma cerveja de lata a acompanhar. Meia hora mais tarde, foi atacado pela segunda onda de espasmos, e lá foi a sanduíche parar inteirinha ao fundo da sanita. Viam-se pequenos pedaços de pão e de presunto a flutuar à superfície da água. Ainda assim, não era caso para dizer que ele se sentisse mal. Vomitara, mais nada. Experimentara a sensação de ter alguma coisa atravessada no fundo da garganta, e ajoelhara-se ao pé da sanita mais por precaução quando, de repente, tudo o que tinha no estômago veio por ali fora. Parecia uma daquelas cenas em que um mágico desata a tirar pombas ou coelhos ou bandeirinhas dos países de todo o mundo de dentro de um chapéu.
"Eu sabia perfeitamente o que era ter náuseas, dos tempos em que bebia que nem um possesso, ou então pelo facto de andar de camioneta ou assim, mas aquilo era outra coisa completamente diferente. Nem sequer sentia o habitual nó no estômago. Era como se o meu estômago se limitasse pura e simplesmente a empurrar a comida para cima, sem que houvesse resistência. Não estava propriamente indisposto, nem se notava aquele cheiro azedo. Foi então que comecei a sentir-me muito esquisito. Quer dizer, já não era a primeira vez que acontecia, mas sim a segunda. Aquilo preocupou-me, por isso resolvi deixar o álcool por uns tempos."
Pontualmente, na manhã seguinte, seguiu-se a terceira sessão de vomitanço. A enguia que ele tinha comido na véspera e o queque recheado de compota saíram de jacto.
Pouco depois, estava ele a lavar os dentes quando tocou o telefone. Levantou o auscultador a tempo de ouvir um homem pronunciar o seu nome antes de desligar logo a seguir. Só isso.
- Devia ser o marido ou o namorado de uma das mulheres com quem andavas a dormir, não te parece? - perguntei.
- Não pode ser - retorquiu ele. - Conheço-lhes a voz. Garanto-te que nunca tinha ouvido aquela voz. Por sinal uma voz francamente desagradável. Em todo o caso, todos os dias recebi chamadas destas, desde o dia 5 de Junho até 14 de Julho. Isso coincidiu quase exactamente com o período em que passei o tempo a vomitar.
- Queres convencer-me de que existia uma relação entre as tais chamadas nojentas e os teus vómitos?
- Longe de mim tal ideia - replicou. - Por isso é que essa história ainda hoje me persegue. Resumindo, o telefone tocava, ele dizia o meu nome e desligava. Isto todos os dias - de manhã, à tarde, a meio da noite. É evidente que eu podia não atender o telefone, mas acontece que é assim que eu arranjo trabalho, além de que as miúdas também costumam ligar.
- Sim, estou a ver o quadro... - disse eu.
- E isto sempre acompanhado de náuseas, sem um único dia de tréguas. Julgo que devo ter deitado cá para fora quase tudo o que comia. Depois dava-me a fome e voltava a comer, e a seguir tornava a vomitar aquela porcaria toda. Era um círculo vicioso. Ainda assim, em cada três refeições devo ter conseguido manter no estômago, sei lá, para aí uma - provavelmente o suficiente para me manter vivo. Se tivesse vomitado todas as três refeições, seria preciso recorrer à alimentação intravenosa ou assim.
- Foste ao médico?
- Claro que sim. Dirigi-me ao hospital mais próximo, por sinal um hospital bastante grande. Fizeram-me uma série de radiografias e análises à urina. Como existia a forte possibilidade de se tratar de cancro, procederam a toda a espécie de exames, mas não conseguiram encontrar nada. Parece que eu era a saúde em pessoa. Acabaram por me mandar para casa com um remédio qualquer contra a "fadiga crónica" relacionada com o estômago e o stresse ou o diabo a sete. Aconselharam-me a velha receita de "deitar cedo e cedo erguer", disseram-me para cortar no álcool e não me aborrecer com pequenas coisas. Quem é que eles pensavam que estavam a enganar? Se havia pessoa que soubesse tudo e mais alguma coisa acerca da gastrite crónica era eu: só um idiota não saberia reconhecer os sintomas. Uma pessoa sente um peso no estômago, uma espécie de queimadura, falta de apetite e por aí fora. As náuseas só aparecem depois de uma pessoa ter experimentado na pele os outros sintomas. Não se começa assim a vomitar do pé para a mão. E foi isso que aconteceu comigo, que podia andar sempre cheio de apetite, mas que, tirando isso, me sentia óptimo e com o espírito perfeitamente desanuviado.
"Além do mais, no que toca ao stresse, confesso que não sei o que isso é. Verdade seja dita que andava sempre com uma carga de trabalhos às costas, mas isso não era razão para me deixar ir abaixo. Com as mulheres, a coisa corria pelo melhor. Ia duas, três vezes por semana dar as minhas braçadas. Estava a fazer tudo como mandam as regras, não te parece?
- Assim parece - respondi.
- Não parava de vomitar, só isso - disse ele.
Ele continuou naquilo durante duas semanas, sempre a vomitar e a receber as tais chamadas. Ao décimo quinto dia, já pelos cabelos, decidiu que estava farto e tirou o dia no trabalho. Poderia não ser capaz de parar com o vomitanço, mas pelo menos queria ver se se livrava das chamadas telefónicas, por isso enfiou-se num hotel e passou o dia a ver televisão e a ler. Ao princípio, a mudança de cenário pareceu resultar. Conseguiu até engolir a sanduíche de rosbife e a salada de espargos que mandou vir para o almoço. Por volta das três e meia da tarde, foi ter com a namorada de um amigo ao salão de chá do hotel e aconchegou o estômago com uma fatia de tarde de cereja e café preto, e também não se registou qualquer problema. Em seguida, ele e a namorada do amigo foram para o vale de lençóis e fizeram sexo. Até aqui, foi sempre a andar. Depois de ele a ter despachado para casa dela, foi jantar sozinho a um restaurante ali perto. Comeu tofu, cavala grelhada à moda de Quioto, legumes temperados, sopa de miso e uma tigela de arroz branco. Como de costume, manteve-se afastado do álcool. Entretanto, deviam ser seis e meia da tarde.
Regressou ao quarto, viu as notícias na televisão e começou a ler o novo romance policial de Ed McBain. Lá para as nove da noite, ao verificar que não estava enjoado, suspirou de alívio. Ao fim de duas longas semanas, estava capaz de apreciar o deleite simples de ficar saciado. Tinha a sensação de que, a partir daí, as coisas voltariam provavelmente a ser como eram. Fechou o livro, voltou a ligar o televisor e, depois de fazer uma ronda pelos canais com a ajuda do controlo remoto, decidiu-se por um velho western. A fita acabou às onze, altura em que começou o último jornal. Quando o noticiário da noite chegou ao fim, apagou o televisor. O que lhe estava
mesmo a apetecer era um bom uísque. Esteve quase, quase a subir até ao bar do hotel para uma última bebida da noite, mas lá foi capaz de parar a tempo. Porque diabo é que havia de estragar um dia tão perfeito? Desligou a luz da mesinha-de-cabeceira e aconchegou-se debaixo das cobertas.
A meio da noite tocou o telefone. Ele abriu os olhos e viu as horas no relógio digital: duas e um quarto. Primeiro, como estava demasiado estremunhado, achou estranho haver um sininho a tocar ao lado dele. Só então abanou a cabeça e, quase inconscientemente, pegou no auscultador e atendeu.
"Estou."
A voz entretanto familiar pronunciou mais uma vez o seu nome e, passado um segundo, a ligação foi cortada.
- Mas tu não tinhas dito a ninguém em que hotel estavas, pois não? - perguntei.
- Claro que não. Só à rapariga com quem fui para a cama.
- Se calhar ela contou a alguém.
- E por que diabo iria ela fazer isso?
nesse ponto, ele tinha razão.
- Depois daquela chamada, vomitei toda a comida que tinha dentro do estômago. O peixe, o arroz, tudo. Como se tivesse sido aquele telefonema a abrir a porta e a dar passagem para a náusea se apoderar de mim.
"Quando acabei de despejar tudo, sentei-me na borda da banheira e tentei pôr as ideias em ordem. A primeira coisa que pensei foi que o telefonema tinha sido obra de alguém apostado em pregar-me uma partida inteligente ou então um engano com o seu quê de malicioso. Não fazia ideia de como poderia alguém saber que eu me encontrava hospedado no hotel, mas, tirando esse pormenor, pus a hipótese de ser alguém a gozar comigo. A segunda possibilidade era eu ter delirado e imaginado o telefonema. Ao princípio, achei aquilo ridículo, mas depois de analisar a situação mais friamente cheguei à conclusão de que não podia descartar semelhante hipótese. Se calhar, tinha imaginado que ouvira o toque do telefone, e ao pegar no auscultador pensara ter ouvido uma voz que dizia o meu nome, mas, de facto, nada daquilo acontecera. Em teoria, pelo menos, era uma coisa plausível que podia perfeitamente ter acontecido, não te parece? - Bom, acho que sim...
- Liguei para a recepção e pedi-lhes para confirmarem se tinha sido feita alguma chamada para o meu quarto, mas não mo souberam dizer. O sistema deles permitia o registo de todas as chamadas feitas, mas não o registo das chamadas recebidas. Isso deixou-me sem nada a que me pudesse agarrar.
"Essa noite passada no hotel funcionou para mim como uma espécie de ponto de viragem. Foi então que comecei a levar mais a sério tudo aquilo. Quer dizer, a náusea e os telefonemas - e a ideia de que pudesse haver uma ligação entre uma coisa e outra - nem que fosse só em parte. Porém, começava finalmente a perceber que não podia continuar a encarar qualquer desses aspectos de uma forma tão ligeira como até ali.
"Passei mais duas noites no hotel e depois regressei ao meu apartamento. Os vómitos e os telefonemas continuaram ao mesmo ritmo. Volta e meia ia ficar a casa de um ou outro amigo, para ver o que acontecia, mas continuei sempre a receber chamadas telefónicas - e isto sempre quando os meus amigos não estavam em casa e eu me encontrava sozinho. Escusado dizer que a coisa começava a causar-me calafrios, como se pressentisse alguma coisa invisível atrás de mim, atenta a todos os meus movimentos: sabia exactamente quando pegar no telefone e ligar para mim e quando me enfiar o dedo pela garganta abaixo. Quando uma pessoa tem pensamentos destes, é sinal de que começa a ficar esquizofrénica, estás a ver?
- Até pode ser que tenhas razão - retorqui -, mas não deve haver muitos esquizofrénicos que se preocupem com o facto de o serem, pois não?
- Aí, dou-te razão. E também não se pode dizer que haja muitos casos conhecidos de uma relação entre a esquizofrenia e o vómito. Pelo menos foi o que me garantiram os psiquiatras no hospital universitário. Não me ligaram a ponta de um corno. Pelos vistos, só lhes interessam os doentes que apresentam sintomas inequívocos da doença. Basta viajar numa mesma carruagem da linha Yamanote para encontrar entre duas pessoas e meia a três pessoas com sintomas idênticos aos meus, segundo eles dizem. O que acontece é que eles não têm meios de tratar toda aquela gente nos hospitais. Mandaram-me consultar um médico de clínica geral por causa dos vómitos e a Polícia por causa dos telefonemas.
"No entanto, como sabes, existem dois tipos de crime que a Polícia não investiga: chamadas nojentas e bicicletas roubadas. Os casos são mais do que muitos, além de que são considerados delitos menores. As operações ficariam paralisadas se os polícias andassem atrás de cada situação dessas. Nem sequer me deram ouvidos. "Brincadeiras telefónicas? E o que diz a pessoa do outro lado? O seu nome? Só isso? Muito bem, queira preencher este formulário e volte a entrar em contacto connosco caso a situação adquira contornos mais sérios." Foi o máximo que obtive deles. "Tudo bem, meus senhores", disse-lhes eu, "nesse caso como é que se explica que a pessoa saiba exactamente onde é que eu me encontro?" Contudo, eles não ligaram aos meus argumentos. E eu sabia que me tomariam por doido varrido se insistisse muito.
"Tornou-se evidente que não podia esperar ajuda, nem por parte dos médicos nem das forças da lei nem de mais ninguém. Ao fim de vinte dias a receber telefonemas que davam vontade de vomitar, percebi que não tinha outro remédio senão tomar o assunto em mãos, isto se queria ver a situação resolvida. Tenho-me na conta de um indivíduo bastante resistente, tanto física como mentalmente, mas juro-te que chegado àquele ponto começava a ficar desesperado.
- Mas estava tudo bem com a namorada do teu amigo, não estava?
- Melhor não podia estar. Calhou o meu amigo ir durante duas semanas até às Filipinas, em viagem de trabalho, por isso nós dois fartámo-nos de gozar.
- Alguma vez recebeste chamadas, quando estavas na companhia dela?
- Nunca. Posso verificar no meu diário, mas não me parece. Os telefonemas só eram feitos quando eu estava sozinho. E a mesma coisa com a cena dos vómitos. Foi então que dei por mim a pensar: por que razão é que passo tanto tempo sozinho? De facto, vendo bem, provavelmente devia passar mais de vinte e três horas por dia sozinho. Vivo sozinho, trabalho em casa e raramente vejo alguém relacionado com o emprego, trato da maior das coisas pelo telefone, ando com as namoradas dos outros, nove em cada dez vezes tomo as minhas refeições fora de casa, o único desporto digno desse nome que pratico consiste nas minhas longas e solitárias sessões de nataÇão, o único passatempo que tenho é deixar-me estar em casa a ouvir estes discos mais ou menos antigos. Além disso, a única maneira de executar o meu trabalho decentemente é estando sozinho e concentrado. Tenho, de facto, meia dúzia de amigos, mas, quando se chega a esta idade, anda toda a gente ocupada e não nos sobra tempo para grandes encontros. De certeza que tu sabes do que estou a falar.
- Mais ou menos - disse eu.
Ele deitou mais uísque por cima do gelo, mexeu tudo com o dedo e bebeu um gole.
- Nessa altura pus-me a pensar muito a sério. O que iria ser da minha vida, daí em diante? Estaria eternamente condenado a passar os dias a vomitar e a receber telefonemas suspeitos?
- Podias ter arranjado uma miúda. Quero dizer, uma namorada tua.
- Claro que pensei nisso, como deves imaginar. Tinha vinte e sete anos, na altura, estava em boa idade de assentar. Mas a verdade é que não sou pessoa para isso. Não podia desistir com essa facilidade toda. Não me podia deixar vencer por meia dúzia de telefonemas ridículos e uma certa sensação de náusea, nem ia agora mudar a minha maneira de viver por causa de uma coisa tão estúpida e irracional. Decidi por isso ir à luta. Lutar até à minha última gota de energia física e mental.
- Assim é que é falar.
- O que terias tu feito no meu lugar, Murakami?
- Boa pergunta - respondi. - Não faço ideia. - O que, de resto, até era verdade. Não fazia ideia nenhuma.
- As chamadas nojentas e os vómitos prolongaram-se por muito tempo. Perdi uma quantidade de quilos. Espera aí um minuto, aqui está - a quatro de Junho, pesava sessenta e quatro quilos e mais tarde, no dia dez de Junho, já só tinha cinquenta e oito. Repara, cinquenta e oito quilos! Para a minha altura, era pouquíssimo. A roupa deixou de me assentar. Via-me obrigado a segurar nas calças a cada passo que dava.
- Deixa-me fazer uma pergunta: por que é que não te lembraste de instalar um atendedor de chamadas ou coisa parecida?
- Porque não queria bater em retirada, é evidente. Se o tivesse feito, seria o mesmo que admitir a derrota. Estamos a falar de uma guerra de vontades, repara. Ou ele perdia o ímpeto inicial e desistia ou eu estava na disposição de acabar com aquilo, nem que fosse a mal. Adoptei a mesma atitude no que tocava aos vómitos. Encarei a coisa como a forma ideal para perder peso. Felizmente, não se regis-
tou nenhuma perda excessiva de massa muscular, por isso pude continuar a trabalhar e regressei às minhas rotinas. O que significa que voltei a beber. Ao pequeno-almoço bebia a minha primeira cerveja e depois de o Sol se pôr passava para o uísque. Uma vez que vomitava quer bebesse quer não, por que raio não havia de beber? Para além de saber melhor, sempre ajudava a pôr as coisas em perspectiva.
"Assim, levantei algum dinheiro da minha conta-poupança e mandei fazer um fato e dois pares de calças que me servissem. Ao ver-me assim tão magro no espelho do alfaiate, confesso que até gostei do meu novo visual. Agora que penso nisso, os acessos de vómitos eram o menos. Fazia muito menos doer do que ter hemorróidas ou uma cárie nos dentes, e sempre era mais fino do que ter diarreia. Tudo isto era relativo, obviamente. Resolvido o problema alimentar e derrotado o cancro, o acto de vomitar parecia, em si, inofensivo. Vendo bem, na América há quem receite eméticos para perder peso.
- Quer então dizer que os vómitos e os telefonemas continuaram sempre até dia catorze de Julho? - perguntei.
- Para ser mais preciso - espera aí um segundo -, a minha última sessão de vómitos ocorreu precisamente a catorze de Julho, às nove e meia da manhã, depois de ter comido a minha torrada, salada de tomate, e bebido leite. Quanto ao último telefonema, aconteceu às dez e vinte e cinco dessa mesma noite, estava eu a escutar o "Concert by the Sea" de Erroll Carner e a beber Seagram's VO. Dá jeito, não achas, manter um diário?
- Lá isso dá - concordei. - Mas dizias tu que depois dessa data as duas coisas deixaram bruscamente de acontecer?
- De um dia para o outro - afirmou ele. - Parecia aquele filme do Hitchcock, Os Pássaros. Na manhã do dia seguinte abre-se a porta e voltou tudo ao normal. A náusea, os telefonemas suspeitos, nunca mais soube o que isso era. Voltei a engordar e a pesar sessenta e três quilos, e fiquei com o fato e as calças, tudo novo, pendurados no armário. Funcionam como uma espécie de recordação.
- E o tipo ao telefone, continuou sempre a dizer a mesma coisa, até ao fim?
Ele pôs a cabeça de viés e olhou para mim com uma expressão vagamente distante.
- Não - disse ele. - A última chamada foi diferente. Começou por dizer o meu nome. Até aí, nada de novo. Mas a seguir perguntou:
"Sabe quem eu sou?" Depois disso, ficou calado. Pela minha parte, também não disse nada. Devem ter passado uns bons dez ou quinze segundos, sem que nenhum de nós falasse. A seguir desligou, e o único som que se ouviu foi o sinal de marcar.
- Palavra? Só disse "Sabe quem eu sou?"
- Exactamente, sem tirar nem pôr. Pronunciou cada palavra calmamente e de forma bem clara: "Sabe quem eu sou?" Não me lembrava rigorosamente nada daquela voz. Pelo menos entre as pessoas com quem trabalhara nos cinco ou seis anos anteriores, não havia ninguém com uma voz parecida. Admito a hipótese de ser alguém do tempo em que eu era mais novo, ou uma pessoa com quem eu mal tivesse trocado duas palavras, mas, que eu soubesse, não tinha feito nada de mal, nada que levasse alguém a odiar-me daquela maneira. Também não podia ser nenhum colega invejoso, na medida em que eu não era assim tão requisitado quanto isso. É evidente que sou o primeiro a reconhecer que a minha consciência não estava completamente limpa no capítulo da vida amorosa. Aos vinte e sete anos de idade, não era nenhum santinho. Agora, conhecia as vozes de todos os meus amigos homens. Se fosse um deles, tê-lo-ia reconhecido logo.
- No entanto - observei eu -, tens de reconhecer que não é propriamente normal um tipo ser especialista em dormir com as mulheres dos amigos.
- Está então a querer dizer, Senhor Murakami, que os meus sentimentos de culpa - sentimentos esses que eu próprio desconhecia -poderiam ter adquirido a forma de náusea e ter-me obrigado a ouvir coisas que não existem?
- Não sou eu que digo isto - esclareci. - Tu é que o disseste.
- Hmm - fez ele, bebendo um longo trago de uísque, sempre a olhar para o tecto.
- Isto sem esquecer as outras possibilidades - alvitrei eu. - Um dos amigos enganados podia ter contratado um detective privado para seguir os teus passos e nesse caso teria sido ele a fazer os tais telefonemas com a finalidade de te ensinar uma lição ou de se vingar de ti. E a náusea pode não ter passado de um mal-estar físico temporário que coincidiu com os telefonemas.
- Hmm - tornou ele a murmurar. - Os teus argumentos têm uma certa lógica. Deve ser por isso que tu és escritor e eu não. O que não impede que haja uma falha na teoria do detective: eu não deixei de ir para a cama com aquelas mulheres e, no entanto, as chamadas pararam. Por que carga de água, não me dirás? Há aí qualquer coisa que não bate certo.
- Se calhar o homem fartou-se, ou então deixou de ter dinheiro para pagar ao detective. Em todo o caso, não passa de uma hipótese. Se quiseres, posso arranjar centenas de outras teorias. O problema é saber qual delas estás disposto a aceitar. E o que poderás daí extrair.
- Extrair daí? - ripostou ele. Por momentos, encostou a base do copo de uísque à testa e deixou-se estar assim. - Onde é que queres chegar?
- Saber o que fazer se a história se repetir, claro. Da próxima vez, pode não durar apenas quarenta dias. As coisas que começam sem razão, acabam sem razão. E o contrário também é válido.
- Que coisa horrível para se dizer - observou ele, abafando uma risada. Depois, outra vez sério, continuou: - Não deixa de ser estranho. Até teres falado no assunto, nunca tinha pensado nisso, na probabilidade de a história se repetir. Achas que poderá acontecer?
- Como é que queres que eu saiba?
Rodando ligeiramente o copo para fazer oscilar o gelo, deu dois ou três goles na sua bebida. Depois de ter o copo vazio, pousou-o em cima da mesa e assoou-se a um lenço de papel.
- Pode ser que da próxima aconteça a outro qualquer. A ti, por exemplo, Murakami. Suspeito que não sejas assim tão inocente quanto nos queres fazer crer.
Desde então, eu e ele temo-nos encontrado umas duas ou três vezes por ano para procedermos às nossas trocas de discos tudo-menos-obras-de-vanguarda e bebermos um copo juntos. Como não sou do género de manter um diário, não o posso afirmar com rigor. Felizmente, até à data nem ele nem eu fomos visitados por uma náusea ou um telefonema indecente para amostra.


O SÉTIMO HOMEM


Uma vez estive quase a ser levado por uma onda enorme", disse o sétimo homem, praticamente num sussurro. "Aconteceu numa tarde de Setembro, tinha eu os meus dez anos."
O homem era o último a contar a sua história nessa noite. Os ponteiros do relógio marcavam dez e pouco. O pequeno grupo, reunido em círculo, conseguia ouvir o uivo do vento no escuro, soprando em direcção a oeste. Batia nas árvores e fazia estremecer os vidros das janelas, antes de se afastar lançando um último silvo.
"Foi a maior onda que alguma vez vi na vida", confessou ele. "Uma onda fora do comum, absolutamente gigantesca."
Naquele ponto, fez uma pausa.
"Escapei por pouco, mas, em contrapartida, a onda levou consigo o que era importante para mim e arrastou tudo para um outro mundo. Foram precisos anos até eu conseguir pôr-me de pé e seguir em frente. Anos preciosos, que nunca poderão ser recuperados."
O sétimo homem devia andar na casa dos cinquenta. Era magro e alto, usava bigode e, junto ao olho direito, apresentava uma cicatriz, pequena mas profunda, que poderia ter sido feita por uma faca afiada. Tinha o cabelo curto, aqui e ali semeado de madeixas sal-e-pimenta. O seu olhar era o que se vê em certas pessoas, quando não sabem como se hão-de explicar melhor. Naquele caso, porém, a expressão parecia desde há muito inscrita no rosto, como se fizesse Parte dele. O homem vestia uma simples camisa azul por baixo de um fato de tweed cinzento, e de vez em quando levava a mão ao colarinho. Nenhuma das pessoas ali reunidas sabia o nome dele nem o que fazia na vida.
Ele aclarou a voz e, por breves momentos, as suas palavras perderam-se no silêncio. Ninguém disse nada, à espera que ele continuasse.
"No meu caso, foi uma onda. Como é evidente, não tenho maneira de saber o que poderá ser no vosso caso, mas para mim assumiu a forma de uma onda gigantesca. Apareceu à minha frente um dia, de repente, sem aviso prévio, aquela onda avassaladora. E produziu um efeito devastador."
Cresci numa cidadezinha à beira-mar, na prefeitura de S. Nem vale a pena dizer o nome, duvido que algum de vocês reconhecesse o lugar. O meu pai era o médico local, e pode dizer-se que eu tive uma infância segura e protegida. Desde que me lembro, o meu melhor amigo era um rapaz a quem vou chamar K. Vivia numa casa ao pé da nossa e nos estudos andava um ano atrasado em relação a mim. Éramos como irmãos, fazíamos juntos o caminho para a escola e íamos logo brincar quando chegávamos a casa. Nos dias que marcaram a nossa amizade, nem uma única vez andámos à briga. Tenho um irmão, seis anos mais velho, mas, atendendo a essa diferença de idade, bem como aos nossos feitios diversos, a verdade é que nunca fomos muito chegados. Por quem eu sentia o chamado amor fraternal era pelo meu amigo K.
K. era um rapazinho frágil e magricela, de aspecto pálido e um rosto de rapariga quase bonito de mais. Tinha, além disso, um defeito na fala que tornava difícil entender o que dizia; quem não o conhecesse, poderia muito bem pensar que ele tinha um atraso qualquer. Pelo facto de ele ser franzino, eu tendia a armar-me em seu protector, tanto na escola como em casa. É preciso ver que eu era assim para o grande e atlético, razão pela qual todos os outros miúdos da escola olhavam para mim com um certo respeitinho. Contudo, a principal razão que me levava a gostar da companhia de K. prendia-se com a circunstância de ele ser um rapaz decente, alguém com bom coração. De atrasado não tinha nada, mas, por causa do tal problema na fala, apresentava algumas dificuldades na escola, mal conseguindo acompanhar a maior parte da matéria dada. Nas aulas de desenho, porém, era o melhor de todos. Bastava dar-lhe um lápis para a mão, ou uma caixa de tintas, e ele fazia uns desenhos tão coloridos e cheios de vida que até o professor se mostrava deslumbrado. Chegou a levar para casa uma série de prémios e a conquistar uma certa notoriedade. Tenho quase a certeza de que, se ele tivesse dado livre curso à sua inspiração e prosseguido com a carreira, seria hoje um pintor famoso. Gostava de retratar paisagens. Ia para junto do mar e deixava-se estar ali a pintar, horas infinitas. Muitas vezes eu sentava-me ao lado dele, a seguir com os olhos os movimentos rápidos e precisos do seu pincel, através dos quais ele dava vida a formas e cores que não cessavam de me espantar e que preenchiam o que até aí não passava de uma folha de papel em branco. Compreendo agora que estava perante um caso de puro talento.
Certo dia, corria o mês de Setembro, a região onde vivíamos foi assolada por um violento tufão. Avisaram na rádio que iria ser o pior dos últimos dez anos. Como precaução, as escolas foram encerradas e todos os estabelecimentos comerciais da zona fecharam as portas e correram os taipais à pressa, a fim de evitar o pior. Desde manhã cedo, o meu pai e o meu irmão deram volta à casa, procurando reforçar as portas com a ajuda de tábuas e pregos, enquanto a minha mãe passou o dia enfiada na cozinha, atarefada a preparar refeições para vários dias. Enchemos garrafas e termos com água, metemos os nossos bens mais preciosos dentro de mochilas, no caso de ser preciso evacuar a casa. Para os graúdos, um tufão representava ao mesmo tempo uma praga e uma ameaça que era preciso enfrentar quase todos os anos, mas, aos olhos dos mais miúdos, que ainda viviam afastados da realidade, a ocasião anunciava-se cheia de magia e aventura, uma fonte de excitação incrível.
Pouco depois do meio-dia, o céu começou a mudar de tom. A cena, com o seu quê de estranho e irreal, apanhou-me de pé no alpendre, a olhar para o céu, quando o vento desatou a uivar e a chuva a fustigar a casa, produzindo um som seco, inquietante, como se estivesse alguém a atirar punhados de areia contra as paredes. Acabámos de pregar as últimas protecções nas portas e janelas e reunimo-nos numa das divisões da casa às escuras, atentos à emissão transmitida Pela rádio. Aquela tempestade em concreto não trazia com ela muita chuva, segundo informaram, mas os ventos eram quanto bastava para causar uma grande quantidade de prejuízos, entre telhados arrancados e barcos naufragados. Muitas pessoas perderam a vida ou ficaram gravemente feridas ao serem atingidas pelos destroços lançados pelo ar, aos quatro ventos. Durante o tempo todo, fartaram-se de avisar as pessoas para não saírem das suas habitações. De vez em quando, a casa rangia e estremecia como se tivesse uma mão gigante a abaná-la, e volta e meia ouvia-se o estrondo enorme provocado por algum objecto mais pesado a embater numa porta reforçada. Para o meu pai, só podiam ser telhas que voavam disparadas dos telhados vizinhos. À hora de almoço comemos arroz e omeletas preparadas pela minha mãe e ouvimos rádio, na esperança de que a tempestade passasse.
Aconteceu, porém, que o tufão não havia meio de dar sinais de abrandar. Disseram na rádio que tinha perdido força assim que alcançara a prefeitura de S., e que naquele momento se encontrava a seguir em direcção a noroeste, ao ritmo de um corredor lento. O vento continuava sempre a soprar com violência, à medida que tentava arrancar pela raiz o que existia à face da Terra a fim de levar tudo atrás de si para os confins do mundo.
Devia ter passado cerca de uma hora desde o começo da tormenta, sempre com o vento na sua intensidade máxima, quando de repente um silêncio absoluto pairou sobre nós. De um momento para o outro, ficou tudo tão silencioso que até o canto de um pássaro na distância se podia ouvir. O meu pai abriu a porta reforçada e olhou lá para fora. O vento amainara, e a chuva deixara de cair. Grossas nuvens cinzentas sulcavam o céu; aqui e ali, viam-se pedaços de azul. As árvores no jardim ainda se mostravam vergadas, pesadas de água da chuva.
"Encontramo-nos em pleno olho da tempestade", explicou o meu pai. "Esta calma deve continuar por algum tempo, durante quinze ou vinte minutos, funciona como uma espécie de pausa. Depois, é de esperar que o vento regresse em toda a sua força."
Perguntei-lhe se podíamos ir lá para fora. Ele respondeu que eu podia dar um pequeno passeio, na condição de não me afastar muito. "Assim que o vento começar outra vez a soprar, quero-te dentro de casa", avisou.
Saí e comecei logo a explorar o que estava à minha volta. Custava a acreditar que ainda há poucos minutos a tempestade tivesse feito sentir os seus efeitos. Olhei para o céu e vi claramente o grande "olho" da tempestade fixando em nós, que nos encontrávamos cá em baixo, o seu gélido olhar. Claro está que o tal "olho" não existia: acontecia simplesmente que estávamos naquele preciso momento no centro do tufão.
Enquanto os adultos tratavam de verificar os danos ocorridos na casa, percorri o caminho que levava à praia. A estrada estava coberta de ramos partidos, alguns deles grossos troncos de pinheiros demasiado pesados até para serem levantados por um adulto. Viam-se telhas espalhadas a torto e a direito, carros com o pára-brisas partido, e até uma casota de cão tinha ido parar ao meio da estrada. Parecia que uma enorme mão tombara do céu e arrasara tudo à sua passagem.
K. viu-me ao longe e veio ter comigo.
- Onde é que vais? - perguntou ele.
- Ver o mar - respondi.
Sem dizer nada, ele pôs-se ao meu lado e acompanhou-me. Com ele tinha um cãozinho branco, que seguiu atrás de nós.
- Mal o vento recomeçar a soprar, temos de regressar imediatamente a casa - avisei eu, e K. fez sinal que sim, sempre calado.
O mar ficava a duzentos metros de minha casa. Tinham mandado construir um paredão de cimento a todo o comprimento da praia - um dique tão alto como eu era na altura. Para chegarmos junto ao mar, tínhamos de escalar meia dúzia de degraus. Costumávamos ir brincar para ali quase todos os dias, por isso conhecíamos o local como a palma das nossas mãos. Porém, em pleno olho do tufão, a verdade é que tudo parecia diferente: a cor do céu e do mar, o som das ondas, o cheiro da maresia, o vasto areal a perder de vista. Sen-támo-nos no molhe e deixámo-nos ficar ali algum tempo a apreciar a paisagem, sem trocarmos palavra. Tínhamos sido apanhados no meio de um furacão e, contudo, o mar mostrava-se estranhamente calmo. Além disso, o ponto de rebentação das ondas era muito mais longe do que era costume, mesmo quando a maré estava baixa. Diante de nós, estendia-se um mar de areia branca até onde os olhos alcançavam. Tirando a linha formada por um molho de destroços que povoavam a linha de água, aquele espaço imenso assemelhava-se a um quarto sem móveis.
Descemos até à praia e passeámos um bocado ao longo dela, entretidos a examinar as coisas que tinham vindo dar à costa. Brinquedos de plástico, sandálias, pedaços de madeira molhada que em tempos deviam ter feito parte de uma mobília, peças de roupa, garrafas de todas as formas e feitios, tábuas de madeira partidas com inscrições em língua estrangeira, entre outros artigos menos facilmente identificáveis. Sentíamo-nos como se estivéssemos numa loja de doces. A tempestade devia ter trazido todas aquelas coisas de muito longe. Sempre que algo mais fora do vulgar despertava a nossa atenção, deitávamos-lhe a mão e examinávamos o achado de uma ponta à outra, e, quando acabávamos o que estávamos a fazer, entrava em cena o cão de K. e desatava a cheirar tudo.
Já ali estávamos há uns bons cinco minutos quando me apercebi de que as ondas se aproximavam na minha direcção. Sem ruído nem outro sinal de aviso, o mar estendia a sua língua macia até ao sítio onde eu me encontrava. Aconteceu tudo tão depressa que estranhamente nem dei por nada. Tendo passado a minha infância ao pé do mar, sabia até que ponto o oceano podia revelar-se perigoso - e a violência que podia revelar inesperadamente. Por isso, tivéramos o cuidado de ficar numa zona recuada, longe da linha de água. Apesar disso, as ondas conseguiram chegar a escassos centímetros do local onde nos abrigáramos. E então, silenciosamente, tal como haviam chegado, as águas afastaram-se e mantiveram-se à distância. As ondas tinham-se aproximado de mansinho, tão inofensivas como as ondas podem ser, no eterno vaivém das águas lambendo a areia. Ao mesmo tempo, porém, havia qualquer coisa de ameaçador no seu movimento - fazia lembrar o contacto com a pele de um réptil - que me provocou um arrepio pela espinha acima. O meu medo não tinha justificação alguma, mas nem por isso deixava de ser muito real. Soube instintivamente que as ondas tinham vida. As ondas estavam vivas, sem sombra de dúvida. Sabiam que eu me encontrava ali e faziam tenções de me apanhar. Era como se um daqueles monstros gigantes que comem pessoas estivesse algures, deitado numa planície coberta de ervas e pequenos arbustos, a sonhar com o momento em que teria enfim a oportunidade de se precipitar sobre mim a fim de me despedaçar com os seus dentes afiados. Tinha de fugir.
"Vamos embora daqui", gritei na direcção de K. Ele devia estar a uns dez metros, de costas viradas para mim, e a olhar para qualquer coisa. Apesar de eu ter gritado bem alto, estava tão distante que a minha voz não pareceu ter chegado até ele. K. era assim mesmo.
Acontecia-lhe muitas vezes ficar de tal maneira absorvido com o que estava a fazer, ao ponto de se esquecer de tudo o mais à sua volta. Ou então a culpa era minha, que não tinha gritado com força suficiente. Lembro-me de ter pensado que a minha voz soava de forma estranha, como se pertencesse a outra pessoa.
Foi então que ouvi um rumor profundo e ameaçador. Ressoou tão alto que me pareceu sentir a Terra tremer. Para dizer a verdade, antes do trovão ouvi um outro som, um estranho gorgolejar rouco, como se uma grande quantidade de água estivesse a ser sugada através de um buraco no chão. Aquilo continuou durante um bocado, depois parou, e foi nessa altura que me apercebi do estrondo surdo do trovão. Nem assim K. levantou os olhos. Continuava sempre a remexer na areia, profundamente concentrado em qualquer coisa que estava a seus pés. O mais provável é ele nem sequer ter ouvido o som trovejante. Agora, não me perguntem como é que ele podia não ter ouvido um barulho daqueles, capaz de fazer tremer a Terra. Bem sei que pode parecer estranho, mas se calhar tratou-se de um som destinado unicamente a ser ouvido por mim - um som particular. Nem mesmo o cão de K. deu por ele, e toda a gente sabe como os cães se mostram especialmente sensíveis ao mais pequeno ruído.
Foi minha intenção correr até ao sítio onde K. estava parado, agarrar nele e levá-lo dali. Era a única coisa a fazer. Eu sabia que a onda se aproximava, ele não. Da mesma forma que tinha perfeita consciência do que deveria ser feito, dei por mim a correr na direcção oposta - a correr a grande velocidade, sozinho, em direcção ao dique. Só o medo me terá levado a isso, tenho a certeza, um medo tão terrível que me roubou a voz e deixou que as minhas pernas ganhassem força própria e comandassem os meus movimentos. Desatei a correr aos tombos pela areia macia até chegar ao paredão. Só então me virei e gritei na direcção de K.
- Depressa, K! Sai daí. Olha a onda que se aproxima! - Dessa vez a minha voz fez-se ouvir, alto e bom som. Tinha deixado de trovejar. Finalmente, K. captou o grito e olhou para cima. Mas era demasiado tarde. Por cima dele, como uma serpente de cabeça em riste, pronta a atacar, a onda aproximava-se velozmente da praia. Nunca na minha vida tinha visto nada parecido. A onda devia ter a altura de um prédio de três andares. Quase sem barulho (na minha memória, pelo menos, a cena passava-se em silêncio total), ergueu-se por detrás de K. e encobriu por completo o céu. K. olhou para mim durante breves segundos, sem alcançar a situação. Depois, movido por uma espécie de pressentimento, virou-se e ficou de frente para a onda. Ainda tentou escapar, mas já não teve tempo de correr. No instante seguinte, viu-se engolido. A onda atingiu-o em cheio, com a violência de uma locomotiva a alta velocidade.
A onda rebentou na praia e desfez-se em mil e uma pequenas ondas e gotas que se espalharam pelo ar e vieram cair sobre o dique onde eu me encontrava. Pela minha parte, antecipando a fúria da maré, consegui abrigar-me atrás do quebra-mar e atenuar o seu impacto. Os salpicos deixaram-me a roupa toda molhada, mas foi só isso. Apressei-me a subir ao paredão e inspeccionei a praia. Nessa altura já a onda tinha passado e estava a retroceder, regressando ao mar com um grito feroz. Parecia um tapete gigante que alguém estivesse a sacudir do outro lado do mundo. Em parte alguma da praia havia sinais de K. ou do seu cão. Só se via o extenso areal, a perder de vista. A onda recuara tanto, que à minha frente parecia estender-se o fundo do mar inteiro. Fiquei ali petrificado no cimo do paredão, entregue à minha sorte.
Voltou a reinar silêncio. Um silêncio desesperado, como se todo o som tivesse sido varrido da face da Terra. A onda tinha engolido K. e desaparecido na distância. Fiquei ali, sem saber o que fazer. Deveria regressar à praia? Talvez K. ainda ali se encontrasse, algures, soterrado na areia... No entanto, pensando melhor, resolvi não abandonar o dique. Sabia, por experiência, que as grandes ondas muitas vezes apareciam às duas e às três.
Não sei dizer ao certo quanto tempo passou - não muito, acho eu, talvez vinte ou trinta segundos de um vazio.irreal -, quando, tal como tinha previsto, veio a segunda onda. Um gigantesco rugido abalou de novo a praia e, uma vez mais, depois de o rumor se ter desvanecido, uma outra onda descomunal se ergueu no mar, pronta a rebentar. Vi-a agigantar-se à minha frente, ao ponto de tapar a luz do Sol, ameaçadora como um perigoso abismo. Dessa vez, porém, não fugi. Permaneci firme, no cimo do quebra-mar, em transe, à espera que o ataque fosse desferido. De que serviria deitar a fugir, agora que K. tinha sido levado? Ou, se calhar, deu-se o caso de ficar imóvel e ter ficado pura e simplesmente pregado ao chão, paralisado de medo. Sinceramente, já não me lembro.
A segunda onda era tão grande como a primeira - para não dizer maior. Ergueu-se bem alto, por cima da minha cabeça, e começou a cair, ao mesmo tempo que perdia a forma original, como uma parede de tijolos a desabar. Na verdade, era quase demasiado grande para ser uma onda. Parecia algo diferente, uma coisa oriunda de um mundo distante que se tivesse materializado sob a forma de onda. Preparei-me para o momento em que a escuridão se apoderasse de mim. Nem cheguei a fechar os olhos. Lembro-me de ouvir o meu coração bater com uma nitidez impressionante.
Ao aparecer à minha frente, contudo, a onda imobilizou-se. Foi como se de um momento para o outro tivesse perdido a força, o ímpeto todo, e ali ficou, suspensa no ar, antes de se desfazer tranquilamente. E na sua crista, no meio da sua língua cruel, transparente, reconheci sem sombra de dúvida a figura de K.
Poderá haver quem tenha dificuldade em acreditar, e, se for esse o caso, acredite o leitor que não lhe levo a mal. Para dizer a verdade, eu próprio tenho dificuldade em aceitar a realidade. Ainda hoje não consigo explicar melhor, apenas sei que vi o que vi, e que não se tratava nem de uma ilusão nem de uma alucinação. Estou a contar-vos a minha história com toda a honestidade, tal como ela foi vivida. O que aconteceu foi o seguinte: na extremidade da onda, como que encerrado dentro de uma espécie de cápsula transparente, flutuava o corpo de K. inclinado para um dos lados. Mas não é tudo. K. estava a olhar para mim, e com um sorriso nos lábios. Ali, mesmo à minha frente, tão perto de mim, que era caso para dizer que eu quase poderia ter estendido a mão e tocado nele, estava K., o meu amigo K. que, momentos antes, tinha sido tragado pela onda. E, mais, ele estava a sorrir para mim. Não se tratava de um sorriso vulgar, mas sim de um sorriso largo e sincero, literalmente daqueles sorrisos de orelha a orelha. O seu olhar frio estava cravado em mim. Já não era o K. que eu conhecia. Tinha ainda o braço direito esticado na minha direcção, como se estivesse a tentar agarrar na minha mão na tentativa de me levar com ele para esse mundo onde se encontrava. Tivesse ele chegado um bocadinho mais perto e teria conseguido deitar-me a mão. No entanto, tendo falhado, K. limitou-se a sorrir para mim, e o seu esgar de satisfação tornou-se ainda mais aberto.
A seguir devo ter perdido os sentidos. Já só me lembro de acordar numa cama, na clínica do meu pai. Assim que dei acordo de mim, a enfermeira foi logo chamar o meu pai, que veio a correr. Mediu-me o pulso, examinou as minhas pupilas e pôs-me a mão na testa. Tentei mexer o braço, mas não o conseguia levantar. Estava a arder em febre, e sentia a cabeça pesada e vaga, como uma manhã enevoada. Pelo que me disseram, lutara algum tempo com febres altas. "Estiveste a dormir durante três dias", contou-me o meu pai. Um vizinho, que tinha assistido de longe à cena toda, pegara em mim e levara-me para casa. Não tinham conseguido encontrar K. Queria dizer qualquer coisa ao meu pai, sentia-me nessa obrigação, mas a minha língua, que estava inchada e dormente, não me deixava formar uma palavra que fosse. Parecia ter uma espécie de criatura alojada na boca. O meu pai perguntou-me qual era o meu nome, mas, antes que eu me conseguisse lembrar, voltei a perder a consciência e afundei-me na escuridão.
Ao todo, fui obrigado a ficar na cama, sempre a dieta líquida, uma semana inteira. Vomitei várias vezes e tive acessos de delírio. Mais tarde, o meu pai disse-me que o meu estado era de tal modo grave que ele chegara a recear que eu pudesse ficar para sempre com problemas neurológicos, devido ao choque e às febres altíssimas. Vá lá saber-se porquê, o certo é que consegui recuperar - pelo menos fisicamente. A minha vida, porém, nunca mais voltaria a ser a mesma. O corpo de K. nunca foi encontrado. Também nunca deram com o cão dele. Habitualmente, quando alguém se afogava naquela zona, dias depois o cadáver costumava dar à costa mais a leste, numa pequena enseada. Com o corpo de K. isso nunca se verificou. O mais provável é as ondas gigantes terem-no arrastado até ao alto-mar -para tão longe que nunca mais regressou a terra. Deve ter ficado sepultado no fundo do mar para ser comido pelos peixes. A operação de busca prolongou-se por muito tempo, graças à cooperação dos pescadores locais, mas, com o tempo, acabou por esmorecer. Sem corpo, o funeral dele nunca se realizou. Quase loucos de desgosto, os pais de K. passavam os dias a percorrer a praia para cima e para baixo, ou então fechavam-se em casa, a recitar sutras(1)

*1. No budismo, o termo designa as escrituras canónicas, consideradas registos dos ensinamentos orais de Buda. "Sutra" é a palavra budista para escritura e possui a mesma raiz de "costura", na medida em que os textos eram costurados (termo cirúrgico moderno "sutura"). (N. da T.)

Apesar de a morte do filho ter constituído um duro golpe para eles, os pais de K. nunca me responsabilizaram pelo facto de ter arrastado o seu filho para a praia no meio de um tufão. Eles sabiam muito bem que eu gostava de K. como de um irmão mais novo, e que sempre o protegera. De igual modo, também os meus pais fizeram questão de nunca referir o incidente na minha presença. Mas eu sabia a verdade. Sabia que, se quisesse, poderia ter salvado K. Provavelmente, bastaria para isso que tivesse corrido até junto dele, a fim de o conseguir pôr fora do alcance da onda. Teria sido difícil, bem sei, mas sempre que voltava a reviver os acontecimentos na minha memória, acreditava que poderia tê-lo conseguido. Tal como já disse, porém, dominado pelo medo, abandonei-o lá e salvei-me apenas a mim próprio. Ainda me fazia sofrer mais o facto de os pais de K. não me cul-pabilizarem e de à minha volta toda a gente ter o máximo cuidado para não tocar no assunto. Demorei muito tempo a recuperar desse choque emocional. Mantive-me afastado das aulas semanas a fio. Mal comia, passava os dias enfiado na cama, a olhar para o tecto.
Estava sempre a ver K. no cimo da vaga, a sorrir de esguelha para mim, com a mão esticada e o olhar suplicante. Não conseguia tirar aquela imagem da minha cabeça. E quando finalmente adormecia, era com essa cena que sonhava - com a diferença que, nos meus sonhos, K. saltava de dentro da cápsula, agarrava-me pelo pulso e levava-me com ele para dentro da onda.
Isto sem falar do outro sonho que eu tinha. Vejo-me a nadar no meio do oceano. Está uma linda tarde de Verão e eu estou a nadar de bruços a uma distância razoável da praia. O sol bate-me com força nas costas, e a água sabe maravilhosamente bem. De repente, alguém me agarra na perna direita, sinto um punho gelado a apertar o meu tornozelo, com tanta força que não me consigo libertar. Sou puxado para o fundo e é então que vejo o rosto de K. Mantém a mesma expressão irónica, de uma ponta à outra, sem tirar os olhos de mim. Quero gritar, mas a voz não me sai da garganta. A água começa a inundar os meus pulmões.
Acordo no meio do escuro, a gritar, sem conseguir respirar, alagado em suor.
No final desse ano, pedi aos meus pais que me deixassem ir para outra cidade. Não podia continuar a viver ali, à vista do lugar onde as ondas tinham levado K. e os meus pesadelos não tinham fim.
Caso não saísse dali, dava em louco. Os meus pais mostraram-se compreensivos e arranjaram as coisas de forma a eu ir morar para outro lado. Em Janeiro, mudei-me para a prefeitura de Nagano e fui viver com a família do meu pai numa cidadezinha montanhosa nos arredores de Komoro. Acabei a escola básica em Nagano e ali fiquei até ao fim da secundária. Nunca mais regressei a casa, nem sequer durante as férias. De quando em quando, os meus pais apareciam de visita. Até hoje, continuo a viver em Nagano. Fiz a faculdade de engenharia na cidade de Nagano e fui trabalhar para um fabricante de instrumentos de precisão na zona, onde de resto continuo empregado. Levo uma vida perfeitamente normal. Como podem ver, sou igual às outras pessoas. Não me considero muito sociável, mas tenho os meus amigos, com quem costumo fazer excursões e subir às montanhas. Assim que me apanhei longe da minha cidade natal, deixei de ter aqueles pesadelos constantemente. O que não significa que eles tenham deixado de fazer parte da minha vida. Volta e meia, aparecem e batem-me à porta, como acontece com os cobradores de impostos. Aconteceu quando eu estava quase, quase a esquecer-me que eles existiam. E era sempre o mesmo sonho, até nos pormenores mais insignificantes. Acordava sistematicamente aos gritos e com a roupa da cama ensopada.
Deve ter sido por isso que nunca me casei. Não queria acordar a meio da noite com os gritos de quem estivesse a dormir ao meu lado. Apaixonei-me por várias mulheres ao longo dos anos, mas nunca passei a noite com nenhuma. O terror estava entranhado nos meus ossos. E isso era uma coisa que eu nunca poderia partilhar com outra pessoa.
Mantive-me afastado da minha terra natal mais de quarenta anos. Nunca me voltei a aproximar daquela praia - nem do mar, em geral. Receava que, se tal acontecesse, corria o risco de o meu sonho se tornar realidade. Sempre gostara de nadar, mas depois daquele dia não tornei a pôr os pés numa piscina. Não voltei a aproximar-me de rios ou de lagos. Evitava andar de barco e recusava-me a entrar num avião quando tinha de viajar para o estrangeiro. Apesar de todas as minhas precauções, tornava-se impossível esquecer a imagem do meu afogamento. Da mesma forma que a sensação provocada pela mão fria de K. teimava em nunca me abandonar, também aquela negra premonição estava sempre presente no meu espírito.
Até que por fim, na última Primavera, voltei a pisar a areia da praia onde K. fora levado pela onda.
O meu pai tinha morrido de cancro no ano anterior e o meu irmão vendera a velha casa. Ao vasculhar no meio dos caixotes guardados na arrecadação, descobrira uma caixa de cartão cheia de brinquedos e coisas de quando eu era pequeno e tinha-me enviado tudo para Nagano. Era quase tudo tralha que não servia para nada, mas havia uma colecção de pequenos quadros que K. pintara para me oferecer. Os meus pais provavelmente tinham posto aquilo de parte em memória de K., mas a verdade é que as pinturas acordaram em mim o velho terror. Pelo simples facto de olhar para elas fiquei com a sensação de que o espírito de K. voltava à vida para me prender nas suas garras. Apressei-me a guardar os quadros outra vez dentro da caixa, com ideias de mais tarde deitar tudo fora. Na verdade, porém, não fui capaz de o fazer. Após vários dias a andar para ali, indeciso, voltei a abrir a caixa e obriguei-me a olhar para as aguarelas de K. com olhos de ver.
Na sua maioria, tratava-se de paisagens, imagens que ilustravam a familiar faixa de areia e mar e pinheiros e a cidade que eu tão bem conhecia, e tudo aquilo retratado nas suas cores originais, que lhes permitiam conservar uma especial clareza, como era apanágio do traço de K. Apesar dos anos, conservavam uma espantosa vivacidade, e tinham sido executadas com mestria, pelo que o seu valor artístico era maior do que eu recordava. Ao passar em revista o conjunto de quadros, assaltou-me uma imensa e terna saudade. Os sentimentos profundos experimentados pelo jovem K. estavam ali, representados naquelas pinturas - bem como o seu olhar sobre o mundo. Dei por mim a evocar com grande nitidez as coisas que tínhamos feito em comum, os lugares que tínhamos percorrido juntos. E apercebi-me de que tínhamos olhado para o mundo com os mesmos olhos, que a visão desanuviada que tinha das coisas era a mesma do rapazinho que caminhava a meu lado.
Depois disso, apanhei o hábito de me sentar todos os dias à secretária, ao chegar a casa do trabalho, e de me pôr a estudar um dos quadros pintados por K. Chegava a ficar ali sentado horas seguidas, com um dos quadros na mão. Em cada obra podia ver reproduzidos os lugares pacíficos da minha meninice, durante tanto tempo arredados da minha memória. De todas as vezes que mergulhava o olhar numa das pinturas de K., tinha a sensação de que alguma coisa se entranhava na minha própria pele.
Passara talvez uma semana quando certa noite fui assaltado por um pensamento: e se eu tivesse embarcado num terrível engano durante todos aqueles anos? Se calhar, do alto da onda, K. não olhara para mim com ódio nem ressentimento; se calhar, não era sequer sua intenção arrastar-me consigo. E, nesse caso, o mesmo se aplicava relativamente ao terrível esgar cínico que me lançara, que podia muito bem ter sido resultado de um ângulo menos feliz ou de uma sombra indevida, e não de um acto consciente da parte dele. Nessa altura já K. havia provavelmente perdido os sentidos, se é que não me estava a dirigir um sorriso amável e carinhoso, como que a dizer que haveríamos de nos encontrar de novo do outro lado. O ódio intenso que eu julgara ver espelhado no rosto dele não passara afinal do reflexo da expressão de profundo terror que naquela hora tomara conta de mim.
Quanto mais estudava a aguarela pintada por K., mais esse sentimento se fortalecia no meu íntimo. Vendo bem, por mais que olhasse não encontrava nada senão a jovem alma doce e inocente de K.
Permaneci sentado à secretária durante muito tempo. Não havia nada que eu pudesse fazer para remediar a situação. O Sol pôs-se, e a claridade ténue do crepúsculo começou aos poucos a envolver o quarto. Instalou-se então o profundo silêncio da noite, que parecia nunca mais acabar. Só quando a escuridão perdeu enfim o seu peso é que o amanhecer chegou. A luz do novo dia tingiu o céu de tons rosados e as aves saudaram a Terra com o seu canto.
Soube então que estava na hora de regressar.
Atirei meia dúzia de coisas para dentro de uma mala de viagem, telefonei para a empresa onde trabalhava a avisar que precisava de tirar uns dias e embarquei num comboio rumo à terra que me vira nascer.
Quando lá cheguei, já não fui encontrar a tranquila cidadezinha costeira de que me lembrava. Durante o período de crescimento rápido ocorrido na década de 1960, a cidade transformara-se num importante centro industrial, originando grandes mudanças na paisagem. A única loja de bugigangas e presentes que ficava junto da estação era agora um centro comercial, e no lugar do único cinema encontrava-se agora um supermercado. A nossa casa já não existia.
Tinha sido demolida meses antes, ficando apenas um buraco aberto na terra. As árvores do jardim tinham sido cortadas, sem excepção, e viam-se aqui e ali tufos de ervas daninhas, espalhados pelo terreno negro. Também a velha casa de K. deixara de existir, tendo sido substituída por um parque de estacionamento de betão povoado de carros e carrinhas utilizados pelos utentes da linha-férrea. Não se podia dizer que tudo aquilo me fizesse pena. Havia muito que aquela já não era a minha cidade.
Fui até à beira-mar e subi os degraus que levavam ao molhe. Do lado de lá, como sempre, estendia-se o oceano imenso e infinito, a perder de vista, confundindo-se com a linha sempre a direito do horizonte. A costa, essa, mantinha também ela praticamente o mesmo aspecto de antigamente: o vasto areal, as ondas que vinham brincar na areia, pessoas que passeavam à beira-mar. Passava das quatro e o sol do fim de tarde abraçava tudo em seu redor, à medida que iniciava a lenta e quase meditativa descida para ocidente. Pousei o saco de viagem, sentei-me na areia e ali fiquei a apreciar em silêncio a paisagem tranquila dos meus verdes anos. Ninguém diria que um violento tufão tinha alguma vez passado por ali e que uma onda gigantesca tinha engolido o melhor amigo do mundo. Por aqueles dias, era pouco provável que restasse alguém capaz de se lembrar daquele trágico acontecimento. Começava a ter a impressão de que toda aquela história não passava de uma ilusão, produto invulgarmente vivo da minha imaginação.
Foi então que me dei conta de que a profunda escuridão que habitava dentro de mim tinha deixado de existir. Assim, de um momento para o outro, tão de repente como tinha aparecido. Levantei-me da areia sem me preocupar sequer em tirar os sapatos ou enrolar as calças, avancei até à linha de água e deixei que as ondas me viessem lamber os tornozelos. Numa atitude de quase reconciliação, quis-me parecer, as mesmas ondas que costumavam quebrar na areia quando eu era pequeno enrolavam-se agora docemente a meus pés, deixando-me ficar com os sapatos e a dobra das calças completamente molhados. Primeiro aparecia uma onda, devagarinho, depois havia uma pausa, e a seguir vinha logo outra onda. As pessoas que andavam a passear por ali olhavam para mim com estranheza, mas eu queria lá saber. Ao fim de tantos anos, tinha conseguido regressar ao sítio de partida.
Olhei para o céu. Viam-se pequenas massas de nuvens cinzentas. Como não havia vento, pareciam completamente paradas. Dir-se-ia que estavam ali só para eu poder olhar para elas, mas não me peçam para explicar melhor. Lembro-me de ter olhado assim para o céu, em criança, à procura do "olho" do furacão. Nesse momento, dentro de mim o eixo do tempo deu um enorme salto. Quarenta longos anos caíram por terra como uma casa em ruínas, ao mesmo tempo que os velhos tempos e os novos tempos se misturavam em turbilhão, dando forma a uma única amálgama. Todos os sons deixaram de se ouvir, e as luzes em redor vacilaram. Perdi o equilíbrio e caí nas ondas do mar. Sentia o coração a pulsar no fundo da garganta, perdi a força nos braços e as pernas estavam como que adormecidas. Fiquei naquela posição durante uma eternidade, com a cara na água, incapaz de me levantar. Medo, porém, era coisa que não tinha. Não, decididamente não sentia medo nenhum. Já não tinha nada a recear. Esses dias pertenciam ao passado.
Acabaram-se os terríveis pesadelos. Deixei de acordar aos gritos no meio da noite. Procuro agora reconstruir a minha vida. Bem sei que se calhar é demasiado tarde e que posso não ter tempo para recomeçar tudo de novo. No entanto, mesmo que seja já demasiado tarde, sinto-me grato por, finalmente, me ter sido possível alcançar a salvação até um certo grau, agradeço o facto de estar a caminho da cura. Sim, grato é a palavra. Poderia muito bem ter chegado ao fim da vida sem saber o que era a salvação, condenado a viver até ao fim no meio das trevas, aos gritos, cheio de medo.
O sétimo homem calou-se e olhou à sua volta. Ninguém disse nada, ficaram todos quietos, mal ousando respirar, à espera de saber o resto da história. Lá fora, o vento amainara e nada mexia. O sétimo homem levou a mão ao colarinho, como se estivesse à procura de palavras.
"Dizem-nos que a única coisa que devemos recear é o próprio medo, mas não acredito nisso", disse ele. Depois, passado um momento, acrescentou: "Quer dizer, o medo existe, está lá, obviamente. Aparece-nos à frente das mais variadas maneiras e, quando menos esperamos, esmaga-nos sem apelo nem agravo. A coisa mais terrível que podemos fazer numa altura dessas, todavia, é virar-lhe as costas e fechar os olhos. Porque, nesse caso, estamos a deixar que a coisa mais preciosa que existe dentro de nós seja vencida. No meu caso, essa coisa era a onda."

O ANO DO ESPARGUETE

1971 foi o ano do esparguete. Em 1971 passava o tempo a cozinhar esparguete e vivia para cozinhar esparguete. A visão do vapor, à medida que se libertava da panela de alumínio, enchia-me de alegria e orgulho, enquanto o molho de tomate a borbulhar constituía o ponto alto dos meus anseios.
Tinha-me dirigido propositadamente a uma loja da especialidade para comprar um temporizador de cozinha e uma grande panela de alumínio, daquelas que servem para meter lá dentro um pastor alemão e dar-lhe banho. A seguir, dei uma volta pelos supermercados à procura de tudo o que fossem ingredientes das mais variadas proveniências e arrecadei uma bela provisão de especiarias com nomes tão estranhos quanto divertidos. Comprei ainda um livro que ensinava a cozinhar pasta, bem como tomates à dúzia. Rodeei-me de um sem-número de marcas de esparguete e aperfeiçoei-me na arte de preparar molho de todas as maneiras possíveis e imagináveis. O ambiente recendia ao refogado feito com alho cortado muito fininho, cebola e azeite, formando uma nuvem harmoniosa de odores que penetrava em todos os cantos do apartamento, de cima a baixo, infiltrando-se nas paredes, nas minhas roupas, nos discos, nos sapatos de ténis, sem esquecer as velhas cartas atadas em pequenos molhos. Estamos a falar de um aroma que já ao tempo da Roma antiga dos aquedutos devia andar no ar.
Esta é, portanto, uma história que remonta ao Ano do Esparguete, que é como quem diz, ao ano de 1971 d. C.
Regra geral, tinha o hábito de cozinhar o esparguete para mim e comê-lo sozinho. Estava convencido de que o esparguete era um daqueles pratos que sabem melhor quando apreciados individualmente. Apesar de não ser capaz de explicar a razão, era assim que as coisas funcionavam.
A acompanhar a massa, comia uma salada simples de alface e pepino e costumava beber chá. Tinha sempre a preocupação de que nunca me faltasse nem uma coisa nem outra. Punha tudo muito arrumadinho em cima da mesa e apreciava como deve ser a minha refeição, ao mesmo tempo que passava os olhos pelo jornal. De domingo a sábado, todos os dias eram dia de esparguete. E, em chegando o domingo, lá começava uma nova semana sob o signo do esparguete.
De cada vez que me sentava diante de um prato de esparguete - especialmente nas tardes chuvosas -, tinha o palpite infalível de que, não tardaria nada, estava alguém a bater-me à porta. A pessoa que eu imaginava que me fosse visitar era sempre diferente. Tanto podia tratar-se de um perfeito estranho como de um conhecido meu. Certa vez, apareceu-me à frente uma rapariga de pernas esguias com quem eu tinha namorado na escola secundária, e houve uma ocasião em que recebi a visita de mim próprio, da minha pessoa de há alguns anos. Aconteceu que um belo dia até William Holden me apareceu em casa, trazendo Jennifer Jones nos braços(1). William Holden?
Verdade seja dita que nenhuma dessas personagens chegou alguma vez a entrar-me em casa. Limitavam-se a pairar enquanto fragmentos da memória, do lado de lá da porta, até que se eclipsavam sem sequer bater.
Vieram a Primavera, o Verão e o Outono, e eu sempre enfiado na cozinha, como se fazer esparguete fosse um acto de vingança. Do mesmo modo que uma rapariga solitária e posta de parte se entretém

*1. Par romântico do melodrama Love is a Many Splendored Thing, realizado por Henry King em 1955, que narra uma história de amor entre um correspondente de guerra americano e uma asiática ao tempo da Guerra da Coreia (a acção passa-se em Hong Kong). Entre nós chamou-se A Colina da Saudade. (N. da T.)

a lançar velhas cartas de amor na fogueira, também eu pegava no esparguete e atirava uma porção de massa atrás da outra para dentro da panela.
Reunia as sombras abafadas pelo tempo, enovelava-as em forma de pastor alemão, introduzia-as dentro da água em ebulição e juntava uma pitada de sal a gosto. Ficava então debruçado sobre a panela, atento à cozedura, com uns pauzinhos maiores do que o normal em punho, até o temporizador fazer soar o seu triste lamento.
Cozinhar esparguete tem que se lhe diga, e ai de mim se tirasse os olhos da panela. Bastava eu virar as costas para correr o risco de as tirinhas de massa escorregarem pela borda fora e desaparecerem no escuro. Tal como a selva tropical se apresta a atrair borboletas de todas as cores, dissolvendo-as na eternidade do tempo, a noite permanecia em silêncio, na esperança de devorar os pródigos fios de massa.
Spaghetti alla parmigiana
Spaghetti alla napoletana
Spaghetti al cartoccio
Spaghetti aglio e oglio
Spaghetti alla carbonara
Spaghetti della pina!

Isto sem esquecer os pobres restos de esparguete que, sem direito a nome, são atirados de qualquer maneira para dentro do frigorífico.
Nascidos no calor, os fios de esparguete deslizaram ao sabor da corrente do ano de 1971 e foram à vida.
E eu choro por eles - por tudo o que era esparguete ao ano de 1971.
Quando tocou o telefone, eram três e vinte, estava eu esparramado no tatami, a olhar para o tecto. No sítio onde me encontrava, tinha-se formado uma pequena faixa de sol de Inverno. Num dia do mês de Dezembro de 1971, era ali que me encontrava, imóvel e vazio como uma mosca morta.
A princípio, não me parecia que fosse o telefone. Parecia antes uma lembrança vaga e reticente que se tivesse infiltrado aos poucos por entre as camadas de ar. Finalmente, porém, o som começou a ganhar corpo e percebi que se tratava indiscutivelmente do toque do telefone. Era cem por cento o som do telefone, transmitido pelo ar a cem por cento. Ainda meio deitado, estendi a mão e peguei no auscultador.
Do outro lado da linha estava uma rapariga, cuja voz, de tal maneira fraca e incaracterística, levava a crer que teria desaparecido quando fossem quatro e meia. Tratava-se da antiga namorada de um amigo meu. Ele e a tal rapariga apagada tinham começado a andar juntos por qualquer razão, e por qualquer razão tinham sido levados a romper. Reconheço que terei desempenhado, sem querer, o meu papel no que tocou a juntá-los.
- Desculpa chatear-te - disse ela -, mas por acaso sabes onde é que ele se encontra?
Inspeccionei o telefone e percorri com os olhos o fio. Era mais do que óbvio que estava devidamente ligado ao aparelho. Esforcei-me por dar uma resposta qualquer. A voz da rapariga não pressagiava nada de bom, e se havia coisa que eu não queria era ver-me envolvido em complicações.
- Ninguém me diz onde é que ele anda - queixou-se ela num tom glacial. - Toda a gente faz de conta que não sabe de nada. Mas o certo é que tenho urgência em falar com ele; por isso, peço-te por tudo... diz-me onde é que ele pára. Prometo deixar-te em paz e não te chatear mais. Onde é que o posso apanhar?
- A sério que não sei. Há imenso tempo que não o vejo - respondi-lhe numa voz que não parecia a minha. Em parte, era verdade: não lhe punha a vista em cima há muito tempo, mas obviamente que sabia a morada e o número de telefone. Sempre que conto uma mentira, acontece qualquer coisa de estranho com a minha voz.
Ela não fez comentários.
O telefone parecia feito de gelo. A seguir, foi a vez de todos os objectos à minha volta se transformarem em blocos de gelo, como se estivéssemos numa das histórias de ficção científica saídas da imaginação de J. G. Ballard.
- Juro que não sei - repeti. - Ele desapareceu de circulação há algum tempo, sem dizer nada a ninguém.
A rapariga riu-se.
- Não me lixes. Ele não é assim tão esperto quanto isso, conheço-o de ginjeira. Estamos a falar de um indivíduo que não dá um passo sem fazer alarde disso.
Naquele ponto, ela tinha razão. De facto, não se podia dizer que ele fosse discreto. Quanto a mim, se caísse na asneira de lhe indicar o paradeiro dele, a seguir teria de levar com o meu amigo ao telefone, a dar-me uma ensaboadela das antigas. Estava mais do que farto de ser metido ao barulho nos imbróglios das outras pessoas. Já tinha cavado um buraco no meu quintal, onde nunca mais ninguém desse com ele, e tratado de deitar lá para dentro tudo o que havia para enterrar.
- Lamento imenso - disse eu.
- Não podes comigo, pois não? - disparou ela de repente.
Aquilo deixou-me desarmado. Nem sequer desgostava particularmente dela. Além do mais, torna-se difícil ter má impressão de uma pessoa que não se conhece minimamente.
- Lamento - voltei a dizer. - O que acontece é que estou a cozinhar esparguete neste preciso momento.
- O quê?
- Disse que tinha o esparguete ao lume - menti. Não faço ideia do que me terá levado a dizer semelhante coisa. A verdade, porém, é que se tratava de uma mentira que me era familiar, tanto assim que, pelo menos naquele momento, não era aos meus olhos mentira nenhuma.
Vai daí, enchi uma panela com água e acendi o fogão com um fósforo, tudo na minha cabeça.
- Então? - perguntou ela.
Temperei a água com uma pequena quantidade de sal imaginário, agarrei num punhado de esparguete imaginário e deitei-o para dentro da panela, antes de marcar doze minutos no temporizador que só existia na minha imaginação.
- Então tenho de desligar; caso contrário, o esparguete não fica em condições.
Ela não disse nada.
- Tenho muita pena, mas cozinhar esparguete é uma operação delicada.
A rapariga ficou calada. O telefone na minha mão começou outra vez a aproximar-se do ponto de congelamento.
- Podes ligar-me mais tarde? - acrescentei à pressa.
- Por causa de teres o esparguete ao lume? - perguntou ela.
- Precisamente.
- E estás a cozinhar para mais alguém ou fazes tenções de comer sozinho?
-Vou comê-lo sozinho.
Ela susteve a respiração durante um bom bocado e só depois é que expirou.
-Tu não estás a par da situação, mas a verdade é que estou num aperto. Já não sei para onde me virar.
- Peço desculpa de não ser grande ajuda - disse eu.
- Além do mais, é uma questão que envolve dinheiro.
- Estou a ver.
- Ele está a dever-me dinheiro - adiantou ela. - Não lho devia ter emprestado, mas na altura não pensei nisso. E agora preciso desse dinheiro.
Fiquei calado por momentos, enquanto a minha atenção voltava a concentrar-se no esparguete.
- Lamento imenso - repeti pela enésima vez -, tenho o esparguete ao lume...
Ela soltou uma risadinha forçada.
- Nesse caso, adeus - despediu-se. - Cumprimentos da minha parte ao teu esparguete. Espero que fique bom.
- Adeus - disse eu.
Quando desliguei o telefone, a circunferência de luz no chão estava alguns centímetros mais pequena. Tornei a meter-me dentro daquele círculo de sol e pus-me outra vez a olhar para o tecto.
Pensar em esparguete que passa o tempo todo ao lume e nunca fica demasiado cozido é triste, mesmo muito triste.
Agora arrependo-me um bocado de não ter dito nada à rapariga. Provavelmente, devia ter adiantado alguma coisa. Para começar, o namorado dela não era grande espingarda - estamos a falar de um homem oco que se tinha na conta de artista, um daqueles interlocutores de verbo fácil que ninguém levava muito a sério. O certo é que ela parecia aflita de dinheiro, e, além do mais, independentemente da situação, quem deve tem de pagar.
Volta e meia pergunto a mim próprio o que terá sido feito da tal rapariga. Escusado será dizer que isso acontece sobretudo quando tenho pela frente um prato fumegante de esparguete. Depois de desligar, ter-se-ia ela eclipsado para sempre, engolida pelas sombras ao serem quatro e meia da tarde? E eu, seria em parte responsável por tal?
Gostaria que percebessem a minha posição. Naquele tempo, não queria ter nada que ver rigorosamente com ninguém. Por isso é que passava a vida a cozinhar esparguete, só para mim. Naquela panela enorme, tão grande que dava para meter lá dentro um pastor alemão.
Durum semolina, trigo dourado a ondular ao sabor da brisa nos campos de Itália.
Conseguem imaginar o espanto dos Italianos, se alguém lhes dissesse que, em 1971, o que eles exportavam não era outra coisa senão a solidão?


TONI TAKITANI


Tony Takitani era o verdadeiro nome de Tony Takitani. Por causa do nome que tinha e das feições bastante marcadas, bem como do cabelo encaracolado, era muitas vezes confundido com uma criança de sangue misto. Isto aconteceu logo a seguir à guerra, numa altura em que o que mais havia eram crianças filhas de soldados norte-americanos. Verdade seja dita, porém, que tanto a mãe como o pai de Tony Takitani eram cem por cento japoneses. O seu pai, Shozaburo Takitani, tocava trombone e fora em tempo um conhecido músico de jazz, mas, quatro anos antes de a Segunda Guerra Mundial rebentar, tinha-se visto obrigado a sair de Tóquio por causa de uma história de saias.
Perdido por cem, perdido por mil, deve ter ele pensado. Vendo-se na necessidade de abandonar a cidade, achou por bem dar o grande salto, e pôs-se a caminho da China pouco mais levando na bagagem que o trombone. Por aqueles dias, Xangai a pouco mais ficava de um dia de viagem, apanhando o barco em Nagasáqui. Como não tinha nada que o prendesse a Tóquio - nem a qualquer outra parte do Japão, diga-se de passagem -, Shozaburo partiu sem olhar para trás. Além do mais, tinha um palpite que lhe dizia que Xangai, com o seu fascínio muito especial, se adaptaria melhor à sua maneira de ser. Encontrava-se de pé no convés de um navio que subia o rio Yangtzé(1) quando

*1. Considerado como a fronteira natural entre as regiões mais desenvolvidas do Norte e o Sul da China, é o maior rio da Ásia e percorre 6300 quilómetros desde a nascente (montes Kunlum) até ao mar da China Oriental. (N. da T.)

contemplou pela primeira vez o elegante desenho de Xangai, resplandecente ao sol da manhã, e foi quanto bastou. Apaixonou-se pela cidade. A luz trouxe-lhe a promessa de um futuro tremendamente brilhante. Tinha vinte e um anos de idade.
Os conturbados tempos entre a invasão da China pelas tropas japonesas, o ataque a Pearl Harbor e o lançamento de duas bombas atómicas, passou-o Shozaburo Takitani a tocar trombone nos clubes nocturnos de Xangai. A guerra desenrolava-se longe dali, em distantes paragens. Shozaburo Takitani era um homem que não possuía a mínima consciência ou capacidade de introspecção filosófica no que tocava à guerra. Tocar o seu trombone, comer três refeições por dia e ter sempre duas ou três mulheres por perto era quanto bastava para ser feliz. O facto de se revelar profundamente egocêntrico não o impedia de tratar as pessoas à sua volta com grande bondade e generosidade. Daí que quase toda a gente gostasse dele. Jovem, bem-parecido e bom a tocar o seu instrumento, destacava-se um pouco por toda a parte, como um corvo em dias de neve. Dormiu com mulheres que nunca mais acabavam -japonesas, chinesas, russas, prostitutas, mulheres casadas, raparigas lindíssimas e raparigas que não tinham beleza nenhuma; que é como quem diz, com todas aquelas a que conseguiu deitar a unha. Não tardou que o som suave e profundo do seu trombone, a que se juntava o pénis sempre em actividade, fizesse dele a sensação de toda a Xangai.
Shozaburo Takitani mostrava-se ainda abençoado - apesar de nem se aperceber disso - com um talento muito especial para fazer "amizades" úteis. Mantinha excelentes relações com as mais elevadas patentes do exército japonês, com milionários chineses e todo o tipo de pessoas influentes especialistas em obter lucros gigantescos através de negócios obscuros. Muitos deles traziam armas escondidas debaixo dos casacos e nunca saíam de um edifício sem primeiro antes darem um olhar rápido para a esquerda e para a direita. Por qualquer razão estranha, Takitani pai entendia-se às mil maravilhas com aquele género de figuras. Por seu turno, eles encarregavam-se de tomar muito bem conta dele, e, sempre que ele precisava, abriam-lhe as portas todas e tratavam de lhe resolver os problemas. Naquele tempo, a vida fluía leve como uma brisa para Shozaburo Takitani.
Por vezes, contudo, também pode acontecer que os ventos do destino mudem de feição, transformando a sorte em azar. Com o fim da guerra, as suas ligações dúbias chegaram aos ouvidos do exército chinês, e ele foi mantido prisioneiro durante largo tempo. Os que, como ele, se encontravam atrás das grades, eram retirados das suas celas, um após o outro, e executados sem julgamento. Os guardas limitavam-se a aparecer, arrastavam o prisioneiro até ao pátio da prisão, sacavam das pistolas e metiam-lhes uma bala na cabeça. A cena repetia-se invariavelmente à mesma hora. Quando eram duas da tarde, fazia-se ouvir o som implacável de uma pistola no pátio.
Aquele representou o momento mais perigoso na vida de Shozaburo Takitani. Um fio de cabelo separava literalmente a vida da morte, e ele sempre pensou que morreria ali mesmo. Apesar disso, a ideia de morrer não o assustava por aí além. Espetavam-lhe com uma bala na cabeça, e já estava. Num ai a dor deixaria de se fazer sentir. "Até à data, sempre levei a vida da maneira que queria", pensou ele. "Dormi com uma série de mulheres, comi do bom e do melhor, e tive o meu quinhão de sorte. Não se pode dizer que haja muita coisa de que lamente não ter conseguido. Além do mais, não estou em posição de me queixar. A vida é assim mesmo. Que mais pode um homem querer? Houve milhões de japoneses que morreram nesta guerra, muitos deles de formas bem piores do que aquela que me está reservada." Como tal, acomodou-se com o seu destino, resignado a passar o tempo restante fechado na sua cela. Dia após dia, observava as nuvens através das grades da sua janelinha e punha-se a passar em revista nas paredes da cela rostos e corpos das muitas mulheres com quem tinha dormido. No fim, Shozaburo Takitani acabaria por ser um dos dois prisioneiros de guerra japoneses que saíram vivos da prisão e regressaram a casa. Shozaburo Takitani permaneceu de pé no convés do navio que o levou de volta ao Japão e, enquanto observava as ruas de Xangai a perderem-se na distância, pensou: "Nunca hei-de compreender a vida."
Bastante mais magro e despojado de todos os bens, Shozaburo regressou ao Japão na Primavera de 1946, nove meses depois de a guerra ter acabado, para descobrir que os pais tinham morrido quando a casa deles ardera, no decorrer do grande ataque aéreo de Março de 1945. O seu único irmão desaparecera sem deixar rasto na frente birmanesa. Por outras palavras, Shozaburo Takitani encontrava-se sozinho no mundo. Tal não constituiu, todavia, grande choque para ele, nem tão-pouco fez com que se sentisse particularmente triste ou infeliz.
Naturalmente que, à sua maneira, também ele experimentou na pele um sentimento de perda, mas, ao mesmo tempo, também se apercebeu de que, a páginas tantas, há sempre uma fase na vida de uma pessoa em que ela tem de seguir o seu próprio caminho. Na altura, ele estava com trinta anos, o que é o mesmo que dizer que já não tinha propriamente idade para se queixar da solidão. A sensação que tinha era a de ter envelhecido vários anos de uma assentada. De resto, mais nada. Não se sentia prisioneiro de nenhuma emoção concreta
Sim, de uma maneira ou de outra, Shozaburo Takitani conseguira sobreviver, e na medida em que isso era uma realidade, teria de começar a pensar na maneira de se desenvencilhar.
Uma vez que não sabia fazer mais nada, foi ter com os seus antigos companheiros de folia e formou uma pequena banda de jazz com a qual começou a tocar nas bases militares norte-americanas. A sua natural simpatia conquistou-lhe a amizade de um major americano oriundo de Nova Jérsia, que não só era amante de jazz como sabia tocar muito bem clarinete. Na qualidade de oficial integrado no Corpo de Logística do exército americano, o major podia mandar vir dos Estados Unidos todos os discos de jazz preferidos de Shozaburo Takitani. Nos seus tempos livres, os dois entretinham-se a fazer música e a improvisar. Shozaburo Takitani aparecia amiúde nas instalações militares e os dois ficavam por ali a beber cerveja e a escutar o happy jazz de Bobby Hackett, Jack Teagarden ou Benny Goodman, enquanto Takitani se esforçava por escrever febrilmente as notas para depois se inspirar quando pegasse no instrumento. O major dava-lhe a provar todas as espécies de pratos e servia-lhe leite e álcool, artigos difíceis de encontrar naqueles dias. Nada mau, pensava Shozaburo Takitani. Não se podia dizer que fossem maus tempos para ele.
Shozaburo Takitani casou-se em 1947 com uma prima afastada do lado da mãe. Um dia, por mero acaso, tropeçaram um no outro no meio da rua e deixaram-se ficar à conversa sobre o resto da família e os velhos tempos à frente de uma chávena de chá. Pouco depois, começaram a encontrar-se regularmente e daí a começarem a viver juntos foi um passo - provavelmente o facto de ela ter engravidado ajudou.
Pelo menos, era essa a história que o pai de Tony Takitani lhe contara. Tony Takitani não fazia ideia se o pai, Shoazaburo Takitani,
tinha amado verdadeiramente a sua mãe. Sabia que ela era uma rapariga bonita e calada, se bem que não fosse fisicamente muito resistente, a acreditar nos relatos do pai.
Ela deu à luz um rapaz cerca de um ano depois de se terem casado e morreu três dias depois. Tal como morreu, assim foi cremada. Apagou-se, sem dor nem grande sofrimento, como se alguém se tivesse limitado a sair do palco e a desligar um interruptor.
Shozaburo Takitani não sabia bem como lidar com todas aquelas emoções, estranhas à sua maneira de ser. Tinha dificuldade em definir com exactidão o que era "a morte", da mesma forma que não compreendia o significado daquela morte em particular. Só lhe restava aceitar o facto consumado e não pensar muito no assunto. Sentia uma espécie de pressão, como se um disco ou coisa que o valha se tivesse alojado dentro do seu peito. Por que razão tal acontecia, e do que se tratava, isso já ele não sabia dizer. Sabia, isso sim, que o objecto ali estava, impedindo-o de pensar melhor e mais profundamente no que lhe tinha acontecido. Durante toda a semana que se seguiu à morte da mulher, não pensou rigorosamente em nada. Até do bebé que ficara no hospital se esqueceu.
Coube ao major acolher Shozaburo Takitani debaixo da sua asa protectora e fazer tudo o que estava ao seu alcance para o proteger. Era raro o dia que não se encontravam no bar que havia na base para beber um copo. "Precisas de te recompor", aconselhava o major. "Tens um filho para criar, lembra-te. A partir de agora, só isso conta." As palavras entravam por um ouvido de Shozaburo Takitani e saíam por outro, limitando-se ele a acenar com a cabeça sem dizer nada enquanto o major dizia de sua justiça. Isto apesar de ele ter a perfeita noção de que o major era seu amigo e só queria ajudá-lo. "Olha, já sei", disse o major um belo dia. "Por que é que não me deixas ser o padrinho do rapaz? Gostaria muito de ser eu a escolher o nome dele." Só então Shozaburo se deu conta de que ainda nem sequer escolhera o nome do rebento.
O major sugeriu então o seu primeiro nome, Tony. Não se podia dizer que "Tony" fosse nome que se desse a uma criança japonesa, mas o certo é que aos olhos do major tais pruridos não faziam sentido. Ao chegar a casa, Shozaburo Takitani escreveu o nome de "Tony Takitani" numa folha de papel, pespegou o papel na parede e passou os dias que se seguiram a olhar para ele. Hmm. "Tony Takitani."
Não é mau, não é mau de todo. O mais provável era a ocupação do seu país pelos americanos ainda estar para lavar e durar, por isso um nome todo americano até poderia vir de futuro a dar jeito ao filho.
Quanto ao rapaz propriamente dito, ter um nome daqueles revelou-se um bico-de-obra. Os outros miúdos da escola faziam-lhe a vida negra e chamavam-lhe mestiço e arraçado e punham-se a fazer cara feia, sempre que ele dizia como se chamava. Alguns pensavam que ele só podia estar a gozar, ao passo que outros chegavam mesmo a reagir com violência. Outros havia, ainda, aos olhos de quem o nome de Tony Takitani só servia para reabrir a velha ferida.
Por causa dessas e de outras, o rapaz acabou por se resguardar do mundo. Nunca teve um amigo do peito, mas isso também não tinha importância por aí além. Estar sozinho era uma forma natural de estar: de certa forma, podia dizer-se que era uma espécie de premissa de vida. Que ele se lembrasse, o pai passava o tempo na estrada com a sua banda. Quando era pequeno, tinha em casa uma pessoa que tomava conta dele, mas a partir dos quinze ou dezasseis anos, estava ele a acabar o secundário, já podia ficar entregue a si próprio. Preparava as suas refeições, trancava a porta à noite e ia sozinho para a cama, sem que tal significasse que se sentia só e abandonado. Pelo contrário, sentia-se até mais confortável na sua pele do que tendo alguém sempre atrás dele. Por qualquer razão, depois de ter perdido a mulher, Shozaburo Takitani nunca mais voltou a casar. Obviamente que teve uma data de namoradas, mas nunca levou nenhuma com ele para casa. Tal como o seu filho, também Shozaburo Takitani estava habituado a tomar conta de si. No que dizia respeito aos seus estilos de vida, pai e filho não eram assim tão diferentes como se poderia pensar. Porém, tratando-se de quem se tratava, cada um metido na sua concha e convivendo no mesmo grau com a solidão, nenhum deles tomou alguma vez a iniciativa de abrir o coração e desabafar com o outro. Mais, nenhum deles sentiu necessidade de o fazer. Shozaburo Takitani não estava fadado para ser pai, da mesma forma que Tony Takitani não estava talhado para desempenhar o papel de filho.
Tony Takitani adorava desenhar e ficava horas a fio fechado no seu quarto, a fazer isso mesmo. Gostava especialmente de passar para o papel imagens de máquinas e, com o seu lápis sempre afiado, era mestre na arte de desenhar ao pormenor bicicletas, rádios, motores e outras coisas que tais. Imaginando que desenhava uma flor, esforçava-se para captar todas as nervuras em cada folha. Independentemente do que os outros diziam, a única coisa que lhe interessava era desenhar. Ao contrário do que sucedia nas outras disciplinas, as notas que obtinha nas aulas de arte eram sempre fantásticas, e o primeiro prémio nos concursos artísticos organizados pela escola iam-lhe quase sempre parar às mãos.
Por tudo isso, não é de estranhar que, no fim do secundário, Tony Takitani tenha escolhido frequentar uma escola de belas-artes, a fim de seguir a carreira de ilustrador profissional. (Altura em que, sem que nenhum dos dois o tenha sugerido, pai e filho começaram a viver cada um em sua casa.) De facto, Tony nem sequer encarou outra hipótese. Enquanto os demais jovens da sua idade davam voltas ao miolo, sem saber o que fazer na vida, ele continuou sempre calmamente a fazer os seus desenhos com a mesma precisão mecânica. E porque se viviam tempos conturbados, em que a juventude, dando mostras de paixão e violência, se rebelava contra as forças da lei e da ordem e contra o poder, nenhum dos seus contemporâneos via qualquer valor na sua arte utilitária. Os professores de arte na universidade olhavam para o trabalho que ele produzia com um sorriso condescendente. Os colegas de curso teciam críticas e apontavam o dedo à falta de conteúdo ideológico. Pela parte que lhe tocava, Tony Takitani não conseguia ver o que é que tinham de tão especial as ditas obras que os outros produziam e que se reclamavam imbuídas de "conteúdo ideológico". Aos olhos dele, eram todas elas imaturas, feias e imprecisas.
Depois de ter concluído a licenciatura, contudo, a situação mudou por completo. Graças aos aspectos eminentemente práticos e realistas associados à sua técnica, Tony Takitani nunca teve dificuldade em arranjar emprego. Na verdade, não havia quem conseguisse igualar a precisão com que ele desenhava complicadas maquinarias e projectos de arquitectura. "Parecem mais reais do que os verdadeiros", dizia toda a gente. Os seus esboços revelavam-se mais pormenorizados do que as próprias fotografias, além de possuírem uma clareza que dispensava quaisquer palavras. De um dia para o outro, ele tornou-se um ilustrador célebre com quem toda a gente queria trabalhar. Desde as capas de revistas sobre automóveis às ilustrações para publicidade, tudo o que envolvesse mecanismos passou a ir ter às suas mãos. Além de o trabalho lhe dar gozo, ganhava bom dinheiro.
Entretanto, Shozaburo Takitani lá continuava sozinho a tocar o seu trombone. Veio o modern jazz, depois o free jazz, depois o e/ec-tric jazz, mas Shozaburo Takitani continuou igual a si próprio, sempre a tocar da mesma maneira, agarrado ao seu velho estilo. Se bem que não fosse um músico de primeira linha, o seu nome ainda arrastava muito boa gente e tinha sempre trabalho garantido. Bebia e comia do melhor, e arranjava as mulheres que queria. Em termos mais concretos de satisfação pessoal, podia dizer-se que fazia parte do grupo dos que levavam uma bela vida.
Tony Takitani aproveitava todos os minutos livres para trabalhar. Sem qualquer passatempo digno desse nome que lhe levasse o dinheiro que ganhava, quando chegou aos trinta e cinco anos tinha conseguido amealhar uma pequena fortuna. Deixou-se convencer a comprar uma casa no elegante bairro de Setagaya e tornou-se dono de vários apartamentos que lhe garantiam um rendimento mensal. O seu contabilista era quem se ocupava de tudo.
Chegado àquela fase da sua vida, Tony Takitani já se envolvera com diversas mulheres. Com uma delas, chegara mesmo a viver por pouco tempo quando era mais novo. Contudo, nunca pensara em casamento, uma vez que não via necessidade disso. Cozinhar, tratar da limpeza da casa e da roupa podia ele muito bem fazer, e sempre que o trabalho apertava e interferia com essas tarefas, bastava-lhe contratar uma empregada. Nunca sentiu desejo de ter filhos. Não tinha nenhum amigo mais chegado que fosse ter com ele em busca de conselho ou a fim de lhe abrir o coração, nem tão-pouco para tomar um copo. Isto apesar de não se poder propriamente dizer que ele era um eremita. Se bem que lhe faltasse o encanto especial do pai, mantinha um relacionamento perfeitamente normal com as pessoas que se cruzavam na sua vida diária. Não era pessoa de atitudes arrogantes nem de gabarolices. Não deitava para cima dos outros a sua quota-parte de culpas. Mais do que falar acerca de si, gostava acima de tudo de ouvir o que os outros tinham para dizer. Apesar de quase toda a gente das suas relações gostar dele, isso não impedia que ele se mostrasse inclinado a forjar relacionamentos que ultrapassassem o nível concreto do dia-a-dia de trabalho. O seu pai, deve tê-lo visto uma vez em dois ou três anos, quando havia qualquer assunto que precisava de ser resolvido. E logo que a coisa ficava resolvida, nenhum dos dois tinha muito que dizer ao outro.
E assim corria a vida de Tony Takitani, tranquilamente e sem sobressaltos. "O mais provável é nunca me casar", pensava ele lá no fundo. Um belo dia, porém, Tony Takitani apaixonou-se. De caixão à cova, e sem que nada o fizesse prever. A rapariga era funcionária de uma editora em regime de tempo parcial, para a qual ele trabalhava, e apareceu no escritório dele a fim de ir buscar uma ilustração. Tinha vinte e dois anos e dela pode dizer-se que era uma jovem recatada, sempre com um sorriso suave nos lábios durante todo o tempo que se encontrava no escritório com ele. As feições eram regulares e agradáveis, mas, há que reconhecê-lo, não era nenhuma beleza. E, no entanto, havia nela qualquer coisa de especial que fez bater o coração de Tony Takitani violentamente. Mal pousou os olhos nela, sentiu um aperto no peito, ao mesmo tempo que mal conseguia respirar. Nem sequer se podia dizer que conseguisse explicar o que provocara tamanho abalo no seu coração. E mesmo que o entendesse com clareza, tratava-se de algo que era incapaz de transmitir por palavras.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a maneira como se arranjava. Ele não tinha por hábito interessar-se particularmente pelo que as pessoas traziam vestido, nem era daqueles homens que registam mentalmente ao pormenor cada peça do vestuário das mulheres que se cruzam no seu caminho, mas a verdade é que a maneira como aquela rapariga usava a roupa causou nele uma profunda impressão: de facto, podemos até dizer que a visão dela o comoveu. Muitas mulheres à sua volta vestiam-se com elegância, e outras havia vestidas para atrair os olhares, mas aquela rapariga era diferente. Um caso à parte. Usava a roupa com uma naturalidade e uma graça tais que parecia uma avezinha que, ao sabor do vento, estivesse prestes a deixar-se levar para um outro mundo.
Depois de ter recebido das mãos dele a ilustração, ela agradeceu e abandonou o escritório, deixando-o sem fala durante um tempo, sentado à secretária, desnorteado, incapaz de se concentrar, até que por fim chegou a noite e a sala de trabalho mergulhou na mais completa escuridão.
No dia seguinte, ligou à casa editora e, invocando um pretexto qualquer, arranjou maneira de a tal rapariga voltar ao escritório. Quando o assunto ficou despachado, convidou-a para almoçar. Durante a refeição, trocaram algumas impressões. Apesar de uma diferença de quinze anos, e ainda que possa parecer estranho, tinham muita coisa em comum. Não havia praticamente nenhum assunto em que não estivessem de acordo. Era a primeira vez que ele passava por uma experiência semelhante, e com ela acontecia a mesma coisa. Descontando os nervos, a princípio, ela lá conseguiu descontrair-se e aos poucos começou a rir-se com gosto e a revelar-se mais faladora. "Veste-se lindamente", disse-lhe Tony à despedida. "Gosto de roupas", respondeu ela com um sorriso envergonhado. "Gasto o dinheiro que ganho quase todo nisso."
Depois desse almoço, voltaram a ver-se meia dúzia de vezes. Em vez de irem a algum sítio em especial, preferiam encontrar-se num lugar tranquilo e ficar horas à conversa. Falavam de tudo e de mais alguma coisa, do passado de cada um, do que faziam na vida, das ideias e dos sentimentos acerca disto e daquilo. Nunca se cansavam de conversar, como se cada um contribuísse para preencher o vazio do outro. Por ocasião do quinto encontro, ele pediu-a em casamento. Acontece, porém, que ela tinha um namorado fixo desde os tempos da escola secundária. Com o passar do tempo, a relação deteriorara-se e havia chegado a um ponto em que discutiam pelas coisas mais estúpidas que se possa imaginar. Verdade seja dita, o relacionamento que mantinha com Tony Takitani fazia-a sentir-se muito mais livre e mais alegre, e nem tinha comparação com o outro. No entanto, o certo é que ela não podia cortar assim com o amigo. Tinha as suas razões, por mais misteriosas que fossem. Além do mais, havia a questão da idade, uma vez que entre os dois existia uma diferença de quinze anos. Era ainda muito nova, faltava-lhe experiência de vida. No fundo, ela devia perguntar a si mesma quais as consequências que essa diferença de idade poderiam ter. Isto para explicar que ela pediu tempo para pensar.
Cada dia que passava, era um inferno para Tony Takitani. Deixou de ser capaz de trabalhar. Deu-lhe para beber, sozinho. De repente, a solidão tornou-se um peso esmagador que lhe oprimia o peito, uma fonte de agonia, uma prisão. "Como é que nunca tinha reparado nisso?", interrogava-se ele. Em perfeito desespero, passava o tempo a olhar para as paredes espessas e frias que o rodeavam. "Se ela disser que não quer casar comigo, se calhar mato-me", pensou ele.
Foi ter com ela e contou-lhe tudo o que lhe ia na alma. Falou-lhe de como a sua vida tinha sido solitária até ali, falou-lhe de tudo o que perdera ao longo dos anos. E confessou-lhe que só depois de a ter encontrado é que se dera conta disso mesmo.
Ela era uma jovem inteligente. E tinha-se apaixonado por Tony Takitani. Gostara dele logo de início, e a cada encontro sentia que os seus sentimentos por ele aumentavam. Se a isso se podia chamar amor, ela não o saberia dizer. Sabia, isso sim, que havia algo de maravilhoso dentro dele, e que nada a faria mais feliz do que passar o resto da vida com ela. E foi assim que os dois se casaram.
Ao casar com ela, chegaram ao fim os dias de solidão na vida de Tony Takitani. Quando acordava de manhã, a primeira coisa que fazia era procurar com os olhos por ela. Assim que a via, adormecida ao seu lado, sossegava então. Quando acontecia ela não estar ali, ficava inquieto e não descansava enquanto não percorria a casa toda à procura dela. Constituía uma sensação estranha, saber que não estava sozinho. O simples facto de ter passado a estar acompanhado perseguía-o como uma sombra e fazia-o recear a eventualidade de voltar a ficar só. Que fazer? Por vezes, esse medo levava a que acordasse envolto em suores frios. A cena repetiu-se no decorrer dos três primeiros meses de casamento. À medida que ele se habituou à sua nova vida e que a possibilidade de a mulher desaparecer começou a diminuir, os receios dissiparam-se aos poucos. Por fim, perdeu o medo e atirou-se de cabeça, decidido a gozar a sua nova e pacata vida em clima de felicidade conjugal.
Uma vez, o casal deslocou-se ao bairro de Ginza, para assistir a uma actuação de Shozaburo Takitani. Ela fez questão de saber que género de música fazia o sogro. "Achas que o teu pai se importará se formos vê-lo tocar?", perguntara ela. "Acho que não", respondeu ele.
Deslocaram-se a um clube nocturno em Ginza, onde Shozaburo Takitani estava a actuar. Era a primeira vez, desde a sua infância, que Tony Takitani ouvia o pai tocar ao vivo. Shozaburo Takitani tocou precisamente as mesmas músicas, os mesmos temas que Tony Takitani se fartara de ouvir em disco quando era mais novo. O seu pai possuía um estilo insinuante, elegante e suave de tocar. Não se podia chamar àquilo propriamente arte, mas era música feita por um excelente profissional que possuía o dom de proporcionar ao público momentos de grande prazer. Tony Takitani sentou-se e ouviu a prestação musical do pai, ao mesmo tempo que bebia mais do que a sua conta.
Passado um bocado, contudo, houve qualquer coisa na música que ameaçou roubar-lhe o ar. Começou a fazê-lo sentir-se como se fosse um tubo estreito que se enchia lenta e inexoravelmente de lama, ao ponto de se lhe tornar quase impossível respirar, ou até mesmo permanecer sentado onde estava. Tinha a sensação de que a música que escutava naquele momento era ligeiramente diferente da música que se lembrava de ouvir o pai tocar. Obviamente que já fora há muitos anos, e na altura aquilo soara aos seus ouvidos de criança. Apesar disso, queria-lhe parecer que a diferença era terrivelmente importante. ínfima, se bem que fundamental, disso não tinha ele qualquer dúvida. Gostaria de ter subido ao palco, de ter posto a mão no braço do pai e de lhe ter perguntado: "Porque será que me parece diferente, pai?" Mas, como é evidente, não fez nada disso. Para começar, nunca teria sido capaz de explicar o que lhe ia no pensamento. Por isso, achou melhor calar-se. Em vez disso, assistiu ao resto da actuação do pai enquanto bebia o seu uísque com gelo. Quando o pai acabou de tocar, ele e a mulher aplaudiram e regressaram a casa.
Não havia nada que ensombrasse a vida do casal. Entre eles nunca havia discussões e nos respectivos trabalhos continuava tudo às mil maravilhas. Passavam muitas horas felizes na companhia um do outro. Davam grandes passeios, iam ao cinema, viajavam. Para uma rapariga tão nova, ela revelou-se uma dona de casa espantosa. Entendia na perfeição as virtudes da moderação, era despachada e eficiente no que tocava às tarefas caseiras e nunca dava ao marido razões de queixa. Havia, no entanto, uma coisa que o deixava vagamente preocupado, e que era a tendência que ela tinha para comprar roupa. Mal se deparava com qualquer peça de vestuário que fosse do seu agrado, não era capaz de se conter. Num relâmpago, o seu olhar transfigurava-se e até mesmo a sua voz parecia diferente.
Da primeira vez que isso aconteceu, Tony Takitani pensou que ela tivesse ficado doente de repente. Para falar com franqueza, ele já tinha dado por tal antes de se casarem, mas foi durante a lua-de-mel em terras da Europa que o caso começou a ganhar contornos mais sérios. No decorrer da viagem, ela comprou uma quantidade impressionante de coisas. Em Milão e Paris, parecia que estava possuída e passou os dias, de manhã à noite, a fazer a ronda pelas boutiques. Perderam a oportunidade de passear pelos locais de culto da praxe. Nunca viram o Duomo nem visitaram o Louvre. Da viagem, o que lhe vinha à memória eram as lojas de roupa de marca. Valentino, Mis-soni, Yves Saint Laurent, Givenchy, Ferragamo, Armani, Cerruti, Gian-franco Ferre... Com um ar esgazeado, ela comprou tudo a que conseguiu deitar a mão. Atrás dela, ele lá ia pagando as contas, cada vez mais preocupado com as somas desembolsadas e receando que o limite do cartão de crédito tivesse sido ultrapassado.
De regresso ao Japão, a febre não deu mostras de querer baixar. Tanto assim foi, que ela continuou a comprar roupa nova quase todos os dias. O número de peças de vestuário na sua posse disparou como um foguete. A fim de guardar a roupa, ele mandou construir por medida uns roupeiros enormes, bem como um armário especialmente reservado aos sapatos dela. Mesmo assim, continuava a não haver espaço para guardar tudo. Por fim, Tony Takitani não teve outro remédio senão transformar uma divisão inteira numa espécie de quarto de vestir. Naquela casa enorme, quartos era coisa que não faltava, o mesmo se podendo dizer relativamente ao dinheiro. Além disso, ela usava com brilho a roupa que comprava, e parecia a imagem da felicidade quando estreava qualquer peça de roupa, que Tony Takitani optou por não dizer nada. "Enfim", pensou ele com os seus botões, "ninguém é perfeito."
Quando o volume de roupa começou a ser tão grande que deixou de caber no quarto especialmente concebido para o efeito, nessa altura até mesmo Tony Takitani começou a ter as suas dúvidas. Certo dia, quando ela não se encontrava em casa, resolveu contar os vestidos. Pelas suas contas, ela podia perfeitamente mudar de roupa duas vezes por dia e mesmo assim nunca repetir a mesma fatiota, isto durante quase dois anos. Era um perfeito exagero, para não dizer outra coisa. Não havia maneira de ele perceber a razão que a levaria a passar a vida a comprar montanhas de roupa. Estava sempre tão ocupada nisso, que nem tempo tinha para vestir tudo. Às tantas, ele começou a pensar se aquilo não seria um problema psicológico. Caso assim fosse, não teria outro remédio senão pôr travões àquele hábito dela. Escolheu uma noite depois do jantar para atacar o problema de frente. "Gostaria que pensasses duas vezes antes de continuares a comprar roupa da forma como fazes", disse ele. "Não é por causa do dinheiro, não é disso que estou a falar. Longe de mim pôr objecções ao facto de comprares o que necessitas, e confesso que gosto imenso de te ver sempre tão bonita. A questão é saber: até que ponto precisas de coisas tão caras?"
A mulher baixou os olhos e reflectiu por momentos, após o que olhou para ele e disse: "Tens toda a razão. Não preciso de tantos vestidos, bem sei. Contudo, a verdade é que não consigo refrear os meus impulsos. Sempre que vejo um vestido bonito, tenho de o comprar logo. Independentemente de precisar dele ou não, de ter ou não demasiados vestidos. Não sou capaz de me conter."
Prometeu ainda tentar emendar-se (não sem acrescentar que era uma dependência, como se de uma droga se tratasse). "Se continuo assim, arrisco-me a encher a casa de roupa até ao tecto." A fim de se conseguir manter afastada das lojas de roupa, fechou-se em casa durante uma semana, o que, diga-se de passagem, constituiu para ela um tempo de grande sofrimento. A sensação que tinha era que se movia à superfície de um planeta com pouco oxigénio para respirar. Passou os dias enfiada no quarto de vestir, a passar em revista uma peça do guarda-roupa atrás da outra. Acariciava o tecido e cheirava-o, vestia a roupa e via-se ao espelho, sem nunca se cansar. Quanto mais olhava, mais vontade sentia de comprar qualquer coisa nova. A tal ponto que o desejo de adquirir novas roupas se tornou insustentável.
Não conseguia pura e simplesmente aguentar aquele estado de coisas.
E, contudo, se havia pessoa que ela amava profundamente, e respeitava, era o marido. Além disso, sabia que a razão estava do lado dele. Ela não precisava de todo aquele guarda-roupa. Vendo bem, tinha apenas um corpo. Telefonou para uma das suas lojas preferidas e perguntou à dona se poderia devolver um casaco e um vestido que tinha comprado dez dias antes e que nunca chegara a usar. Foi-lhe respondido que, sim senhora, teriam todo o gosto em aceitar as peças de volta. Afinal, tratando-se de uma das melhores clientes da dita loja, não havia razão para recusar o pedido. Ela transportou o casaco e o vestido dentro do seu Renault Cinque e dirigiu-se para o elegante bairro de Aoyama. Uma vez aí, devolveu a roupa e recebeu uma nota de crédito para descontar no cartão. Depois dos agradecimentos da ordem, ela abandonou a loja e apressou-se a entrar no carro, a fim de ir direita para casa. Agora que tinha devolvido aquelas peças, sentia-se de certa forma mais leve. "Sim", disse com os seus botões, "de facto, confirma-se que eu não precisava de nada daquilo. Tenho casacos e vestidos que chegam e sobram até ao fim da vida." Todavia, enquanto esperava à entrada de um cruzamento que o sinal vermelho passasse a verde, não conseguia pensar em mais nada senão no casaco e no vestido. Lembrava-se das cores, do corte e da textura, tudo com os mais vívidos pormenores. Conseguia ver aquelas duas peças tão claramente como se as tivesse diante dos olhos. A sua testa encheu-se de gotas de transpiração. Com os braços pressionados contra o volante, respirou longa e profundamente e fechou os olhos. Quando tornou a abri-los, o semáforo tinha acabado de ficar verde. Instintivamente, pôs o pé no acelerador.
Nesse preciso momento, um grande camião, que estava a ver se passava ainda com o amarelo, foi embater de lado com toda a violência no Renault. Ela não chegou a sentir rigorosamente nada.
Tony Takitani ficou sozinho com um quarto de todo o tamanho cheio de vestidos tamanho 34 e 112 pares de sapatos. E sem saber que destino dar a tudo aquilo. Como não fazia tenções de ficar para o resto da vida com as coisas usadas pela mulher, decidiu chamar um retalhista e vendeu-lhe tudo o que eram chapéus e acessórios pelo primeiro preço que o homem pediu. Juntou as meias e a roupa interior numa pilha e queimou tudo no incinerador do jardim. Tanto os vestidos como os sapatos eram em número de tal forma exagerado que ele preferiu pura e simplesmente deixá-los ficar onde estavam. Depois do funeral, fechou-se no enorme quarto de vestir e passou o dia inteiro a olhar fixamente para toda aquela série de vestidos pendurados que não deixavam espaço para mais nada.
Dez dias mais tarde, Tony Takitani colocou um anúncio no jornal a pedir uma assistente pessoal que vestisse roupa do tamanho 34 e calçasse o 35, com aproximadamente 1,61 m de altura, prometendo em troca um ordenado muito razoável e boas condições de trabalho. Visto que o ordenado proposto era invulgarmente elevado, apresentaram-se treze mulheres para a entrevista no seu estúdio de Minami-Ayoama que fazia as vezes de escritório. Cinco delas via-se que estavam nitidamente a mentir quanto à sua altura. Quanto às restantes oito, ele escolheu aquela que se afigurava mais parecida com a sua defunta mulher. Tinha vinte e poucos anos e um rosto fora do vulgar. Trazia uma blusa branca e uma saia azul justa. A roupa e os sapatos estavam limpos, mas usados.
"O trabalho em si não é complicado", explicou Tony Takitani à mulher. "Preciso que faça o horário das nove às cinco, que atenda o telefone, faça entregas dos meus trabalhos de ilustração, vá comprar materiais de trabalho, tire fotocópias, esse género de coisas. Só tenho uma condição. Perdi recentemente a minha esposa, e fiquei com montanhas de roupa dela aqui em casa. A maior parte das coisas estão novas ou em muito boas condições. Enquanto aqui trabalhar, gostaria que usasse a roupa dela, como se fosse uma espécie de uniforme, essa a razão pela qual fiz questão de indicar o tamanho da roupa e do calçado no rol dos requisitos para o emprego. Sei que isso lhe deve parecer estranho, mas, acredite em mim, não existe nenhuma razão oculta por detrás da minha decisão. Só preciso de tempo para me habituar à ideia de que a minha mulher já cá não está. Terei de proceder a pequenos ajustes no que respeita à pressão atmosférica, ou lá o que é. E para isso preciso de um certo tempo. Durante esse período, gostaria de a saber por perto e de a ver usar a roupa que era dela. Dessa forma, tenho esperança de me agarrar à ideia de que a minha mulher está morta."
A jovem mordeu o lábio e esforçou-se por organizar rapidamente as suas ideias. Era, tal como ele dissera, um pedido deveras bizarro - tão estranho, de facto, que nem ela própria sabia da missa a metade. A parte acerca de a mulher ter morrido recentemente, tudo bem; agora, o que não entendia era a razão pela qual teria de se apresentar para ir trabalhar todos os dias vestida com as roupas da mulher dele. Normalmente, seria tentada a pensar que estava na presença de um caso típico de gato escondido com rabo de fora. Ao mesmo tempo, porém, aquele homem não parecia ser má pessoa. Bastava ouvi-lo falar para ficar com essa impressão. Se calhar, o facto de ter perdido a mulher fizera-lhe mal à cabeça, mas o certo é que não parecia o género de homem capaz de deixar que uma coisa dessa natureza o levasse a fazer mal a terceiros. E, além disso, precisava a todo o custo de trabalhar. Andava há muito tempo à procura de emprego, e o subsídio de desemprego acabava no mês seguinte. A partir daí, deixaria de ter dinheiro para poder pagar a renda. E, estando as coisas difíceis como estavam, o mais provável era nunca mais arranjar um trabalho decente, tão bem pago como o anterior.
"Julgo compreender a situação", respondeu ela. "Provavelmente não na sua totalidade, mas creio estar em posição de fazer o que me pede. Primeiro, contudo, gostaria de passar os olhos pelas tais peças de roupa que terei de vestir. Preciso de confirmar se o tamanho é realmente o meu." "Claro", acedeu Tony Takitani, e levou a rapariga até sua casa, a fim de lhe mostrar a divisão a abarrotar de roupa. Ela nunca tinha visto tantos vestidos juntos, a não ser nas lojas, bem entendido, e era mais do que óbvio que se tratava de peças de grande qualidade que tinham custado os olhos da cara, e de um bom gosto irrepreensível. A visão quase fazia doer os olhos, ao ponto de ela sentir falta de ar. O coração desatou a bater-lhe no peito sem justificação. "Era quase como se estivesse sexualmente excitada", pensou ela. Depois de sugerir que vestisse o que lhe apetecesse, Tony Takitani deixou a mulher sozinha no quarto. Ela lá se recompôs e experimentou alguns vestidos que estavam mais à mão. Fez o mesmo com os sapatos. Servia-lhe tudo na perfeição, como se tivesse sido feito à sua medida. Ela pegou neste e naquele vestido e apalpou o material de que eram feitos, passando os dedos pelo tecido e aspirando a fragrância que dele se desprendia. Centenas de magníficos vestidos encontravam-se ali pendurados em filas de cabides. Não demorou muito até que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Ela não conseguia impedir-se de chorar e as lágrimas escorriam-lhe pela cara. Enfiada dentro de um vestido que pertencera à defunta, ela permaneceu ali quieta, a soluçar, esforçando-se por abafar o som que lhe saía da garganta. Pouco depois, Tony Takitani apareceu de novo junto dela. Quis saber o que se passava com ela e perguntou-lhe por que chorava. "Não sei", respondeu ela, abanando a cabeça. "Talvez por nunca ter visto tantos vestidos lindíssimos. Se calhar, foi isso que me perturbou, peço desculpa." Dito aquilo, usou um lenço para limpar as lágrimas da cara.
"Se achar bem, gostaria que se apresentasse no meu escritório amanhã mesmo", disse Tony num tom profissional. "Pode escolher vestidos e sapatos para uma semana de trabalho e levá-los consigo para casa."
A mulher demorou o seu tempo a escolher roupa que chegasse para seis dias de trabalho. Em seguida, procurou sapatos a condizer. Depois, guardou tudo numa mala. "Leve também um casaco", sugeriu Tony Takitani, "no caso de o tempo arrefecer", e então ela optou por um casaco cinzento de caxemira com ar de ser quente. Era tão leve que parecia feito de penas. Nunca um casaco tinha pesado tão pouco em cima do seu corpo.
Assim que a jovem se foi embora, Tony Takitani voltou ao quarto de vestir da mulher, fechou a porta e entreteve-se a percorrer com o olhar perdido os vestidos ali pendurados. Sentia extrema dificuldade em perceber a razão que levara a mulher a chorar à vista de todos aqueles vestidos. Aos olhos dele, não passavam de sombras que a sua mulher deixara para trás. Sombras com o tamanho 34, penduradas em cabides, ao lado umas das outras, como amostras das infinitas possibilidades (isto pelo menos em teoria) que se ofereciam à espécie humana.
Essas sombras tinham outrora envolvido o corpo da sua mulher, que por seu turno lhes tinha dado forma com o sopro da vida. Naquele momento, porém, o que se oferecia ao seu olhar não passava de uma quantidade de sombras desprovidas de vida, sobras de roupa de mulher que não faziam aos seus olhos qualquer sentido. As suas cores vívidas dançavam ao sabor da aragem como o pólen libertado pelas flores, alojando-se nos olhos e nas orelhas e nas narinas. Tudo o que era folhos, botões, enchumaços, laçadas, bolsos e cintos como que sugavam avidamente o ar daquela divisão, tornando difícil o próprio acto de respirar. Uma quantidade desusada de bolas de naftalina impregnava a atmosfera de um perfume que poderia confundir-se com o som mudo de milhares de minúsculos insectos alados. Ocorreu-lhe de repente que odiava aqueles vestidos. Encostou-se à parede, cruzou os braços e fechou os olhos. A solidão apoderou-se uma vez mais dele, envolvendo-o no seu quente manto de escuridão. "Acabou tudo", pensou ele. "Faça eu o que fizer, está tudo acabado."
Telefonou à mulher e disse-lhe que esquecesse a história do emprego. Lamentava imenso, mas já não precisava dos serviços dela.
"Como é que uma coisa dessas pode ser?", perguntou ela, sem poder acreditar.
"Tenho muita pena, mas a situação mudou de figura. Pode ficar com a roupa e os sapatos que levou para sua casa. Considere-os uma oferta da minha parte, e com os sapatos e as malas a mesma coisa. Gostaria apenas que se esquecesse de que tudo isto aconteceu, assim como lhe peço o especial favor de não contar nada a ninguém."
Escusado dizer que a muiher ficou sem perceber o que se passava. Mesmo assim, ainda tentou obter dele outras informações, mas quanto mais perguntas lhe fazia, menos entendia a situação. "Compreendo", disse ela por fim, e desligou.
Durante alguns momentos, a mulher ficou furiosa com Tony Takitani, mas, às tantas, concluiu que afinal tinha sido melhor assim. Havia que reconhecer que a situação era à partida algo bizarra. Ficou com pena por causa do emprego, como não podia deixar de ser, mas logo pensou que havia de arranjar outro num futuro próximo.
Desempacotou os vestidos que trouxera de casa de Tony Takitani, alisou-os com a mão e pendurou-os no seu roupeiro. Quanto aos sapatos, guardou-os no armário para o efeito que ficava junto à porta de entrada. Comparados com as peças acabadinhas de chegar, a sua velha roupa e os seus próprios sapatos tinham um aspecto francamente deprimente, como que feitos de tecidos e matérias de uma outra dimensão. Despiu a blusa e a saia que tinha levado à entrevista, pendurou a roupa num cabide e vestiu antes umas calças de ganga e uma camisola. Depois sentou-se no chão, a beber uma cerveja que tinha ido buscar ao frigorífico. Ao recordar a montanha de vestidos que tinha visto em casa de Tony Takitani, suspirou profundamente. "Tantos vestidos bonitos", pensou. "E aquele "roupeiro", se é que se pode chamar roupeiro a uma divisão maior do que o meu apartamento. Imagino o tempo e o dinheiro que não devem ter sido investidos na procura e compra de todas aquelas vestimentas. E, agora, a mulher morreu, deixando atrás de si um quarto cheio de vestidos tamanho 34. Qual será a sensação de uma pessoa morrer e deixar ficar tantos e tão maravilhosos vestidos?"
Todos os seus amigos estavam fartos de saber que ela se encontrava numa situação financeira difícil, por isso estranharam quando começou a aparecer sempre com um vestido novo de cada vez que se encontravam - ainda por cima, tudo vestidos de marca e caros. Sempre que lhe perguntavam onde é que tinha ido desencantar uma farpela daquelas, a resposta era a mesma. "Prometi não contar nada a ninguém", dizia ela, abanando a cabeça. "E, além disso, mesmo que vos dissesse alguma coisa, não iriam acreditar em mim." ,",
Por fim, Tony Takitani recorreu a um comerciante de roupa em segunda mão que tratou de levar lá de casa todas as peças do guarda-roupa da mulher. O homem ofereceu-lhe um valor vinte por cento inferior ao que tinha pago, mas isso para ele era o menos. De bom grado teria oferecido tudo, desde que lhe levassem as coisas lá de casa. De preferência para um sítio onde nunca mais lhes pudesse pôr a vista em cima.
Assim que a roupa foi à vida, Tony Takitani deixou o quarto de vestir vazio durante muito tempo.
Volta e meia ia até ao quarto, sem fazer nada em particular, deixando apenas os seus pensamentos vaguear. Sentava-se(2) no chão e ali se deixava estar, a olhar para as paredes vazias, para as sombras da sua mulher morta que ainda ali permaneciam. Porém, à medida que o tempo foi passando, começou a ter dificuldade em lembrar-se daquele quarto tal como ele era. A evocação das cores e dos cheiros desvaneceu-se quase sem que ele desse por isso. Até mesmo as emoções mais intensas que ele em tempos conhecera desapareceram, definitivamente arredadas dos meandros da sua memória. Como nevoeiro trazido pela brisa, as suas recordações mudavam de forma, tornando-se cada vez um nadinha mais ténues. Cada lembrança tornara-se a sombra de uma sombra. A única coisa que permanecia era o sentimento de ausência. Por vezes, mal se conseguia lembrar das feições da sua mulher. O que lhe vinha à mente, porém, era o rosto da outra mulher, uma perfeita estranha, derramada em lágrimas ao ver todos os vestidos da sua mulher morta. Recordava especialmente a cara dela, sem uma expressão distinta, bem como os seus sapatos de couro, gastos. Ao lembrar-se disso, veio-lhe à memória o seu mudo soluçar de dor. De facto, não era que quisesse estar a evocar tudo aquilo, o que acontecia era que, antes de dar por isso, voltava tudo outra vez. Muito depois de ele ter esquecido toda a espécie de coisas, incluindo o nome da mulher, a imagem dela permaneceu estranhamente viva na sua lembrança.
Dois anos depois de a sua mulher ter morrido, o pai de Tony Takitani morreu de cancro no fígado. Para alguém com um cancro, Shozaburo Takitani sofreu pouco e não chegou a estar muito tempo
internado no hospital. A morte surpreendeu-o de mansinho, foi quase como se tivesse adormecido. Nesse sentido, pode dizer-se que ele foi abençoado pelo destino até ao fim. Tirando algum dinheiro e umas quantas acções, Shozaburo Takitani não legou ao filho fortuna nenhuma digna desse nome. Apenas o seu instrumento e uma impressionante colecção de velhos discos de jazz. Tony Takitani deixou ficar os discos tal como estavam, ainda guardados nos caixotes de cartão cedidos pela empresa de mudanças, empilhados no chão do quarto vazio. Por causa do cheiro a mofo, Tony Takitani viu-se obrigado a abrir regularmente as janelas a fim de arejar aquela divisão da casa. Sem ser para isso, nunca punha os pés naquele lugar.
E assim se passou um ano, até que a ideia de ter uma montanha de discos lá em casa começou a incomodá-lo cada vez mais. Muitas vezes, só de pensar na quantidade de discos que para ali estavam, desconsolados, começava a sentir dificuldade em respirar. Outras vezes, acordava a meio da noite e depois já não conseguia voltar a adormecer. Com o tempo, as suas recordações tinham-se tornado indistintas, apesar de ainda lá se encontrarem, onde sempre tinham estado, com todo o peso que as recordações podem ter.

Por fim, ele mandou chamar um coleccionador que comprava discos usados e pediu-lhe que dissesse quanto queria pela colecção inteira. Pelo facto de se tratar, na sua maioria, de discos muito valiosos, recebeu por eles uma boa maquia - de tal forma que deu para comprar um pequeno carro utilitário. Aos olhos dele, contudo, o dinheiro não significava nada.
Só quando aquela pilha de discos desapareceu lá de casa, é que Tony Takitani soube o que era encontrar-se realmente sozinho.

*2. Depois de ver imagens do filme de Jun Ichikawa (2004), baseado nesta história de solidão e perda (a fotografia do filme tem a assinatura de Yoshikazu Ichida e a banda sonora é de Ryuichi Sakamoto), apetece traduzir "deitava-se", mas Mura-kami escreveu "sentava-se". (N. da T.)


ASCENSÃO E QUEDA DOS AZEDOS


Estava eu, ainda meio ensonado, a ler o jornal da manhã, eis senão quando o meu olhar recaiu sobre a seguinte notícia: "Conhecido Fabricante dos Azedos Procura Novos Produtos. Importante Seminário Promocional".
Nunca antes na minha vida tinha ouvido falar em "Azedos", para mais tratando-se de bolos, mas por certo devia tratar-se de alguma especialidade da doçaria tradicional. Confesso que sou especialmente interessado em tudo o que se prenda com confecção de doces, além de que tempo era coisa que não me faltava. Decidi, por isso, ir ver com os meus próprios olhos esse tal seminário promocional.
Realizava-se no salão de um hotel, e foi servido um chá acompanhado de bolinhos. Escusado será dizer que os bolos eram os ditos Azedos. Experimentei um, mas não posso dizer que tenha sido muito do meu agrado. Possuía uma textura adocicada, algo enjoativa, e a cobertura era demasiado seca para o meu gosto. Custava-me a crer que, nos tempos que corriam, os estratos mais jovens ainda apreciassem aquele género de doces.
E, contudo, diga-se em abono da verdade, quase todos os participantes no tal seminário eram ou da minha idade ou mais novos. Pela parte que me tocava, recebi o número 952, mas depois de mim ainda apareceram pelo menos mais cem pessoas, o que significa que deviam estar para cima de mil pessoas naquela reunião. Era uma panelinha e tanto.
Ao meu lado, estava uma rapariga que devia andar na casa dos vinte e usava óculos com lentes grossas. Não se podia dizer que fosse uma grande beleza, mas parecia simpática.
- Diga-me uma coisa, alguma vez experimentou estes tais bolos que dão pelo nome de Azedos? - perguntei-lhe.
- É evidente - respondeu ela. - São famosos.
- Pode ser que sim, mas não são lá... - comecei eu a dizer quando ela me deu um toquezinho no pé. À nossa volta, os olhares reprovadores na minha direcção eram mais do que muitos. O ambiente tornou-se de cortar à faca, mas eu encarei a coisa com aquele meu ar inocente à Ursinho Puff, que é como quem diz, o ar mais inocente do mundo.
- Perdeu a cabeça? - sussurrou-me a rapariga ao ouvido. - Aparecer num local destes e pôr-se a dizer mal dos Azedos? Olhe que o Bando dos Azedos ainda lhe deita a unha. Não saía daqui vivo.
- O Bando dos Azedos? - exclamei. - Mas que diabo...?
- Chiiiiiu! Fale baixo - interrompeu-me ela. A reunião estava prestes a começar.
O presidente da empresa que fabricava os tais bolos deu início à ordem de trabalhos e começou por traçar resumidamente o percurso dos Azedos. Tratava-se de um daqueles relatos "factuais" algo ambíguos acerca de como uma-certa-e-determinada-pessoa, em meados do século XVIII, misturou isto com aquilo e levou os ingredientes ao forno, inventando assim aquele que seria o primeiríssimo Azedo. Havia inclusivamente um poema acerca dos famigerados bolos na Antologia da Poesia Japonesa de Kokinshu(1), publicada nos primórdios do século X. Naquele ponto, quase soltei uma gargalhada, mas, como toda a gente à minha volta parecia seguir a história com a maior atenção, lá me contive a tempo. Além do mais, ficara algo temeroso ao saber da existência dos anunciados Corvos.

*1. O Conto de Cenji (Cenji Monogatari) e a antologia da poesia japonesa de Kokinshu são apenas duas das criações literárias do período Heian Médio, que, por volta do ano 1000, viu florescer uma cultura aristocrática centralizada na corte, ao mesmo tempo que constituiu uma época de grande criatividade na literatura, na religião e nas artes. A referência não é despropositada, uma vez que Murakami retrata nesta deliciosa fábula o mundo da literatura e da crítica no Japão, ao tempo da publicação das suas primeiras obras. (N. da T.)

O discurso do presidente da firma durou cerca de uma hora. Revelou-se entediante até dizer chega. O que ele tinha para anunciar resumia-se ao facto de os Azedos serem produto de uma longa tradição, coisa que poderia muito bem ter sido dita em meia dúzia de palavras.
A seguir entrou em cena o director-geral, que falou sobre a necessidade de inovação da empresa. Os Azedos eram uma confecção nacional de alto gabarito, referiu ele, mas até mesmo um produto fora de série precisa de sangue novo para continuar a crescer, a fim de se manter na crista da onda e desenvolver de uma maneira capaz de agradar às camadas mais jovens. Isto até pode ter soado bem, mas, no fundo, o que ele disse foi apenas que o sabor dos Azedos já não era o que costumava ser e que as vendas tinham vindo a diminuir, o que fazia com que a corporação precisasse urgentemente de gente nova com ideias novas. Bem que ele podia ter dito aquilo mesmo de uma forma mais simples.
A saída, arranjei uma cópia das regras de admissão. Uma pessoa tinha o prazo de um mês para confeccionar qualquer coisa baseada na receita dos Azedos e dá-la a conhecer à empresa. O vencedor do concurso receberia dois milhões de ienes. Se eu tivesse dois milhões de ienes, casava-me com a minha namorada e ia morar para um novo apartamento. Decidi-me, portanto, a inventar um novo género de Azedos. Tal como referi anteriormente, posso ser bastante exigente, no que diz respeito à confecção de doces. Isto sem esquecer que sei fazer praticamente de tudo um pouco: geleia de feijão, recheio de creme, coberturas variadas(2). Não devia ser difícil para mim criar uma variante devidamente actualizada dos Azedos. Na data marcada, preparei doze bolinhos Azedos e apresentei-me com eles na recepção da empresa que os criara e fabricava.
- Têm bom aspecto - disse a rapariga que estava no balcão de atendimento.
- São bons - disse eu.

*2. Para acompanhar a cerimónia do chá e não só, os doces tradicionais japoneses são confeccionados à base de ingredientes variados e primorosamente decorados. Vêem-se um pouco por toda a parte, nas montras das lojas e cafés, e são sobejamente celebrados na literatura. (N. da T.)

Um mês mais tarde, recebi uma chamada telefónica a pedir-me para me deslocar às instalações da firma no dia seguinte. Apresentei-me de gravata e fui recebido na recepção pelo director-geral.
- Os novos bolos Azedos que submeteu à nossa aprovação foram muito bem recebidos por toda a gente aqui na empresa - referiu ele. - Especialmente pelos... pelos membros mais novos da nossa equipa.
- Folgo em saber isso - afirmei.
- Por outro lado, contudo, temos aqueles, entre os nossos funcionários mais antigos, que - como é que hei-de dizer? - defendem que o produto que o senhor apresentou não é bem um bolo azedo. Neste momento, vive-se um clima de aceso debate interno.
- Estou a ver - disse eu, sem saber muito bem onde é que ele estava a querer chegar.
- Por isso, o corpo directivo da nossa empresa optou por deixar a decisão nas mãos de Suas Santidades, os elementos do Bando dos Azedos.
- O Bando dos Azedos - exclamei. - O que são, ou quem são, os corvos que fazem parte do tal Bando dos Azedos?
O director-geral lançou-me um olhar incrédulo.
- Está a querer dizer-me que entrou nesta competição sem estar devidamente informado acerca do Bando dos Azedos?
- Lamento. Levo uma vida muito recatada.
- Isso é terrível - observou ele. - Portanto, se não conhece a existência do Bando dos Azedos, então... - Nesse ponto, interrompeu o que ia a dizer. - Ora, deixemos isso. Venha comigo, por favor.
Segui o director-geral para fora da sala, atravessámos a área da recepção e apanhámos o elevador até ao sexto andar, onde percorremos outro corredor, ao fim do qual havia uma enorme porta de ferro. O director-geral tocou à campainha e apareceu de imediato um segurança todo artilhado. Mal ele teve a certeza de que se tratava do director-geral, abriu a porta. Pelos vistos, a segurança era apertada.
- É aqui que residem suas excelências, os membros do Bando dos Azedos - anunciou o director. - Estamos a falar de uma espécie muito rara da família das aves. Durante séculos, estes corvos nunca se alimentaram de outra coisa a não ser de Azedos.
Não era preciso mais nenhuma explicação. Havia para cima de uma centena de corvos naquele espaço cavernoso, que mais parecia um armazém, com os seus tectos que se elevavam a uma altura de quinze metros e postes enormes ao longo das paredes. Apertados uns contra os outros, em filas muito apertadas, os corvos alinhavam-se em cada um dos postes. Eram maiores do que os corvos normais, para aí com um metro de comprimento. Até mesmo os mais pequenos deviam medir uns bons dezasseis centímetros. Não tinham olhos, quis-me parecer. No sítio onde deviam estar os olhos, tinham globos brancos de gordura. Os corpos estavam inchados ao ponto de parecer que iam rebentar.
Quando os corvos nos ouviram entrar, começaram a bater as asas e a querer gritar. Ao princípio, aquilo soou como um rugido disforme, mas, à medida que os meus ouvidos começaram a acostumar-se ao som, percebi que eles deviam estar a gritar: "Azedos! Azedos!" Eram, de facto, umas criaturas horripilantes.
Assim que o director tirou de dentro de uma caixa que trazia na mão os ditos Azedos e os espalhou no meio do chão, os mais de cem pássaros voaram, em jeito de resposta, direitos aos bolos. Na febre de apanharem um azedo, os corvos desataram a bicar-se uns aos outros nas patas e nos olhos. Não admirava que tivessem ficado sem olhos.
Em seguida, o director-geral tirou algo parecido com um Azedo de uma outra caixa e depositou tudo no chão.
- Preste atenção - alertou-me ele. - Esta é uma receita que ficou eliminada do concurso.
Os pássaros mergulharam em bando num voo cego, tal como tinham feito antes, mas assim que se aperceberam de que os bolos não eram os verdadeiros, apressaram-se a cuspi-los e começaram a soltar grasnidos zangados.
Azedos!
Azedos!
Azedos!
- Está a ver? Não lhe disse? Eles só comem o produto genuíno - disse o director-geral fazendo um esgar de riso. - Não tocam nas imitações.
Azedos! Azedos! Azedos
- Agora, vamos experimentar a mesma coisa com o seu novo bolo Azedo. Se o comerem, ganhou. Se não o quiserem, perdeu.
Que diabo, alguma coisa me dizia que a coisa ia dar para o torto. Era uma perfeita idiotice ter deixado que fosse um bando de pássaros estúpidos a decidir o resultado da competição. Indiferente às minhas apreensões, o director-geral afadigava-se a espalhar os novos Azedos pelo chão. Os corvos atacaram de novo, e depois foi o inferno que se viu. Enquanto uns se alambazavam com os meus bolinhos, outros cuspiram-nos e desataram a gritar: "Azedos! Azedos!" Isto para já não falar naqueles que, na impossibilidade de abocanhar os chamados Azedos, entraram em parafuso e começaram às bicadas no pescoço das aves que estavam a alimentar-se. Havia sangue por todo o lado. Um corvo deu um salto e deitou as garras a um bolo que outro cuspira, mas depois outro corvo gigante aterrou em cima dele e, aos gritos de "Azedos", dilacerou com as garras o bucho do primeiro. A partir daí, foi a desordem generalizada, com o sangue a originar mais sangue, a fúria a desencadear uma fúria maior. Tudo por causa de uns malditos queques. Se bem que, para os pássaros, aqueles bolos fossem tudo. Ser ou não ser um Azedo, passara a ser uma questão de vida ou de morte.
- Olhe só o que o senhor causou - censurei eu o director-geral. - Atirou-lhes os bolos à cara, de chofre, e agora é o desatino que se vê.
Dito aquilo, saí da sala por minha iniciativa, apanhei o elevador para baixo e abandonei o edifício onde funcionava a sede da Companhia dos Azedos. Detestava a ideia de ficar sem a recompensa no valor de dois milhões de ienes, mas não estava disposto a passar o resto da vida associado aos malditos corvos.
A partir daí, decidi, só cozinharia e só provaria a comida que me desse na real gana, a mim. Pela parte que me tocava, os danados dos corvos podiam bicar-se uns aos outros até à morte.


O HOMEM DE GELO


Sou casada com um Homem de Gelo. A primeira vez que o vi, foi no hotel de uma estância de esqui. Haverá lugar mais apropriado para se travar conhecimento com um Homem de Gelo? O vestíbulo do hotel estava repleto de grupinhos de gente nova, e ele encontrava-se a um canto, sentado, o mais afastado possível da lareira, calmamente entretido a ler um livro. Era quase meio-dia, mas a luz fria e pura da manhã parecia incidir apenas sobre ele.
"É um Homem de Gelo", sussurrou uma das pessoas que estavam comigo. Na altura, não fazia ideia do que poderia ser um Homem de Gelo, e a minha amiga também não. A única coisa que sabia era que lhe chamavam Homem de Gelo. "Provavelmente por ser feito de gelo", acrescentou ela, muito séria, como se estivesse a falar de um fantasma ou de alguém com uma doença contagiosa. O Homem de Gelo tinha aspecto de pessoa bastante nova, apesar dos fios brancos que despontavam no seu cabelo espetado e hirsuto, e que davam a impressão de serem restos de neve. Era grande, tinha as feições talhadas a escopro e martelo, como se fosse um penhasco de gelo, os dedos cobertos de geada que não derrete nunca. Tirando isso, possuía um aspecto perfeitamente normal. Não se podia dizer que fosse propriamente bonito, apesar de poder existir quem visse nele um homem atraente. Havia nele qualquer coisa que tocou fundo no meu coração. Sobretudo os olhos, com aquele seu olhar silencioso, transparente, que cintilava como um cristal de gelo numa manhã de Inverno - o único sopro de vida num corpo feito para não durar muito. Fiquei ali durante um certo tempo, a olhar de longe, fixamente, para o Homem de Gelo. Nitidamente absorvido na sua leitura, ele nem uma única vez se mexeu ou levantou os olhos do livro, como se quisesse convencer-se a si próprio da profunda solidão em que se encontrava.
Na tarde do dia seguinte fui encontrá-lo no mesmo sítio, a ler o seu livro. Sempre que eu ia almoçar à sala de jantar e, mais tarde, à noitinha, de regresso ao hotel depois de ter ido esquiar, lá estava ele, sentado na mesma cadeira, com a mesma expressão no olhar à medida que passava as folhas do mesmíssimo livro. No dia seguinte, a cena repetia-se. De manhã à noite, era possível ir dar com ele ali sentado e sozinho, fazendo, aos olhos do mundo, parte imutável de uma paisagem gelada de Inverno.
Na tarde do quarto dia, inventei uma desculpa e não acompanhei o restante grupo à pista de esqui. Em vez disso, fiquei no hotel e pus-me a deambular pelo vestíbulo. Uma vez que toda a gente parecia ter ido esquiar, o hotel parecia uma cidade abandonada. Respirava-se uma atmosfera quente e abafada e no ar notava-se um cheiro estranhamente pesado, desagradável - o cheiro da neve que vinha agarrada às botas das pessoas e que se derretera aos poucos com o calor da lareira. Ocupei o tempo a contemplar a paisagem da janela e a passar os olhos pelo jornal. Finalmente, enchi-me de coragem, fui ter com o Homem de Gelo e apresentei-me. Confesso que sou muito tímida, e que é muito raro meter conversa com desconhecidos, mas foi superior às minhas forças. Tinha de chegar à fala com ele. Era a última noite que passava no hotel e, caso deixasse passar a oportunidade, nunca mais voltaria a ter outra assim.
- Não pratica esqui? - perguntei como quem não quer a coisa. O Homem de Gelo levantou os olhos devagar, dando a impressão de estar a ouvir o barulho do vento ao longe. Olhou fixamente para mim e limitou-se a abanar tranquilamente a cabeça.
- Não faço esqui - disse ele. - Contento-me em ficar por aqui a ler e a ver a neve.
As suas palavras flutuaram no ar, formando uma espécie de balão de diálogo como os que se vêem nas tiras de banda desenhada, com todas as palavras perfeitamente desenhadas lá dentro. Com gestos delicados, ele sacudiu um bocadinho de geada dos seus dedos.
Fiquei sem saber o que dizer mais. Corei e deixei-me ficar ali plantada, agarrada ao chão. O Homem de Gelo olhou-me nos olhos e esboçou aquilo que me pareceu ser um ligeiro sorriso. (Não vou jurar.) Teria o Homem de Gelo de facto sorrido? Se calhar, tinha sido eu a imaginar.
- Não se quer sentar? - perguntou ele. - Talvez possamos conversar um bocado, noto que tem uma certa curiosidade a meu respeito. Gostaria de saber como é um Homem de Gelo, não é verdade? - Após ter dito aquilo, sorriu delicadamente. - É perfeitamente natural. Não tenha medo que não vai apanhar nenhum resfriado só por estar aqui a falar comigo.
Sentámo-nos num sofá a um canto do vestíbulo, a conversar timidamente, enquanto víamos os flocos de neve a rodopiar lá fora. Pela minha parte, pedi um chocolate quente, mas o Homem de Gelo não quis beber nada. Em timidez, não ficava atrás de mim. Além do mais, não tínhamos muitos assuntos sobre os quais pudéssemos conversar. Falámos do tempo, para começar, depois acerca do hotel.
- Encontra-se aqui sozinho? - quis eu saber. Que sim, respondeu-me.
- Gosta de fazer esqui? - perguntou ele por sua vez. Não especialmente, esclareci. Algumas das minhas amigas fizeram questão de que eu viesse, mas a verdade é que mal sabia esquiar.
Estava desejosa de saber como era, de facto, um Homem de Gelo. Seria realmente feito de gelo? E como é que se alimentava? Onde é que vivia quando chegava o Verão? Teria família? Tudo perguntas dessas. Infelizmente, o Homem de Gelo não adiantou praticamente nada acerca de si, razão pela qual não me atrevi a fazer-lhe as perguntas que tinha em mente. Imaginei que ele não tivesse vontade de falar de coisas desse género.
Em compensação, o tema da conversa recaiu sobre a minha pessoa. Por incrível que pareça, ele sabia tudo e mais alguma coisa acerca de mim. Quem pertencia à minha família, qual era a minha idade, quais os meus passatempos, como estava a minha saúde, que escola frequentava. Estava a par de tudo, até mesmo coisas que há muito tinham caído no esquecimento.
- Não estou a perceber - disse eu, vermelha como um pimentão. E a verdade é que me sentia como se tivesse ficado nua à frente de uma quantidade de pessoas. - Como é que sabe tanta coisa a meu respeito? - perguntei. - Por acaso consegue ler os meus pensamentos?
- Não, isso não. Não leio os pensamentos de ninguém. Simplesmente, sei esse tipo de coisas. É como se estivesse a olhar através de um bloco de gelo. Quando olho para si, consigo ver tudo.
- Consegue ver o meu futuro? - perguntei.
- Não, o futuro não - confessou ele com uma expressão ausente, ao mesmo tempo que abanava ligeiramente a cabeça. - O futuro não me interessa. Para ser franco, não consigo imaginar o futuro. Talvez porque o gelo não contenha futuro, apenas passado, selado dentro de si como se estivesse vivo; tudo o que acontece no mundo, toda a espécie de coisas, está conservado dentro do gelo - de uma forma visível e nítida. É essa a essência do gelo, é nisso que consiste a sua função.
Uma vez de regresso a Tóquio, encontrámo-nos umas quantas vezes, até que começámos a marcar encontro todos os sábados. Porém, não era nosso costume ir ao cinema e também não ficávamos sentados no café. Nem sequer íamos comer fora. Verdade seja dita, o Homem de Gelo quase não se alimentava. Em vez disso, passávamos o nosso tempo sentados num banco do parque, à conversa. Discutíamos toda a espécie de assuntos, apesar de nunca, nem uma vez, o Homem de Gelo ter falado de si.
- Por que é que nunca falas acerca de ti? - perguntei eu um dia. - Há tanta coisa que eu gostava de saber. Onde nasceste, quem eram os teus pais, como é que te tornaste um Homem de Gelo. - O Homem de Gelo ficou a olhar para mim durante muito tempo, até que abanou devagar a cabeça.
- Não sei responder a isso - confessou ele com toda a calma, sem com isso deixar de ser firme, ao mesmo tempo que a respiração dele formava no ar uma nuvem dura e branca. - Não tenho passado. Conheço muitos passados, e preservo-os, mas eu próprio não tenho um. Não faço ideia onde nasci. Desconheço o aspecto dos meus pais, nem sequer sei se eles existem. Desconheço quantos anos tenho, se é que tenho idade.
O Homem de Gelo era Já um solitário como um icebergue a flutuar na escuridão.
Apaixonei-me perdidamente por ele, e ele por mim, pelo meu eu presente, sem passado nem futuro. Quanto a mim, aprendi a amar o Homem de Gelo pela pessoa que é, sem passado nem futuro. Uma sensação maravilhosa. Por fim, começámos a falar em casamento. Eu tinha acabado de fazer vinte anos, e o Homem de Gelo era o primeiro homem por quem eu sentira amor de verdade. Que significado tinha esse amor, confesso que na altura era uma coisa que me ultrapassava. No entanto, tinha a certeza dos meus sentimentos, mesmo que não fosse pelo Homem de Gelo que estivesse perdida de amores.
A minha mãe e a minha irmã mais velha eram totalmente contra o nosso casamento. Diziam elas que eu era demasiado nova para me casar. Mais, que não estava a par do passado dele, nem sabia onde ou quando nascera. Como é que uma pessoa pode explicar certas coisas à família? Além disso, argumentavam, tratava-se do Homem de Gelo. E se ele começar a derreter? Achavam todos que eu não sabia que o casamento implicava certas responsabilidades. Pensando bem, como poderia alguma vez um Homem de Gelo cumprir os seus deveres conjugais?
Na verdade, porém, nenhum desses receios tinha razão de ser. O Homem de Gelo não era verdadeiramente feito de gelo. Era apenas frio como o gelo. Por isso, mesmo que fizesse calor, não corria o perigo de derreter. Era frio, tudo bem, mas não se tratava de um tipo de frio que pudesse roubar o calor das outras pessoas.
E assim casámos. Motivos de celebração foi coisa que não existiu. Entre amigos, pais e restante família - ninguém ficou contente com a notícia do matrimónio. Não se realizou tão-pouco a tradicional cerimónia(1). Uma vez que o Homem de Gelo não estava devidamente registado, a ocasião não teve sequer direito a cerimónia civil. Ambos decidimos simplesmente que estávamos casados. Comprámos um bolo e comemo-lo, os dois sozinhos. Foi essa a nossa cerimónia. Alugámos um pequeno apartamento, e o Homem de Gelo arranjou emprego num armazém frigorífico destinado a carne. Como o frio nunca o incomodava, trabalhava que se desunhava. Também não era

*1. Geralmente, a cerimónia civil e o copo-d'água realizam-se no mesmo local, por razões eminentemente práticas. Na presença de parentes e amigos, trocam-se alianças e juras de amor, e aplica-se o devido selo no documento oficial. Também pode haver cerimónia religiosa, segundo os preceitos xintoístas. (N. da T.)

de muito alimento. Por tudo isso, o patrão gostava muito dele e pagava-lhe um ordenado superior ao dos outros funcionários. Levávamos uma vida tranquila, só os dois, sem incomodar ninguém e sem sermos incomodados por ninguém.
Quando fazíamos amor, costumava imaginar um pedaço de gelo perdido algures, no meio do silêncio. O gelo era rijo, mais duro não podia ser, o maior bloco de gelo no mundo inteiro. Situava-se longe, muito longe, mas o Homem de Gelo sabia onde ficava e transportava consigo recordações desse gelo. Nas primeiras vezes que dormi com ele, aquilo fez-me confusão, mas depois habituei-me. Aprendi a gostar dos seus abraços. Como sempre, ele nunca falou de si, nem explicou como é que se transformara no Homem de Gelo, e eu também não perguntei. Ficávamos os dois deitados nos braços um do outro, às escuras, partilhando aquele enorme bloco de gelo, no interior do qual todo o passado, milhões de anos de recordações, se encontrava preservado.
A nossa vida de casados corria às mil maravilhas. Amávamo-nos e vivíamos só para nós. De início, as pessoas tiveram uma certa dificuldade em habituar-se à presença do Homem de Gelo, mas com o tempo começaram a trocar impressões com ele e chegaram à conclusão de que, afinal, o Homem de Gelo não era assim tão diferente do resto. Lá no fundo, porém, eu sabia que eles não o aceitavam, da mesma forma que não me aceitavam a mim, pelo facto de ter casado com ele. Aos seus olhos, éramos diferentes deles, e esse abismo entre nós nunca seria ultrapassado.
Não podíamos ter filhos, porventura devido a alguma diferença genética entre uma mulher da raça humana e um elemento dos Homens de Gelo que tornava difícil a concepção. Sem uma criança para tomar conta, tinha todo o tempo do mundo para mim. De manhã arrumava a casa, mas depois ficava sem nada para fazer. Não tinha amigos nem pessoas conhecidas com quem me pudesse encontrar para trocar dois dedos de conversa, e também não conhecia ninguém nas redondezas. A minha mãe e a minha irmã ainda estavam melindradas por causa do meu casamento com o Homem de Gelo e não falavam comigo. Eu era a ovelha ranhosa da família, motivo de vergonha para todos. Não podia comunicar com ninguém, nem sequer pelo telefone. Enquanto o Homem de Gelo estava a trabalhar no armazém de frio, eu ficava em casa, a ler ou a ouvir música. De resto, era uma pessoa caseira por natureza e não me importava de passar tanto tempo sozinha. Verdade seja dita, porém, que ainda era muito nova, razão pela qual às tantas aquela rotina começou a pesar-me. Não era da chatice em si que me queixava. O que me parecia difícil de suportar era fazer as mesmas tarefas e repetir os mesmos gestos todos os dias. Às tantas, comecei a pensar em mim como uma mera sombra enclausurada dentro daquele ramerrão.
Por essa razão, a fim de quebrar a rotina, um dia sugeri ao meu marido que fizéssemos uma viagem.
- Uma viagem? - perguntou ele, semicerrando os olhos com ar pensativo. -Viajar para onde? Não és feliz aqui comigo?
- Claro que sim - respondi. - Damo-nos lindamente e sinto-me muito feliz. Não é disso que se trata. Aborreço-me um bocadinho, mais nada. Gostava de me afastar daqui e ir para longe, ver coisas que nunca vi antes, viver novas experiências. Além disso, nunca tivemos a nossa lua-de-mel. Temos algum dinheiro posto de parte, sem esquecer que ainda te sobram dias de férias. Seria agradável ir de férias calmamente até um sítio qualquer.
O Homem de Gelo soltou um longo suspiro gélido, que formou audivelmente no ar um balão de gelo, antes de cruzar os dedos, longos e cobertos de neve, em cima do colo.
- Bom - disse ele -, se queres mesmo fazer essa tal viagem, por mim tudo bem. Não creio que viajar seja nada do outro mundo, mas estou disposto a fazer tudo e a ir onde desejares, se isso contribuir para a tua felicidade. Tenho trabalhado duramente no armazém de frio e devo conseguir tirar uns dias de férias.
- Que me dizes ao Pólo Sul? - perguntei. Tinha escolhido o Pólo Sul porque ali fazia frio e isso de certeza que captaria o interesse do Homem de Gelo. Além disso, verdade seja dita, sempre tivera vontade de ir até lá. A fim de observar a aurora boreal e os pinguins. Já me estava perfeitamente a ver, enfiada dentro de uma parca acolchoada, daquelas com capuz, debaixo da luz polar e a brincar com os pinguins.
O Homem de Gelo olhou-me bem nos olhos, sem pestanejar. O olhar dele atingiu-me como um afiado estilete de gelo, capaz de penetrar nas profundezas do meu cérebro. Por momentos deixou-se ficar calado, enquanto reflectia. Depois, com uma modulação diferente na voz, disse:
- Está bem. Se gostavas assim tanto de ir ao Pólo Sul, vamos. Tens a certeza de que é mesmo para aí que queres ir?
Eu disse que sim com a cabeça.
- Daqui a umas duas semanas, posso dar-me ao luxo de tirar umas férias grandes - anunciou ele. - Até lá, podes tratar dos preparativos para a viagem. Está bem assim?
Não fui capaz de responder na hora. O seu olhar penetrante como uma lâmina deixara-me gelada e eu não conseguia pensar.
À medida que os dias foram passando, comecei a arrepender-me de ter falado ao meu marido na viagem ao Pólo Sul. Nem eu própria sei explicar bem porquê. Era como se ele tivesse mudado, depois de me ter ouvido falar no Pólo Sul. Os seus olhos tornaram-se mais penetrantes e parecidos com punhais, o vapor da sua respiração mais branco, os dedos foram ficando cobertos de uma camada de gelo cada vez mais grossa. Mostrava-se calado e obstinado como nunca. Ainda por cima, deixou praticamente de se alimentar. Tudo isso me deixou preocupada. Cinco dias antes do início da viagem, ganhei coragem e abordei a questão.
- Acho que afinal não devíamos seguir viagem até ao Pólo Sul - alvitrei. - O clima é demasiado frio e pode não ser bom para nós. Antes queria ir para um sítio vulgar - até Espanha, na Europa, ou assim. Podíamos beber vinho, comer paella e, quem sabe, assistir a uma tourada ou duas. - No entanto, o meu marido fingiu que não era nada com ele. Continuou com aquela expressão distante, depois virou-se para mim e olhou-me fundo nos olhos, tão fundo que tive a sensação de me dissolver.
- Não - rejeitou liminarmente o meu marido, o Homem de Gelo.- Espanha não interessa. Lamento, mas para mim é demasiado quente e há poeira por todo o lado. Sem falar na comida, demasiado picante. Além do mais, já comprei bilhetes para o Pólo Sul, e um casaco de peles e umas botas forradas para ti. Seria um desperdício. Não podemos voltar atrás.
Para falar com franqueza, fiquei muito assustada. Se fôssemos até ao Pólo Sul, receava que nos acontecesse algo de terrível. Todas as noites, tinha sempre o mesmo pesadelo. Vejo-me a andar e caio num buraco. Ninguém me encontra e congelo. Fico petrificada, dentro do gelo, a olhar o céu. Estou consciente, mas não consigo mexer um dedo. Trata-se de uma sensação estranhíssima. A cada momento que passa, torno-me parte do passado. Não há futuro para mim, apenas o passado cada vez mais presente. E toda a gente vê o que me
está a acontecer. Também as pessoas só têm olhos para o passado, ao mesmo tempo que me vêem afastar cada vez mais.
Foi então que acordei. Ao meu lado, dormia o Homem de Gelo. Ele não faz barulho a dormir, como acontece com algo congelado e sem vida. Apesar disso, amo-o. Começo a chorar; as minhas lágrimas caem-me pela cara e molham as minhas faces. Ele acorda e aperta-me com força nos seus braços. "Tive um sonho mau", digo-lhe. Ele abana a cabeça devagarinho no escuro. "Foi apenas um sonho", diz-me em jeito de consolação. "Os sonhos vêm do passado, não do futuro. Não deixes que eles te dominem - deves ser tu a dominá-los. Compreendes?"
"Tens razão", digo eu, mas no fundo não estou convencida.
Finalmente, lá acabámos por apanhar o avião para o Pólo Sul. Não consegui encontrar uma razão para impedir a viagem. Os pilotos e assistentes de bordo mal abriram a boca durante o voo. Estava esperançada em poder contemplar a paisagem da janela, mas as nuvens eram tão espessas que não consegui ver nada à frente do nariz. Os vidros não tardaram a ficar cobertos por uma espessa camada de gelo. Durante o tempo que durou a viagem, o meu marido foi sempre calado, a ler um livro. Nem por um momento soube o que era a excitação e a alegria que surgem normalmente associadas à realização de uma viagem. Só ficara a sensação de estarmos a levar por diante o que nos tínhamos proposto fazer.
Assim que descemos do avião e pusemos o pé pela primeira vez no Pólo Sul, senti o corpo do meu marido ser percorrido por um calafrio. Aconteceu enquanto o diabo esfregava um olho, em meio segundo, por isso escapou ao olhar de todos. A verdade, porém, é que eu dei por isso. Alguma coisa provocou dentro dele um sobressalto, tão silencioso quanto intenso. Observei-o de esguelha. Ali parado, olhou para o céu, depois para as mãos, até que deixou escapar um profundo suspiro. Virando-se para mim, sorriu.
- Com que então, era aqui que estavas desejosa de vir? - perguntou.
- Exactamente - repliquei. Sabia que o Pólo Sul devia ser um lugar solitário, mas veio a revelar-se ainda mais isolado do que alguma vez imaginara. Quase ninguém vivia ali. Existia apenas uma pequena cidade sem interesse, com um hotel também ele sem história. O Pólo Sul não é nenhum destino turístico. Pinguins era coisa que não se via, já para não falar da aurora boreal. Quando eu perguntava o que era feito dos pinguins, as pessoas na rua limitavam-se a abanar a cabeça. Como não percebiam as minhas palavras, acabava por pegar numa folha de papel e num lápis e desenhava um pinguim, mas a resposta não se alterava - um abanar de cabeça silencioso. Sentia-me muito sozinha. Para lá da cidade, a única paisagem era de neve e gelo. Não se viam árvores, nem flores, nem rios nem lagos. Apenas gelo por todo o lado. Até onde o olhar alcançava, estendia-se terra desolada, um deserto de gelo a perder de vista.
O meu marido, por seu turno, com a sua respiração branca, os dedos cobertos de neve e uma expressão distante nos seus olhos de cristal, não se cansava de deambular por aqui e por ali. Aprendeu rapidamente a falar a língua e passou a entender-se naquele tom duro e glacial com os locais. Mantinham longas conversas durante horas a fio, sempre com um ar sério, mas eu não fazia a mínima ideia do que poderiam estar a falar. O meu marido encontrava-se perfeitamente tocado pelo espírito daquele lugar. Havia ali qualquer coisa que o atraía sobremaneira. De início, aquilo perturbou-me, fazendo-me sentir que estava a ser posta de parte, traída e abandonada.
Até que, por fim, no meio de todo aquele cenário silencioso e gélido, toda a energia foi sugada de mim, ao ponto de chegar uma altura em que já estava demasiado fraca para me preocupar sequer com a situação. A bússola dos sentimentos deixou de existir. Perdi todo e qualquer sentido de orientação, de tempo, e até o significado da minha existência. Não sei quando é que isso começou, nem se teria fim, mas o certo é que, antes que me desse conta, dei por mim sozinha e desorientada, perdida no Inverno sem fim daquele mundo gelado. Mesmo depois de ter perdido todos os sentimentos, sabia isto: O Homem de Gelo que se encontra aqui comigo no Pólo Sul não é o marido que eu conheço. Não saberia dizer ao certo o que ele tinha de diferente, na medida em que continuava a ser atencioso e a ter sempre uma palavra de ternura em relação a mim. E eu sabia que tudo o que ele dizia vinha do fundo do coração. Ao mesmo tempo, contudo, também sabia que o Homem de Gelo que tinha diante de mim não era o Homem de Gelo que aprendera a conhecer na estância de desportos de Inverno. Mas junto de quem é que me poderia lamentar? Toda a gente no Pólo Sul dava mostras de gostar muito dele, além de que não compreenderiam uma palavra do que eu dissesse.
Todos eles deixavam sair nuvens de respiração branca quando conversavam, os rostos cobertos de geada, exprimindo-se animadamente e entoando cânticos naquela linguagem tão própria das gentes do Pólo Sul. Quanto a mim, tranquei-me no quarto de hotel, a olhar para o céu permanentemente cinzento que durante meses não havia maneira de levantar, esforçando-me por aprender a complexa gramática da língua falada no Pólo Sul (coisa que nunca haveria de dominar).
Já não existem aviões no aeroporto. O avião que nos trouxe até cá foi o último a aterrar. Por esta altura, a pista encontra-se soterrada debaixo de um espesso manto de gelo. Tal como o meu coração.
- Chegou o Inverno - anunciou o meu marido. - Um Inverno muito longo. Os aviões e os navios não podem cá chegar. Está tudo coberto de uma camada sólida de gelo. Só nos resta esperar que chegue a Primavera.
Três meses depois de termos chegado ao Pólo Sul, percebi que estava grávida. Soube, desde a primeira hora, que iria dar à luz um pequeno Homem de Gelo. O meu útero estava congelado, e pequenas lascas de gelo flutuavam juntamente com o líquido amniótico. Podia sentir a frialdade na minha barriga. Soube, também, que a criança teria os olhos em forma de cristal de gelo herdados do pai, os mesmos dedinhos cobertos de geada. E soube mais uma coisa: a nossa pequena família nunca mais voltaria a abandonar o Pólo Sul. O eterno passado abatera-se sobre nós com o seu peso incomensurável, de forma a nunca mais nos libertarmos.
O meu coração quase parou de bater. O calor humano que me caracterizava há muito que se havia dissipado. Por vezes, até me esqueço de que ele alguma vez existiu. No entanto, ainda sou capaz de chorar. Estou completamente sozinha no sítio mais frio e mais solitário do mundo. Sempre que choro, o meu marido beija-me as faces, e as minhas lágrimas transformam-se em gelo. Então ele arranca-as e coloca-as na sua língua. "Sabes que te amo", diz ele. E eu sei que não é mentira nenhuma. O Homem de Gelo ama-me de verdade. O vento, porém, encarrega-se a cada dia que passa de levar as suas palavras em direcção ao passado. Continuo a chorar e as lágrimas escorrem-me sem parar pelo rosto. Na nossa pequena casa feita de gelo, algures na paisagem distante do Pólo Sul.


CARANGUEJOS


Foram dar com o restaurante por mero acaso. Aconteceu na primeira noite que passaram em Singapura, estavam eles a passear à beira-mar, quando, por obra e graça do destino, se meteram por uma rua transversal e deram de caras com o local. O restaurante ficava num edifício de um andar rodeado por um muro de tijolo nem alto nem baixo, com um jardinzinho a toda a volta cheio de palmeiras e cinco mesas de madeira. O edifício principal estava pintado de rosa-vivo. Aberto sobre cada mesa havia um chapéu-de-sol que já conhecera melhores dias. Ainda era cedo e o local estava praticamente deserto. Sentados a uma mesa, estavam dois homens de idade, com aspecto de chineses, a beber cerveja e a comer uma série de aperitivos que tinham à frente. Não falavam entre si. No chão, instalado pachorrentamente aos pés deles, estava um canzarrão preto com os olhos meio fechados. Através da janela da cozinha, uma nuvem de vapor trazia no ar um cheirinho tentador de qualquer coisa a ser cozinhada. Também se fazia ouvir o tom alegre das vozes do pessoal da cozinha, juntamente com o barulho de tachos e panelas. As folhas das palmeiras, oscilando ao sabor de uma ligeira brisa, recortavam-se na claridade do entardecer.
A mulher imobilizou-se e apreciou a cena.
- E que tal se jantássemos aqui? - pediu ela.
O jovem leu o nome do restaurante por cima da entrada e olhou em volta, à procura de uma ementa. Contudo, não havia nenhuma ementa com os pratos à vista. Aquilo deu-lhe que pensar.
- Hmm, não sei. Achas mesmo que uma pessoa pode comer num local desconhecido, para mais no estrangeiro?
- Olha que eu tenho um sexto sentido para bons restaurantes. Graças ao meu faro apurado, consigo sempre descobrir os melhores sítios. E é garantido que este está acima da média. Não queres experimentar?
O homem fechou os olhos e respirou fundo. Não fazia ideia do tipo de comida que ali serviam, mas tinha de admitir que cheirava lindamente, além de que o restaurante até tinha a sua dose de encanto.
- E será um local limpo? Ela agarrou-lhe pelo braço.
- És demasiado sensível. Não te preocupes. Uma vez que nos metemos no avião e chegámos até aqui, mais vale continuar a fazer uso de um certo espírito aventureiro. Não me está nada a apetecer continuar a comer sempre no restaurante do hotel. Às tantas, chateia. Anda lá, vamos experimentar.
Uma vez no interior do restaurante, descobriram que a especialidade eram caranguejos. A ementa estava escrita em inglês e em chinês. Os clientes eram quase todos habitantes locais e os preços bastante razoáveis. A julgar pelas ementas, os restaurantes de Singapura orgulham-se de oferecer aos seus clientes dezenas de espécies de caranguejo, preparados de centenas de maneiras diferentes. O homem e a mulher mandaram vir a cerveja local e, depois de passarem os olhos pelos pratos da casa, escolheram vários pratos de caranguejo e partilharam a refeição. As quantidades eram mais do que generosas, os ingredientes não podiam ser mais frescos e bem temperados.
- Isto é realmente bom - disse o homem, impressionado.
- Estás a ver? Não te disse que tenho um dedinho que adivinha e me ajuda a escolher sempre os melhores estaminés? Agora já acreditas?
-Acredito, pois. Está mais do que provado - reconheceu o jovem.
- Este tipo de poder dá imenso jeito - continuou a mulher. -Comer é muito mais importante do que as pessoas geralmente pensam. Há sempre uma altura na vida em que uma pessoa tem de provar uma especialidade gastronómica. E quando isso acontece, a ocasião
pode revelar-se decisiva e toda a nossa vida pode mudar em função disso, conforme se escolhe um bom restaurante ou se opta por um sítio que não presta. É a mesma história de sempre - se uma pessoa cai para um lado da barricada ou para outro.
- Interessante - comentou ele. - A vida pode ser cruel, não é?
- Exactamente - concordou ela, e levantou um dedinho sentencioso. - A vida é cruel. Mais do que tu possas imaginar.
O homem, ainda novo, concordou com a cabeça.
- E por acaso calhou nós aterrarmos do lado certo da barricada.
- Exacto.
- Isso é bom - afirmou o jovem, imperturbável. - Gostas de caranguejos?
- Mmm, desde sempre. E tu?
- Adoro. Não me importava de comer caranguejo todos os dias.
- Nesse caso, temos mais isso em comum - replicou ela, feliz da vida.
O homem sorriu. Ergueram os copos e fizeram novo brinde.
- Amanhã temos de cá voltar - disse ela. - Não deve haver muitos sítios iguais por esse mundo fora. Isto é, onde se possa comer tão bem e barato.
Nos três dias seguintes, foram sempre comer ao tal restaurantezinho. De manhã iam até à praia, apanhar sol, depois davam uma volta pela cidade e entretinham-se a deambular pelas lojas que vendiam artesanato local. Todas as noites, mais ou menos à mesma hora, apareciam no restaurante que ficava numa rua de trás e experimentavam os mais variados pratos de caranguejo, regressavam ao quarto de hotel, faziam amor tranquilamente e deixavam-se cair num sono sem sonhos. Era um paraíso, todos os dias. A mulher tinha vinte e seis anos e dava aulas de Inglês num colégio privado para raparigas. O homem tinha vinte e oito anos e trabalhava como auditor num importante banco. Podia considerar-se quase um milagre o facto de eles terem conseguido tirar férias ao mesmo tempo, daí que tivessem escolhido um lugar onde gozassem ao máximo sem ninguém por perto. Ambos se esforçavam por evitar qualquer tópico que pudesse estragar o ambiente daqueles preciosos dias juntos.
No quarto dia - o último dia das férias - comeram, como sempre, caranguejos ao jantar. Enquanto quebravam as patinhas dos caranguejos com utensílios de metal para tirar a carne de dentro da casca, iam conversando sobre como a estada ali, o facto de passarem os dias na praia e deliciarem-se com os pratos de caranguejos todas as noites, fazia parecer a vida que levavam em Tóquio tão irreal e distante. Falavam sobretudo acerca do presente. De vez em quando, o silêncio instalava-se à mesa e cada um ficava perdido nos seus próprios pensamentos. Porém, não se tratava de um silêncio desagradável. Nada como a cerveja fresca e caranguejos quentes para ajudar a preencher os silêncios.
Saíram do restaurante e regressaram a pé ao hotel e, como de costume, acabaram o dia com uma sessão tranquila e satisfatória de sexo. No fim tomaram duche e adormeceram logo a seguir.
Passado pouco tempo, contudo, o jovem acordou, sentindo-se pessimamente. A sensação que tinha era a de que engolira uma nuvem compacta. Correu para a casa de banho, debruçou-se sobre a sanita e vomitou tudo. Tinha o estômago cheio de carne branca de caranguejo. Nem sequer tivera tempo de acender a luz, mas até mesmo à luz da Lua que vogava sobre o mar dava para ver o conteúdo da sanita. Respirou fundo, fechou os olhos e deixou passar o tempo. Sentia a cabeça vazia, e não estava capaz de formular um único pensamento. Só lhe restava esperar. Apoderou-se dele outra onda de náusea e despejou o que ainda tinha no estômago.
Quando abriu os olhos, viu uma massa branca de vomitado a flutuar na retrete. Uma quantidade exagerada. "Devo ter comido caranguejos em doses industriais", pensou ele, quase impressionado. "Todos os dias a comer caranguejo, não admira que tenha ficado tão doente." Por mais contas que ele fizesse, a quantidade de carne de caranguejo ingerida continuava sempre a pecar por excesso. Tinha comido o equivalente a dois ou três anos, e isso em apenas quatro dias.
Quando olhou melhor, reparou que aquele matacão a boiar na sanita parecia estar a mover-se ligeiramente. A princípio, assim à claridade ténue do luar, achou que devia ser ele que estava a imaginar coisas. Além do mais, acontecia que uma ou outra nuvem escura que ia a passar tapava a Lua, tornando a cena ainda mais sombria. O jovem fechou os olhos, respirou profundamente e tornou a abrir os olhos. Não era uma ilusão. A massa de carne estava de facto a mover-se. A sua superfície revelava-se encrespada, formando uma espécie de ondulações. O jovem ergueu-se e acendeu a luz da casa de banho. Inclinou-se sobre a massa de carne e viu que à superfície se agitava uma quantidade infinita de vermes. Agarradas à carne viam-se milhares de pequenas minhocas, da mesma cor que a carne de caranguejo.
Escusado dizer que despejou tudo o que tinha no estômago. Na verdade, porém, não havia muito que vomitar, e o seu estômago fechou-se e ficou do tamanho de um punho cerrado, deixando sair uma bílis verde das profundezas das suas entranhas. Não contente com isso, ele emborcou uma quantidade de elixir na boca e voltou a cuspir tudo. Depois despejou o autoclismo, uma vez e outra, até ter a certeza de que o conteúdo da sanita desaparecera de vez. A seguir passou a cara por água no lavatório, usando uma toalha branca lavada para esfregar com força a boca, antes de passar à fase da lavagem dos dentes. Com as mãos apoiadas no lavatório, olhou para a sua imagem reflectida no espelho. Tinha o rosto, doentio e olheirento, transformado num amontoado de rugas, da cor da merda. Mal se reconheceu. Parecia um velho cansado e gasto.
Saiu da casa de banho, encostou-se à porta e espreitou para dentro do quarto. A sua amiga continuava na cama, a dormir. Com o rosto enterrado na almofada, respirava profunda e regularmente, sem dar por nada. Como um delicado leque, o seu longo cabelo preto cobria-lhe as faces e afagava-lhe os ombros. Mesmo abaixo do ombro, tinha dois pequenos sinais quase gémeos ao lado um do outro, e, nas costas, via-se distintamente a marca do fato de banho. A claridade branca da Lua infiltrava-se através das persianas, o mesmo acontecendo com o som monótono das ondas a bater na areia. Os algarismos digitais do relógio-despertador emitiam uma luminosidade verde a partir da mesinha-de-cabeceira. Nada tinha mudado. A não ser que, naquele momento, tinha o verme do caranguejo alojado dentro dela - uma vez que tinham comido sempre a mesma coisa. Com a diferença de ela não ter consciência desse facto.
O homem novo afundou-se numa cadeira de junco ao pé da janela, fechou os olhos e respirou devagar e profundamente. Ao mesmo tempo que enchia os pulmões de ar fresco, expirava o ar velho, viciado. Procurou sugar o máximo de ar para dentro dos pulmões. O seu desejo era que todos os poros do seu corpo se abrissem. O seu coração pulsava com batimentos secos e fortes, como um despertador dos que havia antigamente.
Ali a olhar para a sua companheira adormecida, pôs-se a imaginar a quantidade de lombrigas no estômago dela. Deveria acordá-la e trazer o assunto à baila? Não seria melhor tratarem do assunto? Sem saber o que fazer, pôs-se a pensar naquilo durante algum tempo mas acabou por decidir-se contra. Não iria adiantar de nada. Ela não tinha sequer dado por isso. Esse era, de resto, o principal problema.
O mundo parecia estar fora dos eixos. Ele conseguia ouvir o rangido à medida que ele se ajustava à nova órbita. "Acontecera qualquer coisa", pensou ele, "e o mundo tinha mudado." A ordem das coisas mudara e nunca voltaria ao que era. Tudo se transformara, e ele não tinha outro remédio senão continuar em frente e prosseguir na nova direcção. "Amanhã estarei a caminho de Tóquio", pensou. "De regresso à minha vida de sempre. À primeira vista, nada mudou, mas não creio que consiga voltar a estar com esta mulher." Nunca mais voltaria a sentir o que sentia por ela, isso o homem sabia. Mas não só. Ele também sabia que teria dificuldade em lidar com ele próprio. A sensação era a de ter caído do alto de uma vedação e aterrado no lado errado. Sem ruído, sem dor. E ela nunca tinha sequer dado por nada.
O homem novo ficou sentado na cadeira de junco até de manhã, respirando pausadamente. De quando em quando, levantava-se na noite um golpe de vento acompanhado de neve, fazendo as gotas de chuva embaterem na vidraça em tom castigador. As nuvens da chuva iam passando e a Lua volta e meia aparecia e mostrava a sua face. A cena repetiu-se. A mulher, porém, nunca despertou do seu sono. Nem tão-pouco mudou de posição, apenas o ombro estremeceu ao de leve por mais de uma vez. Mas foi só isso. Ele só queria dormir, adormecer profundamente e depois acordar com a certeza de voltar a encontrar tudo resolvido e a funcionar como deve ser. Tudo o que ele desejava era cair num sono assim profundo, mas por mais que esticasse a mão, o sono continuava fora do seu alcance.
O jovem recordou então aquela primeira noite em que tinham passado pelo pequeno restaurante fora de portas. Os dois velhotes chineses, de cabelo curto, que tomavam calmamente a sua refeição, o cão preto, de olhos fechados, aos pés deles, os guarda-sóis de cor deslavada por sobre as mesas. A forma como ela lhe pegara pelo braço.
Parecia que tinha sido há anos, quando, afinal, acontecera há apenas três dias. Três dias no decorrer dos quais, por intermédio de uma estranha força, ele se transformara num daqueles homens cinzentos e desagradáveis. Tudo aquilo em Singapura, na bonita e pacata cidade à beira-mar.
Ele observou atentamente as suas mãos. Primeiro as costas, depois as palmas. Não pôde evitar que elas tremessem, ainda que de forma quase imperceptível.
"Mmm, sempre gostei imenso de caranguejos. E tu?"
"Não sei", pensou ele.
Sentia o coração cercado por alguma coisa sem forma, rodeado de um mistério suave e profundo. Não fazia a mínima ideia para onde a sua vida caminhava, nem o que estaria à sua espera. Porém, à medida que, a leste, o céu começou finalmente a clarear, ocorreu-lhe de repente um pensamento. "Uma coisa é certa", pensou ele. "Aconteça o que acontecer, nunca mais hei-de comer caranguejo na minha vida."


O PIRILAMPO


Em tempos - para ser mais exacto, há coisa de quinze anos - vivi num lar para estudantes universitários, em Tóquio. Na altura tinha dezoito anos e era caloiro, que é como quem diz, tinha sido aceite na universidade e não sabia rigorosamente nada acerca da vida na grande cidade. Como era a primeira vez que me via sozinho, os meus pais mostravam-se naturalmente preocupados; daí o dormitório estudantil ter-se afigurado a melhor solução no meu caso. Claro que as questões financeiras também haviam entrado em linha de conta, uma vez que era aquela a solução mais económica. Se dependesse de mim, teria preferido viver à vontade, no meu próprio apartamento, mas sabem do que a casa gasta, não é? Os meus pais já se viam obrigados a entrar mensalmente com o dinheiro para pagar as despesas com os meus estudos - sem esquecer, além do valor da matrícula e das propinas, a minha mesada -, por isso, não me podia queixar.
O alojamento de estudantes situava-se numa faixa de terreno privilegiada, no extremo da Universidade de Bunkyo(1), e tinha uma vista espectacular sobre a cidade. Estava rodeado por um grande muro de cimento e, mesmo junto ao portão principal, erguia-se um gigantesco olmo japonês. Devia ter 150 anos, no mínimo. As suas folhas

*1. Os caracteres chineses da palavra Bunkyo significam educação e aprendizagem. A universidade oferece cursos sobretudo na área da educação e investigação das ciências sociais. Entre a data da fundação (1927) e a passagem a instituição de ensino co-educacional (1976), foi uma universidade feminina. (N. da T.)

eram de tal forma grandes e abundantes que chegavam a esconder o céu.
O muro de betão contornava a árvore e prolongava-se ao longo do pátio. De cada lado, alinhados, viam-se dois edifícios de três andares cada em cimento armado. Estamos a falar de edifícios enormes, com inúmeras janelas. Alguém tinha sempre o rádio ligado e, através das janelas abertas, ao exterior chegava a voz de um disc jockey qualquer. As cortinas na sala eram em tons de creme, visto ser a cor que menos se nota quando exposta à luz solar.
Os edifícios principais de dois andares ficavam de frente para a entrada. No piso térreo havia uma sala de jantar e uma casa de banho comum, um auditório, várias salas de conferências e até uma destinada a visitantes ilustres, cuja existência eu ignorava, enquanto as salas de aulas e reuniões ficavam no segundo andar. Ao lado do edifício principal fora construído ainda um terceiro, também com três andares. O pátio era espaçoso e, espalhados pelo relvado, viam-se aspersores de rega que reluziam à luz do Sol. Por trás de um dos edifícios principais ficava um campo de futebol e outro de râguebi, bem como seis courts de ténis. Era caso para dizer que não faltava rigorosamente nada.
O único problema daquele alojamento (se bem que nem todos estivessem convencidos de que constituísse um problema, é bom que se diga) residia no facto de o lar ser administrado por uma misteriosa fundação dirigida por pessoas ligadas à extrema-direita. Bastava passar os olhos pelo boletim de inscrição destinado aos novos alunos para dissipar dúvidas, se as houvesse. O dormitório tinha sido fundado com a missão de "garantir os fundamentos básicos de educação e de contribuir para desenvolver as capacidades e valores com o propósito de servir o Japão". E, pelos vistos, uma quantidade de homens de posição bem-colocados no mundo dos negócios tinha subscrito os princípios e contribuído para fundar a dita instituição. Pelo menos era essa a versão oficial, que servia de fachada. Com efeito, a história que circulava nos bastidores, como de resto muitas outras coisas ali dentro, não se revelava assim tão católica. Corriam rumores de que o local não passava de uma manobra de evasão para fugir ao fisco, ou, havia até quem aventasse essa hipótese, no campo da especulação imobiliária, de um negócio fraudulento. Há que reconhecer, contudo, que isso não fazia a mínima diferença na vida de
todos os dias. Pensando bem, na prática tanto fazia quem é que se encontrava à frente do lar - fossem eles pessoas de direita, de esquerda, hipócritas ou patifórios da pior espécie. Venha o diabo e escolha. Fosse como fosse, o que interessa para esta história é que o dito dormitório foi a minha casa desde a Primavera de 1967 até ao Outono de 1968.
No dormitório, o dia começava sempre com a cerimónia solene do hastear da bandeira japonesa. A plataforma para o efeito estava situada a meio do pátio, de modo a que o acto pudesse ser acompanhado de todas as janelas do dormitório. Escusado dizer que o hino nacional também era executado. Não pode haver uma coisa sem a outra, tal como não existe noticiário desportivo digno desse nome sem acompanhamento ao som de marchas.
O responsável pelo hastear da bandeira era o director da ala leste, que calhava ser a minha. Estamos a falar de um homem para ter os seus 50 anos, indivíduo grande, de olhar penetrante a condizer com o ar rijo. Notavam-se fios brancos nos seus cabelos visivelmente espetados, e a nuca bronzeada exibia uma longa cicatriz. Corria por lá à boca pequena que ele era licenciado pela Academia Militar de Nakano. A seu lado, contava com um estudante que desempenhava as funções de seu ajudante(2). O tipo era basicamente um enigma. Também usava o cabelo cortado rente e andava sempre fardado com o uniforme da escola. Qual era o nome dele e em que quarto estava, ninguém sabia. Pela minha parte, nunca me cruzara com ele no refeitório nem na casa de banho comunitária. Podia muito bem até não andar a estudar ali. Porém, visto que usava uniforme e tudo, calculava-se que sim. Ao contrário do tipo de homens oriundos da academia, era baixo, anafado e macilento de aspecto. Todos os dias, às seis da manhã em ponto, os dois procediam ao patriótico hastear da bandeira do Sol Nascente. Não saberia dizer quantas vezes vi aquela cena desenrolar-se diante dos meus olhos. O toque das seis da matina,

*2. As semelhanças com as figuras de Toda Takamatsu (por excelência o mestre das artes marciais e, porventura, o último dos grandes samurais) e do seu discípulo, Hatsumi Masaaki, são notáveis. (N. da T.)

que se fazia ouvir pontualmente, ia encontrá-los no pátio, o Rapaz do Uniforme agarrado a uma caixa leve de madeira, o Homem da Academia a um gravador portátil da Sony. O Homem da Academia colocava o gravador na base do mastro e o Rapaz do Uniforme abria a caixa. Lá dentro, muito bem dobrada, vinha uma bandeira do Japão. O Rapaz do Uniforme entregava a dita bandeira ao chefe, que por seu turno tratava de a amarrar à corda. O Rapaz do Uniforme ligava o leitor de cassetes.
"Que a monarquia do Imperador perdure por milhares e milhares de gerações..." Soava então o hino japonês(3).
A bandeira subia no mastro.
Quando chegava à parte que rezava: "Até que os seixos em rochas se transformem..." já a bandeira ia a meio do mastro, atingindo o topo quando o refrão chegava ao fim. Nessa altura, os dois punham-se em sentido e não despregavam os olhos da bandeira. Nos dias em que fazia bom tempo, quando corria a brisa na medida certa, era um espectáculo verdadeiramente impressionante.
Ao final do dia, a cerimónia repetia-se, mas pela ordem inversa. A bandeira deslizava pelo mastro e era guardada na caixa de madeira. De noite, não consta que a bandeira ondule ao vento.
Desconheço qual a razão que obrigava a descer a bandeira todas as noites e a guardá-la bem guardada. O país continua a existir pela noite dentro, não é verdade? E, que eu saiba, a essas horas ainda se encontra muito boa gente a trabalhar. Não me parece justo que essas pessoas não possam contar com a bandeira do seu país a tremular por cima das suas cabeças. Pode ser que seja uma questão de lana-caprina, porém, é precisamente com coisas desta natureza que muitas vezes a minha cabecinha se preocupa.
Mandavam as regras que os caloiros partilhassem o dormitório com os segundanistas, ao passo que os estudantes mais velhos viviam sozinhos. O quarto de duas camas que me calhara em sorte era estreito e abafado, cabendo ali seis tatami. Na parede que ficava de frente para a porta havia uma janela com caixilharia de alumínio. A mobília

*3. Mundialmente famoso por ser o hino mais curto: apenas uma estrofe, cantada três vezes. Foi composto por Hiromori Hayashi e a letra, adaptada de um poema de 31 sílabas {waka) do século X, canta loas à longevidade. Com o tempo, conheceu alterações e assistiu-se à tentativa de mudança (após a Segunda Guerra Mundial, a letra foi acusada de contrariar os princípios da democracia). (N. da T.)

era espartana, mas resistente, e compunha-se de duas secretárias com as respectivas cadeiras, dispostas de forma a que cada estudante ficasse de costas para o outro, um beliche de armação metálica, dois armários com chave e várias prateleiras. Na maior parte dos quartos, as prateleiras encontravam-se atafulhadas com a tralha do costume: rádios-transístores, secadores de cabelo, máquinas de café eléctricas, frascos de café instantâneo, açúcar, panelas daquelas que servem para cozinhar massa instantânea, daquela tipo Cup Noodles(4), chávenas e pratos. Viam-se páginas de revista com símbolos sexuais da Playboy pregadas nas paredes, e sobre as secretárias, alinhavam-se manuais escolares, à mistura com um ou outro romance mais popular.
Uma vez que só viviam ali homens, a imundície era a palavra de ordem. O fundo dos caixotes do lixo estava cheio de cascas de laranjas bolorentas e as latas vazias que serviam de cinzeiro tinham pelo menos dez centímetros de pontas de cigarro empilhadas. Nas chávenas via-se a marca deixada pelos restos de café. O chão estava juncado de celofane das embalagens de sopa instantânea e latas de cerveja vazias. Bastava um golpe de vento para uma nuvem de poeira varrer o chão. Os quartos cheiravam horrivelmente, a bafio, na medida em que toda a gente se limitava a enfiar a roupa suja debaixo da cama. Ainda por cima, como ninguém se dava ao trabalho de arejar a roupa da cama, os quartos tresandavam ao odor fétido originado pela falta de higiene.
Em contrapartida, o quarto a que podia chamar meu, era o cúmulo da limpeza. Sujidade no chão era coisa que não existia, os cinzeiros reluziam de asseio. A cama era feita de lavado todas as semanas, os lápis encontravam-se arrumados no respectivo porta-lápis. No lugar destinado à imagem de alguma pinup despida, tínhamos uma fotografia dos canais de Amesterdão. Porquê? É muito simples. O meu colega era um fanático das limpezas. Eu não tinha de mexer um dedo, porque ele fazia tudo e mais alguma coisa - incluindo a lavagem da roupa, e estou a referir-me à minha roupa. Mal eu acabava de beber uma cerveja e punha a lata de lado, já ele estava a pegar nela e a pô-la automaticamente no lixo.

*4. Marca de massa ramen instantânea embalada numa espécie de copo de plástico e muito fácil de preparar, fabricada pela Nissin Foods, que começou por ser uma empresa familiar fundada no Japão em 1958. (N. da T.)

O meu companheiro de quarto andava a tirar Geografia.
- Estudo m-m-m-mapas - disse-me ele quando nos conhecemos.
- Com que então, gostas de mapas? - perguntei.
- É verdade. No futuro, gostaria de ir trabalhar para o instituto cartográfico do Japão e dedicar-me a fazer m-m-mapas.
Cada um tem os seus interesses, por mais variados que sejam. Até essa data, nunca perdera sequer dois minutos a pensar que poderia haver pessoas que almejassem desenhar mapas - e muito menos que diabo as levaria a ter semelhante desejo. Contudo, têm de admitir que é no mínimo estranho que alguém, cujo interesse na vida é trabalhar no Instituto Cartográfico, desate a gaguejar de cada vez que pronuncia a palavra "mapa". Acresce que ele nem sempre gaguejava. Só quando pronunciava a palavra "mapa" é que começava logo a ficar com a fala entaramelada.
- E tu, andas a estudar o quê?
- Arte dramática - respondi.
- Arte dramática? Referes-te a representar em peças?
- Não, não entro em peças. Leio e dedico-me ao estudo de peças de teatro. Racine, lonesco, Shakespeare.
Tirando Shakespeare, nunca tinha ouvido falar dos outros, confessou-me ele. Para ser sincero, eu também não sabia muito acerca deles. Limitara-me a citar de cor o programa do curso.
- Seja como for, gostas de teatro e desse género de coisas, não é verdade?
- Não especialmente.
A minha resposta causou-lhe uma certa perturbação. Sempre que ficava desorientado, punha-se a gaguejar ainda mais do que era costume. A esse propósito, confesso, não se pode dizer que o meu comportamento tenha sido exemplar.
- Para mim, todas as cadeiras são boas - apressei-me a explicar, para ver se ele acalmava, - Filosofia Indiana, História Oriental, tanto faz. Acontece que acabei por ir ter ao Teatro. Mais nada.
- Não estou a entender - insistiu ele, dando mostras de não estar realmente a entender. - No m-m-meu caso, gosto de m-m-m-mapas, daí que estude cartografia, que é para saber como fazê-los. Por isso é que vim de tão longe para Tóquio, a fim de estudar na universidade, com os meus pais a custearem as despesas. Mas, no teu caso, não p-p-percebo...
A explicação dele fazia mais sentido do que a minha. Por isso calculei que não valesse a pena meter os pés pelas mãos a fim de tentar explicar melhor o meu ponto de vista. Tirámos à sorte com a ajuda de umas palhinhas para vermos quem é que ficava com o beliche de cima e com o de baixo. Calhou-me o de cima.
Ele era um rapaz alto, com o cabelo cortado quase à escovinha e grandes bochechas. Usava sempre camisa branca e calças pretas. Quando ia para as aulas, vestia invariavelmente o uniforme da escola, calçava sapatos pretos e empunhava uma pastinha igualmente preta. À vista desarmada, era a imagem do perfeito estudante de direita, e de certeza que os outros tipos do dormitório devem tê-lo tomado por tal. Na verdade, os seus interesses não podiam andar mais longe da política. Optava por aquele uniforme porque lhe dava muito trabalho pensar na roupa que havia de vestir. As únicas coisas que captavam a sua atenção referiam-se a qualquer alteração nas faixas costeiras, túneis acabados de construir e outros temas do género. Bastava um desses assuntos vir à baila para ele se lançar em longas dissertações - que podiam durar horas -, sempre a gaguejar e a tropeçar nas palavras, até que alguém lhe pedisse por tudo para acabar de vez com a conversa ou se deixasse dormir.
Saltava da cama todas as manhãs às seis em ponto, ao som do hino nacional emitido pelo seu rádio-despertador. Que não se diga por isso que a cerimónia do hastear da bandeira era um total desperdício. Vestia-se e fazia as suas abluções, demorando uma eternidade a ficar pronto. Às vezes perguntava a mim mesmo se ele não se daria ao trabalho de tirar os dentes e escová-los um a um. De regresso ao quarto, alisava a toalha, pendurava-a no cabide e voltava a guardar a escova e o sabonete na respectiva prateleira. A seguir ligava o rádio e dava início à sessão de ginástica transmitida pelo programa da manhã.
Pela parte que me tocava, pode dizer-se que eu era mais ave da noite. Acostumado a ler até tarde, confesso que preferia ficar a dormir até tarde. Isto para dizer que, à hora a que ele começava para cima e para baixo com os seus exercícios de ginástica, estava eu ainda nos braços de Morfeu. Cada vez que ele dava um salto - e, acreditem, ele mostrava-se capaz de saltar mesmo muito alto -, a minha cabeça erguia-se a cinco centímetros da almofada. Experimentem dormir nessas condições.
- Tenho muita pena - disse eu ao fim de quatro dias naquilo -, mas será que não podes ir fazer os teus exercícios para o telhado ou para outro sítio qualquer? Assim acordas-me sempre e não me deixas dormir.
- Não posso - explicou ele. - Nesse caso, as pessoas que dormem no terceiro andar queixar-se-iam. Pelo menos aqui não temos ninguém por baixo.
- E no pátio, que tal?
- Também não dá. Sem transístor, não tenho maneira de ouvir a música e, como tal, não poderia fazer os exercícios.
O rádio dele era daqueles modelos antigos sem pilhas, que tinham de estar ligados à corrente. É certo que poderia ter-lhe emprestado o meu, mas só apanhava estações de música em FM.
- Bom, pelo menos podes baixar o som e deixar-te de saltos? Não sei se estás a ver, mas o chão do quarto treme todo. Não é que me esteja a queixar, mas...
- Saltos? - Pelo tom de voz, parecia verdadeiramente surpreendido. - O que é que queres dizer com essa história dos s-s-saltos?
- Refiro-me à parte em que desatas aos saltos para cima e para baixo.
- Não estou a ver a que te referes.
Comecei a sentir uma dor de cabeça a instalar-se. Já estava por tudo, mas o certo é que, depois de ter levantado a questão, não sabia muito bem como é que havia de recuar. Vai daí, comecei aos saltos ao mesmo tempo que trauteava a melodia que servia de pano de fundo sonoro ao tal programa de ginástica matinal da estação NHK.
- Estás a ver? Esta parte. Não é o que costumas fazer? Saltar para cima e para baixo?
- Ah, isso. Pode ser que sim. Nunca tinha reparado.
- Bom - prossegui eu -, achas que arranjas maneira de saltar esta parte? Com o resto, posso eu bem.
- Tenho muita pena - retorquiu ele, imperturbável -, mas não posso eliminar isso. Ando há dez anos a fazer estes exercícios. Depois de começar, faço tudo s-s-sem pensar, de uma forma automática. Caso passe por cima de alguma parte, d-d-deixo de ser capaz de executar o resto.
- Nesse caso, por que é que não desistes de vez?
- Quem é que pensas que és, para me dares ordens?
- Não te estou a dar ordem nenhuma, só quero que me deixes dormir até serem oito horas. E se as oito estiverem fora de questão, nesse caso gostaria de acordar como qualquer comum mortal, e não como se estivesse no meio de um concurso internacional de saltos ou coisa que o valha. Faço-me entender?
- Sim, estou a ver a ideia - disse ele.
- E o que se pode fazer relativamente a isso?
- Já sei! Por que é que não nos levantamos os dois bem cedo e fazemos ginástica juntos?
Desisti e voltei a adormecer. Depois desse dia, ele prosseguiu sempre com a sua rotina matinal, sem falhar um único dia.
Quando eu lhe fiz saber a história da ginástica radiofónica do meu companheiro de quarto, a reacção dela foi desatar a rir. Apesar de não ter contado aquilo com o propósito de ser divertido, acabei por me rir também. O seu sorriso apagou-se quase instantaneamente, e de repente percebi que já há muito que não a via sorrir.
A cena passou-se numa tarde de domingo, em meados de Maio. Tínhamos descido do comboio na estação de Yotsuya e caminhávamos ao longo dos trilhos da via-férrea que desce em direcção a Ichigaya. A chuva fina parara de cair por volta do meio-dia e o vento sul tinha varrido as nuvens baixas. As folhas verdes nas cerejeiras recortavam-se orgulhosamente contra o céu, ao sabor da brisa, e reflectiam a luminosidade dos raios de sol. Cheirava aos primeiros dias de Verão. A maior parte das pessoas por quem passámos tinha despido os seus casacos e as suas camisolas e traziam-nos pendurados ao ombro. Num campo de ténis, via-se um rapaz a jogar de tronco nu, apenas de calções. A armação metálica da raqueta que ele brandia de um lado para o outro emitia clarões ao sol da tarde. Apenas duas freiras, sentadas num banco, se mostravam ainda agasalhadas contra o frio, ao abrigo dos seus negros hábitos. Só de as ver tive a sensação de que o Verão talvez afinal não estivesse ao virar da esquina.
Quinze minutos de passeio foi quanto bastou para que o suor começasse a escorrer-me pelas costas. Desembaracei-me da minha grossa camisola de algodão e fiquei só com a T-shirt vestida. Ela enrolou as mangas da camisola cinzenta acima dos cotovelos. Trazia uma sweatshirt velha, que já tinha perdido a cor original de tanto ser lavada. Tudo aquilo tinha um ar familiar, como se eu já tivesse vivido a cena anteriormente, há muito tempo.
- É divertido viver com outras pessoas? - quis ela saber.
- Ainda é cedo para poder dizer. Não vivo lá há tempo suficiente.
Ela imobilizou-se diante de um bebedouro público, bebeu um gole de água e limpou a boca com um lencinho que tirou do bolso das calças. Aproveitou para apertar melhor os atacadores dos ténis.
- Pergunto-me se conseguiria viver nessas circunstâncias - observou ela pensativa.
- O quê? Uma vida comunitária?
- Sim - respondeu ela.
- Como te digo, não sei. Dá mais chatices do que possas imaginar. Montes de regras, para começar. Já para não falar na ginástica via rádio.
- Estou a ver - disse ela, deixando-se ficar perdida em pensamentos durante um grande bocado. A seguir, olhou para mim. Ainda não me tinha dado conta de como os seus olhos eram profundamente translúcidos. Olhar para eles era a mesma sensação estranha, transparente, de olhar para o céu.
- Mas às vezes sinto que deveria, quer dizer... - prosseguiu ela, sempre a olhar para mim de frente. Mordeu o lábio e baixou a cabeça. - Olha, não sei. Esquece.
Ponto final na conversa. Ela afastou-se.
Já não a via há cerca de meio ano. Durante esse período de tempo, tinha emagrecido tanto que quase não a reconheci. As suas bochechas em tempos carnudas mostravam-se pálidas, e o pescoço tornara-se afilado. Não podia dizer que estivesse escanzelada, nem nada que se parecesse. Parecia até mais bonita. Pensei em dizer-lhe isso mesmo, mas não encontrei a maneira adequada de transmitir os meus sentimentos. Às tantas, desisti.
Tínhamos seguido viagem até Yotsuya por nenhuma razão especial. Calhara encontrarmo-nos no comboio da linha de Chuo. Nenhum dos dois viajava com destino certo. "Vamos sair aqui", disse ela, e assim foi. Sozinhos, não tínhamos grande coisa a dizer um ao outro. Não sei qual a razão que a terá levado a sugerir que abandonássemos o comboio, mas aceitei o repto. À partida, não se podia dizer que os temas de conversa fossem muitos.
Depois de abandonarmos a estação, coube-lhe tomar a dianteira, sem dizer palavra. Eu seguia na retaguarda, fazendo os possíveis por acompanhar o ritmo imposto por ela, sempre com um metro ou isso a separar-nos. Volta e meia, virava-se para trás e dizia qualquer coisa. Pela minha parte, tratava de responder o melhor que podia e sabia, mas na maior parte das vezes não atinava com a resposta. Confesso que nem sempre conseguia perceber tudo o que ela dizia, o que, de resto, não parecia incomodá-la. Depois de dizer de sua justiça, virava costas e continuávamos o nosso caminho em silêncio.
Virámos à direita em lidabashi, desembocámos junto ao fosso do Palácio, depois atravessámos no cruzamento de Jimbocho, subimos a encosta de Ochanomizu e fomos dar ao campus de Hongo. Depois seguimos a linha-férrea em direcção a Komagome. Uma passeata digna desse nome. Ao chegarmos a Komagome já começava a ficar escuro.
- Onde é que estamos? - perguntou ela de repente.
- Em Komagome - respondi. - Demos uma volta enorme.
- Como é que viemos aqui parar?
- Foste tu que nos trouxeste até aqui. Eu limitei-me a seguir os teus passos.
Parámos num sítio ao pé da estação onde serviam sopa à base de massa de trigo-mouro e aproveitámos para petiscar qualquer coisa. Nenhum de nós abriu a boca do princípio ao fim da refeição. Por mim falo quando digo que estava exausto depois daquela caminhada e à beira de cair para o lado. Quanto a ela, continuava para ali sentada, perdida nos seus pensamentos.
- Estás em grande forma - disse eu virando-me para ela, quando acabámos de comer.
- Pareces surpreendido. Fiz corta-mato quando andava no ensino médio. E o meu pai, que gostava de caminhar pelas montanhas, costumava levar-me sempre com ele aos domingos quando eu era pequena. Ainda hoje as minhas pernas são bastante firmes.
- Nunca teria adivinhado.
Ela riu-se.
- Vou acompanhar-te até casa.
- Deixa estar. Posso perfeitamente regressar sozinha.
- Não me custa nada - retorqui.
- Deixa lá, a sério. Estou habituada a ir para casa pelos meus
próprios meios.
Para dizer a verdade, fiquei um bocado aliviado quando ela disse aquilo. A casa dela ainda ficava a mais de uma hora de comboio, e eu já estava a imaginar a viagem chata que não seria, os dois sentados ao lado um do outro, quase sem trocar palavra. Resumindo, ela acabou por regressar a casa sozinha. A fim de apaziguar a minha má consciência, fui eu a pagar a refeição.
Quando nos estávamos quase a despedir, ela virou-se para mim
e disse:
- Se não for pedir muito, achas que poderíamos encontrar-nos outra vez? Bem sei que, de facto, não tenho o direito de exigir uma coisa destas, mas...
- O direito não é para aqui chamado - repliquei, apanhado ligeiramente de surpresa.
Ela corou. Provavelmente eu tinha exagerado na minha reacção de espanto, e ela apercebeu-se disso.
- Não me peças para explicar melhor - retorquiu, ao mesmo tempo que enrolava as mangas da camisola até aos cotovelos para logo a seguir as tornar a descer. As luzes eléctricas conferiam um bonito tom dourado aos seus braços.
- Direito é a palavra errada. Devia ter usado outra.
Ela apoiou os cotovelos em cima da mesa e fechou os olhos, como que à procura da expressão certa. Mas as palavras teimavam em não sair.
- Não te preocupes comigo - disse eu.
- Não sei explicar... Nos últimos tempos, parece que não consigo traduzir por palavras o que me vai na mente - explicou ela. -Pura e simplesmente não consigo. De cada vez que tento fazer passar uma ideia, a mensagem passa ao lado. Ou então acabo por dizer o contrário do que pretendia. Quanto mais me esforço por fazer tudo bem, mais a coisa corre para o torto. Tenho alturas em que nem sequer me consigo lembrar do que pretendia dizer em primeiro lugar. É como se o meu corpo se dividisse em dois e uma das metades de mim andasse a correr atrás da outra, sempre aos círculos, à volta de um grande pilar. O meu outro eu conhece as palavras certas, mas não há meio de lhes deitar a mão.
Pousou as mãos sobre a mesa e olhou-me nos olhos. ., - Compreendes o que estou a querer dizer?
-Toca a todos, de vez em quando - disse eu. - Uma pessoa não é capaz de se expressar como deve ser e isso chateia.
Ficou desapontada. Pelos vistos não era aquilo que ela queria ouvir.
- Não é bem assim - objectou ela, e mais não disse.
- Podemos voltar a encontrar-nos - disse eu. -Tempo livre não me falta e de certeza que é mais saudável dar uns passeios por aí do que ficar de papo para o ar todo o santo dia.
Separámo-nos na estação. Eu disse adeus, ela disse adeus, e foi cada um para seu lado.
A primeira vez que a vi foi na Primavera, estava eu no meu décimo primeiro ano do secundário. Tínhamos a mesma idade, e ela frequentava um afamado colégio católico de raparigas. Era namorada de um dos meus melhores amigos, e foi através dele que travei conhecimento com ela. Eles moravam a 200 metros um do outro e conheciam-se desde os primeiros anos de escola.
Como é vulgar no caso de muitos parzinhos que se conhecem desde novos, não possuíam grande vontade de ficarem sozinhos. Passavam a vida metidos na casa um do outro e tomavam frequentemente as refeições em família. Fartámo-nos de sair juntos em encontros a quatro, mas, como eu nunca atinava com a rapariga que me calhava em sorte, o normal era acabarmos por ficar só os três. O que, confesso, não me desagradava de todo. Cada um desempenhava o seu papel, como num programa de entrevistas na televisão: eu fazia as vezes de convidado, ele era o anfitrião atento, ela a encantadora assistente.
O meu amigo desempenhava na perfeição esse papel. Por vezes dava a impressão de ser pouco comunicativo, mas, no fundo, tratava toda a gente da mesma maneira. Passava o tempo a meter-se connosco - comigo e com ela, sem favoritismos -, e sempre com as velhas piadas. Quando algum de nós ficava mais calado, tratava logo de pegar no fio à meada, na esperança de nos fazer sair daquele mutismo. Tinha uma antena que captava a nossa disposição e mostrava-se capaz de nos obrigar a reagir. E possuía ainda outro talento: conseguia fazer a pessoa mais aborrecida do mundo parecer quase fascinante. Pelo menos era isso que eu sentia, sempre que falava com ele - como se a minha vidinha rotineira fosse uma grande aventura.
Porém, no minuto em que ele saía de ali ao pé, calávamo-nos de imediato. Não tínhamos nada em comum, nem nada a dizer um ao outro. Enquanto ele não regressava, ficávamos ali sentados, impacientes, a brincar com o cinzeiro, a beber água em pequenos goles. Mal ele aparecia, a conversa prosseguia como se não tivesse sido nada.
Lembro-me de a ter visto, três meses depois do funeral dele. Marcámos encontro num café para tratar de uma questão qualquer que estava pendente. Contudo, assim que a coisa ficou esclarecida, deixámos de ter assunto. Ainda abri a boca uma ou duas vezes para dizer algo, mas a conversa parecia morrer sempre a meio caminho. Ela estava com cara de poucos amigos, parecia estar danada comigo, embora eu não atinasse com o motivo.
Provavelmente, ficara zangada por ter sido eu a última pessoa a vê-lo com vida, e não ela. Bem sei que não devia dizer isto, mas ultrapassa-me. Quem me dera poder ter trocado de lugar com ela, mas o certo é que não havia nada a fazer. O que tem de ser, tem muita força, e não há nada que possamos fazer para alterar o passado.
Numa agradável tarde de Maio, depois das aulas - que é como quem diz, a escola ainda não tinha acabado, mas nós tínhamos feito gazeta -, ele e eu entrámos num salão de bilhar e jogámos quatro partidas de pool(5). Eu ganhei a primeira, ele levou a melhor as restantes três. Tal como tínhamos combinado, pagou aquele que perdeu.
Nessa mesma noite, ele morreu na garagem de sua casa. Enfiou um tubo de borracha no escape do seu Honda N360(6), meteu-se no

*5. Em Portugal chama-se snooker ao jogo que os norte-americanos chamam pool (ou bilhar americano). (N. da T.)
6. Pequeno de tamanho e nas especificações, com faróis circulares que pareciam uns olhos grandes, o primeiro carro não desportivo fabricado pela Honda fez furor em 1960 e na década de 1970 foi o primeiro carro japonês a ser importado pelos Estados Unidos, e o modelo vermelho transformou-se rapidamente num clássico. (N. da T.)

carro, usou fita adesiva para vedar as janelas e a seguir ligou o motor. Não sei dizer quanto tempo terá demorado a morrer. Quando os pais chegaram a casa, depois de terem ido visitar uma pessoa amiga que se encontrava doente, foram dar com ele morto. O rádio do carro estava ligado, com um recibo do posto de gasolina ainda preso ao limpa-pára-brisas.
Não deixou bilhete de despedida e ninguém conseguiu explicar as razões para o seu acto. Atendendo a que fui eu a última pessoa a vê-lo com vida, fui chamado à Polícia para ser interrogado. Contei-lhes que ele não se tinha comportado de forma diferente do habitual. Parecia o mesmo de sempre. Quem é que se lembraria de cometer suicídio depois de ter saído vencedor de três jogos de pool de uma enfiada? Contudo, o polícia não pareceu ter ficado com uma impressão muito boa de nenhum de nós. Quem os ouvisse, ficaria tentado a pensar que aqueles rapazes que se baldam às aulas para se enfiarem num salão de jogos tinham grandes probabilidades de cometerem suicídio. No jornal apareceu uma pequena notícia acerca da sua morte e o caso foi encerrado. Os pais dele viram-se livres do carro, e durante alguns dias houve sempre flores brancas em cima da sua carteira no colégio.
Quando acabei o secundário médio e fui viver para Tóquio, só tinha uma ideia em mente: não levar as coisas demasiado a sério. Fiz os possíveis por deixar tudo para trás - as mesas de pool revestidas de feltro verde, o carro vermelho, as flores brancas em cima da secretária, o fumo a sair da alta chaminé do forno crematório, o pesa-papéis maciço na sala de interrogatórios da esquadra. Tudo. A princípio, a coisa parecia funcionar e ainda pensei que conseguiria esquecer, mas a verdade é que alguma coisa permaneceu em mim. Uma massa de ar indistinta e impossível de apreender. Contudo, com o passar do tempo, essa massa começou a tomar uma forma simples e nítida. Posso traduzir essa forma em palavras. Era qualquer coisa como isto:
A morte não é o oposto da vida, mas parte dela. Dito assim em voz alta, parece banal. O exemplo acabado de um lugar-comum. Na altura, porém, não me atingiu como uma frase feita de palavras; era antes como uma massa de ar dentro de mim. A morte estava em tudo o que me rodeava - no pesa-papéis, nas quatro bolas em cima da mesa de pool. Pelo facto de vivermos, respiramos morte, e continuamos a viver exalando-a para dentro dos nossos pulmões como uma fina poeira.
Até esse momento, sempre pensara na morte como tendo uma existência separada da vida, que existia num outro domínio. Sabia, claro, que a morte acabaria por chegar de visita; porém, até esse dia chegar, poderíamos facilmente virar as costas e dizer à morte que não queremos nada com ela. Deste lado, existe a vida - e lá longe, do outro lado, a morte. Lógico, não vos parece?
Depois de o meu amigo ter morrido, deixei de poder encarar a morte de uma maneira tão simplista. A morte não é o pólo oposto da vida. A morte já se encontra dentro de mim, é parte integrante da minha existência. Por mais que eu queira, torna-se impossível adiar esse pensamento. A morte que levou o meu amigo, aos 17 anos, naquele fim de tarde de Maio, apoderara-se de mim com as suas poderosas garras.
Até aí, eu conseguia ir, mas continuava sem vontade de pensar seriamente no assunto. Tinha a ligeira sensação de que não seria por isso que ficaria mais próximo da verdade. O que era mais difícil de fazer do que de dizer. Com apenas dezoito anos, era demasiado novo para encarar a morte serenamente.
Depois disso, saímos juntos uma vez, senão duas, no mesmo mês. Acho que se pode falar em encontros. Não consigo arranjar uma palavra melhor.
Ela andava a estudar numa universidade para raparigas mesmo à saída de Tóquio, uma escola pequena mas com boa reputação. O seu apartamento ficava a dez minutos a pé da universidade. Ao longo do caminho para a escola situava-se um bonito canal de águas límpidas onde costumávamos passear às vezes. Ela não parecia ter muitos amigos. Continuava, tal como dantes, a ser muito bonita. Como os temas de conversa não abundavam, pela minha parte não avançava grande coisa. Olhávamos um para o outro e contentávamo-nos em andar, andar muito.
No entanto, não se poderia dizer que o nosso relacionamento não avançasse. Com as férias de Verão quase no fim, ela começou, muito naturalmente, a caminhar ao meu lado, em vez de seguir à frente.
Lado a lado, colina acima colina abaixo, fartámo-nos de passear por todo o lado, atravessando pontes e percorrendo estradas. Não nos dirigíamos a nenhum sítio em especial, não tínhamos nenhum plano concreto. Andávamos durante algum tempo, entrávamos num café para tomar qualquer coisa, e depois metíamo-nos outra vez à estrada. Nada mudava, a não ser as estações do ano, à imagem de diapositivos a serem mostrados num projector. Veio o Outono e o pátio do meu dormitório de estudantes cobriu-se de folhas de olmo caídas. Pelo cheiro de uma camisola eu sabia que chegara a nova estação do ano. Os meus sapatos estavam gastos. Saí e fui comprar um par de sapatos de camurça.
No final do Outono, quando começou a soprar um vento gelado, ela começou a andar mais juntinha a mim, quase encostada ao meu ombro. Através do meu grosso anoraque de lã, podia sentir a respiração dela. Mas era só isso. Com as mãos todas enfiadas nos bolsos do casaco, continuei sempre a caminhar ao lado dela. Como os nossos sapatos tinham sola de borracha, mal dava para ouvir os nossos passos. Só quando calhava pisarmos as espessas folhas dos plátanos é que se produzia um estalido seco. Não era o meu braço que ela procurava, mas o braço de outra pessoa, da mesma forma que também não era o meu calor por que ela ansiava, mas o calor do corpo de outra pessoa. Pelo menos era esse o sentimento com que eu ficava na altura.
Os outros no dormitório gozavam comigo sempre que ela telefonava ou quando eu saía cedo aos domingos de manhã para ir ter com ela. Pensavam que eu arranjara uma namorada. Como não me sentia na obrigação de lhes dar explicações, nem nada que se parecesse, deixava-os pensar o que muito bem entendessem. Sempre que eu regressava de um encontro, havia sempre alguém que me perguntava como é que eu me safara, fatal como o destino. "Não me posso queixar", era a resposta que eu já tinha engatilhada.
E assim se passou o meu décimo oitavo ano de vida. O Sol levantava-se e punha-se, bandeira para cima, bandeira para baixo. E, aos domingos, lá me encontrava eu com a namorada do meu amigo que tinha morrido. Não fazia a mínima ideia do que andava a fazer, nem do que viria a seguir. Nas aulas, lia as peças de Claudel e Racine, bem como as obras de Einstein. Gostava do que lia, do estilo, mas pouco mais. Tinha dificuldade em fazer amigos, tanto no lar como na escola. Passava a vida a ler, por isso toda a gente pensava que eu queria ser escritor. Mas estavam enganados. Não tinha nenhuma ambição especial.
Tentei falar com ela, por mais de uma vez, acerca do que me ia na alma. Ela, de todas as pessoas, saberia compreender os meus sentimentos. A verdade, porém, é que nunca consegui traduzir o que sentia em palavras. Era como ela tinha dito - de cada vez que eu me esforçava por encontrar as palavras certas, elas escapavam-se-me por entre os dedos e afundavam-se nas profundezas da lama.
Aos sábados de manhã, sentava-me na entrada do dormitório, que era onde estavam os telefones, na expectativa de um telefonema seu. Por vezes passavam três semanas seguidas sem que ela se dignasse ligar, outras apenas duas. E eu sentado numa cadeira da entrada, à espera. Ao sábado, a maior parte dos outros estudantes saíam à noite, e o silêncio descia sobre o dormitório. Olhando para as partículas de luz pairando imóveis no espaço, lutava para compreender os meus sentimentos. Toda a gente procura alguma coisa junto de outra pessoa. Disso tinha eu a certeza. Agora do que acontecia a seguir, nada sabia. A minha frente, mas fora do meu alcance, erguia-se uma parede de névoa.
Durante o Inverno, arranjei emprego em tempo parcial numa pequena loja de discos em Shinjuku. Como prenda de Natal, ofereci-lhe um disco de Henry Mancini que tinha uma das suas canções favoritas, "Dear Heart". Fiz um embrulhinho com papel que tinha uma árvore de Natal desenhada e usei fita cor-de-rosa para o laçarote. Em troca recebi um par de luvas de malha tricotadas por ela. A parte do polegar tinha ficado um bocadinho pequeno, mas eram quentinhas e isso é que importava.
Como ela não foi passar o Natal a casa, jantámos os dois juntos em casa dela na noite de fim de ano.
Durante esse Inverno, aconteceu muita coisa.
Nos últimos dias de Janeiro, o meu colega de quarto ficou de cama dois dias seguidos com quase quarenta de febre. Por causa disso, não tive outro remédio senão desmarcar um encontro com ela. Não podia virar costas e deixá-lo naquele estado, a morrer aos bocadinhos. Tirando eu, quem mais é que tomaria conta dele? Fui comprar gelo, embrulhei-o muito bem num saco de plástico, limpei o suor com uma toalha húmida e fresca, medi a temperatura de hora a hora. A febre não baixou durante vinte e quatro horas. Ao segundo dia, porém, ele saltou da cama como se não fosse nada. A temperatura estava outra vez normal.
- Estranho - comentou ele. - Acho que nunca na minha vida tinha tido febre.
- Pois eu garanto que tu estavas cheio de febre - repliquei eu, metendo-lhe debaixo do nariz os dois bilhetes oferecidos para um concerto que tinham sido desperdiçados.
- Pelo menos eram de borla - observou ele. Em Fevereiro, fartou-se de nevar.
Com o mês a chegar ao fim, envolvi-me numa briga com um rapaz mais velho lá do dormitório por uma estupidez qualquer e dei-lhe um soco. Ele caiu e bateu com a cabeça no chão de cimento. Felizmente não se magoou a sério, mas fui chamado ao gabinete do director do lar de estudantes e recebi uma advertência. Depois disso, a vida no alojamento estudantil nunca mais foi a mesma.
Fiz dezanove anos e passei finalmente para o segundo ano. Chumbei, no entanto, em duas ou três cadeiras. Consegui safar-me com notas pouco mais do que medíocres. Ela também passou para o segundo ano, mas com muito melhores notas do que eu - basta dizer que passou a todas as cadeiras. O círculo das quatro estações completou-se.
Em Junho, ela fez vinte anos. Tive dificuldade em imaginá-la com vinte anos. Sempre tínhamos pensado que o melhor das nossas vidas ia dos dezoito aos dezanove. Depois dos dezoito vêm os dezanove, e depois dos dezanove regressávamos aos dezoito - isso era aos nossos olhos perfeitamente óbvio. Mas depois ela completou vinte anos. E no Inverno seguinte seria a minha vez de entrar na casa dos vinte. Só o nosso amigo que tinha morrido é que ficaria para sempre como estava - eternamente com dezassete anos.
Choveu no dia de anos dela. Comprei um bolo em Shinjuku e apanhei o comboio para ir ter com ela. O comboio estava a rebentar pelas costuras e fui a viagem toda aos tombos; quando cheguei a casa dela, o bolo mais parecia as ruínas do Coliseu romano. Mesmo assim, não desistimos enquanto não lhe pespegámos em cima vinte velas e as acendemos com um fósforo. Fechámos as cortinas e apagámos a luz, e como que por magia criámos o ambiente propício a uma verdadeira festa de aniversário. Ela abriu uma garrafa de vinho, que bebemos a acompanhar o bolo todo escangalhado e mais qualquer coisa.
- Não sei, mas isto de fazer vinte anos tem o seu quê de idiota -disse ela. Depois do jantar, arrumámos a loiça e sentámo-nos no chão a beber o resto do vinho. Enquanto eu bebia um copo, ela emborcava dois.
Nunca a ouvi falar tanto como nessa noite. Contou-me histórias que nunca mais acabavam acerca da sua infância, dos estudos, da família. Tudo histórias em que os episódios se enredavam incrivelmente uns nos outros. A história A dava de repente azo à história B, que por seu turno se transformava na história C, num nunca mais acabar de peripécias que davam forma a uma interminável saga. Ao princípio, fiz toda a espécie de barulhinhos que eram esperados de mim, a fim de provar que estava a prestar atenção, mas às tantas dei-me por vencido. Pus um disco a tocar e, quando este chegou ao fim, levantei o braço da agulha e pus outro. Depois de termos ouvido o repertório todo, voltei ao primeiro. Lá fora continuava a chover a cântaros. O tempo passou vagarosamente enquanto ela debitava um monólogo que nunca mais acabava.
Só comecei a ficar preocupado lá mais para diante. De repente, dei-me conta de que eram onze da noite e que ela estivera a falar quatro horas sem parar. Se não me despachasse, perdia o último comboio. Fiquei sem saber o que fazer. Deveria permitir que ela continuasse a falar até se cansar? Deveria pôr fim àquilo? Depois de muito hesitar, achei melhor interrompê-la. Pensando bem, quatro horas era mais do que tempo suficiente.
- Bom, acho melhor ir-me embora - disse eu por fim. - Desculpa ter ficado até tão tarde. Voltamos a encontrar-nos em breve, está bem?
Não sabia ao certo até que ponto as minhas palavras tinham surtido efeito. Por momentos ela deixou-se ficar calada, mas depois recomeçou a falar. Desisti e acendi um cigarro. Àquele ritmo, o melhor era passar ao plano B. Que é como quem diz, deixá-la desabafar até ao fim.
Passado pouco tempo, contudo, ela parou. De um momento para o outro, não sem um certo choque, percebi que o monólogo tinha acabado. Apesar da vontade que tinha de prosseguir o seu relato, o poço das palavras tinha secado. Fragmentos das últimas palavras ainda ali estavam, como que suspensos no ar. Ela quis continuar a falar, mas não saiu nada. Algo se perdera. Com os lábios ligeiramente entreabertos, ela encarou-me com uma expressão vaga. Parecia que estava a olhar para algo através de uma membrana fina e opaca. Não pude deixar de me sentir culpado.
- Não foi minha intenção interromper-te - disse eu pausadamente, pesando cada palavrinha. - A verdade, porém, é que se está a fazer tarde e pensei em ir andando...
Em menos de um segundo, as lágrimas começaram a correr pelas suas faces e caíram ruidosamente em cima da capa de um dos discos. Após aquelas primeiras gotas, o dique rebentou. Com as duas mãos no rosto, ela inclinou-se para a frente e desatou num pranto tão forte que parecia quando uma pessoa está à beira de vomitar. Estendi devagar a minha mão e toquei-lhe no ombro, que estremeceu ao de leve. Quase sem querer, puxei-a para mim. Com a cabeça enterrada no meu peito, ela continuou a soluçar em silêncio, molhando a minha camisa com o seu hálito e as suas lágrimas quentes. Depois os seus dedos percorreram as minhas costas, como que em busca de alguma coisa. Tinha o meu braço esquerdo à volta dela, por isso acariciei as finas madeixas dos seus cabelos lisos e sedosos com a mão direita. Permaneci durante muito tempo nessa posição, à espera que ela deixasse de chorar. Mas o seu choro nunca cessou.
Nessa noite fui para a cama com ela. Não sei se fiz bem ou não. Mesmo hoje, não sei que outra coisa poderia ter feito.
Há séculos que não ia para a cama com uma rapariga. Para ela, era a primeira vez. E eu, estúpido, perguntei-lhe por que é que ela não tinha dormido com ele. Em vez de responder, ela afastou-se de mim, virou a cara para o outro lado e ficou a ver a chuva cair. Eu pus-me a olhar para o tecto e fumei um cigarro.
De manhã, a chuva tinha parado. Ela dormia, virada de costas para mim. Ou talvez tivesse estado sempre acordada, não posso dar a certeza. O que sei é que ela voltara a fechar-se no mutismo de um ano atrás. Deixei-me estar um bocado a olhar para as suas costas brancas até que desisti e levantei-me da cama.
Espalhadas pelo chão amontoavam-se as capas dos discos, e sobre a mesa encontravam-se os restos de um bolo desmoronado. Parecia que o tempo tinha resvalado até se imobilizar. Em cima da secretária dela havia um dicionário e um quadro de conjugações de verbos franceses. Defronte da escrivaninha estava um calendário colado à parede com fita adesiva, um calendário virgem, totalmente em branco. Sem nenhum dia assinalado, sem nada escrito.
Procurei as minhas roupas, caídas no chão ao lado da cama. A parte da frente da minha camisola estava ainda fria e húmida das lágrimas. Ao encostá-la à cara, aspirei o perfume dos seus cabelos. Rasguei uma folhinha do bloco que havia em cima da secretária e escrevi: "Liga-me assim que puderes." Depois saí do quarto e fechei a porta atrás de mim.
Passou-se uma semana sem receber notícias. Vendo que ela não atendia o telefone, escrevi-lhe uma longa carta, na qual tentei expressar os meus sentimentos tão honestamente quanto possível. "Está a acontecer muita coisa que me ultrapassa", escrevi eu, "encontro-me empenhado ao máximo em compreender tudo, mas tens de entender que essas coisas demoram o seu tempo. Não sei para onde vou - só sei que não quero ficar preso a algo nem matar a cabeça a pensar nisso. O mundo é um lugar demasiado precário. Se começo a matutar em certas ideias, ainda acabo por obrigar as outras pessoas a fazerem coisas que odeiam. Essa ideia é-me insuportável. Tenho muita vontade de te voltar a ver, mas não sei bem se será esse o caminho certo..." Foi uma carta deste género que lhe escrevi.
A resposta por carta chegou no princípio de Julho. Uma curta missiva.
Decidi fazer uma pausa e interromper os meus estudos durante um ano. Oficialmente, pedi uma licença e fica tudo em aberto, mas tenho muitas dúvidas e não sei se algum dia voltarei à universidade. Amanhã mesmo abandono o meu apartamento. Bem sei que a minha decisão te deve parecer algo repentina, mas a verdade é que ando há muito a matutar nisto. Gostaria de ter pedido o teu conselho, e por mais de uma vez estive quase a fazê-lo, mas, por uma ou outra razão, não o fiz. No fundo, acho que tinha medo de falar no assunto.
Peço-te que não fiques a pensar no que houve entre nós. Independentemente do que aconteceu, ou não aconteceu, acabaríamos sempre por chegar a este ponto. Imagino que as minhas palavras te magoem, e acredita que tenho pena que assim seja. O que quero com isto dizer é que não gostaria que te sentisses culpado - nem tu nem ninguém - por minha causa. Acredita, tenho realmente de ser eu a lidar com a situação. Andei o ano inteiro a remoer isto, e tenho a perfeita noção de ter contribuído para tornar as coisas mais difíceis para ti. Pode ser que agora fique tudo para trás.
Existe uma boa casa de repouso nas montanhas, não muito longe de Kyoto, e decidi passar lá uns tempos. Não se trata propriamente de um hospital, mas sim de um sítio onde uma pessoa pode fazer o que lhe der na real gana. Qualquer dia volto a escrever e conto-te mais coisas. Neste momento, confesso que não consigo pôr no papel tudo o que me vai na alma. Só para saberes, é a décima vez que reescrevo esta carta. Não consigo encontrar palavras para te agradecer o tempo que passaste na minha companhia no decorrer deste último ano. Acredita no que te digo - mesmo que não acredites em mais nada. Prometo guardar como uma verdadeira relíquia o disco que me ofereceste.
Se por acaso algum dia voltarmos a encontrar-nos neste mundo precário, pode ser que esteja em condições de te contar mais do que agora.
Adeus.
Devo ter lido a carta mais de cem vezes, e não houve uma única vez em que não tivesse sido acometido por uma terrível tristeza. Aquele tipo de tristeza vaga e persistente que sentia quando ela me olhava nos olhos. Não podia adiar o coração. O meu desassossego era como o vento, sem forma nem peso, e eu não conseguia envolver-me nem aquecer-me nele. Via passar lentamente a paisagem diante dos meus olhos. As pessoas falavam mas as palavras que elas proferiam não chegavam aos meus ouvidos.
As noites de sábado, passei-as sentado naquela mesma cadeira, à entrada do dormitório. Sabia que o telefonema nunca chegaria, mas não me ocorria nada de melhor para fazer.
Ligava o televisor e fingia que estava entretido a ver jogos de basebol. Em vez disso, olhava fixamente o espaço vazio que ficava entre mim e o televisor. Dividia esse espaço em dois, e depois outra vez em dois. Fiz isso tantas vezes até ele ficar tão pequeno ao ponto de caber na palma da minha mão.
Às dez, desligava o aparelho, regressava ao meu quarto e dormia.
No final desse mês, o meu companheiro de quarto ofereceu-me um pirilampo que vinha dentro de um frasco de café instantâneo. Lá dentro havia pedaços de relva e um bocadinho de água. Ele tinha feito pequenos buracos na tampa para deixar passar o ar. Na altura ainda era de dia; por isso, àquela luz, o pirilampo parecia um daqueles insectos pretos que encontramos na praia. Olhei para dentro do frasco e vi que se tratava, sem sombra de dúvida, de um pirilampo. O bicho tentava trepar pela superfície escorregadia do frasco, mas acabava sempre por cair de costas. Não me lembrava da última vez que tinha visto um daqueles de tão perto.
- Encontrei-o no pátio - explicou o meu companheiro de quarto. - O hotel que fica ao fundo da rua costuma ter uma quantidade de pirilampos para entreter os clientes, de modo que este deve ter escapado e veio parar aqui. - Enquanto dizia aquilo, tratava de enfiar roupas e cadernos dentro de uma pequena mala de viagem. As férias de Verão já tinham começado há várias semanas. Éramos os únicos que haviam ficado para trás, uma vez que eu não fazia tenções de regressar a casa e ele, por seu turno, tinha ainda de fazer um estágio qualquer; assim que se despachasse, ele ficaria livre de voltar para casa.
- Por que é que não o ofereces a uma rapariga? - perguntou ele. - As raparigas é que gostam dessas coisas.
- Obrigado, é uma boa ideia - agradeci.
Depois de escurecer, o dormitório ficou em silêncio. A bandeira estava recolhida, e as janelas do refeitório deixavam escapar uma ténue luminosidade. Encontravam-se ali apenas meia dúzia de estudantes, por isso era lógico que apenas metade das luzes ficassem acesas. As luzes do lado direito estavam apagadas, as do lado esquerdo estavam acesas. Até mim chegou o aroma da refeição servida ao jantar. Galinha estufada com molho branco(7).
Peguei no frasco de café instantâneo com o pirilampo lá dentro e fui até ao telhado. O lugar estava deserto. Via-se uma camisa branca que alguém devia ter esquecido pendurada na corda, a ondular ao vento como a pele despojada de um animal. Trepei pela escada de metal enferrujada que existia num canto do telhado para subir ao topo da torre de água. O tanque cilíndrico de água ainda estava quente devido ao calor do sol absorvido ao longo do dia. Sentei-me a um canto, acocorado, com as costas apoiadas ao varandim, e ali fiquei a contemplar a Lua branca que daí a dois ou três dias se mostraria cheia. À minha direita, podia ver as ruas de Shinjuku; à esquerda, ficava Ikebukuro. Os faróis dos carros formavam um rio luminoso que percorria a cidade de uma ponta à outra. Um leve gemido, formado pela mistura de vários sons e fazendo lembrar o ruído abafado de um motor, pairava como uma nuvem sobre a cidade.
O pirilampo emitia uma claridade no fundo do frasco, mas a luz era demasiado fraca, a cor demasiado baça. Daquilo que me lembrava, os pirilampos deviam emitir uma luz forte e incendiária, capaz

*7. Apesar de ter todo o ar de uma receita ocidental, é um prato japonês popular. (N. daT.)

de atravessar a escuridão de uma noite de Verão. Talvez o pirilampo à minha frente estivesse enfraquecido, à beira de morrer? Segurando no frasco pelo gargalo, agitei-o um par de vezes, para ver no que dava. O pirilampo esvoaçou por segundos e foi de encontro ao vidro. A claridade que emitia, porém, continuava desmaiada.
Também podia dar-se o caso de o problema residir única e exclusivamente na minha memória. Vendo bem, se calhar a luz dos pirilampos não era assim tão intensa. Seria imaginação minha? Ou então, a escuridão dos meus tempos de menino revelava-se mais profunda. A verdade é que já não sabia. Nem sequer me lembrava da última vez que vira um pirilampo.
Recordava-me, isso sim, do rumor da água na noite. De uma velha cancela feita de tijolos, que se abria e fechava por intermédio de uma manivela que era preciso rodar. De um pequeno curso de água, com a superfície coberta de plantas aquáticas. Em redor fazia escuro como breu, e sobre as águas estagnadas esvoaçavam centenas de pirilampos. Por cima pairava uma mescla de luz amarelada, nevoenta.
Quando teria isso acontecido? E onde?
Não fazia a mínima ideia.
O passado e o presente confundiam-se.
Fechei os olhos e respirei fundo várias vezes, para ver se me acalmava. Se permanecesse com os olhos bem fechados, em qualquer altura o meu corpo poderia ser sugado pela obscuridade do Verão. Era a primeira vez que me aventurara a subir à torre de água a coberto da noite. Podia ouvir o som do vento mais distintamente do que era costume. Não se podia dizer que fosse muito forte, mas, estranhamente, deixava no ar um rasto ao passar junto de mim. As trevas apoderaram-se lentamente da Terra. As luzes da cidade bem que podiam brilhar em todo o seu esplendor, mas, pouco a pouco, a escuridão da noite tornara-se mais profunda.
Abri a tampa do frasco, tirei o pirilampo para fora e pousei-o na borda, apenas a cinco centímetros da torre de água. O pirilampo não deu mostras de saber onde se encontrava. Depois de ter dado a volta a um parafuso, deixou-se ficar com uma pata estendida por cima de um pedaço de tinta descamada. Ainda tentou deslocar-se para a direita, mas, percebendo que por ali não havia saída, voltou a arrepiar caminho pela esquerda. Muito devagarinho e com grande esforço, empoleirou-se em cima do parafuso e ali ficou acaçapado, imóvel, mais morto do que vivo.
Encostado ao varandim, deixei-me estar a observar o pirilampo. Durante muito tempo, ficámos os dois ali agachados, sem nos mexermos. Apenas o vento que se fazia sentir nos fustigava à sua passagem. No escuro, ouvia-se o restolhar produzido por um amontoado de folhas de olmos que se agitavam umas de encontro às outras.
Esperei uma eternidade.
Passado muito tempo, o pirilampo levantou voo. Como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa, de repente abriu as asas e voou por cima do varandim, rumo à noite escura e densa. Esforçando-se, quem sabe, por recuperar o tempo perdido, descreveu um rápido arco junto à torre de água. Parou por momentos, o tempo suficiente para que o seu trilho de luz se desvanecesse, dispersado pelo vento, antes de continuar o seu voo em direcção a leste.
Muito depois de o pirilampo ter desaparecido, os traços da sua luz permaneceram dentro de mim. Na profunda escuridão, por detrás das minhas pálpebras cerradas, aquela claridade suave continuou sempre a luzir, como um espírito errante que andasse perdido.
Estendi a mão, uma vez e outra, procurando alcançar as trevas, mas os meus dedos nada sentiram. Aquela pequena réstia de luz permaneceu sempre para além do meu alcance.


O VIAJANTE DO ACASO


Aqui o "eu", é bom que se saiba, refere-se a mim, Haruki Mura-kami, o autor da história. Na sua maior parte, este texto é uma narrativa contada na terceira pessoa, mas tomei a liberdade de permitir que o narrador, logo a abrir, dissesse de sua justiça. Como numa peça de teatro de outros tempos, em que o narrador aparece à frente do palco e debita um monólogo, antes de se retirar com uma vénia. Agradeço desde já a vossa paciência e prometo ser breve.
A razão que me leva a entrar em cena prende-se com o facto de ter achado que ninguém melhor do que eu para relatar algumas das "estranhas ocorrências" que se passaram comigo. Para dizer a verdade, acontecimentos desse género passam a vida a acontecer-me. Alguns revestiram-se de grande significado para mim e, de uma maneira ou de outra, mudaram o rumo da minha existência. Outros não passam de incidentes sem grande significado, que pouco ou nenhum impacto tiveram. Pelo menos que eu tenha dado por isso.
Sempre que esses incidentes vêm à baila, por exemplo, numa discussão de grupo, quase nunca geram muita discussão. Quase sempre, as pessoas limitam-se a fazer um ou outro comentário que nada tem que ver com o assunto, e a conversa fica por ali. Nunca aparece alguém com vontade de agarrar no tema, capaz de se pôr para ali a desfiar uma experiência semelhante que lhe tenha acontecido. O tema que aqui vos proponho é como a água, que, em grande quantidade, corre pelo canal errado e acaba por ser engolida pela areia circundante e sugada para o fundo da terra. Durante um certo tempo ninguém diz nada, depois aparece alguém que se encarrega de mudar de tema.
De início, pensei que o problema se prendia com a maneira errada como eu contava a história, por isso houve um dia em que tentei passá-la para o papel e dar-lhe a forma de um ensaio. Imaginei que, ao dar esse passo, talvez as pessoas começassem a levar-me mais a sério. Porém, veio a provar-se que ninguém acreditara no que eu escrevera. "Inventaste tudo, certo?" Passo o tempo a ouvir esta ou uma frase parecida. Uma vez que eu sou romancista, as pessoas partem do princípio de que tudo o que digo ou escrevo tem forçosamente, em maior ou menor grau, um toque de ficção. Assumo aqui que a minha ficção tem a sua elevada quota-parte de efabulação, mas a verdade é que, a partir do momento em que não me encontro a escrever ficção, inventar a torto e a direito histórias sem pés nem cabeça é coisa que nem sequer me passa pela cabeça.
Em jeito de prefácio ao conto que se segue, gostaria assim de proceder ao breve relato de algumas estranhas experiências que aconteceram comigo. Ficar-me-ei pelas que considero mais insignificantes e banais. Caso começasse por aquelas que mudaram a minha vida, acreditem, iria muito para além do espaço que me é permitido.
Entre 1993 e 1995 vivi em Cambridge, Massachusetts. Era uma espécie de escritor-residente numa faculdade, ao mesmo tempo que trabalhava num romance intitulado Crónica do Pássaro de Corda(1). Em Harvard Square, existia um clube de jazz chamado Regattabar Jazz Club(2), onde era frequente haver actuações ao vivo. Tratava-se de um sítio simpático, com um ambiente calmo e descontraído. Ali tocavam nomes famosos do jazz, além de que os preços de entrada cobrados eram perfeitamente aceitáveis.
Uma noite, passou por lá o pianista Tommy Flanagan na companhia do seu trio. Como a minha mulher tinha outros planos, fui

*1. Casa das Letras, Lisboa, 2006. (N. da T.)
2. Considerado por apreciadores e críticos a melhor sala de Boston (e dos Estados Unidos) para ouvir jazz e blues; ainda hoje com um programa permanentemente recheado de grandes nomes. (N. da T.)

sozinho. Acontece que Tommy Flanagan é um dos meus pianistas de jazz preferidos. Regra geral, aparece na qualidade de acompanhante: as suas actuações fazem prova, sem excepção, de um calor, uma profundidade e uma segurança a todos os títulos espantosos. Confesso, porém, que ainda gosto mais dele como solista. Ansioso, como podem imaginar, sentei-me numa mesa junto ao palco, preparado para apreciar devidamente sua actuação com um copo de Merlot da Califórnia na mão. Para ser sincero, tenho de reconhecer que a sua prestação, nessa noite, ficou um bocado aquém do que eu esperava. Talvez não estivesse na sua melhor forma. Ou então podia dar-se o caso de ser demasiado cedo para apanhar o swing da coisa. Não que ele tivesse tocado mal, nada disso; faltou-lhe qualquer coisa, aquele elemento extra que tem o condão de nos fazer voar para outra dimensão. Talvez se possa dizer que lhe terá faltado o toque mágico. "Tommy Flanagan consegue ser melhor do que isto", pensava eu enquanto o ouvia tocar, "espera só que ele aqueça e vais ver."
Mas o tempo foi passando e a coisa não melhorou. À medida que a actuação caminhava para o fim, comecei a sentir-me à beira de um ataque de nervos, esperando sinceramente que a noite não acabasse assim. Só desejava que as coisas corressem de outra maneira, a fim de não regressar a casa com aquela recordação desenxabida. Ou sem recordações de espécie alguma. Além de que poderia nunca mais voltar a ter a oportunidade de ver tocar Tommy Flanagan ao vivo. (De facto, confirmou-se a suposição.) De repente, ocorreu-me um pensamento: se me fosse dada a hipótese de escolher, ali e naquela hora, dois temas para ele tocar, quais seriam esses temas? Depois de reflectir um bom bocado, acabei por escolher "Barbados" e "Star-Crossed Lovers".
O primeiro é de Charlie Parker, o segundo, uma música de Duke Ellington. Lembrei-me deste último por causa das pessoas que não se encontram tão ligadas ao mundo do jazz, mas nem uma nem outra peça são muito populares ou interpretadas muitas vezes. Quando muito, talvez "Barbados", embora se trate de uma das melodias mais insípidas escritas por Charlie Parker, e quase aposto que a maioria nunca ouviu sequer "Star-Crossed Lovers". Isto para referir que nenhuma era uma escolha óbvia.
Naturalmente que tinha as minhas razões para haver escolhido aqueles temas tão improváveis no que tocava aos pedidos da minha eleição - nomeadamente que existiam duas gravações inesquecíveis de um e de outro feitas por Tommy Flanagan. "Barbados" aparecia no álbum de 1975 Dial 11 5, com ele ao piano a tocar na companhia do J. J. Johnson Quintet, enquanto "Star-Crossed Lovers" pertencia ao álbum Encounter!, lançado em 1968, que contou também com as participações de Pepper Adams e Zoot Sims. No decorrer da sua longa carreira, Tommy Flanagan interpretou e gravou uma quantidade impressionante de peças na qualidade de pianista convidado de vários agrupamentos, mas, confesso, eram sempre dos curtos solos marcantes e virtuosos, sobretudo nesses dois temas, que eu gostava acima de tudo. Daí que me tivesse posto a pensar que seria ouro sobre azul se ele os tocasse naquele momento. Nunca tirei os olhos dele, a imaginar que ele viria ter comigo à mesa para me dizer: "Viva, tenho estado a observá-lo. Por acaso tem algum pedido especial a fazer? Teria todo o gosto em tocar os temas que gostasse de ouvir." Apesar de saber, como é óbvio, que as hipóteses de isso acontecer eram mais do que reduzidas.
Foi então que, sem dizer uma palavra nem tão-pouco um único olhar na minha direcção, Tommy Flanagan finalizou a sua actuação tocando dois temas - precisamente aqueles em que eu tinha pensado. Arrancou com a balada "Star-Crossed Lovers", antes de atacar uma versão up tempo de "Barbados". Deixei-me ficar no meu lugar, incapaz de reagir, de copo de vinho em punho. Os amantes do jazz por certo compreenderão que as probabilidades de ele ter escolhido aqueles dois temas, dentre os milhões de melodias que existem no mundo do jazz, eram infinitas. Sem esquecer - e isto é que é o ponto fundamental - que as suas interpretações de um e outro tema eram espantosas.
O segundo incidente aconteceu mais ou menos na mesma altura, e também teve que ver com jazz, e teve por cenário uma loja de discos em segunda mão, nas imediações da Berklee School of Music. Deambular por entre prateleiras cheias de velhos LP é uma das poucas coisas desta vida que vale realmente a pena, na minha opinião. Nesse dia em concreto, tinha encontrado a cópia usada de uma gravação do quinteto de Pepper Adams feito para a Riverside, de seu título 10 to 4 at the 5 Spot. Tratava-se de um disco gravado ao vivo no clube de jazz The Five Spot, em Nova Iorque. Escusado é dizer que "10 to 4" significa dez minutos para as quatro, e, verdade seja dita, a dita sessão aconteceu num ambiente tão quente que eles tocaram até de manhãzinha. Aquela cópia do álbum era uma edição original, e estava como nova. Se bem me lembro, o preço andava à volta dos sete ou oito dólares. Tinha na minha posse a versão japonesa do disco e, de tantas vezes a ouvir, estava toda riscada. O simples facto de encontrar um disco original em tão bom estado e a um preço tão convidativo adquiriu, aos meus olhos, e fazendo o devido desconto, os contornos de um pequeno milagre. Conheci um sentimento de exultação ao comprar o disco e, quando ia mesmo a sair da loja, passou por mim um rapaz que me perguntou: "Por acaso tem horas que me diga?" Olhei para o relógio e respondi automaticamente: "Tenho, são dez para as quatro."
Dito aquilo, reparei na coincidência e engoli em seco. Que diabo se estaria a passar? Teria o deus do jazz pairado nos céus sobre Boston para me dizer, com uma piscadela de olho à mistura: "Yo, you dig it."

Não se pode dizer que algum dos dois acontecimentos se tenha revestido de algum significado especial, nem que a minha vida tenha mudado. Acontece que fiquei pura e simplesmente espantado com aquelas duas estranhas coincidências. Que é como quem diz, com o facto de coisas desse género acontecerem de facto.
Não me interpretem mal. Pessoalmente, os fenómenos ocultos não me dizem rigorosamente nada. A leitura da sina não tem em mim um adepto. Em vez de deixar que alguém me leia a palma da mão, prefiro mil vezes puxar pelas meninges em busca de uma solução para os meus problemas. Longe de mim gabar-me de ter uma mente brilhante ou coisa parecida, o que acontece é que sempre me pareceu ser esse o caminho mais rápido para achar uma solução. Os poderes paranormais também não me dizem nada. Confrontado com coisas como a transmigração, a alma, premonições, telepatia, a teoria do fim de tempo, obrigado, mas passo ao lado.
Não quero com isto dizer que não acredite nisto ou naquilo. Da mesma forma que acredito que da sua existência não vem mal ao mundo. Pessoalmente, repito, não estou interessado, mais nada. E, contudo, sou obrigado a reconhecer que não foram poucos os fenómenos bizarros e inesperados que de vez em quando têm dado cor à minha vida monótona.
A história que se segue foi-me contada por um amigo. Calhou em conversa ter-lhe falado naqueles dois meus episódios, após o que ele ficou sentado durante um grande bocado, com uma expressão séria, até que por fim disse: "Para dizer a verdade, também aconteceu comigo uma coisa parecida. Uma série de coincidências, a que fui conduzido pelo acaso. Apesar de não ter sido nada do outro mundo, o certo é que não consegui encontrar explicação."
Alterei alguns dos factos, a fim de proteger a identidade das pessoas, mas, tirando isso, a história que me apresto a contar foi-me contada exactamente assim.
O meu amigo é afinador de pianos. Habita na parte ocidental da cidade de Tóquio, perto do rio Tama. Tem quarenta e um anos e é homossexual. Tem um namorado três anos mais novo. O namorado trabalha no ramo imobiliário e, por causa da sua profissão, sente dificuldade em sair do armário e assumir a sua homossexualidade, razão pela qual cada um vive na sua casa. Se bem que não passe de um mero afinador de pianos, o meu amigo frequentou uma academia de música e é ele próprio pianista de reconhecidos dotes. A sua especialidade são os modernos compositores franceses - Debussy, Ravel e Erik Satie, que interpreta com a mais profunda expressividade. Contudo, Francis Poulenc é o seu preferido.
"Poulenc era homossexual", explicou-me ele um dia. "E nunca tentou esconder esse facto. O que, na época, era bastante difícil. Uma vez, disse qualquer coisa como isto: "Sem a minha homossexualidade, nunca teria podido criar a minha música." Compreendo perfeitamente o que ele queria dizer. Tinha de ser tão fiel à sua condição de homossexual como em relação à sua música. É assim a vida, e é assim a música."
Também eu sempre apreciei a música de Poulenc. De todas as vezes que o meu amigo aparece cá em casa para vir afinar o piano, mal ele acaba o que veio fazer peço-lhe sempre que toque duas ou três pequenas peças de Poulenc. A "Suite Française" ou a "Pastoral".
Ele "descobriu" que era maricas depois de ter entrado para a escola de música. Antes disso, nunca se lhe colocara sequer essa possibilidade. Era um homem elegante, bem-educado, de temperamento calmo, e muito popular junto das raparigas nos tempos do secundário. Sem uma namorada fixa digna desse nome, teve, no entanto, a sua dose de encontros com raparigas. Gostava imenso de caminhar ao lado de uma rapariga, a fim de observar de perto o seu penteado, aspirar a fragrância junto ao seu pescoço, segurar na delicada mão-zinha dela. Porém, nunca fez sexo com nenhuma. Após uma série de encontros com uma jovem, pressentia da parte dela uma certa vontade de que ele tomasse a iniciativa e fizesse alguma coisa, mas nunca foi capaz de dar o passo seguinte. Nunca sentiu dentro de si alguma coisa que o levasse a isso. Sem excepção, todos os outros rapazes à sua volta conviviam com os seus demónios sexuais, alguns deles indo ao ponto de lutar com eles, outros acabando por ceder. No caso dele, diga-se em abono da verdade que nunca sentiu esse tipo de compulsão. Se calhar, era daquelas pessoas que amadurecem mais tarde do que o normal, pensava ele. Ou, então, também podia dar-se o caso de ainda não ter encontrado a rapariga certa.
Na academia, começou a andar com uma rapariga do seu ano que andava a estudar percussão. Gostavam de conversar e, nos momentos que passavam juntos, sentiam uma certa proximidade. Passado não muito tempo, dormiram um com o outro no quarto dela. Foi ela a tomar a iniciativa. Já tinham bebido a sua conta. O sexo aconteceu sem sobressaltos, se bem que não tivesse sido nem metade tão excitante e gratificante como toda a gente dizia. Pelo contrário, aos olhos do meu amigo a coisa assumiu contornos grosseiros e quase grotescos. Além de que o odor libertado pela rapariga em plena fase de excitação provocou nele o efeito contrário, fazendo-o sentir repulsa. Muito melhor do que dormir com ela, achava ele, era ficar à conversa, ouvirem música juntos, partilhar uma refeição. À medida que o tempo foi passando, fazer sexo com ela revelou-se um pesadelo. Apesar de tudo, ele continuava a ter-se na conta de uma pessoa a quem o sexo era indiferente. Até que um belo dia... Não, mais vale saltar esta parte. Só serviria para demorar muito, além de que não tem uma relação directa com a história que eu quero contar. Digamos apenas que aconteceu uma coisa e que isso fez com que ele descobrisse, sem sombra de dúvida, que era homossexual. Não estando na sua maneira de ser inventar desculpas, assumiu o facto e contou à rapariga. Passada uma semana, a notícia chegara aos ouvidos de toda a gente. Ele perdeu alguns dos seus amigos, e o relacionamento com os pais conheceu uma fase de alguma tensão, mas, no cômputo geral, até foi bom ter-se sabido tudo. Ele não era pessoa de esconder a sua verdadeira natureza.
O que mais mágoa lhe causou, porém, foi a reacção da pessoa de quem se sentia mais próximo na família, a sua irmã, dois anos mais velha. Quando a família do noivo veio a saber que o irmão dela era gay, por pouco não desmancharam o noivado e cancelaram o casamento. Apesar de os pais do noivo terem sido convencidos a mudar de ideias e de o casalinho ter finalmente dado o nó, toda aquela história provocou na irmã dele um forte abalo nervoso, e ela, profundamente ressentida, acusou disso o irmão. "Por que é que foste logo escolher esta altura da minha vida para fazer ondas?", gritou-lhe ela. Naturalmente que o irmão se defendeu das acusações, mas depois desse episódio os dois acabaram por se afastar. Basta dizer que ele nem sequer foi ao casamento dela.
Do que ele mais gostava na sua vida de homossexual era o facto de viver sozinho. Tirando aquelas pessoas que nutriam pelos homossexuais uma certa repulsa física, quase toda a gente gostava dele - vendo bem, andava sempre impecavelmente vestido, era afectuoso e delicado, tinha sentido de humor e um sorriso sempre ao canto da boca. Era bom no seu ofício e por isso tinha uma longa lista de clientes e um rendimento muito razoável. Alguns pianistas famosos insistiam em tê-lo como afinador dos seus pianos. OT3 que tinha comprado nas imediações da universidade estava quase pago na totalidade. Possuía uma dispendiosa aparelhagem estereofónica, era mestre na arte de bem cozinhar refeições orgânicas e para se manter em forma ia cinco dias por semana ao ginásio. Depois de ter saído com uma série de homens, conheceu o seu presente companheiro, com o qual mantinha uma relação estável há dez anos.
Todas as terças-feiras atravessava o rio Tama, ao volante do seu Honda verde descapotável com mudanças manuais, e ia fazer as suas compras num outlet que ficava na prefeitura de Kanagawa. O centro comercial estava recheado das principais lojas de marcas - Gap, Toys R Us, The Body Shop e por aí fora. Ao sábado e ao domingo, o local ficava a abarrotar de gente e mal se conseguia lugar para estacionar, mas de manhã, nos dias de semana, estava quase deserto. Ele costumava dirigir-se a uma grande livraria que lá existia, comprava um livro que lhe chamasse a atenção e depois passava as horas seguintes calmamente a ler e a beber café numa cafetaria. Eram assim as suas terças-feiras.
"O centro comercial é horroroso", disse-me ele, "mas aquele café não tem nada que ver com o resto. Trata-se, de facto, de um sítio muito agradável. Descobri-o por mero acaso. Não têm música de fundo, é proibido fumar, e as cadeiras são ideais para ler. Nem demasiado duras, nem demasiado moles. Além de que quase nunca tem ninguém. Imagino que às terças de manhã não haja muita gente que tenha disponibilidade para ir tomar café. E mesmo que isso acontecesse, o mais provável era essas pessoas irem antes ao Starbucks do lado."
Era vê-lo, às terças-feiras de manhã, a partir das dez e quase até à uma da tarde, sentado no tal cafezinho, mergulhado na leitura. Por volta da uma, escolhia um restaurante ali perto, almoçava uma salada de atum e uma Perrier, e depois ia até ao ginásio fazer um bocado de exercício. A típica terça-feira dele era passada assim.
Naquela terça-feira em questão, encontrava-se ele a ler, como de costume, no café praticamente sem ninguém. O livro era A Casa Abandonada(3), de Charles Dickens. Ele tinha lido o romance anos antes e, assim que o descobriu numa estante da livraria, decidiu pegar nele outra vez. Lembrava-se perfeitamente de ter achado a história interessante, mesmo que não pudesse jurar que se lembrava de certos pormenores do enredo. Dickens era um dos seus escritores preferidos, desde sempre. Ler as obras de Dickens tinha o sortilégio de fazer com que os leitores se esquecessem do mundo à sua volta.

*3. Bleak House. Tradução de Mário Domingues, Lisboa, Romano Torres, 1964. (N. da T.)

Bastou-lhe ler a primeira página para ficar completamente absorvido pela história.
No entanto, após uma hora de aturada leitura, sentiu um certo cansaço. Fechou o livro, pousou-o em cima da mesa, fez sinal à empregada e mandou vir mais café, e foi à casa de banho no exterior do café. Quando regressou ao seu lugar, a mulher que estava na mesa ao lado, por sinal também a ler, dirigiu-lhe a palavra.
- Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta?
Ele olhou para ela sem disfarçar um sorriso. Devia ser da mesma idade.
- Claro que sim - respondeu.
- Bem sei que pode parecer deselegante meter assim conversa, mas há uma coisa que me faz confusão - referiu ela, corando ligeiramente.
- Por mim, tudo bem. Pode falar à vontade, não estou com pressa.
- Esse livro, que por acaso está a ler, é de Dickens?
- Sim, é - respondeu ele, pegando no livro e mostrando-lho. -A Casa Abandonada.
- Bem me parecia - observou ela, parecendo nitidamente aliviada. - Reparei na capa e pensei que pudesse tratar-se desse livro.
- Também gosta do romance A Casa Abandonada?
- Gosto. Não deixa de ser uma coincidência interessante. Quero dizer, estar sentada praticamente ao seu lado, e a ler o mesmo livro. -Ela tirou a cobertura de papel, daquelas que os livreiros oferecem se o cliente deseja, e mostrou a capa.
Tratava-se, de facto, de uma coincidência espantosa. Imaginem - na manhã de um dia de semana, num café vazio em pleno centro comercial deserto, calha haver duas pessoas sentadas ao lado uma da outra que estão a ler precisamente o mesmo livro. E, mais, não estamos a falar de um bestseller a nível mundial, mas de Charles Dickens. E nem sequer se pode dizer que o referido romance seja das suas obras mais conhecidas. O certo é que aquele estranho e improvável encontro apanhou ambos de surpresa, ao mesmo tempo que os ajudava a ultrapassar os sentimentos desordenados de um primeiro encontro.
A mulher vivia numa urbanização que não ficava longe do complexo comercial. Tinha comprado o romance A Casa Abandonada havia cinco dias, naquela mesma livraria, e, mal se sentou no café
para beber uma chávena de chá e abriu o romance na primeira página, nunca mais conseguiu parar de ler. Sem dar por isso, passaram duas horas. Desde os seus dias de estudante universitária que não sabia o que era ficar absorvida pela leitura.
Era pequena e, apesar de não se poder dizer que fosse gorda, começara a ganhar gordurinhas nos sítios habituais. Tinha o peito grande e um rosto atraente. As roupas que trazia vestidas denotavam bom gosto e não deviam ter sido baratas. No decorrer da conversa, ele ficou a saber que a mulher fazia parte de um clube de leitura e que o livro do mês era precisamente A Casa Abandonada. Uma das senhoras que integravam o clube era uma grande leitora de Dickens e tinha sugerido que a sessão seguinte fosse preenchida com aquele romance. A mulher no café tinha dois filhos (duas raparigas, uma no primeiro ano e outra no terceiro) e normalmente tinha pouco tempo para ler. Ainda assim, de vez em quando conseguia dar uma escapadela e arranjar algum tempo para si. As pessoas com que se dava no dia-a-dia eram quase todas mães das colegas das suas filhas, e os temas de conversa não fugiam muito aos programas que passavam na televisão e às bisbilhotices sobre os professores. Daí que ela tivesse tomado a decisão de entrar para um clube de leitura. O marido também costumava ler muito, mas nos últimos tempos o volume de trabalho mantinha-o sempre tão ocupado que já era uma sorte se, de quando em quando, conseguia passar os olhos por um ou outro livro de natureza comercial.
Por seu turno, ele também entrou em confidências com a mulher acerca da sua pessoa. Contou-lhe que ganhava a vida como afinador de pianos, que vivia numa casa com vista para o rio Tama, e que era solteiro. Disse-lhe que gostava tanto daquele café que uma vez por semana pegava no carro e ia até ali só para ficar sentado a ler. Quanto ao facto de ser homossexual, deixou-se ficar calado. Não que estivesse a escamotear a questão, apenas achava que não era o género de coisa para anunciar a qualquer pessoa.
Almoçaram juntos num restaurante do centro comercial. A mulher tinha um espírito aberto, próprio de uma pessoa honesta. Assim que ultrapassou o nervosismo inicial, e quebrou o gelo, fartou-se de rir. O seu riso era comedido e muito natural. Nem foi preciso ela entrar em pormenores para ele ficar a par do estilo de vida que ela levara até aí. Era uma menina mimada, filha de boas famílias, nascida e criada em Setagaya, tinha frequentado um bom colégio, onde obteve sempre boas notas e uma certa popularidade (porventura, mais junto das outras raparigas do que dos rapazes), antes de ter casado com um homem três anos mais velho que ganhava bem e de ter sido mãe de duas filhas. As meninas andavam a estudar num colégio privado. Ao longo dos doze anos de casada, nem tudo tinham sido rosas, mas também não se podia dizer que tivesse razões de queixa. No decorrer de um almoço ligeiro, os dois conversaram acerca dos livros que tinham lido recentemente e sobre a música da sua preferência.
- Gostei muito deste bocadinho - referiu ela, depois de terem estado à conversa cerca de uma hora, e corou. - Não há muita gente com quem eu possa falar.
-Também gostei - disse ele. E não era mentira nenhuma.
Na terça-feira seguinte, quando ele se encontrava sentado no café a ler, ela apareceu outra vez. Cumprimentaram-se com um sorriso e ficou cada um sentado à sua mesa, em silêncio, cada um entretido a ler o seu exemplar de A Casa Abandonada. Pouco antes do meio-dia, ela foi até à mesa dele e meteu conversa, e, tal como acontecera na semana anterior, foram os dois almoçar. "Conheço um simpático restaurante-zinho francês aqui perto", sugeriu ela, "e pensei que gostasse de experimentar, uma vez que no centro comercial não existem sítios decentes para comer." Ele disse que estava bem e lá foram no carro dela, um Peugeot 306 automático, de cor azul. Mandaram vir salada de agriões e perca grelhada, e a acompanhar beberam um copo de vinho branco. À mesa, enquanto comiam, discutiram o romance de Dickens.
Depois de almoço, no caminho de regresso ao centro comercial, ela parou o carro no parque de estacionamento e pegou nas mãos dele. Gostaria de ir com ele até um sítio calmo e tranquilo, disse ela. Ele mostrou-se algo surpreendido com a forma rápida como as coisas se estavam a desenrolar.
- Nunca fiz nada deste género desde que sou casada - referiu ela. - Mas confesso que não tenho pensado noutra coisa desde a semana passada. Juro que não farei qualquer exigência nem é minha intenção causar-te alguma espécie de problemas. É evidente que se não me achares atraente...
Ele apertou-lhe a mão com suavidade e explicou-lhe calmamente a situação.
- Se eu fosse um tipo normal - começou ele -, teria todo o prazer em ir contigo para esse tal "sítio calmo e tranquilo". És uma mulher atraente e de certeza que seria maravilhoso passar alguns momentos na tua companhia. Porém, acontece que sou homossexual. O que significa que não vou para a cama com mulheres. Outros na mesma situação fazem-no, mas não é o meu caso. Espero que consigas compreender isso. Estou disposto a ser teu amigo, mas infelizmente não teu amante.
Ela demorou o seu tempo a compreender o que ele estava a tentar dizer (era o primeiro homossexual que conhecia) e, quando por fim entendeu a mensagem, começou a chorar. Com o rosto encostado ao ombro do afinador de pianos, chorou durante muito tempo. Deve ter sido um grande choque para a pobre mulher, pensou ele, ao mesmo tempo que punha os braços em volta dela e lhe fazia festas no cabelo.
- Desculpa isto - acabou ela por dizer. - Obriguei-te a falar de um assunto sobre o qual não querias falar.
- Não faz mal. Não ando propriamente a tentar esconder-me do mundo. Eu é que devia ter sido mais sensível e ter-te avisado na altura devida, para evitar mal-entendidos. Receio bem que tenha sido eu o culpado por te ter colocado numa situação incómoda.
Com os seus dedos longos e elegantes, ele acariciou o cabelo dela sem parar, até que, aos poucos, aquele gesto logrou ter um efeito tranquilizador. Ela tinha um sinal, reparou ele, no lóbulo da orelha direita. O sinal acordou nele recordações da sua infância. A sua irmã mais velha tinha um sinal parecido, no mesmo sítio. Quando ele era pequeno, costumava pôr-se a esfregar o sinal da irmã quando ela estava a dormir, para ver se saía. Depois a irmã acordava e zangava-se com ele.
- Tenho andada excitada desde o dia em que te conheci - disse ela. - Não sabia o que isso era desde há muito tempo. E garanto-te que foi uma sensação óptima, fez-me regressar aos tempos da adolescência. Por isso só tenho a agradecer-te, não te preocupes. Fui ao cabeleireiro, fiz uma dieta daquelas rápidas, comprei roupa interior italiana...
- Estou a ver que te obriguei a deitar o dinheiro pela janela -observou ele a rir.
- Pois, mas acho que estava a precisar disso.
- A precisar de quê?
- Precisava de fazer qualquer coisa a fim de dar voz aos meus sentimentos.
- E para isso foi preciso comprar roupa interior sexy italiana? Ela corou até às orelhas.
- Não era sexy, nada disso. Era muito bonita, mais nada.
Ele tornou a sorrir e olhou-a nos olhos, para lhe fazer ver que estava a brincar só para quebrar a tensão. Ela retribuiu-lhe o sorriso. Durante um grande bocado, ficaram os dois a olhar um para o outro.
Ele pegou no lenço que tinha e limpou-lhe as lágrimas. Ela sentou-se e rectificou a maquilhagem com a ajuda do espelho que existia na pala do sol.
- Depois de amanhã tenho de ir à cidade, ao hospital, para fazer um segundo exame ao cancro do peito - disse ela, parando o carro no parque de estacionamento do centro comercial e usando o travão de mão. - Encontraram uma sombra esquisita na mamografia e querem que eu faça mais testes. Caso se venha a confirmar que é mesmo cancro, possivelmente terei de ser logo operada. Se calhar, foi por isso que eu hoje tive este comportamento. Quero com isto dizer que...
Por momentos calou-se, ao mesmo tempo que abanava a cabeça com força.
- Nem eu própria consigo compreender.
O afinador de pianos avaliou o silêncio dela. Escutou atentamente, como se quisesse captar o mais ínfimo som.
- Podes encontrar-me aqui quase todas as terças de manhã - disse ele. - Aqui mesmo, a ler. Não posso fazer grande coisa, mas estarei aqui se precisares de alguém com quem falar. Isto é, se não te importares de falar com uma pessoa como eu.
- Não disse nada a ninguém acerca disto. Nem sequer ao meu marido.
Ele pousou a sua mão sobre as dela, por cima do travão de mão.
- Tenho medo - confessou ela. - Às vezes o medo é tanto que nem me deixa pensar.
Uma carrinha azul parou no espaço de estacionamento ao lado deles, e lá de dentro saiu um casal de meia-idade com ar infeliz. Estavam a discutir por uma parvoíce qualquer. Assim que eles se afastaram, voltou a haver silêncio. Ela tinha os olhos fechados.
- Não estou em posição de dar conselhos - murmurou ele -, mas existe uma regra que me esforço por seguir sempre que não sei o que fazer.
- Uma regra?
- Se tiveres de escolher entre uma coisa que tenha forma e outra sem forma, opta pela segunda hipótese. É essa a minha regra. Sempre que vou de encontro a um muro, sigo essa regra e a coisa funciona sempre. Mesmo que na altura faça doer.
- E foste tu quem inventou essa regra?
- Fui - replicou ele, de olhos postos no indicador da distância percorrida pelo Peugeot. - É o resultado da minha própria experiência.
- Se tiver de escolher entre uma coisa que tenha forma e outra informe, opto pela que não tem forma - repetiu ela.
- Isso mesmo.
Ela ficou a matutar naquilo.
- Contudo, se me fosse dado escolher agora, neste preciso momento, não sei se saberia a diferença. Quero dizer, entre uma coisa com forma e outra sem.
- Talvez não, mas algures ao longo do percurso serias obrigada a fazer essa escolha.
- Como é que sabes?
Ele abanou lentamente a cabeça.
- Um homossexual experiente como eu possui toda a espécie de superpoderes.
Ela riu-se.
- Obrigada.
Seguiu-se um longo silêncio. Mas não se revelou tão denso e sufocante como antes.
- Adeus - disse a mulher. - Estou-te muito agradecida por tudo. Ainda bem que te conheci e que tive oportunidade de falar contigo. Sinto que agora estou em condições de encarar a situação com mais coragem.
Ele sorriu e apertou-lhe a mão.
- Toma conta de ti.
Ficou parado, a ver o Peugeot azul dela afastar-se. Fez um último sinal de adeus na direcção do espelho retrovisor, antes de se dirigir calmamente para o sítio onde tinha deixado o Honda estacionado.
Na terça-feira seguinte estava um dia de chuva. A mulher não apareceu no café. Ele deixou-se ficar a ler até ser uma da tarde e depois foi-se embora.
Nesse dia, o afinador de pianos decidiu faltar ao ginásio. Exercício físico? Não estava para aí virado. Em vez disso, foi direito para casa, sem parar sequer para almoçar, e deitou-se no sofá, a ouvir as baladas de Chopin interpretadas por Arthur Rubinstein. De olhos fechados, conseguia ver o rosto da mulher, o toque do seu cabelo. Até recordava com nitidez a forma do sinal que ela tinha no lóbulo da orelha. Passado algum tempo, a imagem dela e do seu Peugeot acabaram por se desvanecer, mas o sinal continuou gravado na sua mente, como um ponto final esquecido.
Por volta das duas e meia, decidiu telefonar à irmã. Passara muito tempo desde a última vez que haviam falado. Quantos anos? Dez? Só confirmava até que ponto se tinham afastado. Em parte, isso devia-se às coisas desagradáveis que, no calor do momento, haviam dito um ao outro, quando acontecera a tal história do noivado. Outra razão prendia-se com o facto de ele não gostar do marido dela. Era um homem arrogante e cruel, que encarava a orientação sexual do afinador de pianos como se fosse uma doença contagiosa. A não ser em caso de absoluta necessidade, o afinador de pianos não gostaria de estar mais perto do que a cem metros do indivíduo.
Hesitou por mais de uma vez antes de pegar no auscultador, mas acabou por marcar o número. O telefone tocou para aí umas dez vezes e ele estava quase a desligar - não sem um certo alívio, verdade seja dita - quando a irmã atendeu, e ele ouviu a voz familiar dela. Quando percebeu que era ela, fez-se um silêncio profundo do outro lado da linha.
- Por que razão é que me estás a ligar? - perguntou ela, numa voz sem expressão.
- Não sei - admitiu ele. - Achei que devia. Estava preocupado contigo.
Silêncio outra vez. Um longo silêncio. "Pode ser que ela ainda esteja zangada comigo", pensou ele.
- Não liguei por nenhuma razão especial. Só queria saber se está tudo bem contigo.
- Podes esperar um segundo? - pediu a irmã. Pela voz, ele soube que ela tinha estado a chorar. - Desculpa, dá-me só um momento.
O silêncio voltou a fazer-se sentir. Durante todo aquele tempo, ele manteve sempre o auscultador encostado ao ouvido. Não conseguia ouvir nada, rigorosamente nada.
- Estás ocupado agora? - perguntou ela por fim.
- Não, estou livre - retorquiu ele.
- Posso ir ter contigo?
- Claro que sim. Vou buscar-te à estação.
Uma hora mais tarde, passou pela estação e levou a irmã para o seu apartamento. Já não se viam há coisa de dez anos, e ele tinha de admitir que tinham ambos envelhecido. Cada um funcionava como um espelho onde o outro podia observar o que nele próprio mudara. A irmã continuava magra e elegante e parecia cinco anos mais nova do que na realidade era. Apesar disso, as suas faces ocas possuíam uma expressão severa que ele nunca antes lhe vira, e os seus impressionantes olhos negros haviam perdido algo do brilho de outros tempos. Também ele parecia mais novo, se bem que se tornasse difícil esconder o facto de o seu cabelo começar a rarear. Ainda dentro do carro, falaram das mesmas coisas de sempre: o trabalho, os filhos dela, os amigos em comum, o estado de saúde dos pais.
Quando chegaram a casa, ele foi à cozinha pôr água ao lume.
- Continuas a tocar piano? - perguntou ela ao ver o piano de cauda que havia na sala.
- Só para meu prazer pessoal. E apenas peças mais pequenas. Deixei de ser capaz de tocar as mais difíceis.
A irmã levantou a tampa do piano e pousou os dedos sobre as teclas, amareladas de anos e anos de uso. - Sempre pensei que um dia virias a ser um concertista famoso.
- O mundo da música é onde as crianças-prodígios vão morrer - declarou ele, enquanto punha os grãos de café a moer. - Não estou a dizer que tenha sido fácil. Desistir de ser pianista de carreira constitui um grande desgosto. Tive a sensação de que toda a minha vida até essa data não passara de um enorme desperdício. Só me apetecia desaparecer. Acontece, porém, que os meus ouvidos acabaram por se revelar superiores às minhas mãos. Existem muitas pessoas com mais talento do que eu, mas ninguém tem um ouvido como o meu. Apercebi-me disso pouco depois de ter entrado para a universidade. E com o tempo vim a saber que mais vale ser um afinador de pianos de primeira do que um pianista de segunda ordem.
Ele pegou numa embalagem de natas que estava dentro do frigorífico e deitou o seu conteúdo para dentro de um jarrinho de porcelana.
- Pode parecer estranho, mas depois de ter mudado para a licenciatura em Afinação, comecei a tirar mais prazer do piano. Desde pequeno, sempre pratiquei piano em doses industriais. Achava graça à história de registar a minha evolução, mas tocar nunca me deu um gozo por aí além. O piano era apenas a maneira que eu tinha de resolver certos e determinados problemas. Tentar não cometer deslizes com os dedos nem deixar que os meus dedos se entrelaçassem
- e tudo isso para impressionar as outras pessoas. Só quando abandonei a ideia de ser pianista é que compreendi como tocar piano podia dar gozo. E como a música era maravilhosa. Foi como se me tirassem um peso dos ombros, um peso enorme do qual nunca me dei conta a não ser quando me livrei dele.
- Nunca me disseste nada acerca disto.
- Não?
A irmã abanou negativamente a cabeça.
- Aconteceu no mesmo ano em que descobri que era maricas
- continuou ele. - Foi quando uma data de coisas que eu não havia maneira de perceber se resolveram. A vida tornou-se muito mais fácil para mim, desde então. Senti que as nuvens se afastavam e que podia enfim ver. Tenho a certeza de que transtornei a vida de muita gente, quando desisti da carreira de pianista e assumi o facto de ser homossexual. Mas foi a única forma de regressar às origens, de me reencontrar com o meu verdadeiro eu. Gostaria que percebesses isso.
Ele colocou uma chávena de café diante da irmã. Depois pegou na sua caneca e foi sentar-se ao lado dela, no sofá.
- Se calhar, devia-me ter esforçado mais para compreender os teus pontos de vista - confessou a irmã. - A verdade, porém, é que antes de teres tomado a atitude que tomaste, devias ter vindo falar connosco, a fim de explicares a situação. Só queríamos que tivesses confiado em nós e que tivesses partilhado connosco o que na altura pensavas e...
- Mas eu é que não estava interessado em explicar coisa nenhuma - interrompeu-a ele. - Queria, isso sim, que compreendessem a minha posição sem ser preciso explicar nada. Tu, especialmente.
Ela não disse nada.
- Antigamente não tinha por hábito levar em consideração os sentimentos dos outros. Nem sequer conseguia tolerar essa ideia.
A voz dele tremeu ligeiramente ao recordar aquela época da sua vida. Esteve à beira de começar a chorar, mas fez os possíveis por se recompor e prosseguiu:
-A minha vida mudou por completo num curto espaço de tempo. Não sei como, mas lá fui capaz de me equilibrar a fim de não perder o comboio. Fiquei com tanto medo, tão assustado. Na altura, vi-me impossibilitado de explicar o que quer que fosse a alguém. Tive a sensação de resvalar e desaparecer da face da Terra. A única coisa que queria era que tu fosses capaz de me compreender. E que me abraçasses. Sem nenhuma razão lógica nem explicações de espécie alguma. Mas ninguém...
A irmão tapou a cara com as mãos. Os ombros estremeceram e ela começou a chorar baixinho. Ele pousou a mão no ombro dela.
- Desculpa - disse ela.
- Não faz mal - replicou ele. Deitou um pouco de leite no café, mexeu e bebeu devagar, para ver se conseguia manter a calma.
- Não há motivos para chorar. A culpa também foi minha.
- Diz-me uma coisa - voltou ela à carga -, por que razão te lembraste de me ligar hoje, ao fim de dez anos?
- Hoje?
- Sim, estiveste dez anos sem dizer nada e gostava de saber por que escolheste precisamente este dia.
- Aconteceu uma coisa - explicou ele - que me fez pensar em ti. Disse a mim próprio que gostaria de saber como é que tu estavas. Apeteceu-me ouvir a tua voz. Só isso.
- Ninguém te disse nada?
Ele notou uma mudança esquisita na voz dela, que o levou a ficar de pé atrás.
- Não, ninguém me disse nada. Aconteceu alguma coisa?
A irmã ficou calada por momentos, procurando controlar os seus sentimentos. Ele esperou pacientemente pela explicação dela.
- Amanhã tenho de me apresentar no hospital - disse ela.
- No hospital? Que hospital?
- Vou ser operada a um cancro na mama. Vão tirar-me a mama direita. Toda. Apesar de não saberem ainda se isso evitará que o cancro se espalhe. Só poderão ter a certeza quando me operarem.
Os minutos passaram e ele não soube o que dizer. Sem nunca tirar a mão do ombro dela, percorreu com o olhar tudo o que havia na sala sem se fixar em nada. O relógio, uma bugiganga decorativa, o calendário, o controlo remoto da aparelhagem estereofónica. Objectos que lhe eram familiares numa sala familiar, se bem que se sentisse incapaz de distinguir uma coisa da outra.
- Andei tempos infinitos sem saber se havia de entrar em contacto contigo - retomou a irmã o fio à meada. - Acabei por me decidir que era melhor não o fazer, por isso é que nunca te disse mais nada. A verdade, porém, é que sentia uma grande vontade de te ver. Nem que fosse para termos uma conversa decente. Há coisas pelas quais tenho de te pedir desculpa. Mas... não era assim. Percebes o que eu quero dizer?
- Percebo - respondeu o irmão.
- Gostava que nos pudéssemos ter reencontrado em circunstâncias mais felizes, quando eu fosse capaz de olhar o futuro com mais optimismo. Por isso achei melhor não te dizer nada. E logo foi acontecer que tu decidiste ligar para mim...
Sem palavras, ele pôs os braços à volta da irmã e abraçou-a. Sentia os seios dela de encontro ao seu peito. Ela encostou a face ao ombro dele e chorou. Irmão e irmã ficaram assim durante muito tempo.
Por fim ela quebrou o silêncio.
- Disseste que aconteceu qualquer coisa e que por causa disso te tinhas lembrado de mim. O que foi? Se é que me podes contar.
- Não sei como te dizer. É difícil explicar. Foi uma coisa que aconteceu, uma sucessão de coisas, melhor dizendo. Uma série de coincidências...
Ele abanou a cabeça. O sentimento de distância continuava a fazer-se sentir. Vários anos-luz separavam o artefacto decorativo do controlo remoto.
- Não consigo explicar - confessou ele.
- Não tem importância - murmurou ela. - Fico contente na mesma pelo simples facto de ter acontecido. Muito contente.
Ele tocou no lóbulo direito dela e passou o dedo ao de leve pelo sinal. E então, como se fosse sua intenção enviar um sussurro mudo para um sítio muito especial, inclinou-se para a frente e beijou-a.
- O peito direito da minha irmã foi-lhe retirado no decorrer da operação, mas felizmente o cancro não tinha metástases e ela conseguiu safar-se com um ciclo de quimioterapia leve. Nem chegou a perder cabelo. Encontra-se completamente restabelecida, presentemente. Fui vê-la ao hospital quase todos os dias. Deve ser horrível para uma mulher, ficar assim sem o peito. Depois de ela ter regressado a casa, comecei a visitá-la com mais frequência. Afeiçoei-me bastante ao meu sobrinho e à minha sobrinha. Até comecei a dar aulas de piano à minha sobrinha. Não é para me gabar nem nada que se pareça, mas a garota tem talento. Da mesma forma, não se pode dizer que o meu cunhado seja tão mau como eu o pintava, agora que comecei a conhecê-lo um bocadinho melhor. Claro que não deixa de ser uma pessoa convencida e um bocado agreste, mas farta-se de trabalhar e é bom para a minha irmã. Além de que lá meteu finalmente naquela cabeça que ser homossexual não é uma doença que eu possa pegar aos filhos. Um pequeno mas significativo passo. Ele riu-se.
- Desde que voltei a dar-me com a minha irmã, tenho a sensação de que a minha vida deu um passo em frente. Mais do que nunca, é como se sentisse que posso levar a vida que sempre quis. Se calhar isso era uma coisa em que devia ter pensado mais cedo. No fundo, sempre tive esperanças de que fizéssemos as pazes e que nos voltássemos a abraçar, eu e a minha irmã.
- Mas foi preciso acontecer qualquer coisa para isso, não é verdade?
- Isso mesmo - reiterou ele, anuindo por mais de uma vez. -A chave reside nisso. E, deixa-me que te diga, essa ideia passou-me pela cabeça na altura: talvez a sorte seja um fenómeno muito mais corriqueiro do que se imagina. Basta pensar nas inúmeras coincidências que passam a vida a acontecer à nossa volta, mas a que nós não ligamos nenhuma e deixamos escapar por entre os dedos. Como fogo-de-artifício em pleno dia. Mesmo que oiças o barulho e olhes para o céu, não consegues ver nada. No entanto, se estivermos cheios de vontade que uma determinada coisa se torne realidade, pode muito bem acontecer que ela se materialize, como uma mensagem que aparece à superfície. E nessa altura cabe-nos a nós tomar claramente posição e decifrar o seu significado. E ao vermos isso à frente dos nossos olhos, não podemos deixar de nos mostrar surpreendidos e de nos interrogarmos sobre as coisas estranhas que acontecem. Coisas essas que, afinal, não são assim tão estranhas. Que te parece? Achas que estou a exagerar?
Fiquei a matutar nas palavras dele.
"Pode ser que tenhas uma certa razão", tive vontade de responder, mas, pensando bem, não tinha a certeza se as questões poderiam ser colocadas daquela maneira assim tão simples.
- Prefiro acreditar em coisas mais simples, como num deus de jazz - afirmei.
Ele riu-se.
- Gosto disso. Seria bom se também houvesse um deus dos homossexuais.
Não faço a menor ideia do que terá sido feito da tal mulher pequena que ele conheceu no café da livraria. Há mais de seis meses que não mando afinar o piano, o que significa que não tenho tido oportunidade de falar com ele. Ainda assim, imagino que ele continue a meter-se no carro e a atravessar para o outro lado do rio Tama e a frequentar aquele café. Quem sabe se não voltará a cruzar-se com ela? Todavia, não me chegou mais nada aos ouvidos, o que significa que a história acaba aqui.
Não quero saber se é o deus do jazz, o deus dos gays ou outro deus qualquer, só espero que, algures lá em cima, discretamente, como quem não quer a coisa, esteja alguém a olhar por aquela mulher!
É o que desejo, do fundo do coração. Um desejo muito simples!


A BAÍA DE HANALEI


Sachi perdeu o seu filho de dezanove anos quando este foi atacado por um tubarão enorme, andava ele a fazer surf nas águas da baía de Hanalei. Em boa verdade, não foi o tubarão o responsável pela sua morte. Sozinho, afastado da costa, no momento em que o tubarão lhe arrancou a perna direita, ele entrou em pânico e afogou-se. Daí que o afogamento tenha sido a causa oficial de morte. Além do mais, o tubarão deixou a prancha de surf praticamente em duas. Os tubarões não gostam de carne humana, para que se saiba. Após a primeira dentada, quase sempre libertam a presa e afastam-se. Essa a razão por que em muitos casos acontece a pessoa perder uma perna ou um braço mas sobreviver, desde que não entre em pânico. O filho de Sachi, contudo, teve uma paragem cardíaca, engoliu água em grandes quantidades e acabou por se afogar.
Quando Sachi soube do ocorrido através do consulado japonês em Honolulu, cederam-lhe as pernas e ficou prostrada no chão em estado de choque. Sentia a cabeça vazia e não conseguia raciocinar. Tudo o que queria era ficar ali, sentada, a olhar para um ponto algures na parede. Por quanto tempo aquela situação se prolongou, ela não sabia. A pouco e pouco, lá conseguiu arranjar forças para ir à procura na lista telefónica do número da companhia de aviação e reservar lugar num voo para o Havai. O funcionário do consulado instara-a a viajar o mais depressa possível, a fim de identificar a vítima. Havia ainda a remota hipótese de poder não se tratar do filho dela.
Atendendo ao facto de ser estação alta, todos os voos estavam cheios, tanto no próprio dia como no dia seguinte. Todas as agências de viagem por ela contactadas lhe deram a mesma resposta, mas quando ela explicou a situação, o senhor no balcão das reservas da United disse: "Dirija-se ao aeroporto o mais rápido possível. Vamos arranjar-lhe um lugar." Após ter enfiado meia dúzia de coisas dentro de um saco pequeno, pôs-se a caminho do aeroporto de Narita, onde uma senhora que estava à espera dela lhe estendeu um bilhete em executiva. "É o único lugar que temos, mas só lhe debitamos o preço em turística", explicou a mulher. "Deve estar a ser uma altura terrível para si. Força, é o que eu lhe desejo." Sachi mostrou-se grata pela ajuda recebida.
Ao chegar ao aeroporto de Honolulu, Sachi apercebeu-se de que, no meio de todo o seu desgosto, se esquecera de avisar o consulado japonês da hora de chegada. Em princípio, deveria ser acompanhada na sua deslocação por um membro do consulado. Na impossibilidade de entrar em contacto com o consulado, devido ao horário de expediente, ela tomou a decisão de não complicar mais as coisas e tratou de seguir viagem até Kauai pelos seus próprios meios. Partiu do princípio de que a situação logo se resolveria a partir do momento em que lá chegasse. Ainda não era meio-dia quando o avião que a transportava aterrou no aeroporto de Lihue, em Kauai. Alugou um carro ao balcão da Avis e foi direitinha para a esquadra de Polícia mais próxima. Chegando ali, contou que tinha acabado de chegar de Tóquio depois de ter sido informada da morte do seu filho na sequência do ataque perpetrado por um tubarão, na baía de Hana-lei. Um agente da polícia com cabelo grisalho e óculos acompanhou-a à morgue, que mais parecia um armazém de frio, e mostrou-lhe o corpo do filho sem uma perna. Do joelho para baixo não existia nada - e o osso branco sobressaía horrivelmente do coto da perna direita. A partir dessa altura já não restavam dúvidas. Aquele era o seu filho. O rosto não mostrava qualquer expressão, exactamente como se estivesse a dormir profundamente. Ela nem queria acreditar que ele estivesse morto. Alguém devia ter feito qualquer coisa à cara dele, a fim de o tornar mais apresentável. Quase parecia que se alguém lhe tocasse no ombro com força, ele acordaria a resmungar como era seu costume todas as manhãs.
Numa outra sala, Sachi assinou um documento em como o corpo era o do filho. O polícia quis saber quais eram os seus planos.
- Não sei - confessou ela. - O que é que as pessoas fazem normalmente numa situação destas? - Ele disse-lhe então que o mais frequente era proceder à cremação e levar as cinzas para casa. Também podia fazer transportar o corpo até ao Japão, mas isso implicava ultrapassar uma série de questões burocráticas, o que se tornaria muito mais dispendioso. Outra possibilidade consistia em enterrar o filho em Kauai.
- Nesse caso, prefiro a cremação, por favor - replicou ela. -Levarei as cinzas para Tóquio comigo. - Afinal, o filho já estava morto. Nada o poderia trazer de novo à vida. Que diferença fazia se era cinzas ou ossos ou cadáver? Assinou o documento a autorizar a cremação e pagou a respectiva despesa.
- Só tenho o cartão American Express - disse ela.
- Serve perfeitamente - retorquiu o funcionário.
"Eis-me aqui a pagar a cremação do meu filho com um cartão American Express", pensou Sachi. Tão irreal como a morte do filho, às garras de um tubarão, era aquela situação. A cremação realizar-se-ia na manhã seguinte, disse-lhe o polícia.
- Fala muito bem inglês - referiu o agente enquanto punha a papelada em ordem. Chamava-se Sakata e era meio japonês e meio americano.
- Quando era nova, vivi durante algum tempo nos Estados Unidos.
- Então é por isso - observou o agente. A seguir entregou a Sachi tudo o que era do filho: roupa, passaporte, bilhete de regresso, carteira, Walkman, revistas, óculos escuros, estojo da barba, tudo dentro de uma pequena pasta de viagem. Sachi teve de assinar um documento para ficar na posse daqueles escassos haveres.
- Tem mais filhos? - quis saber o agente.
- Não, era o meu único filho - respondeu Sachi.
- O seu marido não pôde vir?
- O meu marido já morreu há muito tempo.
O polícia soltou um profundo suspiro.
- Lamento sinceramente. Se houver mais qualquer coisa que precise de nós, esteja à vontade.
- Gostaria de me deslocar até ao local onde o meu filho morreu, se fosse possível. E, já agora, de saber onde é que ele se encontrava hospedado. Calculo que seja preciso acertar a conta do hotel.
Sem esquecer que preciso de entrar em contacto com o consulado japonês em Honolulu. Posso usar o telefone?
Ele foi buscar um mapa e usou um marcador para traçar um círculo à volta do sítio onde o filho dela andava a fazer surf e, ainda, onde ficava o hotel. Ela passou a noite num hotelzinho em Lihue, recomendado pelo polícia.
Quando Sachi se preparava para abandonar a esquadra de Polícia, o agente de meia-idade Sakata virou-se para ela e disse:
-Tenho um favor pessoal a pedir-lhe. Acontece que a Natureza se encarrega de ceifar uma ou outra vida humana, aqui em Kauai. Como pode ver, a ilha é muito bonita, mas, por vezes, pode revelar-se bastante agreste, para não dizer mortífera. É com isso que temos de viver. Tenho muita pena do que aconteceu ao seu filho. E tenho muita pena da senhora. Por isso é que só espero que não fique a odiar a nossa ilha. Bem sei que este discurso lhe pode parecer algo despropositado e egocêntrico depois de tudo o que passou, mas garanto-lhe que estou a ser sincero.
Sachi anuiu com a cabeça.
- Sabe, minha senhora, o meu irmão morreu durante a guerra, em 1944. Aconteceu na Bélgica, perto da fronteira com a Alemanha. Era membro do Regimento 442, integrado na sua totalidade por voluntários sino-americanos. Encontravam-se ali estacionados a fim de resgatar um batalhão do Texas cercado pelos nazis quando sobreveio um ataque directo e morreram todos. Dele, não sobrou nada a não ser a chapa de identificação do seu cão e alguns pedaços de carne espalhados pela neve. A minha mãe adorava aquele filho, e dizem-me que nunca mais voltou a ser a mesma pessoa. Na altura, eu era muito novo, por isso só me lembro dela depois de tudo ter acontecido. Só pensar nisso é doloroso.
O agente Sakata abanou a cabeça e prosseguiu:
- Independentemente das "nobres causas" envolvidas, a verdade é que as pessoas morrem na guerra por causa do ódio e da ira de ambos os lados. Na verdade, porém, a Natureza não tem "lados". Bem sei que está a ser uma experiência dura para si, mas experimente pensar no seguinte: o seu filho regressou ao ciclo da Natureza; a morte dele não se ficou a dever ao ódio nem à fúria sanguinária, nem teve que ver com nenhuma "causa".
Sachi assistiu à cremação no dia seguinte e conservou as cinzas numa pequena urna de alumínio. Depois pôs-se a caminho da baía de Hana-lei, na parte norte da ilha. A viagem de carro desde a esquadra de Polícia demorou pouco mais de uma hora. Alguns anos antes, um furacão tinha-se encarregado de derrubar literalmente quase todas as árvores que ali existiam, dando origem a uma paisagem deformada. Sachi reparou nos destroços de várias casas de madeiras com os telhados arrancados. Até mesmo algumas das montanhas circundantes mostravam sinais da devastação causada à passagem do tufão. A Natureza pode mostrar a sua face, a um tempo poderosa e mortífera.
Ela atravessou a sonolenta cidadezinha de Hanalei até chegar à praia dos surfistas onde o seu filho tinha sido atacado pelo tubarão. Estacionou o carro ali perto e foi sentar-se na praia, onde se deixou ficar a observar um grupo de surfistas - cinco, se tanto - que deslizavam sobre as ondas. Primeiro, flutuavam nas pranchas até longe da praia, a flutuar, onde esperavam que aparecesse uma onda grande. Depois, punham-se de pé em cima da prancha, dropavam a onda e apanhavam-na de regresso à praia. À medida que a força da onda diminuía, acabavam por perder o equilíbrio e caíam, após o que recuperavam a prancha e atravessavam as ondas sempre a remar até atingirem outra vez mar aberto, onde a aventura voltava a ganhar forma. Sachi sentia uma certa dificuldade em compreender a cena que se desenrolava à frente dos seus olhos. Acaso não receariam os tubarões? Não estariam a par da morte do seu filho, dias atrás, causada por um tubarão naquele mesmo local?
Sachi permaneceu ali sentada durante uma boa hora, a seguir com os olhos os gestos dos surfistas. O seu espírito não conseguia apreender rigorosamente nada. O passado parecia ter perdido todo e qualquer valor, enquanto o futuro se afigurava distante, esbatido na distância sombria. Aos olhos dela, tanto um como outro tinham deixado de fazer sentido. Deixou-se ficar sentada no presente em perpétuo movimento, seguindo mecanicamente com o olhar o monótono movimento das ondas e dos surfistas. A dado momento, ocorreu-lhe um pensamento: "Tempo é aquilo de que eu agora mais preciso."
Em seguida, Sachi deslocou-se ao hotel onde o filho tinha ficado hospedado, um estaminé a cair aos bocados com um jardinzinho selvagem.
Viam-se dois homens brancos de cabelo comprido, em tronco nu, sentados em cadeiras de lona a beber cerveja. Várias garrafas verdes de cerveja Rolling Rock, vazias, estavam caídas na erva aos seus pés. Um dos homens era loiro, o outro tinha cabelo preto. Fora isso, tinham o mesmo tipo de cara e compleição e exibiam o mesmo tipo de tatuagens floridas em ambos os braços. Sentia-se o cheiro de mari-juana no ar, misturado com o vago odor a merda de cão. Os dois homens, que pareciam ter ficado com a pulga atrás da orelha, olharam-na com desconfiança ao vê-la aproximar-se.
- O meu filho encontrava-se aqui hospedado - começou ela. -Foi morto por um tubarão há três dias.
Os homens trocaram um olhar.
- Refere-se a Takashi?
- Sim - confirmou Sachi. - Takashi.
- Era um tipo cool - referiu o homem loiro. - Foi realmente azar.
- Nessa manhã, hum... havia uma quantidade de tartarugas na baía - tartamudeou o homem de cabelo escuro. Os tubarões vieram à procura das tartarugas. Mas sabe, regra geral, eles deixam os surfistas em paz. Com eles podemos nós bem. Não sei, imagino que deva haver vários tipos de tubarões...
.Sachi referiu que se encontrava ali a fim de pagar a conta do hotel. De certeza que ainda ninguém tinha pensado em resolver esse assunto da conta por liquidar.
O loiro franziu a testa e agitou a garrafa no ar.
- Está equivocada, minha senhora. Os surfistas são os únicos que ficam hospedados neste hotel, e é sabido que eles são uns pobretanas. Aqui, é preciso pagar à cabeça. Não temos cá "contas por liquidar"...
Nessa altura, o moreno interveio para dizer:
- Olhe lá, a senhora por acaso não quer levar consigo a prancha de Takashi? O maldito tubarão deu cabo dela e fê-la em duas. É uma velha Dick Brewer. Os polícias deixaram-na cá ficar. Acho que, hum... a temos guardada para aí...
Sachi abanou a cabeça. A última coisa que queria era ver a prancha.
- Foi realmente azar - repetiu o homem aloirado, como se não se lembrasse de mais nada para dizer.
- Era um tipo fixe - mencionou o homem moreno. - Mesmo porreiro. E um surfista de primeira água. Agora que penso nisso, passou a sua última noite aqui connosco, a beber tequila. Foi isso...
Sachi acabou por ficar no Havai mais uma semana. Alugou a única vivenda decente que conseguiu encontrar e foi lá que cozinhou as suas refeições simples. De uma maneira ou de outra, precisava de se reencontrar antes de voltar para o Japão. Comprou uma cadeira de plástico, óculos de sol, um chapéu e creme protector solar, e começou a sentar-se todos os dias na praia, a observar os surfistas. Não passava um dia sem que chovesse - por vezes com violência, como se estivesse alguém no céu a despejar uma monumental vasilha de água sobre a Terra. Na costa norte de Kauai, o tempo que se fazia sentir no Outono era extremamente instável. Sempre que uma bátega se abatia, ela sentava-se dentro do carro, a ver cair a chuva. E logo que parava de chover, ia sentar-se na praia, a ver o mar.
A partir daí, Sachi começou a visitar Hanalei todos os anos, sempre por volta daquela altura. Chegava poucos dias antes do aniversário da morte do filho e ali ficava durante três semanas, a seguir com os olhos os surfistas sentada numa cadeira de plástico em pleno areal. Não fazia mais nada durante todo o santo dia. Isto prolongou-se por dez anos. Ficava sempre instalada na mesma casinha e comia no mesmo restaurante, enquanto lia o seu livro. À medida que as suas visitas começaram a seguir um padrão regular, encontrou algumas pessoas com quem adquiriu o hábito de trocar dois dedos de conversa. Muitos dos habitantes da pequena cidade conheciam-na de vista. Aos poucos, passaram a chamar-lhe a mãe japonesa, cujo filho tinha sido morto por um tubarão naquelas águas.
Um dia, na viagem de regresso do aeroporto de Lihue, onde tinha ido trocar um carro de aluguer que não estava em condições, descortinou dois jovens japoneses a pedir boleia à entrada da cidade de Kapaa. Encontravam-se diante da porta do restaurante Ono Family, com grandes mochilas desportivas às costas, enfrentando o trânsito automóvel com o polegar em riste mas o ânimo em baixo. Um era alto e magro, o outro pequeno e atarracado. Usavam ambos o cabelo pelo ombro com mechas de um vermelho-ferrugem e T-shirts desbotadas, calções largos e sandálias. Sachi passou por eles, mas depois mudou de ideias e deu meia-volta.
Abrindo a janela, perguntou aos japoneses: -Vão para muito longe?
- Olha, alguém que fala japonês! - disse o mais alto.
- Claro, uma vez que sou japonesa. Vão para longe?
- Para um sítio chamado Hanalei - mencionou o alto.
- Querem boleia? Também sigo nessa direcção.
- Bestial! Mesmo a calhar - exclamou o atarracado. Colocaram os sacos e mochilas no porta-bagagem e entraram
para o banco de trás do Néon de Sachi.
- Esperem aí - disse ela. - Não vos quero aos dois sentados aí atrás. Vendo bem, isto não é nenhum táxi. Um de vocês tem de passar para a frente. Faz parte das mais elementares normas de boas maneiras.
Eles decidiram que seria o mais alto a sentar-se à frente.
- Que carro é este? - perguntou ele com uma certa timidez, ao mesmo tempo que procurava encaixar as pernas no espaço que havia disponível.
- É um Dodge Néon, da Chrysler - referiu ela.
- Quer então dizer que na América também existem carrinhos apertados. O Corolla da minha irmã é capaz de ter mais espaço do que isto.
- Bom, que eu saiba os Americanos não andam todos de Cadillac. ,- Tudo bem, mas este é realmente mini.
- Podem sair já aqui, se não lhes agrada - atalhou Sachi.
- Não disse o que disse com intenção nenhuma - desculpou-se ele. - Só manifestei o meu espanto por ser tão pequeno, mais nada. Pensava que todos os carros americanos fossem modelos grandes.
- Com que então, a caminho de Hanalei? - interessou-se Sachi durante o percurso.
- Para fazer surf, principalmente.
- Onde é que têm as vossas pranchas?
- Planeamos arranjá-las por lá - explicou o rapaz mais encorpado.
- É isso. Não dá muito jeito carregar com elas às costas desde o Japão. Além de que nos constou que por estas bandas se compram pranchas por tuta-e-meia - acrescentou o esgalgado.
- E a senhora? De férias?
- A-hã.
- Sozinha?
- Sozinha - disse Sachi baixinho.
- Não me diga que é uma dessas lendas do surfí
- Claro que não! - respondeu Sachi num tom que traduzia indignação. - Já sabem onde é que vão ficar em Hanalei?
- Não. Quando lá chegarmos, logo vemos - disse o mais alto.
- Pois é, em último caso podemos sempre dormir na praia -disse o mais baixo e atarracado. - Mais a mais, não andamos propriamente a nadar em dinheiro.
Sachi abanou a cabeça.
- À noite, arrefece muito nas praias a norte nesta altura do ano. Até dentro de casa uma pessoa tem de usar camisola. Se ficarem a dormir ao relento, o mais certo é arranjarem uma constipação.
- Então não faz sempre Verão no Havai? - perguntou o alto.
- O Havai fica situado no hemisfério norte, não sei se sabem. Quer dizer que tem quatro estações. Os Verões são quentes, mas os Invernos podem ser bastante frios.
- Nesse caso, o melhor que temos a fazer é arranjar um tecto -alvitrou o baixote.
- Talvez a senhora nos possa ajudar nesse capítulo - pediu o mais alto. - Escusado será dizer que o nosso inglês é um bocado rudimentar.
- É isso - sublinhou o rapaz atarracado. - Ouvimos dizer que podíamos falar japonês e que seríamos entendidos, mas até ao momento isso ainda não funcionou minimamente.
- É evidente que não - afirmou Sachi exasperada. - O único sítio onde entendem japonês é em Oahu e, mesmo aí, só na zona de Waikiki. É lá que ficam instalados todos os japoneses que andam de malas Louis Vuitton atrás e encharcados em Chanel N.o 5, daí que só contratem empregados que saibam falar japonês. No Hyatt e no Sheraton, a mesma história. Mas fora dos hotéis, o inglês é a única língua falada. Afinal, estamos na América. Fizeram o caminho todo até Kauai e não sabiam disso?
- Eu não sabia. A minha mãe disse-me que no Havai toda a gente falava japonês.
Sachi resmungou qualquer coisa.
- Bom, nesse caso podemos ficar no hotel mais barato que encontrarmos - referiu o rapaz atarracado. - Tal como já disse, não temos muito dinheiro.
- Não é recomendável que os recém-chegados fiquem instalados no hotel mais barato em Hanalei - avisou Sachi. - Pode ser perigoso.
- Perigoso como? - quis saber o mais alto.
- Drogas, sobretudo - respondeu Sachi. - Alguns surfistas são pessoas não muito recomendáveis. Marijuana, ainda vá que não vá, mas é preciso ter cuidado com o Ice.
- Ice? O que é isso?
- Nunca ouvi falar - afirmou o rapaz alto.
-Andam mesmo a leste, não andam? Jovens incautos como vocês os dois constituem um alvo perfeito para alguns tipos que por aí andam. Ice é uma droga dura e muito poderosa, facílima de encontrar no Havai, vende-se a pontapé. Não estou bem certa, mas é uma espécie de droga sintética, uma metanfetamina cristalina ou coisa que o valha. É barata, fácil de encontrar e de consumir, e faz uma pessoa sentir-se bem. O problema vem depois: se se ficar agarrado, é meio caminho andado para a morte.
- Parece uma coisa mesmo perigosa - comentou o mais alto.
- E marijuana, pode-se fumar? - perguntou o mais baixo.
- Se é permitido, não sei dizer, mas pelo menos não mata ninguém. Não é como o tabaco. Pode provocar alguns danos no cérebro, mas também não é coisa que vos possa tirar o sono.
- Essa foi forte - exclamou o atarracado.
- Por acaso pertence à geração de sessenta? - inquiriu o mais alto.
- Refere-se a quê?
- Estou a falar dos membros da chamada baby boom generation...(1)
- Não sou "membro" de geração nenhuma. Sou eu, mais nada. Não comecem a colar-me rótulos nem a misturar-me em grupos, tenham santa paciência.
- Ora aí está! Está-se mesmo a ver que pertence a essa geração! -regozijou-se o rapaz atarracado. - Leva tudo a sério, é igualzinha à minha mãe.

*1. Geração nascida no finalda Segunda Guerra Mundial, em plena fase de explosão demográfica, responsável pelo movimento hippie. (N. da T.)

- E não me venha fazer comparações com a sua mãezinha, ainda por cima - insurgiu-se Sachi. - Seja como for, o melhor que têm a fazer é procurar um sítio decente quando chegarem a Hanalei, não vá o diabo tecê-las. Já não era a primeira vez que apareciam pessoas mortas.
- Não se trata, portanto, do paraíso bucólico que dizem - opinou o mais entroncado.
- Não - concordou Sachi. - Os tempos do Elvis já lá vão.
- Não faço ideia do que estão para aí a dizer, mas Elvis Costello já tem uns anitos.
Depois daquela tirada, absteve-se de fazer mais comentários durante o resto da viagem.
Graças a Sachi, que falou com o gerente do hotel a que pertencia a vivenda, os dois rapazes arranjaram quarto, por sinal com um desconto apreciável. Ainda assim, era mais caro do que eles tinham calculado.
- Nada feito - começou por dizer o mais alto. - Não temos dinheiro para isso.
- Nem de perto, nem de longe - acrescentou o atarracado.
- Devem ter algum dinheiro de parte para uma emergência, não? - insistiu Sachi.
O rapaz alto e esgalgado coçou a orelha e disse:
- Bom, de facto tenho comigo um cartão Diner's Club, mas o meu pai recomendou-me que não o usasse a não ser no caso de uma emergência verdadeiramente grave. Receia que, uma vez usado, eu não seja capaz de me conter e vá por aí fora, sempre a fazer despesa. Só numa situação de emergência, senão arrisco-me a ouvir das boas quando regressar ao Japão.
- Não sejas parvo - disse Sachi. - Isto é uma emergência. Trata mas é de dar uso ao cartão, se tens amor à pele. A última coisa que deves querer é ir parar com os costados à prisão e apanhares com um latagão havaiano a fazer de ti a namorada dele por uma noite. Claro que se tu gostas disso, é outra história, mas fica sabendo que dói muito.
O rapaz mais alto tirou o cartão da carteira e entregou-o ao gerente. Sachi perguntou o nome da loja onde se vendiam pranchas de surf baratas. O gerente indicou-lho, não sem acrescentar: - Quando se forem embora, eles voltam a comprá-las.
Os rapazes pousaram a bagagem no chão do quarto e foram a correr à loja.
Sachi estava sentada na praia, a observar o oceano como era seu costume todas as manhãs, quando viu os dois jovens japoneses começarem a surfar. Dominavam as ondas e sabiam o que estavam a fazer, o que contrastava visivelmente com a imagem por eles deixada em terra no dia anterior. Assim que descobriam uma onda mais alta, faziam-se a ela e enfrentavam-na com destemor, conduzindo as respectivas pranchas em direcção à praia com elegância e em pleno controlo dos seus movimentos. Estiveram naquilo durante horas a fio, sem dar mostras de cansaço. Tinham todo o ar de quem se sentiam verdadeiramente vivos, cavalgando as ondas. Os olhos brilhavam, mostravam-se donos e senhores do seu destino. A timidez anteriormente evidenciada tinha desaparecido. Em terras do Japão, o mais provável era passarem os dias dentro de água e longe da escola - tal como acontecera com o filho de Sachi.
Sachi tinha começado a aprender piano no secundário - um começo tardio para um pianista. Antes, nunca tinha sequer tocado piano. Primeiro fizera-o em tom de brincadeira, dedilhando o piano que havia na sala de música depois das aulas, e não tardou a aprender sozinha a tocar. Acontecia que ela tinha o chamado ouvido absoluto, que consiste em identificar notas musicais. Bastava-lhe ouvir uma melodia apenas uma vez, e logo tratava de a reproduzir nas teclas do piano. Sem que ninguém lhe tivesse ensinado, aprendeu a deixar os seus dedos deslizar suavemente pelo teclado. Saltava aos olhos de toda a gente que possuía um talento natural para o piano.
Certo dia, o professor ouviu-a tocar, gostou do que ouviu e ajudou-a a corrigir certos erros básicos na posição dos dedos. "Podes tocar assim, mas se tocares desta maneira consegues ser mais rápida", dizia ele, juntando o gesto à palavra. Ela apreendeu tudo imediatamente. Profundo apreciador de jazz, o professor iniciou-a nos mistérios do jazz enquanto disciplina, no que tocava à formação e progressão de acordes, ao uso do pedal, ao conceito de improvisação. Ela captou tudo avidamente. Ele emprestou-lhe os discos que tinha em casa: Red Carland, Bill Evans, Wynton Kelly. Ela ouvia-os vezes sem conta até ser capaz de tocar o que ouvia. Assim que começou a dominar a técnica, imitar o que ouvia tornou-se fácil. Conseguia reproduzir a sonoridade e o ritmo sem ter uma nota à frente. "Tens um talento único", disse-lhe o professor. "Se te esforçares, podes alcançar o profissionalismo."
Sachi, porém, não acreditava nas palavras dele. Sentia que aquilo que produzia não passava de uma imitação perfeita, mas nada que se comparasse com música criada por ela. Quando instada a dar livre curso à sua inspiração, ficava sem saber o que tocar, acabando invariavelmente por copiar o solo original de outra pessoa. Ler música era outro calcanhar de Aquiles. À vista de uma pauta devidamente assinalada diante de si, sentia dificuldade em respirar. Era muito mais fácil transportar o que ouvia directamente para as teclas. "Não", pensava ela, "nunca haveria de se tornar uma pianista digna desse nome."
Em vez disso, depois de abandonar a escola secundária decidiu frequentar uma escola de cozinha. Não se podia dizer que se interessasse especialmente por isso, mas o pai era dono de um restaurante, e, uma vez que não havia mais nada que ela quisesse fazer, sempre podia continuar com o negócio mais tarde. Em Chicago, frequentou uma escola de cozinha para profissionais. Chicago não era uma cidade conhecida pelo requinte da sua cozinha, mas tinha lá familiares que se predispuseram a apoiá-la.
Às tantas começou a tocar num pequeno piano-bar, onde tinha sido levada pela mão de uma colega. A princípio, encarou aquilo como uma ocupação em tempo parcial que lhe permitiria ganhar algum dinheiro. O pouco dinheiro que os pais lhe mandavam de Tóquio mal dava para se aguentar, por isso todos os dólares a mais eram bem-vindos. O dono do bar mostrava-se entusiasmado com a facilidade que ela tinha de tocar tudo e mais alguma coisa. Bastava ouvir uma canção, mesmo uma canção que nunca tivesse ouvido, bastando para tal que alguém assobiasse a melodia, para nunca mais se esquecer dela e, mais, reproduzi-la acto contínuo. Apesar de não ser nenhuma beldade, tinha feições interessantes e a sua presença começou a atrair um número crescente de pessoas ao bar. As gorjetas que lhe davam também começaram a aumentar. Com o tempo, desistiu da escola de cozinha. Estar sentada à frente do piano era muito mais fácil - e muito mais divertido - do que temperar um naco sanguinolento de carne de porco, raspar queijo rijo como pedra ou lavar a gordura incrustada numa pesada frigideira.
Por isso, quando mais tarde veio a descobrir que o seu filho passava a vida a faltar às aulas para ir surfar, Sachi não teve outro remédio senão resignar-se. "Pensando bem, também eu fiz a mesmíssima coisa quando era nova", pensou ela. "Não posso deitar as culpas para cima dele. O mais provável é estar-lhe no sangue."
Durante um ano e meio tocou piano no bar. Melhorou o seu inglês, conseguiu juntar um belo pecúlio e arranjou um namorado - um afro-americano bem-parecido com aspirações a ser actor (Sachi deu por ele mais tarde num papel secundário no filme Assalto ao Aeroporto /Die Hard 2). Um dia, porém, apareceu no bar, de cartão de identificação ao peito, um funcionário dos Serviços de Imigração. Segundo parecia, ela tinha dado demasiado nas vistas. O agente em questão ficou-lhe com o passaporte e deu-lhe voz de prisão ali mesmo, sob a acusação de trabalho ilegal. Dias mais tarde, ela encontrou-se a bordo de um Jumbo, recambiada para Narita - e com a agravante de ter sido ela a pagar o bilhete do seu bolso. Assim terminou a vida de Sachi em terras da América.
De regresso a Tóquio, Sachi analisou todas as perspectivas no que ao seu futuro dizia respeito, mas tocar piano era a única forma de vida que conseguia idealizar. Apesar das dificuldades que sentia no que dizia respeito à música escrita, ainda assim não foi difícil encontrar alguns sítios onde o seu talento para tocar de ouvido era muito apreciado - átrios de hotéis, clubes nocturnos e pianos-bares. Ela conseguia interpretar todos os estilos, quer exigidos pelo espírito do lugar quer pelo tipo de frequentadores. Da mesma forma, também os pedidos dos clientes não representavam qualquer problema. Podia ser um verdadeiro "camaleão musical", mas o certo é que conseguia arranjar sempre trabalho.
Casou-se aos vinte e quatro anos e, passados dois anos, deu à luz um rapaz. O marido era um guitarrista de jazz um ano mais novo do que ela. O que ele ganhava nem para as despesas chegava. Era viciado em drogas e andava enrolado com outras mulheres. Passava o tempo fora de casa, e quando aparecia mostrava-se muitas vezes violento. Toda a gente se opôs ao casamento e, depois de consumado, toda a gente aconselhou Sachi a divorciar-se dele. Apesar dos seus defeitos, o marido de Sachi possuía um certo talento original, razão pela qual não tardou a conquistar as atenções e a ser anunciado como uma estrela em ascensão no universo do jazz. Talvez tenha sido por isso que Sachi se sentiu atraída por ele. O casamento durou apenas cinco anos. Uma noite, quando se encontrava em casa de outra mulherna cama com ela, teve um ataque de coração e morreu a caminho do hospital, nu como veio ao mundo.
Pouco tempo depois de o marido ter morrido, Sachi inaugurou o seu próprio piano-bar no cosmopolita bairro de Roppongi. Para além das suas poupanças, contou com o dinheiro recebido de um seguro de vida que tinha feito ao marido sem ele saber. A juntar a isso, obteve ainda um empréstimo bancário. Ajudou ao caso o facto de o director da filial do dito banco ser cliente habitual no barzinho onde Sachi tocava. Ela arranjou um grande piano usado e mandou construir um balcão que prolongava a forma do instrumento. Para a ajudar a gerir o negócio, contratou um gerente que também fazia as vezes de barman e pagou-lhe um bom ordenado, depois de o ter ido buscar a outro bar. Ela tocava todas as noites, correspondia aos pedidos do público presente e fazia coro com eles se lhes dava para cantar. Em cima do piano existia um aquário vazio destinado às gorjetas. Alguns dos músicos que tocavam nos outros bares das redondezas apareciam de vez em quando e interpretavam um tema ou dois. O bar não demorou muito a granjear clientes habituais e o negócio ia de vento em popa, melhor do que ela esperara. E tanto assim foi, que conseguiu pagar pontualmente o empréstimo. Farta de saber o que era a vida de casada, não tornou a contrair matrimónio, mas tinha os seus amantes. Homens casados, na sua maioria, o que aos olhos dela tornava as coisas mais simples. Com o passar dos anos, o filho foi crescendo, tornou-se surfista e anunciou que estava de partida para Hanalei, no Havai. Ela não gostou da ideia. Mas estava cansada das eternas discussões e lá acabou por lhe dar dinheiro para a viagem. Longas batalhas verbais não eram a sua especialidade. Até que, enquanto esperava por uma onda perfeita na baía de Hanalei, o seu filho foi atacado por um tubarão que logrou penetrar naquelas águas em perseguição de tartarugas, e assim chegou ao fim a curta vida daquele rapaz de dezanove anos.
Nos tempos que se seguiram à morte do filho, Sachi trabalhou mais do que nunca. Durante esse primeiro ano, tocou, tocou sempre, quase sem parar, sem uma interrupção que fosse. E assim que o Outono estava quase a acabar, fazia uma pausa de três semanas, comprava um bilhete em executiva na United Airlines e voava para Kauai. Enquanto se encontrava ausente, era substituída por outro pianista no bar.
Por vezes, também acontecia Sachi tocar em Hanalei. Havia um restaurante que tinha um pequeno piano, ao qual todos os fins-de-semana se sentava um pianista alto e esgalgado que devia andar na casa dos cinquenta. Na maior parte do tempo, ele entretinha-se a interpretar melodias inofensivas como "Bali Hai" e "Blue Hawai". Como pianista, não era nada de especial, mas o seu modo de tocar traduzia a sua personalidade calorosa. Sachi tornou-se sua amiga e volta e meia tocava em vez dele. Fazia-o pelo prazer de tocar e sem receber nada por isso, mas o dono arranjava sempre maneira de a presentear com um prato de massa e um copo de vinho. Sabia-lhe bem pousar as mãos sobre o teclado: sentia o coração abrir-se. Não era uma questão de talento nem de saber se esse talento se revestia de alguma finalidade prática. Sachi imaginava que o filho devia ter-se sentido da mesma maneira, enquanto surfava na crista das ondas.
Para dizer com toda a franqueza, Sachi tinha de reconhecer que nunca tinha amado o filho de verdade. Naturalmente que gostava muito dele - era a pessoa mais importante do mundo para ela -, mas, individualmente, enquanto ser humano, ela sentia dificuldade em simpatizar com ele, uma conclusão a que, de resto, demorou muito tempo a chegar. Se não se desse o caso de ele ser sangue do seu sangue, o mais provável era ela não ter nada que ver com ele. Ele era egocêntrico, não se aplicava em nada e parecia incapaz de levar fosse o que fosse até ao fim. Ela via-se e desejava-se para ter uma conversa séria com ele; sempre que tentava, ele aparecia logo com uma desculpa esfarrapada e punha-se a milhas. Pouco ou nada aprendia na escola, razão pela qual as suas notas eram miseráveis. O surf parecia ser a única coisa capaz de despertar o seu interesse, e diga-se em abono da verdade que ninguém sabe durante quanto tempo assim teria continuado a ser. Com a carinha amorosa que tinha, namoradas era coisa que nunca lhe faltava, mas depois de se divertir um bocado e obter o que queria, punha-as de parte como se faz a um brinquedo velho. "Se calhar, fui eu que o estraguei com mimo", pensava Sachi. "Talvez a culpa seja minha, por lhe ter dado uma mesada demasiado grande. Devia ter sido mais rigorosa com ele." A verdade, porém, é que ela não sabia ao certo o que poderia ter feito no sentido de ser mais "rigorosa" com ele. O trabalho sempre lhe ocupara o tempo todo, e pouco ou nada percebia acerca de rapazes - tanto no que tocava à alma como ao corpo.
Certa noite, Sachi encontrava-se a tocar piano quando apareceram no restaurante os dois jovens surfistas. A cena passou-se no sexto dia a contar da chegada deles a Hanalei. Estavam bastante bronzeados e pareciam até com um aspecto mais vigoroso.
- Olha, a tocar piano, quem havia de dizer! - exclamou o mais atarracado dos dois.
- E que bem que toca, como uma verdadeira profissional - fez coro o mais alto.
- Toco apenas para fazer o gosto ao dedo - disse ela.
- Sabe tocar alguma canção dos B'z(2)?
- Música pop, não, obrigada - respondeu Sachi. - Pensava que os meninos estavam tesos. Como é que se explica que tenham dinheiro para vir comer a um restaurante destes?
- É bom não esquecer que tenho o meu cartão Diner's - anunciou o alto.
- Sim, mas é só para emergências...
- Ora, isso não me preocupa. Quem tinha razão era o meu velho: basta usar uma vez e a malta habitua-se.
- Por isso mesmo é que deves ter cuidado e ir devagar - observou Sachi.
- Estávamos aqui a dizer que devíamos convidá-la para jantar -atalhou o atarracado. - Como forma de lhe agradecer. A senhora ajudou-nos, e não foi pouco. Além disso, depois de amanhã voltamos para casa.
- Isso! - exclamou o mais alto. - Que tal se nos sentássemos agora mesmo a uma mesa? Podemos até mandar vir uma garrafa de vinho. Fica por nossa conta.
- Já jantei - disse Sachi, erguendo o copo de vinho tinto. -E este é por conta da casa. Mas agradeço na mesma, fica a intenção.

*2. Popular banda japonesa de Rock e hard rock. Formada em 1988 por Koshi Inaba e Tak Matsumoto, mudou o panorama musical e continua ainda hoje a manter-se na crista da onda. (N. da T.)

Nesse momento, um homem grande, de raça branca, aproximou-se da mesa e colocou-se ao lado de Sachi, com um copo de uís-que na mão. Devia andar pelos quarenta e usava o cabelo cortado curto. Tinha os braços esguios, parecidos com postes de telefone, e num deles via-se um enorme dragão tatuado por cima das letras "USMC" - United State Marine Corps(3). A julgar pelo tom deslavado das cores, a tatuagem devia ter uns anitos valentes.
- Olhe, minha senhora, devo dizer-lhe que gosto de a ouvirj tocar - atirou.
Sachi olhou de relance para ele e disse:
- Obrigada.
- Japonesa?
- Óbvio.
- Uma vez estive no Japão. Há muito tempo. O destacamento a que pertencia passou dois anos estacionado em Iwakuni. Isto há séculos.
- A-hã. E eu, já lá vai um tempo, passei dois anos em Chicago, que me diz a isso? Ficamos quites.
O homem ficou a reflectir nas palavras dela, sem saber muito bem o que pensar, mas depois percebeu que era uma piada e riu-se.
- Toque qualquer coisa para mim. Uma coisa que dê para dançar. Conhece aquela canção de Bobby Darin: "Beyond the Sea"? Apetece-me cantar.
- Não trabalho aqui - replicou ela. - Além disso, neste momento estou a conversar com estes dois jovens. Vê aquele senhor magrinho com pouco cabelo, sentado ao piano? É ele o pianista da casa. Talvez seja melhor dirigir-se a ele e fazer o seu pedido. E não se esqueça de deixar gorjeta.
O homem abanou a cabeça.
- Aquele marmelo só sabe tocar música para maricas. E eu quero é ouvi-la tocar a si... não sei, qualquer coisa animada. Dou-lhe dez dólares.
- Nem por quinhentos.
- Com que então, é assim? - redarguiu o homem.
- Exactamente.

*3. Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos da América. (N. da T.)

- Nesse caso, talvez me consiga explicar porque é que vocês, os Japoneses, não estão dispostos a lutar para defender o vosso país? E por que razão temos de ser nós a mexer o cu até Iwakuni para proteger o coiro de vossas excelências, não me dirá?
- E é por isso que eu devo ficar de boca calada e tocar piano?
- Agora é que acertou - ripostou o homem. Em seguida lançou um olhar na direcção dos dois jovens. - Olhem só para estes dois surfistas de merda, estes "japões" que vêm todos lançados do Japão até ao Havai, e para quê? No Iraque, nós...
- Deixe-me fazer uma pergunta - interrompeu Sachi. - Uma dúvida que me assaltou desde que o senhor aqui chegou.
- Força. Às ordens.
Com o pescoço todo torcido, Sachi olhou para o homem.
-Tenho estado aqui a perguntar a mim própria como é que alguém pode ser assim como o senhor. Já nasceu assim, ou foi uma coisinha má que o traumatizou e que o levou a ficar assim? Ora esclareça-me lá.
O homem perdeu uns instantes a pensar naquilo e depois bateu com o copo de uísque com toda a força na mesa.
- Agora passou das marcas...
Ao ouvir o homem levantar a voz, o dono do restaurante apareceu a correr. Não sendo um homem grande, pegou no braço mus-culado do ex-marine e levou-o dali para fora. Pelos vistos, eram velhos conhecidos, e o antigo fuzileiro não ofereceu resistência, tirando ter dito uma ou duas asneiras.
Pouco depois, o proprietário apareceu junto da mesa e desculpou-se junto de Sachi.
- Lamento muito. Ele não costuma ser mau tipo, mas quando bebe fica alterado. Não se preocupem, dele trato eu. Entretanto, deixem-me oferecer-vos qualquer coisa. Para esquecermos que isto aconteceu.
- Não faz mal - afirmou Sachi. - Já estou habituada a que estas coisas aconteçam.
O rapaz atarracado dirigiu-se a Sachi e quis saber o que o outro tinha dito.
- Sim, também eu não percebi patavina - acrescentou o alto -, a não ser "japões".
- Nem queiras perceber - disse Sachi. - Esquece. Vamos mudar de assunto: têm passado uns dias bons, aqui em Hanalei? Imagino que esteja a ser um gozo danado, com surf a todas as horas.
- Espectáculo! - exclamou o mais baixo. .
- Na crista da onda - acrescentou o mais alto. - Mudou a minha vida. A sério.
- Isso é maravilhoso - opinou Sachi. - Aproveitem agora para tirar partido da vida. Qualquer dia, quando menos estiverem à espera, aparece-vos a conta à frente.
- Não tem problema - atalhou o jovem alto. -Tenho o meu cartão comigo.
- Assim é que é falar - disse Sachi, abanando a cabeça. - Fácil e prático.
Foi então que o atarracado disse:
- Tenho andado com uma coisa para lhe perguntar.
- O que é?
- Por acaso, conhece aquele surfista japonês que só tem uma perna?
- Um surfista japonês só com uma perna? - Sachi olhou de frente para ele e franziu os olhos. - Não, não posso dizer que o tenha visto.
- Nós vimo-lo por duas vezes. Estava na praia, a olhar para nós. Tinha uma prancha Dick Brewer vermelha, e faltava-lhe um pedaço de perna daqui até aqui. - O atarracado desenhou uma linha com o dedo que ia uns dez centímetros acima do joelho. - Como se tivesse sido arrancada à dentada. Desapareceu mal entrámos dentro de água. Como queríamos muito falar com ele, procurámo-lo por tudo quanto era sítio, mas não o encontrámos em lado nenhum. Cheira-me que deve ter a nossa idade.
- Qual era a perna que lhe faltava? A direita ou a esquerda? -indagou Sachi.
O rapaz mais baixo pensou um bocadinho e depois disse: -Tenho quase a certeza que era a direita. Right!
- A direita, sem qualquer dúvida - afirmou o alto.
- A-hã - disse Sachi, ao mesmo tempo que molhava a boca com um gole de vinho. Conseguia ouvir o coração a bater violentamente dentro do peito. - Têm a certeza de que ele era japonês? Podia ser americano e ter uma costela japonesa.
- Nada disso - afirmou o alto. - Dá para ver logo a diferença. Não, este tipo veio do Japão para fazer surf aqui, tal como nós.
Sachi mordeu o lábio inferior com força e por momentos fixou o olhar nos dois. Depois, num tom seco, disse:
- É estranho. Numa cidade tão pequena como esta, não se perde alguém de vista, a não ser que se queira, claro. Um surfista japonês perneta.
- Sim, bem sei que é estranho. Um indivíduo desses deveria dar nas vistas como uma unha encravada. Mas ele estava mesmo ali, tenho a certeza. Nós os dois vimo-lo com estes que a terra há-de comer.
O jovem alto olhou para Sachi e disse:
- Você passa muito tempo sentada na praia, certo? Pois ele encontrava-se de pé, apoiado na única perna que tem, um bocadinho mais ao lado do sítio onde costuma estar. E olhava fixamente para nós. Era como se estivesse encostado ao tronco de uma árvore. Por baixo dos eucaliptos, do outro lado das mesas de piquenique.
Sachi deu um gole no seu vinho e continuou em silêncio.
O mais baixo insistiu:
- Bem gostava de saber como é que ele faz para se aguentar em cima da prancha de surf só com uma perna. Se com duas já é difícil... A partir daí, todos os dias, de manhã à noite, Sachi percorria a praia da baía de Hanalei de uma ponta à outra, sem contudo nunca ter encontrado sinais de um surfista só com uma perna. Bem perguntava aos habitantes locais se o tinham visto, mas todos eles olhavam para ela com uma expressão estranha estampada na cara e respondiam que não com a cabeça. "Um surfista japonês só com uma perna? Nunca tal coisa vi nos dias da minha vida. Se tivesse visto, de certezinha que me lembraria. Como pode alguém fazer surf com uma perna apenas?"
Na véspera de regressar ao Japão, Sachi acabou de fazer as malas e foi para a cama. Ouviam-se os gritos dos gecos misturados com o som das ondas. Só quando reparou que a almofada estava molhada é que ela percebeu que estava a chorar. "Porque será que não consigo ver o meu filho?", perguntou a si mesma. Por que é que ele aparece àqueles dois surfistas - que não lhe são nada - e a mim não? É tão injusto." Veio-lhe à memória a imagem do filho, deitado na morgue. Se tivesse podido, tê-lo-ia abanado até ele acordar, e então ter-lhe-ia gritado: "Diz-me porquê! Como é que pudeste fazer isto comigo?"
Durante muito tempo, Sachi enterrou o rosto na almofada húmida e procurou abafar os soluços. "Será que me falta alguma qualidade que não me permita vê-lo?", era o que perguntava repetidamente a si própria, sem contudo saber a resposta. Sabia, isso sim, que independentemente do que a partir daí fizesse, só lhe restava aceitar aquela ilha. Tal como aquele polícia de trato suave, meio japonês meio americano, lhe sugerira, tinha de aceitar as coisas que aconteciam na ilha tal como elas eram. Como elas eram: justas ou injustas, apta ou não apta, para o caso tanto fazia. Sachi acordou na manhã seguinte transformada numa saudável mulher de meia-idade. Transportou a mala para o assento traseiro do seu Dodge e abandonou Hanalei.
Oito meses depois do seu regresso ao Japão, deu de caras com o jovem atarracado numa rua de Tóquio. A fim de escapar a um aguaceiro, refugiara-se no interior de um Starbucks, perto da estação de Roppongi, para beber uma chávena de café. Na mesa ao lado estava o rapaz. Parecia outro, vestido como deve ser, com uma camisa Ralph Lauren e calças de algodão novas. A seu lado estava uma bonita rapariga, pequena e elegante.
- Mas que coincidência! - exclamou ele, acercando-se da mesa dela com um grande sorriso.
- Como é que estás? - perguntou ela. - Isso é que foi cortar o cabelo.
, - Bom, é preciso ver que estou quase a acabar a licenciatura.
- Não acredito. Tu?
- A-hã. Pelo menos isso tenho controlado - replicou ele, sentando-se na cadeira à frente dela.
- Fartaste-te do surf?
- Volta e meia, ao fim-de-semana ainda faço, mas não por muito tempo. Está na altura de as empresas começarem a contratar pessoal.
- E que é feito do teu amigo esgalgado?
- Está safo. Esse é que está bem na vida, sem ter de pensar em colocações e empregos. O pai é dono de uma grande empresa de confeitaria ocidental, com sede em Akasaka. Parece que lhe vão dar um BMW quando assumir funções. Tem cá uma sorte.
Sachi olhou lá para fora. À passagem pelas ruas da cidade, o aguaceiro de Verão deixara o asfalto negro. O trânsito continuava parado e ouvia-se a buzina de algum motorista de táxi mais impaciente.
- É a tua namorada? - perguntou Sachi.
- A-hã... Acho que se pode dizer que sim. Ainda estou a trabalhar nisso - confessou ele, coçando a cabeça.
- É gira. Demasiado gira para ti. O mais provável é não teres sorte nenhuma.
Ele revirou os olhos involuntariamente.
- Essa é boa. Estou a ver que continua sem papas na língua, a dizer sempre aquilo que pensa. Mas acertou, como não podia deixar de ser. Tem algum bom conselho para me dar? Quer dizer, para ver se tenho sorte...
- Só existem três maneiras de dar a volta a uma rapariga: primeira, calares-te muito caladinho e ouvires com atenção o que ela tem a dizer; segunda, dizeres-lhe que gostas da roupa que ela tem vestida, e terceira, levá-la a um bom restaurante. Fácil, não é? Se nem assim, depois de tudo isso, obtiveres os resultados esperados, o melhor que tens a fazer é desistir.
- Parece-me bem. Simples e fácil de pôr em prática. Importa-se que tome nota?
- Claro que não me importo. Quer dizer que nem isso consegues memorizar?
- Sou como as galinhas. Dou três passos e já não sei a quantas ando. Por isso tomo nota de tudo e mais alguma coisa. Consta que já Einstein também fazia o mesmo.
- A-hã, Einstein.
- Ser esquecido não me rala - explicou ele. - Não gosto é de me esquecer de coisas que não me agradam.
-Tu lá sabes - comentou Sachi.
O atarracado sacou do bloco de notas e escreveu o que ela lhe tinha dito.
- Obrigado, posso contar sempre com os seus bons conselhos.
- Oxalá funcione.
- Vou fazer por isso - disse ele, levantando-se para regressar à sua mesa. Depois de hesitar por instantes, estendeu-lhe a mão. - Consigo a mesma coisa - disse ele. - Espero que funcione.
Sachi apertou-lhe a mão.
- Ainda bem que na baía de Hanalei não foste comido pelos tubarões.
- O quê? Existem tubarões ali? A sério?
- Sim - disse ela. - A sério.
Sachi senta-se todas as noites ao piano e deixa que os seus dedos afaguem mecanicamente as teclas, sem pensar em rigorosamente nada. No seu espírito apenas penetra o som produzido pelo piano - entra por uma porta e sai por outra. Quando não se encontra a tocar, pensa nas três semanas que tem por hábito passar em Hanalei, quando o Outono começa a aproximar-se do fim. Recorda-se do rumor das ondas, no seu perpétuo movimento de vaivém, e no sussurro dos eucaliptos. Recorda as nuvens, ao sabor dos ventos alísios, os albatrozes que cruzam o céu com as suas enormes asas. E ela pensa na certeza do que a espera. Não existe mais nada em que ela possa pensar. A não ser na baía de Hanalei.


ONDE É MAIS PROVÁVEL QUE A ENCONTRE


- O pai do meu marido foi atropelado por um eléctrico há três anos e morreu - disse a mulher e calou-se.
Eu não disse nada e limitei-me a olhá-la nos olhos e a acenar duas vezes com a cabeça. Durante esse tempo, percorri com o olhar os doze lápis no porta-lápis, para confirmar se estavam afiados. Como um jogador de golfe apostado em escolher criteriosamente o taco certo, reflecti sobre o que deveria usar, acabando por escolher um que não fosse demasiado rijo nem demasiado macio, mas que servisse na perfeição.
-Tudo isto é um tanto ou quanto embaraçoso - afirmou a mulher.
Guardei a minha opinião para mim, peguei num bloco de notas que tinha à frente e experimentei o lápis, ao escrever a data e o nome da mulher.
- Em Tóquio já não se encontram muitos eléctricos. Foram quase todos trocados por autocarros. Os poucos que ainda se vêem, ficaram em nome da nostalgia, acho eu. Foi um desses que causou a morte do meu sogro. - Ela suspirou profundamente. - Aconteceu na noite do dia 1 de Outubro, vai para três anos. Chovia a cântaros.
Tomei notas dos dados mais relevantes. "Sogro, há três anos, eléctrico, chuva forte, noite de 1 de Outubro." Gosto de escrever tudo o mais correctamente possível, por isso a coisa ainda demorou o seu tempo.
- Na altura, o meu sogro encontrava-se perdido de bêbado. Caso contrário não se teria deixado dormir em cima dos carris, numa noite de chuva.
Ela voltou a calar-se e a olhar fixamente para mim, mantendo os lábios fechados. Provavelmente estava à espera que eu concordasse com ela.
- Ele devia estar a cair de bêbado - comentei.
- A tal ponto que desmaiou e tudo.
- Era costume o seu sogro beber assim tanto?
- Está a perguntar-me se ele costumava beber ao ponto de perder a consciência?
Assenti.
- De vez em quando embebedava-se - admitiu ela. - Mas não era sempre e nunca lhe aconteceu ficar a dormir em cima dos carris do eléctrico.
Qual seria a quantidade de álcool que era preciso uma pessoa ter ingerido para se deixar dormir em cima dos carris do carro eléctrico? Sempre gostava de saber. O importante aqui seria realmente a quantidade de álcool? Ou seria antes a razão que teria levado essa pessoa a beber?
- Portanto, afirma que ele volta e meia bebia mais do que a sua conta, mas que isso não era suficiente para andar por aí aos tombos? - perguntei.
- Pelo menos é como eu vejo as coisas - respondeu ela.
- Posso saber que idade tem?
- Quer saber a minha idade?
- Obviamente que só responde se quiser.
A mulher esfregou a cana do nariz com o indicador. Tinha um nariz muito bonito, perfeitamente direito. Desconfiava que ela devia ter feito uma cirurgia plástica há pouco tempo. Em tempos, tinha andado com uma mulher que tinha o mesmo tique. Depois da operação, sempre que estava a pensar em qualquer coisa, punha-se a passar o dedo indicador sobre o nariz, como se quisesse certificar-se de que o novo narizinho ainda estava no mesmo sítio. Ao olhar de frente para aquela mulher, experimentei uma sensação de déjà vu. Sensação essa que me trouxe à memória recordações vagas de sexo oral.
- Não estou a tentar esconder a minha idade, nem nada que se pareça - afiançou a mulher. -Tenho trinta e cinco anos.
- E que idade tinha o senhor seu sogro quando faleceu?
- Sessenta e oito.
- E o que é que fazia na vida? Quero dizer, qual era a profissão dele?
- Era monge.
- Monge budista, é isso?
- Exactamente. Monge budista. Pertencia à Escola da Terra Pura(1) e encontrava-se à frente de um templo no bairro de Toshima.
- Deve ter sido um grande choque - observei.
- Refere-se ao facto de o meu sogro ter sido atropelado por um eléctrico?
- Sim.
- Claro que foi um choque. Sobretudo para o meu marido -especificou a mulher.
Anotei mais duas ou três coisas no meu bloco. "Monge, Escola da Terra Pura, 68."
A mulher encontrava-se instalada na ponta do meu sofá de dois lugares. Eu estava sentado na cadeira giratória, à secretária. Havia dois metros a separar-nos. Ela trazia um fato verde-salva justo ao corpo. Tinha umas bonitas pernas e as meias condiziam às mil maravilhas com os sapatos altos pretos. Os saltos agulha pareciam mortíferos.
- Portanto, o que veio até aqui para me pedir - voltei à carga -diz respeito ao falecido pai do seu marido?
- Não - retorquiu ela, e abanou negativamente a cabeça para reforçar as suas palavras. - A questão diz respeito ao meu marido.
- Também é monge?
- Não, trabalha no Merrill Lynch.
- O banco de investimento?
- Obviamente - respondeu ela num tom que traduzia uma certa irritação. - Que outra firma chamada Merrill Lynch é que existe? Trabalha como analista de mercado.
Verifiquei se a ponta do lápis estava gasta, enquanto esperava que ela prosseguisse.

*1. Fundada por Honen Shonin (1133-1212), também conhecida como Amidismo, em devoção ao Buda Amida (Buda da Luz Infinita), atraiu numerosos fiéis, sobretudo homens e mulheres mais desfavorecidos. Em japonês chama-se Jodo Shu. (N. da T.)

- O meu marido é filho único, e sempre se interessou mais pela Bolsa do que pelo Budismo. Daí que não tenha seguido as pisadas do pai à frente dos destinos do templo.
"O que faz todo o sentido, não lhe parece?" parecia dizer o olhar dela. Pela parte que me tocava, não tinha qualquer opinião nem a respeito do mercado de valores nem da religião budista, por isso deixei-me estar calado. Em jeito de resposta, adoptei uma expressão imparcial, que tinha por fim indicar um elevado grau de atenção à conversa.
- Depois de o meu sogro falecer, a minha sogra mudou-se para um apartamento no nosso condomínio, em Shinagawa. No mesmo edifício, mas num andar diferente. O meu marido e eu morávamos no vigésimo sexto andar, e ela instalou-se no vigésimo quarto. Sozinha. Anteriormente, vivia no templo na companhia do marido, mas, desde que foi nomeado um outro monge, teve de deixar as instalações. Tem sessenta e três anos. E o meu marido, aproveito para dizer, tem quarenta. Vai fazer quarenta e um no próximo mês. Isto é, se não lhe acontecer nada entretanto.
Tomei nota de tudo. "Sogra 24.o andar, 63. Marido, 40, Merrill Lynch, 26.o andar, Shinagawa." A mulher esperou pacientemente que eu acabasse de escrever.
• - Após a morte do meu sogro, a minha sogra começou a ter ataques de pânico. Parecem ser piores quando está a chover, talvez pelo facto de o marido ter morrido numa noite chuvosa. Um fenómeno bastante normal, imagino eu. Assenti com a cabeça.
- Quando os sintomas são mais fortes, parece que fica com um parafuso a menos na cabeça. Costuma ligar para nós e o meu marido desce dois andares, vai até lá e fica a tomar conta dela. Procura acalmá-la, convencê-la de que vai ficar tudo bem. Caso o meu marido não se encontre em casa, vou eu.
Fez uma pausa no seu relato, à espera de uma reacção da minha parte. Continuei calado.
- A minha sogra não é má pessoa. Pessoalmente, não tenho qualquer razão de queixa dela. Acontece que é uma pessoa nervosa, além de que sempre confiou demasiado nas outras pessoas. Compreende a minha posição?
- Acho que sim - respondi.
Ela cruzou as pernas, à espera que eu tomasse os meus apontamentos. Mas dessa vez eu não escrevi rigorosamente nada.
- Ela ligou para nós num domingo, eram dez da manhã. Há duas semanas, que é como quem diz, há dez dias.
Lancei uma olhadela ao calendário que tinha secretária.
- Domingo, dia três de Setembro?
- Exactamente, no dia três. A minha sogra telefonou-nos por volta das dez nessa manhã - referiu a mulher. Fechou os olhos, como se quisesse concentrar-se melhor. Se aquilo fosse um filme de Hitchcock, o ecrã começaria a ondular e surgiria a narrativa em flashback. Mas nem nós estávamos no cinema, nem mergulhámos em nenhum flashback. Ela abriu os olhos e continuou: - O meu marido atendeu o telefone. Tinha planeado ir jogar golfe nesse dia, mas, visto que estava a chover com alguma intensidade desde manhãzinha, desistiu e cancelou tudo. Se não estivesse a chover, aquilo nunca teria acontecido. Bem sei que pôr-me a imaginar coisas não ajuda, mas não posso deixar de fazer os meus comentários.
"3 de Setembro, golfe, chuva, cancelamento, telefonema sogra." Assentei tudo.
- A minha sogra disse-nos que estava com dificuldade em respirar. Sentia tonturas e não conseguia pôr-se de pé. Por isso, o meu marido vestiu-se e, sem sequer fazer a barba, desceu ao apartamento dela. Disse-me que não iria demorar e pediu-me para tratar do pequeno-almoço.
- Como é que ele estava vestido? - perguntei. Ela esfregou o nariz muito ao de leve.
- Calças de algodão e uma camisa pólo de manga curta. Cinzento-escura, acho eu. As calças eram de cor creme. As duas coisas tinham sido compradas pelo catálogo da J. Crew. O meu marido é míope e usa sempre óculos. Com aros metálicos, Armani. Os sapatos eram cinzentos, da marca New Balance. Não usava meias.
Anotei os pormenores todos.
- Está interessado em saber o peso e a altura dele?
- Ajudava - disse eu.
- Mede um metro e setenta e três e pesa setenta e dois quilos. Antes do nosso casamento, pesava apenas sessenta e um, mas neste ano que passou engordou ligeiramente.
Retive os dados e passei-os para o papel. Toquei na ponta do lápis, para ver se continuava afiado, e troquei-o por outro, que experimentei com o dedo para me habituar ao toque dele.
- Importa-se que eu continue?
- Faça favor - respondi.
Ela cruzou e descruzou as pernas por mais de uma vez.
- Preparava-me para fazer panquecas quando a mãe dele ligou. Faço sempre panquecas ao domingo de manhã. Quando não vai jogar golfe, o meu marido farta-se de comer panquecas. Adora esse prato, sobretudo se forem acompanhadas de bacon bem torradinho.
Não admirava que o indivíduo tivesse mais dez quilos em cima.
-Vinte e cinco minutos mais tarde, recebi uma chamada do meu marido. Disse que a mãe já estava a passar melhor e que ia subir. "Estou com uma fome de lobo", disse-me ele. "Tem o pequeno-almoço pronto para eu comer assim que chegar." Por isso, aqueci a frigideira e comecei a tratar logo das panquecas e do bacon. Também aqueci ligeiramente o xarope de ácer. Panquecas não dão trabalho nenhum a fazer, é tudo uma questão de tempo e de fazer tudo por uma certa e determinada ordem. Esperei e esperei, mas o meu marido nunca regressou a casa. À medida que o tempo passava, as panquecas no prato dele foram arrefecendo. Telefonei à minha sogra e perguntei-lhe se o meu marido ainda se encontrava por lá. Ela confirmou que ele tinha saído há já algum tempo.
A mulher à minha frente sacudiu da saia, à altura do joelho, um pedacinho de cotão imaginário, metafísico.
- O meu marido desapareceu. Evaporou-se no ar. E desde então nunca mais tive notícias dele. Desapareceu algures entre o vigésimo quarto e o vigésimo sexto andares.
- Entrou em contacto com a Polícia?
- Obviamente que sim - ripostou ela, com a irritação a traduzir-se numa ligeira crispação dos lábios. - Assim que vi que era uma da tarde e que ele ainda não tinha regressado, telefonei à Polícia. Verdade seja dita, porém, que eles não se deram a grandes esforços para encontrar o meu marido. Apareceu um agente da esquadra mais próxima, mas assim que percebeu que não havia indícios de crime violento, esteve-se nas tintas. "Se entretanto ele não voltar dentro de dois dias", disse ele, "dirija-se à esquadra a fim de preencher um documento que nos permita iniciarmos a respectiva investigação no departamento de Pessoas Perdidas." Até parecia que o polícia julgava que o meu marido tinha decidido desaparecer de um momento para o outro por estar farto da vida que levava. Mas isso é ridículo. Senão repare. O meu marido foi até casa da mãe de mãos a abanar, sem levar carteira, nem carta de condução, nem cartão de crédito, nem relógio. Nem sequer a barba tinha feito. Além de que teve o cuidado de me telefonar a dizer para tratar das panquecas. Por que carga de água é que alguém que fizesse tenções de fugir de casa pediria à mulher que lhe fizesse panquecas?
- Nesse ponto, dou-lhe razão - concordei eu. - Mas, diga-me uma coisa, quando o seu marido desceu ao vigésimo quarto andar, foi pelas escadas?
- Ele nunca usa o elevador. Detesta andar de elevador. Diz que não suporta ficar fechado num espaço tão apertado.
- E mesmo assim escolheram morar num vigésimo sexto andar?
- Com efeito, assim aconteceu, mas ele usa sempre as escadas. Não se importa - diz que sempre é uma maneira de fazer exercício e abater uns quilos. Claro que demora mais tempo.
"Panquecas, dez quilos, escadas, elevador", escrevi no meu bloquinho de notas, fazendo um traço por cima da palavra "elevador".
- Este é o ponto da situação - disse ela. - Está disposto a aceitar o caso?
Nem precisava de pensar duas vezes. Aquela era precisamente a oportunidade por que andava há já algum tempo à espera. Fingi que precisava de conferir qualquer coisa na minha agenda e empatei um bocado a resposta. Quando se toma uma decisão demasiado rápida e se aceita um caso na hora, o cliente pode ser levado a desconfiar de alguma coisa.
- Por sorte, estou livre até ao fim da tarde - respondi, ao mesmo tempo que olhava para o relógio. Eram onze e trinta e cinco. - Acha que podemos então ir até ao seu prédio de apartamentos? Gostaria de visitar o local onde o seu marido foi visto pela última vez.
- Com todo o gosto - disse a mulher. A testa dela apresentava um ligeiro vinco. - Quer então dizer que aceita o caso?
- Assim é - confirmei.
- Mas ainda nem sequer falámos dos seus honorários.
- Não precisa de me pagar nada.
- Desculpe? - exclamou ela, fitando-me intensamente.
- Não faço tenções de receber dinheiro - expliquei, com um sorriso.
- Quer dizer que não vive disso?
- Não, esta não é a minha profissão. Sou uma espécie de voluntário, por isso não levo dinheiro.
- Voluntário?
- Correcto.
-Ainda assim, deve precisar de algum dinheiro para despesas...
-Também não. Sou um voluntário na verdadeira acepção da palavra, por isso não posso aceitar nenhuma espécie de pagamento.
A mulher continuava a olhar para mim com cara de espanto.
- Felizmente, tenho outra fonte de rendimento que me permite uma relativa independência financeira - expliquei. - Não faço isto pelo dinheiro. O que me interessa é encontrar as pessoas que desapareceram. Ou, mais concretamente, as pessoas que desapareceram de uma certa e determinada maneira. Não vou entrar em pormenores - isso só serviria para complicar as coisas. Garanto-lhe, porém, que sou bom no que faço.
- E, diga-me, dar-se-á o caso de haver alguma religião do tipo New Age por detrás de tudo isto? - indagou ela.
- Nada disso. Não estou ligado a nenhuma religião esotérica nem à New Age.
A mulher lançou uma olhadela aos sapatos. Poderia muito bem estar a pensar em usar os saltos agulha como arma branca, na eventualidade de as coisas conhecerem um rumo bizarro e ser preciso defender-se de mim.
- O meu marido sempre me disse para desconfiar de tudo o que fosse de graça - confidenciou-me ela. - Bem sei que pode parecer falta de educação, mas ele era peremptório em dizer que havia sempre um senão.
- Na maioria dos casos, sinto-me tentado a concordar com ele - disse eu. - Num sistema de capitalismo tardio como aquele em que vivemos, torna-se difícil acreditar que alguém nos possa dar algo sem esperar nada em troca. No entanto, espero que confie em mim. Terá de o fazer, se quer verdadeiramente resolver o caso.
Ela deitou a mão à mala Louis Vuitton, abriu-a com um elegante estalido e tirou lá de dentro um espesso sobrescrito fechado. Não
tinha maneira de saber quanto dinheiro ali estaria, mas parecia ser uma boa maquia.
-Trouxe um adiantamento a contar com as suas despesas - mencionou ela.
Abanei a cabeça.
- Não aceito honorários, nem ofertas, nem pagamentos de nenhum género. É essa a regra. Caso aceitasse dinheiro ou presentes, as acções em que me encontro empenhado revelar-se-iam destituídas de todo e qualquer valor. Se a senhora tem dinheiro mais do que suficiente e não se sente à vontade pelo facto de não me pagar um salário, sugiro-lhe que faça um donativo para fins de caridade - para ajudar uma obra de beneficência que albergue crianças ou a liga contra o cancro, por exemplo. No caso de achar que isso a faz sentir melhor.
A mulher enrugou a testa, soltou um suspiro profundo e voltou a guardar o sobrescrito na mala. Tornou a colocar a mala, devidamente enriquecida e mais feliz, no seu lugar. Tornou a esfregar o nariz e olhou para mim, com uma expressão parecida com a de um cão da raça Labrador no momento em que se prepara para dar um salto no ar e abocanhar o pau.
- As acções em que se encontra empenhado - mencionou ela num tom de voz um nadinha seco.
Acenei com a cabeça e voltei a pousar o lápis usado no porta-lápis.
A mulher com os saltos altos e finos conduziu-me até ao edifício muito alto onde mora. Apontou-me a porta do seu apartamento (número 2609) e a porta onde morava a sogra (número 2417). Uma escadaria larga ligava os dois andares e dava perfeitamente para ver que, mesmo num passo vagaroso, nunca demoraria mais de cinco minutos para se ir de um andar ao outro.
- Uma das razões pelas quais o meu marido comprou este apartamento foi o facto de as escadas serem largas e bem iluminadas -mencionou ela. - Na sua maioria, os construtores optam por poupar no espaço atribuído às escadas, além de que a maioria das pessoas prefere usar o elevador. Os empreiteiros preferem gastar o seu dinheiro em espaços que dêem mais nas vistas - uma biblioteca ou um vestíbulo de mármore, por exemplo. O meu marido, contudo, sempre insistiu em que as escadas eram um elemento vital - a espinha dorsal de um edifício, como ele gostava de dizer.
Tenho de admitir que a escada era, de facto, assombrosa. No patamar entre o vigésimo quinto e o vigésimo sexto andares, junto a uma janela panorâmica, havia um sofá, um espelho a todo o comprimento da parede, um cinzeiro de pé e uma planta dentro de um vaso. Através da enorme vidraça, via-se o céu azul sulcado de duas ou três nuvens brancas. A janela estava selada e não se podia abrir.
- Existe um espaço igual a este entre cada andar? - perguntei.
- Não. Temos uma pequena salinha de cinco em cinco andares, mas não em todos - referiu ela. - Gostaria de ver o nosso apartamento, bem como o da minha sogra?
- Neste momento, não.
- Desde que o meu marido desapareceu, o sistema nervoso da minha sogra piorou significativamente - adiantou ela. - Foi um grande choque para ela, como decerto pode imaginar.
- Naturalmente - concordei. - Não creio que seja preciso incomodá-la.
-Agradeço muito a sua compreensão. E também gostaria de lhe pedir a sua ajuda no sentido de manter o assunto em segredo e sem que os vizinhos fiquem a saber. Ainda não disse a ninguém que o meu marido desapareceu.
- Entendido - disse eu. - A senhora também faz uso das escadas?
- Não - afirmou ela, erguendo ligeiramente as sobrancelhas, como se a minha pergunta contivesse alguma crítica velada. - Normalmente, uso o elevador. Quando o meu marido e eu saímos juntos, ele sai primeiro e eu apanho o elevador e depois encontramo-nos na entrada. E quando voltamos para casa, subo no elevador sozinha e ele vem a pé pelas escadas. Seria vagamente perigoso, subir tantos degraus com estes saltos, para já não falar do esforço físico que tal representaria.
- Calculo.
Interessado em investigar as coisas por minha conta, pedi-lhe que fosse dar uma palavrinha ao administrador do prédio.
- Diga-lhe que o homem que anda a passar revista ao espaço entre o vigésimo quarto e o vigésimo sexto andares está a conduzir uma investigação para os seguros - instruí-a a dizer. - Isto não vá alguém pensar que anda um ladrão à solta e decidir chamar a Polícia. Seria uma situação muito desagradável para mim. Vendo bem, não existe nenhuma razão de peso para que tal aconteça.
-Vou então informá-lo - disse a mulher, e desapareceu escada acima. O barulho dos seus saltos ecoou como o som de pregos a serem martelados na parede com vista a afixar algum aviso desagradável, até que começou a diminuir de intensidade e deixou de se ouvir. Fiquei sozinho.
Para começar, desci as escadas do vigésimo sexto andar até ao vigésimo quarto andar e tornei a subi-las, três vezes ao todo. Da primeira, percorri a distância com uma passada normal, das outras duas fi-lo muito mais devagar, observando cuidadosamente tudo o que me rodeava. Chamei a mim toda a minha capacidade de concentração, a fim de não me escapar rigorosamente nada. Estava de tal maneira concentrado que mal pestanejava. Tudo o que acontece deixa vestígios, e a minha missão consistia em descortinar esses sinais. O problema era que a escada tinha sido limpa em profundidade. Não havia um grãozinho de poeira à vista. Nem a mais pequena mancha, nem uma amolgadela, nem uma ponta de cigarro no cinzeiro. Nada.
Cansado de andar para cima e para baixo sem parar, sentei-me no sofá por momentos. Era forrado de vinil e não se podia dizer que fosse um artigo de grande qualidade. Ainda assim, era preciso reconhecer mérito à administração do prédio, ao ter pensado em colocar ali um sofá, num sítio onde provavelmente se contariam pelos dedos as pessoas que fariam uso dele. Em frente do sofá ficava o espelho. A sua superfície não podia estar mais limpa, e convenhamos que se encontrava no ângulo perfeito para reflectir a luz que entrava pela janela. Deixei-me ficar ali durante algum tempo, a olhar para o meu reflexo. Quem sabe se, naquele domingo, o marido daquela mulher, o corretor da Bolsa, não teria feito uma paragem naquele mesmo local, a fim de olhar para o seu reflexo. Para a sua imagem com a barba por fazer.
Pela minha parte, estava barbeado, mas o cabelo ameaçava ficar um bocado comprido. Por trás das orelhas, começava a encaracolar e a ficar parecido com o pêlo de um cão de caça que tivesse acabado de atravessar um rio. Tomei mentalmente nota de que precisava de ir ao barbeiro. Reparei ainda que a cor das minhas calças não condizia com os sapatos. Além disso, também tivera azar com a escolha das peúgas: pelos vistos, escolhera um par desirmanado. Ninguém acharia estranho se eu finalmente tomasse o meu destino nas mãos e me decidisse a lavar a minha roupa. Senão, nunca mais passaria da cepa-torta: um solteirão de quarenta e cinco anos que se estava perfeitamente nas tintas para as acções da Bolsa e para Budismo.
Pensando bem, Paul Gauguin também tinha trabalhado na Bolsa de Valores, ou se não era isso andava lá perto. Mas como pretendia dedicar-se à pintura, um dia abandonou mulher e filhos e partiu rumo ao Taiti. Esperem aí... Não, Gauguin não poderia ter deixado a carteira em casa, e quase aposto que, se naquela altura já houvesse cartões American Express, ele teria levado o dele. Afinal de contas, sempre ia até ao Taiti. Não o estou a ver a dizer à mulher: "Olha, querida, não demoro nada, podes ir preparando as panquecas..." antes de se volatilizar. Quando uma pessoa faz tenções de desaparecer do mapa tem de o fazer de forma sistemática.
Levantei-me do sofá e, à medida que ia subindo outra vez as escadas, dei por mim a matutar nas panquecas acabadinhas de fazer. Esforcei-me ao máximo para conseguir imaginar a cena: é domingo de manhã, lá fora chove torrencialmente, e temos um corretor da Bolsa de 40 anos a caminho de casa, preparado para se enfardar de panquecas. Quanto mais pensava, mais aquela história me aguçava o apetite. Estava ali desde manhã com apenas uma maçãzinha no bucho.
Talvez o melhor a fazer fosse dar uma saltada ao Denny's(2) para me empanturrar de panquecas. Tinha passado por um letreiro a dizer "Denny's" a caminho dali. Se calhar até dava para ir a pé. Não que as panquecas do Denny's fossem uma coisa do outro mundo - a manteiga e o xarope de ácer não estavam à altura dos meus pergaminhos -, mas sempre era melhor que nada. Para ser sincero, sou um grande apreciador de panquecas. Acto contínuo, comecei a salivar. Contudo, abanei energicamente a cabeça e tentei afastar todos os pensamentos relacionados com panquecas. Dissipei todas as nuvens

*2. Cadeia norte-americana muito popular junto dos Japoneses que serve pequenos' -almoços em conta à base de panquecas, ovos, salsichas e bacon. (N. da T.)

da ilusão. "Deixa ficar as panquecas para mais tarde", aconselhei a mim próprio. "Ainda tens trabalho pela frente."
"Devia ter-lhe perguntado se o marido tinha algum passatempo", disse de mim para mim. "Podia dar-se o caso de ele também pintar."
Porém, não fazia sentido - todo e qualquer homem que gostasse tanto de pintura, ao ponto de abandonar a mulher, não podia ser o tipo que joga golfe todos os domingos de manhã. Estão a imaginar o Gauguin ou o Van Gogh ou o Picasso de sapatos de golfe, ajoelhados junto ao buraco número 10, a ensaiar um putt! Eu não.
Voltei a sentar-me no sofá e olhei para o relógio. Era uma e trinta e dois. Fechei os olhos e concentrei a minha atenção num ponto dentro da minha cabeça. Com a mente completamente vazia, entreguei-me às areias do tempo e deixei-me ir com a maré. Depois voltei a abrir os olhos e consultei o relógio. Era uma e cinquenta e sete. Tinham-se evaporado vinte e cinco minutos. "Nada mau", disse para comigo. Uma maneira inútil de enganar o tempo. Mesmo nada mau.
Tornei a olhar para o espelho e observei o meu eu de sempre. Levantei a mão direita, o meu reflexo levantou a esquerda. Levantei a mão esquerda e ele levantou a direita. Fiz menção de baixar a minha mão direita, depois baixei rapidamente a esquerda; o meu reflexo fez menção de baixar a mão esquerda, depois baixou rapidamente a direita. Tudo como devia ser. Levantei-me do sofá e desci os vinte e cinco andares até à entrada do edifício.
A partir daí, passei a visitar a escadaria todos os dias, por volta das onze da manhã. O administrador do prédio e eu tornámo-nos amigos (as caixas de chocolate que eu lhe oferecia operavam maravilhas), e eu ficara com total liberdade para me passear pelo edifício. No total, devo ter percorrido mais de duzentas vezes a distância entre os andares vinte e quatro e vinte e seis. Quando me cansava, refastelava-me no sofá, contemplava o céu pela janela ou punha-me a observar o meu reflexo no espelho. Tinha ido ao barbeiro e feito um corte de cabeio decente, lavara a roupa e encontrava-me em situação de usar calças e meias que combinassem, reduzindo assim as hipóteses de alguém se pôr a murmurar nas minhas costas.
Por mais que me esforçasse, não conseguia encontrar uma única pista, mas não desencorajei. Encontrar uma pista apresentava um desafio semelhante ao de domar um animal selvagem. Requer paciência e concentração, para já não falar na intuição.
Nas minhas viagens diárias ao edifício, vim a descobrir que havia muito boa gente que ainda utilizava as escadas. Volta e meia encontrava pelo chão pratas amarfanhadas de chocolate, pontas de Marlboro no cinzeiro, um jornal lido e posto de lado.
Uma tarde de domingo, cruzei-me com um homem que subia as escadas a correr. Era de pequena estatura, devia andar na casa dos trinta, tinha uma expressão séria e vestia equipamento de jogging verde e sapatos de corrida Asics. Usava um grande relógio de pulso Casio.
- Viva - saudei eu. -Tem um minuto?
- Naturalmente - respondeu o homem e, acto contínuo, premiu um botão no relógio. Depois respirou fundo várias vezes. A parte de cima da Nike estava ensopada de suor à altura do peito.
- Tem o hábito de subir e descer pelas escadas? - inquiri.
- Sempre, até ao trigésimo primeiro andar. Descer, no entanto, desço pelo elevador. É perigoso descer escadas a correr.
- Faz isso todos os dias?
- Não, o trabalho não mo permite, mas procuro compensar aos fins-de-semana. E sempre que saio mais cedo do emprego, aproveito para dar a minha corridinha.
- Mora neste prédio?
- Claro - afirmou o corredor. - No décimo sétimo andar.
- Nesse caso deve conhecer o senhor Kurumizawa, do vigésimo sexto.
- Senhor Kurumizawa?
- Corretor da Bolsa, usa óculos Armani com armações metálicas e utiliza sempre a escada. Tem um metro e setenta e três e à roda de quarenta anos.
O corredor meditou por momentos e depois lembrou-se.
- Sim, estou a ver quem é. Conversámos uma vez. Às vezes passava por ele nas escadas numa das minhas corridas. Também aconteceu vê-lo aqui sentado. Imagino que pertencesse ao número de pessoas que detestam elevadores e usam antes as escadas. Acertei?
- É esse mesmo - disse eu. - E para além dele, há mais gente a fazer uso das escadas no dia-a-dia?
- Haver, há - respondeu ele. - Não se pode dizer que sejam muitas, mas há meia dúzia que o fazem regularmente. Tudo pessoas que não gostam de andar de elevador. E temos ainda duas que também sobem as escadas a correr, tal como eu. A falta de um sítio decente para fazer jogging aqui perto, não temos outra alternativa senão usar as escadas. Há ainda aqueles que sobem as escadas como forma de fazer exercício. Creio que neste prédio as escadas são mais utilizadas do que na maior parte dos outros edifícios, na medida em que são muito espaçosas, bem iluminadas e limpas.
- Por acaso sabe o nome dessas pessoas?
- Lamento, mas não - confessou o corredor. - Conheço-as apenas de vista. Cumprimentamo-nos quando passamos uns pelos outros, mas não sei como se chamam. É bom não esquecer que este prédio é enorme.
- Compreendo. Bom, obrigada pelo tempo que lhe tomei - despedi-me. - Desculpe tê-lo demorado. E boa sorte para o jogging.
O homem carregou no botão do seu cronometro e retomou a corrida.
Estava eu sentado no sofá numa terça-feira quando reparei num homem de idade que descia as escadas. Devia ter setenta e muitos, com cabelo grisalho e óculos. Calçava sandálias, calças largueironas cinzentas e uma camisa de manga comprida. As roupas estavam impecavelmente passadas e limpas. O velho senhor era alto e tinha boa postura. Fez-me lembrar o director de uma escola primária acabado de entrar na reforma.
- Bom dia! - disse ele.
- Bom dia! - respondi eu.
- Importa-se que fume neste sítio?
- De forma alguma - disse eu. - Esteja à vontade. ?" O velho sentou-se ao meu lado e tirou um maço de Seven Stars
do bolso das calças. Riscou um fósforo, acendeu o cigarro, depois soprou o fósforo e colocou-o no cinzeiro.
- Moro no vigésimo sexto andar - referiu ele, soprando lentamente o fumo. - Na companhia do meu filho e da minha mulher. Dizem eles que a casa fica empestada de fumo, de modo que me vejo obrigado a vir até aqui sempre que me apetece um cigarro. Fuma?
- Deixei-me disso há doze anos - referi.
- Eu devia fazer o mesmo - retorquiu o ancião. - Como só fumo dois cigarros por dia, não deve ser tão difícil quanto isso. Mas, confesso, ir até à loja comprar tabaco, vir até cá abaixo... tudo isso ajuda a passar o tempo. Ao mesmo tempo que faço exercício, evito pensar nas coisas demasiado a sério.
- Está a pretender dizer-me que continua a fumar por razões de saúde?
- Exactamente - confirmou o homem de idade com uma expressão séria.
- Disse que morava no vigésimo sexto andar?
- Sim.
- Conhece o Senhor Kurumizawa que vive no número 2609?
- Conheço. Usa óculos e trabalha na Salomon Brothers, não é verdade?
- Merrill Lynch - emendei.
- Isso mesmo, Merrill Lynch - confirmou o velho senhor. - Já conversei com ele aqui mesmo. De vez em quando, ele vem sentar-se neste sofá.
- Que faz ele aqui sentado?
- Para ser franco, não sei. Limita-se a estar aqui sentado, a olhar para o ar. Não me parece que seja fumador.
- E sabe se ele costuma estar a pensar nalguma coisa?
- Não tenho a certeza se é possível saber a diferença: entre olhar para o ar e pensar. Pensar é aquilo que nós passamos a vida a fazer, não é verdade? Não quero com isto dizer que vivemos para pensar, mas o contrário também não é verdade... quero dizer, que pensamos para viver. Ao contrário de Descartes, acredito que por vezes pensamos para não ser. Olhar para o vazio pode, involuntariamente, ter o efeito oposto. Em todo o caso, trata-se de uma pergunta difícil.
O velho deu uma passa valente no seu cigarro.
- O Senhor Kurumizawa alguma vez mencionou problemas no trabalho ou em casa? - indaguei.
O ancião abanou a cabeça e atirou o cigarro para dentro do cinzeiro.
- Como por certo deve saber, a água escolhe sempre o caminho mais curto quando é a descer. Porém, acontece que o caminho mais curto é por vezes composto de água. O pensamento dos homens funciona em grande parte da mesma maneira. Pelo menos, é a impressão que me dá. Mas reparo agora que ainda não respondi à sua pergunta. O Senhor Kurumizawa e eu nunca falámos de coisas assim tão profundas. Limitámo-nos a trocar dois dedos de conversa acerca do tempo, dos estatutos do condomínio e coisas desse género.
- Compreendo. Desculpe o tempo que lhe tomei - disse eu.
- Às vezes não são precisas palavras - observou o velho senhor, como se não me estivesse a ouvir. - Melhor dizendo, são as palavras que precisam de nós. Se aqui não estivéssemos, as palavras perderiam todo o seu significado. Não lhe parece? Acabariam por não passar de palavras que nunca são ditas, e as palavras não ditas deixam de ser palavras.
- Exactamente a minha opinião - alvitrei. - É uma espécie de enigmas koan zen(3).
- Sem tirar nem pôr - concordou o ancião, acenando, antes de se levantar a fim de regressar ao seu apartamento. - Fique bem.
- Até à próxima - despedi-me eu.
Na tarde da sexta-feira seguinte, por volta das duas da tarde, quando me preparava para atingir o patamar entre o vigésimo quinto e o vigésimo sexto andares, fui encontrar uma menina sentada no sofá, a olhar para ela no espelho e a cantarolar uma canção. Parecia ter idade para já andar na escola. Vestia uma T-shirt rosa e calções de ganga, tinha uma mochila verde às costas e um chapéu no colo.
- Viva! - disse eu.
- Viva! - respondeu ela, e deixou de cantar.
Gostaria de me ter sentado ao lado dela, mas se passasse alguém e nos visse ali poderia ser levado a pensar que algo de estranho se passava, por isso achei melhor encostar-me ao peitoril da janela, mantendo uma certa distância entre os dois.

*3. Forma de conhecimento zen transmitida pelo mestre ao discípulo para que este contemple a verdade sem recorrer ao raciocínio discursivo. (N. da T.)

- A escola já acabou?
- Não me apetece falar da escola - disse ela explicando-se na perfeição.
- Muito bem, nesse caso não se fala da escola - repliquei. -Vives neste prédio?
- Sim - disse ela. - No vigésimo sétimo andar.
- Mas não costumas fazer o caminho todo a pé até lá acima, pois não?
- O elevador cheira mal - explicou ela. - Como no elevador cheira mal, subo sempre a pé até ao vigésimo sétimo andar. - Observou a sua imagem no espelho e acenou energicamente. - Nem sempre, só às vezes.
- E não ficas cansada? Ela não respondeu.
- Sabes uma coisa? De todos os espelhos que há na escada, é neste que me vejo melhor. Nada que se compare com o espelho que temos lá em casa.
- O que é que queres dizer com isso?
- Experimenta olhar para ti - sugeriu ela.
Dei um passo atrás, olhei de frente para o espelho e observei-me reflectido no espelho. E, vendo bem, de facto a imagem da minha pessoa reflectida no espelho apresentava-se uns graus mais nítida do que era habitual. Naquele espelho, o meu "eu" tinha um aspecto mais roliço e feliz da vida. Como se tivesse acabado de me empanzinar com um monte de panquecas quentinhas.
-Tens algum cão? - perguntou a rapariguinha.
- Não, mas tenho peixes tropicais.
- Hmm - fez ela. Pelos vistos, o interesse dela por peixes tropicais era praticamente inexistente.
- Gostas de cães? - perguntei.
Ela não me deu resposta, mas, em contrapartida, fez-me mais uma pergunta:
- Tens filhos?
- Não, não tenho - elucidei-a.
Ela olhou para mim com desconfiança.
- A minha mãe disse-me para não falar com homens que não têm filhos. A minha mãe diz que a hipótese de eles serem esquisitos é muito verosimilhante.
- Não obrigatoriamente - expliquei eu -, apesar de estar de acordo com a tua mãe e de também achar que deves ter cuidado quando falas com homens que não conheces.
- Não acho que tu sejas esquisito.
- Já somos dois.
- Não me vais mostrar o teu pirilau, pois não?
- Não.
- E também não fazes colecção de cuequinhas de meninas pequenas ou fazes?
- Não.
- Fazes colecção de quê?
Pus-me a pensar. Fazia colecção de primeiras edições de poesia moderna, mas trazer esse tema à baila não nos levaria longe.
- Pelos vistos, não faço colecção de coisa nenhuma. Ficámos os dois calados por um momento.
- Olha lá, no Mister Donut do que é que gostas mais?
- À moda antiga - respondi logo.
- Não conheço esse - exclamou ela. - Sabes quais são os meus preferidos? "Full Moon" e "Bunny Whip".
- Nunca ouvi falar desses - foi a minha vez de dizer.
- São aqueles com fruta ou pasta de feijão-soja lá dentro. São bestiais. Mas a minha mamã diz que se comermos muitos doces acabamos por ficar tolinhos, por isso só mos compra de vez em quando.
- Pela descrição, devem ser deliciosos - disse eu.
- O que é que estás aqui a fazer? Já ontem te vi - observou a menininha.
- Ando à procura de uma coisa.
- Que coisa?
- Ainda não sei - admiti. - Imagino que seja uma espécie de porta.
- Uma porta? Que espécie de porta? Que forma é que tem? E de que cor é?
Reflecti. Que forma e que cor teria? Agora que pensava nisso, nunca tais dúvidas me tinham passado pela cabeça. Estranho.
- Não sei nada a respeito da forma nem da cor. Se calhar nem sequer é uma porta.
- Pode ser um guarda-chuva ou isso?
- Um guarda-chuva? - repeti eu. - Hmm. Sim, não vejo por que não.
- Mas os guarda-chuvas e as portas são duas coisas diferentes, e as pessoas fazem coisas diferentes com elas.
-Tens razão. Contudo, tenho a certeza de que serei capaz de a reconhecer quando a vir, a essa coisa. Tipo: "Olha, é isto mesmo!" Quer seja um guarda-chuva, uma porta ou até mesmo um donut.
- Hmm - fez a rapariguinha. - E já andas à procura há muito tempo?
- Há muito, muito tempo. Ainda tu não eras nascida.
- A sério? - exclamou ela, olhando pensativamente para a palma da sua mão. - E se eu te ajudasse a encontrar essa coisa?
- Gostaria muito - afirmei.
- Portanto, tenho de procurar uma coisa mas não sei o que é. Tanto pode ser uma porta, como um guarda-chuva ou um elefante?
- Exactamente - disse eu. - Mas assim que descobrires, logo saberás.
- Parece divertido - afirmou ela. - Mas agora tenho de voltar para casa. Vou ter aula de ballet.
- Até logo, nesse caso - disse eu. - Obrigado por teres conversado comigo.
- Dizes-me outra vez o nome do donut teu preferido?
- À moda antiga.
Com a testa enrugada, a menina repetiu a expressão "à moda antiga" uma série de vezes. Depois pôs-se em pé e desapareceu pela escada acima, sempre a cantarolar. Fechei os olhos, voltei a abandonar-me à corrente do tempo e deixei-o seguir o seu curso sem sentido.
Numa manhã de sábado recebi um telefonema da minha cliente.
- Encontraram o meu marido - começou ela por dizer, sem sequer me cumprimentar. -A Polícia entrou em contacto comigo por volta do meio-dia de ontem. Foram dar com ele a dormir num banco, numa sala de espera da estação de Sendai. Não tinha qualquer identificação nem dinheiro com ele, mas passado algum tempo ele recordou-se do nome, da morada e do número de telefone. Meti-me no avião e fui a correr para Sendai. Trata-se do meu marido, sem sombra de dúvida.
- Como é que ele foi parar a Sendai?
- Ele não faz ideia nenhuma, a única coisa de que se lembra é de ter acordado num banco na estação de Sendai com um empregado dos caminhos-de-ferro a tocar-lhe no ombro. Como é que ele aterrou em Sendai sem dinheiro, como é que se alimentou durante os últimos vinte dias, não se recorda de nada.
- Como é que ele estava vestido?
- Tinha a mesma roupa de quando saiu de casa. Estava com barba e perdera mais de vinte quilos. Também já não tinha os óculos com ele, perdeu-os algures. Estou neste momento a ligar-lhe do hospital, em Sendai. Ainda estão a fazer exames, TAC, radiografias, testes neurológicos. De cabeça, parece estar óptimo, e fisicamente também se encontra bem. O que acontece é que não se lembra de nada. Recorda-se de ter saído de casa da mãe e de subir as escadas, mas não tem memória do que aconteceu depois disso. De qualquer modo, amanhã deveremos regressar a Tóquio.
- São excelentes notícias.
- Agradeço sinceramente todo o trabalho a que o senhor se deu a fim de encontrar o rasto do meu marido, mas, agora que as circunstâncias mudaram e as coisas parecem a caminho de ficar resolvidas, creio que a nossa investigação pode ficar por aqui.
- Assim parece - disse eu.
- Nunca na minha vida passei por uma experiência tão louca e incompreensível, mas pelo menos agora tenho o meu marido de volta, são e salvo, e isso é que importa.
- Claro, tem toda a razão - disse eu.
- Tem a certeza de que não o posso recompensar de maneira nenhuma?
- Como lhe disse da primeira vez que nos encontrámos, não posso aceitar pagamentos de espécie alguma. Por isso, não preocupe a sua linda cabecinha com isso. Contudo, tomo nota da sua preocupação.
Silêncio. Um silêncio refrescante que significava que finalmente tínhamos chegado a um entendimento mútuo. Sinceramente, deu-me um enorme gozo poder calmamente voltar a ser eu.
- Desejo-lhe tudo de bom - disse a mulher para acabar de vez com a conversa, e desligou. O tom de simpatia era visível na sua voz.
Pousei o auscultador. Por momentos deixei-me continuar sentado, fazendo girar devagarinho um lápis novinho em folha, de olhos postos no bloco de notas que tinha à minha frente. O bloco em branco fez-me lembrar um lençol acabado de chegar da lavandaria. A folha branca trouxe-me à memória uma gata com três cores prazenteiramente enroscada a fazer a sua sesta. Essa imagem - de uma gata a fazer a sesta em cima de um lençol acabado de lavar - ajudou-me a descontrair e a assentar ideias. Comecei a vasculhar a memória e escrevi no meu caderninho, um por um, todos os pontos relevantes avançados pela mulher: "Estação de Sendai, quinta-feira ao meio-dia, telefone, perdeu vinte quilos, mesmas roupas, perdeu os óculos, esquecimento dos últimos vinte dias."
Esquecimento dos últimos vinte dias.
Pousei o lápis em cima da secretária, inclinei-me para trás na cadeira e olhei para cima. O tecto apresentava, aqui e ali, algumas zonas irregulares, e se eu semicerrasse bem os olhos conseguia distinguir os contornos de uma espécie de mapa celeste. Fixei o olhar naquele imaginário céu estrelado e interroguei-me se não teria razões para voltar a fumar - por razões de saúde. Na minha cabeça ressoava o estalido produzido pelos sapatos de salto alto da mulher a subir as escadas.
"Senhor Kurumizawa", disse eu, alto e bom som, na direcção de um canto do tecto. "Bem-vindo ao mundo real. De volta ao maravilhoso triângulo formado pela sua mãe, propensa-a-ataques-de-pânico, a sua esposa e os seus sapatos de salto agulha e o bom velho Merrill Lynch."
Imagino que a minha procura esteja para durar, algures. Estou em busca de qualquer coisa que pode muito bem ter a forma de uma porta. Ou então aproximar-se mais dos contornos de um chapéu-de-chuva ou de um donut. Até mesmo de um elefante, porque não? Uma demanda que, espero bem, me leve onde é mais provável que a encontre.


A PEDRA EM FORMA DE RIM QUE MUDAVA DE LUGAR TODOS OS DIAS


Junpei tinha dezasseis anos quando o seu pai lhe deu a conhecer o que a seguir se transcreve. Era um facto que tinham o mesmo sangue a correr-lhes nas veias e, sim, biologicamente eram pai e filho, mas não tinham um relacionamento assim tão próximo que lhes permitisse abrir o coração um ao outro, e olhem que era muito raro o pai de Junpei partilhar com ele algum aspecto da sua filosofia de vida (se é que se lhe pode chamar isso). Assim se explica a razão pela qual a troca de ideias verificada nesse dia ficou para sempre gravada na memória de Junpei, muito depois de o pretexto que lhe esteve na origem ter sido por completo esquecido.
"Entre as mulheres que um homem encontra na vida, só três é que têm significado para ele. Nem mais, nem menos", afirmou - ou, melhor dizendo, declarou o pai. Expressou-se no tom frio, mas peremptório, de quem proclama que a Terra demora um ano a completar a sua órbita à volta do Sol. Junpei escutou aquilo em silêncio. Em parte, a declaração do pai apanhara-o completamente desprevenido; na surpresa do momento, não se lembrara de nada para dizer.
"É provável que no futuro venhas a conhecer e te envolvas com muitas mulheres", prosseguiu o pai, "mas estarás a desperdiçar o teu tempo caso não seja a mulher certa para ti. Lembra-te do que te digo."
Mais tarde, várias foram as perguntas que surgiram no espírito de Junpei. "Já terá o meu pai conhecido as "suas" três mulheres? Será a minha mãe uma delas? E, a ser esse o caso, o que terá acontecido às outras duas?" Contudo, não foi capaz de colocar as questões ao pai.
Como já acima ficou dito, não existia entre os dois uma relação assim tão próxima que permitisse a cada um dizer o que lhe ia na alma.
Aos dezoito anos, Junpei saiu de casa e foi estudar para Tóquio. Na mesma altura em que começou a frequentar a universidade, começou também a envolver-se com mulheres, uma das quais veio a revelar-se "ter verdadeiro significado" para ele. Já na altura ele sabia disso, com a mesma certeza com que continua a afiançá-lo. Porém, antes que tivesse oportunidade de expressar os seus sentimentos amorosos, ela casou-se com o melhor amigo dele e tornara-se entretanto mãe de uma criança. Assim, de momento, não havia outro remédio senão eliminá-la da lista de possibilidades que a vida tinha para oferecer a Junpei. Pela parte que lhe tocava, ele teve de fazer das tripas coração e tirá-la da sua cabeça, daí resultando que o número de mulheres restantes que poderiam ter "verdadeiro significado" para a sua vida - partindo do princípio de que ele fazia sua a teoria do pai -ficou reduzido a duas.
A partir daí, sempre que Junpei travava conhecimento com uma mulher, colocava a si mesmo a questão: "Esta mulher tem verdadeiro interesse para mim?" Por seu turno, a pergunta levava directamente a um dilema: por mais que continuasse à espera (e quem não continua?) de encontrar alguém que tivesse "verdadeiro significado" para ele, ao mesmo tempo receava desperdiçar os seus trunfos demasiado cedo. Depois de ter perdido a oportunidade de unir o seu destino à primeira mulher muito importante na sua vida, Junpei perdeu confiança na sua capacidade - essa capacidade por demais importante - de exprimir o amor no momento certo e da maneira apropriada. "Posso muito bem ser aquele indivíduo que consegue deitar a mão todas as coisas que não servem para nada nesta vida, mas que deixa escapar as que são verdadeiramente importantes." Sempre que aquele pensamento lhe passava pela cabeça, o que, acrescente-se, acontecia com alguma frequência, o seu coração afundava-se num lugar frio e escuro.
Acontecia então que, ao fim de ter andado com uma rapariga durante alguns meses, mal descobria qualquer coisa na maneira ou no comportamento dela, por mais banal, que não lhe agradava ou que mexia com o seu sistema nervoso, sentia, bem lá no fundo, uma pontinha de alívio. Em resultado disso, tornou-se, por assim dizer, um padrão de vida para ele, aquela história de manter relações indefinidas e baças com uma mulher atrás da outra. Namorava com uma rapariga durante um certo tempo, como se estivesse a proceder ao inventário da situação, até que, em chegando a um certo ponto, a relação quebrava-se por si só. As separações nunca se traduziam em violência nem discussões gritantes, provavelmente porque ele, à partida, nunca se envolvia com mulheres de quem não se pudesse livrar com facilidade. Com o tempo, Junpei acabou por desenvolver uma espécie de faro para escolher as parceiras que lhe convinham.
Ele próprio não sabia ao certo se essa capacidade era inata ou se a tinha adquirido ao longo dos anos, em contacto com o meio ambiente. Se estivéssemos na presença de uma capacidade adquirida, podia muito bem ter nascido em resultado da maldição lançada pelo pai. Quando estava prestes a concluir a licenciatura, ele teve uma violenta discussão com o pai que conduziu a um corte de relações entre ambos, mas o certo é que a "teoria das três mulheres", ainda que com a sua origem por explicar, permaneceu como uma espécie de obsessão que se apoderou da sua vida e nunca mais lhe deu tréguas. A dada altura, chegou a comentar, em tom de brincadeira, a hipótese de se tornar homossexual: talvez nessa circunstância ele pudesse libertar-se daquele estúpido jogo estatístico. Para o bem e para o mal, contudo, as mulheres eram o único objecto do interesse sexual por parte de Junpei.
A mulher que conheceu a seguir era, não tardou Junpei a descobrir, mais velha do que ele. Tinha 36 anos. Junpei tinha 31. Uma pessoa que ele conhecia inaugurou um restaurantezinho francês numa rua afastada do coração de Tóquio e Junpei foi convidado para a festa. Vestiu a sua camisa Perry Ellis de seda azul-escura e um casaco desportivo de Verão a condizer. Tinha combinado encontrar-se na festa com um amigo próximo, mas o amigo telefonou-lhe em cima da hora a dizer que não podia estar presente, o que deixou Junpei sozinho e com tempo de sobra para tudo e mais alguma coisa. Sentou-se ao balcão do bar e ali ficou sozinho, a beber calmamente um grande copo de Bordeaux. Quando achou que estava na hora de se ir embora e começou a olhar à sua volta para se despedir do dono do restaurante, aproximou-se dele uma mulher alta trazendo na mão um cocktail qualquer vagamente em tons de roxo. O primeiro pensamento de Junpei foi que ali estava "uma mulher com excelente postura".
- Houve alguém que me disse que era escritor. Confirma-se? -perguntou ela, pousando um cotovelo em cima do balcão.
- De certa maneira, pode dizer-se que sim - respondeu Junpei.
- Escritor de certa maneira. Junpei anuiu.
- Quantos livros já publicou?
- Dois volumes de contos e uma tradução. Nenhum deles vendeu grande coisa.
Ela examinou-o de alto a baixo e sorriu com aparente satisfação.
- Em todo o caso, é o primeiro escritor a sério que conheço.
- Olhe que pode ficar desapontada - observou Junpei. - Os escritores não têm um talento especial para oferecer. Um pianista pode tocar uma melodia ao piano para si. Um pintor pode fazer-lhe um desenho. Um mágico pode executar um truque ou dois. Não há muita coisa que um escritor possa fazer.
- Sei lá, talvez me seja permitido apreciar a sua aura mística ou isso.
- Aura mística? - repetiu Junpei.
- Um brilho especial, algo que não se encontra nas pessoas vulgares.
•- Vejo-me ao espelho todas as manhãs, quando faço a barba, mas nunca reparei em nada parecido com isso. Ela fez um sorriso encantador e perguntou:
- Que tipo de histórias é que escreve?
- As pessoas gostam muito de perguntar isso, mas confesso que tenho dificuldade em olhar para as minhas histórias e classificá-las em "tipos". Não pertencem a nenhum género em especial.
Ela percorreu com o dedo o rebordo do copo de cocktail.
- Imagino que essa resposta queira dizer que escreve ficção literária?.
- Acho que se pode dizer que sim. Mas da forma como diz isso até parece que está a falar de "correntes de cartas"(1).

*1. As cartas em cadeia são mensagens que têm por objectivo levar o destinatário a enviar um x número de cópias a outras pessoas, apelando à "solidariedade" e invocando toda a espécie de azares caso a corrente seja quebrada; antigamente chegavam pela mão do carteiro, nos tempos que correm invadem as caixas de correio electrónico. (N. da T.)

Ela tornou a sorrir.
- Ter-se-á dado o caso de já ter ouvido falar no seu nome?
- Costuma ler revistas literárias?
Ela abanou rápida e energicamente a cabeça.
- Nesse caso, provavelmente não. Eu não sou assim tão conhecido quanto isso.
- Alguma vez esteve nomeado para o Prémio Akutagawa?
- Duas vezes, em cinco anos.
- Mas nunca ganhou?
Junpei sorriu mas não disse nada. Sem lhe pedir licença, ela sentou-se ao lado dele no balcão e acabou de beber o seu cocktail.
- Isso também não interessa - comentou ela. - Esses prémios não passam de uma artimanha por parte da indústria.
- Ficaria mais convencido se a ouvisse dizer isso a alguém que tivesse conquistado o prémio alguma vez.
Ela disse qual era o seu nome. Chamava-se Kirie.
- Que estranho - reparou ele -, soa como "Kyrie"(2) num serviço religioso.
Pareceu a Junpei que ela devia ser um ou dois centímetros mais alta do que ele. Usava o cabelo curto, estava bronzeada e tinha uma cabeça extraordinariamente bem feita. Vestia um casaco de linho verde-claro e uma saia de folhos que lhe dava pelo joelho. As mangas do casaco estavam enroladas até ao cotovelo. Debaixo do casaco trazia uma simples blusa de algodão realçada por um pequeno alfinete com uma turquesa. Não tinha o peito nem grande nem pequeno. A sua forma de vestir traduzia estilo e, apesar de não ter nada de afectado, o conjunto reflectia uma mulher de elevados princípios individuais. Os lábios eram carnudos, e ela tinha o hábito de os repuxar ou esticar sempre que chegava ao fim de uma frase. Este tique conferia-lhe particular vivacidade e frescura. Sempre que parava para reflectir, na sua testa formavam-se três vincos paralelos, e quando, por seu turno, acabava de pensar, os vincos desapareciam.

*2. Kyrie eleison é uma expressão grega que significa "Senhor, tende misericórdia de mim" ou "Senhor, tende piedade de mim". Kyrie é o vocativo da palavra grega kupioç (kyrios - Senhor) e significa "Ó Senhor". É originário do salmo penitencial 51 (50 na versão LXX), usado como começo de uma antiga oração cristã repetida nas liturgias de denominações católicas, luteranas, ortodoxas e anglicanas. Em contexto litúrgico, "o Kyrie" evoca essa parte da celebração. (N. da T.)

Junpei deu por si a sentir-se atraído por ela. Havia qualquer coisa nela, qualquer coisa de indefinido mas ao mesmo tempo concreto, que o deixava excitado. Sentia a adrenalina percorrer o seu corpo, direitinha ao seu coração, que começou a enviar sinais secretos na forma de pequenos sons. Dando-se de repente conta de que tinha a garganta seca, Junpei mandou vir uma Perrier a um empregado que ia a passar e, para não variar, começou a perguntar a si próprio: "Será que ela tem verdadeiro significado para mim? Será uma das duas que faltam? Ou estarei na presença do meu segundo falhanço? Devo mandá-la dar uma curva ou atirar-me de cabeça?"
- Sempre quis ser escritor? - perguntou Kirie.
- Hmm, digamos antes que nunca encontrei outra coisa melhor para fazer.
- Então o seu sonho realizou-se.
- Não tenho assim tanta certeza disso... Gostava de ser um escritor fora de série. - Ao dizer aquilo, Junpei afastou as mãos cerca de trinta centímetros. - Há uma grande distância entre uma coisa e outra.
- Toda a gente tem de começar de alguma maneira. Ainda tem muito tempo, o futuro todo à sua frente. A perfeição não se atinge assim do pé para a mão. - Depois perguntou: - Que idade tem?
Foi nessa altura que eles disseram as respectivas idades. Ser mais velha não parecia incomodá-la minimamente. A Junpei, também não. Preferia mulheres maduras a jovenzinhas. Na maioria dos casos, era mais fácil romper com uma mulher mais velha.
-Trabalha em que área? - perguntou ele.
Os lábios dela formaram uma linha perfeitamente direita, e a sua expressão ficou séria, o que acontecia pela primeira vez.
- Na sua opinião, em que área trabalho?
Junpei fez o vinho tinto dentro do copo rodar exactamente uma vez.
- Não me quer dar uma pista?
- Não. Nada de pistas. É assim tão difícil adivinhar? Vendo bem, capacidade de observação e de reflexão devem ser atributos de qualquer escritor que se preze.
- Isso não é totalmente correcto - corrigiu ele. - O trabalho de um escritor consiste em observar, observar, observar ainda e sempre, e deixar o juízo crítico para o último momento possível.
- E depois? - replicou ela. - Nesse caso, trate de observar, observar e continuar a observar e depois use a sua imaginação. Ou isso vai contra a sua ética profissional?
Junpei levantou os olhos e estudou o rosto de Kirie uma vez mais, com uma dose de concentração renovada, na esperança de encontrar algum sinal secreto. Ela olhou-o bem nos olhos, e ele olhou-a bem nos olhos.
Depois de uma pequena pausa, ele disse:
- Muito bem, é assim que eu vejo as coisas, com pouco ou nada em que me basear: estou na presença de uma especialista em qualquer coisa. Não estamos a falar de uma pessoa que exerce o seu ofício, mas sim de alguém que possui, de certa forma, um talento especial.
- Em cheio! Tem toda a razão. Não é toda a gente que consegue fazer o que eu faço. Experimente agora ser um bocadinho mais concreto.
-Tem que ver com música?
- Não.
- Moda?
- Não.
- Ténis?
- Não - disse ela.
Junpei abanou a cabeça.
- Você tem uma bela cor, está em boa forma física, os seus braços têm um certo músculo. Tudo aponta para que faça alguma actividade desportiva ao ar livre. Não me palpita que seja pessoa para ter um emprego à secretária e passar o dia dentro de portas.
Kirie puxou as mangas para cima, pousou os braços em cima do balcão e revirou-os, como se estivesse a inspeccioná-los.
- Está quase lá.
- Mas ainda não atinei com a resposta certa.
- É importante manter alguns segredos - defendeu ela. - Não quero privá-lo do prazer profissional que consiste em observar e dar largas à imaginação... Apesar disso, aqui fica uma pista. Acontece comigo o mesmo que acontece consigo.
- O mesmo como?
- Quero dizer, a minha profissão é exactamente aquela que sempre quis ter, desde pequena. Tal como no seu caso. E garanto-lhe que não foi fácil chegar onde cheguei.
- Bom - observou Junpei. - Isso é importante. O trabalho deve ser um acto de amor e não um casamento de conveniência.
- Um acto de amor - disse Kirie. As palavras pareciam tê-la impressionado. - É uma metáfora espantosa.
- Entretanto, sabe dizer-me se poderei já ter ouvido falar em si? - voltou à carga Junpei.
- Não creio - respondeu ela, abanando a cabeça. - Não sou assim tão conhecida.
- Toda a gente tem de começar de alguma maneira.
- Exactamente - disse Kirie com um sorriso. Depois ficou séria. -O meu caso é diferente do seu num aspecto. De mim, espera-se perfeição desde o início. Não são permitidos erros. Tudo ou nada. Não há meios-termos nem segundas oportunidades.
- Imagino que essa seja outra pista.
- Provavelmente.
Um empregado que andava por ali a circular com uma bandeja de taças de champanhe aproximou-se dela. Ela ficou com dois e entregou um a Junpei.
- À nossa - disse ela.
- Às respectivas áreas de especialização - disse Junpei. Tocaram os copos um no outro, produzindo um suave e secreto
tinido.
- A propósito - indagou ela -, é casado? Junpei respondeu que não com a cabeça.
- Nem eu - disse Kirie.
Nessa noite, ela ficou a dormir no quarto de Junpei. Beberam vinho - oferta do restaurante, fizeram sexo e adormeceram. Quando Junpei acordou na manhã seguinte, por volta das dez, já ela se tinha ido embora. A pequena amolgadela deixada na almofada, ao lado dele, avivou-lhe a memória. Mas também havia um bilhete: "Tenho de ir trabalhar. Entra em contacto comigo, se quiseres." Seguia-se o número do telemóvel.
Ele telefonou-lhe e foram jantar os dois a um restaurante no sábado seguinte. Beberam vinho, fizeram sexo no quarto de Junpei e foram dormir. Na manhã seguinte, ela tinha desaparecido.
Era domingo, mas a nota que deixou ficar dizia o seguinte: "Tenho de trabalhar, vou-me eclipsar." Junpei continuava sem saber rigorosamente nada acerca do trabalho dela, mas pelos vistos começava cedo. Além disso - pelo menos de vez em quando -, também trabalhava aos domingos.
Aos dois nunca faltavam temas de conversa. Ela era inteligente e dona de uma perspicácia aguda, e denotava conhecimentos sobre uma vasta gama de assuntos. Gostava de ler, se bem que menos romances e mais outro género - biografias, História, psicologia e livros virados para a ciência popular. Era impressionante a quantidade de informações que dali extraía. Houve até uma vez em que Junpei ficou de boca aberta com os conhecimentos técnicos dela na história da construção de pré-fabricados.
- Casas pré-fabricadas? Quer isso dizer que o teu trabalho está de alguma forma relacionado com construção ou arquitectura?
- Não - referiu ela. - Acontece apenas que me sinto particularmente atraída por assuntos mais práticos. Só isso.
No entanto, não deixou de ler as duas colectâneas de contos que Junpei publicara, e teceu o seguinte comentário:
- São maravilhosos, muito mais interessantes do que poderia ter imaginado. Para te dizer a verdade, estava preocupada. E se, ao ler a tua obra, chegasse à conclusão de que não gostava? O que é que havia de te dizer? Afinal, não tinha razões para estar preocupada. Gostei de tudo o que li.
- Fico contente por saber isso - confessou ele, aliviado. Também ele partilhara das mesmas angústias, quando, a pedido dela, lhe dera os livros a ler.
Contudo, não era motivo de preocupação.
- Não estou a dizer isto para te agradar - afirmou ela -, acho realmente que tu tens qualquer coisa de especial: aquela qualquer coisa de especial que faz a diferença e permite a um escritor tornar-se excepcional. Nas tuas histórias perpassa uma certa tranquilidade, mas muitas revelam-se extremamente vivas, e tens um estilo bonito, mas, acima de tudo, considero a tua escrita equilibrada. Aos meus olhos, isso é quase sempre o mais importante: na música, na ficção, na pintura. Quando me deparo com um trabalho ou, na qualidade de espectadora, observo um espectáculo onde o desequilíbrio está patente - que é o mesmo que dizer, quando dou de caras com uma obra má ou inacabada -, fico doente. Talvez por isso, vou muito pouco a concertos e leio muito poucos romances.
- Porque não queres encontrar nada desequilibrado.
- Exactamente.
- E para evitares correr esse risco, não lês romances nem vais a concertos?
- Isso mesmo.
- Há um bocado de exagero nisso, não te parece?
- Sou Balança. Não suporto coisas pouco equilibradas. Não suporto é capaz de ser... - Ela não acrescentou mais nada, visivelmente à procura da palavra certa. Incapaz de o fazer, contentou-se em suspirar umas quantas vezes. - Para o caso, não interessa - continuou. - Só queria frisar um aspecto: acredito que um dia serás capaz de escrever grandes romances. E quando tal acontecer, tornar-te-ás um romancista importante. Pode demorar o seu tempo, mas é esse o meu sentimento.
- Não é verdade, nasci para escrever contos - afirmou Junpei secamente. - Não sou um escritor de romances.
- Mesmo assim - comentou ela.
A Junpei não se lhe ofereceu dizer mais nada sobre o assunto. Permaneceu quieto, a escutar o zumbido que se escapava do aparelho de ar condicionado. Verdade seja dita, ele já tentara por mais de uma vez escrever um romance, mas parava sempre a meio caminho. Pura e simplesmente, não conseguia manter o nível de concentração necessário para escrever uma história durante um longo período de tempo. Quando arrancava, tinha plena convicção de que ia ser capaz de escrever algo de maravilhoso. O estilo revelar-se-ia de uma vivacidade a todos os títulos impressionante, e o seu futuro parecia assegurado. A história, essa fluiria quase por si própria. Porém, quanto mais avançava, mais a energia e o brilho começavam a esmorecer - a princípio de uma forma gradual, mas depois, tal como acontece inexoravelmente com a máquina de um comboio quando começa a perder velocidade e pára de vez, acabando por se extinguir.
Estavam deitados na cama. A cena passou-se no Outono. Continuavam despidos, depois de terem feito amor apaixonadamente, durante muito tempo. O ombro de Kirie estava encostado a Junpei, que tinha os braços à volta dela. Viam-se dois copos de vinho branco em cima da mesa-de-cabeceira.
- Junpei?
- A-hã.
- Estás apaixonado por outra mulher, não estás? Alguém que não consegues esquecer?
- É verdade - admitiu Junpei. - Consegues ver isso?
- Naturalmente que sim - retorquiu ela. - As mulheres têm uma espécie de sexto sentido para coisas deste género.
- Nem todas, quer-me parecer.
- Não disse que eram todas.
- Também me pareceu - sublinhou Junpei.
- Não podes vê-la?
- Existem alguns problemas.
- E esses problemas não têm possibilidade de se resolver?
- Não - afirmou Junpei, com um abanar de cabeça categórico.
- Devem ser muito profundos, não?
- Não sei até que ponto são profundos, mas que existem, existem.
Kirie bebeu um pouco de vinho.
- Eu não tenho ninguém - murmurou ela, quase como se estivesse a falar consigo mesma. - Gosto muito de ti, Junpei. Sinto por ti uma imensa ternura. Mas isso não significa que deseje ter uma relação séria contigo. Que sentimento é que isso provoca em ti? Ficas aliviado?
Junpei passou os dedos pelo cabelo. Em vez de responder à pergunta dela, fez ele uma.
- E porquê, não me queres dizer?
- Por que é que não quero ficar contigo?
- A-hã.
- Incomoda-te?
- Um bocadinho.
- Não consigo ter uma relação séria com ninguém, nos tempos que correm. Não estou a falar de ti, acontece com toda a gente - explicou ela. - Preciso de estar totalmente concentrada no que faço presentemente. Caso vivesse com alguém, que é como quem diz, se existisse um profundo elo emocional que me ligasse a alguém, poderia não ser capaz de fazer o que faço. Por isso é que desejo que as coisas fiquem como estão.
Junpei reflectiu naquilo por momentos.
- Para não seres distraída, é isso?
- Exacto.
- Se te distraísses com alguma coisa, poderias perder o tal equilíbrio, e isso revelar-se-ia um obstáculo à tua progressão na carreira.
- Exactamente.
- E a fim de não correres qualquer risco, optaste por não viver com ninguém.
Ela assentiu.
- Pelo menos enquanto for esta a minha profissão.
- E continuas sem me querer dizer qual é.
- Adivinha.
- Assaltante.
- Não - respondeu Kirie com um ar sério, que não demorou a transformar-se numa expressão divertida. - É uma ideia deliciosa, mas uma ladra não tem de se levantar cedo para ir trabalhar.
- Nesse caso, um assassino?
- Uma assassina - corrigiu ela. - Mas não. Onde é que vais desencantar essas ideias pavorosas?
- Afirmas então que o que fazes é perfeitamente legal?
- Não podia ser mais.
- Agente secreto infiltrado?
- Não. Olha, vamos deixar o assunto por hoje. Prefiro conversar acerca do teu ofício. Conta-me: o que é que estás a escrever agora? Sim, porque estás a escrever alguma coisa, certo?
- Sim, um conto.
- De que género?
- Ainda não o acabei. Decidi fazer uma pausa.
- Nesse caso, gostaria de ser o que é que aconteceu até aqui. Junpei ficou calado. Tinha por norma nunca falar com ninguém
acerca do trabalho em desenvolvimento. Podia dar azar. Se ele traduzisse a história em palavras e essas palavras saíssem da sua boca, algo de importante poderia evaporar-se no percurso, como o orvalho na manhã. Delicados matizes de sentido seriam uniformizados e correriam o risco de se transformarem num banal pano de fundo, segredos deixariam de ser segredos. No entanto, ali deitado, entretido a passar os dedos pelo cabelo curto de Kirie, Junpei sentiu-se tentado a contar-lhe. Afinal, enquanto escritor, encontrava-se em fase de bloqueio e há já alguns dias que não se mostrava capaz de fazer progredir a história.
- É uma história contada na terceira pessoa, e a principal personagem é uma mulher - começou ele. -Tem trinta e poucos anos, é médica, interna num grande hospital. Solteira, tem um caso com um cirurgião que trabalha no mesmo hospital. Ele tem quarenta e muitos anos, mulher e filhos.
Kirie deixou-se por momentos envolver pela história e pôs-se a imaginar a heroína.
- É bonita?
- Acho que sim. Muito bonita - afirmou Junpei. - Mas não tão bonita como tu.
. Kirie sorriu e beijou Junpei no pescoço. ; - Ora aí tens a resposta certa - referiu ela. ; - Dou sempre as respostas certas, quando é preciso.
- Sobretudo na cama, imagino.
- Sobretudo na cama - concordou ele. - Como eu estava a dizer, ela tira férias e vai de viagem, sozinha. Passa-se no Outono, precisamente como acontece agora. Ela fica instalada numas pequenas termas de água quente nas montanhas e, a páginas tantas, vai passear para junto de um riacho. Gosta de se dedicar à observação de pássaros, sobretudo pica-peixes. Ao aproximar-se do leito seco do riacho, uma pedra com uma estranha forma desperta a sua atenção. É preta, com laivos de vermelho, e tem uma forma familiar. Parece um rim, apercebe-se ela de imediato. É bom não esquecer que estamos a falar de uma médica. A pedra em tudo faz lembrar um rim: no tamanho, na coloração, na espessura.
- E é então que ela agarra na pedra e a leva para casa.
- Exactamente. Leva a pedra para o escritório que tem no hospital e usa-a como pesa-papéis. Tanto o peso como o tamanho são perfeitos.
- É a forma ideal, atendendo a que o sítio é um hospital.
- Exactamente - concordou Junpei. - Alguns dias mais tarde, porém, ela repara numa coisa estranha.
Em silêncio, Kirie esperou que ele retomasse o fio à meada. Junpei fez uma pausa, como se fosse sua intenção deliberada manter a interlocutora em suspenso, mas, de facto, deliberado era um termo que não podia andar mais longe da verdade. Acontecia que ele ainda não havia escrito o resto da história. Tinha sido precisamente naquele ponto que interrompera a sua narrativa. Encontrava-se numa encruzilhada, sem marcos sinalizadores de espécie alguma, a matar a cabeça e a olhar em todas as direcções para ver se encontrava uma ideia que permitisse à sua trama seguir em frente. E foi então que pensou numa maneira para dar continuidade à história.
- Todas as manhãs, ela encontra a pedra num lugar diferente. À noite, quando sai do hospital e vai para casa, deixa a pedra exactamente no mesmo sítio, em cima da secretária, como pessoa metódica que é. Porém, na manhã seguinte, vai dar com ela no assento da cadeira giratória, ou ao pé do vaso com plantas, ou no chão. A princípio, julga que fez confusão. Depois, às tantas, começa a pensar se a sua memória não andará a pregar-lhe partidas. A porta fica trancada, e mais ninguém ali pode entrar. É evidente que o segurança do turno da noite tem a chave, mas o homem trabalha no hospital há anos e nunca se atreveria a entrar no gabinete de outra pessoa. Além disso, que levaria um homem como ele a entrar no seu espaço de trabalho só para mudar de lugar uma pedra que é por ela usada como pesa-papéis? No gabinete continua tudo igual, não falta nada. nada foi mexido. A única coisa que muda é a posição da pedra. Não há maneira de ela atinar com aquilo. Qual é a tua opinião? Por que é que tu achas que a pedra se move durante a noite?
- A pedra em forma de rim tem as suas razões para que isso aconteça - retorquiu Kirie com toda a simplicidade.
- Que tipo de razões pode uma pedra em forma de rim ter?
- Pretende mexer com ela. Abaná-la aos poucos, durante um longo período de tempo.
- Muito bem. E, nesse caso, que razões tem para querer abaná-la?
- Não sei - respondeu ela. Depois acrescentou com um risinho: - Talvez esteja apenas apostada em abalar (3) o mundo em que ela se move.
- Esse foi o pior trocadilho que já ouvi - resmungou Junpei.
- Tu é que és o escritor. Logo, és tu quem decide. Eu limito-me a ouvir.
Junpei enrugou a testa. Começava a sentir a cabeça a latejar,! mesmo atrás das têmporas, devido ao esforço de concentração. Ou então tinha bebido demasiado vinho.

*3. Rock em inglês, de pedra, mas também de música rock (sem esquecer a expressão rock the world). (N. da T.)

- As ideias não surgem todas em catadupa - explicou ele. - Os meus enredos não progridem a não ser a partir do momento em que eu me sento à secretária, meto mãos à obra e construo frases. Importas-te de esperar mais um pouco? Depois desta conversa que tivemos, começo a sentir que o resto da história se vai resolver por si.
- Por mim, não há problema - disse Kirie. Esticou a mão para o copo e bebeu um gole de vinho. - Posso esperar. Devo dizer que a história começa a ficar cada vez mais interessante. Estou ansiosa por saber o que acontece à pedra em forma de rim.
Ela virou-se e fez pressão com os seios de encontro à pele dele. Depois, como quem partilha um segredo, disse:
- Sabes uma coisa, Junpei, todas as coisas neste mundo têm uma razão para fazerem o que fazem. - Junpei entretanto adormecera e não lhe pôde responder à letra. Na atmosfera da noite, as frases por ela proferidas perderam a forma de construções gramaticais e misturaram-se com o delicado aroma do vinho, penetrando nos interstícios da sua consciência. - Por exemplo, o vento tem as suas razões. Acontece, simplesmente, que nós não damos por isso, ocupados como estamos com as nossas vidas. Mas, às tantas, chega uma altura em que somos obrigados a reparar. O vento agarra-nos com um propósito bem definido em mente e abana-nos. O vento sabe tudo o que escondes dentro de ti. E não é só o vento. Tudo, incluindo a pedra. Todos eles, todos os elementos nos conhecem muito bem. De trás para a frente e da frente para trás. Nós é que só nos lembramos disso de quando em vez. A única coisa a fazer é deixarmo-nos ir. Absorver todas essas coisas e fazê-las nossas. Só então poderemos sobreviver e ganhar profundidade.
Nos cinco dias que se seguiram, Junpei quase não saiu de casa. Sentou-se à secretária e escreveu o que faltava da história sobre a pedra em forma de rim. Tal como Kirie tinha vaticinado, a pedra continua sempre a abanar a médica, aos poucos, lenta mas inexoravelmente. Certa noite, encontra-se ela a fazer sexo à pressa com o amante num quarto de hotel anónimo quando se apercebe da existência de uma massa nas costas dele e sente distintamente a forma de um rim. Reconhece a pedra em forma de rim, tem consciência de que está ali alojada. O rim é um informador secreto que ela própria introduziu no corpo do amante. Por entre os seus dedos, contorce-se como um insecto, enviando-lhe mensagens no seu código próprio. Ela entra em diálogo com o rim, regista-se uma troca de informações. Ela consegue sentir a superfície escorregadia e viscosa contra a palma da sua mão.
Com o tempo, a médica habitua-se cada vez mais à existência da pedra em forma de rim que muda de lugar todos os dias. Acaba por aceitá-la como natural. Deixa de ficar surpreendida, ao descobrir que ela trocou de sítio, durante a noite. Quando entra todas as manhãs no hospital, ao encontrar a pedra num outro sítio qualquer, pega nela e volta a colocá-la em cima da secretária. Aquele gesto tornou-se parte integrante da sua rotina. Enquanto a médica se encontra presente, a pedra não se mexe. Fica ali quieta, sem se mexer, como um gato a dormir ao sol. Só acorda e começa a mover-se depois de ela se afastar e fechar a porta atrás de si.
Ela aproveita todos os momentos livres para estender o braço e acariciar a superfície da pedra suave e escura. À medida que o tempo vai passando, torna-se cada vez mais difícil à médica tirar os olhos da pedra. Como se estivesse hipnotizada, perde gradualmente o interesse em tudo o mais. Deixa de conseguir ler livros. Deixa de ir ao ginásio. Reserva os escassos poderes de concentração que ainda lhe restam para ver os seus doentes, mas, no que diz respeito às restantes tarefas, leva-as por diante graças à força do hábito e a uma certa dose de improviso. Perde o interesse em conversar com os colegas. Deixa de ligar ao seu próprio aspecto. Perde o apetite. Até mesmo os abraços do amante constituem uma fonte de aborrecimento. Quando não tem mais ninguém à volta, fala com a pedra em voz baixa, e escuta o discurso sem palavras que a pedra lhe devolve, à imagem do modo como as pessoas solitárias conversam com um cão ou um gato. A escura pedra em forma de rim controla grande parte da sua vida.
Naturalmente que a pedra não é um objecto vindo de fora. À medida que a narrativa progride, Junpei apercebe-se desse facto. Alguma coisa no interior da médica activa a escura pedra em forma de rim, impelindo-a a tomar medidas concretas. Por isso continua sempre a enviar sinais - sinais que se revelam através dos movimentos nocturnos da pedra.
Enquanto escreve, Junpei pensa em Kirie. Pressente que ela (ou algo dentro dela) faz avançar a história; nunca foi sua intenção escrever algo tão surreal e divorciado da realidade. A história que Junpei tinha vagamente em mente antes de se lançar ao trabalho era mais tranquila, uma abordagem de pendor psicológico. No fio daquela outra narrativa, não havia lugar para pedras que andavam a trocar de sítio sozinhas.
Junpei imaginava que a médica cortaria relações com o cirurgião casado. Com o tempo, poderia até muito bem ficar a odiá-lo. Era provavelmente o que no seu íntimo desejava, sem ter consciência disso.
Assim que o resto da história se lhe tornara evidente, passá-la para o papel revelou-se tarefa relativamente fácil. Junpei sentou-se ao computador e escreveu o resto a um ritmo que era, para ele, verdadeiramente acelerado, enquanto escutava as Lieder de Mahler com o volume no mínimo. A médica toma a decisão de se separar do cirurgião que era seu amante. "Não posso continuar a ver-te", diz-lhe ela. "Não podemos ao menos falar sobre o assunto?", pergunta ele. "Não", diz ela com firmeza, "isso é impossível." No primeiro dia livre que tem, ela apanha o ferry no porto de Tóquio e, durante a viagem, lança a pedra em forma de rim ao mar. A pedra afunda-se nas águas profundas e negras do oceano, até atingir o coração da Terra. Ela decide começar de novo. Depois de se ter desfeito da pedra, sente-se invulgarmente leve.
No dia seguinte, contudo, ao regressar ao hospital, encontra a pedra em cima da secretária, à espera dela. Está precisamente no sítio onde pertence, escura e com o formato de um rim, tal como dantes.
Mal acabou de escrever a história, Junpei telefonou a Kirie, que por certo quereria ler a obra, entretanto acabada e que, de certa maneira, tinha sido inspirada por ela. Porém, não conseguiu ligação. "A sua chamada não pode ser atendida", repetia a voz electrónica. "Por favor, confirme o número e tente mais tarde." Junpei continuou a tentar vezes sem conta, mas o resultado era sempre o mesmo. "Ela deve ter qualquer problema técnico com o telefone", pensou ele.
Junpei deixou-se ficar por casa, à espera que Kirie entrasse em contacto com ele, mas isso nunca se verificou. Passou um mês. Depois esse mês transformou-se em dois meses, em três meses. Veio o Inverno e começou um novo ano. A história foi publicada no número de Fevereiro de uma revista literária. Num anúncio a chamar a atenção para a dita revista, aparecia o nome de Junpei e o título "A Pedra em Forma de Rim que Mudava de Lugar Todos os Dias". Podia ser que Kirie visse a referência no jornal e isso a levasse a comprar a revista e, uma vez lida a história, a ligar para ele dando-lhe conta das suas impressões - pelo menos era o que ele esperava. Contudo, tudo o que chegou até ele foi o silêncio, camada em cima de camada.
A dor que Junpei sentiu quando Kirie desapareceu da sua vida revelou-se mais intensa do que ele imaginara. Para trás, ela deixara ficar um vazio, e esse vazio perturbou-o verdadeiramente. Ao longo do dia, por mais de uma vez ele deu por si a pensar: "Se ao menos ela aqui estivesse." Tinha saudades do sorriso dela, das palavras que se desenhavam nos seus lábios, do contacto com a sua pele quando se abraçavam. Nem na sua música favorita encontrava qualquer consolo, da mesma forma que a chegada de um novo livro dos autores da sua eleição não ajudava a minorar a tristeza. Sentia que tudo estava longe e distante. "Se calhar era Kirie a segunda mulher", pensou Junpei.
O próximo encontro de Junpei com Kirie ocorre depois de almoço, num dos primeiros dias de Primavera - se bem que talvez não seja o mais correcto chamar àquilo um "encontro". Ele ouviu a voz dela.
Ia de táxi e encontrava-se parado no meio do trânsito. O jovem motorista estava a ouvir uma estação de rádio em FM. De repente, a voz de Kirie chegou-lhe aos ouvidos. A princípio, Junpei não tinha a certeza de ser a voz de Kirie. Limitou-se a pensar que se tratava de uma voz parecida com a dela. Porém, à medida que a emissão prosseguia, mais parecia a voz de Kirie, a maneira de ela falar - a mesma entoação subtil, o mesmo estilo descontraído, a maneira muito própria que ela tinha de fazer uma pausa, aqui e ali.
Junpei perguntou ao motorista se podia aumentar o volume.
- Claro que sim - respondeu o outro.
Tratava-se de uma entrevista feita em directo do estúdio. A entre-vistadora estava a fazer uma pergunta: "... quer então dizer que sempre gostou de sítios altos, desde pequena?"
"É um facto", respondeu Kirie, ou alguém com uma voz igualzinha à dela. "Desde que me lembro, sempre gostei das alturas. Quanto mais alto, mais em paz comigo mesmo me sentia. Estava sempre a dar cabo da cabeça aos meus pais, para ver se eles me levavam. Era uma criaturinha muito estranha", disse a voz ao mesmo tempo que soltava uma risada.
"Assim se explica que tenha ido parar ao trabalho que actualmente desempenha."
"Comecei por trabalhar como analista numa empresa de seguros. Mas soube logo que aquilo não era para mim. Passados três anos, abandonei a firma e a primeira coisa que fiz foi arranjar emprego a lavar janelas em edifícios altos. O que eu queria era ser um daqueles operários que se movimentam lá no alto, consertam toda a espécie de torres e chaminés altas, mas trata-se de um mundo machista, onde não deixam entrar mulheres com essa facilidade toda. Por isso, comecei por aceitar trabalho como lavadora de janelas."
"Foi um grande salto - de analista de mercados para lavadora de janelas!"
"Para ser franca, lavar janelas revelou-se muito menos stressante para mim: a haver alguma coisa em queda, somos nós, e não as acções." Mais risos.
"Diga-me uma coisa, quando diz "lavadora de janelas", calculo que se esteja a referir àquelas pessoas que andam para cima e para baixo, numa plataforma, na parte lateral dos grandes edifícios."
"Exactamente. É evidente que estamos presos, mas há sítios onde não conseguimos chegar se não desprendermos o cabo. Isso não me preocupava rigorosamente nada. Por mais alto que me encontrasse, medo foi coisa que nunca senti. Isso fez de mim uma funcionária preciosa."
"Imagino que goste de fazer escalada e subir às montanhas?"
"As montanhas interessam-me muito pouco. Tentei escalar montanhas duas ou três vezes, mas confesso que não me diz nada. As montanhas não me atraem, por mais altas que sejam. A única coisa que me interessa são as estruturas de muitos andares erguidas pelos homens e construídas a partir do chão. Não me pergunte porquê."
"Actualmente encontra-se à frente dos destinos de uma empresa especializada em edifícios muito altos e arranha-céus, com sede na zona metropolitana de Tóquio."
"Correcto", disse ela. "Consegui poupar algum dinheiro e fundei a minha própria empresa, há coisa de seis anos. Claro que ainda continuo a trabalhar no exterior, com os operários, mas basicamente pode dizer-se que dirijo o negócio. Não tenho de receber ordens de ninguém, além de que posso ser eu a ditar as regras. Dá muito jeito."
"Quer então dizer que pode soltar o cabo quando lhe dá na real gana?"
"Numa palavra, é isso." (Risos.)
"Não gosta mesmo de se sentir amarrada, pois não?"
"É um facto. Tenho a sensação de não ser eu. É como se estivesse a usar espartilho apertado." (Risos.)
"Gosta realmente de sítios altos, não é verdade?"
"Gosto. As alturas são a minha vocação. Não me consigo imaginar a desempenhar outro ofício. O nosso trabalho deve ser um acto de amor, e não um casamento de conveniência."
"E agora está na altura de ouvirmos uma canção", interrompeu a menina da rádio. "Vamos ouvir James Taylor no tema "Up on the Roof". Voltaremos a conversar sobre artistas funâmbulos logo a seguir."
Enquanto estava a passar a canção, Junpei recostou-se no assento e perguntou ao motorista: "O que é que esta mulher faz na vida?"
"Ela diz que põe cordas entre edifícios muito altos e atravessa de um lado para o outro", explicou o motorista. "Com a ajuda de uma grande vara na mão, a fim de manter o equilíbrio. É uma espécie de artista, pelos vistos. Pela parte que me toca, fico logo em pânico só de pensar em subir num daqueles elevadores de vidro. No caso dela, parece que esse é que é o gozo. Deve ter um parafuso a menos. Além de que também já não deve ser nova."
"Diz-me você que é a profissão dela?", indagou Junpei. Ao dizer aquilo, deu-se conta do tom seco da sua voz, como se não fosse ele a controlá-la. Parecia que a voz de outra pessoa tinha penetrado por uma fenda no tejadilho do táxi.
"Isso. Provavelmente consegue arranjar uma data de patrocinadores e lá vai dando os seus espectáculos. Pelos vistos, acabou de fazer um numa famosa catedral da Alemanha. Diz ela que ainda quer subir a edifícios mais altos, mas que não consegue obter a devida autorização. Porque a uma altura daquelas, a rede de protecção já não serve de nada. Ela esforça-se por ir melhorando o seu recorde, e é por isso que escolhe sempre edifícios cada vez mais altos. Como é óbvio, não é disso que vive, por isso... bom, o senhor ouviu quando ela disse que era dona de uma empresa de limpeza industrial de vidros. Aquela não ia trabalhar para um circo nem mesmo que a deixassem fazer malabarismos na corda. Só lhe interessam os edifícios muito altos. Uma tipa esquisita."
"O mais espantoso de tudo é que, pelo facto de andarmos lá por cima, isso nos transforma enquanto seres humanos", declarou Kirie à entrevistadora. "Uma pessoa muda, ou, melhor dizendo, vê-se obrigada a mudar, se quiser sobreviver. Quando me encontro num lugar alto, só existo eu e o vento. Nada mais existe. O vento envolve-me, abana-me. Compreendo quem sou. Ao mesmo tempo, compreendo o vento. Aceitamo-nos um ao outro e decidimos viver juntos. Apenas eu e o vento: não há espaço para mais ninguém. É esse o momento de que eu mais gosto. Não, não tenho medo. Mal pouso o pé nas alturas e me abandono por completo a esse estado de concentração, o medo desaparece por completo. Estamos ali, sozinhos no nosso vazio aconchegante. Esse é o momento que eu adoro acima de tudo."
Kirie falava com uma segurança impressionante. Junpei não tinha a certeza se a entrevistadora compreendia as palavras dela. Quando a conversa chegou ao fim, Junpei mandou parar o táxi e apeou-se, percorrendo a pé o resto do caminho até ao seu destino. Volta e meia, punha-se a olhar para um outro edifício mais alto e observava as nuvens que passavam. Aos seus olhos, tornara-se claro que ninguém se podia interpor entre ela e o vento, e sentiu um violento acesso de ciúmes. Mas ciúmes de quê? Do vento? Quem se lembraria alguma vez de ter ciúmes do vento?
Durante meses a fio, Junpei esperou por uma chamada de Kirie. Gostaria muito de a ver e de conversar com ela a propósito de uma quantidade de coisas, incluindo a pedra em forma de rim. A chamada, porém, nunca veio, e os telefonemas que ele tentava fazer experimentavam sempre dificuldade em "obter ligação". Quando chegou o Verão, ele perdeu a esperança que ainda tinha e desistiu de vez. Era óbvio que ela não tinha qualquer intenção de voltar a vê-lo. E foi assim que a relação chegou ao fim calmamente, sem discussões nem gritarias - da mesma forma que tinham terminado as relações dele com tantas outras mulheres. Chegando a uma determinada altura, as chamadas telefónicas deixam de acontecer, e acaba tudo, naturalmente.
"Devo acrescentá-la à minha lista? Poderei considerá-la uma das três mulheres com verdadeiro significado?" Junpei ainda viveu atormentado durante algum tempo com estas questões, incapaz de chegar a uma conclusão. "Vou esperar mais seis meses", pensou ele. "Depois logo vejo."
Durante esses seis meses, trabalhou na sua escrita com grande afinco e produziu um número apreciável de contos. Sempre que se sentava à secretária, aplicando-se na tarefa de polir o estilo, pensava: "Neste momento, Kirie deve estar algures num lugar alto, em companhia do vento. E eu, eu aqui estou, sozinho, sentado à minha escrivaninha, a escrever as minhas histórias, ao passo que ela se encontra sozinha, mais alto do que toda a gente - e sem nada que a prenda à terra. Mal ela atinge aquele estado de concentração, o medo desaparece por completo: "Só eu e o vento"." Junpei costumava pensar muitas vezes nas palavras dela e, às tantas, tornou-se claro aos olhos dele que acabara por sentir algo de especial por ela, algo que nunca sentira por nenhuma outra mulher. Tratava-se de uma emoção profunda, que possuía contornos distintos e um peso real. Apesar de tudo, Junpei ainda hesitava em dar nome a esse sentimento. Em todo o caso, era um sentimento que não podia ser objecto de troca. Mesmo que ele nunca mais tornasse a ver Kirie, aquele sentimento ficaria para sempre consigo, gravado no seu corpo (talvez na medula dos ossos). Sabia que continuaria a sentir na pele a ausência dela para sempre.
Com o ano a chegar ao fim, Junpei tomou uma decisão. Passaria a considerá-la como sendo a número dois. Era uma das mulheres que tinham tido "verdadeiro significado" para ele. Número dois, riscado. Só faltava uma, mas a partir dali ele já não sentia medo. "Os números não são o que importa. A contagem decrescente não tem significado." A partir dali, ele sabia: "O que importa é tomar a decisão de aceitar a outra pessoa totalmente, do fundo do coração. E tem sempre de acontecer como se fosse a primeira e a última vez."
Uma manhã, a médica repara que a pedra escura em forma de rim tinha desaparecido de cima da sua secretária. E ela sabe: para nunca mais voltar.


O MACACO DE SHINAGAWA


Volta e meia tinha dificuldade em recordar o seu próprio nome. Quase sempre acontecia quando havia alguém que lhe perguntava como é que ela se chamava. Podia acontecer numa boutique, por exemplo, quando estivesse a mandar fazer uma alteração nas mangas de um vestido, na altura em que a empregada lhe perguntasse: "E o seu nome, minha senhora, qual é?" Ou então podia dar-se o caso de estar no seu local de trabalho, ao telefone, e a pessoa do lado de lá querer saber o nome e ela ficar completamente em branco. A única maneira de se lembrar quem era implicava tirar para fora da carteira a carta de condução e verificar os dados, o que tinha grandes probabilidades de parecer um tudo-nada estranho aos olhos do seu interlocutor. Calhando estar ao telefone, o embaraçoso momento de silêncio enquanto ela vasculhava a mala de mão tinha, como não podia deixar de ser, o condão de levar a pessoa que se encontrava do outro lado a interrogar-se sobre que diabo estaria a acontecer.
Quando era ela que tomava a iniciativa de referir o seu nome, nada disto acontecia. Desde que ela soubesse de antemão o que aí vinha, nunca havia problema com a sua memória. Agora, imaginando que estava com pressa, ou que alguém lhe perguntava o nome do pé para a mão, era como se uma grande onda se abatesse sobre ela, deixando a sua mente vazia. Quanto mais se esforçava por recuperar a memória, mais o espaço em branco alastrava e nessa altura era quando ela não conseguia evocar o seu nome por nada deste mundo.
O esquecimento limitava-se ao seu próprio nome. De tudo o
resto, lembrava-se perfeitamente. Nunca se esquecia do nome dos que a rodeavam. Nem da sua morada, número de telefone, data de nascimento, número do passaporte. Conseguia dizer de cor o número de telefone dos seus amigos mais próximos, bem como dos clientes mais importantes. Sempre tivera uma memória razoável - era tão-só o seu próprio nome que lhe escapava. O problema começara a notar-se há coisa de um ano, desde a primeira vez que lhe acontecera uma coisa do género.
O nome de casada era Mizuki Ando, o de solteira Ozawa(1). Não se podia dizer que nenhum deles fosse especialmente original ou fascinante, o que não significa que isso sirva, de alguma forma, para explicar por que razão, no meio da sua luta diária, ela deixava de se conseguir lembrar do nome que era o seu.
Tinha passado a ser Mizuki Ando na Primavera de há três anos, ao casar-se com um homem chamado Takashi Ando. De início, não havia maneira de se habituar ao seu novo nome. Estranhava a forma como as letras se alinhavam no papel e a sonoridade do nome aos seus ouvidos. Mas depois, de tanto o repetir, e de o assinar vezes sem conta, aos poucos começou a achar que, afinal, não era assim tão mau como isso. Comparado com outras hipóteses - Mizuki Mizuki, por.puro exemplo, Mizuki Miki ou algo do género -, não se podia dizer que Mizuki Ando fosse um nome feio de todo. A coisa demorou o seu tempo, mas ela acabou por se sentir confortável com o seu novo nome de casada.
Eis senão quando, um ano antes, aquele nome começara a falhar-lhe. Primeiro, acontecia uma vez por mês ou isso, mas à medida que o tempo passava começou a tornar-se mais frequente. Presentemente, acontecia pelo menos uma vez por semana. A partir do momento que o nome de "Mizuki Ando" começou a fugir-lhe da memória, ela ficou sozinha no mundo, uma maria apagada, uma mulher sem nome. Desde que tivesse a bolsa à mão, ainda a coisa passava - bastava-lhe sacar da carta de condução para se lembrar de quem era. Caso algum

*1. Os nomes e apelidos japoneses costumam ser escritos em kanji (caracteres chineses). Porém, alguns nomes femininos podem também ser escritos em katakana, que, juntamente com o silabário hiragana e os caracteres chineses, compõem a escrita japonesa. (N. da T.)

dia perdesse a mala, então é que ficaria sem uma pista. Não chegaria ao extremo de passar a ser uma não identidade assumida, obviamente - ficar sem o nome durante um tempo não negava o facto de continuar a existir, e é bom não esquecer que ela ainda se lembrava da morada e do número de telefone. Nem tão-pouco a situação tinha alguma coisa que ver com os filmes em que apareciam no enredo casos de amnésia total. Porém, isso não impedia a chatice que era uma pessoa - no caso, ela - esquecer-se do seu próprio nome. Uma vida sem nome era como um sonho do qual jamais se acorda. Isto era como ela analisava o problema.
Mizuki dirigiu-se a uma joalharia, comprou uma pulseira vulgar de Lineu e mandou gravar o nome dela: Mizuki (Ozawa) Ando. Nada de morada nem de número de telefone. Apenas o nome. "Tenho a sensação de ser um gato ou um cão", confessava ela, com um suspiro. Certificava-se de nunca sair de casa sem a dita pulseira. Caso se esquecesse do seu nome, bastava-lhe olhar para a pulseira como quem não quer a coisa. Acabavam-se o remexer frenético no interior da mala, bem como os olhares estranhos que as pessoas lhe lançavam.
Nada disto, porém, ela confiou ao marido. Sabia que ele se limitaria a dizer que só vinha provar que ela se sentia infeliz com a vida a dois. Era um homem muito dado a teorias, que aplicava a lógica a tudo e mais alguma coisa. Não fazia a coisa por mal: era esse o feitio dele, sempre pronto a exercitar o pensamento analítico. E, verdade seja dita, aquele modo de entender o mundo não era a especialidade dela. Para além disso, era um homem que gostava de falar e de ouvir, e quando pegava num tema tão depressa não saía dali. Essa a razão pela qual ela se calou muito bem caladinha.
Isso não a impedia de achar que as teorias do marido - ou acharia, caso ele tivesse sabido de alguma coisa - eram muitas vezes descabidas. Atenção, não quer isto dizer que ela estivesse descontente ou preocupada com o seu casamento. Tirando o facto de o marido ser por vezes um indivíduo excessivamente cerebral, ela não tinha nada a apontar-lhe, da mesma maneira que não tinha qualquer razão de queixa dos sogros. O sogro era médico e dirigia uma pequena clínica na cidade de Sakata, no extremo norte da prefeitura de Yama-gata. Tanto do sogro como da sogra se podia dizer que eram porventura um bocadinho conservadores para o gosto dela, mas como o marido era o segundo filho, regra geral não interferiam nem com a vida de Mizuki nem com a do marido. Nascida e criada em Nagoya, Mizuki foi-se um bocado abaixo ao sentir na pele a intensidade dos Invernos gélidos em Sakata, mas, depois de ter feito uma ou duas viagens por ano até lá, aprendeu a gostar do sítio. Ao fim de dois anos de casamento, ela e o marido contraíram um empréstimo e compraram um apartamento num edifício acabado de construir, em Shinagawa. O marido, com 30 anos acabados de fazer, trabalhava num laboratório farmacêutico. Quanto a Mizuki, tinha 26 anos e estava empregada num escritório da Honda. Atendia o telefone, recebia os clientes à entrada e acompanhava-os à sala de espera, servia café, fazia fotocópias quando era preciso, encarregava-se do arquivo e inseria os dados actualizados no computador.
Tinha sido o tio de Mizuki, um dos administradores da firma, quem lhe arranjara emprego depois de ela ter acabado a licenciatura numa universidade feminina em Tóquio. Não se podia dizer que o trabalho em si fosse particularmente excitante, mas tinha uma certa responsabilidade sobre os seus ombros e era bem paga. As suas funções não incluíam a venda de automóveis, mas quando os vendedores andavam por fora e aparecia algum cliente, ocupava-se ela do assunto, respondia às perguntas que lhe eram feitas e, diga-se de passagem, desenvencilhava-se às mil maravilhas. Aprendeu os ossos do ofício através da observação directa e rapidamente começou a dominar toda a informação técnica necessária, tornando-se uma verdadeira especialista na arte de vender carros. Sabia de cor os respectivos modelos, o consumo de gasolina por quilómetro de cada modelo presente no salão de vendas e convencia qualquer pessoa, por exemplo, de que um Odissey tinha menos o comportamento de uma carrinha na estrada e parecia-se mais com um modelo mais utilitário. Mizuki falava bem e o seu sorriso cativante tinha o condão de deixar os clientes à vontade. Acresce que conseguia captar a personalidade de cada comprador, utilizando depois esse dom para introduzir subtis modificações no seu discurso. Com grande pena dela, contudo, não estava autorizada a fazer descontos, nem a negociar comissões; daí resultava que, mesmo com o potencial comprador prestes a assinar na linha pontilhada, ela acabava muitas vezes por ter de entregar o negócio aos membros da equipare vendas. Apesar de ter sido ela a fazer o grosso do trabalho, entrava em cena o vendedor e arrebanhava a comissão. A única recompensa que ela poderia esperar era um ou outro jantar oferecido pelo vendedor para o lado de quem tinham soprado os ventos da sorte.
Volta e meia, punha-se a pensar que, se a deixassem ocupar-se das vendas, o negócio melhoraria a olhos vistos. Se ao menos aqueles jovens vendedores, acabadinhos de sair da universidade, se aplicassem mais, pensava ela, venderiam o dobro dos carros. A verdade, porém, é que ninguém lhe dizia que ela era mal empregada a fazer o trabalho burocrático e que todos ganhariam caso fosse transferida para as vendas. É esse o sistema que vigora na maior parte das empresas. O departamento de vendas é uma coisa, o pessoal administrativo outra e, excepto com raríssimas excepções, as fronteiras não se destinam a ser ultrapassadas. Por outro lado, ela não era ambiciosa ao ponto de querer triunfar na vida e fazer carreira a todo o custo. Preferia mil vezes cumprir o seu horário das nove às cinco, tirar os diazinhos de férias que lhe eram devidos e ficar com tempo livre para ela.
No emprego, Mizuki continuou sempre a usar o nome de solteira. A mudança oficial implicaria que todos os dados relativos à sua pessoa inseridos no sistema informativo tivessem de ser alterados, tarefa essa de que teria de ser ela própria a ocupar-se. Como dava muita chatice, foi adiando, adiando, até que chegou um dia em que decidiu continuar a manter o nome de solteira. Para efeitos de impostos, estava inscrita como mulher casada, apenas o nome não conhecera alteração. Tinha consciência de que não era correcto proceder daquela forma, mas como no local de trabalho ninguém disse nada (estavam todos demasiado ocupados para se preocuparem com pormenores de lana-caprina), continuou a ser conhecida por Mizuki Ozawa. Se alguém se desse ao trabalho de proceder a todas as mudanças necessárias, nesse caso ela teria todo o gosto de adoptar o nome de Mizuki Andro. Era esse o nome que continuava a figurar nos cartões-de-visita, na placa identificativa que trazia ao peito, no cartão de ponto. Toda a gente lhe chamava Ozawa-san, Ozawa-kun, Mizuki-san ou até o mais familiar nome de Mizuki-chan.(2)

*2. Acrescentado ao nome, san significa senhor ou senhora; no caso dos bebés e das raparigas, usa-se chon, e no dos rapazes, kun. (N. da T.)

O marido estava a par do facto de ela continuar a responder pelo nome de solteira no emprego (até porque lhe telefonava de vez em quando) e não parecia ter qualquer problema com isso. Aos olhos dele, ela usava o nome que usava por uma questão de conveniência. Desde que ele conseguisse apreender a lógica da coisa, não havia problema. Nessa medida, não se pode dizer que fosse uma pessoa complicada.
A páginas tantas, Mizuki começou a perguntar a si própria se os seus esquecimentos não seriam sintoma de uma qualquer temível doença. Alzheimer, por exemplo. O mundo estava cheio de doenças desconhecidas, complicadas e fatais. Só relativamente há pouco tempo é que ela ficara a saber da existência de doenças como a miastenia e a doença de Huntington. Sem esquecer que devia haver uma quantidade de outras de que ela nem sequer ouvira falar. E algumas dessas maleitas até apresentavam de início sintomas muito ligeiros. Sintomas ligeiros e invulgares, como... uma pessoa esquecer-se do seu nome? A partir do momento em que começou a ter pensamentos destes, aumentaram as suas preocupações e Mizuki temeu que alguma doença desconhecida estivesse a espalhar-se pelo seu corpo.
Pegou nela e foi a um grande hospital e explicou os sintomas. Acontece, porém, que o jovem médico que estava de serviço - tão pálido e com um ar tão extenuado que dir-se-ia ser ele o paciente -não a levou a sério. "Para além do nome, costuma esquecer-se de mais alguma coisa?", perguntou-lhe ele. Ao que ela respondeu que não, que era só do nome. "Hmm, nesse caso parece-me mais um problema de ordem psiquiátrica", concluiu ele, numa voz que não traduzia o mínimo interesse nem ponta de simpatia. "Se vir que começa a esquecer-se de outras coisas para além do seu nome, venha ter connosco. Nessa altura logo faremos alguns exames." Parecia estar a querer dizer que o hospital estava cheio de pessoas com doenças verdadeiramente graves, mais graves do que a dela. Uma pessoa esquecer-se do seu nome de quando em quando, que importância é que isso tem?
Certo dia, no boletim informativo da prefeitura distribuído com o correio, ela leu uma notícia sobre a inauguração de um centro de aconselhamento local. Tratava-se de um artigo pequeno, e normalmente ela nem sequer teria reparado nele. O centro estaria a funcionar duas vezes por mês e contaria com os serviços de um psicólogo que, a preços muito aceitáveis, prestaria apoio individual. Toda e qualquer pessoa residente na zona de Shinagawa que tivesse mais de dezoito anos poderia recorrer àquele serviço ao abrigo do mais rigoroso sigilo, dizia ainda o artigo. Apesar de ter as suas dúvidas e de não saber em que medida um centro de aconselhamento apoiado pela prefeitura a ajudaria a resolver o seu problema, decidiu experimentar. Em todo o caso, mal não faria. A empresa de venda de carros tinha sempre muito trabalho aos fins-de-semana, mas não lhe seria difícil tirar um ou outro dia de semana, pelo que a perspectiva de ajustar o seu horário de trabalho por forma a encaixar no horário de funcionamento do centro de aconselhamento nem sequer era complicada, o que se revelaria impensável para a maioria dos trabalhadores normais. Uma sessão de trinta minutos custava a modesta quantia de dois mil ienes, perfeitamente acessível para ela. Marcou uma consulta para a uma da tarde da quarta-feira seguinte.
Quando chegou ao centro de aconselhamento, situado no terceiro andar do edifício da prefeitura, Mizuki descobriu que era a única. "Este programa de aconselhamento começou de um momento para o outro", explicou a recepcionista, "e por isso são poucos os que estão devidamente informados."
A conselheira, que dava pelo nome deTetsuko Sakaki, era uma mulher cordial, dos seus quarenta e muitos, baixa e ligeiramente forte. Usava o cabelo curto, pintado de castanho-claro, tinha um rosto redondo e um sorriso simpático. Vestia um saia-e-casaco de Verão, de tons claros, uma blusa de seda branca, um colar de pérolas artificiais e calçava sapatos de saltos baixos. À primeira vista, parecia-se mais com a boa alma da vizinha do lado do que com uma terapeuta.
- Sabe, o meu marido é funcionário da prefeitura - avançou ela, emprestando um tom caloroso ao acto de apresentação formal. -Trabalha como chefe de secção do departamento de obras públicas. Foi assim que obtivemos apoio junto da prefeitura e pudemos abrir este gabinete. Para dizer a verdade, a senhora é a nossa primeira cliente, e alegra-nos muito que tenha vindo. Hoje não tenho mais nenhuma consulta, por isso podemos dar-nos ao luxo de ter uma boa conversa sem nos preocuparmos com o tempo. - A mulher falava extremamente devagar; de resto, poder-se-ia dizer que tudo nela era tranquilidade e lentamente deliberado.
- Muito gosto em conhecê-la - cumprimentou Mizuki. No seu íntimo, porém, tinha as suas dúvidas de que as competências da mulher lhe fossem de grande utilidade.
- Sou licenciada e tenho vasta experiência, por esse aspecto pode ficar descansada. Não se preocupe, deixe que seja eu a tratar de tudo - acrescentou ela, como se tivesse lido os pensamentos de Mizuki.
A Sr.a Sakaki estava atrás de uma secretária vulgar, daquelas metálicas. Por sua vez, Mizuki escolhera sentar-se num pequeno e velho sofá que mais parecia ter saído directamente da arrecadação. As molas estavam gastas e o cheiro a bafio fez-lhe cócegas no nariz.
- Estava esperançada em arranjar um bonito sofá, daqueles que dão bom nome ao gabinete de qualquer terapeuta que se preze, mas por enquanto temos de nos contentar com este. É preciso não esquecer que estamos a trabalhar com a autarquia, por isso há que contar com o peso da burocracia. Um sítio horrível. Prometo que para a próxima teremos alguma coisa para lhe oferecer. Até lá, peço-lhe que tenha paciência.
Mizuki recostou-se no velho e precário sofá e começou a explicar que andava cada vez com mais frequência a esquecer-se do nome. A Sr.a Sakaki escutava atentamente, sem interromper nem relevar surpresa, limitando-se a acenar com a cabeça. Quando muito, terá feito um ou outro som destinado a mostrar que estava atenta às palavras de Mizuki. Tirando uma ligeira ruga na testa, dando a ideia de que estaria a pensar em qualquer coisa, o seu rosto permaneceu imperturbável, e o seu sorriso discreto, que fazia lembrar uma Lua de Primavera ao anoitecer, nunca desapareceu.
- Foi uma excelente ideia, mandar gravar o seu nome na pulseira - observou ela depois de Mizuki ter acabado. - Agrada-me a maneira como lidou com isso. O mais importante é arranjar uma solução prática, reduzir ao mínimo os inconvenientes. É muito melhor abordar a questão de modo realista, em vez de se deixar consumir pelo sentimento de culpa, meter tudo para dentro ou ficar de cabeça perdida. Vejo que é uma mulher inteligente. E a pulseira, além disso, é muito bonita e fica-lhe a matar.
- Acha que o facto de uma pessoa se esquecer do seu nome pode ser o sinal de que tem alguma doença grave? Há outros casos assim? - perguntou Mizuki.
- Não creio que haja alguma doença com esse tipo de sintomas iniciais tão bem definidos - afirmou a Sr.a Sakaki. - Contudo, preocupa-me que esses sintomas se tenham vindo a agravar no decorrer do último ano, ou que a sua falta de memória possa eventualmente alastrar a outras áreas. Por isso, vamos devagarinho, um passo de cada vez, a fim de se descobrir a origem do problema. Uma vez que trabalha fora de casa, imagino que o facto de não se lembrar de repente do seu nome possa dar azo a toda a espécie de situações menos agradáveis.
A Sr.a Sakaki começou por fazer várias perguntas básicas acerca da vida actual de Mizuki. Estava casada há quanto tempo? Que género de emprego tinha? Que tal era a saúde? A seguir passou às questões que diziam respeito à infância e à família, aos tempos da escola. O que lhe dava prazer. O que lhe desagradava. Mizuki esforçou-se por responder a cada uma das perguntinhas tão honestamente, tão espontaneamente e tão rigorosamente quanto possível.
Mizuki tinha sido criada numa família normalíssima, e crescera na companhia dos pais e de uma irmã mais velha. O pai trabalhava para uma grande companhia de seguros e, apesar de não andarem propriamente a nadar em dinheiro, ela não se lembrava de terem passado dificuldades. O pai era um homem sério, ao passo que a mãe era um tanto ou quanto frágil e um bocado chata. A irmã era sempre a primeira da classe, isto apesar de, na perspectiva de Mizuki, ser um bocado oca e vazia e nem sempre se poder confiar nela. Ainda assim, Mizuki nunca tinha tido problemas com a família e sempre se dera bem com toda a gente. Nunca se haviam registado grandes discussões. Pela parte que lhe tocava, Mizuki sempre fora uma criança que não dava nas vistas. Extremamente saudável, nunca ficava doente, o que não significava que fosse particularmente atlética - que não era. O seu aspecto não lhe causava complexos, se bem que ninguém lhe dissesse que era bonita. Mizuki tinha-se na conta de uma rapariga bastante inteligente, ainda que nunca se tenha destacado em nenhum campo específico. Tinha notas razoáveis (no caso de se ir à procura do nome dela na pauta afixada, era mais rápido começar por cima do que por baixo). Contava com duas ou três amigas do peito quando andava a estudar, mas todas elas se tinham mudado depois de casarem e nos dias que corriam pouco ou nenhum contacto ainda existia.
Não se podia dizer que ela tivesse grandes razões de queixa da sua vida de mulher casada. Nos primeiros tempos, tanto ela como o marido tinham cometido a sua quota-parte de erros previsíveis, mas, com o andar da carruagem, tinham conseguido pôr a coisa nos eixos e chegado a um bom entendimento. Naturalmente que o marido não era perfeito (basta dizer que, a juntar ao seu pendor analítico, não possuía qualquer noção do que era a moda), mas, ainda assim, tinha bons pontos a seu favor - era um homem bondoso, responsável, limpo, tinha boa boca e quase nunca se queixava. Parecia entender-se bem com toda a gente no emprego, tanto colegas como superiores hierárquicos. Como é óbvio, nem sempre as coisas corriam bem ao nível da empresa, consequência inevitável de trabalhar todos os dias com as mesmas pessoas, mas nem isso contribuía para lhe fazer dores de estômago.
Ao responder a todas aquelas questões, Mizuki deu-se conta da vida desinteressante que até aí sempre levara. Nunca fora, nem de longe nem de perto, surpreendida por algo de dramático. Se a vida dela desse um filme, seria forçosamente um daqueles documentários de baixo orçamento, que só servem para fazer sono. Nada a não ser uma paisagem monocórdica, a perder de vista. Nem mudanças de cenário, nem grandes planos, nem momentos empolgantes, apenas uma experiência captada num registo linear, sem altos nem baixos. Nem uma sombra funesta, nem um elemento sugestivo. Volta e meia, mais por acidente do que por outra coisa, a câmara mudava lentamente de posição, como se lhe tivessem dado o toque para sair daquela sua complacência. Mizuki sabia que era a função da terapeuta, ouvir o que os clientes tinham para dizer, mas às tantas já estava a sentir pena da mulher, que não tinha outro remédio senão escutar atentamente um relato de vida tão desinteressante. Até quando conseguiria a outra disfarçar um bocejo? "Se eu estivesse no lugar dela e me obrigassem a prestar atenção a sagas intermináveis como esta", pensou Mizuki, "morria de puro aborrecimento."
Tetsuko Sakaki, porém, ouvia atentamente as palavras de Mizuki e ia tomando pequenas notas. De vez em quando, fazia uma pergunta rápida, mas, durante a maior parte do tempo, manteve-se em silêncio, inteiramente concentrada na tarefa de apreender a história de Mizuki. Das poucas vezes em que sentiu necessidade de dizer alguma coisa, a sua voz não transmitiu sinais de estar maçada, mas antes um tom caloroso que denotava da sua parte um genuíno interesse. Ali sentada a ouvir falar a terapeuta no seu modo lento e arrastado, Mizuki sentiu-se estranhamente descontraída. "Nunca ninguém ouviu o que eu tinha para dizer com tanta atenção", apercebeu-se ela. Quando a sessão, passada uma hora e tal, chegou ao fim, pareceu a Mizuki que lhe tinham tirado um fardo de cima.
- Pode voltar na próxima quarta à mesma hora, Senhora Ando? -perguntou a Sr.a Sakaki, com um grande sorriso.
- Sim, posso - respondeu Mizuki -, se não se importa.
- Claro que não. Desde que se sinta confortável com essa ideia. São precisas muitas sessões de aconselhamento antes de fazer alguns progressos. Não é bem a mesma coisa que se verifica naqueles programas de rádio tipo consultório, em que é tudo metido no mesmo saco e depois o locutor se despede com um "vai ver que corre bem". Pode demorar o seu tempo, mas é como se fôssemos vizinhas e morássemos ambas em Shinagawa. Por isso, vamos aproveitar a oportunidade e dar o nosso melhor.
- Lembra-se de alguma coisa que tenha acontecido consigo, na sua vida, e que se relacionasse com nomes? - indagou a Sr.a Sakaki, no decorrer da segunda sessão. - Com o seu nome, com o nome de outra pessoa, com o nome de um animal, com o nome de um lugar que tivesse visitado? Ou, então, alguma alcunha? Tudo o que esteja relacionado com nomes. Se guarda alguma recordação que envolva um nome, gostaria que me contasse.
- Algo que tenha que ver com nomes?
- Nomes, identificação, assinatura, chamada... Pode ser um pormenor aparentemente insignificante, desde que diga respeito a um nome. Veja se consegue lembrar-se.
Mizuki pensou durante muito tempo.
- Não me recordo de nada que tenha que ver com nomes - disse por fim. - Pelo menos assim de repente. Oh... afinal, sempre me vem à memória um episódio. Tem a ver com um cartão de identificação.
- Um cartão de identificação. Muito bem.
- Mas não estamos a falar do meu cartão de identificação - atalhou Mizuki. - Estamos a falar do cartão que servia para identificar outra pessoa.
- Não interessa. Conte-me.
- Como lhe disse na semana passada, fiz o secundário médio e superior num colégio particular para raparigas - começou Mizuki. Morava em Nagoya e a escola era em Yokohama, por isso ficava instalada no dormitório do colégio e só ia a casa aos fins-de-semana. Apanhava o shinkansen(3) todas as sextas-feiras à noite e regressava no domingo à noite. Eram só duas horas de viagem, por isso não me fazia diferença nem me sentia particularmente sozinha.
A Sr.a Sakaki assentiu.
- Mas não existem boas escolas femininas em Nagoya? Por que razão é que teve de sair de casa e de se deslocar até Yokohama?
- A minha mãe tinha estudado naquela escola e queria que pelo menos uma das filhas seguisse as suas pisadas. Além disso, eu própria fiquei contente com a perspectiva de viver longe dos meus pais. Era uma escola de freiras, mas ainda assim muito liberal. Fiz lá boas amigas. Eram tudo raparigas na mesma situação que eu, oriundas de outros lugares, com mães que se tinham licenciado na escola. Fiquei lá a estudar durante seis anos e posso dizer que, de uma maneira geral, me dei bem. Fora a comida, que era francamente má.
A Sr.a Sakaki sorriu.
- Disse-me que tem uma irmã mais velha?
- Exactamente. Dois anos mais velha do que eu.
- E por que não frequentou ela essa tal escola?
- Ela sempre foi mais caseira. E também passou muito tempo adoentada, quando era pequena. Por isso, andou sempre na escola local e ficou a viver em casa, com os pais. Daí que a minha mãe tivesse querido que eu estudasse naquela escola. Desde miúda, fui sempre mais saudável e francamente mais independente do que a minha irmã. Quando acabei o secundário e me perguntaram se estava disposta a ir estudar para Yokohama, disse logo que sim. Confesso que a ideia de viajar no comboio-bala também me pareceu excitante.
- Desculpe tê-la interrompido - disse a Sr.a Sakaki, sorrindo. -Por favor, continue.
- As outras repartiam na sua maioria o quarto com outra rapariga, mas quando se é mais velha, dão-nos um quarto individual. Eu estava instalada num desses quartos quando esta história aconteceu.

*3. Comboio-bala é o termo que os Ocidentais usam para designar a rede de comboios de alta velocidade no Japão. (N. da T.)

Como já deixara de ser caloira, nomearam-me porta-voz do dormitório. À entrada do edifício, havia um quadro afixado com as placas identificativas, uma para cada estudante. O verso da placa tinha o nosso nome a negro; o reverso estava escrito a vermelho. Sempre que nos ausentávamos, tínhamos de entregar a placa, e no regresso tornávamos a ficar na posse dela. Quando o nome da pessoa estava a negro, significava que se encontrava nas instalações; quando estava a vermelho era porque a pessoa tinha saído. Sempre que passávamos a noite fora ou estávamos ausentes mais tempo, o nosso nome era retirado do quadro. As estudantes faziam turnos na recepção e, caso alguém telefonasse, era fácil localizar a pessoa em questão, bastando para tal dar uma olhadela ao quadro. Era um sistema muito prático.
A Sr.a Sakaki fez-lhe sinal, encorajando-a a continuar.
- Aconteceu em Outubro. Estava quase na hora do jantar e eu encontrava-me no meu quarto, a estudar, quando Yuko Matsunaka, uma aluna mais nova, foi ter comigo. Era de longe a rapariga mais bonita do lar. Tinha a pele clara, cabelo comprido, feições perfeitas, de boneca. Os pais geriam uma estalagem tradicional japonesa(4) em Kanazawa e estavam muito bem na vida. Ela não andava a estudar comigo, por isso não posso ter a certeza, mas ouvira dizer que tirava notas muito boas. Por outras palavras: destacava-se de uma quantidade de maneiras. Havia imensas raparigas mais novas que tinham praticamente uma adoração por ela. O que vale é que Yuko era cordial e nada convencida, isto para além de ser bastante sossegada e reservada. Uma miúda simpática, se bem que muitas vezes eu não fosse capaz de adivinhar o que lhe ia na mente. Apesar de haver quem a adorasse, duvido que ela tivesse uma amiga mais chegada.
Mizuki estava no seu quarto, sentada à secretária a ouvir rádio, quando ouviu alguém bater devagarinho à porta. Foi abrir e deu de caras com Yuko Matsunaka, de calças de ganga e camisola de malha rente ao pescoço. A outra disse que precisava de falar com ela, caso pudesse dispensar uns minutos. "Tudo bem", replicou Mizuki, apanhada de surpresa.

*4. Chamam-se ryokan e ficam muitas vezes situadas nas imediações de uma fonte termal, cuja água é utilizada pelos clientes para se banharem. (N. da T.)

"Não estou a fazer nada de especial." Mizuki nunca tinha estado sozinha a conversar com Yuko, nem lhe passara alguma vez pela cabeça que Yuko algum dia iria entrar pelo quarto a fim de lhe pedir conselhos. Mizuki fez-lhe sinal para se sentar e preparou chá com a água quente que estava na garrafa-termo.
"Mizuki, alguma vez sentiste inveja?", perguntou Yuko de repente.
Mizuki ficou admirada com a pergunta inesperada, mas pensou um bocadinho antes de responder.
"Não, não se pode dizer que saiba o que isso é", confessou.
"Nem uma única vez?"
Mizuki abanou a cabeça.
"Pelo menos, que me lembre assim de repente, acho que não. Inveja... Queres dizer concretamente o quê?"
"Como quando tu gostas de uma pessoa, mas essa pessoa está apaixonada por outra. Como quando tu desejas uma coisa desesperadamente, e alguém se apropria dela. Ou quando tu aspiras a fazer bem uma coisa, e outra pessoa se mostra capaz de o fazer sem o mínimo esforço... Esse género de coisas."
"Não me parece que alguma vez tenha sentido isso", afirmou Mizuki. "Já te aconteceu?"
"Muitas vezes."
Mizuki ficou sem saber o que dizer. Como é que uma rapariga daquelas podia querer ainda mais da vida? Linda de morrer, rica, tinha boas notas e era popular. Os pais estragavam-na com mimos. Mizuki tinha ouvido dizer que ela andava a encontrar-se aos fins-de-semana com um colega que era um bonito rapaz. Que poderia ela querer mais?
"Dá-me um exemplo", pediu Mizuki.
"Prefiro não o fazer", disse Yuko, escolhendo cuidadosamente as palavras. "Além do mais, entrar em pormenor não adianta. Andava para te perguntar há uma data de tempo, Mizuki, se alguma vez sentiste inveja."
"Palavra de honra?"
"Sim."
Mizuki não sabia a que propósito vinha tudo aquilo, mas fez-lhe a vontade e decidiu responder o mais honestamente possível. "Julgo que nunca passei por semelhante experiência", começou por dizer. "Não sei porquê, e, pensando bem, acredito que possa até parecer estranho. Vendo bem, não se pode dizer que eu tenha confiança para dar e vender, nem que consiga tudo aquilo que me proponho. Lembro-me assim de repente de uma série de coisas que deveriam contribuir para me sentir frustrada, mas, por alguma razão, a verdade é que isso nunca me levou a ter inveja de outras pessoas. Porquê, não me perguntes."
Yuko Matsunaka sorriu ligeiramente. "Acho que a inveja não tem muito que ver com a realidade, com as condições objectivas de vida. Tipo, és afortunado se não fores invejoso, mas se não tens sorte, és invejoso. A inveja não funciona assim. É mais como um tumor que se desenvolve cada vez mais dentro de nós, sem que ninguém saiba, sem uma justificação concreta. Mesmo sabendo que ele está ali, não há nada que possa ser feito para impedir o seu crescimento. É como dizer que as pessoas felizes não têm tumores, enquanto as que são infelizes têm mais probabilidade de ter um, o que não é verdade, pois não? É a mesma coisa."
Mizuki ouviu tudo sem dizer nada. Era raríssimo Yuko ter tanta coisa para dizer de uma assentada.
"Torna-se difícil explicar o que é a inveja a uma pessoa que nunca sentiu isso na pele. Uma coisa te digo: não é fácil conviver com esse sentimento. É como andar com o nosso pequeno inferno atrás, todos os dias. Deves agradecer pelo facto de não saberes o que isso é."
Yuko calou-se e olhou para a outra de frente. Mizuki não podia ter a certeza, mas pareceu-lhe ver a sombra de um sorriso no rosto dela. E voltou a pensar em como a outra era bonita. Sempre bem vestida, com um peito lindíssimo. Qual seria a sensação de ser como ela - uma daquelas beldades que fazem parar o trânsito? Seria coisa para alguém se sentir orgulhoso? Ou seria antes um peso?
Contrariando esses pensamentos, nem por uma vez Mizuki sentiu ciúmes de Yuko.
"Vou regressar a casa", anunciou Yuko, a olhar para as mãos pousadas no colo. "Morreu um familiar e tenho de ir ao funeral. Já tenho autorização do nosso director. Devo estar de volta na segunda de manhã, mas, enquanto estiver ausente, gostaria que ficasses a tomar conta da minha placa de identificação."
Ela tirou do bolso a placa com o nome dela e entregou-a a Mizuki, que continuava visivelmente sem compreender o que se estava a passar.
"Não me importo de ficar com ela na minha posse", afirmou Mizuki, "mas por que carga de água te dás ao trabalho de me pedir isso? Não podias limitar-te a enfiá-la dentro da gaveta e pronto?"
Yuko olhou-a bem nos olhos, ao ponto de a outra se sentir pouco à vontade.
"Só quero que fiques com ela por esta vez", disse Yuko num tom decidido. "Há uma coisa que me perturba, e não quero deixá-la ficar no meu quarto."
"Não me importo", disse Mizuki.
"Não quero que apareça algum macaco e que desapareça com ela enquanto eu estiver ausente", disse Yuko.
"Duvido que haja macacos por estas bandas", atalhou Mizuki num tom jovial. Nem parecia coisa da Yuko, fazer uma brincadeira daquelas. Depois disso, Yuko abandonou o quarto, deixando ficar a placa com a sua identificação, a chávena de chá por beber e um estranho espaço vazio no sítio onde tinha estado.
- Na segunda-feira seguinte, a verdade é que Yuko ainda não tinha regressado - contou Mizuki à terapeuta. - Então o professor encarregado da turma dela, que começava a ficar preocupado, telefonou aos pais e descobriu que Yuko nunca chegara a aparecer em casa. Nenhum membro da sua família havia morrido, e como tal não se realizara nenhum funeral em que ela tivesse de estar presente. Tinha mentido e depois desaparecera. Encontraram o corpo dela dias mais tarde. Soube da história ao regressar ao alojamento no domingo à noite, depois de ter ido a casa passar o fim-de-semana. Cortara os pulsos e pusera fim à própria vida numa floresta ali perto. Quando a encontraram, já estava morta, esvaída em sangue. Ninguém soube explicar as razões do seu acto. Não deixou uma nota de despedida, e os seus motivos permaneceram obscuros. A colega de quarto afirmou que ela parecia a mesma Yuko de sempre, e que não dera mostras de qualquer perturbação. Yuko suicidara-se sem dizer uma palavra a ninguém. - E, no entanto, ela tentou dizer-lhe qualquer coisa a si, não foi? - perguntou a Sr.a Sakaki. - Foi essa a razão que a levou a ir ter consigo ao quarto, a fim de depositar nas suas mãos o cartão de identificação. E falou consigo acerca da inveja.
- É certo que ela teve aquela conversa acerca da inveja. Na altura, não liguei muito ao assunto, mas depois aquilo deu-me que pensar. Ela deve ter querido fazer confidências a alguém antes de morrer.
- Contou a alguém que ela tinha ido ao seu quarto pouco antes de morrer?
- Não, nunca contei a ninguém.
- Porquê?
Mizuki inclinou a cabeça, pensativa.
- Se eu fosse contar isso a alguém, só serviria para criar mais confusão. Ninguém compreenderia. E ajudar, também não ajudaria.
- Está a insinuar que a inveja pode ter sido a razão que a levou ao suicídio?
- Exactamente. Se as pessoas viessem a saber, poderiam começar a pensar que havia qualquer coisa de errado comigo. Por que diabo iria uma rapariga como Yuko Matsunaka ter inveja de mim? Andava toda a gente às aranhas, para não dizer que andava tudo à beira de um ataque de nervos, de modo que achei por bem manter a coisa em segredo. De certeza que conhece o ambiente que se vive num dormitório feminino - uma revelação daquelas seria o suficiente para incendiar aquele lugar - seria o mesmo que atirar um fósforo aceso para um quarto cheio de gás.
- O que fez ao cartão de identificação?
- Ainda o tenho. Está guardado dentro de uma caixa, no fundo de um armário. Juntamente com o meu.
- Por que é que ainda o conserva na sua posse?
- Na altura, as coisas na escola estavam fora de controlo e deixei escapar a oportunidade de o fazer. Depois, quanto mais tempo passava, mais difícil a situação se tornava. Mas também nunca fui capaz de me livrar daquilo. Quanto mais não fosse, porque entretanto me passara pela cabeça que talvez Yuko tivesse querido que eu guardasse a identificação dela. Por isso, teria ido procurar-me ao quarto, pouco antes de morrer. Agora, qual a razão por que fui eu a escolhida, não sei dizer.
- Não deixa de ser um bocado estranho. A Mizuki e a Yuko não eram muito chegadas, pois não?
- Vivíamos no mesmo alojamento, por isso era natural que nos cruzássemos de vez em quando - referiu Mizuki. - Chegámos a trocar meia dúzia de palavras. Contudo, estávamos em turmas diferentes, e nunca partilhámos confidências. Se calhar, ela foi ter comigo pelo facto de ser eu a representante das alunas. Não estou a ver outra razão.
- Ou, então, talvez Yuko estivesse interessada em si por outro motivo. Talvez se sentisse atraída por si. Talvez tivesse visto algo em si.
- Isso não lhe sei dizer - confessou Mizuki.
A Sr.a Sakaki ficou em silêncio, sem tirar os olhos de Mizuki, como se quisesse ter a certeza de alguma coisa.
- Mudando de assunto. É verdade que nunca sentiu inveja? Nunca, jamais, em toda a sua vida?
Mizuki não respondeu logo.
- Julgo que não. Nunca.
- O que significa que não está em condições de avaliar o que é a inveja.
- De uma forma geral, acho que sou capaz... pelo menos, o que poderá levar à inveja. Mas não sei o que é sentir inveja, isso não. Até que ponto é um sentimento forte, quanto tempo dura, o sofrimento que causa.
-Tem razão - afirmou a Sr.a Sakaki. - A inveja, por assim dizer, conhece vários estádios. Acontece com todas as emoções humanas, segundo sei. Quando na sua forma mais suave, chama-se a isso despeito ou inveja. Existem diferentes graus de intensidade, mas a maior parte das pessoas sente na pele esses sentimentos menos intensos, na sua vida de todos os dias. Por exemplo, quando um colega de trabalho é promovido no nosso lugar, ou aparece um aluno que se torna o menino querido do professor. Ou quando um vizinho ganha a sorte grande. Isso é inveja pura. A situação revela-se injusta e uma pessoa fica danada. Uma reacção perfeitamente natural. Tem a certeza de nunca ter sentido isso?
Mizuki reflectiu naquilo.
- Não creio. Naturalmente que existem pessoas muito mais afortunadas do que eu, mas isso não significa que alguma vez tenha sentido inveja delas. Da forma como eu vejo as coisas, somos todos diferentes e cada um tem a sua vida.
- E, na medida em que somos todos diferentes, torna-se difícil estabelecer comparações?
- É mais ou menos isso.
- Um ponto de vista interessante... - observou a Sr.a Sakaki, com as mãos cruzadas em cima da secretária, e a sua voz arrastada traindo um certo regozijo. - Na verdade, porém, essas são apenas as situações em que a inveja se manifesta na sua forma mais ligeira. Nos casos mais graves, de inveja assolapada, as coisas não são assim tão simples. Aloja-se um verme no coração e, tal como a sua amiga disse, transforma-se num tumor que devora a alma. Casos há em que pode levar à morte. Quando os homens não são capazes de controlar a inveja, a vida torna-se um verdadeiro inferno.
Depois de Mizuki ter regressado a casa, foi ao fundo do armário buscar uma velha caixa de cartão colada com fita adesiva, onde conservara a placa identificativa de Yuko, bem como a sua, tudo guardado dentro de um sobrescrito para não se perder. No interior daquela caixinha misturavam-se cartas antigas dos tempos da escola, diários, álbuns de fotografias, relatórios de notas, enfim, toda uma parafernália de bugigangas que dizia respeito à existência de Mizuki. Ela andava há muito tempo a pensar em livrar-se daquele baú de recordações, mas acabava sempre por ter outras coisas em que pensar, e ia adiando, adiando sempre. Porém, fartou-se de procurar e não conseguiu encontrar o pacote com as placas. Virou a caixa de pernas para o ar e vasculhou no meio daquela tralha, sem conseguir dar com ele. Ficou perfeitamente desnorteada. Na altura da mudança para aquela casa, lembrava-se de ter feito um pequeno inventário e a imagem do pequeno sobrescrito ficara gravada na sua cabeça. "Com que então", pensara, "ainda o tenho." Voltou a guardar os cartões dentro do sobrescrito e não mais voltara a abrir a caixa. Por isso, o sobrescrito tinha de estar ali. Como é que podia ter desaparecido? E onde estaria escondido?
Desde que começara a frequentar, uma vez por semana, as sessões de aconselhamento com a Sr.a Sakaki, Mizuki já não se mostrava tão preocupada com a história de se esquecer do nome. Verdade seja dita que a situação ainda se verificava, e com a mesma frequência de anteriormente, mas os sintomas pdareciam ter estabilizado, além de que, fora o nome, mais nada se lhe varrera da memória. A sua pulseira continuava a salvá-la de uma outra situação mais embaraçosa. Começava até a pensar que o facto de uma pessoa se esquecer do seu nome fazia parte da vida.
Mizuki fez segredo das sessões de terapia e não contou ao marido. A sua intenção não era esconder isso dele, mas só de pensar em ter uma conversa com ele sobre o assunto ficava nervosa, até porque imaginava logo que lhe daria mais trabalho do que valia a pena. Conhecendo-o bem, sabia que o marido haveria de lhe pedir uma explicação pormenorizada. Além disso, esquecer-se do nome e ir à terapeuta uma vez por semana eram coisas que não interferiam em nada com a vida dele. E os gastos eram mínimos.
Passaram-se dois meses. Todas as quartas-feiras, lá ia Mizuki a caminho do gabinete no terceiro andar do edifício estatal, para mais uma sessão de aconselhamento. O número de clientes aumentara ligeiramente, por isso as suas sessões tiveram de ficar reduzidas à meia hora que estava inicialmente prevista. O que, de resto, não fez diferença, na medida em que as duas já se encontravam no mesmo comprimento de onda e tiravam o máximo partido do tempo. Por vezes, Mizuki gostaria de poder ficar à conversa durante mais um bocado, mas, pelo pouco dinheiro que desembolsava, não se podia queixar.
-' E a nossa nona sessão em conjunto - afirmou a Sr.a Sakaki, cinco minutos antes de o tempo chegar ao fim. - Não deixou por completo de se esquecer do nome, mas não está pior, pois não?
- Não, não está - confirmou Mizuki. - A situação mantém-se.
- Maravilhoso - exclamou a Sr.a Sakaki. - Guardou a esferográfica preta às riscas dentro do bolso do casaco, juntou as mãos e deixou-as cair sobre a mesa. Por momentos, calou-se. - É muito possível - atenção, disse "possível" -, da próxima vez que vier à sessão, que estejamos em condições de fazer grandes progressos, relativamente à resolução do seu problema.
- O de me esquecer do meu nome?
- Exactamente. Se tudo correr bem, talvez seja possível determinar a causa definitiva do problema e, quem sabe, talvez eu lhe possa mostrar.
- A razão por que me esqueço do meu nome?
- Precisamente.
Mizuki não compreendia onde a outra queria chegar.
- Quando fala em causa definitiva... refere-se a algo de concreto?
- Claro que é concreto - afirmou a Sr.a Sakaki, esfregando as mãos de satisfação. - Por vezes, temos o ensejo de servir a solução numa bandeja e podemos dizer: "Aqui está ela." Infelizmente, só posso adiantar mais qualquer coisa para a semana. Nesta fase, ainda não tenho a certeza se a coisa irá resultar. Espero bem que sim. Caso isso aconteça, não se preocupe, explico-lhe tudo.
Mizuki fez que sim com a cabeça.
- Em todo o caso, o que interessa é que, apesar de todos os nossos altos e baixos, as coisas começam finalmente a caminhar para uma solução. Sabe o que dizem, não sabe?, acerca da vida: três passos para a frente, dois passos para trás. Por isso, não se preocupe. Tenha confiança na boa velha Senhora Sakaki. Encontramo-nos para a semana, então. E não se esqueça de marcar a consulta quando sair.
Ao dizer aquilo, a Sr.a Sakaki piscou-lhe o olho.
Na semana seguinte, em sendo uma da tarde, quando Mizuki entrou no gabinete de aconselhamento, a Sr.a Sakaki estava sentada à secretária com o maior sorriso que se possa imaginar.
- Descobri por que razão tem andado a esquecer-se do seu nome - anunciou ela, toda ufana. - E do que poderemos fazer a fim de resolver o problema.
- Quer então dizer que vou deixar de me esquecer do meu nome? - perguntou Mizuki.
- Correcto. Nunca mais se esquecerá do seu nome. Está tudo tratado e resolvido.
- E por que diabo é que isso acontecia? Qual era a causa? -inquiriu Mizuki, meio desconfiada.
De uma malinha de verniz preto, a Sr.a Sakaki tirou uma coisa que colocou em cima da mesa.
- Creio que isto lhe pertence.
Mizuki levantou-se do sofá e foi até junto da secretária. Em cima do tampo, viam-se dois cartões de identificação. Num deles, estava escrito "Mizuki Ozawa", no outro "Yuko Matsunaka". Mizuki ficou branca. Voltou para o sofá, e ali se deixou ficar, em silêncio. Tinha ambas as palmas das mãos a fazer pressão sobre a boca, como se quisesse impedir as palavras de saírem.
- Não admira que esteja surpreendida - disse a Sr.a Sakaki. -Mas não se preocupe, vou explicar-lhe tudo, tintim por tintim. Não há motivo para ter medo.
- Como é que...? - balbuciou Mizuki.
- Como é que as placas de identificação vieram parar às minhas mãos?
- Sim, é isso que eu não...
- Não compreende? Mizuki assentiu.
- Recuperei-as para lhas devolver - explicou a Sr.a Sakaki. - As ditas placas foram-lhe roubadas e é por essa razão que tem dificuldade em lembrar-se do seu nome.
- Mas quem é que...?
- Quem é que entrou em sua casa e lhas roubou? E com que finalidade? - prosseguiu a Sr.a Sakaki. - Em vez de ser eu a responder a isso, creio que o melhor é fazer essa pergunta directamente ao responsável.
- Quer dizer que a pessoa responsável por isso se encontra aqui?
- Naturalmente que sim. Capturámo-lo e apreendemos-lhe as placas de identificação. Repare, não fui eu que fiz isso pessoalmente, foram o meu marido e um dos seus empregados. Acho que cheguei a dizer-lhe que o meu marido era chefe de secção no departamento de obras públicas na prefeitura de Shinagawa.
Mizuki respondeu mecanicamente que sim com um aceno de cabeça.
- Nesse caso, que me diz a irmos ter com o culpado? Para o confrontar e dizer-lhe o que pensa, frente a frente?
Mizuki seguiu a Sr.a Sakaki para fora do gabinete de aconselhamento e, lado a lado, percorreram o corredor e apanharam o elevador. Saíram na cave, atravessaram um longo corredor deserto até chegarem a uma porta. A Sr.a Sakaki bateu, ouviu-se a voz de um homem a dizer "entre" e ela então abriu a porta.
Lá dentro estavam um homem alto, dos seus 50 anos, e um outro ainda maior, na casa dos 20, os dois vestidos com um uniforme verde-caqui. O mais velho tinha ao peito uma placa identificativa que dizia "Sakaki"; na placa do mais novo lia-se "Sakurada". Sakurada empunhava um chicote preto.
- Mizuki Ando, não é verdade? - perguntou o Sr. Sakaki. -O meu nome é Yoshio Sakaki e sou o marido de Tetsuko. Trabalho aqui como chefe do departamento de obras públicas. E este é o Senhor Sakurada, que trabalha comigo.
- Muito gosto - disse Mizuki.
- Ele tem dado muito trabalho? - perguntou a Sr.a Sakaki ao marido.
- Não, parece ter-se conformado com a situação - informou ele. - Sakurada tem estado de olho nele durante toda a manhã, e tudo leva a crer que não tem havido problemas.
- Sim, ele tem estado calmo - atalhou Sakurada, parecendo desapontado. -Vinha preparado, para o caso de ele começar a ficar violento, mas pelos vistos tem-se comportado.
- Sakurada foi em tempos capitão da equipa de karaté da Universidade de Meiji. Estamos a falar de um jovem muito promissor -acrescentou Sakaki.
- Mas então quem é que foi responsável pelo arrombamento e por me ter roubado de casa as duas placas identificativas? - inquiriu Mizuki.
- Sim, por que é que não apresentam o malfeitor?
Existia outra porta ao fundo da sala. O Sr. Sakurada abriu-a e acendeu a luz no interruptor. Varreu rapidamente a sala com o olhar e virou-se para os outros:
- Não há problema. Podem vir.
O Sr. Sakaki foi o primeiro a entrar, seguido da esposa, com Mizuki a fechar o cortejo.
A divisão parecia uma espécie de sala de arrumos. Não tinha mobiliário, apenas uma cadeira, e nela estava sentado um macaco. Era grande para macaco - mais pequeno do que um humano adulto, mas maior do que um aluno dos primeiros anos de escola. Tinha o cabelo um bocado mais comprido do que era habitual ver nos primatas japoneses, aqui e ali salpicado de fios cinzentos. Era difícil dizer que idade teria, mas já não devia ser novo, isso era mais que certo. Tinha os braços e as pernas amarrados por uma corda fina à cadeira de madeira, e a comprida cauda a arrastar no chão. Quando Mizuki entrou na sala, o macaco disparou um olhar na direcção dela e voltou a pôr os olhos no chão.
- Um macaco? - exclamou Mizuki espantada.
- Exactamente - disse a Sr.a Sakaki. - Quem roubou as placas do seu apartamento com os nomes inscritos foi um macaco.
"Não quero que apareça um macaco e que desapareça com ela enquanto eu estiver ausente", tinha dito Yuko. "Com que então, não se tratava de uma brincadeira", pensou Mizuki. Yuko sabia do que estava a falar. Sentiu um calafrio na espinha.
- Mas como é que...?
- Como é que descobri? - perguntou a Sr.a Sakaki. - Como lhe disse da primeira vez que nos vimos, sou uma profissional. Tenho licença profissional e uma vasta experiência. Não se deve julgar as pessoas pelas aparências. Não pense que pelo facto de uma pessoa oferecer aconselhamento psicológico numa instituição oficial, isso a torna menos habilitada do que outra que desempenha as mesmas funções num prédio de luxo.
- Não, claro que não. O que acontece é que fiquei tão admirada que...
- Não se preocupe. Estou a meter-me consigo! - afirmou a Sr.a Sakaki com uma gargalhada. - Para dizer a verdade, até eu própria acho que os meus métodos não são lá muito ortodoxos. Por isso é que ando sempre de candeias às avessas com tudo o que sejam organizações e academias. Prefiro mil vezes praticar o meu ofício num Lugar destes. Até porque, tal como acabei de dizer, tenho uma maneira própria de fazer as coisas.
- Mas muito eficaz - acrescentou o marido.
- Quer então dizer que foi este macaco que roubou os cartões de identificação.
- Sim, ele penetrou no seu apartamento e roubou-lhe os cartões de dentro do armário. Aconteceu há cerca de um ano, mais ou menos na altura em que a Mizuki começou a esquecer-se do seu nome, lembra-se?
- Sim, deve ter sido por essa altura.
- Lamento muito - disse o macaco, abrindo a boca pela primeira vez. Falava em tom baixo, mas, ao mesmo tempo, dir-se-ia que a sua voz tinha uma certa musicalidade.
- Ele sabe falar - exclamou Mizuki, estupefacta.
- Pois sei - ripostou o macaco, sempre no mesmo tom. - E ainda tenho de pedir desculpa por outra coisa. Quando entrei em sua casa para roubar as placas identificativas, trouxe comigo duas bananas.
Não era minha intenção trazer mais nada, mas estava cheio de fome e, apesar de saber que não devia, acabei por deitar a mão às bananas que estavam em cima da mesa. Tinham um aspecto tão apetitoso que era um desperdício não aproveitar.
- A lata deste indivíduo - disse o Sr. Sakurada, fazendo estalar o chicote preto nas mãos um par de vezes. - Sabe-se lá que mais terá ele surripiado. Quer que eu aperte com ele?
- Vamos com calma - disse o Sr. Sakaki. - Afinal, ele próprio confessou a história das bananas de sua livre e espontânea vontade. Além disso, não me parece ser um espécime violento. Não queremos embarcar num processo violento até estarmos devidamente informados. Se alguém nos serviços administrativos viesse a saber que tínhamos maltratado um animal no interior das instalações da prefeitura, ficávamos metidos num grande sarilho.
- Por que é que roubaste a chapa de identificação? - perguntou Mizuki ao macaco.
- É o que eu faço. Sou um macaco que rouba os nomes das pessoas - respondeu o macaco. - É uma doença como outra qualquer. Assim que vejo um nome à frente, tenho de ficar com ele. Nem todos os nomes, atenção. Agora, quando descubro um nome que me diz alguma coisa, sobretudo se for nome de gente, nesse caso tenho de me apropriar dele. Entro à socapa na casa das pessoas e roubo esse género de nomes. Bem sei que está errado, mas a verdade é que não me consigo controlar.
- Foste tu que tentaste assaltar o nosso dormitório a fim de roubar a placa identificativa com o nome de Yuko?
- Correcto. É preciso ver que eu estava apaixonado e totalmente apanhado pela Menina Matsunaka. Nem antes nem depois voltei alguma vez a sentir-me tão atraído por alguém na minha vida. Contudo, atendendo à minha condição de macaco, não consegui lograr os meus intentos, por isso decidi que tinha pelo menos de me apropriar do nome dela, desse lá por onde desse. O simples facto de possuir o nome dela já seria suficiente para satisfazer o meu desejo. Que mais pode um macaco querer? Porém, antes que eu pudesse levar o meu plano por diante, ela morreu.
- Estiveste de alguma forma implicado no suicídio de Yuko?
- Não - respondeu o macaco, abanando a cabeça com veemência. - Não tive rigorosamente nada que ver com isso. Ela encontrava-se à mercê de uma escuridão interior e nada nem ninguém poderia tê-la salvado.
- E como é que sabias que, ao fim de todos estes anos, a placa identificativa com o nome dela estava na minha posse?
- A coisa demorou o seu tempo a descobrir. Pouco depois de a Menina Matsunaka ter morrido, ainda tentei deitar a mão à placa identificativa, mas acontece que entretanto tinha desaparecido, e ninguém sabia onde poderia estar. Dei cabo do canastro a procurar por toda a parte, mas, apesar dos meus esforços, não a consegui encontrar em parte alguma. Nunca me passou pela cabeça que a Menina Matsunaka se lembrasse de a deixar contigo, uma vez que não eram assim tão amigas quanto isso.
- Bate certo - confirmou Mizuki.
- Um dia, porém, num momento de inspiração, fez-se luz e passou-me pela cabeça que ela talvez - apenas talvez - pudesse ter deixado ficar a placa contigo. Aconteceu isto na Primavera do ano passado. Demorei um bom bocado a encontrar-lhe o rasto, e foi nessa altura que fiquei a saber que tinhas casado entretanto, e que a partir daí adoptaras o nome de Mizuki Ando e habitavas em Shinagawa. Como deves imaginar, não é fácil a um macaco levar por diante uma investigação deste tipo. Em todo o caso, foi assim que acabei por entrar no teu apartamento a fim de roubar a dita placa.
- Mas por que é que também roubaste a minha placa de identificação, e não levaste contigo apenas a de Yuko? Olha que o teu gesto me causou muitas maçadas. Até do meu próprio nome me esqueci.
-Tenho realmente muita pena - afirmou o macaco, baixando a cabeça envergonhado. - Quando me aparece à frente um nome de que gosto, não tenho outro remédio senão deitar-lhe a mão e ficar com ele. Acredita que se torna embaraçoso para mim confessar-te isto, mas o teu nome mexeu com o meu pobre coração, e não foi pouco. Tal como já disse antes, trata-se de uma doença que eu tenho. Sou acometido por impulsos que não consigo controlar. Sei perfeitamente que não devo fazer aquilo, mas faço-o na mesma. Lamento sinceramente todos os problemas que te causei.
- Este macaco andava escondido no meio dos esgotos, em plano bairro de Shinagawa - disse a Sr.a Sakaki -, por isso pedi ao meu marido que pegasse nos seus colegas mais novos e tratasse de o apanhar. Calhou bem, visto ele ser chefe do departamento das Obras Públicas e ter a seu cargo a rede de esgotos.
- Foi aqui o jovem Sakurada que realizou grande parte do trabalho - acrescentou o Sr. Sakaki.
- O departamento de Obras Públicas agora tem de se reunir e apurar de quem é a responsabilidade pelo facto de os nossos esgotos esconderem uma figura dúbia como esta - afirmou Sakurada orgulhosamente. - Pelo que tudo indica, o macaco tinha arranjado uma verdadeira base de operações por baixo de Takanawa, e era dali que partia para os actos de pilhagem um pouco por toda a cidade de Tóquio.
- Numa cidade grande como a nossa, não são muitos os lugares onde se possa viver - observou o macaco. - Existem tão poucas árvores que é raro encontrar um sítio onde haja sombra durante o dia. Se andarmos à superfície, as pessoas organizam-se em grupos e começam à nossa procura. As crianças atiram-nos coisas ou então põem-se a disparar com armas a fingir. Cães enormes andam à nossa cata. Se pararmos para descansar no cimo de uma árvore, aparecem logo as equipas de exterior das televisões e encandeiam-nos com os focos de luz intensos dos seus projectores. Nunca nos dão tréguas, daí que tenhamos de andar escondidos debaixo de terra. Peço que me perdoem.
- Mas como é que sabia que o macaco estava escondido nos esgotos? - perguntou Mizuki à Sr.a Sakaki.
- Nos últimos dois meses, ao longo das conversas que fomos tendo, houve muitas coisas que se foram tornando claras aos meus olhos, como acontece quando o nevoeiro de repente começa a levantar - explicou a Sr.a Sakaki. -Tomei consciência de que havia alguém ou alguma coisa que andava a roubar os nomes das pessoas, e que, fosse o que fosse, só podia estar escondido aqui por perto, algures debaixo de terra. E é preciso ver que, quando falamos de uma cidade, as possibilidades ficam naturalmente reduzidas: só podia ser no metropolitano ou nos esgotos. Foi então que contei tudo ao meu marido e lhe disse que, a meu ver, andava uma criatura, e não um ser humano, a viver nos esgotos, ao mesmo tempo que lhe pedia que procedesse a uma busca. E, na realidade, eles vieram a descobrir este macaco.
Mizuki ficou sem palavras por longos minutos.
- E a senhora percebeu tudo isso através das histórias que eu lhe contava?
-Talvez não seja da minha competência dizer o que vou dizer a seguir - interrompeu o Sr. Sakaki -, mas a minha esposa é uma pessoa muito especial, dotada de poderes pouco vulgares. Foram muitas as vezes, no decorrer dos nossos vinte e dois anos de casados, que me foi dado observar as coisas mais espantosas. Por isso é que me desunhei até conseguir que ela inaugurasse o seu centro de aconselhamento aqui nas instalações da prefeitura. Sabia à partida que, a partir do momento em que ela tivesse um lugar onde pudesse pôr as suas capacidades em prática, os residentes de Shinagawa iriam ser os primeiros a beneficiar. Daí que me congratule com o facto de ela ter resolvido todo este mistério. Devo mesmo confessar que me sinto aliviado.
- O que é que vai acontecer ao macaco? - quis saber Mizuki.
- Não o podemos deixar vivo - afirmou Sakurada com indiferença. - Diga ele o que disser, a partir do momento em que esta raça adquire maus hábitos, não tardará muito que os seus elementos voltem ao mesmo, podem tirar o cavalinho da chuva. Por isso, digo: vamos acabar com ele. É o melhor a fazer. Atirem-lhe com uma mangueirada de desinfectante em cima do bucho e acaba-se com a coisa em dois tempos.
- Aguente aí os cavalos - refreou o Sr. Sakaki. - Caso se viesse a saber que nós, fosse por que razão fosse, tínhamos liquidado um macaco, surgiriam de imediato protestos vindos de toda a parte e caíam-nos logo em cima os grupos defensores dos direitos dos animais. Entravam com uma queixa junto das instâncias oficiais e tínhamos de pagar. Podem apostar que arranjávamos sarilho dos antigos. Lembram-se do que aconteceu quando matámos aqueles corvos todos, a gritaria e a confusão generalizada que aquilo deu? Pois bem, gostaria de evitar a repetição de tal desmando.
- Não me matem, peço-vos - rogou o macaco feito prisioneiro, curvando a cabeça quase até ao chão. - Sei que o que fiz estava errado. Tenho consciência disso. Causei aos homens muitos problemas. Não quero com isto pôr em causa a vossa decisão, mas sempre digo que dos meus actos também resultou algo de bom.
- E que benesse poderia resultar, do facto de teres andado a roubar os nomes das pessoas? Explica-te de uma vez por todas - disse o Sr. Sakaki num tom cortante.
- É certo que roubo o nome às pessoas, não contesto isso. Ao fazer isso, porém, mostro-me capaz de remover alguns dos elementos negativos associados a esses nomes. Não é para me gabar, mas, se na altura me tivesse sido dada a oportunidade de roubar o nome de Yuko Matsunaka, poderia muito bem ter acontecido que ela não se tivesse matado.
- Por que é que diz isso?
- Se eu conseguisse roubar-lhe o nome, poderia, quem sabe, ter afastado alguma da escuridão que se escondia dentro dela - disse o macaco.
- Ao mesmo tempo que lhe tirava o nome, aliviava-a da escuridão e devolvia-a ao mundo subterrâneo.
- Essa história é demasiado conveniente, a mim não me convence - afirmou Sakurada. - É bom não esquecer que este macaco tem a vida em jogo; por isso, como é óbvio, trata de recorrer a todos os truques de que é capaz a fim de explicar as suas acções.
- Não obrigatoriamente - interveio a Sr.a Sakaki, cruzando os braços e reflectindo. - Ele tem uma certa razão. - Depois, virando-se para o macaco, perguntou-lhe: - Quando tu roubas os nomes às pessoas, levas os bons e os maus?
- Isso mesmo - respondeu o macaco. - Não tenho escolha possível. Caso haja coisas más associadas a um determinado nome, nós, macacos, não temos outro remédio senão aceitar também isso. Ficamos com tudo por atacado, como é bom de ver. Por favor, não me mate, peço-lhe encarecidamente. Não passo de um pobre macaco, sem emenda, mas sem querer posso ter-vos feito um favor.
- Muito bem... e não me queres dizer quais as coisas más a que o meu nome estava associado?
- Prefiro não dizer à frente da senhora - confessou o macaco.
- Por favor, diz-me - insistiu Mizuki. - Se me disseres, perdoo-te. E peço aos aqui presentes que façam o mesmo.
- Estás a falar a sério?
- Se este macaco me contar a verdade, concede-lhe perdão? -perguntou Mizuki à Sr.a Sakaki. - Ele não é mau por natureza, e já amargou bastante. Proponho que escutemos o que ele tem para dizer e, depois, podem levá-lo até ao cimo do monte Takao(5) ou sítio parecido e deixam-no à solta. Se isso acontecer, não creio que ele volte a reincidir. Que lhes parece?
- Pela minha parte, não ponho objecções, desde que os outros também se manifestem a favor - opinou o Sr. Sakaki. Depois voltou-se para o macaco: - Tu! Se te levarmos até às terras altas e te deixarmos partir em liberdade, prometes nunca mais regressar a Tóquio nem ultrapassar os limites da cidade?
- Sim, senhor chefe de secção. Juro que nunca mais cá porei os pés - prometeu o macaco, com uma expressão humilde. - Nunca mais me hão-de apanhar a vaguear junto das sarjetas. Já não sou novo, por isso esta é uma boa oportunidade para começar de novo.
- Só para que não restem dúvidas, por que é que não o marcamos com ferro em brasa no traseiro, a fim de o podermos sempre identificar? - alvitrou Sakurada. - Acho que temos para aí um ferro de soldar com o selo oficial de Shinagawa.
- Por favor, não façam isso! - implorou o macaco, com os olhos cheios de lágrimas. - Se me marcarem com um sinal distinto, os outros macacos votar-me-ão ao ostracismo. Estou disposto a abrir-vos o meu coração e a contar tudo o que sei, mas, por favor, não me marquem com ferro quente.
- Bom, vamos esquecer essa ideia do ferro de marcar gado -disse o Sr. Sakaki, tentando mostrar-se conciliador. - Além do mais, se utilizássemos o selo oficial de Shinagawa, mais tarde teríamos de responder por isso.
- Temo bem que tenha razão - referiu Sakurada, desapontado.
- Muito bem, nesse caso, por que é que não começas por me dizer quais as coisas más que se prendem ao meu nome? - perguntou Mizuki, olhando para os olhinhos vermelhos do macaco bem de frente.
- Se te disser, corro o risco de te magoar.
- Não importa. Desembucha.
Durante o tempo que o macaco demorou a pensar naquilo, rugas profundas formaram-se na sua testa.
- Se calhar era melhor continuares na ignorância.

*5. A dois passos de Tóquio, com o Fuji ao fundo, faz parte integrante da paisagem (e dos cartões-postais). A par da vista, espectacular, tem um altar xintoísta com um espelho: a pessoa que reza vê-se reflectida no momento de recolhimento. (N. da T.)

- Já te disse que não faz mal. Preciso mesmo de saber.
- Muito bem - disse o macaco. - Nesse caso, vou dizer o que sei. A tua mãe não gosta de ti. Nunca teve amor por ti, nunca, desde que nasceste. Ela mandou-te estudar para uma escola longe de Yokohama porque queria ver-se livre de ti. Tanto a tua mãe como a tua irmã só pensavam em manter-te afastada, tão longe quanto possível. O teu pai não é má pessoa, mas não tem aquilo a que se pode chamar uma personalidade forte, razão pela qual nada pôde fazer por ti. Pelas razões apontadas, desde pequenina que nunca recebeste o amor que te era devido. Julgo, de resto, que terás tido percepção disto, mas escolheste fechar os olhos, encerrar esta dolorosa realidade num pequeno lugar escuro, no fundo do teu coração, e colocar uma tampa por cima, tentando não pensar muito no assunto. Esforçando-te por suprimir quaisquer sentimentos negativos. Essa atitude defensiva acabou por se tornar parte integrante de ti. Por tudo isso, nunca foste capaz de amar alguém profundamente, incondicionalmente.
Mizuki continuou em silêncio.
- À primeira vista, dir-se-ia que a tua vida de mulher casada corre sobre rodas e sem acidentes de percurso. E talvez até estejas convencida disso. A verdade, porém, é que não sentes pelo teu marido verdadeiro amor. Tenho razão? Mesmo que tivesses um filho, isso não iria alterar nada e as coisas continuariam na mesma.
Mizuki não disse uma palavra. Deixou-se deslizar até ao chão e fechou os olhos. Todo o seu corpo parecia à beira de desmoronar. A sua pele, as suas entranhas, os seus ossos, tudo parecia prestes a fragmentar-se. A única coisa que ouvia era o som da sua própria respiração.
- É preciso descaramento, um macaco arrogar-se o direito de falar assim - grunhiu Sakurada, abanando a cabeça. - Chefe, não aguento mais. Vamos dar-lhe um enxerto de porrada.
- Esperem aí- pediu Mizuki. - O que o macaco acabou de dizer não é mentira nenhuma. Sei-o desde há muito, mas sempre procurei fugir à verdade. Sempre preferi fechar os olhos, tapar os ouvidos. O macaco diz a verdade, por isso merece ser perdoado. Levem-nos até às montanhas e deixem-no partir em liberdade.
Tetsuko Sakaki pousou docemente a mão no ombro de Mizuki.
- Tem a certeza de que é isso que quer?
- Sim, desde que recupere o meu nome. Só isso me importa. A partir de agora, faço tenções de viver e de tirar partido de tudo o que me rodeia. E o meu nome faz parte integrante da minha vida.
A Sr.a Sakaki virou-se para o marido.
- Querido, que me dizes a pegar no carro no próximo fim-de-semana e a irmos dar um passeio até ao monte Takao, aproveitando nessa altura para soltar o macaco?
- Não vejo qualquer problema nisso - retorquiu o Sr. Sakaki. -Vem mesmo a calhar, sempre podemos testar a resistência do carro que acabámos de comprar.
- Fico-vos eternamente grato. Nem sei como vos posso agradecer - confessou o macaco.
- Não enjoa, pois não? - perguntou a Sr.a Sakaki ao macaco.
- Não se preocupem - retorquiu o macaco. - Prometo não vomitar nem urinar nos estofos novos do carro. Vou portar-me como um senhor e nunca mais ninguém terá razões de queixa da minha pessoa.
Quando Mizuki estava a dizer adeus ao macaco, passou-lhe para a mão a placa de identificação de Yuko Matsunaka.
- Deves ser tu a ficar com isto, e não eu - disse ela. - Gostavas muito de Yuko, não gostavas?
- Sim, gostava.
- Nesse caso, vela pelo seu nome. E não deixes que ninguém o roube.
- Vou honrar o nome de Yuko. E não voltarei a roubar, prometo - afirmou o macaco com uma expressão séria.
- Só gostava de saber por que razão Yuko foi ter comigo e me confiou a placa com a sua identificação. Por que carga de água me escolheu?
- Não sei responder a isso - confessou o macaco. - Mas sei que por causa disso nos encontrámos e pudemos chegar à fala e conversar um com o outro. Por um mero capricho do destino, quem sabe?
- Provavelmente - concordou Mizuki.
- Ficaste magoada com as minhas palavras?
- Fiquei - confessou Mizuki. - E muito.
- Tenho muita pena. Preferia não o ter feito.
- Não faz mal. No fundo, acho que já sabia. Mais cedo ou mais tarde, tinha de enfrentar a verdade.
- Fico aliviado ao ouvir isso - afirmou o macaco.
- Adeus - disse Mizuki. - O mais provável é nunca mais nos voltarmos a encontrar.
- Toma bem conta de ti - recomendou o macaco. - E obrigado por salvares a vida de um ser da minha espécie.
-Aconselho-te a nunca mais mostrares o focinho em Shinagawa e arredores - ameaçou Sakurada, fazendo estalar o chicote na palma da sua mão. - Desta vez, safaste-te, porque foi essa a vontade de quem manda, mas se torno alguma vez a apanhar-te por estas bandas, vais desejar ter morrido.
O macaco sabia que não se tratava de uma ameaça vã.
- Bom, como é que vamos fazer no próximo fim-de-semana? - perguntou a Sr.a Sakaki, depois de ter regressado na companhia de Mizuki ao centro de aconselhamento. - Ainda continua a precisar dos meus conselhos?
Mizuki abanou a cabeça.
- Não. Agradeço-lhe, mas estou em crer que os meus problemas ficaram resolvidos. Estou imensamente agradecida por tudo o que a senhora fez por mim.
- Não quer aproveitar para falar acerca das coisas que o macaco lhe disse?
- Não, prefiro ser eu própria a tratar disso. É uma coisa que exige muita reflexão da minha parte.
A Sr.a Sakaki concordou com um gesto de cabeça.
- Vai ver que é capaz. Basta que se esforce a sério e tenho a certeza de que será capaz de crescer e ficar mais forte.
- Mas se por acaso isso não se verificar, posso ir ter de novo consigo e contar com a sua ajuda?
- Naturalmente - disse a Sr.a Sakaki. Um grande sorriso espalhou-se no seu rosto. - Podemos sempre ir apanhar qualquer coisa juntas.
Apertaram as mãos e despediram-se.
Ao chegar a casa, Mizuki pegou na placa de identificação com o nome "Mizuki Okawa" escrito e na pulseira que tinha gravado "Mizuki (Okawa) Ando", meteu as duas coisas dentro de um vulgaríssimo sobrescrito castanho e, por seu turno, guardou tudo dentro da caixa de cartão, no seu armário. Finalmente, recuperara o seu nome e estava em condições de retomar a vida normal. Podia ser que as coisas corressem bem. E, daí, também podia ser que não. Em todo o caso, o que interessava era que agora ela tinha um nome, um nome que lhe pertencia, que era só seu e de mais ninguém.

 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

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