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A RAPARIGA SEM RUMO / Erle Stanley Gardner
A RAPARIGA SEM RUMO / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RAPARIGA SEM RUMO

 

Às duas e um quarto daquela tarde o mundo de Mildred Crest desabou à sua volta, num terramoto que a deixou completamente atordoada. Ficou com o espírito embotado e as suas faculdades de raciocínio recusavam-se a funcionar.

Até às duas horas, Mildred fora uma das raparigas mais felizes da ruidosa cidade de Oceanside, na Califórnia.

O dispendioso anel de diamante que lhe cintilava no dedo era o símbolo do seu noivado com Robert Joyner, chefe da contabilidade da firma "Pillsbury & Maxwell", o grande armazém que tinha filiais espalhadas por meia dúzia de cidades do sul da Califórnia.

Joyner chegara a Oceanside há cerca de dois anos. Começara como guarda-livros e a sua promoção fora rápida. Era inteligente, dinâmico, adaptava-se instantaneamente a situações novas, e, acima de tudo, não receava as responsabilidades. Confiava em absoluto nas suas opiniões e não tardou muito que os patrões compartilhassem também dessa confiança.

Joyner era bom conversador, uma pessoa que animava qualquer festa, e consideravam-no o rapaz solteiro mais interessante da comunidade.

O seu noivado com Mildred Crest caiu como uma bomba nos círculos sociais que frequentavam e, durante três meses, a rapariga andara nas nuvens.

Às duas e um quarto, chamaram Mildred Crest ao telefone para atender um telefonema particular. Tinha a certeza de que era Robert, e sentiu-se um pouco aborrecida, pois sabia que a gerência não gostava que os empregados recebessem telefonemas particulares nas horas de serviço, não só porque os distraía do seu trabalho, como também impedia as linhas do P. B. X. Porém, era costume de Robert Joyner saltar por cima dos regulamentos.

O tom da sua voz não deixava transparecer nada de especial. Parecia despreocupado e brincalhão como sempre.

- Olá, querida! Como vai a mais linda das secretárias?

- Estou óptima, Bob. Mas... Já sabes que não gostam que liguem para cá... Só em casos de urgência...

- Não te preocupes com isso - interrompeu Robert. - E, até certo ponto, este assunto é urgente.

- Sim?

- A partir deste momento - disse Bob - o nosso noivado está anulado, terminado e rescindido. Podes ficar com o anel e com todos os outros presentes e também, espero, com recordações felizes de três meses inolvidáveis.

- Mas Bob, porque é que...? Que estás tu a dizer? Que aconteceu? Como...?

- Foram os cavalos, querida. A culpa foi toda dos cavalos. Embora tu nunca o sonhasses, sou um jogador. Gosto de tentar a sorte, mesmo quando a sorte não dá resultado. É bom para os outros, levarem uma existência vulgar, sempre na mesma rotina imbecil, subindo, com passos vagarosos, perseverantes e dolorosos as escadas que levam ao êxito. Eu gosto de foguetões, gosto de apontar o alvo para sítios altos e de trabalhar depressa.

- Mas, Bob, a tua família...

- O mito da família rica que tinha no Leste era apenas um pretexto para justificar o que, de outro modo, seria considerado extravagância, por parte de um guar-da-livros com um ordenado relativamente pequeno. O meu sistema de apostar nos cavalos dava bons lucros, até que, um dia, houve qualquer coisa que começou a correr mal. Comecei a levantar dinheiro da companhia, para fazer face às despesas, quando o sistema principiou a falhar. Tenho feito levantamentos importantes e agora estou à beira de um exame oficial de escrita. Surgiram umas certas suspeitas, devidas a um simples descuido da minha parte. Foi por isso que agarrei em toda a "massa" a que pude deitar a mão, atirei o sistema às urtigas e safei-me para Santa Anita. Daqui a pouco, rebenta a bronca.

- Isso é alguma brincadeira, Robert? - perguntou Mildred.- É algum dos teus testes psicológicos para experimentar as reacções das pessoas? Se é, digo-te que já me deixaste nervosa para o resto do dia.

- Esperemos que seja o pior que te aconteça - retorquiu Joyner, em tom despreocupado. - Confesso que sinto um rebate de consciência quando penso em ti. Foste uma boa rapariga, Mildred, e uma companheira extraordinária. Mas realidades são realidades e temos de as encarar. Embora tenha feito um desfalque e possa ser apanhado em qualquer momento, não faço tenções de armar uma cena comovente de arrependimento, e suportar o desprezo de todos os palermas que, até aqui, olhavam para mim com invejosa admiração. Não quero suplicar a mercê do tribunal e prometer a restituição do dinheiro. Como é inevitável que descubram o desfalque, resolvi fazer um desfalque que valha a pena. Levei tudo o que apanhei à mão. Disse no escritório que ia ao banco fazer o depósito e, de lá, procedi a uma série de manobras complicadas, que tornarão a minha pista bastante difícil de encontrar. Digo-te, Millie, que era capaz de apostar cinco contra um em como eles não conseguirão apanhar-me.

"A esta hora já estão à minha espera no escritório e, às três horas, começarão a pensar no que teria sido feito de mim. Caso alguém te telefone esta tarde a perguntar por mim, diz muito resumidamente que o nosso noivado acabou, que não sabes onde me encontro nem te interessas mais pelas minhas acções.

"É claro que era inevitável que acontecesse uma coisa destas, mais cedo ou mais tarde. Não consigo imaginar-me no papel de um bom marido e pai extremoso, que faz sacrifícios para mandar os miúdos para o colégio. Para te falar com franqueza, estas três últimas semanas do nosso noivado foram um bocado aborrecidas. Tinha muito prazer na tua companhia mas, no fundo, sou um vadio, e não quero prender-me a ninguém. Aqui tens a história toda. E agora, como os sabujos da Polícia já devem andar a farejar o meu rasto, tenho de desligar. Adeus e felicidades."

A ligação foi cortada.

Mildred voltou para a sua secretária como um autómato. Por um sentido de lealdade para com os patrões, continuou a matraquear nas teclas da máquina de escrever, até acabar a carta importante que tinha para fazer. Quando foi levar a carta para assinar, o seu rosto de uma palidez cadavérica e as mãos que lhe tremiam chamaram a atenção do gerente. Disse que se estava a sentir muito mal disposta, e o patrão mandou-a para casa descansar.

Mildred só pensou em se afastar por uns tempos. Receava ter de enfrentar a compaixão condescendente das outras raparigas do escritório. Possuía algumas amigas que sentiriam verdadeira pena dela e fariam tudo por a confortar, mas havia outras que tinham ficado despeitadas ao ser anunciado o seu noivado com Bob, e de bom grado aproveitariam a oportunidade para a atormentar com piadinhas malévolas. Mildred sentia desejos de se meter num buraco e de nunca mais de lá sair.

Dirigiu-se ao banco em primeiro lugar. Levantou o cheque que lhe fora entregue no dia anterior em pagamento do seu ordenado, e levantou também o dinheiro que tinha na sua conta de depósitos. Depois voltou para o seu apartamento, tomou banho e vestiu o traje de passeio mais elegante que possuía.

Às quatro e quarenta, o telefone tocou. Era o gerente da "Pillsbury & Maxwell" a perguntar por Robert Joyner.

Mildred anunciou friamente que não sabia nada a respeito do paradeiro de Mr. Joyner, que o seu noivado acabara e já não estava interessada nas acções de Mr. Joyner. De repente, no meio da conversa, começou a chorar. Após algumas tentativas infrutíferas de continuar a falar, pousou o auscultador no descanso, na esperança de que o gerente pensasse que a ligação fora cortada.

O gerente mostrou-se compreensivo e não voltou a telefonar.

Mildred não tinha vontade de ir jantar. A perspectiva de encontrar alguém conhecido a quem tivesse de dar explicações era insuportável.

Agora, depois de se dar a derrocada, reparou que, nas últimas semanas, tinham acontecido coisas um tanto estranhas. Ao olhar para trás, recordou-se de inúmeros pormenores que deviam tê-la posto de sobreaviso, mas nessa altura sentia-se tão feliz que aceitava todas as explicações despreocupadas de Bob como se fossem verdades irrefutáveis.

Robert nunca gostara de falar de si. Nas suas relações para com ela, colocara-se numa posição de superioridade condescendente. Desde o princípio que a rapariga sentira que ele detestava que se intrometessem na sua vida. E Mildred estava tão dominada pelo noivo, pela sua inteligência e confiança em si próprio, que se deixara simplesmente arrastar.

Desejaria agora ter ido logo falar com o patrão naquela tarde e contar-lhe tudo o que acontecera, e desejaria também ter telefonado para a "Plllsbury & Maxwell", a informá-los do que se passava. Como não fizera nada disso, encontrava-se agora numa posição insustentável. A ideia do que iria acontecer no dia seguinte, fazia-a sentir a cabeça andar à roda. Compreendeu vagamente que os seus pensamentos estavam num caos e que, no seu estado de espírito presente, não podia confiar nas decisões que tomasse. Se ao menos pudesse escapar a tudo aquilo! Se pudesse mergulhar na amnésia... Mas sabia que não podia provocar deliberadamente um estado de amnésia.

Mildred vestiu o casaco, pegou na bolsa e dirigiu-se para o parque de estacionamento. Tirou o carro e seguiu para fora da cidade, guiando ao acaso, sem saber aonde ia. Lembrou-se de uma história que, há uns dois anos, lhe fora contada por uma amiga que gostava de histórias de terror. Era a respeito de um terramoto que se dera na América do Sul e de uma linda rapariga que fugira tomada de pânico. Saltara para dentro do seu automóvel novo e desviara-se da estrada, para fugir aos edifícios que se desmoronavam e ao iminente desabamento das montanhas próximas.

De repente, abrira-se uma fenda no solo, e a rapariga despenhou-se no abismo, dentro do seu carro novo. A fenda, como se só estivesse à espera da sua presa humana, fechara-se imediatamente, com um ruído sinistro. O terramoto parou. No local em que se abrira a fenda, havia agora apenas um sulco cheio de pedras, terra e escombros.

Mildred quase desejou que qualquer terramoto horrível abrisse debaixo dos seus pés um buraco que a engolisse. Só queria poder cortar definitivamente com o passado e desaparecer sem deixar rasto. Mas, hoje, quando se tem de trabalhar para viver, com os verbetes de seguro social, as cartas de condução e os impressos de impostos, não é fácil desaparecer-se sem deixar rasto.

Então, a pouco e pouco Mildred começou a ver que não se atrevia a fugir à sua vida passada nem a desaparecer. Se fugisse, daria a impressão de que era cúmplice de Joyner e, acima de tudo, tinha de proteger a sua reputação de honestidade. Porém, não era preciso ir enfrentar imediatamente o martírio, e precisava de tempo para arranjar uma camada protectora contra o escárnio, o riso e a piedade que a esperavam ao regressar a Oceanside.

Depois de percorrer umas milhas, olhou para o indicador do nível da gasolina e verificou que estava quase no fim. Parou em frente de uma estação de serviço em Vista e, enquanto o empregado enchia o depósito, viu uma rapariga que estava de pé ao lado da bomba. Mildred julgou a princípio que se tratava da mulher do empregado, mas havia nela qualquer coisa que lhe pareceu estranho. Sentia que a outra a observava. De repente, aproximou-se do carro e perguntou:

- Para onde vai?

Mildred procurou fazer que o seu cérebro entorpecido reagisse.

- Não sei - retorquiu, distraída.-Vou... vou sem destino.

- Importa-se de me dar uma boleia?

- Mas eu não vou para nenhum sítio determinado.

- Eu também não.

Mildred via na sua frente uma rapariga de vinte e três ou vinte e quatro anos, de cabelos e olhos castanhos e aproximadamente da mesma estatura que ela. Ao reparar-lhe no rosto, surpreendeu nele um ar de desespero e sofrimento, que indicava que a outra também tinha alguma coisa que a atormentava.

- Suba - ouviu Mildred dizer à sua própria boca.

- Tenho uma mala de viagem.

- Ponha-a no assento de trás.

O empregado encheu o depósito, limpou o vidro da frente e verificou o óleo e a água.

Mildred entregou-lhe a sua caderneta de crédito, assinou o talão correspondente à despesa, entrou no carro, pôs o motor a trabalhar e disse para a rapariga que ia a seu lado:

- Chamo-me Mildred Crest.

- Fern Driscoll - retorquiu a outra, numa voz sem tom definido.

Mildred lembrou-se subitamente de que, se resolvesse nunca mais voltar a Oceanside, a estação era capaz de não conseguir cobrar a factura da gasolina que acabava de meter. Parou o carro, fez marcha atrás e encostou ao pé da bomba.

- Sou Mildred Crest - disse ela para o empregado.- Acabo de assinar um talão na importância de três dólares e quarenta cêntimos. Aqui está o dinheiro. Rasgue o talão, por favor.

Estendeu os três dólares e quarenta cêntimos ao atónito empregado e carregou no acelerador.

Passados poucos minutos, voltou-se para a outra rapariga.

- Não sou grande companhia. Não sei para onde vou nem o que farei. Sou capaz de dar uma volta por aí e depois tornar para trás. É melhor você apear-se e pedir boleia a outra pessoa.

Fern Driscoll sacudiu a cabeça.

Percorreram algumas milhas sem proferir palavra. Ao chegar ao cruzamento da estrada 395, Mildred virou para a estrada que conduzia a Pala.

Fern Driscoll olhou-a, franzindo as sobrancelhas numa interrogação muda. Mildred Crest, que aumentara a velocidade ao passar o cruzamento, a princípio não disse nada, mas depois, não querendo abusar da desgraça da outra, virou-se para ela de repente:

- Esta estrada é a estrada principal, de San Diego para San Bernardino, e depois de Bishop para Reno. Quer apear-se?

Fern Driscoll abanou negativamente a cabeça.

- Já é noite. Prefiro ir para onde você for. Se tiver de me apear, gostaria de ficar ao pé de uma bomba de gasolina, onde posso observar as pessoas antes de lhes pedir boleia.

- Já a avisei de que não vou para nenhum sítio determinado - insistiu Mildred.

- Não faz mal.

- Vivo em Oceanside. Pode ser que me resolva a voltar para trás.

- Oceanside? Onde fica isso?

- Na estrada junto à costa.

- Eu não conheço nada para estes sítios. Cheguei a San Diego ao fim da tarde e, daí a uma hora, apanhei boleia. Era um rapaz que parecia ser simpático, mas tornou-se muito atrevido. Senti um grande alívio quando consegui sair do carro. Andei uma milha a pé até à bomba de gasolina.

- Vive na Califórnia?

- Não.

- No Oeste?

- Também não. Sou uma rapariga sem rumo, não tenho paradeiro certo.

Fez-se um silêncio entre elas. Não era um silêncio de compreensão mas sim um silêncio embaraçoso, tenso. De súbito, a rapariga comentou, amargamente:

- Arranjei uma grande complicação.

- Todos nós temos complicações - redarguiu Mildred.

Fern Driscoll sacudiu a cabeça.

- Você está provisoriamente numa situação difícil, mas eu estou metida num sarilho a que não posso escapar.

- Não me importava de trocar consigo - volveu Mildred.

- Mesmo sem estar ao corrente da situação?

Mildred fez que sim com a cabeça.

Voltou a reinar silêncio. Por fim, a outra disse:

- Está a tentar-me. Não era coisa que não se pudesse fazer, mas... É uma ideia.

Chegaram a Pala.

- Para onde é que vai esta estrada? - perguntou Fern.

- Para Palornar Mountain - retorquiu Mildred.- É onde se encontra o telescópio gigante de duzentas polegadas.

Voltou para a esquerda.

- E esta? - inquiriu Fern Driscoll.

- Não sei ao certo - confessou Mildred.- Parece-me que vai dar outra vez ao cruzamento da estrada 395.

Mildred concentrou-se na condução. A estrada começava num nível plano e depois ia a subir até se tornar numa subida íngreme. Numa curva apertada, os faróis incidiram de repente no váculo sombrio de um precipício.

Mildred ouviu a voz da outra rapariga dizer:

- Não era maravilhoso afundarmo-nos na escuridão? Aí ninguém nos poderia alcançar. Ficava tudo para trás. Está disposta a isso, Mildred?

- A quê?

A fazer o carro saltar da estrada?

- Não, que ideia! - exclamou Mildred. - Podíamos ficar inutilizadas para o resto da vida. Não é solução. Não se pode...

De repente, Mildred sentiu Fern Driscoll empurrá-la para o lado. Mãos fortes apoderaram-se do volante e torceram-no. Mildred foi apanhada de surpresa. Atirou-se de encontro ao volante, lutando para fazer o carro voltar para a estrada.

Fern Driscoll soltou um grito agudo e histérico, esbracejou e arrancou o volante das mãos de Mildred.

Num lapso de segundo, quando o carro parecia hesitar, Mildred vislumbrou um abismo negro e terrível. Depois, sentiu a frente do carro mergulhar abruptamente para a frente. Ouviu-se o barulho do aço a embater contra a rocha e, em seguida, foi levantada ao ar e o carro voltou-se. A dominar todos os ruídos, fazia-se ouvir o riso demoníaco, dissonante e histérico da sua companheira. O carro foi de encontro a qualquer coisa, atirando Mildred para cima do volante, depois deslizou aos ziguezagues e, por momentos, ficou completamente de rodas para o ar, tornando a voltar-se com brusquidão. Mildred ouviu um som cavo, como o de um melão maduro a ser aberto com um machado, seguido de um ranger de ferros. O carro parou com um solavanco.

No subconsciente de Mildred havia a lembrança de ter dado volta à chave de ignição, apagado as luzes e de ficar ali na escuridão a ouvir o gorgolejar da água que caía do radiador e o pingue-pingue do óleo. Depois chegou-lhe ao nariz um cheiro forte a gasolina.

Mildred procurou abrir a porta. O carro estava todo torcido e a porta encravara-se, mas a janela do seu lado encontrava-se aberta. Com muita dificuldade, Mildred conseguiu sair por ali. Cessara o ruído da água e do óleo a cair. Envolvia-a o silêncio da noite. Lá em cima, brilhavam as estrelas.

- Fern - chamou Mildred. - Fern, como se sente?

Não obteve resposta. Debruçou-se e olhou para dentro do carro. Estava tão escuro que não conseguiu ver nada. Procurou a bolsa e acabou por encontrá-la. Trazia consigo uma carteira de fósforos. Acendeu um. Sentiu-se invadida pelo terror e pela náusea. A outra rapariga conseguira abrir a porta e estava com o corpo meio de fora quando o carro embatera de encontro à rocha.

Mildred apagou o fósforo, atirou-o fora e encostou-se ao carro. Estava quase a desmaiar. Lá em cima na estrada passou um carro. Mildred gritou a pedir socorro, mas a sua voz foi absorvida pelo silêncio sombrio, como um pingo de tinta por um mata-borrão. O carro prosseguiu na sua marcha, sem parar um momento.

Com um esforço desesperado, Mildred tentou recompor-se e fazer face à situação. Sofrera um abalo terrível. Contudo, embora sentisse o corpo dorido, não estava ferida. O coração batia-lhe desordenadamente mas o cérebro começava a funcionar com clareza.

Tinha de trepar até à estrada e fazer parar um motorista. Era preciso dar parte às autoridades.

Olhou para o vulto escuro da rapariga e, por um momento, desejou que se tivessem invertido os papéis e que fosse ela...

A ideia acudiu ao cérebro de Mildred com a rapidez de um raio. E porque não? Mildred podia apoderar-se da bolsa de Fern Driscoll. Havia de lá encontrar algum documento de identificação. Deixaria a sua bolsa ao pé da morta. O que dantes era a cabeça da outra, estava agora convertida numa massa informe, irreconhecível. Era preciso considerar também a questão das impressões digitais, pensou Mildred, calmamente. Iriam tirar as impressões digitais ao cadáver?

E se tirassem?

Mildred podia tentar. Se o corpo fosse identificado como sendo o de Mildred Crest, Mildred ficaria calada. Caso contrário, apresentar-se-ia, declarando que estava perdida e não sabia quem era. Era uma coisa que acontecia por vezes. Chamavam-lhe amnésia ratrógrada.

Baixou-se para procurar a bolsa de Fern por entre os destroços. Encontrou-a e pôs-se a pensar no que havia de fazer ao dinheiro que levava na própria bolsa. Bem, e então? Aquele dinheiro fora ganho com o seu trabalho honrado. Além disso, havia de precisar de bastante dinheiro... Decidiu transferir o dinheiro que levava na bolsa para a bolsa de Fern Driscoll. Já refeita da comoção, fez calmamente a troca.

Voltou a acender um fósforo e debruçou-se para colocar a sua bolsa junto de Fern. O fósforo queimou-Lhe os dedos. Deixou-o cair, abanando a mão com uma exclamação de dor.

A princípio apareceu uma chama pequenina, mas, daí a menos de um segundo, levantaram-se grandes labaredas. Quando a gasolina se incendiou, Mildred só teve tempo de dar um salto para trás. A parte posterior do carro transformou-se num braseiro.

Mildred, com a bolsa de Fern Driscoll fortemente apertada na mão, fugiu aos tropeções, pelo vale, afastando-se das chamas. Ouviu lá em cima na estrada os pneus de um carro chiarem com uma paragem brusca. Mildred desceu até ao fundo do barranco, alcançou o leito seco e pedregoso de um ribeiro que descia a montanha, e seguiu por ele fora. A luz das labaredas iluminava-lhe o caminho e permitia-lhe desviar-se dos ramos que lhe tolhiam o passo.

O que se seguiu foi um pesadelo composto de vários pesadelos. O terreno que percorria era escabroso. À medida que se afastava do incêndio, tinha cada vez menos luz. Por fim, encontrou-se às apalpadelas, no meio das trevas.

Quando ouviu o silvo de uma cobra cascavel, não foi capaz de localizar o ruído na escuridão. Mildred sabia que ela estava apenas a uns passos, e aquele silvo agoirento era uma mensagem de morte. Mildred deu um salto para o lado, tropeçou, caiu por cima de um arbusto, conseguiu desembaraçar-se por fim e fugiu a correr, às cegas, dominada pelo terror.

Daí a pouco ouviu as sirenas e viu um clarão avermelhado que indicava que o fogo se havia pegado à mata de arbustos próxima. Distinguiu o ruído dos carros de bombeiros e conseguiu encontrar finalmente um sítio por onde podia subir para a estrada.

Achavam-se vários carros estacionados na estrada, perto do local do acidente. Um homem com uma lanterna na mão estava a mandar parar o tráfego. Viam-se imensas pessoas que falavam em grande burburinho.

Mildred dirigiu-se para um casal idoso, com um ar amável, ajeitou o cabelo e compôs o fato e, ao chegar junto deles, perguntou:

- Os senhores importam-se de me dar uma boleia? Desci do carro para ver o fogo e a minha família voltou para Pala. Se eu pudesse telefonar...

- Mas eles hão-de dar pela sua falta e voltar para trás - redarguiu a senhora.

- Receio que não - volveu Mildred, verificando que era dotada de uma habilidade para mentir que sempre lhe passara despercebida. - Eu ia a dormir no banco de trás, tapada com um cobertor. Os meus pais pararam o carro para ver o desastre. Entretanto acordei e saí e eles devem ter passado por mim sem me verem. Pensam com certeza que eu ainda vou a dormir lá atrás, e só darão pela minha falta quando chegarem a casa.

- Onde é que mora? - perguntou a senhora.

- Em San Diego.

- Nós vamos para o lado oposto, para Riverside. Talvez fosse melhor...

- Não faz mal - atalhou Mildred. - Posso ir até Riverside com os senhores e de lá telefono para casa. Se os meus pais ainda não tiverem chegado, falo para a vizinha. Tenho pessoas amigas em Riverside.

E Mildred foi para Riverside. Daí apanhou um autocarro para Los Angeles. Registou-se numa pensão sob o nome de F. Driscoll.

A noite já ia adiantada quando Mildred teve oportunidade de revistar o conteúdo da bolsa. Só então começou a ver a trapalhada em que estava metida. Num compartimento, encontrou quarenta notas novas de cem dólares. Além disso, ainda havia mais uns duzentos dólares em notas de dez e de cinco, uma carta de condução passada em nome de Fern Driscoll, com residência em Lansing, Michigan, um cartão de seguro social, um baton, um lenço, uma caixa de pó de arroz e um maço de cartas atado com um elástico.

Mildred hesitou um momento, depois tirou o elástico e leu algumas das cartas. Eram cartas de amor, assinadas com o nome de "Forrie". Eram muito ternas, mas davam a entender que havia um conflito familiar, um pai que exercia a sua autoridade para obrigar o filho a "recuperar o juízo". Aquelas cartas avivaram ainda mais a dor de Mildred. Voltou depressa a fechá-las e a atá-las com o elástico.

Mildred recordou-se daqueles olhos escuros, ardentes de emoção, da ligeira impertinência que transparecia no rosto de feições bem delineadas, e da maneira impulsiva como Fern se comportara. Devia ser do género de pessoas que agem irreflectidamente e só muito mais tarde vêm a arrepender-se, se é que chegam a arrepender-se. No seu impulso histérico, a rapariga fizera que o carro se despenhasse no fundo do barranco e, depois, no último momento, arrependera-se da tentativa de suicídio e procurara salvar-se.

Não valia a pena, porém, estar a recordar o passado. O que Mildred tinha a fazer era enfrentar a realidade. A trágica morte de Fern Driscoll proporcionara-lhe, afinal, uma oportunidade única de escapar a tudo o que ficara para trás em Oceanside. Mildred deixou-se estar sentada a pensar um bom bocado antes de ir para a cama.

Mildred Crest passou portanto a ser Fern Driscoll. Pintou o cabelo de outra cor e começou a usar óculos escuros.

Mildred sabia que, com as suas habilitações e experiência, conseguiria arranjar um lugar de secretária com a maior facilidade. Seria preciso, no entanto, inventar uma história que justificasse a falta de apresentação de cartas de referência. Mildred estava certa, todavia, de que, no caso de a deixarem prestar provas, não teria dificuldade em conseguir um emprego.

Preocupava-a o dinheiro que achara dentro da bolsa. Era demasiado dinheiro. Mildred decidiu guardá-lo como fiel depositária até saber mais alguma coisa a respeito da rapariga cuja identidade passara a usar.

As notícias nos jornais eram exactamente que Mildred esperava. Os jornais de Oceanside traziam uma grande história. Mildred Crest, secretária de uma importante companhia, morrera subitamente num desastre de automóvel. A pessoa que ia ao volante parecia ter perdido o domínio sobre o carro e este despenhara-se numa ribanceira, na estrada que ia para Pala. A infeliz rapariga tinha meio corpo fora da porta, quando o carro embateu de encontro a uma rocha. Depois o carro incendiara-se e o corpo ficara parcialmente queimado antes da intervenção de um motorista que ia a passar haver conseguido debelar o fogo com um extintor de incêndio. O fogo pegara-se a uma mata de arbustos, e só foi possível apagá-lo daí a cerca de duas horas.

A seguir vinha uma referência que deixou Mildred em sobressalto.

As autoridades não estavam "completamente satisfeitas". O coroner (1) mandara proceder a um inquérito. Embora parte do carro tivesse sido destruída pelas chamas, por estranha coincidência a bolsa de Mildred Crest escapara. Lá dentro não se encontraram quaisquer notas de banco, só algumas moedas.

Além disso, as autoridades acharam uma pista que indicava que alguém havia saído do carro depois do desastre. O exame mostrava que a chave da ignição fora accionada e se tinham apagado as luzes. A Polícia considerava muito possível que qualquer pessoa houvesse saído pela janela do lado do motorista. Ia proceder-se à autópsia do cadáver.

Mildred ficou aterrorizada. Iriam descobrir, por meio da autópsia, que houvera uma troca de identidades?

Enquanto esperava pelos resultados da autópsia, Mildred continuou a usar o nome de Fern Driscoll, pois agora já não tinha outro remédio.

Comprou o San Diego Union e leu a notícia de que a autópsia revelara que "Mildred Crest" já estava morta antes de o fogo começar. Havia, no entanto, alguns pormenores suspeitos. O empregado de uma bomba de gasolina apresentara-se na Polícia, declarando que se recordava de ter vendido gasolina a Mildred Crest. Havia assinado o nome no talão de crédito, e depois voltara para trás, pagara a dinheiro e pedira-lhe que rasgasse o

 

(1) O Magistrado regional encarregado da investigação sobre os casos de morte em circunstâncias suspeitas.

 

talão. Era por isso que o homem se lembrava da venda a Mildred Crest. Lembrava-se ainda de uma rapariga que devia ir com ela no carro na altura em que acontecera o desastre. Sugeria-se então que essa rapariga assaltara Mildred para a roubar e que durante a luta, o carro havia saltado para fora da estrada.

A Polícia possuía uma descrição pormenorizada a respeito da rapariga em questão: vinte e três a vinte e quatro anos, cerca de um metro e sessenta e cinco de altura, cinquenta e cinco a sessenta quilos de peso, cabelo e olhos castanhos e bem vestida.

Depois vinha o remate da história: a autópsia reve­lara que "Mildred Crest" estava grávida de dois meses.

Mildred deixou cair o jornal da mão. Agora compreendia tudo. Fern Driscoll, uma rapariga talvez de boas famílias, no segundo mês de gravidez - o desapareci­mento, as quarenta notas novas de cem dólares, o fundo de emergência para poder subsistir até ao nascimento da criança, a infelicidade que se lia nos seus olhos, a vontade de continuar sempre a andar, sem destino certo...

E agora que Mildred Crest se apossara da identi­dade de Fern Driscoll e não se atrevia a revelar a sua verdadeira identidade, sabia que a gravidez de Fern Driscoll havia sido transferida para Mildred Crest.

O que diriam as más línguas de Oceanside!

Na reportagem do jornal dizia-se que a Polícia estava a envidar todos os esforços para descobrir o paradeiro da rapariga a quem Mildred Crest dera boleia e que certamente ia com ela na altura do desastre.

Como se não fosse suficiente ser marcada com o estigma da gravidez de outra mulher, Mildred era agora também suspeita de se ter assassinado a si própria.

Mildred ficou satisfeita com a sua decisão em começar a usar óculos escuros assim que chegou a Los Angeles. Usava-os sempre. Alegava que o sol forte da Califórnia lhe fazia arder os olhos, habituada como estava ao céu enevoado de Michigan.

 

Os escritórios da "Consolidated Sales & Distribution Company" onde Mildred trabalhava ficavam no mesmo edifício e no mesmo andar do escritório de Perry Mason, o famoso advogado. Mildred reparara no nome de Mason sobre a porta do seu escritório e ouvira muitas vezes histórias a respeito das ousadas façanhas do conhecido advogado e da sua engenhosa defesa de pessoas acusadas de crimes de que estavam inocentes.

Uma vez subira no elevador ao mesmo tempo que o advogado, e, ao contemplar-lhe os olhos perscrutadores e penetrantes e as feições bem vincadas e enérgicas, sentira uma estranha sensação de confiança.

Embora sem se aperceber disso, Mildred pensara que, se alguma vez acontecesse o pior, recorreria ao auxílio de Perry Mason.

Já estivera por duas vezes a ponto de entrar no escritório de Mason e pedir à sua secretária, Della Street, que lhe marcasse uma entrevista.

Desistiu das duas vezes, por causa de um receio subconsciente de que Mason lhe dissesse que ela não procedera bem, e insistisse em que se apresentasse às autoridades e esclarecesse a situação.

Mildred, quanto mais pensava nessa possibilidade mais se convencia de que semelhante passo lhe seria fatal. Tomara uma decisão e resolvera não voltar atrás. Não podia nem queria voltar atrás.

Mildred Crest não tinha ninguém de família. O pai morrera antes de ela nascer, ficara sem mãe quando tinha cinco anos. Fora criada por uma tia que morrera há três anos, e agora encontrava-se completamente só no mundo.

De vez em quando, sentia um rebate de consciência ao lembrar-se da vida anterior e das relações da rapariga que morrera, de cujo nome ela se apoderara. Mas, à medida que os dias passavam, na sua rotina calma, não via razões para tomar qualquer atitude radical.

Treinou-se a assinar o nome de Fern Driscoll, tomando como modelo a assinatura da carta de condução.

As quarenta notas de cem dólares permaneciam intactas.

Mildred alugara um apartamento bastante confortável. Ao sair do emprego, apanhava o autocarro, que a deixava quase ao pé da porta, O supermercado onde fazia as compras ficava dois quarteirões mais acima. Os únicos passeios de Mildred consistiam em ir de casa para o emprego e do emprego para casa, e em fazer as compras. Preparava as suas refeições no apartamento, não travou quaisquer relações no emprego e, a pouco e pouco mas com segurança, foi estabelecendo a sua identidade como Fern Driscoll.

Uma noite rebentou a bomba.

Mildred tivera um dia fatigante no escritório. Fizera horas extraordinárias para acabar umas cartas importantes. Perdera o autocarro do costume. Morta de cansaço entrou no prédio onde ficava o seu apartamento. Pensara em passar pelo supermercado, mas ocorreu-lhe que no frigorífico ainda havia provisões suficientes para o resto da noite, e tinha em casa ovos, presunto e torradas para o pequeno-almoço do dia seguinte. Não precisava de mais nada.

Não reparou no homem senão depois de já ter metido a chave à porta.

- Miss Driscoll? - perguntou ele.

A maneira como ele parecera ocultar-se para passar despercebido e depois a ameaça latente que lhe surpreendeu na voz, puseram Mildred de sobreaviso. Lançou-lhe um olhar rápido por detrás das lentes escuras.

- Que deseja? - inquiriu.

O homem acenou com a cabeça na direcção da chave.

- Abra a porta-disse ele. - É melhor entrarmos.

- Você não entra - ripostou Mildred. - Quem é o senhor? O que pretende? Como é que conseguiu entrar no prédio?

- O meu nome não significaria nada para si.

- Então o senhor não significa nada para mim.

- Parece-me que sim.

Mildred sacudiu a cabeça, irritada.

- Não é meu costume falar com desconhecidos. Vou entrar no meu apartamento e o senhor fica cá fora.

- Preciso de falar consigo a respeito de um acidente de automóvel que aconteceu próximo de Pala: um acidente que provocou a morte de Mildred Crest.

- Nunca ouvi falar de Mildred Crest- disse ela.- Nada sei a respeito desse acidente.

O homem sorriu com um ar condescendente e redarguiu:

- Olhe, eu não quero arranjar complicações, mas você e eu precisamos de discutir umas coisas e achava melhor que as discutíssemos com sossego.

- O que é isto afinal? Chantagem?

O riso dele era o de uma pessoa que se estava a divertir.

- Claro que não. Quero apenas discutir o acidente consigo. Prometo portar-me como um cavalheiro, e, se não cumprir a promessa, você tem o telefone à mão. Pode chamar o porteiro ou a Polícia... se é que lhe interessa chamar a Polícia.

- Mas não compreendo a que se está a referir.

- Compreenderá melhor, quando me der uma oportunidade de lho explicar.

Mildred lembrou-se da mulher que morava no apartamento ao lado e teve a sensação de que ela estava a escutar por detrás da porta. Era uma mulher magra, nervosa e bisbilhoteira que, já por várias vezes, tentara travar relações com ela e, quanto mais reservada Mildred se mostrava, maior se tornava a curiosidade da outra.

Tomou uma decisão rápida.

- Bem, entre. Ouvirei o que tem para me dizer, e nada mais. Sairá imediatamente a seguir.

- De acordo-retorquiu o homem. - Só quero que me ouça.

Mildred abriu a porta do apartamento. O visitante abordou logo o assunto, com um à-vontade que denotava que já trazia o discurso ensaiado.

- Chamo-me Carl Harrod - disse ele - e sou inspector de seguros. O automóvel de Mildred Crest estava no seguro, e fui encarregado de investigar o acidente. A primeira coisa que notei foi que Mildred Crest não ia a guiar na altura em que se deu o desastre. A segunda coisa que notei, foram as pegadas que indicavam que alguém saíra com vida dos destroços do carro e subira a ribanceira, desaparecendo na escuridão.

Fez uma pausa e sorriu com modéstia.

- Sou inspector mas não sou perito em seguir pistas, Miss Driscoll. No entanto, fiz o melhor que pude. Encontrei pegadas que desciam a ribanceira e, por fim, achei o que queria: o sítio por onde subiu. Não havia nenhum dinheiro na bolsa de Mildred; isto é, apenas algumas moedas e, contudo, soube que ela fora ao banco, levantar todo o dinheiro que lá tinha depositado, antes de sair de Oceanside. Devia haver mais de quinhentos dólares dentro da bolsa. Para sua informação, digo-lhe que Mildred Crest recebeu um grande choque no dia da sua morte. Estava para casar com um rapaz que, conforme se descobriu, havia cometido um desfalque. Anda agora fugido à Polícia.

Carl Harrod recostou-se na cadeira e sorriu.

- Segundo as aparências indicam, Mildred Crest já estava morta antes de o fogo começar. Na traqueia não foram encontrados quaisquer vestígios de subprodutos da combustão. O cirurgião que levou a efeito a autópsia poderia contar muito mais coisas, mas suponho que não está interessada em pormenores de ordem técnica. Presumo que, nesta altura, já deve saber que Mildred Crest se encontrava no segundo mês de gravidez. Conjugando estes factos todos, é possível chegar-se a uma conclusão interessante e altamente dramática, a uma história que, infelizmente, se repete com frequência.

Harrod sorriu com afabilidade.

- Estou a aborrecê-la?

- Prossiga - disse Mildred.

- A nossa investigação foi, em grande parte, simples trabalho de rotina, até que descobri a estação de serviço onde Mildred comprara gasolina, pela última vez. O empregado disse-me que ela dera uma boleia a uma rapariga, que esta lhe perguntara para onde ia e que Mildred respondera que não levava destino determinado. Depois de ter visto o que acontecera no local do desastre, fiquei interessado nessa rapariga que pedira a boleia, como é natural. De tacto, não foram precisos grandes esforços para a encontrar, Miss Driscoll. A sua mala estava no carro quando ele se despenhou pela ribanceira abaixo. A parte de fora ficou danificada pelo fogo mas, mesmo assim, consegui localizar a loja que a vendera, e, pelo respectivo registo, fiquei a saber o seu nome. Pensei que era natural que se dirigisse à cidade e procurasse trabalho. Levei este tempo todo para a descobrir.

- O que pretende? - perguntou Mildred.

- De momento, pretendo uma declaração assinada por si.

- Que género de declaração?

- Uma declaração de que ia a guiar o carro no momento em que se deu o acidente. Pretendo uma declaração escrita pelo seu próprio punho, contando a maneira como saiu do carro, atravessou a ribanceira, conseguiu por fim subir para a estrada, e como veio para aqui, tudo isso sem comunicar às autoridades nada do que sucedera. Quero também uma declaração assinada de que tirou o dinheiro da bolsa de Mildred. Esta declaração libertará a companhia de seguros de quaisquer compromissos, visto que admite que o acidente se verificou apenas por sua culpa.

"Chegamos agora a uma parte bastante sórdida do caso. Atendendo a que teve a oportunidade de subtrair o dinheiro de dentro da bolsa de Mildred, que teve a oportunidade de tirar a sua bolsa de entre os destroços, é bastante evidente que o fogo não começou senão depois de decorrido um intervalo apreciável após o carro ter caído na ribanceira. É, por isso, bastante claro que você lhe lançou fogo deliberadamente, para ocultar as provas do seu furto. Gostaria que me assinasse uma declaração nesses termos.

- Julga que estou doida? - perguntou Mildred. Harrod encolheu os ombros.

- Afinal de contas, todos esses factos são óbvios, Miss Driscoll. Porque não havia de assinar uma declaração?

- Não seja parvo - retorquiu ela. - Nunca vi Mildred Crest em toda a minha vida. Não me meti em automóvel nenhum. Não fui eu...

A voz da rapariga extinguiu-se num murmúrio. Harrod sorriu com um ar superior.

- Parou para pensar, não foi, Miss Driscoll? Julgou que o fogo destruiria a maior parte das provas, mas não destruiu quase nada. Passou por ali um motorista que levava um extintor de incêndios no carro. O depósito derramara muita gasolina quando o carro embateu numa rocha. Esse fogo não pôde ser debelado mas, graças ao extintor de incêndios, as labaredas da retaguarda do carro de Mildred foram apagadas. Descobri por isso que a mala de que lhe falei fora comprada em Lansey, Michigan. Procedi a uma pequena investigação em Lansing. A menina gozava lá de reputação excelente. Abandonara de uma hora para a outra um óptimo emprego, sem dizer a ninguém para onde ia.

- O que tenciona fazer com essa declaração, se eu lha passar? - inquiriu Mildred.

- Bem, aí está uma pergunta interessante. Para lhe falar com franqueza, Miss Driscoll, não me conheço bem a mim próprio. Teoricamente, devia apresentar um relatório completo da situação e agrafar a declaração ao relatório... Contudo, não sei se o farei.

- Porquê?

- Considero-a bastante inteligente. É bonita, também. Um dia há-de casar. É possível até que faça um casamento de conveniência. Em resumo, tem um belo futuro na sua frente.

- Isso é chantagem!

- Ora, chantagem é uma palavra muito feia. Por favor, Miss Driscoll, lembre-se de que lhe não pedi mais nada além de uma declaração assinada.

- Não tenho a mínima intenção de a escrever.

- É claro que essa seria a primeira reacção a esperar - retorquiu Harrod. - Acaba de chegar do escritório. Sei que está cansada. Com certeza quer ir preparar o jantar e já vejo que deseja ficar só. Vou deixá-la reflectir no caso durante um dia ou dois, e, então, pôr-me-ei novamente em contacto consigo.

Harrod encaminhou-se para a porta, voltou-se e sorriu a Mildred.

- Voltarei a visitá-la, Miss Driscoll. E por favor, por favor não se esqueça de que lhe pedi apenas uma declaração assinada, relatando os factos sucedidos. Faço-lhe este pedido na minha qualidade de inspector de uma companhia de seguros. É um pedido inteiramente legítimo, em especial se atendermos à possibilidade de a senhora vir a apresentar um pedido de indemnização à companhia que represento. Quero frisar este ponto, prevendo a hipótese de ir consultar um advogado, um detective particular, ou mesmo a Polícia. Tudo o que lhe peço é somente uma declaração assinada do que aconteceu.

Gostaria que me repetisse isto por palavras suas. Qualquer pessoa lhe dirá que é uma exigência habitual em casos desta natureza. Muito obrigado, Miss Driscoll; tive muito prazer em visitá-la. Tornarei a vê-la brevemente, Boa noite.

Harrod desapareceu do outro lado da porta.

Mildred viu a porta fechar-se, invadida de súbita inquietação.

Estavam cortadas todas as possibilidades de fuga.

O que Harrod, pelos vistos, ainda não sabia, mas havia de descobrir em breve, era o pormenor dos quatro mil dólares que retirara da bolsa de Fern Driscoll.

Em virtude do seu procedimento, seria agora difícil explicar a maneira como o fogo realmente principiou. Harrod imaginara que ela se apoderara da bolsa da outra rapariga, e lançara fogo ao carro pra encobrir o seu roubo.

Fosse na identidade de Mildred Crest, que roubara quatro mil dólares a Fern Driscoll, ou na identidade emprestada, de Fern Driscoll, que roubara cerca de quinhentos dólares a Mildred Crest, encontrava-se entre dois fogos.

E, por detrás de tudo isto, havia a possibilidade de ser inculpada de um assassínio de primeiro grau.

 

Della Street, a secretária particular de Perry Mason, disse:

- Esteve cá uma rapariga, empregada na "Consolidated Sales", que deseja falar consigo. Diz que é uma questão de poucos minutos e que poderá cá vir em qualquer altura que puder recebê-la, pois é-lhe possível ausentar-se do emprego por uns dez ou quinze minutos assim que lhe telefonarmos.

- Disse do que se tratava? - perguntou Mason.

- Disse apenas que era um assunto particular. Mason consultou o relógio e, em seguida, a lista dos seus compromissos para esse dia. Depois comentou:

- Há coisas que são uma questão de quinze ou vinte minutos mas, na maioria dos casos, levam uma hora, e não era justo mandar a rapariga embora quando ainda fosse a meio da sua história. Mas temos cerca de meia hora disponível... Telefone-me, Della, e pergunte-lhe se pode cá chegar agora. Como se chama ela?

- Fern Driscoll.

- Conhece-a?

- Não me lembro dela. Disse que já me tem visto no elevador. Parece-me que entrou há pouco tempo para a companhia.

- Dê-lhe uma apitadela e diga-lhe que, neste momento, estou disponível. Avise-a, porém, de que não posso perder mais de vinte minutos, pois a seguir tenho de atender um cliente.

Della acenou afirmativamente com a cabeça e dirigiu-se para o telefone.

Daí a momentos estava de volta, informando:

- Vem já aí. Vou à sala de espera ao seu encontro.

- Não perca tempo com os preliminares, perguntando-lhe o nome, endereço e tudo isso. Trataremos desses pormenores quando aqui chegar. Quero ouvir a história dela e despachar o assunto o mais depressa possível.

Della Street fez um gesto de assentimento, foi à sala de espera e voltou daí a menos de um minuto. Viran-do-se para a rapariga que a acompanhava, disse:

- Apresento-lhe Mr. Mason, Miss Driscoll... Fern Driscoll, Mr. Mason.

- Sente-se, Miss Driscoll - convidou Mason. - Trabalha na "Consolidated Sales & Distribution Conpany", não é verdade?

- Exactamente.

- Onde mora, Miss Driscoll?

- "Apartamentos Rexmore", 309.

- Qual o motivo que a levou a consultar-me? - e depois acrescentou, com um modo afável: - Sou especialista em casos que envolvem julgamento e, grande parte deles, são casos de direito criminal. Tenho a impressão de que não está a falar com a pessoa indicada, mas talvez eu possa ajudá-la a pôr-se em contacto com a pessoa que lhe interessa.

A rapariga inclinou ligeiramente a cabeça e disse:

- Muito obrigada. Peço-lhe que me desculpe estar de óculos escuros, mas, desde que cheguei à Califórnia, há cerca de duas semanas, tenho tido uma inflamação na vista. Como vim de boleia, parece-me que a retina ficou um pouco irritada pelo sol. Por acaso leu no jornal, há duas semanas, aproximadamente, a notícia de um acidente de automóvel em que morreu Mildred Crest, de Oceanside?

Mason sorriu e abanou a cabeça.

- Esses acidentes de automóvel acontecem às centenas. Os jornais costumam dar a notícia em conjunto com outras, numa das páginas interiores. Havia qualquer coisa de especial a respeito da morte de Mildred Crest?

- Eu ia com ela no carro quando se deu o desastre.

- Ah, compreendo - redarguiu Mason, fitando-a com um olhar penetrante. - Ficou ferida?

- Felizmente, fiquei apenas com umas nódoas negras. Tive o corpo dorido um dia ou dois, mas foi tudo.

Mason acenou com a cabeça.

- Mr. Mason, tenho de lhe contar certas coisas, para o senhor poder compreender a situação. Eu vivia em Lansing, Michigan. Resolvi sair de lá, por razões pessoais. Posso assegurar-lhe que não transgredi nenhuma lei. Queria, apenas, ir para um outro lado qualquer, onde pudesse recomeçar novamente a vida. Sentia-me inquieta e nervosa. Tinha dinheiro suficiente para comprar o bilhete fosse para onde fosse que quisesse ir, mas o facto é que não sabia para onde queria ir. Andava à deriva. Pedia boleias.

- Prossiga - disse Mason.

- Cheguei a Phoenix, fiquei lá uns dias, depois fui para San Diego, onde permaneci apenas umas horas. Fui até a uma pequena povoação chamada Vista, e fiquei ali parada um bocado. Eram... não sei ao certo, talvez sete e meia ou oito horas da noite. Já estava escuro. Foi então que vi o carro de Mildred Crest aproximar-se.

- Conhecia-a? - perguntou Mason.

- Não. Eu estava simplesmente ali na estação de serviço, à espera de arranjar boleia. Compreende, uma rapariga sozinha a pedir boleias na estrada é muito diferente de um homem. Um homem pode parar em qualquer altura e começar a agitar o dedo e, quem quer que seja que pare, serve-lhe. Contudo, poucos param. Uma rapariga no meio da estrada consegue arranjar boleia facilmente. Quase todos os carros param e a convidam a entrar, mas... Bem, eu não gosto de me arriscar assim.

Prefiro parar numa estação de serviço, onde posso observar as pessoas e só depois lhes pedir para ir com elas.

- Pediu a Mildred Crest que a levasse?

- Sim.

- E o que aconteceu?

- Apercebi-me de que Mildred ia a fugir de qualquer coisa, e que estava bastante transtornada... Por exemplo, quando lhe perguntei para onde ia, disse que não sabia. Pensei que talvez pudéssemos desabafar uma com a outra passado algum tempo. Eu também tinha as minhas preocupações, mas as dela pareciam ser ainda maiores. Tomámos pela estrada em direcção a Pala e depois virámos para a outra estrada que desce de Pala, e foi então que se deu o desastre.

- Como é que isso aconteceu?

- Foi um acidente. Ao fazer a curva, apareceu outro carro em sentido oposto. Tentei evitar... isto é, tornava-se impossível evitar o choque por completo, pois o outro vinha a grande velocidade. Passou por nós, batendo-nos de lado. Não foi uma pancada muito violenta, mas o suficiente para desequilibrar o carro e o precipitar pela ribanceira abaixo. Segundo penso, Mildred tentou abrir a porta do carro ao ver que ia a cair, mas não teve tempo de saltar. Tinha metade do corpo de fora da porta quando se deu a colisão. Bateu com a cabeça numa rocha e deve ter morrido instantaneamente.

Mason reflectiu uns momentos e depois perguntou:

- Quem é que ia a guiar? Mildred susteve a respiração.

- Nessa altura, ia eu.

- Porquê?

- Bem, assim que começámos a andar, conversámos um pouco e percebi que Mildred estava muito nervosa. Perguntou-me se eu sabia guiar e disse-lhe que sim. Começou a chorar, tentando limpar as lágrimas dos olhos enquanto guiava. Por isso, ofereci-me para conduzir um bocado, e ela aceitou.

- Qual das duas escolhia as estradas?

- Ela ia-me dizendo qual a estrada a tomar.

- Se seguiam de Vista para Pala e depois, em Pala, deram a volta e tomaram pela estrada a descer, vinham a voltar para trás e...

- Bem sei. Parece-me que ela afinal resolveu regressar a Oceanside, mas... Bem, como veio a saber-se depois, havia razões para...

- Já me lembro do caso - atalhou Della Street. Voltou-se para Perry Mason e disse:-Veja lá se se recorda, Chefe. Nós comentámo-lo entre nós. A rapariga acabava de saber que o noivo cometera um desfalque, e que era procurado pela Polícia. A autópsia revelou que estava grávida.

- Ah, é verdade! - exclamou Mason, olhando para a visitante com redobrado interesse. - Ela não lhe disse nada a esse respeito?

- Não. Era capaz de acabar por dizer qualquer coisa, mas não houve tempo. Começávamos a entabular conversa, quando se deu o desastre.

- Muito bem - comentou Mason. - E por que motivo veio procurar-me?

- Porque eu... eu procurava desaparecer. Claro que não queria que o meu nome aparecesse nos jornais e receava que, se os jornais publicassem a notícia de que Fern Driscoll, de Lansing, Michigan, se encontrava no carro no momento do desastre, os correspondentes de Lansing seriam informados e o jornal de lá... Bem, sabe o que eles costumam fazer: escrevem um curto parágrafo por debaixo de um cabeçalho do género: "UMA NOSSA CONTERRÂNEA ENVOLVIDA NUM ACIDENTE DE VIAÇÃO NA CALIFÓRNIA". Era precisamente isso que eu não queria. Quis conservar-me afastada de tudo aquilo.

- E então o que fez? Mildred hesitou um momento.

- Eu... tenho a impressão de que posso ser acusada de negligência. Fui eu quem teve a culpa de o carro se incendiar.

- Como é que isso aconteceu?

- Certifiquei-me de que não estava ferida. Esgueirei-me pela janela do lado esquerdo do carro. A porta estava emperrada mas a janela encontrava-se aberta. Eu recebera um grande choque e estava bastante nervosa. Acendi um fósforo para observar o que se passava. Queria ver se poderia auxiliar a outra rapariga.

- Mildred?

- Exactamente.

- E depois?

- Assim que a vi entalada na porta do carro, com a cabeça... Eu... senti umas náuseas terríveis. Era um espectáculo horroroso. Ela tinha meio corpo fora do carro e a cabeça de fora... estava completamente esmagada. Era uma massa disforme. Mason fez um sinal afirmativo.

- Depois disso, ainda levei um bocado a recompor-me e, claro, durante esse tempo, a gasolina continuava a escorrer do carro. Pelos vistos, caía da parte de trás do carro e vinha a deslizar para a frente. Nessa altura, eu não sabia bem o que se estava a passar e não avaliei o perigo. Acendi segundo fósforo e, quando senti que ele me queimava os dedos, deixei-o cair. Levantou-se uma labareda, dei um salto para trás e tudo aquilo começou a arder.

- Não ficou com o cabelo ou as sobrancelhas chamuscadas?- perguntou Mason.

- Não, eu não estava com o fósforo ao pé da cara.

- E o que fez então?

- Felizmente trouxera a bolsa comigo. A minha mala, com tudo o que possuía, encontrava-se dentro do carro. Comecei a correr para fugir do fogo e encontrei-me no fundo de um pequeno barranco... Nessa altura parece-me que me deixei dominar pelo pânico. Quase tropecei numa cobra cascavel. Bem, no momento em que cheguei à estrada, só queria afastar-me dali e evitar que o meu nome viesse nos jornais, por isso... Foi isso que fiz.

- Não comunicou o acidente às autoridades? A rapariga abanou a cabeça.

- Há quanto tempo se deu o acidente?

- Há quase duas semanas. Foi no dia vinte e dois. Mason semicerrou os olhos.

- E entretanto aconteceu qualquer coisa que a levou a procurar-me.

- Exactamente.

- O que foi?

- Um homem chamado Carl Harrod apresentou-se no meu apartamento ontem, à noite. É inspector da companhia de seguros. Pela posição do carro e pela maneira como as portas estavam emperradas, era óbvio que só a pessoa que ia ao volante se poderia ter esgueirado pela janela. A minha mala de viagem ficara no carro e não fora completamente destruída pelas chamas. Um automobilista que por ali passou conseguiu debelar o fogo com um extintor de incêndios. A bolsa de Mildred também não ardeu... Bem, esse Harrod começou a relacionar as coisas. Descobriu que Mildred dera uma boleia a alguém em Vista e, a partir de Vista, conseguiu localizar a pessoa que pedira a boleia, o que não foi extremamente difícil.

"Compreende, uma rapariga que pede boleia e é... - interrompeu-se para sorrir a Mason e prosseguiu: - ... bem, que é engraçada, desperta, como é natural, as atenções. Dei o meu verdadeiro nome a uma das pessoas que anteriormente me oferecera boleia e havia ainda a pista da mala de viagem e... Enfim, ele conseguiu encontrar-me.

- O que pretendia Harrod? - inquiriu Mason.

- Pretendia que eu assinasse uma declaração.

- A respeito do acidente?

- Sim.

- Assinou-a?

- Não.

- Porquê?

- Porque... porque tenho a impressão de que Mr. Harrod não quer a declaração para a apresentar à companhia de seguros mas... acho que ele pretende servir-se dela para outro fim.

- Chantagem?

- Não me admirava muito.

- Fez-lhe algumas insinuações a esse respeito?

- Deu-me a entender qualquer coisa nesse género. Depois, antes de sair, teve o cuidado de frisar que me pedira apenas uma declaração por escrito e nada mais.

Mason tamborilou com os nós dos dedos no tampo da secretária.

- E agora que devo fazer? - perguntou ela.

- Deixou-se chegar até esta altura sem participar o acidente às autoridades. É grave. Mas espere mais umas vinte e quatro ou quarenta e oito horas. Se Mr. Harrod voltar a visitá-la, quero que lhe diga apenas o que lhe vou dizer.

- O que é?

- Tem um lápis?

A rapariga abanou a cabeça.

Mason fez sinal a Della. Della entregou à outra um bloco de estenografia e um lápis.

- Sabe estenografia? - perguntou Mason.

- Sei.

- Então tome nota. Eis o que deverá dizer a Mr. Harrod. Abra aspas, Mr. Harrod, consultei o meu advogado Mr. Mason a respeito dos assuntos relacionados com a sua visita anterior. Mr. Mason disse-me que no caso de o senhor tornar a procurar-me, lhe dizer que se ponha em contacto com ele. Por isso, peço-lhe que telefone a Mr. Mason, que está a representar-me neste caso. Se do seu escritório não responderem ou se for de noite, ligue para a "Agência de Detectives Drake" e deixe o recado a Mr. Paul Drake. Mr. Mason é o meu advogado. Além disto, nada mais tenho para lhe dizer. Não me interessa discutir o assunto consigo. Não me interessa também confirmar ou negar qualquer dedução que o senhor possa ter feito. Para toda e qualquer informação a respeito do caso em questão queira dirigir-se a Mr. Mason.

Mason observava o lápis que voava sobre a folha do bloco com traços ágeis e seguros.

- É uma boa estenógrafa - comentou. A rapariga sorriu.

- Julgo que sim. Sou rápida e exacta. Mason olhou para o relógio.

- É tudo o que tem a fazer. Arranque a folha do bloco, leia-a o número de vezes suficiente para a decorar, e se Mr. Harrod aparecer, mande-o vir falar comigo.

Ela percebeu pelo tom da sua voz que a entrevista chegara ao fim e pôs-se de pé.

- Quanto lhe...

Mason fez um gesto com a mão.

- Não se preocupe com isso. Está empregada no mesmo andar, o que faz que sejamos como vizinhos. Além disso, não tem a mínima importância. Um momento! Tem, por acaso, uma moeda de cinco cêntimos?

- Com certeza.

- Bem - disse Mason, sorrindo-dê-me cá. Isto significa que fui pago para defender os seus interesses e tudo o que me contou fica sobr segredo profissional. Do mesmo modo, tudo o que lhe disse é absolutamente confidencial. Agora volte para o seu trabalho e deixe de preocupar-se por causa de Mr. Harrod. Se ele se tornar maçador, havemos de arranjar maneira de o aquietar.

- Muito obrigada, Mr. Mason. - E estendeu-lhe a mão impulsivamente.

Mason segurou a mão dela por um momento, fitou-a com um olhar perscrutador e disse:

- Miss Driscoll... Tem a certeza de que me contou tudo?

- Mas, claro que sim.

- Bem, então volte para o escritório.

Depois de ela sair, Mason virou-se para Della Street.

- Que lhe pareceu isto, Della?

- Ela está, de facto, assustada. Porque lhe disse que não participasse o acidente? Não se arriscou ao dar-lhe esse conselho?

- Talvez. Não quis, porém, que ela se afundasse mais do que já está. A história que contou a respeito do que aconteceu não é verdadeira. Não quero que faça uma participação falsa.

- Em que medida não é verdadeira?

- O outro carro não a empurrou da estrada. Repare que ela disse: "Era impossível evitar o choque por completo." Nunca ninguém relatou um desastre de automóvel dessa maneira. Uma pessoa, normalmente, diria: "Embora nos chegássemos o mais possível para a nossa mão, o outro carro bateu-nos."

Della Street reflectiu um pouco e depois, com ar pensativo, acenou com a cabeça. Mason disse:

- Agora que já conhece esta Fern Driscoll, há-de encontrá-la no elevador e na sala de convívio. Conserve-a debaixo de olho e veja se consegue que ela confie em si. Tenho um palpite de que a situação vai modificar-se dentro das próximas quarenta e oito horas.

- E devo apresentar-lhe o relatório a si? - inquiriu Della Street.

- É essa a minha ideia.

 

Naquela noite, quando Mildred acabava de lavar a louça do jantar e de arrumar a cozinha, ouviu tocar a campainha da porta. Respirou fundo, arvorou a expressão com que desejava receber Carl Harrod e abriu a porta.

A rapariga que se encontrava no patamar teria talvez uns vinte e um ou vinte e dois anos. Era morena, de feições bem delineadas, e com um queixo erguido que denotava orgulho, princípios, e uma certa firmeza de carácter. Os seus olhos cinzentos miravam Mildred com interesse.

- Que deseja? - perguntou Mildred, por fim, quebrando o silêncio.

- Oh! Fern,- disse a outra. - Eu... É Fern Dris-coll, não é?

Mildred acenou afirmativamente com a cabeça.

- Sou Kitty Baylor - anunciou a rapariga, como se o nome explicasse tudo. Depois acrescentou:-A irmã de Forrie.

- Oh! - exclamou Mildred, esforçando-se por ajustar o raciocínio, a fim de poder fazer frente a esta nova complicação.

- Bem sei - prosseguiu a visitante, proferindo as palavras rapidamente - que sou a última pessoa no mundo que esperava encontrar, a última pessoa que desejaria encontrar. Contudo, há certas coisas que somos obrigados a encarar, e não serve de nada fugir delas. Eu estava em Stanford, sabe, e quando tomei conhecimento do que se passou... Oh, Fern, por favor deixe-me entrar para podermos discutir o assunto. Precisamos de arranjar uma solução qualquer.

Mildred desviou-se para o lado.

- Entre.

- O Forrie falou-me de si - prosseguiu Kity Baylor.- Não sei... Não sei como hei-de começar.

Mildred fechou a porta.

- Não se quer sentar? Kitty sentou-se.

- Nunca fomos apresentadas, mas com certeza já ouviu falar de mim, e eu já ouvi falar de si.

Kitty Baylor fez uma pausa e Mildred acenou com a cabeça, a tentar ganhar tempo.

- Parece-me que é uma pergunta justa a que vou fazer-lhe-continuou ela. - Porque é que, de repente, fez as malas e se veio embora? Por que motivo abandonou todas as pessoas amigas e desapareceu sem mais nem menos?

Mildred retorquiu, com ar digno:

- Acho que não tenho satisfações a dar-lhe a respeito das minhas acções.

- Muito bem. Então vou pôr as cartas na mesa. Isto vai feri-la. Não me agrada ter de dizer algumas das coisas que vou dizer, mas não tenho outro remédio.

Mildred não disse nada. Kitty respirou fundo.

- Estou tão interessada em proteger a sua reputação como a reputação da minha família. Parece-me... parece-me que só há uma maneira de dizer o que tenho a dizer, e terei de ser de uma franqueza brutal. Você e o Forrie timham uma grande intimidade. Eu sei disso.

Kitty interrompeu-se e Mildred manteve-se em silêncio. Kitty esperou um momento. Depois ergueu o queixo e fitou Mildred nos olhos.

- Um homem que o papá considera um chantagista tem andado a procurar ligar os factos para escrever uma história à base de escândalo. Quer publicá-la numa revista cujo forte é descobrir roupa-suja com um cheiro a pornográfico. A história diz-lhe respeito a si. Está interessada?

Mildred tentou dizer qualquer coisa mas não conseguiu.

- Muito bem-prosseguiu Kitty. - Vou dizer-lhe de que consta a história. Você e Forrie estavam a viver juntos. Você ficou grávida e o Forrie foi falar com o papá. O papá enfureceu-se, vendo que ele punha em perigo a reputação da família. Você recebeu uma importante quantia para se vir embora e ter a criança noutro sítio. Queria que o Forrie casasse consigo, mas o papá não o deixava sequer considerar essa hipótese, e o Forrie estava sob o jugo do papá.

Kitty calou-se e Mildred, não sabendo o que dizer, conservou um silêncio constrangido. Kitty parecia encolher-se dentro do vestido.

- Bem, tenho a impressão que é verdade. Teria jurado que não era. Nunca pensei que o papá pudesse fazer uma coisa dessas. Sei que ele não era pessoa para isso. Ele admite que falou com Forrie a seu respeito e que pretendia, de facto, que o Forrie casasse com alguém do seu nível social. Julgo que não é segredo que o papá queria, e ainda quer, casá-lo com Carla Addis.

A voz de Kitty, de repente, assumiu um tom fatigado.

- Bem sei que estou a tomar uma responsabilidade muito grande às minhas costas - continuou ela - mas isto é importante, é importante para todos nós. Quer dizer alguma coisa?

Mildred abanou a cabeça.

- Bem, vou pôr as minhas cartas na mesa, Fern. Se a história é verdadeira, estou do seu lado. Se se encontra grávida e a mandaram embora dessa maneira, tomarei uma atitude. Você é mulher, e eu também sou. Julgo que gosta do Forrie. Eu sou irmã dele e adoro-o. Bem sei que ele tem defeitos. Sei também que o papá se preocupa excessivamente com as questões de posição social, e, se calhar, conseguiu convencer o Forrie a pensar como ele.

Mildred continuou silenciosa.

- Por outro lado - disse Kitty, cravando os olhos nos de Mildred - pode ser o que o papá pensa: qualquer plano de chantagem, pelo qual você está a contar prejudicar a família, e estragar o futuro de Forrie, movendo-lhe um processo de paternidade, ou aliando-se a esse Harrod para nos extorquir dinheiro. Se é esse o caso, está a preparar-se para se meter numa grande complicação. O papá é um lutador, e não faz ideia da dureza que ele é capaz de empregar na luta. Você vai comprar um bilhete para a penitenciária por tentativa de chantagem. Vim aqui para descobrir a verdade.

Mildred enfrentou o olhar de Kitty e, de repente, retorquiu:

- Lamento muito, mas não posso dizer-lhe o que pretende saber.

- Porquê?

- Porque não sei.

O olhar de Kitty denotava desconfiança.

- Quer dizer que não sabe se vai ter um bebé?

- Não é isso. É que... é que...

- Quer fazer chantagem? Precisa de dinheiro?

- Não é isso. Eu não quero...

Mildred levantou-se abruptamente, atravessou a sala até à janela e pôs-se a contemplar, distraída, o trânsito da rua. Depois virou-se, de súbito.

- Bem, parece-me que tenho de lhe contar tudo. Promete não me interromper e deixar-me contar a história à minha maneira?

- Com certeza. Fale.

Mildred esperou uns segundos e, a seguir, decidiu-se:

- Eu não sou Fern Driscoll.

Lentamente, com pormenores, narrou a Kitty o que se passara na noite em que dera uma boleia a Fern Driscoll, e a visita que Carl Harrod lhe fizera.

- Por isso talvez haja qualquer coisa de verdade no que esse tal Harrod diz - rematou Mildred. - Julga que eu sou Fern Driscoll. Não me parece que ele tenha suspeitado de qualquer troca de identidades.

Kitty piscou os olhos, tentando adaptar-se à nova situação. Por fim, perguntou:

- Então você não é...?

- Não - redarguiu Mildred.

Kitty ficou calada uns segundos. Depois disse, com ar pensativo:

- Não me parece que Harrod acredite, de facto, que você é Fern Driscoll. Tenho a impressão de que ele quer ver se consegue que assine uma declaração em nome de Fern Driscoll para depois a ter na mão. Nessa altura pode obrigá-la a fazer e a dizer o que ele quiser. Anda na pista de uma história, que ele conseguiria transformar num escândalo sensacional. Lamento muito o que aconteceu a Fern. Nunca a conheci, mas sei que Forrie gostava dela e... Santo Deus! Que grande complicação! Esse Harrod tem realmente uma história de primeira: amores sórdidos, encontros clandestinos entre a secretária e o filho de um rico industrial, depois o pai arrogante, com o poder da sua fortuna ...Você não conseguiu enganar Harrod. Quanto mais penso nisso, tanto mais claro vejo. Harrod disse ao papá que Fern estava grávida de dois meses. Deve ter sabido isso pela autópsia.

- Pode ser que ela o contasse a alguém - sugeriu Mildred.

- É verdade.

- Porque se foi ela embora? - perguntou Mildred.

- Se calhar, por ser uma rapariga de vergonha.

Devia amar bastante o Forrie, e não queria que acontecesse alguma coisa que o pudesse prejudicar. Mesmo que casassem, ela sabia que a criança havia de nascer cedo de mais e... Não, o Forrie não a teria deixado ir embora.

- Ninguém sabe disto, Kitty, mas havia quatro mil dólares na bolsa de Fern. Quarenta notas novas de cem dólares.

Kitty olhou para Mildred, estarrecida.

- Onde se encontra o dinheiro agora?

- Sou eu que o tenho.

- Santo Deus! Isso ainda torna melhor a história de Harrod! A pobre secretária, ao ver que estava grávida, tenta fazer com que o filho do rico industrial case com ela. O industrial empurra-a para o mundo cruel e impiedoso, metendo-lhe na mão quatro mil dólares, para se afastar dali para sempre. Não pode ser verdade, Mildred!

- O facto é que ela tinha quatro mil dólares dentro da bolsa - retorquiu Mildred com firmeza. - Não sei onde os arranjou. E a autópsia indicou que estava grávida de dois meses.

Kitty levou as mãos às têmporas.

- Que trapalhada! Contou alguma coisa ao Harrod, Mildred?

- Não lhe contei absolutamente nada. Fui ter com Perry Mason, o advogado. Se Harrod voltar, devo dizer-lhe isto. - Leu as notas estenografadas.

Os olhos de Kitty Baylor brilharam com um entusiasmo repentino.

- É isso mesmo. É a solução indicada. Vamos deixar Perry Mason tratar da saúde a esse nojento chantagista.

- O pior é se ele não vai procurar Perry Mason- retorquiu Mildred. - Se, como você pensa, ele sabe que eu me apoderei da identidade de Fern Driscoll, há-de preparar uma armadilha e... - Interrompeu-se, ao ouvir retinir a campainha.

- Deve ser ele - disse Mildred, levantando-se e preparando-se para ir à porta.

Kitty deteve-a.

- Espere aí - murmurou. Mildred estacou.

- Se não se importa, vou eu abrir e digo-lhe que sou Fern Drisooll, e pergunto-lhe que história é essa de eu estar grávida de dois meses e ferro-lhe um estalo. Está bem?

- Ele não a conhece de vista? - perguntou Mildred em voz baixa.

Kitty abanou a cabeça.

- Cá por mim, não me oponho - redarguiu Mildred. - Mas tenho a impressão de que não o conseguirá convencer. Parece-me que Harrod sabe que Fern Driscoll morreu no desastre... E, quando você lhe ferrar o estalo, ele dá-lhe um murro. Um homem como Harrod não se preocupa com os preconceitos que dizem que não se deve bater numa senhora.

- Deixe-o à minha conta - disse Kitty, avançando para o vestíbulo.

Mildred ouviu o ruído da porta a abrir-se, e depois a voz de Kitty:

- Julgo que não me conhece. Sou... Foi interrompida pela voz de Harrod.

- Não precisa de mo dizer. Digo-lhe eu: É Miss Katherine Baylor. Permitam-me que me apresente. Sou Carl Harrod!

A voz de Kitty perdeu a firmeza.

- Como... Como sabe quem eu sou? Nunca me viu. Harrod riu-se:

- Lembre-se de que não sou nenhum principiante neste jogo. Imaginemos até que adivinhei por dedução. Também podia tê-la seguido desde o "Hotel Vista del Camino", sabendo que a sua família se hospeda sempre lá, e calculando que havia de aparecer um membro da família para tentar abafar o caso...

- Muito bem, Mr. Harrod--interrompeu Kitty.Tenho andado à sua procura. Agora deixe que lhe diga umas coisas. Em primeiro lugar, se desejar comunicar com a ocupante deste apartamento, ponha-se em contacto com Mr. Perry Mason, o seu advogado. Se for fora das horas de expediente e se se tratar de algo urgente, fale para a "Agência de Detectives Drake".

"Em segundo lugar, Mr. Carl Harrod, depois de lhe ter transmitido este recado, vou dar-lhe um pequeno recado pessoal, que indica a consideração em que o tenho.

Ouviu-se o ruído seco de uma bofetada, uma exclamação proferida por voz masculina e depois o estrondo da porta que batia e o girar da chave na fechadura.

Kitty voltou para a sala, com o rosto afogueado e os olhos a brilhar.

- Que homem! - comentou ela, com um ar depreciativo. - Onde posso lavar as mãos?

Mildred indicou-lhe a casa de banho. Enquanto Kitty Baylor lavava as mãos, Mildred tomou uma decisão.

- Olhe, Kitty -disse ela, quando a outra saiu - gostava de continuar como Fern Driscoll. Afinal, se Fern Driscoll está morta, acho que isso não faz diferença a ninguém. O Harrod pode desconfiar de que não sou Fern, mas, enquanto usar o nome e a identidade de Fern Driscoll, ele terá de manter um certo cuidado. Uma coisa é publicar acusações a respeito de uma rapariga morta que não se pode defender, e outra é fazê-lo a qualquer outra pessoa. Se não se importa, gostaria de conservar a identidade de Fern Driscoll, pois, por enquanto, não quero tornar a ser Mlidred Crest. Também era conveniente para o seu caso. Quando se chegar à conclusão de que não há nenhum filho ilegítimo, a revista não se atreverá a publicar a história de Harrod. O que acha?

Kitty estava absorta a pensar.

- Quando abriu a bolsa de Fern encontrou quatro mil dólares?

- Encontrei.

- E não havia lá mais nada... Qualquer coisa que nos pudesse ajudar?

Mildred abanou a cabeça.

Fez-se um silêncio, durante o qual Mildred pensava intensamente. Não tinha o direito de entregar a Kitty as cartas que encontrara na bolsa de Fern. Mas, por outro lado, a que título as conservava? Queria agir de uma maneira legal. Tecnicamente, sabia que era obrigada a entregar todas as coisas que pertenciam a Fern ao coroner, ou a algum membro da Polícia.

- Bem - exclamou Kitty, de repente. -Se quer continuar a ser Fern Driscoll, continue, mas aviso-a de que terá de enfrentar alguns problemas difíceis.

- De qualquer forma, terei sempre de os enfrentar... - retorquiu Mildred, com voz fatigada. - Tenho medo de Harrod.

- Harrod é um chantagista nojento.

- Mesmo assim, tenho medo dele.

- Quero que me prometa uma coisa, Mildred - disse Kitty abruptamente. - Se algum dos membros da família a procurar, não lhe diga que estive cá. Toda a gente julga que eu não sei nada a respeito deste caso, mas, se meu irmão ou meu pai deram dinheiro a Fern Driscoll para ela se ir embora e ter a criança... quero saber o que se passou. Eu... eu tenho tido divergências de opiniões com eles. mas isto agora é muito sério.

Mildred ficou pensativa.

- Seria preferível não ter batido no Harrod.

- Esse porco! - exclamou Kitty. - Vou ensinar-lhe a maneira de lidar com ele.

- Como?

- Espere um bocadinho. Voltarei daqui a menos de um quarto de hora. Já lhe mostro como o há-de manter em respeito.

Kitty enfiou o casaco e dirigiu-se para a porta.

- Como conseguiu encontrar-me? - perguntou Mildred.

Kitty parou de repente, com a mão no puxador da porta.

- Aí está uma coisa que eu lhe devia ter dito. Fern Driscoll escreveu uma carta a uma das raparigas da secção de contabilidade, que ela conhecia muito bem. Dizia que o chão lhe fugira debaixo dos pés e que se ia embora. Não queria que ninguém soubesse onde ia, e que pediria boleias até Los Angeles, para procurar lá trabalho e recomeçar a vida de novo.

"Essa rapariga sabia que Fern gostava de Forrie, e que surgira qualquer complicação. Pensou que era apenas uma zanga de namorados e que Forrie havia de querer saber onde se encontrava Fern. Nesse caso, resolveu ajudar Forrie a localizar o paradeiro de Fern sem grande trabalho. Por isso a rapariga enviou-me a carta de Fern, recomendando-me que não dissesse quem me deu a informação, mas, no caso de Forrie confiar em mim, eu podia, usando de discrição, dizer-lhe onde estava Fern.

"Temos depois, Margaret, a minha irmã mais nova, escreveu-me contando que a família iria possivelmente ser envolvida num escândalo resultante do romance entre Forrie e Fern Driscoll, que o papá andava muito preocupado, e que um homem chamado Carl Harrod queria fazer chantagem com ele. Por isso, recorri aos serviços de uma agência de detectives, disse-lhes que Fern Driscoll era uma secretária, uma secretária muito competente, que chegara há pouco tempo a Los Angeles, e encarreguei-os de descobrir o seu paradeiro. Tenho a impressão de que foi uma tarefa fácil. Levaram-me trinta e cinco dólares e deram-me este endereço. Suponho que requisitou qualquer coisa cá para casa sob o nome de Fern Driscoll, não é verdade?"

- Foi o telefone. Kitty riu-se.

- Então foi realmente fácil. Afinal poderia limitar-me a telefonar para o serviço informativo e pedir o número.

- Onde se encontram seu pai e seu irmão neste momento? - inquiriu Mildred.

- Em Lansing, segundo suponho... Espere aqui, Mildred. Vou à rua comprar-lhe um ferro de quebrar gelo.

- Um ferro de quebrar gelo! - exclamou Mildred. Kitty acenou com a cabeça.

- É o melhor amigo da mulher, a arma mais conveniente que pode imaginar. Foi uma rapariga do clube a que pertenço que me ensinou. Recebeu a indicação de um oficial da Polícia.

"O alfinete de chapéu costumava ser a arma tradicional das mulheres, e acredite que era bom. Um homem recua instintivamente de qualquer coisa comprida e pontiaguda. Essa rapariga minha amiga estava numa terra onde havia um homem muito atrevido e incorrecto. O oficial da Polícia sugeriu às senhoras que tivessem de vir à rua à noite, que trouxessem consigo, um ferro de quebrar gelo. Pode enfiar-se-lhe uma rolha na ponta, e trazê-lo dentro da bolsa. Se alguma vez se encontrar sozinha numa rua escura à noite, um ferro de quebrar gelo pode ser-lhe extremamente útil.

- Mas a esta hora não consegue comprar nenhum ferro de quebrar gelo - retorquiu Mildred. - Nem eu o quero.

- Consigo, pois. Há uma loja de artigos utilitários a uns dois quarteirões daqui e está aberta. Experimente um ferro de quebrar gelo no seu amigo Harrod, e vai ver como ele nunca mais a aborrece.

 

Depois de Katherine Baylor sair, Mildred ficou num estado de terror. Tinha medo de Carl Harrod. Pensava que Harrod devia ter descoberto a sua troca de identidade, e brincava com ela como um gato brinca com o rato.

Porquê? Ele queria qualquer coisa, e o facto de Mildred não saber bem o que ele queria, era inquietante.

Quando a campainha voltou a tocar, o medo obrigou o coração de Mildred a bater violentamente. Aproximou-se da porta.

- Quem é? - perguntou num fio de voz.

- Kitty! - ouviu-se do outro lado. - Abra... Fern! Mildred abriu a porta.

- Trago-lhe as suas armas, minha amiga - disse Kitty Baylor. - Um sortido completo. Aqui tem! Três úteis ferros de quebrar gelo!

- Três! - ecoou Mildred.

- Três! - repetiu Kitty, rindo-se. - Foi a minha mania das economias. Eram a trinta e oito cêntimos cada um, e três um dólar. Vou meter um na minha mala e trazê-lo comigo para o que der e vier. Esse Harrod não conseguirá pôr-me a mão em cima, sem levar com o ferro onde não gosta. Não esteja tão horrorizada, Mildred. Não é obrigada a servir-se destas coisas! É simplesmente a ideia. Um homem não se atreve a aproximar-se, quando lhe apontam um ferrinho destes.

"Olhe, Mildred, tenho de me ir embora. Não direi a ninguém nada do que me contou. Hei-de descobrir se o papá ou o Forrie deram a Fern Driscoll quatro mil dólares, para ela desaparecer. Aconteceu qualquer coisa e quero saber o que foi. Sinto um arrepio assim que começo a pensar no que sucedeu à pobre Fern. Mesmo que ela se tenha suicidado, foi devido à histeria e à loucura de momento. Tudo isso foi provocado pela humilhação por que passou.

"Não diga a ninguém que eu estive cá, que eu também não digo. Se acontecer alguma coisa e precisar de mim, estou no Vista del Camino esta noite. Quando o papá vem à cidade, aluga a suite presidencial, mas eu fico numa simples suíte de dois quartos. Ainda não me registei, parei apenas para lá deixar a bagagem.. Todos me conhecem no hotel. Não terá dificuldade em encontrar-me. Deixo-lhe aqui estes dois ferros em cima da mesinha ao pé da porta. Se o Harrod voltar, não tenha medo dele. Todos os chantagistas são cobardes.

"Bem, agora vou-me embora. Obrigada por ter posto as cartas na mesa e boa sorte."

Kitty Baylor estendeu a mão e apertou a de Mildred com dedos firmes e fortes.

- Você acha que eu não devia ter fugido, não acha? - perguntou Mildred.

- Não sei - disse Kitty, depois de um momento de hesitação. - Seja como for, não vale a pena estar a preocupar-se agora. O que está feito, está feito. E, se quiser continuar a ser Fern Driscoll, continue. Mas lembre-se de uma coisa: o papá é capaz de vir à sua procura e Forrie também... Espero que Forrie apareça e tente ajudá-la e... proteja a rapariga que... Adeus, Mildred.

Quando Kitty se foi embora, Mildred ficou com um certo remorso por não lhe ter falado das cartas. Tinha confiado a Kitty os seus segredos pessoais, mas o instinto dissera-lhe que não levantasse aquele ténue véu que cobria os assuntos sentimentais de Fern Driscoll. A pouco e pouco, Mildred começava a sentir compaixão pela rapariga que lhe arrancara o volante das mãos e fizera que o automóvel se despedaçasse.

Kitty ainda não saíra há dez minutos, quando o telefone tocou.

Certa de que iria ouvir a voz de Carl Harrod, Mildred pegou no auscultador.

- Miss Driscoll? - a voz do outro lado da linha tinha um tom autoritário.

Mildred hesitou uns segundos; depois disse:

- Sim.

- Daqui fala Harry Baylore, Fern. Que diabo de história é essa da família lhe ter dado dinheiro para você desaparecer por uns tempos? Eu...

- O senhor deve saber-replicou Mildred Crest, invadida subitamente pelo desejo de vingar a memória de Fern Driscoll.

- Mas não sei! - respondeu Baylor, impaciente.- E se o meu filho se deixou cair numa armadilha dessas, quero saber do que se trata. Diga-me uma coisa: conhece um homem chamado Carl Harrod?

Depois de uma breve pausa, Mildred decidiu-se:

- Esteve aqui há bocado.

- Tive conhecimento de que ele se propõe vender uma história de todo este caso a uma revista de escândalos - prosseguiu Baylor-e ele disse-me que você está de posse de umas cartas que o Forrester lhe escreveu, que são verdadeiramente comprometedoras, e que você vai entregar-lhas. - É verdade?

- Não.

- Tem consigo essas cartas?

No timbre autoritário da voz havia qualquer coisa que colocou Mildred na defensiva.

- Tenho as cartas - redarguiu ela. - Não falei delas a ninguém, nem as entregarei seja a quem for.

- Bem, quero falar consigo. Custou a encontrá-la. Não sei o que anda a tentar... De qualquer modo, quero falar consigo. Até já.

Mildred ouviu cortarem a ligação. Ele não pedira autorização para vir. Disse apenas que ia lá. A rapariga percebeu que o homem devia agir sempre daquele modo. Estava habituado a impor a sua vontade.

Mildred compreendeu, de repente, que desencadeara forças que não era capaz de controlar.

Harriman Baylor conheceria de vista Fern Driscoll? Saberia, no primeiro momento em que a visse, que se tratava de uma impostora? Sabendo que era uma impostora, o que faria ele? Denunciá-la-ia?

Não saberia Kitty, de facto, que o pai se encontrava na cidade?

E o que havia de fazer daquelas cartas?

Kitty Baylor tinha razão. Harrod queria obrigá-la a assinar uma declaração a respeito do acidente e da subtracção do dinheiro da bolsa. Assinaria com o nome de Fern Driscoll. Assim que o fizesse, ficava inteiramente nas mãos dele. E não havia dúvida de que Harrod andava atrás das cartas que se encontravam na mala de Fern.

Mildred não tinha a mínima intenção de lhas dar. Nem, por outro lado, as queria entregar a Harriman Baylor, o pai do homem que, indirectamente, fora o responsável pela morte de Fern Driscoll.

Mildred Crest percebeu repentinamente que não queria encontrar-se com Harriman Baylor. Ela sabia de mais e, acerca de algumas coisas, sabia de menos.

Pegou na mala, meteu lá dentro as cartas, apagou as luzes precipitadamente e correu para o elevador.

Vendo que o elevador estava impedido, e vinha a subir, não se dispôs a esperar e desceu as escadas.

 

Perry Mason e Della Street estavam a acabar de jantar, quando o criado disse:

- Desculpe, Mr. Mason, mas da "Agência de Detectives Drake" deixaram recado para que o senhor telefonasse para lá antes de sair.

- É algum assunto importante? - perguntou Mason.

- Não sei, sir. Limitaram-se a recomendar que o senhor telefonasse antes de sair do restaurante.

Mason assinou o cheque, acenou com a cabeça para Della Street e disse:

- É melhor dar-lhes uma apitadela, para ver do que se trata.

Della Street levantou-se da mesa e dirigiu-se às cabinas telefónicas.

Mason recostou-se na cadeira, acendeu um cigarro e pôs-se a observar as pessoas que se encontravam no restaurante.

Daí a pouco, Della voltou.

- O que era? - inquiriu Mason.

- Bem, parece que há dois assuntos que requerem a sua atenção.

- Quais são?

- Fern Driscoll quer que se ponha em contacto com ela imediatamente. Diz que é muito importante. A telefonista de Drake disse que a rapariga parecia estar muito preocupada. Lembra-se de Carl Harrod, o chantagista de que ela lhe falou?

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

- Harrod telefonou e pediu que o senhor lhe falasse, a fim de tratarem de um caso de máximo interesse para uma das suas clientes. Deixou um número de telefone e um endereço: "Apartamentos Dixiecrat".

- Ele telefonou para a "Agência de Detectives Drake"?

- Telefonou.

- Então foi, com certeza, Fern Driscoll quem lhe deu o número.

Della Street acenou com a cabeça.

- Bem, vamos fazer umas chamadas, para saber o que se passa. Tem os números, Della?

A secretária fez um gesto afirmativo.

- Primeiro que tudo, telefonamos para Fern Driscoll.

Levantou-se da mesa e encaminhou-se na direcção das cabinas, acompanhado de Della Street.

Della marcou o número, com os seus dedos esguios. Momentos depois, disse:

- Alô, Miss Driscoll. Fala Della Street, a secretária de Perry Mason. Mr. Mason deseja falar consigo... Um momento.

Mason entrou na cabina e disse:

- Boa noite, Miss Driscoll. Então o que se passa?

A voz da rapariga, do outro lado do fio, denotava nervosismo:

- Sucedeu uma série de coisas, Mr. Mason. Houve alguns factos que não lhe contei. Ocultei-lhe uns pormenores e... Surgiram uma data de complicações.

- Não é assunto que possa esperar até amanhã?

- Não, não. Encontrei um intruso no meu apartamento que tentava apoderar-se de umas coisas. Ia-me atirando ao chão e eu apontei-lhe um ferro de quebrar gelo.

- Bom trabalho - comentou Mason. - Acertou no alvo?

- Acho que sim. O ferro de quebrar gelo fugiu-me da mão e... não consigo encontrá-lo.

- Deu parte à Polícia?

- Não, e tenho motivos para não querer fazê-lo. Eu... O senhor compreende... não posso...

- Olhe, Fern, você faz as coisas menos indicadas para uma rapariga que quer passar despercebida. Feche a porta à chave e procure não se meter em mais nenhum sarilho até eu chegar aí. É melhor dizer-me pessoalmente o que tem para me dizer.

Mason desligou e voltou-se para Della Street.

- Ligue para o outro número, Della. Parece-me que vamos ter de trabalhar bastante por um honorário de cinco cêntimos.

- Também me parece - retorquiu Della, rindo-se. Della Street marcou o outro número e, quando responderam, disse:

- Fala Miss Street, a secretária de Mr. Mason. Mr. Harrod telefonou a Mr. Mason para... Está bem. Um momento, vou passar o telefone a Mr. Mason.

- Era uma voz de mulher - esclareceu Della a Mason. - Disse que ia chamar Mr. Harrod...

Mason pegou no telefone e exclamou:

- Alô!

Uma voz de homem ia para dizer alô, mas foi interrompida por um ataque de tosse.

- Alô! - disse Mason, impaciente. - Quero falar com Carl Harrod.

- É o próprio... Queria falar consigo para... - Novo ataque de tosse.

Mason carregou o sobrolho, começando a perder a paciência.

- Afinal o que pretende? Harrod retorquiu, com voz fraca:

- A sua cliente espetou-me um ferro de quebrar gelo no peito. É melhor procurarmos arrumar o assunto imediatamente.

- Onde aconteceu isso?

- No apartamento de Fero Driscoll. ,

- Deu parte à Polícia?

- Claro que não.

- Porquê?

- Não é essa a melhor maneira de se tratar de um caso desta natureza.

- Então qual é a melhor maneira?

- Venha cá, que eu digo-lhe.

- Não acha que devia receber tratamento?

- Não é coisa grave. Sob o ponto de vista legal é que é muito grave.

- Espere aí por mim - disse Mason. - Parece-me que já é tempo de termos uma conversa.

- Também me parece!

- Onde está agora?

- Em minha casa, "Apartamentos Dixiecrat", número 218.

- Está bem. Não é longe daqui. Vou já ter consigo. Mason desligou e disse para Della Street:

- Isto é o diabo. Della! Fern Driscoll surpreendeu um homem no seu apartamento e espetou-o com um ferro de quebrar gelo. Pelos vistos, não sabe onde o atingiu mas o golpe foi suficientemente forte para o ferro ficar preso nele. Carl Harrod diz que ela o espetou no peito. Parece que temos de ir verificar o caso. Primeiro falaremos com Fern Driscoll, para esclarecer as coisas, e depois vamos tentar pôr esse chantagista no seu lugar.

- Mas não acha que Fern Driscoll devia participar à Polícia que...

- Aí é que está o busílis! - interrompeu Mason. - Ela quer passar despercebida e... Bem, os "Apartamentos Rexmore" ficam a menos de cinco minutos daqui, indo de táxi.

Saíram do restaurante, apanharam um táxi e dirigiram-se imediatamente para os "Apartamentos Rexmore".

Mildred Crest esperava por eles ansiosamente. Abriu a porta e pareceu bastante aliviada ao apertar a mão de Mason.

- Então vamos lá a saber o que se passa - disse Mason.

Mildred retorquiu, bastante nervosa:

- Vou ter de contar-lhe uma história pessoal e...

- Conte lá.

- Saí de Lansing, Michigan, porque... Namorava um rapaz. Forrester Baylor, e a família dele não consentia no casamento. É uma história muito longa...

- Abrevie-a - disse Mason, em tom brusco.

- Ele tinha uma irmã, Katherine, uma rapariga muito simpática. Não cheguei a conhecê-la. Ontem à noite veio cá, e foi então que a vi pela primeira vez. Disse-me que compreendia a minha situação e que concordava que a família se havia portado indecentemente para comigo.

- E o ferro de quebrar gelo? - perguntou Mason.

- Foi ela que os comprou para mos dar.

- Ela quem?

- Kitty... Katherine Baylor.

- Comprou-os? Era mais do que um?

- Sim. Para quê?

- Kitty disse que os chantagistas são cobardes e que, se eu ameaçasse Harrod com um ferro de quebrar gelo, ele deixar-me-ia em paz.

- E, ao mesmo tempo, fazia que você se tornasse culpada de agressão à mão armada - retorquiu Mason, secamente. - Quantos ferros comprou ela?

- Três.

- Onde estão agora?

- Um encontra-se em cima da mesa ao pé da porta. - Mason aproximou-se da mesa.

- É o único que cá está.

A rapariga fez que sim com a cabeça. Mason pegou no ferro.

- Tem uma etiqueta de preço colada com fita gomada transparente - comentou ele. - O preço indicado é de trinta e oito cêntimos, três por um dólar. A etiqueta tem ainda umas letras... vejamos... Ah, "Arcada das Novidades".

- A "Arcada das Novidades" - explicou Mildred - fica aqui perto, na mesma rua. É um recinto onde há muitas máquinas de jogos de um cêntimo. É bastante frequentada por marinheiros e pessoas que estão aborrecidas e querem um divertimento barato para se entreter. Têm de tudo: desde metralhadoras eléctricas para disparar contra aviões, a fotografias de raparigas exibidas em máquinas de cinema. Chamam-lhe a arcada dos cêntimos, mas a maior parte dos jogos custam cinco ou dez cêntimos.

- E vendem ferros de quebrar gelo? - perguntou Mason.

- Ali não. Têm uma loja anexa que vende saca-rolhas, artigos de novidade, formas para cubos de gelo, e coisas desse género.

Mason acenou com a cabeça.

- E agora conte-me exactamente o que aconteceu.

- Eu vinha da rua. Premi o interruptor, mas a luz não se acendeu. Estava tudo no escuro.

- Não conseguia ver nada?

- Só aqui à porta da rua. A luz do patamar estava acesa e conseguia distinguir qualquer coisa. Encontrava-se alguém a revistar o meu apartamento.

- E depois?

- Premi o interruptor duas ou três vezes. A luz não se acendia. Depois senti uma pessoa mexer-se dentro de casa.

- Gritou?

- Não tive tempo. Senti que alguém se aproximava de mim e, instintivamente, agarrei num dos ferros de quebrar gelo, precisamente na altura em que mie deram um encontrão que me fez perder o equilíbrio.

- E depois?

- Bem, eu tinha o ferro apontado na direcção em que a pessoa vinha e... - Mildred começou a soluçar.

- Então, acalme-se - disse Mason. - Vamos lá ouvir o resto.

- O ferro enterrou-se na pessoa e ele ou ela afastou-se a correr e o ferro saltou-me da mão.

- Não teria caído no chão?

- Não. Quem quer que cá esteve, levou-o consigo.

Mason reflectiu uns momentos e depois disse para

Della Street:

- Vá lá abaixo à "Arcada das Novidades", Della, e compre três destes ferros de quebrar gelo. Demore-se o menos possível. O táxi está lá em baixo à espera. Meta-se nele. - Depois virou-se para Mildred Crest.- O seu amigo Harrod telefonou-me. Diz que lhe espetaram no peito um ferro de quebrar gelo.

Mildred levantou as mãos que tinha fortemente apertadas uma na outra e tapou a boca com elas. Os seus olhos denotavam terror.

- Você deve ter qualquer coisa cá em casa que interessa a alguém. - comentou Mason. - Do que se trata? Dinheiro? Cartas?

- Eu... Julga-se que tenho umas cartas, e Harrod parece estar muito interessado nelas.

- Julga-se? O que quer dizer com isso?

- Bem, compreende... As cartas foram enviadas a Fern... Foram-me dirigidas.

Mason observou-a atentamente:

- Disse que se julga que você as tem. Afinal, tem-nas ou não?

- Tenho.

- Onde?

- Na minha bolsa. Levei-as comigo.

- Para que é que o Harrod as quer?

- Suponho que é para as vender a uma revista.

- Olhe, menina, sei que tem- estado a mentir-me. É realmente Fern Driscoll?

Reflectiu-se uma expressão de terror no olhar da rapariga.

- É ou não é?

- Eu... Agora não posso dizer. Não posso! Não posso!

Mildred deixou-se cair numa cadeira e começou a soluçar, num ataque de histerismo.

- Acabe lá com isso!-disse Mason. - Não temos tempo a perder. Ainda não sei no que irá dar tudo isto. Se, por acaso, a Polícia aparecer e começar a fazer-lhe perguntas, diga que só prestará declarações na presença do seu advogado. É capaz de o fazer?

- Sou.

- E procederá desse modo?

- Se o senhor acha conveniente...

- Acho. E agora diga-me: onde está o ferro de quebrar gelo que falta? Um encontra-se em poder de Carl Harrod. E o outro?

- É a Kitty que o tem.

- Quem?

- Katherine Baylor.

- Onde vive?

- Está hospedada no "Hotel Vista del Camino". É de Lansing. Pertence a uma família muito rica. O pai, Harriman Baylor, é um grande industrial. É irmã de Forrester Baylor, o culpado do estado em que estou... da minha gravidez.

- Há quanto tempo está grávida?

- Há dois meses... Não, não, Mr. Mason, eu não estou grávida.

Começou outra vez a soluçar.

Mason olhou para ela, irritado, depois pôs-se a andar pelo apartamento, examinando as gavetas abertas, cujo conteúdo fora atirado para o chão.

- Temos de dar parte disto - declarou ele.

- Não, não. Não podemos fazê-lo! Não há tempo para lhe contar tudo agora... Eu... Não posso! Não posso!

Mason continuou a inspeccionar a casa. Viu a bolsa da rapariga em cima de uma cadeira, pegou-lhe e abriu-a.

- São estas as cartas?

Mildred olhou para o maço fortemente apertado com um elástico.

- São - retorquiu.

Mason meteu as cartas na algibeira e foi passando em revista o conteúdo da bolsa. De repente, perguntou:

- Onde foi arranjar todo este dinheiro?

Mildred fitou-o com os olhos cheios de lágrimas.

- Vão dizer que o roubei... se o encontrarem.

- A quem pertence este dinheiro?

- A Fern Driscoll.

- E você não é Fern Driscoll, é Mildred Crest, não é verdade?

- É.

Ouviu-se uma pancada na porta. Mason foi abrir e Della exclamou:

- Aqui os tem! Três ferros de quebrar gelo exactamente iguais aos outros, mas têm uma etiqueta de preço diferente.

- Como foi isso arranjado? - inquiriu Mason.

- Custaram quarenta e um cêntimos cada, mas eram a trinta e oito cêntimos, e três por um dólar.

- Então o preço mudou assim de repente?

- É uma longa história. A rapariga da caixa deixou cair um, e eu baixei-me e apanhei-o. Só então reparei na etiqueta do preço. Perguntei-lhe se os ferros de quebrar gelo não eram a três um dólar. Ela começou com uma grande conversa. Ao que parece, houve alguém que comprou três ferros de quebrar gelo ao princípio da noite, e quando a rapariga foi para colocar outros ferros no mostruário, verificou que só havia mais seis. Diz que encomenda uma grosa de cada vez e, quando foi ver o número de referência ao catálogo, notou que o preço subira bastante desde a última encomenda. Tirou, portanto, as etiquetas aos ferros que restavam e colocou-Lhes outras, com o preço actualizado. Mason virou-se para Mildred Crest.

- Olhe, Mildred, agora não há tempo para esclarecer este caso. Vou ter imediatamente com Carl Harrod para verificar as consequências dessa tal agressão com o ferro de quebrar gelo. Quero recomendar-lhe o seguinte: se aparecer alguém a perguntar o que aconteceu, seja a respeito do intruso, seja a respeito da agressão, declare simplesmente que não tem quaisquer comentários a fazer. Vou deixar dois destes ferros em cima da mesa. Deste modo, ficam cá três.

"Quero que tire todas as etiquetas de preços dos ferros. Deite-as dentro da retrete e puxe o autoclismo. Se a Polícia começar a investigar e descobrir que uma mulher comprou três ferros de quebrar gelo, encontrará os três no seu apartamento, sem faltar nenhum."

- Mas são capazes de vir também a saber que...

- Talvez - retorquiu Mason- se empreenderem uma investigação em regra, mas, deste modo, não me parece que o façam, a menos que recebam uma queixa do agredido. Vou levar as cartas comigo.

- Leve o dinheiro também. Mason abanou a cabeça.

- Deixe ficar o dinheiro onde está. Meta-o dentro de um sobrescrito e escreva por fora: "Pertença de Fern Driscoll." Não fale com ninguém a respeito deste assunto. Não responda a nenhuma pergunta. Vamos, Della.

Mason e Della saíram do apartamento. Enquanto desciam no elevador, Della perguntou:

- O que vou fazer a este ferro de quebrar gelo que sobrou?

- O Harrod disse que a minha cliente lhe espetou um ferro de quebrar gelo no peito. Se calhar, a única coisa que ele viu foi um vulto de mulher, recortado contra a fraca claridade que vinha da escada. Ele arremessou-se contra ela, certamente com a intenção de a derrubar e poder fugir enquanto ela estava caída no chão. Não viu o ferro de quebrar gelo. O ferro penetrou-lhe na carne sem talvez lhe provocar qualquer dor, visto a ponta ser tão fina e aguçada. Daí a pouco, depois de sair do prédio, deu com um ferro de quebrar gelo espetado no peito. O Harrod com certeza que tem tanto interesse em não falar com a Polícia como a minha cliente. Foi por isso que me telefonou.

- O que pretende ele, afinal? - inquiriu Della.

- Isso é o que vamos ouvir da sua própria boca. Tenho a impressão de que me quer propor um acordo: calar-se a troco de algumas das cartas em poder da nossa cliente. Assim que chegarmos ao apartamento do Harrod, farei por desviar a atenção dele e de quem quer que lá esteja, e você deixa lá este ferro de quebrar gelo. Leve luvas calçadas e tenha cuidado em não deixar impressões digitais.

- E a etiqueta do preço?

- Fica como está.

- Porquê? Se ele foi agredido com um ferro de quebrar gelo...

- Por isso mesmo - retorquiu Mason.- Quero ter uma maneira de diferenciar os ferros um do outro: o que você lá vai deixar do que lhe espetaram no peito. Se o Harrod não der parte à Polícia, limitamo-nos a presenteá-lo com um ferro de quebrar gelo; se der parte à Polícia, esta encontrará dois ferros de quebrar gelo no apartamento, e depois o Harrod que se arranje para destrinçar um do outro.

- Fico de luvas calçadas durante todo o tempo?

- Não. Tenho de explicar a sua presença lá, na qualidade de minha secretária. Ponha o ferro em qualquer lado enquanto eu lhes distraio a atenção. Assim que tiver largado o ferro, tire as luvas e pegue no lápis e no bloco de apontamentos.

O motorista do táxi abriu-lhes a porta.

- Para onde vamos? - perguntou ele.

Mason lançou um olhar significativo a Della Street.

- Vá andando por esta rua até chegar ao terceiro quarteirão - disse o advogado. - Depois vire à direita e então indicar-lhe-ei onde nos queremos apear. Temos uma pessoa à nossa espera na esquina.

- O.K.- retorquiu o motorista. - Nesse caso, é melhor ir devagar, não é verdade?

- Claro - redarguiu Mason.

O motorista fechou a porta e o táxi pôs-se em andamento. Chegou à esquina indicada, voltou à direita e prosseguiu em marcha lenta.

Passaram pelos "Apartamentos Dixiecrat" e Mason deixou-o avançar mais meio quarteirão. Depois disse, de repente:

- É aqui que temos de nos encontrar com a pessoa. Pare.

O motorista parou e Mason deu-lhe uma nota de cinco dólares.

- Isto é para pagar a tarifa e o troco é para si. Quando homem ia para lhe agradecer, Mason deu- Lhe mais duas notas de um dólar.

- Isto é para comprar qualquer coisa para os miúdos, antes de ir para casa.

- Muito obrigado, cavalheiro. Hei-de lembrar-me sempre do senhor.

- Nesse caso, é melhor devolver-me os dois dólares- disse Mason.

O motorista reflectiu uns momentos e depois mostrou os dentes num sorriso, comentando:

- Tenho a memória mais fraca do mundo. Mason entregou-lhe mais três notas de um dólar.

- Para um motorista de táxi, é uma qualidade excelente- replicou o advogado.

Mason e Della apearam-se à esquina e depois percorreram a pé a distância que os separava dos "Apartamentos Dixiecrat'. Mason consultou a lista dos inquilinos.

- Carl Harrod, número 218 - disse ele, carregando no botão correspondente.

Quase no mesmo instante, ouviu-se um zumbido e a porta da rua abriu-se.

- Se tivéssemos subido as escadas éramos capazes de já lá estar - comentou Della Street, quando o elevador, com uma lentidão enervante, parou com um solavanco.

Mason abriu as cancelas do elevador e desviou-se para deixar passar Della. Depois entrou também e carregou no botão do segundo andar.

Ao chegarem lá acima, Mason abriu a cancela, deixou sair Della Street na sua frente e encontraram-se no corredor. Perry Mason começou a procurar o número 218.

Seis portas adiante, encontrava-se uma mulher nova. Mason passou à frente de Della.

- Mr. Harrod está? - perguntou Mason à rapariga, aproximando-se.

- O senhor é Mr. Mason?

- Sou.

- Faça favor de entrar. O Carl está à sua espera. Abriu a porta do apartamento e Mason entrou, seguido de Della Street. A rapariga fechou a porta e tomou a dianteira, dizendo a Mason:

- Ele está com uma constipação.

Conduziu-os até junto de uma poltrona, onde se encontrava sentado um homem, enrolado num cobertor. Tinha os olhos fechados.

- Carl - chamou a rapariga. - Está aqui Mr. Mason.

Harrod abriu os olhos.

- Ainda bem que veio, Mr. Mason.

- É Carl Harrod? - inquiriu Mason.

- Sou.

Mason debruçou-se sobre ele e a rapariga voltou-se para convidar Della a sentar-se.

- A senhora é Mrs. Harrod? - perguntou-lhe Mason. A mulher virou-se para ele e houve um silêncio embaraçoso. Por fim, disse:

- Responde-lhe, Carl.

Harrod esperou um momento e depois respondeu:

- Sim, é Mrs. Harrod.

Mason fitou a rapariga nos olhos:

- Há quanto tempo estão casados?

- O que é que isso interessa? - inquiriu a mulher, bruscamente.

- Preciso de o saber. Sou advogado. Estou a tratar da queixa apresentada pelo seu marido. Preciso de saber há quanto tempo estão casados.

- Não tem nada com isso!

Pelo canto do olho, Mason reparou que Della andava sorrateiramente pelo apartamento, como quem procura uma cadeira confortável para se sentar. De repente, soltou uma exclamação de desagrado:

- Que horrível caneta! Tem a tampa toda suja de tinta. Vou lá dentro ao lava-louça para...

Desapareceu pela porta da cozinha. Ninguém lhe prestou atenção.

- Olha, querida - disse Harrod- Mr. Mason é advogado e vai com certeza ajudar-nos.

- Não me interessa o que tu pensas! - retorquiu a rapariga. - Os meus assuntos pessoais só a mim dizem respeito, e não consinto que apareça um advogado armado em esperto a tentar vexar-me.

- Não a quis ofender - atalhou Mason. - Só queria informar-me da situação.

- Agora já sabe - disse ela.

- Ainda não tenho bem a certeza - redarguiu Mason.

Della Street voltou para a sala, descalçou as luvas e tirou um bloco de apontamentos de dentro da bolsa.

- Para onde quer que eu vá, Chefe? - perguntou.

- Apresento-vos a minha secretária Miss Della Street-anunciou Mason. - Desejo que ela tome nota da nossa conversa. Então o seu nome é Carl Harrod?

O homem fez que sim com a cabeça e tossiu.

- Disse que foi agredido com um ferro de quebrar gelo?

- Sim.

- Onde está o ferro?

- Está guardado - informou a rapariga.

- Gostaria de o ver.

- Está guardado em sítio seguro - replicou ela.

- E por que julga que eu possa estar interessado nesta agressão? - perguntou Mason.

Harrod abriu os olhos, mudou ligeiramente de posição, mexeu as mãos debaixo do cobertor e depois ficou outra vez imóvel.

- Vai ficar muito interessado - disse ele.

- Porquê?

- Porque representa Fern Driscoll.

- Foi ela que o agrediu?

Harrod conservou-se calado uns momentos. Fechou os olhos, tornou a abri-los e, por fim, perguntou:

- Quem julga então que foi? Mason replicou secamente:

- Não vim aqui para brincar às adivinhas. Vim aqui porque você me declarou ter sido agredido por uma das minhas clientes. Portanto, se tem alguma coisa para me dizer, fale. Se não tem, vou-me embora.

- Fern Driscoll agrediu-me e ela é sua cliente.

- Como é que isso aconteceu?

- Eu queria falar com ela. Estava a investigar um desastre de automóvel em que se encontra envolvida. Fui ao apartamento dela.

- Onde?

- "Apartamentos Rexmore", número 309.

- E depois?

- A porta estava entreaberta. Toquei a campainha. De repente a porta abriu-se e Fern Driscoll exclamou: "Ah! é você!" e atirou-se a mim. Nessa altura não reparei no ferro de quebrar gelo. Senti uma picada aguda, mas não tive nenhuma dor.

- E depois?

- Bateu-me com a porta na cara e fechou-a à chave. Estava lá alguém com ela. Ouvi vozes.

- E o que fez a seguir?

- Voltei a tocar a campainha, mas ninguém respondeu. Resolvi que havia de lhe fazer pagar caro a gracinha. Tenho a faca e o queijo na mão e, se eu der com a língua nos dentes, ela ainda vai passar um mau bocado.

- Continue a contar o que se passou.

- Bem, desci as escadas e só então é que vi que tinha um ferro de quebrar gelo espetado no peito.- Harrod virou-se para a rapariga. - Arranja-me uma bebida, Nellie.

Ela dirigiu-se à cozinha e voltou daí a pouco com uma garrafa de whiskv e um copo meio de água.

- Só metade dessa água - disse Harrod.

A rapariga foi novamente à cozinha e voltou com o copo com metade da água que tinha. Estendeu o copo e a garrafa a Harrod, mas este protestou:

- Deita lá o whisky e chega-me o copo à boca. Harrod bebeu um golo e Nellie limpou-lhe os lábios.

- Tem graça!-comentou Harrod. - Desde que vim para casa, estou a sentir arrepios de frio.

- Já chamou o médico?

- Não.

- Mas devia chamá-lo.

- Não quero chamar nenhum médico.

- Porquê?

- Os médicos fazem muitas perguntas.

- O ferro ficou muito enterrado na carne? - perguntou Mason.

- Até ao cabo.

- Então é melhor chamar o médico.

- Já lhe disse que não quero cá médico nenhum. Os médicos fazem uma data de perguntas, e depois vão contar tudo à Polícia.

- Bem - disse Mason - parece-me que se devia dar parte na Polícia.

Harrod desviou os olhos e retorquiu:

- Isso era mau para a sua cliente.

- Eu velarei pelos interesses da minha cliente - redarguiu Mason, secamente.

- Está bem, mas não me convém a mim.

- Porquê?

- Não sou um cidadão exemplar, Mason. Sou... Sou um oportunista.

- E chantagista também?

- Ele não disse isso - protestou Nellie.

- Estava a procurar facilitar-lhe a confissão - volveu Mason.

- Não é preciso! Ele sabe muito bem falar sozinho.

- Fern Driscoll tem em seu poder umas certas cartas- disse Harrod. - Não sei se está a par da história. Ela andava metida com um tal Forrester Baylor, de Lansing, Michigan. Forrester é o único filho de Harriman Baylor, um importante industrial. Fern Driscoll era secretária dele. Ela e o Forrester andavam muito amiguinhos mas, de repente, levantou-se um sarilho dos diabos. Eu penso que alguém contou ao Harriman Baylor que ia ser avô, e a ideia não agradou nada ao gajo.

- Tem cautela com a língua!-avisou Nellie. Carl Harrod mostrou os dentes num sorriso e continuou:

- Eu andava a investigar o acidente. Sou inspector de uma companhia de seguros. É com isso que ganho o meu pão. Também sou correspondente de uma revista, The Real Low-down.

"Só depois de falar com Fern Driscoll verifiquei que a história era verdadeira. Vi que estava no bom caminho. O pior é que a história é muito complicada. A revista precisa de provas para poder publicá-la. Sei que o Forrester lhe escreveu umas cartas. Sei também que o Forrester, pai, lhe meteu nas unhas uma data de "massa", para ela se pôr a mexer e ir ter o miúdo a outro sítio e depois entregá-lo a alguém indicado por Harriman Bay-lor, que o adoptaria. Por uma história destas. The Real Low-down era capaz de pagar dez mil pacotes. Tenho tudo o que é preciso: só me faltam as cartas. Foi por isso que me dirigi ao apartamento de Fern Driscoll."

- Está a contar-me isso tudo?

- Estou a contar-lhe isto tudo.

- E a secretária dele está a escrever o que tu disseste! - observou Nellie.

- Deixa-a lá - redarguiu Harrod.- O Mason há-de colaborar comigo, quer queira, quer não.

- E o que se passou depois? - perguntou Mason.

- Eu já lá tinha estado antes e procurara ser amável - retorquiu Harrod. - Mas com a amabilidade não consegui nada, e fui lá outra vez, agora decidido a não ser tão amável.

- Espere aí - atalhou Mason. - O que aconteceu quando lá foi da primeira vez?

- Quem me veio abrir a porta foi Katherine Baylor. Eu havia-a seguido, até ali. A família Baylor vem cá muitas vezes. Harriman Baylor tem negócios a tratar no sul da Califórnia. Hospedam-se sempre no "Hotel Vista del Camino". Tinha o palpite de que o próprio Baylor havia de aparecer para procurar deitar a mão às cartas.

"Estava certo de que um dos membros da família havia de cá vir. Pareceu-me que eles tinham localizado o paradeiro de Fern Driscoll. A Katherine apareceu no hotel, registou-se, deixou a bagagem e apanhou imediatamente um táxi. Segui-a no meu carro. Foi direita ao apartamento de Fern Driscoll, no "Rexmore". Deixei passar um bocado, e depois subi e toquei a campainha."

- Foi essa a primeira vez que esteve no apartamento de Miss Driscoll? - perguntou Mason.

- Não, foi a segunda... Mas deixe-me cá contar as coisas à minha maneira.

- Está bem. Continue.

- Bom, a Katherine veio à porta, olhou para mim e assim que me apresentei, disse umas palavras pouco agradáveis, atirou-se a mim e esmurraçou-me o nariz.

- E depois? - inquiriu Mason.

- Fiquei com o nariz a deitar sangue. Ela bateu com a porta e fechou-a à chave antes que eu tivesse tempo de fazer qualquer coisa. Parece-me que está habituada a lidar com tipos que nunca batem em mulheres porque acham que é falta de educação. Mas acredite-me: se ela não tem fechado a porta tão depressa, partia-lhe o focinho.

- Tem cautela com a língua! - admoestou Nellie.

- Partia-lhe o focinho! - repetiu Harrod, elevando a voz.

- Continue - disse Mason.

- Fui lá outra vez daí a bocado e voltei a bater. Se se abrisse a porta e me aparecesse essa cadela...

- Vê lá como falas! - interrompeu Nellie. - Mr. Mason é um advogado.

- Se essa Katherine Baylor me aparecesse,- emendou Harrod, apressadamente,-dou-lhe a minha palavra de honra que lhe havia de deixar uma recordação.

- Ela já lá não estava?

- Parece-me que sim. Estava gente em casa. Ouvi o barulho de vozes, mas não sei ao certo quem era.

- E o que foi que sucedeu então?

- Já lhe disse. Toquei a campainha, e Fern Driscol abriu a porta e, sem mais nem menos, espetou-me com o ferro de quebrar gelo.

- Não disseram nada um ao outro?

- Bem, ela exclamou: "É você outra vez?" ou qualquer coisa parecida.

- As luzes do apartamento estavam acesas? - perguntou Mason.

- O que é que quer dizer com isso?

- Quando a porta se abriu, havia luz no vestíbulo de entrada?

Harrod reflectiu uns momentos.

- Não me lembro. Porquê?

- Estava a pensar como é que você não viu o ferro de quebrar gelo - comentou Mason. - Se o visse, não tinha ficado ali à espera que o agredissem com ele.

Harrod pensou uns segundos e depois disse:

- Parece-me que tem razão. De facto, não vi o maldito do ferro. As luzes não estavam acesas, isto é, pode ser que estivessem acesas lá dentro, mas no vestíbulo não.

- Então só reparou que trazia o ferro de quebrar gelo espetado no peito depois de a porta se fechar?

- É verdade.

- E não viu o ferro?

- Não.

- Então não pôde distinguir com nitidez a cara da rapariga que o agrediu. Não pode ter a certeza de quem foi. Pelo que viu, tanto podia ser Katherine Baylor como Fern Driscoll.

Harrod mostrou-se irritado.

- Você não tem o direito de estar a submeter-me a um contra-interrogatório, que diabo! Eu quero ajudá-lo. Vou fazer-lhe uma proposta, Mason.

- O que é?

- Eu e a sua cliente podemos entrar num acordo. A sua secretária passa o recibo à máquina, e eu assino-o.

- Que espécie de acordo?

Harrod abanou a cabeça.

- Vá falar com a sua cliente e depois faça-me você uma proposta. Já ouviu a minha história, agora vá ouvir a dela. Não se deixe embrulhar. Pergunte-lhe tudo com pormenores. Pergunte-lhe como é que ela se chama realmente. A seguir, venha falar comigo.

- Não, Harrod - redarguiu Mason. - Primeiro quero que seja examinado por um médico, para se determinar a gravidade do ferimento.

- Não quero cá médico nenhum. Sei muito bem o que quero.

- Vou mandar chamar o meu médico particular. Não quero que haja alguma complicação.

- Já lhe disse que não quero ser examinado por um médico. Ele começa a fazer perguntas, e depois vai contar tudo à Polícia. Então ficamos todos tramados.

- Por causa disso é que eu vou chamar o meu médico em vez do seu - replicou Mason. - Perguntar-lhe-á como se sente, mede-lhe a tensão arterial, e faz-lhe um exame clínico. Pode ser que lhe pergunte como foi que isso aconteceu, mas, se perguntar, você está no seu direito de lhe responder que é sonâmbulo e que, ao levantar-se, no escuro, tropeçou e caiu em cima de um ferro de quebrar gelo. Ou também pode muito simplesmente recusar-se a responder a qualquer pergunta, alegando que falará com o seu médico quando chegar a altura.

- Mas o que é que adianta que esse médico me venha ver?

- Pode evitar que surjam complicações - redarguiu Mason.- É o meu médico, não é o seu. Vem verificar a gravidade e natureza do ferimento.

- Não tenho de lhe contar como isso aconteceu?

- Não.

- Nem tenho de lhe pagar nada?

- Nada.

Houve um momento de silêncio.

- Há algumas desvantagens: o médico não lhe dirá as suas impressões, há-de dizê-las a mim. No entanto, se achar que você precisa de qualquer tratamento especial, informar-me-á. Desse modo, você fica protegido. Como ele é meu médico, você não tem de responder-lhe a nenhuma pergunta e, se não lhe declarar que foi vítima de uma agressão, ele não comunicará o caso à Polícia.

Harrod mostrou os dentes num sorriso.

- Então se eu lhe disser que estava com o ferro na mão quando a minha mulher, que vinha da cozinha com uma rima de pratos nos braços, abriu a porta de repente, e a porta me bateu na mão e fez com que o ferro se espetasse no meu peito...

- Não te deixes embarrilar - atalhou Nellie. - Isso é o que ele quer, que tu contes uma história contraditória ao médico, para depois...

- Cala a boca! - interrompeu Harrod, irrritado.- Vê lá se fechas as goelas!

- Que maneira é essa de falar?

Harrod riu-se.

- Disse-te que fechasses as goelas, minha linda! - Voltou-se para Mason e comentou: - É o que uma pessoa ganha em meter-se com uma tipa analfabeta que se quer passar por muito educada.

Nellie engoliu em seco, ia para dizer qualquer coisa mas depois arrependeu-se.

- Quanto tempo demora o médico a cá chegar?

- Deve cá estar dentro de uma hora.

- Como se chama ele?

- O que penso cá mandar é o dr. Arlington.

- Já trabalhou para si alguma vez?

- Já - retorquiu Mason. Harrod disse para Nellie.

- Arranja-me mais um cobertor, Nellie. Ainda estou com frio. - Depois virou-se para Mason:-Quero avisá-lo de uma coisa antes de se ir embora. A sua cliente não é Fern Driscoll, é Mildred Crest. Roubou a Fern Driscoll a bolsa, o dinheiro e a identidade. Não se deixe enganar por ela. Diga-lhe que já sabe tudo e que eu também sei. Depois venha cá conversar comigo. E agora vá lá então chamar esse médico, para ficar mais descansado.

 

Mason e Della Street chamaram o dr. Arlington e, em seguida, tomaram um táxi para o local onde Mason deixara o carro e dirigiram-se para os "Apartamentos Dixiecrat".

Estavam à espera há uns cinco minutos, quando viram aproximar-se o carro do dr. Arlington, que parou à frente do de Mason. O médico apeou-se, trocaram-se apertos de mãos e depois perguntou:

- De que se trata, Perry?

- Trata-se de um pedido de indemnização, isto é, vai ser um pedido de indemnização - retorquiu Mason. - O homem chama-se Harrod, mora no apartamento 218. Disse-lhe que ia mandar-lhe o meu médico. Toque a campainha, entre e examine-o. Não se esqueça de que se encontra lá na qualidade de meu médico, a fazer uma verificação independente. Explique-lhe que não é o médico dele e que haverá quaisquer relações confidenciais entre médico e doente. Se ele lhe fizer qualquer declaração a respeito da maneira como se sente, quero que você possa servir de testemunha a esse respeito.

- Está bem - volveu o dr. Arlington. - De que se queixa ele?

- Espetaram-lhe qualquer coisa no peito.

- Uma faca?

- Não, não foi uma faca. Parece-me que era um objecto muito mais pequeno.

- Com certeza que não foi um prego?

- Uma coisa mais ou menos do tamanho de um ferro de quebrar gelo.

- Ah!

- Ele se calhar não lhe dará qualquer informação a respeito da maneira como aquilo aconteceu - acrescentou Mason - embora possa dizer-lhe que se encontrava em frente da porta da cozinha, quando a mulher veio de lá com uma grande rima de pratos e deu um pontapé na porta para a abrir. Ele estava com um ferro de quebrar gelo na mão e a porta aberta de repente enterrou-lho no peito.

- Foi assim que a coisa se passou?

- Ele poderá dizer-lhe que foi assim.

- Mas o caso passou-se dessa maneira?

- Como é que eu hei-de saber? - perguntou Mason. - Vá lá acima e veja o que é que o tipo tem. Está a queixar-se de arrepios.

- Hum, hum, será melhor investigar. Uma picada com um ferro de quebrar gelo pode ter consequências graves.

- Está bem - concordou Mason. - Vá lá então investigar.

 

O dr. Arlington, com a sua maleta profissional na mão, aproximou-se da porta do prédio e premiu a campainha correspondente ao apartamento 218. Daí a momentos, ouviu-se um zumbido e o dr. Arlington empurrou a porta e entrou.

- Bem - disse Mason a Della Street - daqui a pouco já sabemos o problema com que temos de contar. Deixou lá o ferro de quebrar gelo?

- Deixei. Meti-o dentro da gaveta dos talheres, no armário da cozinha.

- Trabalhou depressa - comentou Mason.

- O senhor deu-me uma oportunidade excelente, ao interrogar a mulher a respeito do seu estado matrimonial. Não acha que foi cruel, Chefe?

- Foi uma boa maneira de lhe desviar a atenção.

- Mas ela sabe o que tinha na gaveta e, quando encontrar aquele ferro de quebrar gelo a mais, principalmente tenho ainda a etiqueta do preço, há-de perceber que o puseram lá de propósito e não deixará de entender.

- Mas também pode pensar que o ferro de quebrar gelo com a etiqueta do preço foi o utilizado para agredir Harrod.

Della Street reflectiu por momentos e depois sorriu.

- Parece-me que estou a começar a ver luz, uma luz muito interessante e significativa.

Mason acendeu um cigarro.

- Vamos a ver o que eles dizem ao dr. Arlington.

- Não lhe parece que teria sido melhor ir lá acima com ele?

- Não quero servir de testemunha. Deixe o dr. Arlington falar com o homem. Qualquer tribunal aceitará o depoimento do dr. Arlington como sendo verdadeiro.

- Será uma óptima testemunha - concordou Della. Della, que estava de pé ao lado do automóvel de

Perry Mason, olhando para a parte de trás do carro, exclamou, de repente:

- Oh, oh, Chefe! Temos sarilho!

- O que é? - perguntou Mason.

- Um carro da Polícia com o sinal vermelho.

- Vem para aqui?

- Parece que sim.

- Salte cá para dentro-disse Mason. - Vamos pôr-nos a andar. Não é conveniente que nos encontrem...

- Já não há tempo-retorquiu ela, - Estão mesmo em cima de nós. É melhor arranjarmos uma boa história.

- Suba-insistiu Mason, desviando-se para o lado, para Della se poder sentar ao volante. - Pode ser que eles não dêem por si.

Della Street, com um movimento ágil e gracioso, esgueirou-se por detrás do volante, fechou a porta e baixou o vidro da janela.

- Proceda como se não os tivesse visto-disse Mason - e continue a falar. Pode ser que eles não reparem num carro estacionado e...

Interrompeu-se, ao ver o interior do carro inundado com uma luz vermelha.

- Vire-se para trás - sugeriu Mason. - Mostre-se surpreendida. De outro modo, eles perceberão que os vimos antes.

Mason voltou-se de repente, depois olhou para Della Street, e exclamou, apontando para o facho de luz:

- Olhe! Olhe! - depois perguntou a Della, em voz baixa: -Que tal?

- Foi um bocado forçado, mas saiu bem-respondeu ela. - Lá vêm eles.

O sargento Holcomb, da Brigada de Homicídios, aproximou-se do lado direito do carro. Um guarda Postou-se do lado esquerdo.

- Sim senhor! - começou Holcomb. - O que estão aqui a fazer?

- E o que é que você está aqui a fazer? Nós íamo-nos já embora.

- Ah, iam? Não me deu essa impressão. Deu-me a impressão de que estavam à espera de alguém. Sabe, Mason, você não devia ter uma secretária tão atraente. Com uma rapariga com a figura de "Miss América".

- "Miss Universo" - corrigiu Mason, mostrando-lhe os dentes.

- Está bem, está bem - redarguiu Holcomb. com o bom humor condescendente de uma pessoa Que tem os trunfos todos na mão. - Com uma secretária com a figura de "Miss Universo" ao pé de si, é natural que reparemos nela, quando se esgueira por detrás do volante de um automóvel. E agora diga-me lá de Que estavam à espera.

Della Street, ao olhar em direcção da porta do Prédio, acotovelou Mason disfarçadamente.

O dr. Arlington saiu precipitadamente, deu um passo na direcção do carro de Mason, mas viu os polícias e dirigiu-se para o seu carro. Holcomb observava-o com um sorriso divertido.

- Doutor! - chamou ele.

O dr. Arlington parou, olhou por cima do ombro e perguntou:

- O que é? ,

- O senhor é médico, não é? - inquiriu Holcomb, olhando fixamente para a maleta.

- Sou.

- Posso perguntar-lhe onde esteve, doutor?

- Naquele prédio - retorquiu o dr. Arlington.

- Esplêndido! - exclamou Holcomb. – Como o vimos sair de lá, não tenho razões para duvidar da veracidade da sua declaração. Importa-se de ser um pouco mais específico, doutor, e dizer-nos em que apartamento daquele prédio esteve?

- Não sei o que isso possa interessar seja a quem for - disse o dr. Arlington.

- Mas parece-me que interessa - observou o sargento Holcomb.- Se esteve no apartamento 218, isso interessa bastante à Polícia. E se foi Mr. Perry Mason quem o mandou lá ir, então o caso é mais que interessante, é verdadeiramente emocionante. O facto de, ao que parece, Mr. Mason estar à sua espera, indica que sabia onde o doutor se encontrava. Se ele sabia que estava ali, há muitas probabilidades em que era ele o responsável por o doutor lá estar. O facto de o doutor começar por se dirigir ao automóvel de Mr. Mason, como que para lhe dar uma informação, e depois, ao ver o carro da Polícia estacionado atrás, se ter virado de repente para o automóvel que, segundo suponho, é o seu, é altamente revelador. O que foi que encontrou, doutor?

O dr. Arlington tomou rapidamente uma decisão. Sorriu e disse:

- Fui examinar uma pessoa que fora agredida. Julguei que fosse um assunto de direito civil, com a possibilidade de se tratar de uma queixa infundada.

Olhou para Perry Mason por detrás do polícia que estava de pé, do lado do carro, ergueu a voz e prosseguiu:

- O homem já estava morto quando lá cheguei. A rapariga que se encontrava com ele e que, segundo julgo, era sua mulher, contou uma história a respeito de um ferro de quebrar gelo que fora espetado no peito do homem. Procedi a um rápido exame e verifiquei que, de facto, havia um pequeno ferimento no peito. Atendendo às circunstâncias, pensei que aquele caso pertencia ao coroner e não fiz mais nada.

- Chamou a Polícia? - perguntou Holcomb.

- Já tinham chamado a Polícia antes de eu chegar - volveu o dr. Arlinqton. Depois, lançando a Perry Mason um olhar significativo, acrescentou: - Claro que informaria o coroner, se a rapariga não tivesse já chamado a Polícia.

- Que interessante! - comentou o sargento Holcomb. - Agora talvez alguém nos conte como é que Mr. Mason conseguiu saber que o homem fora agredido.

- Um momento, Doutor - atalhou Mason. - Quando saiu, ficou alguém no apartamento?

- Só a rapariga.

- Sabe se ela é, de facto, a mulher dele?

- Não sei. Como é que havia de saber? Não lhe pedi que me mostrasse a certidão de casamento.

- Por outras palavras: neste momento, ela encontra-se a sós com o corpo e com quaisquer provas que possam existir no apartamento.

- É verdade - concordou o dr. Arlington.

- Pronto, Mason, você ganhou a cartada - disse Holcomb, suspirando. - Embora gostasse bastante de o interrogar, compreendo que o meu dever, em primeiro lugar, é ir lá acima investigar o homicídio.

- Homicídio? - inquiriu Mason. - Então não foi acidental?

O sargento Holcomb mostrou-lhe os dentes, num sorriso forçado:

- A história que nos contaram ao telefone foi que uma mulher lhe espetou no peito um ferro de quebrar gelo. Contudo, descobriremos muito mais coisas a esse respeito. Não se vá embora, Mason.

- Porquê?

- Preciso de falar consigo.

- Pode falar comigo no meu escritório.

- Não quero perder tempo. Não o deterei mais do que o necessário, mas você e o doutor vão ficar aqui. E agora diga-me: esteve lá em cima no apartamento, Mason?

- Estive.

- Era o que eu pensava.

- Quer que vá consigo, Sargento? - perguntou o outro polícia.

- Quero - retorquiu Holcomb. - Daqui a momentos chega um carro com um delegado do coroner e um perito de impressões digitais. - Virou-se para Mason:

- Estou a dar-lhe uma ordem na minha qualidade de autoridade em cumprimento da sua missão. Não saia daqui até eu ter uma oportunidade de falar consigo.

- De acordo, se se tratar de uma ordem razoável

- volveu Mason. - Dou-lhe quinze minutos. É um período de tempo razoável. Se tem quaisquer perguntas a fazer ao dr. Arlington ou a mim, esteja de volta dentro de quinze minutos.

- Tenho de proceder a uma investigação lá em cima.

- Pode trazer a rapariga cá para fora, selar a porta do apartamento para que ninguém mexa em nada, e isso é uma coisa que se faz em dois minutos. Tem dez minutos para uma primeira investigação, e depois volta cá para baixo e fala comigo. Decorridos os quinze minutos, seguirei o meu caminho e o dr. Arlington seguirá o dele.

O sargento Holcomb hesitou uns momentos, depois virou-se para o outro polícia e disse:

- Vamos lá.

Depois de eles se afastarem, o dr. Arlington disse para Mason, em voz baixa:

- Eu não sabia o que havia de fazer, Perry. O homem já estava morto quando lá cheguei. Já devia estar morto há uns dez minutos.

- E a rapariga, mostrou-se histérica?

- Não, preocupada... Mas não dava a impressão de o julgar insubstituível na sua vida.

- Ela disse-lhe alguma coisa que me possa interessar?

- Disse apenas que telefonara à Polícia, informando que Carl Harrod fora assassinado.

- Assassinado?

- Foi o que ela disse: assassinado. Não sabia o que é que você queria e se devia voltar a correr para aqui e dizer-lhe que o homem estava morto e que ela avisara a Polícia, ou se devia fazer um breve exame ao corpo para ver o sítio e a natureza do ferimento. Pensei que você havia de querer saber alguma coisa a respeito do ferimento e, por isso, puxei as mantas que o cobriam e observei-o. Descobri um pequeno ferimento lívido, e não tenho dúvidas em que foi feito com um ferro de quebrar gelo e que foi isso que lhe provocou a morte.

- Apenas o ferimento? - perguntou Mason.

- Sim. Eu não examinei o corpo todo, mas o homem estava nu da cintura para cima. Tenho a certeza de que, pelo menos no tórax, não havia qualquer outro ferimento.

- Está bem - retorquiu Mason, aborrecido. - Parece que estamos metidos numa linda alhada. Acho que é melhor ir telefonar à nossa cliente, Della... Espere - disse ele bruscamente, quando Della Street se preparava para abrir a porta do carro. - Lá vem um guarda, para não nos deixar escapar, enquanto Holcomb não se resolver a descer, para nos submeter a um terceiro grau (').

O guarda que fora lá acima com o sargento Holcomb aparecera à porta do prédio e encaminhava-se para o passeio. Na outra esquina, surgiu mais um carro da Polícia. O motorista, não encontrando vaga para estacionar, parou ao lado do outro, com a luz vermelha a girar no cimo, para chamar a atenção. De lá de dentro saíram homens apressadamente. Um fotógrafo, com uma grande máquina fotográfica a tiracolo, uma outra mais pequena na mão direita e um dispositivo de flash na mão esquerda, correu para o prédio. Seguia-o um guarda com uma máquina para impressões digitais e uma caixa escura, do género usado para transportar películas por revelar.

O guarda que acabava de sair aproximou-se e conferenciou durante uns momentos com os recém-chegados. Depois, estes últimos entraram no prédio, e o outro veio até ao carro de Mason.

- O sargento Holcomb disse que não os quer deter desnecessariamente, mas precisa de os interrogar e pede-lhes que não saiam daqui.

- Eu sou médico - declarou o dr. Arlington - e não posso abandonar os meus doentes. Tenho de estar no consultório para atender as chamadas e...

- Bem sei, bem sei - retorquiu o guarda. - Já não demora muito.

- Acho que quinze minutos é um lapso de tempo razoável - interveio Mason. - Digo-lhe, Doutor, que, se não for interrogado dentro desses quinze minutos, está, legalmente, no seu direito de se ir embora.

- Um momento! - redarguiu o guarda. - Isso não é assim! A lei não fala em nenhuns quinze minutos.

- A lei diz que qualquer ordem dada por um polícia deve ser razoável - replicou Mason. - Atendendo às circunstâncias deste caso, acho que quinze minutos é

 

(') Meios drásticos empregados pela Polícia, incluindo o espancamento, para obter uma confissão. (N. da T.)

 

um período de tempo razoável. Estou disposto a aceitar essa responsabilidade.

- Pois olhe que é capaz de ser uma responsabilidade bem grande - avisou o guarda, de má catadura.

- Na minha profissão, estou habituado a aceitar responsabilidades grandes - volveu Mason.

Era fácil de ver que o guarda estava pouco à vontade. Olhava ansiosamente para a porta do prédio.

- O sargento disse-me que os detivesse até ele chegar.

- Advirto-o de que, decorridos os quinze minutos, me vou embora.

- Vai-se embora quando o sargento lhe disser que pode ir.

- Vou-me embora quando passarem quinze minutos sobre o momento em que ele nos mandou esperar - disse Mason, bruscamente.

O guarda estava a pensar na resposta que havia de dar, quando a porta do prédio se abriu e apareceu o sargento Holcomb, que se aproximou rapidamente do carro.

- Com que então - começou ele - você e Miss Street conseguiram arrancar uma declaração ao homem, e Della Street apanhou-a em estenografia.

- É verdade - redarguiu Mason.

- Ele foi agredido por uma das suas clientes.

- Não é verdade.

- Como diabo o sabe? - perguntou Holcomb.

- As minhas clientes não agridem as pessoas.

- Bem, parece-me que quem o espicaçou com um ferro de quebrar gelo foi uma mulher que se encontrava no apartamento ocupado por Fern Driscoll, no número 309 dos "Apartamentos Rexmore". Miss Katherine Baylor é sua cliente, Mason?

- Nunca a vi sequer.

- E Fern Driscoll?

- Fern Driscoll é minha cliente.

- Muito bem. Vou falar com ela. E mais: quero falar com ela antes de você lhe poder telefonar. - Olhou para o relógio. - Não os deixe sair daqui durante dez minutos - disse ele para o guarda. - Quero ver essa tal Fern Driscoll antes de Mason lhe telefonar a avisá-la de que não abra a boca. Pelo que me parece, ela é a testemunha mais importante de que dispomos.

- Tenho a impressão, Sargento, de que não sabe que sou uma pessoa ocupada - declarou Mason.

- Conheço muito bem as suas ocupações - retorquiu Holcomb.- Detenha-os aqui, Ray. Daqui a dez minutos, pode deixá-los ir embora.

O sargento Holcomb afastou-se apressadamente e Mason olhou para o relógio, espreguiçou-se, bocejou, acendeu um cigarro, encostou a cabeça à almofada do assento e fechou os olhos.

O dr. Arlington, pegando na deixa de Mason dirigiu-se para o seu carro, abriu a porta e preparou-se para entrar.

- O senhor fica aqui durante dez minutos - avisou o guarda.

- Agora são só nove - retorquiu o dr. Arlinqton entrando no carro e fechando  a porta com estrondo.

Della Street, com os olhos fixos no mostrador do relógio, ia contando os minutos.

- Já passaram nove minutos e meio, Chefe.

Em obediência ao sinal de Mason, pôs o carro a trabalhar.

- Esperem lá! - protestou o guarda. - Ainda faltam trinta segundos.

- Só estamos a aquecer o motor - ripostou Mason. O guarda parecia atrapalhado.

- Gostava de receber a ordem do sargento Holcomb. Ele podia comunicar pelo rádio do carro.

- Bem sei que podia - redarguiu Mason -. mas ele estipulou dez minutos, e os dez minutos já passaram.

O guarda estava indeciso.

- Vamos, Della - disse Mason.

Della Street pôs o carro em andamento. O Dr. Harlington arrancou logo atrás deles.

- Para onde vamos? - perguntou Della.

- "Agência de Detectives Drake" - informou Mason.

- Mas primeiro faça sinal ao dr Arlington para que se aproxime.

Della Street avançou mais um quarteirão, depois estacionou o carro e fez sinal ao dr. Arlington. Quando o médico passou por eles, Mason disse-lhe:

- Vá para casa, Doutor, e não responda a nenhumas perguntas.

O dr. Arlington fez que sim com a cabeça e afastou-se.

- Parece-me que o Paul Drake está no escritório esta noite - declarou Della Street. - Disse-me que ia trabalhar num caso e que esperava demorar-se por lá até à meia-noite.

- Óptimo - retorquiu Mason. - Falaremos pessoalmente com Paul. Vire para a direita e meta pela outra rua, Della. Aquele guarda ainda deve estar a seguir a nossa luz da retaguarda, e é possível que Hol-comb ainda lhe mande uma mensagem pela rádio, mandando-o deter-nos para nos fazer outro interrogatório.

 

A telefonista do turno da noite do escritório da "Agência de Detectives Drake" levantou os olhos no momento em que Mason abria a porta do escritório para Della Street entrar.

A rapariga cumprimentou-os com um aceno de cabeça e sorriu.

- Está alguém com o Paul? - perguntou Mason.

- Não, Mr. Mason. Está sozinho.

- Diga-lhe que vamos ter com ele.

A telefonista aquiesceu com a cabeça e puxou para baixo uma cavilha do P. B. X.

Mason abriu o guarda-vento que separava a sala de entrada de um corredor ladeado de portas que davam para pequenos gabinetes.

O gabinete particular de Paul Drake encontrava-se ao fundo do corredor. Mason abriu a porta.

- Olá, Perry! - exclamou o detective. - Olá, Della. O que os traz por cá a uma hora destas? Aposto que já sei o que é.

Mason puxou uma cadeira para Della Street, e depois sentou-se junto da secretária de Drake.

- Olha, Paul, estamos envolvidos num caso muito complicado. Quero que procedas a investigações e depressa.

Drake pegou num lápis e puxou um bloco de apontamentos para a sua frente.

- Dispara!

- Trata-se de uma rapariga que usa o nome de Fern Driscoll e mora no número 309 dos "Apartamentos Rexmore". Quero que arranjes todas as informações possíveis a respeito de Fern Driscoll. Trabalhava em Lansing, Michigan, e veio-se embora de repente. Essa rapariga, que usa o nome de Fern Driscoll, está empregada na "Consolidated Sales & Distribution Company".

- Neste andar? - perguntou Drake, levantando os olhos.

- Exacto.

- Conheço o director relativamente bem - disse Drake - e pode ser que ele me dê qualquer esclarecimento a seu respeito.

- Ela só há dez dias ou duas semanas que está lá a trabalhar e quero informar-me de todos os seus antecedentes.

- O. K. Mais alguma coisa?

- Também quero elementos acerca de Harriman Baylor, um importante industrial de Lansing. Tem uma filha chamada Katherine e um filho de nome Forrester. Quero que colhas todas as informações a respeito da família. Fern Driscoll trabalhou para a companhia de Baylor, em Lansing.

- Mais nada?

- Quero saber também todo o passado de Carl Har-rod", "Apartamentos Dixiecrat",

- E o presente? - perguntou Drake.

- Não há presente.

Drake lançou-lhe um olhar inquiridor.

- O que queres dizer com isso?

- Pertence tudo ao passado - explicou Mason.

- Desde quando?

- Provavelmente, há perto de uma hora para cá.

- Para se conseguir tudo isso vão ser precisos muitos homens e muito tempo - declarou Drake.

- Vão ser precisos muitos homens e talvez muito dinheiro, mas muito tempo não.

- Porquê?

- Porque não dispomos de muito tempo.

- A Polícia já está informada do que se passou com Harrod?

- Já.

- E sabe que estás interessado nele?

- Sabe - retorquiu Mason.- Fui apanhado de surpresa quando estava parado em frente do prédio, à espera de que o dr. Arlington saísse para me transmitir os resultados do seu exame.

- Qual exame?

- Um exame para determinar a natureza e gravidade das lesões. Harrod fora agredido com um ferro de quebrar gelo. A mulher que vivia com ele já telefonara à Polícia, antes de lá chegarmos, e declarou que se tratava de um homicídio. O meu amigo sargento Holcomb apanhou-me com a boca na botija.

- E o que aconteceu depois? - inquiriu Drake.

- Não sei - retorquiu Mason. - Antes de o caso começar a aquecer, quero estar de posse de todas as informações que te pedi.

- O.K. Para onde vais agora?

- Para o meu escritório - disse Mason. - Começa já com as investigações. Um minuto pode ser precioso. Temos talvez de tomar a dianteira à Polícia em alguns pontos, e gostaria de meter-me à frente deles o mais possível. A família Baylor costuma instalar-se no "Hotel Vista dei Camino". Detestam publicidade desfavorável. Carl Harrod preparava-se para lhes arranjar uma boa quantidade dela. Katherine Baylor está cá na cidade. Encontra-se metida no caso, não sei até que ponto. Por outro lado, a rapariga que usa o nome de Fern Driscoll diz que foi ela a culpada da agressão com o ferro de quebrar gelo.

- Tu não acreditas que essa rapariga seja realmente Fern Driscoll, pois não?

- Eu sei que ela é Mildred Crest, de Oceanside. Começa a trabalhar e investiga tudo o que te pedi.

- O.K. - replicou Drake. - Vai lá para o teu escritório e deixa-me começar a dar instruções pelo telefone. Vou pôr dez homens a trabalhar dentro de dez minutos, e, cada um deles, empregará mais homens, se o julgar necessário.

Mason acenou com a cabeça na direcção de Della Street. Saíram e tomaram pelo corredor que conduzia ao escritório de Mason. Mason abriu a porta e acendeu as luzes.

- Então? - perguntou Della, depois de Mason ter pendurado o chapéu no cabide e de ter-se instalado na cadeira por detrás da secretária.

- Temos de esperar - retorquiu Mason. - Se a nossa cliente disser a verdade, assistia-lhe o direito de se defender.

- E se mentiu?

- Nesse caso, as coisas podem complicar-se bas­tante.

- Ela parece que já mentiu uma vez.

- É verdade. E essas mentiras hão-de colocá-la numa situação difícil, se as coisas se encaminharem contra ela. Como Mildred Crest, pode ser acusada do assassínio de Fern Driscoll. Todas essas mentiras ante­riores vão fazer recair suspeitas sobre ela, se as auto­ridades decidirem que a morte de Harrod foi provocada por assassínio.

Estavam à espera há dez minutos, quando retiniu o telefone que não vinha na lista.

- Eu atendo - disse Mason. - Deve ser Paul Drake.

Mason pegou no auscultador e exclamou:

- Alô, Paul!

A voz de Paul Drake fez-se ouvir do outro lado do fio:

- Compra um jornal da manhã. Verás uma fotografia de Harriman Baylor, o famoso industrial e magnate da finança, a sair do avião. Chegou aqui ao fim da tarde. Os repórteres foram esperá-lo ao aeroporto.

- Vou ver isso - retorquiu Mason. - Falaste numa fotografia?

- Uma bela fotografia. Mr. Baylor não veio aqui em viagem de negócios, veio para cá gozar umas férias bem merecidas e restabelecer a sua saúde. Mr. Baylor tem sofrido uns ataques de gota.

- Gota, hem?

- Sim, uma espécie de reumatismo nas articula­ções, que provoca um inchaço...

Mason riu-se e disse:

- Sei muito bem o que é a gota, Paul. Sei que é uma doença que, às vezes, se torna dolorosa. Ainda aqui não temos os jornais da manhã. Qual foi a impressão com que ficaste de Mr. Baylor pela fotografia?

- Pareceu-me autoritário. Possui muitos milhões de dólares, e tem ar de quem os possui. Na fotografia aparece com uma pasta na mão esquerda e o chapéu na mão direita em gesto de saudação. Tem uma linda hospedeira de cada lado, e, por baixo, vem um subtítulo em que se diz que o mago da finança e da indústria pensa que a Costa do Pacífico está à beira de um desenvolvimento sem precedentes. Baylor declara ser o que se verificou até agora, apenas um simples arranhão superficial na superfície da indústria.

- Vem a irradiar optimismo, pelos vistos.

- Isso mesmo - confirmou Drake.

- Posso telefonar-lhe para o "Hotel Vista del Camino"?

- Nem pensar nisso. Para se falar com ele é quase preciso um requerimento. Mas está lá, na sua suite habitual.

- Sabes alguma coisa a respeito dos seus antecedentes, Paul?

- É um grande industrial, um grande capitalista, administrador de várias companhias e o Who's Who (') dedica-lhe uma coluna inteira.

- E quanto a Katherine Baylor?

- Está a tirar um curso de especialização em Stan-ford. É boa rapariga, muito estimada, não pelo seu dinheiro, mas por ela própria. Não é vaidosa. Faz parte de um clube de escutismo. É uma espécie de missionária, obcecada pela ideia de conseguir que se faça justiça, igualmente para pobres e ricos. É uma boa rapariga.

- Complicações?

- Nenhuma, aparentemente. Não é de etiquetas, conta muitas amizades, e por isso é difícil saber se tem algum indivíduo determinado debaixo de olho. Pelos vistos, teve um namorico para as bandas de Leste, que a família receava que ela acabasse por tomar a sério, e é essa a razão por que arranjaram esse pretexto do

 

(') Who's Who é uma espécie de enciclopédia onde figuram os nomes e dados biográficos das individualidades mais importantes dos E. U.A. (N. da T.)

 

curso de especialização para a mandarem para Stanford. Ainda agora vou no princípio, Perry, mas daqui a pouco já devo ter mais novidades. Entretanto, pensei que estivesses interessado em saber o que se passava com Baylor.

- Fizeste bem - retorquiu Mason. - Continua na busca e mantém-te em contacto connosco. Parece-me que vou até ao "Vista del Camino", a ver se ele me recebe.

- Não deves ter sorte nenhuma. Ele deu uma conferência de imprensa no aeroporto e depois deu ordem para não ser incomodado. Não recebe ninguém, não atende chamadas telefónicas, nada.

- Há alguma excepção para alguém? - perguntou Mason.

- Não sei. O detective do hotel é meu amigo. Talvez consiga descobrir qualquer coisa.

- Então descobre e depois telefona-me. Estou interessado.

O advogado desligou o telefone e Della Street encheu uma chávena de café, que tirou da cafeteira eléctrica.

- Esteve a ouvir na outra extensão? - inquiriu Mason.

A rapariga acenou com a cabeça.

- Tirou notas?

Novo aceno afirmativo.

Daí a cinco minutos, Drake telefonou outra vez.

- Olha, Perry, vou dizer-te uma coisa, mas tens de proceder com discrição. Foi o meu amigo, o detective do hotel, que me informou e, se se soubesse que ele tinha dado com a língua nos dentes, eram capazes de o pôr na rua.

- Dize lá - atalhou Mason.

- O Baylor deu ordem para não ligarem quaisquer chamadas telefónicas para os seus aposentos nem deixar lá entrar ninguém. Até está um homem de guarda à porta. No entanto, deu instruções para, no caso de Mr. Howley telefonar, fazerem imediatamente a ligação, seja a que horas for.

- Howley? - perguntou Mason.

- Exactamente.

- Sabes quem é esse Howley?

- Não consegui descobrir nada a seu respeito. Só o que sei é que Baylor se recusa a atender toda a gente menos ele.

- Howley é esperado no hotel?

- Não sei. Contudo, Baylor deu ordem para o avisarem, se ele aparecesse. Ao que suponho, Howley deve chegar de avião, e Baylor está à espera dele.

- Sabes alguma coisa de concreto a esse respeito ou é só um palpite?

- Qual palpite! É uma dedução - replicou Drake.

- Nada mais que uma dedução?

- Pois.

- Para que é que Baylor havia de tomar todas essas precauções? - perguntou Mason. - Assim, é de prever que acabe por se tornar um centro de interesse.

- Mas ele é mesmo um centro de interesse- retorquiu Drake. - É um milionário.

- Mas ele não costuma tomar sempre todas essas precauções para não ser incomodado, pois não?

- Também não costuma ter sempre ataques de reumático e... se calhar anda a tratar de algum negócio importante. Não sei. A única coisa que posso fazer é informar-me dos factos e transmitir-tos. Cumpre-te agora é raciocinar.

- Não tens mais deduções a apresentar?

- Depois do frio acolhimento dispensado à última, acho que não.

Mason riu-se.

- Não te irrites, Paul. Continua a trabalhar. Mason desligou o telefone, olhou para Della Street com ar pensativo e disse:

- Procure pôr-se em comunicação com a nossa cliente, Della. Talvez a Polícia ainda não a tenha retirado da circulação. Pode ser que já acabassem de a interrogar, e possamos falar com ela ao telefone.

Della Street ligou o telefone, não obteve resposta, depois ligou para o porteiro do prédio, perguntou por Fern Driscoll do apartamento número 309, e, em seguida, disse:

- Um momento, por favor. - Voltou-se para Mason. - O porteiro disse que Miss Driscoll saiu acompanhada de dois homens e pediu ao porteiro que lhe guardasse a correspondência.

- Está bem - retorquiu Mason. - Desligue.

- Muito obrigada - disse Della. - Venho a telefonar mais tarde. - Desligou o telefone.

De repente, Mason virou-se para a secretária.

- Fique aqui a tomar conta do forte, Della. Eu vou até ao "Hotel Vista del Camino".

- Tenha cuidado - avisou-o ela.

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

Perry Mason saiu do escritório e dirigiu-se directamente para o "Hotel Vista del Camino".

Chegado ao vestíbulo, levantou o auscultador de um dos telefones da recepção e disse:

- Ligue-me a Mr. Harriman Baylor, por favor.

- Lamento muito mas, de momento, o telefone de Mr. Baylor está desligado. Deu ordem para que não o incomodassem.

- Mas comigo fala - redarguiu Mason. - Fiquei de lhe telefonar.

- Desculpe, mas não temos... Um momento. Qual é o nome, por favor?

- Howley - respondeu Mason.

Chegou aos ouvidos de Mason um cochichar do outro lado do fio. Depois a telefonista disse:

- Um momento, Mr. Howley. Vou ver se Mr. Baylor pode atender.

Daí a momentos, uma voz forte de barítono disse, cautelosamente.

- Alô? Fala Harriman Baylor.

- Howley - retorquiu Mason.

- Onde está? - A voz de Baylor denotava excitação.

- Estou aqui no vestíbulo.

- Já não era sem tempo - redarguiu Baylor.- Correu o boato de que você... Espere lá! Como é que eu sei que você é, de facto, Howley?

- Se vamos a isso, como é que eu sei que você é, de facto, Baylor?

- Qual é o seu outro nome, Howley?

- Olhe - disse Mason - não estou disposto a ficar aqui eternamente no vestíbulo, sujeito a que me apanhem enquanto o senhor está para aí a perguntar-me o catecismo. Vou lá acima e depois já lhe respondo a todas as perguntas e...

- Qual é o outro nome pelo qual o conheço? - interrompeu Baylor.

Mason hesitou.

Do outro lado cortaram a comunicação.

Mason largou logo o telefone, atravessou o vestíbulo e encaminhou-se para o quiosque dos charutos.

Daí a momentos apareceu um detective do hotel, aproximou-se dos telefones de comunicação com os quartos, olhou em volta e inspeccionou o vestíbulo.

Mason acendeu um cigarro, dirigiu-se para uma das poltronas, sentou-se, recostou-se e ficou à espera.

Um dos grooms, seguido de perto pelo detective, percorreu o vestíbulo, chamando: "Mr. Howley."

Mason não se moveu. Decorridos cinco minutos for até ao bar do hotel, entrou na cabina telefónica e marcou novamente o número do "Hotel Vista del Camino".

- Queira dizer a Mr. Harriman Baylor - disse Mason à telefonista que o atendeu - que Mr. Howley lhe deseja falar.

A telefonista hesitou, mas, segundos depois, ouviu-se uma voz de homem do outro lado da linha.

- Alô? - disse a voz.

- Mr. Baylor? - perguntou Mason.

- Eu próprio - retorquiu a voz.

- Howley - disse Mason.

- Onde é que você está agora, Howley?

- Não estou muito longe.

- Se me disser onde está, eu...

- Olhe lá! - interrompeu Mason, irritado. - Você não é Baylor. Que diabo vem a ser isto?

- Um momento! Calma! - disse o outro. - Estamos a controlar todas as chamadas para Mr. Baylor. Houve alguém que tentou pôr-se em contacto com ele, dizendo que era o senhor. Um momento. Vou já ligar a Mr. Baylor.

Daí a pouco fez-se ouvir outra voz do outro lado da linha, que disse, cautelosamente:

- Alô?

- Baylor? - perguntou Mason.

- Sim.

- Fala Howley.

- Qual foi o outro nome que me deu, Howley?

- Sabe muito bem qual é, que diabo! - retorquiu Mason.

- Pois sei, mas quero certificar-me de que é a pessoa que julgo. Qual era o outro nome?

- Carl Harrod.

- Está bem - disse Baylor, denotando uma expressão de alívio na voz. - Ouvi dizer que você estava gravemente ferido e... Não interessa, temos tempo para falar nisso depois. Venha aqui ter comigo. Estou na suite presidencial, mas não pode aproximar-se da porta porque está lá um guarda. Vá ao quarto 428 e bata à porta. Bata duas pancadas, espere um momento, bata mais duas, espere, e bata uma. Está a perceber?

- Estou.

- Bem, até já. Quanto tempo leva para cá chegar?

- Uns dois minutos - respondeu Mason.

- Correu tudo bem?

- O melhor possível.

- Ainda bem. Venha cá para discutirmos o assunto.

Mason desligou, entrou no hotel, meteu-se no elevador até ao quarto andar e embrenhou-se no corredor. A suite presidencial ficava ao fundo e a entrada encontrava-se bloqueada por um homem com mais de um metro e oitenta de altura, pescoço taurino e compleição de jogador de boxe. O homem olhou para Mason, desconfiado. Mason não lhe ligou importância e virou para a esquerda, em direcção do quarto 428. Bateu duas vezes, esperou, bateu mais duas, esperou e bateu uma.

Veio abrir a porta um indivíduo robusto e ágil que aparentava pouco mais de cinquenta anos. Tinha uma testa alta, sobrancelhas espessas e uns olhos penetrantes.

Recuou ao dar de caras com Mason. Tentou empurrar a porta com a mão esquerda, que ainda segurava na maçaneta, mas Mason baixou o ombro, deu um empurrão à porta e entrou.

- Sou Perry Mason, Mr. Baylor - disse ele. - Sou o advogado da jovem que habita nos Apartamentos Rexmore. Acho que será conveniente termos uma conversa.

- Perry Mason, o advogado?

- Exactamente.

- Desculpe, Mason, mas não pode entrar. Não posso atender ninguém.

- Excepto Carl Harrod. Para sua informação, Carl Harrod está morto.

- Mas... eu...

Mason fechou a porta com um pontapé.

- As decisões a que eu e o senhor chegarmos nos próximos momentos vão ser da máxima importância. Quero que ponha as cartas na mesa.

- Não quero falar consigo. Já me avisaram a seu respeito.

- Não sei quanto tempo ainda me resta para discutir este assunto antes de a Polícia cá chegar. Devo dizer-lhe, Mr. Baylor, que sei que Carl Harrod andou a fazer chantagem consigo. Harrod foi ferido no peito com um ferro de quebrar gelo e morreu há poucas horas. Declarou-me que Fern Driscoll o agredira com o ferro mas, depois de o interrogar minuciosamente, admitiu que poderia ter sido sua filha Katherine Baylor quem lhe cravara o ferro no peito.

"Não me interessa o seu poder, nem me interessa o seu dinheiro; a morte de Harrod vai levantar complicações. Não estou completamente informado do que aconteceu a Fern Driscoll, mas parece-me que será melhor o senhor e eu trocarmos umas impressões, antes de aparecer alguma história sensacional nos jornais."

- Nos jornais! - exclamou Baylor.

- Exactamente.

Baylor hesitou. Depois disse:

- Está bem. Você ganhou a partida. - Estendeu a mão esquerda e apertou a mão de Mason. - Desculpe ser com a mão esquerda. O meu reumático agravou-se de repente. Vamos lá então conversar.

Baylor atravessou o quarto 428, que estava mobilado como um vulgar quarto de hotel, e abriu uma porta que dava para a sala de espera de uma luxuosa suite.

- Apresento-lhe minha filha, Katherine - disse Baylor.- Mr. Perry Mason, o advogado de Fern Driscoll.

Katherine Baylor pôs-se de pé de um salto, com os olhos dilatados de emoção, uma emoção que, nesse momento, Mason não foi capaz de classificar. Aproximou-se de Perry Mason e estendeu-lhe a mão.

- Mr. Mason - disse ela.

- Muito prazer em conhecê-la - volveu Mason.

E acrescentou, calmamente:-A minha cliente falou-me de si.

- Oh! - exclamou Kitty.

- Sente-se, Mason - convidou Baylor. - Na verdade talvez seja melhor pormos as cartas na mesa.

Mason escolheu uma cadeira, estendeu as compridas pernas e cruzou-as nos tornozelos.

- Que história vem a ser essa do Harrod ter morrido? - perguntou Baylor.

- Morreu de um ferimento provocado por um ferro de quebrar gelo - replicou Mason. - A princípio Harrod declarou que fora Fern Driscoll quem lho espetara no peito. Depois aludiu-se à possibilidade de sua filha o haver feito.

- O quê! - exclamou Kitty. - Isso é completamente absurdo! Eu só lhe dei uma bofetada e...

- Deixa-me falar a mim e a Mr. Mason, Kitty - interrompeu Baylor. - Gostaria de saber mais alguma coisa a respeito da posição de Mason neste assunto, e ver o que é que ele pretende.

- O que eu pretendo são factos - replicou Mason. - Quero saber quais eram exactamente as suas relações com Harrod, e porque veio para aqui, recusando-se a falar fosse com quem fosse, excepto com Carl Harrod, que devia apresentar-se sob o nome de Howley.

- E eu quero saber quem é que lhe deu todas essas informações - atalhou Baylor, com dureza.

Mason sorriu:

- Parece-me que há certos pormenores que não posso esclarecer.

- Não pode ou não quer?

- Não quero!

- Não é essa a melhor maneira de chegarmos a um acordo.

- É a minha maneira - redarguiu Mason. Baylor enrubesceu.

- Não consinto que ninguém me dê ordens, Mr. Mason.

- Talvez não, mas nós os dois diferimos numa coisa.

- Em quê?

Mason mostrou os dentes num sorriso.

- Eu não me importo que ponham o meu nome nos jornais, nem com o tamanho das letras.

O tom agressivo de Baylor quebrou bastante.

- O que é que quer, afinal, Mason?

- Primeiro, quero saber tudo a respeito de Fern Driscoll.

- Não há nenhuma razão para não saber tudo o que eu sei. Miss Driscoll desempenhava as funções de secre­tária do meu filho. É possível que tenha surgido qualquer atracção de ordem sentimental entre eles. É mesmo pos­sível que Miss Driscoll fosse tão ingénua que pensasse que uma pessoa na posição de meu filho poderia vir a casar com ela, e pode até ter ousado pensar que isso viria a realizar-se.

Mason olhou, com ar pensativo, para o seu inter­locutor.

- Disse ter ousado pensar nisso?

- É possível que ela o pensasse.

- Considera improvável um casamento desses? Baylor corou e disse:

- Considero-o completamente impossível!

- Posso perguntar-lhe porquê?

- Há certas razões que me parece não ser neces­sário mencionar neste momento, além, claro, da evidente diferença de posição social.

- Acha isso importante?

- Muito importante! - replicou Baylor, secamente. O telefone retiniu. Era evidente que se tratava de um sinal combinado: um toque, um intervalo, dois toques, um intervalo, um toque.

Katherine Baylor encaminhou-se na direcção do tele­fone, mas o pai abanou a cabeça, atravessou a sala, pegou no auscultador, e perguntou, impaciente:

- Alô?... Sou. De que se trata agora? Escutou uns segundos e depois disse:

- Claro que falo com ele. Faça a ligação... Alô... Sim, sou eu próprio, Sargento.

Voltou a escutar uns segundos.

- Sim, minha filha está aqui comigo. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para facilitar as investi­gações, mas essa acusação é absurda. E diga-me, tem a certeza de que o homem está morto?

Baylor tornou a escutar.

- Estou muito ocupado neste momento. Se pudesse cá vir daqui a... daqui a meia hora, digamos, era melhor...

Ah!... Bem, então daqui a vinte minutos... Tenho muita pena, Sargento, mas quinze minutos é o melhor que lhe posso arranjar... Lamento muito, mas isto é defi­nitivo. Quinze minutos! Não me interessa que me cite para comparecer nem que seja perante mil júris; estou ocupado durante quinze minutos...! Muito bem. Até logo.

Baylor atirou com o auscultador, voltou a sentar-se, consultou o relógio, olhou para Mason com ar pensa­tivo e disse:

- Olhe Mason, já não temos tempo para estar aqui com jogos da palavras. O meu filho começou a namorar Fern Driscoll. Pode ser que ela seja uma rapariga cheia ae qualidades, não sei, mas meu filho sente-se também atraído por uma jovem da mesma posição social dele, uma mulher que o faria feliz e seria bem aceite no nosso meio, uma coisa que Miss Driscoll dificilmente conse­guiria. Segundo a história de Carl Harrod, Miss Driscoll ficou gravida e eu dei-lhe uma importante quantia para ela sair da cidade. Essa história é absolutamente falsa.

- E quanto à parte que se refere ao seu filho? - perguntou Mason.

- Meu filho assegurou-me que, no que lhe diz res­peito, a história é completamente falsa - declarou Bay­lor, com dignidade.

- Bem - disse Kitty – eu por acaso vim a saber que...

- Basta! - interrompeu Baylor. - Não te metas nisto, Katherine. É um assunto muito delicado.

Kitty lançou-lhe um olhar furioso.

- O que ia a dizer podia ajudar a...

- Por favor! - exclamou o pai, num tom autoritário. A rapariga ficou calada.

- Depois - prosseguiu Baylor - a situação compli­cou-se devido à intervenção desse Harrod. Parece que Fern Driscoll se viu envolvida num desastre de automóvel, que Harrod foi investigar por conta de uma compa­nhia de seguros. Pela pista que seguiu, veio a descobrir uma serie de factos deturpados. Houve alguém que lhe deu informações erradas. O caso é que ele entrou em negociações com uma revista de escândalos, à qual se propôs vender a história por dez mil dólares.

- Falou com ele? - perguntou Mason.

Baylor reflectiu durante uns quatro ou cinco segundos, e depois disse, como quem está a pesar cuidadosamente as palavras:

- De facto, falei com ele. Harrod pensou que eu talvez estivesse disposto a dar-lhe uma importância pelo menos igual à que esperava receber da revista. Porém, informara-se certamente com qualquer pessoa a respeito do que diz a lei a propósito das tentativas de chantagem, e foi difícil fazer que ele dissesse exactamente o que pretendia. Além disso, Mason, não sou homem para permitir que façam chantagem comigo.

"O motivo que me leva a contar-lhe tudo isto é que, segundo disse Harrod, Fern Driscoll tinha em seu poder umas cartas bastante indiscretas que meu filho lhe escrevera. Ele não estava bem informado a respeito do conteúdo dessas cartas. Atendendo à minha posição e ao meu nome, uma revista de escândalos havia de acolher de braços abertos uma história que colocasse a minha família numa situação melindrosa. Pagaria de bom grado um preço elevado por essa história, cuja publicação originaria uma série de comentários desfavoráveis dentro do meio em que vivo.

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

Baylor olhou para o relógio e começou a falar mais depressa.

- Só disponho de mais um minuto ou dois, Mr. Mason. Não quero que a Polícia o encontre aqui. Um tal sargento Holcomb quer interrogar minha filha acerca da morte do Harrod.

Mason voltou a acenar afirmativamente com a cabeça.

- Suponho que sabe alguma coisa a esse respeito.

- Sei - retorquiu Mason.

- Conhece o sargento Holcomb?

- Conheço.

- Não quero que ele o veja cá, nem vou dizer-lhe que você aqui esteve. Estou a falar-lhe com a maior franqueza, Mr. Mason. Não sou homem para admitir que façam chantagem comigo. As circunstâncias presentes, porém, colocam-me numa situação embaraçosa. Tenho todas as razões para pensar que Miss Driscoll vai precisar de um bom advogado. Estou convencido de que Miss Driscoll tem em seu poder umas cartas que meu filho lhe escreveu. Quero essas cartas. Quando essas cartas me forem entregues estou disposto a pagar-lhe para representar Miss Driscoll.

- Não sou chantagista - redarguiu Mason.

- Também não penso que você o seja. Vai representar Fern Driscoll e ela não tem dinheiro para lhe pagar os honorários que costuma cobrar. Por outro lado, Miss Driscoll não é pessoa para fazer chantagem e você também não. Portanto, nunca pensariam em usar essas cartas para fins ilícitos. Mas deixe-me explicar-lhe o perigo da situação. Se a Polícia passar uma busca ao apartamento de Miss Driscoll e encontrar essas cartas, mesmo que não cheguem a ir para os jornais, a sua existência será estabelecida, e isso é o suficiente para dar à revista de escândalos a confirmação de que precisa para poder publicar essa história indecente.

"Nesta conformidade, sem você poder ser, de modo algum, acusado de extorsão, nem ir contra os princípios da ética profissional, pode assegurar à sua cliente que, se lhe der as cartas e você mas entregar, ela poderá recorrer aos seus serviços e eu pagarei a conta por inteiro. Fui suficientemente claro?"

Mason fez um aceno afirmativo.

Mas, Papá - disse Kitty, - ela não é Fern Driscoll.

O pai voltou-se para a filha, irritado.

- Já te disse que te não metesses neste assunto. Mason olhou para Harriman Baylor com ar pensativo.

- E suponhamos que ela não é, de facto, Fern Driscoll - continuou Baylor. - Suponhamos mesmo que a sua cliente é uma impostora. A situação, assim, ainda se torna mais delicada. Se se chegar à conclusão de que Fern Driscoll era a rapariga que morreu, e se a autópsia revelou que estava grávida de dois meses, que saiu, de repente, do emprego que tinha na minha firma, afastando-se da cidade sem sequer se despedir das pessoas amigas, e se depois aparecerem essas cartas de meu filho... Que diabo, Mason! Não preciso de estar a explicar-lhe uma coisa tão evidente. Quero essas cartas!

- E - retorquiu Mason - o motivo que o levou a não querer receber mais ninguém além de Harrod foi que Harrod lhe prometeu que havia de conseguir apoderar-se dessas cartas e que lhas restituiria a troco de pagamento a pronto. É ou não é verdade?

- Não estou disposto a ser submetido a um contra-interrogatório, por si ou seja por quem for, e quero que se vá embora daqui antes de a Polícia chegar. Já disse tudo o que tinha a dizer-lhe.

Baylor levantou-se, dirigiu-se à porta e abriu-a.

- Compreendo a sua intenção, Mr. Baylor - disse Mason.

- Vai considerar a minha proposta?

- Vou considerar os interesses da minha cliente.

- Entende o que eu estou a tentar evitar que aconteça?

- Entendo perfeitamente.

- Se essa revista não conseguir arranjar nenhuma espécie de confirmação, não se atreverá a publicar a história. Se tiver a mais pequena prova, aparecerá com uma história que provocará um escândalo, com consequências desastrosas. Você precisa que lhe paguem os seus serviços. Já lhe indiquei a maneira de obter honorários adequados.

- Percebi-o muito bem - volveu Mason. - Farei o que for melhor para a minha cliente.

Transpôs a porta e dirigiu-se para o elevador.

 

Mason meteu a chave à porta do seu gabinete particular, sorriu a Della Street e disse:

- Bem, parece-me que podemos ir para casa.

- Como correu isso? - perguntou a secretária.

- Comecei mal, mas acabei por falar com Baylor. Veja já se adivinha quem era Howley.

- Howley? - inquiriu ela, perplexa. - Quem era... Ah, já me lembro, Howley foi o nome que Baylor deu aos telefonistas e detectives do hotel, a única pessoa cujos telefonemas podiam ser atendidos e que devia ser conduzida à sua presença fosse a que hora fosse que se apresentasse.

- Exactamente - retorquiu Mason. - Adivinhe quem era Howley.

- Desisto, Chefe. Quem era Howley?

- Howley era o pseudónimo de Carl Harrod.

- Oh, oh! - exclamou Della. - Como é que o conseguiu descobrir?

- Arrisquei-me, disparei um tiro no escuro. Da primeira vez que telefonei e disse que era Howley, Baylor quis que lhe dissesse o outro nome pelo qual me conhecia. Não foi assim tão directo, mas perguntou-me qual era o outro nome que eu lhe dera. Hesitei, procurando arranjar uma saída, e ele então desligou o telefone.

"Pus-me a pensar no caso durante um bocado, e cheguei à conclusão de que Baylor se encontrava aqui por causa de Fern Driscoll, que Harrod se pusera em contacto com ele, que a situação era realmente desesperada. Harrod fizera-lhe qualquer ultimato e ele estava a tomar uma decisão a tal respeito.

"Não podia perder nada e tinha tudo a ganhar. Por isso, dirigi-me a outro telefone, fiz nova chamada, dei o nome de Howley e, quando Baylor voltou a perguntar-me qual era o outro nome por que me conhecia, retorqui "Carl Harrod" e ele ficou satisfeito."

Della Street franziu o sobrolho.

- Isso que significa, Chefe?

- É o que estou a tentar descobrir. As pessoas reagem normalmente aos estímulos exteriores de maneira harmónica com as suas características básicas. Quando temos a impressão de que não procedem desse modo, isso quer dizer que os estímulos exteriores estão a ser mal interpretados pelo investigador, ou que o carácter básico da pessoa foi mal interpretado.

"Baylor dá-se ares de ser um homem capaz de lutar até ao último cartucho, um homem que não admite chantagem, um homem que se recusa a curvar-se perante seja quem for. No entanto, tomou o avião de Michigan para aqui e, apesar dos seus enérgicos protestos de independência, vemo-lo marcar um encontro com um chantagista."

Mason começou a passear de um lado para o outro. Decorridos alguns segundos, disse, com ar pensativo:

- Se isso faz parte da história de Fern Driscoll, Harrod deve ter descoberto algo de novo. É provável que se tenha posto em contacto com Baylor em Michigan e lhe haja proposto vender-lhe a história pela mesma importância que receberia da revista. Baylor deve tê-lo mandado passear.

Della Street retorquiu:

- Vejo pelo tom da sua voz que, enquanto está a pensar em voz alta, já faz ideia da resposta.

- A resposta pode ser que Katherine Baylor tenha sido de algum modo envolvida na questão.

- Como?

- Aí é que reside um dos mistérios mais importantes do caso. E, mais uma vez, vemo-nos perante uma conduta incoerente. Sabemos agora que a nossa cliente é, afinal, Mildred Crest, que Fern Driscoll entrou no carro de Mildred e houve um acidente Sabemos que nesse acidente existe seja o que for que soa a falso. Sabemos que Fern Driscoll morreu e Mildred se apossou da sua identidade, e, contudo, os actos de Fern Driscoll não são coerentes.

- Porque não o são?

- Fern Driscoll - explicou o advogado - era uma rapariga com a cabeça bem assente. Era secretária do filho de Baylor dentro de uma grande organização. Devia ter responsabilidades e capacidade para tomar decisões. De repente, perde por completo a cabeça e começa a fazer coisas sem sentido, seja qual for o ponto de vista pelo qual as encaremos.

- Não é muito de admirar que uma rapariga solteira que descubra que está grávida perca por completo a cabeça - atalhou Della Street. - Imagine a situação em que ela se encontra.

- Estou a tentar imaginá-la, mas, mesmo assim, isso não explica inteiramente o seu procedimento... Ligue para o Paul Drake, Della. Diga-lhe que voltei e que vamos fechar a loja. Veja se ele sabe alguma coisa de novo.

Della fez a chamada e depois informou:

- O Paul diz que tem umas novidades fresquinhas. Vem já aí.

Mason aproximou-se da porta do gabinete, assim que ouviu o bater convencional de Drake, e abriu a porta ao detective.

- Como vai isso? - perguntou Mason.

- Parece-me que a tua cliente está metida num grande sarilho - retorquiu Drake.

- Dispara! - disse Mason.

- Segundo disse a viúva de Harrod, Harrod fez outra declaração depois de tu saíres. Essa declaração foi realizada quando ele sentiu que a morte estava iminente.

- Prossegue-redarguiu Mason. - Em que consiste tal declaração?

- Essa declaração consiste em que a tua cliente é uma impostora, que o verdadeiro nome dela é Mildred Crest, de Ooeanside, que o noivo de Mildred fez um desfalque e se pôs ao fresco, que Mildred deu uma boleia a Fern Driscoll, e que houve um acidente que provocou a morte de Fern Driscoll, tendo-se Mildred apoderado da sua identidade, ou Mildred matou delibera-damente Fern Driscoll, a fim de conseguir obter uma outra identidade.

- Continua - atalhou Mason, imperturbável. - E que mais?

- Fern Driscoll teve um noivado acidentado com Forrester Baylor. O Baylor Júnior prometeu-lhe casamento. Só quando ela ficou grávida é que descobriu que o rapaz estava completamente sob a alçada do pai. Foi então que o velhote se meteu na questão, disse a Fern Driscoll que ela nunca poderia esperar entrar no sagrado círculo social da família Baylor, deu-lhe uma data de dinheiro e mandou-a desaparecer dali.

"Ela desapareceu mas levou consigo um maço de cartas de amor, escritas pelo punho de Forrester Baylor. A rapariga não tinha a mínima intenção de se servir dessas cartas, mas, Harrod, quando começou a investigar o acidente do carro de Mildred Crest por conta da companhia de seguros e tentou descobrir a identidade da pessoa a quem Mildred dera boleia, fez um bom trabalho e desenterrou o escândalo.

"Como aquilo nada tinha a ver com a tarefa de que Harrod fora encarregado pela companhia de seguros, ele decidiu-se a tirar o maior proveito do caso. Dispôs-se a vender a história para uma revista de escândalos. É claro que ofereceu a história aos editores, que ficaram muito entusiasmados com ela. Disseram a Harrod que lhe pagariam dez mil dólares por ela, mas que precisavam de uma prova de qualquer espécie. Para obter essa prova, Harrod necessitava das cartas que o Baylor filho escrevera.

"Harrod começou por tentar fazer um acordo com Mildred Crest, oculta sob a identidade de Fern Driscoll, para se apoderar das cartas. Foi visitá-la e chegou à conclusão de que ela não era Fern Driscoll. Ao ir lá pela segunda vez, encontrou Katherine Baylor no apartamento.

"Por isso, Harrod esperou um bocado e depois dirigiu-se ao apartamento de Mildred pela terceira vez. Foi nessa altura que alguém lhe espetou no peito um ferro de quebrar gelo.

"Chegou a casa, todo satisfeito. Telefonou a Baylor e tiveram uma conversa muito misteriosa. A seguir, telefonou para ti.

"E aqui é que está o engraçado da questão. Quando Harrod chegou a casa, da primeira vez, disse à mulher que fora Katherine Baylor quem o agredira. Mandou-a ligar para ti, pois ia fazer-te dançar na corda bamba.

"Depois de falar contigo disse à mulher que precisava de preparar a cena e fingir que o ferimento era grave. Por isso, tapou-se com um cobertor.

"Até à altura em que tu apareceste, mostrou-se muito bem disposto. Depois começou a queixar-se de que tinha frio. Quando tu lá estavas disse que estava a sentir arrepios, e a mulher julgou que aquilo fazia parte da fita. Depois de tu saíres é que ela percebeu que o marido estava realmente a sentir-se mal. Sugeriu-lhe que tomasse um banho quente. Ele preparava-se para ir para a casa de banho mas, de repente, soltou uma exclamação de dor, caiu na cadeira e morreu daí a cinco minutos.

"E agora uma coisa que vai certamente preocupar-te, Perry: a Polícia passou uma busca ao apartamento da tua cliente e encontrou quatro mil dólares em notas de cem, novas. Segundo o raciocínio da Polícia foi esse o dinheiro que Fern Driscoll recebeu de Harrimam Baylor ou de Forrester Baylor, para se ir embora e ter a criança.

"Seja como for, Mildred Crest não podia entrar de posse de semelhante quantia de uma maneira legítima.

Esse dinheiro veio da bolsa de Fern Driscoll. O facto de o tirar de dentro da bolsa constitui um roubo.

"A Polícia vai tentar estruturar um caso sobre a teoria de que, ou Mildred Crest assassinou Fern Driscoll, para se apossar da sua identidade, ou lhe roubou a identidade juntamente com o dinheiro que se encontrava na bolsa da outra, e que, quando Carl Harrod seguiu a pista e descobriu o que se passava, ela tentou impedi-lo de falar, espetando-lhe no peito um ferro de quebrar gelo. E, com isso, chegam a um lindo caso de assassínio de primeiro grau."

- Levaram a minha cliente sob custódia? - perguntou Mason.

- Está sob custódia. Acho que já a identificaram através da impressão digital da carta de condução em nome de Mildred Crest. Vai ser uma história dos diabos, e tu estás metido no meio dela.

- Pronto - retorquiu Mason-, deram-nos uma pancada em cheio. Nada podemos fazer de momento, a não ser ir para casa dormir. Mantém os teus homens a trabalhar, Paul, e vê se eles se conseguem inteirar da situação. Amanhã de manhã vou falar com a minha cliente, para saber o que é que ela já contou à Polícia.

- Parece-te que eles te deixam ir falar com ela? - perguntou Drake.

- Não têm outro remédio - retorquiu Mason. - Uma vez que a hajam registado sob a acusação de assassínio, ela tem direito a recorrer a um advogado. Eles nem sequer tentarão deter-me. Se estiver registada, estenderão uma passadeira vermelha para eu passar. Hão-de ter o maior cuidado em mostrar que ela pode fazer uso de todos os seus direitos.

- E se não estiver registada amanhã de manhã? - inquiriu Drake.

- Isso quererá dizer que o procurador do Distrito não está certo de ter um caso, e que anda a tentar ligar as pontas soltas.

Drake replicou secamente:

- Com o Baylor e os seus milhões a tentar afastar da questão o nome da filha, parece-me que vais verificar que eles têm um caso.

- Saberemos isso amanhã de manhã por volta das dez - disse Mason. - Boa noite, Drake, e vê se consegues dormir um bocado.

 

Foley Calvert, um dos mais hábeis delegados de Hamilton Burguer, levantou-se para dirigir a palavra ao juiz Marvin C. Bolton.

- Sr. Dr. Juiz - disse ele - vai proceder-se à audiência preliminar de um caso do Ministério Público contra Fern Driscoll, aliás Mildred Crest. É acusada de assassínio de primeiro grau. Desejo fazer uma breve exposição, a fim de explicar a posição da Acusação e o motivo que a levou a tomar determinadas medidas. Esta exposição é dirigida ao Tribunal, com a única intenção de indicar a maneira como as provas vão ser apresentadas.

- Muito bem - retorquiu o juiz Bolton. - Pode fazer a exposição e a Defesa replicará a essa exposição, se o desejar.

- Muito obrigado, Sr. Dr. Juiz - agradeceu Calvert. - A teoria da Acusação é que Mildred Crest, encontrando-se numa situação embaraçosa em Oceanside, decidiu desaparecer. Como parte do seu plano para desaparecer, tencionava encontrar qualquer rapariga mais ou menos da mesma idade, e apoderar-se da sua identidade, matando a vítima e deixando o corpo em circunstâncias que fizessem crer que Mildred Crest morrera num desastre de automóvel.

- Um momento! - interrompeu o juiz. - Não acha que está a ir muito longe? Claro que tenho presente que a sua exposição se dirige apenas ao Tribunal. Porém, se baseia a sua teoria nestes antecedentes, quando chegar a altura de apresentar o caso perante o júri, verifi-car-se-á que está a tentar indicar provas de um outro crime, e que essas provas se radicam em suposições.

- Não, Sr. Dr. Juiz - redarguiu Calvert. - Estamos preparados para argumentar esse ponto. Não se trata do assassínio de Fern Driscoll, que a acusada escolheu para vítima, mas sim do facto de o falecido Carl Harrod ser o inspector da companhia de seguros encarregado de investigar o desastre e de essa investigação haver revelado as circunstâncias que a acusada procurava ocultar. É aí que reside o móbil do crime: por isso a acusada foi levada a matar Carl Harrod, para que este não fizesse ruir o seu plano. Esse móbil será demonstrado por provas concretas.

- A acusada foi ou está a ser julgada pelo assassínio de Fern Driscoll?- perguntou o juiz Bolton.

- Não, Sr. Dr. Juiz.

- Nesse caso... Bem, o Tribunal abstém-se de fazer quaisquer comentários. No entanto, é significativo o facto de a acusada não estar a ser julgada também por esse crime.

- Pode vir a ser julgada por ele em data posterior, Sr. Dr. Juiz. Devo esclarecer que é também acusada de roubo. Tirou quatro mil dólares da bolsa de Fern Driscoll.

- Quatro mil dólares?

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- Não aludiu a esse facto na sua exposição inicial.

- Não me ocorreu na altura, Sr. Dr. Juiz. Contudo, não restam dúvidas, isto é, não restam dúvidas no espírito da Acusação de que a acusada tirou quatro mil dólares da bolsa de Fern Driscoll, depois de esta morrer.

O juiz Bolton olhou com uma expressão dura para Mildred Crest.

- Serão apresentadas provas de todos esses factos durante a audiência? - perguntou ele.

- Sim, Sr. Dr. Juiz.

- A Defesa deseja declarar alguma coisa?

- De momento, não, Sr. Dr. Juiz - retorquiu Perry Mason.

- Mande chamar a primeira testemunha - disse o juiz Bolton para Calvert.

Calvert chamou uma sucessão de testemunhas secundárias: pessoas que tinham trabalhado com Mildred Crest em Oceanside e identificaram a acusada como sendo Mildred Crest, e o chefe da Polícia de Oceanside que testemunhou que Robert Joiner era um foragido à Polícia desde o dia vinte e dois, data em que Mildred Crest desaparecera. O gerente do banco prestou declarações quanto à importância que Mildred levantara da sua conta bancária no mesmo dia.

O antigo patrão de Mildred indicou o salário que ela recebia e a quantia do cheque correspondente ao último pagamento. Ainda contou que Mildred havia anunciado o seu noivado com Robert Joiner e que, no dia em que ele desaparecera, entrara no seu gabinete por volta das duas e meia, com os lábios brancos e com muito mau aspecto, e que, quando ele lhe fizera uma observação a esse respeito, ela declarara que estava bastante doente, pelo que ele a mandara para casa.

A testemunha seguinte de Calvert era um polícia de trânsito, que prestou declarações quanto ao acidente. A testemunha identificou as fotografias em que se via a posição do corpo da vítima. Narrou todos os pormenores relativos ao desastre, incluindo as pegadas encontradas no vale, pertencentes a alguém que se escapara do automóvel.

- Queira proced'er ao contra-interogatório - disse Calvert para Mason.

- O automóvel incendiou-se? - perguntou Mason.

- Foi fogo posto-declarou o polícia.

- Como sabe que foi fogo posto?

- Pelas características do fogo.

- Importa-se de concretizar?

- Quando o carro se despistou da estrada, o depósito da gasolina embateu contra uma rocha saliente, que lhe abriu um grande rombo. Parte da gasolina derramou-se nessa altura. Depois de o carro ficar parado no fundo do declive íngreme, a gasolina foi-se acumulando na parte posterior, mas não chegou à frente. A chave de ignição fora desligada e as luzes apagadas. Encontrava-se alguém vivo dentro do carro nessa altura, pois os botões não se desligavam por si. Como estavam desligados, não havia outra possibilidade de o carro se incendiar, senão por intermédio de um fósforo.

- O embate do aço contra a rocha poderia ter provocado uma série de faíscas? - perguntou Mason.

- Bem... acho que sim.

- E uma dessas faíscas não podia ter atingido a gasolina?

- Talvez. Mas, neste caso, sabemos que o fogo foi provocado por um fósforo, e por um segundo fósforo, porque encontrámos o primeiro no local do desastre: um fósforo de cera, arrancado de uma carteira, que fora possivelmente utilizado para iluminação.

- Encontrou um fósforo de cera?

- Encontrei, sir.

- Não sabe quando foi lá deixado o fósforo de cera, pois não?

- Não, mas julgámos que...

- Não interessa o que possam ter julgado. O que é que sabe a esse respeito? Sabe se o fósforo foi aceso na altura do desastre ou imediatamente a seguir?

- Não, não sei ao certo.

- Podia já lá estar desde o dia anterior, não podia?

- Porque é que alguém havia de ter riscado um fósforo precisamente naquele sítio, no fundo de um desfiladeiro pedregoso ?

- Não me faça perguntas - retorquiu Mason. - Responda às perguntas que eu lhe faço. Não tem quaisquer elementos que lhe permitam negar a possibilidade de o fósforo já lá estar no dia anterior ao do desastre, pois não?

O polícia pensou um momento e depois, com' relutância, concordou:

- Não, parece-me que não.

- Ao ser interrogado pela Acusação declarou que o fogo foi debelado por um motorista que ia a passar.

- O fogo foi debelado, de facto.

- Quer fazer o favor de voltar a relatar o que aconteceu?

- Um motorista que ia a passar na estrada viu as labaredas. Como disse, a maior parte da gasolina tinha sido derramada a pouca distância do leito da estrada, no ponto em que o carro embatera numa rocha que abriu um buraco no depósito da gasolina. O motorista, vendo um carro no fundo do desfiladeiro, pegou no extintor de incêndios que trazia, desceu a ribanceira, colocou-se num ponto que ficava abaixo da parte principal do fogo, e conseguiu apagá-lo antes de o automóvel ficar completamente destruído.

- Declarou também no seu interrogatório que encontrou uma mala de viagem que pertencia a Fern Driscoll?

- Eu não disse que a mala pertencia a Fern Driscoll. Disse apenas que tinha as iniciais "F. D." e que, depois, se conseguiu localizar a loja onde a mala fora comprada por Fern Driscoll, uma loja de Lansing, Michigan.

- Se o Tribunal me permite - interrompeu Foley Calvert- quero observar que, no referente à mala de viagem, a testemunha está a prestar declarações baseando-se apenas no que ouviu, o que pode não corresponder inteiramente à verdade dos factos.

- Não levantei qualquer objecção - retorquiu Mason. - Segundo suponho, as autoridades ficaram satisfeitas a tal respeito, e parece-me que não é preciso chegar-se ao extremo de ter de apresentar o talão da compra, para a provar. A testemunha, que é um pouco influenciável mas bastante competente, referiu o que as investigações tinham revelado e não levantei qualquer objecção.

- O empregado que vendeu a mala a Fern Driscoll encontra-se na sala - disse Calvert. - Mandámo-lo vir de Lansing, Michigan.

- Pode chamá-lo daqui a um bocado - redarguiu o juiz Bolton. - A Defesa não fez, ao que parece, qualquer objecção ao depoimento desta testemunha no que se refere aos resultados da investigação empreendida pela Polícia. Queira prosseguir o interrogatório.

- Se a Defesa já terminou, não temos mais perguntas a fazer à testemunha.

- A Defesa já terminou.

Calvert chamou então o médico que fizera a autópsia do cadáver que, a princípio, julgara ser o de Mildred Crest. Descreveu a natureza dos ferimentos, principalmente daquele que se localizava na parte posterior do crânio, uma fractura que, na sua opinião, fora feita com um instrumento contundente.

- Antes do momento do desastre? - perguntou Calvert.

- Sim, sir.

- Imediatamente antes?

- Sim, sir.

- Chegou a alguma conclusão a respeito da sequência dos factores que levaram à morte da pessoa cujo corpo examinou, na suposição errada de que se tratava de Mildred Crest?

- Cheguei.

- Queira Indicá-la.

- Julgo que o ferimento que se verifica na parte posterior da cabeça foi recebido antes dos outros sofridos na face, os quais a tornam praticamente irreconhecível. Penso que a morte se deu antes de as queimaduras terem atingido o corpo.

- Interrogue - disse Calvert.

Mason observou a testemunha uns momentos e depois perguntou:

- Veio a saber mais tarde que o corpo era de Fern Driscoll e não de Mildred Crest?

- Vim, sir.

- Quanto à fractura que disse ter encontrado na parte posterior da cabeça e que pensa ter sido feita antes do acidente: quer dizer que essa fractura pode ter sido provocada por uma arma?

- É exactamente o tipo de factura que podia resultar de um golpe vibrado por uma barra de ferro.

- As fotografias do desastre mostram o corpo do lado direito do carro, com a cabeça e os ombros saídos através da porta meio aberta?

- Sim.

- E isso indica que a pessoa abriu a porta do carro e se preparava para sair?

- Não sou dessa opinião.

- Não sendo assim, como poderia explicar-se a posição do corpo?

- O corpo podia ter sido propositadamente colocado nessa posição.

- Quer dizer - atalhou Mason-que uma pessoa, e suponho que está a pensar na acusada, podia, com uma das mãos, ter aberto a porta do carro e empurrado a cabeça e os ombros de Fern Driscoll para fora, enquanto guiava com a outra mão?

- Era possível.

- Era possível segurar, com a mão direita, um corpo meio fora, meio dentro do carro, e ir a guiar com a mão esquerda?

- Podiia fazer-se.

- Não seria preciso uma grande força para o conseguir?

- É possível que sim.

- E não seria preciso que a pessoa que ia ao volante se conservasse dentro do carro até ele cair no fundo do desfiladeiro?

- Com certeza.

- Então, como podia ela ter a certeza de não morrer ou de não ficar gravemente ferida em consequência da queda?

A testemunha hesitou um momento:

- Claro que não podia ter certeza nenhuma a esse respeito.

- Sendo a ribanceira tão íngreme, não teria sido por mero acaso que uma das pessoas que iam dentro do carro conseguisse escapar incólume?

- Foi quase um milagre.

- Então para que é que a acusada havia de matar Fern Driscoll e manter-lhe o corpo meio fora do carro, se havia uma grande probabilidade de também morrer?

- Se o Tribunal me permite - interveio Calvert- considero a pergunta contenciosa.

O juiz Bolton sorriu:

- Bem sei que é uma pergunta contenciosa, mas a testemunha, como perito, apresentou motivos para as suas conclusões que dão o direito à Defesa de pôr em questão essas conclusões. A objecção não é aceite. Responda à pergunta, doutor.

A testemunha comprimiu os lábios e mudou de posição na cadeira.

- É evidente que não posso descrever o raciocínio da acusada. Até pode ser que ela se quisesse suicidar.

- Nesse caso, o assassínio de Fern Driscoll não lhe traria quaisquer benefícios.

A testemunha mexeu-se na cadeira, pouco à vontade, e, por fim, retorquiu:

- Sim, claro.

- Então, partindo da hipótese de que a pessoa cujo corpo autopsiou, tivesse, dominada pelo terror, tentado abrir a porta do lado direito do carro para procurar saltar antes de ele cair na ribanceira, a posição do corpo, nessas circunstâncias, seria a mesma que se pode ver nesta fotografia?

- Bem... podia ser.

- E, nesse caso, não era possível que, ao dar-se o primeiro choque, tivesse batido com a cabeça no caixilho da porta do carro e a fractura que descreveu ser provocada por isso?

- Não sei.

- Claro que não sabe - redarguiu Mason'.- Tem estado a basear o seu depoimento numa série de suposições. Estou agora a perguntar-lhe se não seria possível que o ferimento fosse provocado por essa circunstância.

- Possível, era.

- E não era tão possível, pelo que descobriu através da autópsia do corpo, que fosse provocado por isso como pela pancada de um ferro?

- Bem... talvez.

- Sim- ou não?

- Sim - tartamudeou a testemunha, de mau grado.

- Muito obrigado - disse Mason, sorrindo. - É tudo.

Calvert chamou a prestar declarações o gerente da "Consolidated Sales & Distribution Company", que disse que a acusada concorrera para um lugar de secretária na sua firma e se apresentara como Fern Driscoll; que lhe dera o número do cartão de seguro social de Fern Driscoll e declarara que vivia em Lansing, Michigan, que chegara à cidade- havia pouco tempo e queria arranjar aí emprego.

Quando chegou a vez de Mason interrogar, não lhe fez quaisquer perguntas.

O gerente dos "Apartamentos Rexmore" informou que a acusada alugara um apartamento no seu prédio, apresentando o cartão de seguro social e a carta de condução, passados em nome de Fern Driscoll.

Também desta vez Mason se absteve de fazer perguntas.

- George Kinney! - chamou Calvert.

George Kinney levantou a mão direita, prestou juramento, declarou que habitava em Lansing, Michigan, e, como veio a saber-se, era caixa na "Baylor Manufacturing & Developing Company". George Kinney era um indivíduo sagaz, que escutava com atenção as perguntas que lhe eram dirigidas, e dava a impressão de ter sido instruído por algum advogado astuto sobre o que devia dizer e o que se devia abster de dizer.

- Conhecia uma empregada da "Baylor Manufacturing & Developing Company" chamada Fern Driscoll?

- Conhecia, sir.

- Quanto tempo esteve ela ao serviço da firma?

- Cerca de dois anos.

- Em que data abandonou o emprego?

- No dia nove do mês passado.

- Deu-lhe algum dinheiro na altura em que ela se demitiu?

- Dei.

- Quanto?

- Passei-lhe um cheque da importância do seu ordenado até essa data, e de mais um mês de ordenado, conforme previsto pelo nosso contrato de trabalho.

- Entregou-lhe mais algum dinheiro?

- Não, sir.

- Durante o período em que esteve ao serviço da firma, chegou a conhecer pessoalmente Fern Driscoll?

- Cheguei, sir.

- Quando se despediu do emprego trocou algumas impressões com ela a esse respeito? Fern Driscoll indicou-lhe o motivo que a levara a despedir-se?

- Protesto contra a pergunta! - interrompeu Mason. - É irrelevante para o caso que estamos a tratar.

- Aceite o protesto - atalhou o juiz Bolton.

- Notou alguma coisa de anormal no aspecto dela?

- Essa pergunta é igualmente irrelevante - protestou Mason.

- Vou ouvir a resposta - disse o juiz Bolton.- Pode ser que tenha interesse.

- Fern Driscoll estava muito perturbada - começou Kinney. - Tinha o rosto imensamente pálido e era evidente que estivera a chorar. Os olhos estavam inchados e vermelhos.

- É tudo - anunciou Calvert.

- Disse que tinha com ela bastante intimidade? - inquiriu Mason.

- Sim, conhecia-a pessoalmente.

- Então sabe se ela tinha carro?

- Tinha, sir.

- Que género de carro?

- Não estou certo da marca, mas parece-me que era um Ford. Julgo que se tratava de um carro em segunda mão. Ela comprara-o havia pouco.

- O carro estava registado em Michigan? Tinha chapa de Michigan?

- Fern Driscoll vivia em Michigan, comprara-o em Michigan e conduzia-o em Michigan, por isso é natural que se conclua daí que o carro tivesse chapa de Michigan - disse Kinney, em tom de sarcasmo velado.

- Muito obrigado - agradeceu Mason, com uma cortesia ironicamente excessiva. - É tudo.

- Ainda tenho uma pergunta que talvez tivesse podido fazer no interrogatório directo - atalhou Calvert.

- Pode fazê-la agora - anuiu o juiz Bolton.

- Pouco antes da data de Miss Driscoll deixar o emprego, Mr. Forrester Baylor pediu-lhe que levantasse do banco alguma quantia importante, que o senhor depois lhe entregou em notas?

- Protesto! - exclamou Mason. - A pergunta é irrelevante e improcedente.

- Se o Tribunal me dá licença - volveu Calvert-, gostava de demonstrar que Miss Driscoll, na altura em que saiu de Michigan, levava na bolsa uma quantia importante em dinheiro. Já comprovei que a acusada não poderia ter adquirido por meios legais os quatro mil dólares. Queria agora que me fosse permitido demonstrar, por dedução, que Fern Driscoll recebeu uma soma considerável de Forrester Baylor.

- Propõe-se demonstrar isso por dedução?

- Não há outra maneira, Sr. Dr. Juiz.

O juiz Bolton abanou a cabeça e disse:

- Aceito o protesto.

- Permito-me esclarecer - insistiu Calvert - que acho que é lícito recorrer a provas circunstanciais para encontrar o móbil do assassínio de Fern Driscoll, principalmente atendendo ao facto de desejarmos indicar que Carl Harrod estava informado de tudo o que se passara.

- É lícito recorrer a provas circunstanciais - obtemperou o juiz Bolton - para, a partir delas, se tirarem deduções lógicas, mas não se podem estabelecer provas circunstanciais por dedução.

- Muito bem - retorquiu Calvert. - Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.

Mason também não fez mais nenhuma pergunta.

- Chame a testemunha seguinte - disse o juiz Bolton.

- Sargento Holcomb- anunciou Calvert. Holcomb subiu ao estrado e declarou que pertencia à Brigada de Homicídios e que, no dia dois, fora chamado ao apartamento ocupado por Carl Harrod. A pessoa que o chamara apresentou-se sob o nome de Nellie Harrod e declarara ser a mulher de Carl Harrod; quando lá chegara, Carl Harrod estava morto.

- Passou uma busca ao apartamento ocupado pela acusada, que, nessa altura, se fazia passar por Fern Driscoll?

- Passei.

- Encontrou algum dinheiro no apartamento?

- Encontrei.

- Quanto encontrou?

- Quatrocentos e trinta e seis dólares, em notas e moedas, e quarenta notas novas de cem dólares.

- Mais algum dinheiro?

- Mais nenhum.

- Tenciono chamar o sargento Holcomb mais tarde para esclarecer outros aspectos do caso mas, de momento, é tudo. Pode interrogar a testemunha, Mr. Mason.

- Não tenho nenhuma pergunta a fazer - redarguiu Mason.

O sargento Holcomb desceu do estrado.

- Se o Tribunal me permite - disse Foley Calvert - gostaria de chamar mais uma testemunha antes de se encerrar a sessão da manhã. O seu depoimento será breve.

- Está bem - Concordou o juiz Bolton, deitando uma olhadela ao relógio.

- Miss Irma Karnes, chamou Calvert.

Irma Karnes, uma rapariga bastante magra, de nariz proeminente, lábios finos e óculos de lentes muito grossas, aproximou-se e subiu ao estrado.

- Chama-se Irma Karnes? Reside nesta cidade?

- Sim, sir.

- E residia aqui no dia dois deste mês?

- Sim, sir.

- Em que se ocupava nessa data?

- Era empregada na firma "Arcada das Novidades".

- Sabe qual é a situação da "Arcada das Novidades" em relação ao apartamento da acusada?

- Fica a cerca de três quarteirões e meio, na mesma rua.

- Estão abertos durante a noite?

- Sim, até às onze e meia.

- Pode descrever a natureza do negócio?

- É muito variado. Há uma arcada, chamada a arcada dos cêntimos, com toda a espécie de máquinas de divertimentos. Há espingardas eléctricas que disparam contra animais que vão a correr, metralhadoras que atiram a aviões, e outras coisas nesse género. No fundo da arcada temos uma série de artigos de novidades e utilidades para venda.

- Que espécie de artigos?

- Abre-latas, ferros de quebrar gelo, saca-rolhas, baldes para gelo, termos, linhas, botões, gravatas, cremes de barbear, giletes, enfim, o género de artigos que uma pessoa pode precisar de comprar durante a noite.

- Referiu ferros de quebrar gelo?

- Sim, sir.

- Lembra-se de alguma venda de ferros de quebrar gelo efectuada no dia dois deste mês?

- Lembro-me perfeitamente.

- Quer descrevê-la?

- Uma rapariga entrou na loja e comprou três ferros de quebrar gelo. Como não ficou mais nenhum no mostruário de vidro onde costumamos ter os ferros de quebrar gelo em exposição, assim que ela saiu fui buscar outros para pôr no seu lugar e verifiquei que só tínhamos meia dúzia de ferros em armazém.

- E o que fez então? - perguntou Calvert.

- Acha que isso pode ter interesse para o caso? - inquiriu o juiz Bolton.

- Pode ter muito interesse, Sr. Dr. Juiz.

- Está bem, continue. Pelos vistos, a Defesa não levantou qualquer objecção. Contudo, a pergunta parece-me um pouco descabida.

- Destina-se apenas a fazer uma identificação, Sr. Dr. Juiz.

- Nesse caso, a testemunha pode responder.

Irma Karnes declarou:

 

- Coloquei esses seis ferros no mostruário. Peguei nas etiquetas e na fita gomada para lhes afixar os preços mas, antes de o fazer, fui ver o número de referência e assentei uma grosa na nossa lista de pedidos. Foi então que descobri que havia um aditamento ao catálogo, e que o preço aumentara.

- E o que fez então?

- Os outros ferros de quebrar gelo custavam trinta e oito cêntimos cada, e três um dólar. Vi que era preciso vender os novos ferros a quarenta e um cêntimos, para mantermos a nossa margem de lucro, e foi esse o preço que pus nas etiquetas.

- E, nessa mesma noite, foram comprados alguns desses ferros?

- Foram.

- Quem os comprou?

Irma Karnes apontou com o dedo ossudo para Mil-dred Crest.

- Foi a acusada. Comprou-me três ferros de quebrar gelo.

- Ao preço actualizado?

- Exactamente.

- O novo preço estava escrito em etiquetas coladas com fita gomada transparente?

- Estava.

- E a acusada comprou três desses ferros de quebrar gelo?

- Comprou.

- É tudo. - Voltou-se para Mason. - Pode interrogar.

- Um momento! - exclamou o juiz Bolton. - Já são horas de se interromper a sessão. A audiência fica suspensa até às duas horas da tarde. A acusada, entretanto, continua sob custódia.

 

Perry Mason, Della Street e Paul Drake estavam sentados num gabinete particular do restaurante onde costumavam ir almoçar quando Mason tinha que fazer no tribunal.

Mason, olhando para o prato com um ar concentrado e franzindo o sobrolho, mal tocara na comida.

- Eles acabaram por confundir tudo - disse ele, por fim.

- Estás a referir-te aos ferros de quebrar gelo? - inquiriu Drake.

Mason acenou com a cabeça.

- Na sua ânsia de forçar uma identificação da acusada como sendo a pessoa que comprou a arma do crime, escolheram a pessoa errada e, se o fizeram, devem também estar de posse do ferro trocado.

- Afinal - disse Della Street - há uma ligeira semelhança entre mim e a Mildred Crest.

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

- Isto é mais um dos muitos casos de identificação errada. Na mente do homem vulgar, as provas circunstanciais resultam, frequentemente, num desvio da justiça. Porém, as provas circunstanciais são as melhores provas que possuímos. A prova mais perigosa, aquela que dá origem, tantas vezes, a desvios da justiça, é a prova de identificação pessoal.

- Como é que sabes que está trocado o ferro que eles têm? - perguntou Drake.

- Deixei ficar, propositadamente, um ferro de quebrar gelo no apartamento de Harrod, quando me convenci de que ele estava a arranjar um pretexto para fazer chantagem. Esperei que Harrod acabasse por se baralhar. Claro que, nessa altura, não fazia a mínima ideia de que ele se encontrava mortalmente ferido.

- E agora achas que foi Nellie que se baralhou? - inquiriu Drake.

- A Nellie, não. A Polícia é que caiu na ratoeira.

- Como foi isso?

- Sabiam que uma rapariga qualquer, que conheciam ou não como Katherine Baylor, comprara três ferros de quebrar gelo; que, a seguir fora lá outra rapariga que comprara mais três, e, estes últimos, podiam distinguir-se dos primeiros porque tinham uma etiqueta com um preço diferente.

- E então o que aconteceu? - perguntou Della Street.

- Interrogaram a mulher que estava a tomar conta da loja. Ela lembrava-se das duas vendas. É claro que ocorreu à Polícia que, se se provasse que fora Mildred Crest quem fizera a segunda compra, e se esses ferros podiam ser diferenciados pela nova etiqueta de preço, teriam uma acusação perfeita contra Mildred.

- E foi por isso que forçaram a sua identificação?

- inquiriu Paul Drake.

- Forçaram, provavelmente, a identificação até este ponto: arranjaram maneira de Irma Karnes ver Mildred Crest, quando esta não sabia que estava a ser observada. Não apresentaram à testemunha uma fila de pessoas para ela escolher uma. Deram-lhe apenas a oportunidade de examinar Mildred às escondidas. E, já se vê, serviram-se de todos os seus poderes de sugestão, dizendo a Irma que fora a rapariga que tinham sob custódia quem comprara os ferros, que se tratava simplesmente de ela a identificar.

- E Irma identificou-a? - perguntou Della Street. Mason acenou com a cabeça.

- Hão-de ver a cara dela quando eu aparecer! - comentou Della, com ar divertido.

- Como vais agora preparar a armadilha? - perguntou Drake a Mason.

- Aí é que está a questão. Trata-se de um caso de identificação errada, semelhante a outros milhares de casos A diferença é que, neste, nós sabemos quem é a verdadeira pessoa. Sabemos quem é a verdadeira compradora, e a Polícia não. Quando eu confrontar a testemunha com Della Street e ela reconhecer Della como sendo a pessoa que comprou os segundos ferros de quebrar gelo, vai haver uma grande confusão no tribunal.

- Imagina, porém, que ela se não lembra que foi Della? - contrapôs Drake.

- Se isso acontecer - retorquiu Mason, pensativo

- a minha cliente é capaz de ficar metida num grande sarilho. É claro que Della pode ir depor e jurar que foi ela quem comprou os ferros, mas, atendendo ao facto de trabalhar comigo, o seu testemunho será aceite com uma certa reserva... O juiz Bolton acreditá-la-á tenho a certeza.

- O juiz, talvez - disse Drake. - E, depois, o júri?

- Aí é que está o busílis - concordou Mason - O juiz Bolton conhece-me bastante bem para saber que se eu chamar Della Street a depor, é porque estou absolutamente certo da veracidade do seu testemunho. Não conhece Della Street pessoalmente, mas sabe que ela já trabalha comigo há muito tempo e que é uma colaboradora em quem deposito a maior confiança. Há-de acreditar nela. Porém, quando Irma Karnes vir Della Street, é quase certo que chegará à conclusão de que cometeu um erro e modificará o seu depoimento

- E então o que vais fazer? - perguntou Drake

- Eu então submeto essa mulher a um contra-interrogatório. Hei-de obrigá-la a meter os pés pelas mãos de tal maneira que, quando quiser voltar atrás, já o não poderá fazer.

- E depois?

- Depois - prosseguiu Mason -, mesmo que o juiz Bolton não considere a acusada ilibada de culpas ficarei com a transcrição desse testemunho e, quando mais tarde, interrogar Irma Karnes perante um juri atrapalhá-la-ei a tal ponto que o seu testemunho acabará por ser todo feito na defensiva.

- Por que não esperas até a levar perante o júri? -  perguntou Drake. - Já que o mais provável é o juiz Bolton não considerar a acusada ilibada de culpas, não seria melhor interrogá-la somente perante o júri?'

- Seria melhor sob vários aspectos, mas tinha uma desvantagem.

- Qual?

- Quanto mais tempo decorrer, menos possibilidade há de ela modificar o seu testemunho. Na altura em que o caso for a julgamento no Supremo estará tão firmemente convencida da sua identidade que jurará que foi a acusada e que em toda a sua vida nunca viu Della Street. Não, vou fazê-lo já, para tirar daí o melhor partido. Mesmo que ela não se retracte, a Acusação compreenderá que eu não tomaria uma atitude dessas, a menos que fosse verdade. Hão-de começar a atenazá-la até ao momento em que Mildred Crest tiver de comparecer perante o Supremo Tribunal. Então, quando Irma Karnes se sentar no banco das testemunhas para depor em frente do júri, notar-se-á que ela está a falar na defensiva.

"Contudo, o ponto importante é que, por causa deste erro de identificação, devem estar de posse de uma arma do crime que não é a verdadeira. Uma vez que o caso chegue a este extremo, as possibilidades são infinitas."

- Vou agarrar-me à cadeira e observar o que se passa esta tarde - disse Drake.

- O que quer que eu faça? - perguntou Della Street.

- Não apareça na sala - retorquiu Mason.- É provável que Irma Karnes a tenha visto de manhã, mas não quero que ela a veja outra vez enquanto não a chamar para lha apresentar. Pode ficar numa das salas de espera das testemunhas e estar pronta a que eu a chame. Provar-se-á, nessa altura, que foi você quem comprou os ferros de quebrar gelo, e temos o caso na mão.

- Mas o que irão eles dizer quanto ao facto de termos deixado o ferro no apartamento de Harrod?

- O que poderão eles dizer? - perguntou Mason. - Limitámo-nos a levar um ferro ao apartamento de Harrod, para eu perguntar a Harrod se o ferro com que fora agredido era semelhante àquele que levávamos. Por descuido, esquecemo-nos do ferro lá em casa.

- Mas eu não o posso jurar - observou Della.

- Valha-a Deus! - exclamou Mason. - Nós não juramos nada, a não ser a verdade. O seu testemunho consistirá apenas em afirmar que foi você quem comprou os três ferros, que levou um deles para o apartamento de Harrod e o deixou lá, e que procedeu de acordo com as minhas instruções.

- Também vai depor? - perguntou Della Street, apreensiva.

Mason abanou a cabeça.

- Direi ao Tribunal que compete à Acusação provar cada um dos pormenores do caso. Toda a gente saberá que preparei uma armadilha a Carl Harrod e que a Polícia caiu nela. A justificação que apresentarei é que, no momento em que preparei a armadilha, pensei que estava a tratar de um assunto do foro civil relativo a um pedido de indemnização. Não tinha a menor intenção de confundir as provas de um caso de assassínio... O ponto principal é que todo o processo da Acusação acabará por estar fundamentado em provas incoerentes: uma identificação errada da acusada e uma arma do crime que não é a verdadeira. Isso vai deixar a Polícia e o delegado do Procurador do Distrito bastante embatucados.

- Bem - atalhou Drake - pela maneira como estás a contar com isso, parece bater tudo muito certo, mas tenho a impressão de que vais caminhar por uma corda esticada por cima de um abismo.

Mason limitou-se a fazer que sim com a cabeça.

- Nesse caso - continuou Drake - o melhor é irmos andando. Depois veremos o que vai acontecer.

- Vamos imediatamente - disse Mason, consultando o relógio. - Chegou a hora de ter de fazer unicamente a pergunta apropriada, na altura apropriada. É também uma boa lição quanto ao valor de testemunhos sobre identificações pessoais. Aqui temos um exemplo bem elucidativo. E, Della, o pior de tudo é que a identificação errada, noutras circunstâncias, poderia tê-la envolvido a si num assassínio.

- Como sabes que, nas circunstâncias presentes, não a vais envolver num assassínio? - perguntou Drake, calmamente.

Mason reflectiu um pouco e depois disse:

- Vamos embora, Della, antes que o Paul acabe por convencê-la a confessar-me culpado da morte de Harrod.

- Gostava de assistir ao julgamento esta tarde - arriscou Della Street.

- Não pense nisso - replicou Mason, com firmeza.

- Nem mesmo se me sentasse na fila de trás?

- Não. Podia levantar a caça cedo de mais. Tenho de proceder com todo o cuidado, para conseguir resolver este caso.

- Não digas isso outra vez - atalhou Paul Drake, num tom lúgubre.

- E entretanto, Paul - continuou Mason - quero saber onde se encontra o automóvel de Fern Driscoll.

- Porquê?

- Porque quero passar-lhe uma busca, à procura de provas. Telefona para o escritório e põe os teus sabujos a trabalhar.

- Okay - retorquiu Drake. - É para já.

 

O juiz Bolton disse:

- Registe-se que a acusada se encontra no tribunal, e que a Acusação e a Defesa estão presentes. Creio que a testemunha Irma Karnes foi chamada a depor, tendo sido interrogada. O contra-interrogatório da Defesa vai começar. Retome o seu lugar, Irma Karnes.

Irma Karnes aproximou-se do banco das testemunhas com as suas pernas compridas e o seu ar hirto, e olhou para Perry Mason, piscando os olhos por detrás das grossas lentes.

Mason disse-lhe com um ar despreocupado e afável:

- Usa sempre óculos, Miss Karnes?

- Não, sir

- Não? - inquiriu Mason. .

- Não.

- Quando é que os pode dispensar?

- Quando estou a dormir.

O riso prorrompeu entre a assistência. Irma Karnes conservava um rosto completamente impassível, não permitindo que se adivinhasse se ela encaminhara as respostas, de propósito, para depois provocar aquela afirmação, ou se era uma pessoa tão concreta, que considerava uma pergunta absolutamente à letra.

- Sabe - perguntou Mason - quem era a primeira cliente que lhe comprou três ferros de quebrar gelo?

- Agora sei, na altura não.

- Agora sabe?

- Sim.

- Quem era?

- Miss Katherine Baylor.

- E quando soube que era Miss Katherine Baylor?

- Um momento! - atalhou Calvert. - Protesto, senhor Doutor Juiz. Este contra-interrogatório está a ser conduzido de uma forma irrelevante e pouco objectiva.

O juiz Bolton abanou a cabeça.

- A testemunha mencionou a primeira compra. De facto, a testemunha fez dela uma parte importante do seu depoimento. Por isso, a Defesa pode prosseguir. Responda à pergunta.

- Foi... Não sei, há muito pouco tempo.

- Quem foi que a informou de que era Katherine Baylor?

- A Polícia.

- A Polícia disse-lhe que foi Katherine Baylor a pessoa que comprou os três primeiros ferros de quebrar gelo?

- Sim.

- Então, o único conhecimento que tem a este respeito baseia-se apenas no que a Polícia lhe disse.

- Não, sir, isso não é verdade.

- O que é que não é verdade?

- Disseram-me quem ela era, mas mandaram-me olhar para ela para me certificar.

- Por outras palavras: deram-lhe a informação e, depois, mandaram-na olhar para fazer uma identificação?

- Sim.

- Sabia que queriam que fizesse a identificação antes de ver Miss Baylor?

- Oh, senhor Doutor Juiz - interveio Calvert - isto é estar a fazer perder tempo ao Tribunal e a criar complicações a partir de coisas sem importância. Se o Tribunal está interessado a esse respeito, posso informar que não só Katherine Baylor não nega ter comprado os três primeiros ferros de quebrar gelo, como também que a vou chamar daqui a pouco a prestar declarações.

- A pergunta mantém-se, se o Tribunal me dá licença - redarguiu Mason.- Tenho o direito de conduzir à minha maneira o contra-interrogatório.

O juiz Bolton acenou afirmativamente com a cabeça.

- Parece-me que estou a ver o ponto a que a Defesa pretende chegar. Queira prosseguir.

- Não é verdade - perguntou Mason à testemunha - que sabia que esperavam que a senhora identificasse Miss Baylor assim que a visse?

- Não sei o que a Polícia esperava. Não posso ler no pensamento das outras pessoas.

- Não estou a perguntar-lhe o que é que a Polícia esperava que fizesse, mas sim se sabia o que eles esperavam que fizesse.

- Não o posso dizer.

- Disseram-lhe que ia ver Miss Baylor?

- Sim.

- E disseram-lhe que era ela a pessoa que comprara os três primeiros ferros, não é verdade?

- Sim.

- Por isso, quando a viu, sabia que a Polícia queria que fizesse a identificação.

- Protesto! - disse Calvert. - Isso é estar a obrigar a testemunha a tirar uma conclusão. Ela não pode prestar declaração quanto ao que a Polícia queria.

- Aceite o protesto - decidiu o juiz Bolton.

- Bem, a Polícia disse-lhe que esperavam que a senhora fizesse a identificação, não é verdade?

- Não empregaram tantas palavras.

- Pelo menos indicaram-no pela maneira como procederam e também o insinuaram, não insinuaram?

- Sim.

- Bem, então quando soube, pela primeira vez, que fora Mildred Crest quem comprara, naquela noite, os outros ferros de quebrar gelo?

- Pouco tempo antes de ela ser presa.

- O que entende por "pouco tempo antes"?

- Quero dizer que se trata de um curto período de tempo.

- Dois ou três dias?

- Menos.

- E, nesse caso, a Polícia procedeu da mesma maneira? Disseram-lhe que fora Mildred Crest quem comprara o segundo jogo de ferros de quebrar gelo?

- Pelo que percebi, foi ela.

- E disseram-lhe que esperavam que a senhora fizesse uma identificação.

- Bem, eu sabia que a Polícia tinha a certeza de que fora ela que fizera essa compra. Assim que a vi, também eu tive a certeza de que fora ela realmente.

- Identificou-a na presença da Polícia?

- Sim.

- Encontrou-se com ela cara a cara?

- Vi-a distintamente.

- Falou com ela?

- Não.

- Ouviu-lhe a voz?

- Sim.

- Onde teve lugar a identificação?

- Foi numa sala... numa sala de interrogatórios. Há um grande espelho numa das extremidades da sala. Quero dizer, é um espelho que dá uma imagem a qualquer pessoa que esteja lá dentro a olhar para fora, mas é uma janela para quem se encontre na sala contígua a olhar para dentro. Podemos ver distintamente as pessoas que se encontram na outra sala, mas elas não nos vêem a nós.

- Nesse caso, estava sentada na sala de observação e a acusada foi introduzida na sala de interrogatórios e a senhora observou-a pelo espelho, não foi?

- Exactamente.

- Encontrava-se acompanhada de algum guarda?

- Sim.

- Mais de um?

- Sim.

- Quantos?

- Três.

- E esses guardas estavam a fazer alguns comentários?

- Estavam a falar.

- Consigo?

- Sim, e uns com os outros.

- E o tema da conversa deles era que a acusada, Mildred Crest, fora a pessoa que comprara os ferros de quebrar gelo, não é verdade?

- Disseram qualquer coisa a esse respeito. Estavam também a falar de outras coisas.

- Coisas destinadas a impressioná-la mal a respeito da acusada, discutindo o facto de se desconfiar de que ela houvesse morto Fern Driscoll?

- Foi qualquer coisa nesse género.

- O que disseram eles exactamente?

- Não me lembro das palavras exactas, mas disseram que ela assassinara Fern Driscoll, roubara-lhe o dinheiro, e quando Harrod descobriu isso, agrediu-o com um ferro de quebrar gelo que comprara na loja onde trabalho.

- Então, depois de eles dizerem isso, a senhora fez a identificação, não fez?

- Bem, ao ver a acusada, certifiquei-me de que era ela.

- Imediatamente no primeiro minuto em que a viu?

- Sim.

- Quanto tempo ficou na sala de observação?

- Talvez uns dez minutos.

- E há quanto tempo se encontrava na sala de observação quando a acusada foi introduzida na sala de interrogatórios?

- Ela chegou poucos segundos depois de eu ter entrado na sala de observação.

- E ficou na sala de interrogatórios todo o tempo que a senhora se demorou na sala de observação?

- Sim.

- O que correspondeu a um período de, pelo menos, dez minutos?

- Acho que sim.

- Poderia ter sido mais tempo?

- Talvez.

- Mas não poderia ser menos?

- Penso que foram, pelo menos, dez minutos.

- E, durante todo esse tempo, os guardas pediam-Lhe que observasse cuidadosamente a acusada?

- Sim.

- Então, se fez a identificação assim que ela entrou na sala, por que motivo os guardas demoraram a senhora ali mais dez minutos, pedindo-lhe que observasse cuidadosamente a acusada?

- Eles queriam que eu tivesse a certeza.

- Não tinha a certeza?

- Claro que tinha.

- Tinha a certeza de que era ela quando saiu da sala?

- Tinha.

- E antes de sair?

- Penso que sim.

- No entanto, continuou a olhar para a acusada durante o período de dez minutos?

- Sim.

- Estudou-lhe as feições?

- Sim.

- Porquê?

- Bem, os guardas sugeriram... Posso contar o que eles disseram?

Calvert sorriu, mostrando os dentes:

- O que disseram os guardas?

- Disseram que Mr. Mason ia representar a acusada, que era conhecido pela sua astúcia e que era capaz de apresentar qualquer rapariga no Tribunal e procurar confundir-me. Disseram-me que eu devia observar a acusada cuidadosamente, para Mr. Mason me não poder... Bem, a expressão que eles usaram foi "enfiar o barrete".

- E foi essa a razão que a levou a observar a acusada com tanto cuidado? - perguntou Mason.

- Sim.

- Durante dez minutos?

- Sim.

- Voltando agora à noite do dia dois - disse Mason - quais eram as suas atribuições na firma "Arcada das Novidades"?

- Era caixa.

- Na sua qualidade de caixa, quais eram as suas atribuições?

- Fazer trocos, fornecendo aos clientes moedas de um, cinco e dez cêntimos, sempre que delas precisavam.

- Mais alguma coisa?

- Mantinha uma certa vigilância sobre os frequentadores, para ver se tudo estava a correr da maneira devida.

- Mais nada?

- Não. Parece-me que é tudo.

- Mas estava também a desempenhar as funções de caixeira?

- Oh, claro! Vendia os artigos sempre que aparecia alguém para comprar.

- E embrulhava-os?

- Geralmente, limitava-me a metê-los dentro de um saco de papel.

- Isso ocupava-lhe muito tempo?

- Não muito.

- Não tinha muitos clientes?

- É um self-service, isto é, as pessoas escolhem o que pretendem e levam os artigos à caixa, para serem pagos e embrulhados. Tudo o que tenho a fazer é lançar o dinheiro na caixa registadora e meter as coisas dentro de um saco. Temos um maço de sacos de papel numa prateleira por debaixo da caixa registadora.

- Grande parte do seu tempo é portanto despendido a fazer trocos para os clientes e a observar o que se passa na "Arcada"?

- Sim, principalmente a tomar conta dos frequentadores.

- Tem muitos frequentadores?

- Bastantes.

- E a senhora procura mantê-los sempre sob vigilância?

- Sim. Preciso de ir vendo se manobram as máquinas como deve ser, e se os rapazes não se metem com as senhoras que não querem ser aborrecidas.

- O que quer dizer com isso?

- Bem, há senhoras muito sociáveis, que não se importam que metam conversa com elas, mas quando os rapazes começam a ser inconvenientes e a querer forçar a atenção de pessoas que não querem ser importunadas, nós então intervimos.

- Nesse caso, tem de estar com atenção ao que se está a passar.

- Pois tenho.

- Presumo que está treinada para ver qualquer coisa que se esteja a passar na "Arcada".

- Claro que estou, Mr. Mason. É preciso ter-se um olho de lince, para se estar à testa de um sítio como aquele. Chega-se a um ponto, em que somos capazes de distinguir o mais leve indício de uma atitude ou gesto indevidos.

- As suas lentes têm uma graduação muito forte?

- Sem óculos sou cega como uma toupeira, mas com eles vejo muito bem.

- Directamente na sua frente?

- Sim.

- Não consegue ver muito bem para o lado?

- Não, mas cá me arranjo. A minha obrigação é observar o que se está a passar.

- Também faz trocos na caixa registadora?

- Faço. Já lho disse há pouco.

- E regista as vendas?

- Sim.

- Imagine que faltava dinheiro na caixa.

- Isso nunca aconteceu quando estou de serviço.

- Nunca se engana?

- Não.

- Como consegue ser tão eficiente?

- Concentrando-me no que estou a fazer.

- Suponho que quer dizer com isso que, quando está a dar trocos, pensa apenas no troco que está a dar e nada mais.

- Exactamente.

- E nunca se engana?

- Nunca. A minha folha de caixa confere sempre até ao último cêntimo.

- Quando está a registar uma venda, concentra-se para entregar o troco exacto?

- Sim.

- E para colocar o dinheiro dentro dos compartimentos respectivos da caixa registadora?

- Sim.

- E, durante esse tempo, os seus olhos não podem observar o que se vai passando na "Arcada", pois não?

- É verdade, Mr. Mason. Mas, com o hábito, reduz-se esse intervalo de tempo ao mínimo e, além disso, mesmo nessas alturas, vou sempre deitando uma olhadela ao que se está a passar.

- Nesse caso - disse Mason - presumo que, enquanto sorri ao cliente vai olhando por cima do ombro dele para ver se as máquinas estão a ser manobradas como deve ser e se os frequentadores não se excedem.

- Exactamente.

- Lembra-se bem da transacção durante a qual a pessoa que diz ser a acusada comprou os três ferros de quebrar gelo?

- Lembro-me muito bem.

- Lembra-se se ela lhe deu o dinheiro certo ou se...

- Claro que me lembro. Entregou-me uma nota de cinco dólares. Dei-lhe o o troco, e recordo-me de lhe haver dito que, ainda há poucas horas, os ferros de quebrar gelo eram a três um dólar, mas, quando fui buscar outros para substituir os que faltavam no mostruário, reparei que tinham aumentado de preço, e coloquei-lhes uma etiqueta com outro preço.

- Os ferros de quebrar gelo passaram então a custar quarenta e um cêntimos cada?

- Exactamente.

- Nesse caso, três ferros de quebrar gelo custavam um dólar e vinte e três cêntimos, não é verdade?

- Sim.

- Mais o imposto de consumo?

- Sim.

- Quanto tempo calcula que a pessoa que diz ser a acusada esteve na sua frente? Quanto tempo demorou a transacção?

- Apenas uns segundos.

- Não mantiveram uma longa conversa?

- Não.

- A cliente limitou-se a entregar-lhe os ferros de quebrar gelo, a senhora registou o dinheiro, deu o troco, meteu os ferros dentro de um saco de papel e estendeu-o à cliente, comentando que, ainda há poucas horas, os ferros de quebrar gelo eram mais baratos. Foi assim?

- Foi, sir.

- Tudo isso se passou durante um período de dez segundos?

- Deixe-me ver. Dez segundos... - a testemunha fechou os olhos. - Sim, acho que sim.

- Então, durante dez segundos, teve de fazer troco a cinco dólares para uma compra de um dólar e vinte e três cêntimos, mais imposto de consumo?

- Sim.

- E durante esse tempo, segundo o seu costume, concentrava-se na operação da caixa registadora, colocando a nota de cinco dólares no compartimento correspondente, e assegurando-se de que o troco estava certo?

- Sim, sir.

- E, durante parte desse tempo, enquanto sorria à cliente, como é seu costume, olhava por cima do ombro dela, para ver se os frequentadores estavam a comportar-se como deviam?

- Acho que sim.

- Tem esse costume?

- Tenho.

- Então, nesse intervalo de dez segundos, só olhou para a pessoa que afirma ser a acusada talvez uns dois ou três segundos, não é verdade?

- Vi-a o tempo suficiente para a poder reconhecer com segurança.

- Esteve a olhar directamente para a cliente talvez uns dois ou três segundos?

- Talvez.

- Poderia ter olhado para ela durante um espaço de tempo maior?

- Bem... Eu estava a olhar para a caixa registadora e... Estive a olhar para a cliente talvez durante metade do tempo.

- O que significa, portanto, cinco segundos?

- Sim.

- No entanto, quando examinou a acusada na sala de observação, para se certificar de que eu não lhe "enfiaria o barrete", precisou de dez minutos, durante os quais se concentrou apenas no estudo das feições da acusada. Foram necessários dez minutos para ter a certeza de que não iriam preparar-lhe uma armadilha e que estaria apta a reconhecê-la quando a visse outra vez?

- Bem... Eu não precisava de estar a olhar para ela durante tanto tempo.

- Então porque o fez?

- Queria ter uma certeza absoluta.

- Precisou de dez minutos para ter uma certeza absoluta?

- Acho que sim, já que tanto insiste.

- Dez minutos de observação concentrada, em oposição a um olhar desinteressado e desatento de dois segundos e meio.

- Bem, eu... É claro que na altura da compra, eu...

- É isso mesmo - retorquiu Mason. - Na altura da compra não tinha quaisquer motivos para observar concentradamente as feições da cliente, enquanto que, ao olhar para a acusada, sabia que seria chamada a identificá-la e que precisava de se não deixar enganar por ninguém. Não é assim?

- Muito obrigado - disse Mason, com um sorriso. - É tudo.

Calvert hesitou uns momentos, sem saber se havia ou não de tentar rebater os tempos indicados, mas, pelos vistos, optou por não aludir ao assunto.

- É tudo - declarou, por fim.

- Queira chamar a testemunha que se segue- disse o juiz Bolton.

- Katherine Baylor - anunciou Calvert.

Katherine Baylor subiu ao estrado, prestou juramento, deu o seu nome e endereço ao escrivão e olhou para Calvert.

- Conhece a acusada, Mildred Crest? - perguntou Calvert.

- Conheço.

- Quando a viu pela primeira vez?

- No dia dois deste mês.

- Onde?

- No seu apartamento.

- Sob que nome se apresentava nessa altura?

- Bem, ela confidenciou-me que...

- Por favor não fuja à pergunta - interrompeu Calvert. - Sob que nome se apresentava ela nessa altura?

- Sob o nome de Fern Driscoll.

- Na noite do dia dois, comprou algum ferro de quebrar gelo na Arcada das Novidades?

- Comprei.

- Quantos?

- Três.

- Quanto pagou por eles?

- Um dólar.

- Lembra-se do preço que estava marcado nos ferros de quebrar gelo?

- Lembro.

- Qual era o preço?

- Trinta e oito cêntimos, e três por um dólar.

- O que fez desses ferros de quebrar gelo?

- Levei-os comigo para o apartamento.

- Refere-se ao apartamento onde a acusada morava, sob o nome de Fern Driscoll?

- Sim.

- E o que fez com eles, ao chegar aí?

- Meti um dentro da minha bolsa, e deixei os outros dois em cima de uma mesa ao pé da porta.

- Teve alguma conversa com a acusada a respeito desses ferros?

- Tive.

- Fez alguma referência quanto ao seu uso?

- Fiz.

- Ao seu uso para que fim?

- Ao seu uso como arma.

- Que foi que lhe disse?

- Disse-lhe que um ferro de quebrar gelo é uma arma extraordinária, que com ela podemos manter um homem à distância.

- Disse mais alguma coisa a respeito dos ferros de quebrar gelo?

- Disse que, se colocarmos uma rolha na ponta de um, podemos trazê-lo dentro da bolsa.

- E colocou um dos ferros dentro da sua bolsa?

- Exacto.

- Está a prestar declarações sob juramento. Miss Baylor, e, por isso, peço-lhe que pense bem antes de responder. Teve alguma conversa com a acusada, durante a qual ela lhe dissesse que queria esses ferros de quebrar gelo para os usar como armas contra Carl Harrod?

- Não.

- Ou disse qualquer outra coisa com esse sentido?

- Não.

- A senhora ofereceu-lhe esses ferros como armas?

- Sim.

- E sugeriu-lhe que os usasse, ou usasse um deles, como arma para intimidar Carl Harrod?

A testemunha hesitou.

- Sim ou não?

- Disse-lhe que se Carl Harrod voltasse a querer fazer chantagem, que o ameaçasse com um ferro de quebrar gelo, para se defender... em legítima defesa.

- E, depois dessa conversa, a acusada aceitou esses ferros?

- Limitei-me a deixá-los no seu apartamento.

- Muito obrigado. É tudo. A Defesa pode interrogar a testemunha.

- Viu alguma vez Carl Harrod enquanto era vivo?

- perguntou Mason.

- Vi-o, sim.

- Onde?

- Ele foi ao apartamento da acusada numa altura em que eu me encontrava lá.

- E o que fez a senhora?

- Fui abrir a porta.

- E era ele?

- Exactamente.

- Reconheceu-o?

- Ele disse-me o nome.

- E o que fez então?

- Disse-lhe a opinião que tinha a respeito de chantagistas e dei-lhe uma bofetada.

- Espetou-o, nessa altura, com um ferro de quebrar gelo?

- Claro que não.

- Declarou que havia colocado um desses ferros dentro da sua bolsa?

- É verdade.

- Porquê?

- Porque o queria trazer comigo.

- Para quê?

- Para me defender.

- Para se defender de quem?

- De quem quer que me atacasse.

- Pensava que alguém a poderia atacar?

- Sim.

- Quem?

- Já lhe disse, Mr. Mason, que dei uma bofetada ao Carl Harrod. Não tinha quaisquer ilusões acerca do carácter de Carl Harrod. Era um chantagista que...

- Um momento! Um momento! - atalhou Calvert.

- Se o Tribunal me dá licença, permito-me observar que se deve chamar a atenção da testemunha para se limitar a responder à pergunta e não fazer observações a respeito do carácter do morto.

O juiz Bolton disse:

- Parece-me, senhor Advogado de acusação, que a situação é óbvia. O Tribunal não nasceu ontem. Contudo, a lei é a lei, e, num caso de assassínio, não está em questão o carácter do morto. Portanto, a testemunha deve abster-se de fazer comentários a respeito do carácter do morto.

- Pensou que Carl Harrod poderia causar-lhe complicações?- perguntou Mason.

- Sim.

- E, a prever isso, meteu um ferro de quebrar gelo dentro da bolsa?

- Sim.

- Onde se encontra agora esse ferro?

- Não sei.

- Não sabe?

- Não.

- Onde estava quando o viu pela última vez?

- Eu... eu deitei-o fora.

- Porquê?

- Aconselharam-me a que o fizesse.

- Seu pai?

- Sim.

- E porque lhe deu seu pai esse conselho?

- Sabíamos que Carl Harrod fora ferido com um ferro de quebrar gelo. Meu pai tinha conhecimento de que eu o esbofeteara. Também lhe contei que comprara os ferros. Ele aconselhou-me a que me desfizesse do que trazia comigo.

- Quando teve lugar essa conversa?

- A dois deste mês, no dia em que Carl Harrod morreu.

- Lembra-se da visita que nessa data fiz a seu pai?

- Lembro.

- E, enquanto eu lá me encontrava, lembra-se de o sargento Holcomb telefonar?

- Parece-me que sim.

- Então, tomando como referência a minha visita, em que altura se desfez do ferro de quebrar gelo?

- Imediatamente depois de o senhor sair, e antes de o sargento Holcomb chegar.

- O que foi que lhe fez?

- Meti-me no monta-cargas e desci ao pátio das traseiras, onde se encontravam vários caixotes do lixo. Levantei a tampa de um deles, deitei o ferro lá dentro e voltei para o meu quarto.

- Chegou ao seu quarto antes de o sargento Holcomb aparecer?

- Sim.

- Contou-lhe o que fizera ao ferro de quebrar gelo?

- Não.

- Contou isso a alguém?

- Não. Recusei-me a discutir o meu depoimento fosse com quem fosse. Disse que contaria a minha história quando me sentasse no banco das testemunhas, e que não diria nada a esse respeito antes de chegar essa altura.

- Está bem - disse Mason. - No entanto, admitiu que havia comprado os três ferros de quebrar gelo, não é verdade?

- Foi meu pai que o disse, depois de o sargento Holcomb o ter informado de que Carl Harrod havia contado à mulher que eu o esbofeteara e...

- Um momento! - interrompeu Calvert. - Não concordo que a testemunha relate quaisquer conversas tidas com o sargento Holcomb. Isso é irrelevante.

- Pelo contrário, senhor Doutor Juiz - disse Mason. - É um facto, neste caso, no que se refere ao móbil ou preconceito desta testemunha. Tenho o direito de mostrar o estado de espírito da testemunha, para poder denunciar um preconceito contra ou a favor da defesa.

- A objecção não é considerada-declarou o juiz Bolton. - Queira prosseguir o seu depoimento, Miss Baylor.

- Bem, o sargento Holcomb disse que Mrs. Harrod, ou a mulher que se julgava ser Mrs. Harrod, contara à Polícia que eu esbofeteara Carl Harrod e que, quando Mr. Mason lá estivera a ouvir a declaração de Mr. Harrod, sugerira que fora eu quem tinha picado Harrod com o ferro de quebrar gelo. Atendendo às circunstâncias, o sargento Holcomb disse que era possível que se fizesse uma tentativa para dar a impressão de que fora eu quem o agredira... e ele não queria que isso acontecesse.

- Contou-lhe que comprara os ferros?

- Eu não lhe contei nada. Foi meu pai. Eu não prestei quaisquer declarações. Limitei-me a ficar ali sentada a ouvir.

- E o sargento Holcomb não lhe fez perguntas?

- Não.

- Mas falou com seu pai?

- Sim. Mason sorriu.

- O sargento Holcomb disse a seu pai que seria melhor não a interrogar até estar mais bem informado a respeito dos factos, para que a senhora não fraquejasse, caso eu a submetesse a um contra-interrogatório?

- Disse qualquer coisa nesse género.

- E seu pai contou ao sargento Holcomb que a senhora comprara os três ferros de quebrar gelo e os dera à acusada?

- Sim.

- E o sargento Holcomb perguntou-lhe a si ou a seu pai o que acontecera ao ferro de quebrar gelo que faltava?

- Não, sir. Ele não sabia que um deles faltava. Estavam todos no apartamento. Foi isso que não compreendi, mas não disse nada, e meu pai também não disse nada. Não me parece que a Polícia soubesse da existência do outro ferro de quebrar gelo.

- Então - perguntou Mason - deu à acusada dois ferros de quebrar gelo?

- Dei.

- Para serem usados como armas em caso de necessidade?

- Sim.

- Encontra alguma explicação para o facto de a acusada, estando de posse dos dois ferros que a senhora lhe dera para serem usados como armas, ir à "Arcada das Novidades" comprar mais três?

- Não, não encontro. Discuti esse pormenor com meu pai e chegámos à conclusão...

- Um momento! - interrompeu Calvert. - Opomo-nos a qualquer declaração a respeito do que a testemunha disse ao pai ou do que o pai lhe disse a ela.

- Objecção aceite - disse o juiz Bolton. - De facto, toda a pergunta feita pela Defesa é contenciosa.

- Não é por isso que protesto contra a pergunta -  esclareceu Calvert. - A Acusação tem a sua própria teoria, que me parece óbvia. Se Mr. Mason submeter esta testemunha a um contra-interrogatório a respeito do motivo que a acusada poderia ter para comprar esses três ferros de quebrar gelo, desejo interrogá-la posteriormente.

- É o mal destas perguntas que começam a afastar-se muito-declarou o juiz Bolton.- O Tribunal vai, por resolução própria, pôr termo a esta linha de interrogatório. A pergunta é contenciosa e a testemunha não precisa de responder.

- A Acusação, senhor Doutor Juiz - disse Calvert - acha que é óbvio o facto de a acusada deste caso querer inculpar Katherine Baylor do crime cometido. Como sabia que Katherine Baylor levara dentro da bolsa um desses ferros de quebrar gelo, a acusada comprou mais três, para fazer que a Polícia acreditasse que os dois ferros que Katherine Baylor dera à acusada, se encontravam ainda no seu apartamento e, portanto, não podiam ter sido usados para infligir a picada fatal. Se o Tribunal me permite, digo que este ponto é um dos mais importantes do caso, pois indica premeditação. Se não fosse a mão do destino que fez que fossem colocadas diferentes etiquetas de preços nos ferros, a astúcia da acusada poderia não ter sido descoberta.

- Poderá discutir o caso depois de se terem apresentado as provas - disse o juiz Bolton. - Quanto a esta testemunha, não me interessa que seja interrogada a respeito dos possíveis móbiles da acusada. Observo, no entanto, que é significativo o facto de a testemunha se ter desembaraçado do ferro que possuía da maneira por que o fez.

Calvert encolheu os ombros.

- Mas é preciso ver, senhor Doutor Juiz, que a testemunha agiu de acordo com o conselho do pai, e que o pai sabia que Mr. Mason... Bem, ele estava a par da reputação de Mr. Mason e sabia que ele havia de tentar baralhar os resultados, se fosse possível.

- Estão todos baralhados agora - disse Mason.

- Não para a Acusação - retorquiu secamente Calvert.

- Basta! - exclamou o juiz Bolton. - Há mais alguma pergunta a fazer à testemunha?

- Não, senhor Doutor Juiz - respondeu Mason.

- Qual é a sua próxima testemunha? - inquiriu o juiz Bolton a Calvert.

- A minha próxima testemunha - anunciou Calvert - é Nellie Elliston.

A rapariga que Mason encontrara no apartamento de Harrod aproximou-se. Trazia um elegante vestido novo, vinha bem calçada e era evidente que perdera algum tempo num instituto de beleza. Depois de declarar o seu nome e endereço, Calvert começou a interrogá-la.

- Chama-se Nellie Elliston?

- Sim.

- Já alguma vez usou qualquer outro nome?

- Já.

- Qual?

- Mrs. Carl Harrod.

- Era casada com Harrod?

- Não.

- Mas, no entanto, vivia com ele como se fosse sua esposa.

- É verdade.

- No número 218 dos "Apartamentos Dixiecrat?

- Exactamente.

- Há quanto tempo conhecia Harrod?

- Há cerca de dois anos.

- Onde o encontrou pela primeira vez? -Num bar.

- Quanto tempo depois de o encontrar pela primeira vez começou a viver com ele?

- Cerca de uma semana.

- Adoptou o nome de Nellie Harrod apenas por uma questão de conveniência?

- Sim.

- Chamo a sua atenção para o dia dois deste mês. Nessa data estava a viver maritalmente com Harrod nos "Apartamentos Dixiecrat"?

- Eu usava o nome dele. íamos casar, mas surgiram umas complicações com os papéis e não estivemos para esperar até elas se resolverem.

- Muito bem. - A voz de Calvert irradiava aprovação.- Muito obrigado por ser tão franca, Miss Elliston, mesmo com prejuízo do seu bom nome e reputação. Tenho a certeza de que o Tribunal aprova a sua atitude. Pode dizer-nos agora o que aconteceu na noite do dia dois?

- Carl saiu. Voltou cerca das... Oh, não tenho a certeza, talvez cerca das oito e meia ou nove horas. Tinha deitado sangue do nariz. Foi buscar lenços lavados e vestiu uma camisa limpa. Perguntei-lhe o que lhe acontecera e ele disse-me que fora uma rapariga que lhe batera, que o apanhara de surpresa.

- E depois?

- Perguntei-lhe o que é que ele lhe fizera, e Carl disse que não fizera nada, porque ela lhe bateu com a porta na cara antes de ter tempo de fazer alguma coisa.

- E depois?

- Depois saiu outra vez. Fiquei com a impressão de que ele...

- As suas impressões não nos interessam - interrompeu Calvert. - Limite-se a responder às perguntas e a contar-nos os factos. Não interessa ao Tribunal o que possa ter pensado, interessam-lhe apenas os factos.

- Sim, sir.

- Ele saiu, e depois? Voltou a vê-lo outra vez?

- Regressou daí... talvez daí a uma hora, talvez hora e meia. Não tomei atenção na hora.

- E como se apresentava nessa altura?

- Vinha a tossir, e deitou um ou dois escarros de sangue. A princípio julguei que fosse por causa de...

- Então! Então, Miss Elliston! - repreendeu Calvert brandamente, levantando o dedo e sorrindo. - Os seus pensamentos, não. Só o que sabe.

- Quando ele voltou, disse-me...

- Um momento! Disse-lhe, nessa altura, alguma coisa de onde se depreendesse que sentia que a morte estava próxima?

- Não.

- Sabe, por qualquer coisa que ele lhe tenha dito, se pensava que o ferimento era mortalmente grave?

- Ele nem sequer pensou nisso. Só pensava em receber uma indemnização. Estava radiante. Declarou que íamos receber uma importante quantia e que, então, havia de resolver as dificuldades legais, casávamos e íamos passar a lua-de-mel no estrangeiro.

- Muito bem. Nesse caso, não acho que seja conveniente relatar ao Tribunal qualquer coisa que ele tenha dito nessa altura. Conte-nos o que aconteceu e mais nada.

- Ele telefonou para a "Agência de Detectives Drake", e disse que queria pôr-se em contacto com Mr. Perry Mason. Quando Perry Mason veio ao telefone, disse-lhe...

- Não me parece que isso seja pertinente - voltou Calvert a interromper. - E, além disso, não pode ter a certeza de que era Mr. Mason quem estava do outro lado do fio, não é verdade? Limitou-se a ouvir a conversa?

- Sim.

- Então não pode declarar que Mr. Mason era a pessoa com quem Harrod falava. O que aconteceu nessa altura?

- Carl disse a Mr. Mason que fora agredido e...

- Um momento! Harrod esperava morrer nessa altura? Isto é, sabia que a morte estava próxima, em consequência do ferimento?

- Não, sir. Ele estava a preparar a cena para poder exigir uma larga indemnização, quando Mr. Mason chegasse lá a casa, como chegou, de facto, com a secretária.

- Nesse caso, não me parece que seja uma declaração susceptível de ser legalmente considerada. Não é uma declaração ante mortem, segundo a define a lei. Continue a contar-nos o que se passou. Mr. Mason e Miss Della Street foram-se embora?

- Foram.

- E depois?

- Carl tinha estado a representar, para deixar Mr. Mason impressionado. Queixou-se de arrepios. Pelo menos, eu julguei que ele estava a disfarçar, e...

- Não faça observações a respeito dos seus pensamentos, por favor - interrompeu Calvert. - Queremos factos... apenas factos.

- Bem, depois de Mr. Mason sair, Carl disse que tinha frio e eu aconselhei-o a tomar um banho quente. Abri as torneiras da banheira e disse-lhe que o banho estava pronto. Ele ia para se levantar da cadeira mas, de repente, começou a sentir-se pior. Quase que ia caindo no chão. Ficou branco como a cal e estampou-se-lhe no rosto uma expressão de terrível surpresa, e disse: "Nellie, Nellie, vou morrer!"

- E, nessa altura, fez-lhe alguma declaração a respeito do que acontecera quando fora ferido?

- Fez, sir.

- Agora parece-me que se trata de uma declaração ante mortem, segundo a define a lei. Julgo que pode relatar-nos o que disse que tinha acontecido.

O juiz Bolton olhou para Perry Mason.

- A Defesa tem alguma objecção a fazer?

- Não, senhor Doutor Juiz - retorquiu Mason.- Mas gostaria de interrogar a testemunha, com o fim de investigar as bases em que se fundamenta a classificação de declaração ante mortem.

- De acordo - disse o juiz Bolton.

- Ele disse-lhe que ia morrer? - perguntou Mason.

- Nessa altura, disse.

- Quanto tempo antes de morrer?

- Apenas uns minutos. Parece-me que não chegou a dez minutos.

- Verificou-se uma mudança repentina no seu estado depois de eu ter saído?

- Sim. Começou quando ele procurou levantar-se. Ergueu-se um pouco e voltou a cair. Foi então que apareceu aquela expressão de horror e surpresa no seu rosto.

- Ele disse que ia morrer?

- Disse: "Nellie, esta maldita ferida é... Parece-me que me chegou ao coração. Vou... vou morrer."

- E depois?

- Depois levou a mão ao peito e disse: "Não quero morrer, Nellie."

- E depois que sucedeu?

- Foi então que fez a declaração.

Mason acenou com a cabeça para Calvert.

- Parece-me que se trata de uma declaração ante mortem de acordo com a definição da lei. Não tenho qualquer objecção a fazer. Deixe-a contar o que sucedeu.

- Muito bem - disse Calvert. - Estou convencido de que se trata de uma declaração ante mortem. Prossiga, Miss Elliston, e diga-nos o que aconteceu. Pode relatar o que ele disse, empregando as suas próprias palavras, caso se lembre delas. Se não se lembra, conte-nos o que ele disse com a maior exactidão possível.

- Ele disse que voltara ao apartamento da acusada, que ia decidido a ajustar contas com ela e prometer-lhe que, se ela lhe desse as cartas, não a denunciaria. Disse que ela usava o nome de Fern Driscoll, mas que o seu nome verdadeiro era Mildred Crest. Disse que fora ela quem assassinara Fern Driscoll, e que o podia provar.

- Harrod disse alguma coisa que a culpasse do seu assassínio?

- Sim. Disse que ela lhe abrira a porta e que, por fim, o deixara entrar. Carl fez-lhe a sua proposta.

- E depois?

- Depois ela riu-se e disse que ele era um chantagista e que devia ter cadastro na Polícia, e que, se não se afastasse dali e a voltasse a importunar, pregava-lhe um tiro e depois alegava que o tinha surpreendido a assaltar o apartamento. Carl disse que tivera uma discussão e que ela abriu a porta da rua, intimidando-o a sair, e que, de repente, quando ele ia a sair, a acusada levantou o punho em direcção ao seu peito, após o que atirou com a porta, fechando-a à chave. Carl disse que só soube que ela tinha um ferro de quebrar gelo na mão, quando chegou ao elevador e viu o ferro cravado no peito. Não pensou que estivesse gravemente ferido, mas achou que poderia aproveitar-se do gesto da rapariga como um meio de fazer que Perry Mason, o advogado dela, lhe desse as cartas que pretendia. Com elas, podia arranjar uma boa quantia, que receberia ou da revista, ou de Mr. Baylor.

- O que aconteceu ao ferro de quebrar gelo?

- Carl trouxe-o para casa.

- Disse-lhe que o ferro que trazia era o mesmo com que fora agredido?

- Disse.

- Onde está o ferro agora?

- Entreguei-o à Polícia.

- Pôs alguma marca nesse ferro de quebrar gelo, a fim de o poder reconhecer quando lhe fosse novamente apresentado?

- Sim.

- Que marca?

- Gravei as minhas iniciais no cabo de madeira.

- Quando?

- Antes de o levarem do apartamento.

- Vou agora mostrar-lhe o ferro e perguntar-lhe se é este o ferro de quebrar gelo a que se tem estado a referir.

- É este mesmo.

- Vou agora mostrá-lo à Defesa e pedir que seja aceite como prova - disse Calvert.

Mason observou o ferro de quebrar gelo cuidadosamente e perguntou:

- Posso fazer umas perguntas, senhor Doutor Juiz?

- Com certeza - retorquiu o juiz Bolton. Mason voltou-se para a testemunha.

- Reparo que este ferro de quebrar gelo tem uma etiqueta com o preço, colada com um pedaço de fita gomada transparente. Na etiqueta vê-se o nome da "Arcada das Novidades", e o preço de quarenta e um cêntimos. O ferro que Carl Harrod lhe deu a guardar, tinha esta etiqueta com este preço?

- Tinha.

- Tem a certeza de que foi este o ferro de quebrar gelo que Carl Harrod lhe deu?

- A certeza absoluta.

- Carl Harrod disse-lhe que foi este ferro que lhe havia sido enterrado no peito?

- Disse.

- E entregou-lhe este ferro de quebrar gelo?

- Sim.

- E a senhora marcou-o?

- Exactamente.

- Quando marcou?

- Quando a Polícia chegou.

- Foi um dos guardas que a aconselhou a marcá-lo?

- Foi.

- Para não haver possibilidade de se enganar quando fosse chamada a depor?

- Para depois o poder identificar.

- Havia mais algum ferro de quebrar gelo no seu apartamento?

- Havia mais um.

- Onde?

- Na gaveta da cozinha.

- Refere-se à gaveta dos talheres no armário da cozinha?

- Sim.

- Que mais havia dentro dessa gaveta?

- Garfos, colheres, facas, um saca-rolhas, um abre-latas e coisas desse género.

- Muito bem - retorquiu Mason. - E agora estou interessado em esclarecer um ponto: havia dois ferros de quebrar gelo na gaveta da cozinha?

- Havia.

- Quer dizer que colocou dentro dessa gaveta o ferro que Carl Harrod lhe entregou?

- Sim.

- Como foi que isso aconteceu? Não viu que assim...

- O Carl chegou a casa muito alegre.

- O que quer dizer com "alegre"?

- Quero dizer alegre! Sabe como está uma pessoa quando se encontra alegre.

- Tinha estado a beber?

- Não.

- Tomou marijuana?

- Sim.

- E que disse ele?

- Parecia estar muito satisfeito. Disse-me que tinha acertado em cheio.

- E depois?

- Depois disse que era um homem muito amigo de trazer coisas para casa e que me trazia um ferro de quebrar gelo, e atirou-o para dentro do lava-loiça.

- E depois?

- Perguntei-lhe para que queríamos nós o ferro, se usávamos o gelo em cubos.

- E então?

- Ele foi para a outra casa, sentou-se e conversámos um bocado. Eu depois voltei à cozinha e reparei numa nódoa cor-de-rosa no lava-loiça, no ponto em que o ferro de quebrar gelo pousara em cima de uma gota de água, mas não liguei importância ao facto. Peguei no ferro, lavei-o e meti-o dentro da gaveta.

- Lavou-o?

- Lavei-o, sim.

- Porquê?

- Não sabia onde Carl o arranjara e, além disso, Carl trouxera-o na mão. Costumo sempre lavar os pratos e os utensílios antes de me servir deles pela primeira vez.

- Nessa altura já sabia que havia dentro da gaveta outro ferro de quebrar gelo?

- Para lhe falar com franqueza, Mr. Mason, não sabia. Foi com grande surpresa que, quando a Polícia me pediu que fosse buscar o ferro de quebrar gelo, abri a gaveta e encontrei dois.

- Há qualquer possibilidade de... Peço-lhe que escute com atenção e pense bem antes de responder à pergunta - disse Mason. - Há qualquer possibilidade de ter trocado os ferros de quebrar gelo?

- Não, nenhuma.

- Como sabe que não se enganou?

- Porque o ferro que eu meti na gaveta estava mesmo à frente, enquanto o outro se encontrava quase no fundo. Além disso, o outro ferro não tinha nenhuma etiqueta com o preço. Lembro-me perfeitamente de que o ferro de quebrar gelo que o Carl levou para casa tinha esta etiqueta.

- Tem a certeza?

- Tenho a certeza absoluta.

Mason acenou com a cabeça para o advogado de Acusação e disse:

- Atendendo às circunstâncias, não tenho mais nenhuma pergunta a fazer, nem qualquer objecção a que o ferro de quebrar gelo seja considerado como prova.

- O ferro de quebrar gelo passa a ser considerado como prova - declarou o juiz Bolton.

- Nesse caso, dou por terminado o meu interrogatório da testemunha, senhor Doutor Juiz - informou Calvert.

- Pode começar o contra-interrogatório- disse o juiz Bolton a Perry Mason.

Mason olhou, pensativo, para a testemunha durante uns momentos e depois perguntou:

- Quando eu falei com Carl Harrod, não é verdade que ele concordou que a luz era escassa e não tinha a certeza se fora a acusada quem o agredira? Não é verdade que ele admitiu a possibilidade de ter sido Katherine Baylor quem abrira a porta e o espetara com o ferro?

- Um momento! Um momento! - berrou Calvert. - Não responda a essa pergunta, Miss Elliston. Protesto, senhor Doutor Juiz. Não me parece aceitável a maneira como o contra-interrogatório está a ser conduzido. Segundo suponho, já foi demonstrado que, na altura em que Mr. Mason foi falar com Carl Harrod, Harrod estava a representar. Estava a tentar obter uma indemnização. Não fazia a menor ideia de que ia morrer. A teoria que leva a lei a aceitar declarações ante mortem como provas é baseada na suposição de que uma pessoa que vai morrer e sabe que tudo o que possa dizer ou fazer não lhe proporcionará quaisquer benefícios materiais, em face de uma situação onde só contam factores de ordem espiritual, falará verdade, ou, pelo menos, falará com tanta verdade como o faria se estivesse a prestar declarações sob juramento.

- Tenho conhecimento da teoria que informa as declarações ante mortem-retorquiu o juiz Bolton, secamente. - Parece-me que não tem de recear que o Tribunal não compreenda os princípios elementares da lei.

- Claro, senhor Doutor Juiz. Permiti-me fazer este comentário para mostrar que há uma grande diferença entre uma verdadeira declaração ante mortem feita por uma pessoa que sabe que vai morrer, e uma pseudo declaração ante mortem<, que faz parte de um plano fraudulento para extorquir uma indemnização.

- Compreendo perfeitamente tudo isso - disse o juiz Bolton. - Mas vamos supor que uma declaração ante mortem tem o mesmo valor de um depoimento sob juramento. Se Carl Harrod testemunhasse sob juramento, Mr. Mason teria o direito de perguntar-lhe se não se lembrava de ter feito uma declaração diferente noutra altura, não é verdade?

- Com certeza, Sr. Dr. Juiz, mas agora a situação é outra. Nesse caso, Mr. Mason estaria a interrogar o próprio Carl Harrod e ele poderia explicar quaisquer contradições aparentes. Agora, porém, está a interrogar uma terceira pessoa a respeito das supostas contradições do depoimento feito por Harrod. Parece-me que estamos a aproximar-nos do domínio das afirmações não fundamentadas.

- Apesar de tudo-replicou o juiz Bolton-estou interessado em ouvir a resposta da testemunha. Gostaria que respondesse à pergunta. A objecção não é considerada.

- Muito bem - disse Calvert, recuando com' muito pouco garbo.

- O juiz Bolton voltou-se para a testemunha.

- Carl Harrod fez essa declaração, Miss Elliston?

- Parece-me que não, Sr. Dr. Juiz. Eu sei que Mr. Mason estava a tentar confundi-lo e...

- Não interessa o que Mr. Mason estava a tentar fazer - disse o juiz Bolton, com um ar severo. - Quero saber o que declarou Carl Harrod.

- Bem, Mr. Mason aludiu ao facto de a luz ser muito escassa e depois perguntou ao Carl como podia ele ter a certeza de que não fora Katherime Baylor quem o agredira.

- E o que respondeu Mr. Harrod?

- Mostrou-se indignado e disse que não admitia que Mr. Mason o submetesse a um contra-interrogatório.

- Muito bem. Queira continuar o interrogatório - disse o juiz Bolton a Mason.

- Carl Harrod telefonou a Mr. Baylor depois de eu ter saído, por causa da sugestão que eu fiz?

- Ele...

- Um momento! - interrompeu Calvert. - Abstenha-se de responder, antes de eu ter oportunidade de formular um protesto... Se o Tribunal me permite, protesto contra esta pergunta, considerando-a irrelevante, incompetente. Recorre a meras suposições para provas, pois refere-se a um facto não comprovado, e, portanto, essa forma de conduzir o contra-interrogatório não é aceitável. Ao proceder ao meu interrogatório directo, não me servi de nenhum desses métodos. O meu interrogatório limitou-se à declaração ante mortem, com elementos factuais do que antes acontecera, elementos suficientes para explicar a situação.

- Bem - disse o juiz Bolton-.vamos considerar ísto também como um elemento factual dos antecedentes.

- Além disso, Sr. Dr. Juiz, a pergunta requer uma conclusão por parte da testemunha, o que é contencioso. Ela não sabe quem se encontrava do outro lado da linha.

- Sabe se Carl Harrod telefonou a Mr. Harriman Baylor depois de Mr. Mason ter saído? - perguntou o juiz Bolton à testemunha.

- Não, sir.

- Não sabe?

- Não, sir

- Prossiga com o contra-interrogatório, Mr. Mason

- disse o juiz Bolton.

- Ele telefonou a alguém?

- Serviu-se do telefone, de facto.

- Viu o número que ele marcou?

- Não.

- Ouviu o nome da pessoa por quem ele perguntou?

Nellie hesitou uns momentos.

- Não.

- Ouviu ele chamar algum nome ao interlocutor? Ouviu-o chamar-lhe Mr. Baylor?

- Um momento! Um momento! - exclamou Calvert.

- Se o Tribunal me permite, desejo frisar que o facto de a testemunha ouvir chamar alguém pelo nome ao telefone não é suficientemente comprovativo. Eu podia telefonar ao Sr. Dr. Juiz e dizer: "Ouça, Sr. Presidente..." e, contudo, isso não significava que eu estivesse a falar com o Presidente dos Estados Unidos.

- De acordo - retorquiu o juiz Bolton. - Mas essa objecção refere-se mais propriamente ao peso da prova do que à sua aceitação. Acho que isto faz parte da res gestae e gostaria de ouvir a resposta. Harrod telefonou a alguém que tratou por Mr. Baylor?

- Telefonou.

- Obrigado - disse Mason, sorrindo. - É tudo.

- Um momento! - atalhou Calvert. - Tenho ainda algumas perguntas a fazer. Ouviu-o proferir o nome Baylor. Não sabe se ele estava a falar com Mr. Baylor ou com Miss Baylor, pois não?

- Parece-me que o ouvi dizer "Mr. Baylor".

- Mas sabe se ele estava a falar com Harriman Baylor ou com seu filho Forrester Baylor?

- Não, sir, não sei

- Nem sequer sabe se a pessoa a quem ele se dirigia era um estranho que também se chamava Baylor, ou qualquer outro Baylor?

- Não, também não sei.

- Não ouviu o nome próprio do interlocutor?

- Não.

- E essa conversa teve lugar depois de Mr. Mason sair?

- Sim.

- É tudo - disse Calvert.

- Um momento!-exclamou Mason. - Referiu-se em particular à conversa que ele teve depois de eu sair. Houve mais alguma além dessa?

- Houve.

- Quando teve lugar a primeira?

- Pouco tempo depois de meu marido voltar para o apartamento.

- E a quem telefonou nessa altura?

- Não sei.

- Por quem perguntou?

- Perguntou por Mr. Baylor.

- Mas não o ouviu chamar "Baylor" à pessoa na outra extremidade do fio de ambas as vezes?

- Ouvi.

- Empregou a expressão "Mr. Baylor"?

- Sim.

- Então, segundo depreendi, Harrod fez uma chamada assim que chegou a casa e antes de a senhora saber que fora ferido com um ferro de quebrar gelo, e uma segunda chamada depois de eu sair. Foi assim?

- Foi.

- Muito obrigado - disse Mason. - Acho que é tudo. Porém, em face deste depoimento, tenho mais uma pergunta a fazer à testemunha Irma Karnes.

- Não concordo que a Defesa faça os seus interrogatórios às prestações - disse Calvert. - Teve a oportunidade de submeter Irma Karnes a um contra-interrogatório, e podia ter-lhe feito todas as perguntas nessa altura. Parece-me que não é justo estar a mandar chamar as testemunhas repetidas vezes para as interrogar.

- A condução dos interrogatórios compete unicamente ao Tribunal - redarguiu o juiz Bolton. - Parece-me que, em virtude das circunstâncias derivadas do depoimento da última testemunha, devemos tentar descobrir a verdade deste caso.

O juiz Bolton voltou-se para o oficial de diligências.

- Chame Miss Karnes- disse ele.

Daí a momentos, Irma Karnes voltava a subir ao estrado das testemunhas.

Mason virou-se para o oficial de diligências.

- Agradecia-lhe que fosse chamar a minha secretária, Miss Della Street, que se encontra na sala de espera das testemunhas.

O funcionário saiu da sala e voltou daí a pouco com Della Street.

- Miss Karnes - disse Mason- permita-me que lhe apresente a minha secretária, Miss Della Street.

- Muito prazer - cumprimentou Irma Karnes.

- Olhe para ela com atenção, por favor - continuou Mason. - Já a viu alguma vez?

- Não me parece.

- Contudo, foi Miss Street a pessoa que lhe comprou os três ferros de quebrar gelo na noite do dia dois. Foi com Miss Street que teve essa conversa a respeito do aumento do preço.

Irma Karnes abanou a cabeça com veemência.

- Não, não foi - disse ela. E acrescentou:-Já me tinham avisado de que o senhor havia de tentar confundir-me, Mr. Mason, e já estava preparada para isso. A pessoa que me comprou os ferros encontra-se sentada a seu lado e é a acusada deste caso, Mildred Crest. Não foi Della Street quem comprou os ferros de quebrar gelo. Nunca vendi nada a Della Street durante toda a minha vida. Não vou permitir que o senhor me confunda com esse truque, Mr. Mason.

- Tem a certeza de que nunca vendeu nada a Della Street?

- Estou convencida de que nunca a vi e tenho a certeza de que nunca lhe vendi nada.

- E enquanto fazia o troco correspondente aos ferros de quebrar gelo que vendera a Miss Street - disse Mason- não se lembra de um deles ter rolado sobre o balcão e caído ao chão e de ela se baixar e apanhá-lo?

- Isso aconteceu quando eu vendi os ferros à acusada - insistiu a testemunha. - Foi ela que lhe contou o incidente, e o senhor agora quer que me atrapalhe e me contradiga. Mas não me consegue atrapalhar, Mr. Mason. Sei muito bem como as coisas se passaram. Sei que vendi à acusada esses ferros de quebrar gelo. Vi-a. Reconheci-a, e estudei-lhe as feições demasiadamente bem para agora me poder confundir.

- É verdade que lhe estudou as feições - retorquiu Mason, irritado - mas só as estudou quando a Polícia a deixou observá-la durante dez minutos. Não lhe estudou as feições enquanto ela estava a comprar-Lhe os ferros de quebrar gelo.

- Também lhe estudei as feições nessa altura.

- Porquê?

- Porque sim... porque não quero ser confundida no contra-interrogatório, Mr. Mason.

- Na altura em que efectuou a venda não podia prever que ia ser submetida a um contra-interrogatório - atalhou Mason.

- Seja como for, tenho a certeza de que a pessoa que comprou os ferros de quebrar gelo foi a acusada.

- E não Miss Della Street aqui presente?

- De maneira nenhuma! - retorquiu Irma Karnes, com decisão. - Já me tinham avisado a seu respeito, Mr. Mason. Já estava preparada para isto.

- Muito obrigado - disse Mason. - É tudo.

- Tem alguma pergunta a fazer? - perguntou o juiz Bolton a Calvert.

- Nenhuma, Sr. Dr. Juiz - respondeu Calvert, sorrindo.- Acabou o seu interrogatório, Miss Karnes, e permita-me que lhe agradeça o seu excelente testemunho.

Irma Karnes levantou-se e desceu do estrado, lançando a Mason um olhar carrancudo, ao passar por ele.

- Se o Tribunal me dá licença - disse Calvert - o caso pertence-me. Não pretendo apresentar mais nenhuma testemunha.

Mason declarou:

- Nesse caso, Sr. Dr. Juiz, peço ao Tribunal que dê o caso por encerrado e que ponha a acusada em liberdade.

O juiz Bolton abanou a cabeça.

- A finalidade de um julgamento prévio é determinar se foi cometido um crime e se há provas suficientes para considerar a acusada culpada. Parece-me que a Acusação conseguiu prová-lo. O Tribunal deseja que a acusada se pronuncie se quer ou não comparecer perante o Supremo Tribunal, para ser julgada por um júri. O testemunho da Acusação no que se refere às acções da acusada, se não for refutado, descobre os móbiles do crime, e apresenta, pelo menos, algumas provas do próprio crime.

- Se o Tribunal me dá licença - disse Mason - desejo pedir um intervalo de quinze minutos. Devo declarar com franqueza que não sei se hei-de chamar a acusada a prestar declarações e dar, depois, o caso por encerrado, ou ficar à espera e deixar o Tribunal citar a acusada para julgamento no Supremo Tribunal, e fazer depois a minha defesa perante o júri.

- É uma declaração franca - redarguiu o juiz Bolton- e, atendendo às circunstâncias, o Tribunal concorda em conceder um intervalo de quinze minutos.

 

Mason, Della Street e Paul Drake reuniram-se para conferenciar numa das salas de espera de testemunhas que se encontrava vazia.

- É isso mesmo - disse Mason. - A testemunha Karnes viu Della durante um curto lapso de tempo. Foi levada a acreditar que a pessoa que comprou os ferros de quebrar gelo devia ser Mildred Crest. Informaram-na de que eu havia de tentar confundi-la, o espírito dela estava preparado para não mostrar quaisquer dúvidas a respeito da identificação'... e aqui estamos nós metidos num sarilho.

- O que é que se pode fazer? - perguntou Drake.

- Posso chamar Della Street a depor. Ela pode dizer que foi a pessoa que comprou os ferros de quebra gelo. O juiz Bolton ficará impressionado, mas, para conseguir alguma coisa, prosseguirei chamando Mildred Crest a depor.

- E, nessa altura, estás a jogar todos os teus trunfos.

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

- Será prudente arriscares-te tanto? - inquiriu

- Não - admitiu Mason.- Porém, agora, o juiz Bolton está interessado. Se ele mostrar a reacção conveniente quando eu interrogar Della, irei até ao fim. Há casos em que um advogado tem de jogar.

- Consegue ler alguma coisa no jogo fisionómico do juiz Bolton? - perguntou Della Street.

- No jogo fisionómico, não, mas sim no ângulo que a sua cabeça toma. Quando está interessado, inclina-se para a frente. Quando se convence de que o acusado é culpado, recosta-se na cadeira. Durante o interrogatório da última testemunha, inclinou-se ligeiramente para a frente. Parece-me que vou chamar Della ao banco das testemunhas para ver em que direcção é que ele se inclina. Se se inclinar para a frente, abro fogo. Vamos para o tribunal. Quero preparar Mildred para o que a espera.

Voltaram para a sala do tribunal. Mason aproximou a boca do ouvido de Mildred Crest e murmurou-lhe:

- Ouça, Mildred, se eu não a chamar a depor, o juiz considerá-la-á culpada e teremos de enfrentar um Júri.

A rapariga acenou afirmativamente com a cabeça.

- Se eu a chamar a depor - prosseguiu Mason - há uma possibilidade, embora uma possibilidade ínfima, de você fazer que ele se convença de haver qualquer coisa neste caso que não joga certo e, embora talvez não a ponha em liberdade, é muito provável que decida que as provas relativas a um assassínio deliberado de primeiro grau não são suficientes para fundamentar a acusação. Então pode ser que a considere apenas acusada de homicídio.

- Haverá alguma vantagem nisso? - perguntou ela.

- Há uma vantagem enorme - explicou Mason.

Se formos para julgamento perante um júri, alguns dos jurados acharão que a Acusação provou um caso de assassínio. Um ou dois membros considerá-la-ão inocente. Discutem o assunto sem chegar a nenhuma conclusão e, por fim, algum deles é capaz de sugerir que se opte por uma solução de compromisso, e declará-la-ão culpada de homicídio.

"Mas, uma vez que seja posta de parte a acusação de assassínio, e você seja julgada por homicídio, já não há muitas possibilidade de se chegar a um compromisso e os jurados que a considerarem inocente podem fazer finca-pé e conseguir uma anulação do julgamento.

- O senhor parece não estar a contar muito com a possibilidade de me libertarem - comentou ela.

- Estou a falar do pior que pode acontecer - redarguiu Mason. - Estou a pintar-lhe o quadro com as tintas mais sombrias. E agora diga-me: o que quer fazer?

- O que o senhor me disser.

- Estou inclinado a chamá-la a depor, mas aviso-a de que vai passar um mau bocado.

- Direi a verdade.

- Bem, lá vem o juiz a entrar. Aguente-se no balanço. Lá vamos nós!

 

O juiz Bolton abriu a sessão e disse:

- Vejo que o Procurador do Distrito se encontra presente no tribunal.

Hamilton Burger, grande e maciço, levantou-se com paquidérmica dignidade:

- Se o Tribunal me permite pronunciar-me, surgiu uma situação que me foi comunicada durante o intervalo do julgamento, uma situação na qual estou interessado profissional e oficialmente.

"Notei que a Defesa, ao contra-interrogar a testemunha da Acusação Irma Karnes, apresentou a sua secretária Della Street e tentou criar a impressão de que fora Miss Street quem comprara o ferro de quebrar gelo, marcado como prova número sete pela Acusação.

"Presumo que o Tribunal não tenciona deter-se mais com esta insinuação. Falei, contudo, com a testemunha, Miss Karnes, durante o intervalo e, no caso de Miss Street ser chamada a declarar sob juramento que comprou o ferro de quebrar gelo, quero conduzir pessoalmente o contra-interrogatório. Aviso Miss Street e Perry Mason de que lhes moverei um processo por perjúrio. Uma coisa é tentar confundir uma testemunha, atrapalhando-a, outra coisa muito diferente é procurar salvar um caso com fracas possibilidades, apresentando testemunhos falsos. Parece-me que estou a proceder com imparcialidade, avisando a Defesa."

Mason voltou-se para Hamilton Burger:

- Imagine que se chegava à conclusão de que era Irma "armes quem estava a jurar falso. Mover-lhe-ia um processo por perjúrio?

- Irma Karnes - declarou Hamilton Burger enfaticamente- está a dizer a verdade. Falei com ela pessoalmente. Não podem restar dúvidas quanto à sua categórica identificação.

O juiz Bolton atalhou:

- Não vejo em que é que esta troca de palavras entre a Defesa e a Acusação possa adiantar ao Tribunal. Mr. Mason queira prosseguir com a defesa, caso esteja disposto a apresentá-la agora; de outro modo, o assunto será submetido à resolução do Tribunal, que irá declarar a acusada sujeita a obrigação legal.

- Vou aceitar o desafio da Acusação - declarou Mason. - Della Street subirá ao banco das testemunhas.

Della Street aproximou-se e prestou juramento.

- Chamo a sua atenção para o dia dois deste mês - começou Mason - e chamo também a sua atenção para o depoimento da testemunha Irma Karnes, no que se refere à compra dos ferros de quebrar gelo ter sido efectuada pela acusada. Tem conhecimento desse depoimento?

- Sim.

- Quer descrever qualquer transacção que tenha feito com Irma Karnes no dia dois do corrente mês?

Della Street disse, com firmeza:

- Encontrava-me no apartamento de Mildred Crest, com o senhor. O senhor deu-me instruções para que fosse à "Arcada das Novidades" comprar três ferros de quebrar gelo iguais a um certo ferro que havia no apartamento. Dirigi-me à "Arcada das Novidades". Fui atendida por Irma Karnes. Comprei três ferros de quebrar gelo. Ela informou-me de que fora necessário aumentar o preço deles nessa noite, e que, se eu lá tivesse ido mais cedo, poderia ter comprado três por um dólar. Enquanto registava a venda na caixa, antes de meter os ferros dentro de um saco de papel, um deles rolou e caiu no chão. Eu baixei-me e apanhei-o.

- Pode proceder ao contra-interrogatório - disse Perry Mason.

Hamilton Burger levantou-se pesadamente.

- Miss Street, encontra-se ao serviço de Perry Mason?

- Sim, sir.

- Há muito tempo?

- Sim. sir.

- Usa para com ele de lealdade e dedicação?

- Sim. sir.

- Trabalhou com ele em muitos dos seus casos. Fazia parte das suas atribuições acompanhar Mr. Mason quando ele interrogava testemunhas, estenografar os seus depoimentos e ter em dia os ficheiros de Mr. Mason relativos aos diferentes casos?

- Sim, sir.

- Estava com ele quando interrogou Carl Harrod?

- Sim, sir.

- Digo-lhe que, no dia dois do corrente mês, não comprou quaisquer ferros de quebrar gelo na loja "Arcada das Novidades", e que só viu Irma Karnes depois do dia dois deste mês. Sugiro-lhe isto, Miss Street, para lhe dar uma última oportunidade para dizer a verdade. Prestou declarações sob juramento e as declarações eram falsas. O seu depoimento foi registado. Cometeu perjúrio. Estou a dar-lhe uma última oportunidade para se retractar.

- O meu depoimento corresponde à verdade - declarou Della Street.

- É tudo - anunciou Hamilton Burger. Della Street olhou para Perry Mason.

- Não tenho mais perguntas a fazer, Miss Street - disse Perry Mason.

Della, de rosto levantado, ergueu-se do banco das testemunhas, com uma dignidade que deixou o furioso e desconfiado Hamilton Burger um tanto desconcertado.

Mason deitou uma olhadela ao juiz Bolton, observando cuidadosamente a sua posição na cadeira.

- Vou chamar a acusada, Mildred Crest, para que suba ao banco das testemunhas - declarou Mason.

Levantaram-se murmúrios de expectativa por entre a assistência.

- Pronto - murmurou Mason a Mildred Crest - chegou a altura de jogar a sua cartada. Lembre-se de que o seu trunfo é a sinceridade e não o sex-appeal.

Mildred Crest encaminhou-se vagarosamente para o banco das testemunhas, ergueu a mão, jurou, e depois virou-se para Perry Mason.

- Mildred - começou Mason - quero que me conte o que sucedeu no dia vinte e dois do mês passado: a conversa telefónica que teve com Robert Joiner. Porém, antes de começar, acho conveniente informar primeiro o tribunal a respeito de Robert Joiner. Quem era ele?

- Era o homem de quem estava noiva e com' quem ia casar.

- Usava anel de noivado?

- Sim.

- Tinha anunciado o noivado às pessoas amigas?

- Sim.

- Muito bem. Conte-nos a conversa telefónica que teve na tarde do dia vinte e dois. Depois, diga-nos tudo o que fez no dia vinte e dois, com todos os pormenores que lhe seja possível recordar.

Mildred Crest começou a falar numa voz baixa e um pouco trémula. Gradualmente, porém, o som da sua voz incutiu-lhe uma certa segurança, ergueu os olhos para o juiz Bolton, endireitou-se e começou a falar mais depressa.

As perguntas de Mason, penetrantes e compreensivas, ajudavam-na sempre que começava a hesitar, até que, por fim, contou a história do telefonema, do acidente de automóvel, da sua decisão de se apossar da identidade de Fern Driscoll e as complicações daí resultantes, o encontro com Carl Harrod, os ferros de quebrar gelo comprados por Katherine Baylor, a visita de Mason e Della Street, e a substituição feita por Della Street dos dois ferros que faltavam.

Mason voltou-se para o advogado de acusação.

- Proceda ao contra-interrogatório - disse ele. Hamilton Burger levantou-se. A voz dele assumiu um ar compadecido, a sua atitude era reservada.

- Segundo depreendi, Miss Crest, sofreu um grande choque emocional na tarde do dia vinte e dois.

- Efectivamente.

- Não tinha a menor suspeita de que o seu noivo cometera um desfalque?

- Absolutamente nenhuma.

- No entanto, devia reparar que ele levava um nível de vida superior ao que lhe permitiria o ordenado.

- Todos nós reparámos nisso, mas acreditávamos na sua declaração de que pertencia a uma família rica e que estava a trabalhar só para praticar.

- Então, quando soube que ele cometera um desfalque, repudiou-o, não é verdade?

- Sim.

- No entanto - disse Hamilton Burger, levantando um pouco a voz e arvorando uma expressão ligeiramente sarcástica -, poucas horas depois de haver repudiado o seu namorado por ser desonesto, cometeu também um furto.

- Não cometi - protestou Mildred com firmeza.

- Ah, não? - perguntou Burger, com exagerada surpresa. - Talvez eu tenha interpretado mal o seu depoimento. Julguei que disse que se apoderara da bolsa de Fern Driscoll.

- É verdade, mas apoderei-me dela com uma determinada intenção.

- Que intenção?

- Para poder assumir a identidade dela, enquanto me não encontrasse.

- Foi essa a única razão que a levou a apoderar-se da bolsa?

- Foi.

- Mas dentro da bolsa encontravam-se quatro mil dólares. Precisava desses quatro mil dólares para alterar a sua identidade para Fern Driscoll?

- Não.

- Ficou com o dinheiro?

- Estava dentro da bolsa.

- Oh! Estava dentro da bolsa! - repetiu Hamilton Burger, imitando-a. - E agora, está dentro da bolsa?

- Não.

- Quem o tirou lá de dentro?

- Eu.

- E o que lhe fez depois de o tirar?

- Meti-o dentro de um sobrescrito, e escrevi por fora: "Pertença de Fern Driscoll".

- Claro!- exclamou Hamilton Burger. - E quando fez isso?

- Antes de a Polícia entrar no meu apartamento.

- Pois, pois - retorquiu Hamilton Burger, sorrindo. - Quanto tempo antes de eles chegarem?

- Pouco antes.

- Foi depois de Mr. Mason e Della Street lá terem estado?

- Foi.

- E escreveu no sobrescrito "Pertença de Fern Driscoll" por sugestão de Mr. Mason?

- Escrevi.

- Nessa altura já sabia que Carl Harrod fora espetado no peito com um ferro de quebrar gelo?

- Sim.

- Por outras palavras, isso aconteceu quando estava à espera da Polícia?

- Sim.

- E, nessa altura, escreveu no sobrescrito "Pertença de Fern Driscoll"?

- Sim.

- Simplesmente para nos deitar poeira nos olhos e poder assumir uma atitude de virtuosa integridade, quando se sentasse no banco das testemunhas.

- Nunca pensei vir a sentar-me no banco das testemunhas.

- Não, não pensou - disse Hamilton Burger, sorrindo-, mas pensou o seu advogado, Miss Crest. Fez isso por sugestão do seu advogado.

- Eu não sei o que o meu advogado pensou.

- Não, não, claro que não. Mas não pode dizer que ele não estava a pensar em nos deitar poeira nos olhos.

- Posso dizer que não sei o que ele estava a pensar.

- Seguiu a sugestão dele?

- Sim.

- E, até esse momento, nada tinha feito para marcar esse dinheiro como sendo pertença de Fern Driscoll?

- Tinha-o posto de lado como sua pertença.

- Quer dizer que ainda o não gastara?

- Não tinha a mínima intenção de o gastar.

- Fez qualquer diligência para descobrir quem seriam os herdeiros de Fern Driscoll?

- Não.

- Pôs-se em contacto com o Administrador Público do Condado de San Diego, que foi onde o acidente teve lugar, comunicando-lhe que estava de posse de algo pertencente a Fern Driscoll?

- Não.

- Disse que conservava o dinheiro em seu poder como pertença de Fern Driscoll?

- Exactamente.

- No entanto, tinha-se apoderado da identidade de Fern Driscoll, bem como do dinheiro que lhe pertencia.

- Eu tomei o nome de Fern Driscoll.

- Sim, encontrou a assinatura de Fern Driscoll na carta de condução dela e começou a praticar de modo a poder assinar o nome de Fern Driscoll de maneira semelhante à assinatura da carta de condução, não é verdade?

- É.

- Escreveu esse nome nas costas de um cheque, não escreveu?

- De um cheque?

- Um cheque que lhe passaram pela importância do seu salário da primeira semana.

- Sim, mas esse dinheiro era meu, tinha-o ganho.

- Então porque é que achou necessário tentar copiar a assinatura de Fern Driscoll conforme vinha na carta de condução?

- Porque pensei que poderia surgir uma ocasião em que teria de apresentar a carta como elemento de identificação.

- Não sabia nada a respeito da vida de Fern Driscoll?

- Não.

- Não pensou que ela tivesse amigos ou parentes que estavam ansiosos por receber notícias dela?

- Não sabia nada a seu respeito.

- Não tentou pôr-se em contacto com a família dela para lhe dar conhecimento da sua morte?

- Não.

- E lançou fogo propositadamente ao automóvel para melhor conseguir os seus intuitos?

- Não fiz semelhante coisa.

- Mas o fogo foi provocado por um fósforo que acendeu.

- Sim, mas foi por acidente.

- Já tinha aceso outro fósforo?

- Já.

- E não provocou o fogo?

- Não.

- Por isso tentou outra vez. Acendeu outro fósforo e, nessa altura, conseguiu atear o fogo.

- Já disse que o fogo se ateou por acidente.

- Sabia que havia gasolina no carro?

- Sabia.

- Sentiu o cheiro?

- Senti.

- E, não obstante, acendeu um fósforo por cima dos gases da gasolina.

- Estava a tentar ver por debaixo do carro.

- E, como os gases não se incendiaram, deixou cair o fósforo para a gasolina se incendiar.

- O fósforo estava a queimar-me os dedos.

- Já alguma outra vez acendeu fósforos?

- Claro que sim.

- Sabe que, se os conservar na mão durante muito tempo, a chama lhe queima os dedos?

- Sei.

- Por isso, costuma apagar o fósforo antes de a chama lhe queimar os dedos, não é verdade?

- Sim.

- Porque não fez o mesmo dessa vez?

- Tinha o espírito ocupado com outras coisas.

- Nisso estou de acordo consigo - retorquiu Hamilton Burger sarcasticamente. Depois prosseguiu: - Quando Katherine Baylor lhe entregou os ferros de quebrar gelo para se poder defender, perguntou-lhe onde os comprara?

- Sim.

- E ela disse-lho?

- Disse.

- Por isso, assim que ela saiu, foi imediatamente lá abaixo comprar mais ferros, para, no caso de agredir Carl Harrod com um deles, poder provar a sua inocência aos olhos da Polícia, mostrando-lhes que ainda tinha no seu apartamento os ferros de quebrar gelo que Miss Baylor lá deixara.

- Isso não é verdade.

- Julgou que podia mandar chamar a sua amiga Katherine Baylor e dizer: "Katherine Baylor deixou aqui dois ferros de quebrar gelo, não é verdade, Katherine?" e Katherine responderia: "Claro, foram estes ferros que eu comprei."

- Eu não comprei nenhuns ferros de quebrar gelo!

- Não só se apoderou de quatro mil dólares que não lhe pertenciam e não se considera uma ladra, como também comprou três ferros de quebrar gelo à testemunha Irma Karnes e agora nega, sem se lembrar talvez de que está a cometer perjúrio.

- Eu não comprei os ferros de quebrar gelo. Foi Della Street quem os comprou.

- Como é que sabe?

- Ouvi Mr. Mason dizer-lhe que os fosse comprar.

- Ouviu a testemunha Irma Karnes declarar positivamente que foi a senhora quem comprou esses ferros?

- Está enganada.

- Ouviu o seu depoimento?

- Ouvi.

- Ouviu-a dizer que estava certa do que afirmava?

- Ouvi.

- E, mesmo em face desse testemunho, mesmo em face do facto de haver cravado no peito de Carl Harrod um ferro de quebrar gelo que comprou a Irma Karnes, continua a querer fazer-se passar por inocente, contando-nos essa história de que entrou no seu apartamento, pegou num ferro de quebrar gelo e que um homem se precipitou sobre si, pelo que lhe enterrou o ferro no peito.

- É a verdade.

Hamilton Burger olhou para o relógio.

- Se o Tribunal me permite, estou quase a acabar o interrogatório da testemunha. Contudo, aproxima-se a hora do encerramento e peço ao Tribunal que a sessão seja agora suspensa, comprometendo-me, desde já, a que o meu interrogatório amanhã de manhã não demorará mais do que uns escassos minutos.

- Está bem - disse o juiz Bolton.- Prosseguiremos amanhã às dez horas. A acusada, entretanto, continua sob custódia.

 

Perry Mason, Della Street e Paul Drake saíram do elevador.

- Vou ao meu escritório ver como estão as coisas. - disse Paul Drake. - Vou ter contigo daqui a bocado, Perry.

- Okay - retorquiu Mason. - Se os teus homens descobrirem qualquer coisa importante, avisa.

Mason e Della Street seguiram pelo corredor fora, voltaram a esquina e pararam em frente da porta com o letreiro "PERRY MASON. PARTICULAR".

Perry meteu a chave à porta, abriu-a, entrou no seu gabinete particular, deitou o chapéu para cima de uma cadeira e disse:

- Bem, vá lá uma pessoa adivinhar! Qual é a sua opinião a respeito da rapariga, Della?

- Acho que ela está a portar-se bem.

- O juiz Bolton parecia um falcão a observá-la.

- Também reparei nisso. Observava os mínimos gestos dela, e estava inclinado para a frente.

- O que é um bom sinal - comentou Mason. - Se já tivesse decidido considerá-la culpada, deixar-se-ia ficar ali sentado, com uma impassibilidade judicial, esperando que ela acabasse o depoimento e, a seguir, declararia que, como havia provas suficientes para indicar que fora cometido um assassínio e existiam razões suficientes para considerar a acusada culpada, citá-la-ia a comparecer perante um júri.

"Aquela confusão com os ferros de quebrar gelo veio trazer uma nova orientação ao caso: ele tem de considerar Mildred Crest culpada de um assassínio premeditado e a sangue frio, se acreditar nas coisas que a Acusação diz que ela fez."

- Refere-se à compra daqueles ferros de quebrar gelo? - perguntou Della Street.

Mason fez que sim com a cabeça.

- Tenho a impressão de que o juiz Bolton me acreditou - comentou Della Street.

- Também me parece. Bem, vou informar a Gertie de que já voltámos do tribunal.

Mason pegou no auscultador e, quando ouviu do outro lado da linha o dique do P. B. X., disse:

- Já chegámos do tribunal, Gertie. Antes de se ir embora deixe as linhas ligadas de maneira a que as chamadas sejam atendidas no telefone de Della Street. Estamos à espera...

A voz de Gertie interrompeu-o. Estava tão excitada que quase não podia falar.

- Um momento, por favor... Espere só um bocadinho...-'desligou o telefone.

Mason voltou-se para Della Street e declarou:

- Houve qualquer coisa que fez perder a cabeça à Gertie.

Gertie, a sonhadora incorrigível, irrompeu pelo gabinete particular dentro, de olhos arregalados.

- Ele está ali, Mr. Mason.

- Quem? -perguntou Mason,

- Não me quis dizer o nome. Tem um ar muito distinto, com um cabelo negro e ondulado que lhe emoldura a testa alta e nobre. Tem feições delicadas e...

- De que diabo está você a falar? - interrompeu-a Mason.

- O homem do caso - retorquiu ela, em voz abafada - Forrester Baylor.

- O demónio! - exclamou Mason.

- Não me interessa o que se diz por aí, Mr. Mason.

Sei que ele a amava. Viveu anos durante os últimos dias. As rugas do sofrimento dão uma expressão...

- Desça das nuvens - atalhou Mason bruscamente. - Mande-o entrar, Gertie, e não vá para casa. Fique junto do P.B.X. Se alguns jornalistas telefonarem, minta-lhes descaradamente.

Gertie deu meia volta, num torvelinho de saias que revelou momentaneamente umas pernas bem torneadas.

- Bem - disse Della Street, depois de Gertie se retirar - o enredo complica-se.

Daí a momentos, Gertie estava de volta.

- Mr. Mason, Mr. Baylor- anunciou ela, em voz velada.

O homem que avançou lentamente de trás de Gertie era alto, delgado, e apresentava o aspecto de quem não dormia há uma semana. Os olhos escuros estavam baços, embora o rosto demonstrasse distinção e carácter.

- Muito prazer, Mr. Mason - disse ele, em voz baixa, enquanto os seus dedos compridos e fortes apertavam a mão do advogado.

- A minha secretária particular, Miss Street - apresentou Mason.

Forrester Baylor inclinou a cabeça, cumprimentando-a.

- Queira sentar-se- convidou Mason. - Temos de esclarecer um certo número de coisas. Quem lhe disse que cá viesse?

- Ninguém.

- Quem tem conhecimento da sua vinda aqui?

- Ninguém.

- E seu pai?

Forrester Baylor sacudiu a cabeça.

- Meu pai proibiu-me de sair de Lansing.

- E a sua irmã?

- Kitty é uma excelente rapariga. Ajudar-me-ia de bom grado, mas não quero que ninguém saiba que me encontro aqui.

- Onde está hospedado? - perguntou Mason. - Em que hotel se registou?

- Ainda não me registei em lado nenhum. Deixei a mala no aeroporto. Depois tomei um táxi para a estação de caminho-de-ferro e, daí, tomei outro para aqui. Não queria que me seguissem.

- Viaja sob o seu próprio nome?

- Não, sob um nome suposto, e vi-me aflito para iludir os jornalistas de Lansing.

- O que pretende?

- Pretendo contar-lhe o que descobri.

- O que é que descobriu?

- Que meu pai, certamente animado das melhores intenções, foi quem teve a culpa de Fern se vir embora. Arranjou as coisas, na sombra, de maneira a tornar-lhe a vida insuportável dentro do emprego. Pretendo também dizer-lhe que Fern era uma rapariga decente e honesta. Não estava grávida.

- Como sabe?

- Se estivesse grávida, ter-mo-ia dito. E não mo disse. Ela... não era desse género.

Mason observou detidamente o homem.

- Sente-se, Mr. Baylor. Ponha-se à vontade. Infelizmente, é fácil sermos enganados pelas mulheres.

- Mas Fern Driscoll não me enganou. Agora é que... vejo o muito que a amava.

- Já é tarde de mais.

- Mr. Mason, peço-lhe que chame meu pai a prestar declarações.

- Porquê?

- Quero que se esclareçam umas coisas. Foi ele quem lhe deu os quatro mil dólares para sair de Lansing.

- Como é que sabe?

- Sei, porque não fui eu que lhe dei o dinheiro. Sei, porque me preparava para a pedir em casamento, e meu pai soube-o. Meu pai antipatizava com Fern, não como pessoa mas por causa de a sua posição social ser inferior à nossa. Era uma rapariga que trabalhava para ganhar a vida, uma secretária, e meu pai queria que eu casasse com uma herdeira.

"Meu pai fez-se a partir do nada. Teve de trabalhar muito para conseguir obter tudo o que possui. Chegou a conhecer a pobreza. Já soube o que é ser desdenhado, agora só conhece snobs e vai a caminho de se tornar como eles.

"Eu tinha um certo interesse por Carla Addis.

É inteligente, de uma inteligência um tanto artificial. É o produto sofisticado de uma fortuna recente. Concordo que tem um certo encanto e que seria fácil deixar-me prender. Havia alturas em que não sabia o que realmente queria. Havia uma grande confusão no meu espírito. Depois de Fern vir-se embora, compreendi subitamente o que ela para mim representava. Tentei encontrá-la. Procurei-a em vão. Pensei que ainda se encontrava em Lansing, escondida em qualquer parte. Foi então que meu pai me comunicou a sua morte e o que a autópsia revelara. Fiquei amarfanhado! Não posso acreditar em semelhante coisa. Não posso acreditar que Fern fosse capaz disso."

- As autópsias não mentem - retorquiu Mason. Baylor sacudiu a cabeça.

- Há coisas que não jogam certo. Agora, porém, já é demasiado tarde para fazer seja o que for. Quero, no entanto, que saiba que meu pai deve ter-lhe dado quatro mil dólares e Deus sabe o que lhe diria para fazer que ela se fosse embora.

- Não tem confiança no- seu pai?

- Admiro-o. Gosto dele. Amo-o como filho mas, num caso destes, não confio nele.

- O que quer que eu faça?

- Quero que leve o meu pai ao banco das testemunhas. Quero que o obrigue a confessar que foi o responsável de Fern se ter ido embora.

- E o que é que isso adianta?

- Vai esclarecer uma série de coisas.

- Não adiantava nada à minha cliente - disse Mason. - No entanto, estou satisfeito por ter cá vindo. É pena não ter aparecido uns dias mais cedo. No que me diz respeito, desejo...

Interrompeu-se, ao ouvir a pancadinha em código de Paul Drake. Hesitou um momento e depois disse a Della Street:

- Abra a porta ao Paul.

Della abriu a porta.

- Mr. Drake - apresentou Mason. - Forrester Baylor.

O rosto de Paul Drake transformou-se imediatamente numa máscara imperscrutável e sorridente. Os seus olhos não deixavam transparecer qualquer emoção.

- Muito prazer, Mr. Baylor - disse ele, apertando a mão ao outro, com o ar de quem acaba de conhecer uma pessoa que, para ele, significa apenas uma cara nova e um nome novo.

- Sou Forrester Baylor, o filho de Harriman Baylor - informou o rapaz, visivelmente picado pela atitude despreocupada de Paul Drake.

- Oh, claro! - retorquiu Drake. Acenou com a cabeça na direcção de Perry Mason.- Trago-te novidades, Perry.

- Acerca de quê?

- Acerca dos quatro mil dólares.

- O que se passa?

- Vêm do "Midfield National Bank", de Midfield, Arkansas. O banco foi assaltado no dia dezoito por um adolescente magro e imberbe que esperou a sua vez na fila e estendeu o bilhete do costume para dentro do "guichet" do caixa. O bilhete dizia que entregasse quatro mil dólares, conservasse as mãos à vista, não carregasse no botão do alarme e esperasse cinco minutos antes de comunicar o que se passara. O caixa entregou-lhe quarenta notas de cem dólares. A princípio, julgou que se tratava de um rapaz, mas depois convenceu-se de que era uma rapariga vestida de homem. Não lhe ouviu a voz. A descrição corresponde à de Fern Driscoll.

Forrester Baylor cresceu para Drake.

- Está a mentir! - gritou ele. - Está a mentir!

Drake, com a facilidade adquirida com a longa prática, desviou o murro de Baylor para o lado.

Mason agarrou Baylor por detrás das costas e apertou-lhe os braços junto ao corpo.

- Calma! Calma! -aconselhou.

- É mentira! É uma mentira indecente. Fern Driscoll não era capaz de uma coisa dessas.

Mason obrigou Baylor a dar uma reviravolta e fê-lo cair no grande cadeirão que estava junto da sua secretária.

- Sente-se aí! - intimou, com uma voz cortante como um látego. - Controle as suas emoções e sirva-se dos miolos. Dê-nos uma ajuda. Quero saber tudo o que diz respeito a Fern Driscoll. Quero ver uma fotografia dela.

Baylor, um bocado atordoado, protestou:

- Não foi ela. Ela não era...

- Deixe-me ver a fotografia! - gritou-lhe Mason. Traz alguma consigo?

Quase automaticamente, Baylor meteu a mão ao bolso do casaco, puxou de uma carteira e abriu-a. O retrato sorridente de uma rapariga espreitava por detrás da moldura de celofane.

Mason deitou a mão à carteira.

- E também encontrámos o carro de Fern Driscoll - anunciou Drake.

- Onde? - inquiriu Mason.

- Despedaçado no fundo de uma ribanceira, entre Presoott e Phoenix.

- Estava alguém lá dentro?

- Não.

- Alguma bagagem?

- Não.

- Mais alguma coisa?

- Ao que parece, o carro despistou-se da estrada e caiu pela ribanceira abaixo. Não há sinais de ter havido feridos. A pessoa que ia ao volante, escapou-se, claro.

Os olhos de Mason assumiram uma expressão dura.

- Com que então o carro despistou-se e, enquanto ia a cair, a pessoa que ia ao volante não só se escapou como conseguiu tirar a bagagem.

Drake mostrou-lhe os dentes.

- Pelos vistos, as autoridades locais não pensaram nisso.

- A que horas foi assaltado o banco de Midfield? -perguntou Mason.

- Às dez e meia da manhã.

Mason arrancou a fotografia de Fern Driscoll de dentro da carteira de Forrester Baylor.

- Paul, manda tirar cópias desta fotografia. Põe cem homens a trabalhar. Quero que mandes uma cópia desta fotografia a todos os jornais e que publiquem a notícia do assalto ao banco de Midfield.

Forrester Baylor deu um salto da cadeira. Mason empurrou-o, obrigando-o a sentar-se outra vez.

- Qual é a tua ideia? - perguntou Drake?

- Não te preocupes com isso - retorquiu Mason. - Põe-te a andar e começa imediatamente a trabalhar antes que alguém te obrigue a parar. Investiga em todos os motéis a uma distância de três horas, para quem vá de carro, a leste e a norte de Midfield. Despacha-te! Mostra esta fotografia. Manda-a publicar nos jornais. Notifica o F. B. I.

- Com isso estás a ajudar a Acusação - protestou Drake.

Mason, que continuava a segurar Forrester Baylor para não o deixar levantar, virou-se um pouco na direcção de Paul Drake:

- Põe-te a mexer, se não queres que te despeça.

Forrester Baylor, estrebuchando para se pôr de pé, disse em voz baixa e grave:

- Hei-de matá-lo por causa disto, Mr. Mason, nem que isso seja a última acção da minha vida.

 

O juiz Bolton, empertigando-se na cadeira, olhou cá para baixo para a sala à cunha.

- O Tribunal viu os jornais da manhã - disse ele. - Peço à assistência que evite manifestar-se, seja de que maneira for.

A acusada estava presente, a Acusação e a Defesa também. A acusada encontrava-se no banco das testemunhas, a ser submetida a um contra-interrogatório por Hamilton Burger.

- Um momento! - disse Hamilton Burger. - Cheguei à conclusão de que não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

- Nada mais - disse Mason.

- Muito bem, Mr. Mason, queira chamar a sua testemunha seguinte- redarguiu o juiz Bolton.

- A minha próxima testemunha será Mr. Harriman Baylor-informou Mason.

- O quê? - gritou Hamilton Burger, espantado.

- Mr. Harriman Baylor! - chamou Mason, elevando a voz. - Queira aproximar-se, Mr. Baylor, e tome o seu lugar, por favor.

Baylor levantou-se de um salto e disse:

- Eu nada sei a respeito deste caso. Só estou interessado nele porque...

- Foi chamado a testemunhar - interrompeu o juiz Bolton.- Queira aproximar-se e prestar juramento.

Hamilton Burger declarou:

- Se o Tribunal me permite, não concordo com a atitude de Mr. Mason que, para tentar livrar-se de dificuldades, quer envolver Mr. Baylor num assunto a respeito do qual ele não sabe nada. Posso acrescentar que interroguei pessoalmente Mr. Baylor, não descuidando qualquer pormenor, e estou convencido de que não sabe de nada que possa estar relacionado com este caso. Sei que ele está a par de certos factos da vida passada de Fern Driscoll, e pode ser que a Acusação queira trazer à luz esses factos quando se proceder ao julgamento no Supremo Tribunal. De momento, porém, para um julgamento prévio, não há nada que Mr. Baylor saiba que possa ter o mínimo interesse para a Defesa, e parece-me que Mr. Baylor não devia ser chamado a depor.

- O Procurador do Distrito devia saber - retorquiu o juiz Bolton - que a Defesa tem o direito de chamar quem quiser para prestar declarações. Faça favor de se aproximar, Mr. Baylor, e de tomar o seu lugar. O Sr. Procurador do Distrito poderá objectar a quaisquer perguntas com que não concordar.

Baylor aproximou-se com relutância.

- Levante a mão direita e preste juramento.

- Se o Tribunal me dá licença, devo dizer que Mr. Baylor teve um ataque de reumático no braço direito e, por isso, terá de levantar a mão esquerda.

- Muito bem. Levante a mão esquerda e preste juramento - disse o juiz Bolton.

- Um momento! - interveio Mason. - Se o Tribunal me dá licença, protesto contra o facto de o Procurador do Distrito estar a prestar testemunho neste caso.

O juiz Bolton olhou para Mason, surpreendido.

- O Procurador do Distrito não prestou qualquer testemunho, Mr. Mason.

- Peço desculpa, mas permito-me discordar. O Procurador do Distrito está a fazer declarações que são comprovativas na sua essência.

- O Procurador do Distrito disse que Miss Street cometeu o perjúrio - declarou o juiz Bolton. - O Tribunal teria chamado a atenção ao Procurador do Distrito, se se tivesse registado qualquer protesto nessa altura. Porém, o Tribunal acha que o Procurador do Distrito foi sincero e que o seu testemunho foi feito com a finalidade de impedir que uma mulher que trabalha para ganhar a vida fosse presa por acusação de perjúrio.

- Não me estou a referir a isso - disse Mason.- Estou a referir-me à declaração de Mr. Burger de que Mr. Baylor sofre de reumatismo, encontrando-se, portanto, incapacitado de levantar a mão direita.

- O quê? - protestou Hamilton Burger, irritado.- Eu não declarei nada, iimitei-me a explicar os factos ao Tribunal.

- E como sabe que esses factos correspondem à verdade?

- Porque Mr. Baylor... Bem, Mr. Baylor esteve no meu escritório. Tive com ele uma conversa pormenorizada. Contou-me o seu padecimento.

Mason mostrou os dentes num sorriso.

- Ao que parece, senhor Doutor Juiz, o Procurador do Distrito está não só a prestar declarações perante o Tribunal, como também a prestar declarações baseadas em meras conversas.

- Onde quer chegar? - perguntou o juiz Bolton.

- Segundo a lei - retorquiu Mason - a testemunha é obrigada a levantar a mão direita para prestar juramento. Se esta testemunha não pode levantar a mão direita, peço para ser informado do motivo que a impede de o fazer.

O juiz Bolton olhou para Harriman Baylor.

- Não pode levantar a mão direita por sofrer de reumático nas articulações do braço direito?

Houve um momento de silêncio.

- Ou então-disse Mason - Mr. Baylor não pode levantar a mão direita devido a uma infecção que tem no braço direito, provocada pela picada de um ferro de quebrar gelo.

- Um ferro de quebrar gelo! - exclamou o juiz Bolton.

- Um ferro de quebrar gelo - repetiu Mason, com firmeza. - Se o Tribunal observar as fotografias de Mr. Baylor publicadas nos jornais aquando da sua chegada a esta cidade, o Tribunal reparará que ele vem a descer as escadas de um avião, acenando com a mão direita num gesto de saudação, talvez para o fotógrafo, e a mala de viagem na mão esquerda. Nessa altura, conforme noticiavam os jornais, Mr. Baylor sofria de reumático. Caso isso fosse verdade, o reumático devia localizar-se do lado esquerdo. A sua mão direita e braço direito não foram afectados.

"E agora gostava de saber a que foi devida esta súbita imobilidade no braço direito. Gostaria que Mr. Baylor fosse examinado por um médico para se ver se tem ou não reumático no braço direito, e gostaria também de saber o nome dos médicos que consultou desde que chegou a esta cidade, a fim de os podermos chamar a depor, e verificarmos se a imobilidade do seu braço direito é ou não devida à picada de um ferro de quebrar gelo.

- Essa acusação é muito grave, Mr. Mason - disse o juiz Bolton. - Espero que tenha bases para a fundamentar.

- Não é mais grave do que a declaração feita pelo Procurador do Distrito de que Mr. Baylor não podia erguer a mão direita por causa do reumático - redarguiu Mason. - Se quer chamar a atenção a alguém, é a ele que deve ser chamada.

O juiz Bolton pôs-se muito vermelho.

- Mr. Mason, essa observação mostra desrespeito pelo Tribunal.

- Não foi essa a minha intenção - retorquiu Mason.- Senti apenas um ressentimento natural, por ver que todas as minhas declarações sobre o motivo da imobilidade do braço de Mr. Baylor foram aceites com a maior dúvida, ao passo que ao Procurador do Distrito foi permitido transmitir ao Tribunal a sua certeza, uma certeza que, como veio a verificar-se, era unicamente baseada em suposições, sem que, por isso, lhe fosse chamada a atenção. Desejava sugerir, com o devido respeito, que o Tribunal interrogasse Mr. Baylor e lhe perguntasse o nome dos médicos que o têm tratado.

- Não é preciso - disse Baylor, em voz baixa.

Lamento que o caso tenha chegado a este extremo. Levei o fingimento longe de mais. A minha consciência acusa-me e agora estou completamente perdido. Quero fazer uma declaração ao Tribunal. Mr. Mason tem razão. O reumático está localizado no braço esquerdo. O padecimento do meu braço direito é devido à picada de um ferro de quebrar gelo que, a princípio, era dolorosa, mas que está agora gravemente infectada.

O juiz Bolton bateu com força com o martelo na mesa.

- Silêncio! - gritou ele. - Silêncio, ou mando evacuar a sala. A assistência deve abster-se de se manifestar. Estamos numa sala de tribunal. E agora silêncio.

Depois de o juiz Bolton ter restabelecido mais ou menos a ordem, olhou para Baylor, franzindo o sobrolho.

- Tenho a impressão de que há qualquer coisa que não compreendo - disse ele.

- É muito simples - redarguiu Baylor. - Fui ao apartamento de Mildred Crest, porque queria reaver umas cartas que meu filho escrevera a Fern Driscoll e que poderiam causar sérios embaraços à minha família e à minha posição social. Sabia que essas cartas estavam em riscos de se tornar do domínio público, pela intervenção de uma revista de escândalos. A acusada não se encontrava em casa quando cheguei. Entrei, servindo-me de uma chave que obtivera do porteiro, em troca do dinheiro que lhe dei. Desatarrachei as lâmpadas, para não ser surpreendido e reconhecido. Andava à procura das cartas, servindo-me de uma lanterna eléctrica. Foi então que a acusada apareceu.

"Percebi, de repente, a situação em que me encontrava. Achei que a única coisa a fazer era apagar a lanterna e passar a correr pela rapariga que estava a bloquear a porta. Não quis magoá-la e, por isso, baixei o ombro direito e arremeti. O que não reparei foi que ela tinha um ferro de quebrar gelo na mão. Com a força do meu embate, o ferro cravou-se-me no ombro e saltou-lhe da mão. Corri pelas escadas abaixo e, ao chegar ao último patamar, deparou-se-me Carl Harrod. Pelos vistos, Harrod tinha o apartamento sob vigilância. Reconheceu-me, voltou-se e seguiu-me.

"Vi então que ia de mal a pior. Harrod trazia uma máquina fotográfica e disparou-a quando eu ia a correr para o meu carro. A revista a que Harrod tencionava vender a história a respeito do romance de amor de meu filho pagaria muito mais por ela, se me envolvesse também a mim, entrando clandestinamente em casa alheia. Compreendi que estava perdido.

"Pensando que talvez tivesse oportunidade de comprar as cartas de meu filho, trazia comigo uma grande quantia de dinheiro. Tirei do ombro o ferro de quebrar gelo e atirei-o para a sarjeta antes de entrar em acordo com Harrod. Dei-lhe dez mil dólares em notas, para ele me ajudar a resolver o assunto. Era a única solução. Carl Harrod concordou em ir para casa e telefonar a Perry Mason. Devia dizer-lhe que a acusada o picara a ele com um ferro de quebrar gelo. Como tinha a certeza de que a acusada me não reconhecera, e como sabíamos que ela havia de pôr-se em contacto com Mr. Mason e informá-lo de que agredira um homem, imaginámos que, quando Harrod telefonasse a Mason, este acreditá-lo-ia e eu conseguia ficar de fora do caso. Decidi ir para o hotel e não atender telefonemas nem visitas. Harrod, porém, assim que se tivesse desempenhado da sua missão, devia comunicar comigo, sob o nome de Howley. Se Harrod conseguisse realmente que Mr. Mason acreditasse que fora ele o agredido, receberia mais dez mil dólares. Compreendi que iria exigir-me dinheiro por mais vezes, mas, nessa altura, não tinha outro caminho a seguir. Foi a única vez na minha vida que cedi a chantagem. Mas, desta vez, ameaçava-me uma publicidade escandalosa. Não tinha por onde escolher. Tudo seria preferível a isso. Nunca esperámos que Perry Mason quisesse mandar chamar um médico para examinar Harrod. Sabíamos que a sua cliente havia de contar-Lhe que passara por ela um homem a correr e que ela o espetara com um ferro de quebrar gelo. Julguei que Harrod dissesse que o ferro o atingira no ombro, mas Harrod tentou colocar-se numa situação mais favorável e alegou que o ferro se lhe espetara no peito. Desse modo, poderia trocar o seu silêncio pelas cartas que pretendíamos. Harrod recebera de mim dez mil dólares, em dez notas de mil dólares. Sabia que eu lhe pagaria mais dez mil dólares e, se conseguisse obter as cartas, ainda lhe daria muito mais. Harrod sabia que Mr. Mason procuraria defender a todo o custo a cliente e, por isso, não lhe convinha participar o caso à Polícia. Harrod estava radiante. Assegurou-me que havia de trabalhar Mr. Mason de tal maneira que Mason, segundo me disse, acabaria por vir pedir-nos batatinhas. Disse ainda que já lidara com muitos tipos do género de Mason, que Mason nunca faria nada por si, mas era capaz de tudo para defender os interesses de um cliente. Harrod afirmou que ia obrigar Mr. Mason a dar-nos as Cartas que queríamos. É claro que Harrod esperava ser recompensado por estes serviços, e sabia que eu lhe pagaria muito mais que a revista. Lamento muito, senhor Doutor Juiz. Envolvi-me num esquema de mentira, e agora fui apanhado nas malhas da minha própria rede."

O juiz Bolton olhou primeiro para o procurador do Distrito desapontado e macambúzio, e depois para Perry Mason.

- Se isso é verdade - perguntou o juiz Bolton - quem provocou o ferimento que causou a morte de Carl Harrod?

- Só havia uma pessoa, senhor Doutor Juiz - retorquiu Mason, com voz calma e segura, - que o poderia ter feito. O que Carl Harrod não tinha previsto é que eu o mandasse examinar por um médico.

"Quando falei com ele, Harrod não tinha qualquer ferimento resultante de uma picada de um ferro de quebrar gelo, ou de qualquer outra natureza. Mas ficou a saber, depois da nossa conversa, que eu ia chamar um médico. Por isso, Carl Harrod seguiu o único caminho possível. Disse à rapariga que vivia com ele que lhe desse uma picada com um ferro de quebrar gelo, não muito funda, mas o suficiente para deixar uma marca para mostrar ao médico que eu mandaria lá a casa para o examinar. Nellie Elliston viu uma boa oportunidade para ficar com a importante quantia que Carl Harrod acabava de receber de Mr. Baylor. Harrod descobriu o peito. Mandou Nellie enterrar-lhe o ferro na Carne uma polegada ou duas. Ela foi à cozinha, tirou um ferro de quebrar gelo da gaveta dos talheres, voltou para junto de Harrod, debruçou-se sobre ele, sorriu-lhe e cravou-lhe o ferro no coração. Depois apoderou-se do dinheiro, inventou uma cena da morte e uma declaração fictícia e, como o Procurador do Distrito estava ansioso por comprometer-me, nem sequer a submeteu a um interrogatório rigoroso, como seria adequado nessas circunstâncias.

O juiz Bolton olhou em torno da sala e, seguidamente, virou-se para Perry Mason.

- Como sabe tudo isso, Mr. Mason?

- Ao ver que Irma Karnes identificara a acusada, não por causa da compra na "Arcada das Novidades", mas por sugestão mental e pela imagem que, pelos métodos usados pela Polícia, lhe ficara firmemente gravada no espírito, deduzi que só poderia ter acontecido uma coisa. Depois, quando, de repente, me lembrei da fotografia da chegada de Mr. Baylor, a acenar com a mão direita, e me lembrei também que, nessa mesma tarde, fora obrigado a apertar-me a mão com a mão esquerda, alegando ter reumático no braço direito, a minha dedução ficou comprovada.

O juiz Bolton disse:

- O Tribunal notou que, quando Mr. Mason se referiu ao verdadeiro motivo que impedia Mr. Baylor de levantar a mão direita, Miss Elliston saiu precipitadamente da sala. O Tribunal sugere ao Procurador do Distrito que ordene aos guardas que tragam Nellie Elliston novamente para a sala, a fim de prestar declarações. O Tribunal quer também frisar que desaprova as tentativas de forçar a memória de uma testemunha que está a fazer uma identificação, para que ela se não desdiga ao ser submetida ao contra-interrogatório. O Tribunal tem a consciência de que muitos dos lapsos da justiça são devidos a erros de identificação e sugere, portanto, que, ao fazer-se uma identificação, se apresente à testemunha uma fila de pessoas, da qual ela escolherá a que conhece.

- Agora - disse Perry Mason, - para que o arquivo do caso fique completamente em ordem, quero chamar a minha última testemunha, Fern Driscoll.

- Quem? - perguntou o juiz Bolton abruptamente. E depois acrescentou, em tom irado: - É algum truque seu, Mr. Mason?

- Não se trata de nenhum truque - redarguiu Mason.- Desejo chamar Fern Driscoll a prestar declarações. Está na sala de espera das testemunhas. Se o oficial de diligências quiser fazer o favor de a chamar...

- Silêncio!-gritou o juiz Bolton. - Silêncio na sala. Se a assistência não se comportar devidamente, mando evacuar a sala. - A seguir voltou-se para Mason: - Espero, Mr. Mason - disse ele com voz severa - que não seja sua intenção produzir um efeito dramático sobre o tribunal. O Tribunal considerará um abuso do processo legal se, depois de ter chamado Miss Fern Driscoll para depor, não conseguir apresentá-la.

- Ela aí está - replicou Mason.

De repente, a assistência ficou mergulhada num silêncio tenso, quando uma rapariga alta, de olhos escuros e cabelos castanhos, se encaminhou lentamente para o banco das testemunhas, ergueu a mão e prestou juramento.

- Como se chama? - perguntou o juiz Bolton.

- Fern Driscoll - respondeu ela.

O juiz Bolton olhou para Perry Mason um tanto desconfiado e disse:

- Continue.

- Quer fazer o favor de nos dizer o que aconteceu depois de sair do seu emprego na firma "Baylor Manufacturing & Development Company", em Lansing, Michigan?- inquiriu Mason.

- Saí de lá por circunstâncias bastante desanima-doras - disse ela. - Sentia que havia má vontade contra mim dentro da companhia. Vim-me embora no meu carro, dirigindo-me para oeste.

- Deu boleia a alguém? - perguntou Mason.

Fern Driscoll acenou afirmativamente com a cabeça.

- E então o que aconteceu?

- A rapariga a quem dei boleia contou-me uma história a seu respeito, queixando-se de que andava em maré de azar. Parece-me que ela tinha razão. Disse-me que cedera à insistência de um homem casado, que jurava amá-la e divorciar-se para casar com ela. Afinal era tudo mentira e, quando ela lhe disse que estava grávida, ele riu-se e abandonou-a. A rapariga perdera todas as amizades e não tinha dinheiro.

- Prossiga - disse Mason.

- Parece-me - continuou Fern Driscoll - que a rapariga tinha qualquer desarranjo mental. Estava desesperada. Eu levava algum dinheiro. Quando apanhou uma oportunidade, vibrou-me uma pancada na cabeça, apoderou-se da minha bolsa e bateu-me até eu perder os sentidos. Depois atirou-me para a estrada. Ao voltar a mim verifiquei que ela desaparecera, levando o meu carro, a minha mala de viagem e tudo o que me pertencia. Dei parte às autoridades, mas não se mostraram muito interessados. Pensei que o meu carro havia de ser recuperado, mais cedo ou mais tarde. Esperava até que não acontecesse nada de grave à rapariga que o roubara. Ela encontrava-se num estado de desequilíbrio nervoso. Imaginava que o mundo tinha obrigação de a sustentar a ela e ao filho que estava para lhe nascer. No estado de espírito em que se encontrava, não admira que houvesse assaltado um banco. Ninguém me prestou grande atenção, nem se fizeram esforços para recuperar as coisas que me pertenciam. Só depois de os jornais anunciarem que fora Fern Driscoll quem assaltara o banco, é que o F. B. I. se pôs em acção. Localizaram-me no espaço de uma hora. Escusado será dizer, que nada sabia a respeito do meu suposto assassinato, nem que esta senhora estava a ser julgada, nem que ela se apoderara da minha bolsa e da minha identidade.

- A acusada aqui presente foi a pessoa a quem deu boleia e que lhe roubou o carro? - perguntou Perry Mason.

- Não, de maneira nenhuma.

Mason voltou-se para o estupefacto Hamilton Burger e disse:

- Faça favor.

- Não... não tenho perguntas a fazer.

- O caso é meu, senhor Doutor Juiz - exclamou Mason, sorrindo.

- Deseja interrogar mais alguma testemunha? - perguntou o juiz Bolton a Hamilton Burger.

O procurador do Distrito limitou-se a abanar a cabeça.

- Fica levantada a acusação - disse o juiz Bolton. - Está terminada a sessão.

Fern Driscoll preparava-se para descer do estrado das testemunhas, mas parou de repente, com os olhos fixos no homem que se aproximava dela apressadamente.

- Forrie - disse ela, baixinho.

Forrester Baylor não perdeu tempo com conversas. Tomou-a nos braços, apertou-a a si, e não tentou esconder as lágrimas que lhe corriam pela cara abaixo.

- Querida! - exclamou ele, por fim. - Minha querida...!

Os repórteres estavam tão entretidos a fotografar a cena, que Mason e a sua cliente conseguiram sair do tribunal sem ser importunados.

 

Mason e Della Street entraram no escritório particular do advogado.

Della aproximou-se de Mason, pegou-lhe no braço e ele reparou que a rapariga estava a tremer.

- Chefe - disse ela. - Estou tão emocionada e tão... tão... Só me apetece chorar.

Mason deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Não faça cerimónia. Chore.

- O olhar dele... O rapaz amava-a, Chefe! Amava-a a sério! Quero dizer, ama-a A sério!

- Não devia tê-la deixado fugir - retorquiu Mason. - É um desses homens que têm o mau costume de tomar tudo como certo.

Della olhou para ele, estudando-o demoradamente. Depois perguntou:

- Como soube que ela estava viva?

- Quando as pessoas começam a fazer coisas que estão inteira e definitivamente em contradição com a sua maneira de ser, vê-se que há qualquer coisa errada seja onde for.

- O Harriman Baylor era capaz de dar dinheiro a Carl Harrod e sustentar o jogo dele, se lhe trouxesse as cartas que o filho escrevera a Fern Driscoll.

- O Harrod, porém, não apanhou essas cartas. Era eu quem as tinha. Já se vê que Harrod estava atado de pés e mãos. Não podia vender a história sem ter provas. Não podia arranjar provas sem apanhar as cartas, e não era capaz de apanhar as cartas. Mas, de repente, Harriman Baylor deixou-se atemorizar por Carl Harrod.

À medida que íamos obtendo gradualmente informações sobre o carácter de Fern Driscoll, percebíamos que tudo o que se encontrava relacionado com a história da rapariga que pedia boleias não fazia sentido. Fern não era rapariga para se encontrar no segundo mês de gravidez, não era pessoa para tentar provocar a destruição do carro de Mildred Crest. Os pormenores não se encaixavam uns nos outros. Quando tomei conhecimento de que o dinheiro que estava na mala de Fern Driscoll provinha do assalto a um banco e que o carro de Fern Driscoll se encontrara despedaçado num sítio fora da estrada para onde tinha sido propositadamente conduzido, não foi preciso dar muito trabalho aos miolos para chegar à conclusão de que a mulher que fizera com que o carro de Mildred Crest se despistasse não era Fern Driscoll. Por isso, achei que, se fôssemos capazes de transmitir pela rádio que Fern Driscoll era procurada por assalto a um banco, era possível que se tomassem medidas urgentes para a localizar. Felizmente que o conseguimos. O correspondente de Paul Drake ainda foi a tempo de meter Fern Driscoll no avião da meia-noite, dando uma solução feliz a um caso que, de outro modo, seria bastante intrincado. Depois, ao colocarmos Harriman Baylor no banco das testemunhas, esclarecemos todo o resto.

- Mas nunca o teria chamado a depor se não soubesse...

- Devia tê-lo sabido muito mais cedo do que soube - retorquiu Mason, irritado. - Cometi o erro de encarar as coisas pelo ponto de vista da Polícia, em vez de as encarar segundo um ponto de vista objectivo. Sabia que Mildred Crest não podia de maneira nenhuma ter-lhe cravado o ferro de quebrar gelo que foi apresentado no tribunal. Por isso, ou a Polícia confundira os ferros, ou era Nellie Elliston a única pessoa que teria possibilidade de matar Carl Harrod.

- E o que irá acontecer a Mildred Crest? - perguntou Della Street.

- Mildred Crest vai ter um bom emprego na "Baylor Manufacturing & Development Company", e Mr. Harriman providenciará para que ela seja promovida tão depressa quanto a sua competência o justifique.

Della Street olhou para ele com olhos húmidos.

- Curve-se um bocadinho, por favor - pediu ela - para eu o poder beijar na testa.

Mason cravou nela um olhar cheio de ternura.

- Tenho a impressão, Della, de que não sou capaz de me curvar tanto. Importa-se que seja um pouco mais abaixo?

- Absolutamente nada.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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