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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A RAPOSA / Frederick Forsyth
A RAPOSA / Frederick Forsyth

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Adrian Weston, ex-chefe do MI6, Serviço de Informações Secretas britânico, é acordado a meio da noite por um telefonema com uma notícia assustadora: os sistemas de informação da NSA, a Agência de Segurança Nacional norte-americana, foram violados por um inimigo desconhecido, imediatamente batizado como a "Raposa".

 

 

 

 

CAPÍTULO UM
Ninguém os viu. Ninguém os ouviu. E era assim que devia ser. Vestidos de preto e sem que dessem por eles, os soldados das Forças Especiais deslizaram através da noite escura como breu em direção à casa que tinham em mira.

O centro da maior parte das vilas e cidades tem sempre alguma luminosidade, por frouxa que seja, mesmo na noite mais cerrada, mas aqui tratava-se da periferia de uma pequena cidade inglesa de província e toda a iluminação pública fora desligada à uma da manhã. Estava-se na hora mais negra - duas da madrugada. Uma raposa solitária viu-os passar, mas o instinto ordenou-lhe que não se atravessasse no caminho de caçadores como ela. Nenhuma luz doméstica rompia a obscuridade.

Depararam com apenas dois indivíduos isolados, ambos a pé, ambos embriagados depois de uma noite de diversão com amigos. Os soldados desapareceram no meio de jardins e arbustos, preto a fundir-se com preto, até os caminhantes passarem, cambaleantes, por eles em direção a casa.

Sabiam exatamente onde estavam, depois de tantas horas passadas a estudar ao pormenor as ruas e a casa que tinham como alvo. As fotografias tinham sido tiradas por carros em andamento e por drones, e, depois de ampliadas e fixadas à parede da sala de reuniões em Stirling Lines, o quartel-general do SAS nas imediações de Hereford, foram memorizadas até à última pedra e borda de passeio. Os soldados de botas de sola mole não tropeçaram, nem deram passos em falso.

Eram uma dúzia, incluindo dois americanos, integrados por insistência da equipa dos Estados Unidos que se tinha instalado na respetiva embaixada em Londres. E havia dois do SRR britânico, o Regimento Especial de Reconhecimento, uma unidade ainda mais clandestina do que o SAS e o SBS - o Serviço Aéreo Especial e o Serviço Especial de Embarcações, respetivamente. As autoridades tinham decidido usar o SAS, conhecido simplesmente como "o Regimento".

Um dos dois elementos do SRR era uma mulher. Os americanos julgavam que tal se destinava a estabelecer igualdade de género; era o oposto: a vigilância revelara que um dos residentes da casa-alvo era do sexo feminino e até os mais inflexíveis pelotões britânicos tentam sempre manter uma certa cortesia. O propósito da presença do SRR, por vezes designado no meio como "Os Ladrões de Sua Majestade", era pôr em prática um dos seus muitos conjuntos de competências: a entrada furtiva.

A missão consistia não apenas em entrar e assegurar o controlo da casa-alvo e seus ocupantes, mas garantir que não eram vistos por nenhum observador no seu interior e, ainda, que ninguém escapava. Aproximaram-se de todos os ângulos, aparecendo simultaneamente em redor da cerca do jardim - à frente, atrás e dos lados -, atravessaram o pano verde e rodearam a casa, ainda invisíveis e inaudíveis por parte de qualquer vizinho ou residente.

Ninguém ouviu o ligeiro chiar do corta-vidros diamante à medida que este descrevia um círculo perfeito numa janela da cozinha, nem o estalido abafado quando o disco foi removido com uma ventosa. Uma mão enluvada enfiou-se no buraco e destrancou a janela. Um vulto negro subiu pelo parapeito até ao lava-loiça, saltou silenciosamente para o chão e abriu a porta das traseiras. A equipa deslizou para dentro da casa.

Embora todos tivessem estudado a planta da casa, registada na conservatória aquando da construção, não deixaram de usar óculos de visão noturna, para o caso de haver obstáculos instalados pelo proprietário, ou até mesmo armadilhas. Começaram pelo rés do chão, indo de divisão em divisão para confirmar que não havia sentinelas, nem pessoas a dormir, fios detonadores ou alarmes silenciosos.

Ao fim de dez minutos, o chefe de equipa estava satisfeito e, com um aceno de cabeça, conduziu uma coluna de cinco elementos pela estreita escadaria do que não passava de uma vulgar vivenda de quatro assoalhadas. Os dois americanos, cada vez mais baralhados, tinham permanecido no andar de baixo. Não era desta forma que teriam controlado um antro de terroristas extremamente perigoso: no país deles, uma violação de domicílio deste género já teria implicado, por esta altura, o uso de vários carregadores de munições. Claramente, aqueles bifes eram bastante esquisitos.

Os que tinham ficado no andar de baixo ouviram exclamações sobressaltadas vindas do andar de cima, que rapidamente se extinguiram. Passados mais dez minutos de instruções sussurradas, o chefe de equipa fez o seu primeiro relato; não usou Internet, nem telemóvel - passíveis de interceção -, mas sim um radiotransmissor encriptado, à moda antiga.

- Alvo controlado - disse baixinho. - Residentes, quatro. Aguardo o nascer do Sol.

Quem o escutou sabia o que iria acontecer a seguir: tudo fora planeado e ensaiado.

Os dois americanos, ambos Seals da Marinha, também entraram em contacto com a sua embaixada, que ficava na margem sul do Tamisa, em Londres.

O motivo para a tomada "musculada" do edifício era simples. A despeito de uma semana de vigilância, ainda era possível, atendendo à extensão dos danos que tinham sido infligidos às defesas de todo o mundo ocidental a partir daquela casa suburbana de aspeto inofensivo, que ela albergasse homens armados; podia haver lá terroristas, fanáticos ou mercenários escondidos atrás da inocente fachada. Tinha sido por isso que o Regimento fora informado de que não havia alternativa a uma operação do tipo "no pior dos cenários".

Porém, passada uma hora, o chefe de equipa voltou a entrar em contacto.

- Vocês não vão acreditar no que encontrámos aqui.

Na manhã de 3 de abril de 2019, ainda bem cedo, tocou o telefone num quarto modesto nas águas-furtadas do Clube das Forças Especiais, que ficava numa casa anónima em Knightsbridge, um bairro rico do West End londrino. Ao terceiro toque, a luz da cabeceira acendeu-se. A pessoa que ali dormia estava agora desperta e perfeitamente operacional - o resultado de uma vida inteira de prática. Rodou os pés para o chão e olhou para o painel iluminado antes de levar o aparelho ao ouvido. Também olhou de relance para o relógio ao lado do candeeiro. Quatro da manhã. Mas esta mulher nunca dormia?

- Sim, senhora primeira-ministra.

Era evidente que a pessoa do outro lado nem sequer tinha ido à cama.

- Adrian, desculpe incomodá-lo a esta hora. Consegue vir ter comigo às nove? Tenho de receber os norte-americanos. Desconfio que eles vão estar em pé de guerra e ficar-lhe-ia grata se pudesse contar com a sua avaliação e conselho. Eles chegam às dez.

Sempre aquela cortesia à moda antiga. Ela estava a dar-lhe uma ordem, não a fazer um pedido. Por amizade, tratá-lo-ia pelo primeiro nome; ele dirigir-se-ia a ela sempre pelo título.

- Com certeza, senhora primeira-ministra.

Nada mais havia a dizer, por isso a ligação terminou. Sir Adrian Weston ergueu-se e encaminhou-se para a casa de banho, pequena mas suficiente, para tomar duche e barbear-se. Eram quatro e meia quando desceu, passando pelos retratos com molduras pretas de todos os agentes que tinham partido para a Europa ocupada pelos nazis há tanto tempo e que nunca voltaram, acenou com a cabeça ao guarda-noturno atrás do balcão da receção e abriu ele próprio a porta da rua. Conhecia um hotel em Sloane Street que tinha um café aberto toda a noite.

Pouco antes das nove de uma manhã clara de outono, no dia 11 de setembro de 2001, um birreator de passageiros norte-americano oriundo de Boston e com destino a Los Angeles, o American Airlines 11, mudou bruscamente de direção no céu sobre Manhattan e foi embater na torre norte do World Trade Center. Fora desviado em pleno voo por cinco árabes ao serviço do grupo terrorista Al-Qaeda. O homem aos comandos era de nacionalidade egípcia. Era apoiado por quatro sauditas que, armados com x-atos, tinham subjugado a tripulação de cabina, após o que o levaram em passo acelerado para o cockpit.

Minutos depois, outro avião de passageiros, a voar demasiado baixo, apareceu sobre Nova Iorque. Era o United Airlines 175, igualmente oriundo de Boston e com destino a Los Angeles, e igualmente sequestrado por cinco terroristas da Al-Qaeda.

A América e, escassos minutos volvidos, o mundo inteiro assistiram, incrédulos, como aquilo que se pensava ter sido um trágico acidente acabou por se revelar algo completamente diferente. O segundo Boeing 767 voou propositadamente de encontro à torre sul do World Trade Center. Ambos os arranha-céus sofreram danos terminais na sua estrutura central. Ajudados pelo combustível dos tanques repletos dos aviões, incêndios ferozes deflagraram e começaram a derreter as vigas de aço que asseguravam a rigidez dos edifícios. Um minuto antes das dez da manhã, a torre Sul desabou e tornou-se uma montanha de escombros incandescentes, seguida meia hora depois pela torre Norte.

Às nove e trinta e sete da manhã, o voo 77 da American Airlines, que partira do aeroporto internacional Washington Dulles e, com os tanques cheios, seguia igualmente em direção a Los Angeles, despenhou-se contra o Pentágono, do lado do Potomac que fica no estado da Virgínia. Também fora sequestrado por cinco árabes.

O quarto avião de passageiros, o voo 93 da United Airlines, que voava de Newark para São Francisco e fora também ele desviado em pleno voo, foi recapturado após uma revolta de passageiros, embora tarde demais para salvar a aeronave, que, com um pirata do ar fanático ainda aos comandos, se despenhou em terrenos agrícolas na Pensilvânia.

Antes do pôr do sol desse dia, agora conhecido simplesmente como 11 de Setembro, um pouco menos de três mil pessoas, tanto americanas quanto de outras nacionalidades, estavam mortas. O número total incluía a tripulação e os passageiros dos quatro aviões, quase todos aqueles que estavam nos dois arranha-céus do World Trade Center e cento e vinte e cinco no Pentágono. Além dos dezanove terroristas que se suicidaram. Um único dia deixou os Estados Unidos da América não apenas horrorizados mas também traumatizados. E assim permanecem.

Quando um governo norte-americano é ferido com tal gravidade, faz duas coisas: exige vingança e concretiza-a, e gasta dinheiro.

Durante os oito anos da presidência de George W. Bush e os primeiros quatro da de Barack Obama, os Estados Unidos gastaram um bilião de dólares a construir a maior, mais pesada, mais difundida e, possivelmente, mais ineficaz estrutura de segurança nacional que o mundo viu.

Se as nove agências internas e as sete agências externas dos serviços de informação norte-americanos tivessem feito o seu trabalho em 2001, o 11 de Setembro nunca teria acontecido. Havia sinais, pistas, relatórios, denúncias, indicações e singularidades que foram observadas, registadas, arquivadas e ignoradas.

O que se seguiu ao 11 de Setembro foi uma explosão de despesa literalmente de cortar a respiração. Alguma coisa tinha de ser feita e o grande público norte-americano tinha de a ver a ser feita, e foi isso mesmo que aconteceu. Uma série de novas agências foi criada para duplicar e replicar o trabalho das que já existiam. Brotaram milhares de novos arranha-céus, cidades inteiras deles, a maioria detidos e geridos por empresas contratadas no sector privado e ávidas daquele poço de dólares sem fundo.

A despesa governamental com uma única palavra, "segurança", que ganhou carácter pandémico, detonou como uma bomba nuclear no atol de Bikini, sendo paga sem queixumes pelo sempre esperançoso, sempre persuadível e sempre crédulo contribuinte norte-americano. A atividade deu origem a uma explosão de relatórios, em papel e online, tão vasta que apenas dez por cento deles foram lidos. Simplesmente não há tempo, nem tão-pouco recursos humanos, a despeito da enorme folha salarial, para conseguir tratar toda a informação. E aconteceu outra coisa nesses doze anos: o computador e o seu arquivo, a base de dados, tornaram-se senhores do mundo.

Quando o inglês em busca de um pequeno-almoço temporão em Sloane Street era um jovem oficial nos paraquedistas, então parte do MI6, os registos eram criados em papel e guardados em papel. Levava tempo, e guardar os arquivos ocupava muito espaço, mas a penetração, para cópia ou remoção e furto de arquivos secretos - isto é, espionagem -, era difícil e a quantidade removível num dado momento ou de um dado lugar era modesta.

Durante a Guerra Fria, que supostamente terminara com o reformista soviético Mikhail Gorbachev em 1991, os documentos que os grandes espiões como Oleg Penkovski conseguiam surripiar estavam limitados à quantidade que eles fossem capazes de carregar consigo próprios. Então, a câmara Minox e o seu respetivo microfilme passaram a permitir que até cem documentos fossem escondidos numa pequena caixa. O microponto tornou os documentos copiados ainda mais pequenos e mais portáteis. Mas o computador revolucionou tudo isso.

Quando o desertor e traidor Edward Snowden voou para Moscovo, crê-se que levava consigo mais de um milhão e meio de documentos num cartão de memória suficientemente pequeno para ser inserido no ânus humano antes de um controlo fronteiriço. "Nos tempos de antigamente", como os veteranos costumam dizer, teria sido necessária uma coluna de camiões, e uma escolta a passar por um portão costuma dar nas vistas.

Portanto, enquanto o computador ia substituindo o ser humano, os arquivos que continham biliões de segredos passaram a ser guardados em bases de dados. À medida que as complexidades desta misteriosa dimensão chamada ciberespaço se foram tornando cada vez mais estranhas e complicadas, cada vez menos cérebros humanos conseguiam compreender como elas funcionavam. Acompanhando esta velocidade, também o crime mudou, gravitando do furto em lojas para desvios de fundos até chegar à fraude informática quotidiana dos nossos dias, que permite que mais riqueza seja agora roubada do que alguma vez sucedeu na história da finança. Deste modo, o mundo moderno deu origem ao conceito de riqueza oculta informatizada, mas também ao de pirata informático. O ladrão do ciberespaço.

Mas alguns piratas informáticos não roubam dinheiro - roubam segredos. Que foi o motivo que levou a que uma casa suburbana de aspeto inofensivo numa cidade inglesa de província fosse invadida de noite por uma equipa anglo-americana das Forças Especiais, e os seus residentes, detidos. E pelo qual um desses soldados murmurou para um minimicrofone: "Vocês não vão acreditar no que encontrámos aqui."

Três meses antes da invasão domiciliária, uma equipa de génios informáticos americanos que trabalhava na Agência de Segurança Nacional em Fort Meade, Maryland, descobriu algo em que também não conseguia acreditar. A base de dados mais secreta de todos os Estados Unidos, talvez do mundo, fora aparentemente alvo de um acesso ilegal.

Fort Meade, como a palavra "fort" deixa transparecer, é, em bom rigor, uma base militar, só que é muito mais do que isso: alberga a temível Agência de Segurança Nacional, ou NSA. Totalmente protegida de olhares indesejados por florestas e estradas de acesso interditas, é do tamanho de uma cidade. Mas em vez de um presidente de câmara, tem um general de quatro estrelas como seu comandante.

Alberga aquele ramo de todas as agências dos serviços de informação conhecido como ELINT, ou "informação electrónica secreta". Dentro do seu perímetro, fileira sobre fileira de computadores ouve o mundo às escondidas. O ELINT interceta, escuta, grava, armazena. Se alguma das coisas que interceta é perigosa, avisa.

Porque nem toda a gente fala inglês, traduz de cada língua, dialeto e variedade regional usados no planeta Terra. Encripta e descodifica. Acumula os segredos dos Estados Unidos e faz tudo isto dentro de uma gama de supercomputadores que aloja as bases de dados mais clandestinas do país.

Estas bases de dados estão protegidas não por umas quantas armadilhas ou covas de lobo, mas por firewalls tão complicadas que quem as construíra e monitorizava diariamente estava absolutamente convencido de que eram impenetráveis. Então, um dia, estes guardiães da ciberalma americana deram por si a olhar incrédulos para os indícios que tinham diante de si.

Conferiram uma e outra vez. Não podia ser, não era possível. Finalmente, três deles viram-se forçados a pedir uma audiência ao general e a arruinar-lhe o dia. A base de dados principal tinha sido alvo de um acesso ilegal. Em teoria, os códigos de acesso eram de tal forma opacos que ninguém conseguiria entrar no núcleo do supercomputador sem eles. Ninguém conseguiria atravessar o dispositivo de proteção conhecido unicamente como "air gap". Mas alguém o conseguira fazer.

Há milhares de ataques feitos diariamente por hackers em todo o mundo; a maior parte são tentativas de roubar dinheiro. Há tentativas de penetrar nas contas bancárias de cidadãos que depositaram as suas poupanças em diferentes sítios onde acreditavam que elas estariam em segurança. Se os ataques forem bem-sucedidos, o intrujão pode fingir ser o titular da conta e dar instruções ao computador do banco para transferir bens para a sua própria conta, que fica a muitos quilómetros e, frequentemente, a muitos países de distância.

Todos os bancos, todas as instituições financeiras, têm hoje de circundar as contas dos seus clientes com muralhas de proteção, normalmente sob a forma de códigos de identificação pessoal que o hacker não tem como saber e sem os quais o computador do banco não acede a transferir um cêntimo ou um centavo. Este é um dos preços que o mundo desenvolvido paga nos dias de hoje pela sua completa dependência dos computadores. É extremamente maçador, mas é melhor do que o empobrecimento e transformou-se numa característica irreversível da vida moderna.

Outros ataques implicam tentativas de sabotagem resultantes de maldade pura. Uma base de dados vítima de um acesso ilegal pode receber instruções para causar o caos e um colapso operacional. Isto é geralmente conseguido com a inserção de uma instrução de sabotagem chamada malware ou cavalo de Troia. Mais uma vez, proteções elaboradas sob a forma de firewalls têm de ser dispostas em redor da base de dados para neutralizar o hacker e manter o sistema informatizado seguro contra ataques.

Algumas bases de dados são tão secretas e tão vitais que a segurança de uma nação inteira depende de elas se manterem incólumes face a ciberataques. As firewalls são tão intricadas que aqueles que as concebem consideram-nas impossíveis de transpor. Implicam não apenas uma salgalhada de letras e números mas também hieróglifos e símbolos que, se não forem postos na ordem correta, não permitirão a entrada a ninguém que não a um operador oficialmente "autorizado" e com os códigos de acesso certos.

Era uma base de dados assim que estava no coração da Agência de Segurança Nacional em Fort Meade, encerrando biliões de segredos vitais para a segurança dos Estados Unidos.

Claro que a sua violação foi abafada. Tinha de o ser. Este tipo de escândalo destrói carreiras - e essas são as boas notícias. Pode derrubar ministros, fazer implodir departamentos, abalar as fundações de governos inteiros. Mas embora tivesse sido ocultado do público, em especial dos meios de comunicação social e desses patifes dos jornalistas de investigação, a Sala Oval tinha de saber...

Quando o homem na Sala Oval compreendeu por fim a enormidade do que fora feito ao seu país, ficou zangado - foi mesmo tomado pela cólera. Lavrou um decreto presidencial. "Encontrem-no. Detenham-no. Numa cadeia de segurança máxima algures, bem abaixo dos rochedos do Arizona. Para sempre."

Houve uma caça ao hacker que durou três meses. Extremamente conscientes de que o equivalente britânico de Fort Meade, denominado Centro de Comunicações Governamentais (GCHQ), era também ela uma organização de qualidade mundial, e ainda de que os ingleses eram, afinal de contas, aliados, os americanos pediram a colaboração do GCHQ logo numa fase precoce. Os britânicos criaram uma equipa dedicada unicamente a essa tarefa específica, encabeçada pelo doutor Jeremy Hendricks, um dos melhores ciber-rastreadores que tinham ao seu serviço.

O doutor Hendricks fazia parte do Centro Nacional de Cibersegurança britânico, ou NCSC, em Victoria, no centro de Londres, um ramo do GCHQ, que, por sua vez, ficava em Cheltenham. Como o nome indica, a sua especialidade é a prevenção de ataques informáticos. Como todos os guardiães, tem de estudar o seu inimigo: o hacker. Foi por isso que Sir Adrian pediu conselho ao senhor Ciaran Martin, diretor do NCSC. Com relutância mas revelando também generosidade este permitiu que Sir Adrian lhe surripiasse o doutor Hendricks, se bem que com a garantia de que se tratava de um mero empréstimo.

Num mundo em que os adolescentes se estavam a tornar figuras de proa, Jeremy Hendricks era um veterano. Já quarentão, era magro, organizado e reservado. Os seus próprios colegas pouco sabiam sobre a sua vida pessoal, e ele preferia assim. Era homossexual mas nunca o referia, optando por uma tranquila vida privada de celibato. Desta forma, podia desfrutar das suas duas paixões: os computadores, que também eram a sua profissão, e os peixes tropicais, que criava e dos quais cuidava em aquários no seu apartamento em Victoria, acessível a pé a partir do seu local de trabalho.

Licenciara-se em ciências informáticas na universidade de York com uma classificação de "Muito bom", seguira para o doutoramento, depois um segundo doutoramento no MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, antes de regressar para um cargo instantâneo no GCHQ do Reino Unido. A sua especialidade era detetar os mais ínfimos vestígios que os hackers muitas vezes deixam para trás e que, inadvertidamente, acabam por revelar a sua identidade. Mas o ciberterrorista que penetrara no computador de Fort Meade quase o tinha derrotado. Após a invasão da casa naquele subúrbio a norte de Londres, ele fora um dos primeiros a quem fora concedido acesso, uma vez que tinha desempenhado um papel fundamental na descoberta da origem do ataque informático.

O problema fora ter havido tão pouco por onde pegar. Tinha encontrado hackers anteriormente, mas eram fáceis de localizar. Isso acontecera antes de novas e melhoradas firewalls tornarem a penetração praticamente impossível.

Este novo hacker não deixara rasto: não roubara, nem sabotara, nem destruíra nada. Parecia ter entrado, dado uma vista de olhos e depois saído. Não se descortinava o fundamental endereço IP, o protocolo da Internet que funciona como um número de identificação, um endereço de origem.

Verificaram todos os precedentes conhecidos. Houvera alguma violação de outra base de dados que tivesse sido semelhante? Incluíram dados de análise altamente engenhosos nos seus cálculos. Começaram a excluir, uma a uma, conhecidas fábricas de hackers de todo o mundo. Não tinham sido os russos, que trabalhavam a partir daquele arranha-céus nos arredores de São Petersburgo. Nem os iranianos, nem os israelitas, nem sequer os norte-coreanos. Eram todos bastante ativos no mundo da pirataria informática, mas cada um destes grupos tinha o seu traço distintivo, como a "assinatura" pessoal de um operador de código Morse.

Por fim, julgaram ter detetado metade de um endereço IP numa base de dados associada, como uma impressão digital esborratada descoberta por um investigador criminal. Não bastava para identificar alguém, mas chegaria para estabelecer uma correspondência se voltasse a aparecer. Pelo terceiro mês, continuavam a esperar sentados, mas a impressão digital apareceu novamente, desta vez na violação de uma base de dados de um importante banco internacional.

Esta violação deu origem a um outro enigma. Quem a levara a cabo tivera ao seu dispor, durante todo o tempo que estivera dentro da base de dados do banco, os meios para transferir centenas de milhões para a sua própria conta, bem longe dali, e depois levar a que eles desaparecessem para sempre. Mas não fizera tal coisa; tal como com Fort Meade, não fizera, nem estragara, nem roubara nada.

Ao doutor Hendricks, o hacker lembrava-lhe uma criança curiosa a vaguear por uma loja de brinquedos, satisfazendo a sua curiosidade e, em seguida, voltando a sair. Mas desta vez, contrariamente ao que sucedera em Fort Meade, tinham deixado um pequeno vestígio, que Hendricks tinha detetado. Por aquela altura, a equipa de rastreamento já tinha dado uma alcunha à sua presa: por ser esquiva, chamavam-lhe a Raposa. No entanto, uma correspondência era uma correspondência.

Até as raposas cometiam erros. Não muitos, somente aqui e ali. O que Hendricks detetara fazia parte de um endereço IP e correspondia à meia impressão digital descoberta na base de dados associada - faziam um conjunto. Usaram um processo de engenharia reversa com o vestígio e, para considerável embaraço do contingente britânico, viram que conduzia a Inglaterra.

Para os americanos, isto provava que o Reino Unido fora vítima de algum tipo de invasão, da tomada de um edifício por sabotadores estrangeiros de inimaginável perícia, possivelmente mercenários a soldo de um governo hostil e por certo armados. Queriam uma invasão musculada do edifício.

Já os ingleses, uma vez que o hacker responsável parecia morar numa vivenda num bairro residencial da pequena cidade de Luton, no condado de Bedfordshire, mesmo a norte de Londres, queriam um ataque a coberto da noite, silencioso, invisível, sem alarme nem publicidade. E levaram a sua avante.

Os americanos enviaram uma equipa de seis Seals, introduziram-na na embaixada dos Estados Unidos sob a égide do adido de Defesa (ele próprio um Marine) e insistiram que pelo menos dois participassem na operação com o SAS. E foi assim que aconteceu, sem que nenhum vizinho suspeitasse de nada.

Não havia estrangeiros, nem mercenários, nem homens armados. Apenas uma família de quatro a dormir um sono profundo: um contabilista certificado absolutamente perplexo, que já fora identificado como Harold Jennings; a sua mulher, Sue; e os dois filhos de ambos, Luke, de dezoito anos, e Marcus, de treze.

Era a isso que o sargento-mor do SAS se estava a referir às três da manhã: "Vocês não vão acreditar..."


CAPÍTULO DOIS

Todas as cortinas do rés do chão estavam fechadas. A luz viria com a madrugada e ainda havia vizinhos à frente e atrás. Mas uma casa com as cortinas ainda corridas não levantaria suspeitas nem de um lado, nem do outro da rua - quem tem a sorte de poder acordar tarde é apenas objeto de inveja. A primeira equipa estava agachada abaixo do nível das janelas, só para o caso de alguém decidir dar uma espreitadela lá para dentro.

No andar de cima, os quatro membros da família capturada receberam instruções para se vestirem normalmente e aguardar uma vez feitas as malas, uma para cada um deles. O Sol nasceu num dia claro de abril. A rua começou a ganhar vida. Dois vizinhos madrugadores saíram de carro. O rapaz da tabacaria distribuía os jornais do dia. Três exemplares aterraram com um baque no tapete da rua, e o adolescente deu meia-volta e continuou estrada fora.

Às dez para as oito, a família foi escoltada até ao andar de baixo. Tinham um ar pálido e abalado - sobretudo o filho mais velho -, mas não ofereceram resistência. Os dois americanos, ainda de máscara negra posta, olhavam-nos com hostilidade. Eram estes os agentes/terroristas que haviam causado tamanho prejuízo ao seu país. Um período na cadeia sem possibilidade de libertação esperava-os seguramente. A equipa do andar de cima, incluindo a mulher do SRR, veio com eles. Ficaram todos silenciosamente à espera na sala de jantar, as cortinas ainda fechadas.

Às oito, um monovolume claramente identificado como um táxi parou à porta. Dois dos homens do SAS tinham trocado o fato-macaco preto por um fato formal escuro com camisa e gravata. Tinham ambos uma pistola debaixo da axila esquerda. Acompanharam a família, que transportava a sua bagagem, até ao táxi. Continuava sem haver nenhuma tentativa de resistir ou escapar. Se algum vizinho estivesse interessado, a família estava simplesmente a partir para férias. A viatura afastou-se. No interior da casa, a equipa respirou fundo. Sabiam que teriam de esperar até a luz do dia desaparecer, imóveis e silenciosos, evaporando-se então na noite, tal como haviam chegado. A casa vazia, com todos os sistemas desligados, permaneceria fechada bastante mais tempo.

O chefe de equipa recebeu uma curta mensagem a confirmar que a família detida se encontrava já em lugar seguro, e acusou a receção. Era um oficial subalterno, com o posto de alferes, e um veterano de operações dentro e fora do Reino Unido. Era ele o responsável, já que o Regimento utilizava exclusivamente alferes quando se tratava de operações no próprio país; os oficiais superiores, conhecidos jocosamente por "Ruperts", ajudam a planear e a supervisionar, porém não entram em ação dentro do território do Reino Unido.

Às dez chegou uma carrinha grande que exibia o logótipo de uma empresa de decoração de interiores. Os seis homens por ela expelidos usavam fatos-macaco brancos. Transportaram capas de cobertura para pó e escadotes para dentro da casa. Os vizinhos viram, mas não fizeram grande caso disso; a família Jennings estava apenas a fazer algumas obras domésticas enquanto estava de férias.

No interior, o equipamento foi deixado no chão do átrio enquanto os homens, conduzidos pelo doutor Hendricks, subiram ao primeiro andar para se encarregarem da sua verdadeira tarefa, que consistia em esquadrinhar a casa e esvaziá-la de equipamentos eletrónicos. Rapidamente se centraram no sótão, onde descobriram uma gruta de Aladino de equipamento informático e dispositivos associados. As águas-furtadas pareciam ter sido convertidas num ninho de águia privado.

Alguém criara um refúgio pessoal sob as vigas mestras que sustentavam o telhado. Havia uma secretária e mesas e cadeiras, aparentemente compradas por pouco dinheiro em lojas de segunda mão, ornamentos, bibelôs com algum significado pessoal, mas nenhuma fotografia. O lugar de destaque pertencia à secretária, à cadeira que se lhe destinava e ao computador que nela repousava. O doutor Hendricks examinou-o e deixou-se surpreender.

Estava habituado ao melhor e mais complexo equipamento que havia no mercado de material informático, mas aquele que tinha diante de si era simplesmente vulgar. Fora comprado em loja e estava disponível em qualquer hipermercado pertencente às grandes cadeias. Dava ideia de que um pai tinha feito a vontade ao filho com aquilo que podia pagar. Mas como diabo é que alguém derrotara os maiores cérebros informáticos do mundo ocidental com aquelas máquinas? E qual dos rapazes fora?

O cientista de computação ao serviço do governo esperava poder vir a ter tempo e oportunidade para descobrir quem tinha penetrado na base de dados de Fort Meade e para entrevistar esse cromo dos computadores - um desejo que Sir Adrian iria em breve concretizar.

Não lhe levara tempo algum a reconhecer que não se tratava de um supercomputador do tipo a que estavam habituados no GCHQ, a enorme minicidade em forma de donut situada mesmo ao pé de Cheltenham, no condado de Gloucestershire. Mas ainda que tivesse sido comprado numa loja e estivesse disponível para toda a gente, a máquina que descobriram, examinaram e removeram tinha sido engenhosamente alterada e aperfeiçoada, presumivelmente pelo proprietário.

Pelo fim da manhã, estavam despachados. O sótão voltara a ser o que em tempos fora, uma casca oca debaixo das traves da casa. A equipa de informática partiu com o seu saque. Atrás das cortinas ainda fechadas, os soldados da unidade de assalto permaneceram sentados longe da vista e deixaram correr as horas até às duas da manhã. Então, também eles deslizaram para a escuridão e desapareceram. Nenhum vizinho os vira a chegar e tão-pouco algum os vira a ir-se embora.

Em criança, nunca Adrian Weston tencionara ser espião, muito menos chefe de espionagem. Filho de um médico veterinário e criado no campo, ambicionava ser soldado. Assim que a idade o permitiu, e depois de sair de uma escola pública (internato) de pouco nome, alistara-se no exército e, uma vez aceite como tendo "potencial de oficial", ingressou na Real Academia Militar em Sandhurst.

Não recebeu a Espada de Honra no ano em que se formou, mas estava no topo da pauta de classificações e, quando lhe ofereceram o regimento da sua escolha, selecionou o Regimento de Paraquedistas; esperava que lhe proporcionasse mais hipóteses de entrar em combate. Após dois anos a lutar contra o IRA na Irlanda do Norte, aproveitou a oportunidade de ir para a universidade com uma bolsa de estudo do Exército, terminando o curso de História com uma classificação de "Bom". Foi já depois da conclusão da licenciatura que se viu abordado por um dos professores. Um jantar privado, porventura? Havia dois outros homens presentes - mais ninguém.

No fim da entrada de melão, percebeu que vinham de Londres, do Serviço de Informações Secretas, ou MI6. O professor de História era um olheiro, um detetor de talentos, um pescador de arrasto. Weston preenchia todos os requisitos: uma boa família, uma boa escola, bons exames, os paraquedistas, um de nós. Entrou na "Firma" uma semana volvida. Houve uma fase de treino e, mais tarde, missões. Durante as férias escolares, passara uma temporada com uma família alemã como estudante de intercâmbio, pelo que falava um alemão fluente e solto. Após um curso intensivo de três meses na Escola de Línguas do Exército, acrescentara-lhe o russo. Foi para o departamento da Europa de Leste, estava-se no auge da Guerra Fria - os anos de Brejnev e Andropov. Mikhail Gorbachev e a dissolução da URSS ainda estavam para vir.

Em bom rigor, Sir Adrian já não fazia parte da folha salarial do governo, o que tinha certas vantagens. Uma delas era a invisibilidade; outra, proporcionada pela sua manutenção como conselheiro pessoal da primeira-ministra em matérias respeitantes à segurança nacional, era continuar a ter acesso: as suas chamadas eram atendidas, o seu conselho aceite. Antes da reforma, fora diretor-adjunto do Serviço de Informações Secretas em Vauxhall Cross, sob a chefia de Richard Dearlove.

Quando Sir Richard se reformou, em 2004, Adrian Weston decidiu não se candidatar à sucessão, uma vez que não desejava exercer função alguma para o primeiro-ministro Tony Blair. Ficara revoltado com a forma como tinha sido impingido ao Parlamento aquele que ficou conhecido como o "Dossiê Manhoso".

Era um documento que procurava "provar" que Saddam Hussein, o brutal ditador do Iraque, tinha armas de destruição maciça e estava preparado para usá-las, pelo que, consequentemente, era preciso invadir o seu país. Havia, conforme assegurou Tony Blair ao Parlamento, provas que confirmavam "sem sombra de dúvida" que estas armas existiam. Como tal, o Parlamento votou a favor de que a Grã-Bretanha se associasse à invasão americana de março de 2003. Foi um desastre, levando a que o caos varresse todo o Médio Oriente e ao nascimento da máquina de terror chamada Daesh, ainda globalmente ativa quinze anos passados.

Para consubstanciar aquilo que afirmava, o senhor Blair usou como fonte o respeitado Serviço de Informações Secretas, e essa afirmação da parte dele era a base de todo o Dossiê Manhoso. Não passava, contudo, de uma série de disparates. Toda a informação que o SIS tinha do interior do Iraque eram alegações de "fonte única" e, no mundo dos serviços de informação, testemunhos de uma só fonte nunca são fundamento para o que quer que seja, a não ser que haja provas documentais extraordinariamente persuasivas. Não existia nenhuma.

E tão-pouco existiam essas armas, como a subsequente invasão e ocupação do Iraque provou. A fonte era um único iraquiano mentiroso, nome de código Bola Curva, que fugiu para a Alemanha, onde também acreditaram nele. Quando a ficção foi posta a nu, o governo britânico culpou o MI6 por lhe ter dado informação errada, a despeito de a agência ter avisado Downing Street repetidas vezes de que as alegações eram altamente duvidosas.

Leal ao extremo, Sir Richard Dearlove manteve-se em silêncio, conforme a tradição do seu serviço, até à reforma e bem depois disso. Quando se foi embora, Adrian Weston decidiu também reformar-se. Nem sequer queria manter-se como número dois, sabendo que a sucessão seria assegurada por um lacaio de Blair.

Enquanto Sir Richard se tornou diretor do Pembroke College, em Cambridge, Adrian Weston recebeu o título de cavaleiro, sendo distinguido como "Sir" por uma reconhecida rainha, e retirou-se para a sua pequena casa de campo no Dorset rural, lendo, escrevendo e ocasionalmente visitando Londres, onde podia ficar hospedado num dos pequenos, confortáveis e económicos quartos do Clube das Forças Especiais.

Após uma carreira como Kremlinlogista especializado na mão de ferro de Moscovo para com os seus satélites europeus, e com várias missões arriscadas para lá da Cortina de Ferro no currículo, elaborou, em 2012, um documento que chamou a atenção da então recém-nomeada ministra do Interior do governo de David Cameron. No seu retiro rústico, recebeu inesperadamente uma carta manuscrita a perguntar-lhe se poderia almoçar com ela fora do ministério, num encontro privado.

A senhora Marjory Graham, embora nova no Conselho de Ministros, era muito astuta. No Carlton Club - tradicionalmente exclusivo para homens mas que aceitava senhoras como membros associados -, explicou a Sir Adrian que as suas novas funções incluíam o Serviço de Segurança, ou MI5, e que gostava de ter acesso a uma segunda opinião, de uma outra corrente do mundo dos serviços de informação, e ficara impressionada com o documento dele sobre a crescente agressividade das altas chefias russas. Poderia ela aconselhar-se com ele a título absolutamente privado? Três anos antes da incursão surpresa à casa de Luton, David Cameron demitiu-se e ela tornou-se primeira-ministra.

O documento que fora passado de mão em mão em círculos privados e atraíra a atenção de Marjory Graham intitulava-se simplesmente "Cuidado com o Urso". A carreira de Adrian Weston consistira no estudo do Kremlin e dos seus sucessivos chefes. Observara com agrado a ascensão de Mikhail Gorbachev e as reformas por ele introduzidas, incluindo a abolição do comunismo no mundo e na própria URSS, mas assistira com consternação à pilhagem de um país humilhado no mandato do alcoólico Boris Ieltsin.

Sentia desprezo pelos mentirosos, vigaristas, ladrões, velhacos e criminosos mal disfarçados que tinham despojado a própria pátria dos seus recursos, tornando-se bilionários, e que agora exibiam a sua riqueza roubada comprando megaiates e mansões gigantescas, muitas delas na Grã-Bretanha.

Mas, à medida que Ieltsin se afundava cada vez mais num estupor regado a álcool, Weston reparou num antigo rufia da polícia secreta na sua sombra, um homem baixinho e de olhos frios com uma predileção por fotografias homoeróticas de si mesmo a cavalgar de tronco nu pela Sibéria, com uma espingarda cruzada sobre o peito. O seu documento falava da substituição do comunismo por uma nova agressividade de extrema-direita, disfarçada de patriotismo, que parecia estar a infestar o Kremlin desde que o ex-chekisti substituíra o bêbado, além de fazer referência aos laços estreitos entre o Vojd - um termo que, em russo, quer dizer "o Chefe" ou, no mundo do crime, "o Padrinho" - e o submundo do crime organizado.

O homem que alcançara o domínio total da Rússia começara por ser um irredutível comunista e tivera o privilégio de se juntar ao KGB no seu ramo estrangeiro, a Primeira Direção-Geral, sendo colocado em Dresden, na Alemanha de Leste. Porém, quando o comunismo caiu, regressou à sua Leninegrado natal, rebatizada de São Petersburgo, e juntou-se à equipa do presidente da câmara. Daí, subiu na carreira e foi para Moscovo, para a equipa de Boris Ieltsin. Permanentemente ao lado do gigante bêbado da Sibéria, presidente depois da queda de Gorbachev, tornou-se cada vez mais indispensável.

E, enquanto isso sucedia, transformou-se. Ficou desiludido com o comunismo, mas não com o fanatismo - um limitou-se a substituir o outro. Virou declaradamente para uma política de extrema-direita disfarçada de religiosidade e devoção à igreja ortodoxa e ao ultrapatriotismo. E reparou numa coisa.

Viu que a Rússia era completamente controlada por três centros de poder. O primeiro era o governo, com o seu acesso à polícia secreta, às forças especiais e às forças armadas. O segundo surgira após a violação da Rússia e dos seus recursos durante a presidência de Ieltsin: o conjunto de oportunistas que tinha adquirido das mãos de burocratas corruptos, a preço de saldo, todos os recursos minerais da sua terra natal. Eram os novos plutocratas, os oligarcas, bilionários e multimilionários instantâneos. Sem dinheiro, sem incontáveis quantidades de dinheiro, não se era nada na Rússia moderna. O terceiro era o crime organizado, conhecido como "ladrões na lei", ou vori v zakone. Estes três interligavam-se numa irmandade. Quando um cambaleante Ieltsin renunciou e passou as rédeas sem oposição ao homem que tinha ao seu lado, aquele hoje em dia conhecido como Vojd tornou-se o senhor de todos os três, usando-os, recompensando-os e dirigindo-os. E, com a ajuda deles, tornou-se um dos homens mais ricos do mundo.

Sir Adrian notou que aqueles que se desentendiam com o novo Vojd pareciam ter uma esperança de vida muito reduzida se permanecessem na Rússia, bem como um registo de acidentes fatais caso se estabelecessem no estrangeiro mas continuassem a criticar. O aviso de Sir Adrian fora, à época, profético, ainda que não popular em todos os quadrantes, e parecia ter impressionado a senhora Graham. Enquanto tomavam café, ele aceitou o pedido dela.

Chegou à familiar porta preta do número Dez de Downing Street às cinco para as nove. Abriram-na antes de ele ter tempo de agarrar a ornamentada aldraba de bronze. Havia observadores no interior. Conhecia o porteiro, que o cumprimentou pelo nome e o conduziu pela escadaria em curva, flanqueada pelos retratos de ocupantes anteriores. No cimo, foi convidado a entrar numa pequena sala de reuniões que ficava a escassos metros do gabinete da primeira-ministra. Ela, que estava a trabalhar desde as seis da manhã, juntou-se a ele às nove em ponto.

Marjory Graham não perdeu tempo, explicando que o embaixador americano chegava às dez, pelo que Sir Adrian precisava de ser posto ao corrente de tudo. Ele já sabia do ataque à cibersegurança norte-americana que ocorrera havia três meses, mas não dos recentes acontecimentos no território do seu país. Ela fez-lhe um resumo minucioso do que acontecera num bairro residencial do norte de Luton.

- Esta família... onde é que eles estão agora? - perguntou.

- Em Latimer.

Estava familiarizado com essa pequena e pitoresca aldeia na fronteira entre Buckinghamshire e Hertfordshire. Bem perto dos limites da aldeia existe uma velha mansão, ocupada pelo governo durante a Segunda Guerra Mundial para servir de local de alojamento para oficiais graduados alemães capturados, que passavam a viver naquele ambiente elegante e conversavam entre si simplesmente para combater o tédio. Só que cada palavra sua foi gravada e a informação veio a revelar-se bastante útil. A seguir a 1945, a mansão permanecera propriedade do Estado e funcionava como casa-refúgio para os desertores importantes do Bloco de Leste e, como tal, era administrada pelo MI5. Nesse mundo, dizer a palavra "Latimer" chegava.

Sir Adrian perguntou-se se o diretor-geral do MI5 ficaria satisfeito por, de um momento para o outro, se ver a braços com uma família problemática sem habilitação de segurança alguma. Duvidava que assim fosse.

- Quanto tempo é que lá vão ficar? - perguntou ele.

- O menos possível. Há dois problemas: que diabo podemos fazer com eles? E, depois, como é que havemos de gerir a coisa com os americanos? Comecemos pela primeira. Relatos da casa dizem que os residentes são quatro e que, atendendo à disposição da sala do computador no sótão e à impressão inicial deixada pelo rapaz mais velho, é provável ter sido ele o responsável. Ele é, digamos assim, mentalmente frágil; parece ter caído num estado quase catatónico e vamos ter de lhe fazer um exame clínico. Então, passará a ser uma questão legal: de que é que o podemos acusar, se é que o podemos acusar de alguma coisa, com esperança de o ver condenado? Até agora, não fazemos ideia. Só que os americanos não estão com um espírito nada magnânimo. Se nos guiarmos pelos precedentes, vão querer uma extradição rápida, seguida por um julgamento em solo americano e uma pena de prisão bem longa.

- E o que quer a senhora primeira-ministra?

- Quero evitar uma guerra com Washington, em especial atendendo ao homem que ocupa a Sala Oval neste momento, e também quero evitar um escândalo por cá, com o público e a comunicação social a tomarem o partido de um adolescente vulnerável. O que acha, Sir Adrian? Até agora.

- Até agora, primeira-ministra, não sei. Com dezoito anos, o rapaz é, em bom rigor, um adulto, mas, dado o seu estado, pode ser que precisemos de consultar o pai dele, ou ambos os pais. Gostaria de ter a oportunidade de conversar com todos eles. E de ouvir aquilo que o psiquiatra tem a dizer. A curto prazo, temos de pedir aos americanos para nos darem alguns dias antes de falarem publicamente sobre o assunto.

Ouviu-se bater, e uma cabeça apareceu na porta entreaberta - um secretário pessoal.

- O embaixador norte-americano chegou, primeira-ministra.

- Sala do Conselho de Ministros. Daqui a cinco minutos.

Os americanos eram três e tinham-se sentado; levantaram-se quando a primeira-ministra e a sua pequena equipa de quatro pessoas entraram na sala. Sir Adrian vinha em último e sentou-se atrás. Estava ali para ouvir e para, mais tarde, dar o seu conselho.

Como tantos outros embaixadores americanos em postos muito cobiçados, Wesley Carter III não era um diplomata de carreira. Tratava-se de um importante financiador do Partido Republicano e descendente de uma família proprietária de um império comercial de ração para gado sediado no Kansas. Era corpulento, brusco, jovial e versado na cortesia do Velho Mundo. Sabia que as verdadeiras negociações recairiam sobre os dois homens que o acompanhavam, que eram o seu braço-direito, o secretário adjunto do Departamento de Estado, e o seu adido jurídico, um cargo que era sempre ocupado por um agente do FBI. Largos minutos foram preenchidos com saudações e apertos de mão. Serviu-se café e, em seguida, os empregados de casaco branco retiraram-se.

- Ainda bem que nos pôde receber com tão pouca antecedência, senhora primeira-ministra.

- Ora essa, Wesley, sabe que é sempre bem-vindo por aqui. Portanto, passando aos bizarros acontecimentos de Luton. Havia lá dois elementos vossos: já vos relataram o que se passou?

- Assim é, senhora primeira-ministra. E "bizarros" é com certeza um exemplo da famosa queda dos britânicos para o eufemismo. - Esta resposta veio do homem do Departamento de Estado, de seu nome Graydon Bennett. Tornara-se evidente que os dois profissionais iriam tomar conta das operações daí em diante. - Mas factos são factos: este jovem infligiu, de forma premeditada, danos extensíssimos ao nosso sistema de bases de dados em Fort Meade, cuja reparação vai custar milhões. Consideramos que ele deve ser extraditado sem demora para enfrentar a justiça.

- Isso é bastante compreensível - retorquiu a senhora Graham. - Mas, nesse sentido, o vosso sistema legal reflete o nosso: o estado mental do acusado pode ter um efeito poderoso seja em que caso for. Até ao momento, ainda não tivemos oportunidade de pedir a um psiquiatra ou a um neurologista que visse este adolescente e avaliasse o seu estado mental. Mas os vossos dois Seals viram-no na casa; não vos transmitiram que ele parece... como dizê-lo?... algo fragilizado? - Era visível pelas expressões do outro lado da mesa que fora precisamente isso o que tinha sido relatado pelos dois Seals que, via rádio, haviam contactado a embaixada a partir da casa de Luton. - E depois temos a questão dos meios de comunicação, cavalheiros. Até agora, ainda não deram conta do que sucedeu lá, daquilo que descobrimos. Gostávamos de manter as coisas assim tanto tempo quanto nos for possível. Quando eles descobrirem, creio que todos sabemos que teremos de enfrentar uma tempestade mediática.

- Então, o que é que nos está a pedir, senhora primeira-ministra? - perguntou John Owen, o adido jurídico.

- Três dias, cavalheiros. Até agora, o pai ainda não requisitou um advogado. No entanto, não podemos impedi-lo de o fazer; ele tem os seus direitos. Se ele contratar um advogado, a história tornar-se-á conhecida. Nessa altura, a guerra de trincheira não poderá ser evitada. Gostaríamos de ter três dias de silêncio.

- Não pode manter a família em isolamento? - indagou Carter.

- Não sem o consentimento deles. Isso tornaria o caso dez vezes pior a longo prazo. - A primeira-ministra fora em tempos advogada especializada em direito societário.

Por causa da diferença horária, ainda não era madrugada em Washington. A equipa da embaixada concordou que iria conferenciar e aconselhar-se, chegar a uma decisão quanto ao adiamento de três dias e informar Downing Street ao fim da tarde, hora do Reino Unido.

Depois de se terem ido embora, a senhora Graham fez um gesto a Sir Adrian para se deixar ficar para trás.

- Qual a sua opinião, Adrian?

- Há uma pessoa em Cambridge, o professor Simon Baron-Cohen, que é especialista em todas as formas de fragilidade mental. É provavelmente o melhor, talvez até o melhor do mundo. Acho que ele devia ver o miúdo. E eu gostaria de falar com o pai. Tenho uma ideia; talvez haja uma opção melhor para todos nós do que simplesmente mandar o rapaz para uma cela bem abaixo do Arizona para o resto da vida.

- Uma opção melhor? O que tem em mente?

- Ainda não, senhora primeira-ministra. Posso ir a Latimer?

- Tem carro?

- Em Londres? Não, vim de comboio.

A primeira-ministra pegou no telefone. Passados dez minutos, estava à porta um Jaguar da frota automóvel do Estado.

Muito longe dali, junto ao ainda gelado mar Branco, fica a cidade russa de Archangel. Perto dela, em Severodinsk, situam-se os estaleiros da Sevmach - são os maiores e mais bem equipados de toda a Rússia. Nesse dia, agasalhadas para o frio, várias equipas de trabalho davam os toques finais na mais prolongada e mais dispendiosa reparação da história naval russa. Estavam a ultimar e a preparar para o mar aquele que iria tornar-se o maior e mais moderno cruzador de batalha do mundo; na verdade, excetuando os porta-aviões norte-americanos, seria o maior navio de guerra de superfície do mundo. Dava pelo nome de Almirante Nakhimov.

A Rússia só tem um porta-aviões para os treze dos Estados Unidos: trata-se do decrépito Almirante Kuznetsov, integrado na Frota do Norte, cuja base ficava em Murmansk. Em tempos, tivera quatro gigantescos cruzadores de batalha, encabeçados pelo Pedro, o Grande, ou Piotr Velikii.

Destes quatro, dois estão fora de serviço, e o Pedro, o Grande também está velho e quase inoperacional. Na verdade, estava no mar Branco à espera de que os trabalhos na Sevmach estivessem concluídos, de modo a poder tomar o lugar ocupado pelo Nakhimov ao longo de dez anos, enquanto se completava a sua reparação, no valor de muitos milhões de rublos.

Nessa manhã, enquanto Sir Adrian viajava com todo o conforto através da florescente paisagem primaveril de Hertfordshire, decorria uma festa nos aposentos do capitão do Almirante Nakhimov. Faziam-se brindes ao navio e a quem o capitaneava, Piotr Denisovitch, bem como à sua iminente viagem triunfal da Sevmach até Vladivostok, atravessando metade do mundo, para se tornar o navio-almirante da Frota do Pacífico Russa.

No mês seguinte, ativaria os seus dois poderosos motores nucleares e soltaria as amarras para se fazer ao mar Branco.


CAPÍTULO TRÊS

Quando a família Jennings foi detida às três da manhã, a atitude dos pais foi de total desnorte, mas igualmente de obediência e cooperação. Não há assim tantas pessoas a serem despertadas com sacudidelas àquelas horas para descobrir que a sua cama está rodeada por homens vestidos de preto a empunhar pistolas-metralhadoras, os rostos distorcidos por medonhos óculos de visão noturna. Ficaram assustados e fizeram o que lhes mandaram.

Com o raiar do dia e a viagem até Latimer, esse estado de espírito transformou-se em indignação. Os dois soldados que os acompanharam na viatura não podiam ajudá-los, nem tão-pouco o educado mas evasivo pessoal de apoio na mansão em Latimer. Deste modo, quando Sir Adrian chegou, ao meio-dia do próprio dia da invasão domiciliária, enfrentou toda a força dessa raiva acumulada. Deixou-se estar sentado em silêncio até ela se dissipar.

- Vocês não sabem mesmo, pois não?

A pergunta teve o efeito de silenciar Harold Jennings. A sua mulher, Sue, estava sentada ao lado dele, e ambos tinham o olhar fixo no homem que viera de Londres.

- Não sabemos o quê?

- O que o vosso filho Luke realmente fez.

- O Luke? - indagou Sue Jennings. - Mas ele é inofensivo. Tem síndrome de Asperger; é uma forma de autismo. Há anos que o sabemos.

- Portanto, enquanto ele está sentado no sótão, por cima das vossas cabeças, vocês não têm a mínima ideia daquilo que ele anda a fazer?

A anterior indignação dos Jennings fora já substituída por uma sensação de mau presságio - via-se no rosto deles.

- A teclar ao computador - respondeu o pai do rapaz. - É praticamente tudo o que ele faz na vida.

Era evidente para Sir Adrian que havia ali um problema conjugal. Harold Jennings queria um filho atlético e exuberante, que saísse com raparigas, se juntasse a ele para uma partida de golfe e o enchesse de orgulho no clube, ou então que jogasse futebol ou râguebi pela seleção do condado. O que na realidade tinha era um jovem tímido e introvertido que não sabia funcionar no mundo real e que só se sentia verdadeiramente ele mesmo na semiobscuridade, a olhar para um ecrã.

Sir Adrian ainda não conhecera Luke Jennings, mas uma breve chamada feita da limusina para o doutor Hendricks, que continuava a fazer-se passar por decorador de interiores enquanto ele próprio e a sua equipa esvaziavam a casa de Luton, convencera-o de que a origem do problema era de facto o filho mais velho.

Começava agora a perceber que aquela mãe de quarenta anos e cabelo louro era altamente protetora da sua frágil cria e lutaria por ela com unhas e dentes. Enquanto falavam, tornou-se visível que este adolescente totalmente isolado dependia emocionalmente da sua mãe e só se sentia cómodo a comunicar com o mundo exterior através dela. Se os separassem - por meio de uma extradição para os Estados Unidos, por exemplo -, era provável que ele se fosse abaixo.

- Bem, infelizmente ele parece ter conseguido o impossível, atendendo ao equipamento que tinha à sua disposição. Forçou a entrada no coração do sistema de segurança nacional norte-americano, provocando um prejuízo de muitos milhões de dólares e pregando-nos um susto de morte a todos.

Os pais olhavam-no boquiabertos. Então, o senhor Jennings tapou o rosto com as mãos e disse:

- Oh, meu Deus.

Era um contabilista certificado de cinquenta e três anos que trabalhava por conta própria juntamente com dois associados, o que lhe proporcionava um rendimento bom mas não espetacular, e que gostava de jogar golfe ao fim de semana com os amigos. Nitidamente, não percebia o que tinha feito para merecer um filho tão frágil, que tinha enfurecido o principal aliado do seu país e podia agora enfrentar a extradição e uma pena de prisão. A mulher dele explodiu.

- Ele não pode ter feito isso! Ele nem sequer viajou alguma vez para fora do país. Mal saiu de Luton, ou até de casa, exceto para ir à escola. Tem terror de que o tirem do único sítio que conhece: a casa dele.

- Ele não precisava de sair - retorquiu Adrian Weston. - O mundo do ciberespaço é global. Tudo indica que os americanos, no seu estado de espírito atual, que não é de maneira alguma benévolo, nos vão exigir que o extraditemos para os Estados Unidos para ser julgado. Isso pressuporia muitos anos de cadeia.

- Vocês não podem fazer isso! - A senhora Jennings estava à beira da histeria. - Ele não sobreviveria; poria termo à própria vida.

- Vamos à luta contra isso - disse o pai. - Vou contratar o melhor advogado de Londres; vou à luta em todos os tribunais do país.

- Claro que vai - replicou Sir Adrian. - E provavelmente vai ganhar, mas o preço a pagar será enorme. A sua casa, a sua pensão, as poupanças de uma vida: as custas judiciais levarão tudo.

- Não importa - vociferou Sue Jennings. - Não me podem tirar o meu filho e matá-lo; pois é disso que se trataria, de uma sentença de morte. Iremos até ao Supremo Tribunal, se for preciso.

- Senhora Jennings, por favor compreenda que eu não sou o inimigo. Pode haver uma maneira de evitar tudo isto, mas vou precisar da vossa ajuda; se não puder contar com ela, então falharei.

Explicou aos Jennings qual a situação legal, da qual ficara ciente no banco traseiro do Jaguar. Até há poucos anos, a pirataria informática nem sequer constava dos códigos legais britânicos como crime.

Só que a lei mudara: surgiu um caso de pirataria que levara o Parlamento a agir. A pirataria informática era agora um delito, segundo a lei, mas com uma pena máxima de quatro anos e, no caso de um réu vulnerável com um bom advogado e um juiz compassivo, provavelmente nem haveria pena de prisão efetiva. As punições nos Estados Unidos eram bem mais severas.

O pedido de extradição podia, por conseguinte, gorar-se - já tinha havido dois casos em que a extradição fora recusada, para grande descontentamento dos norte-americanos. Além disso, não haveria como evitar a enorme publicidade que o caso geraria. O sentimento nacional seria de grande emoção. Era bem possível que uma campanha de recolha de fundos lançada por um jornal diário cobrisse as despesas judiciais, apesar do susto que estas haviam causado a Harold Jennings.

Porém, tal significaria dois anos de guerra de trincheira com o governo norte-americano, e precisamente numa altura em que o comércio internacional, a luta contra o terrorismo, a saída da União Europeia e a crescente agressividade da Rússia tornavam crucial a existência de uma frente anglo-americana unida.

Os Jennings escutaram em silêncio. Por fim, Harold perguntou:

- O que é que o senhor quer?

- Trata-se mais daquilo de que eu preciso, que é de um pouco de tempo. Até ao momento, os danos causados aos sistemas informáticos norte-americanos ainda não chegaram à imprensa. Mas os Estados Unidos têm jornalistas de investigação implacáveis; não vão ficar sem saber de nada por muito tempo. Se a história se tornar conhecida, tomará proporções desmesuradas. Até por cá, o frenesim mediático levará a que a vossa família seja atormentada dia e noite, transformando a vossa vida num inferno. Talvez possamos evitar tudo isso. Preciso de uma semana, talvez menos. Podem conceder-me isso?

- Mas como? - indagou Harold Jennings. - As pessoas vão reparar que parecemos ter desaparecido de casa.

- No que diz respeito aos vossos vizinhos em Luton, a família Jennings partiu para umas curtas férias. Senhor Jennings, ser-lhe-ia possível contactar os seus associados e explicar-lhes que um problema familiar levou à sua partida sem possibilidade de aviso prévio? - Harold Jennings acenou afirmativamente com a cabeça. - Senhora Jennings, as férias escolares da Páscoa começam na segunda-feira. Ser-lhe-ia possível contactar a escola e explicar que o Luke adoeceu e que ele e o Marcus vão começar as férias uns dias mais cedo? - Outro aceno de cabeça. - E agora, seria possível conhecer o Luke?

Sir Adrian foi levado para outra sala, onde os dois irmãos Jennings estavam absortos a jogar nos seus smartphones, que, por algum motivo, lhes fora permitido conservar e trazer consigo.

Se Sir Adrian estava à espera de que o jovem catalogado como um cibercriminoso e cromo dos computadores fosse uma figura altamente impressionante, não tardaria a ficar desiludido. E, no entanto, não ficou; o que impressionava era a própria normalidade do rapaz.

Era alto, magro como um palito e desengonçado, com uma trunfa de caracóis louros em cima de um rosto pálido e privado de sol. O seu comportamento revelava uma timidez extrema, de alguém que se voltara para dentro de si mesmo e daí olhava para um mundo presumivelmente hostil. O conselheiro de segurança tinha dificuldade em acreditar que Luke Jennings realmente fizera aquilo de que o acusavam.

E, no entanto, segundo as avaliações iniciais conduzidas pelos maiores especialistas do GCHQ, Luke conseguia fazer coisas e ir a locais no ciberespaço que nunca ninguém alcançara. Na opinião deles, tratava-se ou do mais talentoso ou do mais perigoso adolescente do mundo... ou porventura de ambos.

Luke estava sentado, curvado sobre o smartphone, completamente absorvido por outro mundo. A mãe abraçou-o e sussurrou-lhe ao ouvido. O miúdo interrompeu a concentração e olhou fixamente para Sir Adrian. Parecia em parte aterrorizado, em parte truculento.

Era manifesto que tinha uma grande dificuldade em manter contacto visual com estranhos ou até falar com eles, e tornou-se óbvio que fazer conversa e trocar impressões sobre trivialidades era algo fora do seu alcance. Da pesquisa que fizera durante a viagem desde Downing Street até Latimer, Sir Adrian ficara a saber que um dos sintomas da síndrome de Asperger era o portador ser dominado por uma organização fanática, uma obsessão de que tudo tem o seu devido e habitual lugar, sem nunca ser mexido, nem perturbado. Durante o dia anterior, tudo fora removido do seu lugar e, por conseguinte, segundo a perceção de Luke, arruinado. O rapaz estava traumatizado.

Depois de Sir Adrian ter iniciado a conversa, a mãe de Luke interveio com frequência para explicar aquilo que o seu filho queria dizer e para instigá-lo a responder a perguntas. Mas o rapaz só estava interessado numa coisa.

Foi só naquele momento que ele olhou para cima e que Sir Adrian reparou nos seus olhos: eram de cores diferentes, o esquerdo cor de avelã e o direito azul-claro. Lembrou-se de lhe terem dito a mesma coisa sobre o falecido cantor David Bowie.

- Quero que me devolvam o computador - disse.

- Luke, se eu te devolver o computador, tens de me prometer uma coisa: não vais usá-lo para aceder ilegalmente a nenhum sistema informático norte-americano. Nem um. Quero que me dês a tua palavra. Prometes?

- Mas os sistemas deles têm falhas - retorquiu Luke. - Tentei chamar-lhes a atenção para isso.

Era parte essencial do que se passara: o rapaz tentara ser prestável. Descobrira algo no ciberespaço que, na cabeça dele, simplesmente não estava bem; algo que era menos que perfeito. Por isso fora até ao cerne da questão para expor essas falhas. A "questão" era a base de dados da Agência de Segurança Nacional em Fort Meade, Maryland. Luke não fazia genuinamente ideia dos estragos que causara, tanto aos sistemas cibernéticos quanto a determinados egos.

- Tens de me prometer, Luke.

- Está bem, eu prometo. Quando é que mo dão?

- Vou ver o que posso fazer.

Sir Adrian pediu que o deixassem usar um gabinete, fechou a porta e contactou o doutor Hendricks. O guru do GCHQ já deixara Luton. Depois de esvaziar o sótão com a sua equipa, estava de regresso ao Centro Nacional de Cibersegurança britânico em Victoria, Londres, e tinha o computador pessoal de Luke Jennings à sua frente. Mostrou-se algo hesitante em relação a fazer o que Weston pedia, uma vez que precisava de examinar o computador ao pormenor antes de elaborar o seu relatório. Por fim, disse:

- Está bem. Vou descarregar tudo o que está lá dentro para outra máquina e depois envio...

- Não, deixe estar. Eu mando um carro ir aí buscar.

A chamada seguinte de Sir Adrian foi para a primeira-ministra, que estava na bancada do governo na Câmara dos Comuns. A sua secretária parlamentar pessoal segredou-lhe ao ouvido. Quando lhe foi possível sair, recolheu ao gabinete que tinha na Câmara dos Comuns e devolveu a chamada a Sir Adrian, que lhe fez um pedido. Ela ouviu com atenção, lançou algumas perguntas e, por fim, disse:

- É muito em cima da hora, ele pode não concordar. Mas vou tentar. Deixe-se ficar aí em Latimer. Já lhe ligo.

Era fim de tarde em Londres, quase meio-dia em Washington. O homem com quem ela queria falar estava no campo de golfe, mas aceitou a chamada. Para surpresa dela, acedeu ao pedido. A primeira-ministra solicitou então a um assistente que telefonasse a Sir Adrian.

- Se for de carro até Northolt, Sir Adrian, creio que a RAF tentará ajudá-lo assim que puder. O pedido já foi feito.

Em rigor, Northolt ainda é uma base da Força Aérea Real britânica, a RAF, no limite noroeste de Londres, ainda dentro da autoestrada circular M25, mas há muito que partilhava a sua finalidade com o sector privado, recebendo os jatos privados dos ricos e privilegiados.

Sir Adrian passou seis horas na sala de partidas, aproveitando o café para um almoço muito tardio e o escaparate dos jornais para se inteirar das notícias do dia. À meia-noite, um jovem da RAF chamou-o para uma das portas de embarque. Lá fora, na plataforma de estacionamento, o seu avião estava a ser reabastecido para o voo transatlântico; tratava-se de um avião privado bimotor BAe 125, que podia chegar à base da força aérea norte-americana em Andrews, nos arredores de Washington, em oito horas com vento de frente, mas ganhando cinco por causa da diferença horária.

Depois de ter passado metade da vida a dormitar onde e quando podia, Adrian Weston aceitou uma sandes e um copo de vinho tinto razoável do assistente de bordo, reclinou o assento e adormeceu enquanto o jato sobrevoava a costa irlandesa.

Aterraram na base da força aérea em Andrews pouco depois das quatro da manhã. Sir Adrian agradeceu ao assistente de bordo que lhe servira o pequeno-almoço e à tripulação que o transportara. O chefe da esquadrilha, que ocupava o assento do lado esquerdo, garantiu-lhe que as instruções deles eram para esperar até que aquilo que ele viera fazer estivesse feito e, em seguida, levá-lo de volta a casa.

Foi preciso aguardar mais algumas horas na receção da zona de chegadas até que chegasse o seu transporte. Uma vez que aquela viagem era extraoficial, a embaixada britânica não estava envolvida. A Casa Branca enviou um Ford Crown Victoria descaracterizado e com um jovem funcionário da Ala Oeste ao lado do condutor. Não houve formalidades relacionadas com o passaporte, embora Sir Adrian andasse sempre com o seu.

A viagem de carro levou mais uma hora, grande parte passada a avançar a passo de caracol no fluxo de trânsito que procurava atravessar o Potomac para chegar ao centro de Washington. O condutor era bom no que fazia; fora-lhe dito para minimizar qualquer possibilidade de um repórter acidental com uma máquina fotográfica avistar o carro e o seu passageiro, por isso entrou no recinto da Casa Branca pelas traseiras.

A limusina seguiu pela Constitution Avenue, depois à direita pela rua 17 e, a seguir, outra vez à direita pela State Drive, à sombra do edifício Eisenhower. Aqui chegada, quatro pinos de aço que irrompiam da estrada retraíram-se para dentro do asfalto quando o funcionário mostrou a sua identificação à portaria. Então tomaram o curto caminho chamado West Exec, que conduz diretamente à Ala Oeste, onde o presidente reside e trabalha.

Junto ao toldo que marcava o acesso à Ala Oeste a partir do piso de baixo, o carro parou e Sir Adrian saiu. Foi recebido por uma outra pessoa, que o acompanhou até ao interior. Viraram à esquerda e subiram uma escadaria que os levou até à porta do gabinete do conselheiro de Segurança Nacional. Nenhum jornalista poderia andar livremente ali em cima.

Foi conduzido por outra passagem até uma área de receção com duas secretárias, onde passaram a sua pasta por um equipamento de raios X. Ele sabia que câmaras ocultas já lhe tinham feito uma inspeção corporal completa, como num aeroporto. Ao fundo daquela área havia uma última porta: dava para a própria Sala Oval. Um dos rececionistas foi bater à porta, ficou à escuta e fez um gesto a Sir Adrian para entrar. Depois voltou para trás e fechou-a.

Havia quatro pessoas lá dentro, todas sentadas, e uma cadeira livre diante da secretária do presidente dos Estados Unidos, conhecido por todos naquele edifício como POTUS, mas, na sua presença, tratado sempre por "senhor presidente".

Um dos homens sentados era o chefe de Gabinete, outro o secretário de Defesa e o terceiro o procurador-geral. O POTUS estava sentado à frente de Sir Adrian, virado para a porta, fitando-o de modo ameaçador por trás da secretária Resolute, a escrivaninha de carvalho ricamente entalhada que fora cortada a partir da madeira do navio de guerra britânico HMS Resolute e oferecida pela rainha Vitória a outro presidente mais de cem anos antes. Perto da sua mão direita, havia um botão vermelho, não para ordenar uma guerra nuclear, mas sim para pedir uma sucessão de Coca-Colas Light.

O chefe de Gabinete fez as desnecessárias apresentações. Todas as caras ali presentes, exceto a de Sir Adrian, eram conhecidas através de inúmeras lentes de máquina fotográfica. O clima era cortês, embora pouco menos que amistoso.

- Senhor presidente, apresento-lhe os mais sinceros cumprimentos por parte da primeira-ministra britânica, bem como o nosso agradecimento por ter aceitado receber-me com tão pouca antecedência.

A grande e impecavelmente penteada cabeça loura anuiu, numa grosseira manifestação de apreço.

- Sir Adrian, espero que compreenda que só concordei com isto devido à consideração que tenho pela minha amiga Marjory Graham. Parece que um compatriota vosso nos causou enormes danos e nós achamos que ele deve enfrentar a justiça no nosso país.

Sir Adrian estava convencido de que estrebuchar de nada serviria. Limitou-se a dizer:

- Vidro partido, senhor presidente.

- Vidro quê?

- Este jovem génio informático, de cuja existência não fazíamos a mínima ideia, penetrou numa importante base de dados dos Estados Unidos como um assaltante, partindo o vidro para entrar. Mas, uma vez no interior da mesma, deu uma vista de olhos e saiu de mãos a abanar. Ao que parece, não destruiu nada, não sabotou nada e, acima de tudo, não roubou nada. Não se trata de outro Edward Snowden: não ofereceu absolutamente nada aos inimigos dos nossos países.

Ao ouvir o nome "Snowden", os quatro americanos inteiriçaram-se. Tinham ainda bem presente que Edward Snowden, um norte-americano ao serviço do Estado, roubara mais de um milhão de documentos confidenciais dentro de um cartão de memória e voara para Moscovo, onde agora residia.

- Ainda assim, causou-nos prejuízos consideráveis - atalhou o procurador-geral.

- Ele fez algo que era considerado completamente impossível; só que não era. Então, e se tivesse sido um inimigo declarado a fazê-lo? Vidro partido, cavalheiros; temos vidraceiros, podemos consertá-lo. Mas todos os vossos segredos ainda estão lá. Repito: ele não roubou nada, não levou nada. Por certo, o fogo do inferno destina-se apenas aos traidores, não é assim?

- Então, o senhor cruzou o Atlântico para nos pedir para repararmos todos os danos que ele causou e para sermos misericordiosos, Sir Adrian? - perguntou o presidente.

- Não, senhor. Atravessei o oceano por duas razões. A primeira é para fazer uma sugestão.

- Que é?...

Em resposta, Sir Adrian tirou um papel do bolso do peito, atravessou o tapete que o separava da secretária Resolute e pousou-o diante do líder do mundo ocidental. Em seguida, voltou ao seu lugar. Todos viram a cabeça loura inclinar-se para a frente para examinar cuidadosamente a folha de papel. O POTUS não se apressou. Por fim, endireitou-se e fitou o emissário britânico. Estendeu a folha ao procurador-geral, que era quem estava mais próximo dele. Em sequência, os outros três homens leram-na também.

- Isto vai resultar? - perguntou o POTUS.

- Como em tanta coisa na vida, senhor presidente, nunca saberemos se não tentarmos.

- O senhor mencionou dois motivos para a sua visita - disse o secretário de defesa. - Qual é o segundo?

- Tentar entrar numa negociação convosco. Creio que todos aqui já lemos A arte da negociação.

Estava a fazer referência ao livro do presidente sobre a realidade do mundo dos negócios. O POTUS ficou radiante. Nunca se cansava de ouvir elogios ao que ele próprio considerava a sua obra-prima.

- Qual negociação? - perguntou ele.

- Se nos for permitido ir para a frente com isto - Sir Adrian gesticulou na direção da folha de papel -, vamos fazer dele nosso assalariado. Ele assinará a Lei dos Segredos Oficiais. Mantemo-lo num ambiente fechado, supervisionamos as suas atividades. Se resultar e houver uma boa colheita de informação, partilhamos o produto convosco. Na totalidade.

O secretário de Defesa interrompeu abruptamente.

- Senhor presidente, não temos a menor prova de que isto vá alguma vez resultar.

Instalou-se um silêncio profundo. Então, a grande cabeça loura ergueu-se e virou-se para o procurador-geral.

- John, vou alinhar nisto. Cancela o pedido de extradição; não necessariamente para sempre. Mas vamos experimentar e ver o que dá.

Duas horas depois, Sir Adrian estava de regresso a Andrews. O voo de regresso foi mais fácil, com vento de cauda. O seu carro aguardava-o em Northolt. Telefonou à primeira-ministra do banco traseiro; era quase meia-noite e ela estava prestes a ir deitar-se, o alarme na mesa de cabeceira já programado para as cinco da manhã.

Ainda assim, estava suficientemente desperta para lhe dar as autorizações de que ele necessitava. Muito longe dali, perto de Archangel, o gelo marítimo começava a estilhaçar.


CAPÍTULO QUATRO

No rescaldo da visita a Washington, as coisas correram bem. Do ponto de vista dos meios de comunicação social, a história morreu por nem sequer ter chegado a existir, permitindo que aqueles que estavam a par continuassem a reparar os danos de Fort Meade e instalassem um novo e melhorado sistema de defesa, enquanto na Grã-Bretanha se ponderava sobre o que o futuro reservava para o rapaz profundamente perturbado agora conhecido como a Raposa.

Em Washington, o governo norte-americano manteve a sua palavra e o pedido de extradição foi discretamente retirado, acabando por não provocar ondas, pois nunca fora anunciado. Existia, contudo, um inconveniente.

Havia uma espia russa, uma agente adormecida, a trabalhar no Departamento de Justiça. Tratava-se de uma mulher cem por cento americana mas preparada para, tal como acontecera com o há muito encarcerado Aldrich Ames, trair o seu país por dinheiro.

Ela reparou na anulação do pedido feito ao governo britânico para a extradição de um jovem inglês por pirataria informática e escreveu um curto relatório ao seu empregador. Nem sequer lhe deu prioridade, mas sistemas são sistemas e ganância é ganância, por isso encaminhou-o igualmente para o seu contacto na embaixada russa, que, por sua vez, o encaminhou para Moscovo e, desse modo, para o Serviço de Informações Externas da Federação Russa, o SVR. Uma vez aí chegado, foi arquivado.

Sir Adrian teve a sua segunda reunião com a senhora Graham, que estava muito aliviada por não ter de enfrentar uma longa batalha jurídica com os Estados Unidos e concordou com a última parte da ideia dele, que implicaria que Sir Adrian se mudasse de Dorset para Londres pelo menos enquanto ela era posta em prática. Foi-lhe atribuído um pequeno apartamento, cedido pela Coroa a título gracioso, perto do arco do Almirantado e um sedan corriqueiro com motorista disponível em permanência.

Tinham-se passado muitos anos desde que Adrian Weston vivera em Londres e, entretanto, habituara-se à paz, ao sossego e à solidão da sua vida rural em Dorset. Passara-se igualmente muito tempo desde que dirigira uma operação e, na altura, tinha sido contra a velha URSS e, abrangendo todo o império soviético e os estados-satélite da Europa de Leste, o seu inimigo pessoal: o KGB.

Depois vieram Gorbachev e o fim da URSS, ainda que não da Federação Russa e certamente não do Kremlin. Até à sua reforma como diretor-adjunto do Serviço de Informações Secretas, Sir Adrian continuara a manter olhos de lince voltados para o vasto território a leste da Polónia, da Hungria e da Eslováquia.

Sabia que o KGB tinha sido dividido na presidência de Gorbachev, mas nem por um instante acreditou que tinha deixado de existir. A Segunda Direção-Geral, a polícia secreta interna, transformara-se no FSB, mas o adversário de toda a sua carreira fora a Primeira Direção-Geral, cujo alvo era o Ocidente. Esta transformara-se no SVR, cuja sede ficava ainda em Iasenevo, a sudoeste da cidade de Moscovo, e ele sabia quem o dirigia atualmente.

Mesmo durante a década no sossego de Dorset, conservara a sua abrangente lista de contactos na esfera do poder do Reino Unido. Depois de sair de Downing Street, pediu ao seu motorista que atravessasse o West End para o levar até ao Clube das Forças Especiais, de onde telefonou a uma amável vizinha sua, que acedeu a alugar uma carrinha com condutor para levar alguns artigos da casa de Sir Adrian. O destino seria o seu apartamento governamental por trás do arco do Almirantado. A senhora de Dorset comprometeu-se a enviar dois grandes baús com pertences em número suficiente para converter um apartamento funcional mas sem alma numa espécie de lar, ao mesmo tempo que cuidaria do cão dele durante a ausência do dono.

Acima de tudo, Sir Adrian precisava das suas fotografias de família. Como fazia todas as noites antes de adormecer, iria olhar para o rosto da falecida mulher, perdida havia cinco anos para a leucemia e cuja morte ainda chorava. Fitando o rosto desaparecido daquela mulher tranquila e sábia, vir-lhe-ia à memória o dia em que ela conhecera um jovem paraquedista traumatizado que regressava da Irlanda do Norte e, no espaço de uma hora, se decidira a casar com ele e a restabelecê-lo. O que, aliás, fizera.

Num ritual que ninguém alguma vez presenciaria, falava-lhe do seu dia, tal como tinha feito durante quarenta anos antes de o cancro a levar. Ao lado da dela, pousaria a fotografia do filho de ambos, o único que o Deus que ela louvava lhe permitira ter e que era comandante naval de um cruzador que se encontrava no Extremo Oriente. Com os seus tesouros à volta, Weston podia mostrar de novo ao mundo o seu lado de chefe de espionagem duro como aço.

A primeira visita que fez foi a Latimer, para ver a família Jennings, cuja irritação aumentava à medida que a sua detenção se prolongava.

Harold e Sue Jennings tinham feito o que lhes havia sido pedido, telefonando aos seus amigos e colegas em Luton para explicar que o seu filho Luke adoecera de súbito e que tinham levado a família inteira para umas curtas férias de primavera numa casa de campo arrendada na costa da distante Cornualha. Depois disso, silenciaram o telemóvel, deixando mais duas ou três chamadas que lhes fizeram irem para o voice mail e aí permanecerem.

Marcus, o filho mais novo, descobrira conjuntos de arcos e setas numa arrecadação, com um alvo, e começara a praticar tiro com arco no relvado da frente, treinado pelo jardineiro, que era um entusiasta. Harold lia jornais, que eram entregues todos os dias, fazia inúmeras palavras-cruzadas e atirava-se à recheada biblioteca da mansão, perplexo por muito do seu conteúdo ser em alemão ou russo, segundo os gostos dos anteriores convidados de Sua Majestade.

Luke estava num estado miserável, suspirando pelo seu quarto no sótão de Luton e pelo ambiente que lhe era familiar. O centro da sua existência era o computador que lhe tinha sido devolvido: tinha localizado cada um dos seus ficheiros online e movido cada um deles ao seu estado anterior, ao estado em que ele os queria, ao estado em que precisavam de estar. A mãe passava o tempo todo a confortá-lo, prometendo-lhe que, em breve, teria um quarto só para ele, se não o de Luton, certamente uma réplica exata.

O doutor Jeremy Hendricks viera da NCSC em Victoria visitá-los, de modo a que Luke pudesse explicar passo a passo como fizera para evitar todas as firewalls e contornar os supostamente impenetráveis códigos de acesso, infiltrando-se na base de dados da NSA em Fort Meade. Ainda lá estava quando Sir Adrian chegou, por isso pôde explicar-lhe, em linguagem corrente, algumas das complexidades do único mundo em que o rapaz parecia conseguir existir e que era uma galáxia fechada para a grande maioria da raça humana. Também o professor Simon Baron-Cohen tivera a gentileza de vir de Cambridge para um seminário de quatro horas com Luke; regressara entretanto à universidade para preparar um extenso relatório quer sobre a síndrome de Asperger em geral, quer sobre o modo como a mesma afetava Luke Jennings em particular.

Toda a família ficara aliviada ao saber que não haveria tentativas de extraditar o filho mais velho para enfrentar pena de prisão nos Estados Unidos. Mas Sir Adrian mostrava-se inflexível e não se cansava de recordar que faltava aos Jennings cumprir a sua parte do acordo feito com ele. Mais elementos graduados do GCHQ chegariam para recrutar Luke, que, por lei, era adulto na sua plenitude, para fazer parte da sua equipa, e ele teria de cumprir as ordens que eles entendessem dar-lhe.

O que nenhum deles sabia é que havia um elemento essencial no conteúdo do papel que Adrian Weston passara ao presidente dos Estados Unidos no dia anterior: a execução do seu plano, agora apoiado por dois chefes de governo.

Deu-lhe o nome de Operação Troia, em homenagem a Virgílio, que, no seu clássico Eneida, descreveu o antigo estratagema grego do cavalo de madeira. Sir Adrian tinha agora em mente criar o maior estratagema da história do mundo cibernético, mas tudo dependia do invulgar cérebro de um acanhado adolescente inglês diferente de tudo o que alguma vez se vira.

Em dez minutos, tornou-se óbvio que, para a Operação Troia ser bem-sucedida, Weston teria de cair nas boas graças de Sue Jennings e não nas do incapaz pai dos rapazes. Era ela que teria de aceitar o recrutamento de Luke por parte do GCHQ. E também teria de estar envolvida numa função mais técnica, uma vez que, sem o conforto permanente que a mãe oferecia, o seu frágil filho não parecia saber funcionar no mundo dos adultos. Era ela, claramente, a figura mais assertiva da família, quem tomara as rédeas e a mantivera unida, uma dessas mulheres calmas mas com uma determinação férrea que denota logo que são boa gente.

Weston sabia, pelas notas informativas que lhe tinham sido entregues em Downing Street por um dos funcionários da primeira-ministra, que ela estudara no liceu de Luton e era filha de um tipógrafo local. Conhecera e casara-se com o seu marido antes dos vinte; ele estava já na faculdade a estudar Contabilidade. Até agora, tudo muito banal. Sue tinha vinte e dois anos quando o primeiro filho nasceu.

Não aparentava ter quarenta anos - ao que parecia, frequentava um ginásio e, durante o verão, o clube de ténis local. Uma vez mais, tudo muito corriqueiro. Não havia nada acerca da família Jennings que despertasse o mínimo interesse, com exceção do filho de dezoito anos patologicamente tímido, um rapaz introvertido que ficava sentado a um canto enquanto os seus pais negociavam com aquele homem vindo de Londres. Apesar das suas dificuldades, ou talvez por causa delas, tudo parecia indicar que se tratava de um génio informático.

Sir Adrian tentou envolver o jovem na conversa dos adultos, mas em vão; Luke não conseguia, ou então não queria, relacionar-se com ele em termos pessoais. A cada tentativa, a mãe respondia por ele, como o tigre-fêmea que protege a sua cria. Sir Adrian não tinha experiência com síndrome de Asperger, mas as notas informativas que tinham sido apressadamente preparadas durante a manhã da detenção da família indicavam que havia diferentes graus de gravidade. Um telefonema do professor Baron-Cohen acabara de confirmar que Luke era um caso grave.

De vez em quando, se Sue Jennings sentia que o filho estava a ficar agitado quando os adultos conversavam sobre alguma coisa que ele tinha feito, ainda que involuntariamente, punha-lhe um braço reconfortante sobre os ombros e sussurrava-lhe palavras de ânimo ao ouvido. Só então ele se acalmava.

A próxima etapa era encontrar um lugar para aquele jovem e a sua família residirem e trabalharem, num ambiente seguro mas fechado. De regresso a Whitehall, Weston começou a sua busca entre centenas de estabelecimentos que eram propriedade do governo. Levou mais dois dias a pesquisar e viajar; praticamente não dormiu e, tirando lanches, praticamente não comeu. Não estava debaixo de tamanha pressão desde que, nos tempos da Guerra Fria, com o seu russo fluente e alemão impecável, atravessara em segredo a Cortina de Ferro, enquanto o perturbado Iuri Andropov quase conduzia o mundo à guerra nuclear. Ao fim de três dias, achava ter encontrado o lugar certo.

Se perguntassem aos transeuntes de uma rua qualquer do Reino Unido, o número dos que alguma vez teriam ouvido falar de Chandler's Court seria aproximadamente zero. Era, de facto, um sítio bastante clandestino.

Aquando da Primeira Guerra Mundial, o seu proprietário era um fabricante de têxteis a quem fora adjudicado um contrato para fornecer fardas de sarja caqui ao exército britânico. Isto acontecera quando se esperava, com toda a confiança, que a guerra estivesse terminada até ao Natal de 1914. À medida que a carnificina aumentava, os contratos para fornecer mais fardas foram-se multiplicando. O fabricante ficou realmente bastante rico e, em 1918, já multimilionário, adquiriu aquela mansão do século XVII que ficava numa floresta em Warwickshire.

Durante a Grande Depressão, quando as filas de desempregados serpenteavam ao longo de quilómetros, criou emprego ao contratar equipas de pedreiros e operários sem ocupação para construir um muro de cerca de dois metros e meio em redor dos oitenta hectares da propriedade. Considerado um especulador de guerra, não era uma figura popular, pelo que queria e necessitava da sua privacidade. Com o seu muro e somente dois portões de entrada vigiados, conseguiu-a.

Quando morreu, com pouco mais de cinquenta anos, não tendo viúva nem descendência, legou Chandler's Court à nação. Tornou-se uma casa de repouso para antigos combatentes gravemente feridos e, em seguida, foi abandonada. No final dos anos oitenta, foi-lhe dado um novo uso: foi convertida em laboratório de investigação, envolta em segredo e interdita ao público, por ali se lidar com algumas das toxinas mais temíveis conhecidas pelo homem.

Muito mais recentemente, depois do envenenamento com Novichok do coronel Serguei Skripal, antigo espião soviético, e da sua filha Iulia, foi Chandler's Court, e não o muito mais conhecido laboratório de Porton Down, a descobrir o antídoto que lhes salvou a vida. Por razões óbvias, o mérito foi atribuído pelos meios de comunicação social a Porton Down.

A vasta mansão de Chandler's Court ficara parada no tempo, preservada mas não habitada. Os laboratórios de pesquisa espalhavam-se pelo bosque, tal como os confortáveis e modernos blocos de apartamentos onde moravam os funcionários de categoria inferior; só os cientistas principais viviam no exterior. Havia dois portões no muro, um para entregas comerciais e o portão principal, para o pessoal. Ambos eram vigiados por guardas.

No período de uma semana, equipas de artesãos e decoradores chegaram para trabalhar em turnos, repartidos pelas vinte e quatro horas do dia, de forma a tornar a mansão novamente habitável por humanos. A família Jennings foi conhecer o espaço e, um pouco mais de três semanas depois da reunião na Casa Branca, mudou-se para lá. O doutor Hendricks concordara que a enorme minicidade do GCHQ em Cheltenham não seria apropriada para a Operação Troia. Demasiado grande, demasiado confusa; para Luke Jennings, demasiado intimidatória e populosa. O próprio Hendricks e uma equipa de dois elementos também iriam ser transferidos para Chandler's Court, para supervisionar os programas e orientar o jovem génio no centro de tudo aquilo.

Só havia um problema, e Sir Adrian assistira a uma tensa despedida familiar em Latimer, um dia antes de os Jennings partirem para Chandler's Court. Havia uma década que aquele casamento estava à beira do precipício: os pais tinham tentado proteger os filhos do colapso da relação entre ambos, mas isso foi ficando cada vez mais difícil, até chegar a um ponto em que se tornou impossível. Em suma, queriam separar-se.

Fora decidido que Luke ficaria a morar em Chandler's Court, onde trabalharia em tarefas definidas pelo GCHQ. A mãe ficaria com ele e ajudá-lo-ia nas suas interações com terceiros. O irmão mais novo, Marcus, poderia frequentar qualquer uma das duas ou três excelentes escolas locais situadas a uma curta viagem de carro. Harold Jennings não queria viver ali e, com o casamento a chegar ao fim, nem vontade tinha de regressar a Luton para recomeçar a trabalhar na sua velha empresa de contabilidade. O que ele realmente queria surpreendera Sir Adrian: desejava emigrar para os Estados Unidos e tornar-se cidadão de Nova Iorque. Era um sonho que acalentara durante anos, desde que assistira a uma conferência na cidade.

Sir Adrian mencionou-lhe que tinha alguns contactos nos Estados Unidos com quem mantinha relações amistosas e que poderia ajudá-lo garantindo alguma assistência oficial para agilizar a burocracia e as formalidades ligadas à obtenção de autorizações de residência e trabalho.

Tudo foi feito com grande rapidez. Harold Jennings abandonou a sua empresa em Luton e deixou de ser membro do clube de golfe. A casa foi posta nas mãos de um agente imobiliário local. Em Nova Iorque, arranjou um cargo numa instituição financeira britânica muito perto de Wall Street, com um bom salário. Após uma temporada num hotel, adquiriria um apartamento confortável e daria início a uma nova vida.

E então chegou a separação. Para um estranho, teria parecido invulgar, de tão fria que se revelou, tal como o era, verdade seja dita, Harold Jennings. Se tivesse sentimentos e estivesse preparado para os revelar, talvez tivesse salvado o seu casamento anos antes. Contudo, parecia que o espírito daquele homem era tão árido e sem vida como as contas e os números aos quais passara todos aqueles anos agarrado.

Forçou-se a abraçar os dois filhos e, por fim, a mulher, mas de um modo desajeitado, como se fossem pessoas que tivesse conhecido numa festa. Os filhos conheciam aquele modo de ser de tantas ocasiões anteriores e responderam da mesma forma.

- Adeus, pai, e boa sorte na América - disse Marcus, o rapaz mais novo, o que arrancou um sorriso de pânico ao seu pai e uma garantia:

- Vai correr tudo bem.

A falta de afeto no abraço trocado pelos pais indicava por que motivo, um mês antes, os soldados tinham encontrado camas separadas para o casal no primeiro andar da casa de Luton.

Estava um táxi à espera no pátio de entrada da mansão. Harold Jennings deixou a sua família no átrio, saiu para o exterior e foi para o aeroporto. Ao contarem-lhe isto nessa mesma tarde, Sir Adrian supôs que seria a última vez que ouviria falar dele. Estava enganado.

Na manhã seguinte, Sue Jennings e os seus filhos mudaram-se para uma espaçosa suite no primeiro andar da mansão de Chandler's Court. Ainda cheirava a tinta fresca, mas o tempo estava ameno, para princípio de maio, e, com as janelas abertas, o odor rapidamente se dissipou.

O doutor Hendricks, que era solteiro e vivia sozinho, instalou-se na ala sul, onde supervisionava os acabamentos da sala dos computadores, o coração da Operação Troia. Todo o equipamento tinha vindo do GCHQ em Cheltenham e era o melhor que havia. Os outros dois mentores instalaram-se nos blocos de apartamentos na floresta, de onde podiam facilmente ir a pé para o trabalho, dentro da mansão. Marcus Jennings fora matriculado numa escola muito boa a menos de dez quilómetros de Chandler's Court.

Luke Jennings tinha um quarto só para si e, com toda a satisfação, começou a convertê-lo numa réplica da divisão que em tempos tivera no sótão de Luton. Devido à sua forma de pensar, cada pormenor tinha de ser algo a que ele estivesse habituado. A carrinha de mudanças trouxera o recheio dessa divisão de Luton para Warwickshire, de modo a que cada cadeira e mesa, cada livro e ornamento, pudesse ser colocado precisamente onde tinha de estar. Luke até se opôs ao relógio, uma vez que tiquetaqueava. Queria um relógio silencioso, e deram-lhe um.

E a sua disposição melhorou. A tensão e as consequentes birras e lágrimas das semanas que se haviam seguido ao ataque noturno diminuíram. Com o seu espaço pessoal restaurado e o computador diante de si, tal como devia ser, podia voltar à vida de que mais gostava: ficar sentado na penumbra, vaguear pelo ciberespaço e olhar para as coisas que aí encontrava.

No longínquo norte da Rússia, as últimas amarras tinham sido atiradas para o cais e o majestoso Almirante Nakhimov deslizou vagarosamente para fora do estaleiro da Sevmach em direção ao mar que o aguardava. Do seu ponto de observação elevado na ponte de comando, o capitão Denisovitch e os seus oficiais conseguiam ver os distantes pináculos do porto vizinho de Archangel à medida que a proa do mais temível navio de guerra de superfície do mundo virava para norte. Atrás dele, Severodinsk ia desaparecendo. O capitão e o corpo de oficiais estavam radiantes.

Da ponte, contemplavam o expoente máximo dos cruzadores de batalha da classe Orlan, o maior entre os navios de guerra do mundo que não transportavam aviões, uma fortaleza flutuante de aço munida de uma tremenda artilharia de mísseis. O Nakhimov tinha duzentos e cinquenta metros de comprimento, quase trinta metros de largura e deslocava vinte e quatro mil e trezentas toneladas, com uma tripulação de setecentos marinheiros.

Estes cruzadores russos são plataformas móveis armadas até aos dentes e capazes de enfrentar qualquer navio de guerra inimigo do planeta. O Nakhimov, que saía agora do estaleiro da Sevmach envolto em nuvens de vapor, era o mais ultramoderno da sua classe, com todas as suas funções completamente informatizadas com tecnologia de ecrã tátil.

Sob a superfície das águas, as suas sondas acústicas localizavam a linha das cem braças e guiavam o navio ao longo dessa linha, de modo que ele nunca se deslocava para mais perto da costa do que isso, a não ser que tal lhe fosse ordenado. Cada pormenor seria transmitido à ponte num dos controlos de alta tecnologia que o governavam. E havia mais.

Muitos anos antes, um romance chamado A Caça ao Outubro Vermelho fora publicado no Ocidente. Tratou-se do primeiro romance de Tom Clancy e revelou-se muito popular. Contava a história de um capitão de Marinha soviético que desertou para o Ocidente, levando consigo o seu submarino armado com mísseis nucleares. Foi imediatamente proibido na URSS e lido apenas por um pequeno núcleo de membros das mais altas instâncias, para quem o enredo era um desastre completo.

Na União Soviética, as deserções, sobretudo de oficiais de alta patente e de funcionários militares ou dos serviços de informação, eram um pesadelo, e a ideia de um deles desaparecer no Ocidente com um enorme exemplar de equipamento ultramoderno era ainda pior. O romance de Clancy foi levado muito a sério por toda a Marinha soviética e mesmo pelo Politburo.

No momento atual, tal era não somente impensável, mas também imediatamente evitável. Todas as funções do Nakhimov estavam informatizadas e podiam ser duplicadas na base de dados central, que ficava no quartel-general da Frota do Norte em Murmansk. Deste modo, e de uma assentada, Murmansk podia sobrepor-se aos computadores a bordo do Nakhimov e reassumir o controlo total do navio. Isto pôs fim às traições.

Quanto a avarias ou interferências, também estavam fora de hipótese. O sistema de condução do navio não era o vulgar Sistema de Posicionamento Global, conhecido pela sigla GPS, concebido nos Estados Unidos e familiar a todos os utilizadores de navegação por satélite na estrada, mas sim o sistema GLONASS-K2, concebido na URSS e herdado pelo estado russo pós-soviético. Propriedade das Forças Armadas, eram também estas que o operavam.

O GLONASS define a posição de um navio russo em qualquer ponto do mundo com uma margem de erro de aproximadamente dez a vinte metros. Depende de vinte e quatro satélites a girar no espaço. Qualquer pirata informático que tentasse perturbar o sistema teria de corromper cinco satélites diferentes em simultâneo, o que é evidentemente impossível.

O rumo do Nakhimov estava preestabelecido. Navegaria do mar Branco para norte, até ao mar de Barents, e depois para noroeste. Com o cabo Norte da Noruega a bombordo, viraria mais uma vez, deslizando sem pressa do mar de Barents para o Atlântico Norte, depois para sul ao longo da Noruega. Haveria sempre um homem do leme no seu posto, mas não seria necessário: os computadores manteriam o navio na linha das cem braças e perfeitamente no rumo certo. Durante cinco dias, foi isso que aconteceu sem tirar nem pôr.

O gelo e o frio cortante do mar Branco e do cabo Norte diminuíram e o sol brilhou através das nuvens. No intervalo das suas tarefas, os marinheiros do Nakhimov passeavam pelo convés e inspiravam o ar tonificante. A bombordo, as montanhas que rodeavam os fiordes de Tromso, onde, em 1944, a RAF afundara por fim o majestoso Tirpitz, apareciam e desapareciam por entre o nevoeiro. As ilhas Lofoten ficaram para trás.

Nesta altura, o Nakhimov podia ter virado para oeste, mais para dentro do Atlântico Norte, contornando as Ilhas Britânicas a oriente enquanto sulcava as águas até dobrar o cabo da Boa Esperança e dirigir-se para o Oriente. Mas as suas ordens tinham sido determinadas semanas antes em Moscovo, nada mais, nada menos do que pelo próprio Vojd.

Seguiria para sul, para o mar do Norte, com a Dinamarca a bombordo e a Escócia a estibordo, até o deixar para trás e entrar na via marítima mais movimentada do mundo: o canal da Mancha. Olhando da janela do seu gabinete sobre os jardins de Alexandre, que ficavam por baixo da muralha ocidental do Kremlin, o Vojd deixara muito claro quais eram os seus desejos ao almirante que comandava a Frota do Norte.

Enquanto uma grande quantidade de embarcações se dispersariam para lhe sair do caminho, o Almirante Nakhimov desceria lentamente o canal e passaria pelo ponto de compressão do estreito de Dover. Que os malditos ingleses, sentados em frente às suas janelas panorâmicas em Ramsgate, Margate, Dover e Folkestone, testemunhassem o poderio da nova Rússia a cruzar as águas à sua porta e a elevar-se, imponente, sobre eles e a sua insignificante Marinha, obrigada a escoltar o Nakhimov para sul!

No oitavo dia após a partida da Sevmach, os marujos do Nakhimov observavam o mar espumoso atrás de si. Ao longe, a estibordo, a Dinamarca convertera-se em Alemanha e a Alemanha em Holanda. Fora de vista, na mesma direção, os Fens de Lincolnshire, terrenos alagadiços, estavam ocultos atrás de bancos de nevoeiro.

O telefone tocou num pequeno apartamento por trás do arco do Almirantado. Sir Adrian levantou o auscultador; do outro lado respondeu-lhe um ofegante doutor Hendricks.

- Pela segunda vez este ano, não acredito no que estou a ver - disse ele. - O puto conseguiu. Não é possível fazê-lo, mas o rapaz conseguiu. Entrámos, estamos dentro do GLONASS-K2! Cinco satélites. E o mais estranho é que eles nem sequer deram pela nossa entrada.

- Bom trabalho, doutor. Deixe-se ficar onde está, se não se importa; mantenha-se a escassos metros do telefone até nova ordem. Dia e noite.

Quando terminou a chamada, Sir Adrian marcou ele próprio um número. O do quartel-general da Marinha Real, junto ao subúrbio de Northwood, no noroeste de Londres. Já tinham sido avisados.

- Sim, Sir Adrian.

- Vou aí visitar-vos. Amanhã é capaz de ser um dia agitado.

A caminho, como de facto acontecia, de se tornar o navio-almirante da Frota do Pacífico russa, teria sido simples para o Almirante Nakhimov contornar as Ilhas Britânicas mantendo-se a oeste da Irlanda, em águas profundas e cristalinas e longe da vista de terra. Mas o Vojd tomara, clara e intencionalmente, a decisão de insultar os ingleses ao fazê-lo rumar do mar do Norte até ao estreito de Dover, que, com os seus trinta e cinco quilómetros de largura, era uma das travessias marítimas mais congestionadas do mundo.

Com dois fluxos de tráfego marítimo, um rumo a norte e o outro a sul, o estreito de Dover observa regras rígidas para evitar colisões. Conforme fora calculado, atendendo ao seu tamanho, o Nakhimov só conseguiria passar navegando mesmo pelo meio do canal. Navios de guerra russos haviam-no feito anteriormente, numa provocação deliberada ao Reino Unido por parte de Moscovo.

O Almirantado não precisava que lhe dissessem onde estava o Nakhimov: havia duas fragatas a escoltá-lo e uma série de drones de observação da base aérea de Waddington a sobrevoá-lo. Estava perto da costa de Norfolk mas a abrandar, de modo a deixar que a noite passasse antes de atravessar o estreito de Dover. Os baixios de Dogger Bank tinham ficado para trás no mar do Norte. As sondas acústicas do navio indicavam-lhe que ainda tinha mais de trinta metros de água clara debaixo da quilha; o rumo escolhido antecipava que nunca teria menos do que vinte e cinco metros.

Ao amanhecer, estava diante de Felixstowe, em Suffolk, e aumentou a potência até atingir a velocidade de cruzeiro otimizado. O canal estava a estreitar, com a Bélgica a ficar visível a bombordo. As ondas de rádio fervilhavam com conversas de navios mercantes presos neste engarrafamento no canal, enquanto o mastodonte russo infringia todas as regras.

À frente surgia a parte mais apertada - o estreito de Dover - e o navio aproximou-se da costa de Essex e de Kent quando chegou às Goodwin Sands. Os velhos lobos do mar evitam as Goodwins a todo o custo, de tão pouco profundas que são. Os computadores, no entanto, eram intransigentes: o Nakhimov passaria por elas em direção à costa francesa ainda com bastante espaço de navegação disponível.


CAPÍTULO CINCO

Era um lindo amanhecer de primavera: o Sol nasceu a brilhar num céu azul sem nuvens. Os residentes mais madrugadores das cidades e vilas costeiras do nordeste de Kent já passeavam pela costa com os seus cães, binóculos e máquinas fotográficas. Vinda do norte, a enorme besta cinzenta deslizou pelo estreito de Dover. Através de meios visuais totalmente automatizados, o mundo assistia.

Na bonita cidade costeira de Deal, separada das quase invisíveis Goodwin Sands por uma pequena lagoa de águas navegáveis onde os pescadores locais apanhavam mexilhão e caranguejo-mole, alguns cidadãos tomavam o pequeno-almoço diante das suas janelas viradas para o mar, alheios ao monstro imenso que avançava lentamente na sua direção.

Na ponte, o capitão Denisovitch e os seus oficiais permaneciam de pé atrás dos seus painéis de controlo, olhando para as pequenas embarcações que, lá em baixo, se dispersavam à sua frente. Muito longe dali, em Moscovo, o Vojd também seguia, num enorme ecrã, a emissão ao vivo a partir de um avião fretado pela RT (a antiga Russia Today), a estação de televisão financiada pelo estado, que voava em círculos sobre a costa de Kent.

Quando o Nakhimov começou a desviar-se a pouco e pouco para a direita, o homem do leme corrigiu o rumo de imediato. O navio continuou a deslizar para estibordo. Olhando fixamente para diante por sobre a proa, os oficiais e a tripulação conseguiam ver as coloridas casas de campo de Deal. Debaixo dos seus pés, na sala das máquinas, as rotações das turbinas de propulsão nuclear começaram a aumentar. O engenheiro-chefe supôs que a ordem tivesse vindo da ponte.

- Cinco graus para estibordo! - vociferou o capitão Denisovitch para o homem do leme, mas este já estava a tocar com a ponta dos dedos no ecrã para fazer a correção. A proa virou bruscamente para Deal e a velocidade do navio aumentou; o Nakhimov, contudo, recusava-se a obedecer à ordem. O oficial de navegação empurrou o homem do leme com o ombro e assumiu o comando. Martelou as correções necessárias no ecrã. Nada aconteceu.

A norte, em Murmansk, o almirante que encabeçava a Frota do Norte fitava, incrédulo, o seu ecrã de televisão do tamanho de uma parede.

- Retomem o comando! - gritou. Ao seu lado, os dedos de um técnico agitavam-se num frenesim sobre o seu painel de controlo. Se os controlos do Nakhimov estavam a funcionar mal, então Murmansk reassumiria o comando e devolveria o navio ao seu rumo preestabelecido. A tecnologia russa não falharia.

Em Northwood, um jovem oficial da Marinha Real olhava fixamente para o seu ecrã, enquanto a ponta dos seus dedos transmitia novas ordens ao navio de guerra russo. Gotas de suor escorriam-lhe pelo rosto. Atrás dele, quatro almirantes olhavam, pasmados, para o ecrã de televisão.

- Inacreditável - murmurou um deles.

Em Moscovo, o homem pequeno e de olhar frio que controlava o maior país do mundo ainda não se tinha apercebido de que alguma coisa correra mal - não era um homem do mar. As fachadas garridas das casas de campo de Deal não deviam estar mesmo em frente à proa, deviam estar bem à direita. O Nakhimov devia ter quilómetros de água de mar clara e reluzente pela frente.

Na maré baixa, as areias moles e pegajosas das Goodwins tornam-se ligeiramente visíveis enquanto as águas do canal marulham sobre elas; na maré alta, ficam três metros abaixo da superfície. O calado do Almirante Nakhimov chegava praticamente aos dez metros. Às nove horas, tempo médio de Greenwich, os motores nucleares do Almirante Nakhimov impulsionaram os duzentos e cinquenta metros e as vinte e quatro mil e trezentas toneladas do navio contra as Goodwin Sands a toda a velocidade, perante os olhos do mundo.

Muito abaixo da popa, o enorme propulsor de duas hélices empurrou o navio para a frente, enquanto a proa se erguia no ar. Na sala de máquinas, os controlos estavam regulados para marcha a ré a toda a velocidade, mas essa ordem não chegava aos eixos de transmissão. Foi nesta altura que o homem do Kremlin se apercebeu de que alguma coisa correra mesmo muito mal. Sozinho no seu gabinete privado, começou a gritar de raiva.

Quando o Nakhimov enfim se imobilizou por completo, o controlo por parte dos sistemas de bordo foi restabelecido - tudo estava a funcionar na perfeição. Os motores entraram em modo de marcha a ré a toda a velocidade e as hélices responderam, começando a abrandar até ficarem imóveis e depois girando em sentido contrário. Não há rochas nas Goodwins e a areia é mole, mas pega-se. A metade dianteira do cruzador de batalha estava profundamente atascada, e o navio não se mexia. Depois de meia hora de esforços em vão, o capitão Denisovitch desligou os motores.

Em todo o mundo, centenas de milhões de espectadores observavam, espantados. Os ocidentais despertaram, ligaram a televisão e viram a imagem de um Almirante Nakhimov imóvel a preencher-lhe os ecrãs; os orientais levantaram-se das suas secretárias, à medida que a notícia se espalhava, e juntaram-se em redor das televisões no meio de um animado falatório. Ninguém conseguia perceber aquilo, mas tinha acabado de acontecer.

Na Rússia, um inquérito teve início passados escassos minutos. Uma profusão de perguntas jorrou do gabinete privado do Vojd diretamente para Murmansk, mas o quartel-general da Frota do Norte não conseguia prover uma explicação lógica.

Em Washington, o presidente foi acordado e olhou com atenção para as imagens do televisor, pois todos os canais estavam a cobrir a notícia. Então, começou a twittar. Também fez um telefonema a Marjory Graham, em Londres.

A primeira-ministra estava a tentar contactar Sir Adrian, que, conduzido pelo seu motorista, regressava ao seu apartamento no arco do Almirantado, vindo de Northwood. Estivera acordado a noite toda, depois de assumir o comando de um cruzador de batalha russo. Em Chandler's Court, o doutor Jeremy Hendricks fitava os ecrãs na sala de computadores e praguejava entredentes.

Numa outra ala, o adolescente que conseguira os códigos que tinham permitido o acesso estava a dormir profundamente. Não tinha grande interesse naquilo que se estava a passar.

Não demorou mais de vinte e quatro horas para os especialistas informáticos de Murmansk entregarem um relatório ao Kremlin - não tinha sido uma avaria. Contra probabilidades inimagináveis, o seu sistema tinha sido alvo de, nada mais nada menos, um acesso indevido e, durante sete vitais minutos, estivera sob o comando de um desconhecido mal-intencionado.

A voz que provinha do gabinete privado do Kremlin não soava condescendente. Tinham-lhe assegurado que a tecnologia era inexpugnável, baseando-se numa possibilidade de infiltração de uma num bilião. Iriam ocorrer diversas demissões, e inclusive processos criminais por negligência culposa.

Os oficiais técnicos em Murmansk começaram a planear a enorme operação que seria necessária para tirar a massa de aço inerte daquele banco de areia. Os meios de comunicação de televisão e rádio sediados em Moscovo e controlados pelo governo, que ao meio-dia ainda nem sequer tinham divulgado a história, tentavam descobrir qual a melhor maneira de explicar o que tinha acontecido, ainda que fosse ao dócil público russo. A notícia, essa, estava a espalhar-se: mesmo numa ditadura controladora, o poder da Internet não pode ser contido por muito tempo.

No seu gabinete no sétimo andar em Iasenevo, o homem que controlava o ramo de informações externas da Federação Russa olhava fixamente pela janela de vidro laminado que dava para o bosque de bétulas por baixo. Ao longe, conseguia ver o clarão do ponto onde o sol primaveril tocava nas cúpulas em forma de cebola da catedral de São Basílio, na praça Vermelha. Sabia que a chamada estava iminente: chegou ao meio-dia do dia a seguir ao encalhe. Ievgueni Krilov sabia quem estava do outro lado da linha - era o telefone vermelho. Atravessou a sala para atender ao segundo toque. O homem do SVR ouviu durante uns instantes e depois pediu que lhe trouxessem o carro.

Como o discreto inglês que naquele momento se instalava num pequeno apartamento londrino, Krilov era um oficial de informação de carreira, tendo começado sob o regime comunista. Também ele fora reconhecido por um olheiro nos tempos de universidade e, em seguida, alvo de intensos interrogatórios antes de ser admitido no KGB.

Um outro integrante da sua leva de admissões fora o homem cuja chamada estava então a atender, o antigo agente da polícia secreta que se tornara senhor de toda a Rússia. Mas ao passo que o Vojd fora nomeado para a Segunda Direção-Geral (administração interna) e destacado para Dresden, na Alemanha de Leste controlada pela Rússia, Ievgueni Krilov revelara um dom para línguas e garantira uma colocação na Primeira Direção-Geral (espionagem no estrangeiro), considerada a melhor agência secreta do mundo. Trabalhara em três embaixadas no estrangeiro, duas delas hostis: Roma e Londres. Falava um italiano aceitável e um inglês excelente. Como o Vojd, abandonara o comunismo sem hesitação na altura devida, pois há muito que percebera as suas inúmeras deficiências. Mas nunca perdeu a sua paixão pela Mãe Rússia.

Embora naquele momento não fizesse ideia de como o desastre das Goodwin Sands acontecera, nem de quem fora o responsável, ele e o inglês, ironicamente, já se tinham enfrentado nas suas longas carreiras na espionagem.

A limusina ZiL de Krilov entrou no recinto do Kremlin, como sempre, pela porta de Borovitski, interdita a todos exceto aos oficiais superiores. A despeito de ser impossível a um subalterno deslocar-se num ZiL, os guardas fanaticamente leais do FSO, o Serviço Federal de Proteção russo, mandaram parar o carro e olharam atentamente para Krilov através da janela. Logo após, levantaram a cancela e fizeram sinal ao condutor para seguir.

O Vojd tem três gabinetes. Há o grande gabinete exterior, suficientemente amplo para receber delegações; o pequeno interior, que é funcional, corriqueiro, com as bandeiras cruzadas atrás de secretária, uma delas a bandeira nacional russa, a outra a da águia bicéfala preta. Quase ninguém tem acesso à sala mais pequena e íntima, onde estão os retratos de família, mas foi aqui que Krilov foi recebido. O homem que controlava por completo o regime infestado de criminosos da Nova Rússia estava branco de raiva. Mal conseguia expressar-se de tanta agitação.

Krilov conhecia-o bem. Não só tinham idades próximas, como as suas carreiras haviam decorrido em paralelo. Ele sabia que o Vojd nunca superara totalmente a desintegração do império russo que era a URSS durante a presidência de Mikhail Gorbachev, a quem nunca perdoara. Observara o Vojd a ferver de cólera à medida que a URSS se desintegrava e que humilhações e desgraças umas a seguir às outras eram infligidas à sua adorada Mãe Rússia. Ele não traíra o comunismo - tinha sido exatamente ao contrário: o comunismo é que traíra o país dele. O Vojd regressara da Alemanha pouco antes de a República Democrática Alemã desaparecer para se juntar à Alemanha Ocidental. Ascendera na hierarquia da estrutura burocrática que governava a sua São Petersburgo natal e depois fora transferido para Moscovo. Na capital, submetera a sua carreira à sorte de Boris Ieltsin, sendo levado ao colo pelo velho bêbado até se tornar o Senhor Indispensável. Não era segredo que nunca tivera respeito algum por aquele decrépito alcoólico, mas fora capaz de o manipular até um ponto em que, ao deixar a presidência para se retirar e morrer em paz, Ieltsin o ungira seu sucessor.

Durante os anos de Ieltsin, o atual chefe exasperara-se ao ver a sua pátria sistematicamente despojada de todos os seus recursos minerais e naturais, para estes serem entregues por oficiais corruptos a oportunistas e criminosos. Só que, na altura, não havia nada que ele pudesse fazer. Quando chegou à presidência, aprendera e capacitara-se de que havia três pilares do poder na Rússia, que nada tinham mudado desde o tempo dos czares.

Esqueçam a democracia: era uma falsidade e um embuste, e, em todo o caso, o povo russo não a desejava verdadeiramente. Os três pilares do poder eram o governo com a sua polícia secreta, aqueles que tinham enormes quantidades de dinheiro e, por último, o submundo do crime. Quem formasse uma aliança entre os três, poderia governar a Rússia para sempre. Por isso, ele fê-lo.

Por intermédio do FSB, o novo nome da polícia secreta, era possível deter, acusar, julgar e condenar quem quer que se atravessasse no caminho. Esse tipo de poder significava que se podia ganhar qualquer eleição, mesmo que, se necessário, de forma fraudulenta; significava que os meios de comunicação social fariam e publicariam aquilo que lhes dissessem; e significava que a Duma, o parlamento, promulgaria todas as leis que lhe mandassem. Juntando a isto as Forças Armadas, a polícia e o sistema judicial, tinha-se o país sob controlo.

Quanto ao pilar número dois, era fácil lidar com quem tinha enormes quantidades de dinheiro. O enfurecido ex-agente da polícia secreta podia ter fervido de cólera enquanto via o seu país desapossado dos seus recursos naturais e, na sequência, devido ao surgimento de uma rede de quinhentos oligarcas multimilionários, mas não hesitou em juntar-se a eles. Ievgueni Krilov sabia que estava numa sala com o homem mais rico do país, possivelmente do mundo. Ninguém lucrava um rublo que fosse com um negócio na Rússia sem pagar a devida percentagem ao chefe supremo, ainda que o fizesse através de uma complexa rede de empresas-fantasma e testas de ferro.

E quanto ao terceiro fator, os impiedosos ladrões na lei, esta sociedade alternativa existia desde o tempo dos czares e tinha, na realidade, dirigido internamente os campos de trabalho, os temíveis campos do Gulag, em todo o país. Após a queda do comunismo, os vori v zakone tinham-se expandido e estabelecido extensas e lucrativas sucursais na maior parte das cidades do mundo desenvolvido, especialmente em Nova Iorque e Londres. Eram muito úteis para "trabalho húmido", isto é, a obediente aplicação de violência quando e onde necessária (o "húmido", claro, refere-se ao sangue humano).

O Vojd mostrou-se de poucas palavras, bem como de poucas instruções. Não tinha necessidade de mencionar o nome Almirante Nakhimov.

- Não foi um acidente, nem uma avaria técnica; foi sabotagem. Isso é muito claro. Quem fez isto, e as minhas suspeitas recaem sobre os nossos inimigos do Reino Unido, impôs uma tremenda humilhação ao nosso país. O planeta inteiro está a ver o nosso navio encalhado num banco de areia inglês. Tem de haver represálias. Deixo isso a teu cargo. Tens três ordens: descobre quem foi; localiza essa pessoa ou pessoas; elimina-as. Podes ir.

Krilov tinha as suas ordens. Enquanto os maiores rebocadores da Marinha russa e do mundo naval eram chamados ou fretados para rumarem ao canal da Mancha, ele regressou de carro a Iasenevo com a missão de dar início a uma caça ao homem.

No mundo da espionagem, poucas coisas são assim tão simples, mas Krilov teve um golpe de sorte. À medida que as novas ordens iam descendo de andar em andar em Iasenevo, um arquivista de olho apurado lembrou-se de ter visto um documento de segunda importância enviado de Washington. Umas semanas antes, por motivos desconhecidos, o governo americano apresentara um pedido aos britânicos para a extradição de um pirata informático. Passados alguns dias, também sem motivo concreto, os Estados Unidos tinham cancelado o pedido. Podia não ser nada, raciocinou Krilov, mas até no mundo das informações secretas, descrito certa vez pelo veterano da CIA James Angleton como uma "profusão de espelhos", dois mais dois ainda dava quatro. Dois piratas informáticos em destaque num só mês? Mandou que lhe enviassem o dossiê. Havia pouca coisa que pudesse ser acrescentada à breve informação proveniente do departamento do procurador-geral norte-americano, mas o delinquente em tempos procurado chamava-se Luke Jennings e era de Luton.

Ievgueni Krilov tinha duas cadeias de agentes no Reino Unido. Uma delas era oficial: a rede dentro da embaixada russa, ou o que restava dela depois das desastrosas expulsões que se seguiram ao caso Skripal. A sua reconstrução estava em curso. A chefiar esta rede estava o recém-nomeado Stepan Kukuchkin, que simulava ser conselheiro comercial adjunto mas provavelmente não enganava ninguém.

A outra cadeia de Krilov era composta por "ilegais" ou "adormecidos" que se faziam passar por cidadãos britânicos de pleno direito e falavam um inglês perfeito. O agente que os chefiava fingia ser lojista no West End londrino e o seu nome inglês era Burke; o seu verdadeiro nome era Dmitri Volkov.

Em termos gerais, os agentes adormecidos encaixam-se em duas categorias. Alguns nascem e são criados nos países que mais tarde estão preparados para trair. Podem passar facilmente por alguém natural dessa terra, porque é exatamente isso que são. Quanto a motivações, há várias.

Durante a Guerra Fria, a generalidade dos ocidentais que traíam a sua própria pátria eram comunistas fervorosos para os quais a ânsia de ver o comunismo triunfar em todo o mundo ultrapassava qualquer lealdade que pudessem ter ao país em que viviam. Do outro lado da Cortina de Ferro, aqueles que estavam preparados para trabalhar para o Ocidente faziam-no quase sempre devido a um profundo desencantamento, que amadurecia até passar a aversão, com as ditaduras comunistas em que tinham nascido. Existiam outras motivações - ganância, rancor pelo tratamento a que haviam sido sujeitos, o desejo de conseguir uma fuga assistida para uma vida melhor no Ocidente -, mas a principal era o desejo de ajudar a derrubar um regime que tinham passado a desprezar. Geralmente, ofereciam os seus serviços uma única vez, em troca de auxílio na evasão, mas eram persuadidos a permanecer como "agentes no lugar" até ganharem o direito à saída.

A outra categoria era composta de patriotas bem diferentes, inseridos com grande risco pessoal no país-alvo, do qual fingem ser naturais e onde, sendo fluentes tanto na sua língua quanto na sua cultura, vivem e servem o seu verdadeiro amor: a pátria. Estes são conhecidos como "ilegais" e também como "adormecidos".

No que toca à sua utilização, há igualmente duas escolhas. Alguns limitam-se a passar com regularidade a informação que lhes chega ao conhecimento em virtude da profissão que exercem. Trata-se as mais das vezes de dados de baixo nível, cuja extração não acarreta grande risco. Mas estes agentes têm de ser "assistidos" ou "trabalhados", o que significa que precisam de um canal constante através do qual possam passar a informação recolhida, de modo a que ela acabe por chegar ao quartel-general da secreta do país que servem.

Era esta a função que a agente adormecida no Departamento de Justiça norte-americano desempenhara quando reparou que os Estados Unidos tinham anulado, sem explicação alguma, um pedido feito aos britânicos para a extradição de um adolescente inglês chamado Luke Jennings, de uma cidade de nome Luton e sob a acusação de acesso ilegal a computadores norte-americanos com informação secreta.

O outro modo de utilização era manter completamente incógnito um agente que pudesse ser chamado para missões pontuais - uma tarefa aqui e ali, um pouco de trabalho de detetive. Foi precisamente isto que o agente russo Dmitri Volkov ficou incumbido de fazer no cumprimento da missão imposta por Krilov.

Dois dias depois, Volkov, ou o senhor Burke, reparou num pequeno anúncio no sítio habitual do jornal habitual. Continha o habitual conjunto de palavras inócuas que indicavam que ele era desejado em Moscovo. Fechou a loja e viajou para leste, fazendo escala em três países distintos, todos na União Europeia e signatários do acordo de Schengen, o que significava que quase não havia controlo alfandegário. Chegou como turista ao aeroporto de Cheremetievo ao fim de vinte horas em trânsito. No táxi a caminho do centro de Moscovo, voltou a usar o seu passaporte russo.

A reunião foi curta e concisa - Volkov nem sequer foi a Iasenevo. O encontro decorreu na cidade, para prevenir uma possível identificação inconveniente na sede; ele já trabalhara nesse local e alguns antigos colegas ainda lá estavam. Valia sempre a pena ser cuidadoso.

Krilov deu ao seu agente no Reino Unido tudo aquilo que tinha: o alvo era Luton; o nome de família, Jennings; e um deles era viciado em computadores. Onde é que ele estava agora? Passadas vinte e quatro horas, Dmitri Volkov estava de regresso a Londres. Nada fora passado para o papel, e muito menos por ondas eletromagnéticas ou pela Internet.

Enquanto regressava ao Reino Unido, Dmitri Volkov, outro espião de toda a vida e veterano dos velhos tempos, pôs-se a refletir sobre a ironia de que toda esta tecnologia moderna significava simplesmente que a segurança total exigia agora os métodos antigos, um "encontro" em pessoa. Também chegou a uma conclusão quanto aos "agentes adormecidos" que iria utilizar de entre os vinte que tinha à sua disposição: optou por quatro.

Era sua intenção que nenhum dos seus quatro cidadãos britânicos soubesse fosse o que fosse sobre os outros três. Todos eles estavam encarregados de o manter informado por meio de telefonemas inócuos.

Um deles descobriria qual a família Jennings da qual fazia parte um Luke e onde é que ela morava, ou havia morado, caso se tivesse mudado. Então, Krilov passaria esta informação ao agente B. E nada mais. O segundo agente investigaria a casa; se estivesse desocupada, poderia, fazendo-se passar por um possível comprador, indagar junto do agente imobiliário e, porventura, dos vizinhos. O terceiro investigaria a vida social do alvo. O quarto permaneceria no hotel, de reserva.

O motivo para escolher quatro agentes adormecidos prendia-se com segurança. Um único homem a fazer perguntas por toda a cidade podia ser descoberto se, por acaso, o próprio Luke Jennings fosse igualmente objeto de interesse para a contraespionagem britânica.

Passados dois dias, os quatro agentes entraram em Luton em carros separados, vindos dos pequenos hotéis, todos eles diferentes, onde estavam alojados. Em síntese, as suas instruções consistiam no seguinte: agir com rapidez.

O agente A fora encarregado de dar uma olhadela ao registo eleitoral. No Reino Unido, trata-se de um documento público - é estudado por funcionários dos círculos eleitorais. Também inclui moradas. Ao fim de um dia, o agente A já tinha informações para dar. Havia nove famílias Jennings em Luton, mas apenas uma delas incluía alguém chamado Luke. Estava inscrito como tendo dezoito anos, fazendo parte do registo eleitoral por ter passado a preencher os requisitos aquando do seu último aniversário. O registo indicava que vivia com os pais. Havia uma morada para os três eleitores que agora lá residiam: os dois pais, Harold e Sue, e o adolescente.

O agente B foi informado acerca do sítio aonde se devia dirigir e passou por lá de carro. No jardim, uma placa anunciava que a casa estava para venda. A agência imobiliária estava registada. O agente B deslocou-se às suas instalações e marcou uma visita à habitação para esse dia à tarde.

Durante a mesma, pôde ver claramente que a casa fora esvaziada e limpa por profissionais. Não havia sequer um envelope antigo, uma fatura ou uma conta a indicar para onde poderia ter ido a família. Até chegar ao armário debaixo das escadas; o agente B insistiu em espreitar em toda a parte e, na pequena área junto ao átrio, contra a parede do fundo, estava um tee de golfe abandonado. Era possível que aquele armário escuro tivesse em tempos guardado um saco de tacos de golfe, porventura um passatempo do pai.

No dia seguinte, entrou em cena o agente C. Há três clubes de golfe a funcionar na cidade de Luton. Do seu quarto de hotel, o russo ligou para o primeiro e, depois, saiu-lhe a sorte grande com o segundo. O seu falatório era perfeitamente inofensivo:

- Oiça, pergunto-me se me poderia ajudar. Acabei de me mudar para a zona de Luton e estou a tentar retomar o contacto com um velho amigo que aqui vive. Ele enviou-me o cartão dele, mas, armado em parvo, perdi-o. Ele disse-me na altura que se tinha feito membro de um clube de golfe espetacular. Será que eram vocês?... Chama-se Harold Jennings.

Do outro lado da linha estava o secretário assistente.

- Temos um Harold Jennings nos nossos registos, de facto. Será que é este?

- Sim, deve ser esse. Por acaso, não tem o contacto dele?

Era um número fixo e estava desligado. Quase de certeza que se tratava do número da casa abandonada. Não que isso tivesse alguma importância. O agente C conduziu até ao clube de golfe.

Escolheu a hora de almoço, pediu para ver o secretário e perguntou se seria possível inscrever-se como membro.

- É possível que o senhor esteja com sorte - disse o afável funcionário. - Normalmente, estamos cheios até aos olhos, mas recentemente ficámos sem um par de associados: um foi para o grande décimo nono buraco do céu, e creio que o outro emigrou. Deixe-me apresentar-lhe o bar enquanto vou verificar.

O bar estava apinhado e alegre, com os membros a virem do décimo oitavo buraco em grupos de dois e de quatro, a deixarem o seu equipamento no vestiário e a pedirem um aperitivo no bar antes do almoço. O agente C foi circulando. A sua conversa era a mesma do telefone.

- Acabei de me mudar de Londres para aqui. Um grande amigo meu era membro aqui do clube: o Harold Jennings. Ele ainda anda por cá?

Toby Wilson estava no bar, ao balcão, e o seu nariz grande e cheio de veias indicava que era uma pessoa habituada àquele lugar.

- Andava até há um mês. Vai fazer-se membro? Bem jogado! Sim, o Harold emigrou. Oh, sim, claro que aceito. Um gin tónico. Muito obrigado.

O empregado do bar conhecia bem este homem: o copo efervescente estava em cima do balcão antes mesmo de o seu antecessor ficar vazio. O secretário regressou com formulários para preencher; o agente C assim o fez. Nunca o iriam tentar localizar, de qualquer maneira - a morada que ele deu era completamente falsa. "É só uma formalidade", explicou o secretário. A proposta teria de ser apresentada ao comité, mas ele não acreditava que fosse haver algum problema com um grande amigo de Harold Jennings com handicap 10. Entretanto, porque não aproveitar o bar como seu convidado? Nesse momento, chamaram-no e o agente C pôde voltar a dar atenção a Toby Wilson.

- Sim, uma coisa triste, na verdade. O casamento dele foi por água abaixo. Mas acredite que eu não me importava nada de lhe ter ficado com a mulher. Que naco!

- A Sue, não era?

- Isso mesmo. Uma miúda linda. Bem, seja como for, separaram-se e ele foi para Nova Iorque. A última vez que soube dele, percebi que arranjou um bom emprego, um apartamento jeitoso, uma vida nova.

- Então têm falado?

- Ele deu-me uma apitadela noutro dia.

Uma hora depois, o agente C ajudou Toby a chegar ao carro e, nesse meio-tempo, um telemóvel acabou transferido do bolso de Wilson para o do agente.

Quando o agente C transmitiu as informações a Dmitri Volkov, acabou por ajudá-lo enormemente. Se o pirata informático fosse o rapaz, tanto ele quanto a sua mãe tinham decididamente desaparecido de Luton. Mas se alguém sabia onde eles estavam, era o pai. Harold Jennings mudara-se para Nova Iorque, mas o agente sabia agora qual o seu número de telemóvel.

O SVR tinha outra cadeia de agentes na cidade de Nova Iorque e, com tecnologia de localização moderna, um número de telemóvel é tão valioso como uma morada. A colónia de criminosos russos em Nova Iorque foi contactada em conformidade.


CAPÍTULO SEIS

Não havia nada de invulgar naquele contentor do lixo de uma suja rua nova-iorquina nessa manhã de meados de março, com exceção da perna humana que baloiçava fora dele.

Se o contentor estivesse vazio, o corpo teria ficado no fundo e escondido ao longo de dias ou mesmo semanas. Só que não estava. Se o proprietário de um apartamento bem acima do nível da rua tivesse olhado para baixo, poderia ter visto o membro do cadáver dependurado fora do contentor, mas não havia ali apartamentos.

O contentor ficava num terreno baldio com passagem para um beco sujo em Brownsville, não muito longe de Jamaica Bay, em Brooklyn. Em redor do beco, havia armazéns antigos e vazios - mesmo no meio de uma zona industrial degradada. A única razão para o agente em patrulha ter visto a perna era porque entrara no baldio para se aliviar.

Apertou a braguilha e chamou o parceiro. Os dois jovens olharam para o membro pendente e depois espreitaram para o interior. O resto do cadáver estava deitado de costas: um homem branco de meia-idade, com os olhos abertos, desprovidos de vida, a olharem cegamente para cima. O parceiro informou a esquadra local de ambos. Em seguida, a máquina habitual entrou em funcionamento.

Depois de verificarem que a vida estava efetivamente extinta, os polícias de rua deixaram o corpo ficar onde estava - era um assunto para a secção de investigação e o perito médico-legal. Enquanto esperavam pela chegada destes, os agentes inspecionaram a área adjacente e, num armazém próximo, fétido e vazio se não fosse pelo lixo espalhado pelo chão, um deles encontrou cordas atadas a uns tubos de aquecimento. Parecia que - e o perito médico-legal confirmá-lo-ia a partir das marcas de abrasão nos pulsos - a vítima tinha sido atada aos tubos, ao que tudo indica para levar uma tareia.

Um sedan descaracterizado apareceu, circulando com todo o cuidado por um beco coberto de detritos. Dois inspetores saíram para se juntar aos dois agentes no local e dar uma vista de olhos ao corpo. Uma equipa de investigação criminal chegou para delimitar o contentor e a área circundante com fita amarela. A passagem seria interdita a transeuntes, mas não havia ali ninguém; os bandidos que haviam feito aquilo tinham escolhido bem a rua.

O perito médico-legal chegou a seguir. Demorou muito pouco tempo a declarar o óbito, presumivelmente por homicídio, e a permitir a recolha do corpo. A sua equipa puxou-o para fora do contentor e levou-o para uma maca, depois para a sua carrinha e daí para a morgue. Nessa altura, o perito médico-legal já tinha conseguido determinar que o corpo estava vestido por completo mas tinha sido desapossado de objetos de valor. Tinha marcas de pressão de ambos os lados do nariz, mas não havia óculos nenhuns; foram encontrados mais tarde, perto das cordas no armazém. Tal como um lenço abandonado. Havia uma marca de um anel de sinete num dedo, mas aquele desaparecera. Todos os bolsos estavam vazios; não havia carteira, nem identificação. Um exame mais minucioso teria de ser feito na morgue.

Foi aí que o perito médico-legal, durante a remoção das roupas do cadáver, reparou em duas outras particularidades. Havia um círculo em redor do pulso esquerdo onde teria estado um relógio, mas não havia relógio nenhum. Mais estranho ainda era que as etiquetas nas peças de vestuário indicavam que não se tratava de marcas americanas; as roupas pareciam ser inglesas. O perito médico-legal ficou desanimado: um turista morto, raptado e assassinado num ermo eram más notícias. Mandou chamar um inspetor-chefe.

Quanto ao resto, conseguiu determinar a causa da morte: insuficiência cardíaca. A vítima fora esmurrada com força no rosto; o golpe tinha-lhe partido o nariz e havia sangue coagulado nas narinas e à volta da boca. Também fora esmurrada no plexo solar. Tornou-se evidente, uma vez aberta a caixa torácica, que a vítima tinha um coração fraco, embora pudesse não estar ciente disso, e o trauma a que fora sujeita - o terror, a dor, a agressão - tinha provocado uma paragem cardíaca. O inspetor desceu e juntou-se ao perito médico-legal.

Também ele examinou as etiquetas do vestuário: Jermyn Street. Isso não ficava em Londres? A vítima era de meia-idade, com algum excesso de peso mas não obesa; tinha mãos macias. Pediu para lhe limparem e fotografarem o rosto, e que lhe tirassem as impressões digitais, claro, além de uma amostra de ADN. Se ele era da Grã-Bretanha e chegara há pouco tempo, devia ter passado pelo controlo de imigração, provavelmente no aeroporto Kennedy.

O que o inspetor Sean Devlin queria era um nome. O homem morto tinha residência em Nova Iorque? Estava hospedado num hotel na cidade? Com amigos? A juntar às roupas inglesas, havia outras singularidades. Isto não fora um assalto de rua que correra mal; os ladrões atacam sem aviso, agridem, incapacitam, roubam e fogem. Este homem devia ter sido sequestrado a quilómetros de distância, levado até àquela zona degradada, atado aos tubos de metal e espancado. Porquê? Como castigo? Para lhe sacar informação?

Uma vez na posse das fotografias, o inspetor Devlin fê-las chegar a três agências estatais: o Serviço de Imigração e Controlo Alfandegário, conhecido simplesmente como ICE; o omnipresente Departamento de Segurança Interna; e, claro, o FBI. Levou um dia, e foi a tecnologia de reconhecimento facial a encerrar o assunto. Na esquadra de Brownsville a que o inspetor Devlin estava ligado, começaram, de súbito, a aparecer agentes do FBI vindos de todas as partes. O falecido era um residente recém-chegado e estava sob proteção da agência. A coisa ia tornar-se embaraçosa, mas não para o agente Devlin - ia até ao topo da hierarquia nos escritórios do FBI em Nova Iorque.

Os registos mostravam que fora concedida autorização ao senhor Harold Jennings para se mudar e estabelecer-se na cidade de Nova Iorque e que a extensa e necessária papelada fora agilizada pelo FBI, como um favor à primeira-ministra britânica, cujo pedido fora feito através da Scotland Yard. Esta agência teria de ser informada, e merecia um pedido de desculpas.

Em Londres, um homem chamado Adrian Weston também foi informado. Deslocou-se de carro até Chandler's Court e transmitiu a informação com pesar à senhora Sue Jennings e aos seus dois filhos. O mais novo, Marcus, derramou algumas lágrimas; o mais velho registou a morte do seu pai como um facto, juntamente com muitos outros que armazenava.

Sue Jennings perguntou se o corpo do seu marido podia ser repatriado para o enterrarem em Inglaterra; foi-lhe prometido que sim. O consulado britânico em Nova Iorque foi incumbido de fazer a ligação com o FBI, de modo a que tal acontecesse assim que o cadáver pudesse ser libertado. Ela fez ainda referência a um relógio que gostaria de ver devolvido; tinha valor sentimental.

Explicou que se tratava de um Rolex Oyster dourado. Fora um presente seu para o marido pelo décimo aniversário de casamento de ambos e tinha uma frase gravada; no interior, dizia: "Para o Harold, com amor da Sue, no nosso décimo aniversário."

Nova Iorque respondeu que não havia sinal do relógio, mas que a perseguição aos assassinos estava em curso e que o Departamento de Polícia de Nova Iorque emitira um alerta para ficarem atentos a um Rolex dourado com essa gravação. Havia uma lista que era entregue regularmente em casas de penhores e joalharias, e este alerta fora lá incluído, mas ainda não dera frutos.

Sir Adrian ficou perturbado com o incidente em Nova Iorque - era demasiada coincidência. Se Moscovo estabelecera uma ligação entre o desastre do Almirante Nakhimov e o Reino Unido, fizera-o com inusitada rapidez, e isso era preocupante. Ligou para o FBI em Nova Iorque e pediu para falar com o inspetor a quem o caso fora atribuído. Com a ajuda do FBI, conversou longamente com o agente Devlin, de Brooklyn, que o ajudou tanto quanto lhe era possível, que não foi nada por aí além. E então, durante uma semana, a pista esfumou-se.

No dia em que o corpo encontrado no contentor em Nova Iorque foi identificado como Harold Jennings, oito dos mais poderosos rebocadores oceânicos do Ocidente foram reunidos no estreito de Dover e engatados ao cruzador de batalha encalhado. Cabos de aço da grossura da cintura de um homem serpenteavam desde as suas popas até ao imóvel leviatã. No pico da maré de sizígia, todos puxaram em conjunto. As duas enormes hélices do Nakhimov revolveram toneladas de areia fina debaixo da popa. Centímetro a centímetro, depois palmo a palmo, depois metro a metro, o navio deslizou para trás, libertando-se das Goodwins para águas profundas.

Ao longo de dez dias, o Almirante Nakhimov fora uma atração turística. Donos de lanchas com espírito empreendedor de toda a costa de Kent tinham organizado excursões àquela parcela de águas calmas entre as Goodwins e o litoral conhecidas como Downs. Os visitantes tiraram milhões de fotografias, normalmente de si próprios, a sorrir de orelha a orelha, com o cruzador de batalha em fundo.

Assim que o navio ficou livre, os oito rebocadores desengancharam-se e dispersaram rumo às suas bases: os russos partiram para o Báltico e os holandeses e os franceses que haviam sido chamados para ajudar, para os respetivos portos. O Nakhimov, contudo, não chegou muito longe na sua viagem até ao extremo oriente russo - precisava de uma inspeção ao casco. Uma vez novamente em marcha, virou para norte, de volta à Sevmach, em perfeitas condições de funcionamento. Para os habitantes de Kent, o espetáculo tinha terminado. Não era assim, contudo, que o Kremlin via as coisas.

Como tantas vezes acontece com investigações policiais, a oportunidade, quando surgiu, não foi mais do que um acaso feliz. Um gatuno foi preso e usava um relógio Rolex dourado com uma gravação. E era russo.

Há seiscentos mil russos na cidade de Nova Iorque e metade deles vive e trabalha na zona conhecida como Brighton Beach, uma comunidade no sector norte do distrito de Brooklyn, espalhada ao longo da costa da península de Coney Island. Inclui um submundo do crime pujante e violento constituído por vários gangues conhecidos. O Departamento de Polícia de Nova Iorque tem uma equipa alargada de agentes falantes de russo cuja única preocupação são Brighton Beach e os seus gangues.

O homem detido chamava-se Viktor Ulianov e deixou bem claro que não fazia tenção de falar. Era evidente que se tratava de um delinquente bem afastado do centro de poder dos gangues - e era extremamente estúpido.

Tentara um assalto a solo numa frondosa zona de Queens, a quilómetros de casa, escolhendo um homem com aspeto de executivo respeitável que vinha a descer a rua onde vivia. Mas não fora o dia de sorte de Viktor: o empresário de meia-idade tinha combatido pelos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Atlanta na modalidade de boxe, categoria de meio-pesados, e o seu punho direito ainda era um impressionante conjunto de músculo e osso.

Antes que Ulianov pudesse fazer uso da sua faca, o punho do seu alvo travara já conhecimento com o seu queixo e ele acordara no passeio para dar por si rodeado de várias pernas vestidas de azul. No posto policial, acabou gozado e afundou-se numa tristeza carrancuda. E todos os seus pertences foram confiscados antes de ele ir para a cela.

Uns andares acima, um polícia novato, mas esperto, olhou para o relógio e lembrou-se de um alerta que fora emitido uma semana antes e que fazia referência a um relógio dourado com uma gravação, pertença de um inglês morto. Falou do assunto ao seu sargento e foi devidamente elogiado pela sua perspicácia. Então, os inspetores tomaram conta da ocorrência e alertaram o FBI.

Uma fotografia do relógio foi mostrada à senhora Sue Jennings, que regressava a Chandler's Court depois do funeral do seu marido numa igreja próxima, e ela confirmou que era o dele. Em Nova Iorque, Ulianov foi informado de que a acusação contra si fora agravada de agressão na via pública para homicídio qualificado.

Recordava-se com toda a clareza do que tinha acontecido. Tinha sido recrutado à última hora para o bando que fora encarregado de sequestrar o contabilista inglês, já que um membro da quadrilha mais sagaz do que os outros tinha saltado fora. Eram cinco e não faziam ideia de que tinham sido contratados para aquele trabalho por um agente russo que trabalhava para o SVR em Moscovo.

O trabalho consistia em ir a um apartamento em Queens, tocar à campainha e, quando o único inquilino viesse à porta, apontar-lhe uma arma, levá-lo para o passeio e daí para a carrinha do bando. Foi isso mesmo que sucedeu na altura devida, com o apavorado prisioneiro a fazer exatamente o que lhe mandaram. Estava escuro, pouco faltava para a meia-noite, e ninguém reparou em nada.

Cumprindo as ordens que tinham, conduziram até um armazém abandonado numa zona degradada, não muito longe de Jamaica Bay, ataram o choroso estrangeiro a uns tubos e prepararam-se para completar a tarefa. As suas ordens eram muito simples e passavam por dar-lhe uns murros e fazer-lhe uma simples pergunta: "Onde está o teu filho?"

Mas então a coisa correra mal. Ao segundo soco do chefe do bando, o homem entrara em convulsão, os olhos esbugalharam-se e ele caíra inerte, ficando suspenso nas cordas. Pensaram que ele tinha perdido a consciência e tentaram reanimá-lo, mas estava morto. Tirando as palavras "por favor", repetidas vezes sem conta, não tinha dito rigorosamente nada. O bando ficara mais preocupado com a reação do seu chefe do que com o cadáver.

Três dos cinco tinham ido à rua para descobrir um lugar onde se pudessem desfazer do corpo. O quarto e Ulianov deixaram-se estar para desatar o homem e ver se ele tinha alguma coisa que merecesse a pena levar. O outro russo ficou com o anel de sinete e a carteira, Ulianov ficou com o relógio e enfiou-o no bolso das calças. Mais tarde, pô-lo no pulso, no lugar do seu Timex barato.

Sentado em frente a dois inspetores de olhar frio, o bandido russo percebeu que, se dissesse os nomes dos outros homicidas que estavam com ele, era um homem morto. Por isso, ficou atónito quando lhe fizeram uma proposta bem diferente. Embora, entre eles, soubessem que uma acusação de homicídio não tinha pernas para andar, disseram-lhe que estavam interessados numa única coisa e que talvez pudessem retirar a acusação se a obtivessem: "O que é que o bife disse antes de morrer?"

Viktor Ulianov pensou um bocadinho. Responder àquilo parecia-lhe bastante inócuo. Comparado com uma pena de prisão de vinte anos a perpétua?

- Ele não disse nada.

- Nada? Nada de nada?

- Nem uma palavra. Levou o segundo soco, começou a sufocar e morreu.

Os investigadores tinham a sua resposta. Transmitiram-na à sede do FBI em Washington, que, por sua vez, a transmitiu a Londres.

Para Sir Adrian, a morte repentina de Harold Jennings em Nova Iorque e a garantia do Departamento de Polícia de Nova Iorque de que ele parecia não ter proferido uma palavra que fosse sobre o filho ou, o que era de importância vital, sobre a nova localização dele, eram um alívio parcial. Mas apenas parcial.

Mais pertinente era uma preocupação que o afligia. Como é que os russos tinham ouvido falar do nome "Jennings" ou encontrado o Harold Jennings certo num apartamento em Nova Iorque, a cinco mil e quinhentos quilómetros de distância? Algures - ele não fazia ideia onde -, tinha havido uma fuga de informação.

Tornara-se bem evidente que Moscovo não aceitaria que a humilhação global do seu cruzador de batalha encalhado tivesse sido apenas um azar. Mesmo descontando a tradicional paranoia russa, eles iriam perceber que os seus computadores tinham sido alvo de ataque. Um processo de engenharia reversa tanto a bordo do Nakhimov como na base de dados de Murmansk provaria que houvera um acesso indevido, e muito bem-sucedido, tão engenhoso que passara despercebido até ser tarde demais. Tal iria implicar uma investigação em grande escala. E Sir Adrian albergava uma forte suspeita relativamente a quem é que essa investigação tinha sido confiada.

Essa é uma das particularidades dos vultos do mundo das secretas. Como jogadores de xadrez, estudam-se mutuamente. Vencer pela astúcia e não pelo poder de fogo é o ideal. Os tiros são para homens em fardas de camuflagem; um xeque-mate é mais satisfatório. Sir Adrian usara o camuflado nos paraquedistas e o fato escuro na Firma.

Embora fosse para cima de dez anos mais velho do que o homem de Iasenevo, reparara na estrela em ascensão no SVR quando ainda era diretor-adjunto do MI6. Ievgueni Krilov revelara-se outrora subtil e obstinado, no cargo de responsável pela Divisão da Europa Ocidental, e não dececionara na sua carreira posterior. Continuara a subir na hierarquia até chegar ao gabinete no sétimo andar.

Conta-se que, durante a campanha do deserto no norte de África, na Segunda Guerra Mundial, o general britânico Bernard Montgomery passava horas na sua caravana a fitar uma fotografia do seu adversário, o alemão Erwin Rommel; estava a tentar perceber aquilo que o seu inimigo iria fazer a seguir. Sir Adrian mantivera um dossiê sobre Ievgueni Krilov, e também este continha um retrato. Falou com os seus antigos colegas em Vauxhall Cross e foi-lhe permitido, em memória dos velhos tempos, ficar numa sala sozinho a estudar o ficheiro de Krilov.

No fim da década de noventa, Krilov passara dois anos a servir sob as ordens do Rezident, ou chefe de posto, na unidade do SVR dentro da embaixada russa em Londres. Tinha o estatuto de "não declarado", o que significava que se estava a fazer passar por um inofensivo adido cultural, mas os britânicos sabiam exatamente quem ele era.

Na estranha danse macabre que é a espionagem, é frequente agentes de lados opostos deslocarem-se a receções em embaixadas - conversando, sorrindo abertamente, fazendo brindes e fingindo serem todos eles alegres diplomatas a conviver, quando, por trás da máscara, a sua intenção é levarem a melhor sobre o adversário e destruí-lo. Sir Adrian guardava a impressão de que tinha conhecido o (então) novel espião russo numa dessas receções na embaixada russa.

O que ele não podia saber era que quase se tinham visto uma segunda vez. Teria sido em Budapeste, naquela ocasião em que ele virara costas a um encontro com um coronel russo desertor por ter tido a sensação de que tinha sido "queimado". Veio a saber que tinha razão: o coronel fora torturado e confessara tudo antes de ser executado. Visto que o traidor era russo, a polícia secreta húngara, mais conhecida por ÁVO, tinha convidado um elemento da embaixada da Rússia para estar presente aquando da captura do agente britânico. Budapeste era o terceiro posto de Krilov no estrangeiro. Permanecera junto à cilada da ÁVO, à espera do espião britânico que nunca apareceu.

Depois de fechar o dossiê e deixar Vauxhall, as suspeitas de Sir Adrian tornaram-se mais fortes. Krilov não fora promovido de moço de recados da embaixada russa até ao sétimo andar em Iasenevo por nada. Devia ser ele o homem incumbido de localizar o super-hacker.

Weston sabia igualmente que Moscovo estava a par de dois nomes: "Jennings" e "Luton". Não sabia como, mas, em todo o caso, isso já não interessava. A família Jennings desaparecera de lá, mas Sir Adrian tinha todo o direito de supor que Moscovo nunca tinha ouvido falar do nome "Chandler's Court". E no entanto... no entanto... lá estava aquela intuição outra vez. Era por isso que queria uma equipa pequena mas batida junto ao rapaz; uns quantos soldados em Chandler's Court era capaz de não ser má ideia. Numa viela miserável em Brownsville, os lacaios escolhidos por Krilov tinham-lhe falhado, mas se Moscovo decidira de facto que as cabeças e as mãos que tinham levado a cabo a humilhação do Almirante Nakhimov se localizavam naquela pequena ilha na costa noroeste da Europa que o Vojd tanto abominava, ele não iria ficar por ali. Voltaria a tentar.

Sir Adrian teria ficado ainda mais inquieto se conseguisse pairar, como um espectro, dentro do escritório do seu opositor, que ficava por cima de um bosque de bétulas em Iasenevo.

Aberta sobre a secretária de Krilov estava uma enorme impressão de uma fotografia. A original tinha sido tirada por um satélite espacial russo que rodava sem ser visto sobre o centro de Inglaterra, desviado do seu rumo preestabelecido a pedido do chefe do SVR. A máquina seguira as coordenadas que lhe tinham sido programadas num local bem abaixo da sua posição atual. Tirara a fotografia e depois voltara à sua órbita original. Da vez seguinte que passou sobre a Rússia, transmitiu a imagem que lhe fora pedida.

Ievgueni Krilov pegou numa grande lupa e examinou a imagem no centro do mapa aéreo. Mostrava uma propriedade murada e arborizada conhecida como Chandler's Court.


CAPÍTULO SETE

Ievgueni Krilov não trabalhava para uma organização dada a suscetibilidades. No seu tempo e, mais recentemente, sob a sua direção, o SVR organizara inúmeros assassínios no estrangeiro, mas Krilov sempre preferira delegar a concretização do trabalho húmido a outros.

Fitando a impressão da fotografia de satélite, percebeu que tinha resolvido os dois primeiros problemas que lhe tinham sido apresentados pelo Vojd. A intuição do presidente estivera certa, afinal de contas: tinham sido os britânicos, e não os americanos, a infligir esta humilhação à Mãe Rússia, como vingança pelo caso Skripal.

No princípio da primavera de 2018, um russo que vivia tranquilamente na cidade inglesa de Salisbury, com a sua catedral altaneira, esteve muito perto de ser assassinado por agentes russos. Serguei Skripal fora em tempos espião ao serviço do Reino Unido, contra os russos. Fora detetado, julgado, condenado e preso na Rússia. Após a sua libertação, fora-lhe permitido imigrar para o Reino Unido e radicar-se aí.

Vivia tranquilamente, de forma quase invisível, na verdade, quando um agente russo espalhou o mortífero agente nervoso Novichok na maçaneta da sua porta. Tanto Skripal quanto a sua filha Iulia, que estava de visita, tinham tocado no agente tóxico e sido quase mortalmente envenenados. Um até então desconhecido antídoto britânico salvara-os por muito pouco. Todo o mérito foi atribuído a Porton Down.

Ievgueni Krilov sempre fora contra a operação, mas tinha sido desautorizado pelo Vojd. Acabou, contudo, por ter razão: como consequência, trinta e seis diplomatas russos foram expulsos, e os ingleses tinham escolhido bem. Todos eles eram espiões com base na embaixada e a sua partida arruinara a rede de Krilov no Reino Unido.

Fora tudo um erro desastroso, mas ele sabia que referi-lo outra vez era mais do que o seu trabalho valia. Agora, uma nova catástrofe ocorrera, com o encalhe do expoente máximo da Frota do Norte, e a vingança russa era obrigatória. Ao menos, ele já tinha cumprido dois terços dessa tarefa.

Os ingleses tinham arranjado uma arma secreta e estavam dispostos a usá-la com uma implacabilidade que ele tencionava igualar. Não se tratava de uma máquina - era um cérebro humano dentro da cabeça de um jovem autista que conseguia fazer o impossível. Como os especialistas informáticos de Fort Meade, os russos de Murmansk tinham presumido que a complexidade da firewall em torno da sua base de dados era impenetrável, mas foi-lhes mostrado o quanto estavam enganados.

Graças a uma agente em Washington, o jovem tinha agora um nome. Graças a algum trabalho de detetive em Luton, Krilov tinha achado o pai do génio, que se revelara inútil. Agora, uma nova fonte indicara o alvo - o local onde os ingleses estavam a guardar a sua arma secreta, longe da vista e longe do pensamento. Mas não do pensamento de Krilov, que tinha de satisfazer a terceira exigência do Vojd: eliminá-lo, vingar a ofensa.

Havia cinco grupos de assassinos profissionais na Rússia a que Krilov podia recorrer. O verdadeiro dilema que enfrentava era qual deles utilizar.

Ao serviço do governo, havia dois. Havia os da Spetsnaz, soldados das Forças Especiais equivalentes ao SAS, ao SBS e ao quase invisível SRR britânicos; ou então aos boinas verdes, à Força Delta e aos Seals norte-americanos. Todos os soldados eram treinados para ir até ao limite, com competências que variavam ligeiramente atendendo às suas aptidões ou áreas de especialização particulares.

Dentro da Spetsnaz, havia uma unidade secreta treinada para operar no estrangeiro. Os seus integrantes frequentavam uma escola completamente escondida que lhes ensinava como passarem despercebidos, à paisana, em diversas sociedades estrangeiras; como obter as suas armas em "pontos de entrega" secretos onde a embaixada - que as importava em malas diplomáticas que não podiam ser violadas - deixara aquilo de que eles precisavam; e, por fim, como completar a missão e voltar à sua vida normal tão invisivelmente como tinham chegado. Praticavam línguas estrangeiras até atingir um elevado nível de fluência e a mais estudada era a língua comum de todo o mundo: o inglês.

Também ao serviço do governo e sob o controlo de Krilov encontrava-se o velho Departamento 13, agora alargado e rebatizado "Departamento V" ou "Otdel Mokrie Dela", a unidade de "casos húmidos", uma relíquia do velho KGB que não desaparecera quando o organismo foi desmembrado e rebatizado na presidência de Gorbachev.

Tinham sido dois agentes do Departamento V, um como chefe de equipa e o outro para lhe dar cobertura e conduzir o carro alugado, a visitar Salisbury para espalhar Novichok na maçaneta da porta do traidor. Nem o embaixador russo no Reino Unido, um joguete chamado Iakovenko, sabia fosse o que fosse a respeito deles. Tinha sido por esse motivo que fora capaz de aparecer perante a imprensa inglesa e dizer, sem sequer corar ligeiramente, que o caso nada tinha que ver com a Rússia.

Fora do SVR, Krilov podia recorrer ao submundo do crime organizado, os vori v zakone. Podia sempre contar-se com os vori para fazer favores ao governo, sabendo estes que esses favores seriam recompensados na Rússia com contratos e concessões ao seu pandémico império de negócios.

Muito pouco conhecidos no Ocidente eram os motoqueiros, os Lobos da Noite, que operavam com um nível de violência que fazia os Hell's Angels da Califórnia parecerem curas em gozo de folga. Professando um patriotismo selvagem, os Lobos da Noite tinham-se especializado em atacar e estropiar adeptos de futebol estrangeiros que viajavam pela Europa para apoiar as suas equipas. Entre eles contava-se uma mão-cheia de veteranos da Spetsnaz e de falantes de inglês.

Por fim, havia dois grupos não russos nos quais podia confiar para fazer trabalho "contratado" para Moscovo, cada um deles com redes de gangues criminosos conhecidas pelo seu extremo grau de violência: os chechenos e os albaneses.

Era preciso financiamento para os contratados não estatais, mas também isso não constituía problema. O Kremlin tinha relações muito próximas com a rede de bilionários industriais e comerciais que se tinham tornado inimaginavelmente ricos através da alienação dos recursos da sua pátria e depois tinham ido morar para o estrangeiro para viver uma vida de luxo. Alguns, os mais insensatos, tinham-se desentendido com o maior gangster de todos e havia pactos de vingança cruéis estabelecidos entre eles e o Kremlin. Tinham de viver nas suas propriedades no estrangeiro rodeados de equipas de guarda-costas, e mesmo isso não era garantia de que se salvassem. Aqueles que sabiam o que era bom para si próprios asseguravam sempre o financiamento que lhes era requisitado.

Após dois dias de ponderação, Ievgueni Krilov decidiu que iria utilizar os motoqueiros: retiraria uma equipa de elite dos Lobos da Noite, toda ela muito viajada e com domínio do inglês.

Havia lógica por trás desta opção. A responsabilidade do caso Skripal recaíra totalmente sobre a Rússia e fora confirmada pelas secretas do mundo inteiro, visto que o Novichok era uma criação exclusiva da Rússia. Mas o crime não estatal era universal: os motoqueiros podiam ter sido contratados por qualquer pessoa. A seguir à morte do pirata informático, os britânicos, pelo menos a nível oficial, saberiam quem mandara os assassinos, mas, contrariamente à pista do Novichok, nunca seriam capazes de o provar.

Sir Adrian gostava de pensar que era um homem pragmático, preparado para aceitar e encarar a realidade, por muito desagradável que ela pudesse ser. Mas também não desprezava a intuição.

Na sua vida, por duas vezes se recusara a ignorar a sua intuição de que as coisas não estavam bem - por duas vezes sentira o odor do perigo e se afastara o mais depressa possível. Numa dessas vezes, no final dos anos setenta, a Stasi da Alemanha de Leste fechara a sua armadilha imediatamente depois de ele ter atravessado à socapa a fronteira para ficar a salvo no Ocidente. Na outra ocasião, no princípio dos anos oitenta, a rusga do KGB ao café de Budapeste onde ele tinha combinado encontrar-se com um "contacto" ocorrera minutos depois de ele se ter escapulido. Veio mais tarde a saber-se que o contacto já tinha sido levado e acabaria por morrer na Sibéria.

Todos aqueles anos a pôr-se na boca do lobo pelo seu país haviam ensinado Adrian Weston a não menosprezar a intuição, nem a confundi-la com o nervosismo de um cobarde, que ele não era.

A seguir a Budapeste, tinha havido uma deserção da ÁVO, e ele próprio interrogara o homem numa casa-refúgio perto de Londres. Por mero acaso, o magiar fora um dos agentes que aguardavam no local do encontro pelo espião britânico que nunca apareceu. Pôde confirmar isso mesmo, porque o traidor detido era russo e um homem do KGB estivera presente, de seu nome Ievgueni Krilov. Depois daquilo, era de todo natural que Weston tivesse seguido de longe a ascensão sustentada deste Krilov na hierarquia e, após a sua própria reforma, ficara a saber do ponto culminante que fora a promoção do russo à chefia em Iasenevo.

Como profissional, sabia o quanto as expulsões em grande escala de agentes do SVR da embaixada de Londres, no seguimento do caso Skripal, deviam ter desgostado ao homem que, em tempos, quase fora a sua desgraça. Era por esse motivo que outro dos retratos que tinha na mesa de cabeceira era do rosto, retirado dos arquivos de todas aquelas receções de há tanto tempo, do homem que agora dirigia o SVR.

Depois de estudar os relatórios de Nova Iorque do FBI, Sir Adrian sentira novamente aquele odor. Alguma coisa não batia certo. Moscovo estava a andar demasiado depressa. Sir Adrian não estava a par da toupeira no Departamento de Justiça em Washington, mas, de algum modo, Krilov encontrava-se na posse daquele nome, e era o nome certo. E, segundo o FBI, os homens contratados pelo SVR tinham fracassado em Nova Iorque unicamente por causa de um golpe de azar - o coração débil de Harold Jennings.

Estava cada vez mais convencido de que Krilov iria tentar outra vez. Havia uma aura de frenesim em tudo aquilo. As ordens deviam estar a vir diretamente daquele gabinete bem no interior do Kremlin, e iriam ser cumpridas. Sir Adrian tinha espicaçado um urso, e o urso estava furioso. Por isso, o velho mandarim de Vauxhall Cross pediu outra reunião pessoal com a primeira-ministra e apresentou o seu pedido. Quando contou à primeira-ministra aquilo de que suspeitava e também o que queria, ela cerrou os olhos.

- Acha mesmo que pode ser necessário?

- Espero bem que não, mas mais vale prevenir do que remediar, senhora primeira-ministra.

Os políticos raramente têm de ser convencidos da necessidade de prudência. Costuma haver cerimónias de atribuição de medalhas no palácio de Buckingham, mas nunca envolvem políticos.

- Se conseguir autorização do diretor das Forças Especiais. Mas, Adrian, mesmo que seja contrário ao seu, o conselho que vou seguir é o dele - avisou ela.

O diretor das Forças Especiais é um oficial superior do Exército, normalmente com o posto de brigadeiro-general, e tem um gabinete junto a Albany Street, ao lado de Regent's Park. Recebeu Sir Adrian naquela mesma tarde sem demora de espécie alguma - o pedido, afinal, viera de Downing Street. O diretor tinha um ar incrivelmente jovem, pensou Sir Adrian, mas a verdade é que, nos tempos que corriam, todos pareciam sê-lo ao lado dele. Explicou o seu problema, e o brigadeiro não teve dificuldades em percebê-lo - tinha passado vários anos no Regimento antes da sua promoção.

O Regimento não tem nenhum problema no que toca a proteção de proximidade, o termo técnico para trabalho de guarda-costas. Já levou a cabo missões de proteção no mundo inteiro, auxiliando países amigos da Grã-Bretanha e frequentemente treinando os próprios compatriotas dos respetivos chefes de Estado. Cobra honorários consideráveis àqueles cujo nível de proteção de proximidade ajuda a melhorar e passou muito tempo na região rica em petróleo do Golfo Pérsico. Na verdade, é possível que seja a única unidade nas Forças Armadas que dá lucro ao país.

- Está à espera de um ataque, Sir Adrian? - perguntou o soldado.

- Não estou à espera, só que prefiro jogar pelo seguro.

- Nós raramente fazemos proteção de proximidade aqui no país.

Tanto um quanto o outro sabiam que, embora a Polícia Metropolitana tivesse unidades armadas altamente capazes, por vezes os elementos que rodeavam a rainha eram das Forças Especiais. Isso foi algo que ficou por dizer entre ambos.

- Julgo que poderíamos olhar para isto como uma missão de treino - refletiu em voz alta o brigadeiro. - De quantos homens precisaria?

- Uma dúzia, talvez. Há muito espaço para dormirem nas antigas instalações do pessoal. Rações normais do staff de cozinha. Sala de televisão para quem esteja fora do expediente.

O brigadeiro rasgou um sorriso.

- Isso parecem umas férias. Vou ver o que posso fazer.

Chegaram a Chandler's Court dois dias depois e eram doze, no total - três sargentos e nove soldados -, comandados por um capitão de trinta e nove anos de idade chamado Harry Williams. Ia ser-lhe atribuído um quarto no primeiro andar e tomaria as refeições com a família e a equipa do GCHQ.

Sir Adrian fez questão de estar lá para os receber, e isso também lhe proporcionou a oportunidade de os avaliar. Gostou do que viu. Ninguém precisava de lhe dizer que havia um motivo para os homens das Forças Especiais serem denominados "especiais". Em termos gerais, têm um QI muito elevado e múltiplas competências. E nem vale a pena referir a sua forma física superior e a mestria no masuneamento de uma ampla gama de armamento. Dentro das unidades de quatro elementos que constituem as componentes básicas do Regimento, há normalmente um ou dois linguistas, um socorrista de nível paramédico, um engenheiro/mecânico e um armeiro.

Antes da viagem de carro até Chandler's Court, Sir Adrian passara os olhos pelas notas do diretor das Forças Especiais sobre o chefe de equipa. Harry Williams, como Adrian Weston anos antes, fora avaliado como tendo "boa família, boa escola, bons exames e potencial de oficial" quando se voluntariara para o exército, ainda adolescente, e já usava a farda há vinte anos.

Também passara por Sandhurst e fora destacado para os Coldstream Guards, mas, com vinte e cinco anos, ansiando por mais situações de combate, submetera-se ao processo de seleção para o Serviço Aéreo Especial. Essas provas de seleção, que decorrem, em grande parte, nos Brecon Beacons do sul do País de Gales, são tão duras que a percentagem de candidatos escolhidos é diminuta. Harry Williams fora um deles.

No Regimento, o pessoal permanente é designado por "outras patentes", ou alferes e soldados; já os oficiais, ou Ruperts, vão e vêm, e sempre por convite. O capitão Williams estava no seu terceiro destacamento. Estivera em duas operações furtivas - às quais sobrevivera com um ferimento ligeiro de bala na coxa esquerda - para lá das linhas inimigas no Afeganistão e na Síria, onde, segundo testemunhas oculares, tinha "arrumado" (matado) meia dúzia de terroristas.

Sir Adrian lembrou-se das palavras do brigadeiro: "Isso parecem umas férias." Para este guerreiro de rija têmpera, era precisamente isso que Chandler's Court seria. Antes de se ir embora, o cérebro por detrás da Operação Troia certificou-se de que o comandante do destacamento de segurança era apresentado a quem estava sob sua responsabilidade: os Jennings. Tomaram chá juntos na sala de jantar da família.

Os rapazes reagiram de maneira diferente ao capitão Williams. Luke mostrou-se, como sempre, tímido e introvertido, mas Marcus estava ansioso por saber pormenores de combates passados. O capitão Williams limitou-se a sorrir e murmurou:

- Mais tarde... se calhar.

Sir Adrian era um observador experimentado. Reparou com aprovação na gentileza do soldado para com o rapaz mais velho e não lhe passou despercebida a reação da muito atraente Sue Jennings. A sua querida Fiona teria esboçado aquele seu sorriso sereno e sussurrado: "Já vi onde é que isto vai acabar." Foi certamente essa a reação tácita da recém-enviuvada senhora Jennings; deu para Sir Adrian se aperceber disso do outro lado das chávenas de chá. Sabia igualmente pelas suas notas que o soldado era viúvo e desconfiava que tal iria calhar em conversa mais tarde, depois de ele se ir embora.

Habituados a desertos, charnecas, selvas, ao Ártico e a pântanos, os soldados rapidamente se sentiram em casa nos velhos quartos do pessoal doméstico, no sótão. Uma vez que iriam ser vistos diariamente pelo pessoal que vivia fora da base e que as notícias correm depressa, não usavam fardas de camuflagem, mas sim t-shirts, camisolas polares e ténis.

Dois dias foram passados a transformar as imediações da mansão segundo a vontade do capitão Williams. Silvas e arbustos foram arrancados pela raiz para criar um campo de erva sem obstáculos à volta das paredes do edifício em todas as direções; isto proporcionava um campo de tiro com quase cinquenta metros de profundidade, em caso de necessidade. Numa estreita faixa florestada que ficava mais perto do campo aberto, foram pendurados sensores de temperatura corporal nas árvores. Desligavam-se durante o dia, mas, à noite, as luzes cintilavam no painel da sala de comando, nas águas-furtadas. A intensidade das luzes indicava o tamanho da fonte de calor. Os homens observavam, ouviam e esperavam, revezando-se ao longo dos dias e das noites. Do que se passava no centro informático, não faziam ideia - o princípio em vigor era o de "saber o estritamente necessário".

Os russos entraram em Inglaterra no dia seguinte, um total de seis, todos dos Lobos da Noite. Eram, sem exceção, grandes e musculosos, antigos soldados de unidades de combate, e todos haviam lutado contra os afegãos ou os rebeldes chechenos. Tinham-lhes sido fornecidas todas as informações para a tarefa que tinham pela frente e operariam sob a supervisão à distância de Ievgueni Krilov.

Os seus passaportes eram falsos, contrafeitos por profissionais, e indicavam que eles vinham de países eslavos, da Europa de Leste. Todos falavam inglês, alguns de forma gaguejante e com sotaque, outros com fluência, como acontecia com os dois antigos elementos da Spetsnaz. Chegaram em diferentes voos de diferentes capitais, todas elas dentro da União Europeia.

Depois de aterrarem em Heathrow, reuniram-se no café previamente designado no átrio do aeroporto - meia dúzia de turistas de aspeto inofensivo - e esperaram que os viessem buscar, o que acabou por acontecer. Foram conduzidos até um espaçoso apartamento arrendado num subúrbio da cidade, de onde a sua escolta partiu para nunca mais ser vista.

As armas que tinham pedido estavam guardadas em malas no segundo quarto, fornecidas, a troco de um montante fixo, por um gangue albanês que operava em Londres. Os armários da cozinha e o frigorífico estavam repletos. No segundo dia, um monovolume de marca Ford apareceu no parque de estacionamento com a chave da ignição debaixo do tapete de borracha do lado do condutor, conforme o planeado.

Do lado britânico, tudo fora arranjado e pago por um bilionário russo claramente ao serviço do Kremlin. Uma vez instalados, os seis homens, liderados por Anton, começaram a planear o ataque. Fizeram uma viagem de reconhecimento à aldeia mais perto de Chandler's Court, depois circularam de carro em torno da propriedade. Num troço isolado de um caminho estreito, pararam o carro e dois deles subiram o muro. Os batedores atravessaram a floresta até conseguirem ver as paredes e janelas da mansão que albergava o seu alvo. Anton traçou o seu plano. Então, a dupla regressou para junto do muro, transpô-lo e partiram todos de carro. Estava-se a meio da noite: os cientistas residentes dormiam.

Dentro da casa que tinham visitado, uma luz vermelha acendera-se no painel de controlo. Em Londres, um homem de idade avançada jantava sozinho a um passo do arco do Almirantado.

No seu bolso do peito, um smartphone estremeceu ligeiramente. Sir Adrian olhou para o ecrã e perguntou:

- Sim, capitão?

- Tivemos visitas. Duas. Na floresta. Só a observar. Foram-se embora.

- Hão de voltar. Vai haver mais. Receio que venham armados. E vão ficar a descoberto. Quase de certeza que virão de noite.

- E as minhas ordens?

Normalmente, só um oficial superior poderia responder a isso. Mas o capitão Williams fora informado de que deveria seguir as instruções da voz daquele número.

- Lembra-se de Loughgall?

Tratava-se de uma pequena aldeia no condado de Armagh, na Irlanda do Norte. No dia 8 de maio de 1987, uma força operacional de oito dos maiores assassinos do IRA atacara o pequeno quartel local da Polícia Real do Ulster. Chegaram a coberto da escuridão com uma escavadora que levava uma bomba no balde. A bomba destruiu o portão principal e o condutor desceu para o chão para se juntar aos outros sete. Os oito invadiram a base com ordens para eliminar a guarnição inteira da polícia real. Só que tinha havido uma fuga de informação: algum informador de alta patente fizera um telefonema. Vinte e quatro homens do SAS estavam à espera, tanto dentro do quartel quanto na mata circundante. Apareceram e abriram fogo: os oito homens do IRA morreram todos. Desde essa altura, a palavra "Loughgall" indicava aquilo que Lawrence gritara aos seus homens na estrada para Damasco: "Não façam prisioneiros!"

- Sim, senhor.

- Então, capitão, já tem as suas ordens.

Desligou a chamada, e o escanção encheu-lhe novamente o copo de clarete.

Para o encarregado dos vinhos, a compostura do seu cliente não vacilara minimamente. Por dentro, contudo, Sir Adrian fervia de cólera. O facto de o seu inimigo, Krilov, saber da existência de Chandler's Court só podia significar uma coisa: tinha de haver uma segunda toupeira.


CAPÍTULO OITO

Eles voltaram. Os Lobos da Noite regressaram na noite seguinte, e vinham armados até aos dentes. Pensavam que iam enfrentar um alvo indefeso. A sua missão consistia em invadir uma velha e vasta mansão e eliminar um adolescente adormecido num dos quartos. Qualquer outra pessoa que também estivesse nesse piso teria igualmente de ser liquidada.

Usavam fatos-macaco e balaclavas pretos. Estacionaram perto de um troço deserto do muro de delimitação e, usando o tejadilho do seu veículo como ponto de partida, saltaram para dentro da floresta. Em fila indiana, caminharam pé ante pé através do bosque até verem, à luz do luar, a mansão de Chandler's Court diante de si. Não sabiam que, dentro da mansão, luzes vermelhas piscavam furiosamente num painel de controlo. E não sabiam que treze conjuntos de óculos de visão noturna os fitavam. E, acima de tudo, não sabiam das espingardas com mira de visão noturna. Pior ainda, nunca tinham ouvido falar de Loughgall.

O Regimento do Serviço Aéreo Especial goza de um privilégio (entre outros) partilhado unicamente com os outros dois regimentos das forças especiais. É-lhe permitido escolher o seu armamento de um cardápio à escala planetária, em vez de ter de aceitar aquilo que lhe é atribuído pelo Ministério da Defesa.

Para espingarda de combate, a sua preferência vai para a carabina C8 da Diemaco, que agora é fabricada pela Colt Canada. Apesar de o cano ter apenas quarenta centímetros, a arma, forjada a frio, é muito precisa. No que toca a espingardas de precisão, a escolha é a AX50 da Accuracy International com mira telescópica Schmidt & Bender. Havia seis de cada atrás das cortinas em Chandler's Court. A Lua ainda não surgira, mas não importava: as miras de visão noturna iluminavam os intrusos numa luminescência verde-líquida. E as armas apontadas para eles tinham silenciador.

Anton conduziu os seus camaradas à medida que eles saíam das árvores para o campo de erva. Estava habituado à violência, tendo atirado para uma cadeira de rodas três adeptos de futebol ingleses após confrontos nas ruas de Marselha. Mas não deixou de ser uma surpresa para ele quando a bala de ponta oca o atingiu no peito. Meio segundo depois, a surpresa passou, porque estava morto.

Vendo-o cair, os seus companheiros ergueram as carabinas de combate e puseram-nas em posição de disparo, mas era tarde demais - munições de ponta oca não admitem discussão, nem cirurgias pós-traumáticas. Dois dos seis, percebendo que estavam num terreno de matança, deram meia-volta e tentaram regressar à coberta das árvores. Caíram de borco e deixaram-se ficar.

Passados cinco minutos, os seis cadáveres já tinham sido arrastados para um anexo que pertencia à mansão. Seriam levados numa carrinha sem janelas para a morgue em Stirling Lines, até que uma decisão fosse tomada. A Mãe Natureza e uma prolongada mangueirada tratariam dos salpicos vermelhos entre as ervas.

Já sob a luz do dia, a carrinha estacionada junto à parte de fora do muro foi localizada; então, fizeram-lhe uma ligação direta, levaram-na para cerca de cento e cinquenta quilómetros dali e pegaram-lhe fogo. A polícia local desse condado identificou o negociante de automóveis em segunda mão de Londres ao qual ela tinha sido comprada, em dinheiro, por um homem que não existia. A carcaça incinerada acabou numa prensa compactadora. A carnificina de Chandler's Court simplesmente nunca tinha acontecido.

Em Iasenevo, Ievgueni Krilov esperou em vão por notícias. Passados dois dias, perceberia que os seus assassinos não iriam voltar para casa. Mas ainda tinha o seu ás de trunfo. Voltaria a tentar - tinha de o fazer. O Vojd insistiria.

Em Londres, Sir Adrian foi despertado por outro telefonema antes da alvorada, sendo-lhe transmitida informação elíptica que não teria significado algum para alguém que calhasse estar a ouvir. Algo sobre terem sido bem-sucedidos a arrancar as ervas daninhas do jardim.

Deixou-se estar sentado no seu apartamento, enquanto o Sol nascente de junho tocava o coruchéu do Big Ben, sobre o palácio de Westminster e ao fundo da rua chamada Whitehall, e olhou para o rosto na moldura. Os olhos por cima das maçãs do rosto eslavas, vistos pela última vez numa festa insignificante vinte anos antes, retribuíram o olhar. Era raro o chefe de espionagem inglês praguejar, mas praguejou naquele momento. Com virulência. Os seus piores medos tinham-se tornado realidade.

O nome "Chandler's Court" nunca atravessara o Atlântico. Ele iria observar minuciosamente os registos, identificar cada ocasião em que ele fora usado, onde e por quem. Quem é que o ouvira? Como é que alguma vez chegara ao conhecimento de Ievgueni Krilov?

Esta segunda toupeira, este informador secreto, tinha de estar em Londres, perto da esfera do poder. Moscovo sabia, sem dúvida, demais. O FBI fora categórico: o falecido Harold Jennings, pai do génio autista, não tivera sequer oportunidade de revelar o nome de Chandler's Court. E, no entanto, eles sabiam-no. Tinha de haver um traidor. O gene de caçador de Adrian Weston reavivou-se.

Nos tempos da Guerra Fria, mesmo depois da supressão da revolta húngara de 1956 e da brutal repressão dos Checos em 1968, quando tantos comunistas ocidentais, horrorizados com a implacabilidade de Moscovo, haviam abandonado a sua alucinada fé, ainda havia irredutíveis que se agarraram ao sonho de Karl Marx até ao último suspiro.

Mas o final já chegara há muito tempo. Até Moscovo e o homem que agora controlava a Rússia tinham abandonado o comunismo, por troca com um nacionalismo cego. Nem o intelectual mais iludido - e Sir Adrian nunca fora tolo ao ponto de achar que mesmo um ilustre intelectual não podia ser burro que nem uma porta - espiaria agora em prol do comunismo. O traidor teria de ter um motivo, e um motivo necessariamente poderoso. O que poderia ser? Orgulho ferido, ressentimento por causa de alguma ofensa ao ego, presunção? Enquanto olheiro e recrutador durante a Guerra Fria, Sir Adrian explorara-os a todos.

Uma vida de liberdade no Ocidente servia como motivo para prisioneiros do mundo comunista, mas havia algo mais por detrás daquela fuga de informação. Onde e em que documentos fora referido o nome de Chandler's Court? Somente num grupo seleto, o que significava que a fuga de informação devia vir de alguém já presente no topo da hierarquia do sistema britânico, alguém bem pago, privilegiado, acarinhado. Decidiu-se por dois motivos. Chantagem, talvez para encobrir um comportamento privado que pudesse destruir uma carreira? Isso ainda podia funcionar. E, claro, a boa e velha ganância: suborno, tão antigo como a humanidade. Então começou a caça à fuga de informação. Usou a sua influência para pedir as transcrições - todas as reuniões respeitantes à mudança dos Jennings tinham sido gravadas.

Havia a COBRA, uma sigla que dizia respeito à sala de reuniões do gabinete do Conselho de Ministros. Embora o "A" final pudesse significar "Anexo", a realidade provavelmente era outra - fora simplesmente acrescentado para criar uma palavra que caísse no goto dos meios de comunicação social. Lembrava-se de uma reunião que decorrera em redor da comprida mesa oval de pontas quadrangulares que havia naquela silenciosa sala na cave do gabinete do Conselho de Ministros. Estando abaixo da terra, não era possível ouvir o ribombar do trânsito em Whitehall, como acontecia no rés do chão. A lista de presentes era clara: apenas cinco pessoas, e todas de primeiríssima água. A transcrição não continha referência alguma a Chandler's Court. Ele teria sido o único a saber que escolhera a mansão como a nova casa da ciberunidade ultrassecreta. E não referira o seu nome.

Tinha ocorrido igualmente uma reunião restrita do Conselho de Ministros no número 10 de Downing Street, na mesma sala onde ele e a primeira-ministra haviam confrontado o embaixador americano. Presentes estavam a senhora Marjory Graham, os ministros do Interior, dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, a secretária do Conselho de Ministros - a mais alta funcionária governamental no país - e dois estenógrafos. Uma vez mais, Chandler's Court não fora referido.

Sobrava, pois, uma última reunião, a do Conselho de Segurança Nacional, a que ele assistira como convidado. E, sim, Chandler's Court fora referido uma vez. Os outros presentes eram os ministros do Interior e dos Negócios Estrangeiros e os diretores do GCHQ, do MI6, do MI5 e do Comité Conjunto de Informação. E o secretário adjunto do Conselho de Ministros, cuja superior estava no estrangeiro com a primeira-ministra naquele dia.

Sir Adrian resolveu concentrar-se nessa reunião. Toda a gente que lá estava tinha credenciação de segurança ao mais alto nível, mas o mesmo acontecera com Kim Philby. Em toda a história, nunca houvera uma máquina humana incapaz de errar. Na Firma, tinham um ditado: "Se queres manter algo secreto e três homens estão a par, mata dois deles." Pensou nos dois possíveis motivos.

Chantagem? Olhou para sete rostos. Poderia um deles ser o de uma vítima de chantagem? Um participante secreto em orgias? Um pedófilo? Alguém que fizera um desfalque numa carreira anterior? Todas estas hipóteses eram possíveis.

Ou suborno? Nos tempos da Guerra Fria, ser seduzido pela ideologia pró-comunista fora a fraqueza dos britânicos. Para os americanos, sempre fora dinheiro. Vieram-lhe a memória a família Walker e Aldrich Ames - sempre traidores por dinheiro.

Londres é um centro bancário mundial, e já o é há séculos. Some-se a isto companhias de seguros, gestão financeira, a alta-roda da finança internacional... Tentáculos estendem-se de Londres até um milhar de bancos numa centena de países, juntamente com amizades e ligações pessoais. Adrian Weston tinha alguns contactos nesse mundo, encerrado em pouco mais de um quilómetro quadrado no centro de Londres e conhecido simplesmente como a City. Sabia de alguns ex-espiões que, depois da peleja, se tinham decidido por uma vida no conselho de administração de um banco. Decidiu cobrar uns quantos favores. Ao fim de alguns dias, obteve uma resposta.

A pergunta que ele fizera era simples: alguém reparara, provavelmente num paraíso fiscal ou bancário - ou seja, um palco de transações duvidosas -, numa conta de depósito recentemente aberta pelos russos? Aberta, recheada de dinheiro e, em seguida, rapidamente esvaziada e fechada?

Um banqueiro de investimento telefonou a dizer que ouvira um rumor. Liechtenstein. Banco de Vaduz. Um jantar bem regado em Davos havia não muito tempo e um tal Herr Ludwig Fritsch que falava demais.

Não há aeroporto internacional em Vaduz. O Liechtenstein é diminuto, um principado situado inteiramente no interior dos Alpes e, em termos de rendimento per capita, o país mais rico do mundo. A sua capital, Vaduz, alberga doze grandes e discretos bancos. Após um contacto telefónico, Sir Adrian conseguiu marcar uma reunião com Herr Fritsch. O seu título de cavaleiro foi uma grande ajuda; além disso, indicou que estava à procura de um sítio para depositar algum dinheiro e isso bastou.

Voou para Zurique, na vizinha Suíça, onde alugou um carro. Viajava sempre com bagagem de mão, em classe económica e tirara o "Sir" do passaporte. É difícil mudar de hábitos: a sua carreira fora dedicada à invisibilidade, e ele tirara bom partido dela.

Com a ajuda de navegação por satélite, chegou uma hora mais cedo ao banco, por isso tomou um prolongado café num estabelecimento do outro lado da rua. Vaduz é uma cidadezinha tranquila; sentado à janela, Sir Adrian deve ter visto não mais que uma dúzia de peões no passeio. Em Vaduz, as pessoas usam o automóvel. Com todo o cuidado.

Já no interior do banco, foi conduzido pelo átrio até ao elevador, subindo dois andares até ao escritório de Herr Ludwig Fritsch. A sua primeira tarefa foi afastar a ideia de que tinha vindo abrir uma lucrativa conta.

- Trata-se de um assunto delicado - disse.

Fritsch era untuoso como uma noz de manteiga e igualmente comunicativo. Indicou que raramente se ocupava de assuntos que não fossem delicados. Bebericaram água de nascente em copos de cristal.

- Como posso ajudá-lo, Sir Adrian?

- Uma grande soma de dinheiro foi roubada no meu país. Um dos espoliados é Sua Majestade.

Isto sobressaltou o untuoso Herr Fritsch. Na era cibernética, o crime financeiro era um fenómeno pandémico e Londres não podia esperar ficar imune. Mas Vaduz não queria ser depositário dos proventos de um roubo - pelo menos de um que pudesse ser provado. E uma coisa que dissesse respeito à rainha de Inglaterra podia chegar ao topo, até mesmo ao seu próprio chefe de Estado, o príncipe Hans-Adam II. O que seria grave.

- Ultrajante.

- Foi um crime financeiro, claro. Fraude numa escala maciça envolvendo lavagem de dinheiro.

- É um flagelo, Sir Adrian. Em toda a parte. Volto a perguntar: como posso ajudá-lo? - Desta vez, estava a falar a sério.

- Sabemos quem é o criminoso. Os elementos da divisão de combate ao crime bancário da Scotland Yard não são nenhuns tolos.

- Pensa que ele reside aqui no Liechtenstein? Deus nos livre.

- Não, não, não; ele é russo. Sabemos que os fundos roubados foram para a Rússia. Um bilionário de carácter muito duvidoso, dos quais demasiados são autorizados a viver em Londres.

Com toda a sinceridade, Herr Fritsch anuiu com a cabeça. Quanto a esse tema, nem um cabelo separava a opinião dos dois homens.

- Vocês, ingleses, são muito tolerantes, Sir Adrian.

- Porventura mais do que deveríamos.

- Sem dúvida. Mas como é que isso pode afetar o Liechtenstein e o banco de Vaduz?

- Todas as cestas de maçãs, Herr Fritsch, correm o risco de que uma delas seja podre. Achamos que o burlão teve alguma ajuda. De dentro da cesta. Na verdade, temos a certeza. E o intrujão vai insistir em receber uma recompensa financeira bastante considerável. Sei que posso contar com a sua discrição...

- Este banco é conhecido por isso.

- ... quando lhe digo que houve telefones sob escuta e comunicações intercetadas.

Ludwig Fritsch não precisava de ser convencido. A mestria dos britânicos nesse tipo de coisa ficara explícita quando Sir Francis Walsingham, caçador de espiões da rainha Isabel I, mantivera a monarca e o seu reino a salvo ao intercetar as cartas secretas dos conspiradores.

- Existe a possibilidade... - prosseguiu Weston, e Herr Fritsch sabia que era mais do que uma possibilidade. O raio dos ingleses tinham provas ou então o que fazia este espião retinto no seu escritório? E o palácio do príncipe que ficava a quilómetro e meio dali... - de, recentemente, uma pessoa de origem russa ter aberto uma conta. Que foi rapidamente recheada de dinheiro. E que outra pessoa a tenha vindo esvaziar, talvez em numerário. Claro que, como deve calcular, enfim... ficaríamos extremamente agradecidos...

Herr Fritsch pediu licença e saiu do escritório. Quando regressou, trazia uma pasta fininha.

- Estive a conversar com alguns colegas, Sir Adrian - principiou por dizer. Nada buliu no rosto de Weston, que, contudo, sabia que lhe estavam a mentir. Com que então, o untuoso Herr Fritsch estava metido no esquema; era um homem comprado. - Um mês atrás, um homem veio cá e sentou-se exatamente onde o senhor está agora. Era da embaixada russa em Berna, do outro lado da fronteira. Abriu uma conta de depósito. Fê-lo mediante uma quantia simbólica. Uma semana depois, o equivalente em euros a cinco milhões de dólares norte-americanos foi depositado por transferência eletrónica. Sem origem.

- Uma soma considerável. E o beneficiário?

- Uma semana depois, apareceu outro homem. Não deu o nome; não era necessário. Segundo os termos da conta, uma sequência de letras e números era tudo o que era preciso. Este homem sabia exatamente qual a sequência necessária. Mas tratava-se com toda a certeza de um compatriota seu.

- E levantou tudo em numerário.

- Assim foi. Fui autorizado a revelar-lhe isto com a garantia de que me promete que isto não passará daqui.

- Prometo-lhe, Herr Fritsch. Mas, quando ele atravessou o átrio, a câmara de vigilância em que reparei ali atrás deve ter obtido uma imagem.

- O senhor é muito astuto, Sir Adrian.

- Faz-se o que se pode, Herr Fritsch.

- Decerto compreenderá que não posso permitir que esta pasta saia daqui da sala. Mas, enfim, no caso de o senhor olhar de relance para ela, não poderei fazer grande coisa para o impedir.

A pasta estava pousada entre ambos. Herr Fritsch pôs-se em pé e virou costas, ficando a olhar para a cidade abaixo de si pela janela. Adrian Weston debruçou-se e abriu-a com um piparote. Continha uma única impressão do átrio e de um homem a atravessá-lo. Olhou de relance, fechou a pasta e fê-la deslizar sobre a mesa. Herr Fritsch voltou a sentar-se.

- Herr Fritsch, tanto eu quanto o meu próprio país lhe estamos tremendamente agradecidos. Garanto-lhe que o que vi hoje não passará daqui. Vão ser tomadas algumas medidas, mas sem se fazer nenhuma ligação a este banco.

Com um companheirismo bem simulado, deram um aperto de mão. Foi chamado um empregado, que acompanhou o inglês até à porta da frente. Sir Adrian olhou de relance para a câmara instalada que tinha fotografado o homem com a bojuda mala de viagem que continha a quantia de cinco milhões de dólares em notas de euro de alta denominação.

O seu carro alugado estava no parque de estacionamento do banco. Deu início ao longo trajeto até ao aeroporto de Zurique. Do seu escritório no segundo andar, Herr Ludwig Fritsch viu-o partir e pegou no telefone.

Durante o percurso, Sir Adrian refletiu sobre o que vira. A imagem fotográfica mostrava um alto funcionário governamental de meia-idade no átrio onde ele próprio estivera minutos antes. O rosto era inconfundível e ele conhecia-o bem: era o de Julian Marshall, secretário adjunto do Conselho de Ministros em Londres.

Há muito que ocorrera a Sir Adrian que o culpado deveria ter partido de Londres para visitar Vaduz e aí recolher os seus 30 dinheiros de Judas. Mas era como tentar achar uma agulha num palheiro. De um modo geral, toda a gente no topo da hierarquia tinha uma casa de campo, que visitava regularmente ao fim de semana. Qualquer mandarim podia esgueirar-se sem ser visto, embarcar num avião privado, fazer um voo de ida e volta, e reaparecer sem que alguém desse por isso. Nada emergira das suas investigações. Com os olhos do espírito, fitou novamente a fotografia. Alguma coisa não estava bem, algum pormenor ínfimo. Então viu-o.

O russo que forjara a fotografia em Iasenevo fizera um trabalho magnífico. Os sapatos eram provavelmente da Lobb's, em St. James's, o fato, de excelente corte, indiscutivelmente de Savile Row. E a cara que fora fixada ao tronco recorrendo ao Photoshop era, sem dúvida, do funcionário governamental que presidira à reunião do Conselho de Segurança Nacional no dia em que o nome de Chandler's Court fora referido.

O criador da imagem tinha sido muito esperto, tirando um único erro: a figura forjada usava a gravata errada.


CAPÍTULO NOVE

Para a maioria dos homens no mundo inteiro, a gravata, se for usada, é uma tira de tecido enrolada à volta do pescoço debaixo do colarinho, atada em nó à frente e deixada pendente sobre o peito. O padrão ou estampa, caso exista, fica ao critério de quem a usa. Mas, em Inglaterra, pode significar um pouco mais do que isso.

O estilo e as cores das riscas ou a natureza do padrão entrelaçado no tecido podem indicar num instante a escola que foi frequentada por quem a usa, a unidade militar em que serviu ou o clube privado a que pertence. É um género de código, uma espécie de chave de reconhecimento.

Não havia dúvida de que Julian Marshall frequentara o colégio de Eton, uma das academias ou escolas privadas mais exclusivas do Reino Unido. E aqueles que a frequentaram têm o direito de usar a gravata de Old Etonian, um dos antigos alunos. Na verdade, existem três tipos de gravata: a gravata normal de antigo aluno, preta com riscas oblíquas azul-claras, e depois duas ainda mais exclusivas, uma vez que indicam feitos atléticos alcançados dentro da própria escola.

Existe a gravata dos Eton Ramblers: carmim com riscas roxas e verdes e linhas douradas finas, cujo arranjo é tão cuidadosamente contrastante que tem de ser propositado. Destina-se a quem jogou cricket em representação da escola. E era esta que a figura na fotografia usava.

E existe a gravata dos Eton Vikings: riscas vermelho-escuras e pretas com linhas de um azul-pálido, para quem participou em provas de remo em representação da escola. Os dois desportos ocupam o trimestre de verão e, por conseguinte, excluem-se mutuamente.

Sir Adrian lembrava-se de, anos antes, quando passara um fim de semana com um colega do MI6 que tinha uma casa de campo à beira do Tamisa, ter estado na margem do rio em Henley a ver Eton ganhar o Troféu da Princesa Isabel. O remador da popa na equipa de Eton era um então muito jovem Julian Marshall.

Antes de chegar ao aeroporto de Zurique, deu-se conta de que andara a procurar no sítio errado. Imaginara que o judas era um mandarim qualquer. Era isso que Krilov queria que ele pensasse, e fora por esse motivo que se haviam dado ao trabalho de subornar Herr Fritsch para propagar a história de uma conta bancária fictícia e de uma visita também ela fictícia de um funcionário governamental britânico de carne e osso. Quase que tinham levado a melhor sobre ele. Aquilo de que Sir Adrian se esquecera era que havia outra categoria de pessoa que reside no interior da esfera do poder britânica: o subalterno invisível.

Como observador compulsivo da vida, Weston reparara que as pessoas que eram consideradas a fina-flor muitas vezes não davam pelo exército de homens e mulheres bons e leais que de facto mantinham em funcionamento a máquina do comércio, das profissões e do governo: os motoristas, as secretárias, os estenógrafos, os transcritores, os arquivistas, os intérpretes, até os empregados de casaco branco que serviam café.

Iam, vinham, ficavam e serviam, e geralmente eram ignorados. Mas não eram estátuas de madeira. Tinham olhos e ouvidos, cérebros para recordar e deduzir, e sem dúvida capacidade para se sentirem ofendidos, ignorados ou menosprezados pelos que se revelavam convencidos e arrogantes.

Que o nome de Chandler's Court fora passado aos russos, disso já não restavam dúvidas. Mas qual dos subalternos se tresmalhara? Quanto ao "porquê", Sir Adrian estava convencido da hipótese de suborno, ainda que não no valor de cinco milhões de dólares. Mas onde é que esta agulha invisível podia ser localizada no palheiro de Whitehall? Recordou o desvendamento de uma fuga de informação nos seus tempos de MI6 e do ardil que empregara para atrair a força motriz da mesma das sombras para a luz. Teria de fazer uso dele outra vez.

No voo de regresso a Heathrow, a sua cabeça regressou à única reunião em que o nome de Chandler's Court fora referido de passagem. Algum dos presentes tinha ouvido, possivelmente anotando as palavras, o nome do lugar onde o jovem a quem chamavam a Raposa fora alojado para sua segurança.

Quem estivera presente? Bem, as chefias dos quatro serviços de informações secretas: MI6, MI5, GCHQ e Comité Conjunto. Todos eles com credenciação de segurança até à medula. Mas quem se sentara atrás deles, a tirar notas em silêncio? E ainda havia dois ministros do Conselho, o do Interior e o dos Negócios Estrangeiros, cada um deles com uma pequena equipa de subordinados.

Tinham-se passado quatro dias desde a investida russa em Chandler's Court. Sir Adrian tinha a certeza de que Krilov já concluíra que o ataque armado tinha sido um desastre completo. Pelo menos nesse caso tinham sido eles a subestimá-lo. Talvez pudessem ser levados a fazê-lo novamente. Seria lógico que ele mudasse o seu prodígio da pirataria informática para outro sítio qualquer, de modo que iria fazer o oposto.

Mesmo assim, tinha conversado sobre o tema com o doutor Hendricks depois do tiroteio. O craque dos computadores de Cheltenham rogara-lhe que não mudasse a família de lugar, se tal fosse de todo exequível. Em poucas semanas, o académico tinha-se tornado uma espécie de pai substituto para o jovem. Cada vez que faziam Luke Jennings mudar de lugar ou perturbavam o seu mundo, ele entrava numa crise psicológica. Além disso, acabara de ser encarregado da sua segunda missão de violação de uma base de dados e era a isso que se estava a dedicar.

Numa das suas visitas, Sir Adrian reparara com aprovação no aprofundamento da relação entre ambos. Depois de uma vida ligada aos computadores, o doutor Hendricks estava, em termos de competência técnica, muito à frente daquele adolescente. Mas nem ele, nem nenhuma outra pessoa do GCHQ era capaz de igualar o aparente sexto sentido do jovem no que dizia respeito a evitar a extraordinária complexidade das firewalls que as grandes potências usavam para proteger os seus segredos mais profundos. O doutor Hendricks podia ter ficado melindrado; outros, certamente, teriam ficado. Mas Jeremy Hendricks tinha uma generosidade de espírito que o dotara de um paternalismo protetor para com o jovem génio que tinha a seu cargo.

Luke Jennings parecia responder a isto. Todos os dias lhe davam alento, algo que nunca acontecera com o seu falecido pai; rejeitado, passara a viver no seu pequeno mundo. A sua mãe podia protegê-lo, escudá-lo na sua fragilidade, como a galinha faz ao pintainho, mas não podia dar-lhe alento, já que o mundo dele era completamente incompreensível para ela, tal como o era para Sir Adrian e teria sido para todos os antigos professores de Luke. Só com o doutor Hendricks ele partilhava ao menos uma linguagem. Por conseguinte, o conselho de Hendricks era importante para Sir Adrian. Se mudar todo o centro de Chandler's Court para outro lugar qualquer faria com que o rapaz caísse num estado de depressão nervosa, então era preciso resistir a essa ideia - Luke Jennings teria de ficar onde estava.

Portanto, com o conselho de Hendricks em mente, Sir Adrian começou a engendrar uma forma de apanhar Krilov desprevenido. Iria fingir que mudara o rapaz de casa e daria conta disso mesmo. Escolheria quatro alvos, mas primeiro era preciso fazer alguma pesquisa. Começou com a sua extensíssima lista de contactos. Quatro casas de campo, todas com o seu próprio terreno.

Nos tempos em que fora proprietário de um par de espingardas de caça e aceitava convites para passar o dia a caçar faisão e perdiz, travara conhecimento com mais de uma dúzia destes proprietários rurais. Ligou a quatro deles e pediu-lhes o favor que pretendia. Todos disseram que sim; um deles até sugeriu que "havia de ser divertido", o que era uma forma curiosa de ver as coisas. Duvidava que os Lobos da Noite nas mesas de autópsias em Herefordshire estivessem de acordo.

A sua segunda preocupação foi fazer nova visita ao diretor das Forças Especiais.

O brigadeiro revelou-se cortês mas reprovador.

- O comandante do Regimento não está lá muito satisfeito - observou. - Ele pensava que os homens estavam numa missão de treino, a proporcionar proteção de proximidade a uma família de três marrões, e, afinal, acabaram numa reconstituição de Estalinegrado.

- Aí, as coisas estavam mais equilibradas - retorquiu Sir Adrian. - O que se passou em Chandler's Court foi muito desigual. Mas, por favor, apresente as minhas desculpas ao Regimento; eu não fazia ideia de que os assassinos tinham localizado o alvo. Se soubesse, o alvo nem sequer estaria lá. A casa estaria vazia. O que provavelmente se vai seguir será totalmente diferente.

Explicou a sua ideia. O diretor das Forças Especiais ponderou.

- Recomendo o SRR. Também têm a sua base em Herefordshire, em Credenhill. Sugeriria dois elementos por casa, assim, poderiam revezar-se.

O Regimento Especial de Reconhecimento é, juntamente com o SAS e o Serviço Especial de Embarcações, uma das três unidades de combate das Forças Especiais britânicas. A merecer destaque entre as suas competências encontram-se a entrada furtiva e o permanecer invisível. Acrescente-se-lhes observação de proximidade (ver sem ser visto). Os seus elementos normalmente procuram evitar encontros de proximidade, mas conseguem ser tão letais como os integrantes das outras duas unidades, se houver necessidade.

Houve ainda outra conversa encriptada entre o comandante do SRR na sua base em Credenhill e o diretor das Forças Especiais. Uma vez mais, acabou por ser a evocação da vontade da primeira-ministra de assistir o seu conselheiro de segurança a encerrar a questão.

Os quatro pares de convidados inesperados chegaram à residência dos seus anfitriões no espaço de vinte e quatro horas e foram bem recebidos. As quatro residências eram uma mansão, uma casa senhorial e duas casas de lavoura.

Todas as casas eram grandes e espraiadas, e encontravam-se situadas no meio de zonas rurais, onde um desconhecido a passear, e mais ainda um estrangeiro numa missão de exploração, levantaria suspeitas. Os soldados instalaram-se nos seus aposentos, patrulharam o território circundante e elegeram os seus pontos de vigia. Cada um deles escolheu um ponto elevado para ter uma boa visão geral dos terrenos da residência. Depois, alternadamente, ficaram de guarda.

Sir Adrian selecionara quatro dos que tinham assistido à crucial reunião do Conselho de Segurança Nacional. Tratava-se do completamente inocente Julian Marshall, do ministro do Interior, do ministro dos Negócios Estrangeiros e do presidente do Comité Conjunto de Informação. Conhecia-os a todos, ainda que menos bem aos políticos.

Escreveu uma carta privada de carácter bastante pessoal a cada um deles, com o envelope marcado de tal forma que não seria aberto senão pelas mãos do homem cujo nome era indicado na frente. Após uma leitura cuidadosa, seria vista por não mais do que uma outra pessoa, um secretário ou arquivista confidencial encarregado da correspondência secreta.

Explicava que ocorrera um incidente em Chandler's Court e que achava avisado transferir o jovem pirata informático no centro da operação Troia para um novo local. Então, revelava qual a nova localização, mas cada uma delas era diferente. Para não haver confusões, Weston identificou-as para si próprio como A, B, C e D.

Era perito em esperar. Muito do que se faz em espionagem implica esperar, e ele passara a vida a fazê-lo. Um pescador à linha conhece a sensação: as horas a tentar não cabecear, nem dormitar, para manter os olhos no flutuador e uma orelha fitada para o tinido da campainha na ponta da cana. Quando uma armadilha destas é montada, é parecido, com a exceção de que os falsos alarmes são constantes. Cada chamada tem de ser verificada, mas, em geral, não é aquela de que quem preparou a armadilha estava realmente à espera.

Não teve de esperar muito. A chamada veio, conforme ficara acordado, do comandante do Regimento em Credenhill.

- A minha rapaziada diz-me que está sob observação. Há alguém a patrulhar a mata de binóculo, a olhar para a casa. Os meus homens, claro, não foram vistos. Quer o intruso capturado? Basta dizer.

- Obrigado, coronel. Tenho aquilo de que preciso. Acho que vai descobrir que ele se irá embora num abrir e fechar de olhos.

O coronel fizera referência à residência C: tratava-se de Persimmon Grange, em Wiltshire. Anos atrás, numa caçada de um dia, Sir Adrian, um de oito caçadores, acertara em cinquenta faisões. Um antigo embaixador num país para lá da Cortina de Ferro reformara-se e fora viver para ali com a sua mulher artrítica e filha desengraçada.

Persimmon Grange era o local referido na carta destinada ao ministro do Interior. Weston precisava de lhe dar uma palavrinha.

Conseguiu conversar com ele depois de o ministro terminar um almoço privado no Brook's. Foram até à biblioteca, onde os retratos dos Dilettanti os miravam.

- Preciso mesmo de saber, senhor ministro, quem pode ter visto essa carta depois de o senhor a ler.

O homem era vinte anos mais novo do que ele e era um fura-vidas em plena ascensão, um daqueles políticos a quem a primeira-ministra concedera um alto cargo e que estava a mostrar ser merecedor do mesmo, a despeito da sua juventude.

Não foi uma conversa longa. Não era preciso perder tempo.

- Depois de eu a ler, teria sido arquivada - retorquiu o ministro do Interior. - Uma única cópia, a que o senhor me enviou, sem duplicados e fechada a sete chaves. Pelo meu secretário pessoal, Robert Thompson.

A não ser que alguma coisa tivesse corrido muito mal, Sir Adrian encontrara o seu traidor.

Robert Thompson era um funcionário governamental com um salário de funcionário governamental. Não morava em Chelsea, Knightsbridge ou Belgravia, mas na margem sul do rio, em Battersea. Os registos revelavam que era viúvo e tinha uma filha de dez anos, que vivia com ele. Sir Adrian bateu à porta do apartamento pouco depois das oito da noite. Quem veio à porta foi o homem cujo ficheiro ele estivera a analisar.

Thompson tinha cerca de quarenta anos e parecia cansado e tenso. Não havia sinal da filha; Jessica podia ter ido dormir a casa de uma amiga da escola. Quando Thompson viu Sir Adrian no degrau de entrada, alguma coisa vacilou nos seus olhos; não era surpresa, nem culpa, apenas resignação. Fosse o que fosse que ele andava a fazer, tinha terminado e ele sabia-o.

As amabilidades habituais foram cumpridas. Thompson convidou Adrian Weston para a sala de jantar. Ficaram os dois de pé. Uma vez mais, não era preciso perder tempo.

- Porque é que o fez? Não lhe pagamos que chegue?

Em resposta, Thompson deixou-se afundar numa poltrona e cobriu o rosto com as mãos.

- Jessica - respondeu ele.

Ah, a filha. Uma escola melhor, talvez. Férias em locais mais exóticos. Os trópicos. Manterem-se a par de amigos mais endinheirados. Reparou numa fotografia emoldurada numa mesa de apoio. Uma rapariguinha: sardas, tranças, um sorriso crédulo. A menina do papá.

Então, os ombros do homem mais jovem começaram a tremer. Weston virou-lhe costas; o homem estava a chorar como uma criança e Sir Adrian tinha um problema com homens que choravam. Pertencia a uma geração e a uma tradição militar que ensinavam outro tipo de coisas. No triunfo, modéstia. Na dor, estoicismo. Na derrota, elegância debaixo de fogo. Só muito raramente lágrimas. Winston Churchill mostrara tendência para chorar, mas ele era diferente em muitos aspetos.

Lembrava-se de duas vezes em que vira homens adultos a irem-se abaixo. Um fora o agente da Alemanha de Leste que atravessara o Checkpoint Charlie para o Ocidente, e para a segurança, e que se deixara cair de puro alívio por estar vivo e, enfim, livre. E o seu próprio filho, na maternidade, a olhar para o rosto enrugado e indignado do seu primogénito, o único neto de Sir Adrian e que agora estava em Cambridge. Mas um traidor apanhado em flagrante? É deixá-lo chorar. Só que então, tudo mudou.

- Têm-na com eles - soluçou o homem sentado na poltrona. - Raptaram-na quando ela vinha da escola a caminho de casa. Uma voz ao telefone, a ameaçar que iam violá-la em grupo, estrangulá-la... a não ser que...

Passada uma hora, Sir Adrian tinha todos os pormenores. A rapariga a caminhar para casa sozinha depois do ensaio do coro. Um carro na berma. Uma amiga que assistira a tudo, a cerca de cinquenta metros de distância, a única testemunha. Jessica entrara no carro - meio puxada, meio empurrada pelo homem no passeio. O carro afastou-se.

A seguir, o telefonema. Então, eles sabiam qual o número de telemóvel dele, mas poderia ter sido ela a dá-lo. Havia uma alcunha especial por que ela tratava o pai; o homem do outro lado da linha também estava a par disso. A voz? Inglês fluente mas com sotaque. Russo? É possível. Havia um número registado no telemóvel de Thompson, mas pertenceria decerto a um aparelho de usar e deitar fora, um descartável que há muito se afundara no Tamisa.

Sir Adrian despediu-se do homem destroçado com uma derradeira instrução: para dizer ao seu contacto, no próximo telefonema, que tinha chegado outra carta. Weston mudara de ideias; o jovem ia mudar de sítio, mas para um campo militar e não para uma casa privada.

Deixou o apartamento em Battersea e foi a pé para casa, atravessando o Tamisa e seguindo depois por Whitehall até chegar ao arco do Almirantado. Passara uma vida inteira a tentar reprimir a fúria, que perturbava o espírito crítico, derrotava a lógica e obscurecia o discernimento; quando as coisas corriam mal, um homem inteligente precisava dos três. Mas, naquele momento, estava furioso.

Perdera agentes e lamentava camaradas que nunca regressariam a casa. Estivera em lugares duros e cruéis, mas ainda havia regras - as crianças eram intocáveis. Agora, Moscovo decidira uma vez mais ignorar todas as regras, tal como aquando do ataque ao há muito reformado coronel Skripal.

Adrian Weston não tinha grandes ilusões sobre a profissão de espionagem a que havia dedicado a maior parte da sua vida; sabia que tinha um lado mais negro. Pusera repetidas vezes a sua liberdade e a sua vida em risco, porque a experiência "laboral" o convencera de que, num mundo assaz imperfeito, isso era necessário para aqueles que viviam em segurança e liberdade continuarem a viver em segurança e liberdade. Acreditava no seu próprio país e nos seus padrões já várias vezes postos à prova. Acreditava que, na sua essência, estes eram decentes, mas também sabia que, no atual planeta Terra, a decência era algo a que apenas uma pequena minoria ainda se agarrava.

Durante anos, o seu principal inimigo fora o KGB e, desde a queda do comunismo soviético, os seus sucessores. Estava ciente de que, do outro lado da barricada, o assassínio, a tortura e a crueldade tinham sido a norma. Resistira vigorosamente à tentação de seguir esse caminho para cortar a direito, para alcançar resultados. Estava ciente, com mágoa, de que alguns aliados não tinham conseguido resistir da mesma forma.

A sua escolha sempre fora ludibriar o inimigo, ser mais astuto, manobrar melhor. E, claro, havia golpes baixos, mas quão baixos? Servidores do inimigo global tinham sido subornados, persuadidos a trair o seu país e a espiar em favor do Ocidente. E, claro, recorrendo à chantagem, se preciso fosse. Chantagem a ladrões, a adúlteros, a pervertidos em altos cargos. Era repugnante mas por vezes necessário, porque o inimigo, de Estaline ao Daesh, era imensamente mais cruel e não podia sair vitorioso. Ele sabia que o homem de Iasenevo agora encarregado pelo senhor do Kremlin de vingar a humilhação do Nakhimov teria, ao longo da sua espetacular ascensão na hierarquia, sancionado ou posto em marcha práticas nas quais Adrian Weston nem com luvas tocaria.

Mas isto era diferente. Uma criança fora raptada, possivelmente ameaçada com violação em grupo, para chantagear um funcionário governamental e levá-lo a cometer um ato de traição. Krilov estava a usar assassinos contratados, que eram pouco mais que animais. Haveria represálias. Haveria sangue. Sir Adrian fazia tenção de o garantir.


CAPÍTULO DEZ

Os namorados que se encontravam na berma a meio da noite estavam nos braços um do outro e nem repararam quando o sedan passou disparado por eles, bem acima do limite de velocidade. Mas apartaram-se com gritos de alarme quando, cem metros à frente, a viatura saiu da estrada e foi embater numa árvore. Através do para-brisas, viram como as primeiras chamas tremeluzentes começaram a lamber o carro acidentado junto à base do tronco.

À medida que a intensidade do brilho transmitido pelas chamas aumentou, conseguiram distinguir o contorno de uma figura solitária perfilada contra o fogo. Então, o incêndio alastrou, visto que o depósito de combustível pegou fogo, e o carro explodiu. O jovem pegou de imediato no telemóvel e ligou para o número de emergência.

Oportunamente, chegaram uma ambulância e dois carros de bombeiros. Estes últimos cobriram os destroços com espuma branca até as chamas se extinguirem, mas não havia nada que os paramédicos pudessem fazer pela figura curvada e consumida pelo fogo no assento dianteiro. O que sobrou dela foi retirado e levado dali, tornando-se parte de mais um acidente para as estatísticas respeitantes às estradas secundárias.

A equipa mortuária cumpriu a desagradável tarefa de proceder à identificação. Os bolsos de trás das calças da vítima tinham resistido ao pior do incêndio; continham cartões de crédito, mais ou menos intactos, e uma carta de condução. O infeliz que estava a circular demasiado depressa foi identificado como Robert Thompson, um funcionário governamental residente em Londres, onde também trabalhava.

Sem a discreta influência que foi exercida, o incidente podia nem sequer ter aparecido na comunicação social, mas saiu nos jornais na tarde seguinte e também um dia depois. Na verdade, teve mais cobertura noticiosa na rádio, na televisão e nos jornais do que teria merecido em condições normais. Essa discreta influência é um aspeto da vida oficial do Reino Unido do qual, como no caso de um icebergue, muito pouco alguma vez chega a ser observado.

O telefonema seguiu-se à publicação dos jornais matutinos. Sir Adrian garantira a total colaboração tanto do MI5 quanto do GCHQ em Cheltenham. O primeiro forneceu os números de telefone, o que teria sido uma grande surpresa para aqueles a quem estes números tinham sido de facto atribuídos e que pensavam que eles eram seguros.

A Thames House, sede do Serviço de Segurança, dista umas poucas centenas de metros, rio abaixo, da mãe de todos os parlamentos, mas a democracia acaba de forma invisível na soleira da porta. A expulsão em grande escala de espiões russos que se faziam passar por diplomatas, no seguimento da flagrante utilização do agente nervoso Novichok nas ruas de Salisbury, provocara o caos na até então ativa máquina de espionagem que Moscovo operava em Londres.

Romperam-se ligações, neutralizaram-se operações em curso, interromperam-se relacionamentos. O recém-chegado Stepan Kukuchkin acabara de se tornar Rezident da embaixada russa e precisava de mais tempo para trabalhar como queria. O mesmo se aplicava ao seu novo adjunto, Oleg Politovski, que fora até então um modesto assessor de imprensa. Ambos os homens pensavam que os seus telemóveis eram seguros; não eram: estavam os dois sob escuta.

Fora da embaixada encontravam-se os criados contratados de Krilov, entre eles Vladimir Vinogradov, chefe de um gangue e criminoso profissional, bem como oligarca e bilionário que se mudara para Londres, comprara um clube de futebol e vivia num apartamento de dez milhões de libras em Belgravia. Foi ele que fez a chamada, que foi intercetada - o GCHQ certificara-se disso. Sir Adrian não ficou surpreendido: sabia que, por trás da fachada de bonomia do amante de futebol, Vinogradov não era flor que se cheirasse.

Nos tempos da Rússia de Ieltsin, Vinogradov fora uma figura de proa do submundo do crime, acumulando condenações por suborno de agentes da autoridade, crime organizado, violação, homicídio e assalto à mão armada. Cumprira pena na prisão de Lefortovo em Moscovo. Quando o saque dos recursos naturais da Rússia tivera início, ele já estava em liberdade e angariou muitos milhões de dólares. Com a ajuda de burocratas corruptos, conseguiu comprar um campo de petróleo na Sibéria por uma bagatela. Isto fez dele bilionário. Nessa altura, juntou o seu destino ao do emergente Vojd. Misteriosamente, todo o seu cadastro foi anulado, apagado dos registos. Num estalar de dedos, deu por si novamente respeitável e emigrou para Londres, onde se tornou um generoso anfitrião.

Embora achasse que a ligação era segura, Vinogradov mostrou-se circunspecto quanto ao que dizia. A chamada foi feita para um conhecido criminoso albanês que comandava a sua máfia no sul de Londres, onde o bando dos Richardsons, rival dos Krays, fora em tempos rei e senhor. Bujar Zogu já tinha trabalhado para ele anteriormente. Sempre trabalhos pontuais e sempre envolvendo violência. Sir Adrian recebeu uma transcrição do que eles tinham dito uma hora depois da chamada.

Vinogradov fora quem dera as ordens, que eram simples. A operação tinha chegado ao fim, estava terminada, cancelada. "Faz chegar uma mensagem aos teus amigos. Não uses meios de telecomunicação. Conduz pessoalmente até ao sítio onde eles se encontram. Destrói todas as provas, e refiro-me a todas, não deixes rasto e volta para casa."

Claramente, o tempo urgia. Quando Zogu chegasse ao local onde os seus bandidos tinham a rapariga presa, ela seria assassinada.

A Agência de Licenciamento de Condutores e Veículos em Swansea teve acesso aos dados do carro de Zogu em segundos. Um modesto sedan Volvo azul-escuro, com a matrícula tal e tal. O telefonema seguinte de Weston foi para a comissária da Polícia Metropolitana, Lucinda Berry.

- Lucy, pode ajudar-me?

- Se for legal e possível, sim. Do que se trata?

- Há um gangster albanês que está a partir da sua base no sul de Londres de carro. O destino é desconhecido. - Ditou os dados do carro. - Tenho motivos para crer que, quando chegar ao seu destino, uma criança seja assassinada. Conseguimos intercetá-lo?

- Meu Deus, temos de o fazer.

Londres é rodeada pela autoestrada circular M25, que tem uma extensão total de cento e oitenta e oito quilómetros. É constantemente transitada por carros-patrulha, mas sobretudo vigiada por milhares de câmaras de controlo de velocidade HADECS-3, ligadas a uma central e controladas por computador. Uma delas apanhou o Volvo no arco sul da autoestrada, em direção ao túnel de Dartford, debaixo do Tamisa.

Há cabinas de portagem e câmaras no local: a passagem do Volvo pelo túnel e, daí, para o arco norte foi assinalada. Cerca de quinze quilómetros mais à frente, um carro-patrulha entrou na autoestrada junto à saída 29 para seguir no seu encalço. Foi avisado para sair da autoestrada na próxima intersecção.

Bujar Zogu reparou no carro da polícia no seu espelho retrovisor, mas também reparou que ele virou para a saída vinte e oito. Nessa altura, já um helicóptero da polícia localizara o carro azul que circulava lá em baixo. O helicóptero manteve-se em posição até o Volvo deixar o condado de Essex, ainda a contornar Londres pela autoestrada.

Um carro de polícia descaracterizado seguiu no seu encalço até à saída 16, quando o albanês virou para a autoestrada M40, direção noroeste, para as Midlands e Gales. A Polícia do Vale do Tamisa substituiu-o e, em seguida, outro helicóptero da polícia.

Ao fim de duas horas de caminho, tornara-se claro que o albanês se dirigia para o País de Gales, mais especificamente para o norte da região, uma das zonas menos povoadas da Grã-Bretanha.

O mais fácil teria sido intercetar Zogu e fazer-lhe sinal para parar, mas a Scotland Yard tinha acedido ao seu ficheiro, que dizia que se tratava de um homem esperto e matreiro. Tendo-se mantido dentro do limite de velocidade ao longo de toda a viagem, ele saberia que não havia motivo para mandá-lo parar. E as autoridades desconheciam para onde é que ele se encaminhava, em que sítio isolado ele e a sua quadrilha tinham escondido a prisioneira. Era possível que até o tivesse no ecrã do seu GPS, mas podia apagar isso inclusive quando os agentes se estivessem a dirigir até ele. Meses de interrogatório também não lhe arrancariam informação alguma.

Sir Adrian não dispunha de meses. A única boa notícia é que Zogu tinha acatado as ordens; não fizera nenhuma tentativa de usar o telemóvel para avisar a sua quadrilha de que ia a caminho. Mas ainda tinha de ser parado antes de lá chegar; nessa altura, poderia ser necessário agir numa questão de segundos. Foi então que Sir Adrian pediu ajuda ao Regimento Especial de Reconhecimento em Credenhill.

Ao fim da tarde, as estradas em que o albanês circulava iam-se tornando mais estreitas e mais isoladas; seguia na A5, a caminho de Bangor. Estava a virar na direção das Denbigh Moors, seguindo as indicações da navegação por satélite, quando a aeronave do SRR apareceu atrás dele. Voava alto e num ângulo morto; ele não o viu, mas os seis soldados a bordo viam-no perfeitamente.

Os soldados tinham sido informados de que uma criança estava retida contra a sua vontade e que, se o homem no Volvo azul por baixo deles chegasse ao esconderijo, ela seria assassinada. Tinha bastado: os soldados ficam furiosos quando há gente a ameaçar crianças.

As Denbigh Moors são uma vastidão de urze e quintas dispersas. O Volvo virou para um caminho estreito que conduzia a uma quinta assim, a pouco mais de dois quilómetros de distância. Não havia mais nenhum edifício naquela viela. Do seu ponto de vista privilegiado a trezentos metros de altitude, o piloto do Dauphin requisitado à Divisão de Aviação das Forças Especiais Conjuntas conseguia ver que o caminho acabava um pouco para lá da quinta e não conduzia a lado nenhum. A propriedade parecia abandonada, com apenas uma carrinha no pátio; uma quinta em atividade teria mais do que isso.

Atrás do para-brisas, Bujar Zogu viu um helicóptero descaracterizado passar velozmente por cima do seu carro e na mesma direção em que ele seguia, desaparecendo então de vista atrás do terreno elevado que aparecia à frente dele. O que ele não viu foi a aeronave a descer até ao vale, nem os dois homens em farda de camuflagem que saltaram do interior empunhando metralhadoras de mão.

Até chegar ao topo. O helicóptero tinha desaparecido - descera o vale e já não se via. Os dois soldados, contudo, estavam na estrada. Ele não reparou que as suas MP5 tinham silenciador, mas não pôde deixar de reparar que lhe estavam a fazer sinal para parar, pelo que abrandou até imobilizar a viatura. Os homens aproximaram-se do carro, um de cada lado. Ao lado de Zogu estava um casaco dobrado; por baixo deste, a sua pistola.

Na verdade, ele não devia ter tentado alcançá-la. Foi um erro parvo - e foi o último. Preencheu o requisito de "legítima defesa". Os seus colegas na casa da quinta nunca iriam receber a mensagem russa.

Um dos soldados junto ao carro cravejado de balas falou brevemente com os quatro que estavam um pouco mais adiante no vale. Também se deslocavam agora a pé, caminhando de volta à quinta. Antes de esta ficar visível, desapareceram no meio da urze que lhes dava pela cintura.

Uma das competências do SRR é o reconhecimento próximo do alvo. Consiste em aproximar-se de um edifício de maneira tão furtiva que os ocupantes não chegam a dar por nada. Usando a cobertura dos celeiros e dos anexos, os seis homens, com a escuridão a começar a aproximar-se, chegaram ao nível dos parapeitos sem que ninguém os visse.

Uma das janelas estava partida mas fora entaipada. Havia frinchas entre as tábuas. Um olho espreitou para o interior.

- Três habitantes - murmurou uma voz para um microfone de lapela. Foi ouvido pelos outros cinco nos seus auriculares. - Rés do chão. Sala de jantar barra cozinha. A comer. Todos armados.

Outra competência é o método de entrada. Não havia motivo para prosseguirem de modo furtivo - ia haver um tiroteio. Um dos soldados aproximou-se da porta da frente e bateu de forma autoritária; em seguida, desviou-se.

Os três bandidos sentados à mesa levantaram-se de um salto, gritando em albanês. Passados escassos segundos, quatro balas vindas do interior despedaçaram a porta da frente. Depois disso, foi guerra sem quartel. Soldados invisíveis até àquele momento apareceram em cada janela envidraçada. Os dois raptores que ainda estavam de pé junto à mesa nem sequer tiveram hipótese de disparar ou de se render; tinham armas na mão, e isso era quanto bastava. Na entrada, a porta acabou por cair e o terceiro albanês morreu no átrio.

O rés do chão, que tinha apenas quatro pequenas assoalhadas, foi vistoriado em segundos. As divisões tinham algumas peças de mobiliário e, a partir daquele momento, três corpos malcheirosos dos quais se escapava uma substância encarnada.

O chefe de equipa correu para o andar de cima. Duas divisões, nenhuma delas uma casa de banho. Abriu a porta de uma delas de rompante. Mais uma vez, fedor de corpos por lavar; três sacos-cama malcheirosos. O soldado não tinha certeza de quantos albaneses poderiam estar a guardar a refém - podia haver um quarto elemento com uma arma encostada à cabeça da rapariga. Abriu cuidadosamente a porta do outro lado do patamar, com a MP5 a postos.


CAPÍTULO ONZE

Ela estava sozinha, sentada numa cadeira no canto mais distante. O quarto era pequeno e escuro. Uma solitária lâmpada de baixa voltagem sem abajur pendia de um cabo flexível no teto.

Havia lá dentro um saco-cama fino e um balde fétido que servia de latrina. Uma tigela com crostas de comida e uma garrafa de água do pátio. E uma cadeira. A única janela tivera em tempos vista para os campos ondulados, mas tinha sido entaipada de modo a que apenas uns fiozinhos de luz atravessassem as frinchas entre as tábuas. A sensação que mais esmagou o soldado foi o fedor. Era evidente que nunca tinha sido uma divisão elegante, mas tinha-se transformado num autêntico vislumbre do inferno.

Grandes moscas pretas zumbiam em redor da luz débil da lâmpada; outras passeavam pela borda do balde-latrina, empanturradas com o seu conteúdo. A criança fora obrigada a comer da tigela e a deitar-se no colchão fétido de palha colocado no chão. Ou a sentar-se na cadeira solitária, que era onde estava naquele momento, ainda com a farda escolar, toda suja e com o cabelo emaranhado, já habituada ao cheiro do quarto. Tinha os braços cingidos à volta de si própria, os olhos dois enormes discos de trauma e medo. Não disse nada.

O homem do SRR pousou vagarosamente a arma e tirou a sua balaclava. O seu aparecimento súbito só teria servido para assustá-la; ela já tivera a sua dose disso. Ele não fez nenhuma tentativa de se aproximar; ao invés, deixou-se deslizar até ao chão, encostado à parede.

- Olá - disse então. E sorriu. Não houve resposta. Ela limitou-se a fitá-lo. - Estava aqui a perguntar-me se me poderias dar uma ajudinha. Estou à procura de uma rapariga chamada Jessica; o papá dela pediu-me para levá-la para casa.

Os lábios dela mexeram-se e saiu um ligeiro guincho:

- Sou eu.

Ele fingiu surpresa agradável.

- A sério? Oh, isso é estupendo; encontrei-te. O teu papá está com saudades tuas. Pediu-me para te levar até casa. A ideia agrada-te? - Ela fez que sim com a cabeça; ele olhou em redor. - Este lugar é horrível. Aposto que o teu quarto em Londres é bem mais agradável.

Ela começou a chorar. As lágrimas jorravam dos seus olhos assustados e cansados e corriam-lhe pelas faces encardidas.

- Quero ir para casa. Quero ver o papá.

- Ora, isso é maravilhoso, Jessica. Eu também gostava que isso acontecesse. Vim com uns amigos que estão lá em baixo e temos um helicóptero. Alguma vez andaste num?

Ela fez que não com a cabeça. Ele levantou-se lenta e cautelosamente e atravessou o quarto. Estendeu a mão; ela pegou nela e ele ergueu-a devagar da cadeira. Jessica começou a urinar e chorou ainda mais, de vergonha. Os efeitos de um trauma profundo são múltiplos e nenhum deles é agradável de se ver. Ele deu meia-volta e foi até à porta.

- Vamos descer! - exclamou. - Desimpeçam o átrio.

Não havia necessidade de ela ver o que ali jazia, ou na cozinha. No exterior, ele viu os focos do Dauphin e ouviu o ronco do seu bimotor. Instalou-se na urze para lá dos celeiros, onde havia espaço.

Os outros soldados estavam à espera lá em baixo. Tinham arrastado os corpos para a cozinha e fechado a porta. Viram a rapariga de mão dada com o seu colega enquanto, a medo, descia as escadas degrau a degrau. Olharam para ela e um deles disse:

- Valha-me Deus...

Se alguma vez haviam sentido qualquer pena dos homens que tinham matado, ela evaporou-se de imediato.

O chefe de equipa ajudou Jessica Thompson a subir para o Dauphin, para o voo de regresso a Credenhill.

Tentou utilizar o telemóvel, descobrindo de imediato que, mesmo que tivesse tentado, o falecido Zogu não teria conseguido contactar os seus homens: aquela zona das Denbigh Moors não tinha cobertura. Subiu ele próprio para o helicóptero, sentou-se ao lado da rapariga e fez um sinal com a cabeça ao piloto.

Os restantes soldados ficariam para trás, sendo recolhidos mais tarde; entretanto, tinham algumas limpezas para fazer. Mais atrás, na estrada, o motor do Volvo não fora atingido, pelo que ainda estava a funcionar. Um dos homens saiu para ir recuperá-lo. Era preciso vir buscar cinco soldados, além de quatro bandidos mortos em sacos para cadáver. Pediriam à prestável mas sem dúvida perplexa força policial do condado de Conwy que transformasse o maltratado Volvo num bloco de sucata prensada.

Em Credenhill, Jessica foi entregue diretamente à equipa médica. Duas soldadas tomaram conta da situação e estragaram a rapariga com mimos enquanto ela tomava banho e lavava o cabelo. Uma delas apareceu para dizer ao comandante:

- Não lhe tocaram, para que fique a saber. Ameaçaram fazê-lo, e olhavam de forma lasciva para ela sempre que vinham trazer comida. Por isso, foi mesmo a tempo. Ela é uma miúda esperta, com a cabeça no sítio. Vai precisar de terapia, mas vai recuperar.

O comandante ligou a Sir Adrian e este falou com Robert Thompson, que estava vivo e bem de saúde. Sir Adrian tinha um carro com motorista e mandou que ambos cumprissem o longo trajeto até Hereford de madrugada para o reencontro entre pai e filha.

Quando voltaram para Londres, Sir Adrian fez nova visita a Thompson no apartamento em Battersea.

- Duvido que possa continuar na administração pública depois disto; ou até se o desejaria. Talvez uma mudança de cenário e segurança garantida para vocês os dois. Sei de um sítio que é muito bonito. Clima temperado, mar azul-brilhante: Wellington, Nova Zelândia. Boas escolas, gente hospitaleira. Creio que conseguiria orientar qualquer coisa, se o senhor quisesse; conheço o alto-comissário deles em Londres. Um bom emprego no governo neozelandês. Uma boa casa, facilidade de transporte; não é um sítio grande. Uma nova vida, talvez. Creio que se poderia orientar qualquer coisa assim. Depois diga-me o que acha.

Passado um mês, Robert Thompson e Jessica partiram para essa nova vida junto às águas do estreito de Cook.

Adrian Weston, que era um homem compassivo, cismara em descobrir qual a verdadeira identidade do homem cujos restos carbonizados tinham acabado no carro em excesso de velocidade conduzido por controlo remoto.

Em 1943, os Aliados preparavam a invasão do sul da Europa. Era do seu interesse ludibriar o alto-comando nazi, convencendo-o de que a invasão estava iminente quando ainda não o estava. Os britânicos pegaram no corpo de um vagabundo não identificado, vestiram-no com a farda de um major dos Fuzileiros Reais e deixaram-no à deriva ao largo da costa sul de Espanha.

Tinha presa a um dos pulsos, por uma corrente, uma pasta com documentos, aparentemente ultrassecretos, que indicavam que a invasão seria feita pela Grécia. O corpo foi levado pela corrente em direção à costa, encontrado numa praia e entregue à Guarda Civil. A Espanha de Franco, supostamente neutra, estava na verdade alinhada com as Potências do Eixo. Os papéis foram passados aos serviços secretos alemães e, daí, para Berlim.

As defesas na Grécia foram reforçadas de forma maciça. A invasão dos Aliados, comandados por Patton e Montgomery, fez-se pela Sicília e por Itália. Milhares de vidas foram salvas. Mais tarde, escreveu-se um livro e fez-se um filme sobre o episódio, ambos intitulados O homem que nunca existiu. Foi daí que Sir Adrian tirou a ideia.

O corpo no carro em excesso de velocidade era igualmente de um vagabundo, um habitante de ruas e becos, e também não fora identificado. Estava destinado a um enterro anónimo numa vala comum. A autópsia revelara que o homem tinha morrido de pneumonia, provavelmente contraída por dormir à chuva. Os exames mostraram que se tratava de um alcoólico inveterado com uma compleição já bastante deteriorada. A única coisa que trazia consigo e que ainda não tinha sido penhorada era um anel de sinete.

Mas em tempos, ponderou Sir Adrian, fora um homem, porventura alguém que amara e fora amado, que tivera um emprego, uma família, uma vida. Como é que acabara transformado num farrapo, a morrer numa sarjeta? Decidiu ao menos tentar descobrir o porquê.

Pediu a "suspensão" do funeral do indigente. Cobrou alguns favores, deu uns quantos pontapés em traseiros, partiu a loiça. Uma amostra de ADN acabou por ser obtida. A base nacional de dados de ADN foi consultada, mas não apareceu nada. Se o homem morto tinha cadastro, a amostra dele teria sido registada. Mas não havia registo.

Weston estava prestes a deixar a burocracia seguir o seu rumo normal quando um cientista que trabalhava na base de dados de ADN lhe telefonou.

- Pode haver uma correspondência com um irmão - informou.

O possível irmão na base de dados estivera envolvido numa rixa de bar anos antes e fora acusado de ofensa à integridade física qualificada, acabando condenado. E tinha um nome: Drake, Philip Drake. Foi preciso algum trabalho de polícia para o encontrar no meio de três mudanças de morada, mas conseguiram-no. Mostraram-lhe o anel de sinete e ele confirmou que pertencera ao seu irmão Benjamin, conhecido por Benny.

Fazia vinte anos que não via o irmão mais velho, desde que ele, destroçado por uma perturbação de stress pós-traumático, escapara à rede de proteção social e a numerosas instituições de solidariedade e caíra no alcoolismo e numa vida nas ruas. Mas recordava-se de que os problemas de Benny tinham decorrido de situações de combate no Afeganistão, enquanto envergava a farda do seu país.

Fora merciano, ou seja, membro de um regimento oriundo das East Midlands e com quartel-general em Lichfield. Weston ligou ao comandante e contou-lhe o que se passava. E o comandante decidiu que, por muito baixo que tivesse caído, o cabo Benny Drake teria o seu funeral de soldado. Vasculhou as reservas do regimento e arranjou os fundos necessários.

Uma semana depois, a coluna fúnebre saiu do portão principal da base de Whittington e virou para as ruas de Lichfield. Um carro fúnebre encimado com a bandeira britânica levava o caixão e, mais atrás, seguia uma limusina que transportava ambos os pais. As pessoas da cidade tiraram os seus chapéus e viraram-se para a estrada enquanto ele passava. Os corpoferários e um oficial subalterno fechavam a retaguarda. Todos seguiam em marcha lenta.

A coluna virou para dentro do cemitério de Whittington e foi conduzida para a campa previamente preparada. O grupo de corpoferários tomou então conta da situação: seis soldados carregaram o caixão o resto do caminho, passando pela igreja de Santo Egídio, até à sepultura. O capelão do regimento conduziu a cerimónia religiosa. Quando esta terminou, a bandeira foi retirada do caixão, dobrada e entregue aos pais.

Enquanto o caixão baixava à terra, o grupo de artilharia deu um passo em frente juntamente com o corneteiro do regimento. Os sacristães esperavam com as suas pás. Os atiradores dispararam três salvas sobre a campa e o corneteiro tocou o "Last Post". O senhor e a senhora Drake estavam muito direitos e muito orgulhosos, enquanto o seu filho Benny Drake se preparava para finalmente descansar em paz. Podia ter morrido na sarjeta, mas foi enterrado juntamente com os seus camaradas de armas.

Quando a última nota do "Last Post" foi levada pelo vento, uma figura solitária no extremo oposto do cemitério guardou o seu binóculo. Sir Adrian entrou no carro e foi conduzido até Londres. Havia contas a ajustar.

Na manhã seguinte, com as suas contas bancárias congeladas, o senhor Vladimir Vinogradov foi intimado a deixar o país. A explicação oficial, que não apresentava justificação, uma vez que, segundo a lei, tal não era requerido, declarava apenas que, na opinião do governo britânico, a sua presença continuada no país "não era propícia ao bem comum".

Ele protestou, ameaçando com prolongados recursos judiciais. Pousaram-lhe uma fotografia na mesa: mostrava o rosto de olhos fechados de um criminoso por ele encarregado de raptar uma criança. Vinogradov deixou-se ficar em silêncio, depois ligou ao seu piloto pessoal em Northolt e mandou-o preparar o avião.

Na obscurecida sala de computadores de Chandler's Court, Luke Jennings pôs-se de cócoras diante de um painel de controlo, olhou para o monitor, tocou em vários símbolos do ecrã tátil e olhou outra vez, encerrado e absorto no seu próprio mundo. Ao seu lado, o doutor Jennings observava sentado. Sabia o que o adolescente estava a fazer, mas não como estava a fazê-lo; há momentos em que o instinto desafia e refuta a lógica. O elemento do GCHQ tinha atribuído uma tarefa a Luke que era considerada impossível e, no entanto...

Lá fora, estava escuro como breu, era meio da noite. Nenhum dos homens junto ao painel de controlo queria saber - não há noção das horas no ciberespaço. Em algum lugar a muitos quilómetros dali, uma base de dados ripostava em silêncio, procurando proteger os seus segredos. Pouco antes do amanhecer, foi derrotada.

O doutor Hendricks ficou a olhar de boca aberta, meio incrédulo. De algum modo, e ele não fazia ideia como, alguém o conseguira: Luke Jennings tinha atravessado o air gap e introduzido os algoritmos corretos. As firewalls abriram-se, a base de dados longínqua capitulou. Não havia necessidade de continuar: já tinham os códigos. Tocou no ombro do miúdo.

- Podes terminar por agora. Podemos voltar depois; concedeste-nos acesso. Bom trabalho.

Ao aceder ilegalmente à base de dados de Fort Meade, Maryland, Luke Jennings correra involuntariamente o risco de passar muitos anos numa cadeia norte-americana; ao fazer o mesmo desta vez, a única coisa que ouviria eram elogios. Para ele, tanto se lhe dava. Surgira um desafio, e ele superara-o - isso era tudo o que lhe importava. Outros que acedessem à base de dados estrangeira e inserissem malware, cavalos de Troia ou instruções para que o equipamento se autodestruísse.

A base de dados estrangeira estava situada sob os desertos da república teocrática do Irão, um país que empregava e propagava o terrorismo e queria produzir a sua própria bomba atómica. Havia um outro país, cujo destino era a aniquilação se essa bomba atómica alguma vez se tornasse viável: se Sir Adrian levasse a sua avante e conseguisse persuadir a primeira-ministra, os códigos de acesso à base de dados iraniana seriam partilhados com o estado de Israel.

Mas, porventura, não a título gratuito. O vasto campo de gás natural que acabara de ser descoberto ao largo da costa ocidental de Israel poderia ser tema de conversa.

Sue Jennings contemplava a escuridão quando o primeiro raio da luz do dia tocou o céu a oriente. Ela tinha perfeita noção do que estava a sentir e estava a gozar cada segundo. Passara tanto tempo.

O seu casamento tinha, com efeito, terminado dez anos antes. A dificuldade de cuidar dos dois rapazes e as necessidades adicionais do mais velho tinham contribuído, mas esse não fora verdadeiramente o motivo principal. Também não houvera uma daquelas discussões violentas com Harold, que, contudo, a certo ponto fizera questão de deixar bem claro que não tinha um pingo de interesse no lado físico do casamento deles. Nessa altura, já não faziam amor havia semanas; ele tinha quarenta e tal anos, ela uns bem vigorosos trinta.

Na década subsequente, Sue vivera breves casos amorosos, sempre única e exclusivamente de índole física. Ela e Harold tinham ficado juntos por causa dos rapazes, sobretudo de Luke. Havia também fatores de ordem prática: uma casa, um rendimento constante e todas as coisas que este permitia comprar. Mas Harold morrera - agora, ela era viúva.

O que ela estava a sentir naquele amanhecer iminente era pura luxúria, e era pelo toque do homem que estava deitado ao seu lado. Sue sabia que ele não teria arriscado atravessar toda a extensão do primeiro andar para chegar até ela e, além do mais, o quarto dela ficava entre os ocupados por Luke e Marcus. Por isso, fora ela, finalmente, a ir ter com ele.

A porta não estava fechada à chave. Ela entrara, deixara o seu roupão deslizar até ao chão e enfiara-se debaixo do edredão ao lado dele. Poucas palavras foram trocadas; simplesmente fizeram amor, ele com a sua força férrea, ela com a paixão do desejo há muito reprimido.

Quando o capitão Williams e os seus homens foram destacados para aquela pequena comunidade, ele juntara-se à mesa comunal: ela, o doutor Hendricks, mais dois elementos do GCHQ e os filhos dela. As amabilidades habituais haviam sido mantidas, mas os olhos denunciavam a atração mútua. Foram-se sabendo alguns pormenores. Ele tinha trinta e nove anos e estava sozinho desde que a sua mulher morrera num trágico acidente de canoa ao largo da costa algarvia.

Sue Jennings passara dias a pesar o que devia fazer. Já nem sequer conseguia tentar ocultar a poderosa atração que sentia pelo soldado que se juntara à família e aos cientistas de computação na mesa de refeições. A primeira vez que o olhar de ambos se cruzara por sobre as chávenas de chá, ela sentiu que era correspondida.

Mas Sue não era uma sedutora experimentada; isso nunca fizera parte da sua vida. Esperou que Harry tomasse a iniciativa, mas, escrupulosamente cortês, ele nunca se aproximou. Boas maneiras? Comedimento? O diabo que os carregue. Ela sabia que se estava a apaixonar. Porque é que ele não dava o primeiro passo? Ao fim de três semanas, Sue tomara a sua decisão.

Pouco depois da meia-noite, levantara-se da sua cama individual, completamente nua. À luz do luar, observara-se a si própria no espelho do guarda-vestidos. Tinha quarenta anos e a sua figura era larga, mas de modo algum roliça. Mantivera-se em forma no ginásio, e para quem? Não fora para o apagado Harold, que se mostrara mais preocupado com o seu handicap do que em fazer amor.

Sue ainda era suficientemente jovem para fazer outro bebé, e era isso mesmo que ela queria, mas com apenas um homem, que estava a dormir num quarto na outra ponta da casa. Descalça, pôs um roupão sobre os ombros e abriu a porta, tendo o cuidado de não fazer barulho, para não acordar os rapazes que dormiam nos quartos ao lado do dela.

Parara uma última vez diante da porta de Harry, ouvindo a respiração profunda e cadenciada que vinha do interior, antes de girar a maçaneta e se esgueirar lá para dentro. Agora, já tinham passado a sua primeira noite juntos. Debaixo da luz fraca do dia que amanhecia para lá das cortinas, ela tomara a sua decisão: ele ia ser dela, e não era por uma noite; Sue fazia tenção de ser a próxima senhora Harry Williams e sabia que uma mulher atraente de determinação firme faria sempre com que um míssil Exocet parecesse um foguete mal-amanhado. Quando o sol do fim de junho tocou na copa das árvores na floresta, Sue escapuliu-se para o seu quarto.


CAPÍTULO DOZE

Há muitos anos que o Irão ambicionava ter uma bomba atómica. A ideia fora discutida pela primeira vez durante o governo do xá, que foi deposto em 1979. Por essa altura, ele já tinha sido dissuadido pelos Estados Unidos, um país amigo e protetor. Com o governo dos aiatolas, essa influência não mais existia.

Durante muitos anos, o problema nunca fora a tecnologia. Um cientista do Paquistão que estivera diretamente envolvido no bem-sucedido processo de investigação e fabrico de bombas atómicas daquele país vendera traiçoeiramente os dados ao Irão. O problema sempre fora a aquisição de lotes suficientemente grandes de urânio para armamento.

O minério de urânio, conhecido como bolo amarelo, já era comprado havia muitos anos a uma variedade de fornecedores em todo o mundo. Só que, na sua forma mineral, o urânio-235 tem uma pureza de cinco por cento ou menos, o que faz com que seja demasiado bruto para ser usado na produção de uma arma nuclear. Tem de ser refinado até chegar a uma pureza que ronde os noventa e cinco por cento.

O pretexto para a sua compra sempre foi a construção de centrais energéticas que gerassem eletricidade, para as quais basta uma pureza de cinco por cento. O mundo nunca acreditou nesta desculpa. Por que motivo é que um país, argumenta-se, que praticamente flutua num oceano de petróleo bruto e se está nas tintas para o ambiente não explora esta sua matéria-prima gratuita para manter as luzes acesas? Há muito que a explicação eram fábricas secretas de produtos químicos, escondidas do mundo e cuja existência era refutada, que tinham a função de refinar o bolo amarelo bruto e transformá-lo em urânio-235 para armamento.

O clube nuclear composto por Estados Unidos, China, França, Rússia e Grã-Bretanha, juntamente com a desnuclearizada Alemanha e a União Europeia, firmou um pacto em 2015 no sentido de garantir que o Irão desistiria dos seus esforços de investigação nuclear em troca de uma atenuação das muitas sanções económicas aplicadas ao país por causa das suas ambições nucleares. Em segredo, o acordo não era cumprido.

Há muito que os aiatolas decretaram que o destino do estado de Israel, que não foi favorecido com campos de petróleo mas é extremamente avançado em termos de tecnologia, é ser varrido da face da Terra. Por conseguinte, Israel tem um interesse considerável na ambição nuclear iraniana. Também tem a Mossad (a "Instituição"), o seu tremendamente eficaz serviço de informações e segurança. Os esforços da sua espionagem para descobrir exatamente o que os iranianos andam a fazer na sua ditadura e qual o progresso alcançado têm sido permanentes.

O Irão não era o primeiro vizinho de Israel a embarcar num programa nuclear; esse tinha sido a Síria, que aprendeu a sua lição em 2007. A espionagem israelita e voos de reconhecimento detetaram um enorme edifício quadrado, conhecido em Telavive como o Cubo, a ser construído perto de Deir Ezzor, num local remoto do leste da Síria. Provocou demasiada curiosidade para ser ignorado. Mais ações de espionagem revelaram que albergava um reator nuclear de fabrico norte-coreano concebido para fornecer plutónio - o núcleo de uma bomba atómica - ao ditador sírio.

Numa noite em 2007, oito caças israelitas descolaram de diferentes bases no sul de Israel. Voaram para oeste, por sobre o Mediterrâneo, depois para norte e, em seguida, para leste, aparecendo subitamente na costa síria sem serem detetados. Voavam a uma altitude de mais ou menos noventa metros, virtualmente ao nível dos telhados, e, àquela velocidade, precisavam de uma precisão de nanossegundos. Transportavam uma variedade de bombas para garantir a destruição completa do alvo.

À meia-noite e quarenta e dois, todos os oito largaram a sua carga explosiva; nenhum deles falhou. À meia-noite e quarenta e cinco, o chefe de equipa transmitiu uma única palavra via rádio: "Arizona", o que significava que o alvo fora destruído. O esquadrão virou para norte, chegou à fronteira turca e seguiu em direção a oeste até voltar a ficar sobre o mar. Então, virou outra vez para casa, ainda a voar baixinho.

A destruição do Cubo não dizia diretamente respeito ao Irão, mas valeu como lição. Quando iniciaram o seu programa de bombas nucleares, os iranianos foram para baixo da terra, para o interior de uma série de cavernas à prova de bomba. Aí, começaram a purificar urânio-235 para criar um lote de urânio para bombas.

É sabido que havia duas centrais de purificação. A mais pequena, chamada Natanz, ficava dentro de uma montanha escavada no norte do país. A segunda, bastante maior, chamava-se Fordo, bem fundo no deserto, tão abaixo ao ponto de ser imune à mais poderosa das bombas de penetração profunda.

Filas e filas de centrifugadoras, que a princípio se chamavam "ciclotrões", são utilizadas no processo de purificação. São máquinas extremamente perigosas de operar. Trata-se de colunas verticais, que medem entre um metro e oitenta e dois metros e meio, cujos núcleos giram a umas espantosas cinquenta mil rotações por minuto. Estão dispostas em fileiras chamadas "cascatas". A estimativa era que o Irão tivesse vinte mil destas máquinas, ligadas em cascatas de cento e vinte e oito cada uma, na sala principal de centrifugação.

O motivo para a existência de tantas é que elas purificam o minério de urânio de forma extremamente lenta, não extraindo mais do que uns poucos e preciosos grãos por dia, que, em seguida, são cuidadosamente armazenados. O motivo por que são tão perigosas é que giram sobre rolamentos que têm de estar perfeitamente equilibrados; a mais ligeira variação na velocidade giratória ou no equilíbrio pode levar a que elas ou sobreaqueçam ou se despeguem dos seus rolamentos, ou ambas as coisas. Se tal acontecesse, toda a sala se converteria num ossário, com partes do corpo dos técnicos assistentes a saírem disparadas em todas as direções e as centrifugadoras desvairadas a transformarem-se a si próprias e às máquinas circundantes em fragmentos derretidos.

Para o impedir, toda a operação era controlada por um computador central, guiado por uma base de dados tão engenhosamente protegida por camada após camada de firewalls que só os operadores iranianos no próprio local, munidos dos códigos de acesso, podiam aceder a ela. Tinham sido esses códigos de acesso impossíveis de obter que o adolescente sentado ao lado do doutor Hendricks em Chandler's Court tinha assegurado.

Não se detetou nenhum aviso em Fordo, por isso não era preciso fazer nada - ter os códigos de acesso bastava. Foram estes que Sir Adrian, com a autorização da primeira-ministra, entregou a um alto responsável nuclear na embaixada de Israel em Palace Green, Londres.

Sensivelmente uma semana depois, no começo de julho, aconteceu algo de muito estranho bem abaixo do deserto iraniano. Uma variação minúscula surgiu no computador central. A velocidade de rotação dos rolamentos numa cascata de centrifugadoras começou a aumentar. Um engenheiro de bata branca no painel de controlo central deu instruções à base de dados para a corrigir; mas a tecnologia não quis saber. Outras mãos, no deserto do Neguev, estavam também a emitir novas ordens. A velocidade de rotação continuava a crescer.

O preocupado engenheiro de Fordo chamou um técnico superior. Este, perplexo, introduziu os códigos de correção de erro; foram ignorados. O indicador que monitorizava a temperatura dos rolamentos começou a subir. A preocupação passou a inquietação e, por fim, a pânico. A base de dados recusava-se a obedecer. A velocidade giratória disparou, tal como a temperatura dos rolamentos - o ponteiro transpôs uma linha vermelha. O técnico superior carregou num botão vermelho: no vasto espaço que albergava as centrifugadoras, soou uma sirene. Homens de batas brancas apressaram-se em direção às enormes portas de aço. O gemido da sirene manteve-se. A pressa transformou-se numa corrida tresloucada, numa debandada para salvar a vida, quando a primeira cascata foi arrancada dos seus rolamentos. O metal ganhou um brilho escarlate por causa da fricção incontrolável. Os homens em passo de corrida envolveram-se em encontrões mútuos para chegar às portas agora abertas.

O relatório preliminar que chegou à autoridade suprema da república, o aiatola Khamenei, mencionava que o último técnico conseguira escapar mesmo a tempo. As portas sibilaram e começaram a fechar-se, encerrando aquele inferno dentro da divisão do tamanho de um hangar. Os homens salvaram-se, mas as centrifugadoras autodestruíram-se, cascata atrás de cascata, à medida que giravam para fora dos seus rolamentos para derrubar a cascata seguinte.

O venerado aiatola, curvado pela idade, obrigou-se a ler até à última linha do relatório, enquanto uma fila de cientistas de rosto pálido permanecia de pé diante dele na sua modesta residência na rua Pasteur, em Teerão.

A estimativa eram vinte anos: vinte anos de trabalho duro e incansável, bem como de despesa, tinham sido arruinados numa única e catastrófica hora. Haveria um inquérito, como é evidente - ele próprio o exigiria. Os melhores cérebros do Irão iriam investigar e averiguar. Transmitir-lhe-iam diretamente as suas conclusões: contar-lhe-iam o que acontecera, como, porquê e, mais importante que tudo, por obra de quem. O aiatola mandou embora os cientistas à sua frente e retirou-se para a sua mesquita privada, para rezar.

Claro que deviam ser os israelitas quem estava por detrás daquilo, que Alá os condene ao inferno. Mas como tinham eles obtido acesso? Há anos que o tentavam e não conseguiam. O malware Stuxnet, desenvolvido anos antes por israelitas e americanos, fizera alguns estragos, mas não tinha conseguido ultrapassar os códigos. Agora, alguém o tinha feito. Teriam sido os próprios israelitas? Os iranianos não tinham como saber que, na verdade, fora alguém muito distante, o maior hacker que o mundo já vira - ou, neste caso, que jamais vira.

O Líder Supremo não sabia rigorosamente nada sobre computadores e, por conseguinte, dependia em absoluto dos seus especialistas. O que estes lhe disseram depois do detalhado inquérito foi que as mãos que tinham digitado a instrução para que o computador central ordenasse aos rolamentos das centrifugadoras que aumentassem a sua velocidade giratória para níveis frenéticos, levando a que elas se autodestruíssem, pertenciam provavelmente a israelitas.

Mas o grande dilema dizia respeito aos códigos de acesso, que teriam sido absolutamente vitais. Sem eles, ninguém podia dar instruções suicidas ao computador central, que controlava todas as operações; com eles, tudo era possível.

O desastre iraniano não permaneceu secreto muito tempo - não dava para controlar as notícias. Homens que tenham sido sujeitos a uma experiência traumática falam do que lhes aconteceu, e os cientistas não são exceção. Falam com os seus colegas, tanto aqueles que estavam presentes quanto os que não estavam. Contam às famílias, há um passa-palavra. E o segredo chegou àquela comunidade global de cientistas cujo trabalho de vida é estudar, no interesse do seu governo, o progresso de outros no mesmo campo do saber. O que ocorrera em Fordo era demasiado parecido com o desastre informático de Murmansk.

Feitas as contas, o enigma não foi resolvido em Teerão, mas em Moscovo: os russos sabiam de quem se tratava e onde é que ele estava.

Passados dois dias, o embaixador russo em Teerão pediu uma audiência privada com o Líder Supremo iraniano. Trazia consigo uma mensagem pessoal do Vojd, que dizia respeito a uma mansão isolada na Inglaterra rural e a um pirata informático adolescente capaz de fazer o impossível.

No cumprimento de uma promessa feita por Sir Adrian, um extenso relatório chegou ao homem da Casa Branca. Um relatório semelhante, que dizia mais ou menos a mesma coisa, também chegou proveniente da CIA. Cada um deles confirmava o conteúdo do outro. O presidente percebeu que lhe tinham mentido. Em todo o caso, há muito que denunciara o tratado que levara os Estados Unidos a aliviar as sanções financeiras impostas ao Irão em troca da cessação da investigação nuclear e, mais ainda, da purificação de urânio. O POTUS rasgou o tratado e tornou a impor as ruinosas sanções económicas.

Mais ou menos a essa hora, Sir Adrian recebeu uma carta no seu apartamento perto do arco do Almirantado. Aquilo espicaçou-lhe a curiosidade. Muito poucas pessoas estavam a par da sua morada, e o envelope fora entregue em mão. O conteúdo era conciso e pleno de cortesia. O remetente sugeria que um encontro podia ser mutuamente proveitoso e convidava Sir Adrian a visitá-lo para uma troca de ideias. O cabeçalho era da embaixada de Israel e a assinatura de Avigdor Hirsch, um nome que ele não conhecia.

Durante o tempo que passara no MI6, Sir Adrian fora especialista na Rússia, na URSS e nos satélites do império soviético na Europa de Leste. O Médio Oriente nunca fora a sua esfera de atividade, e já se passara uma década desde a sua reforma. Outros também se tinham reformado e tinha havido promoções, destacamentos, saídas - algumas voluntárias, algumas sugeridas. Mas Weston ainda tinha contactos e um deles era o homem que "dirigira" o Médio Oriente e que, sendo mais novo, ainda estava em funções em Vauxhall Cross.

- O Avi Hirsch? Claro que o conheço - disse a voz do outro lado da linha segura. - Está cá há três anos, é chefe de posto da Mossad. Muito inteligente.

- Mais alguma coisa?

- Bem, começou como advogado depois de cumprir o serviço militar nas Forças Especiais deles. Está habilitado em três jurisdições: a dele, a nossa e a dos Estados Unidos. Licenciou-se no Trinity College, em Cambridge. Não é de modo algum um kibutznik de mãos calejadas; vemo-lo como um tipo bastante válido. O que é que ele quer?

- Ainda não sei - respondeu Sir Adrian.

- Ouviste falar do desastre em Fordo?

- Com certeza. E da resposta norte-americana.

- Bem, o meu departamento anda a trabalhar dia e noite. Boa sorte com o Avi.

A embaixada israelita em Londres tem regras de segurança rigorosas. E precisa de as ter; afinal, já houve tentativas de ataque e numerosas concentrações de manifestantes em protesto empunhando cartazes diante do edifício. O carro parou junto aos portões de ferro forjado e a identificação de Sir Adrian foi examinada ao pormenor. Os seguranças da portaria fizeram algumas chamadas e, em seguida, acenaram-lhe para entrar. Um outro agente de segurança apontou para um lugar de estacionamento e, depois de o seu motorista estacionar, Sir Adrian foi escoltado até ao interior do edifício.

Não houve nenhuma revista incómoda, como nos aeroportos, mas ele sabia que equipamentos de raio X ocultos já teriam examinado cada centímetro da sua pessoa. Não trazia bagagem, nem sequer uma pasta para documentos. A sala de reuniões escolhida ficava na cave, garantidamente um espaço para conferências inspecionado e esterilizado de modo a ser totalmente seguro.

Weston fora avisado e Avi Hirsch era tal qual como ele imaginava: quarenta e tal anos, atlético, bronzeado, refinado e tremendamente fluente na língua de Shakespeare. Ofereceram-lhes café, mas ambos declinaram. Então, ficaram sós. Sir Adrian sabia que esta conversa não aconteceria sem que tivesse havido uma longa sessão informativa por parte do alto-comando da Mossad no seu quartel-general, nos arredores a norte de Telavive.

- Fui encarregado de lhe transmitir que o meu governo e o meu país estão muito agradecidos - disse o chefe da agência da Mossad. Ambos sabiam que ele se estava a referir à oferta dos códigos de acesso ao computador central de Fordo.

Tratava-se, de facto, de um elogio. No mundo dos espiões, e especialmente no mundo digital, que agora era parte integrante do primeiro, o Estado de Israel estava de longe acima de todos os outros. A Mossad tinha agentes no mundo inteiro e, no Médio Oriente, então, não tinha rival. Enterrado no deserto do Neguev, perto de Bersebá, existe um laboratório de ideias conhecido como Shmone Matayim, ou Unidade 8200. É aí que se juntam os maiores cérebros informáticos de toda a república, a decifrar códigos, a criar outros novos, a aceder a bases de dados hostis e a monitorizar as comunicações codificadas que flutuam entre as agências dos seus inimigos - e dos seus amigos, já agora. A Unidade 8200 nunca descansa.

Em grande parte, a carreira de Sir Adrian fora anterior a tudo isto - era um veterano num mundo de jovens. Só que algumas coisas não mudam: há amigos, há inimigos, há traidores, há tolos que falam demais. Os dias em que se faziam transações clandestinas nos becos calcetados da Bratislava ocupada pelos soviéticos podiam parecer uma coisa de antanho, mas a informação certa no sítio certo na altura certa ainda podia alterar o curso da História.

Mais especificamente, uma faca entre as costelas ou uma bomba escondida debaixo de um carro ainda podiam pôr fim a uma vida humana. E Sir Adrian sabia perfeitamente que o refinado chefe de agência do outro lado da mesa representava uma organização que de modo algum abandonara esses métodos antigos, quando achava que o seu uso era necessário.

Existe uma variedade de unidades das Forças Especiais israelitas a respaldar a recolha de informação da Mossad, correspondentes ao Serviço Aéreo Especial, ao Serviço Especial de Embarcações e ao Regimento Especial de Reconhecimento dos britânicos; ou à Força Delta, aos Seals da Marinha e à Divisão de Atividades Especiais da CIA: os comandos especialistas da Sayeret Matkal; o Kidon ("baioneta" ou "ponta da lança"), responsável por assassínios no estrangeiro; e o ainda mais misterioso Duvdevan, cujos elementos têm como competência específica serem tão conhecedores das linguagens e das comunidades do Médio Oriente que se conseguem infiltrar em países inimigos, passar por autóctones e estar anos "adormecidos" antes de passarem ao ativo.

Sir Adrian sabia tudo isto porque, embora o Médio Oriente não fosse a sua área, se tratava de informação do conhecimento geral nos círculos de espionagem. Por isso, estava ciente de que o Irão se devia encontrar infestado de agentes adormecidos israelitas, alguns, sem dúvida, em cargos importantes. Deixou-se estar sentado em silêncio e esperou que Avi desse o pontapé de saída.

- Vou ser absolutamente franco - começou o israelita, o que queria dizer exatamente o contrário. - É evidente que a fonte da extraordinária informação que nos deu, os códigos de acesso a Fordo, deve ter sido algum génio informático. Temos alguns decifradores de códigos bastante bons na Unidade 8200, mas o vosso rapaz ia muito à frente deles. Ele atravessou o air gap, o que é considerado impossível. Isso torna-o muito valioso, mas também muito vulnerável.

- Vulnerável?

- A atos de vingança. Em retrospetiva, as circunstâncias que rodeiam o desastre que atingiu o Almirante Nakhimov estão a ficar um pouco mais claras. Parece que houve alguém que assumiu o comando dessa embarcação.

A resposta cabal de Sir Adrian foi:

- Ah.

- Posso dizer-lhe que, pouco mais de uma semana após a incineração de Fordo, o embaixador russo teve um encontro privado com o aiatola Khamenei. Faz alguma ideia porquê?

- Ah - disse Sir Adrian outra vez.

- Sabe, Sir Adrian, ocorreu-nos que Moscovo pode ter informado o Irão da identidade dessa pessoa notável que vocês parecem manter longe de olhares alheios. E possivelmente da sua localização... isto é, se souberem onde se encontra. Se os iranianos estão na posse dessa informação, talvez possam estar a planear vingar-se. É apenas um conselho de amigo, de uma agência reconhecida: talvez não fosse mal pensado mudá-la de sítio. Sem demora. O Irão também tem unidades de assassinos.

- É muito gentil da sua parte - disse Weston. - Estou-lhe deveras reconhecido. Sem dúvida que vale a pena tomar isso em consideração ao mais alto nível.

Ele sabia aquilo que Avi Hirsch não sabia: mudar Luke Jennings para um ambiente novo e desconhecido era mais fácil de dizer do que de fazer. Tal era o estado mental do jovem, tão obsessiva a sua ligação ao ambiente que o rodeava, à localização de cada ornamento no seu espaço pessoal e, acima de tudo, à disposição dos algoritmos no seu computador, que um desenraizamento súbito e uma transferência para um lugar a quilómetros de distância podiam provocar-lhe um esgotamento nervoso.

Mas era um aviso oportuno. O Irão tinha bombistas suicidas, fanáticos e assassinos profissionais à sua disposição. Dentro do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana - o Pasdaran -, o núcleo duro era a brigada Al-Quds, que assassinara tanto de modo geral e indiscriminado quanto seletivo em todo o Médio Oriente. Ficaria Chandler's Court suficientemente fora do alcance? Permitiria a primeira-ministra novo tiroteio nos pacíficos campos verdes de Warwickshire?

Sir Adrian tinha sérias dúvidas. Vingar o ataque a céu aberto com o agente nervoso Novichok nas ruas de Salisbury fazendo encalhar o Almirante Nakhimov fora justiça retributiva e era, aos olhos do mundo, impossível de provar. Ajudar Israel a desmascarar a traição nuclear do Irão diante do presidente norte-americano era uma coisa, provocar ataques retaliativos de maníacos do Médio Oriente na Inglaterra rural era outra.

- Diga-me, Avi, se houvesse outra organização iraniana altamente secreta com uma base de dados cujo conteúdo os seus superiores valorizariam mais do que qualquer outra, qual seria ela: a do VAJA ou a do FEDAT?

O agente israelita teve dificuldade em manter a compostura. Estava surpreendido por este kremlinlogista de idade avançada, já reformado, saber da existência de qualquer uma delas. Mas Sir Adrian tinha-se documentado: sabia que o VAJA era o ministério da Informação iraniano e que empregava os seus próprios assassinos, tanto no país como, sobretudo, no estrangeiro, e que o FEDAT era o extremamente secreto centro de investigação e desenvolvimento de armas nucleares, a operar sob a égide do ministério da Defesa. Funcionava num moderno complexo de edifícios de escritórios na baixa de Teerão, mesmo em frente à universidade Malek Ashtar.

Enquanto o seu motorista o conduzia para longe dos portões de ferro forjado da embaixada israelita, Sir Adrian refletiu sobre as hipóteses de o seu mais recente ardil - fazer um segundo favor aos israelitas - resultar também. Ajudá-los a destruir as centrifugadoras de Fordo fora benéfico para a segurança mundial. O que ele tinha agora em mente afetava-o mais diretamente.

Precisava de um favor e, no seu mundo, que era igualmente o de Avi Hirsch, favores compravam-se com favores.

Em privado, Sir Adrian desconfiava que, independentemente da organização que Telavive escolhesse, a outra já teria provavelmente sido atingida pela Unidade 8200, onde se teclava sem parar debaixo do deserto do Neguev, perto de Bersebá. Passados três dias, teve a sua resposta: o FEDAT.


CAPÍTULO TREZE

Quando uma nação decide tentar converter-se numa potência nuclear, uma grande quantidade de registos é gerada. O Irão tomara essa decisão muitos anos antes, logo depois de os aiatolas terem tomado o poder e instaurado a sua impiedosa teocracia. A declaração do aiatola Rafsanjani de que Israel devia ser varrido da face da Terra era como uma declaração de guerra - uma guerra clandestina mas, em todo o caso, uma guerra, a ser travada longe da vista e sem consideração pela convenção de Genebra ou quaisquer regras partilhadas.

Ao declarar uma guerra existencial ao pequeno e sitiado país do outro lado da península Arábica, o Irão estava a enfrentar o mais formidável adversário existente num raio de três mil quilómetros a partir de Teerão. Israel nascera de operações furtivas, primeiro em 1945, contra uns britânicos cansados de guerra, e, desde 1948, contra o leque circundante de furiosas e vingativas entidades palestinianas e árabes.

Os árabes foram capazes de preencher o seu arsenal com uma enorme quantidade de gente, um espaço vasto e fundos ilimitados. Os israelitas não tinham nada disto, mas as suas armas e as suas competências eram superiores. Estas últimas incluíam anos de experiência de planificação, preparação e execução clandestinas. Acrescia a tudo isto um patriotismo fanático, a certeza de que falhar era morrer, uma rede global de outros judeus preparados para ajudar da forma que pudessem e à primeira solicitação, e a capacidade camaleónica de se fazer passar por qualquer coisa exceto um israelita ou um judeu.

Um outro elemento eram níveis excecionais de tecnologia. Confrontado com a obliteração em caso de falhanço, Israel não teve escrúpulos em aceitar ajuda da África do Sul branca, outra minoria entrincheirada, na aquisição das quantidades necessárias de urânio refinado para se tornar uma potência nuclear, erigindo a sua própria fábrica de bombas em Dimona, no deserto do Neguev. Em troca, ajudou a África do Sul a produzir as suas seis bombas atómicas, desmanteladas antes de o Congresso Nacional Africano subir ao poder, sob a égide da Coligação do Arco-Íris.

A guerra clandestina estendeu-se por seis décadas, e ainda dura. De tempos a tempos, o público vê um pequeno vestígio da mesma: um cadáver aqui, umas instalações destruídas ali. A velha Mossad LeAliyah Bet, criada para transportar clandestinamente judeus europeus que tinham sobrevivido ao Holocausto de Hitler dos campos de concentração para a Terra Prometida, transformara-se na atual Mossad e tornou-se provavelmente o mais formidável serviço de informações e segurança do planeta.

A CIA norte-americana tem a sua Divisão de Atividades Especiais, que marchará para a guerra e matará se forem essas as suas ordens. O MI6 (ou SIS) britânico prefere manter as mãos tão limpas como possível e depende dos regimentos das Forças Especiais para fazer aquilo que precisa de ser feito. Israel também tem as suas Forças Especiais, mas a Mossad procederá a "eliminações" no país e no estrangeiro sem espécie alguma de hesitação sempre que tal se revelar necessário. Daí a litania de assassínios seletivos de inimigos à volta do mundo, quer por motivos de perigo futuro para Israel quer, como no caso daqueles que chacinaram os atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, como retaliação.

Durante o governo do xá, Israel pouco tinha a temer do Irão, mas, com a chegada dos aiatolas, tudo isso mudou, e mais ainda depois do início da missão iraniana de produzir a sua própria bomba nuclear. O Irão armou-se com o Pasdaran e com a brigada Al-Quds existente no seu interior, cuja tarefa era cometer atos terroristas e assassínios tanto dentro quanto fora do país. A isto podia acrescentar-se o VAJA, o ministério da Informação, e a SAVAMA, a polícia secreta, com a sua série de hediondas prisões e instalações de tortura.

O organismo encarregado de criar essa esquiva bomba nuclear fora e continuava a ser o FEDAT, guardião dos extensos arquivos das atividades realizadas, das compras feitas, dos cientistas subornados, da localização das reservas de matérias físseis e dos pormenores do progresso alcançado até ao momento presente. Durante anos, o Irão levara a cabo um engenhoso embuste relativamente ao que dizia respeito a todos esses registos. Enquanto o mundo substituía o arquivo de papel por bases de dados informatizadas, o Irão conservava muitos dos seus documentos secretos no velho suporte. Seguindo a teoria do "escondido à vista de todos", guardava-os num enorme mas deteriorado armazém no sul de Teerão, num local chamado Xorabad.

Nessa altura, toda a papelada, que pesava meia tonelada, foi roubada. Foi a Mossad a responsável por esse feito, embora a forma como o conseguiu permaneça um mistério, exceto para as chefias no seu igualmente anónimo edifício de escritórios a norte de Telavive. Ao que parecia, os seus agentes tinham conseguido aceder ao armazém de Xorabad e, então, de modo surpreendente, transferiram a carga inteira ou para um heliporto ou diretamente para um navio que estava à espera longe da costa, no golfo. E, daí, para Israel, torneando a península saudita e subindo o mar Vermelho.

Mas essa safra não contava a história toda; o resto permanecia trancado na base de dados do FEDAT, à qual não tinham conseguido aceder. Ainda. O acesso a esses dados era a parte do acordo a que ele se propusera com Avi Hirsch, a quem claramente fora dada autorização para avançar durante uma visita-relâmpago a Telavive, viajando incógnito na El Al, a companhia aérea nacional de Israel.

O avião privado israelita era um Gulfstream VI e aterrou na base da RAF de Brize Norton, em Oxfordshire. Pertencia a um multimilionário israelita e exibia o logótipo da sua empresa de tecnologias de informação. Ele era um dos Sayanim, os "ajudantes", uma rede global de judeus que não podem ser diretamente ligados à Mossad mas que "dão uma mãozinha" quando isso lhes é solicitado. O jato privado não estava normalmente pousado no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, mas sim na base militar de Sde Dov, a norte. O grupo britânico aguardara longe de olhares alheios; deu sinal de vida depois do reabastecimento e foi conduzido por um oficial subalterno desde a assistência em terra até aos degraus do Gulfstream. O comité de boas-vindas, que os acompanharia até Israel, não saiu da aeronave.

A comitiva britânica incluía uma atraente mulher loura que era, sem margem para dúvidas, muito protetora de um adolescente nervoso, bastante tímido e nitidamente relutante, bem como do irmão mais novo dele. No grupo também seguiam três técnicos informáticos que viviam com os dois rapazes e com a sua mãe.

A bordo encontrava-se uma tripulação de dois homens e uma hospedeira, todos com a farda da companhia. E havia quatro elementos da Mossad, que só deram os seus primeiros nomes - Yeuval, Moshe, Mordechai, conhecido por Motti, e Avram -, que nem sequer eram verdadeiros. Era proibido captar imagens - não que alguém tencionasse puxar de uma máquina fotográfica, em todo o caso.

Uma notícia não tão agradável era que um deles era um traidor. Nado e criado no Irão, fora abordado pelo VAJA, que lhe oferecera uma quantia muito substancial se ele espiasse em seu favor. Desejoso de emigrar um dia para os Estados Unidos como um homem muito rico, ele sucumbira.

Uma notícia melhor era que o diretor da Mossad, Meyer Ben-Avi (nome de código Botões de Punho), sabia disto e estava a usá-lo para fazer chegar uma torrente de desinformação a Teerão. Ainda assim, havia limites e, um dia, num futuro não muito distante, ocorreria uma detenção ainda antes do amanhecer, um julgamento secreto e uma pena de prisão muito prolongada numa cave, ou, o mais provável, um acidente de viação fatal. Depois disso, uma conta bancária secreta que, afinal, não era completamente secreta seria apreendida e o seu conteúdo doado ao fundo para viúvas e órfãos.

Após um voo sem incidentes, aterraram no velho aeroporto de Ovda, onde foram recebidos por três limusinas que os levariam até uma vivenda recém-equipada nos arredores de Eilat, bem afastada dos olhares dos turistas mas suficientemente próxima da água para permitir banhos diários no temperado mar azul. O bar-esplanada fundado por Rafi Nelson ficava mesmo ao longo da costa.

Com o grupo inglês instalado na sua vivenda junto às águas do golfo de Eilat, os quatro agentes da Mossad responsáveis pela escolta foram dispensados e voaram para Telavive. Um deles, aquele conhecido por Motti, tinha um grande problema: precisava de informar os seus empregadores em Teerão sobre tudo aquilo que tinha ficado a saber.

O desastre que se abatera sobre a central de purificação de urânio em Fordo era agora do conhecimento geral. Mas Motti também sabia, por estranho que isso pudesse parecer, que o génio informático que obtivera os códigos de acesso ao computador central de Fordo estivera sentado a poucos metros de si durante o voo de seis horas entre Brize Norton e Eilat.

O grupo inglês não falava uma palavra de hebraico e tinha conversado unicamente na sua língua, na qual Motti era igualmente fluente. O adolescente ansioso deixara-se ficar sentado na parte de trás do Gulfstream, com a cortina corrida sobre a janela, recusando-se a olhar para fora e para baixo, para os mares e massas terrestres que passavam sob a asa. Enfiara o nariz numas revistas técnicas que, para Motti, com o seu conhecimento corriqueiro de sistemas informáticos normais, seriam completamente incompreensíveis. Aceitou limonada da hospedeira, e apenas limonada, sorrindo de forma tímida quando ela se dirigia a ele. Mas tornara-se claro que era aquela a mente que decifrara os códigos de Fordo. Do seu pequeno apartamento fora de Telavive, Motti tinha agora de fazer chegar essa informação a Teerão, que ficava a mil e quinhentos quilómetros para ocidente.

Nascera e fora criado em Isfahan, descendente de uma família pertencente à comunidade judaica de trinta mil pessoas que ainda vivia no Irão. No fim da adolescência, escapulira-se, atravessando a fronteira no tumulto que se seguiu à queda do xá, e aproveitara a Lei do Retorno para emigrar para Israel.

Podia evidentemente passar por iraniano, pois falava persa sem sombra de sotaque. Voluntariou-se para o Duvdevan, mas a deliberação foi de que seria demasiado arriscado regressar ao Irão em missões secretas sendo o país governado pelos recém-empossados aiatolas. Alguém do seu passado poderia reconhecê-lo e denunciá-lo, ainda que acidentalmente. Em vez disso, foi designado para a própria Mossad.

Alguém em Isfahan deve ter dado com a língua nos dentes. Foi abordado na cidade velha de Jerusalém e fizeram-lhe uma proposta. Mediante uma avultada quantia, a repetir no caso de informações futuras, ele mudaria de lado e passaria a trabalhar para o VAJA. Pensando com antecedência na sua descansada reforma, aceitara.

Não demorou muito até se descobrir que era um "duplo". É raro um israelita mudar de lado e trabalhar para o Irão ou outra ditadura qualquer do Médio Oriente, mas o contrário nem sempre acontece. No Irão, uma população de muitos milhões vive subjugada pelo temido Pasdaran e muitos estão dispostos a trabalhar contra ele, ansiando por reformas de raiz.

Meyer Ben-Avi era responsável por uma série de agentes no Irão, incluindo dois no VAJA, e a descoberta de Motti fora uma coisa rápida. Teria sido simples prendê-lo e quebrar a sua resistência num certo complexo subterrâneo sob as areias do deserto do Neguev, mas Ben-Avi optou por fazer as coisas de outra maneira. Ainda que saísse caro em termos de utilização de efetivos, pôs o renegado sob vigilância, ouviu cada sílaba por ele emitida de viva voz ou em papel, e observou com quem é que ele falava.

No mundo da espionagem, a desinformação deliberada é uma arma poderosa, e ter um "transmissor" diretamente ligado às cabeças pensantes do inimigo é algo extremamente apetecível. Era este o papel que Motti desempenhava, sem o saber, naquele momento.

O advento da passagem de mensagens de forma completamente digitalizada tornou a vida muito mais fácil em tudo o que sejam atividades legítimas e legais. Também tornou a sua interceção uma brincadeira de crianças. Perante este estado de coisas, tem crescido a tendência de voltar aos métodos antigos.

Durante anos, o Irão conseguira escapar sem castigo ao facto de ter guardado os seus arquivos nucleares em papel naquele armazém em Xorabad, bem afastado de quaisquer inspeções por parte da Agência Internacional de Energia Atómica, sediada em Viena. Confrontados com uma enxurrada de deteções por meios cibernéticos, os agentes secretos também têm recorrido aos métodos ancestrais. Entre estes contam-se a transação clandestina e a caixa de correio morta.

A primeira é simples, mas depende de uma sincronização à fração de segundo. O espião traz consigo centenas de documentos confidenciais miniaturizados em forma de microfilme e guardados numa caixa de metal do tamanho de uma caixa de fósforos. Este recetáculo tem de ser passado ao seu orientador sem que ninguém dê por nada. Só que o espião já está sob suspeita e tem elementos da polícia secreta no seu encalço pela rua fora.

Sem aviso, vira bruscamente do passeio para o interior de um bar ou restaurante. Lá dentro, o orientador já deixou o bar e está a caminhar em direção à porta. Ao passarem um pelo outro, os dois homens roçam ao de leve durante meio segundo - dá-se a troca. Os agentes de polícia aparecem. O orientador desvia-se educadamente para os deixar passar e sai então com a sua carga. Quanto ao espião, naquele momento está "limpo" de qualquer mácula.

A caixa de correio morta, ou "ponto de entrega", é simplesmente uma abertura algures. Pode localizar-se atrás de um tijolo solto num muro ou no tronco de uma árvore num parque. É do conhecimento exclusivo do espião e do seu orientador. O espião vai até ao ponto de entrega, certifica-se de que não está a ser vigiado e deposita a encomenda, que fica invisível. Mais tarde, uma marca de giz aparece num sítio pré-combinado. O espião e o orientador podem estar sempre a quilómetros um do outro, sem necessidade de se aproximar. Alertado pela marca de giz, que controla regularmente, para o facto de haver uma encomenda, o orientador acode também ele ao ponto de entrega, para ir buscá-la. O ponto de entrega de Motti era atrás de um café na cidade velha (oriental) de Jerusalém.

Escreveu o seu relatório, empregando um persa cuidado, numa única folha de papel de carta vulgar comprado em loja, limpou-o com uma esponja molhada com lixívia e inseriu-o, dobrado múltiplas vezes, numa caixa de fósforos, também limpa de impressões digitais. A caixa foi inserida numa bolsa de algodão, para nunca mais ser tocada pela ponta dos seus dedos. Em seguida, apanhou o autocarro da Egged para Jerusalém.

Saiu no lado ocidental e juntou-se às colunas de turistas que vagueavam pela porta de Mandelbaum em direção à confusão de vielas históricas e bazares que compõem a cidade velha. Uma hora depois, a caixa de fósforos estava no seu buraco atrás de um tijolo solto e uma marca de giz fora feita na silharia de um pilar de suporte de uma ponte a menos de cem metros da Via Dolorosa. Nenhum habitante local, nem nenhum turista se apercebeu do que quer que fosse.

As cautelas de Motti tinham sido meticulosas; não correra risco algum. Mas numa trapeira bem acima, com vista para as latrinas de um café, um jovem estagiário da Mossad cumpria a aborrecida tarefa de vigiar a caixa de correio morta. Viu Motti fazer a sua entrega e transmitiu essa informação. Horas mais tarde, viu o recetor de tez trigueira passar pelas latrinas, virar a esquina para a viela deserta e proceder à recolha. Voltou a transmitir a informação.

Ao cair da noite, o homem de tez trigueira já atravessara a ponte Allenby de regresso à Jordânia, com a caixa de fósforos a caminho de Teerão e das mãos de Hossein Taeb, chefe da secreta do Pasdaran. Nos arredores de Telavive, satisfazendo o seu gosto por whisky velho escocês, Ben-Avi bebericava um Chivas Regal enquanto observava os últimos raios do Sol que se punha sobre o Mediterrâneo que escurecia.

Fizera o que podia. Agora, só lhe restava esperar. Na espionagem, o que não falta são períodos de espera.


CAPÍTULO CATORZE

A despeito de ter sido nomeado chefe da secreta, Hossein Taeb não era nem soldado nem oficial de informação, nem nunca havia sido. Tratava-se de um clérigo, versado na teologia do ramo xiita do islão e completamente dedicado ao Líder Supremo, o aiatola Khamenei, e à revolução que governava o Irão desde a queda do xá. O relatório de uma das suas duas únicas fontes no seio da máquina de informação secreta israelita deixou-o consumido pela raiva.

Sabia tintim por tintim o que fora feito às magníficas instalações de Fordo, e quem o fizera. Estivera presente na reunião extremamente restrita em que os maiores físicos nucleares do Irão tinham explicado quantos anos - e recursos - levaria até se voltarem sequer a aproximar daquilo que se perdera em Fordo e das reservas de urânio para armamento que tinham desaparecido.

Sabia que, anos antes, impressionado pelas competências e criação de riqueza existentes em Silicon Valley, na Califórnia, o estado israelita decidira criar o seu próprio equivalente. O departamento de Taeb assistira à edificação da cibercidade que transformou a outrora poeirenta povoação de Bersebá, que ficava em pleno deserto, num enclave de reluzentes arranha-céus. Os especialistas que trabalhavam para ele tinham-no informado do recrutamento constante das mais brilhantes mentes jovens por parte do inimigo, Israel, para viverem e trabalharem acima ou abaixo da superfície, na Unidade 8200 - a melhor agência de ciberespionagem ultrassecreta a seguir a Cheltenham ou Fort Meade. E sabia que o Irão não tinha nada que se comparasse.

Mas também sabia que a destruição de Fordo não fora da responsabilidade das equipas de jovens judeus notáveis em Bersebá. Sim, tinham sido elas a aceder ao computador central para lhe transmitir as instruções letais, mas fora outra pessoa a dar-lhes os códigos de acesso que há tanto tentavam descobrir - sem nunca o conseguirem. Agora, Moscovo tivera a delicadeza de informar o Líder Supremo quanto à identidade da pessoa que de facto conseguira o impossível: um jovem de Inglaterra que era, sem dúvida, o pirata informático mais perigoso do mundo. E que viajara até Israel para ser recompensado com umas férias gratuitas junto às águas do golfo de Eilat. O clérigo mandou chamar o seu chefe de operações.

O coronel Mohammed Khalq não era um clérigo; era um soldado e um assassino nato. Na sua juventude, juntara-se à Basij, a reserva de entusiásticos voluntários do Pasdaran que, na guerra Irão-Iraque contra Saddam Hussein, tinham avançado em hordas suicidas sobre os campos minados iraquianos ao longo da fronteira para morrer por Alá e pelo Irão.

A dedicação e coragem de Khalq chamara a atenção. Passou da Basij para as forças regulares do Pasdaran, subindo na hierarquia a cada operação e servindo no sul do Líbano com o Hezbollah, que fora treinado pelo Irão, e, mais recentemente, com as forças de Assad na Síria. Leu o relatório do renegado da Mossad e o seu olhar cruzou-se com o de Hossein Taeb.

- Ele tem de morrer - disse o clérigo.

- Como é evidente - retorquiu o soldado.

- Quero que assumas pessoalmente o comando - prosseguiu Taeb. - Eu tratarei de garantir todas as autorizações que sejam precisas. Mas não percas tempo: o grupo de ingleses não há de ficar lá muito tempo.

O coronel Khalq soube de imediato que a operação de eliminação teria de ser lançada a partir do mar, e tinha uma grande variedade de opções marítimas. O Pasdaran não é somente um exército dentro do exército, uma coorte de elite da polícia secreta, um executor à escala nacional, um causador de terror e um garante de obediência nacional; também tem a sua própria força aérea e a sua própria armada, o seu vasto império industrial e comercial, e a sua própria frota mercante. Khalq saiu do pé do seu superior e foi conferenciar com o general que comandava todos os navios do Pasdaran, tanto militares quanto comerciais.

A embarcação escolhida foi o SS Mercator, que antes tivera um nome iraniano mas fora rebatizado e ostentava agora uma bandeira de La Valletta, capital de Malta. Essa pequena república da União Europeia agradece todas as taxas que possa cobrar por proceder ao registo de embarcações mercantes cuja carga nunca precisa de examinar.

A escolha deveu muito ao facto de o Mercator ser um navio de carga de apenas duas mil toneladas, com um ar deteriorado e raiado de ferrugem, sendo pouco provável que chamasse a atenção ao navegar aos soluços de porto em porto com as suas cargas ligeiras. Além disso, estava fundeado e vazio em Bandar Abbas, no extremo sul do Irão.

A primeira tarefa era substituir o capitão e toda a tripulação por uma equipa de marinheiros de combate experientes dos agressivos torpedeiros que costumam perseguir embarcações ocidentais no golfo Pérsico. Tudo isto foi conseguido por Ali Fadavi, comandante da armada do Pasdaran, no espaço de vinte e quatro horas. O Mercator foi então carregado de tábuas, postes e vigas, com documentos que mostravam que o material fora requisitado por uma empresa de construção civil de Ácaba, na Jordânia, um próspero porto que ficava a escassos quilómetros de Eilat, do outro lado da baía.

Para percorrer os últimos oito quilómetros por mar entre Ácaba e Eilat, o coronel requisitou duas Bradstone Challengers, que estavam entre as lanchas mais velozes do mundo e das quais o Irão tinha recentemente adquirido uma dúzia, sem nenhuma explicação plausível. Lançadas a mais de cinquenta nós em água chã, são normalmente vistas como brinquedos dos ricos e hedonistas. O coronel Khalq deu ordens para que duas delas fossem levadas de camião para sul, para serem içadas a bordo do Mercator juntamente com as respetivas tripulações. Os barcos de corrida foram então escondidos debaixo de lonas no convés.

Depois disto, precisava dos seus homens. Escolheu doze comandos da Marinha, todos eles com experiência em desembarques e hábeis com armas pequenas em situações de combate corpo a corpo. O grupo inteiro voou para sul de helicóptero para ir ao encontro do Mercator, já no mar, a trinta e sete quilómetros da costa, no estreito de Ormuz. Comandado pelo coronel Khalq, o grupo de ataque desceu em rappel do helicóptero para a coberta da proa do Mercator, de onde foi conduzido para os seus exíguos aposentos entre a madeira da carga. Com o motor em esforço, seria uma travessia de cinco dias até ao golfo de Ácaba.

No seu relatório, Motti referira que a segurança em redor da vivenda estava a cargo da polícia de Eilat, que destacara uma patrulha alternada de dois agentes, para não limitar demasiado as férias dos convidados do seu país. Tinha sido isto o que lhe contaram quando a equipa da Mossad viajava para norte, só que a verdade era outra: Meyer Ben-Avi tinha, na realidade, destacado vinte elementos da unidade muito especial das Forças Especiais chamada Sayeret Matkal.

Os integrantes da Matkal atuam normalmente fora das fronteiras da república e são peritos em penetrar sem serem vistos nem ouvidos em qualquer local do Médio Oriente, aí permanecendo até ficarem operacionais. A sua especialidade é a invisibilidade, mas quando decidem tornar-se visíveis, não há dúvida de que podem ser letais.

O Mercator já tinha passado o porto de Áden e entrado no estreito de Babelmândebe quando foi finalmente identificado. Para a aviação israelita que o sobrevoava, fora uma questão de eliminar as restantes hipóteses: este tinha o tamanho certo, a sua bandeira maltesa não enganava ninguém e a sua esteira mostrava que estava a navegar o mais depressa que podia. Uma verificação rápida junto do escritório do capitão do porto em Ácaba revelou que era este o seu destino. O convés tinha umas protuberâncias cobertas por lonas, e o construtor civil jordano que supostamente encomendara a carga entrara em liquidação havia vários meses - o que a unidade de informações secretas de Hossein Taeb tinha de sobra em móbil para agir parecia faltar-lhe em atenção ao pormenor. A seguir a Jidá, o SS Mercator foi acompanhado de perto até Ácaba.

Quando o barco chegou ao seu destino, não atracou no porto interior, antes fundeou no ancoradouro. Com a ajuda dos turcos do Mercator, as duas lanchas rápidas foram arriadas na água e amarradas aos lados da embarcação. Tendo ambas o depósito cheio, podiam cumprir os oito quilómetros até ao golfo de Eilat em minutos, e depois acelerar para sul até ao ponto de encontro com o navio de guerra do Pasdaran que, bem maior e fortemente armado, mareava para norte.

Antes de deixar o Irão, o coronel Khalq dera instruções ao agente que tratara da caixa de correio morta de Motti, que agora se encontrava na Jordânia a fazer-se passar por turista, para atravessar a fronteira terrestre para Israel. Daí, ainda enquanto turista inofensivo, encaminhar-se-ia para sul, de modo a fazer o reconhecimento da vivenda descrita por Motti, que ficava a sul da estância e perto do bar que em tempos fora gerido por Rafi Nelson.

Observando da costa através do seu binóculo, o agente assistiu à chegada do Mercator e, num barco alugado, dirigiu-se até ele para conferenciar com quem o comandava.

Na cabina do capitão, descreveu a vivenda que tinham como alvo ao pormenor. Vira os dois polícias de Eilat de guarda no portão; não vira os elementos da Sayeret Matkal escondidos dentro da vivenda e na paisagem circundante.

Reparara no grupo de seis ingleses: três homens, a mãe e os seus dois filhos, um dos quais, tímido e nervoso, tivera de ser incitado a entrar na temperada água azul. Não lhe fora possível puxar de uma máquina fotográfica perto da vivenda, mas conseguira fazer esboços rigorosos, que então passou ao coronel Khalq. O coronel planeou o ataque para a noite seguinte.

Eram duas da manhã, a hora do assassino noturno, quando as duas lanchas rápidas soltaram as amarras e deslizaram vagarosamente até ao golfo. Não havia motivo para grandes pressas - a velocidade estonteante seria necessária para a fuga pelo golfo em direção ao mar Vermelho. Uma vez que escurecera às nove na noite anterior, há muitas horas que as luzes dessa atração turística que é a cidade de Eilat cintilavam para oeste, com a música de uma centena de bares, restaurantes, discotecas e festas a ecoar por sobre o mar silencioso. Atrás deles, o porto industrial de Ácaba, outrora libertado dos Turcos por Lawrence e pelos Hachemitas, estava mais sossegado e, pelas duas da manhã, dormia a sono solto. Os poderosos mas abafados motores das duas Challengers emitiam pouco mais do que um murmurinho e conduziram as lanchas rápidas para oeste a menos de dez nós.

As luzes dispersas das vivendas que ficavam fora de Eilat entraram no seu campo de visão a sul da cidade, tendo todas elas um terreno em redor. Horas antes, durante o dia, depois de seguir agachado no semirrígido que servia como salva-vidas do Mercator, para o caso de a tripulação alguma vez ter de abandonar o navio, o coronel misturara-se com os veraneantes e passeara pela praia, tomando nota da localização da casa que tinham como alvo. Um solitário bar de praia funcionaria como indicador: desembarcariam sensivelmente a dez metros dele, enfrentando depois uma corrida de cerca de cem metros até ao alvo.

Cada Challenger tinha uma tripulação constituída por dois elementos. Em cada uma destas lanchas rápidas seguiam igualmente seis comandos armados; havia espaço para mais, mas o coronel Khalq não queria colisões indesejadas quando eles saltassem para dentro da água que lhes chegaria aos joelhos e tivessem de correr até à praia. O poder de fogo de doze atiradores experientes da Guarda Revolucionária seria mais que suficiente para eliminar os alvos.

Ele não sabia que outros pares de olhos, com a ajuda de poderosas lentes de visão noturna, tinham detetado as lanchas rápidas a sair da escuridão do mar e a rumar para a praia. Sussurraram-se ordens para terra, não em persa mas em hebraico.

Os homens do coronel desembarcaram sem problemas e estavam praticamente alinhados lado a lado quando começaram a sua corrida através da areia. Podiam ter sido derrubados por francoatiradores muito antes, mas os elementos do Matkal também tinham as suas ordens. Não havia ninguém na vivenda exceto os manequins, enroscados e aparentemente a dormir nas suas camas. Os elementos do Pasdaran chegaram à vivenda, que tinha as portas e as janelas abertas, entraram a correr e subiram para o andar de cima. Então começaram os disparos, quebrando a calada da noite e fazendo com que pessoas a cem metros de distância acordassem sobressaltadas e aos gritos de alarme.

Os outros turistas, acordando nas suas vivendas ao longo da praia, procuraram abrigo. Os últimos dois clientes do bar que restavam na praia praguejaram e atiraram-se para o chão, juntando-se ao empregado do bar.

No interior do alvo, não houve resistência. Todos os quartos foram invadidos e as figuras adormecidas cravejadas de balas. O comando mais jovem entrou a correr num dos quartos, quando o coronel Khalq saía. Na meia-luz verde-água dos seus óculos de visão noturna, viu claramente a forma de um jovem louro vestido com um pijama branco de algodão encharcado em sangue do queixo à cintura, o corpo todo torto em cima dos lençóis que pingavam. Deu meia-volta e foi atrás do seu coronel. O trabalho estava feito. Missão cumprida.

A dúzia de assassinos saiu a correr da vivenda tal como havia entrado - pelas portas e janelas da frente. As espingardas de precisão equipadas com silenciador dos francoatiradores não fizeram som algum. Os turistas em pânico nada ouviram. O coronel Khalq perguntou-se, mesmo antes de morrer, por que motivo os dois polícias de Eilat não estavam onde ele os tinha visto aquando da sua travessia vespertina a pouca distância da praia. A sua pergunta nunca teve resposta.

Tal como os homens das Forças Especiais em Chandler's Court, os elementos do Matkal estavam a usar munições de ponta oca: os projéteis penetravam nos corpos em corrida e depois expandiam-se, deixando um orifício de saída do tamanho de um pires. Só dois não morreram naquela praia. As ordens tinham sido claras: um, porventura dois, tinha de chegar à linha da costa e trepar para os barcos. Os outros dez não cumpriram mais do que cinquenta dos requeridos cem metros.

O jovem que estivera com o coronel no quarto do rapaz era um dos sobreviventes. Apercebera-se de que os seus camaradas estavam a cair em seu redor, mas, durante alguns segundos, pensou que tinham simplesmente tropeçado e perguntou-se porquê. De repente, estava com água salgada até aos joelhos, a agarrar as mãos que se esticavam na sua direção. As duas Challengers, com os motores a roncar, ziguezaguearam para longe da praia, acelerando rumo à escuridão. Nenhuma bala as perseguiu.

A partir de um bunker sobranceiro e detrás da vivenda atacada, Avi Hirsch observou os borrões cor de creme das duas esteiras a dissipar-se na escuridão. Fora autorizado a deixar o seu braço-direito a chefiar a delegação em Londres, de modo a poder viajar para Israel e comandar a operação em Eilat. Afinal de contas, conforme argumentou perante Meyer Ben-Avi, a ideia resultara de uma conversa numa sala à prova de escutas, perto de Palace Walk, entre ele próprio e um velho e matreiro cavaleiro do reino que fizera carreira no MI6, com o qual a Mossad organizara operações conjuntas anteriormente.

As Challengers demoraram uma hora, descendo o golfo de Ácaba a toda a velocidade, a chegar ao ponto de encontro com o navio de guerra do Pasdaran. As lanchas rápidas, já com pouco combustível, foram içadas a bordo para a travessia até casa: deixando para trás o mar Vermelho, navegariam ao longo da costa de Omã e regressariam ao estreito de Ormuz. Mas as ondas de rádio viajam mais depressa.

Aquilo que os comandos tinham a relatar, escutado clandestinamente pelos jovens elementos da Unidade 8200, debaixo de Bersebá, levou uma hora a chegar a Hossein Taeb. Este, por sua vez, relatou-o ao Líder Supremo no seu modesto apartamento na rua Pasteur. Tinha havido baixas consideráveis entre os comandos quando os judeus infiéis acordaram e responderam, mas tinham chegado tarde demais: o rapaz inglês estava morto - um dos sobreviventes entre os elementos do Pasdaran tivera oportunidade de fazer uma identificação visual.

Esta ficção foi mantida por Israel: uma reação de júbilo acabaria por transpirar mais cedo ou mais tarde. Para os meios de comunicação social sediados em Eilat, tratava-se de uma história importante - um confronto entre dois bandos rivais numa praia fora da cidade a meio da noite. Foi preciso oferecer garantias aos turistas: os criminosos tinham sido todos capturados pela polícia, que fora avisada e estava à espera deles. Como a maior parte das histórias mediáticas, também esta nasceu e, pouco depois, morreu. Os turistas têm o maravilhoso hábito de se ir embora quando as férias chegam ao fim. Ninguém tinha sequer visto um corpo; tinham todos desaparecido antes do amanhecer.

Os seis atores da Escola de Cinema de Israel foram alvo das mais calorosas felicitações - sobretudo o jovem sósia com as madeixas pintadas de louro que tão bem desempenhara o papel de Luke Jennings. Tal como aconteceu com o departamento técnico da Spiro Films, que criara os seis manequins que, quando cravejados de balas, explodiram numa abundância de sangue de aspeto quase real. Os primeiros também foram elogiados por manterem um inglês fluente no voo de Brize Norton para o aeroporto de Ovda, e depois na viagem rumo à casa de férias. Até Motti ficara convencido.

Houve celebrações em Teerão, que continuava convencida de que o destruidor das centrifugadoras de Fordo estava enfim a apodrecer no inferno dos infiéis.

Em Moscovo, o embaixador iraniano pediu uma audiência pessoal com o Vojd. Deu a entender que tinha informações importantes e que elas deviam ser transmitidas diretamente ao ouvido do senhor do Kremlin. Quando se encontraram, de início foi o russo a mostrar-se cético. A sua disposição passou a ser de felicitações e deleite quando o diplomata iraniano revelou que, durante um suposto período de férias em Israel, o cibergénio Luke Jennings fora assassinado por um grupo de comandos iranianos.

Quando o embaixador se foi embora, depois de recusar educadamente um brinde com vodka, o russo fez uma chamada pessoal ao seu chefe de espionagem em Iasenevo. Ievgueni Krilov aceitou as felicitações com agrado. Quando a chamada terminou, contudo, pediu que lhe trouxessem alguns ficheiros do arquivo. É um facto conhecido que os centros de espionagem em todo o mundo exercem vigilância sobre os seus amigos, mas mantêm ficheiros ainda mais pormenorizados sobre os seus inimigos. Os arquivos de Iasenevo continham informação abundante sobre membros conhecidos da CIA, do FBI e de outras agências governamentais norte-americanas. Em relação aos integrantes do MI5 e, mais ainda, do MI6, a informação era da mesma ordem. Em ambos os casos, aliás, a sua recolha era feita já há muitos anos.

Sir Adrian Weston chegara ao conhecimento dos soviéticos quando foi promovido a diretor do departamento da Europa de Leste durante a Guerra Fria. Era verdade que esta chegara ao fim, pelo menos oficialmente, mas o interesse nele não. A sua elevação a diretor-adjunto do MI6 também merecia lugar de destaque nos registos. Era este o registo que Ievgueni Krilov pedira; quando chegou, estudou-o durante uma hora.

Informava que o então senhor Weston fora discreta mas espetacularmente bem-sucedido contra a URSS e, mais tarde, contra a Federação Russa. Era sabido que ele tinha recrutado dois importantes traidores soviéticos e russos, e suspeitava-se do recrutamento de outros. Ao que parecia, a especialidade dele era o engodo: induzindo em erro, desviando a atenção, usando manhas. Havia até uma referência à possibilidade de, depois de se ter reformado, ele ter sido discretamente chamado para desempenhar as funções de conselheiro da nova primeira-ministra britânica.

Estaria de volta ao jogo? Tudo o que correra mal recentemente à Rússia e aos seus aliados revelava o traço distintivo do homem cujo ficheiro, pousado diante de Krilov, tinha uma espessura de quase três centímetros. E havia uma foto, mais uma tirada à socapa, por uma minicâmara de lapela, numa receção diplomática anos antes. As suspeitas de Krilov fortaleceram-se até se tornarem quase certezas. Tinha sido Adrian Weston a visitar Fritsch no banco de Vaduz - fora fotografado a atravessar o átrio, e a fotografia no ficheiro era manifestamente do mesmo homem. Era evidente, contudo, que Weston não mordera o isco. Tinha sido desastre atrás de desastre. Krilov fitou o retrato e começou a ter dúvidas sobre o massacre no golfo de Eilat.

Sue Jennings apreciara a estada das seis visitas de Israel. Não sabia porque é que era preciso que elas ali estivessem, mas confiava suficientemente em Sir Adrian para acreditar nele quando ele lhe disse que tinha em mente um plano para protegê-la, bem como às crianças.

Reparou na semelhança entre si própria e a mulher loura, bem como entre os seus filhos e os rapazes de cabelo encaracolado. Não era tola ao ponto de pensar que não havia motivo para aquilo. Uma encenação qualquer devia estar para acontecer, mas ela não sabia porquê. Nem precisava de saber - é assim que as coisas são no mundo da ilusão. Contudo, apreciara a estada deles, para variar um pouco do ramerrão em que viviam. Tinham ficado apenas uns dias, observando-a a ela e aos filhos durante esse período, e depois foram-se embora.

Tirando isso, estava a desfrutar, nos braços do capitão do SAS Harry Williams, de fazer amor de uma forma que nunca tinha experimentado, nem sequer imaginado, na sua vida anterior. O seu segundo filho, Marcus, também estava muito contente na sua nova escola: fora nomeado capitão da equipa de cricket dos Colts XI, o que acabou por despertar o interesse da sua primeira namorada.

Aquilo de que Sue não tinha conhecimento era do que se passava exatamente na ala de informática, onde o seu filho mais velho, Luke, tão autónomo diante de um ecrã como sempre, passava horas a teclar ao computador num mundo onde parecia que ninguém, nem mesmo o doutor Hendricks, era capaz de seguir na sua peugada.

Foi precisamente o doutor Hendricks que, num dia incrivelmente quente do princípio de agosto, se retirou para o seu gabinete pessoal e marcou o número de Sir Adrian.

- Ele conseguiu - atirou, assim que a ligação foi estabelecida. - Ele conseguiu, raios o partam! Atravessou tudo... as firewalls, o air gap, aquela porcaria toda! A base de dados tinha levado a melhor sobre toda a gente ao longo de anos, mas já os temos. E Teerão nem sequer reparou no nosso acesso.

Sir Adrian podia ter contado a Avi Hirsch, agora de volta ao seu posto, mas era um homem modesto e deu o presente à senhora Marjory Graham. Em vez disso, foi a primeira-ministra a pedir uma linha muito privada para falar com o embaixador israelita para o avisar, na certeza de que o primeiro-ministro de Israel não ficaria descontente. Em seguida, deu ordens para que os códigos de acesso à principal base de dados informatizada do FEDAT fossem partilhados com Jerusalém e Washington.

A safra que estes códigos permitiram fazer no departamento de investigação nuclear iraniano em Teerão comprovou que ambos os líderes, o israelita e o norte-americano, tinham tido razão o tempo todo: o Irão mentira repetidamente à Agência Internacional de Energia Atómica e, por conseguinte, ao mundo. A investigação nuclear nunca parara, tão-pouco abrandara. À luz da safra feita no FEDAT, a colheita do ataque ao arquivo de Xorabad não era senão uma pequena fração daquilo que fora ocultado. A indignação foi geral.

Os Estados Unidos tinham renunciado ao tratado internacional que revogava as sanções económicas ao Irão. A generalidade das outras partes envolvidas no tratado contestara essa tomada de posição; contudo, não tinha ainda visto o conteúdo do arquivo do FEDAT.

Em Jerusalém, uma caixa de correio morta foi fechada e, em Telavive, procedeu-se de forma discreta a uma detenção.


CAPÍTULO QUINZE

Foi uma reunião muito privada e decorreu durante um almoço no soalheiro terraço de Chequers Court, a mansão de campo oficial da primeira-ministra fora de Londres. Os empregados, como sempre, haviam sido requisitados ao serviço de restauração da RAF. Colin, o marido da primeira-ministra, esticou o pescoço através das portas do pátio, acenou com a cabeça, sorriu abertamente e retirou-se para ir ver o jogo de cricket entre a Inglaterra e a Austrália.

Marjory Graham não era grande amiga de álcool, mas bebia um copito ocasional de prosecco antes do almoço de domingo. Sir Adrian acompanhou-a. Quando a empregada se retirou, a senhora Graham virou-se para o seu convidado.

- Este assunto da Coreia do Norte: o que é que lhe parece, Adrian?

- Já recebeu o relatório completo do ministério dos Negócios Estrangeiros?

- Os seus antigos chefes. Claro, mas gostava de saber qual a sua opinião.

- Qual era a posição oficial?

- Convencional, claro. Conformista. Que devíamos seguir a orientação norte-americana. Concordar com o Departamento de Estado e a Casa Branca. E o Adrian, o que acha?

Sir Adrian bebericou o seu vinho e contemplou os relvados ondulados.

- Tenho participado, de quando em quando, em algumas operações de engodo; até dirigi uma ou duas. Têm a capacidade de ser extremamente prejudiciais para o adversário e benéficas para nós próprios. Podem levar o inimigo a andar meses, até anos, ao engano. Tempo, dinheiro, esforço, suor, trabalho árduo e lágrimas: tudo isso para nada, até para muito menos que nada; para um engano. Mas a pior variante é o autoengano, e receio que seja esse o oceano em que os americanos decidiram nadar.

- A completa desnuclearização da Coreia do Norte. Não é exequível, no fim de contas? - perguntou ela.

- É um logro, senhora primeira-ministra, uma mentira, um conto do vigário; ainda que apresentado com mestria, como sempre. E receio que a Casa Branca esteja a ser levada. Outra vez...

- Mas porquê? Têm lá gente extremamente inteligente.

- Despediram gente demais. E o dono da casa vive na ânsia do desejo de que lhe seja atribuído o prémio Nobel da Paz. Por isso é que a vontade de acreditar acaba por triunfar. É sempre um precursor de um conto do vigário bem-sucedido.

- Então acha que Pyongyang está a mentir?

- Tenho a certeza.

- Como é que eles se safam com isso? Vezes e vezes sem conta?

- A Coreia do Norte é um enigma, senhora primeira-ministra. Aparentemente, nada tem; ou tem muito, muito pouco. Em termos globais, o país é pequeno, estéril, desprovido de recursos naturais, um péssimo governo, falido e muito próximo de uma situação de fome. As duas grandes colheitas de cereais, que são o trigo e o arroz, fracassaram novamente. E, ainda assim, a Coreia do Norte escarrancha-se sobre o mundo como um conquistador.

- E como é que o regime o consegue, Adrian?

- Porque lho permitem. As pessoas que usam a lógica têm sempre medo dos loucos.

- E porque eles têm bombas nucleares.

- Sim, e dos dois tipos: atómicas e termonucleares; urânio e polónio. A Coreia do Norte tem vastas reservas de ambas e, embora pareça que o regime de Kim está a entregar algumas para serem destruídas pela Agência de Energia Atómica, estou convencido de que manterá outras em lugares secretos. Depende se o mundo exterior acredita nas suas mentiras.

- Mas se a Coreia do Norte destruir ao vivo e a cores o local onde leva a cabo os ensaios de armamento... como é que se chama?

- Punggye-ri, senhora primeira-ministra.

- Com isso destruído, como é que podem prosseguir?

- Em primeiro lugar, porque Punggye-ri, que é ou foi uma montanha, já está destruída. E por eles mesmo, acidentalmente. Ao longo de pelo menos trinta anos, três regimes sucessivos, todos dominados pela dinastia Kim (o avô, o filho e, agora, o neto), têm trabalhado dia e noite para criar e manter um arsenal completo de bombas nucleares.

"Há muitos anos, escolheram a montanha de Punggye-ri e começaram a perfurar uma das vertentes. Escavaram e escavaram até chegarem ao centro. Usaram máquinas, mas também trabalho escravo; muitos milhares morreram de malnutrição e excesso de trabalho. Tirou-se entulho da montanha em quantidade suficiente para fazer mais duas; foi levado de camião para muito longe, de molde a não ser visível do ar.

"Quando chegaram ao coração da montanha, continuaram a escavar: mais túneis, mais galerias, câmaras de ensaios, mais de trezentos quilómetros, no total; é como construir um túnel do tamanho de uma autoestrada de Londres até Hoek van Holland, na costa holandesa. Então, a Mãe Natureza pôs mão naquilo: a montanha não aguentava mais; começou a fraturar-se, a desmoronar-se interiormente.

"Ainda assim, recusaram-se a parar. Depois testaram a sua maior bomba H bem abaixo da terra e provocaram um terramoto com uma magnitude superior a seis na escala de Richter. Isso completou a implosão da montanha de Punggye-ri.

"Em simultâneo, a economia norte-coreana começou a cair aos pedaços, tal como a montanha, devido às sanções económicas impostas pelo mundo exterior depois de eles terem expulsado os inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica. Foi aqui que, o ano passado, descobriram qual o método que iriam usar: vamos destruir Punggye-ri publicamente, se vocês nos mandarem os cereais e o petróleo de que necessitamos. E o Ocidente deixou-se levar.

Neste momento, a primeira-ministra observou:

- Como é que sabe isto tudo?

- É do domínio público, se soubermos onde procurar. Há homens e mulheres no Instituto Real de Serviços Unidos para Estudos de Defesa e Segurança, conhecido por RUSI, cuja vida é passada a estudar cada pormenor dos perigos estratégicos em todo o mundo; consultá-los compensa.

- Então, porque é que o Ocidente caiu no logro?

- Na verdade, senhora primeira-ministra, foram os Estados Unidos, mais concretamente o Departamento de Estado e a Casa Branca, a cair.

- Nesse caso, repito: porque é que caíram?

- Porque assim quiseram, senhora primeira-ministra.

Sir Adrian passara a sua carreira profissional como funcionário do Estado numa das disciplinas mais rigorosas que existem: o serviço secreto. Estava convencido de que a maior parte dos políticos e demasiados funcionários governamentais de categoria superior possuíam egos de proporções himalaicas. Essa vaidade podia levar a fantasias que pouco mais fariam que não fosse o gasto em vão de consideráveis somas de dinheiro dos contribuintes; o esbanjamento por parte dos governos é um facto da vida. Mas se alguém se entregar ao autoengano durante uma missão secreta no coração de uma ditadura inimiga, é bem possível que acabe morto. O motivo por que ele estava disposto a trabalhar para Marjory Graham prendia-se com o facto de saber que ela se tratava de uma rara exceção a essa regra do ego.

- Meu Deus, tem assim tão má opinião de nós, Adrian?

- Em 1938, ainda nem sequer era nascido; só vim ao mundo em 1948.

- E eu dez anos depois, em 1958. Está a tentar dizer o quê?...

- Em 1938, tínhamos o MI6; os americanos ainda não tinham fundado a CIA. E os Estados Unidos estavam mergulhados no isolacionismo. Mas os nossos agentes estavam ativos na Alemanha nazi. Sabiam dos primeiros campos de concentração: Dachau, Sachsenhausen, Buchenwald. Nós descobrimos o que eram, onde estavam, o que se passava no seu interior. Transmitimos essa informação; ninguém quis saber.

"Relatámos que Hitler estava a assentar a quilha de navios de guerra de que uma Alemanha amante da paz nunca precisaria. Mais uma vez, ninguém em Londres quis saber. Descobrimos que dois novos caças Messerschmitt estavam a sair da linha de montagem todos os dias; transmitimos essa informação. Debalde. Downing Street repetiu o gesto e virou-nos costas.

"Um primeiro-ministro crédulo só deu ouvidos a um ministério dos Negócios Estrangeiros repleto de fanáticos do apaziguamento. Deixou que o convencessem de que Hitler era um cavalheiro honrado que, tendo dado a sua palavra, a cumpriria. Mas, dia após dia, o Führer infringia todas as condições do tratado de Versalhes de 1919, todas as promessas que haviam sido feitas. E tudo isto podia ser provado.

- Adrian, isso foi há muito tempo, isto está a passar-se agora. O que é que está a tentar dizer?

- Que está a acontecer outra vez. A maior potência do Ocidente decidiu iludir-se quanto à possibilidade de um monstro oriental de comprovada selvajaria se converter num parceiro amante da paz em troca de um pouco de arroz. É mais um triunfo do autoengano.

A senhora Graham pousou a sua chávena de café e contemplou os campos verdes de Inglaterra, tão distantes das montanhas esventradas da Coreia do Norte.

- E esta montanha...

- Punggye-ri.

- Seja. Não tem mesmo valor algum?

- Nenhum. Já não é uma zona de ensaios. O que eles vão dinamitar diante dos aplausos do mundo é pouco mais que entulho nesta altura; o local já não é adequado à sua finalidade. Só que eles têm outros e, em todo o caso, de momento não precisam de fazer mais testes; têm reservas suficientes para ameaçar o mundo civilizado.

"O problema não é destruir Punggye-ri; agora, eles têm de facto dois outros problemas. Não faz muito sentido ter bombas nucleares se não se é capaz de as fazer acertar no alvo a muitos quilómetros de distância, inclusive a milhares de quilómetros de distância. O maior míssil balístico internacional deles ainda não é suficientemente potente para transportar a sua ogiva termonuclear mais pequena. Estão a tentar miniaturizar a ogiva e aumentar o míssil. Acabarão por consegui-lo.

"O míssil Hwasong-15 vai ser melhorado para transportar a ogiva termonuclear deles, tornando-o capaz de alcançar não só a ilha de Guam, sob administração norte-americana, mas qualquer ponto de todo o território dos Estados Unidos. Quando isso estiver concluído, eles não vão precisar de pedir favores; vão exigi-los. Caso contrário...

- Então, se a destruição pública de uma montanha já destruída não passa de uma atração secundária, o que é que eles querem realmente?

- Uma espécie de empréstimo intercalar, senhora primeira-ministra. Muitos milhões de toneladas de cereais, milhares de milhões de óleo combustível. Só que um empréstimo normalmente é pago... e este nunca será pago. Por isso, seria... uma recompensa, dada por bom comportamento. Enquanto durar, ou seja, enquanto lhes convier. Durante anos, a China tem sido a salvação da Coreia do Norte, só que o presidente Xi está a perder a paciência. Daí a corte desesperada feita pelos norte-coreanos à Casa Branca.

- E se o ditador norte-coreano não obtiver esse "empréstimo intercalar"?

- Então, Kim Jong-un terá de lidar com o problema número dois. Contrariamente ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, partilho da opinião de que o pequeno e rechonchudo Kim está numa posição muito mais frágil do que aparenta. Tudo o que estamos habituados a ver são aqueles vastos esquadrões de lealistas em Pyongyang, soldados empertigados e a marchar em passo de ganso, ultratreinados e ultrafanáticos. Mas só a esse milhão de lealistas privilegiados é permitido viver na capital: com boas casas, bem alimentados, com bons empregos. Só a eles, que são cuidadosamente escolhidos, é permitido aparecer perante as máquinas fotográficas ocidentais. De resto, há o exército, que integra duzentos mil elementos ultraleais, a guarda pretoriana, que morreria por ele e pelo seu regime.

"Mas, fora da capital, existem vinte milhões de habitantes em zonas rurais e mais um milhão de soldados. Vivem no limiar da fome generalizada; não os soldados, que, esses, são alimentados, mas têm mães, pais, irmãos, irmãs, todos debilitados pela malnutrição, a agarrar-se à vida, a gerar crianças mirradas e raquíticas. Pergunto-me, senhora primeira-ministra, se recorda a figura de Nicolae Ceausescu.

- Ele chegou a vir cá uma vez, não foi?

- Veio, sim, senhora primeira-ministra. De forma bastante insensata, fizemos dele cavaleiro honorário do reino por supostamente ter feito frente a Moscovo. Mais uma ideia do ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth; parece, de facto, que têm sede de ditadores na King Charles Street... Mais à frente, o título foi-lhe retirado. Já depois de ele estar morto. Talvez tenha sido um pouco tarde.

- Então, o que é que ele tem a ver com tudo isto?

- Antes de morrer, o pai de Kim Jong-un, Kim Jong-il, admitiu a Condoleezza Rice que o seu medo secreto era aquilo a que ele chamava o seu "momento Ceausescu".

- Que era o quê?

- Tal como os Kims, Ceausescu era um implacável tirano comunista; governou a Roménia com mão de ferro. Tal como os Kims, era cruel, corrupto e usava o poder para enriquecimento próprio. E, tal como os Kims, submetia o seu povo a uma propaganda incessante para o persuadir a venerá-lo.

"Certo dia, ao fazer um discurso em Timisoara, uma cidade de província, ouviu um som que nunca tinha ouvido na sua vida. Está tudo filmado. Ele não podia acreditar naquilo que os seus ouvidos lhe diziam. Tentou prosseguir, mas a seguir perdeu o fio à meada. Por fim, fugiu do palanque, correu até ao telhado e foi levado para longe de helicóptero. As pessoas estavam a apupá-lo.

- Ele não gostou disso?

- Pior ainda, senhora primeira-ministra; no espaço de três dias, o seu próprio Exército prendeu-o, julgou-o e condenou-o, e fuzilou-o, juntamente com a sua execrável mulher. Era este o momento temido por Kim Jong-il: que as pessoas se virassem contra ele e o Exército agisse para se salvar a si próprio.

- Isso podia acontecer ao gorduchão?

- Quem sabe quanta fome poderá suportar o povo norte-coreano? A não ser, claro, que o Ocidente capitule e o safe.

- E nesse caso?

- Ele ganhará tempo suficiente para completar tanto o aumento da carga explosiva do míssil Hwasong-15 quanto a redução da ogiva termonuclear para um tamanho portátil. Nessa altura, poderá chantagear o mundo; acabam-se cá as concessões por fazer explodir montanhas inúteis.

- Então, os envios de cereais são o seu verdadeiro calcanhar de Aquiles?

- Em parte. A chave não passa tanto pelas bombas A ou bombas H, mas sim pelos mísseis. Ele tem de aperfeiçoar os seus sistemas de lançamento. Desconfio que tal levará dois anos, porventura três, após vários ensaios de lançamento. De momento, os Hwasongs estão à espera nos seus silos.

- Autoengano ou não, Adrian, não posso desencadear uma guerra de palavras com a Casa Branca. Tirando isso, há alguma coisa que possamos fazer?

- Estou convicto de que os Hwasongs são todos controlados por supercomputadores, que têm fortes medidas de proteção mas contêm provas da ambição nuclear dos norte-coreanos. Tal como os arquivos do FEDAT em Teerão, que convenceram por fim a Casa Branca de que lhe estavam a mentir. Se conseguirmos provar que o gorduchão está a mentir...

- E então, podemos?

- Temos uma arma bizarra: um rapaz ansioso e com dons excecionais. Gostava que ele apontasse baterias à Coreia do Norte.

- Muito bem, permissão concedida. Mas faça tudo com a maior discrição do mundo. Mantenha-me informada. E tente não desencadear uma guerra; há um homem do outro lado do Atlântico que quer o prémio Nobel da Paz.

No seu círculo íntimo, Marjory Graham era conhecida pelo seu sentido de humor sardónico.


CAPÍTULO DEZASSEIS

O mar Amarelo não é amarelo. É cinzento, frio e hostil, e os quatro homens agachados no bote de pesca decrépito estavam a tiritar. O amanhecer estava sombrio, mas não era nem o frio, nem o céu encoberto que tapava o Sol nascente sobre a Coreia a provocar o seu tormento - era o medo.

Escapar da Coreia do Norte, cuja costa ainda estava visível através da neblina matinal, é extremamente arriscado. Não era o mar agitado que os fazia tiritar, mas sim o conhecimento de que, se fossem apanhados por uma das numerosas lanchas de patrulha norte-coreanas, enfrentariam prisão perpétua num campo de trabalho escravo ou execução por pelotão de fuzilamento, o que, ainda assim, seria um fim mais misericordioso.

Três dos homens eram pescadores, acostumados às águas do golfo da Coreia, a parte setentrional do mar Amarelo. Tinham sido principescamente subornados pelo quarto homem para tentarem evitar as patrulhas, com o fito de o deixar na costa da Coreia do Sul, voltando sorrateiramente para casa antes de o dia raiar. E tinham falhado. A meio da viagem para sul, o seu motor velho e cansado tinha-se avariado. A despeito de terem passado horas a remar furiosamente, o vento e as ondas vinham de sul, deixando-os imobilizados ao largo da costa da temível península norte-coreana.

Ouviram o som do motor antes de conseguirem distinguir o borrão cinzento no horizonte, ou discernir alguma bandeira ou galhardete que pudesse comprovar a sua identidade. Mas o ribombo surdo do motor aproximava-se cada vez mais. Esperavam que as ondas encrespadas ajudassem a disfarçar o seu pequeno casco, revestido com redes de pesca numa otimista tentativa de camuflagem. Mas o barco-patrulha teria radar e devia ter detetado alguma coisa, pois continuava a avançar. Cinco minutos depois, estava a rondá-los e um megafone ordenou-lhes que se imobilizassem.

De través via-se outro borrão, que emergia da luz que aumentava. Rezavam para que fosse a ilha de Kaul-li, com o seu pequeno porto de Mudu; uma pinta no oceano, mas dentro dos limites da Coreia do Sul. A voz atrás do megafone fez-se ouvir outra vez e um dos pescadores olhou para cima, o rosto preenchido pela esperança.

A língua, como é evidente, era coreano, mas o sotaque não vinha da costa atrás do véu da aurora; vinha de muito mais para sul. O pescador espreitou de debaixo das redes e viu então o galhardete desfraldado na popa: o emblema com a dupla lágrima da Coreia do Sul. Não voltariam a ver as suas mulheres, mas também não iriam enfrentar um pelotão de fuzilamento. Contra todas as probabilidades, tinham conseguido, e ser-lhes-ia oferecido asilo. No fim de contas, a polícia secreta do Norte acabou por não os capturar.

O barco da marinha sul-coreana, um dos novos Chamsuris, aceitou-os a bordo, e dois marinheiros ofereceram-lhes cobertores; um terceiro amarrou o bote inundado à popa. O homem do leme pôs o motor a trabalhar e virou a proa para sul, na direção de Kaul-li. O jovem capitão com sotaque do Sul carregou nas teclas do rádio e falou com a base. Tratava-se de um incidente, pelo que haveria um inquérito. As fugas bem-sucedidas eram impossíveis por terra, extremamente raras por mar. O capitão precisava de se proteger, não podia haver demoras a entrar em contacto com os seus superiores. Quis saber nomes.

O homem mais velho, aquele que subornara os pescadores para o levarem para sul, a despeito de todos os riscos, estava sentado debaixo do seu cobertor, ainda a tiritar. Com frio? Com medo? O mais certo era que se tratasse do alívio que substituíra a certeza de ser interrogado e morto. A tripulação já determinara que três dos refugiados eram pescadores sem vintém. Um dos homens da Marinha aproximou-se do homem debaixo do cobertor.

- Como é que se chama? - perguntou, com um bloco de notas na mão. O quarto homem olhou para cima.

- Chamo-me Li Song-Rhee - respondeu. O cobertor deslizou e as dragonas da sua farda, a indumentária que lhe assegurara a passagem por todos os postos de controlo na estrada que ligava Pyongyang à costa, brilharam debaixo do sol murcho da manhã. Este não era um cabo frenético em busca de uma vida melhor na Coreia do Sul; era um general de quatro estrelas do exército da República Popular Democrática da Coreia, um membro da ultraelite da ditadura de Kim.

O capitão ouviu o que o seu tripulante tinha para lhe dizer e verificou as dragonas da farda manchada de água do mar. Então, voltou ao seu rádio. Não iriam contornar a ilha de Kaul-li: havia lá um heliporto, para onde voaria um helicóptero vindo do quartel-general da Marinha em Incheon. A história da península das duas Coreias estava prestes a mudar.

Nove horas e igual número de fusos horários para ocidente, também já amanhecera quando tocou o telefone num modesto apartamento perto do arco do Almirantado. Sir Adrian atendeu.

- Sim, senhora primeira-ministra.

- Houve desenvolvimentos. Recorda-se daquilo de que falámos há umas semanas? Bem, parece que um general de quatro estrelas da Coreia do Norte desertou para a Coreia do Sul. Está relacionado com o programa de mísseis do Kim.

Dos seus anos com o SIS, Sir Adrian sabia que havia um procedimento por meio do qual assuntos considerados de importância suficiente poderiam ser enviados para Downing Street antes da sessão informativa habitual de todas as manhãs - os "apontamentos" que os primeiros-ministros costumam ler enquanto tomam o pequeno-almoço. Se a notícia de última hora fosse suficientemente premente, o titular do cargo de primeiro-ministro podia ser acordado fosse a que hora fosse; não que isso fizesse muita diferença à atual primeira-ministra, pois até os seus assistentes se perguntavam se ela chegava sequer a dormir.

- Vou pedir às pessoas que temos lá para ficarem atentas - disse ela.

- Isso é muito avisado, senhora primeira-ministra.

O telefone foi desligado do outro lado; Sir Adrian suspirou e pousou o auscultador. Sabia que ela se referia ao chefe de posto na equipa britânica do SIS na embaixada de Seul, na Coreia do Sul. Pôs-se em pé, vestiu um roupão e foi fazer torradas com manteiga. E café, claro, não podia faltar - o seu arábica de eleição, preto e intenso.

Não valia a pena confessar, nem mesmo à primeira-ministra, as incontáveis horas que passara com as melhores mentes especializadas na Coreia do Norte que o Instituto Real de Serviços Unidos tinha para oferecer. Escutara horas e horas de sessões informativas antes de se decidir pelo general Li Song-Rhee. Mesmo assim, era uma hipótese remota o cérebro do programa de mísseis receber o e-mail falso, quanto mais acreditar nele. Em todo o caso, como se costuma dizer, quem não arrisca...

Fora Luke Jennings, mais uma vez de forma desconcertante, a assegurar os códigos de acesso à base de dados de telemóveis norte-coreana. Eram muito obscuros e altamente vigiados e, no que dizia respeito ao ciberespaço, os norte-coreanos não eram nenhuns principiantes; na verdade, eram brilhantes, atacando constantemente o Ocidente com malware, cavalos de Troia e todos os estratagemas possíveis e imaginários. Mas nenhum deles era um rapaz de dezoito anos com síndrome de Asperger.

Naquela ditadura paranoica, há apenas um milhão e oitocentos mil telefones fixos, e exclusivamente para os escalões mais altos da administração governamental. Um telefone pode ser uma fonte de tramas, de conspirações, pelo que não se destina às massas. Até os elementos mais confiáveis têm de preencher uma série de formulários para conseguir um, e todos estão em permanência sob escuta. Os controlos relativamente à posse de telemóveis são ainda mais rigorosos.

O serviço nacionalizado chama-se Koryolink, numa parceria com a empresa egípcia Orascom. Estima-se que cerca de quatrocentas mil pessoas estejam autorizadas a ter telemóvel, e estes quatrocentos mil são constituídos quase na sua totalidade pelos privilegiados que vivem na capital. Dentro da verdadeira elite, havia um serviço ainda mais pequeno, ao qual Luke Jennings, ao fim de semanas de trabalho, conseguira aceder. Nessa altura, os falantes de coreano da RUSI tomaram conta das operações, percorrendo a base de dados com o fito de descobrir o número de telemóvel pessoal do general Li Song-Rhee.

Tinha sido um desertor norte-coreano, fechado numa casa-refúgio e sob vigilância, a escrever a mensagem. Em 2013, Kim ordenara a prisão e execução do seu tio e mentor Jang Song Thaek, possivelmente o homem mais poderoso do Estado a seguir a ele próprio, a pretexto de acusações de traição fabricadas. O mandarim foi feito em pedaços por uma saraivada de tiros de metralhadora. A mensagem para o general Li, anónima mas evidentemente enviada por um amigo dentro da elite, avisava-o de que o seu destino estava traçado e apenas à espera do desfecho.

Não, ainda não havia necessidade de contar tudo isto à primeira-ministra, refletiu Weston enquanto bebericava o seu arábica - o princípio de saber o estritamente necessário continuava em vigor. Os americanos ficariam com Li, claro, que seria louco se ficasse na Coreia do Sul. Uma casa-refúgio perto da CIA em McLean, Virgínia, seria mais segura e igualmente confortável. Em seguida, horas e mais horas de escrupulosas sessões informativas em coreano.

O que revelaria o general Li? E deixariam os americanos que um inglês estivesse presente? Passara-se tanto tempo, muitos dos seus melhores amigos na CIA estavam, tal como ele, reformados. Ou dizia-se que estavam, pelo menos. Mas algumas das velhas alianças, forjadas para lá da Cortina de Ferro "nos tempos de antigamente", como se costumava dizer, ainda tinham um profundo significado. Riscos partilhados, brindes tragados. "Passámos um bom bocado", como diziam os veteranos no bar do Clube das Forças Especiais. Iria dar uma palavrinha a alguns deles.

O instinto de Sir Adrian revelara-se acertado. Na base naval sul-coreana de Incheon, o desertor foi rapidamente posto num avião para cumprir a curta distância até à capital, Seul. Nenhum comandante local queria ficar encarregado desta potencial granada mais tempo do que o necessário.

O mesmo se aplicava ao governo sul-coreano. Viviam-se tempos de détente entre as duas Coreias, largamente publicitada e saudada em todo o mundo, e agora o governo do Sul via-se na posse de uma bomba diplomática capaz de fazer com que todo o processo degenerasse de uma situação de détente para uma de guerra aberta.

A reputação de Pyongyang sofreria um tremendo abalo, e o governo do Norte foi informado da sua baixa ao fim da manhã. A exigência de que o general Li fosse reenviado para norte foi imediata. Longe de ficar ofendido, o regime sul-coreano ficou foi aliviado quando a CIA interveio, e em força, a partir da embaixada norte-americana em Seul. Ainda vestido com a sua farda manchada de sal, o general acordou com os americanos que desejava, de facto, ser transferido para os Estados Unidos.

A transferência, feita num avião a jato da Força Aérea norte-americana, ocorreu ao fim dessa mesma tarde. Passada uma hora, com o general Li no ar e, surpreendentemente, a dormir como uma pedra, Seul começou a difundir a ideia de que toda a operação fora organizada pela CIA. A agência não despendeu energia alguma a desmenti-lo. Se fosse verdade, teria sido um golpe de mestre.

O veterano britânico também se revelou presciente no que dizia respeito à sua segunda previsão pessoal. Escassas horas depois de aterrar, o general Li Song-Rhee foi encaminhado para instalações muito confortáveis, fortemente guardadas por elementos batidos da Divisão de Atividades Especiais, também conhecida por SAD, no interior do enorme complexo da CIA em Langley, na Virgínia.

Especialistas em tudo o que dizia respeito à Coreia do Norte - o seu governo, o seu programa de armamento, a sua cultura e linguagem - foram selecionados dentro da própria CIA, no Pentágono, no Departamento de Estado e na academia e reunidos à pressa para constituir a equipa central de interrogação e o seu corpo auxiliar de observadores. O general não precisou de ser alertado, nem sequer com gentileza, de que o preço a pagar pela sua salvação e proteção seria colaboração total; não era nenhum tolo.

A Casa Branca exigiu que se prosseguisse sem delongas. O que quer que fosse que o homem no coração da máquina de poder e de armamento norte-coreana tivesse para revelar, o POTUS queria sabê-lo, e de imediato.

Os mundos diplomático e mediático estavam num rebuliço. Rapidamente se tornou impossível os Estados Unidos planearem novas cimeiras envolvendo os chefes de Estado dos dois países. O palavreado que rodeara o encontro entre o presidente e o ditador coreano numa pequena ilha ao largo de Singapura começou a dissipar-se. Mais importante do que uma nova superprodução hollywoodesca era a curiosidade quanto ao que o general desertor teria para contar.

De forma ameaçadora, o governo da Coreia do Norte preferiu guardar silêncio. Após uma solitária denúncia do Ocidente e das suas manhas, bem como de uma pouco convincente tentativa de assegurar que o desertor era um intrujão, o estado-eremita deixou-se cair numa reclusão furiosa. Era evidente, conforme os analistas da comunicação social ocidentais disseram ao mundo, que a principal preocupação de Pyongyang era que o povo norte-coreano não ficasse a saber do desastre. Resultou durante algum tempo, mas, a pouco e pouco, a notícia foi-se espalhando.

O interrogatório propriamente dito do general Li, designado de forma polida como uma "sessão informativa", começou dois dias depois na sede da CIA, num ambiente rigorosamente selado e vigiado por forças de segurança da SAD.

O general trazia um fato escuro feito à medida com camisa e gravata - por si escolhida -, e os seus interrogadores também. Eram quatro, e havia ainda dois intérpretes: um académico norte-americano bilingue e um anterior desertor nascido na Coreia e cidadão dos Estados Unidos há trinta anos. Outros vinte observadores assistiam ao interrogatório nos ecrãs do circuito interno de televisão.

A intenção passava por deixar o general Li num ambiente descontraído, confortável, sem nenhum tipo de stress - apenas cinco profissionais a manter uma conversa cordial. O principal interrogador era um professor de estudos coreanos que era fluente na língua do país, após uma vida absorto na disciplina que escolhera. Fora copiosamente informado quanto àquilo que os militares precisavam de saber com urgência.

Para espanto de todos, o general Li pertencia a essa percentagem infinitesimal de norte-coreanos que falam inglês de forma fluente. Os dois intérpretes conferiam o rigor do que ele dizia e ajudavam de vez em quando com pormenores técnicos. Todos ali tinham credenciações de segurança de alto nível, incluindo aqueles que se encontravam fora da sala. Entre eles estava um inglês de idade avançada sentado ao fundo e que se mantinha em silêncio - a sua pose preferida.

Embora a predisposição para o autoengano reinasse entre políticos e funcionários superiores que podiam ser demitidos no espaço de uma hora por causa de alguma divergência com o POTUS, a CIA ainda mantinha um núcleo duro de realistas profissionais a trabalhar a tempo inteiro e de olho no longo prazo. Era entre estes que os seus homólogos britânicos do MI6 mantinham bons contactos. Tinham sido eles, aliás, a convencer os seus colegas americanos a incluir o inglês reformado na reduzida lista de convidados.

A força motriz de tudo aquilo era o diretor da CIA, que fora informado em confidência de que, se não fosse por um adolescente que naquele preciso momento andava de volta do seu computador no coração de Warwickshire, o general Li Song-Rhee ainda estaria em Pyongyang. Mais ninguém em Washington fazia a mais pequena ideia de que a mensagem de telemóvel que levara à deserção no norte-coreano fora um logro, e isso incluía o próprio general.

Uma sessão informativa destas, mesmo que prolongada, não decorre de uma assentada; leva dias. Foi no segundo dia que o general Li pôde abordar a sua área de especialidade: o programa de mísseis de Kim, que estivera sob sua responsabilidade geral. Foi então que deixou cair uma bomba, possivelmente sem saber que era disso que se tratava. Não tinha a certeza de quanto é que os aliados ocidentais sabiam de facto, e desconhecia que eles sabiam menos do que aquilo que julgavam saber.

No primeiro dia, confirmara algo para o qual Sir Adrian, pelo menos, já alertara: a destruição da área de ensaios nucleares de Punggye-ri fora um ardil. Tinha certamente enganado os meios de comunicação social de todo o mundo, que haviam anunciado com gosto aos seus leitores, ouvintes e telespectadores essa importante concessão por parte da Coreia do Norte.

Na verdade, a base de ensaios não passava já de uma ruína, asseverou o general. Vítima de sobreperfuração, de ensaios de bombas e ainda de um terramoto, era agora uma coleção de túneis, cavernas e galerias desmoronadas. Por trás das entradas de acesso, entretanto seladas com cargas explosivas, não havia senão meras pilhas de destroços e bocados de teto.

Também confirmou que o muito badalado míssil balístico intercontinental Hwasong-15 era demasiado fraco para transportar a ogiva termonuclear que faria da Coreia do Norte uma verdadeira potência nuclear.

Foi neste segundo dia que ele revelou também duas coisas que o Ocidente efetivamente não sabia. A primeira era que o ditador Kim Jong-un estava numa posição mais frágil do que todos eles antecipavam. O general Li jurou que ele era um testa de ferro mantido no cargo pelo grupo conhecido por "seletorado", que congregava cerca de dois mil generais e burocratas superiores. Eram eles os donos do país e quem verdadeiramente o dirigia, vivendo num luxo imoderado enquanto o povo morria à fome. Isto permitia que Kim fizesse aquilo que fazia melhor: posar para os meios de comunicação social, acenar perante a adoração do proletariado e comer.

A segunda revelação foi que os defeitos do Hwasong-15 não eram o fim da linha para o programa nuclear coreano. Bem por baixo de uma montanha secreta, havia uma outra caverna, ainda escondida do mundo exterior, onde, nesse preciso instante, o seu poderoso sucessor, o Hwasong-20, estava a ser preparado. Este, sim, seria certamente capaz de levar a ogiva termonuclear mais pesada dos norte-coreanos a qualquer destino na superfície da Terra. Tudo o que lhe faltava eram os motores multifásicos, que, contudo, estavam prestes a ficar disponíveis e em funcionamento.

Findo o primeiro dia de interrogatório, o segundo encontro entre Kim e o presidente norte-americano, anteriormente anunciado, foi cancelado por Washington, após alegações de má-fé.

Ao final da tarde do segundo dia, Sir Adrian regressou ao Reino Unido. Tinha de relatar tudo isto a uma certa senhora, mas, antes disso, era preciso fazer um pouco mais de pesquisa.


CAPÍTULO DEZASSETE

Todas as grandes cidades têm bibliotecas onde os eruditos podem estudar registos e textos antigos, mas Londres é o sonho de qualquer investigador. Nessa gigantesca metrópole, existem algures arquivos que englobam tudo aquilo que a humanidade alguma vez pensou, escreveu ou fez desde que o primeiro troglodita saiu da sua gruta.

Alguns estão guardados em novas e resplandecentes bibliotecas de aço, cimento e vidro laminado. Outros, em caves antigas onde os crânios daqueles que morreram em pestes há muito passadas fitam os vivos como que dizendo: "Em tempos, estivemos aqui. Vivemos, amámos, lutámos, sofremos, morremos. Somos a vossa história. Descubram-nos, honrem a nossa memória."

Sir Adrian elegeu o Instituto Real de Serviços Unidos, escondido nos arredores de Whitehall, perto do ondulado Tamisa. O homem que procurava após cuidadosas diligências era, pensou ele, extremamente jovem, mas, nos tempos que corriam, todos pareciam sê-lo para Sir Adrian - a idade não perdoa. O professor Martin Dixon tinha quarenta anos e dedicava-se ao estudo de mísseis desde que se tornara obcecado por eles no início da adolescência. Foi isso que acabou por levá-lo ao estudo das duas Coreias.

- A sede de armas nucleares e mísseis para as transportar do regime norte-coreano começou há mais de cinquenta anos com o pai fundador, Kim Il-sung - explicou ele. - A seguir a 1945, quando o derrotado Japão se retirou da península coreana, foi o próprio Josef Estaline a escolher o primeiro Kim para criar o estado comunista da Coreia do Norte e invadir o Sul. Três anos depois, o impasse coreano levou à divisão permanente da península.

"Na altura em que morreu, em 1994, Kim Il-sung criara a primeira dinastia comunista do mundo e conseguira entregar o poder ao seu filho Kim Jong-il. Também estabelecera um código de absoluta veneração, dirigida tanto a si quanto à sua família, no seio de um povo alvo de propaganda e de lavagens cerebrais e que fora treinado, como se de fantoches se tratasse, para o adorar e para nunca, mas nunca, questionar a sua quase divindade. Para o conseguir, Kim fechara a Coreia do Norte a todas as influências externas, criando o estado-eremita de hoje em dia.

"Ao fazê-lo, percebeu que um estado pequeno e quase estéril, com vinte e três milhões de pessoas e incapaz de ser autossuficiente mesmo em termos alimentares, jamais seria uma potência temida pelo mundo se não tivesse armas nucleares e os mísseis necessários para as lançar para qualquer sítio do planeta. Essa tornou-se a sua obsessão permanente, e assim continua sob o governo do seu neto. Tudo, absolutamente tudo aquilo que a Coreia do Norte é ou poderia ter sido, foi sacrificado aos pés dessa ânsia de ameaçar o mundo.

- E os mísseis?

- Primeiro veio a bomba, sir Adrian - respondeu o jovem académico. - Os coreanos, tanto do Norte quanto do Sul, são pessoas extremamente inteligentes. O Norte resolveu sucessivos problemas técnicos, refinando urânio-235 e, em seguida, plutónio em quantidade suficiente para criar as suas próprias bombas atómicas e, agora, termonucleares. Hoje em dia, têm reservas de ambos. Cada cêntimo de moeda estrangeira foi empregue nessa demanda.

"Mas foi-se tornando claro que de nada serve ter uma bomba atómica se só for possível detoná-la debaixo do próprio traseiro; para se ser verdadeiramente ameaçador e, por conseguinte, bajulado, é preciso ser capaz de a transportar e detonar a muitos quilómetros de distância. A princípio, importaram tecnologia de foguetes de longo alcance e produziram uma série de mísseis a que chamaram Musudan. Estes mísseis conseguiam transportar bombas de tamanho modesto nas suas ogivas, mas só ao longo de distâncias limitadas.

"No Ocidente, víamo-los a ensaiar o programa de bombas atómicas vezes sem conta, sempre debaixo da terra, até fazerem enormes crateras por todo o país. Em paralelo, o programa de mísseis avançou dos Musudans para um novo tipo de míssil, com uma carga explosiva e um alcance muito maiores. Como sabe, estes mísseis chamam-se Hwasong.

- Até onde é que eles já chegaram exatamente?

- Kim Jong-il continuou as políticas do seu pai. Os cientistas prosseguiram com o programa de mísseis Hwasong até o segundo Kim morrer, em 2011. Houve uma breve luta pelo poder, mas o filho favorito do falecido ditador ganhou à vontade. Gordo, feio, com um corte de cabelo bizarro no qual continua a insistir... não importa; a sua implacabilidade é total, a obsessão consigo mesmo absoluta.

"Desde que chegou ao poder, deu um grande impulso tanto ao programa de bombas quanto ao de mísseis, para que avancem com maior rapidez e sentido de urgência; ensaio atrás de ensaio, lançamento atrás de lançamento. Foram incrivelmente dispendiosos e alguns deles rotundos fracassos, e o comportamento dele vem-se tornando cada vez mais estranho, como todos podemos testemunhar. Não que pareça importar: impõem-se sanções comerciais que, a seguir, são aliviadas. A verdade é que o mundo tem medo dele.

"Os Estados Unidos podiam apagá-lo do mapa, a ele e ao seu regime, com um devastador ataque preventivo, aliás, tal como o seu enorme vizinho e protetor, a China. Mas ambos temem que ele consiga detonar dispositivos termonucleares em número suficiente para arrasar toda a península e grande parte do nordeste da China. Daí... a constante complacência, a elevação de Kim a estadista de nível mundial.

"Quanto ao programa de mísseis, é o meu objeto de estudo específico. O mais recente, com a maior carga explosiva e o alcance mais longo, é o Hwasong-15. É enorme, mas não é suficientemente grande para levar até qualquer parte do mundo a ogiva termonuclear que Kim Jong-un lá quer instalar, em particular até Washington. Está a par da deserção do general Li Song-Rhee?

- Terei tido uma pequena quota-parte nisso - admitiu Sir Adrian.

- Bem, pelo que sei, o general Li admitiu que a Coreia do Norte vai queimar o último cartucho. Tudo ou nada. O Hwasong-20, a ser construído neste preciso momento.

- Foi exatamente isso que ele disse: eu estava lá.

- Sorte a sua, Sir Adrian. Espero poder ter acesso ao general numa fase posterior; os americanos estão primeiro. Mas o Hwasong-20 terá de ser bastante diferente do seu antecessor.

- Em que medida?

- Os mísseis desse tamanho são, por norma, armazenados em silos subterrâneos, de onde são disparados. A cobertura do silo oculta o míssil de olhares indiscretos no céu até ser removida antes do disparo. Então, ele sobe na vertical, galopando uma enorme bola de fogo que o lança até ao espaço. Uma vez longe da terra, inclina-se para a sua nova trajetória, que então o levará até ao seu alvo, onde a ogiva se separa, cai e explode.

"Só que o Hwasong-15 é transportado sobre um veículo de trinta e dois eixos; os dois juntos pesam cem toneladas. Na Coreia do Norte, só umas quantas estradas especialmente preparadas podem sequer aguentar uma carga assim. Mas também não interessa; basta esconder um míssil com êxito numa caverna que tenha uns quantos quilómetros de autoestrada disfarçada em redor para ele aparecer e ser lançado.

"Já o Hwasong-20 terá de estar num silo, construído e escondido nalgum complexo subterrâneo que ainda não sabemos onde fica.

- Também é essa a informação de que disponho - retorquiu Sir Adrian. - E é aí que entra o general Li; ele sabe onde fica.

- Isso é mau para Kim, mas não é o último dos seus problemas; essa honra pertence ao motor do míssil. A Coreia do Norte nunca foi capaz de produzir fontes de alimentação suficientemente grandes para os Hwasongs.

- Então, onde é que as vai buscar? À China?

- Não, à Rússia. O potencial balístico da Coreia do Norte aumentou rapidamente desde que Kim Jong-un chegou ao poder; a razão para isso é que ele mudou de fontes de alimentação. Costumava haver duas fábricas na antiga URSS que produziam os motores soviéticos; uma ficava na Ucrânia, a outra mesmo junto a Moscovo. Então, deu-se a desagregação da URSS, por isso a ucraniana foi à vida. A fábrica russa continuou a fazer o motor de foguete RD250. Fora esse a ser usado para alimentar os Hwasongs-12, 14 e 15, e era a ele que se devia o repentino aumento do grau de ameaça norte-coreano sob o governo do gorducho.

"Contudo, aconteceu um desastre. Em Moscovo, o governo deu início a um programa de rearmamento no valor de um bilião de rublos e mudou de motor para mísseis. A produtora do RD250, que se chama Energomash, ficou sem esse contrato. Deu por si com motores RD250 a mais, mas sem encomendas. Entra em cena Kim Jong-un. A informação de que disponho é que a Energomash está a aperfeiçoar dia após dia alguns dos seus RD250 para os enviar para Pyongyang, onde formarão a fonte de alimentação do Hwasong-20. Se a Energomash parasse de o fazer, Kim estaria virtualmente acabado; teria as bombas, mas não os mísseis para as lançar.

- O governo em Moscovo não vai impedi-lo, atendendo à sua atual disposição - retorquiu Sir Adrian. - Neste momento, a Rússia mostra-se tão agressiva para com o Ocidente como durante a Guerra Fria, portanto daí não virá ajuda alguma. Quando a Energomash tiver terminado e quiser proceder à entrega, como é que o fará?

O professor Dixon pensou um pouco.

- Vai ser um sacana bem grande - respondeu. - Um motor de propelente líquido, ainda que simplesmente monofásico. E quantidades enormes de combustível hipergólico, que é extremamente tóxico e instável. Duvido que possa ser transportado de avião; o mais certo é sê-lo num comboio selado. Através da Sibéria, a norte das fronteiras com a China e a Mongólia, depois descendo o istmo até ao estreito ponto de passagem do território russo para a Coreia do Norte.

- Disse que era instável. Seria possível alguma coisa correr mal?

- Só se fosse provocada.

Sir Adrian agradeceu-lhe e saiu.

O sol de verão ainda brilhava e o terraço de Chequers Court ainda era um sítio agradável para se almoçar quando a primeira-ministra e Sir Adrian se voltaram a encontrar. Quando ficaram sozinhos, ela perguntou:

- Então, quanto ao seu desertor coreano: como é que ele está?

- É muito esperto e está muito zangado. Claro que o conceito de "não perder a face" exige que o esconda.

- Isso é bom?

- Muito bom, senhora primeira-ministra. Quando um homem está convencido de que foi tratado injustamente, ferve de cólera e, por conseguinte, não se refreia. O general Li vai contar tudo o que sabe, e vai ser muita coisa.

- Ele sabe porque é que estava destinado a ser preso?

- Não, não sabe. Era leal a toda a prova ao regime de Kim.

- Ou quem é que o avisou a tempo de poder fugir? - Sir Adrian manteve-se em silêncio, enquanto pensava no que responder. - Ele não faz ideia, pois não?

- Felizmente, não. Nem o governo norte-coreano. A denúncia e o aviso mantêm-se um mistério para ambos.

- Foi o Adrian, não foi?

- Faz-se o que se pode, senhora primeira-ministra.

Marjory Graham bebeu um longo e pensativo gole de vinho para manter uma cara séria.

- Será que uma raposa esteve envolvida?

- Receio bem que esteja certa, senhora primeira-ministra.

- E as notícias do general?

- O destaque é que o regime de Kim nunca teve a mínima intenção de desnuclearizar a Coreia do Norte em troca de concessões comerciais, mesmo as vitais. Os americanos não estão lá muito satisfeitos por quase terem sido enganados.

- Daí o cancelamento dessas concessões e de futuras cimeiras?

- Precisamente.

- O inverno está a chegar. Sem importações em grande escala, pelas quais não pode pagar, o povo norte-coreano vai voltar a passar fome.

- O regime de Kim não quer saber, senhora primeira-ministra.

- Então, e quanto ao passo seguinte dele?

- Pelo que o general Li afirma, e tenho informação complementar que o sustenta, parece que um novo e enorme míssil está a ser construído sob supervisão de Kim numa caverna secreta que os aviões norte-americanos que sobrevoam a área ainda não detetaram.

- Será que o nosso jovem pirata informático em Chandler's Court consegue descobrir isso?

- Podemos sempre tentar, senhora primeira-ministra.

- Sim, Adrian, por favor faça-o. Café?

Sir Adrian foi dar com o doutor Hendricks no seu escritório, na ala de informática da velha mansão, ao lado da sala de operações, onde as fileiras de computadores de última geração zuniam suavemente. Pousou uma solitária folha de papel diante do nariz do cientista de computação.

- Existe uma fábrica na Rússia chamada Energomash - disse ele. - Há alguma referência a ela que seja do domínio público?

Jeremy Hendricks puxou o computador para si, iniciou a sessão e começou a digitar a pergunta.

- Está aqui, sim senhor - respondeu. - Cotada em bolsa: produz equipamento e componentes para a indústria espacial.

- É uma maneira de pôr a coisa.

- Conselho de administração, emissão de ações, uma referência a contratos governamentais e de defesa. Muitos das rubricas são confidenciais, pelo que o mais provável é qualquer pedido de esclarecimento ser recusado por motivos de segurança; nós faríamos o mesmo. Parece que produzem peças para mísseis.

- Ignore a estrutura corporativa. É possível achar alguma coisa sobre o que fazem em termos técnicos?

- Aqui não. Temos de ir ali à porta ao lado e consultar a nossa própria informação confidencial relativamente a estas pessoas; não é para consumo público. - Na sala principal, o doutor Hendricks agachou-se diante de outro computador e digitou as suas perguntas. - Os mecanismos de segurança deles são rigorosos em todas as fases e, sim, são controlados por computador; com firewalls ultracomplicadas para os proteger de escrutínio, e mais ainda de interferência.

- Mas se conseguíssemos ultrapassar as firewalls e atravessar o air gap, ainda que isso supostamente seja impossível, seria exequível inserir um pequeno malware no sistema e sair sem sermos detetados?

- Só há um hacker no mundo que eventualmente o poderia fazer, e ambos sabemos de quem se trata.

Luke Jennings veio da ala residencial acompanhado da sua mãe. Mostrava-se, como sempre, patologicamente tímido na companhia de outros, relutante em dar apertos de mão ou estabelecer contacto visual, a despeito do alento da mãe. Sir Adrian não insistiu.

Já na sala dos computadores, depois de verificar que tudo estava no seu devido lugar, ficou visivelmente descontraído. O simples zunido das fileiras de computadores parecia atuar como um sedativo para ele. O doutor Hendricks mostrou-lhe um pedaço de papel onde se viam linhas e mais linhas de números e hieróglifos. Eram as firewalls de um supercomputador bem distante, na Rússia.

Sir Adrian notou uma nova mudança na relação entre o rapaz e o homem mais velho. Pareciam ter-se tornado ainda mais próximos, e Sir Adrian pensava saber o motivo: pela primeira vez na vida, Luke Jennings tinha um colega. Ao longo de toda a sua jovem existência a teclar no computador do seu sótão em Luton, estivera sozinho. Em Chandler's Court, a princípio, também havia apenas desconhecidos, mas parecia que, por fim, um outro ser humano entrara no mundo impenetrável do rapaz e fora-lhe permitido permanecer aí. Ainda assim, a despeito de todo o seu conhecimento do mundo cibernético, de todos os seus anos no GCHQ, de todas as semanas passadas a observar Luke por cima do ombro, Jeremy Hendricks continuava sem conseguir compreender, e muito menos reproduzir, aquilo que o rapaz fazia para conseguir o impossível.

- Estas pessoas estão a fazer coisas muito perigosas para o nosso país, Luke - disse Hendricks. - Achas que conseguimos descobrir aquilo que andam a fazer?

Os olhos do rapaz iluminaram-se. Analisou os números que tinha na mão. Mais um desafio. Quando ouviu a advertência "imagino que não possa ser feito", ganhou vida. Era para isto que ele vivia.

Sir Adrian passou a noite numa hospedaria local: alvenaria antiga, vigas de madeira enegrecidas pelos anos, tarte de caça da região. Chegada a altura do café e de um calvados, descobriu um exemplar do Daily Telegraph deixado para trás e pôs-se à prova com as palavras-cruzadas, completando dois terços do quadro antes de admitir que o seu cérebro não lhe permitia ir mais além. Sabia que, na semiobscuridade, a Raposa trabalharia a noite inteira.

Regressou à mansão às oito da manhã. Algures no interior, o adolescente que estava a deixar as superpotências mundiais atónitas tinha ido dormir. No bosque circundante, a equipa de proteção de proximidade estava a ser rendida. Por via das dúvidas, a equipa da noite não pregara olho. O doutor Hendricks ainda estava acordado, à espera.

- Vi cada movimento que ele fez e continuo sem conseguir explicar como é que ele chegou lá - contou a Sir Adrian. Esticou uma outra folha de papel. - Estes são os códigos de acesso ao computador central da Energomash. Essa máquina controla as sequências de fabrico e montagem do motor para mísseis RD250, último modelo. O calcanhar de Aquiles está no processo de montagem. Com todo aquele combustível hipergólico que por ali anda, basta uma minúscula faísca... Seja como for, o Luke obteve os códigos, e ninguém parece ter dado por nada do outro lado.

Na viagem de regresso a Londres, Sir Adrian tinha razões para agradecer a Ciaran Martin, do Centro Nacional de Cibersegurança, por lhe ter permitido que surripiasse Jeremy Hendricks à sua equipa. O homem revelara-se a pessoa ideal para transpor o fosso entre o vulnerável rapaz de dezoito anos que entendia tudo sobre o mundo cibernético e muito pouco sobre o mundo real, e o bem mais velho chefe de espionagem, que vira e por vezes executara os estratagemas e os engodos característicos do mundo dos segredos, mas para quem era tão possível voar pelo ciberespaço como ir até à Lua.

No entanto, Weston estava preocupado com uma coisa acima de todas as outras: a unidade clandestina de Chandler's Court teria de ser desmantelada um dia. Tal como Alexandre, o Grande chorara quando não havia mais mundos para conquistar, iria chegar uma altura em que já não haveria quebra-cabeças para resolver - pelo menos seguindo as ordens do governo.

Para bandidos, Luke Jennings não teria preço - podia arrombar qualquer banco. Mas isso nunca deveria acontecer. Também não poderia ser contratado para trabalhar num edifício de escritórios com centenas de outros colegas - era demasiado frágil para isso. Talvez Jeremy Hendricks quisesse continuar a ser o seu mentor, o seu pai adotivo profissional, mas a Operação Troia terminaria. E então, o que seria de Luke? Weston ainda estava consumido por essa preocupação quando chegou ao arco do Almirantado.


CAPÍTULO DEZOITO

É comum pensar-se que, uma vez que se anuncia como um estado comunista, a Coreia do Norte não pode ter religião e deve, na verdade, dedicar-se ao ateísmo. Não é assim; a República Popular Democrática é profundamente religiosa e a devoção de todos os seus cidadãos, obrigatória.

O corte com a convenção está em que todos os norte-coreanos são obrigados por lei a venerar três deuses mortais - um vivo e dois falecidos. Estes são os três Kims: avô, pai e filho. Retratos dos dois que já morreram, Kim Il-sung e Kim Jong-il, são obrigatórios em todos os lares. Têm de ficar na parede, tal como ficaria um crucifixo numa casa de católicos devotos. São feitas inspeções periódicas para garantir que estão pendurados, expostos e que são venerados.

Pregadeiras do deus vivo, Kim Jong-un, são igualmente pandémicas. Qualquer referência à sua pessoa sem o título o Marechal é punível. Todos os benefícios pessoais provêm dele.

Como acontece em todas as religiões, forjaram-se lendas para escorar a fé nacional. No caso da Coreia do Norte, uma delas é a santificação de uma montanha onde se diz que nasceu o Kim do meio, filho do Fundador. É solo sagrado. A montanha chama-se Paektu.

Trata-se de um vulcão adormecido situado no extremo noroeste do país, a norte do mar Amarelo e do golfo da Coreia, mesmo em cima da fronteira com a China. Foi aqui que o regime decidiu construir o seu silo de mísseis ultrassecreto para albergar o Hwasong-20, ainda em desenvolvimento.

Mesmo abaixo do bordo da caldeira, existe uma modesta cabana de madeira, o putativo local de nascimento do Kim Número Dois. A ideia por trás da lenda é "provar" que este Kim teve origens humildes mas sagradas no território coreano e subiu na vida por mérito próprio, sendo, por conseguinte, bem merecedor de adoração como um deus vivo. Claro que tudo não passa de um disparate pegado.

O segundo Kim nasceu, na realidade, em segurança debaixo da proteção de Estaline, na Sibéria, onde o seu pai comandava uma unidade militar de exilados chineses e coreanos. A sua infância e educação decorreram com todo o conforto. Foi o genocida Estaline que, depois da derrota do Japão em 1945, virtualmente criou a Coreia do Norte e lhe impôs Kim Il-sung como ditador comunista. E foi este que, com o apoio dos soviéticos, deu início à Guerra da Coreia.

Uma vez que é solo sagrado, o monte Paektu permanece interdito ao povo norte-coreano e está completamente ocupado pelo Exército - foi isto que permitiu que as escavações decorressem em segredo. Muito do trabalho foi feito à mão, mediante a utilização de milhares de escravos prisioneiros nos numerosos campos de concentração do país. Ninguém sabe quantos morreram de excesso de trabalho, malnutrição, doença e exposição aos invernos gélidos, com temperaturas negativas, que cobrem o cume cinco meses por ano.

O general Li revelara tudo isto aos americanos, mas nenhuma providência condigna fora tomada. As tentativas de entabular um diálogo construtivo com o terceiro Kim continuaram, com o esquivo prémio a ser a desnuclearização voluntária da Coreia do Norte, em troca de concessões comerciais sob a forma de doações de comida e petróleo por parte de países ocidentais. Em paralelo, a produção do Hwasong-20 prosseguiu até lhe faltarem apenas os cruciais motores vindos da Rússia.

O frio do inverno chegou cedo a Moscovo, com os sinais denunciadores - os ventos cortantes das estepes orientais - a avisarem da vaga de frio iminente, enquanto o resto da Europa ainda aproveitava o sol do fim de verão.

Numa via de resguardo por trás da estação ferroviária de Iaroslav, um comboio muito secreto estava a ser preparado. O Transiberiano é um caminho de ferro famoso, mas só uma das suas variantes cumpre uma viagem ininterrupta de Moscovo a Pyongyang sem entrar uma vez que seja em território chinês ou mongol - este percurso é controlado pelos próprios norte-coreanos. E um dos veículos que o fazia era o comboio secreto naquela via de resguardo.

A cena parecia saída de um livro de Tolstoi. O enorme motor estava envolto em colunas de fumo. Na mais comprida rede ferroviária do mundo, com perto de seis mil e quinhentos quilómetros e abarcando sete fusos horários, existem longas secções em que não há motores movidos a gasóleo ou cabos - ainda se utilizam comboios a vapor alimentados a carvão.

Para superar a inclinação, e no caso de avaria em local remoto, havia duas enormes locomotivas decoradas com as bandeiras cruzadas da Rússia e da Coreia do Norte. A equipagem era composta por coreanos. Atrás das locomotivas e respetivas carvoeiras, havia três vagões de carga selados. Continham, em componentes ainda por montar, os novos motores para míssil RD250 da Energomash. Guardas russos e norte-coreanos rodeavam o comboio para impedir que qualquer pessoa não autorizada tentasse sequer aproximar-se.

Por fim, cumpriu-se a derradeira burocracia e tranquilizou-se o derradeiro funcionário, pelo que foi concedida permissão para o comboio rolar. As rodas de ferro guincharam e começaram a virar, e o monstro cuspidor de vapor escorregou vagarosamente para fora da via de resguardo, passando pelos comboios de passageiros com a sua azafamada carga humana, e seguiu para leste.

Quem viajou no Transiberiano pode confirmar que não se trata do comboio mais confortável do mundo; só os entusiastas das viagens de comboio o experimentam. Ao longo de extensões aparentemente intermináveis, atravessa as vastas florestas de pinheiros, larícios e espruces da Rússia. Para quem decide olhar pela janela, a vista é esta hora após hora, dia após dia. O que mata é o aborrecimento.

Os únicos humanos neste comboio eram os guardas: dóceis, impassíveis, obedientes, privados de material de leitura mas aparentemente imunes ao tédio. Na carruagem dos guardas, havia beliches onde muitos deles se limitavam a dormitar durante toda a viagem. A comida era básica e desenxabida, mas ao menos existia em quantidade suficiente, o que era, em si, uma bênção. E depois havia chá: intermináveis canecas de chá de um inesgotável samovar. Se estavam a par do tremendo poder que protegiam ou do quão instáveis eram os enormes bidões de combustível hipergólico de foguetes de longo alcance, nunca se saberá. Mas era provável que não, que não fizessem ideia alguma; simplesmente tinham as suas ordens e um trabalho a cumprir.

A noite passou a dia e, depois, outra vez a noite. Deixaram a Rússia europeia e rolaram através dos Urais até chegarem à sua Ásia natal. Atravessaram lentamente cidades com pouca iluminação e envolvidas por nuvens de poluição em direção a Ecaterimburgo, onde, em 1918, o último czar e a sua família foram chacinados numa cave, mas nenhum dos guardas queria saber disso para nada.

Os dias arrastaram-se, bem como as noites, enquanto o frio siberiano subjugava as florestas impenetráveis. O carvão era introduzido no compartimento do motor às pazadas, o motor rugia, a água fervia, os pistões rodavam e as rodas giravam.

Atravessaram cidades com nomes que os guardas coreanos não conseguiam ler nem pronunciar: Novosibirsk, Krasnoiarsk e Irkutsk, onde o avião espião U-2 do piloto norte-americano Gary Powers fora abatido em 1960. Aqui, os guardas conseguiam ver um enorme lago pelas janelas: era o Baical, o mais profundo do mundo. Também não sabiam disso.

A sul estendia-se a Mongólia, mas não atravessaram a fronteira. Não podiam arriscar o confisco da sua carga, nem sequer uma inspeção. Então, o país a sul passou a ser a China, mas o caminho de ferro continuava dentro da Rússia. Khabarovsk apareceu e desapareceu e, por fim, viraram para sul, para a fronteira com a sua pátria. Vladivostok ficou para trás e, finalmente, o comboio parou.

Mas tinham apenas chegado a Tumangang, a paragem na fronteira russo-coreana. A equipagem do comboio estava exausta, a despeito de os seus membros se terem "rendido" uns aos outros ao longo de sete dias e seis noites; subiram novas equipas a bordo. Se o veículo fosse um comboio de passageiros que transportava os escassos turistas ocidentais que fazem essa viagem, teria então percorrido as últimas centenas de quilómetros até à capital.

Só que esta era uma carga especial com um destino igualmente especial. O monte Paektu ficava a muitos quilómetros de distância da linha principal entre Pyongyang e Moscovo. O comboio sofreria um desvio e o seu conteúdo seria retirado, para posterior carregamento num ramal ferroviário. A estação fronteiriça fervilhava de agentes da polícia secreta do Departamento de Segurança Estatal.

Com novo maquinista, o comboio rolou através do estuário do rio Tumen e, em seguida, virou para oeste, rumo ao interior, onde ficavam a montanha sagrada e o silo secreto que protegia o Hwasong-20 de olhares indiscretos.

O Marechal recebeu as notícias no seu palácio em Pyongyang e ficou radiante de prazer - a sua duplicidade resultara. Ansioso pela détente, o presidente Moon, a sul, ia enviar milho, trigo e arroz como ajuda humanitária; a Coreia do Sul tivera boas colheitas e podia doar vastos excedentes. Quanto a ele, o Querido Líder, estava a uma semana de se tornar governante de uma potência termonuclear verdadeiramente global.

Sir Adrian tinha o hábito de subscrever diversas revistas técnicas de baixa tiragem sobre negócios estrangeiros e análises de serviços de informação. Foi numa delas que leu uma matéria sobre Song Ji-wei, de quem nunca ouvira falar. O visitante ia fazer uma palestra sobre a Coreia. Esperava-se uma assistência reduzida. Ainda assim, o chefe de espionagem reformado decidiu ir conhecê-lo.

O senhor Song tivera uma vida extraordinária. Nascera norte-coreano, cinquenta anos antes, e, aos dez, os seus pais tinham fugido para a China e, daí, para o Ocidente. No decurso, porém, tinham-se separado do filho, entretanto capturado pela polícia, que, ao fim de várias semanas, o libertou e atirou para a rua.

Parte do poder sobre as pessoas mantido pelos governos dos Kims é o castigo impiedoso que recai sobre toda a família de um fugitivo. Pais, irmãos, filhos e filhas, todos são detidos e enviados para campos de concentração, se alguém tenta escapar para o estrangeiro - quanto mais se é bem-sucedido ao fazê-lo. O próprio desejo de partir é crime.

Liberta da custódia policial, a criança tornou-se uma das chamadas "andorinhas esvoaçantes": miúdos de rua que vivem sem abrigo, a dormir em becos, à cata de comida, sem instrução formal. Isto acontecia longe da capital, por isso os turistas nunca veriam nenhuma. Aos dezoito anos, também Song tentara escapar pela fronteira com a China, atravessando-a no breu de uma noite sem luar, mas fora apanhado, passados dois dias, a roubar comida. Naquela altura, as autoridades chinesas entregavam os refugiados aos norte-coreanos. Song foi condenado a detenção perpétua num campo de trabalho. Aí, foi torturado, espancado e posto a trabalhar. Passou onze anos de sofrimento antes de se evadir.

Dessa vez, fugiu com mais três companheiros e dirigiu-se novamente para a fronteira a norte com a China, ao invés de ir para a fronteira com a outra Coreia, onde, bem a sul, fica a Zona Desmilitarizada. Longe de estar desmilitarizada, esta zona é, na verdade, a fronteira mais letal do mundo. Trata-se, em concreto, de duas fronteiras, com uma faixa de um quilómetro e meio entre elas salpicada de minas terrestres, torres de vigia e postos de metralhadoras. Muito poucos conseguem atravessar para sul.

O quarteto chegou à China. Um deles, que já lá tinha trabalhado, falava bem mandarim. Os outros três mantiveram-se de bico calado enquanto o falante de chinês lhes conseguia boleias em camiões e no vagão de mercadorias de um comboio lento. Penetraram cada vez mais na China, para longe da fronteira e das suas numerosas patrulhas. Então, viraram para sul e acabaram por chegar a Xangai.

Há muito que Xangai deixou de ser uma aldeia piscatória; hoje em dia, é simplesmente de perder de vista. Os seus quilómetros de docas, molhes e pontões recebem navios mercantes de todo o tipo. Muitos deles são enormes porta-contentores, mas ainda existem navios cargueiros e eles descobriram um com destino à Coreia do Sul, através do mar da China Oriental.

Esconderam-se por baixo das coberturas de lona de um salva-vidas. Descobertos em alto-mar por um solitário tripulante, persuadiram-no a pôr a lona outra vez no lugar e a não dizer nada a ninguém. Fracos e meio mortos de fome, escaparam para terra em Busan, na Coreia do Sul, e pediram asilo.

Song Ji-Wei tinha uma boa cabeça. Recobrou-se e arranjou um emprego, o que lhe permitiu ter rendimentos. Passados dez anos, com as suas poupanças e algum apoio financeiro local, começou a contra-atacar, fundando o movimento Sem Grilhões. Quando ele e Weston se encontraram depois da palestra, explicou a Sir Adrian o que fazia. No cerne da desconcertante docilidade das massas populares norte-coreanas, explicou ele, estava a sua completa ignorância de tudo o que acontecia no mundo exterior. O encerramento do seu país e das suas vidas a tudo o que acontecia noutros sítios era total.

Não tinham rádios para ouvir emissões estrangeiras, nem TV, nem iPads. De manhã à noite, depois ao longo desta até à alvorada, e durante toda a vida, eram submetidos a propaganda pró-governamental. Sem qualquer bitola de comparação, pensavam que as suas vidas eram normais, em vez de as verem como uma substância grotesca e deformada.

Em vinte e três milhões, somente cerca de um milhão dos privilegiados do Estado viviam razoavelmente bem: não passavam pelas fomes cíclicas que levavam a que corpos se amontoassem nas ruas, com os sobreviventes demasiado fracos para enterrarem os mortos. O preço era a lealdade total e absoluta à dinastia Kim.

Cerca de vinte por cento dos cidadãos, incluindo crianças, eram informadores, apoiados por algo como um milhão de elementos da polícia secreta, constantemente vigilantes e alerta para qualquer sinal de deslealdade ou desobediência. Talvez mudassem, e mudariam por certo, disse o senhor Song, se lhes contassem o quão maravilhosa podia ser a vida com liberdade. A tarefa dele era tentar informá-los disso mesmo.

Perto da fronteira, postara diversos voluntários à espera de vento sul-norte. Então, aqueles largavam pequenos balões de hélio com mensagens e imagens a descrever a vida no Sul. Os balões voavam para norte, subiam até rebentar e faziam chover as suas mensagens sobre a paisagem. Embora lê-las fosse crime, Song Ji-Wei sabia que muitos o faziam.

Sir Adrian lembrou-se da história que em tempos ouvira do agora falecido Kim Jong-il e do seu medo íntimo do "momento Ceausescu", quando as pessoas deixam de ovacionar e começam, uma a uma, a apupar.

- Do que é que necessitaria para alargar a sua operação? - perguntou. O senhor Song encolheu os ombros e sorriu.

- De financiamento - respondeu. - O movimento Sem Grilhões não recebe apoio material nem do governo sul-coreano, nem do estrangeiro; temos de ser nós a comprar os balões e o gás de hélio. Com financiamento, eu poderia até considerar a possibilidade de passar de balões para drones, que podiam ser recuperados intactos e usados novamente; vezes sem conta. Com drones, podia passar para leitores de cassetes a pilhas, que são pequenos e baratos. A palavra falada e a imagem em movimento são muito mais persuasivas, mais convincentes. Os norte-coreanos poderiam ver a vida no Sul como ela é: as liberdades, a autonomia, os direitos humanos, a capacidade para dizer o que se pensa e o que se quer. Mas isso ainda está muito distante.

- E pensa que os seus antigos concidadãos podem mudar? Rebelar-se? Fazer frente ao regime?

- De imediato, não - respondeu o senhor Song. - E não seriam as alargadas massas populares; tal como na Roménia, há muitos anos, seriam os generais que vemos hoje a bajular o gordo. São eles que de facto controlam a máquina de supressão e escravização. Para eles, é bom viver no meio de riqueza, bem-estar e privilégio. Nesta altura, venerar os Kims permite que isso aconteça.

"Não se esqueça do fator idade. Na minha sociedade, a idade é reverenciada. Todo o alto-comando tem idade suficiente para ser pai de Kim; eles não gostam de ser tratados com desprezo. A deserção do general Li deixou-os profundamente abalados. Por isso, Kim tem de cumprir o estipulado, e continuar a cumprir. O facto de o Ocidente ser tão crédulo, acreditando que ele um dia abandonará todas as suas armas nucleares, permite-lhe continuar a cumprir. Por isso, os generais estão com ele... até estarem eles próprios sob ameaça; aí, atacarão, tal como os generais da Roménia.

- O senhor Song é persuasivo - disse Sir Adrian. - Pessoalmente, não posso ajudá-lo. Mas talvez conheça quem possa.

Não tinha dúvidas de que o já de si sobrecarregado contribuinte britânico não devia ter de arcar com mais uma comparticipação para uma causa no estrangeiro, mas não estava a mentir quando disse que se lembrava de um possível financiador.

Nunca ninguém saberá o que correu mal no coração da montanha sagrada de Paektu naquele dia de setembro.

O míssil Hwasong-20 elevava-se, majestoso, a partir da base do silo bem abaixo - era verdadeiramente gigantesco. Com todo o cuidado, componente a componente, a nova fonte de alimentação RD250, vinda da Rússia, fora instalada. Com ainda mais cuidado, fora introduzido o líquido hipergólico, o propelente altamente instável que levaria o foguete a cruzar metade do planeta. Ainda não havia nenhuma ogiva termonuclear presente e as portas de aço de alta resistência que abriam para o céu ainda estavam cerradas.

Mas todos os sistemas complexos têm de ser testados, e foi durante os ensaios que alguma coisa deu para o torto. Em teoria, não havia nada que pudesse correr mal. Ligar e desligar circuitos, garantir que as ligações não falharão em caso de necessidade - estas verificações não deviam ser perigosas.

A explosão fendeu o interior da montanha sagrada, fazendo com que os rebentamentos deliberados em Punggye-ri, captados avidamente pelos meios de comunicação social e por observadores norte-americanos, parecessem uma celebração com fogo de artifício. Não havia estrangeiros em Paektu, mas os generais norte-coreanos estavam no local, agachados nos seus bunkers - tinham vindo assistir a um triunfo. Regressaram cambaleantes às suas limusinas, sacudindo da farda o pó levantado pelos escombros.

Muito longe dali, em várias direções, sismógrafos detetaram um tremor algures no norte da Coreia. Foi identificado como procedente do único vulcão naquela parte do mundo. Concluiu-se que devia ser o monte Paektu a troar. Mas o vulcão não estava inativo?

O mundo exterior, bem como os analistas dos ecrãs de registo de atividade sísmica, apenas podia especular quanto ao porquê de uma montanha vulcânica aparentemente inativa ter ribombado de um momento para o outro. No palácio d'o Marechal em Pyongyang, não havia enigma algum, apenas um atraso.

Os generais que tinham estado presentes no desastre de Paektu voltaram à capital nas suas limusinas, passando a voar por aldeias de camponeses subnutridos, magros como espetos, que os aclamavam por nem sequer ousarem não o fazer. À chegada, ninguém arriscou ser o primeiro a dar a notícia. Só após repetidas interrogações por parte do rechonchudo ditador é que um deles admitiu que tinha havido "um problema". Quando todos os pormenores vieram ao de cima, o infeliz mensageiro perdeu o emprego e a liberdade - foi enviado para um campo de trabalho.

Na sua cultura, gritar de raiva significa perder prestígio, mas gritar foi exatamente o que o Marechal fez. Durante uma hora. Os cortesãos fugiram, aterrorizados. Quando a calma regressou, mandou que lhe contassem todos os pormenores, até os mais ínfimos, e, por fim, exigiu um inquérito rigoroso ao que tinha corrido mal. Exames posteriores dos destroços determinariam que a falha devia estar no interior do motor RD250 que chegara da Rússia, algum defeito de fabrico que provocara a ignição de uma pequena faísca. O que quer que fosse, tinha levado o combustível propelente a incendiar-se. Mas essas conclusões ainda estavam à distância de algumas semanas.

No rescaldo imediato, o Marechal sabia apenas que a sua aposta tinha falhado. O Hwasong-20 era o míssil que, rematado com a ogiva termonuclear mais letal na sua posse, deveria tê-lo tornado uma verdadeira potência nuclear, convidada para ocupar um lugar no zénite dos líderes mundiais. Os seus cientistas diziam-lhe agora que levaria anos, além de somas de dinheiro astronómicas, a recriar o míssil e um novo silo noutra montanha. Foi então que ele convocou o embaixador russo, que saiu de rosto pálido do encontro entre ambos.


CAPÍTULO DEZANOVE

Sir Adrian demorou três dias a encontrar um financiador para o movimento de resistência coreano, composto pelos voluntários do Sem Grilhões que trabalhavam sob a direção do senhor Song. Começou por conversas discretas com dois velhos contactos seus na Agência Nacional de Combate ao Crime. Esta organização fora em tempos a Agência contra o Crime Organizado Grave e, mesmo não fazendo parte da Polícia Metropolitana da capital inglesa, trabalhava em estreita colaboração com ela, ainda que tivesse jurisdição sobre todo o território britânico.

Também tinha divisões que se concentravam no tráfico de estupefacientes e no conhecido submundo do crime russo. Falou com os responsáveis dessas duas divisões antes de se decidir pelo senhor Ilia Stepanovitch. Era um antigo cabecilha do crime organizado russo que, como o recém-ausentado Vladimir Vinogradov, utilizara dinheiro, suborno e violência durante o colapso económico da Rússia, anos antes, para adquirir uma participação maioritária numa determinada indústria, mais especificamente o negócio de platina do país. Fora assim que se fizera bilionário.

Este enriquecimento permitira-lhe tornar-se um apoiante do Vojd, em termos de financiamento e influência, quando este ainda estava em ascensão, por alturas do seu primeiro mandato; depois de o ter conseguido mediante eleições "arranjadas", a sua presidência passara agora a ser permanente. O laço nunca fora quebrado: os tentáculos de Stepanovitch ainda alcançavam tanto o Kremlin quanto o submundo. O seu registo criminal fora apagado e ele mudara-se para Londres para viver a vida dos oligarcas megarricos a quem fora permitido domiciliar-se como "não residentes".

Vivia numa mansão de vinte milhões de libras em Belgravia, o enclave mais abastado da cidade, mantinha o seu jato privado estacionado em Northolt e a sua admissão na alta sociedade fora conseguida, não com uma equipa de futebol, mas com uma série de cavalos de corrida treinados em Newmarket. Tinha vários números de telemóvel não secretos para os seus amigos e contactos, e ainda um outro, muitíssimo secreto, protegido por firewalls instaladas por alguns dos melhores geeks dos computadores que havia no mercado. Julgava-o à prova de escutas, mas Luke Jennings não levara mais do que escassos dias a decifrar os códigos. O doutor Hendricks, uma vez mais sem perceber patavina do modo como Luke o havia conseguido, instalou uma escuta permanente e indetetável que acabou por registar uma chamada para um número na Cidade do Panamá. Foi identificado como pertencendo a um banco.

O mentor de Chandler's Court atribuiu uma nova tarefa ao jovem. Passados mais uns quantos dias, este acedeu à base de dados interna e respetivos registos confidenciais de titulares de conta no estrangeiro. A base de dados solicitou ao interlocutor, que fora claramente identificado como o próprio senhor Stepanovitch, visto que todos os códigos de identificação estavam corretíssimos, quanto é que ele desejava transferir, para que conta e para que banco.

Não houve nenhum telefone propriamente dito envolvido: foi um computador a falar com outro. Sir Adrian atribuiu a si mesmo o papel de "interlocutor", sentado no centro informático em Chandler's Court, com o doutor Hendricks no painel de controlo dos computadores a pedir instruções. Sir Adrian olhou de relance para a folha de papel que tinha na mão.

Continha os pormenores eletrónicos de uma nova conta num reputado banco de investimento nas Ilhas do Canal. Letra a letra e número a número, Sir Adrian leu os dados da conta em voz alta. O doutor Hendricks introduziu-os no teclado e, num nanossegundo, as instruções chegaram ao Panamá; então, olhou para cima.

- O Panamá está a querer saber quanto é que deseja transferir do saldo total da conta.

Sir Adrian não pensara nisso. Encolheu os ombros.

- Tudo - respondeu. No segundo seguinte, a transferência estava feita.

- Caramba! - exclamou Hendricks, fitando o ecrã. - São trezentos milhões de libras.

O falso senhor Stepanovitch terminou a ligação. Já se tinha certificado de que nenhuma tentativa de engenharia reversa poderia conduzir a Chandler's Court. Então, o doutor Hendricks começou numa risadinha. Do outro lado da sala, sentado numa cadeira, Luke Jennings sorriu; tinha feito algo que agradara ao seu amigo, por isso estava feliz. Sir Adrian voltou de carro para Londres.

Claro que esta quantia excedia largamente as necessidades do senhor Song em Seul. Sir Adrian enviou-lhe um considerável fundo operacional para inundar a Coreia do Norte com propaganda subversiva e permitiu-se o luxo de oferecer avultadas doações anónimas a instituições de caridade dedicadas a crianças vítimas de abuso ou fome em todo o mundo, e a outras para soldados traumatizados ou estropiados.

À conversa uns com os outros enquanto bebiam uma cerveja depois do trabalho no pub Crown and Anchor, que ficava bem perto da mansão, os membros do pessoal doméstico de Belgravia referiram ter ouvido um som semelhante ao de um animal ferido proveniente da sala de estar do seu empregador a seguir ao jantar dessa noite.

Aquilo que não partilharam, porque não o sabiam, era que a fortuna desaparecida não pertencia ao senhor Stepanovitch; ele estivera simplesmente a guardá-la para os vori v zakone. Tratava-se de dinheiro da cocaína do submundo do crime russo, que tinha a reputação de ser bastante cético no que tocava a desculpas quando a sua fortuna desaparecia. O senhor Stepanovitch salvou a própria vida ao pagar-lhes de volta, mas os cavalos de corrida foram ao ar.

No dia seguinte às animadas cervejas sob as traves do pub em Belgravia, decorreu uma reunião muito restrita em Chequers Court. Entre os políticos contava-se a primeira-ministra, que presidia aos trabalhos mas disse muito pouco, preferindo, como sempre, dar ouvidos aos verdadeiros especialistas: o ministro dos Negócios Estrangeiros, o ministro da Defesa e secretários de Estado de três outros ministérios. Mas também estes estavam lá para ouvir o que tinham a dizer alguns categorizados funcionários do Estado.

Estes incluíam o chefe do Estado-Maior da Defesa, o chefe do SIS, o diretor do Centro Nacional de Cibersegurança e o seu colega do GCHQ, além de um representante do SIS e de outro do ministério dos Negócios Estrangeiros que tinham ambos passado a sua carreira a estudar a Europa de Leste e a Rússia. Tinham chegado notícias de várias fontes, e nenhuma delas era agradável.

Após anos de pesquisa, uma equipa de cientistas holandeses concluíra que não restavam dúvidas de que o voo 17 das linhas aéreas da Malásia que se despenhara sobre a Ucrânia em julho de 2014, implicando a perda de duzentos e oitenta e três passageiros e quinze elementos da tripulação, fora atingido de forma perfeitamente deliberada por uma equipa de artilharia russa, que disparara um míssil Buk a partir da Ucrânia oriental, então ocupada por Moscovo.

Conversas via rádio intercetadas tinham permitido confirmar que os responsáveis não eram rebeldes ucranianos e estavam perfeitamente cientes de que o seu alvo era um avião de passageiros civil. A maior parte dos passageiros era holandesa.

- Tem de haver represálias - disse o chefe do Estado-Maior da Defesa. - Ou, pelo menos, medidas de dissuasão. As provocações são crescentes e estão a alcançar níveis intoleráveis.

Houve resmungos e acenos de cabeça afirmativos em redor da mesa. A intervenção seguinte partiu do ministério dos Negócios Estrangeiros, e depois dele falou o homem do NSCS.

Na Ucrânia, ocorrera um ciberataque arrasador, que passara a ser conhecido por NotPetya, tendo como alvo os bancos, o governo e a rede elétrica do país. Fora disfarçado de ataque criminoso cujo objetivo era extorquir um resgate em troca da sua cessação, mas nenhuma agência ocidental de combate ao cibercrime tinha dúvidas de que era o governo russo que estava por trás de tudo.

Mais importante ainda, disse o responsável do NCSC, os ciberataques à Grã-Bretanha provenientes da Rússia estavam a tornar-se mais virulentos e mais frequentes a cada semana que passava. Todos eles provocavam danos e, além disso, a sua prevenção era dispendiosa. Foi o ministro dos Negócios Estrangeiros, a convite da primeira-ministra, a fazer a súmula.

- Estamos a viver numa época mais perigosa do que em qualquer outro ponto das nossas vidas - principiou. - As manchetes são dominadas por um tipo de terrorismo à escala global promovido por um estranho e pseudorreligioso culto da morte nascido de um islão pervertido. Mas essa não é a ameaça principal, apesar dos bombistas suicidas; o Daesh não é um estado-nação.

"Uma dúzia de países possui agora armas nucleares e os mísseis para as lançar. Quatro deles são extremamente instáveis; outros três são não apenas governados por ditaduras implacáveis, mas também com uma política externa agressiva. Dois deles são a Coreia do Norte e o Irão, mas quem vai à frente do campeonato, por opção própria, é a Rússia; as coisas não estavam tão más desde os tempos de Estaline.

- E qual é o parecer da defesa nacional? - perguntou a senhora Graham.

- Tenho de concordar com o ministro dos Negócios Estrangeiros - respondeu o ministro da Defesa. - As tentativas por parte de submarinos e de navios de guerra de superfície russos de penetrar nas nossas águas territoriais e dos seus bombardeiros nucleares de invadir o nosso espaço aéreo são constantes; acontecem pelo menos uma vez por semana. É rara a ocasião em que os nossos caças de interceção e as nossas defesas submarinas não estão em estado de alerta. O Reino Unido não é o único alvo na Europa Ocidental, apenas o principal. Como o ministro dos Negócios Estrangeiros disse, a Guerra Fria está de volta, e não por nossa opção, mas sim da Rússia. O Ocidente está sob ataque furtivo, disfarçado de provocações, a todos os níveis.

- E na Rússia? - perguntou a primeira-ministra.

- Está igual ou pior - respondeu a especialista em assuntos da Europa de Leste do ministério dos Negócios Estrangeiros. - O controlo do Kremlin sobre a vida na Rússia é cada vez mais severo. Os meios de comunicação do país comportam-se agora de forma maioritariamente servil em relação ao Kremlin. Jornalistas críticos são regularmente eliminados por assassinos contratados no submundo do crime. Aprendeu-se a lição: livrem-se de sequer tentar criticar o Kremlin; o preço não será a vossa carreira, mas a vossa vida. Outros homicídios tentados de críticos fora da Rússia também já ocorreram, como tão bem sabemos. Parece que não temos alternativa senão continuar a aceitar as agressões... a não ser que nos envolvamos numa guerra aberta, e isso é impensável.

A sombria reunião terminou trinta minutos depois. Os ministros e os principais funcionários governamentais saíram para almoçar, enquanto os que tinham ficado para trás esperavam a sua vez. Junto à porta, a senhora Graham trocou um olhar com Sir Adrian e acenou com a cabeça na direção da biblioteca; juntou-se aos livros e a ele passados alguns minutos.

- Não posso ficar aqui muito tempo - disse ela. - O Adrian ouviu a avaliação. As suas primeiras impressões?

- Têm toda a razão, claro. As perspetivas são muito sombrias.

- E a especialista? Ela tem razão? Não há nada que possamos fazer?

- Nada de forma declarada, senhora primeira-ministra. Ainda que talvez nos ouvissem caso a Rússia sofresse um acidente de facto catastrófico e o Kremlin fosse em seguida, e com a devida discrição, avisado que, se as provocações parassem, então também os acidentes parariam. Mas não se pode fazer nada às claras: todos os governos têm de manter o seu prestígio intacto.

- Por favor, ponha-me as suas ideias por escrito, Sir Adrian. Em papel. Entrega especial. Confidencial. No espaço de uma semana. E agora, por favor, perdoe-me, mas tenho mesmo de ir.

E foi-se embora. Sir Adrian saiu discretamente e foi de carro para casa. Tinha uma ideia.

Sir Adrian era alguém que preferia investigar os assuntos de forma aprofundada antes de abrir a boca ou de pôr as coisas por escrito. Provinha de um ofício em que, se os funcionários de categoria superior se enganavam, os de categoria inferior podiam morrer. Percorrera as fontes de informação relativas a gasodutos, como eram construídos e como funcionavam. Concentrou-se no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, ou IISS, e no Instituto Real de Serviços Unidos. Decidiu-se pelo doutor Bob Langley, que pertencia ao primeiro.

- A Rússia está a despender uma quantidade absurda de dinheiro e esforço no TurkStream, e está a jogar os trunfos todos. E ninguém parece estar a prestar atenção nenhuma - começou por dizer o doutor Langley. - O que é estranho, porque vai afetar toda a Europa Ocidental ao longo de décadas.

- E o TurkStream é...

- A maior tubulação de gás natural que o mundo jamais viu. Estão a trabalhar nisso agora e o plano é que esteja terminado em finais de 2020. Então, o nosso mundo irá mudar, e não para melhor.

- Conte-me tudo o que sabe sobre o TurkStream, doutor.

- O gás natural, também conhecido como gás de petróleo, está cada vez mais a abastecer as nossas indústrias, e a tendência é continuar a aumentar. Parte dele vem do Médio Oriente em navios metaneiros, na forma de gás de petróleo liquefeito, ou GPL, mas o grosso vem, neste momento, da Rússia, correndo para ocidente através de uma série de gasodutos. A Alemanha já se tornou virtualmente dependente do GPL russo, o que explica por que motivo Berlim é agora tão subserviente em relação a Moscovo. Os gasodutos atravessam a Ucrânia, a Polónia, a Moldávia, a Roménia e a Bulgária. Todos estes Estados recebem taxas de direito de passagem, e essas taxas têm um papel muito importante na sua economia. O TurkStream vai substituí-los a todos; quando o GPL russo estiver de facto em plena circulação, a Europa ficará dependente do gás da Rússia e passará a ser, na prática, sua serva.

- E se não o comprarmos?

- O produto industrial europeu torna-se pouco competitivo nos mercados internacionais. Quem é que pensa que vai ganhar, os altos princípios ou os lucros? A TurkStream consiste essencialmente em dois gasodutos. Ambos nascem no coração da Rússia e descem pela terra em Krasnodar, perto da costa do mar Negro, na Rússia Ocidental. O Blue Stream continua por baixo do mar Negro e ressurge na Turquia, dirigindo-se para Ancara. Este facto, juntamente com uma redução de preço, é o aliciante para a Turquia, e é por esse motivo que ela e a Rússia andam tão unidas ultimamente.

"O segundo gasoduto, o South Stream, que é muito maior, também segue por baixo do mar Negro mas ressurge na Turquia ocidental, perto da fronteira com a Grécia. É aqui que uma ilha marítima será construída para receber as frotas de metaneiros que servirão a Europa Ocidental. Então, a dependência será completa.

- Portanto, o homem do Kremlin sabe o que está a fazer?

- Ele sabe perfeitamente o que está a fazer - retorquiu o doutor Langley. - Primeiro, ameaça militar, conciliada com ciberataques constantes, e depois domínio energético. Um dos antecessores dele utilizou o Exército Vermelho; no lugar da "estrela vermelha", leia-se agora "GPL".

Bob Langley tinha formação como estratega, mas também técnica. Explicou a Sir Adrian, que era completamente ignorante na matéria, que, embora as escavadoras submarinas ainda só estivessem a meio caminho, o gás líquido já fluía através da tubulação. Mas, para o poder fazer, tinha de permanecer líquido, não podia ser revaporizado.

Para se manter líquido, para ficar sob pressão enquanto fluía, precisava de passar por estações de compressão de forma periódica, sensivelmente a cada oitenta quilómetros ao longo do percurso. Só havia três tipos de compressor para este fim, mas todos eles faziam a mesma coisa.

- Como é que são controlados?

- Ora, por computador, claro. Os computadores centrais estão localizados numas instalações perto de Krasnodar, na Rússia continental. Bem no subsolo e quilómetros abaixo do mar Morto, a cadeia de estações de compressão recebe o fluxo de GPL, repressuriza-o e envia-o para a próxima estação, até ele chegar finalmente à costa turca. Para poderem funcionar, fazem um "sangramento" de gás natural e usam-no como fonte energética para as suas próprias necessidades. É engenhoso, não acha? Paga-se a si mesmo e lá bem longe, na Sibéria, o gás continua a fluir.

Veio à memória de Sir Adrian o velho ditado: "Quem manda é quem paga." Ou, neste caso, quem faz girar as rodas da indústria. No seu bunker em pleno Kremlin, o Vojd podia presidir a uma economia risível em termos de bem de consumo, no entanto, com uma única arma, esperava um dia submeter o continente europeu à sua vontade.

O velho cavaleiro do reino tinha agora informação suficiente para compor e enviar a sua missiva à primeira-ministra. Em seguida, passou mais dois dias a fazer investigações técnicas e, depois de obter resposta de Marjory Graham, viajou de carro para norte, para Chandler's Court. Uma vez aí chegado, fazia tenção de conversar com o doutor Hendricks.

Excelentíssima senhora primeira-ministra, eis as minhas ideias, conforme me solicitou.

O futuro da nossa parte deste planeta, da Europa Ocidental, e do nosso país não depende da segurança. Isso vem depois, porque primeiro precisamos de conseguir custeá-la. A preocupação inicial é a prosperidade. As pessoas lutarão quando confrontadas com a pobreza perpétua.

Foi a iminente bancarrota alemã nos anos trinta que levou Hitler a invadir os países vizinhos. Ele precisava dos recursos deles para evitar a bancarrota nacional provocada pela sua vaga despesista. As pessoas teriam deixado de o venerar se tivessem voltado às condições dos famintos anos vinte. Não mudou muita coisa desde então.

Hoje em dia, a chave da prosperidade é a energia - energia constante e barata, e em enormes quantidades. Tentámos explorar o vento, a água, a luz solar - é engenhoso e está na moda, mas não mais significa do que arranhar a superfície das nossas necessidades.

O carvão e a lignite estão acabados. Os péletes de madeira poluem. Tal como o crude. O futuro é o gás natural. Existe em quantidade suficiente debaixo da crosta do nosso planeta para um século de calor, luz e potência motriz. Estes geram riqueza, conforto e comida. As pessoas ficarão satisfeitas. Não lutarão.

Sabemos onde se encontram vastos depósitos não explorados, e há novos a serem descobertos a toda a hora. Mas a Natureza, sendo uma senhora perversa, não os situou a todos mesmo por baixo das grandes concentrações de pessoas que deles necessitam.

Houve recentemente uma grande descoberta de gás natural ao largo da costa de Israel. (Estende-se a outros três territórios nacionais subaquáticos, mas a principal "jazida" pertence a Israel.) Existe um problema.

Em distâncias curtas, o gás natural pode ser canalizado, fazendo uso da sua própria pressão, da fonte ao consumidor. O novo campo de Israel fica a oitenta quilómetros da costa. Com umas quantas estações de bombagem, fica suficientemente perto. Para percursos mais longos, o gás tem de ser liquefeito e congelado como GPL - gás de petróleo líquido. Uma vez transformado, pode então ser expedido, como qualquer outra carga de metaneiro. À chegada, é revaporizado, multiplicando milhares de vezes o volume contido no metaneiro. Nesta altura, pode ser canalizado e utilizado como energia barata e limpa em todo o país.

Faria muito sentido para o Reino Unido firmar um acordo exclusivo e a longo prazo com Israel. Eles têm o gás, mas não uma central de liquefação; nós temos o capital e a tecnologia para construir uma plataforma marítima longe da costa. Seria uma parceria em que ambos os países ficariam a ganhar, libertando-nos de décadas de dependência de estados possivelmente hostis. Contudo, este documento não é sobre Israel; há depósitos ainda maiores bem no subsolo da Rússia, mas estes ficam a muitos quilómetros de distância da potencial casa do tesouro que é a Europa Ocidental.

Para trazer todo este gás do oceano até ao mercado europeu, a Rússia - por intermédio do seu monopólio de petróleo e gás chamado Gazprom - tem de construir um ou dois gasodutos gigantescos desde os seus campos de gás situados na Europa de Leste até portos de mar adequados, de onde os metaneiros possam abastecer a metade ocidental do continente.

Tem-se discutido a construção de gasodutos mais pequenos que atravessassem a Bielorrússia e a Polónia, bem como a Ucrânia, com portos para metaneiros na costa da Roménia e da Bulgária. Mas, na prática, a Rússia invadiu a Ucrânia e as relações são tensas com a Polónia, a Roménia e a Bulgária, que fazem todas parte da União Europeia e estão preocupadas com a recente agressividade do Kremlin. A nova e definitiva opção é a Turquia, daí a intensa bajulação a esse país, que nem parece fazer parte da NATO, e do seu autoritário presidente.

A Rússia deposita agora todas as suas esperanças em inundar a Europa Ocidental com o seu gás natural, de molde a tornar-se, graças à nossa dependência energética, efetivamente nossa dona. O plano é fazê-lo por via de gasodutos até à Turquia. Há dois em construção neste momento: chamam-se South Stream e Blue Stream.

O principal problema é de ordem técnica. De modo a chegarem a território turco vindos da Rússia, ambos têm de percorrer centenas de quilómetros debaixo do mar Negro. Enquanto a senhora primeira-ministra lê estas linhas, decorrem as escavações.

As escavadoras são máquinas de uma complexidade desconcertante e, como todas as máquinas desse tipo hoje em dia, são controladas por computador. Os computadores, como sabemos, podem resolver muitos problemas, mas também podem funcionar mal.

Deste seu criado, sempre à disposição,

Adrian Weston

Em Chandler's Court, Sir Adrian passou a informação ao doutor Hendricks.

- Vai estar extremamente bem protegido contra qualquer interferência - avisou o guru do GCHQ. - Mesmo se conseguíssemos entrar, que malware é que inseriríamos? Que instruções daríamos?

- Recebi aconselhamento a esse respeito - retorquiu Sir Adrian. - Uma simples avaria na ignição acarretaria consequências lamentáveis.

Uma hora depois, os dois homens estavam à conversa na sala de operações com um acanhado rapaz sentado diante do seu computador.

- Luke, existe um computador central perto de uma cidade chamada Krasnodar...

Passada uma semana, bem abaixo da superfície das águas azuis do mar Negro, alguma coisa se passou num compressor alternativo do Blue Stream chamado K15; o "K" dizia respeito à palavra russa "kompressor". A pressão desejada e definida começou a variar. Não diminuiu, antes pelo contrário: começou a aumentar.

A quase quinhentos quilómetros de distância, num centro informático situado num complexo de edifícios de aço e de baixa altura perto de Krasnodar, dedos hábeis fizeram uma correção. Sem efeito. A pressão no interior de uma máquina nas profundezas no mar Negro continuou a subir. No centro informático, foram inseridos comandos adicionais e mais urgentes. O K15 recusou-se a obedecer. Um indicador de pressão subiu até perto de uma linha vermelha.

Dentro do K15, as tolerâncias admitidas estavam próximas. As costuras retesaram-se e os rebites começaram a saltar. Durante o processo de fabrico, tinham sido definidas margens de tolerância, que estavam agora a ser excedidas. O K15 fora construído como um gigantesco motor de automóvel, com pistões que rodavam numa cambota. Uma cambota precisa de lubrificação, que é garantida por óleo pesado. Começou a fumegar, deixou de lubrificar.

Perto de Krasnodar, uma profunda preocupação misturada com total perplexidade metamorfoseou-se em pânico. Quando o compressor distante explodiu, ninguém ouviu nada. Mas no ponto mais fundo do mar Negro, onde calhara o K15 estar localizado, a água tem uma profundidade de dois mil e duzentos metros e a pressão ambiente é superior àquilo que qualquer máquina pode suportar.

A água do mar - salina, corrosiva, empurrada pela espantosa força da sua própria pressão - penetrou pelas fissuras. Em seguida, percorreu o gasoduto, quilómetro após quilómetro, até se fecharem todas as portas hidráulicas de ambas as extremidades.

Atingiu e engoliu as escavadoras, que se imobilizaram, parando de girar no ponto em que se encontravam. Ao cair da noite, o TurkStream teve de ser encerrado.

- Isto não devia ter acontecido! - exclamou o principal cientista de computação do centro informático de Krasnodar. - Não pode ter acontecido. Fui eu que concebi este sistema; era infalível, impenetrável.

Não obstante, o exame post mortem feito durante a análise do desastre subaquático revelou que alguém conseguira aceder ao computador central de Krasnodar e plantara um pequeno malware.


CAPÍTULO VINTE

Havia dois relatórios. Um chegou ao gabinete mais privado do Kremlin de manhã, o outro à tarde. Entre ambos, provocaram no senhor de toda a Rússia a maior fúria que o seu pessoal de gabinete alguma vez lhe vira.

Quando se zangava, o Vojd não gritava, nem bradava, nem se encolerizava ou batia com os pés. Ficava com o rosto e os nós dos dedos brancos de morte, deixando-se estar firme e imóvel. Quem, sem ter reparado nos sinais, fosse suficientemente insensato para se dirigir a ele, seria recebido com uma resposta em forma de sibilo e o melhor que tinha a fazer era sair da sala.

O primeiro relatório era de uma empresa de armamento chamada Energomash, que produzia combustível e motores para míssil, em concreto o RD250, que fornecera energia aos mísseis balísticos intercontinentais da Rússia até o ministério da Defesa ter substituído os principais foguetes de longo alcance do país pelos de outro fornecedor. Fora o ministério a submeter o relatório da Energomash à atenção do Kremlin, por precaução.

A empresa relatava que tinha recebido uma queixa de um cliente novo e que dizia respeito aos seus motores de foguete. Vendera o RD250 para a Coreia do Norte, e o cliente local tinha-se queixado. Ao que parecia, um componente defeituoso do motor para míssil, parte de uma consignação de mercadorias transferida por comboio selado até ao monte Paektu, causara uma explosão catastrófica durante um ensaio do míssil Hwasong-20. A detonação destruíra o míssil e, com ele, o silo no qual decorria a montagem.

A Energomash conduzira a sua própria investigação e concluíra que só havia uma explicação plausível: a base de dados do controlo de qualidade fora violada e mudanças praticamente invisíveis haviam sido introduzidas na sequência de produção.

As firewalls que protegiam a sua base de dados de produção eram tão densas que o acesso exterior era considerado impossível. Alguma coisa correra mal e pura e simplesmente desafiava qualquer tipo de explicação; alguém conseguira algo que era impossível em termos técnicos.

O resultado fora um desastre para a Coreia do Norte e para o seu programa de mísseis secreto, bem como a subsequente recusa de fazer mais encomendas à Rússia. Ocultar esta humilhação da comunidade científica que se ocupava de mísseis em todo o mundo, e que mantinha laços muito estreitos, seria praticamente impossível.

Ainda assim, o significado do relatório da Energomash não era nada em comparação com as notícias que chegaram nessa mesma tarde de Krasnodar, o centro operativo do projeto TurkStream. Para o Vojd, a avaria no fundo do mar Negro era uma verdadeira catástrofe.

Ele não possuía conhecimentos técnicos, mas a linguagem corrente do documento era suficientemente clara. Algures nas profundezas do oceano, sensivelmente a meio caminho entre as costas russa e turca, um compressor descontrolara-se, a despeito de esforços frenéticos para corrigir o erro. Uma vez mais, computadores que sempre tinham funcionado na perfeição haviam-se recusado a aceitar comandos.

Os responsáveis técnicos da TurkStream tinham conseguido estabelecer que devia ter havido interferência e que esta tivera origem externa. Só que isso estava fora de questão: os códigos de controlo eram de uma complexidade tal, implicando milhares de milhões de computações e permutações, que não era exequível que uma mente humana conseguisse derrubar as firewalls para chegar aos algoritmos de controlo. E, no entanto, o que não podia ser feito tinha-lo sido. O resultado eram estragos que levariam anos a reparar.

Sobre Moscovo, um período de tempo quente tinha provocado uma tempestade de nuvens negras, mas os cúmulos-nimbos que envolviam as cúpulas douradas da catedral de São Basílio não se comparavam, por muito escuros que fossem, à atmosfera no interior do gabinete do senhor da Rússia. Num único dia, não só lera um relatório, que lhe fora passado pelo ministério dos Negócios Estrangeiros, a esmiuçar uma reunião verdadeiramente horrenda com o ditador da Coreia do Norte como agora recebera estas notícias arrasadoras.

Para o homem do Kremlin, a restituição da Rússia ao seu devido lugar como única superpotência do continente europeu não era um mero capricho - era uma missão de vida. Esta supremacia já não dependia das maciças divisões de tanques de Estaline, mas antes de dominar de forma cabal o fornecimento de gás russo à Europa Ocidental por um preço que nenhum outro fornecedor, nem nenhuma forma de energia alternativa pudessem igualar. E isso dependia do TurkStream.

Durante anos, o Vojd autorizara pessoalmente uma ciberguerra crescente contra o Ocidente. Perto da sua São Petersburgo natal, fica um arranha-céus ocupado do chão ao telhado por piratas informáticos que disseminavam regularmente, e com cada vez maior volume, malware e cavalos de Troia nos computadores do Ocidente, especialmente nos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Era uma guerra sem obuses, sem bombas, mas, acima de tudo, sem um ato formal de declaração. Mas era uma guerra... à sua maneira.

Provocaram-se prejuízos no valor de milhares de milhões de libras e de dólares; os sistemas de saúde, de controlo de tráfego aéreo e da administração pública tinham-se ido abaixo; e o Vojd regozijara-se com o mal causado ao seu odiado Ocidente, a despeito de noventa por cento dos ciberataques terem sido impedidos pelas defesas informáticas ocidentais. Mas o relatório de Krasnodar a esmiuçar os anos que se tinham perdido e ainda o custo de os reparar, que devia estar próximo do peso em ouro do próprio czar, provavam, se mais provas fossem precisas, que alguém estava a contra-atacar. E ele sabia quem era.

Alguém lhe mentira, ou então essa pessoa fora, ela própria, completamente ludibriada. Os iranianos tinham falhado. Algures, aquele jovem cibergénio inglês estava vivo: o adolescente que, no ciberespaço, conseguia fazer o impossível não tinha morrido numa vivenda perto de Eilat. Mandou chamar o seu chefe de espionagem, o diretor do SVR.

Uma hora volvida, Ievgueni Krilov estava junto a ele. O Vojd atirou-lhe os dois relatórios para a frente e, enquanto Krilov lia, olhou pela janela sobre os jardins de Alexandre para os telhados da zona ocidental de Moscovo.

- Falhaste - disse. - Os teus Lobos da Noite falharam em Inglaterra, e o Pasdaran falhou em Eilat.

Krilov deixou-se estar sentado em silêncio e refletiu que isto não fora tudo o que tinha corrido mal. Escusou-se a revelar que o seu rival não tinha caído no plano de incriminar o secretário adjunto do Conselho de Ministros como sendo o seu informante do SVR em Londres - e ainda não sabia porquê - e que a sua verdadeira "toupeira", o funcionário governamental de categoria inferior Robert Thompson, devia ser dada não como morta na sequência de um acidente de viação, mas simplesmente como desaparecida, juntamente com a filha cujo rapto comprara a sua traição. Ainda não sabia pormenores, mas há muito que fora obrigado a supor que os quatro criminosos albaneses encarregados dessa operação não voltariam a ver Tirana.

Não partilhara nada disto com o seu chefe no Kremlin. Os anos que passara a escalar a hierarquia profissional tinham-lhe ensinado que os superiores só gostam de boas notícias, e também que estas ocorrências de boas notícias, a não ser que se repitam, são rapidamente esquecidas. Os fracassos, por outro lado, ficam gravados em pedra no currículo.

Depois das novidades de que o chefe do SVR ficara agora a saber, não restava dúvida alguma: Weston era o homem com quem estava a medir forças; era ele que estava a votar ao fracasso todas as suas tentativas de localizar e eliminar o hacker adolescente.

Todas as agências de espionagem têm as suas lendas. Às vezes, estas lendas são os seus heróis, porventura há muito desaparecidos, e outras são os seus adversários, que frequentemente também já partiram. Os britânicos recordam Kim Philby, os americanos Aldrich Ames. Os russos ainda rosnam ao lembrar-se de Oleg Penkovski e Oleg Gordievski. Estes eram os grandes espiões, traidores do seu próprio lado. Mas, do outro lado da barricada, aqueles que os recrutavam e "orientavam" eram os heróis.

Nos tempos em que era uma estrela em ascensão no antigo KGB, Ievgueni Krilov ouvira falar de um espião britânico que entrava e saía como queria da Alemanha de Leste, da Checoslováquia e da Hungria, que recrutara e orientara um criptógrafo no ministério dos Negócios Estrangeiros e um coronel de mísseis russo na Hungria.

Krilov sabia igualmente, embora lhe fosse impossível prová-lo, que ele também estivera presente na cilada da AVÓ em Budapeste, preparada para capturar esse mesmo espião. Depois disso, o homem fora retirado do serviço ativo e posto a trabalhar atrás de uma secretária em Londres, onde chegara a número dois do MI6. A seguir, reformara-se. Ou assim se pensara.

Sim, havia o superpirata informático adolescente, mas era Weston que o estava a orientar, a selecionar quais os danos a infligir, a desferir golpes atrás de golpes à Rússia. O seu amo estava obcecado pelo jovem decifrador de códigos, mas o estratagema frustrado de Krilov no Liechtenstein, o desmascaramento de Robert Thompson e a seleção deliberada de alvos ruinosos para a Rússia - isso devia-se a uma outra mente, e todos os alarmes no seu cérebro faziam soar o nome de Adrian Weston.

O Vojd ainda estava a fitar as nuvens que agora encharcavam Moscovo.

- O que deseja? - perguntou Krilov à figura junto à janela.

O Vojd virou-se, atravessou a sala com passadas largas e pousou as mãos nos ombros de Krilov, que permanecia sentado. O chefe de espionagem olhou para cima, para o interior de dois olhos gélidos e furiosos.

- Quero que isto acabe, Ievgueni Sergueivitch, quero que isto acabe. Não quero saber como é que o vais fazer ou quem é que vais usar. Encontra-me este rapaz e elimina-o. É a última oportunidade, Ievgueni. Última oportunidade.

Krilov recebera as suas ordens. Também recebera o seu ultimato.

No mundo dos espiões, toda a gente se conhece. Ou, pelo menos, ouviram falar uns dos outros. Dos dois lados da barricada, estudam-se mutuamente, como mestres xadrezistas a analisar táticas e o carácter dos jogadores com quem irão batalhar futuramente sobre algum tabuleiro onde as armas são rainhas e peões.

Os aliados encontram-se e jantam, conversam, aconselham-se e, por vezes, partilham histórias. Em receções diplomáticas, sob a proteção dos acordos de Viena e da imunidade diplomática, adversários sorriem e fazem brindes, ambos cientes de quem o outro é, do que realmente faz e de que, se possível, tentará arruinar a carreira de quem com ele brinda. Às vezes, até colaboram - mas só quando os políticos, na sua estupidez, estão a ir longe demais. Na Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, colaboraram.

Nesse horrível outubro, com Kennedy a exigir a retirada de mísseis soviéticos de Cuba e Khrushchev a recusar, fora o chefe do KGB para a costa leste dos Estados Unidos a procurar um contacto na CIA. O russo propôs ao americano que, se os Estados Unidos abdicassem da sua base de mísseis turca em Incirlik, que era uma ameaça para a Rússia, Khrushchev manteria prestígio suficiente diante do seu próprio Politburo para poder abandonar Cuba - uma troca, não uma humilhação. Resultou. Caso contrário, alguém teria acabado por lançar um míssil nuclear.

Ievgueni Krilov, que regressava a Iasenevo no banco traseiro da sua limusina, ainda não era nascido à época, mas investigara o incidente a fundo. Mais tarde, enquanto subia vertiginosamente os degraus do edifício hierárquico do KGB, estudara os rostos dos chefes de departamento britânicos, norte-americanos e franceses que se opunham a ele do outro lado do abismo da Guerra Fria. E Weston fizera parte deles.

Então, vieram Gorbachev, a dissolução da URSS, o abandono do comunismo, o fim da Guerra Fria. Em seguida, anos de humilhação para a Rússia, muita da qual autoimposta, dos quais se estavam de momento a vingar. E quando tudo acabara, o homem em quem ele estava a pensar tinha-se reformado. Cinco anos volvidos, aos cinquenta, Krilov fora promovido à chefia do Serviço de Informações Externas, o SVR. Só que Weston voltara e, desde que isso acontecera, nunca as coisas tinham corrido tão mal.

Muito para ocidente, o homem em quem ele estava a pensar, que tinha para cima de dez anos a mais do que ele, tomava uma bebida com amigos no bar do Clube das Forças Especiais. O bar tinha uma atmosfera barulhenta e festiva, com piadas partilhadas e velhas recordações. Sir Adrian estava sentado na sua cadeira no canto agarrado a um copo de clarete, acenando com a cabeça e sorrindo quando falavam com ele, mas, fora isso, perdido nos seus próprios pensamentos. Estava a pensar num russo bem distante, que nunca conhecera mas que já defrontara e derrotara, havia mais de vinte e cinco anos. Tudo graças ao desmiolado Vernon Trubshaw.

Estava-se no fim da Guerra Fria, mas ninguém sabia disso. Naquela época, quando tanto do território para lá da Cortina de Ferro era de difícil acesso, e ainda menos propício para aí fazer operações, era prática comum pedir a homens de negócios inocentes com motivos legítimos para lá se deslocarem para manterem os olhos e ouvidos abertos de forma a captar qualquer breve informação que pudesse interessar ao corpo de funcionários oficiais, ou seja, ao mundo da espionagem. Aquando do regresso, era costume haver um almoço amigável e uma sessão informativa ligeira. Normalmente, estes encontros eram improdutivos, mas nunca fiando.

Vernon Trubshaw era o diretor de vendas de uma empresa qualquer que ia estar presente numa feira comercial em Sófia, capital de uma Bulgária sob alçada comunista. Tinham-lhe pedido para ficar atento e alertar caso testemunhasse algo de interesse, e fora Adrian Weston que ficara encarregado da sessão informativa com ele. E Trubshaw, enquanto emborcava o vinho pago pelo governo, contou uma historieta, provavelmente sem interesse algum.

Dera por si incluído num convite para uma receção na embaixada russa e, no decorrer da mesma, deslocara-se aos lavabos na cave. Ao sair, deparou com quatro homens no corredor. Um deles, claramente o de grau superior, estava a dar uma tremenda descasca a um mais jovem e de grau inferior. Tudo isto em russo, língua da qual Trubshaw não falava uma única palavra.

O homem mais novo estava quase a chorar de humilhação, enquanto o mais velho o tratava como lixo. Passada uma semana, o sedento senhor Trubshaw foi convidado para um segundo almoço. Mais vinho governamental e algumas fotografias. Adrian Weston pedira à equipa do SIS britânico em Sófia para enviar uma pequena galeria de retratos da embaixada russa local. Trubshaw não hesitou: o seu indicador amarelo de nicotina tocou em duas caras.

- Este era aquele que estava aos berros e este, o que estava a ser vergastado - disse ele.

Passada outra semana, viajando sob cobertura diplomática, Adrian Weston chegou a Sófia. A equipa de informação britânica da capital búlgara ajudou-o a fazer as necessárias identificações. O russo humilhado chamava-se Ilia Liubimov, um moço de recados da embaixada. No dia seguinte, Weston bateu à porta do apartamento do jovem russo.

Sabia que se tratava de uma hipótese remota e provavelmente condenada ao fracasso. Mas não tinha tempo para seguir o russo, para tentar apanhá-lo sozinho fora da embaixada e depois fazer-lhe a corte ao longo de várias semanas até nascer uma amizade entre ambos. Felizmente, ao menos falava russo de forma fluente e solta.

Este tipo de abordagem estrepitosa a um possível agente raramente resulta, mas, mais uma vez, nunca fiando. Weston convenceu Liubimov a deixá-lo entrar no apartamento e fez a sua proposta. E resultou. A humilhação a que o jovem russo fora sujeito à frente de dois colegas junto à porta dos lavabos dera azo a um profundo rancor, que ainda não se tinha dissipado - tratava-se de um jovem extremamente abatido e desencantado. E estava zangado, muito zangado. Passada uma hora, aceitou "virar" e espiar para o Ocidente.

Não tinha utilidade nenhuma, como é evidente, mas seis meses depois foi devolvido a Moscovo, ainda integrado no ministério dos Negócios Estrangeiros. Passados dois anos, a paciência teve a sua recompensa. Alguém na divisão de criptografia teve um sopro cardíaco e foi forçado a reformar-se por invalidez. Foi Liubimov o substituto. Um filão. Todas as mensagens cifradas de todos os telegramas diplomáticos de todo o mundo: Londres recebia-as a todas e partilhava-as com os Estados Unidos. Durou oito anos, até Liubimov ir visitar a mãe viúva a São Petersburgo e ser atropelado por um condutor embriagado em Nevski Prospekt, acabando por morrer. O diplomata que o insultara aos gritos na embaixada russa de Sófia, dez anos antes, fora Ievgueni Krilov.

Em Londres, o veterano cavaleiro Sir Adrian fez sinal para que lhe enchessem o copo. Em Iasenevo, Krilov tomou uma decisão quanto ao modo como iria concretizar a tarefa de que o Vojd o encarregara. Ou fazia isso, ou era o seu fim.

Havia um homem. Tinha ouvido falar dele e da sua reputação, mas nunca o conhecera. Um homem das sombras, da Spetsnaz. Mesmo entre os seus camaradas, estava envolto numa aura de mistério, e ele preferia assim. Era conhecido unicamente por Micha e tratava-se do melhor francoatirador que jamais havia integrado as fileiras da organização.

Dizia-se que, na Síria, abatera mais de cinquenta terroristas partidários ou da Al-Qaeda ou do Daesh, e mais cem combatentes ucranianos na Ucrânia oriental, depois da invasão russa disfarçada de sublevação. Já era comparado ao lendário Zaitsev de Estalinegrado.

Um francoatirador é um caso à parte. Em combate, homens matam-se uns aos outros no ar, no mar ou, usando obuses, granadas e morteiros, em terra. Mas raramente veem os inimigos também como seres humanos; quando disparam uma espingarda, o inimigo ainda é um vulto, uma silhueta que tomba no chão quando morre. O francoatirador estuda cada pormenor da sua vítima antes de apertar o gatilho e pôr termo à sua vida.

Não basta ser um bom atirador. Um ás deste género, deitado na horizontal e a semicerrar o olho através de uma mira telescópica para distinguir um alvo numa carreira de tiro, pode ganhar o ouro olímpico, mas essa peça de cartão é-lhe apresentada, fixada no seu lugar, onde fica imóvel, sem proteção. Já o francoatirador de combate é um verdadeiro caçador de cabeças.

Ambos são capazes de concentração total, mas o francoatirador tem de juntar a isso a capacidade de ficar perfeitamente imóvel, durante horas, se preciso for. O atirador de competição não precisa de se esconder; o francoatirador tem de se manter invisível. Tem de refrear a vontade de descontrair músculos doridos, de se esticar, coçar ou aliviar a bexiga, a menos que o faça dentro da roupa.

A camuflagem é a sua salvação, e varia. Numa cidade, consistirá em tijolos, pedra, portas de madeira, janelas, vidros partidos, entulho. No campo, em pano de fundo haverá árvores, arbustos, erva, folhagem e madeira caída. É para dentro desta paisagem que, adornado com folhas e tufos, tem de desaparecer como uma criatura selvagem. E, em seguida, esperar, hora após hora, até o alvo sair da toca e entrar no seu campo de visão.

Tanto tempo à espera, tanto tempo para pensar, requer um homem muito reservado, raramente um conversador, mesmo fora do trabalho. Zaitsev era filho de um caçador da Sibéria, e rastejava pelos destroços de Estalinegrado, a abater alemão atrás de alemão. Micha era parecido; vinha da península de Kamchatka, uma terra de neve e árvores, mas tinha a capacidade de desaparecer entre os tijolos destruídos de Alepo ou o mato de Luhansk e Donetsk, do outro lado da fronteira com a Ucrânia.

Ievgueni Krilov levantou o auscultador do telefone do seu escritório. Precisava de fazer um destacamento da Spetsnaz para o serviço no seu SVR.

É evidente que o sexto sentido é algo que não existe e, no entanto, é forçoso que exista. Era por causa dele que Adrian Weston estava vivo, e ele conhecia outros a quem tinha acontecido o mesmo. Fora assim com os alegres convivas do bar, por exemplo. Há alturas em que é melhor ficarmos quietos, e outras em que é melhor que nos ponhamos a mexer - se escolhermos a opção certa, chegaremos à velhice.

Lembrou-se daquela ocasião em Budapeste, nos tempos da Guerra Fria, em que estava a caminho de um encontro com um contacto num café à beira do Danúbio. Estava "no escuro", isto é, sem imunidade diplomática, e o seu contacto era um coronel russo que perdera a fé no comunismo e virara a casaca. Enquanto se aproximava, o suor começara a escorrer.

Havia sempre um momento de trepidação, perfeitamente normal, que devia ser reprimido, mas aquilo era diferente. Alguma coisa se passava: estava demasiado silencioso para uma rua movimentada, os transeuntes mostravam-se demasiado ocupados a observar o céu. Virou numa ruela, foi dar a outra rua, misturou-se com a multidão, escapuliu-se. Um cancelamento, porventura por nenhum motivo. Mais tarde, ficou a saber que o general tinha sido levado, interrogado sob coação extrema, e que a temida ÁVO estivera à espera dele em força. Fora por isso que os pedestres estavam a olhar para o céu: tinham visto as gabardinas silenciosas a rondar.

Agora, estava a sentir a mesma coisa relativamente a Chandler's Court. A sua localização e os seus hóspedes eram conhecidos em Moscovo e já houvera um ataque. O capitão Williams e os seus homens fizeram o que tinha de ser feito; Krilov devia saber havia semanas que a sua equipa jamais regressaria. Só que o chefe de Krilov no Kremlin não jogava segundo as regras há muito tempo.

Notícias dos desastres na montanha em Paektu e em Krasnodar já deviam ter chegado a Moscovo, conduzindo às deduções acertadas.

Sir Adrian estava bem ciente de que não tinha provas, mas suspeitava que as notícias da Coreia e de Krasnodar teriam levado o homem do Kremlin a concluir que Luke ainda estava vivo, pelo que nova tentativa de assassiná-lo era mais do que plausível. A tarefa poderia ser confiada a Ievgueni Krilov, mas Weston sabia que seria sempre o homem no topo da pirâmide a dar a ordem. Numa vida longa e de muitos riscos, confiara sempre na sua intuição e, até agora, ela nunca o tinha deixado ficar mal.

Ainda que pudesse ser perturbador para Luke Jennings, não podia ser evitado - mais vale perturbado que morto. Chegara a altura de mudar o centro informático para um lugar diferente e mais seguro. Solicitou outro encontro com a primeira-ministra, o que lhe foi concedido.

- Tem a certeza, Adrian?

- Tanta certeza quanto se pode ter num mundo incerto. É minha convicção neste momento que ele ficará mais seguro bem longe de Chandler's Court.

- Muito bem, permissão concedida. Precisa de alguma coisa?

- Julgo que ainda preciso de proteção de proximidade por parte do Regimento. Posso tratar disso diretamente com o brigadeiro e o oficial subalterno de Hereford. Mas vou precisar de um fundo de maneio, senhora primeira-ministra.

- Bem, o meu gabinete tem acesso a um fundo de reserva, sem que se façam perguntas. Terá aquilo de que precisar. Tem algum novo alvo em mente?

- Apenas um. É outra vez na Coreia do Norte. Um assunto que ficou pendente. Mas serei extremamente cuidadoso, senhora primeira-ministra.

Com autorização da primeira-ministra, Sir Adrian voltou ao seu dilema: para onde ir?

Procurou em toda a parte e depois lembrou-se de um oficial escocês que servira com ele nos paraquedistas há muito tempo; na altura, era o mui ilustre qualquer coisa: o pai dele tinha morrido e ele tornara-se conde de Craigleven. A morada da família em Craigleven era uma enorme propriedade em Inverness, nas Terras Altas da Escócia, cujo centro era ocupado pelo castelo Craigleven.

Lembrava-se de uma curta visita que ali fizera quando ambos eram jovens. O castelo Craigleven, feito de granito medieval e com extensos relvados, erguia-se orgulhoso e austero num promontório entre milhares de hectares de floresta e pasto de ovelhas, proporcionando oportunidades para observação de veados e caça ao faisão a oeste de Inverness.

No longínquo ano de 1745, quando Carlos Eduardo Stuart, conhecido por Bonny Prince Charlie, liderara a insurreição contra o rei Jorge II, a maior parte dos chefes de clã ficara do lado dos Stuarts; o Craigleven daquela época, mais astuto, continuara leal ao rei. Após a destruição do exército das Terras Altas em Culloden, muitos dos chefes perderam as terras e os títulos; Craigleven foi recompensada com a elevação a condado e ainda mais propriedades.

Sir Adrian localizou o seu velho camarada de armas e almoçaram em St. James's. Sim, o velho par do reino passava a maior parte do ano na sua casa em Londres e a ala sul do castelo Craigleven estava vazia, disponível mediante uma renda modesta. Só essa ala tinha vinte e duas assoalhadas, mais as cozinhas e as despensas. Tinha pessoal interno, que estaria relacionado com hóspedes fora da época alta.

- É possível que a casa precise de um pouco de atenção - disse o proprietário. - Há muitos anos que está vazia, desde que a Millie e eu nos mudámos para aqui. Mas se lhe deres uma pintadela, é toda tua.

Uma reputada firma de decoração de interiores de Inverness começou a trabalhar no dia seguinte. Não demorou a que percebessem que, afinal, era preciso mais do que uma pintadela, mas Sir Adrian e o doutor Hendricks foram de avião até ao Norte para dar as instruções necessárias e supervisionar o andamento das obras. O especialista informático fazia tenção de recriar ali o cibercentro, de modo a que a sala de operações de Chandler's Court pudesse ser transferida para as novas instalações com o mínimo de perturbação e incómodo para Luke.

Ambos os homens sabiam que havia uma outra incumbência, e que teria de ser cumprida na perfeição: tratava-se de criar uma réplica exata dos aposentos do vulnerável Luke Jennings, que se aperceberia da mais ínfima variação no que o rodeava e, consequentemente, não se conseguiria concentrar.

A transferência completa levaria uma semana. Nesse meio-tempo, Sir Adrian pediu a Luke para dedicar a sua atenção a uma nova tarefa. Dizia respeito a uma base de dados de controlo ultrassecreta e ferozmente guardada situada no subsolo da Coreia do Norte.

Na Rússia, outras preparações estavam em andamento. Um homem chamado Micha fora transferido da Spetsnaz para o serviço do SVR e submetido a uma pormenorizada sessão informativa relativamente àquela que seria a sua terceira missão no estrangeiro.

Falava um inglês rudimentar, aprendido num programa obrigatório de competências linguísticas incluído no treino dos soldados das Forças Especiais. Mostraram-lhe uma série de fotografias de uma mansão bem escondida no campo, num sítio chamado Warwickshire, no coração de Inglaterra. Mostraram-lhe imagens de janelas numa das quais era provável que um determinado rosto aparecesse mais cedo ou mais tarde, e mostraram-lhe esse rosto, transmitido de Teerão. Não se tratava do rosto verdadeiro, claro, mas era parecido.

Em Londres, o Rezident do SVR, Stepan Kukuchkin, tinha recebido todas as informações respeitantes à missão que iria decorrer em breve e alertado que dois dos seus agentes adormecidos, que viviam como britânicos entre os britânicos, seriam necessários para acompanhar Micha na entrada e saída do país, bem como na viagem de ida e volta para a zona onde se encontrava o seu alvo. Isto obrigaria a transporte entre vários aeroportos e a uma casa-refúgio temporária onde ele pudesse viver, sem ser visto, até conseguir penetrar no terreno de Chandler's Court.

O posto de francoatirador é uma especialidade das Forças Armadas russas e as suas armas tradicionais há muito que são as espingardas de precisão Dragunov ou Nagant. Micha, no entanto, escolhera a mais moderna e muito superior Orsis T-5000, com a sua mira telescópica DH5-20x56.

Todos os francoatiradores russos são versados na história dos grandes ases que os antecederam, sobretudo na de Vassili Zaitsev. Fora treinado desde a infância pelo pai para abater lobos errantes e tornou-se perito em esconder-se atrás de montes de neve. No inverno de 1942, numa Estalinegrado coberta de neve, mandou mais de trezentos soldados alemães para a cova, mormente o incrível major alemão Erwin König.

E conseguira-o armado com uma espingarda de infantaria soviética de uso corrente. Desde então, contudo, fizeram-se alguns progressos impressionantes no que toca a espingardas de precisão e a mais recente, a Orsis T-5000, pode abater um alvo que, à vista desarmada, esteja fora de alcance. Aquela que Micha escolhera foi arrumada cuidadosamente sob sua supervisão, com mira telescópica e munições, e pronta para ser transportada para a embaixada russa em Londres em mala diplomática, protegida de escrutínio por parte dos serviços alfandegários britânicos e, além disso, revestida de chumbo, para o caso de se cruzar com as câmaras de raio X usadas pelo MI5 britânico.


CAPÍTULO VINTE E UM

Os dois agentes adormecidos russos não precisaram de se encontrar. Um deles iria receber e buscar Micha ao aeroporto, ficando depois como seu anfitrião na casa-refúgio, um apartamento arrendado na vila suburbana de Staines. O outro era o batedor e guia.

Micha voou a partir da Polónia com um passaporte polaco, que era perfeito até ao pormenor. Falando com sotaque eslavo e proveniente de outro membro da União Europeia, não houve nenhum atraso em Heathrow. Na alfândega, a mala dele nem sequer foi examinada.

Mesmo que tivesse sido aberta, o funcionário alfandegário também não ficaria em estado de alerta. Alguém que viesse fazer turismo e fosse ornitólogo amador teria trazido consigo roupa rústica com estampado de camuflagem, redes do tipo militar, botas de montanha e um cantil. Vários livros sobre aves e um binóculo completavam o disfarce de um inofensivo maluquinho dos pássaros. Mas tudo aquilo passou sem que lhe tocassem.

Fora da zona de alfândega, no átrio do aeroporto, o anfitrião de Micha estava à espera vestido com o casaco e a gravata certos, e com a troca de frases de ocasião certa. E tinha o carro no parque de estadia curta. O anfitrião era, para todos os efeitos, um cidadão britânico com um inglês imaculado. Só no carro, já em movimento e com as janelas fechadas, é que um e outro falaram em russo. Num espaço de duas horas depois de aterrar, Micha estava já instalado no seu apartamento em Staines.

Passada uma hora, o anfitrião já tinha telefonado para a sede da Russian TV, a estação em língua inglesa de propaganda pró-russa, falado com o técnico certo e usado a frase certa. Na embaixada, Stepan Kukuchkin foi informado de que o francoatirador estava a postos, à espera da sua espingarda. O Rezident, por sua vez, usando os habituais códigos diplomáticos, informou Ievgueni Krilov da chegada em segurança do assassino. As instruções de Micha eram para não sair do apartamento, o que, de resto, não tinha intenção de fazer, pois estava a ver futebol na televisão.

O batedor não teve uma rotina assim tão descansada. Foi de automóvel até Chandler's Court para aferir qual a melhor maneira de infiltrar o francoatirador na floresta. Circulando em frente à entrada guardada, viu a cancela a subir para permitir a entrada de um camião com o logótipo de uma conhecida empresa de mudanças. Isto deixou-o intrigado. Quem iria mudar-se? Um dos engenheiros químicos dos laboratórios governamentais, ou alguém da mansão?

Passou a noite na sua própria casa, que ficava a dois condados de distância, mas voltou ao nascer do Sol, a pé e com o carro estacionado fora de vista. Outro enorme camião de mudanças, da mesma empresa mas com uma matrícula diferente, estava a sair vagarosamente da propriedade para apanhar a estrada que passava pela aldeia. Apressou-se a chegar ao carro e alcançou o camião quando este virou para a autoestrada M40, direção norte. Seguiu-o até Oxford, depois interrompeu a perseguição, voltou para sul e relatou os factos ao seu orientador.

No dia seguinte, os russos beneficiaram de um golpe de sorte. Um terceiro camião de mudanças saiu da propriedade e também se dirigiu para norte. Desta vez, foi seguido. Na primeira paragem para os condutores do pesado, numa estação de serviço na autoestrada, um dispositivo de radiolocalização foi fixado por baixo de um dos para-lamas traseiros sem ser detetado.

Levou-os a uma cansativa viagem de mais de setecentos quilómetros até às regiões bravias de Inverness-shire, nas Terras Altas, e para a vasta propriedade de Craigleven. Por meio dos habituais canais de comunicação ocultos, os agentes passaram a informação a Stepan Kukuchkin, que percebeu que, por graça de uma divindade na qual não acreditava, a operação do Kremlin se salvara por um triz. Os pássaros tinham voado para longe, mas ao menos ele sabia para onde tinham ido.

Com algum alívio, pôde dizer a Krilov, o seu superior, que mandara o seu agente fazer o reconhecimento do local onde ficava Chandler's Court mesmo a tempo de assistir à partida do alvo, e mostrou-se mais do que feliz em reclamar para si o mérito de ter confirmado para onde é que o rapaz e o seu séquito se dirigiam. Longe de ter de ser cancelada, a operação de Micha sofreria apenas um ligeiro atraso.

O território de Kukuchkin era todo o Reino Unido, mas a sua única operação permanente na Escócia centrava-se na base de submarinos nucleares da Marinha Real Britânica em Faslane, no rio Clyde, que ficava localizada bem longe de Inverness. Todavia, era costume turistas do sul irem visitar as Terras Altas, e o agente adormecido que ele estava a usar como batedor teria de se juntar a eles. O homem foi imediatamente autorizado a adquirir uma autocaravana com espaço para duas pessoas. Isso permitiria, pelo menos, evitar súbitas reservas em hotéis numa paisagem onde forasteiros pudessem dar nas vistas.

Passados dois dias, o Rezident do SVR mandou entregar a Micha o pacote que continha a sua espingarda de precisão. O batedor apresentara-se no apartamento arrendado em Staines, e ele e o francoatirador partiram rumo a Inverness.

Por motivos de segurança, Micha não conduziria - não tinha carta de condução válida. O batedor, cujo nome inglês era Brian Simmons, supostamente um taxista residente em Londres, tinha a papelada toda em ordem e conduziu o caminho todo. Fez praticamente oitocentos quilómetros e levou trinta horas, incluindo uma noite passada numa área de repouso.

Foi numa manhã brilhante de meados de outubro que a autocaravana de aspeto inofensivo entrou nos terrenos de Craigleven e que os seus ocupantes viram os telhados do castelo. Nesta altura, Micha tomou conta das operações. A única coisa que o preocupava eram distâncias e ângulos. Duas vias públicas atravessavam a propriedade e eles transitaram ambas, examinando o castelo de todos os ângulos. Tornou-se evidente que a ala sul tinha hóspedes.

Havia salas de jantar no piso térreo e, na face sul, janelas panorâmicas que davam acesso a uma vastidão de relvados, que terminavam num quase precipício onde o terreno sofria um declive e dava lugar a um vale profundo com um ribeiro na base. Para lá do estreito, o terreno voltava a erguer-se, imponente, e formava montes cobertos de floresta. Até ao ponto oposto aos relvados, o vale tinha quase um quilómetro de largura.

Micha já sabia onde teria de estabelecer o seu esconderijo de francoatirador: na encosta da montanha que ficava do lado contrário aos relvados e às janelas dos quartos três pisos acima. Mais cedo ou mais tarde, um rapaz louro e desengonçado apareceria à janela... e morreria. Ou juntar-se-ia a outros nos relvados para beber um café ao sol... e morreria.

A Orsis T-5000 é uma arma notável, capaz de rebentar um crânio humano a quase dois mil metros de distância com as suas munições Lapua Magnum de calibre .338. No meio das agradáveis condições do vale, praticamente sem atrito do vento, bastavam meros mil metros para garantir um tiro certeiro.

Micha mandou o seu compatriota continuar a conduzir, negociando as curvas até sair do campo de visão do castelo. Numa berma, saiu da autocaravana com o seu equipamento e desapareceu literalmente no meio da floresta do outro lado do vale.

O francoatirador não fazia tenção de que alguém o visse daí em diante. Viveria na floresta o tempo que fosse preciso, algo a que estava mais do que habituado. Tinha vestido o seu fato-macaco camuflado ainda na autocaravana e, numa bolsa na região lombar, trazia as suas rações de combate, um cantil e x-atos multifunções. Tinha uma faca de combate numa bainha camuflada atada a uma coxa.

A sua espingarda estava envolta numa rede de camuflagem e os seus bolsos tinham munições de reserva, embora ele não tivesse dúvidas de que não precisaria de mais do que um tiro, e essa bala já estava na culatra. Havia dois dias que não tomava banho, nem lavava os dentes: no seu ofício, tanto o sabonete quanto o dentífrico podem ser mortais - tresandam.

A superfície da sua farda estava recoberta de pequenas argolas de tecido, que ele iria encher de raminhos da folhagem circundante assim que escolhesse a sua posição de decúbito ventral, da qual um francoatirador dispara. Começou a movimentar-se silenciosamente através da floresta em direção à encosta da montanha que ele sabia que dava para a ravina em frente à ala sul do castelo Craigleven.

O agente que conduzira a autocaravana do sul viu o homem que tinha a seu cargo desaparecer no meio da floresta e nada mais podia fazer. Numa chamada cheia de cortes, informou Kukuchkin em Londres e o chefe do SVR em Iasenevo. Daí em diante, ambos os chefes de espionagem estavam de mãos atadas.

Nenhum deles poderia precisar onde se encontrava o francoatirador, o que ele vira na floresta ou o que estava a fazer. Sabiam apenas que era um habitante da floresta capaz e experimentado, astuto como um animal selvagem no seu habitat e o melhor atirador da Spetsnaz.

Uma vez terminada a sua missão, Micha deixaria para trás a espingarda, transformar-se-ia novamente num inofensivo ornitólogo amador, sairia da floresta escocesa e pediria transporte usando algumas palavras em código. Até lá, era um jogo de paciência.

O capitão Harry Williams, do Regimento do Serviço Aéreo Especial, não era francoatirador, mas participara em situações de combate e era hábil no uso da espingarda de longo alcance privilegiada pelo regimento, a AX50 da Accuracy International, com mira telescópica Schmidt & Bender. Nessa mesma manhã, estivera a instalar-se com os seus subordinados nos aposentos que lhes haviam sido reservados, por cima da equipa de informática, na ala sul do castelo.

A sua equipa de proteção de proximidade ficara reduzida a ele próprio e a mais três elementos: um sargento e dois soldados. Sir Adrian avaliara como mínimo o risco que o adolescente a seu cargo corria depois da mudança para norte. Ninguém fazia ideia de que tinham sido vistos a partir de Warwickshire - no seu castelo isolado nas Terras Altas, a paz parecia reinar suprema. Por isso, na segunda noite, o capitão Williams pegou no jipe da sua unidade e conduziu até à única povoação dentro da propriedade: tratava-se da aldeia de Ainslie, a três quilómetros e meio de distância.

Não tinha mais do que cinquenta casas, mas ao menos havia uma igreja, uma pequena loja de esquina e um pub - a vida social da aldeia dependia claramente deste último. Harry Williams vestia calças de ganga e uma camisa xadrez; não trazia a farda, não havia necessidade. Os habitantes locais sabiam que o proprietário das terras tinha convidados, embora ele e a sua senhora não se encontrassem presentes. Os convivas tinham-se remetido ao silêncio; era raro entrarem ali forasteiros. Williams cumprimentou-os com um aceno de cabeça.

- Boa noite a todos - disse, soando a polícia de série televisiva. Houve uma dúzia de acenos de cabeça em resposta: se ele era um dos convidados do proprietário, então era aceitável.

Os clientes estavam espalhados pela única divisão do pub, mas havia um sozinho ao balcão, como que perdido nos seus pensamentos. Havia um banco vazio e Williams sentou-se. Ambos trocaram um olhar.

- Belo dia.

- Sim.

- É apreciador de whisky de malte?

- Sim.

Williams olhou de relance para o empregado do bar e acenou com a cabeça na direção do copo do homem. O empregado pegou num bom whisky de malte de Islay da sua seleção e serviu uma dose. O homem arqueou uma sobrancelha.

- E o mesmo para mim - disse Williams. O seu novo companheiro era muito mais velho, perto dos sessenta, pelo menos. Tinha a cara bronzeada do vento e do sol de verão, plena de rugas e pés de galinha, mas não era a cara de um tolo. Harry poderia ter de passar semanas em Craigleven, pelo que tudo o que queria era ter um pouco de contacto amigável com os habitantes locais. Não fazia ideia dos frutos que a sua visita daria.

Ambos fizeram um brinde e beberam. Naquela altura, Mackie começou a desconfiar que os convidados do proprietário poderiam não ser simples turistas - o homem sentado ao seu lado tinha toda a pinta de ser soldado.

- Vai ficar hospedado no castelo? - perguntou ele.

- Durante algum tempo - respondeu o soldado.

- Conhece as Terras Altas?

- Não muito bem, mas já apanhei salmão no Spey.

O guia de caça e pesca era um antigo e perspicaz soldado. Sabia as linhas com que se cosia. O homem com quem ele estava a tomar uma bebida não era um normal oficial de infantaria em dia de licença; era seco e rijo, mas a maioria dos outros hóspedes parecia civil. Então, este estava ali para protegê-los.

- Há outro forasteiro que também se mudou para a floresta - disse ele de passagem. O soldado retesou-se.

- Campista? Turista? Observador de aves?

Mackie abanou lentamente a cabeça.

Passados escassos segundos, Harry Williams estava fora do bar, a falar ao telemóvel. O homem do outro lado da chamada era o seu sargento.

- Quero toda a gente longe das janelas! - ordenou. - As cortinas todas corridas. Em todos os lados da casa. Volto daqui a nada. Estamos todos em alerta.

Enquanto couteiro, tal como o seu pai o fora, na propriedade do conde, Stuart Mackie tinha os animais daninhos e a melhor forma de os controlar entre as suas maiores preocupações. Inverness é a terra do esquilo-vermelho, mas a versão daninha, de cor cinzenta, estava a tentar instalar-se ali e ele estava preocupado em impedi-la. Desse modo, montara armadilhas; quando apanhava exemplares das duas espécies, libertava os vermelhos e abatia os cinzentos.

Nessa manhã, encontrava-se a verificar as suas armadilhas quando viu algo que não pertencia ali. O seu olhar tivera um vislumbre de branco numa parede verde: tratava-se de um raminho recém-cortado num ângulo oblíquo, com a madeira esbranquiçada do seu interior a reluzir à luz da manhã. Examinou o corte: o raminho não fora partido, nem arrancado, nem sacudido; fora cortado, como que por uma faca bem afiada. Portanto... um agente humano. Um estranho na sua floresta.

Na floresta, uma pessoa só corta um ramo, ou um raminho, se ele estiver no caminho. Só que um raminho não pode estar no caminho de ninguém; basta tirá-lo da frente com as mãos. Pelo que a folhagem era necessária para algo, e só se podia tratar de uma coisa: camuflagem.

Quem é que precisa de camuflagem na floresta? Um ornitólogo amador. Mas os maluquinhos dos pássaros, munidos dos seus binóculos e das suas máquinas fotográficas, anseiam ver as espécies raras, o exótico. Esta era a floresta de Stuart Mackie e ele sabia quais as aves que ali havia, e nenhuma delas era rara. Quem mais se esconde debaixo de camuflagem na floresta? Na sua juventude, Mackie servira no regimento da Guarda Negra do Regimento Real Escocês. Sabia o que era um francoatirador.

Harry regressou ao bar e pediu mais dois whiskies de malte, embora nem tenha tocado no seu.

- As pessoas que eu os meus homens estamos a proteger são muito valiosas - disse discretamente. - Acho que preciso da sua ajuda.

Stuart Mackie bebericou do seu copo, que acabara de ser cheio novamente, e proferiu um discurso:

- Siga.

Estava outra vez a amanhecer e Mackie já se encontrava na floresta, silencioso como uma árvore, a olhar, a escutar. De pé, observava as criaturas da natureza: conhecia-as a todas. Ocasionalmente, mexia-se sem emitir som, uns poucos metros de cada vez, perto da encosta inclinada que descia até ao ribeiro que corria no fundo do vale. A mil metros, do outro lado do vale, ficava a face sul do castelo, as janelas, os relvados.

Foi um enho que o alertou. Também a pequena corça se estava a movimentar pelo mato, em busca de um tufo de erva jovem. Ele viu-a; ela não o viu a ele. Mas levantou a cabeça de repente, deu meia-volta, cheirou o ar e correu para longe; não vira nada, mas sentira um odor que não pertencia ali. Mackie fitou o local para onde a cerva apontara.

Micha descobrira o esconderijo perfeito. Um monte de toros e troncos caídos, um emaranhado de ramos na encosta virada para a vertente sul do castelo. O seu telémetro em forma de lupa indicara-lhe que a distância era de cerca de mil metros, metade do alcance letal da sua Orsis.

Na sua farda de mato com estampado de camuflagem, salpicada com raminhos e folhas, ficara praticamente invisível. A coronha da espingarda estava confortavelmente encostada ao ombro, com a parte em metal tapada por uma rede de camuflagem. Estava deitado, completamente imóvel, tal como estivera durante toda a noite, e passaria também as horas seguintes, se preciso fosse, sem mexer um músculo, sem se esticar, sem se coçar. Fazia parte da preparação, parte da disciplina que o mantivera vivo no meio do mato em Donetsk e Luhansk, enquanto despachava ucranianos um a seguir ao outro.

Tinha visto a pequena corça: estava a três metros de distância quando deu por ele. Agora, andava por ali um esquilo, a correr em direção à sua rede de camuflagem. Não fazia ideia de que outro par de olhos, cinquenta metros adiante naquela encosta, estava à sua procura, não tinha noção de que outra figura imóvel e tão capacitada como ele se encontrava igualmente na floresta.

Stuart Mackie tentou ver para onde é que a cerva apontara. Mais abaixo, no meio da cascalheira na encosta, um amontoado de toros. Nada se mexeu... até o esquilo o fazer; estava a saltar sobre a pilha de toros e ramos caídos. Então, também ele parou e observou. E também começou a correr para se salvar, emitindo um chilreio de alarme continuado. A meio metro de si, tinha visto um olho humano. Mackie olhou com atenção. Os toros estavam imóveis e silenciosos.

Oh, ele era bom. Mas estava ali. Gradualmente, um vulto entre a folhagem. Raminhos de pinheiro e folhas largas passadas pelas argolas do casaco de camuflagem. Por baixo deles, uma silhueta, ombros, braços, uma cabeça encapuzada. Aninhado atrás de um tronco de árvore, a rede a tapar o metal mate, nada para reluzir à luz da manhã.

Mackie afastou-se silenciosamente, memorizando o lugar. Atrás de um carvalho robusto, tirou o telemóvel do bolso e marcou o código que decorara. Do outro lado do vale, no castelo, uma ligação, um sussurro.

- Stuart?

- Já o tenho - murmurou o guia de caça e pesca.

- Onde?

Harry Williams estava numa sala no último andar da face sul. As janelas estavam abertas, mas ele encontrava-se num recanto da sala, invisível do exterior à luz do dia. Tinha os binóculos Zeiss colados aos olhos e o telefone, ao ouvido.

- Está a ver a pedra branca? - perguntou a voz do outro lado da chamada.

Williams perscrutou a encosta da montanha do outro lado do vale. Uma pedra branca, apenas uma.

- Já vi - disse ele.

- Três metros acima. Depois conte mais quinze à sua esquerda. Um amontoado de toros. Rede de camuflagem, folhagem suplementar.

- Já vi - repetiu Williams.

Desligou e pousou o binóculo. Arrastou-se de joelhos até uma poltrona posta em posição vertical e à espingarda colocada à frente dela, encostou a coronha ao ombro e semicerrou o olho através da mira telescópica Schmidt & Bender. O montão de toros era tão nítido como com o binóculo Zeiss. Um ligeiro ajuste. Ainda mais nítido. Podia estar a dez metros dele.

Rede de camuflagem - que não pertencia a uma floresta - e, debaixo da cobertura, um vislumbre de vidro. Outra mira telescópica, a fitá-lo. Algures, um centímetro acima do vidro, invisível sob o capuz, estaria o rosto contraído do atirador.

Harry Williams ouviu vozes vindas de baixo: os técnicos de informática, janelas panorâmicas a serem abertas. Avisara-os para ficarem longe dos relvados e manterem as cortinas fechadas, mas alguém ia sair para apanhar ar - podia ser Luke. Não havia tempo para misericórdia. Tinha o gatilho da AX50 debaixo do indicador. Uma pressão suave, um ligeiro coice no ombro.

A munição de calibre .50 atravessou o vale em três segundos. O russo não viu, nem ouviu, nem sentiu nada. O projétil voador resvalou na parte superior da sua própria mira telescópica e alojou-se-lhe no cérebro. Micha morreu.

No interior do castelo, Luke não estava a andar em direção aos relvados; estava no centro informático, a olhar fixamente para o ecrã do seu computador. Tinha ao lado o doutor Hendricks, de cócoras. Tinham feito uma direta. Para a Raposa, não havia nem noite nem dia, somente os símbolos tremeluzentes no ecrã e as teclas sob a ponta dos dedos.

Nove fusos horários para oriente, numa caverna debaixo de uma montanha bem a norte de Pyongyang, os técnicos que guardavam o segredo do programa de mísseis de Kim Jong-un não desconfiavam de nada. Não se aperceberam de que as suas firewalls tinham sido ultrapassadas, os seus códigos de acesso copiados, o seu comando entregue ao cérebro altamente funcional de um rapaz louro inglês que se encontrava bem longe dali.

Numa outra caverna semiobscura, esta num castelo escocês, o doutor Hendricks, acocorado junto a Luke, viu aquelas ciberportas abrirem-se diante de si e limitou-se a murmurar:

- Inacreditável.

Passada uma hora do disparo em Craigleven, Sir Adrian recebera um relatório completo do capitão Williams, que provocava um dilema. O que os russos tinham feito era um ato de pura agressão e, se os meios de comunicação social alguma vez desconfiassem sequer do que aconteceu, não haveria forma de impedir um escândalo de proporções épicas.

Moscovo negaria todo e qualquer conhecimento, como é evidente. No caso dos Skripals, pai e filha, havia dois requerentes de asilo russos quase mortos e o agente nervoso Novichok, indiscutivelmente de proveniência russa, fora encontrado espalhado na maçaneta da porta da casa deles. Mesmo perante esta montanha de provas, a Rússia negara todo e qualquer conhecimento e o escândalo arrastou-se durante meses.

Agora havia um cadáver bem morto com um trabalho dentário que poderia seguramente ser identificado como russo. Mas também isso podia ser negado. Havia ainda uma espingarda de precisão Orsis T-5000, também ela de fabrico russo, mas o Reino Unido seria acusado de o ter adquirido de fontes especializadas fora da Rússia. Além disso, Sir Adrian recebera ordens específicas de Marjory Graham para não desencadear uma guerra.

E, por fim, todo aquele imbróglio poderia levar à revelação da identidade do frágil jovem que estava hospedado no castelo Craigleven, e isso era algo que Weston queria evitar a todo o custo.

Sabia perfeitamente quem tinha dado a ordem para o ataque do francoatirador nas Terras Altas. Se não fosse a intervenção de um astuto guia de caça e pesca escocês, era bastante provável que o atirador tivesse sido bem-sucedido. Enquanto almoçava sozinho no clube, Sir Adrian teve uma ideia que poderia resolver todos os problemas e implicar uma retaliação de que Ievgueni Krilov era há muito merecedor. De uma linha segura, ligou ao capitão Williams e transmitiu-lhe as suas instruções.

Quanto a Krilov, sentado em Iasenevo à espera de notícias, era deixá-lo enervado... durante mais algum tempo.

Uma semana depois, o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico enfrentou o embaixador russo, cuja comparência na King Charles Street fora solicitada. O ministro deixou-se estar de pé, para indicar que não tinha interesse em comprazimentos - tratava-se de uma reprimenda oficial.

- É meu triste dever informá-lo que forças de segurança britânicas capturaram um membro das Forças Especiais russas, a Spetsnaz, numa missão de agressão no nosso país. O governo de Sua Majestade encara este ultraje da forma menos favorável possível. O homem em questão encontrava-se na posse de uma espingarda de precisão, tendo plena intenção de a usar para cometer homicídio.

Neste instante, virou-se e gesticulou na direção de uma mesa ao fundo da sala, na qual um objeto qualquer estava tapado por um tecido de feltro verde. Um funcionário subalterno puxou o tecido. Sobre a mesa, com os pés de apoio abertos e a mira telescópica montada, encontrava-se uma Orsis T-5000. O embaixador, que até aí estivera com a tez rosada de raiva e pronto para negar tudo, empalideceu.

- Devo informar Vossa Excelência que o homem em questão decidiu confessar tudo, com todo o pormenor, e requereu asilo; em suma, desertou. Quando lhe foi oferecida a escolha, optou por emigrar e partir em busca de uma vida nova nos Estados Unidos. Esse pedido foi satisfeito. Partiu esta manhã. E é tudo, cavalheiro.

O embaixador russo foi acompanhado até à saída. Embora mantivesse a compostura, no seu âmago fervia de cólera, embora esta não fosse dirigida aos britânicos; a sua fúria estava reservada para os idiotas no seu país que o tinham feito passar por aquela humilhação. O relatório que entregou mais tarde nesse mesmo dia refletia essa sua disposição em todos os aspetos. Não seguiu para Iasenevo, para o quartel-general do SVR, mas sim para o ministério dos Negócios Estrangeiros na praça Smolenskaia. E daí foi para o Kremlin.

Quando vieram buscá-lo, eram quatro e envergavam a farda completa da guarda do Kremlin. O Vojd queria vincar a sua posição. Foram conduzidos em silêncio e sem estorvo até ao sétimo andar. Ievgueni Krilov não protestou - não valeria a pena. Toda a gente sabia quem dera as ordens que estavam a ser cumpridas. As portas permaneceram fechadas enquanto ele era escoltado até ao átrio e, em seguida, pela porta principal, para fora do edifício. A limusina ZiL não estava disponível. Nunca mais foi visto no bosque de bétulas brancas.


CAPÍTULO VINTE E DOIS

Para muita gente, caminhar nas montanhas e vales das Terras Altas equivale a umas férias agradáveis. Mas é também um desafio, que exige uma considerável forma física.

Uma montanha escocesa com mais de novecentos e quinze metros tem o nome de "Munro", e há duzentas e oitenta e três para descobrir, incluindo uma na propriedade do lorde Craigleven. Nesse outubro, o tempo ainda não virara: o sol continuava a brilhar e o vento ainda trazia calor, e foi este o motivo por que se decidiu fazer aquela caminhada.

Houvera alguma discussão sobre se Luke seria suficientemente forte, se estaria em forma, para se juntar ao grupo. Fora ele próprio o mais veemente a assegurar-lhes que sim. A sua mãe tinha dúvidas, mas o tempo estava tão convidativo, o ar tão revigorante, que ela acabou por admitir que um passeio de oito quilómetros lhe podia fazer bem. Há muito que se preocupava com a quantidade de horas que ele passava na semiobscuridade diante do computador. Por isso, ficou decidido: o rapaz também iria.

Talvez fosse por estar no campo, ou então era por estar na companhia de soldados e gente da informática, mas a verdade é que Luke estava a ganhar confiança em si mesmo. Ocasionalmente, aventurava-se a fazer um comentário pessoal, em vez de esperar timidamente que se dirigissem a ele ou de permanecer em silêncio. A mãe rezava para que ele estivesse a desenvolver uma sensibilidade para o mundo que existia para lá de um ecrã de computador e do turbilhão de símbolos que durante tanto tempo compuseram a totalidade do seu universo.

O grupo era composto por seis pessoas. Era encabeçado por Stuart Mackie, que conhecia cada centímetro daqueles montes e vales, e pelo sargento do Regimento Eamonn Davis, que estava habituado aos Brecon Beacons do seu País de Gales natal. Os outros quatro eram dois dos soldados que restavam, um especialista informático e Luke Jennings.

Quer para o guia de caça e pesca quer para o sargento Davis, a caminhada era como um passeio no parque - ambos estavam numa forma física soberba. O mesmo se aplicava aos soldados do SAS. Todos eles podiam deixar qualquer habitante das Terras Baixas a quilómetros de distância, por isso seguiram em fila indiana com o técnico e Luke Jennings no meio.

Os soldados estavam habituados a carregar enormes mochilas militares, mas, para este passeio, precisavam apenas de sacos de campismo com barritas energéticas, cantis e meias suplementares. Até levavam os pertences dos dois especialistas informáticos, que não transportavam nada além das suas roupas de passeio. Tudo devia ter corrido sem problemas.

Ao fim de uma hora, fizeram uma pausa, depois começaram a subir o Ben Duill. O declive tornou-se mais inclinado, mas o caminho tinha um metro de largura e era fácil de percorrer. Num dos lados ficava o flanco da Munro, a erguer-se, imponente, em direção ao seu pico; no outro, havia uma encosta bastante ligeira até ao vale. Parecia não haver motivo para Luke perder o equilíbrio num troço de gravilha solta. Aconteceu tudo tão depressa.

Se o homem atrás dele fosse um soldado, talvez o tivesse agarrado a tempo; só que era o engenheiro informático. Mergulhou para apanhar o rapaz que caía, mas falhou. Mesmo assim, Luke tombou escassos metros, aterrando no urzal até se imobilizar. Mas aquela pedra solitária não perdoou: escondida pela urze, a cabeça do rapaz acertou-lhe com um estalido surdo. O sargento Davis demorou dois segundos a pôr-se junto dele.

Como é evidente, tinha formação em primeiros socorros. Examinou o golpe com esfoladela na têmpora esquerda, pôs a figura inerte ao ombro e subiu a encosta de dez metros até ao caminho; os outros esticaram as mãos para os puxarem para cima. Numa superfície plana, pode ver o local do impacto mais de perto.

A ferida estava a inchar e a ficar azul. O sargento Davis passou-a suavemente por água, mas o rapaz ficara inconsciente. Podia pô-lo ao ombro, transportando-o à bombeiro, e levá-lo de volta ao castelo. Revezar-se-ia com os outros dois soldados, mas isso levaria tempo, e tempo era coisa que ele não sabia se tinha. Olhou para cima e trocou um olhar com Stuart Mackie.

- Helicóptero - disse.

O guia de caça e pesca fez que sim com a cabeça e puxou do telemóvel. A unidade de resgate de montanha mais próxima ficava em Glenmore, a uma distância de sessenta e cinco quilómetros, e tinha um helicóptero. Passados quarenta minutos, o grupo na encosta da montanha ouviu o rosnado do motor do S-92 da Guarda Costeira de Glenmore a descer o vale.

Baixaram uma maca de resgate e o corpo inerte de Luke Jennings foi içado a bordo. No espaço de uma hora, estava a dar entrada de maca na receção das urgências do hospital de Raigmore em Inverness, a grande cidade mais próxima.

Fizeram-lhe uma tomografia cranioencefálica e o veredicto foi que o paciente devia ser transferido para a Real Enfermaria de Edimburgo, bem a sul de Inverness. Este hospital tinha uma unidade de cuidados agudos que incluía uma ala de neurologia especializada. A viagem para sul foi feita de avião.

Luke teve sorte. O professor Calum McAvoy, considerado o melhor neurocirurgião da Escócia, regressara há breves dois dias das suas férias anuais. Fez uma segunda tomografia e não gostou do que viu. As aparências podiam ser enganosas, como a que levara o sargento Davis a subestimar o dano. A pancada na têmpora provocara uma hemorragia cerebral, e McAvoy decidiu operar sem demora. Assegurou-se de que o paciente estava num profundo coma induzido antes de lhe abrir o crânio, efetuando uma hemicraniectomia, na qual uma parte significativa do crânio é retirada. O que ele descobriu era exatamente o que temera, e a única boa notícia é que o rapaz tinha chegado mesmo a tempo.

Tratava-se de um hematoma extradural - um sangramento no cérebro - e qualquer demora adicional podia bem ter provocado danos permanentes. McAvoy conseguiu estancar o sangramento, agradecendo silenciosamente a Inverness por enviar o miúdo para a sua unidade "aguda" em Edimburgo, apesar da perda de tempo que tal implicara. Depois de suturar a ferida, manteve Luke em coma mais três dias, antes de o despertar novamente. No total, o adolescente tinha passado duas semanas nos cuidados intensivos antes de, ainda todo embrulhado em ligaduras, poder ser enviado de volta para o castelo Craigleven.

Foi acompanhado pela mãe e pelo capitão Harry Williams. Sue Jennings estivera hospedada num pequeno hotel em Edimburgo, de modo a poder visitar o filho todos os dias e sentar-se ao lado dele. Harry Williams também voara para sul para estar com ela e com Luke.

Tirando as ligaduras, Luke parecia igual ao que era antes da queda. Ainda procurava o apoio da mãe em ocasiões sociais, mas estava perfeitamente lúcido. Ao chegar, parecia aliviado por estar de volta a um ambiente familiar, onde tudo aquilo que lhe pertencia estava colocado exatamente onde ele insistia que tinha de estar. Deixou-se ficar uma hora no seu quarto na face sul, sobranceiro à extensão de relvados e com uma espetacular vista do vale onde, embora ainda não o soubesse, quase morrera pela segunda vez. Ninguém lhe contou que agora havia um francoatirador russo bem enterrado na floresta do outro lado do vale.

O doutor Hendricks andava preocupado com ele, ansioso por reapresentá-lo à sala de computadores, o seu ambiente preferido. Ao longo da primavera e do verão que tinham passado juntos, o seu relacionamento desenvolvera-se de tal forma que o homem do GCHQ se tornara praticamente uma figura paterna, chegando ao ponto de as recordações que Luke tinha do seu verdadeiro e falecido pai darem ideia de estar a desvanecer-se. Não que o seu verdadeiro pai alguma vez tivesse mostrado um pingo de interesse no único interesse de Luke: o misterioso mundo do ciberespaço.

Mas o doutor Hendricks reparou que, mesmo depois de voltar a patrulhar o seu quarto, verificando vezes sem conta a posição de todas as suas posses, Luke não demonstrara grande interesse em voltar à sala de computadores. "Lá chegará", pensou o informático, "lá chegará." Depois da lesão neurológica, só precisava de tempo.

Os primeiros sinais de alarme soaram depois de Luke ter passado uma hora diante das teclas do seu computador favorito. Era competente, como qualquer jovem da era moderna - os seus dedos esvoaçavam sobre as teclas. Passou alguns testes simples de destreza e, então, o doutor Hendricks preparou-lhe um desafio mais complicado.

Muito para sul, no quadrante noroeste de Londres, fica o subúrbio de Northwood. Debaixo do chão, com as suas fileiras de casas de trabalhadores citadinos em avenidas calmas e orladas de árvores, longe da vista e, de um modo geral, longe do pensamento, fica o quartel-general de operações da Marinha Real.

É certo que o almirantado se situa em Londres, que os navios de guerra estão ancorados em Devonport, que os enormes porta-aviões Queen Elizabeth e Prince of Wales ainda estão a ser submetidos a testes de navegação ao largo de Portsmouth e que os submarinos armados com mísseis nucleares continuam na sua base no estuário do Clyde, perto de Faslane, mas o centro de guerra informatizado da Marinha fica em Northwood; é aqui que a sua base de dados tremeluz bem abaixo das ruas suburbanas. E esta base de dados é protegida por firewalls temíveis, que guardam os seus vitais códigos de acesso.

Sir Adrian pediu autorização ao chefe do Estado-Maior da Armada, que lha concedeu, para verificar se seria possível ao cibergénio obter esses códigos de acesso. Luke esteve uma semana a tentar, mas foi rechaçado a cada tentativa. O sexto sentido, ou perceção extrassensorial, ou como quer que se chamasse aquilo que ele em tempos tivera, parecia ter desaparecido. Em exercícios meramente teóricos, outros elementos do GCHQ tinham feito mais progressos, ainda que nenhum tivesse alcançado o santuário do templo.

Sir Adrian voou de Londres para Inverness e foi conduzido ao castelo. Teve longas e agradáveis conversas com Luke e a sua mãe, e outras de carácter mais técnico com o doutor Hendricks, que lhe explicou que alguma coisa parecia estar fora do lugar: o rapaz que partira para a sua caminhada de montanha duas semanas antes não era o jovem confuso que agora carregava, incerto, no teclado.

Sir Adrian consultou uma vez mais o professor Simon Baron-Cohen no seu gabinete em Cambridge. O académico e especialista em questões neurológicas não foi muito animador. Não obstante toda a competência dos especialistas, os efeitos de danos neurológicos continuavam a ser imprevisíveis. O que acontecera a Luke Jennings não fora simplesmente uma pancadinha na cabeça que causara uma perda de consciência assaz temporária, aquilo a que os leigos chamam "ficar knockout" ou "perder os sentidos". Isso acontecia a muita gente - no ringue, no local de trabalho ou no lar. A recuperação era rápida e permanente.

Mas o que aquela pedra escocesa fizera na encosta da montanha parecia mais grave. O professor confirmou que alterações cerebrais podiam ocorrer em resultado de lesões neurológicas. Não havia garantias de que a simples passagem do tempo pudesse fazer um cérebro humano danificado voltar a ser o que fora.

Sir Adrian voou de regresso a Londres para informar a primeira-ministra de que a Operação Troia, assente nas incríveis capacidades da Raposa, tinha chegado ao fim.

- O miúdo sofreu algum outro tipo de danos, Adrian? - perguntou ela.

- Não, senhora primeira-ministra. Na verdade, desde que saiu do hospital e regressou às Terras Altas, parece estar a transformar-se num jovem muito mais bem integrado. Mas temos de aceitar que aquele extraordinário talento que ele tinha para atravessar as firewalls mais complicadas do mundo o abandonou.

- Então, a nossa arma secreta finou-se?

- Assim é.

- Quem é que sabe que ela alguma vez existiu?

- Muito, muito pouca gente, senhora primeira-ministra. Entre os nossos aliados, a Casa Branca e uns poucos americanos de alta patente. Deste lado do Atlântico, a senhora, dois ou três membros do Conselho de Ministros e alguns funcionários de categoria superior da nossa secreta. Todos estamos obrigados ao sigilo, e já nos habituámos a isso; não antevejo fugas de informação, se todo o centro for desmantelado e espalhado. Quanto ao Kremlin, tenho fortes suspeitas de que não vai procurar mais sarna para se coçar.

- E em relação à família Jennings? Demos cabo dela, com certeza.

- Suspeito que a senhora Jennings deseje casar segunda vez. Sugiro que todos eles assinem a Lei dos Segredos Oficiais e que sejam atribuídos fundos tanto para arranjar um emprego para o Luke como para completar a instrução do Marcus, além de um pagamento ex gratia pela sua primavera e verão de deslocamento.

- Muito bem, Adrian. Confio em si para encerrar este assunto. Resumindo, nunca aconteceu, ou pelo menos não teve nada a ver com o governo de Sua Majestade.

- Como queira, senhora primeira-ministra.

O encerramento seria muito tranquilo e muito discreto. Com a autorização da primeira-ministra, Sir Adrian deu instruções ao doutor Hendricks para começar, no seu castelo nas Terras Altas, o desmantelamento do centro informático e o retorno do pessoal aos seus postos em Cheltenham.

Tal como Weston previra, Sue Jennings e o capitão Harry Williams decidiram casar. Ela passaria a ser mulher de um soldado, usando a receita da venda da residência de Luton para comprar uma casa para a família nos arredores de Hereford, perto da base do regimento do SAS.

Expôs a decisão aos dois filhos, que já se davam bem com Harry Williams. Marcus mostrou-se sereno perante a perspetiva de nova mudança de escola, visto que ainda lhe faltavam dois anos para fazer os exames conhecidos no sistema britânico de ensino como GCSE. Para surpresa de Sue, até Luke concordou com a decisão. As variações de comportamento mais extremas causadas pelo seu problema pareciam estar a atenuar-se. Tudo o que ele queria era a sua sala do computador, onde pudesse jogar os seus jogos online, e tudo indicava que já não poderia causar estragos nas bases de dados de amigos ou inimigos.

Isto deixou o doutor Hendricks com um último dilema durante o processo de desmantelamento do quartel-general no castelo escocês. Ainda estava na posse da informação recolhida pelo derradeiro triunfo de Luke antes de este se magoar, nada mais, nada menos do que os códigos de acesso ao cerne do programa de mísseis norte-coreano, de cuja subtração Pyongyang permanecia ignorante. Passou a decisão para Sir Adrian.

O velho cavaleiro do reino vivera seis meses animados mas extenuantes. Estava cansado de Londres: do barulho e da pressão, do fumo dos escapes e da azáfama. Ansiava por regressar à sua casa de campo na paisagem imaculada de Dorset. O seu spaniel estivera ao cuidado de uma vizinha e ele queria voltar a passear pelos bosques com o cão atrás de si, viver entre os seus livros e as suas recordações, acender a lareira numa noite de inverno. No entanto, tinha uma última tarefa a cumprir antes de deixar a metrópole.

O Reino Unido ainda tinha capacidade para controlar furtivamente os sistemas de orientação do programa de foguetes de longo alcance norte-coreano. Sir Adrian decidiu que seria uma pena desperdiçar uma oportunidade assim.

Nesse outono, os norte-coreanos testaram outro míssil. Não se tratava do Hwasong-15, mas do mais pequeno e mais antigo Taepodong-2. O raciocínio deles era simples. A despeito de todas as promessas de Pyongyang, o desenvolvimento em segredo de ogivas nucleares miniaturizadas prosseguira em desconhecidos laboratórios de investigação subterrâneos. Tinham sido feitas demolições aparatosas à superfície para justificar os benefícios comerciais que eram agora permitidos pelos Estados Unidos.

Após a desastrosa experiência com o Hwasong-20, fora decidido realizar aperfeiçoamentos fundamentais no mais antigo Taepodong para armá-lo com uma ogiva atómica mais pequena, assim que estivesse pronto. A cortina de fumo era que o Taepodong, um foguete tetrafásico, se destinava exclusivamente à investigação espacial; deste modo, o míssil disparado nos ensaios não tinha ogiva. Para evitar suspeitas, foi lançado das instalações de Tonghae, que haviam sido utilizadas anteriormente para o lançamento de mísseis não armados.

O mais recente Taepodong comportou-se na perfeição - a princípio. Subiu vertical e tranquilamente até à estratosfera; fora concebido para se elevar através da estratosfera até à exosfera, onde viraria para oriente, em direção ao mar do Japão. Depois de atravessar a ilha japonesa de Hokkaido, estava previsto que ficasse sem combustível e caísse no Pacífico Ocidental. No zénite da sua ascensão, contudo, alguma coisa correu mal: oscilou, inclinou-se e virou para ocidente. Em direção à China.

Em Tonghae, os cientistas digitavam impetuosamente os comandos atribuídos para devolver o míssil à sua rota nas fileiras de computadores, mas os sensores não responderam. Quando se tornou evidente que o Taepodong estava fora de controlo, programaram de modo frenético os códigos que asseguravam a autodetonação. O míssil prosseguiu o seu voo, estremeceu, inclinou-se e começou a cair.

Caiu no meio do campo, causando uma enorme explosão e uma gigantesca cratera, mas sem vítimas a lamentar e com poucos danos materiais que não os tremores sentidos por uma dúzia de casas de camponeses próximas, a norte de Pequim. Mas os sistemas de radar defensivos tinham sido acionados e as medidas preventivas aumentadas para alerta vermelho. No seu gabinete na Cidade Proibida em Pequim, o presidente Xi foi informado tanto do alerta como do rápido falso alarme.

Por coincidência, nessa manhã houve tumultos em três cidades de província na Coreia do Norte. Cidadãos desesperados de fome saquearam as lojas de comida do funcionalismo e dos poucos privilegiados do país. O exército pretoriano interveio com represálias brutais, mas vários generais deram ordens aos seus comandados para ficarem nos quartéis. Esta informação chegou a Pequim. Alegava-se em alguns relatórios que já há algumas semanas que a população era inundada com panfletos transportados por balões de hélio que aproveitavam os ventos sul-norte do outono.

O presidente Kim retirou-se para o seu complexo fortificado de luxo na baía de Wonsan, na costa oriental. Uma divisão inteira de guardas presidenciais ultraleais foi estacionada em todos os pontos de acesso.

Uma semana depois de o míssil cair, tropas anfíbias de elite chinesas desembarcaram na costa ocidental do golfo da Coreia. O desembarque não encontrou resistência. A maior parte dos membros do Exército norte-coreano, avisados por repetidas mensagens em coreano fluente, transmitidas em todas as frequências que costumavam usar, e que os instruíam a ficar nos quartéis para sua própria segurança, assim o fez.

Para o ditador da Coreia do Norte, o momento Ceausescu, referido pelo seu pai numa conversa com Condoleezza Rice, tinha chegado: o momento em que as massas de servos vítimas de lavagem cerebral deixam finalmente de ovacionar e começam com apupos.

Passada uma semana, saiu da sua fortaleza na baía de Wonsan sob prisão. Drones fotográficos controlados a partir de dois navios de guerra da Marinha norte-americana estacionados perto da costa sul-coreana transmitiram os acontecimentos para todo o mundo.

Perto de um castelo nas Terras Altas escocesas, de uma casa de campo em Dorset e da base do SAS em Hereford, quem passava a pé ouvia tiros frequentes. A época de caça ao faisão estava em pleno andamento.

 

 

                                                                  Frederick Forsyth

 

 

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