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A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO / Zé Rodrix
A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO / Zé Rodrix

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO

Primeira Parte

 

Nebbuchadrena'zzar atacou Jerusalém pela segunda vez em. uma noite escura, vinte anos depois da primeira invasão, e três anos depois de iniciado o cerco. Tudo foi pensado e repensado antes que seus exércitos percorressem com sofreguidão as ruas semidestruídas da capital do reino de Judah, parte de um Israel dividido, enfraquecido e sem nenhum resquício do imenso poder que antes tivera. Era degradante andar por essa cidade de pedra envelhecida, cujo Templo o deus Yahweh um dia habitara. Desde que Ele se fora, a cidade se esvaziara de Sua força, estando agora como uma casca vazia, um animal esventrado, do qual tudo já houvesse sido tirado e nada mais tivesse a dar.

A primeira invasão fora obra da juventude de Nebbuchadrena'zzar, o impulso para a luta que todos os jovens reis demonstram, como forma de exibir poderio e importância aos que os cercam. Os tesouros do Templo tinham sido parte do butim dessa invasão, e agora descansavam na Babilônia, na sala de seu tesouro, recheado de riquezas conquistadas aos judeus, aos egípcios, aos medos, aos persas, aos assírios. Mais do que o ouro e as riquezas, no entanto, o que dormia nessas salas sempre fechadas era a vida e a verdade desses povos, esvaziados dos símbolos de sua essência. O roubo que as guerras propiciam tira mais que a aparente perda material: tira a alma dos povos. E o povo de Judah pagava agora o preço da iniqüidade de seu rei Salomão, que quatrocentos anos antes havia impensadamente traído as ordens de Yahweh, queimando incenso no altar de Atargatis.

Essa segunda invasão já era obra do rei maduro e ardiloso em que Nebbuchadrena'zzar se havia transformado depois de vencidos os dinastas assírios, capaz de planejar com grande riqueza de detalhes como finalmente se tornaria amo e senhor absoluto das almas de seus vencidos.

Tomar-lhes as riquezas materiais nada representava: suas vontades a inda eram as vontades que Yahweh vinha moldando desde a escravidão nas terras do Faraó do Egito, nos quarenta anos de miséria em pleno deserto, nos posteriores longos séculos de luta, conquista e crescimento.

O que ainda havia nessas almas era o orgulho de ser o Povo Escolhido e Jebbuchadrena'zzar considerou durante longo tempo as possibilidades reais de dominá-los completamente. Em cada face vinda dessas terras estava o brilho de quem se sabe Filho de Deus, tão mais poderoso que os outros que Se considerava Único. Já haviam sido levados para o cativeiro na Babilônia dez mil exilados, entre os mais e os menos importantes da terra, desde o rei Jachin, sua mãe, suas mulheres e sua corte, assim como todos os homens capazes, os artífices, os ferreiros, os pedreiros.

Uma idéia lampejou em sua mente cruel: ele sabia que, mesmo à distância vazio de Deus e despido de todas as riquezas que um dia exibira para a maior Glória de Yaweh, o Templo de Jerusalém continuava a ser o ponto para o qual se dirigiam as almas e as orações dos escravos de Judah. Tudo havia sido tentado para que esses escravos deixassem de voltar suas esperanças para sua terra natal: Nebbu-chadrena'zzar havia até mesmo inventado um novo rei para Judah, mudando o nome de seu tio, o meio-babilônio Mahanias, para Zedeqias, forçando ao povo que dominava um falso rei, numa nova tentativa de quebrar-lhes o orgulho.

Zedeqias, mesmo sendo meio-babilônio, era sobrinho de Yoachim e filho de uma filha de Jeremias, nascida em Lebna, e Yahweh, cada vez mais irado contra Seu povo, observava atentamente os que o comandavam, de uma maneira ou de outra. O novo rei de Judah, ouvindo as palavras da mãe, que lhe narrava as profecias de Jeremias, seu avô, revoltou-se contra seu sobrinho Nebbuchadrena'zzar, dando-lhe o pretexto de que necessitava para a destruição de Jerusalém. Entre os novos aliados de Zedeqias estava o Faraó do Egito, que temia o poder de Nebbuchadrena'zzar, e necessitava de Judah como tampão entre seu reino e os babilônios. Depois de três anos de sítio, durante os quais a peste e a fome se instalaram cada vez mais profundamente nos corpos enquanto a incerteza sobre o futuro se abatia sobre as almas, Nebbuchadrena'zzar, livre dos exércitos egípcios que pusera em fuga, finalmente invadiu Jerusalém por uma brecha em suas muralhas.

Zedeqias pôde ver todos os seus filhos sendo assassinados antes de ter seus olhos perfurados pelos ferros em brasa dos carrascos de Neb-buchadrena 'zzar, realizando a profecia que dizia que ele iria à Babilônia mas não a veria. Depois, acorrentado a um Grande número de outros sediciosos, foi levado para a escravidão na grande Baab'el. Mais uma vez, Nebbuchadrena'zzar sabia escolher: entre esses escravos só se encontravam homens de grande valor, pois ele pretendia grandes obras em sua terra, tornando a Babilônia mais poderosa e mais rica. Os mais pobres, os mais fracos, os mais velhos e sem utilidade foram deixados para trás, nessa terra cada dia mais despida de sua força, para que vivessem da melhor maneira possível, orando a seu Deus e esperando que a morte lhes viesse em breve, como uma bênção.

Ainda era pouco: era preciso destruir o objeto no qual se concentravam as energias poderosas desse Yahweh, que mesmo à distância ainda exibia grande poder. A glória da Babilônia exigia que Yahweh fosse desenraizado do centro do mundo: para que o poder dos deuses da Babilônia se erguesse sobre todos os outros, era necessário que os de Judah perdessem definitivamente a seu deus, e para isso urgia arrasar o Templo que Yahweh um dia habitara.

Nebbuchadrena'zzar poderia ter convocado todos os seus soldados, que em um instante rojariam ao chão as paredes do Templo que Salomão erguera: mas isso era pouco. Era preciso que os restos desse templo fossem transformados em fumaça olorosa, que subisse pelos céus para as narinas de Marduq, e que ele e apenas ele pudesse desses restos usufruir, tomando de Yahweh os resíduos do que um dia havia sido Seu. Por isso, convocou seu cozinheiro-chefe, o brilhante Nabbu'zzardan, exigindo dele um banquete divino, que marcasse para sempre a vitória dos deuses da Babilônia sobre o deus de Judah.

Nabbu'zzardan obedeceu fielmente a seu senhor: o Templo de Jerusalém foi posto abaixo, para que cada pedaço de madeira que nele houvesse alimentasse as fogueiras do grande banquete em honra a Marduq e seu protegido Nebbuchadrena'zzar. Assim foi feito, e durante três dias e três noites a fumaça subiu em grandes rolos pelo céu. Feliz com o cumprimento de suas ordens, Nebbuchadrena'zzar deu a Nabbu'zzardan o título de Grande General de seus exércitos. Os escravos que seguiam para a Babilônia, olhando por sobre os ombros caídos, puderam ver esse sinal de sua derrota mesmo estando a grande distância de sua terra natal. E choravam copiosamente, recordando-se de uma outra coluna de fumaça que um dia os tinha protegido da fúria de um Faraó egípcio.

O banquete foi o coroamento da vitória de Marduq e Nebbu-chadrena 'zzar sobre Yahweh e seu povo: entre os escravos, o velho Jeremias, profeta que antes exortara os de Judah à luta contra o inimigo, agora pedia a todos que se curvassem à vontade de Yahweh, e que em seu cativeiro na Babilônia vivessem em paz e amizade com seus algozes. Era um pedido difícil de ser atendido, mas Jeremias lembrava a todos a promessa de Yahweh: depois de dez semanas de anos de escravidão, o povo escolhido seria de novo senhor de sua terra e de seu destino. Mas para que isso acontecesse era preciso que o Templo, agora destruído, fosse reerguido em toda a sua Glória e Beleza. A promessa de setenta anos de jugo era o preço que Judah pagaria pelos erros de seus filhos, mas a reconstrução do Templo trazia em si a promessa de novos dias de leite e mel, pois Yahweh estaria de volta entre os Seus, habitando a Cidade Santa de Jerusalém, em sua Casa por sobre a Pedra, umbigo do Universo, Fonte de toda a Força, como já o fizera quatrocentos anos antes.

Havia apenas que preservar a Justiça. Epara isto havia que existir, como em todos os tempos desde a Criação, Trinta e Seis Homens Justos, sobre os ombros dos quais o Universo estivesse sustentado. Nenhum desses Trinta e Seis Homens Justos chega algum dia a saber que o é, mas cada uma de suas ações, ainda que sem sentido imediato, tem esse objetivo: preservar a Justiça.

Esta é a história de um desses homens.

 

 

Nunca prestei atenção ao fato de que era escravo, durante minha infância e juventude na Grande Baab'el. Nossa vida em meio a essa imensa cidade de grandes terraços e varandas à beira do Eufrates era vivida sem um segundo de preocupação com o passado ou o futuro. Só o presente importava: poucos viviam para o passado de uma Jerusalém que o tempo se encarregara de desfazer, e meu desinteresse pelo que tínhamos sido era absoluto. Falo em meu nome e em nome dos outros que conheci, por saber que o que andava em suas mentes e almas era o mesmo que andava na minha: a completa inconsciência de nosso próprio valor, numa vida sem anseios nem desejos, a não ser aqueles que vão da mão para a boca, no dia-a-dia de quem vive nas ruas.

Eu e meus companheiros éramos gente da rua. Tínhamos casa e família, mas num mundo em que a vida era cada vez mais vivida do lado de fora das moradias, onde tudo se fazia, indo-se ao interior delas quase que exclusivamente para dormir, não era de admirar que nós, nova geração de babilônios, preferíssemos estar ao relento, cada vez mais longe dos que nos haviam antecedido e mais perto daquilo que acreditávamos ser nosso destino, sem realmente acreditar nele, nesse tempo risonho e franco em que somos todo-poderosos e nem os deuses ou a morte têm coragem de nos enfrentar. Quando jovens, sentimo-nos capazes de tudo, e nada nos pode vencer em combate, seja o Dilúvio ou uma intervenção direta dos próprios deuses.

Era um mundo maravilhoso, a Baab'el de minha juventude: dos grandes terraços à beira dos rios que a cercavam, víamos os canais de todos os tamanhos, larguras e profundidades, pelos quais circulavam sem parar as embarcações dos mais diversos tipos, levando e trazendo as riquezas com que a Natureza nos aquinhoava e as pessoas de todas as raças que nos formavam, entre palácios que se erguiam a alturas inacreditáveis, como diziam os que já haviam viajado pelo resto do mundo. A cidade se apoiava em incontáveis colunas de tijolos cozidos, moldados no rico barro que o Tigre e o Eufrates depositavam no mar, todas de grossura impressionante. Por várias vezes já havíamos tentado, de mãos dadas, abarcar a circunferência de algumas delas, em vão: meu amigo Daruj sempre procurava uma coluna que pudesse ser abraçada por nós, mas mesmo quando conseguíamos juntar tantos meninos quanto os dedos de cinco mãos, a tarefa se mostrava irrealizável. Os tijolos de que eram feitas eram cozidos quase que à beira do mar na cidade de Qornah, que muitos anos antes fora banhada pela água salgada: os dois rios, ao mesmo tempo em que iam se aproximando um do outro, derramavam tal quantidade de lama em sua foz, que empurravam o mar para mais longe, fazendo de Qornah uma cidade mais interiorana a cada dia que passava. Os operários que faziam esses tijolos tinham trabalho duplo: primeiro os moldavam em formas de madeira, sendo seguidos pelos escribas do barro, que traçavam em sua superfície os sinais determinados pelos sacerdotes, para abençoar as peças da construção de seu Império, perpetuando sua história em cada edifício erguido. Depois de secos ao sol, os tijolos eram cozidos em grandes fornos alimentados pela nafta de que o território era quase todo encharcado, e uma vez esfriados eram colocados em formas de tamanho um pouco maior, para que em volta deles fosse moldado um novo tijolo, como uma casca protetora, novamente garatujada pelos escribas e novamente posta a secar e cozer, indo depois ser depositados nas grandes barcaças que os levariam através dos canais a todos os lugares onde fossem necessários.

O grande Império da Babilônia era como esses tijolos, permanentemente dividido entre a aparência e a essência das coisas. Nós, seus habitantes, não importa de onde tivessem vindo nossos pais ou a que deuses eles prestassem homenagens, também éramos como esses tijolos: nosso interior estava oculto por uma casca mais ou menos grossa de hábitos e costumes. Enquanto jovens a casca protetora era fina o bastante para que o que nela se inscrevesse ficasse também marcado em nosso interior, mas com o passar dos anos a casca se endurecia, cristalizando-se em modos e maneiras mais ou menos idênticos, e os de Baab'el nos tornávamos um conjunto de identidade quase infinita, da qual acabávamos por nos orgulhar. A necessidade de destaque individual que os seres humanos possuem era entre nós perfeitamente dispensável, pois a vida em Baab'el era direcionada exclusivamente para o que trouxesse ganho e fortuna, e esse padrão de igualdade se media pela forma como exibíamos os sinais de riqueza que nos igualavam a todos os outros.

Re'hum, nosso companheiro de cara fechada e sobrancelhas cerradas, sempre acompanhado pelo fracote Sam'sai, ouviu dizer que no terraço do mercado, à beira do Eufrates, havia chegado uma enorme partida de braceletes de ônix e lápis-lazúli vindos do Egito. A moda nessa temporada em Babilônia era o uso de incontáveis braceletes, e todos, homens, mulheres, crianças, até mesmo macacos, cães e aves de estimação, os usavam. Aquilo que antes servira para diferenciar os ricos dos pobres tornara-se uma constante para todos, igualando-nos no modo babilônio de ser: até que essa moda ganhasse o descaso dos poderosos, que imediatamente inventariam outra coisa para colocar em seu lugar, destacando-se dos que possuíam menos que eles, nada era mais importante que os braceletes, pois todos, sem exceção, tinham que tê-los, não sendo possível viver sem eles.

Re'hum era ousado, e nos propôs:

— Vamos, amigos! Quem somos nós para dispensar um momento como este, em que nosso coração baterá mais forte, em que o sangue correrá mais depressa em nossas veias, em que nossa vida estará um pouco mais próxima à dos deuses que olham para nós?

Sam'sai, fraco e agitado, pulou em nossa frente como um alucinado:

— É a oportunidade de fazer com que os deuses invejem a nós, simples mortais. O que nos custa gastar nossa manhã em uma expedição ao cais, onde conseguiremos pelo menos alguns braceletes para nosso próprio uso? Pelo menos para nosso uso... — adicionou, com um ar de grande cinismo, que nos fez rir despregadamente. — É preciso dizer mais?

Pronto, estávamos convencidos: seria uma deliciosa aventura, com a qual nos faríamos um pouco mais homens, como era nosso projeto desde que nos uníramos pela primeira vez. Era comum entre nós essa união em torno de alguma coisa inesperada, alguma aventura perigosa que nos desse a sensação de sermos todo-poderosos, na medida de nossa arrogância juvenil.

Yeoshua, meu companheiro de bairro, com seus cabelos encaracolados, sempre tremia mais que todos nós quando uma aventura dessas se aproximava. No seu caso, era apenas medo, e ele aprendera a confessá-lo sem hesitar. Nós, ao contrário, só dizíamos "Vamos!, e o tremor de nossas mãos, lábios e pernas era o da excitação ante o perigo, como da primeira vez em que nos juntáramos numa dessas excursões, para nos apoderarmos do que não nos pertencia. Essa sensação de poder sobre o futuro era o que buscávamos, mas cada vez que a alcançávamos ela se desfazia tão rapidamente que imediatamente procurávamos outra maneira de renová-la. Nosso grupo, exatamente igual a tantos outros grupos de jovens aventureiros que faziam das ruas da Grande Baab'el o seu território de lutas e diversões, era de tamanho variável, com um núcleo que nunca mudava: além de mim e de Yeoshua, vindos do bairro dos alfaiates, o bairro onde moravam e trabalhavam quase todos os que tinham famílias nascidas em Judah, também incluía: o mal-encarado Re'hum e seu duplo-oposto invariável, Sam'sai, ambos do bairro dos tintureiros, onde todos tinham vindo da Samaria; Mitridates, um também jovem samaritano cuja família vinda de Soqo chegara havia pouco tempo à Grande Baab'el, cheio de talento para contas e valores; e o filho do mais importante tapeceiro persa da cidade, o ousado Daruj, nosso estrategista, general, lutador principal, nossa garantia de sucesso caso alguma coisa corresse mal.

O medo de Yeoshua, por incrível que pareça, era o que nos impulsionava para coisas cada vez mais ousadas, das quais sempre ríamos muito, depois que o perigo passava. Combinamos para a madrugada do dia seguinte o Grande Castigo aos Egípcios, como meu vizinho Yeoshua havia denominado nossa aventura, e voltamos para nossas casas, ao norte da grande cidade, às margens do canal denominado Che'bar, limite final de nosso bairro, chamado de teVaviv pelos de Judah que lá viviam. A noite já caía sobre a cidade de Marduq, deus de Baab'el, o maior de todos os deuses da Babilônia. Nossos passos, antes tão ágeis e determinados, começaram a se tornar hesitantes, indecisos, fracos e arrastados. Qualquer um perceberia perto de que casa estávamos chegando, já que seu morador entrava em mutismo quase absoluto, deixando-se ficar para trás até desaparecer pela porta da casa de sua família. Era sempre assim, e eu hoje compreendo que, por mais diferentes que fôssemos, nos unia a sensação de que em nossas casas não havia quem nos amasse ou nos compreendesse.

Eu e Yeoshua morávamos perto um do outro, no bairro dos alfaiates, e quando Daruj começou a arrastar seus pés, deixando gradativamente de falar conosco quase no limite entre nosso bairro e a rua onde vivia com seus pais, eu e Yeoshua percebemos que o pedaço mais desinteressante de nossa vida estava por começar. As estrelas no céu, os cheiros das comidas preparadas nas casas, as conversas, risos e imprecações que tomavam o ar marcavam a travessia dessa fronteira entre a deliciosa vida agitada da maior cidade do mundo e a entediante vida familiar que se aproximava a cada segundo. Eu não gostava disso, portanto afivelei em minha face a máscara do tédio absoluto, única defesa contra o que minha família significava e que eu chegava quase a abominar. Tudo o que me fazia feliz estava fora de casa: dentro dela, eu só encontrava os sinais de uma vida sem sentido, na nostalgia de um lugar que já não existia. Os momentos em que minha família chorava por uma Sião sem existência real só conseguiam me entediar, e por isso arrastei meus pés o mais lentamente que pude, cruzando o limiar dos dois mundos. Quando percebi, já estava dentro da casa onde me sentia o mais infeliz dos moradores.

Era o Shabbath, aquelas horas sagradas entre dois pores-de-sol durante as quais nada se fazia, nada se comia, nada se realizava, imitando um deus que fizera o mundo em seis dias e descansara no sétimo. Sobre a mesa estavam acesas as lamparinas de azeite, e meu pai, a cabeça coberta por seu manto, balbuciava suas infindáveis orações. Em volta dele, minhas irmãs, meu irmão Shimei e minha mãe, ungidamente contritos, ocultavam suas faces nas mãos, balbuciando a oração que eu já não suportava mais ouvir:

— Oh, Yahweh, junto aos rios da Babilônia, nos assentamos e choramos, lembrando-nos de Sião...

Minha família se entregava às emoções das lembranças que lhes davam a certeza de outra vida, outro mundo, enquanto a mim só interessava o mundo presente, a rica Baab'el de minhas aventuras. Olhos fechados, braços caídos ao longo do corpo, eu sequer fingia prestar atenção aos resmungos de meu pai: minha mente estava verdadeiramente longe de tudo, esperando ardentemente que se satisfizessem com o que eu lhes podia dar, minha presença e minha passividade.

Quando as orações terminaram, meu pai me olhou com a sisudez que lhe era peculiar, sem proferir uma palavra sequer. Por motivos que nunca pude vir a perceber, eu fora criado no silêncio quase absoluto, na exigência extremada, na obediência mais estrita. Meu pai nunca me estendera a bênção de sua mão carinhosa ou de sua palavra doce, como eu o via fazer com minhas irmãs e meu irmão mais novo. Eu acabara aprendendo a ler em seu olhar sempre frio as coisas que ele me pretendia fazer saber, as admoestações, o constante desagrado, os cada vez mais raros elogios. Um abismo se cavara entre nós, e eu considerava meu pai o responsável por ele, não entendendo o que pretendia de mim, nem percebendo o quanto eu mesmo colaborava na erosão do terreno fértil entre nós. Não havia a menor possibilidade de uma ponte que nos unisse: meu pai só atirava cordas em direção ao passado, enquanto eu firmava minha vida cada vez mais no futuro. O tempo, hoje sei, não existe: mas eram as duas pontas opostas dessa coisa não existente o que nos afastava um do outro. Enquanto minhas irmãs e irmão se colocavam em volta dele para ouvir as histórias de um povo outrora grande, eu esperava apenas que me esquecessem, ansiando mais uma vez fugir para a grande cidade que nos cercava, pois a casa de minha família era o único lugar da terra onde eu era completamente infeliz.

Meu pai, Salatiel, era rosh'ha'golah dos judeus que moravam na Grande Baab'el, capital do Império da Babilônia: sendo um dos mais velhos entre os poucos que haviam sobrevivido aos massacres de Nebbuchadrena'zzar e de seus sucessores no comando desse império, tinha toda a comunidade de Judah reunida à sua volta. Os homens, as mulheres, as crianças, e principalmente os velhos, estavam sempre esperando de meu pai a palavra profética que lhes garantisse num futuro muito próximo o retorno à terra que Yahweh nos dera, onde viveriam para sempre em comunhão com Ele. Cabia a meu pai manter viva a tênue chama de esperança da volta a Sião. Não havia nada que me interessasse menos que isso: por que ansiar pelo que não existe, quando a Bela e Grande Baab'el ali estava, a meu alcance, e tudo o que eu precisava fazer era estender o braço e apanhar o que desejava? A língua falada nesses momentos também me agastava profundamente: eu não era um desses de Judah, eu não queria ser um desses de Judah, eu nunca seria um desses de Judah. Por mais que os sons fossem familiares, por tê-la ouvido durante toda a minha infância, o que a Babilônia me ensinara quando eu caíra em suas ruas pela primeira vez era mais do que a língua de um povo: era o meu prazer. Eu preferia indubitavelmente falar a língua franca do brilhante povo de Baab'el, dono da imensa torre que um dia tocara os céus, e que se podia ver de qualquer ponto da cidade. Um povo que ergue uma torre que toca os céus é muito mais interessante que um povo que pretende apenas tocar uma terra morta, falando uma língua também morta que eu cada vez esquecia mais.

Meu pai contava mais uma de suas intermináveis histórias sobre Yahweh e Moisés nas terras do Faraó. Era insuportável: lendas sem sentido, inventadas por alguém de grande e fértil imaginação, que com elas tentava explicar não só a nossa grandeza em face da adversidade, como também nossa pequenez diante de um deus que nos impusera sermos o foco de toda a Sua atenção. Minhas irmãs e irmão, de idades diversas, ouviam atentamente suas palavras, e eu só desejava que ele se calasse. Meu pai, no entanto, nunca se calava, até que tivesse enchido nossa cabeça com tudo o que queria, e sempre em excesso:

— Moisés estava apascentando o rebanho de seu sogro Jeter, e indo atrás das ovelhas acabou por subir o monte Horeb muito acima de qualquer lugar que já conhecesse. Entre as pedras, num campo de areia branca, estava um arbusto em chamas. Era um fogo que ele nunca havia visto, pois ardia sem queimar, e o arbusto mantinha suas folhas verdes em meio às labaredas. Era Yahweh que aparecia a ele dessa forma, já que nenhum homem pode vê-Lo como realmente é e continuar vivo.

Recordo vivamente da figura de meu pai, com a cabeça coberta, os olhos semicerrados, entoando a história sem sentido que não me interessava em absoluto. A visão de seu rosto enevoado por lembranças de outros tempos está até hoje gravada indelevelmente em minha memória:

— E Yahweh disse a Moisés: "Eu vi a miséria de meu povo que está no Egito, ouvi seu clamor por causa de seus opressores, pois Eu conheço as suas angústias. Por isso, desci ao mundo que criei a fim de libertá-lo da mão do Faraó. Vai, pois, que eu te enviarei ao Faraó, para libertar meu povo, os filhos de Israel." E Moisés disse: "Mas, Senhor, quem sou eu para ir ao Faraó e libertar os filhos de Israel?"

Alguma coisa nessa história não soava bem: por que esse deus daria uma missão tão importante a um simples pastor de ovelhas? Meu irmão e irmãs bebiam as palavras de meu pai com verdadeira fascinação, enquanto eu, oculto nas sombras do aposento, tentava compreender o que tornava essas tolices matéria de tanto interesse. Um muxoxo escapou de meus lábios, e meu pai, erguendo quase que sem sentir os seus olhos baços pela idade, adivinhou-me dentro da sala, minha cabeça mal coberta, meus cabelos cacheados, as roupas que tentavam imitar as dos grandes senhores de Baab'el, sandálias sujas da poeira avermelhada das ruas que eram meu território. Por que me fazia sentir como se eu fosse o inimigo, o traidor, o não-judeu, com seu olhar recriminador? Sua voz continuou contando a história, como que dirigida exclusivamente a mim:

— Moisés então perguntou a Yahweh: "Mas quando eu for ao povo de Israel e lhes disser que o Deus de nossos pais me enviou, hão de me perguntar qual é o nome desse Deus. O que lhes responderei?" E Yahweh disse a Moisés: "Eu Sou Aquele que Eu Sou."

Não pude deixar de rir: que resposta mais sem sentido a desse deus estúpido! O olhar de meu pai me alcançou através da sala com a força de um relâmpago, e eu tive que enfrentá-lo, com o queixo erguido e o peito estufado, como um garnisé que desafiasse o galo mais velho em uma capoeira, pelo direito de senhorio. Por sorte, minha irmã Abisag, sem notar o conflito que se avizinhava, perguntou, com voz clara:

— Pai, por que Yahweh não pode aparecer como é? Meu pai, sem desviar os olhos de mim, respondeu:

— A visão de Yahweh está acima da capacidade dos homens: nada que é vivo pode vê-Lo e continuar vivo. Como a mente das criaturas pode pensar em compreender Aquele que não tem nem princípio nem fim?

Eu ri alto: um deus que diz ser sem dizer o que é já me parecia estranho, quanto mais um que alega não ter nem princípio nem fim! Tudo no mundo tem princípio e fim, e deuses assim tão diferentes de suas criaturas não podiam mesmo conseguir mais que a destruição de sua obra. Era certamente por isso que o deus de meu pai agora era apenas o deus de um povo vencido, do qual eu me recusava a ser parte, pelo menos enquanto Marduq permanecesse sólido no alto da grande torre de Baab'el.

Salatiel, meu pai, ergueu-se de seu assento com fogo no olhar. Durante um instante pareceu crescer, e se avolumou sobre mim, mesmo sendo apenas um velho com um palmo a menos de altura que eu, violentamente movido por sua crença sem sentido num deus inútil. Ergueu suas mãos para o céu, gritando:

— O, Senhor meu Deus.

Era o que ele sempre fazia: a isso se seguiria uma peroração sem objetivo definido, incluindo uma praga que mais dia menos dia cairia sobre a cabeça do iníquo que era eu. Nada me cansava mais que a repetição exaustiva dessas tolices, e abri minha boca num bocejo imenso.

Meu movimento foi interrompido pela rápida mão de meu pai, que me esbofeteou em plena face com toda a força de que ainda era capaz. Ninguém na sala moveu um músculo, paralisados todos por seu inesperado gesto. Eu, atônito, fixei meu olhar em sua face encanecida, enquanto um movimento de ódio sem tamanho subiu de meu coração até minha garganta, escapando por entre meus lábios como um grito animal. Naquele momento, éramos dois homens que se enfrentavam, não pai e filho: o berro que dei fez tremer a todos, menos a ele. Olhos nos olhos, sua mão ainda erguida no resquício do gesto que me havia ferido a face que ardia, minha boca aberta no final do fôlego que eu expelira sem pensar, estávamos transformados em pedra, estátuas vivas feitas de incompreensão e desafio.

O impasse se resolveu pelo choro de Shimei, meu irmão mais novo, assustado com o que nunca havia visto. Meu pai abaixou a cabeça, derrotado: o chefe dos judeus da Babilônia, rosh-ha-golah de todo um povo, havia esbofeteado seu primogênito. Com as lágrimas a querer irromper de meus olhos, mordendo a língua e travando os lábios para que o choro não me enfraquecesse frente a meu mais terrível inimigo, recuei em afrontoso silêncio, sem tirar meus olhos dele, até sentir contra minhas costas a madeira da porta da rua. Virei-me para abri-la, e ouvi às minhas costas a voz agora trêmula de meu pai:

— Se saíres por essa porta em pleno shabbath sem minha ordem... Não ouvi o resto: abri a porta, única reação que podia me dar ao luxo de ter sem que minhas faces molhadas revelassem o turbilhão de emoções que me afogava a alma, e mergulhei desgovernadamente nas ruas, único lugar onde a alma ansiosa que habitava dentro de mim podia se esquecer de onde eu vinha e o que me acontecera. Antes que meu pai dissesse que eu não era mais seu filho e que estava morto, antes que rasgasse as vestes como tantas vezes eu o vira fazer por esse ou aquele que tivesse rejeitado entre seus seguidores, eu abria mão dele. Nada do que ele queria dar me interessava, nada do que ele tinha a dizer encontrava eco em minha vida. Eu me libertava. Não entendia o porquê do choro que me encharcava a ponta do manto cada vez que eu o passava pelas faces. Pois se estava livre, e agora era meu próprio dono, e o mundo grandioso da Grande Baab'el era inteiramente meu!!

Se soubesse nesse dia aquilo que me aguardava neste mundo, talvez tivesse recuado para a casa de meu pai, nela me abrigando para todo o sempre. Mas eu precisava seguir o caminho que se me apresentava: completei o gesto e fechei atrás de mim a porta dessa casa, onde agora meu corpo não habitava mais, ouvindo os gemidos de desespero dos que haviam ficado dentro dela. Nesse exato momento, como que por magia, o mundo de Judah desapareceu de dentro de mim: costumes, histórias, a própria língua escorreram para dentro de um buraco negro sem fundo, repentinamente se apagando como se nunca houvessem existido.

Andei algumas braças saboreando o fato de estar finalmente livre do jugo de meu pai, sabendo que ele estava rasgando as roupas que trazia, confirmando minha morte entre os de Judah, a quem eu desejava nunca ter pertencido. Os sons e cheiros do centro de Baab'el, onde ficavam os palácios dos grandes, à distância desse teVaviv onde morávamos, me atraía como o mel às abelhas, e eu, respirando profundamente a minha primeira noite de liberdade absoluta, parei num beco ao lado da casa dos pais de Yeoshua. Assoviei a primeira frase da canção que sempre cantávamos antes de nossas aventuras, nosso código de chamada e reconhecimento. Meu amigo, com a cara estremunhada, debruçou-se sobre o muro do terraço, onde dormia ao ar livre sob o dossel de pano grosso. Apertando os olhos, Yeoshua finalmente me reconheceu e, entre a bruma do sono que o assomava mais que a qualquer um de nós, arrastou-se pelas paredes abaixo, vindo a bater os pés no chão perto de mim.

Sendo íntimos, nem nos saudámos. Por estar sempre juntos, falávamos uma língua silenciosa, feita mais de olhares e resmungos que de palavras, e nos entendíamos bem. Na verdade, Yeoshua me entendia bem melhor que eu a ele: pequeno, olhos muito escuros e cabelos en-caracolados, sempre revoltos e grudados na fronte pelo suor que lhe escorria das faces e perlava de gotas seu nariz redondo e sardento, ele tinha a capacidade inata de perceber com antecipação o que estava por acontecer. Não foram poucas as vezes em que nossas aventuras, marcadas para o fracasso por nossa própria inexperiência, sofreram uma reviravolta positiva graças a algum aviso que Yeoshua nos dera. O medo que ele sentia de todas as coisas se somava à sua capacidade de prever o resultado delas, sendo o resultado disso a mais sábia das premonições, com que ele nos brindava nos momentos certos, tornando-o companheiro perfeito para o sucesso de tudo o que fazíamos. Eu era um palmo maior que ele, e nessa época meu lábio superior e minhas faces morenas já exibiam os primeiros sinais da cerrada barba negra que se tornaria minha mais forte característica física. Passei o braço sobre o ombro de Yeoshua, quase o espremendo:

— Acorda, cãozinho. Por que perder tempo dormindo, quando as ruas de Baab'el nos aguardam, para nos brindar com tesouros? Dormir é perda de tempo: deixemos para dormir depois de velhos, quando finalmente estivermos gastando a fortuna que hoje amealhamos!

— Se sobrevivermos, se amealharmos, se nos permitirem aproveitar essa fortuna ilusória em que só tu e o mal-humorado Re'hum acreditam. — disse Yeoshua, entre um bocejo e outro. — Nunca conseguimos mais do que o estritamente necessário para a mesma noite, e olhe lá! No dia seguinte nada resta, fazendo-nos precisar de mais uma aventura...nesse passo, nunca ficaremos ricos...

— Ficaremos! Não existe em toda Baab'el grupo mais valoroso que o nosso!

Yeoshua, andando a meu lado, coçando a cabeça e o peito com as pontas dos dedos, soltou uma grande risada:

— Não exageremos, por caridade! Qualquer ladrãozinho manco do porto, com apenas uma das mãos e de olhos fechados, é capaz de mais ganhos que todos nós juntos! Não consigo suportar vaidade sem fundamento. Não somos nada, amigo. Somos apenas o rebotalho da escória do que foi rejeitado pela cidade! Meninos do bairro errado tentando ser o que não podemos ser!

Foi minha a vez de desmanchar mais ainda seus cabelos:

— Pequeno cabrito, se não fosses tão medroso, juro que te dava uma coça! Mas és bem capaz de começar a gritar e acordar toda Baab'el com teus gritos! Não crês em nosso poder?

— Poder? — Yeoshua, agora plenamente acordado, gargalhou alto, acordando em algum lugar um cão, que acordou outro um pouco mais longe, e mais outro ainda além. — Olha este vasto mundo do qual a grande Baab'el é apenas uma parte, e cujo teto abriga incontáveis estrelas. Que poder é o nosso perto do poder que tem Aquele que criou tudo isso?

Yeoshua de vez em quando se tornava uma cópia em ponto pequeno de meu pai. A súbita lembrança de Salatiel me fez apertar o cenho, apagando o bom humor que eu vinha mostrando até então. Meu amigo percebeu e me perguntou o que acontecera. Contei-lhe então o mais rapidamente possível o que tinha se passado, e Yeoshua fechou os olhos e sacudiu a cabeça, preocupado:

— Um pai erguer a mão para um primogênito é quase tão grave quanto um primogênito erguer a mão para um pai. Mas a verdade é que, sendo teu pai, ele tem alguns direitos sobre ti.

— Nunca! — esbravejei. — Os velhos e estúpidos hábitos da terra de Judah não valem nada! Somos de Baab'el! Somos os senhores do mundo! Vivemos de hoje em diante e sempre para a frente! O futuro é o único objetivo possível, já que o passado simplesmente passou!

— Não é bem assim, meu amigo! O passado nunca se vai! Nada que os homens fazem em seu tempo sobre a terra, nenhuma verdade ou mentira, nenhuma maldade ou bondade alguma vez se apaga. Continua tudo aqui, entre nós, por menos que possamos perceber, e vive e trabalha através de tantas mudanças nas vidas de todos nós e nossos futuros!

— O passado é um sepulcro, Yeoshua!

— Não! O passado é o campo onde estamos plantados para viver e crescer! Eu não quero saber de nenhum futuro que quebre os laços com o passado! Não te enganes, meu amigo: por mais que queiras acreditar nisso, não somos senhores de nada, nem mesmo de nossas próprias vidas!

Minha gargalhada de escárnio pela exagerada frase de Yeoshua escondia minha tristeza: como tantas vezes antes, eu estivera pronto a jurar que nunca mais cruzaria a soleira da casa paterna, e como tantas vezes antes, a saudade da vida que lá se vivia ganhava cores agradáveis em minha memória e coração. Quando Yeoshua dissera que não queria saber de nada que quebrasse os laços com o passado, imediatamente comecei a me recordar dos raros bons momentos, e meu coração quase amoleceu. Quase, porque meu recuo não chegou a se concretizar: as ruas da Grande BaaVel à nossa frente desviaram minha alma do caminho de retorno, e eu segui em frente arrastando Yeoshua pela mão. Na Grande BaaVel, eu sabia, estava meu futuro, que não dependia de nada que o passado tentasse enfiar à força em minha vida.

Centro do mundo, pólo de poder, fonte de riquezas e prazeres para quem dela fosse habitante, BaaVel ocupava as duas margens do Eufrates, duplicando-se na direção do poente da mesma forma que a antiga e bela Nínive dos Dinastas assírios um dia se espelhara em ambas as margens do Tigre. A luz da lua cheia que boiava no céu era ofuscada pelas inúmeras luzes que brilhavam dentro das casas, palácios, hospedadas e tabernas de que a margem do Eufrates era coalhada, por cima das pontes que atravessavam esse rio, caminho preferencial de nossa vida: um enorme e constante movimento de homens, animais e cargas passava sem cessar de uma margem a outra, fornecendo aos palácios tudo aquilo de que necessitassem. De dentro dessas construções saíam risos e odores de lautos banquetes, e a música que cada um desses lugares produzia, feita de pedaços de todas as músicas do mundo conhecido, era a mais linda cacofonia de todas. Nada mais belo e fascinante, contudo, que as pessoas dessa terra maravilhosa, cada uma indiscutível símbolo do grande Império Babilônio. Eu me sentia parte dessa mistura infinitamente diversa e igual que sempre preenche os espaços dos grandes impérios, me achando tão parecido com nossos senhores babilônios, que, ao lado deles, ninguém saberia dizer verdadeiramente quem eu era. Como eu, havia egípcios, medos, persas, povos de Judah, da Samaria, da antiga Assíria, fenícios com a cor do sol e do sal em suas faces crestadas, os desconfiados romanos e seus eternos desafetos da Etrúria, os gregos de todas as ilhas exiguamente vestidos, e todos sempre acompanhados de suas fêmeas, cada uma delas a perfeita concretização de um sonho oculto, e todos sempre tão ocupados, e com tantas tarefas a cumprir para seu próprio deleite, que se podia dizer, sem medo de errar, ser a Grande Baab'el uma cidade que não conhecia o sono. Hoje percebo que éramos, sem exceção de um só, escravos dos babilônios: mas minha vontade só desejava essa deliciosa escravidão ao prazer sob todas as formas, de que a Grande Baab'el era prenhe.

A rua que descemos dava na beira do grande rio, murado de forma monumental pelas gerações e gerações de reis que haviam decidido fazer de Baab'el o maior e mais inexpugnável de todos os lugares. A muralha interna, de tijolos feitos do barro tirado pela abertura do grande canal, tinha sua parte superior algumas braças acima da externa, da qual qualquer um podia admirar a grandiosidade das obras que se repetiam por sobre as duas margens do rio, iluminadas aqui e ali por archotes feitos do betume que se aglutinava em grandes coalhos nas margens do Is, riqueza da cidade do mesmo nome, a oito dias de viagem da Grande Baab'el. Esse mesmo betume tinha sido usado como cimento entre as fileiras de tijolos das muralhas, grudando-os de tal forma que não havia maneira de separá-los uns dos outros, especialmente porque, numa variação da técnica egípcia de construção, a cada treze fileiras uma rede de caniços entretecidos reforçava a estrutura, tornando-a obra eterna. Pontes de madeira endurecida pelos vapores do betume e apoiadas em grossas colunas de tijolos de cada lado ligavam a muralha interna à externa, sempre coalhada de soldados do Império, que a percorriam de ponta a ponta, normalmente a pé, mas de vez em quando em grandes carros de guerra puxados por oito cavalos ágeis, disparando aparentemente sem destino pela estrada calçada que ficava no alto desse paredão, com o ruído de um trovão.

Foi na ponte pela qual passamos que vimos uma figura conhecida, sentada com o queixo entre as mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando sem piscar as manobras dos soldados e dos cavalos, que faziam curvas inacreditáveis nos espaços em .que a muralha se alargava em meio às casas de guarda, retomando sua corrida na direção contrária sem diminuir a velocidade. Daruj, filho do tapeceiro persa, estava como sempre apenas interessado em tudo que fosse a vida militar, e era capaz de esquecer-se de comer, beber e até mesmo respirar para não perder algo que lhe atraísse a atenção entre a azáfama da soldadesca. Nessa noite de ansiedade pela aventura da manhã seguinte, também ele não conseguira conciliar o sono, e ali estava, perdido em seus jovens sonhos de conquista, que acreditava poder realizar apenas com a força de seu braço ágil.

O pulo que demos à sua frente, gritando, quase o derrubou da amurada, mas quando nos reconheceu abriu um largo sorriso:

— Aventureiros! Já a postos para a batalha de hoje? Eu não consegui dormir. Vim aqui observar o movimento dos barcos no rio, e esperar que o sol nasça para vigiar ainda melhor o porto onde faremos o ganho deste dia. Se Re'hum crê que eu sou capaz de deixar a estratégia de nossa aventura para a última hora, está bastante equivocado. A vigilância insone e constante é sempre a melhor garantia. Um soldado como eu sabe disso.

Eu e Yeoshua, com o cinismo que se nos tornara natural, encarapitamo-nos um de cada lado de Daruj, cujos olhos brilhavam- Nossa cara estava séria, mas o olhar que nos demos mutuamente significava que Daruj mais uma vez se arrependeria de cada palavra que acabara de proferir.

— Ora, um soldado. — escarneceu Yeoshua. —Apenas uma ferramenta sem corte nas mãos de um general ambicioso. O general manda, o soldado obedece, e nunca pergunta por quê.

— Se perguntasse — adicionei eu, com um fingido esgar de desprezo na boca —, veria que nem ele sabe por que obedece nem o general sabe por que manda...

Daruj foi ficando furioso, seus olhos à luz bruxuleante dos archotes tomando a aparência dos de um réptil perigoso. Mas nossa súbita risada o desarmou: era assim que sempre fazíamos, e ele era a eterna vitima de nossas críticas à sua paixão incontrolável. Admirávamos a capacidade de amar a vida de soldado que ele tinha, e sabíamos que esse amor era verdadeiro. Daruj bufou comicamente para cada um de nós, dizendo:

— Quanto ao soldado, tendes razão: é apenas uma ferramenta, criado por ignorância ou pobreza ou vaidade, ou as três coisas juntas. Pensais que eu desejo ser apenas um desses, que vivem a vida entre ordens e contra-ordens, batalhas e curativos, vida e morte? Não: o que me encanta é saber que todos esses homens que vemos aí embaixo, executando com tanta precisão as suas manobras, são apenas a realização dos desejos de um general, de um comandante, de um rei. Quem obedece sabe apenas que deve obedecer: mas quem manda sabe perfeitamente o quê e por que está mandando. Para isso, é preciso conhecer a fundo a alma dos soldados, para que a ordem mais absurda seja aceita e obedecida sem hesitação. Eu sonho ser um deles, exclusivamente para um dia poder ser mais que eles.

Nossa gargalhada chamou a atenção de uma sentinela que espreitava o espaço entre as duas muralhas abaixo de nós e que, assustada com nossa súbita alaúza, só pôde gritar e brandir sua lança, batendo-a com estrépito no peitoral de metal que lhe cobria o torso. Ainda rindo, mas com a pressa que um susto sempre causa, descemos o mais rapidamente possível pelas colunas de tijolos, colocando os pés nos espaços que incontáveis outros pés haviam cavado em forma de escada na sua superfície, baixando vertiginosamente para o espaço escuro que ficava entre as duas muralhas, no qual tínhamos o hábito de nos ocultar, já que nem mesmo o mais claro dia de sol conseguia dissipar as sombras que ali vicejavam.

Nesse lugar à margem da margem, entre dois mundos de valores tão diversos, estávamos na verdade em uma paupérrima imitação da Grande Baab'el que nos circundava. Ali estavam os fundos das casas que tinham sido construídas à beira do Eufrates, nas quais os mais ricos e poderosos entre os poderosos e ricos de Baab'el habitavam: pelas portas de madeira e bronze, entre montes de lixo apodrecido, escapavam os sons de suas diversões. Entre esses espaços nos alicerces da muralha interna de Baab'el se haviam criado cópias empobrecidas de tudo que os poderosos da grande cidade haviam erguido, e era nessas imitações baratas da riqueza da Babilônia que eu e meus amigos, crentes no prazer absoluto, nos confraternizávamos, usufruindo dos restos de que os poderosos abriam mão, em seu infinito desperdício. Repetíamos seus gestos, seus hábitos, suas diversões, tudo deformado pela ótica da pobreza que nos cercava e na qual nos mantínhamos equilibrados, achando estar perto do poder pela imitação, sem perceber que quanto mais perfeita ela fosse, mais afastada dele nos manteria. Iguais a toda gente pobre que não sabe o quanto é pobre, imitávamos sempre e da pior maneira possível os hábitos dos que nos subjugavam, encontrando nisso um prazer que hoje não sei descrever, mas que era tão real e verdadeiro quanto as trevas em que nos movíamos.

 

A lama da beira do Eufrates, endurecida pelo uso constante e pelas incontáveis fundações de tijolos erguidas umas sobre as outras a cada rei que reconstruíra Baab'el em maior magnificência, era o chão desse beco entre muralhas. Aí onde nenhuma réstia de sol batia, a umidade pantanosa da terra se entranhava fedorentamente em tudo, no espaço entre as duas muralhas de Baab'el. Era o mais forte dos perfumes, se é que assim posso chamar o odor do qual nunca me esquecerei, ainda que viva mil anos: a ele se juntavam o do lixo e dos dejetos humanos, das comidas em decomposição, tudo isso ligado pelo inesquecível cheiro da pobreza, marca absoluta do território onde nos movíamos, acreditando-nos livres por aí estar.

Chegamos à porta da Taberna do Boi Gordo, mal e mal iluminada por duas lâmpadas de azeite barato, presas em buracos das paredes. Lá dentro, falsamente protegida pela escuridão, fervia a ralé de Baab'el, com a qual nos misturávamos todas as noites em busca da felicidade, sem perceber que isso era o que ali menos havia. Os freqüentadores eram o que a cidade tinha de pior: como os ricos, a quem sempre tencionavam imitar, também se organizavam de forma hierárquica, obtendo grande satisfação nesse arremedo de aristocracia. No fundo, onde o chão se erguia formando alguns degraus, algumas dessas pessoas se espalhavam em velhos assentos jogados ao lixo pelos donos originais, e que mesmo cambaios serviam de descanso e mesa de comer. A seus pés espalhavam, derramando-se pelos degraus, aqueles que os ame adulavam em busca de comida e bebida, como cães mantidos em estado de permanente inanição.

A dona da taberna, mulher como todas as siduris que comandavam as tabernas da Grande Baab'el, era quase um boi de tão gorda, à frente de uma gigantesca estátua babilônia construída com os próprios tijolos da parede onde estava: seu corpo sobre o sofá era quase tão grande quanto o corpo da estátua, representada lateralmente, com pernas de touro, corpo e rabo de leão, asas de águia e uma cabeça de rei assírio de barbas frisadas. Alguém, de extrema e cruel habilidade, rasgara na superfície dos tijolos que formavam a face desse rei um riso cruel e deformado, transformando-o em alguma coisa mais sórdida do que já era. Mas nada nem ninguém era tão sórdido quanto a senhora desses domínios, cuja atenção os freqüentadores insistiam em atrair, aos gritos de:

— BePCherubl Bel'Cherub!

Bel'Cherub era a rainha daquelas pessoas, que lhe davam mais atenção que ao próprio Belshah'zzar, atualmente ocupando o trono em Baab'el, enquanto seu tio Nabuni'dush flanava por perto de Teimah. Sempre se presta obediência ao poder mais próximo, e este monstruoso ser que um dia fora mulher, a face tão distorcida quanto a da estátua às suas costas, era o foco dos olhos de todos os que a cercavam. Comia de forma desordenada, servindo-se de todos os pratos que eram postos à sua frente, de cada um tomando uma ou duas mordidas e logo afastando o alimento, para que o próximo, que já lhe chamava a atenção, fosse tratado da mesma forma. Bel'Cherub, rainha dos subterrâneos de Baab'el, abandonava cada ave assada, cada perna de carneiro, cada prato de tâmaras cristalizadas, cada pedaço de carne de búfalo e de pão, e este era imediatamente repartido aos gritos por seus acólitos famintos, que o dilaceravam mais desordenadamente ainda, numa fome tão grande quanto o desperdício que Bel'Cherub exibia. Os sucos e molhos desses alimentos engordurados escorriam pela mal frisada barba postiça que todas as proprietárias de tabernas em Baab'el usavam, empapando a orla de sua túnica, tornando o tecido sobre seus gigantescos seios quase translúcido, não fosse a sujeira que nele se entranhava. Os olhinhos pequenos, redondos, escuros, eram como os dos porcos que em Baab'el se criavam em meio ao lixo, e seu maxilar projetado para a frente, exibindo dentinhos serrilhados por sobre um lábio inferior inchado, acentuava ainda mais essa semelhança. BeFCherub era a rainha da ralé, e exigia de cada um de seus súditos o mesmo respeito que qualquer poderoso exige.

Havíamos chegado a esse lugar quando, depois de nossa primeira aventura arriscada, o roubo de uma carga de tecidos fenícios que nos deixara o coração saltando na garganta, descobríramos que o que roubáramos precisava ser trocado por dinheiro para valer alguma coisa. De indagação em indagação, acabamos caindo nessa taberna, onde a gigantesca Bel'Cherub pontificava, e num primeiro momento creio ter sentido mais medo que o próprio Yeoshua, quando Re'hum, nosso mal-humorado companheiro, respondeu bruscamente a uma pergunta de um dos guardiães de Bel'Cherub. O homem puxou de sua espada de bronze, e o ruído das armas sendo desembainhadas nos cercou em um átimo: e então a gorda rainha dos ladrões de Baab'el ergueu a mão e, rindo às gargalhadas, perdoou nossa juventude, ficando com tudo o que havíamos trazido e liberando-nos sem um arranhão, com um aviso para que lá não voltássemos jamais. Acabamos voltando, é claro, porque o proibido tinha uma capacidade incomensurável de atração. Ao nos ver outra vez em seus domínios, Bel'Cherub se regozijou com nossa presença, porque para ela o que importava era ampliar o número de seus súditos.

Dentro de pouco tempo, éramos tolerados na corte dos ladrões: pouco visados como éramos pelos guardas de Baab'el, sempre rendíamos mais que as aventuras dos bandidos que todos conheciam, e que em meio a qualquer multidão se destacavam como um furúnculo prestes a explodir. Nossa aparência jovem e mais normal permitia que nos misturássemos aos habitantes de Baab'el sem que ninguém se desse conta de nós, e assim acabávamos por conseguir presas melhores que as dos súditos de Bel'Cherub. Estas presas acabavam sendo revendidas por preços melhores que os originais, a quem as desejasse mas efetivamente não as pudesse ter. Não duvido que algumas delas fossem roubadas mais de uma vez, e mais de uma vez revendidas: havia em Baab'el uma infinidade de estratos sociais bem definidos, fatias de população tão organizadas em degraus quanto nossos templos, uns acima dos outros, e os de baixo usufruíam exatamente daquilo que sobrava dos de cima, como dizia Bel'Cherub:

— Somos auxiliares dos deuses, dando aos habitantes de Baab'el tudo aquilo que desejam. Ser rico é ter aquilo que se pode ter, e a riqueza e a pobreza só se distinguem a partir da opinião que cada um tem delas. Quem deseja muito alguma coisa não se importa de tê-la ligeiramente usada, desde que a tenha. Coisas, roupas, jóias, enfeites... até mesmo mulheres um tanto usadas ainda têm seu valor...

Nessa noite, pela primeira vez desde que nos conhecêramos, ela fez sinal para que ocupássemos o pé de seu divã. Um rosnado de admiração indignada percorreu a sala: que valor teríamos para que Bel'Cherub nos escolhesse, em lugar de seus asseclas mais próximos? Ela tinha planos para nós, e preferia ter-nos sob sua guarda a suportar-nos independentes. Com um gesto magnânimo, limpando com sua gorda mão encardida a baba que deixara na boquilha da narg'hilla, estendeu-a a nós. Era uma honra, e nós a aceitamos, porque partilhar o tam'bakha fumado por Bel'Cherub indicava uma elevação de nossa posição em sua corte de ladrões. Essa mistura do hashish com outras ervas, principalmente o sumo das papoulas que nasciam além do país de Cabul e lhe ampliava grandemente os efeitos, era de uso corrente entre os babilônios, que a consumiam em todas as oportunidades possíveis. Ainda hoje não entendo bem o que nos levava a isso, mas sei que essas ervas, o vinho, alguns cogumelos que nasciam nos campos úmidos onde os búfalos pastavam, e que quando ingeridos davam resultados delirantes, eram coisas de uso constante. Nós raramente fazíamos uso delas, mas nessa noite, impossibilitados de recusar a benesse que a siduri nos dava, experimentamos a mistura acre que se evolava fresca de dentro da vasilha de vidro egípcio.

Foi exatamente nesse momento que, na porta da taberna, assomaram as caras de nossos companheiros Re'hum e Sam'sai, sua eterna sombra. O constante mau humor de Re'hum pesava em sua fonte escura, e quando ele nos viu em posição de destaque, essa fronte se escureceu mais ainda, enquanto seus olhos negros faiscavam. Daruj, sempre atento, foi o primeiro a vê-lo, e com grandes gritos o chamou para perto de nós. Re'hum hesitou, mas uma frase sussurrada em seu ouvido pelo dissimulado Sam'sai o fez rir, cruelmente. Ele veio em nossa direção, até que Bel'Cherub o percebesse, saudando-o:

— Ah! O chefe dos meus melhores ladrõezinhos! Onde estavas? Teus companheiros chegaram antes de ti!

A gargalhada de Daruj ao ouvir Re'hum ser chamado de "chefe" explodiu em nossas faces, fazendo com que todas as cabeças se virassem em nossa direção. A competição entre os dois era flagrante e antiga: mas Daruj, pela sua natural capacidade de liderança, era quem acabava sempre sendo seguido por nós e por quem mais estivesse conosco, com exceção de SanVsai, franzino e magro como uma ratazana de rio e com o mesmo olhar falso. Re'hum tinha ódio dessa liderança natural, e sempre que podia apresentava oportunidades de aventura, decidindo como seriam vividas, colocando-se na posição de responsável pelos lucros que ela trouxesse. Bel'Cherub percebia essa disputa, e jogava com os dois: seu prazer era, sem dúvida, manipular os acontecimentos e as emoções das pessoas que a cercavam, pois só assim se sentia mais e mais poderosa, e tão mais poderosa seria quanto mais sangrentos fossem os resultados de suas manobras. Estava absolutamente atenta a Daruj e Re'hum, esperando o momento em que um dos dois, como tantas vezes já acontecera naquela taberna, se atirasse à garganta do outro e que ambos ali se destroçassem, numa sangrenta luta de morte. Era o espetáculo da morte o que todos desejavam, esperando que Daruj e Re'hum os satisfizesse com seu cortejo de miséria e dores.

Isso não aconteceu entre eles: de uma das aberturas escuras ao fundo da taberna saíram dois lutadores untados de óleo, da cabeça aos pés, já aos sopapos, enquanto a audiência gritava, apostando ora num ora noutro, imediatamente engalfinhados. O conflito entre esses dois homens substituiu o que Bel'Cherub tentara criar entre meus dois companheiros, e até mesmo ela, com desfastio, os abandonou, dando sua atenção aos que começavam a se dilacerar. Rolando até o centro da sala, os dois se agarravam da maneira que podiam, enquanto uma jovem de cabelos negros e desgrenhados era trazida amarrada até perto de Bel'Cherub, que a segurou com a mão esquerda, quase abarcando a sua magra cintura.

Como em todas as tabernas da Grande Baab'el, os viajantes cansados ali encontravam abrigo entre jornadas, alimento para satisfazer seu corpo moído, um pouco de calor humano com que se aquecer, e principalmente aquilo que havia de pior e mais perigoso em nossa terra, as perversões pelas quais a Grande Baab'el se tornava cada vez mais famosa no resto do mundo. Pelo que ouvíamos contar, a Taberna do Boi Gordo, sob a mão férrea da cruel siduri Bel'Cherub, era aquela onde mais se podia afundar nos vícios, sem sequer um instante de consideração por qualquer das virtudes. Nossos corações saltavam: sabíamos que a mulher manietada era mais uma virgem que seria deflorada com escândalo e à vista de todos pelo vencedor da luta. O cheiro do sangue que já escorria das machucaduras e cortes que infligiam um ao outro fazia girar nossas cabeças, excitando dentro de nós aquilo que tínhamos de mais selvagem e animalesco. Em meio à agitação, vi que Yeoshua, as mãos em concha, tampava os olhos para não ver o resultado, e também que Re'hum, em vez de fitar a luta sangrenta, fixava o olhar duro em Daruj.

Fosse eu naquele dia este que sou hoje, teria certamente abandonado a taberna, saído em carreira desabalada e desaparecido rio acima, nas terras de Mari ou Haran, onde ninguém me conhecia. No entanto, lá fiquei, olhando os homens que reuniam o fim de suas forças para destruir-se. O mais atarracado deles avançou com a mão em garra e enfiou dois dedos no olho esquerdo do adversário, que berrava enquanto o estapeava de todas as maneiras, chutando e se contorcendo. A mão hirta no entanto penetrava mais e mais na órbita do outro, e a um berro que este soltou vimos um sangue mais escuro correr por suas faces abaixo. Seus gestos foram ficando mais desordenados à medida que o outro aprofundava os dedos para dentro do crânio, e eu pude perceber que tudo o que ele queria era livrar-se da dor dessa mão feito verruma que já tocava a matéria dentro de sua cabeça. A audiência gritava, pedindo mais sangue, mais força, mais morte! O atarracado, num súbito impulso de seus músculos inchados, enfiou os dedos até o fundo do olho, fazendo o sangue esguichar. A cabeça do mais alto, agitando-se descontroladamente de lado a lado, caiu para trás, e seus joelhos amoleceram, levando-o ao chão. A platéia do mórbido espetáculo ergueu-se de uma vez, aos gritos, saudando o vencedor, que, com o olhar esgazeado e coberto tanto de seu próprio sangue quanto do sangue do adversário, tentava retomar o fôlego. Bel'Cherub, com um riso torpe na cara inchada, atirou sobre ele a mulher, fazendo-a tropeçar sobre os próprios pés:

— Olha teu prêmio, Na'zzur! Serás capaz de ser tão cruel com ela quanto foste com teu inimigo?

Os guinchos de terror da mulher, ao ver o olhar do vencedor do combate, só nos fizeram rir. Na'zzur, atirando-a de bruços sobre o de grau mais próximo, ergueu sua túnica e, da mesma forma que os animais, começou a tentar penetrá-la, enquanto a platéia o exortava. Os altos brados da platéia logo começaram a se transformar em gritos de reclamação, pois era patente que Na'zzur nada estava conseguindo, e sua irritação aumentou quando ele, avançando para a frente sem controle, recebeu de sua presa uma cotovelada no nariz, que começou a sangrar, fazendo-o levantar-se e pular com as mãos na cara, tentando livrar-se da dor. A mulher se arrastou para longe de seu alcance, mas Na'zzur, possesso de dor, apanhou um escudo de bronze que ali estava baixando-o com toda a força na cabeça dela.

A mulher caiu e não se mexeu mais. Bel'Cherub esticou um pé encardido calçado com coturnos de pele à moda tíria, cutucando o corpo, percebendo que já estava sem vida. Furiosa, ergueu-se um pouco de seu assento e gritou:

— Ora, ponham para fora esse maldito Na'zzur, que estragou mais da metade de nossa diversão! Não tens controle de teus atos, imbecil? Era mesmo preciso que matasses o teu prêmio? Fora com ele!

Um monte de homens avançou para o estúpido responsável por duas mortes nesta noite, e sem hesitar o atiraram com violência para fora da taberna, aos som de risos e muxoxos de desprezo. Ninguém pensou nas duas vítimas. Re'hum, a nosso lado, alargava as ventas com a boca entreaberta, como que aspirando o cheiro de sangue dos cadáveres, sobre quem algumas moscas já começavam a adejar. Nenhum de nós, naquela sala suja, pensou em algum instante na vida que estivera dentro de cada um dos mortos, e que, ao se apagar, fizera de seus corpos os restos imóveis em que estavam transformados. Hoje posso compreender, pois passei por isto várias vezes: quem está imerso em amargor permanente, um dia se olvida por completo de que a doçura existe e passa a crer que sua vida foi feita exatamente para ser assim, amarga e nada mais.

No entanto, como nada no mundo existe sem que traga em si o veneno de seu contrário, atrás de Bel'Cherub uma voz se ergueu, ao mesmo tempo suave e forte, atravessando a massa de maus sentimentos em que estávamos mergulhados, como um fio de água limpa mais » que a sujeira da torrente escura onde desaguasse. Ouvi pelas palavras de que nunca mais me esqueci, cantadas no aramaico que todos falávamos na Grande Baab'el, tão sonoras e belas, que nunca, nunca mais se apagaram de minha alma:

— Que me beijes com os beijos de tua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, o odor dos teus perfumes é suave...

Da escuridão por trás de Bel'Cherub surgiu um homem muito sujo, de longas barbas hirsutas, com os olhos cobertos por um pano encardido. Tudo em seu modo de ser, a maneira como andava, tateando o caminho com a ponta dos pés, o jeito como sua cabeça se erguia, revelava um cego, carregando em sua mão esquerda uma harpa babilônia, apontada para a frente. Seus pés e sandálias eram impressionantemente limpos, e os trapos sujos que o cobriam quase o faziam desaparecer na escuridão da sala, mas sua voz clara e forte era exatamente o oposto de sua figura, e eu fechei meus olhos para ouvi-lo, em meio aos fumos do tam'ba-kah:

— ... teu nome é como o óleo que escorre, e as donzelas se enamoram de ti...

A música que acompanhava essas palavras era tão belamente parte delas, que parecia nunca terem existido separadas. O silêncio se fez absoluto na Taberna do Boi Gordo, enquanto o cego tomava lugar em um degrau, logo abaixo de um archote fumarento, sem parar de cantar:

— Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, a teus aposentos e exultemos, alegremo-nos em ti! Mais que o vinho, celebremos teus amores... com razão se enamoram de ti...

As últimas palavras cantadas fizeram correr um arrepio por todos os corpos: era como se fizessem de cada um esse rei tão poderoso, trazendo de volta a lembrança perfeita do maior prazer vivido, revivendo-o integralmente. Um suspiro sentido escapou de todas as bocas, enquanto o cego, a face voltada para cima, experimentava as cordas de seu instrumento, arpejando duas séries de notas tão belas, que, juro, me trouxeram um nó à garganta.

Todos, até mesmo Bel'Cherub, tinham sua atenção fixa no cego, que seguiu cantando, acompanhado pelos delicados sons da harpa, uma série de canções. Formavam, quando juntas, uma história, cantada ora por um homem, ora por uma mulher. A bela voz do cego vivia cada um desses personagens, fazendo com que, quando suave e aguda, eu enxergasse em minha imaginação uma bela mulher de olhos amendoados e sorriso dúbio, e quando grave e poderosa, a mim mesmo, mais velho, mais forte mais vivido. Meus companheiros com certeza sentiam coisa parecida: Yeoshua suava mais do que de costume, Daruj estufava o peito, Re'hum mordia o lábio inferior enquanto apertava os olhos pequeninos e indecifráveis, e Sam'sai, com a agilidade de um rato, corria seu olhar por todas as faces à sua volta, tentando delas beber o prazer que aparentemente nunca encontrava dentro de si.

Eu jamais imaginara que isso fosse possível: a música nunca fora um de meus interesses, porque nunca me tocara profundamente. Isto que o cego nos dava, no entanto, era maior que qualquer coisa que eu tivesse conhecido: a emoção que ele criava, eu nunca sentira, nem sabia ser possível, porque ele falava de uma maneira totalmente nova sobre coisas que nunca ouvíramos antes. Era como se, ao penetrar em minha alma, a música se tornasse uma espécie de espírito imortal, desse momento em diante caminhando pelas salas e corredores de minha memória, para sempre se repetindo, viva e imutável, como nesse primeiro momento em que cobriu pelo ar a distância que nos separava.

O cego continuava cantando e percorrendo as oito cordas da harpa: a música que nela produzia, tão simples e ao mesmo tempo tão complexa, juntando palavras e sons da harpa e da garganta, me trouxe lágrimas aos olhos. Essa sensação, essa emoção, esse aperto no peito, eu nunca mais esqueceria, porque meu corpo o reconhecera antes que meus sentidos o fizessem. Perseguiria para sempre essa mesma sensação, e não me envergonho de dizer que chorei, movido por alegria e tristeza imensas, quando de sua voz mais grave ouvi as seguintes palavras:

— Roubaste meu coração, minha irmã, noiva minha: roubaste meu coração com um só de teus olhares, uma volta de teus colares. Que belos são teus amores, minha irmã, noiva minha: teus amores são melhores do que o vinho, e mais fino que outros aromas é o odor de teus perfumes...

Sempre que esse cego ia à Taberna do Boi Gordo, a casa se enchia três vezes mais do que nos outros dias: e cada um comia por três, e bebia três vezes mais vinho que de costume, e amava pelo menos três vezes mais, porque os sentidos se excitavam três vezes mais que em qualquer outra ocasião. Um momento como esse marca os homens de uma maneira toda especial: em meu caso, essa marca era mais especial ainda, já que nunca em minha vida eu desejara tanto uma mudança como a que a música me mostrava. Tudo o que eu queria a partir daquele momento era viver como esse cego, capaz de criar a beleza absoluta com a voz e os dedos, invejando-o de tal forma, que não me incomodaria de viver na sujidade nem de perder a luz de meus olhos, caso pudesse ter esse talento de que ele dispunha com tanta prodigalidade.

As últimas notas da harpa acompanharam a derradeira canção que o cego cantou nessa noite mágica, quando minha vida, podendo ser diferente do que foi, debruçou-se momento a momento sobre mim mesmo e levou-me até onde hoje estou. Nos anos que se seguiram, quando pensei sobre essa noite, estas eram as palavras que me vinham à mente, menos lembranças que destino traçado, tanto emoção quanto abalo físico, e mais verdadeiras que qualquer outra coisa que eu pudesse saber sobre o mundo e sobre mim mesmo:

— Cruel como os abismos é a paixão, suas chamas são chamas de fogo, e ainda assim uma pequena faísca do Deus que nos criou. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. E se alguém quisesse dar tudo o que tem para comprar o amor, seria tratado com desprezo...

Essa frase ecoou pelas paredes, e o cego levantou-se, tateando em busca da saída, e quando percebemos o fim desse momento de beleza e demos por sua falta, ele já não estava mais entre nós. Os urros da multidão a chamá-lo — Feq'qeshl Feq'qesh! — não o trouxeram de volta: era impossível recriar o momento que já se tinha passado, e cuja beleza agora existia apenas no pantanoso território das lembranças. Só nos restava usar da melhor maneira possível a excitação dos sentidos com que sua música nos presenteara. A maior parte de nós, sem hesitar, debruçou-se sobre o primeiro ser vivo que lhe cruzou o caminho, chafurdando em luxúria na tentativa de aprisionar o momento inefável que havia experimentado. A sala escura tornou-se um turbilhão de corpos nus em pleno gozo de suas sensações, como se novamente tivéssemos nos tornado o mar de carne informe de que um dia o mundo fora feito. Era nisso e para isso que os da Grande Baab'el viviam: a satisfação sem limites dos sentidos físicos, o prazer pelo prazer e nada além disso.

Eu, no entanto, passei por sobre os homens e mulheres que se moviam ondulantemente e atravessei a porta de saída. Olhando para o céu muito acima de minha cabeça, por entre as duas altas e escuras muralhas em cujo fundo me encontrava, sorri para uma nesga de lua que aparecia no céu à minha esquerda, com a alma repleta, como nunca antes, e como raras vezes depois.

 

O sol inclemente de Baab'el nunca tocava o fundo do território úmido entre as duas muralhas, mas a claridade do dia era tão forte que atravessou minhas pálpebras fechadas, verrumando no fundo do meu crânio a dor de cabeça que me acompanhava depois de todas as noitadas. Sempre tive pálpebras finas, e desde muito pequeno precisei tampar a cabeça com algum pano escuro para poder dormir, se o lugar onde estava fosse muito iluminado. Uma simples réstia de luz que tocasse minha face me acordava: e nos últimos tempos, em que a escuridão vinha sendo usada para viver, começara a dormir cada vez menos, porque os períodos de sono que me restavam eram sempre diurnos, por isso mesmo entrecortados pela luz do dia, até que se tornasse impossível voltar a descansar. Em parte pelos excessos da noite anterior, em parte porque a luz era uma agressão aos meus olhos, acordei, sem saber quem era, muito menos onde estava.

O que me acordou não foi só a luz, mas também o coturno ferrado de um soldado do Império, acariciando as minhas costelas com a delicadeza que lhe era costumeira. Sua altura foi suficiente para encobrir o sol sobre minha face, e por um instante eu quase pedi que ele ali se mantivesse, claro que sem enfiar-me o pé nos rins, como agora fazia, para que eu dormisse um pouco mais. Isso era impossível: tudo o que o soldado queria era que eu levantasse e me pusesse de pé, porque na Grande Baab'el só os muito poderosos permaneciam deitados em presença de um soldado do Império. Ergui-me, estremunhado, e, mantendo os olhos baixos, nem mesmo lancei minha visão sobre o soldado que me sacolejava, esperando que minha aparente humildade fosse suficiente para que me deixasse em paz. Meus companheiros de aventuras, atraídos pelo ruído e gritos que o soldado produzia, saíram do interior da Taberna do Boi Gordo e viram um soldado fortemente armado me sacudindo. Movidos por companheirismo, cercaram o soldado com uma pressão um tanto acima do normal, porque, afinal, aquele que me sacudia era um dos militares responsáveis pela segurança da Grande Baab'el e do Império.

Era hábito de quem vivia no território que ficava à sombra das muralhas tratar da pior maneira possível aos soldados, quando isso pudesse ser feito em segurança e sem testemunhas, ou quando seu número superasse em muito o dos homens da lei. Esse soldado era mais bravo que os que costumeiramente espancávamos, sempre que os encontrávamos num dos inúmeros becos escuros desse território escuso: debatendo-se inesperadamente, livrou-se de todos nós e, encostando as espáduas na parede, sacou da espada de lâmina larga, estendendo-a à sua frente, aumentando a distância entre nós e ele. Um impasse: nosso número e audácia eram exatamente o suficiente para que a força e armamentos do soldado se anulassem, mas não para vencê-lo, principalmente porque ele vociferava em altos brados, chamando a atenção de outros habitantes do lugar, que começavam a colocar suas caras amassadas do lado de fora de seus esconderijos. Ninguém estava interessado em salvar a vida do soldado, sendo alguns até capazes de aplaudir com verdadeira alegria a sua morte, ao mesmo tempo que adorariam ganhar alguma coisa extra com a delação dos responsáveis.

Estávamos todos, portanto, paralisados. O impasse só se resolveu quando Bel'Cherub, arrastando para fora da Taberna do Boi Gordo o seu corpanzil descomunal, colocou-se entre nós, cuspindo ofensas ao soldado:

— Na'zzur, filho de um imbecil com uma porca, o que está acontecendo? O que queres com meus meninos?

Nesse instante, percebi que por baixo do fardamento estava o vencedor da luta da noite anterior, o mesmo animal que matara outro homem com as próprias mãos nuas, e que, movido por incontrolável impulso, arrebentara a cabeça da mulher de que não conseguira usufruir. O rosto vincado, que na noite anterior estivera coberto de sangue e denotara apenas cansaço, agora tinha a boca torcida num rito cruel.

No entanto, mesmo sendo representante do poder do Império, era submisso à gigantesca Bel'Cherub, que, colocando as mãos ao lado do corpo como se cintura tivesse, o enfrentava, de queixo erguido:

— São gente minha, como tu também és. E gente minha não briga entre si, a não ser que eu dê ordens expressas para isso! Não te esqueças, porco, que eu sou dona tanto de ti quanto deles! E me deves mais obediência que a este Belshah'zzar que o tio colocou no trono de Baab'el enquanto experimenta os prazeres ocultos de Teimah! Sou eu que te alimento! Se dependesses do soldo que te dão e do rancho que te servem, estarias debaixo da terra faz tempo! Cumpre o teu dever para comigo!

Bel'Cherub à luz do sol se mostrava como realmente era, mais monstruosa ainda que dentro de sua taberna, iluminada pela luz mortiça dos archotes de nafta fumarenta. Sem a barba postiça que as siduri costumavam usar em seu trabalho, seu queixo triplo redobrava por sobre seu peito, e Yeoshua, pertinho de meu ouvido, sussurrou:

— Para que a barba postiça? Bastava deixar crescer os fiapos que tem no queixo...

Era verdade: o queixo de Bel'Cherub era coalhado de pêlos grossos e negros, em pouca quantidade, mas asquerosamente espalhados, a maioria debaixo de seu lábio inferior, sombreando-o e tornando-o mais proeminente do que já era, mais estranho ainda por ser ela uma mulher, mesmo não parecendo. Não pude deixar de rir: afinal, minha alma livre e audaz, como a de todos os jovens da minha idade, nunca se furtava a um momento de diversão. Minha risada desarmou o soldado Na'zzur, que abaixou a espada e me desmanchou os cabelos, com força, é verdade, mas sem mais nenhuma vontade de me retalhar:

— Bel'Cherub, era melhor que colocasses uma marca em teus protegidos, como se faz com os bois na margem do Tigre! Assim, nenhum de nós corre o risco de estripar algum assecla teu!

— Quem ousar tocar um de meus meninos, seja até mesmo o próprio Marduq ou um de seus filhos, enfrenta a minha fúria! — disse Bel'Cherub, aproximando-se de Na'zzur. — Mas por que falas deles como se fosses diferente? Eles e tu, Na'zzur, estão todos sob meu braço!

Era longo o braço de BePCherub: alcançava todos os desvãos da Grande Baab'el, das profundezas escuras onde se ocultava até os palácios dos verdadeiramente ricos, na outra margem, aí incluídos os marginais e os que deviam combatê-los, unidos por suas diferenças e ficando cada vez mais semelhantes. Eu me fizera parte disso, por curiosidade, por rebeldia, e agora me tornara mais propriedade de Bel'Cherub que membro de minha própria família. A face de meu pai se tornava cada vez mais apagada em minha mente, junto com as de minha mãe, meu irmão e minhas irmãs, tornando-se gradativamente igual a tantos sem-rosto com quem cruzamos pelo mundo, e que até mesmo em nossos sonhos, quando em nossos sonhos aparecem multidões, nada têm de diferente uns dos outros.

Do fundo da viela escura surgiu nosso companheiro Mitridates, ocultando sob as dobras de seu manto o braço esquerdo mirrado e encolhido como uma asa de pássaro. Isso não afetava em nada nem a sua capacidade de realizar as tarefas a que se impunha nem a sua peculiar maneira de viver. Ele originalmente nos chamara a atenção por seu talento com os números, e graças a ele nossas negociações com Bel'Cherub sempre rendiam mais do que ela pretendia. Sua capacidade de calculista o transformara em nosso contador, e ele mantinha em algum lugar oculto de nossas vistas uma contabilidade completa de todos os rendimentos de nossas aventuras. Fazia isso para provar-nos que podíamos e devíamos abrir mão de nossa ligação com Bel'Cherub, porque já tínhamos capacidade de sobreviver sozinhos no mundo de falcatruas que era nosso território de colheita. Dentre nós, apenas ele acreditava nisso: Daruj achava a idéia por demais temerária, Re'hum e Sam'sai respeitavam cegamente o poder de Bel'Cherub, Yeoshua tinha medo, e eu sequer dava atenção ao assunto: por isso, Mitridates, com sua posição minoritária e seu defeito físico, ficava um tanto à parte de nossas aventuras, aparecendo apenas na hora em que as contas deveriam ser ajustadas.

Bel'Cherub gostava pouco de Mitridates, por motivos óbvios: mas tinha que aceitá-lo entre nós, e com a tranqüilidade de quem conhece a verdade por trás dos números, ele só agia com ela de forma estritamente matemática, fazendo uso daquilo que chamava de cálculo das possibilidades quando as situações ficavam tensas, dizendo:

O balanço final de nossos negócios só é feito depois que já estamos mortos. Por isso, para que tentar descobrir enquanto vivos quem tem mais q o outro? Mantém a tua contabilidade em dia, meu irmão, e espera: algum deus um dia virá fechar definitivamente as tuas contas...

Naquela manhã, Bel'Cherub estava especialmente irritada: seu comportamento se estabelecia sem sentido ou razão, e ninguém podia pretender imaginar como estaria o seu humor a qualquer momento do dia. Variável a extremos, Bel'Cherub podia passar da alegria ao ódio sem que sua respiração sequer se acelerasse, e qualquer um podia ser alvo do bem ou do mal que ela exsudava como suor da pele viscosa. Mitridates, impermeável a tudo, sempre permanecia impassível frente à maior demonstração de alegria ou à maior tempestade de ódio.

Bel'Cherub, brandindo sua mão inchada a milímetros do nariz de nosso companheiro, disse:

— Desta vez, não, aleijado! Desta vez eu ficarei com a parte do leão! Chega de dar o que não quero a quem não merece! Dois de cada três braceletes que forem conseguidos devem ser entregues a mim porque são meus, e o que sobrar só pode ser vendido a mim! E se eu vier a descobrir que algum dos meninos está negociando braceletes sem meu conhecimento, o teu outro braço vai virar farinha na mó de minha ira!

Enquanto ela dizia isso, o soldado Na'zzur empinava o peito, batendo as armas na couraça, como era hábito dos soldados do Império quando queriam amedrontar seus inimigos. Mas Mitridates, sempre calmo, respondeu:

— Fica calma, siduri: não queremos nada que não nos pertença. E diz a teu sabujo que se acalme: ele devia estar cumprindo o seu dever para com Belshah'zzar, que é quem lhe paga o soldo!

— O soldo que o Império me paga não chega para encher-me sequer o buraco de um dente podre que tenho na boca! Se não fosse Bel'Cherub, eu estaria à míngua, como mais um dos indigentes da Grande Baab'el... agora, se achas que eu não deva receber de Bel'Cherub o que ela me dá, faz-me uma proposta: quem sabe eu deixe de ser dela e passe a ser teu, aleijado?

A mão de Bel'Cherub estalou inesperadamente na face de Na'zzur, deslocando seu capacete. O que mais me impressionou foi a cordura com que o soldado se submeteu à siduri que era sua real e verdadeira senhora. Em vez de reagir com a mesma violência impulsiva da noite anterior, curvou a cabeça, tocou o peito com o queixo, e, estranhamente, deixou escapar um suspiro de prazer de seus lábios crestados.

— Aqui sou eu quem decide quanto cada um vale—disse Bel'Cherub, rindo com arrogância. — Eu quero, eu compro, eu mando, eu dispenso.

Numa sociedade como a nossa, era essencial que cada papel fosse vivido com clareza. A verdadeira honestidade na Grande Baab'el significava vender-se e permanecer vendido, não se admitindo em hipótese nenhuma o uso de duas caras, a não ser no caso dos soldados do Império, pois sua dubiedade servia tanto aos grandes senhores dos belos palácios dourados quanto aos mestres do ganho equívoco, como Bel'Cherub. No caso de Na'zzur, entretanto, havia alguma coisa a mais: ele certamente sentia grande prazer em estar subjugado a ela, e sempre buscava algum tipo de confronto exclusivamente para que ela o castigasse, dando-lhe a satisfação desse estranho desejo que o movia.

Mitridates meteu o braço bom dentro do manto e retirou uma tabuinha de argila onde os risquinhos feitos com o pequeno cinzel dos escribas se agrupavam em três fileiras ordenadas. Bel'Cherub estranhou:

— O que é isso?

— Nossas contas, siduri, desde que este grupo começou a trabalhar contigo. A parte do leão já é tua, e só podemos fazer render o que nos sobra se nós mesmos o negociarmos. Deixar contigo o que é nosso e contar com tua benevolência para pagar-nos o que nos é devido não funciona: será melhor desistir da empreitada, ou então fazer um acordo com outra siduri...

Os olhos de Bel'Cherub tomaram a cor do sangue que lhe subiu à cabeça, uma grossa veia arroxeada começou a pulsar em sua testa suada, e eu juro que a siduri inchou e cresceu mais da metade do seu já gigantesco tamanho, como um sapo em busca de vítimas:

— A única siduri digna deste nome na Grande Baab'el sou eu! Belshah'zzar é rei, mas meu poder é maior que o dele! Tu te arriscas muito, aleijado, enfrentando assim a tua senhora! Posso fazer com que Na'zzur te corte a cabeça!

Na'zzur, com rapidez, reafirmou as palavras de Bel'Cherub, puxando sua espada de bronze e encostando-a sob o queixo de Mitridates. A amizade que nos unia nos fez avançar em direção a ele, como que para protegê-lo: Daruj foi mais ágil, mas eu e Yeoshua demos nosso passo à frente logo após, e Re'hum e Sam'sai, ainda que mais lentos, acabaram por unir-se a nós, em uma espécie de roda compacta que cercava tanto nosso amigo quanto os que o ameaçavam. Na'zzur estranhou nossa atitude, e Bel'Cherub, que detestava a proximidade de qualquer pessoa, sentiu-se sufocada e se debateu, querendo abrir espaço. Em vão: nosso aperto era constante, e com nossos corpos dispostos a tudo, como nos exigia a audácia de nossa juventude, cada vez a apertávamos mais.

Mitridates, com a espada de Na'zzur na garganta, e a sufocada Bel'Cherub estavam cada vez mais cercados por nós. Olhando de soslaio, pude perceber que Re'hum e Sam'sai haviam cada um produzido um afiado e pontudo caco de vidro egípcio, com os quais espetavam o peito da siduri. Nesse impasse, apenas Mitridates manteve a calma, falando com voz tranqüila:

— Minha garganta cortada não será a única, e amanhã nem eu farei as contas nem a siduri usufruirá dos prazeres de sua taberna. Acho isso um desperdício: o sangue derramado no chão não terá nenhuma utilidade, e nenhum deus se aproveitará desse sacrifício. Perderemos nossas vidas, ninguém irá ao porto recolher os braceletes que deram início a esta disputa... é isso que desejas, siduri?

A palavra siduri na boca de Mitridates era quase ofensiva, mas os cacos de vidro na garganta de Bel'Cherub eram ofensa ainda maior. Ela respirou profundamente, apertando os olhinhos de porco: ao abri-los, sua face se distendeu em um sorriso rigorosamente falso, mas extremamente reassegurador, porque não havia mais sangue em seus olhos:

— Está bem, aleijado: não é hora nem lugar para nos desavirmos

uns com os outros. Se isso te deixa feliz, concordo que a terça parte dos lucros seja negociada por ti. Não faz grande diferença em minha fortuna. Na'zzur, abaixa tua espada. Entre... amigos, isso não deve acontecer...

A palavra amigos soou tão falsa na boca de BeFCherub quanto siduri soara na de Mitridates, mas a monstruosa tinha finalmente compreendido os agudos argumentos em sua pele, recuando para o mesmo lugar de antes. Na'zzur abaixou a espada, Mitridates estendeu a tabuinha para Bel'Cherub, que a aceitou com um certo desprezo, e todos nos movemos para trás, sem tirar os olhos uns dos outros, porque a confiança entre bandidos é sempre fruto da constante desconfiança. Bel'Cherub refugiou-se sob o batente da porta de sua taberna, e Na'zzur, fiel protetor de sua ama, como deveria ser de seu rei, ficou à frente de seu corpanzil, para que nenhum de nós conseguisse, num rompante, atacá-la.

O silêncio entre nós dizia mais que muitas palavras. A figura de Bel'Cherub perdeu-se nas sombras, a de Na'zzur a seguiu, a porta da Taberna do Boi Gordo fechou-se, e nosso grupo se encontrou sozinho sob o sol da Grande Baab'el, ao fim de um enfrentamento que graças à frieza de Mitridates se resolvera a contento. BePCherub, em outras condições, não deixaria por isso mesmo o que acontecera: e para pessoa tão ciosa de seu poder, vê-lo contestado dessa forma não era coisa que se esquecesse facilmente.

Saímos dali em forçada alegria, buscando um arco que nos levasse para dentro da cidade. Era melhor chegarmos ao porto de maneira normal, pelas avenidas que a ele levavam, pois ninguém devia notar nossa presença. Por trás de nossa alacridade, a preocupação mostrava sua feia cabeça: disfarçávamos bem, mas nossa maneira de ser estava envenenada pela sensação de que alguma coisa ruim nos estivesse reservada, e as conversas em voz baixa de Re'hum e Sam'sai, cheias de olhares disfarçados e risadinhas sem motivo, ampliavam mais e mais essa sensação de estranheza. Em momentos difíceis, os dois sempre se isolavam de nós e ficavam com as cabeças muito próximas, sussurrando um com o outro, olhando sub-repticiamente para os lados, e rindo como se fossem depositários de um maravilhoso segredo que só eles conheciam. Daruj, entre nós, era o que mais se irritava com isso, e desta vez não foi diferente:

— Par de hienas, o que se passa? Seria possível dividir conosco o que vos causa tanta alegria? Ou não merecemos o conhecimento que os dois chacais do deserto estão partilhando?

Re'hum, como sempre, ficou rubro de ódio: o conflito entre ele e Daruj estava a cada dia mais acirrado, e nesta manhã, graças a Bel'Cherub, parecia bem pior: mas foi Sam'sai quem respondeu, com sua vozinha azeda:

— O que é que estás pensando, filho do tapeceiro? Não temos que te dar satisfação de nada, ainda não percebeste? Isso de que falamos é assunto nosso e só nosso!

— Pelo contrário, suricate fedorento. Se o que falam é sobre nós, como parece ser, queremos e vamos saber do que se trata. Anda, desembucha!

Daruj avançou para Sam'sai, decidido, mas Re'hum pulou na frente de seu assecla, com o caco de vidro egípcio que usara para ameaçar Bel'Cherub firmemente apontado para a garganta de Daruj. Os dois fixaram seus olhares um no outro, e, no meio do silêncio pesado, Re'hum deixou que saísse do fundo de sua garganta um rosnado animalesco, recheado da ira que lhe florescia no coração:

— Sai daqui, persa... ou te abrirei uma nova boca logo abaixo dessa que teu deus te deu... não tentes me impor uma autoridade que não tens, uma força que não possuis, uma chefia que não é tua! Não te reconheço como nada... e ninguém aqui algum dia te obedecerá... quem pensas que és?

— Te faço a mesma pergunta, animal! Quem pensas que és? Quem te disse que tens algum poder sobre alguma coisa além dessa imitação de homem que te lambe os pés? Vamos, tira o caco de vidro de minha garganta... pensei que essa tarefa era de teu criadinho... ele te obedece sempre, não é verdade? Regozija-te, Re'hum: tens pelo menos um que te obedece...

O ódio arroxeou novamente a face de Re'hum, mas ele, depois de algum tempo, abaixou o caco de vidro, com lentidão enervante. Tudo fingimento: quando Daruj desviou o olhar, o braço de Sam'sai projetou-se como um raio na direção de sua garganta, enquanto um sibilo escapava de sua boca através dos dentes cerrados.

Daruj tinha reflexos rápidos, mas foi apanhado de surpresa: mesmo saltando para trás, livrando o pescoço do ataque de Sam'sai, o pedaço de vidro riscou a parte carnuda inferior do braço direito que ele ergueu para defender-se, e o sangue espirrou. Empurrei Sam'sai para o chão, fazendo-o largar o caco de vidro, que Mitridates chutou para longe. O sangue corria do braço de Daruj, que meteu o pé na cara de SanVsai, rojando-o ao pó. Enquanto um Yeoshua muito assustado segurava Daruj, enrolando-lhe o braço cortado com seu manto, que logo se empapou de sangue, vi que de todos nós o mais surpreso era Re'hum: seus olhos arregalados mostravam que ele não esperava por isso. Havia sido surpreendido pelo excesso de zelo de seu liderado, e agora teria que assumir o rompante de Sam'sai, de alguma maneira transformando-o em vantagem. Arrastando Sam'sai de onde ele estava caído, a cara sangrando pelo chute de Daruj, Re'hum vociferou:

— Estás fora de meu bando, Daruj! Estão todos fora de meu bando! O ridículo da situação fez com que caíssemos na gargalhada: como é que a minoria derrotada podia pensar em expulsar a maioria? Éramos quatro contra dois, e mesmo assim Re'hum tentava arrogar-se um poder que não tinha. O ataque surpresa de Sam'sai, o ferimento de Daruj, o sangue que começava a empapar a terra a nosso redor criaram entre nós uma ruptura insustentável, dessas que não se esquecem: sangue posto fora do corpo sempre deixa manchas indeléveis nas vidas de quem por ele é tocado. Não havia mais como fingir inexistir o conflito que se prolongava de forma surda: chegáramos ao confronto, que nos colocara definitivamente em campos opostos. Não importa quem tinha vencido, perdido, quem dominava ou era dominado: estávamos para sempre separados. BePCherub, de alguma maneira, conseguira nos dividir, e, sem que percebêssemos, reinava vitoriosa sobre nós.

Viramos nossas costas e saímos dali, deixando Re'hum e Sam'sai aos berros, xingando-nos de tudo o que era possível. Ainda joguei duas pedras na direção deles, e os dois se arrastaram para a sombra da Taberna do Boi Gordo. Yeoshua desenrolou o manto que colocara em volta do braço ferido de Daruj e viu que o corte, mesmo ainda muito aberto, já começava a criar uma crosta, que infelizmente se rompia de cada vez que o braço se movia, fazendo com que o sangue novamente brotasse.

Mitridates era um sujeito ponderado: vendo a nossa agitação por causa do corte que não se fechava, disse:

— Precisas ser costurado, e já. Temos de achar um cirurgião militar que faça o serviço.

Eu reagi mal à idéia do cirurgião militar, e Daruj reagiu pior ainda. Nada se comparava, no entanto, à palidez na cara de Yeoshua, que, imaginando os terrores pelos quais nosso companheiro ferido passaria, teve mesmo que sentar-se no chão, esperando que passasse a tontura que sentia. Daruj, aproveitando o momento, disse:

— Estás louco, Mitridates! Não vou entregar meu braço lutador aos cuidados de um açougueiro, principalmente depois de ver o efeito que essa idéia causa em meu irmão Yeoshua! Olhai o coitado: está a ponto de desfalecer, só de pensar no assunto! Não! Qualquer coisa menos isso!

O sangue continuava a correr: era preciso costurar a ferida. Respirando fundo, Yeoshua ergueu-se do chão e, ainda pálido, meteu a mão na bolsinha de couro que carregava em seu cinto, de lá tirando uma finíssima agulha de osso de peixe. Éramos, Yeoshua e eu, filhos de alfaiate, mas eu nunca carregara comigo nenhuma das coisas que faziam parte do dia-a-dia de meu pai: meu desejo era sempre ser o mais diferente possível dele. Yeoshua acreditava mais do que eu nessa vida familiar, trazendo sempre consigo estes apetrechos da arte de um grande artesão em mantos e saias. Um grande fio de linha azul de linho foi colocado no fino orifício logo acima da ponta, suas duas extremidades unidas com um nó delicado, e o conjunto estendido em minha direção. Meu ar de incompreensão deve ter sido extremo, mas Mitridates, sem rir, disse:

— A tarefa é tua, Zerub: eu só tenho um braço, Daruj não pode pensar-se a si mesmo, e Yeoshua... bem, Yeoshua já fez muito em ter conseguido enfiar a linha na agulha. Não vês como empalidece novamente?

Segurando minha mão, Mitridates me empurrou para Daruj, que sorria confiante, ainda que um tanto inseguro. Foi esse sorriso de confiança que me deu forças para, durante um tempo que me pareceu interminável, espetar o braço de meu amigo, que rilhava os dentes, de olhos fechados, enquanto eu ajuntava as bordas do corte com pontos cada vez mais espessos, um ao lado do outro, próximos o bastante para que a pele se mantivesse unida. Infelizmente, minha capacidade como costureiro era quase nula: a pele escorregava por causa do sangue e da pequena camada de gordura, e por diversas vezes perdi um ou outro ponto já dado, tendo que desfazer os seguintes e recomeçar. Isso durou um bom tempo: no fim do corte, quando dei o último ponto e o amarrei com um nó, como tantas vezes vira meu pai fazendo, baixei minha boca para cortar a linha perto do braço de Daruj e senti na boca o gosto de seu sangue.

Afastei-me e olhei meu serviço: eu era realmente um péssimo costureiro. O que devia ser uma sutura reta e perfeita estava repuxada e enrugada em dois ou três pontos. O sangue não corria mais, e uma casca escura começava a se formar no início do corte, onde eu começara meu imperfeito trabalho. Eu aleijara Daruj mais do que qualquer cirurgião militar, e a tentativa de poupar Yeoshua do mal-estar também tinha sido inútil, pois ele estava desmaiado no colo de Mitridates. Daruj, sorrindo por entre as lágrimas de dor que lhe escorriam pelo rosto, apertou-me o ombro com a mão do braço esquerdo, dizendo:

— Irmão Zerub, devo-te a minha vida.

— Não digas isso! — Eu estava sinceramente envergonhado dos resultados de meus esforços como costureiro. — O que fiz está péssimo! Vai te deixar no braço uma cicatriz tão feia, que para sempre te fará lembrar de mim com ódio! Serei sempre, deste dia em diante, aquele que te aleijou...

— Cala-te, Zerub! — gritou Mitridates. — Salvaste a vida de Daruj, que te agradecerá por isso até o fim de seus dias!

— É verdade, é verdade! — gritou Daruj, tentando trazer-me de volta à realidade.

Infelizmente, por culpa de meu caráter um tanto depressivo, certamente abalado pelos últimos acontecimentos, caí em prantos, sentindo-me o pior dos homens sobre a terra. Mitridates deixou que a cabeça de Yeoshua caísse ao solo, vindo em minha direção, e Yeoshua, percebendo que eu precisava dele, desistiu de seu desmaio e aproximou-se de nós, formando um grupo compacto à minha volta, tentando acalmar meus temores. Daruj, vendo após algum tempo que eu já estava mais calmo, insistiu em me reassegurar de seus sentimentos em relação a mim:

— Zerub, meu irmão, o que me fizeste hoje foi um favor! Posso sem exagero alegar ter sido ferido em batalha, porque ao ver a cicatriz que se formará em meu braço ninguém duvidará que eu a tenha ganhado em combate, sendo pensado por um desses carniceiros que se nomeiam cirurgiões!

Eu quis chorar de novo, mas Daruj me segurou com mais firmeza.

— Escuta! Sabes que eu nasci para ser um soldado, e uma marca dessas só me ajuda! Não temas por mim: meu futuro me trará muitas dessas, e a última delas será aquela pela qual minha vida finalmente se esvairá. De nenhuma no entanto terei mais orgulho que desta, amigo, e cada vez que a olhar será para me lembrar com alegria que Zerub me salvou a vida!

Depois que me acalmei, pudemos dar atenção ao problema mais importante: como realizar a tarefa para a qual nos reuníramos, se nosso grupo se havia desmembrado e, mais que isso, estávamos desfalcados pelo ferimento no braço de Daruj? Yeoshua escolheu o pedaço menos empapado de sangue do manto, rasgando-o e enrolando da melhor maneira possível o braço de Daruj, prendendo uma tipóia em seu pescoço para que o braço ferido ficasse pendurado sem esforço. Um problema havia: cada vez que nos comprometíamos com uma aventura dessas, Bel'Cherub já incluía os possíveis lucros em sua contabilidade, e se detestava quando conseguíamos menos do que o combinado, o que dizer daquilo que não lhe daríamos, já que nada conseguiríamos produzir?

— Devíamos fugir da Grande Baab'el — disse Yeoshua, temeroso em excesso, como sempre. — Bel'Cherub, a siduri maldita, há de querer aproveitar-se disso para se vingar do que fizemos com ela... eu sei que Na'zzur logo estará em nosso encalço, ansioso pelo nosso sangue]

Daruj riu dos temores de Yeoshua, e eu também, mas Mitridates não: mantendo o ar frio e descansado de sempre, quase podíamos ouvir as possibilidades futuras sendo medidas e pesadas em sua cabeça, enquanto ele ponderava sobre as palavras de Yeoshua. Depois de certo tempo, quando nossas risadas já se tinham desvanecido, falou, em voz baixa:

— Não deixas de ter razão, Yeoshua. Mas graças Aquele que nos criou, o véu que cobre o Futuro é tecido pelas mãos da Misericórdia, e tudo o que ainda viveremos dorme intocado por nossas almas, mesmo que não por nossos desejos. Nem por isso é preciso dar aos que nos podem prejudicar a oportunidade que buscam. Temos que apanhá-los de surpresa, anulando os motivos que a esta hora estão urdindo contra nós.

— Bravo, Mitridates! — disse Daruj, sempre vibrante. — É isso que faremos, atacar antes que nos ataquem!

— Loucura! — choramingou Yeoshua, suando copiosamente. — Só dispomos dos dois braços de Zerub para a luta, e ele é o pior lutador dentre nós todos, com exceção de Mitridates e de mim mesmo!

— Mas quem falou em ataque? — disse Mitridates, batendo com a mão espalmada na testa. — Como atacar quem nos quer fazer mal, se não temos nem força nem número para isso? Re'hum e Sam'sai não estão mais conosco, e provavelmente ficariam do lado de Bel'Cherub, se um embate entre nós viesse a ocorrer. E onde os atacaríamos? Na Taberna do Boi Gordo? Bastaria um sinal de Bel'Cherub, e seus acólitos nos reduziriam a migalhas! Não, amigos, só nos resta uma coisa a fazer: realizar a aventura contra os egípcios, recolher o máximo de braceletes que pudermos e com eles comprar a nossa liberdade, ainda que momentânea]

Era ousado, era absurdo, mas Mitridates estava certo: a única coisa que poderia aplacar o ódio mortal de Bel'Cherub seria a riqueza. Tínhamos que conseguir o prometido, e com nossa parte comprar o perdão por nossa ousadia. Com Re'hum e Sam'sai fora do jogo, poderíamos entregar suas parcelas a Bel'Cherub, e com os devidos elogios, ainda que falsos, talvez conseguíssemos um afrouxamento do castigo que certamente estava sendo preparado para nós. A esta altura, provavelmente, Re'hum e Sam'sai já estariam em companhia dela, narrando à sua maneira o que acontecera, todos antegozando o que iriam fazer conosco quando falhássemos em entregar o butim de nossa aventura. Mitridates, mais uma vez, estava friamente certo: o que nos restava a fazer era cumprir o trato e, com seus lucros, tentar encerrar de uma vez por todas nossa ligação com a asquerosa exploradora.

Daruj entendeu isso antes de todos nós: ergueu-se, uma figura impressionante com seu braço enrolado em um trapo sangrento, os olhos brilhantes, o corpo retesado e pronto para saltar sobre o primeiro inimigo que lhe aparecesse à frente:

— Vamos, aventureiros! Só nos resta essa saída! Façamos dela a mais honrosa de todas, vençamos essa batalha!

Devíamos ser um grupo no mínimo estranho, quatro jovens tão diferentes uns dos outros, assim ensangüentados, caminhando juntos pelo território malcheiroso, buscando uma saída para o sol aberto. Andamos pelo menos uns trezentos passos antes que grossos pilares de tijolos indicassem que ali se enraizava uma das seis pontes que atravessavam o Eufrates, desde o tempo em que os Dinastas assírios o chamaram de Pura'ttu. Galgamos esses pilares da melhor maneira possível, apoiando -nos uns nos outros, e quando chegamos ao alto sentimos o sol da Grande Baab'el brilhando e queimando nosso rosto. O ruído da cidade ficou mais forte, um burburinho incontrolável e constante, fruto da incessante atividade de mais de duzentas e cinqüenta mil pessoas, que nunca paravam de mover-se, gritar, correr, lutar por sua sobrevivência, sem pensar em suas atitudes nem nas conseqüências das mesmas. Agitar-se sem parar, ainda que sem objetivo claro, era a marca mais forte de toda a Grande Baab'el e de todo o Império de Baab'y'k>n, como de tantos outros antes deles e tantos outros depois, numa progressão infinita em direção ao futuro, que não podia ser parado.

Chegando no topo da muralha interna, vimos à nossa frente a Terceira Ponte sobre o Pura'ttu, como a tinham chamado os Dinastas assírios, ou Ponte de Nabuni'dush, em homenagem àquele que a reformara e lhe dera a aparência que agora tinha. Apoiada em grossos troncos de madeira trazidos da Fenícia e impermeabilizados pelo grosso betume, como era nosso uso, sustentava-se em grandes pilares formados por toras de madeira atadas umas às outras, que na sua parte de baixo, em vez de firmar-se no fundo do rio, estavam firmemente presas a grandes pranchões de madeira, mantidos lado a lado à força de cordas e de outras vigas, firmes o suficiente para que tudo ficasse de pé, mas soltos o bastante para que o movimento constante do Eufrates desse a essa ponte, como às cinco outras iguais a ela, um balanço que nunca cessava. Atravessar essas pontes requeria uma certa coragem, principalmente ao chegar a seu ponto central, onde o vão se arqueava para cima, ficando a quase quinze côvados da superfície da água, e as tábuas aparelhadas que formavam o assoalho por onde se andava se separavam o suficiente para que pudéssemos ver o rio lá embaixo. Tudo era previsto e calculado segundo as leis imutáveis dos números, que os escribas e sacerdotes da grande cidade dominavam à perfeição, e essas pontes eram apenas as menores das grandes obras que os senhores da Grande Baab'el erguiam, dando prova do poder de seu deus Marduq.

Apoiada nas cordas que formavam o corrimão da ponte estava uma impressionante multidão, e a ponte sacudia e rangia como se estivéssemos em meio a enorme tempestade. Não sabíamos por quê: devia ser alguma coisa de grande importância, a chegada vitoriosa de algum batalhão ou a imagem sagrada do deus de alguma das províncias internas que Belshah'zzar tivesse mandado buscar para entronizar no centro religioso da Babilônia. Olhando para a Segunda e a Quarta Pontes, ao sul e ao norte de nós por sobre o Eufrates, vimos que também estavam superlotadas, balançando tanto quanto essa que tentávamos cruzar. Chegamos a pensar que ninguém senão o próprio Marduq estivesse descendo o rio, preparando-se para tomar a Grande Baab'el com sua grandeza.

Mitridates sacudiu-me o cotovelo, mostrando-me no cais abaixo de nós o navio egípcio que era nosso objetivo, com sua forma alongada e tão diferente de nossos barcos, redondos e feitos de couro cru. Os barqueiros da Babilônia só usavam esses barcos: sendo o Eufrates um rio cheio de caudalosas interrupções em seu percurso, havia lugares pelos quais não havia como retornar, devido à força das águas e à altura das pedras. Todos desciam o rio, navegando por suas corredeiras mais perigosas, levando além da carga um jumento. Na volta, o barco era desmontado, sua armação de madeira desarticulada e enrolada em fardos cobertos com o couro que formava o barco e colocada sobre o lombo do jumento, para que ambos enfrentassem as estradinhas de terra e pedras que seguiam pelas duas margens do Eufrates. Pelo sul, os barcos que tivessem força podiam subir o Eufrates, e dentre eles os egípcios eram os que mais chegavam até nós, não apenas porque dispunham de muitos escravos aptos a remar sem esmorecer e carregar os barcos nos ombros onde o rio ficava raso, mas principalmente porque tudo o que fosse egípcio representava para os da Grande Baab'el o máximo em matéria de desejo e necessidade.

Nos esprememos entre a multidão, olhando para o molhe onde estavam o navio e a carga que ele trazia, embalada em palha e linho. Um só daqueles pacotes de braceletes negros e azuis podia comprar a nossa liberdade de Bel'Cherub. Só precisávamos aguardar o momento certo, tornando nosso aquilo que era deles. Já tínhamos feito isso várias vezes, e, dependendo do tamanho da carga, conseguíamos por vezes nos apropriar de muito mais que o desejado. Essa era a nossa esperança nessa manhã. O ferimento no braço de Daruj e a perda aparentemente definitiva de Re'hum e Sam'sai não eram nada de muito sério: quando se é jovem como éramos, nenhuma ferida é digna de muita preocupação. Com nossa atenção voltada para o sul do Eufrates, olhos grudados no barco egípcio, demoramos a notar que toda a multidão que se acotovelava na ponte em que estávamos, assim como nas outras, olhava ansiosamente para o norte, murmurando cada vez mais alto.

Subitamente, como uma revoada de pássaros, um grito cresceu e se espalhou, fazendo com que a multidão em nossa ponte se agitasse mais ainda, balançando perigosamente o passadiço. Na curva do Eufrates mais ao norte da Grande Baab'el, passando lentamente pelo palácio de Belshah'zzar, surgiu uma estranha embarcação, de fundo chato e estrutura muito alta para os padrões dos barcos que por ali navegavam. Aproximava-se perigosamente da ponte ao norte da nossa, e durante alguns momentos o murmúrio da multidão cresceu, pois a ponta de sua cabine esquisitamente decorada estava por se chocar com o piso dessa ponte: a estátua rebuscada que encimava o trono sob a tenda de pano dourado e franjado, no entanto, passou a uns quatro dedos da parte

inferior do piso, arrancando da multidão um suspiro de alívio e uma onda de aplausos, pelo estalar alternado dos dedos das duas mãos e pelos gritos muito agudos. A curiosidade venceu nossa atenção, e nos enfiamos por entre as pessoas que coalhavam o passadiço, acabando apertados contra as cordas, balançando perigosamente sobre a água do Eufrates e vendo abaixo de nós a aproximação da barcaça. Yeoshua suava de medo, principalmente depois que alguns mais afoitos caíram ao rio, nadando atrás do grande barco que se preparava para encostar num dos molhes fluviais da Grande Baab'el.

Quando olhamos para o molhe, vimos Re'hum e Sam'sai atravessando a multidão em direção contrária. Estávamos perdidos: eles eram mais rápidos que nós, e certamente chegariam ao navio dos egípcios antes que pudéssemos alcançá-lo. Daruj gritou o nome de Re'hum, que procurou pelo som no meio do alarido da turba e finalmente ergueu os olhos, avistando-nos sobre a ponte. Daruj ergueu o braço enrolado no trapo vermelho de sangue, sacudindo-o no ar, e Re'hum riu com escárnio, empurrando Sam'sai para que andasse mais rápido. O butim, se butim houvesse, seria deles sem muita dificuldade, porque a confusão que cobria as margens do Eufrates certamente facilitaria em muito o ganho de pelo menos um fardo de braceletes. Nossa separação inesperada talvez tivesse fundamentos mais antigos do que pensávamos: Re'hum, com o apoio de Bel'Cherub, talvez já estivesse se preparando para nos alijar de seu convívio, iniciando um novo empreendimento com gente que lhe obedecesse cegamente, coisa que nós quatro, agora impotentes sobre a ponte balouçante, nunca estivéramos dispostos a fazer.

Definitivamente postos em lados contrários, vimos com muita raiva sua aproximação do navio egípcio, feita exatamente como pretendíamos.

Só eu e Daruj olhávamos para Re'hum e Sam'sai: Yeoshua e Mi-tridates continuavam fixados no grande navio que estava encostando no molhe, sob as salvas da multidão. No momento em que Re'hum começou a galgar a balaustrada do navio egípcio, um grito de deslumbramento escapou da turba, atraindo nossa atenção. Homens ricamente vestidos, com barbas e cabelos frisados, as cabeças encimadas por pequenas tiaras circulares feitas de metal, haviam abaixado a parte de cima do passadiço mais alto, que era uma grande liteira feita de sândalo e cedro fenícios, marchetados de ouro vermelho e pedras brilhantes, com um grande dossel em formato cônico recoberto por tecido de fios dourados tão retos que refletiam a luz do sol em nossos olhos. A parte da frente desse dossel era de pano egípcio muito fino e transparente, fortemente tingido de azul-índigo, em tal intensidade que criava uma escura névoa, velando o ocupante da liteira. A armação, também feita de cedro, tinha imensa riqueza de detalhes: os desenhos e volutas marcados nas pranchas e toras de madeira fluíam tão naturalmente, que parecia que ninguém tivesse precisado riscá-los. Quando a grande liteira pousou ao chão, oito homens desceram do navio rolando pela prancha dois grandes círculos raiados, feitos de madeira e cobre, com peças de ouro móveis que corriam de um lado a outro de seus raios. Chegando ao lado da liteira, os que a carregavam ergueram-na uns dois palmos do chão onde pousava, e esses dois círculos foram encaixados em eixos das laterais, transformando-se em enormes rodas que deslizaram suavemente pelos pranchões do molhe.

A multidão se acotovelava em volta da liteira, batendo palmas ritmadas e assoviando de maneira muito aguda. Os homens da frente, com capacetes cênicos sobre as cabeças, peitorais de escamas de metal e estranhas botas de cano alto, amarradas por atilhos de couro cru, puxaram os cordões que estavam presos aos véus azul-escuríssimos, desvelando o interior da liteira. E o povo, num suspiro uníssono, fez um instante de silêncio, em que até mesmo o vento pareceu cessar, antes de explodir em gritos ritmados:

— Sha'hawaniah! Sha'hawaniahl Sha'hawaniah!

Dentro da liteira, coberta por véus do mesmo azul profundo, enfeitados em suas bordas com borlas negras e brancas presas ao tecido com fios de ouro e prata, estava uma figura esguia, que se ergueu do assento com lentidão e graça infinitas, deixando surgir pelas aberturas da frente do manto suas mãos pequenas, mantendo oculto o corpo ao qual pertenciam. A multidão, excitada além da conta, gritava o nome dela, e num repelão coletivo, sem que ninguém esperasse por isso, afastou os homens que seguravam os varões da liteira sobre rodas, começando a levá-la à frente com a força de seus músculos e gritos. De onde eu estava, tive a impressão de que as rodas já não mais tocavam o solo, e a liteira balouçava sobre os ombros da multidão como um navio nas corredeiras do Eufrates. Uma das mãos da figura avançou repentinamente para a frente, a um balouçar mais forte, apoiando-se num dos pilares que sustentavam o dossel com seus dedos, e deixou ver até o cotovelo, o antebraço, com três pulseiras tão polidas que faiscaram ao sol. Meu coração batia forte no meio da garganta, e a cabeça girava, ao balanço da ponte onde outra multidão se acotovelava gritando o nome "Sha'hawaniah!" Não me recordo como repentinamente já descíamos a ponte em declive acentuado, e por cima dos ombros e cabeças dos que estavam à minha volta eu via, cada vez mais perto, a liteira onde estava a figura que me prendera a atenção. Meus companheiros estavam à minha volta, e Mitridates teve que gritar para que o ouvíssemos:

— É Sha'hawaniah, a sacerdotisa da deusa em Dur-Qurigalzu, vindo pela primeira vez à Grande Baab'el para dançar para Marduq em seu próprio templo. Ela é a maior e mais jovem sacerdotisa de Ishtar, e pelo que dizem é a sua dança da fertilidade que tem sido a fonte do poder de Marduq e da Babilônia, desde a loucura de Nebbuchadrena'zzar.

— Foi Yahweh quem o enlouqueceu — disse Yeoshua, acotovelan-do-se conosco. — Nebbuchadrena'zzar destruiu Jerusalém para que nenhum deus tivesse poder sobre qualquer rei desse mundo. Neb-buchadrena'zzar acreditava não precisar de nenhum deus, por isso Yahweh lhe disse: "Eu, Yahweh, decreto que por minha ordem toda a autoridade te seja tirada, e que sejas afastado de todos os homens, e que vivas como os animais, comendo a grama do solo até que sete medidas passem e finalmente a morte te traga o entendimento de que sou Eu quem dá os direitos de soberania àqueles de que Me agrade."

Daruj fez um muxoxo:

— Tolice! Nenhum deus é poderoso a esse ponto. Se isso fosse verdade, o rei da Grande Baab'el hoje serias tu, Yeoshua, o melhor sacerdote que conheço entre os de Judah! Sacerdote e alfaiate, porque pelo menos costuras melhor que Zerub...

Daruj pôs-se a rir gostosamente enquanto descemos a ponte até pisar no molhe de pedra da Esagila, à direita da grande torre onde ficava o altar de Marduq, do outro lado da avenida. Eu, cansado de ouvir histórias como essa da boca de meu pai, mantive os olhos firmemente pregados na figura que seguia de pé dentro da liteira e no braço moreno que a apoiava como se estivesse apenas tocando o pilar de madeira, dando tal demonstração de força, que um toque mais direto de seus dedos longos talvez desfizesse esse pilar em pó. Forçando meu caminho assim que pisamos fora da ponte, fui chegando mais perto da liteira, entorpecido pelo que via e desejoso de ver mais. Com a força dos ombros, consegui finalmente postar-me ao lado do veículo, segurando com dificuldade o varão que era usado para impulsioná-la para a frente, olhando de baixo para cima, tentando perceber mais do que os véus de azul profundo me permitiam adivinhar.

O coração dos homens não pára apenas quando a morte chega: há momentos de inesperado tão violento, que a vida como que suspende seu ciclo infinito, estabelecendo no tempo uma cicatriz para sempre indelével. Assim que meus olhos tocaram a face encoberta da sacerdotisa de Ishtar, minha vida suspirou e cessou por um momento. Seus olhos de negro profundo atravessaram o azul carregado dos véus que a cobriam e pousaram em meus olhos inexperientes, fazendo com que minha alma envelhecesse mil anos em um instante. Minha boca se abriu, e o braço que sustentava o corpo esticou-se em minha direção, exibindo um delicado bíceps moreno perfeitamente desenhado, decorado com volutas de tinta negra tão finas que pareciam a teia das aranhas. A mão com cheiro de mel e patchuli tocou minha face, roçando as unhas longas e negras na minha ainda incipiente barba, e juro que pude ver atrás do azul dos véus o sorriso que essa mulher me deu, enquanto seus lábios deixavam escapar uma palavra sibilada, que nunca consegui saber qual era. Um sufocamento me tomou, e em meu baixo-ventre um nó se desfez, como um arco que se distendesse repentinamente. A flecha de meu desejo nunca mais abandonou esse arco, nem mesmo muito tempo depois, quando eu já aprendera o que essa mulher significava e meu corpo ansiava permanentemente por sua presença a meu lado. Estava disposto a lutar contra qualquer inimigo que pretendesse me impedir de estar com ela lado a lado; deus e deusa finalmente reunidos na mesma igualdade.

A liteira seguiu em frente, entrando na avenida cortada por passarelas suspensas. Eu estanquei, sem ver a multidão que por mim passava em direção à Grande Torre de Nim'rud, reconstruída por Nebbu-chadrena'zzar como prova de seu poder sobre Yahweh, que já uma vez a havia derrubado. Nenhum poder me interessava nesse momento, a não ser a marca dos dedos e o arranhar leve das unhas sobre minha face. Obnubilado, saltei para a frente, sentindo que dali em diante eu estaria para sempre galgando uma torre só minha, não em direção ao céu onde um deus poderoso habitasse, mas sim ao mergulho final na profundeza dos olhos que entrevira, ainda que tudo contra isso conspirasse.

 

A turba ensandecida nos levava de arrasto pela avenida que as passarelas suspensas cruzavam, onde as pessoas se acotovelavam, apinhan-do-se frente ao Templo de Marduq e à Grande Torre de NinVrud, do topo dos quais grossos rolos de fumaça branca subiam aos céus. Os cantos eram intensos, cada vez mais altos e rápidos, à medida que nos aproximávamos da Grande Torre. Do fundo dessa avenida que cortava a Grande Baab'el de nordeste a sudoeste, a procissão que deixara o templo de Ishtar vinha juntar-se ao grosso da multidão que tomava a avenida. Sobre uma liteira negra estava a entu de Ishtar, Grande Sacerdotisa da deusa em nossa cidade, seguida por suas adeptas organizadas em alas: naditus, gadishtus, sinnishat-zikrums, todas virgens com tarefas diversas nas salas hipostilas do Templo de Ishtar, reunidas na ishtarati, a Corte de Ishtar, formada por elas, pelas kishretis, sacerdotisas permanentemente encerradas no claustro de seu próprio mundo interior, e pelas harimati, as que se prostituíam em glória da deusa nas masmorras do Templo. A atitude dos habitantes de Baab'el era bastante dúbia em relação a essas harimati: as leis e costumes da Babilônia recomendavam que nunca se tomasse uma delas por esposa, mas existia entre todos um enorme respeito pelas mulheres que se prostituíam por um dever sagrado, admiradas como cortesãs dos deuses, havendo mesmo muitos que desejavam para suas filhas essa posição tão invejável quanto discutível. Todas as mulheres da Grande Baab'el tinham a obrigação de, pelo menos uma vez na vida, aceitar a moeda que um homem estranho lhes jogasse ao colo para que se deitasse com ele no recinto do Templo. Como essas cortesãs divinas eram todas símbolos vivos de Ishtar, as mulheres no meio da turba passaram a estalar os dedos e gritar para chamar-lhes a atenção, querendo com isso atrair as benesses e a fertilidade de que a deusa era pródiga. A liteira que viera na grande barcaça rolava pela poeira da avenida, e a procissão que vinha do norte estancou quando as duas liteiras se encontraram, quase em frente ao portão que levava à rampa da Grande Torre. A entu de Ishtar ergueu-se de seu trono, levantando a mão direita espalmada, e saudou a figura oculta sob os véus azul-escuros. Da boca da entu saíram sons que eu já havia ouvido mas aos quais nunca prestara a menor atenção. Era a oração a Ishtar, já que a recém-chegada ali era a própria deusa em visita. A entu a ela se entregava como fiel e não como sacerdotisa, abrindo o coração e cantando hinos de louvor a Ishtar: a deusa estava presente, e a multidão agia de acordo, cantando, gemendo, estalando os dedos e batendo as palmas ritmadas que serviam para acelerar cada vez mais os sentidos de todos.

Para mim, no entanto, esse dia tinha outra importância: pela primeira vez na vida, meu corpo se atirava para uma mulher. Eu a sentia como a deusa que representava, tornando-me nesse instante o devoto mais fiel dessa que se tornara o meu único interesse. Não apenas meu, por certo: eu via nos olhos à minha volta a mesma cupidez que brilhava nos meus, e se pudesse teria matado com minhas próprias mãos ciumentas todos os malditos que ousavam dirigir seus olhares para o objeto de minha adoração.

Os músicos de um lado e outro da liteira da entu deram um toque em seus instrumentos, harpa, tambores, clarinetes duplos, flautas e sistros, imediatamente começando a executar uma saltitante melodia de estrutura rítmica ímpar, nem um pouco natural, mas cujas figuras e frases repetidas iam-se acumulando em um grande movimento cadenciado, que nos confrangia o coração, empurrando nossos corpos para a frente e para o alto e regulando o fluxo de nosso sangue a seu bel-prazer. A multidão da qual eu fazia parte era apenas mais um dos instrumentos dessa orquestra, feita de carne, sangue e impulsos do desejo, crescendo a cada minuto, pulsando e se retorcendo como uma serpente que inchasse sem parar em sua incontrolável vontade de absorver o mundo. Outras orquestras no meio da multidão se uniram a esta, e o som dos instrumentos encheu todo o ar à nossa volta: tudo girava à volta dessa sonoridade, e as vozes de homens e mulheres uivavam cada vez mais forte, enquanto a liteira era erguida cada vez mais alto, aproximando-se da Grande Torre.

Até esse dia, eu não tinha me apercebido do poder que a música exerce sobre os seres vivos. Ela se instala em cada espírito como uma profecia do que pode acontecer, mostrando pelos ouvidos aquilo que os olhos entrevêem em seus sonhos mais delirantes. O cego da noite anterior, com seu fluxo de beleza em meio à sujeira da taberna, assim como esse poder imposto sobre a multidão da qual eu fazia parte, me mostravam ser a música a única língua que me interessaria falar desse momento em diante. Eu estava definitivamente encantado por sua absoluta força, da qual queria, precisava e tinha que ser parte. Refleti que, se o Criador nos tinha dado a música, deveria ter guardado para si alguma coisa ainda mais maravilhosa, que eu para sempre buscaria, da mesma forma que para sempre desejaria essa mulher desconhecida, sendo as duas, a música e a mulher, tudo aquilo por que eu ansiava.

A multidão saltava cada vez mais alto e gritava cada vez mais forte, erguendo a liteira de Sha'hawaniah e dirigindo seus passos para a rampa que circundava a Grande Torre de NimVud. A música crescia, os cantos já estavam roucos, e nada cessava: o cortejo seguia ondulante e brusco em direção aos primeiros degraus, quando uma agitação começou a se propagar da parte de trás da multidão para a frente. Num movimento inexplicável, abriram-se duas grandes alas, para que se aproximasse o cortejo grandioso de Belshah'zzar, rei-substituto da Grande Baab'el, representante de Marduq, e como tal o Único entre nós que podia tocar a grande Ishtar. Invejei esse homem, que vinha completamente nu sobre uma liteira de rodas quase tão altas quanto as da liteira de Sha'hawaniah. Ele estaria com ela nesse dia em intimidade maior do que qualquer de nós poderia imaginar, porque não só seus corpos estariam unidos, mas também Marduq e Ishtar, ocupando esses corpos, os usariam para garantir a fertilidade da Natureza. Minha inveja fazia sentido: Belshah'zzar era um tipo mole e adiposo, a pele descorada de quem raramente enfrenta o ar livre, piscando como se a luz do sol o cegasse, um tanto incomodado pela nudez que exibia, ainda que ela fosse a mais absoluta prova de seu poder. Eu era melhor que ele, e desejava mais que qualquer outro ser o rei em quem Marduq se corporificaria, para que Ishtar, personificada em Sha'hawaniah, entrasse comigo em conúbio amoroso. Ninguém tinha direito a essa nudez pública a não ser o rei e a sacerdotisa de Ishtar: mas, ao mesmo tempo que o corpo sem formas definidas do rei-substituto nos era exibido, Sha'hawaniah permanecia modestamente coberta pelos mantos de profundo índigo, sem mostrar mais que a mão, um pedaço de seu antebraço, um cotovelo, e o brilho do olhar em brasa perfurando o tecido à sua volta. Com meus olhos fixos em sua figura, eu orava para que um anátema qualquer caísse dos céus, uma chuva de enxofre, um raio de ira divina, destroçando todos que a cobiçavam, para que a nudez que eu pressentia fosse mostrada só a mim e a mais ninguém.

A Grande Torre de Nim'rud, destruída séculos atrás pela ira de um deus, fora mais tarde reconstruída por ordens de um outro, segundo as lendas. Nebbuchadrena'zzar havia tornado ponto de honra reerguer essa torre, antes de mandar erigir todos os seus monumentos e construir a grande estátua cujos restos ainda brilhavam ao sol na planície de Du'rah. Essa fora a grande obra do rei sob cujo comando Jerusalém caíra, e, ao que tudo indica, cada um de seus monumentos era a resposta que dava, em nome de Marduq, ao deus de Judah, senhor do templo que fora destruído em Jerusalém.

Nesse momento, só havia uma figura em meu espírito, a que eu adivinhava sob os véus, e por isso tomei a decisão de enfrentar a multidão e acompanhá-la o mais que pudesse, esperando regozijar meus olhos com a visão de sua nudez no momento em que ela, seguindo a tradição, se desfizesse por completo das roupas que não deixavam Ishtar tomar seu corpo. Mesmo que fosse com risco de minha própria vida, eu queria ter um vislumbre da maravilha que pressentia. Fui-me afastando de meus amigos e me enfiando pela turba adentro, colocando-me à frente da liteira de Sha'hawaniah. Meu desejo era avançar pela escadaria que se erguia, ligando-se ao primeiro plano inclinado em volta das oito torres superpostas que formavam a Grande Torre de Nim'rud: na borda dessa escadaria se postavam quase seis dezenas de sacerdotes de Marduq e de Ishtar, uma fila de cada lado, braços erguidos para o alto, aguardando que o deus e a deusa pisassem o primeiro dos degraus, para acompanhá-los até a sala no alto da torre, onde aconteceria sua união. Eu tinha que subir essa escadaria, mantendo-me à frente da procissão, para poder ver aquilo por que ansiava. Fui-me enfiando pelo meio do povo, acotovelado e empurrado, mas a cada instante ganhava mais e mais terreno: quando as duas liteiras tocaram o primeiro degrau da escadaria, e a música cessou instantaneamente, eu já era um dos que formavam a linha de frente dos fiéis, encostado na barriga enfeitada dos sacerdotes de Marduq, que olhavam a multidão por sobre minha cabeça. Atrás de nós, a turba se apertava, e a pressão em minhas costas era insuportável. Um sacerdote de Marduq, vestindo a longa saia de pele com os pêlos trançados, o torso nu e a cara completamente coberta por sinais riscados em negro sobre azul, acima da barba postiça e frisada, esticou a cabeça e pôs-se a entoar um hino de regozijo pelo reencontro do deus e da deusa, que a Grande Baab'el tanto desejava. Barbas postiças significavam poder, sendo marca de excelência e importância em toda a Babilônia: mas eu duvidava que Sha'hawaniah a estivesse usando, por baixo de seus véus. Seu poder certamente não necessitava desses sinais exteriores.

Não acreditem que eu soubesse de tudo isso naquele momento: essas noções só me vieram muitos anos depois, pela experiência que acumulei a partir das coisas que fiz. É difícil explicar o que me aconteceu: tudo estava centrado na figura de Sha'hawaniah, a única entre todos que se mantinha calma e composta, preparando-se para o momento em que seria veículo da manifestação de Ishtar, sua deusa de tanto poder. Eu precisava ver essa posse, não queria perder o momento em que deus e deusa se fizessem um só, mas, além disso, tinha que conhecer o corpo dessa mulher que me seduzia de maneira tão absoluta. Por isso, enquanto as alas de sacerdotes se abriam, forcei meu corpo para a frente, percebendo que Belshah'zzar e Sha'hawaniah haviam saltado de suas liteiras e começavam, lado a lado, a galgar seus quase trinta degraus. Eu e algumas outras pessoas nos mantínhamos à frente deles, e antes de alcançar o primeiro plano inclinado ouvi a litania dos sacerdotes, acompanhados pela música que novamente soava:

— Louvemos a Deusa, a maior de todas as Deusas, Amante de todos os povos, Rainha de todas as mulheres, vestida de Prazer e Amor, coberta de Poder e Volúpia! Teus lábios são doces, e em Tua boca mora a Vida, ó Gloriosa! Os véus que descem de Tua cabeça revelam, ocultando, a Tua bela figura e os Teus olhos brilhantes!

Um sacerdote avançou na direção de Sha'hawaniah, quase tocando o solo com um joelho, e estendeu a mão para seu manto. Sha'hawaniah, num repelão brusco, afastou o tecido das mãos do sacerdote, que ergueu os olhos, incrédulo. E pela primeira vez eu ouvi a voz dessa mulher, cujo timbre suave soou poderoso como a voz de uma verdadeira rainha:

— O que pretendes, urigallul Que eu me dispa aos poucos, como já fui forçada a fazer em meu caminho para o Mundo Inferior, por ordens de minha irmã Ereqshi'gal? Deixa-mel

A sacerdotisa que representava a deusa em cerimônias como essa devia despir-se gradativamente, enquanto subia os planos inclinados que circundavam a Grande Torre de Nim'rud, para chegar completamente nua ao último patamar, onde ficava a Câmara da União, sob o Altar de Marduq. Mas Sha'hawaniah parecia decidida a quebrar essa tradição: soltando a mão de Belshah'zzar, que ridiculamente apressava o passo atrás dela sacudindo as banhas descoradas, pôs-se a subir o caminho de tijolos vitrificados. A bela figura envolta em tecidos azuis parecia deslizar rampa acima, e em cada parada para descanso, como rezava o ritual, um sacerdote dela se aproximava para pedir-lhe mais um pedaço das vestes, emulando o Guardião do Mundo Inferior. Depois que ela afastou com severidade a mão do terceiro deles, os oficiantes do culto perceberam que aquela não era uma sacerdotisa como as outras. A multidão, ensandecida pela música que soava cada vez mais alta em torno da Grande Torre, sentia a aproximação de um momento único, inesquecível, e que testemunhariam alguma coisa que nunca antes havia ocorrido. Por força de meu desejo, eu estava entre os que subiam a rampa à frente de Sha'hawaniah, perto de um pequeno grupo de músicos que ecoava nota por nota aquilo que era tocado cada vez mais alto e mais rápido abaixo de nós. Meus olhos não abandonavam a figura que ascendia: os movimentos de Sha'hawaniah, passando pelos patamares de descanso, onde sacerdotes se ajoelhavam com suas mãos inutilmente estendidas para a frente, eram ao mesmo tempo suaves e ansiosos, querendo alcançar o alto dessa torre onde os homens haviam um dia pretendido tocar o céu.

Depois de algum tempo, durante o qual o movimento ascendente não se interrompeu nem uma vez, as rampas começaram a fazer-se sentir, e muitos de nosso grupo deixaram-se vencer pelo cansaço, inclusive um dos músicos de Sha'hawaniah, exatamente o que tocava por sobre a cabeça um estranho tambor redondo de quase cinco palmos de diâmetro, em cuja borda tilintavam pequenos círculos de cobre. Eu o apanhei quando ele o abandonou, sacudindo-o por cima da cabeça enquanto o tocava com a mão esquerda, como o havia visto fazer. Talvez ela tivesse me visto fazer isso, talvez tenha sorrido para mim por sob seus véus, mas essa sensação não era mais que minha imaginação, porque ela parecia exclusivamente preocupada em alcançar o topo da Grande Torre de NinVrud.

Repentinamente, lá estávamos nós, em pleno sol e vento, no topo da Grande Torre, cento e oitenta côvados acima da Grande Baab'el. O topo era um quadrado de tijolos com não mais que quinze côvados de lado, no centro do qual se erguia um grande altar no formato de mesa quadrada e feito de ouro puro, com pontas em cada um de seus ângulos, permanentemente tingidas pelo sangue e cinzas dos sacrifícios que ali se realizavam. As doze colunas atarracadas sobre as quais essa mesa se erguia eram de tijolos vitrificados e unidos com betume, e seus capiteis, esculturas dos doze signos do zodíaco, já que também era usada como ponto de observação dos astros, pois nada era feito no Império da Babilônia sem consultá-los. Marduq pontificava sobre esse templo, pois ao lado dessa mesa, impressionantemente grande, ficava sua estátua feita de ouro, a mesma que no décimo segundo dia da procissão de Ano Novo descia da torre para passear entre o povo. Debaixo da mesa de ouro estava um leito alto, forrado de tecido adamascado e rebordado em fios de ouro e prata, sobre o qual o deus e a deusa se acasalariam. Cercamos essa sala, sem incomodar os sacerdotes que se postavam em frente a cada uma das colunas, vestidos com saias peludas nas cores correspondentes a cada signo. A sala interna ficava em penumbra, e só depois de algum tempo dentro dela é que os olhos se acostumariam à semi-escuridão, permitindo enxergar alguma coisa. Para quem estava de fora, era quase impossível, pois só alguns detalhes eram iluminados pelos espelhos redondos de metal que, captando a luz do sol no exterior, refletiam-na em cada canto da cama ritual, suas arestas apontadas para os pontos principais da rosa dos ventos.

Era quase o meio do dia, e o sol estava a pino quando o rei Bel shah'zzar, suando e bufando, finalmente chegou até o último patamar, apoiado nos ombros de alguns de seus acólitos, que resmungavam, porque tinha sido realmente um excesso de esforço carregar seu pesado rei pelas rampas acima. Sha'hawaniah estava de pé à frente do lado nordeste do altar, onde uma pequena escada de madeira permitia subir sobre a grande mesa: sua imobilidade era absoluta, mas seu corpo vibrava, na antecipação de alguma coisa que nenhum de nós sabia o que fosse. Com um gesto curto, ela nos silenciara a todos, seu silêncio conseguindo calar até mesmo os acólitos de Belshah'zzar. O vento soprava em nossos ouvidos, enquanto aguardávamos, em crescente excitação e desejo, que ela se despisse.

Sha'hawaniah, com um gesto quase imperceptível, tirou de cima de si a grande capa translúcida, encantando-nos e frustrando-nos ao mesmo tempo, pois estava coberta do pescoço para baixo por uma roupa quase colada à sua pele, feita de material muito mais fino e mais claro, atada por diversas cadeias de ouro e lápis-lazúli, no pescoço, abaixo dos seios, cintura, punhos e tornozelos, de forma que seu corpo ficava perfeitamente desenhado pelo vento, parecendo de vez em quando ser daquela cor tão inesperada, formada pela soma da tintura azul do pano e do tom azeitonado de sua pele. Era uma obra-prima de sabedoria nas artes da excitação, sensualidade e beleza, pois tudo mostrava sem nada revelar, a não ser uma estreita linha lateral que ia do pescoço até os pés, onde não havia nenhum tecido, e pela qual a pele aparecia como verdadeiramente era: brilhante e suave. Na cabeça, ela trazia um adereço de rede de ouro que cobria seu cabelo até a linha das orelhas: daí para baixo, essa cabeleira se dividia em uma série de tranças que desciam até a cintura. No alto da rede estava um pequeno crescente de ouro que coruscava ao sol, e dali saía uma pequena corrente, sustentando um lenço azul que lhe cobria a face dos olhos para baixo. Esses olhos tudo viam, até mesmo aquilo que não estava ao seu alcance, mas nunca esperei o choque que quase me projetou para fora de mim mesmo quando ela se virou de frente para nós, falando com grande autoridade:

— Ouve-me, Ishtar, Imaculada entre as Imaculadas, Tocha do Céu e da Terra, Tu que alteras os destinos e fazes de tudo um momento bom, tem Piedade de mim, ordena minha Fortuna, observa-me com Benevolência, aceita minha Afirmação!

Com movimentos tão graciosos quanto rápidos, Sha'hawaniah galgou os degraus de madeira e logo estava sobre a mesa, arrancando um sussurro de desagrado dos urigallus e edus: suas palavras foram descendo de boca a ouvido dos que ocupavam as rampas, chegando até o chão da Grande Baab'el, onde foram repetidas por milhares de pessoas, subindo de volta até nós como um murmúrio grave. E ela continuou:

— Permite, ó Ishtar, que eu proclame a todos a Tua Divindade, que eu alcance o meu Desejo.

Com um sinal de sua mão recoberta de anéis, Sha'hawaniah arrancou de seus músicos um primeiro acorde, imediatamente refletido em seus quadris, num movimento rotatório que a mim ainda parece impossível de ser executado, mesmo depois de tê-lo observado tantas vezes desde esse dia. Seus braços se ergueram, lentamente, a um som contínuo do clarinete duplo, enquanto as flautas acompanhavam o movimento cada vez mais rápido de seus dedos longos. Eu estava paralisado de encanto, e sequer percebi quando o tocador do adufe que eu manipulara desde o meio da rampa o retomou de minhas mãos, tamborilando seus dedos na pele, cada vez mais depressa, fazendo com que os pequenos pedacinhos de metal soassem junto com os movimentos dos dedos dela. O volume do som foi crescendo, e a um toque brusco da trompa e do tambor, a lira e os instrumentos de sopro começaram a soar a melodia, sobre uma base rítmica de seis batidas rápidas e duas lentas de tambor, sistro e adufes, sendo as duas lentas também marcadas pelos crótalos. Era tudo tão belo, tão emocionantemente vivo, que um nó de alegria se instalou em minha garganta, ao mesmo tempo que meu ventre se contraía e expandia, pois a cada som e batida dos músicos correspondia um movimento do corpo de Sha'hawaniah. Por todos que ali estávamos se espalhou um suspiro de prazer, e começamos a marcar as duas batidas lentas, com palmas, curtos assovios e gritos agudos. Esta participação se espalhou pela torre, descendo por seus imensos degraus como água por uma montanha íngreme, e de repente toda a Grande Baab'el estava de olhos fixos no altar sobre o qual Sha'hawaniah fazia o impensável, dançando publicamente o que Isht ar só dançava privadamente para Marduq, na obscuridade de sua câmara secreta, antes que seus corpos e almas se unissem, tornando os dois deuses em apenas um.

Por mais que os urigallus se mostrassem irritados, e virassem os olhos para não assistir ao que consideravam um sacrilégio, a vontade da deusa tinha que ser respeitada: a sacerdotisa havia decidido que o ritual oculto seria mostrado a todos, indiscriminadamente, e nada havia que pudessem fazer quanto a isso. Ou aceitavam que a deusa estivesse usando o corpo de Sha'hawaniah como ferramenta de sua vontade sagrada, ou perdiam poder perante os devotos, hipótese essa que nunca agrada a sacerdotes. Meus olhos não abandonavam a figura de Sha'hawaniah, que agora fazia uma série de movimentos com origem no seu ventre, como se este se estivesse iluminando por dentro, à medida que se cobria de suor e o tecido a ele se ia colando. O corpo dessa mulher se movia em completo acordo com a música que era tocada, e a partir de um certo instante foi como se o próprio corpo produzisse a música, tal a identidade entre seus movimentos e o som dos instrumentos. Ainda assim, os olhos, encimando a mais poderosa fonte de excitação que já tive a oportunidade de encontrar em minha vida, exibiam uma qualidade tão espiritual, que ninguém duvidava serem corpo e espírito a mesma coisa. O ventre de Sha'hawaniah girava sobre si mesmo, lateralmente, de cima para baixo, manipulando nossas sensações e emoções de forma tão completa, que estávamos todos ligados a ele, no eco de outros ventres que nos houvessem posto no mundo e para os quais ansiássemos retornar, de uma maneira ou de outra. Tudo em seu corpo, parindo beleza e força, movia-se a partir do ponto gerador de seu ventre, onde a Criação do Universo está mais que viva, da qual nós homens sempre desejamos estar próximos, mas que nunca podemos conhecer verdadeiramente. O efeito dessa dança era incompreensível para a maioria, que não percebia como esses movimentos podem manipular emoções e sensações: seu poder era inegável, pois até mesmo o rei Belshah'zzar exibia uma ereção considerável, quase aparente por baixo de seu ventre adiposo e cheio de dobras. Estávamos todos unidos em coletiva excitação, sob o poder de Ishtar, manifestada no belo e bem proporcionado corpo de Sha'hawaniah.

Subitamente, sem que ninguém esperasse por isso, com um gesto das mãos de Sha'hawaniah, a dança se interrompeu, sem aviso, sem razão, deixando-nos a todos órfãos: os músicos calaram seus instrumentos, com exceção do tocador de harpa, que principiou a entoar um cântico suave, com voz tão bela que me trouxe lágrimas aos olhos:

— "Ishtar, Ishtar, desejada por todos os deuses! Sua palavra é respeitada, e reina suprema sobre todos! Ishtar é sua rainha, e a ela todos obedecem, todos ante ela se curvam, dela todos recebem a Luz, e o poder de suas palavras é o que enche de forças o rei!"

Nesse momento, os sacerdotes, retomando o ritual original, fizeram com que Belshah'zzar avançasse na direção de Sha'hawaniah, que olhava para ele do alto da pedra sobre a qual dançara: sem nenhum sinal de medo, ela chegou até a borda dessa pedra e de lá deixou-se cair, confiante de que seria apanhada por seus acólitos antes de tocar o solo. Assim aconteceu: foi acolhida nos braços dos doze sacerdotes que haviam unido seus braços em rede, e que gentilmente a puseram de pé, frente a frente com o gordo Belshah'zzar, que a olhava lubricamente, as ventas alargadas pela excitação, e ele e a sacerdotisa coberta de suor, sem tirar os olhos um do outro, penetraram na câmara obscura sob o altar de Marduq.

Tivesse eu uma faca, mãos mais fortes, quem sabe uma pedra, teria esmigalhado a cabeça desse asqueroso rei da Babilônia, que tocava meu objeto de adoração e ciúme: em meio a tantos como eu, só pude abaixar a cabeça e deixar que as lágrimas me corressem pelas faces abaixo, ouvindo os ruídos que Sha'hawaniah e o gordo rei faziam dentro da penumbra do leito sob o altar, realizando o conúbio sagrado do deus e da deusa. Não durou muito essa união: em apenas alguns instantes, o rei soltou um arquejo rouco do fundo da garganta, indicando a todos que a semente de Marduq já estava dentro do ventre de Ishtar, e que a fertilidade da Grande Baab'el estava garantida por mais um ano. Nesse exato instante, ao ouvir de novo a voz do tocador de harpa, desviei meus olhos de Sha'hawaniah, e num relâmpago recordei onde havia ouvido essa voz: fora na noite anterior, na Taberna do Boi Gordo, saída da boca do cego imundo a quem todos chamaram de Feq'qesh. Mas o homem que ali estava nesse momento era outro, ainda que o talhe e as feições fossem muito parecidos com as de Feq'qesh: estava limpo, parecia próspero, e seus olhos vivos não mostravam nenhum sinal de cegueira. Aproximei-me dele, enquanto a procissão começava a deixar o topo da Grande Torre, querendo perguntar-lhe como se passava da cegueira mais completa e suja para a visão mais perfeita e limpa. A voz se me trancava dentro da garganta, no entanto, como se dentro de mim todas as coisas tivessem perdido suas raízes e estivessem embatendo umas com as outras, no campo de batalha de meu espírito. Tudo concorria para isso: a excitação que Sha'hawaniah me causara, a maneira sub-reptícia com que eu galgara a Grande Torre, a experiência de beleza que a música e a dança me haviam proporcionado, e a tristeza por perceber que o corpo que eu ansiava ter entre minhas mãos era território exclusivo de deuses e de reis.

A guarda de Belshah'zzar se aproximou, para auxiliar seu rei na descida das rampas, e eu me aproximei mais e mais dos músicos, tentando misturar-me com eles, para não ser expulso como um cão vadio. Meu corpo bateu contra Feq'qesh, que me olhou sem emoção: percebendo para onde meu olhar se dirigia, compreendeu que os guardas de Bel-shah'zzar me causavam receio, e dirigiu-se a mim, falando em voz baixa:

— Tocaste muito bem o adufe, rapaz: onde o aprendeste?

— Nunca o havia tocado antes — disse eu, ajuntando baixinho o nome que me queimava a língua: — Feq'qesh...

O tocador de harpa logo compreendeu que eu era apenas um jovem curioso, movido por um impulso incontrolável de meu ser, e eu vi um estranho sorriso em seus olhos, pela primeira vez em nossas vidas. A simpatia entre nós foi instantânea e mútua, apesar de nossa diferença de idade: eu não tinha nenhuma consciência de que a música seria parte do território que trilharíamos juntos desse dia em diante. Continuamos descendo as escadas, atrás das comitivas de Belshah'zzar e Sha'hawaniah, minha atenção tão dividida que nem sei como consegui manter meus pés nos tijolos das rampas. Não conseguia compreender por que não era comigo que Sha'hawaniah realizava sua magia sentindo dentro de mim o impulso incontrolável de tê-la de qualquer maneira, sob qualquer condição, estando disposto a qualquer coisa para isso. Ao mesmo tempo, a beleza da música de Feq'qesh também se enraizava em meu coração, e nesse instante minhas duas paixões, a música e Sha'hawaniah, somaram-se definitivamente, tornando-se cada uma a face oculta da outra. Enquanto a comitiva descia em direção ao solo da Grande Baab'el, eu disse a Feq'qesh o quanto a sua música me impressionara, fazendo-o rir gostosamente:

— Com que então o jovem soube reconhecer-me sob meus disfarces? Isso é raro: poucos até hoje conseguiram enxergar por baixo da aparência asquerosa do cego Feq'qesh o músico dos templos da grande Baab'el... Fico feliz, porque o prazer de encontrar um verdadeiro admirador de minha arte é maior que a preocupação por teres descoberto que o cego imundo e eu somos a mesma pessoa.

Eu disse a Feq'qesh que o que me fizera reconhecê-lo sob vestes tão diferentes tinha sido exatamente aquilo que ele chamava de "sua arte", para mim uma coisa de beleza incomparável, da qual eu pretendia nunca mais me afastar. Desviando o olhar para o alto, ele respirou profundamente e disse:

— Disseste que antes de hoje nunca havias tocado o adufe: é difícil de acreditar. O que fizeste, de improviso, demonstra uma capacidade rítmica que nem todos têm. Tu mesmo deves ter notado que a maioria das pessoas não sabe reconhecer uma medida de cinco tempos como a que tocamos hoje: mas tu, naturalmente, sem pensar nisso, imitaste com precisão o toque que meu companheiro dava, sem enganos nem perdas. Juras que nunca antes fizeste isso?

— Juro, Feq'qesh. A única coisa que eu conhecia como música até hoje são os hinos que meu pai entoa quando das comemorações...

A voz me faltou, porque a súbita lembrança dos cantos de meu pai, com sua voz grave, me trouxe uma tristeza infinita ao coração, perden-do-se imediatamente nos desvãos obscuros de meu espírito. Feq'qesh me olhou profundamente e sorriu:

— Calma, rapaz. Como te chamas?

— Zerubb'ben'Salatiel.

A surpresa de Feq'qesh não me pareceu muito verdadeira:

— Ben'Salatiel? És o filho do rosh-ha-golah? Eu me espantei:

— Tu o conheces? Como?

— Não tinhas percebido que também sou um dos de Judah?

- Não, Feq'qesh, não tinha. Os de Judah que conheço, quando têm a tua idade, são todos ásperos e enclausurados em si mesmo, como meu pai, que sequer cruza o portão de nosso bairro, para não se misturar com aqueles que chama de "impuros".

Feq_qesh riu de novo, com uma ponta de tristeza nos olhos:

—   Conheço bem. Se não tomasse cuidado, talvez estivesse sendo constantemente apedrejado por eles.- indaguei eu, ainda mais curioso —, se és como eu um dos de Judah, como é que podes estar junto de uma sacerdotisa de Ishtar?

O vulto azul-escuro de Sha'hawaniah voltava a ocupar meu campo de visão, e Feq'qesh deixou em meu espírito a primeira das muitas dúvidas que ali se encarregou de plantar:

— Teu pai e os que ficam no bairro de Judah são uma minoria, Zerub. A grande maioria sequer se recorda que um dia habitou um lugar chamado Jerusalém, nem que faz apenas setenta anos que aqui estão. Há também os que chegaram muito antes deles, e que já não têm nenhuma ligação com a terra de seus avós, esse Sião pelo qual teu pai chora antes de cada Shabbath. Na verdade, o que importa em cada homem é o dom de que Yahweh o dotou: cada vez que minha voz se ergue, é em Sua honra, não importando a aparência das coisas externas. Dentro de mim existe um Templo onde ergo minha arte em holocausto ao Deus que me criou. É a beleza do que faço que a Ele importa, nada mais.

Não compreendi o que ele me dissera, e como estávamos no último lance de rampas, temi que Feq'qesh, ao chegarmos ao solo, se despedisse de mim. Não desejava isso: pretendia estar com ele o mais que pudesse, para com ele aprender tudo o que pudesse sobre a arte da música e mais tarde tornar-me um músico da Deusa, e quem sabe de Sha'hawaniah... Sacudi a cabeça: começava a delirar, e se os sonhos são essenciais para a vida, os delírios sem sentido são certamente a sua destruição. Devia sonhar o sonho possível, na medida exata, sem exageros, sem delírios de grandeza. O corpo sinuoso de Sha'hawaniah se movia à minha frente, novamente oculto sob véus, e ainda assim mais exposto aos olhos de minha alma do que se tivesse ficado completamente desnudo. Eu desejava tê-la só para mim, ainda que soubesse que isso demandaria muito tempo e esforço.

Feq'qesh deve ter lido o que ia em meu coração, pois me perguntou, de chofre:

— Queres tornar-te um músico, Zerub? Queres ser um desses que lidam com o nada e o transformam em tudo, ainda que por um curto período de tempo e sem nenhuma permanência? Queres aprender como se faz isso?

Claro que eu o desejava, mais do que tudo, porque sabia que esse seria o primeiro grande passo no caminho inevitável até Sha'hawaniah.

Sorri, incapaz de dizer alguma coisa, e Feq'qesh, lendo minha alma melhor que eu mesmo, sorriu de volta:

— Então estamos combinados: a partir de agora, és meu aprendiz, e se tiveres empenho e paciência, acabarás por saber tudo o que eu sei. Um talento natural como o teu, tenho certeza, não aparece todo dia. Minha missão é ensinar, e, haja o que houver, te ensinarei tudo o que sei. Estamos acordados?

Não sabia como agradecer a Feq'qesh, pois ele me dava a maior oportunidade que um homem podia desejar: eu deixaria de ser quem era e passaria a ser exatamente quem desejava ser. Um presente desses, pensei, só se recebe uma vez na vida, e uma vez dado permanece conosco para sempre! Contei-lhe rapidamente que ainda no dia anterior havia abandonado a casa paterna, e ele sorriu, como se já soubesse disso. Quando pisamos o chão da Grande Baab'el, Feq'qesh pôs-se a contar-me como seria nossa convivência de mestre e aprendiz. De repente, para desgraça de meus sonhos, uma agitação à nossa frente chamou-nos a atenção, e eu vi um grupamento de soldados, liderados pelo asqueroso Na'zzur, escoltando meus amigos Mitridates, Daruj e Yeoshua, manietados. Rapidamente me ocultei atrás de Feq'qesh, que estacou e ficou olhando a cena. Na'zzur, rispidamente, apertava o braço de Daruj, e eu sabia a dor que meu amigo persa devia estar sentindo, pois o braço era exatamente aquele que eu havia costurado como pudera: seus gritos quase encobriam os rosnados de Na'zzur, que vociferava:

— Onde está o outro? Zerub, aparece! Onde está o cãozinho de Judah que me desrespeitou hoje pela manhã? Se não me disseres, eu te arranco esse braço!

Feq'qesh, percebendo meu abalo, tudo compreendeu: passando sua volumosa lira para a minha frente, ocultou-me dos algozes, perguntan-do-me:

E a ti que procuram? Se não quiseres, não te encontrarão: posso ocultar-te até que passem, e estarás livre. São teus amigos?

- Os únicos que tenho! — sussurrei. — Por que fazem isso? É a vingança de Bel'Cherub, com certeza... e Na 'zzur, tu bem o sabes, é um de seus sabujos... o que devo fazer, Feq'qesh?

Foi nesse momento que meu mestre me deu a primeira das inúmeras valiosas lições que dele recebi em toda a minha vida, mesmo que levasse muitos anos para compreendê-las como tal: segurou-me pelos ombros e, olhando fixamente em meus olhos, disse:

— Faze exatamente aquilo que o teu coração mandar.

Fechei meus olhos com força: teria sido fácil mantê-los fechados, e esperar que os gritos de Na'zzur e de Daruj se afastassem. Mas se o fizesse, esses gritos permaneceriam para sempre em meus ouvidos, e eu seria pior que um bicho, por ter abandonado os únicos amigos que tinha. Abaixei a cabeça, num suspiro profundo, que Feq'qesh compreendeu melhor do que se eu tivesse dito alguma coisa. Apertando-me a mão com força, disse:

— Faze exatamente isso, e fica descansado: teu lugar como meu discípulo estará sempre reservado, não importa quando precisares dele. Segue teu caminho, Zerubb'ben'Salat'iel, e crê que o Deus que tira é o mesmo Deus que dá.

— Mas a bela arte que me ensinarias?

— A Vida é longa, Zerub, e a Arte mais ainda: em algum lugar do futuro está o tempo em que estaremos sempre juntos pelo bem da Arte e para a maior glória de Yahweh. Ainda é cedo para isso: segue teu caminho.

Assim dizendo, Feq'qesh saiu de minha frente, deixando-me cara a cara com Na'zzur, que, por um momento, com o sol em seus olhos, não me reconheceu. Mas Yeoshua, entre lágrimas, gritou meu nome, e eu, dando o primeiro passo no caminho que não desejava, como ainda faria tantas vezes em minha vida, sorri o mais cínico sorriso que pude e exclamei:

— Estás me procurando, Na'zzur?

Tudo se precipitou, quando os soldados do Império pularam em cima de mim, fazendo com que me ajoelhasse, enquanto os perdigotos de Na'zzur molhavam minha cara:

— Zerub! Que prazer em ver-te! Acreditei que eras esperto o bastante para fugir, mas vejo que me enganei... agora os quatro cãezinhos vão pagar o preço por seu engano. Não devíeis nunca ter abandonado o bando de Re'hum.

Daruj, ouvindo esse nome, tentou gargalhar, mas o soldado que o mantinha preso apertou-lhe novamente o braço ferido, fazendo-o urrar. E Na'zzur continuou:

— Agora preciso aplacar a ira de Bel'Cherub, com quem falhei vergonhosamente... o que farei de vós? Nenhum castigo é grande nem extenso o bastante, a não ser...

Com uma gargalhada obscena, Na'zzur virou-se para seu lugar-te-nente, um tipo arruivado de olhos divergentes, e gritou:

— Como estamos de recrutas no Palácio de Belshah'zzar?

O alistamento! O terror de todos os jovens da Grande Baab'el! Era esse o castigo que Na'zzur nos prometia: por mais que nos debatêssemos, sob as risadas que cresciam, quanto mais nos aproximávamos do palácio de Belshah'zzar, mais terrível era o destino que se nos apresentava. Estávamos novamente unidos, eu e meus três companheiros, desta vez por uma desgraça em que nunca pensáramos antes. Ficaríamos a serviço de um rei sem valor, sob o comando de homens mais cruéis que a crueldade ela mesma, soldados que carregavam a própria sorte nas mãos sem trazer em seus corações nenhuma bondade, esmagados por violência e terror. O que mais me amedrontava era estar prestes a me transformar em um desses seres nojentos a quem desprezava, e sob cujo poder estava.

Enquanto os soldados de Na'zzur me manietaram e empurraram para a frente, sem dó nem piedade, pressenti as figuras de Sha'hawaniah e Feq'qesh se afastando dali, cada um para seu lado, levando consigo meus sonhos e minha felicidade. Nesse momento, minha alma mergulhou no terror absoluto, assim permanecendo até que os acontecimentos de minha vida me mostrassem que, no universo criado, existe muito mais que apenas os desejos, os terrores e as maquinações sem sentido das criaturas.

 

O7o alistamento militar da Grande Baab'el, essa conscrição que violentava as vontades, o mais terrível eram os hábitos de Belshah'zzar e sua corte de degradação e vícios. Esse rei depravado, representante da decadência que enfraquecera o Império da Babilônia, não era o rei verdadeiro, opatesi da Babilônia, mas sim um puhu, o substituto que assumia o lugar do verdadeiro rei sempre que um perigo qualquer ameaçasse o verdadeiro soberano. Belshah'zzar, sobrinho àopatesi Nabuni'dush, sobre quem pesara um presságio de morte, tinha sido indicado como seu substituto oficial, liberando o verdadeiro rei para viver em segurança. O que se sabia é que Nabuni'dush, avesso às coisas do poder, urdira esse falso presságio em conluio com seus sacerdotes apenas para poder perseguir o sonho de sua vida, que era o estudo das cidades em ruínas da planície de Teimah. Fora viver entre elas com sua corte de estudiosos e servos, alcançando grande prazer na escavação e descoberta dos utensílios dos que o antecederam, refugiando-se no passado imutável por temer o futuro incognoscível. Nenhum de seus filhos demonstrara qualquer desejo de ser puhu do próprio pai, e apenas esse sobrinho, um fraco sem nada que o destacasse dentre os outros, acabara por aceitar o papel que o tio lhe exigia.

Bastou que a escolha se oficializasse e Nabuni'dush partisse em direção às ruínas de Teimah, para que Belshah'zzar se transformasse no rei de imensa presença na Grande Baab'el, quase como Nebbucha-drena'zzar, só que desta vez graças ao comportamento infinitamente mais desregrado que o de seus antecessores. Baab'el era o centro do mundo, e vários outros impérios, subjugados a seus desígnios, tentavam com dificuldade alcançar o patamar de excelência em que estávamos. Por vezes, isso era possível em termos de poder político, militar, quantidade de riquezas, mas em matéria de satisfação dos desejos físicos, ainda éramos os maiores do mundo. Nada havia entre nós que fosse impensável ou inexeqüível, e o povo da Grande Baab'el, por imitação de seu rei, tornou ponto de honra a superação dos limites físicos na busca incessante da satisfação, não importando de onde viesse ou de que maneira fosse alcançada. Graças a isso, tornamo-nos conhecidos, tanto por admiradores quanto por inimigos, como a Cidade dos Prazeres Infinitos. O Palácio Real da Babilônia, ao norte da grande Porta de Ishtar, fora erguido sobre uma enorme estrutura de colunas e arcos, jardins planejados por Nebbuchadrena'zzar para agradar a uma de suas esposas, saudosa das montanhas verdejantes e floridas de seu país natal. Erguia-se acima desses jardins, pintado das mais diversas cores e incrustado das mais diversas pedras e metais preciosos, que o faziam brilhar ao sol como se feito de um pedaço de arco-íris. Como tudo na Grande Baab'el, no entanto, tinha subterrâneos que eram o oposto absoluto de sua aparência revelada: neles ficavam as casernas da guarda real, e, mais abaixo delas, as masmorras da Grande Baab'el, onde Belshah'zzar se divertia assistindo aos castigos de seus especialistas sobre seus inimigos. A tortura nessas masmorras havia sido elevada ao nível de arte, sob a cruel e ardilosa mente de Belshah'zzar, ainda que ele raramente encostasse as mãos em suas vítimas: gostava de estar junto delas, cheirando-lhes o medo no suor, próximo o bastante para quase provar-lhes o gosto ferroso do sangue com os lábios sedentos, divertindo-se profundamente quando os esríncteres dos torturados cediam e o fedor de fezes e urina se espalhava pelos subterrâneos escuros, mas nunca suficientemente perto para poder considerar-se responsável pelos sofrimentos que sentiam. Os divertimentos que preferia, usando o corpo adiposo e emaciado sem nenhum tipo de preconceito, eram aqueles que haviam tornado famoso o Império da Babilônia: o prazer sensual sem limites, com quem quer que acendesse seu desejo. O que Belshah'zzar mais amava era visitar as masmorras no fim da noite, depois de uma das grandes festas orgiasticas que promovia dia após dia, e das quais também não participava ativamente, ficando próximo o suficiente para sentir todos os cheiros e ouvir todos os gritos, mantendo-se em seu trono de rei, pers-crutando o ambiente com os olhinhos viciosos, de vez em quando erguendo-se para percorrer o grande salão e enxergar mais de perto alguma lubricidade que, por inusitada, lhe chamasse a atenção. Repentinamente, deixava o salão e, acompanhado de seus vezzVrim, percorria as masmorras, onde completava sua dose de excitação daquela noite. A visão da sexualidade desabrida e da crueldade sem limites era a única combinação que conseguia despertar em Belshah'zzar o desejo sexual: na subida para seus aposentos, escolhia dois ou mais de seus guardas, que tinham de acompanhá-lo para mais uma noite de exageros, dos quais raros saíam incólumes. Os membros da guarda real de Belshah'zzar, exatamente por esse motivo, eram todos jovens, para supri-lo de companhia masculina em suas noites de prazer, depois que ele já estivesse excitado o bastante. Dependendo do nível dessa excitação, dois eram pouco, e Belshah'zzar usava três, quatro, até mesmo cinco jovens rapazes de uma só vez, dispondo-se a feitos incríveis para um homem com seu físico pouco elástico. Dizia-se na Grande Baab'el que, existindo vontade, ela encontrava o seu caminho, e Belshah'zzar sempre conseguia realizar o que quer que sua imaginação propusesse.

Por mais que fôssemos da Babilônia e herdeiros dessa maneira de viver, havia coisas aprendidas no berço da casa paterna que não se venciam assim tão facilmente, ainda mais havendo uma inclinação natural pelo sexo oposto. Nosso grupo sempre temera que um ou outro de nós fosse conscrito para a guarda real, e já havíamos traçado uma linha firme, que separava o que faríamos e o que nem mortos aceitaríamos. Por isso, o abalo de estarmos subitamente manietados e sob o domínio de Na'zzur, o asqueroso serviçal de Bel'Cherub: a vingança da siduri certamente viria, mas não a esperávamos tão rapidamente. De todos os quatro, eu era o que mais tinha a perder, mesmo comparado a Yeoshua, como de costume se debulhando em lágrimas. Daruj, curvado pela dor que a posição forçada do braço ferido lhe causava, tentava animar-nos, por perceber que isso causava em Na'zzur um desagrado imenso:

— Vamos, amigos, o que os deuses reservam para o nosso futuro ninguém sabei Podemos ter sorte, ser felizes, quem sabe podemos até mesmo descobrir algum prazer naquilo que nos espera...

Yeoshua, ouvindo isso, deu um grito lancinante, e os guardas que nos cercavam riram. Um deles dirigiu-se a Na'zzur, com a boca cheia de dentes podres:

— O rapazinho teme por suas vergonhas, capitão... já sabe que o corpo de um soldado do Império pertence ao rei da Grande Baab'el, não importa de que lado seja olhado... se é que o capitão entende o que eu quero dizer...

As risadas eram cada vez mais cruéis, e Yeoshua começou a ganir, humilhando-se além da conta, causando ainda mais hilaridade nos empedernidos soldados, que se sentiam muito bem ao perceber sermos seus companheiros em uma mesma situação terrível. Eu não sabia como agir, e Mitridates, com voz baixa, começou a falar com Yeoshua, afastando sua mente do destino que nos aguardava. Depois de algum tempo, como uma criança que se distrai de uma dor com um brinquedo novo, Yeoshua parou de chorar: mas então já estávamos atravessando a grande alameda que levava à Porta de Ishtar, e à nossa esquerda, enorme e imponente, girando em seus gonzos de bronze brilhante, começou a se abrir o Portão do Palácio, dentro do qual nos esperava um destino pior que a própria morte.

Alamedas, grandes escadarias, enormes colunas feitas da pedra que não tínhamos e que era trazida até nós a preço altíssimo, bordadas e trabalhadas pela arte dos cinzéis, configurando enormes querubins de cinco patas em alto-relevo, como era o estilo então em voga, para que tanto de frente quanto de lado sempre se vissem quatro patas gigantescas: capiteis em formato de flores e animais, apoiados em grossos cilindros de pedra colocados uns sobre os outros, unidos por largas faixas de metal brunido e incrustado, e sobre tudo isso imensos terraços recheados de árvores frutíferas e cobertas de flores, configurando espaços de natureza tão luxuriante, que custava acreditar terem sido feitos por mãos humanas. As cores da natureza se confundiam com as da arquitetura, sendo de tal maneira idênticas que não havia realmente como saber, em muitos trechos do caminho, onde terminava uma e começava a outra. O ruído de água era constante, pois esses jardins que cruzávamos eram atravessados por cursos d'água em largos canais de tijolos vidrados, cortando o solo dos terraços e descendo como cachoeiras de suas bordas para os terraços inferiores, onde alimentavam outros canais e outros regatos, responsáveis pela impressionante exuberância da natureza ali recriada, que atraía até a Grande Baab'el milhares de visitantes interessados em conhecer esses jardins suspensos pelos quais a grande cidade havia se tornado famosa.

No centro do jardim superior do palácio, como um abismo que se abrisse a nossos pés, havia um grande buraco de cinqüenta côvados de diâmetro, cercado por uma balaustrada de tijolos pintados, de onde descia em espiral uma grande escadaria, atravessando quatro terraços, cada um deles com sua cor predominante, seus perfumes e sua temperatura, escurecendo gradativamente enquanto descíamos aos subterrâneos do palácio, vendo o círculo de onde nascia a escadaria ficar cada vez menor. Em um dos lados desse abismo, passando por trás da escadaria, caía uma grossa torrente de água, que se perdia nas profundezas do subterrâneo. Os guardas fizeram várias ameaças de atirar-nos na escuridão abaixo de nós, mas Na'zzur, do alto de sua autoridade, bradou:

— Nem pensar em matar nenhum deles! O castigo que os espera só funciona se estiverem vivos, e quanto mais tempo assim permanecerem, melhor será...

Descemos para os subterrâneos, observando as colunas de tijolos que já conhecíamos de outros lugares, mas que nunca havíamos visto tão grossas assim. O que mais me chamou a atenção foi o cheiro do ar, um bafio azedo que reconheci ser o mesmo cheiro do território entre as duas muralhas, lá onde os marginais da grande cidade viviam seus malfeitos. O fedor de pântano deste porão era exatamente igual ao cheiro de pobreza e sujidade que eu conhecia da Taberna do Boi Gordo, e essa semelhança foi para mim como um presságio.

Chegando no nível do Eufrates, onde o solo era mais mole e úmido que qualquer outro, vimos o artifício que Nebbuchadrena'zzar usara para conseguir que a água se erguesse até a altura dos jardins de sua rainha: enormes máquinas de madeira e metal, movendo-se circularmente sobre si mesmas em torno de gigantescos eixos horizontais, com grandes calhas de lata presas à borda, pelas quais a água subia do rio até determinados tanques, onde se acumulava até que fosse apanhada por outro desses gigantescos mecanismos e novamente erguida até outro reservatório num terraço superior, no qual era apanhada por enormes rodas que giravam verticalmente, transportando a água em imensas cubas de metal batido, jogando o líquido em aquedutos onde corriam grandes paletas de metal, fazendo a água subir mais e mais até começar a correr, por força de seu peso, nos canais construídos exatamente para esse fim. Era nos tanques do porão que se acumulava em círculo vicioso a água que caía da cachoeira que vinha desde o alto, nunca se perdendo. Em água, a Grande Baab'el era pródiga, mas as maneiras de usá-la eram território exclusivo de quem tinha poder e meios para isso: os reis dos grandes impérios sempre faziam questão absoluta de ter os serviços dos maiores sábios do mundo, os inventores das coisas que fazem com que os poderosos se sintam acima dos homens comuns. Nenhuma delas, no entanto, teria qualquer valor se não existisse quem as soubesse transformar em realidade: artesãos, carpinteiros, tecelões, ferreiros, e principalmente pedreiros, homens que transformam a pedra bruta em beleza e perfeição inegáveis. Num império onde a pedra era rara, esses homens eram sempre protegidos pelo poder, pois somente com eles se podia contar ao desejar perpetuar feitos e nomes na pedra.

Havia, no entanto, outro ingrediente essencial para o poder dos reis e senhores desse mundo, sem o qual nada se moveria: era preciso haver escravos, e em tal quantidade que não tivessem mais nem nome nem rosto, sendo apenas uma multidão informe e sem vontade, cuja existência se justificava a partir do que faziam, e cujo valor se extinguia quando não o pudessem mais fazer. Os subterrâneos do palácio eram uma caldeira de corpos humanos explorados à exaustão, movendo pela força dos músculos cansados e mal alimentados as grandes máquinas que erguiam a água muito acima de suas cabeças, para que os poderosos de ocasião pudessem ter o prazer de estar entre montanhas e regatos de um país ideal, um Éden de beleza absoluta. Não havia nenhuma beleza, em verdade, pois homens e mulheres sofriam e morriam aos milhares nesses subterrâneos infectos: para os poderosos que os dominam, basta não olhar o que lhes desagrada, e imediatamente o que lhes desagrada deixa de existir. Seus olhos se fecham à fealdade, suas almas se fecham à verdade, a morte domina seus mundos de felicidade sem jaca, enquanto seus escravos morrem à míngua.

Um enorme passadiço de madeira atravessava esse plano por sobre o Eufrates: sua extremidade dava em um grande arco de tijolos, fechado por uma larga porta de madeira escura, ladeada por dois soldados armados todo tempo, numa lembrança permanente de que ali, atrás daquelas portas, estava a força do Império da Babilônia, pronta para explodir a qualquer momento contra quem se aventurasse a reagir, discutir ou mesmo pensar livremente sobre o poder do Império. Ali estaríamos de agora em diante, entregando nossa juventude à vontade de um rei cruel, que não hesitaria em nos atirar aos inimigos, se isso lhe desse algum prazer.

Fomos brutalmente empurrados pelo umbral, e o tropeção que nos fez cair ao solo arrancou de quem ali estava uma gargalhada. Do chão, onde fui mantido por um pé que pressionava minha nuca, pude ver um salão fumegante, misto de dormitório, sala de banho e refeitório, onde a guarda de Belshah'zzar esperava, pronta para agir ao menor sinal de seu senhor. Os fumegantes archotes de nafta enchiam o ar de um cheiro acre, e só depois que nossos olhos deixaram de arder, é que pudemos ver com mais detalhes o ambiente que seria nossa morada desse dia em diante, talvez para sempre. As paredes estavam coalhadas de armas e corpetes de couro e metal, e as botinas que ficavam aos pés de cada catre mostravam muito uso, cada par deformado pela pisada cambaia dos pés que as preenchiam, quando em serviço. Os batalhões se sucediam na guarda do grande palácio, revezando-se a cada período, sempre de maneira que os mais jovens estivessem no turno da noite, aquele no qual Belshah'zzar selecionava seus acompanhantes de prazer e desregramento.

Cada um de nós reagiu diversamente ao ambiente onde nos jogaram: Yeoshua, voltado para si mesmo, os lábios movendo-se frenetica-mente em oração, em busca de uma paz que não estava disponível naquele lugar: Mitridates, com a mesma frieza de sempre, reagia sem reagir, como se não tivesse nem coração nem fígado: Daruj, olhos brilhantes, parecia quase feliz dentro do exército, como sempre fora seu sonho, e eu tentava ocultar da melhor maneira possível minhas emoções. A garganta ardia, os olhos lacrimejavam, não totalmente por causa do ar viciado.

Um velho soldado completamente nu, no peito uma enorme cica-triz em diagonal, avançou para nós, nariz erguido, como se estivesse cheirando nosso medo, e com o pé direito nos virou de barriga para cima, examinando-nos com um olhar muito intenso: era o chefe dos alojamentos, responsável pela distribuição de tarefas entre os soldados. Sua boca se abriu, mostrando uma língua escura, que lambeu os beiços crestados, antegozando o sabor de um prato muito especial. Ao ver o braço mirrado de Mitridates, ele fez um muxoxo e sussurrou:

— Asa Quebrada... tens algum talento que me impeça de te jogar ao fogo, passarinho inútil?

Mitridates, sem pestanejar, respondeu:

— Conheço bem aquilo que nem imaginas o que seja: os números, as palavras, e sei fazer cálculos de maneira que ninguém saia perdendo.

Uma bofetada que se armava foi substituída pela risada arquejada que escapou do velho chefe: um murro de brincadeira acertou o ombro de Na'zzur, enquanto o soldado dizia:

— Um sábio! Tu me trouxeste um sábio, Na'zzur! Isso é sempre útil, principalmente na hora da divisão dos butins... conheces a arte da divisão, Asa Quebrada?

— Com perfeição, senhor. — Esta palavra trouxe um brilho de satisfação ao velho soldado, e Mitridates continuou. — Sei dividir

em duas metades iguais, de forma que a menor seja levada para um lado, a maior para outro, e o resto deixado nas mãos de quem o merece...

O velho chefe explodiu em uma gargalhada, erguendo Mitridates do chão e passando um braço cabeludo por seus ombros:

— Tu és dos meus! Vais para o almoxarifado...

Mitridates, aproveitando seu momento de sorte, apontou para Yeoshua, que se retorcia com os olhos virados, e mentiu:

— Meu amigo aqui sabe tudo sobre a arte da cozinha.

Um murmúrio de aprovação escapou de várias bocas: nada existe que interesse mais a um soldado que a próxima refeição, e na Grande Baab'el não era diferente, principalmente no palácio, onde a satisfação dos prazeres carnais incluía um culto quase religioso à comida. Yeoshua estava assustado, pois nem ele mesmo sabia o que Mitridates pretendia. O velho ergueu Yeoshua com um só braço e ordenou:

— Um cozinheiro! Isso aqui embaixo é raro. Vais para a cozinha, e hoje mesmo quero provar da tua arte...

Pronto. Por meio de um raciocínio rápido, Mitridates havia salvado a si mesmo e a Yeoshua, este tão espantado que parecia que seus olhos iam cair das órbitas. Mitridates nos olhou, cercado pelos soldados, enquanto passava o braço pelo ombro de Yeoshua, em um mudo pedido de desculpas por não poder fazer o mesmo por nós.

Enquanto os dois eram erguidos e cercados por outros homens, os olhos enevoados do chefe pousaram em Daruj e em mim. Tremi quando vi seu membro começar a ingurgitar-se de sangue, enquanto ele nos observava com cada vez mais interesse, um sorriso de asquerosa lubricidade esticando-lhe a boca. O círculo de soldados se estreitou à nossa volta, e talvez tivéssemos sido violados ali mesmo, se Na'zzur não gritasse:

— Eh, soldados, o que é isso? Esses dois pitéus são um presente para o rei Belshah'zzar... não pretendem incorrer em sua ira maculando-os antes que nosso rei deles se aproveite, pois não?

— São carne jovem e de boa qualidade, e da maneira que sabemos fazer ninguém sequer notará que foram usados por nós, Na'zzur... — O velho chefe começou a dar voltas agachado em torno de nós, como um chacal escolhendo o ponto pelo qual nos iria atacar sem piedade. Depois, com um suspiro de enfado, continuou: —... mas, se os queres dar intocados a Belshah'zzar, que seja: depois de usados por ele, estarão de qualquer forma à nossa disposição, como todos sempre estiveram. Não é verdade, soldados do rei?

Uma risada de escárnio e familiaridade tomou todo o salão, e eu pude ver em cada rosto o mesmo sorriso depravado que já conhecia de outras ocasiões, principalmente da Taberna do Boi Gordo. Nesse momento de descrença absoluta quanto a meu futuro, um outro ingrediente penetrou meu coração: uma amarga raiva, subjugada a meu senso de sobrevivência. Eu não podia deixar que ela se manifestasse, em posição tão absolutamente indefesa: por isso acumulei-a, sabendo que era a mim mesmo que envenenava com ela. Daruj, ao contrário de mim, nem pestanejava: sabia mais sobre a vida militar que eu, e tinha certeza de poder salvar-nos a ambos desse destino. Os prazeres de que a Grande Baab'el se jactava de estar prenhe já não se definiam mais era termos de bem ou mal nem de certo ou errado: toda sensualidade é uma só, apesar de suas inúmeras formas, do mesmo modo que toda pureza é sempre a mesma, como aprendi no decorrer de minha vida. Não faz diferença se um homem bebe, ou come, ou coa-bíta com animais, ou satisfaz seus desejos sexuais de maneira desregrada: tudo é uma coisa só, o apetite sempre o mesmo. Basta observar cada homem satisfazendo seu desejo pessoal e perceber como a sensualidade do corpo lhe domina a alma: isso eu aprendi observando principalmente a mim mesmo.

Fomos levados de arrasto para um dos cantos escuros da grande caverna de tijolos, e lá, sob o olhar de um Na'zzur cruelmente sorridente, nos transformaram em soldados da guarda: nossas faces foram raspadas, nossos cabelos tosados à moda militar, amarrado no alto da cabeça e atado com tiras de couro e cobre, enquanto nossos músculos ainda adolescentes eram untados com óleo de gergelim, para ressaltar seu desenho sob o exíguo corpete de couro tacheado que, apertando com atilhos o nosso ventre, ampliava nossos ombros e peito, marcando também nossos glúteos, graças às botas de salto alto que nos fizeram usar. O braço de Daruj, costurado por mim, foi olhado com desagrado por um cirurgião de tez muito escura, que sacudiu a cabeça durante todo o tempo em que recobriu o corte repuxado com uma atadura limpa, oculta dentro de uma das longas munhequeiras que faziam parte do uniforme, e estávamos prontos. O resultado final, quando me vi refletido numa grande chapa de mica recoberta por vidro egípcio ao fundo dos vestiários, era apavorante: eu me transformara em um dos brutalmente delicados efebos de Belshah'zzar, pronto para o que quer que ele decidisse fazer de mim. Na'zzur nos acompanhou durante todos esses atos de preparação e mudança, cuidando de um detalhe aqui e outro ali, e quando estávamos prontos, circulou em volta de nós com olhar crítico, no fundo do qual brilhava uma maldade sem fim:

— Estão exatamente como Bel'Cherub desejou que estivessem. Ela ainda há de vos ver assim, e rirá tanto quanto eu estou rindo: espero poder trazê-la para observar-vos na noite em que Belshah'zzar decida fazer bom uso dos dois. Podeis ter certeza: Belshah'zzar vos usará como bem entender, e fará dos dois aquilo que quiser fazer.

Seu rosto mostrava um antegozo incompreensível, quando continuou:

— No dia seguinte, quando já estiverdes transformados naquilo que Bel'Cherub desejou, eu virei entregar-vos às mãos de nossos companheiros de armas, e quem sabe até usufruir um pouquinho dos vossos prazeres. Até outro dia, ladrõezinhos: assim se aprende que ninguém pode descumprir os tratos feitos com BePCherub, pois sua vontade é poderosa, e até mesmo o rei Belshah'zzar é instrumento de sua realização...

Eu tremia de ódio represado, enquanto Na'zzur se afastava de nós, cochichando com um e com outro de maneira álacre, lançando olhares de soslaio sobre nossa desgraça. Já éramos parte, quiséssemos ou não, da guarda do Império, e ali seria onde nossa vida se daria, desse momento em diante. Meu ódio era infinito: Daruj, percebendo isso, aco-corou-se junto de mim, sentado no chão com a cabeça entre as mãos, em franco desespero:

— Tranqüiliza-te, Zerub, pois a tempestade nem sempre cai no lugar onde estamos. Olha à nossa volta: não somos os únicos com o objetivo de dar prazer ao rei, e a grande maioria está naturalmente mais propensa a isso que nós dois. As tropas percorrem o território do Império apenas para escolher entre os súditos do rei os que melhor o possam satisfazer. Não somos exatamente aquilo de que ele gosta: estamos aqui para satisfazer a vingança de Bel'Cherub. Esse motivo pode ser nossa salvação.

— Es muito otimista, Daruj: mas eu sei que é sobre nós que cairá o olhar cúpido do rei, assim que estivermos a seu alcance. E quando isso acontecer, o que farei?

Daruj ergueu-me do solo, sentou-me em um dos catres que estavam às nossas costas e explicou-me seu plano, quase tão interessante quanto o artifício que Mitridates usara para salvar Yeoshua:

— Pensa comigo: se Belshah'zzar gosta de efebos à moda grega, nossa salvação estará em sermos o mais diferente possível daquilo que o agrada. Ou desaparecemos de suas vistas, ou o desagradamos sendo exatamente aquilo que ele não quer. Acho essa opção mais segura: é preciso nos tornarmos desagradáveis a seus sentidos.

Olhando à nossa volta, Daruj viu a vinte passos de nós três jovens soldados como nós, conversando com pernas e braços enlaçados, olhos nos olhos, numa familiaridade que me fazia tremer. Ergueu-se e, antes de ir em sua direção, disse:

— Deita nesse catre, cobre a cabeça e desaparece da melhor maneira possível, até que eu volte. As ordens de Na'zzur nos protegerão, só não sei ainda por quanto tempo.

Cobri minha cabeça, deitando rapidamente no fundo escuro do catre, deixando uma fresta pela qual vi Daruj chegando até os três rapazes, que a princípio o olharam com desconfiança: mas uma frase sua que não pude ouvir os fez cair em franca gargalhada, e os três imediatamente o encararam como a um igual. Daruj sempre fora assim: tinha a capacidade natural de misturar-se a qualquer grupo, tornando-se parte dele em questão de instantes, absorvendo gestos, modos de falar, pequenos detalhes de identidade que o diluíam em meio a qualquer ajuntamento, como artifício de sobrevivência. Eu fizera o mesmo na subida da Grande Torre, mas o que me movera não fora a sobrevivência, e sim a paixão, essa espécie de multidão incontrolável que habita cada homem e de quando em vez causa uma revolução em nossa razão. Enquanto durou a conversa de Daruj com seus novos amigos, entre risadas, senti uma saudade muito dolorida de tudo o que descobrira como possibilidade para minha alma insatisfeita.

Daruj voltou para o meu lado, rindo desavergonhadamente, caminhando de forma arrastada, como víramos fazer vários soldados nesse subterrâneo: era impressionante como se parecia com um deles, até sentar-se a meu lado no catre. Seu rosto, que apenas eu podia ver, transformou-se novamente na face séria de meu companheiro das ruas, e ele me disse:

— Já sei como nos tornaremos desagradáveis a Belshah'zzar, Zerubl Ele detesta mais que tudo o cheiro do alho: os alimentos dos soldados não o incluem, mas eu posso conseguir algumas cabeças que nos garantam distância de sua majestade!

— Como, Daruj?

— Esqueceste que Mitridates e Yeoshua estão nesse momento na despensa e na cozinha do palácio? Quem melhor do que o despenseiro e o cozinheiro para nos conseguir o alho de que necessitamos para fazer de nós um talismã contra o prazer de Belshah'zzar? Quem sabe se um dia, enojado por nosso perfume, ele não nos atira fora do palácio, liber-tando-nos por sua própria falta de vontade de cheirar-nos um instante a mais que seja?

Não pude, nem mesmo com toda a preocupação e tristeza, deixar de rir. Daruj, nosso estrategista, continuava usando sua capacidade de planejar, e de todos nós certamente era o que menos problemas encontraria em nossa estada no inferno. Sempre fora prático, com objetivos bem definidos, e tão direcionado para o que desejava, que muitas vezes se mostrava capaz de passar até mesmo por cima da própria verdade.

Portanto, meu tempo entre os soldados cheirou apenas a alho, já que algumas horas depois um quase irreconhecível Mitridates em trajes de despenseiro disfarçadamente nos trouxe três cabeças desse vegetal, com as quais eu e Daruj, sob seu olhar de incrédula frieza, literalmente nos massageamos dos cabelos às unhas dos pés, principalmente debaixo dos braços: os dentes mais macios foram mastigados e deglutidos, a tal ponto e em tal quantidade, que mesmo hoje ainda tenho por esse tempero uma ojeriza quase incontrolável. O chefe da guarda, quando nos pusemos em forma, junto aos companheiros que tentavam ficar o menos encostados que podiam em nossos corpos, franziu o nariz e gritou:

— Por Marduq! Que soldados fedorentos vós soisl Ide aos banhos imediatamente ou empesteareis nosso quartel!

Por esta noite estávamos livres: mas ninguém nos garantia que na noite seguinte, ou na outra, ou a qualquer momento, alguém não descobriria nosso estratagema. Quando vimos a movimentação noturna entre os catres, eu e Daruj resolvemos fazer quartos de vigília, para que nenhum de nós fosse atacado por um soldado de Belshah'zzar em estado de excitação. Quando o dormitório se acalmou, muito tempo depois, recostei perto de meu amigo, e a manhã nos revelou dormindo abraçados, por causa do frio e da umidade, certamente dando a nossos companheiros de farda a impressão de que havia um acerto entre nós, exatamente da forma que eles acreditavam se fizessem os acertos entre homens.

Ao recordar dessa época, tenho a impressão de ter passado nesses quartéis de desrespeito uma grande parte de minha vida. Feitas as contas no entanto, percebi que a eternidade é mais uma sensação que uma realidade, pois entre nossa conscrição e os fatos que ainda hoje me causam asco e terror passaram-se apenas onze dias, dos doze que durava o Festival de Ano Novo da Grande Baab'el, que neste caso se tornou o território da luta entre dois deuses pelo domínio da Criação.

 

Não fosse a arrogância de Belshah'zzar; quem sabe não estaríamos ainda hoje nas casernas do Grande Palácio de Baab'el? Cada um faz as escolhas que consegue fazer; quando tem oportunidade para isso, e essa imensa corrente de escolhas muda o mundo e é mudada por ele, desenvolvendo-se de tal maneira, que das coisas mais simples sempre nasce a oportunidade mais complexa. Penso isso hoje, afastado dos acontecimentos que narro: mas enquanto os vivi, me pareceram fonte de imensa provação, quase infinita, como se o Universo estivesse dando vazão a algum plano perverso contra mim. Não havia em minha alma nenhuma cogitação sobre meu destino ou sobre o papel que cada ação humana exerce sobre o Universo. No entanto, os homens têm suas maneiras de, vivendo, fazer parte da vida de outros homens, e tudo aquilo que hoje parece ser mau, amanhã pode ser bom, ou bem pior, ou muito melhor, mas nunca indiferente: estamos todos inextricavelmente unidos numa mesma teia, e Belshah'zzar tornou-se mais presente em minha vida do que eu gostaria de acreditar.

As festas de Nisan na Grande Baab'el sempre se davam da mesma maneira: começavam marcando a chegada da primavera. O segundo dia, aquele em que eu descobrira a música e o amor e fora conscrito para o serviço militar em palácio, era o primeiro de uma série de dias de procissão contínua, nos quais se confirmava o contato inicial entre Marduq e Ishtar, que eu vira debaixo da grande mesa de ouro. No terceiro dia, o rei devia ir até Borshi'pah, procurar pelo deus Nabuh, filho de Marduq. Esse deus menor era guardião das tabuinhas do destino e salvador do próprio pai, segundo a mitologia da Grande Baab'el: era essencial que Belshah'zzar fizesse esse percurso místico, mantendo a tradição. Neste ano, na primeira manhã em que acordei como guarda real, o Grande Palácio estava em polvorosa: tomado por grandes náuseas, Belshah'zzar se recusara a partir na cansativa viagem, considerando-a uma tolice. Para que sair da Grande Baab'el, se seis dias depois deveria voltar para ela? Os sacerdotes de Marduq uivavam em alto volume, pedindo perdão para o sacrilégio deste puhu sem noção de dever. Belshah'zzar, no entanto, estava inflexível: ouvi de dois sacerdotes, conversando sob o arco onde eu estava colocado, que o mal-estar de Belshah'zzar tinha motivo bem diferente:

— Este puhu pretende romper com nossa tradição porque não quer passar pela cena da humilhação! Não compreende que, para que o céu gire à nossa volta mais um ano exatamente como deve girar, ele tem que cumprir os atos esperados?

— Asquerosa criatura! — disse o outro, que reconheci como o urigallu do Templo de Marduq. — Tem orgulho demais! No ano passado, não chorou quando o estapeei em plena face! Foi-lhe explicado que o sinal de que Marduq está satisfeito são as lágrimas que surgem no rosto do rei quando o estapeio, depois que ele me entrega todas as insígnias de poder. Mas se ele não chora, isso quer dizer que Marduq está insatisfeito, e os inimigos em breve estarão às nossas portas!

— O povo da Grande Baab'el passou todo este ano esperando pelo ataque de algum inimigo, e quanto mais esse demora a vir, mais duvidam de nosso poder.

— O imbecil que Nabuni'dush colocou em seu lugar se acha grande coisa,... mas há de chegar o dia em que os inimigos que nos invadirão finalmente deixarão claro quem realmente tem poder na Babilônia!

Essa frase dita pelo urigallu podia significar muitas coisas, se eu estivesse preocupado com elas: mas minha própria sorte me exigia tal atenção, que só muito tempo depois compreendi esta conversa. O quinto dia de Nisan passou sem que Belshah'zzar saísse do palácio, enquanto o povo nas ruas urrava seu desagrado, insuflado pelos sacerdotes. E enquanto eu me ocultava em mim mesmo, imerso num poço de alho e desespero, Belshah'zzar também não compareceu à imolação do carneiro sagrado no pátio do Templo, alegando náuseas causadas pelo cheiro de carne queimada, irritando ainda mais a multidão que por ele esperava.

No sexto dia, eu e Daruj fomos postos de sentinela na amurada do palácio, no ponto mais alto da mais alta plataforma, pois nosso chefe, depois do momento inicial de excitação, nos mantinha o mais longe possível de onde estivesse. Vimos de lá quando as grandes barcaças chegaram à Grande Baab'el trazendo as estátuas dos deuses que vinham ao centro do Império buscar um Marduq desaparecido. Na realidade, quem andava desaparecido era Belshah'zzar, decidido a não dar o ar da graça enquanto não estivesse livre do enjôo e da diarréia que o acometiam a intervalos cada vez menores. Nas casernas se ria muito disso, porque as náuseas e o mal-estar só aconteciam enquanto o sol brilhava: uma vez caída a noite, ele novamente se transfigurava no orgíaco, depravado e saudável rei da Grande Baab'el, e os festins se sucediam, sem medida nem limite. De manhã, quando os sacerdotes de Marduq mais uma vez vinham buscá-lo, encontravam-no derreado, incapacitado de se erguer do leito, alegando doença, enjôos, quase-morte.

Eu, se pudesse, também não me ergueria do meu: o sono vinha entrecortado de suores frios, e só pesadelos tive como companhia enquanto meus olhos mal se fechavam. O alho já não fazia tanto efeito quanto nos primeiros dias, porque os seres humanos são capazes de se acostumar com tudo: os outros soldados já chegavam mais e mais perto de nós, risadas cheias de intenções, olhares amortecidos, línguas se movendo agilmente entre os lábios, mais obscenas que qualquer outra atitude. Daruj, percebendo minha insegurança, mais infenso aos medos que me nublavam, comportava-se como dono de minha pessoa. Isso causava grande alacridade entre os soldados, enchendo o ar de comentários maldosos, ao mesmo tempo que os mantinha afastados de nós dois. Foi por causa desse clima de desregramento entre homens que tive durante tanto tempo um nojo incontrolável de qualquer coisa que me recordasse a vida militar: anos mais tarde, foi-me duplamente difícil lutar como soldado, quando o momento se apresentou.

No décimo dia das festas de Nisan, chegou o momento do enfren-tamento entre Belshah'zzar e os sacerdotes de Marduq. Os carregadores do Templo já tinham subido ao alto da Grande Torre para pegar a estátua de Marduq, que seria levada nos ombros de seus inúmeros fiéis para comemorar a volta do grande deus à sua cidade. No entanto, quando alcançaram o topo da Grande Torre, lá estava a Guarda Real, cercando totalmente a gigantesca estátua. As ordens de Belshah'zzar eram expressas: nesse ano, a grande estátua não sairia de seu lugar. Os soldados tinham deixado as casernas em pequenos batalhões e ocupado sem alarde todo o último patamar do ziggurat, onde os sacerdotes e carregadores os encontraram, em posição de ataque, impedindo que tocassem a estátua do deus. A ira dos sacerdotes, com o apoplético urigallu de Marduq à frente, podia ser ouvida do outro lado da Esagila. No palácio, sabendo que um grande contingente de soldados estava protegendo a estátua de Marduq, Belshah'zzar exibiu alegria escandalosa, divertindo-se além da conta. Na manhã do décimo primeiro dia, quando nos erguemos de nossos catres nas úmidas casernas do palácio, entendemos finalmente o que o puhu pretendia com tais atitudes: e eu também, para minha desgraça e terror, conheci o que o destino me reservava.

Entrando no átrio dos alojamentos, a primeira coisa que vi foram as faces de Mitridates e Yeoshua, subjugados por ninguém menos que Na'zzur, o queixo arrogantemente levantado, enquanto gritava em nossa direção:

— Então as femeazinhas prometidas ao rei estavam usando um perfume que as afastaria dele? Imbecis! Achavam realmente que o cheiro do alho seria suficiente para se livrarem do destino?

Fôramos descobertos, e pagaríamos o preço. Meu primeiro impulso foi fugir, mas nossos companheiros de armas, às gargalhadas, nos cercaram, impedindo nossos movimentos. O chefe da guarda, com sua boca escura e asquerosa, pôs-se ao lado de Na'zzur:

— Demorei a desconfiar. Alguns fedem dessa maneira o tempo todo, depois dos exercícios violentos, mas encontrar no mesmo batalhão dois com o mesmo cheiro me fez pensar. Ontem, no almoxarifado, vi quando o Asa Quebrada passou para as mãos do Choramingas duas cabeças de alho, e ele as trouxe a esses dois falsos fedorentos. Resolvido o mistério, mandei chamar-te, camarada Na'zzur. Afinal, os dois são responsabilidade tua, e só tu sabes o que faremos com eles...

Na'zzur ria silenciosamente, a cabeça caída sobre o ombro, os olhos fechados. Quando os abriu, dentro de cada um tremulava uma pequena chama de crueldade, enquanto ele afetava um ar de nojenta comiseração:

— Que feio, meninos... enganando vossos camaradas de armas com esse artifício, traindo minha confiança? Que punição deveriam sofrer, alguém sabe me dizer?

— Irmão Na'zzur, sejamos justos, como o são todos os soldados — disse o chefe da guarda, pondo uma mão de unhas roídas no ombro de Na'zzur. — O Asa Quebrada e o Choramingas foram apenas acessórios no crime desses dois falsos fedorentos. Uma boa sessão de açoites me parece suficiente para colocá-los no rumo certo, porque ainda temos muita utilidade para eles no lugar onde estão. Como qualquer um pode ver, são pouco interessantes em termos de prazer.

O batalhão gargalhou, enquanto Yeoshua se debatia nas mãos fortes de Na'zzur, e o chefe continuou:

— Mas os dois outros, tu já deves ter percebido, consideram-se diferentes de nós. A esses, sim, devemos dar toda a nossa atenção, não achas?

Na'zzur olhou fixamente para o chefe da guarda, sua face iluminada por um largo sorriso. Tinha alguma espécie de misterioso poder sobre os soldados da guarda, de quem tinha sido parte, e todos respeitavam seus desejos e vontades. Ele empurrou Mitridates e Yeoshua, que se debatia em frenético desespero nas mãos dos soldados, e ordenou:

— Trinta e seis chibatadas nas costas de cada um! Para que aprendam! Meus dois amigos foram arrastados para fora das casernas, entre gargalhadas de seus algozes, e ouvimos os ruídos das chicotadas e os gritos de dor de Yeoshua e Mitridates. Na'zzur, olhos semicerrados, bebia o som das chibatadas, tremendo levemente a cada uma delas. Quando cessaram, olhou para nós:

— E agora nós, meus meninos, que faremos com os dois? Nossa amiga comum não ficaria nada satisfeita com vossa recusa em dar-lhe o prazer de sua vingança, pois não? A vida deve seguir seu curso, e cada um dos meninos, antes de tudo, tem que cumprir o seu dever para com Bel'Cherub. Só que também é preciso vingar a ofensa feita aos camaradas soldados. Como faremos isso?

— Irmão Na'zzur, eles são dois — disse o chefe da guarda, meio escondido por trás de Na'zzur. — Não poderíamos reservar um para o rei, segundo os desejos de Bel'Cherub, e fazer uso do outro segundo os nossos próprios desejos? Não consigo pensar em divisão melhor das vinganças, nem mesmo com o auxílio das contas do Asa Quebrada.

Era isso! Eu e Daruj seriamos divididos entre o rei e a tropa, para que fizessem de nós aquilo que bem entendessem, transformando-nos em alguma coisa pior que um animal, desrespeitando nossa vontade. O olhar lúbrico de Na'zzur e do chefe da guarda saltavam entre a minha face e a de Daruj, tentando perceber quem de nós tinha mais medo do que estava por acontecer. Nesse instante, perdi todo o controle, chorando e pedindo perdão por um crime que nem por sombra houvera cometido, sem entender que antes de tudo eram a minha alma e vontade que eles pretendiam ver quebradas. O sorriso na face dos dois foi terrível: minha falta de coragem os havia feito decidir-se por mim.

Nesse exato instante, Daruj arrancou-se num repelão das mãos de Na'zzur e, girando o braço com toda a força de que dispunha, acertou-lhe o nariz com violência, fazendo com que um arco de sangue muito vermelho cruzasse o ar, respingando os pés dos que estavam próximos. Uma maça de madeira surgiu como por encanto nas mãos do chefe da guarda, descendo sobre a cabeça de meu amigo com um ruído oco, fazendo-o emborcar no chão, enquanto Na'zzur gritava de dor, saltando com as mãos na face. O chefe da guarda gritou:

— É este! Levem-no! Façam dele aquilo que desejarem! E quando estiver bem macio e laceado, aí eu experimentarei o conforto de seus intestinos!

A alaúza dos soldados, enquanto arrancavam as roupas de um Daruj meio inconsciente, dava provas de que em seus corações também morava a vingança, porque o que fariam meu amigo experimentar era exatamente o que havia sido feito com eles em seus primeiros dias como soldados. A vontade de cada um é a lei mais forte de sua natureza, e o que quer que se faça sem ser por vontade própria se torna a anarquia de nossos poderes, o inferno de nossos espíritos, a loucura consciente de que qualquer um de nós tem horror enquanto pode dela manter-se afastado. Na'zzur, agarrando-me por trás, puxou meus cabelos até que suas raízes doessem, mantendo meus olhos abertos, e segurou minha cabeça para que eu pudesse ver o que estavam fazendo com Daruj, sussurrando fanhosamente em meu ouvido:

— Olha bem, pequeno chacal, olha bem o que será feito de ti. Teu amigo acabou recebendo o castigo que era teu, mas tu terás o privilégio de ser usufruído pelo rei da Grande Baab'el, provavelmente na frente de todos, se Bel'Cherub conseguir convencê-lo disso. Tu conheces os poderes de persuasão que nossa amiga tem, não conheces? Tu sabes do que ela é capaz para alcançar o prazer que procura, não sabes? Não duvides, pequeno chacal, e olha bem como teu amigo se torna a cada momento mais e mais a fêmea dos soldados que dele abusam: vês como já não reage mais com tanta intensidade quanto antes? Deve estar começando a gostar do que está sendo feito com ele: mais um pouco e já estará participando, porque este prazer o corpo aprende antes que a vontade consiga reconhecê-lo como tal. É assim que será contigo, mais tarde, quando estiveres pronto para o rei: eu faço questão de preparar-te para ele pessoalmente, deixando-te perfumado e arrumado da maneira que mais o agrada. E, se Marduq o permitir, estarei a seu lado enquanto ele estiver te transformando em fêmea de rei, cheirando o medo em teu suor, lendo em teus olhos o nojo que se transforma em prazer, vendo bem de perto quando finalmente entregares teu corpo e alma a esse deleite que juraste nunca aprender.

Eu chorava desesperadamente, e o acúmulo de lágrimas em meus olhos não me permitia enxergar com tantos detalhes o que estava sendo feito com meu amigo: mas ainda assim vi mais do que desejava. Daruj rolava os olhos, quase inconsciente pela dor e pelos abusos, enquanto soldado após soldado, às vezes em grupos de dois e três, violentavam seu corpo exânime, em meio a uma alacridade animalesca que aumentava com o tempo, pois, à medida que cada um se satisfazia, os seguintes se mostravam ainda mais excitados. Não me lembro de muitos detalhes, pois não havia tanta variação assim, mas sei que gritei de terror quando o chefe da guarda, com uma alça de ferro cheia de pontas atada ao redor de seu pênis ainda mais inchado, finalmente avançou por trás de Daruj, todo ensangüentado, seguro de pernas abertas por seus algozes escandalosamente alegres. Nessa altura. Na'zzur arrastou-me para fora das casernas e, levando-me para os banhos, entregou-me aos cuidados dos barbeiros da guarda. Eu, paralisado pela degradação a que havia assistido como prenuncio da minha própria, deixei que me barbeas-sem, untassem e perfumassem, ficando pronto para ser transformado em pasto de alguma nova luxúria que sequer imaginava. Vestiram-me uma farda nova, o corpete incrustado de fios de ouro, untaram-me as faces e os cabelos com óleo perfumado de nardo, deixando-me pronto para estar entre tantos outros guardas adolescentes como eu, decorando o grande salão com o viço de nossa juventude.

Não tive coragem suficiente para me olhar no grande espelho: tive medo que o medo, com suas garras, me houvesse deformado a face. Senti muita vergonha daquilo em que me estavam transformando, tão degradado como se já o fosse. Entrando nas casernas, um coro de comentários obscenos me acompanhou por todo o tempo em que caminhei até meu catre. Encolhido nele estava Daruj, de costas para mim: quando lhe toquei o ombro, afastou-me, com um repelão. Insisti, olhando seu corpo machucado e os fios de sangue grudados em suas pernas. Virei-o, e sua face estava muito ferida, um de seus olhos sequer se abria: os soldados o haviam espancado até que parasse de reagir contra seus desejos. Com um pedaço de pano, comecei a limpar-lhe as feridas, sabendo que as mais profundas eu sequer poderia pensar em curar. Olhos fechados, dentes cerrados, punhos apertados, Daruj não disse nem uma palavra, enquanto eu cuidava de seus machucados. Minhas tentativas de falar com ele não tiveram resposta: ele pretendia apenas esquecer o que lhe acontecera, ainda que ambos soubéssemos que isso seria impossível. Nesse exato instante, um pacto de silêncio se firmou entre nós. Ninguém jamais saberia de nada que ali acontecera, e eu nunca pensei em romper esse pacto, nem mesmo nos momentos mais difíceis de minha vida, pois a amizade para mim sempre foi, como ainda é, a mais bela das virtudes.

Até o momento em que Na'zzur veio buscar-me para participar do banquete em que minha vida se acabaria, fiquei silencioso ao lado de Daruj, que não se moveu, como se estivesse dormindo. Eu olhava cada machucado em seu corpo, pensando no que seria pior: ser espancado e violentado contra a minha vontade, ou deixar-me violentar sem reagir? Não sabia de mais nada: cada pequeno sonho que tivera agora era pó, e as duas paixões recém-descobertas, a música e a sacerdotisa, ficavam a cada momento mais e mais inalcançáveis. Quando as primeiras estrelas no céu da Grande Baab'el marcaram a hora do início do festim de Belshah'zzar, fui levado para a grande sala onde, sem que eu soubesse, minha vida seria sacudida desde suas raízes, e minha mente experimentaria um momento de incompreensível loucura que até hoje, tantos anos passados, me confrange o coração.

Quando entrei com outros companheiros da guarda no grande salão de colunas ordenadas por três e quatro, em cujo cimo havia capiteis de jaspe e marfim, aos quais estava atada uma miríade de archotes da mais pura nafta, refinada e perfumada com mirra e olíbano, o rei Belshah'zzar narrava, para gáudio de seus acólitos e convidados, a beleza e precisão da manobra de que se servira para reduzir o poder dos sacerdotes de Marduq e mais uma vez reafirmar-se como o único representante do deus da Grande Baab'el:

— Nunca o perceberam! Quando deram por si, eu já estava em meu devido lugar! Pois não sou eu o representante de Marduq na Grande Baab'el? Que motivos haveria para que uma estátua fizesse esse papel? Rei e deus ao mesmo tempo, não é o que dizem? Pois de hoje em diante é assim: de hoje em diante, em qualquer ocasião, os dois papéis são de minha responsabilidade!

O chão de tijolos de cerâmica e vidro polido, formando desenhos em todas as cores conhecidas, delineadas com o negro do ônix que as separava e ressaltava, de tal maneira que pareciam vivas e iluminadas por dentro, levava todos os olhos ao centro do salão, onde um estrado mais alto era ocupado por esse rei adiposo, brilhante de suor, com as belas vestes de púrpura de Tiro e brocado de Chipre já manchadas pelos vinhos que ele consumia sem parar.

Não havia sequer um sacerdote na sala, porque, enquanto Daruj e eu cumpríamos nosso amaldiçoado serviço, o enfrentamento entre Belshah'zzar e o urigallu de Marduq havia chegado a seu ápice. Nessa tarde, todas as manobras e recusas dos dias anteriores haviam finalmente ficado claras, e os desígnios do rei-substituto tinham enfim sido revelados. Na hora da grande procissão, que atravessaria o Portão de Ishtar em direção ao templo de Marduq, do outro lado da Esagila, as procissões sucessivas estavam na larga avenida à frente da fortaleza do norte, sustentando os grandes andores onde se elevavam todos os deuses possíveis, Nabbu, Zarppan'it, King-u, Ttamuz, a própria Ishtar, cada um deles uma imensa estátua articulada, ricamente vestida, e tão semelhante a um ser vivo que havia quem se rojasse ao solo quando passavam, trêmulo de pavor. O povo e todos os sacerdotes se agitavam, pois faltava o grande andor de Marduq, sobre o qual a maior e mais pesada de todas as estátuas, representando o grande deus da Babilônia, deveria liderar o panteão divino, neste penúltimo dia de devoções.

Subitamente, no topo da escadaria que unia a fortaleza ao palácio real, surgiu o grande andor, levado nos ombros não dos sacerdotes que para isso se haviam preparado durante longos meses, mas de uma infinidade de soldados da Guarda Real, armados até os dentes. Os gritos de alegria rapidamente se transformaram em arquejos de horror, porque sobre o andor, pintado de ouro, vestindo os trajes sagrados de Marduq, estava o próprio Belshah'zzar, movendo os braços ao modo das estátuas. Os sacerdotes ficaram horrorizados, lanhando as faces até que o sangue fosse mais forte que as cores com as quais as tinham pintado: quem era este que assumia com tal desfaçatez o papel do verdadeiro deus da Grande BaaVel, impondo-se a seus fiéis de forma tão arrogante? Belshah'zzar nunca estivera tão feliz: eu comparava meu desespero infinito à sua alegria insana, já que um parecia ser decorrência da outra, me desesperando ainda mais.

Os convidados de Belshah'zzar se deliciavam com a manobra de seu anfitrião, e as libações e saudações ao grande e esperto rei se sucediam a cada uma de suas frases. Subindo ao assento do trono de pedra negra, incrustado de jaspe e lápis-lazúli à moda dos egípcios, o rei da Grande Baab'el ergueu seus braços adiposos para o ar, sacudindo-os ritmadamente:

— Não existe sacerdote que possa enfrentar o poder de um rei, quando deus e o povo estão com ele! Ao ver-me pintado de dourado, acenando com os mesmos movimentos das estátuas, o povo teve um momento de incredulidade, reconheço. Mas logo alguém gritou "Marduq! Belshah'zzar!", e esse grito tornou-se o refrão dos hinos que me acompanharam por todo o caminho até o topo do templo de Marduq, onde os sacerdotes tiveram que reconhecer-me como a única e verdadeira encarnação do deus deste Império! Eu me ergui, com o cetro e o círculo nas mãos, girando para que toda a Grande Baab'el me aclamasse, e toda a Grande Baab'el me aclamou, aos gritos cada vez mais altos de "Marduq! Belshah'zzar!", reconhecendo-me como seu rei e seu deus!

— E podeis ter certeza de que sois deus e rei, Grande Belshah'zzar, única verdadeira encarnação do grande e poderoso Marduq, e tão poderoso e grande quanto ele! — disse uma voz conhecida, que me fez erguer os olhos de minha vergonha e encarar a enorme Bel'Cherub, vestida com braças e braças de pano escuro, sua coroa de siduri e sua barba postiça, o queixo erguido, um sorriso de cruel satisfação dis-torcendo-lhe a face ingurgitada.

— Bel'Cherub! Siduri das Sidurin, a maior de todas desde que Gilgam'esh se abrigou do dilúvio na taberna da primeira de vós! Minha casa se honra com tua presença, e agradeço pelo regalo que me enviaste e que ainda não pude ver. Onde está o presente que Bel'Cherub me enviou?

O olhar porcino da criatura percorreu o salão, detectando-me ao pé de uma das colunas que ficavam à porta das cozinhas. Seu sorriso obsceno se abriu, e, sem tirar os olhos de mim, ela disse a Belshah'zzar: , — No momento certo, meu rei, no momento certo. Como com os alimentos que vossos cozinheiros estão nesse momento produzindo no ventre de vossas cozinhas, o prazer de meu presente também deve ser uma surpresa que só se revela no momento certo!

Belshah'zzar ergueu sua taça em direção a Bel'Cherub, tendo sua atenção atraída por outros de seus acólitos, sempre bajuladores e elogiosos. A gorda siduri começou a andar pelo salão, traçando um grande círculo, que terminaria em mim, pois seus olhinhos malvados não me abandonavam nem um instante. Também pude perceber que Bel-shah'zzar já estava ocupado acariciando dois jovens vestidos à moda grega, que lhe haviam sido trazidos em uma grande bandeja de cobre marchetado, nos ombros de seis etíopes, dentre os muitos que o serviam no palácio. Pensei que a vontade de Belshah'zzar era incontrolável, e que nem mesmo a poderosa Bel'Cherub tinha como garantir que nessa noite eu seria o seu escolhido: isso me deu tanto alívio, que pude até mesmo enfrentar-lhe o olhar, quando ela sussurou à minha frente:

— Pequeno ladrãozinho, viste o que aconteceu a teu amiguinho Daruj, e já sabes o que te espera, pois não?

— Quem de nós conhece o futuro, siduri? Tudo pode acontecer, e também nada. Que certeza absoluta se pode ter de todas as coisas?

Nesse embate de ironias, ela estava mais bem preparada que eu: minha mente estava por demais preocupada, e ela, percebendo isso, passou seu punho por meu pulso esquerdo, apertando tanto que o marcou de roxo:

— Acalma-te, chefete. Se não acontecer hoje, mais dia, menos dia, estarás na mesa dos prazeres de Belshah'zzar. Eu tudo farei para que seja hoje, e sei como chamar a atenção de nosso rei para teu corpinho tenro. Se alguma coisa atrapalhar meus planos, isso apenas adiará minha satisfação: hei de ver-te em pior estado que teu outro amiguinho, e saberei ler em teus olhos o prazer que sentirás.

Apavorado, fiquei firme: não podia dar a Bel'Cherub a satisfação de ver-me tremer. Ela se afastou de mim, indo até onde Na'zzur estava, junto a outros soldados do rei, e teve com ele uma conversa de pé de ouvido cheia de olhares de soslaio em minha direção. Minha esperança era não haver nada que garantisse a Bel'Cherub que eu seria o escolhido dessa noite: inúmeros soldados da guarda também ali estavam, tão arrumados e lustrosos quanto eu, todos à disposição da vontade incon-trolável do puhu da Grande Baab'el, alguns deles certamente desejando a desgraça que consideravam uma honra. Essa incerteza quanto a meu destino acabou me servindo de calmante, pois os demônios que meus medos construíam se tornaram sem importância frente aos pequenos gestos de Bel'Cherub. Suas frases, a força com que me apertou o punho, a pequena conspiração que eu agora assistia entre ela e Na'zzur mostravam que as possibilidades eram quase todas a meu favor. Era preciso apenas não criar nenhum motivo para que se dessem conta de minha existência, rezando para se tornar invisível, deixando que o Destino, em vez de ser o cruel culpado de minha desgraça, se tornasse o portador de minha salvação. O que veio a acontecer, no entanto, não havia nem de longe passado por minha mente, nesse dia de infinita crueldade, com todos os sentidos que essa palavra possa tomar.

A música começou a soar, meus olhos se voltaram para o lugar de onde ela nascia, e reconheci meu quase-futuro mestre Feq'qesh, desta vez sobraçando uma enorme lira do tipo egípcio, com dez cordas de som metálico e plangente. Os músicos ao seu redor soavam tambores, flautas, crótalos, sistros, adufes, uma infinidade de instrumentos que serviam de cama para a beleza das notas em cascata que Feq'qesh extraía de sua lira, acompanhando cada uma delas com um outro som vindo de sua garganta, e essas duas linhas sonoras, mesmo diferentes, se harmonizavam perfeitamente. Abaixei a cabeça, para que ele não me reconhecesse, mas mantive minha atenção sobre sua figura, limpa e perfumada, muito diferente dos outros músicos de Bel-shah'zzar. A flauta começou a juntar suas notas a cada uma das duas notas de Feq'qesh, e a soma de tudo isso mais uma vez me fez sentir que ali estava o caminho para a minha vida, ainda que dele estivesse separado como um filho de sua mãe. Mesmo assim, experimentei um momento de tranqüilidade em meio ao rodamoinho de minhas emoções: foi nessa noite que aprendi a me refugiar na música de cada vez que a vida me impôs uma encruzilhada. A orquestra do palácio, a um sinal do ve'zzur de Belshah'zzar, fez soar um arpejo metálico e agudo, exatamente igual àquele com que a dança ritual de Sha'hawaniah começara, no dia em que eu a vira pela primeira vez, e meu coração saltou. Em vez dela, o que deu entrada no salão foi um desfile de jovens aprendizes de cozinha, de todas as cores e tamanhos, entre os quais avistei Yeoshua com seus olhos arregalados, carregando por sobre a cabeça bojudas cestas de vime egípcio, onde vicejavam enormes molhos de coentro, oloroso, pungente. Os convivas aplaudiram, estalando seus dedos e beijando o ar ruidosamente, pois a entrada do coentro sempre prenunciava o magnífico desfile de cores e sabores que tornava os festins de Belshah'zzar um evento obrigatório para os adeptos dos prazeres da boca. As cestas de vime foram espalhadas por entre os leitos dos convivas e as mesas baixas que os separavam. O cheiro do coentro se espalhou, dando início à excitação dos sentidos, e a música cresceu, tomando um ritmo marcial, enquanto os primeiros pratos entravam no salão, fumarentos e brilhantes.

Desde Nabbu'zzardan, cozinheiro transformado em general pelo banquete que realizara no fogo onde ardia a madeira do Templo de Yahweh, o cargo de cozinheiro só era menos valorizado que o de puhu, sendo encarado com um pouco menos de respeito que o de sacerdote, mas tendo muito mais importância que o de médico: desde o tempo dos Dinastas assírios, em caso de doença costumava-se mudar de cozinheiro em vez de mudar de curandeiro, garantindo a saúde das casas reais. Nas profundezas do grande palácio, os quase duzentos cozinheiros de Belshah'zzar passavam todo o tempo preparando alimento para os que lá viviam, e como os festins eram diários, parecia que o grande palácio real de Baab'el tinha sido erguido exclusivamente para que nele os cozinheiros exercessem seu ofício.

 

Os aprendizes de cozinha, depois de espalhar as cestas de coentro, foram substituídos por outros ainda mais ricamente vestidos, trazendo bojudas bacias de ouro com água fresca, para que os convivas se abluís-sem, entregando-lhes na passagem pequenos frascos de vidro egípcio cheios de óleo de oliva perfumado com cedro, zimbro ou mirta, que escolhiam segundo seu gosto pessoal, enchendo o ar de mais perfumes. Os primeiros a serem atendidos eram sempre os wasib'kussim, convidados de honra que ocupavam o círculo de chão mais próximo ao trono de Belshah'zzar e a quem os alimentos sagrados eram preferencialmente distribuídos: todas as comidas oferecidas aos deuses retornavam ao palácio, e, segundo a importância dos convivas, uma maior ou menor parte desses alimentos lhes era posta à disposição, tudo de maneira muito organizada, pois os contabilistas do palácio mantinham anotações estritíssimas de quanto era dado a quem e por que motivo, e uma cópia desta anotação era repassada ao usuário, que a exibia como prova de sua importância. Os wasib'kussim, homens de todos os quadrantes do mundo com os quais Belshah'zzar tinha negócios, ficavam sempre mais próximos a Belshah'zzar e eram seus mais intensos bajuladores, por isso mesmo os mais bem aquinhoados na divisão das vitualhas.

O grupo de aprendizes retornou ao salão trazendo enormes jarras feitas de cerâmica, bronze, vidro ou ouro, cada uma delas cheia até a borda com uma das quatro bebidas que seriam consumidas durante o festim: o bou'zza, cerveja feita de pedaços de pão fermentados e filtrados, à moda dos Faraós; o licor de tâmaras que cada casa da Grande Baab'el, mesmo a mais humilde, se orgulhava de produzir e estocar, sendo o do palácio real o mais famoso de todos; o dzimtu'hum, feito de estoraque, com elevadíssimo teor alcoólico e cheiro de benjoim; e finalmente o kikirenVhum, purgado dos ramos do meimendro, que causava alucinações e perda de controle. Essas bebidas, lavadas com o ácido vinho de uvas da Fenícia, feito especificamente para o rei, eram postas à disposição de todos, até dos menos favorecidos por sua posição no salão, e nem mesmo depois que o banquete se iniciou, a longa linha de aprendizes diminuiu o ritmo com que trazia as jarras cheias, levando embora as vazias.

A arte de Feq'qesh era fascinante: cada novo grupo que surgia pelo arco das cozinhas era saudado com uma sonoridade diferente, uma nova frase musical. As escalas usadas iam se sucedendo, à medida que os alimentos davam entrada no grande festim de Belshah'zzar, comentando-os, ritmando-os, indicando até mesmo de onde vinham. Em dado momento, o ritmo se tornou mais hierático, pois três filas de pessoas vestidas com

longos mantos começaram a surgir do corredor que eu guardava, carregando enormes bandejas tampadas com grandes cúpulas em formato de ziggurat, feitas de ouro, prata e bronze. A um movimento de seus corpos, os mantos caíram de seus ombros, e vimos, por estarem todos nus, que eram impressionantemente belos, untados com o óleo nekefeter, o perfume nacional do Império da Babilônia. O grupo das mulheres, levemente tingidas de cor-de-rosa, carregava os recipientes onde as comidas cozidas estavam dispostas, fumegando e lançando ao ar todos os seus perfumes de gengibre e cominho, pois tudo sobrenadava no exótico óleo de Vênus, um hábito trazido da cozinha meio etrusca, meio romana, dos habitantes do Tibre. O grupo dos homens, coberto de um brilho dourado, levava assados de monumentalidade excessiva, carne de boi, carneiro, coelho, pombo, peixes cobertos de suas próprias ovas, cada um mais oloroso que o anterior, e entre cada uma dessas grandes bandejas despontava o brilho caramelizado e crocante dos porcos assados à moda dos tessalienses, cercados por trufas da Líbia, ainda que enfiados de pé em grandes espetos e encimados por asas de massa decorada, numa imitação dos monumentais querubins que ornavam as paredes do salão. O terceiro grupo, carregando diversos alimentos dos quais emanavam os indecifráveis odores de podridão que a Grande Baab'el adorava, era o mais impressionante de todos: com peles muito brancas e olhos quase fechados, exibiam tanto seios femininos quanto pequenos membros masculinos, fazendo com que diversos dos convivas mais afastados se erguessem de seus leitos para observá-los melhor, pois hermafroditas, que já eram naturalmente muito raros, chamavam muito mais atenção nessa quantidade inacreditável em que Belsha'zzar os exibia. Que desperdício de riquezas e esforços humanos não teriam sido necessários para reunir nessa noite tantos desses seres? A meu lado, ouvi vozes que diziam "devem ser apliques, à moda egípcia, pois nem em vinte séculos de vida a Natureza produz tantos híbridos", mas Belshah'zzar, erguendo-se de seu trono, bradou:

— Podeis experimentá-los a todos, meus amigos! São todos exatamente como vós os vedes! Estão neste palácio para servir-vos no que quer que vossas mentes e vossos corpos engendrarem! Depois de vos satis-fazerdes com as comidas que eles vos apresentam, refestelai-vos em seus corpos! Foi para isso que eu os trouxe! São meu presente para vós, o presente do rei da Babilônia! Marduq e Belshah'zzar, Belshah'zzar e Marduq vos presenteiam com essas dádivas de nossa pródiga natureza!

Os gritos de satisfação dos convivas misturaram-se à música cada vez mais alta e aos ruídos de pratos e copos escapando de mãos engor-duradas e caindo ao chão, risos de prazer e gula, urros de volúpia dos que confundiam gula e luxúria em uma só emoção. Um vórtice de corpos e sabores, cercados pelos odores violentos das comidas que ali estavam sendo consumidas, e risos e gritos de horror e medo, subjugados por gargalhadas de vitória e espasmos de gozo, tudo nesse antro de prazeres pulsava e vibrava cada vez mais, os alimentos e os corpos se misturando uns aos outros. Sobre tudo isso pontificava a figura enxundiosa de Belshah'zzar, movido mais e mais pelas bebidas e comidas de seu festim, que excitavam além da conta os sentidos de cada conviva: o rei, sob quem a depravação da Grande Baab'el alcançara novos e inacreditáveis patamares, olhava a todos de uma posição superior, ficando de pé sobre o assento de seu trono de cada vez que se erguia, pois não admitia que qualquer cabeça humana estivesse acima da sua. Eu o olhava de soslaio e só pensava no nojo que me causava, com sua figura asquerosa, coberta de um suor pegajoso, o lábio inferior muito caído pelo qual escorria a baba que sua boca produzia, mas de tudo o que nele mais me assustava era o poder de que dispunha, e que exerceria de maneira absoluta sobre tudo em que seus olhos e desejo pousassem. Nesse momento de minha vida, eu não acreditava mais em nada que pudesse me salvar do horrível destino que me estava reservado: esse rei cruel que eu olhava com temor era mais poderoso que qualquer deus, e minha vida pregressa ou sonhada tinha sido posta em suas mãos. Foi sem espanto nenhum que ouvi as frases de Belshah'zzar, gritadas tão alto que todas as atenções para ele se voltaram, enquanto o rei erguia os braços e deixava ver parte de seu corpo ainda pintado com a tinta dourada que usara na procissão dessa tarde:

— Alguém duvida que eu seja Marduq em pessoa? — Os acólitos de sempre, todos entre os wasib'kussim, tiveram um pequeno momento de hesitação, mas quase que imediatamente aplaudiram o rei sem demonstrar nenhum tipo de dúvida, enquanto ele sorria. — Pois não é essa a nossa tradição? Não é o rei da Babilônia que encarna a divindade e por isso reina sobre o grande Império? O que existe neste mundo que eu não possa fazer?

— Poderoso Belshah'zzar! — disse Bel'Cherub, uma das mais próximas ao trono, sendo secundada pelos murmúrios de aprovação dos outros. —Vós sois verdadeiramente mais que um rei, vós sois um deus. Como é grande a diferença entre vós e vosso antepassado Nebbu-chadrena'zzar, aquele que enlouqueceu por medo do deus de um povo vencido!

— Que não se repita esse nome em minha presença! O rei que se entregou ao deus dos hebreus, e por causa disso foi transformado em animal, com cabelos e unhas enormes, comendo a erva daninha e vagando pelos campos da Grande Baab'el enquanto seu Império peri-clitava? Mereceu tudo o que sofreu, o maldito, porque se esqueceu que o deus da Babilônia é que é o verdadeiro deus, não esse deus menor, derrotado, esse deus de escravos sem valor!

Um tessaliense de toga curta, com um corte em V na orelha esquerda, ergueu a voz:

— Há deuses e deuses, poderoso Belshah'zzar: alguns deles fazem questão de possuir grandes pedaços de terra, onde seu poder não pode nem deve ser discutido.

— E muitos deles gostam de invadir o território alheio — disse com ar de mofa um negociante etrusco de barbas cerradas, com a cara avermelhada pelo vinho. — São famosos os combates entre deuses pela posse das terras onde outro deus habita.

— Por isso é que digo: há deuses vencedores e deuses derrotados. O deus que em mim habita, o deus Marduq que sou, venceu de forma definitiva a todos os deuses que nos cercavam. Tomamos seus territórios, amealhamos suas riquezas, escravizamos seus fiéis e os destruímos a todos, sem exceção. Não há nenhum deus mais poderoso que Marduq, o vencedor absoluto!

A música e os aplausos recrudesceram, enquanto Belshah'zzar girava por sobre o trono de pedra lavrada, exibindo-se a toda a volta do grande salão, com um estranho brilho no olhar. Olhava por sobre as cabeças,

como se estivesse pairando sobre todos nós, falando para si mesmo, cada vez mais alheio à existência dos pobres mortais que o adoravam:

— Eu venci a todos os deuses que quis vencer, e meu tesouro prova isso! Desde antes do maldito Nebbuchadrena'zzar, venho amealhando fiéis, territórios e tesouros desses deuses derrotados! Eu sou o maior de todos os deuses!

Belshah'zzar parecia tomado por alguma coisa mais forte que ele, ainda que todos desconfiássemos que fosse o meimendro do kiki-reni'hum quem falava por sua boca: seu delírio ficava mais fora de controle a cada instante, e quando gritou por seu ve'zzur, que se aproximou celeremente, urrou com os olhos arregalados e a boca retorcida num nó de dentes e músculos arreganhados, como se tivesse se transformado em um animal sem nenhum controle de seus próprios atos:

— Trazei os vasos sagrados que eu tomei do deus de Jerusalém, antes de queimar-lhe o templo! Trazei-mos imediatamente! É neles que quero beber o vinho de minha vitória! Vamos! Abri a sala do tesouro e trazei-me os vasos que o deus de Jerusalém dizia sagrados! Nada é sagrado para Marduq, o maior de todos os deuses!

O ve'zzur de Belshah'zzar dirigiu-se para uma enorme porta de bronze fundido que ficava à direita do trono, batendo palmas para que os guardas que a protegiam se afastassem: eles o fizeram, e ele se aproximou delas, golpeando-as com o punho fechado. O som foi grave, metálico, profundo, e depois de algum tempo as portas começaram lentamente a se abrir. Dentro da sala do tesouro, o brilho era tão grande que por um momento ofuscou a vista de todos que estávamos no grande salão: mas, passado este momento, vimos que dentro dela estava uma quantidade imensa de riquezas vindas de todos os quadrantes do mundo; riqueza de Belsha'zzar e símbolo absoluto do poder da Grande Baab'el sobre todas as nações do Universo. Homens de pele descorada e olhos avermelhados pelo cansaço, que nunca saíam de dentro dessa sala a não ser depois de mortos, olhavam para fora com incredulidade. O ve'zzur de Belshah'zzar deu dois passos para dentro da sala, e por um instante esses homens cerraram fileiras à sua frente, defendendo o tesouro do Império: mas, logo que reconheceram o representante de seu senhor, abriram caminho para que ele apanhasse aquilo que seu rei desejava.

Quando o ve'zzur de Belshah'zzar saiu da sala, foi seguido por meia dúzia ou mais dos guardas do tesouro, empurrando bacias de bronze apoiadas em rodas do mesmo metal, dentro das quais brilhava uma quantidade inacreditável de ouro amarelo, sob a forma de bacias e vasos. Belshah'zzar, sem hesitar, avançou sobre a bacia que lhe ficava mais próxima, apanhando uma taça ovalada quase tão grande quanto sua cabeça, mandando que a enchessem de vinho. Nem esperou que o servi-çal terminasse: levou-a à boca com um gesto brusco, sem se importar com a bebida que caía sobre seu peito e escorria para o chão, aumentando a poça escura que já estava a seus pés.

Meus olhos viram atrás de Belshah'zzar, no tablado dos músicos, meu quase futuro mestre Feq'qesh, cobrindo os olhos com as duas mãos, como se não desejasse ver o que se avizinhava. Uma estranha emoção percorria a todos que estávamos nesse salão, nessa noite: recordo com clareza ter pensado na razão pela qual Feq-qesh não queria ver a exibição de poder do rei da Grande Baab'el: se houvesse um deus, seria certamente esse homem gordo, asqueroso e cheio de poder, que bebia em grandes goles de uma taça de ouro.

Belshah'zzar enfiou a mão em uma bacia que estava a seu lado, coalhada de riquezas de todos os cantos da terra, e dela apanhou um punhado de moedas, com um ar de mofa em seu rosto inchado:

— Que ninguém diga que existe um deus maior do que Marduql Também nunca se diga que Marduq não conhece o real valor dos deuses a quem venceu1. Sou um deus benfazejo, e pago o preço justo pela posse que tomo de suas riquezas! Toma, Yahweh, deus de Jerusalém, a quem venci em combate mortal! Lambe as tuas feridas e aceita o pagamento justo pelos tesouros que foram teus e agora são meus.

Largando as moedas que estavam em sua mão, manteve entre os dedos apenas uma delas, pequena, ínfima, feita de cobre escuro, olhando a todos os seus wasib'kussim com ar de mofa: enquanto seus acólitos riam e aplaudiam, jogou a insignificante moeda para a frente, na direção dos tesouros que havia mandado buscar. A pequena moeda caiu ao chão, girando, como fazem as moedas, quando rodam até perder velocidade e parar, com uma de suas faces exposta. Só que esta, para espanto de todos, rodou à volta do tesouro, em um círculo cada vez maior, e, em vez de perder velocidade, começou a dar voltas cada vez mais depressa, zumbindo como um pião. À minha frente, um conviva começou a rir nervosamente, sem acreditar no que via, e o espanto foi crescendo cada vez mais, instalando no salão um silêncio de proporções tão gigantescas, que repentinamente só se ouvia o fino zumbido da moeda, girando cada vez mais rápido sobre os tijolos vidrados do piso.

Eu não sabia o que pensar: meu coração batia descompassadamente em meus ouvidos, como se o sangue estivesse brigando para sair de meu corpo, enquanto meus olhos acompanhavam sem piscar o movimento da moeda sobre o piso. Atrás de mim, uma mulher começou a gritar, cada vez mais alto e mais agudo, parecendo que nunca mais se calaria. Dois homens correram para longe da cena, atravessando o corredor que saía do salão, fugindo daquela visão do impossível. O que estávamos vendo era uma irrealidade, não acontecia, não podia acontecer: todos sabíamos que uma moeda que cai ao chão sempre acaba por parar, pois não existe nenhuma força humana que a faça girar cada vez mais rápido, como que dotada de vontade própria. O que era isso que eu via? Por que sentia esse misto de medo e náusea, como se meu corpo reconhecesse melhor que meu coração a impossibilidade do que estava acontecendo?

A moeda girava tão rápido que já parecia a nossos olhos um grande anel cor de cobre que circundasse o piso à frente do trono de Bel-shah'zzar, boquiaberto como todos, a taça de ouro esquecida nas mãos, o olhar baço fixo no círculo metálico que a moeda desenhava no espaço, zumbindo cada vez mais alto.

De repente, como que atraída por alguma força inesperada, e quase arrancando seu braço, a taça que estava em sua mão voou para o meio do círculo que a moeda desenhava, pairando em seu centro exato quatro braças acima do solo, onde começou a girar em direção contrária, com a boca para cima, expelindo chispas cada vez que um raio de luz tocava uma de suas arestas, e de dentro dela começou a gerar-se um rugido imenso, como um tropel de cavalos que se aproximasse, até que um relâmpago imenso brotou de seu íntimo, atingindo o teto em cúpula do grande salão, fazendo com que a pedra de que era formado apresentasse uma grande rachadura.

Ohei para Feq'qesh, que chorava copiosamente, enquanto erguia para o ceu as mãos abertas, logo após cobrindo a cabeça com seu manto: eu não percebia nada do que estava acontecendo, mas sentia em meu coração que o que via não era obra de nenhum desses magos que encantam as platéias com seus truques fabulosos. Os raios que saíam de dentro da taça flutuante em quantidade cada vez maior empalideciam os archotes de nafta, que terminaram por se apagar quando um vento de enormes proporções, uma verdadeira tempestade seca, circulou por dentro do grande salão. Mesmo assim, não ficamos às escuras, pois a luz que se projetava dessa taça que pairava acima de nós era cada vez mais forte, cercada por um ruído de trovões que nos ensurdecia a todos.

Tremi frente a isto que não compreendia, e por um instante temi estar enlouquecendo, vendo coisas impossíveis, como os insanos que de vez em quando atravessavam nosso bairro, confundidos com profetas que estivessem de posse da palavra de deus. Mas eu não era o único que as via, e isso só aumentava meu temor: perto de mim estava um homem que se curvava, vomitando de puro terror. Eu o compreendia bem, pois meu organismo também era todo náusea, todo febre, todo certeza de que a vida me estava por abandonar, mas ainda assim meus olhos amedrontados não conseguiam afastar-se de nada do que estava à minha frente, e se hoje consigo narrar o que ocorreu, é simplesmente porque existem memórias que nunca se apagam.

A cada instante acontecia mais alguma coisa que nos abismava, e tudo se somava na exibição desse poder sem medidas que nos deixava à beira da sandice e nos confrangia o coração com o mais absoluto terror que se pode experimentar. Os tesouros do templo de Yahweh também eram atraídos por esse vórtice que a moeda girante criava, com a taça brilhante em seu centro, e tudo se movia e ajuntava debaixo dela, formando uma imensa coluna de ouro e poder divino. Sim, eu agora tinha certeza: só um deus podia realizar o impossível que agora experimentávamos, e em meu coração pedi a esse deus que afastasse de nós esse acontecimento sem sentido nem medida, deixando-me livre para viver a minha vida como ela sempre fora, sem milagres nem impossíveis.

Esse deus de vingança, claramente ofendido com Belshah'zzar, ainda fez mais: de dentro da taça girante começou a produzir uma nuvem densa, escura, que inchava e crescia cada vez mais, até tocar o ponto mais alto do teto sobre nossas cabeças. Um cheiro metálico invadiu minhas narinas enquanto eu recuava sobre meus próprios pés, e repentinamente de dentro dessa nuvem, com a força de uma cachoeira, uma mão imensa se projetou, apontando um dedo gigantesco na direção de Belshah'zzar.

O rei caiu para trás, sobre o trono, e seus esfíncteres se abriram, deixando o chão à sua frente coberto de urina e fezes malcheirosas, enquanto ele abria a boca e gritava com voz muito fina, segurando a cabeça e arrancando os poucos cabelos que lhe restavam. Eu mesmo não pude ficar de pé quando essa enorme mão surgiu entre nós: meus joelhos transformaram-se em água e eu caí ao solo. Diferentemente dos outros, no entanto, a visão desse inesperado não me fez esconder a cara: meus olhos incrédulos não se fartavam de assistir a esses prodígios, e me recordo de ter olhado minha própria mão, comparando-a com a imensa mão que apontava um dedo implacável para Belshah'zzar. Era uma mão perfeita nos seus mínimos detalhes, mas tão grande que certamente pertenceria a um gigante de inimaginável tamanho, impossível de caber em taça tão pequena. A nuvem foi-se concentrando ao redor dessa mão, e enquanto os raios iluminavam o salão, o dedo voltou-se para a parede à frente de Belshah'zzar, nela traçando com violência as letras do antigo alfabeto, o mesmo com que o Universo havia sido criado, letras de fogo negro e vivo, que marcaram para sempre a parede em que foram riscadas, calcinando os tijolos que a recobriam, enquanto todo o palácio, e com ele a Grande Baab'el, tremia sem que ninguém compreendesse   como.

Belshah'zzar caiu para trás, apoplético, enquanto a mão começava a recuar para dentro da taça: os raios, ainda fortíssimos, começaram a espaçar-se gradativamente, e a sala começou a ficar imersa em escuridão cada vez maior, só quebrada pelo brilho da taça e do círculo vibrante da moeda que não cessava seu giro, zumbindo mais alto que os gritos que ainda se ouviam por todo o salão. Eu tinha minha cabeça tão à volta quanto essa moeda, e me sentia como se estivesse saindo de mim mesmo, frente a um poder que me assoberbava e esmagava.

Um raio mais forte e inacreditavelmente longo espelhou-se em todo o salão, permanecendo intenso como se já fosse dia ali dentro, cada vez mais claro, e a taça e a moeda, subitamente, caíram, transformadas de novo em apenas uma taça e uma moeda, não mais as ferramentas que um deus usara para exibir seu gigantesco poder, mas simplesmente as coisas comuns que eram até que ele delas se apropriasse em sua força divina. Eu vi que a moeda fumegava como se tivesse sido colocada sobre brasas: a taça, no alto da pilha de riquezas que pertenciam a Yahweh, agora simplesmente uma pilha de coisas feitas do metal chamado ouro, brilhava cada vez menos, e por fim a bendita escuridão deu descanso a meus olhos, esgotados pela visão intensa do que não podia ser, e que no entanto fora, porque uma vontade suprema, maior que qualquer outra, fizera acontecer.

A escuridão nos abraçou a todos, confortavelmente, livrando-me do que eu precisava esquecer, ainda que soubesse que isso nunca aconteceria: estava para sempre marcado por tudo o que vira e experimentara, e de alguma maneira esse deus havia mudado o rumo de meus passos em direção ao destino que fatalmente viveria. As imagens desse dia nunca mais se apagaram de minhas retinas: o giro da moeda, a taça brilhante, os raios que dela se projetavam, a nuvem e a gigantesca mão que dela nasceu, as letras queimadas na parede, a benfazeja escuridão que depois de tudo se apossou do mundo em que eu vivia. Mas, de tudo isso, a imagem mais marcante foi a face de Sha'hawaniah, que eu vislumbrara na entrada do salão, chegando quando os acontecimentos já se davam. Um último lampejo dos raios da ira divina me permitiu ver seus belos e inesquecíveis olhos, onde um inexplicável sorriso flutuava, como se apenas ela entendesse o que nesse dia ali acontecera.

A escuridão me cobriu como o manto que Feq'qesh colocara sobre sua cabeça, depois de erguer as mãos para o céu, antes que o poder de Yahweh se fizesse presente em toda a sua glória. O milagre estava completo, e de agora em diante só me restava admirar a maneira pela qual o Criador do Universo faz com que as coisas criadas se aperfeiçoem.

Acho que foi a partir dessa noite de prodígios e portentos que nuvens se tornaram importantes para mim: nunca mais pude olhá-las sem que a lembrança da nuvem de onde saíra a mão de Yahweh retornasse à minha mente, de alguma forma, permeando-me de um medo que nunca mais se apagou. Desse dia em diante, passei a encará-las com mais atenção, sentindo que por trás delas se ocultava o indizível, o inesperado com tanto poder sobre minha vida, ainda que eu não ousasse reconhecê-lo.

O caos que se instalou no palácio só não foi maior porque os que o ocupavam fugiram, indo ocultar suas cabeças assustadas no buraco mais profundo que puderam encontrar. Muitos deles perderam o rumo e, em vez de subir para o mais alto dos jardins suspensos, acabaram por descer aos subterrâneos, e um ou dois, sem saber onde pisavam, caíram em suas profundezas, perdendo-se na lama do porão. Outros, mais afortunados, conseguiram escapar daquele cenário incompreensível, indo buscar segurança na cidade, que, também totalmente às escuras, tremia tanto quanto eles. Eu permaneci no palácio, pois Daruj estava acometido de dores no dormitório onde eu o deixara, e eu não podia abandoná-lo, nem mesmo se o deus que exibira todo o seu poder assim me ordenasse. Meu caminho até as casernas, em total escuridão, demorou quase três vezes mais que o normal, e os gritos desesperados que encontrei em minha descida serviram para que eu mais e mais me perdesse e embrenhasse por desvãos que de outra maneira nunca pisaria. Alguns de mais expediente haviam reacendido os archotes que se haviam apagado, e a partir de certo momento a descida para as casernas ficou mais fácil: eu já podia ver por onde ia, em vez de tentar apenas adivinhar. Cruzava com pessoas em maior ou menor grau de delírio, e nenhuma delas prestou a menor atenção em mim.

Minha mente não parou de funcionar um instante sequer: eu acabara de ver a exacerbada exibição do poder incomensurável de um deus vingativo e irado, que graças a isso me salvara do destino que eu mais temia. Minha vida havia caminhado do corriqueiro para o inesperado, do inesperado para o degradante, do degradante para o milagroso, arrebatando-me, desperdiçando-me, ameaçando-me e finalmente salvando-me, graças a esse embate entre deuses. Eu não conseguia acreditar que havia passado por fatos sem ligação uns com os outros, e sabia haver sido marcado pelo que vira e vivera: a idéia de que os olhos desse deus estivessem permanentemente sobre mim, observando meu caminhar, confrangia-me o coração. Não desejava isso, de forma alguma. Sabia, com toda a certeza que um homem pode ter, que queria apenas ser o mais comum dos homens, sem nada que me destacasse dentre outros como eu. Apesar de meus sonhos de poder, os mesmos que todas as pessoas têm, a idéia de ganhar alguma importância me enchia de medo, porque eu preferia que minha vida fosse cinzenta o bastante para que eu desaparecesse no meio da multidão amorfa, vivendo e morrendo como havia nascido, apenas um animal sem nenhum valor.

Era já a manhã do dia seguinte quando finalmente cheguei às caser-nas e entrei no dormitório onde havia deixado um Daruj ferido e ensangüentado, vendo à luz bruxuleante dos archotes que o catre estava ocupado por mais gente. Eram Yeoshua e Mitridates, e Daruj estava sentado tomando algum alimento que um deles lhe havia trazido. O olhar que me deu mostrou-me que ele temia que eu falasse das sevícias a que fora submetido: para nossos outros dois amigos, ele havia sido espancado quase até a morte por ter quebrado o nariz do asqueroso Na1 zzur, e era até com certo orgulho que exibia a eles os lábios partidos e os olhos quase fechados por hematomas. Eu o compreendia bem, e se fosse comigo que essa estupidez tivesse acontecido, duvido que tivesse uma ínfima parte da coragem que ele agora exibia.

Yeoshua, ao ver-me, avançou em minha direção com os olhos arregalados, pegando-me fortemente pelos pulsos:

— Tu também viste, não viste? Não estamos loucos, eu e Mitridates, estamos?

__Acalma-te, Yeoshua... — disse Mitridates, com a frieza que lhe era habitual. — Afinal, o que foi que aconteceu que não possa ser explicado de uma maneira ou de outra?

__ Mas o que te corre nas veias? Água gelada das encostas do

Dornaq? Ou és algum tipo de verme com forma de homem e sem nada aí por dentro?

__ O que passou, passou, Yeoshua. E nada do que houve tem qualquer efeito em nossas vidas. Belshah'zzar está caído em seu leito, mas há de se recuperar, e seus ve'zzirim e conselheiros estão lhe apresentando uma série de explicações para o que houve, cada uma mais elaborada que a anterior. Por que o que eles dizem seria menos verdadeiro que aquilo que tu pensas ser a verdade?

— Mas nós vimos! Nossos olhos não nos enganam, quando o que existe para ser visto é aquilo que aconteceu! A reação das pessoas mostra isso!

Daruj queria saber a que nos referíamos: Yeoshua e Mitridates, cada um à sua maneira, tinham-lhe contado os fatos inexplicáveis da noite anterior. Cada um deles contava a história de maneira completamente diferente, pois nada existe de mais diverso que o testemunho de duas pessoas sobre um determinado fato, e essa diferença aumenta à medida que o tempo passa e as crenças e descrenças de cada um vão modificando o que se experimentou. Eu mesmo, em meu silêncio, estava alternadamente ao lado de cada um deles, crendo e descrendo do que meus olhos haviam visto, enquanto o coração batia doidamente dentro do peito. Uma coisa era certa: por quaisquer meios, fosse a intervenção do deus de um povo contra o deus de outro povo, como acreditava Yeoshua, ou fosse tudo um somatório de truques humanos tão bem executados que tivessem parecido divinos, como Mitridates nos queria fazer crer, algo completamente fora do comum havia ocorrido:

— Por que acreditar que deuses escolheriam o território da Grande Baab'el para seu confronto, se têm todo o Universo ao seu dispor?

Yeoshua suava mais que de costume:

— Mitridates, os embates entre os deuses sempre acontecem para que reafirmem seu poder sobre nós, homens, e se o fizessem em segredo, que efeito isso teria? Achas que foi por acaso que o deus de meus pais escolheu o Festival de Marduq para demonstrar sua força? Achas que foi por acaso que se manifestou exatamente quando Belshah'zzar se apresentou como encarnação terrestre desta abominação e conspurcou os vasos sagrados de nosso templo?

Mitridates mantinha um sorriso frio no rosto, simbolizando sua incredulidade:

— Yeoshua, é preciso que aprendas a pensar sem que os teus pensamentos te emocionem. Todo raciocínio é uma operação de cálculo, na qual as emoções não têm lugar. Experimentemos: és capaz de inverter os termos de tua equação para que comprovemos sua veracidade? Raciocinemos como se estivéssemos na terra de teus pais, fazendo de conta que Belshah'zzar era rei de teu povo e representante de teu deus. Imaginemos que na noite de ontem esse rei dos hebreus tivesse se declarado possuído pelo deus de teus pais e houvesse decidido beber vinho na taça sagrada de Marduq. Achas que Marduq reagiria de alguma forma possível? Por que meios?

— Não confundamos as coisas: Marduq nada faria, mas seus sacerdotes sim. Sabes muito bem do que os sacerdotes de Marduq são capazes!

Mitridates bateu a mão na coxa, com os olhos brilhando:

— Exatamente! Sabemos do que são capazes os sacerdotes de Marduq, os ashipus e mashmashus, devotos de Pazzu'zzu, mestres em truques que enevoam os olhos e as mentes dos pobres crentes em po-deres divinos! Não sabes que tudo o que ontem ocorreu pode ser repetido à perfeição por qualquer um deles?

Eu percebia aonde Mitridates queria chegar: mas o que eu sentia dentro de mim era mais forte que isso. Quanto mais o assunto se tornava comezinho e afastado de qualquer manifestação divina, mais, e sem nenhuma explicação lógica, eu ficava certo de que o que ocorrera era milagroso. Repentinamente, o chefe da guarda, com olhos esgazeados e extremamente abalado, chegou correndo até nós:

— Vamos, soldados, vossas fardas! A sala do trono não tem nenhum soldado que a guarde! Precisamos de homens à volta do rei! Vossas fardas!

— Senhor, eu sou aprendiz nas cozinhas! — disse Yeoshua. — E nem eu nem meu companheiro Mitridates temos fardas!

— Não importa o que sois, importa o que sereis! Não vedes que estamos à matroca, desde ontem? A maior parte do batalhão está desaparecida, e tenho que dispor de todo e qualquer homem que me caia nas mãos! Até tu, Asa Quebrada, até tu irás cumprir teu dever de guardar a sala do trono. Vamos, homens! Rápido!

O abalo na segurança do chefe da guarda era flagrante: seus olhos em nada se fixavam, buscando algo que não sabia o que fosse, tentando manter sua autoridade a qualquer custo. Sem homens que o seguissem e obedecessem cegamente, essa autoridade não existia. Ainda assim nós o temíamos, e até mesmo Daruj, claudicando e com dores por todo o corpo, acompanhou-nos aos vestiários, onde alguns outros estavam vestindo os uniformes da guarda. Pelo que pude ver, éramos todos muito jovens, e em cada par de olhos amedrontados ficava patente nosso pouco traquejo militar. O chefe da guarda, entre gritos cada vez mais sem sentido, acabou por arrebanhar um pequeno grupo de doze, não mais, empurrando-nos pelas rampas até a sala do trono, onde nossos serviços seriam necessários. Estávamos ridiculamente mal preparados para a função que devíamos exercer, e nem mesmo com as vergastadas que o chefe da guarda dava em nossas pernas conseguimos manter o passo igual, como um soldado deve fazer: após algumas tentativas nesse sentido, ele acabou por desistir, empurrando-nos mais e mais depressa para a sala do trono.

Se parecíamos ridículos em nossa pretensa disciplina, a sala do trono de Belshah'zzar estava ainda pior que nós. Os restos do festim da noite anterior ainda jaziam sobre o solo, aos cacos, transformando a sala em um monturo nojento: um bafio de podridão se esgueirava por entre tecidos rasgados e móveis quebrados, de mistura com o cheiro de vinho azedo. Tudo no entanto estava acumulado contra as paredes do salão, amontoado de qualquer maneira, inclusive o pesado trono do rei, arrastado de seu lugar por uma força tão grande que deixara dois trilhos profundos no chão de pedra lavrada, polida e incrustada. Tudo o que antes enfeitara o salão era agora o limite de um grande e perfeito círculo, e nesse limite havia arestas tão perfeitamente cortadas que parecia que uma gigantesca faca havia passado por ali. No centro desse círculo, em imobilidade absoluta, estavam todos os vasos dos hebreus, trazidos na noite anterior, encimados pela taça em que Belshah'zzar havia bebido seu vinho amaldiçoado, pousada em perfeito e assustador equilíbrio no alto de tudo. Pude ver no chão, brilhando como se fosse feita de fogo, a moeda que girara tão vertiginosamente no festim, interrompendo-o ao dar início aos fenômenos absurdos que ninguém explicava, e cuja lembrança me fez correr pela espinha um arrepio incontrolável. Na parede ao fundo, perto de uma grande rachadura que se iniciava no domo de tijolos vidrados, escurecidos como se ali houvesse acontecido um incêndio, estavam as letras queimadas na parede, ainda fumegan-tes, traçadas com o fogo dos dedos da gigantesca mão que entre nós surgira. As imagens permaneciam claras em mim, e os resultados do que ocorrera as faziam surgir vivamente em minha lembrança.

Os que estavam na sala do trono, por algum motivo inexplicável, não pisavam no círculo cujo centro era a pilha dos tesouros de Jerusalém, para isso dando voltas em torno do salão, galgando os obstáculos com o máximo de dignidade que lhes era possível. Para o chefe da guarda, isso de nada valia: tínhamos um dever a cumprir, e com alguma violência ele nos empurrou para a borda do círculo, onde ficamos faceando o centro, hirtos em nossa tentativa de posição de sentido.

Eu não via diretamente, mas pressentia pelo canto do olho a moeda que estava a meus pés, muito perto do bico de meu pé esquerdo. E enquanto os acontecimentos dessa tarde se desenrolavam, eu me preocupava apenas com esse pequeno pedaço de metal a que um deus dera vida durante um tempo quase infinito, e que agora jazia imóvel no chão: vagarosamente, sem que ninguém percebesse, meu pé foi-se deslocando em direção à moeda, acabando por cobri-la. Enquanto os acontecimentos se precipitavam, ela ficou debaixo da sola de meu coturno, queimando meu pé com sua presença.

Os mashmashus de Marduq, entre os sacerdotes que ali se reuniam, não estavam de acordo, nem os dois velhos astrólogos caldeus, vestidos à moda de seus antepassados, com barbas e cabelos entrançados, segurando uma miríade de instrumentos de observação celeste, que brandiam como se fossem argumentos para defesa de suas opiniões. Havia até um sacerdote egípcio, com a cabeça raspada e os olhos muito negros cercados por grossos traços de tinta preta, imitando os olhos dos deuses que cultuava.

— A conjunção das estrelas indica claramente que a noite passada era noite de prodígios, em toda parte do mundo1. — disse um dos astrólogos, com sua voz cansada e rouca. — Não aconteceu nada que não tenha sido previsto nos cálculos desde incontáveis eras! A verdade está sempre nas estrelas, ainda que nem todos as saibam ler!

Um dos ashipus que ali estavam, movido pela frase precisa do caldeu, deu um passo à frente, revirando os olhos até que deles quase não aparecesse mais que o branco, e, abrindo os braços, gritou:

— O ashipu que em Eridu foi criado sou eu! Aquele que em Subaru foi criado sou eu! Eu e mais nenhum outro dirijo o pecador na busca de seu pecado! Só eu sei que o que ontem vimos foi uma prova do poder de Marduq, agastado com as últimas atitudes de nosso puhul Só eu sei como purificá-lo de seu pecado, até que sejam quebradas as tabuinhas do altar de N'abu! Purificaremos o palácio real com incensos e música e unções, o puhu pessoalmente fará oferendas em sete altares diferentes, oferecendo sete turíbulos, sete jarros de vinho e o sacrifício de um carneiro! Em seguida...

— Tolice! — gritou o outro caldeu, sacudindo no ar um grande rolo de pergaminho. — O que tem que ser, é, e as estrelas nunca se movem para mudar o destino que nelas está traçado!

O sacerdote egípcio, com voz muito fina e gestos um tanto femininos, deu um passo à frente:

— O mundo é perfeição, criado por homens tão perfeitos que se transformam em deuses! Amon-Rá-Ptah, três em um, um em três, neter absoluto, criador dos Dois Reinos dos quais o mundo inteiro procede, diz, por minha boca: há que arrepender-se de toda mentira sustentada em nome de um deus menor! Lavar-se quatro vezes ao dia com água fria, e limpar a boca, fonte de toda impureza, com natrão! Deixar de usar roupas feitas com animais vivos e nunca mais, sob pena de perder a vida, ousar fazer amor com uma mulher em qualquer um dos lugares santos!

— Absurdo! — gritou o irado caldeu, sua face arroxeada pela raiva. — Tudo está escrito, e nem isso que vós chamais de deuses pode modificar o que tem de ser!

A isso seguiu-se um debate aos gritos, em que todos falavam ao mesmo tempo, apostrofando-se mutuamente. Sobre o trono brutalmente arrastado de seu lugar, com um olhar que em nada se fixava, Bel-shah'zzar vivia o terror das lembranças da noite anterior: usava ainda as roupas do banquete, cobertas de asquerosa sujeira, nem de longe lembrando a aparência de poder e riqueza que vinha exibindo nos últimos tempos. O ve'zzur de Belshah'zzar, sempre atento aos desejos de seu soberano, bateu palmas violentamente e berrou:

— Calai-vos, todos! Imediatamente! Só sabeis disputar por vossos deuses e crenças, em nenhum instante vos preocupando com a saúde de nosso senhor Belshah'zzar! Vossas crenças de nada valem se não souberdes dizer-lhe o que significa essa escrita na parede atrás de nós!

— Traços sem sentido, riscados pelos raios! Só imbecis podem querer ler o que não está escrito! — gritou o caldeu.

— Não quer dizer nada, pois não está escrito na língua dos neter dos Dois Reinos, a única língua que fala dos desígnios dos deuses. Só os hieróglifos sagrados têm significado! — exclamou o sacerdote egípcio, cruzando os braços sobre o peito com uma docilidade extremamente entojada. O mais velho dos sacerdotes, um mashmashu de túnica es-carlate como a dos reis, sorriu com desprezo:

— Tudo está escrito nessas letras, meu rei, mas a linguagem de Marduq só aos de Marduq compete decifrar... e isso requer muito tempo de sacrifícios, até que a encarnação de Ea e Marduq se una à encarnação de um de nós, sua santa saliva se misture à nossa, e...

O caldeu mais velho, irritadíssimo, atirou uma peça de cobre na direção do mashmashu, que dela se desviou a tempo. Na confusão que se seguiu, eu disfarçadamente me abaixei e tomei de debaixo de meu pé a moeda da noite anterior, em nada diferente de qualquer outra moeda, mas que agora queimava em minha mão. Os gritos de acusações mútuas dos sacerdotes enchiam a sala, enquanto o sacerdote egípcio, com olhos apertados, a tudo olhava com desprezo. Foi preciso que o chefe da guarda desse uma ordem ríspida, que nos fez avançar um passo em direção ao grupo, para que se calassem, resmungando. O ve'zzur se aproximou do rei, que nada percebia, o olhar esgazeado, voltado para dentro de si mesmo, tolhido por inamovível medo:

— Meu rei, esses homens de nada sabem, e não vos poderão auxiliar. Se o que aconteceu ontem, como presumimos, foi obra do deus de nossos escravos israelitas, apenas um desses israelitas poderá decifrar a mensagem que temos escrita à nossa frente!

Os gritos dos ashipus foram imensos, pelo que consideravam uma conspurcação de seu poder: mas dois wasib'kussim urraram sua comcordância com o ve'zzur, e o tessaliense da noite anterior, dando um passo à frente, disse:

— Somos devotos das artes da feitiçaria, meu rei, e sabemos que entre vossos escravos israelitas muitos há que as conhecem tão bem quanto nossas feiticeiras. Se houve uma disputa entre deuses, que eles se pronunciem. É preciso dar-lhes espaço: se existe entre os escravos israelenses algum que possa decifrar os desígnios de seu deus, por que não chamá-lo? Quem sabe se o que ontem se passou não foi o último hausto de um deus derrotado? Quem sabe se o que está escrito nessa parede não é a mensagem final de aceitação dessa derrota?

Ajoelhando-se aos pés de Belshah'zzar, o ve'zzur estendeu as mãos para cima, numa prece:

— Rogo apenas que meu rei alcance o conhecimento, sob as graças de Marduq e sua sagrada mulher Ishtarl

No momento em que ele proferiu o nome de Ishtar, um movimento à porta do salão fez meu coração dar um salto: um vulto feminino vestido de azul-índigo se aproximava, acompanhado por escravos com archotes. Não era a mulher de minha paixão quem se aproximava, mas sim a rainha Nitocr'ish, vestida com trajes cerimoniais de Ishtar, como o cargo lhe exigia, e que vinha ver o estado de seu real consorte. Tirando o véu da frente do rosto, mostrou uma face vincada por inúmeras horas de dissi-pação e vinho em excesso: as tintas que lhe cobriam o rosto rachavam a cada movimento de sua pele um tanto lassa. Subindo os degraus do trono, com a familiaridade das mães, ela colocou a mão de unhas vermelhas e muito longas no peito engordurado do rei, medindo com a outra a febre de sua fonte. Olhou em volta e, com voz muito aguda, gritou:

— Não há por que rejeitar a cura, venha ela de onde vier. Se estiver entre nossos inimigos, tomá-la-emos deles! Mandei buscar no teVaviv um escravo que tem o respeito até mesmo dos mais violentos inimigos dos israelenses: Daniel, o profeta, mais conhecido como Baal'tassar! É mestre na leitura de sonhos e acontecimentos estranhos, e já no tempo de meu irmão Nebbuchadrena'zzar decifrava os mistérios dos deuses!

— Deixar que entre no palácio de Marduq um de seus mais ferozes inimigos é dar provas de fraqueza! — gritou um dos ashipus, desesperado com a interferência de Nitocr'ish. — Não o permitais, meu rei! Não o permitais!

Os outros sábios em disputa, cada um por seus motivos particulares, exprimiram seu descontentamento com a idéia da rainha, enquanto esta os olhava com o queixo levantado, ciente de seu poder. Aproximando a boca do ouvido direito de Belshah'zzar, ela se pôs a cochichar-lhe alguma coisa, que nunca soubemos o que foi. De súbito, aparentemente movido por um medo mais insano que a própria insanidade, saindo com esforço do fundo de sua obnubilação, Belshah'zzar arrancou forças para erguer o braço e ordenar, com voz insegura:

— Tragam até mim esse Daniel!

Impressionante o instantâneo poder dessa rainha, que me fez pensar se não seria esse o verdadeiro poder por trás dos reis. Os sacerdotes de Marduq, sufocando um grito, afastaram-se de Belshah'zzar, reunindo-se a um canto, em confabulações. Era patente a disputa interna na corte do rei, e a cada momento que se passava podia-se perceber a má vontade dos sacerdotes de Marduq para com ele. A rainha Nitocr'ish, sentada sobre um dos braços do trono de pedra, com uma das mãos firmemente escondida dentro das dobras de pano sobre o baixo-ventre do rei, a todos olhava com o nariz erguido e um sorriso de mofa na boca que parecia um corte de punhal em sua face muito pintada: tudo mostrava ser ela uma firme crente no poder feminino dentro da Babilônia. E enquanto aguardávamos, eu me questionei sobre quem seria o verdadeiro poder por trás desses acontecimentos, se as estrelas, se Marduq, se Ishtar ou o deus de meus antepassados, de quem nesse tempo ainda sabia muito pouco.

O ruído de um grupo que entrava no salão tirou-me de meus pensamentos, tão concentrado que sequer percebera o sol lançando longas sombras sobre o assoalho. Os quatro homens que entravam estavam vestidos como meu pai: um longo camisolão de pano franjado cobrindo o ombro e o braço direitos, o ombro e o braço esquerdos vestidos pelo alvo tecido do sadin de Unho. Mas as cabeças, que os babilônios usavam sempre descobertas ou cingidas por faixas de materiais variados, estavam cobertas pelos mantos franjados que completavam a vestimenta da época, ocultando de todos a totalidade de seus cabelos e barbas nunca aparados, símbolos de sua honra. Entraram todos juntos, com ar altivo, e eu nesse momento percebi a distância a que estava de meu pai, como se milênios houvessem passado desde nosso último encontro.

Eram Ananias, Misael e Azarias, que os senhores de Baab'y'lon haviam rebatizado Shedrac, Mesach e Abdnego, formando uma parede impenetrável às costas do mais velho dos quatro, Daniel, mais conhecido como BaaFtassar, com cabelos e barbas completamente brancos, e os olhos de estranha aparência, pois alguma doença os fizera perder a cor da íris, restando apenas o branco sobre o branco. Os quatro carregavam cajados, sem se importar com a reação agressiva dos homens que ali já estavam. Sabiam que era um momento importante demais para que se permitissem as pequenas picuinhas e entreveros verbais que sempre marcam o encontro dos fiéis de deuses diferentes: mantinham-se calados, olhando fixamente para o monte de relíquias sagradas de seu deus, no topo da qual se equilibrava o vaso de ouro da noite anterior, e baixaram os olhos para o chão, em sinal de respeito, aguardando que alguém lhes dirigisse a palavra.

Foi o ve'zzur de Belshah'zzar que falou com eles:

— És tu Baalta'ssar, também conhecido como Daniel, que nosso grande pai Nebbuchadrena'zzar trouxe da Jerusalém conquistada, homem de sabedoria, capaz de desfazer os nós e resolver os enigmas?

— Sou esse Daniel que veio da Cidade de Yahweh entre os escravos de Nebbuchadrena'zzar, há quase setenta anos — respondeu o velho, com voz grave e saburrosa, mas ainda assim forte e penetrante. — Se tenho essa capacidade, é porque a luz de Yahweh habita em mim, por Sua vontade. Vossos pais e avós reconheceram em mim o poder de meu Deus, e souberam respeitá-lo. Recordai-vos de que o próprio Nebbuchadrena'zzar, quando enlouqueceu, só se curou depois de apresentar sacrifícios a Yahweh...

— Loucura! — gritou o mais velho dos mashmashus ali presentes. — Como se pode ouvir tamanha sandice sem explodir? É mentira que nosso grande pai Nebbuchadrena'zzar tenha alguma vez enlouquecido! E mentira maior ainda que, sendo ele a encarnação do grande Marduq, tenha alguma vez prestado homenagens a esse deus de escravos!

Daniel, sem sequer virar-se nem erguer a voz, disse:

— Fez de tudo o que digo e ainda mais: quando sonhou com a estátua gigantesca, avisei-lhe que, sendo seus pés de barro, não iria sustentar-se, e nem seu império. Ele teimou em construí-la, como resposta ao Templo que Yahweh fez erguer para si em sua cidade de Jerusalém, e se hoje fordes à planície de Durah vereis os restos dessa abominação. Vosso rei enlouqueceu e caiu ao chão nas quatro patas, comendo ervas como um animal qualquer, e só quando a razão lhe voltou, e ele reconheceu o poder do Único Altíssimo, foi que pôde retomar o poder e o comando da Grande Baab'el!

A grita entre os ashipus superou todos os limites: alguns se rojaram ao solo, esmurrando-o, enquanto outros tentaram avançar sobre os quatro escravos, que se mantiveram firmes como rochas. A situação se apresentava insustentável, e foi preciso que o ve'zzur de Belshah'zzar batesse com força no gongo que estava a seu lado, inundando o salão com seu som profundo, para que os sacerdotes se calassem, ainda resmungando seu ódio, enquanto o ve'zzur dizia:

— Calai-vos, todos! Até agora nada dissestes sobre o que a mão misteriosa traçou nesta parede que aqui está, em traços tão profundos e quentes que continuam rubros como as brasas de uma fogueira] Não pudestes oferecer-nos nenhum significado! Que o escravo Baal'tassar fale!

Nesse momento, o rei Belshah'zzar, erguendo os olhos de seu delírio silencioso, balbuciou:

— Por tudo que te é mais sagrado, dize-me o que isso significa! Salva-me da loucura! Se fores capaz de ler esta inscrição e propor uma interpretação para os traços que vejo, revestir-te-ei de púrpura e colocar-te-ei ao pescoço um colar de puro ouro, e serás o terceiro homem de meu governo, logo abaixo de mim e de meu ve'zzur.

O ve'zzur de Belshah'zzar curvou a cabeça, num agradecimento mudo pela honra que lhe havia sido concedida, e entre os wasib'kussim que enchiam o salão um murmúrio de espanto e inveja cresceu e morreu, deixando no ar apenas os muxoxos dos sacerdotes. Mas Daniel, erguendo no ar o seu cajado, disse:

— Fiquem para ti os teus presentes, Belshah'zzar, e oferece a ou-trem os teus discutíveis dons. O poder imperial não me interessa: mas ainda assim, reconhecendo a linguagem sagrada de meu Deus, lê-la-ei para ti e para ti a interpretarei, se para tanto Yahweh me iluminar.

Dito isto, Daniel puxou seu manto e cobriu toda a cabeça, ficando imerso dentro de si mesmo em profunda meditação, na solidão de seu próprio coração. Quando finalmente arrancou de sobre si o manto, estava transfigurado: seus cabelos desgrenhados agitando-se a um vento que ninguém sabia de onde vinha, cobertos na parte de cima da cabeça por um pequeno migba de pano escuro. Seus olhos esbranquiçados fixavam tudo e nada, e sua voz cresceu em força quando disse:

— Ó Belshah'zzar, Yahweh concedeu o reino, a grandeza, a majestade e a glória a Nebbuchadrena'zzar, vosso tio, e por essa grandeza concedida por Yahweh é que diante dele tremeram todos os povos de todas as nações e todas as línguas. E enquanto ele cumpriu os desígnios que Yahweh lhe havia traçado, seu querer era o mais forte entre todos os quereres do mundo. Mas quando seu coração se exaltou e seu espírito se endureceu com a arrogância que assoma a todos os poderosos, enlouqueceu e foi expulso do convívio humano, tornando-se igual aos animais que vivem nos pastos, convivendo com os asnos e alimentando-se de ervas como os bois, e seu corpo permaneceu sendo banhado pelo orvalho até que ele finalmente reconhecesse o poder do Único Deus que tem domínio sobre o reino dos homens, o qual só estabelece como rei a quem Lhe apraz.

A voz cresceu mais ainda, enquanto Daniel apontava seu cajado para a face retorcida de Belshah'zzar:

— Mas tu, Belshah'zzar, teu filho e sobrinho, não humilhaste teu coração: e ainda te levantaste contra o Senhor dos Céus, e mandaste buscar as taças sagradas do Templo de Yahweh e nelas bebeste o vinho de teu orgulho na companhia de teus prebostes e de tuas abominações, em vez de glorificar ao Deus que detém entre Suas mãos o ar que tu respiras e de quem dependem todos os teus caminhos!

Uma pausa imensa aconteceu, e até mesmo os ashipus permaneceram em silêncio. E então Daniel, erguendo os olhos para o alto, proferiu as aterrorizantes palavras que Belshah'zzar temia mais que tudo, mas que não poderia em nenhum momento deixar de ouvir:

— A Mão de Yahweh veio e traçou em tua parede essa inscrição, e ela é mene, mene, sheqel, pharsím]

Belshah'zzar ergueu-se do trono, com um grito agudo:

— Sim, mas o que quer dizer? O que quer dizer?

— Mene quer dizer medido, e significa que Yahweh mediu teu reino, não uma, mas duas vezes, para com justiça determinar-lhe o fim. Sheqel quer dizer pesado, e significa que após isso Yahweh te colocou em Sua balança, pesou-te e te encontrou deficiente. E pharsim quer dizer divino, e significa que o que hoje chamas de teu Império em breve estará dividido e entregue a quem o deseje e dele queira tomar posse!

Belshah'zzar, ouvindo isto, deu um grito agudíssimo e caiu ao chão, batendo os pés e cotovelos à sua frente, como uma criança a quem tivessem negado algo que ela desejasse mais que tudo. Isso liberou as reações dos outros participantes, e enquanto a rainha tentava acalmar o rei quase histérico, os sacerdotes e os astrólogos e mesmo o egípcio, junto a alguns wasib'kussim afeitos às benesses do poder, erguiam as mãos contra os quatro escravos hebreus, apostrofando-os e a seu deus com toda a fúria de que eram capazes.

Um trovão soou do lado de fora do palácio, e Belshah'zzar, aterrorizado, arrastou-se para detrás do trono, tampando os dois ouvidos com as mãos, temendo uma repetição dos inexplicáveis acontecimentos da noite anterior. Mas não era nada disso: apenas um trovão, seguido de outros, e finalmente o barulho da chuva que raramente caía sobre a Grande Baab'el, fazendo subir até nossas narinas o forte cheiro da lama em meio à qual vivíamos. Junto com o ruído da chuva, começou a crescer o barulho de passos ritmados, que se aproximavam mais e mais da sala do trono. Gritos incompreensíveis enchiam os corredores à nossa volta, e o clarão de archotes bruxuleantes podia ser visto acercando-se de nós em todas as direções. Um grupo de soldados fortemente armados invadiu a sala do trono: suas fardas eram bem diferentes das nossas, completamente negras, e no meio deles vinha um homem de cabelos grisalhos, sujo de poeira e portador de grande autoridade. O chefe da guarda, próximo de mim, arregalou os olhos e caiu com um joelho em terra, abaixando a cabeça, erguendo as palmas das mãos para o alto e gritando:

— Nabuni'dushl

Esse nome correu como fogo por todo o salão: era o verdadeiro rei da Grande Baab'el, que havia abandonado o posto e colocado em seu lugar este puhu chamado Belshah'zzar, seu sobrinho, rastejante e amedrontado por trás do trono de pedra. Nabuni'dush apertava os olhos estreitamente, girando-os por toda a volta do salão, até fixar-se na rainha Nitocr'ish, e um sorriso amargo se espalhou por sua face. Vi que a rainha empalideceu, mesmo por trás da grossa camada de pintura que lhe cobria a face, mas ela sustentou o olhar do recém-chegado, pondo-se à frente de Belshah'zzar, que ainda mantinha os olhos cerrados e as mãos firmemente postas sobre os ouvidos. Nabuni'dush ergueu os braços para o céu e exclamou, com a voz trêmula de emoção:

— Sou Nabuni'dush, rei da Grande Baab'el, por glória de Sin, a deusa da lual Limpem o caminho até o trono! Estou tomando posse de meu lugar de direito!

Dizendo isso, Nabuni'dush avançou para o trono, dando de encontro com a rainha Nitocrfsh, que de braços abertos protegeu o filho que estava jogado ao chão:

— Meu irmão, por quê? Pois se tinhas aberto mão de teu reinado, fazendo de meu filho e teu sobrinho opuhu da Grande Baab'el, o que te traz de volta?

— O poder de Sin! Encontrei finalmente nas ruínas da planície, onde estive todo esse tempo, o maior de todos os templos, erguido em homenagem a Sin, a deusa da Lua! Eu sabia que este templo existia, e que encontrá-lo era só questão de tempo... mas nunca imaginei que Sin me colocaria frente a frente com o que me trouxe de volta. Deixai-me passar, devo sentar-me ao trono que é meu!

Nabuni'dush subiu os degraus, afastando a rainha com alguma brutalidade: ela cambaleou, mas se manteve de pé, atirando seu manto sobre um Belshah'zzar derrotado e irreconhecível. O rei Nabuni'dush, com os cabelos e a barba encoscorados de terra escura, sentou-se ao trono, percebendo pela primeira vez os que ali restavam, já que alguns wa-sib'kussim de Belshah'zzar haviam fugido ao ouvir o nome do rei. Um ar de incredulidade assomou-lhe as faces, ao ver quem ali estava:

— Sacerdotes de Marduq? Minha irmã, como pudeste desobedecer as minhas ordens? Não havíamos acertado que a Grande Baab'el seria de novo dedicada à deusa Sin? O que fazem aqui esses sacerdotes de Marduq? E esse egípcio, e esses escravos hebreus? O que fizeste de nosso Império, minha irmã?

O mashmashu de vestes purpúreas, tentando manter sua autoridade, avançou para Nabuni'dush, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, o rei, percebendo as marcas fumegantes na parede à sua direita, gritou, pondo a mão na garganta:

— Por Sin! A escrita na parede! Eu esperava que a profecia fosse mentira, que meus cálculos estivessem errados, que tudo não passasse da fantasia de um velho que teima em acreditar em tudo o que lê nas velhas placas de argila... General. As placas que encontramos. Trazei-as! O general de longas barbas frisadas que comandava os soldados de Nabuni'dush bateu palmas duas vezes, e em passo acelerado quatro soldados abriram no chão em frente ao trono uma trouxa imensa, feita com o couro ainda mal curtido de vários búfalos: dentro do volume, algumas tábuas envelhecidas protegiam o que me pareceram tijolos enlameados, e firmando a vista pude perceber que eram placas de argila marcadas com cinzel. Nabuni'dush estendeu as mãos, e seu general, ungidamente, colocou sobre elas uma das placas, que o rei segurou como se fosse o mais precioso dos tesouros. Pigarreando, pôs-se a ler:

— Sou a Meretriz e a Santa, a Esposa e a Virgem, comprometida e solitária. Sou o poder espiritual que traz a vida à terra, sou Luxúria, Mãe de minhas crianças e Amante de meus amados. Sou Sin, e digo que nesta data que as estrelas marcam no céu em que caminho, um deus há de enfrentar outro deus no palácio de um falso rei, escrevendo com fogo em seus muros sua sentença de destruição. Tremem impérios, tremem os solos sagrados, tremem os deuses em sua eterna luta pelo poder supremo: só eu, Sin, mãe eterna, permaneço intocada em meu caminho.

Os astrólogos riam em regozijo, por achar comprovada a sua verdade, enquanto Daniel e seus companheiros erguiam as mãos para o céu e cobriam a cabeça com seus mantos. Os sacerdotes de Marduq, fulos de raiva, mantinham-se calados, aguardando os acontecimentos. E nós, soldadinhos de fancaria, começamos a temer por nossas vidas, pois os soldados de Nabuni'dush, enormes latagões de cara fechada, começavam a se aproximar. Não havia dúvida de que a qualquer momento haveria um embate entre as duas guardas, como sempre acontece quando o poder muda de mãos: olhei para meus companheiros e percebi que Daruj era o mais preocupado de todos. Seu olhar percorria toda a sala, com a rapidez dos que estão acostumados a defender-se, e ele realmente temia por nossas vidas.

Nabuni'dush vociferou uma ordem:

— Que saiam todos os que não são parte desta corte. Assuntos da deusa Sin não devem cair em ouvidos infiéis. O rei da Grande Baab'el falou.

Os soldados de Nabunfdush bateram fortemente suas lanças no chão, repetidamente, cada vez com mais força, fazendo tal barulho que os sacerdotes, astrólogos, wasifkussim e até mesmo Daniel e seus seguidores foram saindo da sala, não tão rápido que sua dignidade ficasse ferida nem tão devagar que dessem tempo a Nabuni'dush para mudar de idéia sobre eles. No salão em ruínas, cercados cada vez mais ameaçadoramente pelos fortes soldados de Nabuni'dush, ficamos apenas nós, crianças transformadas em soldados, enquanto a rainha tentava proteger com o próprio corpo a seu filho Belshah'zzar, enrolado sobre si mesmo, com o olhar esgazeado.

— Voltei para proteger o império de Sin do ataque de deuses doentios, minha irmã! — O rei empoeirado erguia o queixo, desafiador. — Em minha ausência, nada do que deveria ter sido feito foi feito, e as disputas entre deuses menores vulneraram nossas posses... Como pu-deste permitir que o que é de Sin fosse disputado na mesa de jogo dos deuses sem valor? Tu mesma viste a prova do poder de Sin: milhares de luas se passaram desde que essa profecia foi traçada, e faz três dias que estou a caminho, para confirmar seu poder! Eis as marcas na parede! Eis os sinais de que deuses tentam invadir a Baab'el de Sin! Não percebes o poder de nossa Grande Mãe, essa a quem ofendeste ao permitir que crentes em Marduq vilipendiassem nosso império? Sin sempre soube dessa traição, e há milhares de luas atrás mandou que o aviso fosse escrito, para que eu pudesse agir! E eu agirei! General?

O general de Nabuni'dush deu um passo à frente, hirto como uma estátua. E Nabunrdush, em voz baixa, com um sorriso de beatitude na face, disse:

— Matemos a todos!

O grito gutural da rainha Nitocri'sh foi altíssimo, e ela avançou sobre seu irmão, com as unhas em garra: mas o general, preparado para isso, imediatamente a atravessou com sua larga espada de bronze. Na confusão que se seguiu, tentando salvar minha própria vida, pude ver essa mesma espada cortar a cabeça do apático Belshah'zzar, unindo em uma mesma poça o sangue de mãe e filho. Abaixei-me sem sentir, escapando do arco que a espada de um soldado traçara, com minha cabeça como alvo. O massacre da guarda de Belshah'zzar pelos soldados de Nabuni'dush era violento e organizado, e o asquerosamente doce cheiro do sangue tomava tudo, cada vez mais forte. Daruj havia conseguido abrir um claro à sua volta, brandindo a espada e uma lança, mas estava sendo empurrado contra uma parede, levando consigo um aterrorizado Yeoshua e um frio Mitridates. Tropeçando em meus próprios pés, atirei na direção do soldado que me ameaçava o escudo que trazia nas mãos e me juntei ao grupo de meus companheiros, fustigando o ar à minha frente com a lança que não soltara. Mais alguns soldados se juntaram a nossos atacantes, e os esforços conjuntos que eu e Daruj fazíamos já não estavam surtindo tanto efeito. As caras retorcidas pelo ódio e os esforços cada vez mais brutais de nossos inimigos não deixavam dúvida nenhuma de que a qualquer momento seria o nosso sangue que correria pelo chão.

Apertei a moeda que um deus havia tocado, e que continuava queimando a palma de minha mão. E nesse momento, como que em resposta a meu pedido silencioso de ajuda, um pedaço de parede à nossa direita se abriu e uma mão de longas unhas negras, coberta por tecido azul-índigo, acenou em nossa direção, chamando-nos. Era Sha'hawaniah, inesperada e inexplicavelmente oferecendo-nos a salvação.

 

A parede girou com velocidade, abrindo um buraco negro, e Daruj, mais ágil que eu, jogou a lança sobre o grupo de soldados, ganhando tempo para que pudéssemos empurrar Yeoshua e Mitridates para o outro lado do muro, pulando em seguida atrás deles. Entendi isso com um átimo de atraso, mas a mão de Sha'hawaniah foi mais rápida que meu entendimento, puxando-me para dentro da parede com uma força que não parecia possuir. Quando a porta se fechou, ficamos imediatamente em completa escuridão, e o alarido dos soldados do lado de fora era uma sombra que se apagava rapidamente, à medida que nos afastamos da parede, recuando. Meu coração continuava na garganta, pulsando violentamente, enquanto o toque seguro de Sha'hawaniah me guiava em direção a não sei onde. Eu sentia as respirações de meus companheiros ao meu lado, ofegando, e o ruído de nossos coturnos raspando o chão de pedra. O que mais alto soava, no entanto, era minha emoção enlouquecida pela presença perfumada que me guiava. Esse perfume se enraizara para sempre em minhas narinas e memória, e nunca mais se perderia: tudo para mim seria sempre comparado com o perfume, a presença, a existência de Sha'hawaniah. Ela me puxava pelo braço, e, à medida que minha visão se acostumava à escuridão do corredor cheirando a mofo, pude perceber à frente meus três camaradas, tateando e tropeçando enquanto seguiam Daruj. Pequenos pontos de luz se coavam por frestas entre os tijolos das paredes, e essa era a luz de que dispúnhamos em nosso caminho desconhecido. Mais à frente estava uma tocha, e para ela nos dirigimos, chegando a uma parede intransponível. Sha'hawaniah passou à frente de nós, tateando alguma coisa na parede, e esta girou sobre si mesma, revelando uma câmara de inesperada beleza, forrada de panos amarelos e vermelhos, com uma grande varanda em um de seus lados, fora da qual eu pude ver a incomum tempestade que fustigava a Grande Baab'el.

Tombamos ao chão, extenuados, e Yeoshua finalmente caiu em um de seus choros convulsivos, em completo esgotamento. Eu não conseguia manter as pernas retas, e pus um joelho no solo, sem largar a mão de Sha'hawaniah, que me olhava por trás de seu véu azul-índigo. Ela bateu palmas, e dois homens com o rosto pintado de azul surgiram não sei de onde: Sha'hawaniah, com um simples gesto, deu-lhes uma ordem, que eles saíram para cumprir, voltando logo após com uma jarra de bou'zza e quatro copos, que entregaram a meus três companheiros. O meu copo, Sha'hawaniah pegou com suas próprias mãos e, apoiando minha cabeça, levou-o à minha boca. O gosto pronunciado de pão fermentado, forte como se estivesse saindo do forno, preencheu minha cabeça, e eu vi que minha amada se tranqüilizava, assim como eu também.

Ela nos salvara, e isso não tinha sido fácil: sendo a Grande Baab'el o caldeirão de vontades e poderes que era, Sha'hawaniah havia realmente corrido grande risco. Ela sentou-se em uma almofada a meu lado, sem soltar-me a mão, falando com a voz calma e musical que eu já conhecia:

— Ishtar, a Grande Mãe, me enviou para salvar-te. Mas mesmo se ela não o tivesse ordenado, eu o faria: nada mais indigno que um rei que se arroga o poder da Grande Mãe para executar sua obra de iniqüidade. Nabuni'dush pretende retomar sua grandeza apoiando-se em Sin, a face lunar de Ishtar, e por isso quer expurgar todos aqueles que são um entrave a seus desejos. Ao decifrar a profecia, tomou-a em seu próprio benefício, como sempre acontece, voltando a ser o senhor do Império. Por isso, Belshah'zzar foi morto, e também sua mãe. Por isso, os soldados de Nabuni'dush querem matar todos os membros da guarda pessoal do puhu: pudeste perceber que ele não tocou em nenhum dos sacerdotes que lá estavam. Tirou-os do caminho antes do massacre, para que não vissem o que estava por realizar. Ele quer fazer da Grande Baab'el território exclusivo de Sin, mas ainda teme profundamente os outros deuses, e não se sente pronto para enfrentar seus sacerdotes.

Sha'hawaniah ergueu os olhos para o alto, suspirando. Eu estava embevecido pelo que via de sua face; por trás da névoa azul de seu véu, o volume de seus lábios bem desenhados, a protuberância de seu queixo a curva de seu pescoço: talvez por isso meu corpo começasse a dar novamente sinais de interesse, enquanto o perfume dela me tomava as narinas a cada um de seus movimentos delicados. Ela me olhou, e chamou a atenção de meus companheiros, especialmente Daruj e Mitridates:

__ O que Nabuni'dush não vê, ou não quer ver, é que a profecia não se refere a Belshah'zzar, mas a todo o grande Império da Babilônia.

__ Então Daniel estava certo! O que Yahweh disse sobre o fim do

Império é o destino da Grande Baab'ell —exclamou Yeoshua, tomado de emoção.

__ Tolice! — disse Mitridates, aquele que duvidava de tudo e em nada acreditava. — Profecias desse tipo podem ser encontradas aos montes, cada uma dizendo aquilo que interessa a seu divulgador. Costumam esconder as que lhes são adversas e só exibir as que lhes interessam...

__ Neste caso, não. —A frase calma e determinada de Sha'hawaniah calou-nos a todos, e ela continuou. — Os deuses e as deusas, uma vez separados em Grande Pai e Grande Mãe, nunca mais se encontraram. Os homens que tomaram o poder das mulheres fazem questão absoluta de ter deuses masculinos para guiá-los, nunca mais havendo a verdadeira união da divindade. Ishtar, a Grande Mãe, sabe que esta é a última oportunidade que as deusas têm de voltar a ser senhoras do mundo, como antes foram, quando o Universo era bom e belo. Enquanto deuses masculinos como Yahweh e Marduq se digladiarem, a Grande Mãe pode tomar posse do mundo...

Ela me olhou de volta:

— Sei que é por isso que Ishtar me ordenou que vos salvasse, mesmo não entendendo exatamente como isso se dará. A face lunar de Ishtar, a poderosa Sin, roda no céu, aproximando-se e afastando-se dos outros planetas, e devemos imitá-la, sem discutir. Eu vos devo salvar, mas para isso tereis que me obedecer sem hesitar, por mais incompreensíveis que pareçam minhas ordens.

Daruj, pigarreando e sorrindo, retrucou:

— Senhora, perdão, mas ainda que eu tenha muito a te agradecer por ter-nos salvado, não vejo como obedecer-te. No momento, estamos muito confortáveis aqui dentro, é verdade, mas em algum momento teremos que deixar essa câmara, e não creio que as tropas de Na-buni'dush se disponham a nos perdoar quando sairmos...

— Eu não participarei de nenhuma luta para que uma deusa pagã se torne senhora do mundo! — Yeoshua estava quase histérico. — Yahweh é meu senhor, Rei do Universo.

Mitriolates, prático como sempre, disse:

— Pessoalmente, não tenho outro interesse a não ser salvar a minha pele, e, se possível, a de meus amigos. Se a senhora souber como fazer isso, estou pronto a ouvir...

E Sha'hawaniah, com sua voz suave, explicou como pretendia tirar-nos de lá, transformando-nos em sacerdotes de Ishtar, como os que nos cercavam. Enquanto ela o fazia, eu me perdia em seu corpo, olhando as mãos que se moviam no ar como pássaros, percebendo ser ela a música em forma de mulher, e que cada um de seus gestos, detalhes, cores e modos só podia ser descrito através de trechos musicais que a representassem em meu espírito. Durante alguns anos, cheguei a pensar que com o correr do tempo eu finalmente a perceberia como uma mulher idêntica a todas as outras. Isso nunca aconteceu, é tudo o que posso dizer, porque não há dia em que a música não me lembre a Sha'hawaniah que conheci nesse dia, para maior alegria e tristeza de meu espírito.

Quando ela terminou de explicar seu plano, Yeoshua estava vermelho de ódio: ergueu o dedo à frente do meu rosto, apostrofando-me:

— Tu estás tomado por essa gentia que te dominai Como podem pensar que eu aceite usar as roupas de um sacerdote dessa abominação?

— Não creio que isso seja necessário, senhora — disse Daruj a Sha'hawaniah, com seu ar de incredulidade. — Pensando bem, talvez possamos sair do palácio da maneira que somos, se nos esgueirarmos...

Mitridates deu uma gargalhada:

— Camaradas, perdão, mas minha vida vale mais do que aquilo em que creio. Pretendo salvar-me, e recomendo que também o façam. Yeoshua, o teu deus te está dando a chance de sobreviver. Vais desperdiçá-la? Eu, não. Daruj, meu bravo irmãozinho, crês realmente que teríamos qualquer chance de sair daqui com estas fardas de soldados de Belshah'zzar? Isso não existe: a realidade não muda só porque eu assim o desejo.

Virando-se para Sha'hawaniah, Mitridates fez uma vênia e falou:

— Estou às tuas ordens, senhora: mesmo se tiver que me transformar em quadrúpede, como Yeoshua diz que seu deus faz com reis, aceito, desde que isso me salve e me permita ver o dia de amanhã.

Sha'hawaniah, com um gesto dos dedos, fez com que se aproximassem dois de seus seguidores, os rostos totalmente pintados do mesmo azul que tingia seu manto. Um deles, com uma afiada tesoura de tos-quia na mão direita, segurou Mitridates e começou grosseiramente a limpar-lhe o crânio de todas as mechas de cabelo, tirando-lhe o grosso da cabeleira, enquanto o outro preparava uma grande bacia de água com sabão, começando a esfregar a cabeça de meu amigo. Assim que isso foi feito, o primeiro armou-se de uma afiada faca curva, feita de pedra negra, passando-a metodicamente no couro cabeludo de Mitridates, que após algum tempo surgiu como outra pessoa: sua cabeça oblonga era sensivelmente mais clara que o resto de sua face imutável. Eu logo percebi que, com o rosto coberto pela tinta azul dos acólitos de Ishtar, ficaríamos irreconhecíveis, e disse a meus companheiros:

— Meus irmãos, cabelos crescem... e mesmo que nunca mais crescessem, eu ainda assim os rasparia, para podermos sair desse lugar onde estamos confinados! Somos das ruas, e é nas ruas da Grande Baab'el que saberemos desaparecer, sem que ninguém nos possa reencontrar...

— Eu não aceito isso! Não me interessa deixar de ser quem sou! — gritou Yeoshua. — Se meu Deus me fez assim, assim ficarei! Enfrentarei qualquer coisa para...

Mitridates e Daruj, que já se entreolhavam havia algum tempo, pularam em cima de Yeoshua, imobilizando-o para que fosse raspado, num arremedo das tantas batalhas que já tínhamos inventado para nossa diversão nas tardes modorrentas sem nada importante para fazer. Desta vez, no entanto, o riso em nossas faces era amargo, porque lutávamos para superar uma ameaça. A chuva tinha parado de cair, e o cheiro forte da lama da Grande Baab'el subia até nós, vindo do chão, lá embaixo, a muitas braças de distância. O dia estava escuro, nuvens pesadas se acumulavam sobre a cidade: e enquanto nos livrávamos de nossos cabelos, eu só tinha olhos para a estrela que circulava à nossa volta, vestida de azul-índigo, envolta numa nuvem de seu perfume inesquecível. Quando chegou a minha vez de ser raspado, ela não tirou os olhos de mim, observando cada movimento de seus ajudantes, passando ela mesma a navalha em minha cabeça, escanhoando-me o crânio e a face, com gestos seguros e medidos que a mim pareceram de carinho.

Quando nos olhamos, ao fim de tudo, não pudemos deixar de rir, e nem mesmo o ofendido Yeoshua, com os olhos vermelhos e as bochechas inchadas, conseguiu ficar sério com nossa aparência glabra. As risadas aliviaram um pouco a sensação pesada que nos acompanhava desde que saíramos da sala do trono, e o cheiro do sangue que nos respingara pela violência dos soldados de Nabuni'dush felizmente se tornara apenas uma lembrança desagradável. Um dos acólitos com quem estávamos tão parecidos saiu, levando a bacia e os cabelos cortados enrolados em um pano, e logo voltou, respondendo com gestos muito ágeis a uma pergunta muda de Sha'hawaniah, que sacudiu a cabeça com ar de preocupação:

— Não é seguro sair daqui agora. O massacre continua nos corredores do palácio. Nabunfdush não quer correr nenhum risco: já não se vê nenhum soldado da guarda de Belshah'zzar, e os cadáveres dos que são estripados vão sendo jogados em uma fogueira à beira do Eufrates. É melhor ficar aqui até as primeiras horas da manhã e, assim que o sol nascer, junto com os outros acólitos de Ishtar, sair para as primeiras libações do dia. Com certeza, depois de todo esse tempo, os ânimos certamente estarão menos exaltados.

Compreendemos o que Sha'hawaniah dizia: não existe ódio pior que o que se sente por aquele a quem se magoa, e vê-lo subjugado, em vez de diminuir o ódio, só o amplia. Para que esse ódio esmoreça, é preciso que o conflito se desfaça, nem que seja pela ausência do objeto odiado: de manhã, depois de espalhar sangue pelos quatro cantos do palácio, os soldados de Nabuni'dush já estariam mais calmos, pois a guarda pessoal de Belshah'zzar certamente estaria bem menor.

Os acólitos de Ishtar, obedecendo a ordens que ninguém dava, cuidaram de nós com extremo devotamento, trazendo-nos comida e bebida: enquanto o dia passava e a temperatura exageradamente alta começava a diminuir, com o sol tingindo de outras cores o subitamente esmaltado azul do céu, respondemos a todas as perguntas que ela nos fazia, abrindo nosso coração sobre assuntos que nunca tivéramos ânimo de perscrutar, no mais íntimo de nossas mentes e espíritos. Até mesmo Yeoshua, ainda reagindo contra a presença dessa que considerava uma abominação, depois de algum tempo já estava recordando coisas de sua infância, sem que seus olhos cruzassem com os dela, claro. O interesse de Sha'hawaniah parecia ser autêntico, e meu coração se alegrava quando eu percebia que ela estava a meu lado, e que, por mais que se interessasse no que os outros diziam, era em mim que fixava a sua atenção, fazendo com que em minha frente sempre houvesse bebida e comida, deixando o bem-estar de meus companheiros por conta de seus acólitos. Quando Daruj se recusou a contar a causa dos hematomas que cobriam seu rosto, não insistiu: riu com o raciocínio calculista e exato de Mitridates, bebendo com enorme prazer as histórias do teVaviv que Yeoshua balbuciou, fazendo com que eu gaguejasse quando chegou minha vez, porque pousou em meu braço a mão esguia. Os pães de casca grossa e miolo escuro, pesados e de odor intenso, as carnes frias e temperadas com coentro e cardamono, que Yeoshua não comeu, por temer que entre elas houvesse a de algum animal proibido, as tâmaras frescas e secas que limpavam nosso pálato acompanhadas de cerveja e água, tudo isso foi gradativamente acalmando nossos espíritos angustiados, e chegamos até a rir. Quando os acólitos começaram a acender as pequenas lâmpadas encharcadas de nafta olorosa, vi que muito tempo se havia passado, e nossas pernas cruzadas por longo tempo começavam a pedir que as esticássemos.

Daruj foi o primeiro a levantar-se, mostrando em seu braço a bandagem grosseira que ocultava a cicatriz da precária costura que eu fizera, e se espreguiçou. Sha'hawaniah percebeu isso, e nos disse:

— E o momento para que todos nos recolhamos: se pretendeis fugir deste palácio, nada melhor que fazê-lo nos momentos finais da noite, o momento de maior escuridão antes do romper do dia. Sacerdotes de Ishtar se guiam pela lua, e o nascer do sol indica o momento em que já devem estar com suas libações finais completas, pois o Grande Deus substitui a Grande Deusa na fonte de luz do mundo.Ninguém estranhará que estejam saindo do palácio, desde que se mantenham em silêncio e sem fazer nada que desperte atenção. É melhor que durmam, descansem, recuperem as forças, e pela madrugada sairão daqui, livres para ir aonde quiserem... Para onde pretendem ir?

Cada um de nós, a essa altura dos acontecimentos, já tinha dentro de si uma idéia do que faria assim que estivesse fora do palácio: o mais terrível, no entanto, foi perceber que cada um desejava coisa diferente, e que a união que havíamos experimentado nesses poucos dias de enfrentamento de nossas desgraças estava por findar. Mitridates pretendia apenas retomar sua vida normal, de preferência longe das ruas, onde Bel'Cherub e seu maldito Na'zzur tinham poder. Eu me havia esquecido completamente deles, e uma sombra passou pelo meu espírito, quando percebi o ódio que fervilhava dentro de Daruj à simples menção de nossos inimigos. Isso estava em mim também, e a visão da face de meu amigo, coberta de hematomas, me dava voltas às entranhas, como se o ódio fosse um corpo estranho que precisasse ser vomitado. Para nosso espanto, Yeoshua rompeu seu silêncio:

— Eu vou me reunir aos meus, no teVaviv.

Eu recordava a vontade de abandonar a Grande Baab'el que Yeoshua tinha externado, mas Daruj foi quem falou o que eu estava pensando:

— Yeoshua, pequeno chacal, o que é isso? Pois não juramos estar sempre juntos em nossa vida? O que queres dizer com isso?

— Quer dizer que não vou! Quer dizer que mudei de idéia! Por que abandonaria minha família e meu povo?

— Mas nossos planos de aventuras e riquezas, queres abandoná-los assim, sem motivo nenhum? O mundo nos espera, Yeoshua! Por que queres desistir dele?

— Porque esse mundo não me interessa, não é meu e nada tem a ver comigo, assim como eu nada tenho a ver com ele! É apenas entre os meus que eu posso ser quem sou: para que me misturar com um mundo que não faz parte de mim?

Eu entendia Yeoshua: o medo sempre o levava a encapsular-se dentro de si mesmo como um caracol, e dessa vez ele preferia cercar-se dos que lhe eram semelhantes. Sorri, e meu sorriso deve ter-lhe parecido de escárnio, porque voltou-se para mim, com os olhos fuzilando:

— Tu vais tornar-te um traidor do teu deus e da tua raça, Zerub! Que Daruj e Mitridates queiram sair daqui, não me espanta, mas tu? Tens raça, tens família, tens um deus! Do que mais precisas?

A tristeza explodiu dentro do meu peito, porque eu já não tinha mais nada disso: meu pai já me considerava morto, e se eu algum dia tentasse cruzar de volta a soleira da porta de casa, não seria reconhecido como filho. Minha família já não era mais minha, e sendo meu pai o rosh'ha'golàh da Grande Baab'el, nenhum de seus seguidores, os baalei assufot da cidade, faria mais que tratar-me como morto. Só me restava a amizade de meus amigos, e esta se esvaía a cada instante: Mitridates e Yeoshua, cada um por suas próprias razões, estavam rompendo o grupo, deixando apenas a mim e a Daruj ligados para sempre pelo sangue da ferida que eu pensara, como um pacto costurado em nossa própria carne.

— Eu vou contigo, Zerub! — gritou Daruj, percebendo minha tristeza. — Esse grande império nada mais nos oferece, e há impérios bem maiores que esse... é das terras do Egito que há de se erguer o maior de todos os exércitos, e estaremos entre o número de soldados, eu e tu! Quem sabe não seremos nós os artífices da queda do grande Império da Babilônia, como prometeu a escrita na parede?

Olhei meus três amigos, cada um deles a uma distância diferente de mim: Daruj bem a meu lado, Yeoshua flagrantemente afastado, e Mitridates, como sempre, eqüidistante de todas as questões: seríamos assim desse dia em diante, talvez para todo o sempre? Abaixei minha cabeça, aceitando meu destino, temendo que a solidão gradativa fosse a verdade final de minha existência: mas a mão benfazeja de Sha'hawaniah tocou-me o ombro, interrompendo meu fluxo de pensamentos:

— É melhor dormir, para ter forças amanhã.

Bateu duas palmas leves, e as cortinas se afastaram, mostrando um pequeno espaço coberto de almofadas, escuro e aconchegante. Seus ajudantes, que eu nunca soube se eram apenas dois, dada a rapidez com que se multiplicavam às ordens dela, erguiam pequenas lâmpadas no alto de suas cabeças, indicando o caminho que deveríamos seguir. Uma bacia com água fresca nos aguardava, e todos nos lavamos e secamos, Daruj com mais dificuldade que o resto de nós, por causa de seus machucados. As almofadas estavam dispostas em círculo, e nos dirigimos a elas, percebendo que o ar à nossa volta recendia a um perfume inacreditavelmente doce, que nos dava voltas à cabeça. Os ajudantes apagaram as pequenas lâmpadas e cerraram as cortinas, deixando-nos imersos numa penumbra tão deliciosamente convidativa que eu devo ter dormido quase que imediatamente.

Não sei quanto tempo depois, fui acordado por um suave toque em minha testa. A mão cobriu minha boca, e adejando sobre mim vi os dois olhos de Sha'hawaniah: ela me pedia silêncio, e eu a segui até fora da alcova onde estávamos, em completa mudez. Uma sensação surda e quente se espalhava por meu baixo-ventre, e eu tremia de antecipação. Saímos para a varanda, ficando debaixo do céu de luminoso azul-escuro, pontuado por estrelas de todos os tamanhos, marcos do caminho indizível pelo qual rolava a alva e imensa lua cheia, brilhando sobre o Eufrates e os palácios da margem oposta.

Minha cabeça rodava, desta vez de emoção. Parada à minha frente, ela ergueu os braços, colocando-os atrás da nuca, e subitamente o véu azul-índigo que escondia sua face caiu, permitindo que o luar brilhasse sobre sua pele azeitonada. O rosto que eu apenas adivinhara surgiu à minha frente, mais belo ainda do que o que eu imaginara, o que era raro, pois normalmente os véus que escondiam as faces na Grande Baab'el serviam mais para disfarçar defeitos que para ocultar a beleza. No caso de Sha'hawaniah, a beleza do rosto me arrancou um arquejo do fundo do peito, e ela sorriu, ficando ainda mais bela, a ossatura marcada, o nariz forte, as sobrancelhas grossas, e principalmente a profundidade dos olhos muito, muito negros, que faziam de sua face quase adolescente uma escultura sem idade. Ela se aproximou de mim e, pondo-se nas pontas dos pés, enlaçou-me o pescoço e me permitiu sentir a fornalha de sua boca macia, a língua inacreditavelmente ágil, enquanto seus seios rígidos me espetavam o peito. Eu tremia dos pés à cabeça, e quando ela se desvencilhou de mim, depois de algum tempo desse beijo faminto, foi com verdadeira ânsia que avancei em sua direção. Mas ela pôs a mão de longas unhas negras em meu peito, manten-do-me afastado o suficiente para que eu não conseguisse espremê-la contra a amurada da varanda, dizendo:

— Acalma-te, amor...

Ah, como essa palavra que eu nunca ouvira antes ferveu em meu sangue! Sha'hawaniah endureceu o braço, afastando-me ainda mais, e continuou:

— O que queres não posso te dar, tu bem o sabes... minha Deusa exige que eu só seja tocada por um rei, e se eu desobedecer a essa única ordem de minha Deusa, perco o laço que a Ela me une... não me tentes, amor... sabes o que sinto por ti, não há como te ocultar isso, mas não me tentes. Respeita o desejo de minha Deusa e Ela nunca te trairá... ah, se fosses rei, tudo terias de mim...

Ah, que inveja tive eu nesse momento dos poderosos do mundo, reis e senhores de impérios, a quem os deuses ungiam com suas benesses sem conta, pondo-lhes ao alcance da mão todos os prazeres, todas as delícias, todos os amores! Eu não era rei, o deus de meus pais não me abençoara com a realeza. Em silêncio, amaldiçoei esse deus que não me fizera rei, e quase chorei de ódio ao rei que nunca seria, odiando o pai e a raça que me haviam feito comum, plebeu, impossibilitando de ter a mulher de meus desejos.

Sha'hawaniah, percebendo o que se passava em meu íntimo, empurrou-me gentilmente para um escabelo que ali havia, e eu nele caí, derreado, apoiando minhas costas na parede, enquanto o quente vento noturno da Grande Baab'el soprava sobre nós. Beijando-me suavemente os lábios, afastou-se dois passos para trás e disse:

— Terás de mim a dança que nunca dei a ninguém, porque tu és o meu escolhido. Olha e lembra que o que te estou dando ninguém jamais recebeu, nem receberá. Só tu.

Erguendo os braços, Sha'hawaniah fechou os olhos e começou a tirar de dentro da garganta um som surdo como o de um animal feroz. Era como se esse som saísse de seu ventre, daquele lugar que eu ansiava conhecer mas que estaria para sempre longe de meu alcance. Por mais jovem e incontrolável que fosse, eu nada queria tomar dela à força, pois qualquer esforço para tomar o que não me podia ser dado baratearia o que eu sentia, fazendo com que imediatamente perdesse seu valor.

O ventre de Sha'hawaniah começou a girar, ondeando, e desse centro partiam ondas de calor que percorriam todo o seu corpo, fazendo com que a sua pele logo se perlasse de pequenas gotículas de suor, brilhando azuladas à luz da lua. Cada movimento que ela fazia se refletia imediatamente em meu ventre, e depois de um certo tempo foi como se esses dois ventres fossem um só, ligados indelevelmente por algo mais forte que a própria carne de que eram feitos. Seu rosto estava transfigurado, e seus olhos se entreabriam e semicerravam em um ritmo idêntico ao de seu corpo, que os braços enlaçavam e desvelavam como serpentes. O que ela me dedicou nesse momento era a imagem de sua Deusa, não uma imagem sem vida como aquelas que os insanos adoravam, mas sim a essência viva da natureza divina de que os seres humanos estamos todos repletos. Eu estava inebriado, e nos anos que se seguiram, lembrando-me dessa noite, desconfiei que o amor verdadeiro não é aquele que nos excita violentamente os sentidos, mas sempre aquele em cuja presença ficamos mais ou menos embriagados, tomados de torpor incontrolável, do qual não há maneira nem vontade de escapar.

Não havia música, mas era como se houvesse: em minha mente, Sha'hawaniah era toda a música do mundo, aquela que soava dentro de mim como extensão dela, a cada toque do instrumento perfeito que era seu corpo moreno, refletindo-se no meu como se estivéssemos unidos e eu a estivesse penetrando. O ritmo de seus movimentos se acelerava, e eu sentia isso em meu membro. Ela começou a girar os quadris cada vez mais rápido, e eu comecei a alcançar, sem tocá-la, o êxtase mais absoluto: meus quadris se erguiam do escabelo, apontando para ela, e subitamente ela deixou escapar por entre seus lábios aquele mesmo som sibilante, o primeiro que eu de seus lábios ouvira, fazendo-me esvair em gozo infinito, urrando de felicidade como um animal apaixonadamente ferido.

Caí de joelhos ao solo, esgotado: Sha'hawaniah tomou-me pelo braço, colocando-me de novo sobre meus dois pés, e eu percebi que a ton-tura que sentira antes de adormecer, dentro da alcova onde ainda ressonavam meus companheiros, novamente me nublava a mente. Ela foi-me guiando em direção a esta alcova: recordo-me que as cortinas fechadas se ergueram sem que ninguém as movesse. Deitei-me mais ou menos de arrasto nas almofadas de onde ela me erguera, e antes de adormecer recebi nos lábios o carinho abrasador de sua língua suave, ouvindo-a dizer:

— Adeus, meu querido... és o rei de meu coração.

Uma tristeza imensa confrangeu-me a alma, mas eu não tinha mais qualquer resistência, e adormeci, o corpo saciado e a mente entorpecida.

Fui acordado pelo sacudir de meu braço, e pus minha mão sobre a mão que me tocava, retirando-a rapidamente, pois era um dos acólitos quem me acordava. Lá fora era a mais escura das horas da noite, a que antecede o amanhecer, e percebi que meus três companheiros já estavam vestidos como seguidores de Ishtar. Yeoshua, o mais irritado dos três, tinha sua face irreconhecível, coberta de tinta azul-escura. Meus olhos vaguearam pela câmara enquanto o acólito me vestia a túnica e depois me embrulhava com o xale franjado que nos desenhava o corpo em espiral. Não havia nenhum sinal de Sha'hawaniah, somente uma fugidia intenção de seu perfume. Perguntei por ela ao ajudante, mas ele colocou a mão fechada por sobre a boca, sem tirar os olhos de mim, e eu percebi que seus lábios estavam selados além do humanamente possível. Entreguei-me então às mãos experientes dos dois ajudantes, e enquanto minha cara era pintada com a grossa tinta azul com forte cheiro de plantas podres, pensei se fora verdade o que vivera na noite anterior, em companhia de uma Sha'hawaniah sem véu, já que em minha lembrança tudo tinha a qualidade ilusória das imagens de sonho: os beijos, a sensação de seu corpo e sua língua, o ritmo cada vez mais rápido de seus quadris, a sensação do gozo que espirrara para fora de meu membro. Pulei do banco onde estava, procurando a roupa que usara: estava jogada ao solo e eu a apanhei, descobrindo que na parte que me cobria o ventre havia uma mancha endurecida de meu sêmen, ficando sem saber se tinha sido verdade ou apenas sonho aquilo que causara em meu corpo essa reação.

Quando ficamos prontos, descobrimo-nos irreconhecíveis em nossos novos trajes, com as diferenças básicas igualadas pela estranha pintura de nossos rostos. Eu olhava à minha volta sem parar, tentando encontrar sinais de Sha'hawaniah: na alcova só estavam seus ajudantes, que nos ensinaram a maneira correta de manter o manto babilônio por sobre a cabeça, a maneira de andar em fila com passos curtos e ritmados, e principalmente o silêncio absoluto, que um deles, com certeza o mesmo de sempre, indicava com a mão colocada inteira por sobre a boca, e os olhos intencionalmente muito arregalados. Quando já estávamos andando mais naturalmente, a pesada porta da alcova foi aberta e nos vimos nos corredores escuros do palácio. Nosso primeiro impulso foi o de voltar, mas a porta já se fechara firmemente às nossas costas, e não nos restava outra saída que não fosse seguir em frente. Tomamos o caminho da esquerda, porque o chão era levemente inclinado para esse lado, indicando que era por ali que se descia até o rés-do-chão. Seguimos esse corredor, muito juntos um do outro, caminhando no passo curto e ritmado que os acólitos de Sha'hawaniah nos haviam ensinado, tentando perceber, no que nos cercava, cada movimento das entranhas do palácio aparentemente abandonado e quase às escuras. Raros archotes de nafta estavam acesos, e o próprio ar dentro dos corredores tinha um peso de podridão e abandono, enquanto descíamos corredor após corredor, meio às cegas, encontrando um ou outro soldado de Nabuni'dush, que se punha de prontidão à nossa aproximação, mas que, reconhecen-do-nos como devotos de Ishtar, abria caminho à nossa passagem. Quanto mais descíamos, mais gente encontrávamos, e quando chegamos ao grande corredor central, percebemos, olhando para o nível inferior, que as saídas do palácio estavam todas fortemente guardadas. Esgueiramo-nos para uma reentrância na parede, debaixo das patas de um grande querubim em alto-relevo, e sussurramos nossas preocupações:

— Não vai ser fácil, camaradas — disse Mitridates, firme. —A porta central do palácio não parece uma boa idéia, principalmente nesta hora em que o lusco-fusco da madrugada amplia as indecisões dos homens. Se formos parados, imediatamente descobrirão que não somos verdadeiros devotos de Ishtar, e o castigo nos será aplicado com violência.

Yeoshua voltava a tremer, e eu passei meu braço por seus ombros, tentando acalmá-lo. Daruj bufava:

— Tanto esforço para nada. Viemos até aqui e vamos ficar paralisados? Eu não acredito.

O cheiro de pântano que subia dos porões do palácio estava mais forte que habitualmente, e graças a isso eu tive uma idéia:

— E se sairmos pelas portas que dão para o Eufrates? Ninguém estranhará sacerdotes de Ishtar naquele lugar, e até pelo tamanho e importância, essas portas que ficam sempre cerradas não devem estar assim tão guardadas.

Um sorriso iluminou a face de Daruj, com seus machucados ocultos pela tinta azul-escura:

— É isso! A saída por essas portas nos garante inclusive um caminho para fora da Grande Baab'el... podemos montar um dos botes de couro que são guardados perto delas e remar nossa saída pelas águas do rio!

— Eu não vou sair de Baab'el! — guinchou baixinho Yeoshua. — Eu vou para a casa de meu pai!

— Pela margem do rio, isso será muito mais fácil. Basta seguir o caminho para a direita e logo estará à beira do canal que te separa do teVaviv, enquanto nós desceremos rumo sul até o mar... é a única saída!

Daruj estava eufórico, a tal ponto que tivemos que pedir-lhe silêncio, não fosse ele estragar-nos o plano com sua alacridade. Respiramos fundo, e, de novo caminhando no passo ritmado que havíamos aprendido, continuamos descendo a grande espiral até o rio, que ficava apenas um nível abaixo dos dormitórios da guarda, aqueles que tão desgraçadamente conhecíamos.

O cheiro de pântano ficava a cada momento mais forte, e já tateávamos nosso caminho na progressiva penumbra, quando vislumbramos ao longe as grandes portas de bronze que separavam o porão do palácio da margem do Eufrates. Por sorte, tínhamos saído exatamente no lugar onde se guardavam os barcos desmontados, as armações e as grandes peças de couro costurado penduradas ao longo das paredes úmidas. Poderíamos sair dali usando um desses barcos: e avançamos com decisão, até que Mitridates, o primeiro de nós, estancou, sussurrando:

— Guardas!

De cada lado da porta de bronze postavam-se, em sentinela armada, dois guardas com os uniformes de Nabuni'dush. Não havíamos visto nem mesmo um dos guardas que serviam a Belshah'zzar: parecia que a terra os havia engolido a todos, e pensei no destino cruel que, da mesma maneira que nos havia inserido em seu meio, havia posto tantos outros sob as ordens da brutal vontade àopuhu da Grande Baab'el, para que, numa virada da sorte, fossem estraçalhados por estar usando o uniforme errado. Ainda estávamos ocultos na penumbra, e os dois guardas não nos haviam percebido. Em voz muito baixa, cogitamos sobre nossas ações. Yeoshua era defensor da idéia de voltar e procurar nova saída , mas Mitridates ponderou que, quanto mais tempo ficássemos dentro do palácio, maior seria o risco de sermos descobertos como falsos seguidores da Deusa. Não havia jeito: tínhamos de seguir com o plano feito na câmara de Sha'hawaniah, enfrentando os dois guardas da melhor maneira possível, enquanto a luz do dia que se apressava em nascer ainda estivesse fraca. Era preciso ousadia, e eu de repente me recordei da música que cantáramos em toda a descida da torre, depois que a deusa e o deus tinham se unido. Respirei fundo e comecei a cantá-la, com sua batida ímpar e desequilibrada marcada por minhas palmas. Meus companheiros se colocaram atrás de mim, e assim seguimos em direção aos dois guardas, repentinamente atentos à nossa presença inesperada. Um deles, reconhecendo-nos como devotos de Ishtar, imediatamente ficou à vontade: mas o outro, um tipo meio gordalhudo, mantinha a cabeça abaixada, com o queixo enterrado no peito, olhan-do-nos pelas frestas dos olhos semi-abertos, sem perder a postura atenta. Havia nele alguma coisa familiar, e quando ergueu o queixo eu o reconheci, quase engasgando em meio a uma frase. Era Na'zzur, o esbirro de BeFCherub, vestindo uma farda que não era a sua, certamente para fugir do destino que seus companheiros de farda haviam tido. Ele me olhou fundo nos olhos, e sua boca cruel se abriu, quase proferindo meu nome, estragando definitivamente o nosso disfarce.

Mas Na'zzur não era um idiota: nesse momento, estava tão imerso em falsidade quanto nós, e se nos denunciasse seria também por nós denunciado. Eu sussurrei seu nome para meus companheiros, e Daruj, reconhecendo o impasse em que estávamos, começou a rir mansamente, atraindo a atenção de Na'zzur. O serviçal da siduri da Taberna do Boi Gordo estava de mãos atadas, em seus olhinhos de porco flamejando uma centelha de ódio. Daruj, sempre rindo, avançou para um barco na parede, começando a descê-lo de onde estava, enquanto eu retomava a cantiga.

— Ei! O que vais fazer com isso, acólito? — O guarda tinha ficado novamente em posição de sentido. — Para onde queres levar o barco?

Mitridates tomou o controle da conversa, agindo de forma tão natural que era como se sempre tivesse sido devoto de Ishtar:

— Assim que o sol de Marduq estiver tingindo de dourado os céus da Grande Baab'el, devemos estar em meio ao rio Eufrates para lá nos desfazermos das oferendas que Sin nos ordena entregar. De que outra maneira faríamos isso?

O soldado franziu a testa, mas entendeu o que Mitridates dizia, ainda que não estivéssemos carregando nada que pudesse ser chamado de oferenda. Qualquer um com um pouco mais de raciocínio teria notado isso, mas ele nem o percebeu. Como acontece com todos os soldados, a partir de certo momento já não têm mais opinião própria, e tudo que lhes soar militarmente lógico deve forçosamente ser a verdade. Por isso, enquanto Daruj descia da parede a armação redonda de madeira e começava a vesti-la com o couro costurado que a transformaria em barco, o soldado moveu as grandes trancas horizontais das portas gêmeas de bronze, que se abriram com um ruído surdo e rascante, mostrando a margem lamacenta do Eufrates e suas águas caudalosas. Yeoshua correu a ajudá-lo, mas o peso das portas fez com que elas se travassem a meio caminho, deixando espaço para a passagem de pessoas, mas não de barcos. O soldado gritou para Na'zzur, ainda paralisado, sem saber como agir:

— Vamos, companheiro! Ajuda-me a abrir essas portas para os sacerdotes de nossa deusa.

E Na'zzur, por ironia do destino, colocou-se a meu lado numa das portas, empurrando-a para fora a meu lado, tão perto de mim que eu podia sentir o cheiro do medo em seu suor, enquanto ele me dizia, entre dentes:

— Ladrãozinho maldito, hei de me vingar de ti... não hoje, nem breve, mas dia chegará em que te terei debaixo de minhas unhas, e farei de ti aquilo que bem entender...

— Não há pressa, Na'zzur: mas se realmente isso te interessa, podemos ver o que conseguimos de imediato. Queres levar-nos agora à presença de Nabuni'dush e denunciar-nos como soldados de Bel-shah'zzar?

O ódio na face de Na'zzur era tanto, que ela inchou quase até o dobro do tamanho que tinha. Num repeláo, ele colocou toda a força que possuía na porta que empurrava, e ela subitamente cedeu, abrindo-se com violência para fora do porão. A outra porta não se abriu tanto, mas o espaço já era suficiente para que o barco que Daruj terminava de montar pudesse ser carregado até a margem e colocado sobre as águas. O outro soldado, ainda um pouco desconfiado, ficou olhando enquanto Daruj e Mitridates colocavam o barco na margem, rolando-o até que estivesse embicado no sulco de pedra do molhe. Saímos, eu e Yeoshua, para o lado de fora, e quando o barco redondo foi colocado sobre a água caudalosa do rio, sendo seguro pelos dois, pulamos para dentro dele, eu mais afoitamente, não fosse Na'zzur ter um momento de loucura e a tudo arriscar apenas pelo sabor de uma vingança. Yeoshua tremia de medo, mas quando Daruj e Mitridates se uniram a nós dentro da embarcação, cada um com um remo achatado nas mãos, começou a respirar mais aliviado. Na'zzur, erguendo um punho fechado às ocultas de seu companheiro de sentinela, ameaçava-nos com a maior discrição possível: e eu, feliz por tê-lo vencido, pus-me de novo a cantar o hino de Ishtar, batendo palmas, enquanto, com um suave movimento giratório, o barco se afastou da margem. Daruj não pôde conter uma gargalhada, e todos acabamos rindo, olhando os molhes de pedra do palácio que se afastava cada vez mais depressa; do outro lado do rio, as casas dos wasib'kussim da Grande Baab'el, cada uma mais bela que a outra, formando o gigantesco e rico Khum'mar da Grande Baab'el, que nunca mais veríamos.

Tive que tomar o remo das mãos de Mitridates, pois seu braço mirra-do não permitia que ele o usasse da maneira correta, e o giro do barco aumentava vertiginosamente, causando-nos um certo incômodo: mas quando me coloquei do lado oposto ao que estava Daruj, conseguimos descer o rio de maneira mais ou menos direta, singrando o meio das águas. Havia algumas diferenças das outras vezes em que, por folguedo ou tarefa, havíamos enfrentado essa torrente: os pobres da grande cidade, que dependiam desse rio para tudo em suas vidas, lá continuavam, como sempre, fazendo o que tinham de fazer em silêncio quase que absoluto, temendo chamar sobre si a atenção dos novos velhos senhores da Grande Baab'el. Alguns barcos como o nosso desciam o Eufrates, carregados dos mais diversos materiais, e passamos por debaixo de duas pontes, deixando atrás de nós a Esagila e a visão da Grande Torre, a cada instante mais e mais um sonho sem sentido nem fundamento. Passamos pela LugalirVa, pelo final do Khum'mar com seus palácios dourados, e, quase no fim das grandes muralhas, pelos Templos de N'hum'urtha e de Sham'ash, um de cada lado do rio, ambos estranhamente silenciosos. A Grande Baab'el estava em compasso de espera, aguardando apenas que os fatos lhe trouxessem a relativa tranqüilidade do dia-a-dia, para poder voltar a ser como sempre tinha sido.

Yeoshua rezava silenciosamente, a cabeça abaixada entre os joelhos e as mãos cruzadas na nuca, olhando para dentro de si mesmo. O rio estava muito diferente daquele a que eu estava acostumado: o leito rochoso aparecia de maneira evidente em muitos pontos, bem diferente do que parecia ser quando olhado de fora. Era difícil manter o barco perfeitamente redondo sempre com o mesmo lado voltado para a frente, porque qualquer balanço imprimia-lhe um movimento giratório que, compensado, fazia-o girar na direção oposta. Meus braços já doíam: quando passamos pela confluência do canal que ladeava a muralha interna, quase nos perdemos, e nesse momento Yeoshua ergueu a cabeça gritando:

— Parem, parem! Preciso descer! Não quero seguir viagem, não quero sair da Grande Baab'el!

Agitado dessa maneira, Yeoshua perdeu o seu senso de sobrevivência e pôs-se de pé, desequilibrando a todos e quase fazendo com que o barco virasse: se não fosse o esforço ce Daruj, que segurou em seu remo o rumo da embarcação, teríamos soçobrado. Mas acabamos por encostar à margem, logo abaixo do canal, à vista da muralha externa que ali se iniciava, marcada por enormes querubins que, dizia-se, tinham seu rosto copiado da face do próprio Ne:buchadrena'zzar. Foi à sombra de um desses que paramos, e Yeoshua saltou celeremente do barco, arrastando-se pela margem acima até sentar-se, extenuado, nas pedras.

— És terrível, Yeoshua! — disse Daruj, apoiando o remo na margem para manter o barco encostado a ela. — Tua covardia é bem mais adequada para navegar, porque esse rompante de coragem quase nos afogou a todos!

Rimos todos, menos Yeoshua, que havia perdido completamente seu senso de humor e se pusera de pé, esfregando a cara azul com os panos de Ishtar que rispidamente tirava de sobre si mesmo:

— Não quero mais isto! Vou voltar à minha vida de sempre, e desejo que sejam felizes, se puderem. Adeus, camaradas...

Gritamos seu nome, mas ele nen olhou para trás: foi seguindo de volta para o lugar de onde viéramos, ladeando o rio e vigorosamente esfregando a face, para livrar-se da iceia de estar sendo um adorador da iníqua Ishtar, pisando firme no caminho que o levaria de volta ao teVaviv, onde estaria entre os seus. Havíamos perdido nosso irmãozinho, e Mitridates, com um suspiro, nos disse:

— Eu vou com ele, amigos: quanto mais leve o barco, melhor o poderão controlar. Meu braço mirraio não ajuda em nada, e eu também não pretendo sair de Baab'el... claro que por razões bem diferentes das de Yeoshua, mas ainda assim com o mesmo resultado.

Daruj não acreditou:

— Mitridates, velho onzeneiro, que é isso? Tu bem sabes que longe daqui serás muito mais feliz! Oportunidades novas, Mitridates... não queres ir conosco ao Egito, de onde ainda virá o maior poder que o mundo já pôde imaginar?

— Não, Daruj; só acredito em poderes que eu mesmo possa medir, contar, dividir. E esses ainda estão por aqui... prefiro ficar.

Daruj ainda tentou convencer Mitridates, que foi-se afastando de nós, subindo a margem na mesma direção em que Yeoshua o fizera: meu melhor amigo, o primeiro a desistir da grande viagem, estava parado na beira do Eufrates, a cara meio manchada de azul, olhando fixamente em nossa direção. Eu não sabia verdadeiramente o que queria: pressentia a desgraça de ser um indeciso, e nada me desagradava mais que me sentir como uma pena que o vento arrasta. Daruj me olhou fixamente, ainda com um sorriso de mofa na boca:

— E tu, Zerub? Ainda estás disposto a enfrentar comigo o futuro? Num relance, passaram por minha memória, em célere rodamoinho, todos os fatos que antecederam esse momento, e percebi que nada em minha vida, até esse dia, tinha sido de meu próprio interesse. Eu sempre fora apenas um detalhe nos planos de outros, em especial meu pai, que pretendera fazer de mim um fiel seguidor de sua vontade. Nesse momento, com um baque, percebi que sua face se esmaecera de minha mente, apagando-se como uma escultura de barro que tivesse sido deixada à chuva: eu não me recordava de nada que lhe fosse particular, os cabelos, a barba, o manto sobre a cabeça, nem do olhar esgazeado que exibia enquanto sonhava com uma volta à mítica Sião. Eu não tinha nenhuma identidade com ele, e nada mais me ligava àquele lugar onde nascera, ou à família na qual fora criado. Com um suave amargor no peito, tive que aceitar a verdade: estava definitivamente por minha própria conta. Sem dizer palavra, subi ao barco, que Daruj, com uma risada triunfante, empurrou com o remo para o meio do Eufrates e a força das águas nos afastou da margem, levando-nos em direção ao sul, onde o rio se alargava e tomava mais volume pela chegada a ele do canal do Dil'pal, o maior entre todos que atravessavam os campos férteis vindo do Tigre.

Yeoshua, vendo que estávamos realmente indo, voltou correndo pela margem do rio, acenando os braços e gritando meu nome:

— Zerubl Baruch ataAdonai ElohêVnu melech haolam, hael, aví'nu, malkê'nu, adirê'nu, bor'ê'nu...goalê'nu...iots'erê'nu...

Era uma bênção, que eu já ouvira no passado, mas, por mais alto que ele a gritasse em minha direção, suas palavras foram se apagando, enquanto o barco seguia Eufrates abaixo, deixando na margem as duas figuras como eu delas nunca mais esqueceria. Eu não me permitiria chorar: voltei as costas aos dois companheiros, porque o barco balouça-va mais do que eu podia suportar, e meu remo fazia falta na condução do caminho. Uma mancha escura de sangue podia ser vista na bandagem que envolvia o braço ferido de Daruj, e me pus ao lado dele enquanto nos desviávamos das pedras que apontavam de quando em quando para fora da superfície das águas caudalosas. Tínhamos que nos desviar constantemente delas, orando silenciosamente para que as que não apareciam na superfície estivessem fora de nosso caminho. Dentro de pouquíssimo tempo, meus antebraços já não conseguiam mais manter o remo na água sem tremer, e minhas mãos estavam cheias de bolhas. O esforço de meu espírito para manter o rumo era imenso, e dei graças a deus por estarmos em um barco na água movimentada, porque poderia alegar serem respingos do rio as lágrimas incontroláveis que me desciam pelas faces.

 

Tudo que fôramos ficava para trás: amigos, inimigos, famílias, histórias e fatos, crenças e certezas, e eu estava, além de tudo, abandonando minhas duas mais caras aspirações, Sha'hawaniah e a música que Feq'esh me prometera ensinar. De tudo o que eu sempre fora ou desejara, nada mais restava: só havia o rio, rápido em seu movimento. Pouco tempo depois, já passávamos pela cidade arruinada de Borsi'pah, coberta por nuvens de morcegos: e daí em diante, com o sol inclemente cada vez mais alto sobre nossas cabeças, descemos o Eufrates, sofrendo e bufando, de tal maneira concentrados em nossa sobrevivência sobre as águas, que nem mesmo conseguíamos conversar.

No início da tarde, depois de nos desviarmos de inúmeros afluentes que cortavam os campos férteis do Império de Baab'y'lon, eu estranhava como o rio liso que tinha me acostumado a ver pudesse estar cada vez mais cheio de acidentes à flor d'água. Sabíamos que pouco antes de seu delta, cada vez mais afastado de Suq'ash-Shuyuk pela força do alu-vião que ali se depositava, o Eufrates se tornava cheio de corredeiras, algumas delas perigosas, com quedas de até dez braças de altura: mas esse rio cada vez mais cheio de acidentes em seu leito, com perigosos trechos de pedra que dele se projetavam para o alto, alguns deles mostrando peixes que se debatiam em busca do que quer que lhes desse a vida, não era visto senão quando das raríssimas secas que de quando em quando nos assolavam. Estava muito estranho o Eufrates, e quando remamos para a margem deserta e nos abrigamos à sombra de algumas tamareiras perto da aldeia de Sin'afyah, Daruj mostrou a mesma preocupação que eu:

— Muito estranho, Zerub, muito estranho: não estamos em época de seca, e com a chuva torrencial de ontem, a primeira deste ano, era para o Eufrates estar mais cheio do que de costume. Não entendo...

— Eu também estranho, e começo a achar que não poderemos seguir o rio por muito tempo. Breve teremos que andar, e eu não sei se tenho resistência para grandes distâncias...

Daruj riu um de seus risos confiantes:

— Tolice, pequeno chacall Seguiremos o Eufrates até que se torne impossível navegar, e depois andaremos em direção ao nascente, em busca de quem nos transporte para nosso destino glorioso, no Egito. — Daruj, hiena sem miolos, o Egito fica para o sudoeste: o que vamos fazer na direção contrária?

Colocando o barco redondo novamente na água, e segurando-o enquanto eu pulava para dentro, Daruj disse:

— Um passo de cada vez: o caminho para o sudoeste, daqui até o Egito, é deserto e abandonado. É preciso ter companhia para atravessar as mais de duas mil milhas que nos separam de nosso futuro, e eu pretendo fazer uso destes trajes de devotos da Deusa para que façamos isso com o maior conforto possível. As margens do Tigre são coalhadas de devotos de Ishtar, e, se são raros no caminho do Eufrates, lá serão em número suficiente para nos dar alimento, abrigo e transporte até nosso destino!

O plano me parecia arriscado, mas éramos jovens o suficiente para não perceber os perigos que sempre acompanham aventuras desse tipo. Como raramente os sofríamos, era natural que seguíssemos sempre a opção mais arriscada, quando havia opção. Navegamos mais algumas horas, até que o sol tivesse girado no céu e começasse a avermelhar o horizonte: meu estômago dava sinais de uma fome insuportável, e tanto eu quanto Daruj já não suportávamos mais beber a água do Eufrates, numa tentativa cada vez menos feliz de preencher o vazio que nos corroía por dentro. Quando o sol de raios quase horizontais avermelhou as ruínas milenares de Erech, uma das inúmeras cidades chamadas Ur que os antepassados dos caldeus haviam erguido na margem esquerda do Eufrates, nosso progresso tornou-se impossível: a dor de cabeça que a fome me causava era tão forte que eu sequer conseguia abrir os olhos, e o leito do rio, praticamente ressecado, com grandes bancos de areia e pedra formando caminhos entre pequenos cursos d'água, não permitia mais a passagem de nosso barco de fundo chato. Isso nós só percebemos quando, sem aviso, encalhamos em um desses bancos e eu fui projetado para fora, por sorte aterrissando em uma poça barrenta. O choque com a água fria me tirou toda a vontade de navegar: eu queria comida, descanso, e só não pensei seriamente em voltar para a Grande Baab'el porque ela agora era uma impossibilidade física, já que havíamos percorrido mais de cinqüenta milhas pelo território do Império, e não havia nada que pudesse nos fazer retornar a nosso ponto de partida com a mesma velocidade. Os navios que ousavam subir o Eufrates só o faziam graças a cordas que os puxavam das margens, além dos verdadeiros exércitos de remadores que os impulsionavam: mas nós, largados como gravetos na correnteza, dela nos privilegiáramos, afastando-nos de nosso ponto de partida muito mais rapidamente do que poderíamos acreditar.

Saímos chapinhando pelo rio cada vez mais seco, enquanto o sol se punha, e começamos a tremer de frio, porque o ar nesses desertos só se mantinha fervente enquanto houvesse sol para esquentar o solo, mas, assim que ele se punha, o chão começa rapidamente a perder calor, e o ar acima dele esfriava muito rapidamente. A fome que nos atacava não melhorava em nada a sensação de febre que o frio nos dava, e foi com grande alegria que percebemos, ao lado das ruínas dessa Ur completamente esquecida, algumas tamareiras e figueiras selvagens, que atacamos com tanta sofreguidão quanto as cabras que as disputaram conosco. Nunca frutas tão mirradas souberam tão bem a nosso paladar, e ainda hoje, ao sentir o sabor de figos ou tâmaras, é exatamente desse dia que me recordo, um momento suspenso no tempo, quando fomos apenas animais, famintos como as cabras que nos cercavam.

Num lugar à nossa frente, vimos movimento: o som de vozes que falavam e riam chegava a nossos ouvidos cada vez que a brisa da noite soprava, e quando o clarão de uma fogueira brilhou ao longe, foi para lá que nos dirigimos. Levamos uns bons quinze minutos para vencer essa distância, e já podíamos sentir o cheiro delicioso da gordura pingando no fogo, antes de sermos vistos pelos que ali acampavam. Havia vozes de animais, e o alarido confiante de quem se reconhece companheiro em uma mesma viagem. Grandes panos coloridos e grossos se erguiam em volta dessa fogueira, e os carros de boi e os cavalos esguios que formavam essa caravana fechavam o outro lado de um círculo, enquanto dois homens retiravam água de um poço de boca esboroada como uma colméia velha.

Aproximamo-nos com vagar suficiente para que ninguém se assustasse conosco, e, ao nos divisarem vários homens se ergueram, em posição de defesa, mas o mais velho deles, com uma longa barba grisalha sob o capuz de seu manto, ergueu a mão e os acalmou, reconhecendo em nós não uma ameaça, mas uma necessidade. Este homem nos perguntou, enquanto nos aproximávamos da fogueira, transidos de frio:

— Aproximai-vos, viajantes, e dizei-nos: o que é que acólitos de Ishtar fazem tão longe da Grande Baab'el?

Havíamos nos esquecido completamente de que nossas faces e vestes eram as de devotos da Deusa, graças aos quais tínhamos fugido do palácio real. Nesse instante, parados ali no meio desses homens desconhecidos, ficamos mudos. Nosso ar de penúria e confusão devia ser tão grande, que, quando um deles riu de nosso embaraço, o riso foi verdadeiramente contagiante e todos se puseram a rir, e de repente até nós, sem outra coisa a fazer, sentamo-nos no chão às gargalhadas. Eu ri de cansaço, fraqueza, mas principalmente alívio: estava acostumado a ser tratado sempre com tanta desconfiança por quem era diferente de mim, que a bonomia desses homens da caravana me venceu. Reconheci o ridículo de tentar ser quem não era, e nesse dia comecei a perceber que qualquer fingimento é sempre ridículo, porque a Natureza nunca finge. Quando o riso, que sempre reduz às suas verdadeiras dimensões qualquer pretensão humana, se acalmou, Daruj ainda tentou uma explicação fantasiosa: mas eu o interrompi, contando os verdadeiros fatos e motivos pelos quais ali estávamos. Não entendia por que, mas aqueles homens me inspiravam tal confiança que, não seria lícito mentir-lhes, e narrei com a maior precisão possível o que nos ocorrera, deixando de fora apenas a nossa vida anterior de pequenos ladrões nas ruas e subterrâneos da Grande Baab'el. Nos olhos de Daruj eu via o pedido mudo para que não revelasse sua profunda vergonha.

Tive que me interromper diversas vezes, porque os viajantes faziam perguntas, todas muito pertinentes, mostrando um grande conhecimento não só do Império da Babilônia, mas principalmente das maneiras como as pessoas se relacionam entre si. Esclareci o que pude, da maneira como pude, e devo ter feito um bom trabalho, pois, quando a grande panela de trigo cozido com legumes e coalhada foi posta à frente do que parecia ser o chefe, ele encheu uma escudela e passou-a para minhas mãos, sussurrando de olhos fechados. Olhei em volta, vendo que todos os homens do grupo me exortavam com gestos a partilhar de seu alimento: mergulhei meus dedos na papa quente, e seu sabor em minha língua foi reconfortante. Daruj foi o segundo a ser servido, e quando todos já estávamos enchendo nossas barrigas com aquele alimento abençoado, um ramo comprido enfiado em um carneiro esventrado e brilhante de gordura passou por nós. O homem mais velho pegou de sua faca curva e, tirando um naco de carne, colocou-o dentro de minha escudela. A mistura do cheiroso suco da carne com o trigo empapado transformou o alimento em uma coisa deliciosamente nova, e quando olhei para Daruj vi que ele estava mordendo o pedaço de carne com sofreguidão, a boca e o queixo brilhantes de gordura. A alegria de dividir o alimento com amigos aguçou o paladar com que dele usufruí, sen-tindo-me mais repleto de prazer do que se estivesse em um festim dos poderosos.

Uma bacia com água morna foi passada de mão em mão, para que nela lavássemos os dedos e a escudela, e eu segui os gestos de meus novos anfitriões da melhor maneira possível, mas não tão bem quanto Daruj, um verdadeiro mestre na arte da imitação como forma de sobrevivência. Até a maneira de tomar a água na boca para com um jato e uma torção rápida do pulso, limpar a escudela, enxugando-a na borda do manto, ele imitou de nossos amigos com tal perfeição que murmúrios de aprovação percorreram a roda. De alguma maneira, estávamos sendo aceitos entre esses homens, ainda que eu não compreendesse por quê.

O mais velho entre eles, que se apresentou como Jerubaal, perguntou-me, com o sobrecenho franzido:

— Mas, dize-me, Zerub: o que foi que aconteceu no salão depois que os tesouros dos hebreus foram trazidos?

A lembrança dos fatos fez com que a moeda, que estava amarrada em um nó numa das bordas de meu manto, esquentasse como se posta ao fogo, transmitindo seu calor para minha perna, onde estava encostada.

Meu semblante deve ter-se modificado, porque Jerubaal se inclinou para a frente, mais atento ainda. Tomei a borda do manto nas mãos e dela extraí a moeda que segurei à minha frente, enquanto narrei, cheio de descrença, os fatos que havia visto e dos quais a cada instante duvidava mais e mais. No entanto, ao terminar de narrá-los, não vi sequer um olhar de dúvida ou mofa: apenas semblantes encantados com o que lhes contara. Jerubaal, com lentidão, estendeu as mãos até a moeda, que lhe entreguei, observando-a com extrema atenção, passando-a para o homem à sua esquerda, que a estudou da mesma maneira, passando-a ao seu próximo companheiro, e assim sucessivamente, até que toda a volta da roda tivesse sido cumprida e a moeda estivesse em mãos de Daruj, que me disse:

— Tu não me disseste que apanhaste a moeda...

Eu sorri, sem jeito, pegando-a da mão de meu amigo, e Jerubaal, erguendo a voz, disse:

— Não te agastes com teu amigo por ele não ter-te revelado o que fez: posso perceber que não é da natureza dele revelar quaisquer segredos, seus ou de outrem.

Daruj empalideceu, e abaixou os olhos, enquanto Jerubaal continuou:

— Não seria melhor que tirásseis essa tinta do rosto? Afinal, estais entre amigos, e entre amigos ninguém precisa ocultar-se.

Daruj hesitou, mas eu confiei, e com a ponta de meus mantos enlameados comecei a limpar de meu rosto a tinta índigo, recordando de Yeoshua e Mitridates sozinhos na margem do Eufrates, uma centena de milhas acima de onde estávamos. Jerubaal mandou trazer um pouco da água que esquentava em uma chaleira de cobre batido, e com ela eu e Daruj nos pusemos mais ou menos íntegros, com exceção de nossos trajes, emporcalhados e rasgados. O contraste entre nós dois e o resto dos homens da caravana era imenso: enquanto parecíamos mendigos dos mais baixos desvãos da Grande Baab'el, com nossas roupas sujas e cabeças raspadas, eles estavam todos limpamente vestidos, sem luxo nenhum e com uma simplicidade no mínimo invejável. Os mais novos vestiam roupas mais curtas, abaixo das quais apareciam suas sandálias, e mantos simples, apenas grandes pedaços quadrados de pano com que cada um se envolvia da melhor maneira possível. Já os trajes de Jerubaal e dos outros mais velhos, que reconhecíamos pelas longas barbas que portavam, eram mais longos. Não usavam o xale triangular a que eu estava acostumado na Grande Baar/el: em seu lugar, portavam um grande casaco de longas mangas largas e um capuz pontudo, com o qual se enrolavam da melhor maneira possível. O detalhe mais interessante de todas as vestimentas era o avental de couro que traziam à cintura: sendo uma espécie de bolsa quadrada feita de couro de carneiro curtido ainda com o pêlo, tinha uma abeta triangular que só os mais velhos usavam abaixada. Os dos mais jovens, inexplicavelmente, estavam sempre vazios, e por isso eles o usavam com a abeta levantada: essa diferença não se notava imediatamente, porque o trato entre eles era extremamente igual. Ninguém erguia a voz sem necessidade, e na maior parte do tempo os mais jovens ouviam sem retrucar as coisas que os mais velhos diziam, em voz pausada e calma. Eu nunca tinha visto gente como esses homens: os habitantes da Grande Baab'el eram sempre extraordinariamente álacres e descontrolados, em seus afazeres diários. O povo de maneira geral sempre exagera ao imitar o comportamento de seus senhores: como na Grande Baab'el os senhores já eram exorbitantemente escandalosos em sua maneira de ser, o povo vivia permanentemente aos gritos, com atitudes tão desmedidas, gestos tão amplos e vozes tão acima do normal, que estar no silêncio desse acampamento me fazia pensar ser surdo. Os próprios animais dessa caravana, pastando a erva magra dos desvãos das ruínas, eram de placidez infinita, se comparados com os cavalos, porcos, cães, pássaros e macacos que infestavam as casas e as ruas da capital do Império da Babilônia.

Se não estivéssemos tão cansados de nossa aventura no Eufrates, aquela calma certamente nos teria dado nos nervos, acostumados que estávamos à agitação e bulício: mas enquanto a lua rolava pelo céu e as estrelas se destacavam no azul cada vez mais escuro, mergulhamos na sensação nova, alheia, diferente e certamente contagiosa, que fluía dos mais velhos para os mais novos e até para os animais, não havendo como não nos afetar: Daruj cabeceava, e logo que alguns da caravana começaram a buscar posição mais confortável, enrolou-se em seu manto puído e, colocando o braço ferido por sobre o rosto, pôs-se imediatamente a ressonar. Eu tinha sono, mas a sensação de paz que experimentava era tão boa, que mantive meus olhos abertos o mais que pude, sentindo o cheiro do chá de hortelã que todos tomavam.

Acordei bruscamente na luz difusa da manhã seguinte, assustado por ter sonhado com a face de meu pai misturada à face de Jerubaal. A caravana estava em plena agitação, e eu não me recordava de ter adormecido. Alguém me havia coberto com um manto igual ao que os homens usavam: era feito de lã crua, cardada e tecida de maneira muito fina, sendo macia ao toque e nem quente nem fria, mas estranhamente capaz de manter o corpo com a temperatura ideal, no frio ou no calor. Percebendo que eu já acordara, puseram-me nas mãos uma escudela como a da noite anterior, cheia até a borda de coalhada fresca, armazenada em grandes odres de couro de cabra que estavam mergulhados no poço, e esse leite azedo de frescor inesquecível foi de tal maneira benfazejo que eu me senti pronto a enfrentar qualquer batalha ou inimigo.

Ergui-me, em busca de Daruj, indo encontrá-lo em uma meia-ten-da sob os cuidados de um velho de sobrecenho franzido e olhos apertados, que pensava sua ferida. Era impressionante a aparência desse corte, que mesmo limpo e cuidado me confrangia o coração, pois a lembrança de costurar a pele e a carne de meu amigo de maneira tão inepta nunca mais me abandonaria. Daruj, ao ver-me, abriu um largo sorriso e disse:

— Zerub, pequeno chacal, estamos com sorte! — Apontou para o velho que lhe cuidava do braço. — Ragel aqui acaba de me contar que estão de partida para Jerusalém, e que de lá uma parte dessa caravana seguirá para as pedreiras do Faraó do Egito.

— Então vamos fazer uma volta completa pelo Império da Babilônia antes de chegar a nosso destino. Jerusalém não fica muito fora de mão? Também não sei o que faríamos num lugar que é só ruína e destruição...

Ragel, envolvendo a ferida de Daruj com um pano limpo, disse:

— Ainda mora gente nessa ruína. São nossos irmãos, e precisam tanto de nós quanto nós deles. Além disso, temos tarefas a cumprir em Jerusalém.

Eu não conseguia conter minha curiosidade, e a externei:

— Dize-me, Ragel, que caravana é esta? Sois mercadores? De quê? Ragel sorriu por entre a barba quase totalmente branca:

— Somos trabalhadores da pedra: pedreiros, canteiros, escultores, gente que tem a pedra como meio de vida, pois não existe no mundo quem possa viver sem ela. Viemos de Qornah, onde temos nossas oficinas, nas quais muitos antes de nós produziram os trabalhos em pedra com que o Império da Babilônia exibe ao mundo a sua glória. Nós, pedreiros, viajamos por todos os lugares, porque, onde quer que sejamos necessários, lá devemos estar, como sempre estivemos.

Atado o pano com duas voltas de suas próprias tiras, Ragel deu por terminado o trabalho na ferida de Daruj, dizendo:

— Está cicatrizando bem: não tiraremos mais a casca que se forma, mas é preciso que tu mantenhas esse braço numa tipóia pelo menos por três dias. És capaz disso?

Daruj acenou que sim, ainda que soubesse que era impossível tal imobilidade: sempre concordava com tudo, mesmo que depois só fizesse o que lhe agradava. Eu, não sei por que, tinha o hábito de só concordar com o que realmente aceitasse, e quase sempre cumpria o prometido, mesmo sendo alguma coisa que me desagradasse profundamente.

Ragel ergueu-se com alguma dificuldade da posição acocorada em que estava, mas logo após estava celeremente agitado. Era bem menor do que parecia, o rosto vincado e magro, o crânio quase careca: erguendo os olhos para o céu, uma das mãos cobrindo os olhos ainda mais apertados, disse:

— Devemos partir: assim que o sol subir no horizonte, já devemos estar longe daqui. Pretendeis ir conosco?

Daruj concordou, alegremente:

— Por certo que sim, Ragel: era nosso objetivo seguir para o Egito do Faraó, e lá ingressar em seu exército. Se vossa caravana, mesmo perdendo tempo com esse desvio por Jerusalém, tem por meta o Egito, seguiremos convosco.

Ragel riu silenciosamente:

— Posso cheirar em ti a alma de um soldado, rapaz. Essa cicatriz que levarás para sempre no braço é uma excelente prova do teu desejo de combate. Há de bastar-te erguê-la para o alto e teus inimigos tremerão!

— Isso eu agradeço a Zerub, que me costurou com tanta arte... Virando-se para mim, Ragel franziu a testa:

— Já em ti não sinto nem o cheiro de cirurgião nem o de alfaiate, muito menos o de soldado. O que pretendes fazer no Egito do Faraó?

Embatuquei: na verdade, estava apenas seguindo os desejos de meu amigo, embarcando em seu sonho sem me preocupar se era também o meu. Ragel aproximou-se de mim, fungando, e disse:

— Tens um fedorzinho de artista nessa pele, mas junto a ele há um outro cheiro que não consigo definir, quase um perfume... um cheiro de rei e ladrão ao mesmo tempo... que mulher é essa que te tocou de maneira tão profunda?

Ele certamente estava brincando comigo: mas a sensibilidade do velho Ragel era assustadora, pois eu não conseguia sentir o perfume de Sha'hawaniah na pele, mesmo me dando conta dela pelo menos um milhar de vezes por dia. Abaixei a cabeça, e Ragel me disse:

— Calma, filho, há um tempo para cada coisa debaixo do sol de Yahweh. Teu tempo de mulheres ainda está por vir, e um dia te encon-trarás com as mãos tão cheias delas que te recordarás com saudade do tempo em que apenas uma era tua preocupação. Vamos: é preciso que falemos com Jerubaal, e que ele decida se podeis ou não seguir viagem conosco.

Seguimos atrás de Ragel, que claudicou pelo centro do acampamento até a penumbra acolhedora da meia-tenda de Jerubaal. O chefe da caravana estava cercado pelos outros mais velhos, riscando no chão alguma coisa que, à nossa aproximação, cobriu com a borda de seu longo manto, erguendo os olhos muito claros para nós.

— Os jovens pretendem acompanhar-nos até o Egito — falou Ragel — e perguntam se os aceitamos na caravana.

— Estamos dispostos a qualquer serviço, se nos levardes ao Egito do Faraó, senhor! — disse Daruj, repentinamente, sendo recebido com o silêncio geral dos membros da reunião. Jerubaal, que o olhava sem nenhum sentimento até que terminasse de falar, da mesma maneira desviou dele o olhar, como se ele não estivesse ali, perscrutando a todos os seus companheiros sem uma palavra sequer. Alguns deles se ergueram, de onde estavam, e vieram examinar-nos: um deles olhou longamente as unhas de nossas mãos e de nossos pés, outro mediu nosso nariz e nossas orelhas com seu áspero dedo indicador, e outro ainda estudou nosso crânio raspado, como se dele dependesse a sua sobrevivência. Mas a maioria só nos olhou, profundamente, de maneira muito estranha, como se estivessem entrando em nossa alma para descobrir o que nela vicejava, fazendo-me tremer num arrepio incontrolável. Isto feito, Jerubaal olhou a todos mais uma vez: devem ter-lhe feito algum sinal que não conseguimos perceber, porque, depois que seu olhar cumpriu toda a volta do círculo, ele nos disse:

— Alguns de nós não concordam que os dois sigam viagem conosco. Se houver alguém que pelos dois se responsabilize, talvez mudem de idéia. Quem se apresenta como responsável pelos dois?

O momento de silêncio foi imenso, até que Ragel pigarreou:

— Eu posso fazê-lo, mestre.

Jerubaal fixou seu olhar em Ragel, que o sustentou, e subitamente disse, sem nos olhar:

— Pois que seja: seguirão viagem conosco até onde resistirem, sob tua responsabilidade, irmão Ragel.

Essa frase foi como que um sinal, pois todos se ergueram, e Jerubaal, postando-se sobre o desenho que havia riscado na areia do solo, ocul-tando-o de nós enquanto os outros saíam dali, esperou que apenas nós e Ragel ali permanecêssemos. Quando todos saíram, disse:

— Dai-lhes novas roupas e explicai-lhes suas funções durante a longa jornada. Deixai claro também que participarão de todos os nossos hábitos, dos quais o silêncio é o mais importante: estar conosco significa ser como somos, pelo menos enquanto nossas vidas estiverem seguindo a mesma trilha.

Ragel e Jerubaal se abraçaram, beijando cada um a face esquerda do outro, desejando-se paz de maneira tão franca e sincera, que essa paz parecia ser o saboroso fruto da verdadeira amizade. Ragel tomou a mim e Daruj pelo braço, tirando-nos dali. Voltei meus olhos para trás, ainda a tempo de ver Jerubaal apagando, com a ponta da sandália, o desenho feito na areia, que ele de nós ocultara com tanta determinação. Enquanto Ragel extraía de um fardo algumas peças de roupa, escolhendo quais delas melhor nos serviriam, eu me pus a pensar sobre a maneira de ser dos homens dessa caravana. O pedido de silêncio absoluto me parecia inusitado mas coerente, pois eu não ouvira qualquer som proferido pelos mais jovens, e presumi que não tivessem permissão para falar antes de alcançar uma certa idade. Meus pensamentos foram interrompidos por Daruj, que, já vestido como qualquer outro, indagou:

— E o avental, Ragel? Não nos darás um?

Ragel sorriu de olhos fechados, e depois de um tempo explicou:

— O avental que usamos, mais do que uma ferramenta de trabalho, é a marca do ofício que todos partilhamos, em maior ou menor grau. Se vós nada conheceis desse ofício, como podeis usar a marca de quem o pratica? Já imaginastes os embaraços que causaríeis aos outros e a vós, se o usasses sem razão?

Ragel estava certo: e eu, enquanto estive nessa caravana, usei o manto bem cingido ao corpo, trespassado em volta do ventre, para que ninguém, ao ver-me sem o avental que todos usavam, me tratasse de maneira diferente. Não me interessava destacar-me, mas sim desaparecer em meio a esta pequena multidão, porque me agradava mais a idéia de ser igual do que a de ser diferente.

Ao primeiro raio do sol que explodiu em nossos olhos por sobre as ruínas, do lado leste do céu, a caravana se ergueu e pôs-se a caminho, com o sol às nossas costas: os mais jovens sobre os bois, a seu lado os mais maduros montados nos esguios tordilhos, os mais velhos dentro dos carros, que balouçavam por entre as pedras, com suas rodas maciças. Tínhamos apenas duas refeições diárias, uma ao acordar e outra antes de dormir, e cada um carregava um odre de água com líquido suficiente para aplacar sua sede naquele dia. Ragel nos avisara que beber muito era pior do que beber pouco, porque no calor abrasador desses desertos patinados pela poeira amarela, um corpo cheio de água sua mais do que deve, ressecando com mais rapidez. Eu só entendi o que ele dissera quando, duas horas depois da partida, meu odre estava vazio: sofri as agruras da sede sem tugir nem mugir, pois em uma viagem como esta cada um deve cuidar de si mesmo. Ao olhar para o lado, percebi que meu irmãozinho Daruj também havia cometido o mesmo engano que eu, suando em bicas, os lábios crestados pela secura de seu organismo. Ao entardecer do primeiro dia de viagem, depois de atravessar um Eufrates estranhamente seco, de cujas raras poças eu não bebera por achar que tinha água suficiente em meu odre, chegamos ao poço de K'hidr, e eu quase me joguei no buraco que se abria no chão, querendo matar a sede que me torturava. Lá já estavam alguns outros viajantes do deserto, que disseram vir de Mishq'ab e nos contaram o motivo da inesperada seca do Eufrates.

No dia anterior, depois de termos fugido da Grande Baab'el, ela fora subitamente invadida pelas tropas de Cyro, rei dos medos e persas, que acampara ao norte da cidade. Na localidade denominada Ar'derish, onde a rainha Nitocr'ish havia iniciado a construção de um lago para impedir a aproximação dos persas pelo norte, ao mesmo tempo ganhando terras para erguer seu monumental túmulo, o invasor usara os mesmos diques que ela havia erguido nas margens do Eufrates, e, com pouquíssimo esforço de seus aguerridos soldados, interrompeu o fluxo do rio, desviando suas águas para um pântano das vizinhanças. O exército de Cyro vadeou o rio com água pela cintura, no ponto mais fundo, e entrou pelos portões das muralhas, invadindo a cidade silenciosamente. Ninguém percebeu o que ocorria, pois Nabuni'dush havia organizado manifestações em honra a Sin, sua deusa protetora, e o povo da Grande Baab'el, tomado pela satisfação dos sentidos excitados ao máximo, ficou dançando até que fosse tarde demais. Os medos haviam tomado definitivamente o grande Império da Babilônia, que nunca mais se ergueria.

Jerubaal ouviu com gravidade a narrativa dos viajantes, principalmente quando soube que Cyro fora auxiliado em sua invasão pelos sacerdotes de Marduq, ofendidos com a perda de poder que a retomada do trono por Nabuni'dush lhes havia causado. Como poderia uma decisão dessas ser tomada com tanta rapidez, se Cyro sempre estivera a mais de duzentas milhas da Grande Baab'el? Dez dias inteiros não seriam suficientes para colocar um exército como o medo-persa às portas da Grande Baab'el, quanto mais uma só noite.

Eu também achara estranho os acontecimentos de que tinha sido testemunha, principalmente a profecia que Nabuni'dush havia desen-cavado em suas pesquisas, narrando com precisão de séculos os fatos ocorridos no festim de Belshah'zzar, e lembrei da conversa que ouvira entre o urigallu, Grão-Sacerdote de Marduq, e um de seus acólitos. Chamei Jerubaal e contei-lhe a conversa a que havia assistido. Ele cofiou a barba durante minha narrativa, e uma luz de entendimento iluminou-lhe o olhar. Agradeceu-me silenciosamente pela informação, dizendo logo após a seus companheiros de caravana:

— Cyro já devia estar se aproximando da Grande Baab'el havia algum tempo, e os sacerdotes de Marduq devem tê-lo ajudado em sua empreitada. Nabuni'dush foi apenas mais um detalhe em sua decisão de derrubar o rei do Império da Babilônia: se ele não tivesse surgido repentinamente, seria a Belshah'zzar que os sacerdotes teriam traído.

— E agora os ossos de Nabuni'dush branqueiam ao sol no mesmo monturo onde foi jogada a carcaça de Belshah'zzar — disse Ragel, um esgar de desagrado em sua face vincada. — Que faremos agora, mestre Jerubaal?

— O mesmo que sempre fazemos: continuar em nosso caminho, sem mudar de rumo porque um rei substituiu a outro. Somos mais velhos que todos eles, e se os reis morrem, os pedreiros permanecem. Vamos, irmãos, sem esmorecer! Sempre estamos um passo à frente dos poderosos, pois o embate com o Poder é o que melhor revela o verdadeiro caráter dos homens que habitam a terra do Criador.

A segurança e superioridade com que esses pedreiros falavam dos homens mais poderosos que existiam, reis, conquistadores, senhores da vida e da morte sobre todos nós, era impensável. Outros, por muito menos, tremeriam e se rojariam ao solo, pedindo perdão por ter apenas pensado em coisas assim. Os pedreiros, não: pareciam animados por uma energia diferente, que lhes queimasse nas veias como fogo em vez de correr como sangue. Que força seria essa que lhes dava a certeza de estar fazendo o que deveriam? Minha mente de escravo, coisa que eu era sem ter disso nenhuma consciência, não percebia o verdadeiro valor dos homens e de suas crenças. Para mim, um pedreiro e um rei eram coisas muito diferentes, e minha criação me havia feito acreditar que uma pessoa fosse melhor que outra por determinação divina, sem perceber que é o valor de cada um e não as circunstâncias de seu nascimento que o dotam do verdadeiro poder. Este poder só é conquistado a duras penas, pela experiência da vida e seu cortejo de misérias e felicidades, quando o homem está disposto a enfrentá-las e crescer com elas: aquilo em que se crê é verdadeiramente aquilo que se é, mas isso eu só vim a aprender depois de ter experimentado a maior parte da minha cota de prazeres e sofrimentos.

A caravana ergueu-se de onde estávamos e tomou rumo sudoeste, atravessando a vau o leito ainda meio seco do Eufrates, seguindo pela margem esquerda do fresco Shalar'jawi, em direção a Qis'ar, onde pretendíamos dormir nessa noite. O sol às nossas costas esquentava cada vez mais, enquanto trilhávamos a margem direita do grande rio, cada vez mais alta em relação às grandes montanhas que se desenhavam no horizonte. Eu nunca experimentara uma viagem que durasse tanto tempo, e quando o sol se pôs a pino sobre nossas cabeças, pensei que ia desmaiar, pois ele se enfiava por minhas pálpebras finas, vazando luz para dentro de meu cérebro mesmo quando eu estava de olhos fechados. Era preciso que eu cobrisse a cabeça com meu manto, mas, sendo ele de cor clara, isso pouco efeito fazia: a verruma do sol perfurava minha cabeça, e eu recorria cada vez mais amiúde ao cantil de que dispunha, até que, sem que soubesse como isso acontecera, ele estava vazio. Olhei em volta, desesperado: os companheiros que comigo ocupavam a grande carroça puxada por bois estavam silenciosos, suas cabeças cobertas não exibindo nenhuma mancha de suor, como se não estivessem sentindo nenhum calor. Eu e Daruj, pelo contrário, estávamos empapados pelos líquidos de nosso corpo, com a boca seca e as narinas quase queimadas pelo ar quente do deserto.

Virei-me para um de meus companheiros de viagem, de quem só via os olhos acinzentados, e disse, com uma voz que não sabia tão rouca:

— Água!

Os olhos me fixaram, espantados:

— Onde está a tua água?

— Bebi...

— TODA? — Era legítimo o espanto nos olhos que me fitavam, e várias cabeças se viraram em minha direção. — Mas era água para pelo menos três dias de viagem... queres morrer sem uma gota de líquido dentro de teu corpo, com tudo que tens aí dentro transformado em pó?

O rubor que me subiu às faces era mais forte que o calor em que estávamos imersos: a inexperiência me havia feito colocar em risco minha própria vida. No fundo da carroça, vi o rosto de Ragel, que sacudia a cabeça com os olhos apertados:

— Devíamos ter-te explicado isso melhor... teu companheiro também bebeu toda a água?

Um Daruj empapado de suor acenou que sim, tão envergonhado quanto eu. Ragel se ergueu, firmando-se com dificuldade no balanço da carroças e estendendo a mão para nossos odres vazios:

— Quanto mais líquido beberdes, mais líquido vosso corpo exigirá. De agora em diante, na longa viagem que nos espera, a água se torna a cada dia um líquido mais e mais precioso, que deve ser tratado como tal, fora e dentro dos corpos. É preciso usá-la com parcimônia, porque a realidade do deserto é a falta d'água, não sua presença. O engano foi nosso: não percebemos que éreis diferentes de nós, nesse sentido, por virdes de uma sociedade onde o desperdício é essencial. Durante o tempo em que estiverdes conosco, tereis que aprender a viver de maneira frugal e econômica. Foi vossa lição de hoje: não desperdiceis vossa água, e tratai-a como o tesouro que tendes em mãos para sobreviver mais um dia.

Nossos odres, a um sinal de Ragel, estavam sendo enchidos, pois cada um dos que estavam na carroça, sem nenhum tipo de manifestação, colocava dentro de nossos odres um gole de sua preciosa água, terminando por deixar-nos novamente de posse de líquido suficiente para matar nossa sede. Daruj, ao receber o seu, tentou levá-lo à boca com sofreguidão, mas Ragel o impediu:

— Calma: a água é tua, e vale mais dentro do odre que em teu corpo acostumado a desperdiçá-la. Aprende a esperar sempre mais um pouco pela hora de bebê-la, e tenta dar a teu corpo apenas a quantidade de que ele precisa, não a que ele te pede...

Daruj olhava fixamente nos olhos de Ragel, fazendo muita força para erguer o odre até os lábios, mas Ragel mantinha seu braço a meio caminho da boca sem demonstrar nenhuma força física. Finalmente Daruj desistiu e abaixou o braço, com um suspiro, sentando-se nos bancos laterais da carroça balouçante.

— Observai uns aos outros, e tentai nunca beber antes que um vosso companheiro de viagem o tenha feito: isso vos acostumará a regular vosso consumo de água pela necessidade do grupo, e não pela vossa vontade individual. E quando beberdes, lembrai-vos: apenas um gole, que antes de ser deglutido deve umedecer toda a boca, narinas e garganta por dentro. Mastigai a vossa água como o alimento que ela é.

Era difícil, mas eu percebi que a ausência de movimento ajudava muito a combater a sede. O companheiro de olhos acinzentados, que se chamava Jael, pouco se movia, estando quase adormecido a meu lado, por isso me surpreendi quando se dirigiu a mim, sem me olhar nem uma vez:

— Perdoa-me não ter percebido que eras desacostumado às viagens no deserto. Cada um de nós é responsável por todos os outros, e eu me distraí de ti. De agora em diante prestarei mais atenção a ti e teu amigo. Observai-me e agi como eu ajo: não sou um viajante perfeito, mas a experiência que tenho a mais que vós me ajudará a vos ajudar.

Conversamos em voz baixa durante todo o resto dessa tarde, até o momento em que a caravana parou à sombra de algumas rochas avermelhadas solitariamente erguidas num mar de grossa areia amarela. Enquanto desfazíamos os fardos das tendas sob as quais nos abrigaríamos do vento da noite, Jael nos deu uma explicação básica sobre viver e sobreviver no território em que estávamos. As roupas de lã fina, capazes de manter entre elas e o corpo de quem as usa uma temperatura estável, dependem sempre de não deixarmos esse ambiente interno escapar. Bebendo pouca água e movendo-nos pouco, seríamos capazes de aproveitar muito melhor o que tínhamos. No jantar dessa noite, apenas um pano úmido foi dado a cada um para sua higiene pessoal, devendo ser usado tanto para o corpo quanto para a limpeza dos ape-trechos. Jael também me informou que, quando começássemos a atravessar o planalto onde havia pouquíssimos rios muito incertos, faríamos a travessia durante a noite para poupar nossas forças, e que eu me preparasse, pois a noite no deserto era sempre de frio intenso, inversamente proporcional ao calor do período de sol.

Eu aprendia muitas lições. Já percebia por que essas pessoas estavam sempre calmas e tranqüilas: era esta a sua maneira de sobreviver, economizando gestos, palavras, movimentos. Nada se fazia que fosse desnecessário, e todos eram de compleição esguia e seca, bem diferentes de mim e de Daruj, acostumados às dietas enxundiosas e ricas da Grande Baab'el, e forrados com uma camada de gordura que nos tornava quase luzidios, como era considerado de bom tom na Babilônia. A magreza desses pedreiros que sobreviviam no deserto dava uma sensação de força e poder. De todas as lições que recebera nesse dia, no entanto, a mais importante era também a mais incompreensível: como haviam podido abrir mão da pouca água que tinham, para que eu e Daruj não ficássemos sem nenhuma? Que gente era essa que dividia o que tinha, ainda que com isso acabasse por ter menos do que tinha antes? Nunca havia pensado que isso fosse possível, pois o mundo em que vivera até então era o de feras que comiam outras feras, cada uma defendendo o que era seu, tomando sem hesitar o alheio, se isso fosse possível.

Essa dúvida me fez observá-los cada vez com mais atenção, tentando compreender essa diferença que eu percebia.

Nossa jornada prosseguiu, dia após dia, noite após noite, com um rio estreito sendo encontrado a cada três ou quatro dias, à margem do qual nos dessedentávamos e banhávamos, renovando nosso estoque de água tanto nos odres individuais quanto nos grandes odres coletivos que havia em cada carroça. Os montes no horizonte pareciam afastar-se a cada passo, e só depois de nove dias de marcha incessante é que chegamos a um acampamento maior, onde havia muitas caravanas. Chamava-se Qalib Baq'hur, e seria nossa última parada antes de enfrentar o plano inclinado do Hi'jarah, barreira que nos separava do grande planalto deserto, o mais longo e difícil trecho de nossa viagem. Eram cheios de segredos, os pedreiros, como logo vim a notar: tomavam grande cuidado em minha presença e de Daruj, e alguém sempre fazia um gesto ou dizia alguma coisa em voz baixa quando nos aproximávamos, porque imediatamente trocavam o rumo de suas conversas, falando de coisas inócuas e aparentemente sem sentido. Daruj logo se cansou desse jogo, e pôs-se a experimentar a arte de cavalgar os cavalos negros, tão esguios quanto seus donos, e sensivelmente mais nervosos que estes. Era preciso saber ler em cada pequeno movimento desses cavalos: a sua disposição, o seu impulso, a sua reação. Daruj caiu muito, sendo acompanhado pelas risadas de nossos novos companheiros: mas quando percebeu que ao irritar-se as risadas eram ainda maiores, passou a ser o primeiro a rir quando alguma coisa lhe acontecia, tornando-se com isso mais agradável do que era. Eu, sem nenhuma vontade de enfrentar animais que não conhecia, preferia ficar ouvindo os contos do deserto, na voz de meus companheiros mais jovens, entre eles Jael, que falava das viagens feitas pelos desertos acima e ao norte da Grande Baab'el. Em troca, eu narrava histórias de minha cidade natal, sentindo estar sempre ganhando nessa troca. Tudo o que me contaram nessas noites e dias de viagem sempre igual tornou-se essencial à minha vida. Aprender coisas novas passou a ser uma parte dela, e eu tinha a cada dia mais consciência disso. Tudo o que estava sendo mostrado me seria útil, se não imediatamente, algum dia, com certeza. Certa noite, comentei com Ragel como me sentia feliz por estar aprendendo coisas novas, e ele sorriu de maneira muito estranha, olhando-me por entre as pálpebras semicerradas, dizendo:

— Existem três tipos de pessoas no mundo, Zerub: os que aprendem por sua própria experiência, e por isso são sábios, os que aprendem com a experiência alheia, e por isso são felizes, e os que não aprendem nem com sua própria experiência nem com a alheia, e por isso são irremediavelmente tolos. Qual deles pretendes ser?

A resposta era óbvia, mas nem tanto: se eu sabia que não desejava ser um tolo, estava em dúvida quanto a ser sábio ou feliz. A cada momento, essa dúvida me parecia ter uma resposta diferente, e finalmente entendi que era assim que me devia sentir, perfeitamente equilibrado entre a sabedoria e a felicidade, pois uma podia alimentar a outra sem que nenhuma delas perdesse qualquer valor nessa troca.

 

Três dias depois, alcançamos a primeira aldeia digna desse nome à borda do planalto desértico: Hai'tam, um grupamento de casas e tendas à volta de uma grande cisterna cheia d'água, murada pelas pedras mais antigas que eu já vira, onde tive a minha primeira grande surpresa: ali trocaríamos nossos bois por animais muito estranhos, que se dizia serem perfeitos para a travessia do grande deserto. Eram como cavalos, só que com todas as suas formas grandemente exageradas, e uma enorme corcova a meio das costas, acima da qual se colocava uma sela especialmente construída. Comparando-os com os belos cavalos negros de que dispúnhamos, eram ainda mais feios, parecendo uma piada de mau gosto que tivesse se concretizado em patas e pêlos: pés almofadados, pernas longuíssimas, cada uma com quase três côvados de altura. Tudo neles era excesso e exagero extremo: dos enormes cílios à volta dos olhos aquosos às rodelas córneas em seus joelhos, não falando do cheiro forte e desagradável e da baba espumante que lhes pingava dos beiços inchados. Um rebanho imenso desses animais ocupava um cercado de pedras que lhes ia pela altura das canelas, debatendo-se e espremendo-se, com ruídos altíssimos que saíam das gargantas lamentosas. O proprietário dizia que eram;'mal, mas os jovens da caravana onde eu estava os chamavam de q'mel: seriam o nosso transporte dali em diante. Jael me contou, enquanto Jerubaal negociava com o proprietário dos i'mal, que não fazia muito tempo que esses animais haviam sido domesticados, e que viviam em grandes bandos selvagens no vale central do país de Cabul, havendo mais a oeste outros iguais a eles, só que menores e com uma corcova dupla às costas. A aparência desses animais era impressionantemente feia, mas, como depois vim a perceber, sua natureza de animais do deserto os tornava perfeitamente adequados à vida entre areia, vento e pedras. Precisavam de pouquíssima água e comida, acumulando gordura e água em sua corcova, e eram capazes de carregar pesos inacreditáveis, sem nenhuma reclamação maior que um grunhido ocasional. Toda a carga que vinha sendo transportada nas carroças desde Qornah agora seria dividida em fardos e colocada sobre o lombo desses animais tão esquisitos quanto úteis, sobre os quais nos encarapitaríamos para atravessar o pior de todos os desertos em nossa viagem até Jerusalém. Eu não compreendia por que perder tanto tempo nesse desvio em sentido, se podíamos atravessar muito menos desertos inóspitos, desviando-nos para o mar e costeando até a cidade de Aqaba. Não havia jeito de mudar o itinerário, contudo: os pedreiros a cuja caravana estávamos agregados eram gente de decisões firmes, uma vez tomadas. Eu não via o que poderiam querer na ruína em que Jerusalém se tornara, segundo o que contavam na Grande Baab'el: uma cidade arrasada, sem rei, sem deus, sem povo. Minha curiosidade crescia a cada momento, sendo inclusive mais forte que meu temor natural, quando fui obrigado a galgar as costas de um jâmal, como o seu proprietário o chamava, enquanto me entregava em mãos suas rédeas enfeitadas com borlas de pano colorido. O animal fedia mais que os esgotos do Império, mas depois de certo tempo notei que era dócil e se tomara de amores por mim: aonde quer que eu fosse, podia ver seu rosto exageradamente distorcido voltado em minha direção, e se por acaso eu desaparecesse de seu campo de visão, ele começava a zurzir até que novamente me enxergasse.

Era interessante haver nessa caravana gente de todos os pontos do Império: elamitas, cananeus, samaritanos, fenícios, assírios, medos, persas, sumérios, homens de todos os pontos onde houvesse caído a forte, cruel e pesada mão do Império da Babilônia, e que eu reconhecia do tempo em que freqüentara as tabernas entre muralhas: eram gente brutal, impulsiva, incapaz de pensar antes de agir. Os pedreiros, com seus aventais de couro de carneiro, no entanto, tinham uma característica de tranqüilidade insondável que me deixava ansioso por compreender: Seria apenas imitação dos mais velhos entre eles, como Jerubaal e Ragel, com seu passo tranqüilo e face branda? O que havia de comum entre eles, dando-lhes esse jeito característico que Daruj, exímio imitador de modos e maneiras alheios, já começava a exibir, de maneira um tanto canhestra? Eu não o sabia, e isto se tornou de grande importância, quase tanto quanto a falta que sentia da música de Feq'qesh e do perfume inebriante de Sha'hawaniah. No dia inteiro que passamos descansando em Haftam, esperando que as primeiras estrelas trouxessem o vento refrescante que nos impulsionaria qual navios pelo mar de areia grossa do Wad'jan, conversei com Daruj, triste ao saber que deveria montar um dos estranhos;'mal, equilibrado sobre a carga. Sua paixão pelos cavalos negros que também ficariam em Haftam, à beira da grande cisterna alimentada por uma nascente subterrânea, era violenta: ele não sabia controlar a vontade de continuar junto ao animal que tanto lhe agradara, e pouca atenção me deu quando eu lhe disse:

— Daruj, o que essses pedreiros têm de tão especial, para ser tão diferentes de todos os homens que alguma vez tenhamos conhecido?

— Não vejo nada disso, Zerub: mas seus cavalos, ah, esses sim, são diferentes, as jóias mais perfeitas da Natureza... por que abandoná-los aqui, entre esses cameleiros de má catadura, que sequer sabem o quanto eles valem?

Era impossível insistir no assunto: Daruj só tinha uma idéia fixa na mente. Procurei por Jael, e ao encontrá-lo entre alguns outros, numa conversa intensa e em voz baixa, percebi que minha aproximação interrompera algum assunto, pois Jael estendeu os braços para os lados, tocando as mãos dos que lhe estavam mais próximos, e todos se calaram, volvendo seus olhos em minha direção. Mais uma vez, eu sentia haver ali algum segredo que não me deixavam conhecer, e que me era tirado do alcance. Jael ergueu-se dentre seus amigos e veio em minha direção, perguntando-me, sinceramente interessado:

— Algum problema, Zerub?

— Fora o fato de que, sempre que me aproximo, tu e teus amigos interrompem a conversa?

Jael riu, com um ar de desalento:

— Há certas coisas que só podemos conversar entre nós, e mesmo que tu as ouvisses, pouco compreenderias delas: são segredos do ofício de pedreiros, que nos ajudam a ser cada dia melhores no trabalho a que escolhemos nos dedicar.

— Mas por que não posso conhecê-los? Por que também não posso ser pedreiro?

— Podes, com certeza, Zerub, se tua alma verdadeiramente assim o quiser: é isso que pretendes? Ser pedreiro como nós?

Emudeci. Na verdade, nunca tinha pensado no que queria, exceto nos últimos dias de liberdade na Grande Baab'el, quando descobrira a música e Sha'hawaniah, e as duas me tinham parecido tesouro suficiente para tornar-me infinitamente rico: tendo perdido as duas para sempre, não via como retomar o rumo de minha vida depois da vertiginosa descida pelo Eufrates. Olhando para dentro de mim mesmo, vi que nada sabia de meus próprios desejos e anseios, já que sempre vivera ao sabor dos acontecimentos. Minha vontade pessoal nunca estivera mais clara do que nesse momento em que percebi que ela não existia. Talvez só me restasse aceitar a vida entre pedreiros, mas isso me parecia tão pouco perto dos dois únicos sonhos de prazer que tivera em minha vida, que logo descartei a possibilidade:

— O que eu quero saber, Jael, é o que vos faz ser diferentes de todos os outros homens que conheci em minha vida. Nada vos parece abalar. Não sei se gostaria de viver assim, sem as emoções que a vida nos traz.

Jael riu, abertamente, passando o braço por sobre meus ombros:

— Não exageremos, Zerub: temos alegrias e tristezas como qualquer outro que exista sobre a face da terra. Mas a lida com a pedra bruta que conseguimos modificar pela força de nossos golpes nos ensina algumas de suas características, sendo a mais importante delas a serenidade. A diferença é uma só: a pedra é serena porque não pode ser de outra maneira. Nós, pedreiros, o somos porque decidimos e aprendemos a ser.

Aquilo não me agradava: ser como uma pedra, que nada faz, apenas fica onde a colocam, sem decisão quanto a seu futuro? Não, não me interessava: se ser pedreiro era transformar-me gradativamente na pedra que trabalharia, aquilo não era para mim. Disse-o a Jael, que sacudiu a cabeça, com um ar de riso em seu rosto sério:

— Então, o que queres, Zerub?

Com crescente confiança em sua maneira de ser, contei a esse novo amigo coisas que não sabia estarem dentro de mim: falei longamente de meu pai e de como ele quisera fazer de mim uma cópia de si próprio, sem pensar no que eu desejava. Contei-lhe de meu encontro com Feq'qesh, de como ele percebera em mim um talento que eu nunca soubera ter, e o quanto me magoava ter perdido a oportunidade de trabalhar esse talento para um ofício de inegável beleza. Abrindo o coração, falei-lhe também de Sha'hawaniah, a sacerdotisa que me encantara e que me dera, sem sequer tocar-me, o maior prazer que meu corpo já experimentara. Jael olhava para o poente, ouvindo-me atentamente, e quando finalmente interrompi minhas palavras, disse-me:

— Somos muito jovens ainda, Zerub, para nos sentirmos assim tão perdedores. Quem sabe o que o Criador nos reserva? Pensas que eu também não deixei a casa paterna contra minha vontade, por desejo daquele que me garantiu o sustento enquanto eu era fraco demais para buscá-lo por mim mesmo? Fui vendido como escravo, Zerub: o pai que me gerou fez de mim moeda de troca por algo de que necessitava, nem recordo mais o que era. E se o homem que me comprou não estivesse querendo um túmulo para guardar seus ossos, talvez nunca tivesse ido até Qornah, onde os pedreiros me trocaram pela efígie de um desses querubins que todos desejam.

— Mas os pedreiros te aceitaram, sendo escravo? Escravos podem ser pedreiros?

— Vou contar-te uma coisa, e entenderás como somos: para um pedreiro, nada existe de mais vil e degradante do que escravizar um ser humano. Somos todos filhos do mesmo Criador, não importa a cor de nossa pele, o lugar onde nascemos, a língua que falamos ou o cheiro de nossa boca. Se vivemos de acordo com a lei natural que existe dentro de todos nós, não há como alguém valer mais ou menos que qualquer outro. Cada um luta para encontrar o caminho que deve trilhar, descobrindo em sua natureza aquilo que ela tem de mais próximo do Criador. A verdadeira escravidão não é viver como propriedade de alguém, mas sim não poder ser aquilo que se é.

O que Jael me dizia soava estranhamente verdadeiro, e por isso perguntei:

— Mas todos somos escravos dos deuses, não é verdade?

— Não, Zerub: um deus que pretenda escravizar suas criaturas é com certeza menos divino que elas. Quando esse deus imita suas criaturas naquilo que elas têm de pior, acaba sendo mais desgraçadamente humano do que possamos imaginar. Um deus verdadeiro se faz com Amor e Justiça, e não teme a nenhuma de Suas obras, porque sabe que são uma extensão de Sua própria existência.

Eu nunca tinha ouvido nem pensado nessas coisas, a cabeça confusa com o que Jael me dizia. Ele o percebeu, e ergueu-se do chão, estendendo a mão para que eu também me levantasse:

— Vamos, meu novo amigo: creio ter-te confundido além do que pretendia. Essa conversa de deuses e escravos sempre acaba superando quaisquer limites. Vamos: a caravana precisa de nós, pois quando a primeira estrela surgir devemos estar a caminho.

Eu o segui de perto, a cabeça ainda girando. A idéia de um deus amoroso e justo me era totalmente nova: eu sempre considerara as divindades da Grande Baab'el como partes essenciais de nossa vida cotidiana, e nada além disso. Só pensava nelas nas raras ocasiões em que se fazia necessário aplacá-las ou homenageá-las, e, tão logo lhes tivesse prestado as cortesias necessárias, esquecê-las. Mesmo o deus de meu pai, que eu tanto temera quando criança, e de quem me pusera a escarnecer assim que me sentira suficientemente forte, era apenas uma amolação que cruzava meu caminho uma vez por semana, fazendo com que eu me mantivesse o mais longe possível de casa quando acontecia o Shabbath. Deuses de crueldade infinita, cujas vontades ninguém conhecia mas aos quais tinha que obedecer, todos tão sem rosto quanto meu pai se tornara. Seria esse o fim de todos os deuses, a perda da identidade e a queda no esquecimento absoluto, assim que não restasse quem acreditasse neles? Era a primeira vez que essas perguntas me passavam pela mente, e por trás delas se movia uma sombra que eu não conseguia definir.

A caravana, depois de algum tempo, estava em marcha. Raras nuvens escorriam pelo céu, enquanto os cameleiros que nos acompanhariam açulavam os animais com gritos muito agudos, fazendo que se erguessem sobre os joelhos, com dificuldade, colocando-se depois de pé. As imensas cargas sobre suas costas corcundas davam-lhes a aparência de caracóis gigantescos, carregando uma enorme e multicolorida concha, pois os panos usados no ajaezamento de cada jâmal eram sempre de cores muito vivas e contrastantes, fazendo da caravana uma enorme serpente de todos os tons, coleando pelo deserto amarelo. Cada um de nós se encarapitava nas costas de um desses animais, equilibrando-se precariamente a princípio, mas, depois de algum tempo de marcha, já acostumados com o balanço natural de seu passo bamboleante, ali ficávamos como se sempre tivéssemos vivido dessa maneira. Os tons de violeta e púrpura do crepúsculo iam se aprofundando no céu, e quando a primeira estrela brilhou, bem próximo à lua crescente, um cameleiro gritou seu nome, que foi repetido por todos os outros, cada um o eco do seu antecessor: esse som se espalhou pelo deserto, fazendo uma revoada de morcegos se espantar e sobrevoar nossas cabeças, guin-chando. Fomos entrando pela noite adentro, em direção ao lado mais claro do céu, deixando às nossas costas um azul cada vez mais profundo, até que a escuridão das noites do deserto nos envolveu e os odores do vento quente nos cercaram.

Eu estava lado a lado com Jael e Daruj, cada um o exato oposto do outro: Daruj, emburrado, revoltado pela perda de seu cavalo, resmungando com muxoxos de desprazer a cada movimento mais ou menos brusco de seu jâmal; Jael, de olhos fechados, parecendo dormir, as rédeas cheias de borlas pendendo frouxamente de seus dedos entrelaçados. A tranqüilidade dos pedreiros, tanto os jovens quanto os velhos, era admirável: nenhum temor, nenhum sinal de desagrado, sempre uma postura serena em relação ao que quer que lhes acontecesse. Eu, na inconsciência da juventude, tinha apenas a volúpia da aventura e o anseio pelo desconhecido. Na terceira noite de caminhada, meus quadris estavam em brasa, e uma dor surda me acompanhou durante todo o dia, quando descansávamos à sombra de nossas montarias, enquanto o sol cruel martelava seus raios sobre o terreno que cruzávamos. Minhas costas pareciam estar quebradas, e a dor de cabeça era uma fisgada mais forte a cada movimento inesperado que meu jâmal fizesse. Percebi que devanear era perigoso: pela manhã, o calor do deserto nos amolecia os músculos, e quando partíamos, aproveitando o frio da noite para isso, esses mesmos músculos se recusavam a funcionar de maneira adequada, envoltos em lassidão. Eu sentia sono de dia, mas o calor e a luz não me deixavam dormir, por mais que envolvesse minha cabeça em panos escuros, e de noite, quando caminhávamos na trilha sem bordas nem fim que traçávamos no deserto, eu sentia um sono incontrolável, que me fazia cochilar. A cada pisada menos segura de minha montaria, eu acordava com a brusca martelada da dor que subia dos quadris ao topo de minha cabeça. Minhas nádegas estavam em pandarecos, e agradeci silenciosamente ao deus dos caravaneiros quando encontramos um pequeno poço alimentado por um regatinho mirrado chamado Ulwafji, no qual me sentei, com água até o pescoço, depois que todos haviam bebido, ficando encharcado mas feliz pela primeira vez nos últimos quatro dias. Não havia outro jeito: eu tinha que dormir de dia, para que minha atenção fosse total à noite, e por mais que meu jâmal estivesse afetivamente ligado a mim, chegando mesmo a virar a cabeça para me olhar com seus doces e úmidos olhos escuros, eu tinha que estar permanentemente atento a quaisquer movimentos bruscos que fizesse, para livrar-me dos ataques agudos da dor, minha companheira surda durante toda a viagem. Alguns dos pedreiros por vezes saltavam de seus j'mal, caminhando a seu lado: experimentei isso nessa quarta noite, e efetivamente meu estado físico melhorava muito, liberando do esforço tanto minhas nádegas quanto minhas costas. Mas meus pés sofriam muito, e as panturrilhas de minhas pernas se tornaram duas bolas de dor. Não havia remédio: meu corpo não era o corpo de um caravaneiro, e aquilo que na Grande Baab'el passava por beleza era na verdade a concretização de nossa maneira frouxa de viver, deixando-nos absolutamente despreparados para qualquer esforço físico. Daruj estava mais irritado que eu:

— Cavalos sim, são animais dignos de ser montados. Mas isto, estes j'mal, que parecem coisas feitas com a mistura de pedaços de outras coisas, que utilidade têm?

Ragel estava perto de nós quando Daruj disse isso, e retrucou:

— Quando foi a última vez que viram os j'mal comer ou beber? — Não nos recordávamos, e Ragel sorriu. — Enquanto a corcova de um jâmal não se esvazia, ele não precisa de nada. Eis por que os usamos: no deserto, nunca se sabe quando haverá água ou alimento novamente, e se alguma coisa nos acontecer que nos prive de comida ou bebida, nossas montadas ainda estarão em condições de levar-nos até o próximo poço e acampamento. Sem água e comida, um cavalo dura menos que um homem, e um boi dura menos que um cavalo. O jâmal, ou q'mel, existe exatamente para que os desertos da criação possam ser percorridos, habitados e usufruídos.

Afastando-se de nós, Ragel disse uma frase que ficou marcada em minha mente:

— Nada existe na criação do Universo que não tenha motivo de ser.

Era assim o tempo todo: parecia que as palavras ditas em meio a uma conversa tinham razão de ser. Eu percebia a diferença entre o que eu e Daruj dizíamos e o que diziam os nossos companheiros de caravana: era como se as palavras de Daruj e as minhas não tivessem substância, enquanto as de nossos companheiros de viagem traziam em si um tal poder, que ficavam rodando durante longo tempo dentro de minha cabeça e meus ouvidos antes de se depositar definitivamente em meu coração, sem que eu nada pudesse fazer quanto a isso. O poder das palavras me era desconhecido, mas durante essa viagem pelo nada quase absoluto da paisagem de constante repetição, ao mesmo tempo em que determinadas palavras, frases e idéias iam se enraizando dentro de mim, também crescia em minha alma uma curiosidade enorme sobre as diferenças entre mim e esses pedreiros.

Havia uma hierarquia natural entre eles, e todos agiam de acordo com ela, nunca sendo necessário dar uma ordem em voz alta: um olhar por parte de um mais velho, e os mais jovens imediatamente começavam a fazer o que devia ser feito. Na verdade, quando falo de mais velhos quero dizer mais antigos: Jael, por exemplo, não era muito mais velho que eu, mas tinha sobre um grupo de jovens aprendizes uma certa ascendência, e os outros recorriam a ele quando havia qualquer dúvida sobre quaisquer assuntos. Notei que nem Daruj nem qualquer dos cameleiros mereciam a mudez intencional praticada para manter-me afastado do que a cada dia me interessava mais. Comecei, entre momentos de sono incontrolável e suores desmedidos, a buscar maneiras de estar junto dos aprendizes que cercavam Jael, querendo ouvir o que diziam. Nada adiantava: minha simples aproximação fazia com que o assunto se interrompesse ou se transformasse em alguma coisa que eu pudesse conhecer. Eu queria saber mais, e durante os dias em que nossa vida se resumiu a atravessar o deserto, mantive-me entre o sono incontrolável e o desejo de entender a esses com quem viajava. De poço em poço, de acampamento em acampamento, com o sol inclemente martelando a cabeça e o frio noturno mordendo os ossos, passamos por trinta riachos inconstantes, a maioria dos quais não era mais que um fiapo de umidade na terra sedenta. Encontrávamos água a cada cinco ou seis dias de viagem, dormindo de dia, andando de noite, comendo frugalmente, numa imitação quase perfeita de nossos j'mal, avançando em direção ao Wadi Shir'han, um vale no meio ao árido planalto que estávamos cruzando. Já fazia trinta dias que nossa vida se repetia, e quando os primeiros raios do sol às nossas costas começaram a nos aquecer, senti o cheiro de terra molhada que havia mais de um mês não sentia. A minha frente, brilhando como jóia presa ao manto sujo de um mendigo, estava o Wadi Shir'han, florescendo subitamente entre as 'montanhas, estendendo-se na direção noroeste em verde brilhante, como se estivéssemos de volta à fértil planície que cercava a Grande Baab'el.

Os rios que desciam das montanhas, de ambos os lados dessa enorme depressão, traziam, para depositar-se nela, a terra e a lama de seus pontos de origem, que ali acumuladas formavam uma enorme e profunda extensão fértil, na qual rebanhos sem fim pastavam entre altas plantações de trigo e cevada, movendo-se ao vento. Graças a tanta fartura, ali conviviam tribos incontáveis, sem precisar guerrear por seu sustento, como acontecia em trechos mais pobres do território que havíamos atravessado. Um verdadeiro Éden: a fartura fazia desses afortunados habitantes do Wadi Shir'han, tão longo que levamos oito dias para atravessá-lo, os depositários de uma bênção divina. Os habitantes do extenso vale cruzavam seu eixo sem cessar, de sudeste para noroeste e vice-versa, sempre em busca de uma pastagem diferente para seus rebanhos. Quando saímos desse vale pelo Qa'el Humari, ainda sentindo no rosto e na boca o frescor da água que era a verdadeira riqueza daquele lugar, o fizemos com o coração apertado, porque o céu à nossa frente era plúmbeo e pesado, como o de um lugar de destruição.

Nuvens sempre me faziam experimentar o medo sem motivo nem razão. A escuridão que crescia às nossas costas era um monstro que se alimentava de luz, comia o brilho do sol até que dele nada restasse, e tal escuridão tomava o mundo. Quem me garantia que na manhã seguinte o sol voltaria a nascer? Posso confessar que até hoje não tenho certeza disso, e a chegada da noite, ou um súbito escurecer do céu devido ao acúmulo de nuvens de tempestade, ainda me parece um prenuncio da noite eterna, que fatalmente ocorrerá no dia em que o sol não nascer novamente. Eu não era o único que sentia isso: a caravana ficava a cada instante mais silenciosa, menos alegre, tanto que, no terceiro dia de viagem em direção às montanhas que estavam à frente, Jerubaal decidiu-se por voltarmos a viajar de dia, pois sem um mínimo de sol as noites estavam cada vez mais frias. Ao voltarmos a acampar de noite, as fogueiras tiveram seu tamanho dobrado, sendo usado qualquer combustível que caísse em nossas mãos, porque um vento incansável nos atravessava as roupas, cortava a carne e perfurava os ossos enquanto tentávamos descansar. Minha cabeça pesava como se eu tivesse bebido: vários de meus companheiros, entre eles Daruj e Jael, reclamavam desse peso insuportável, e até os j'mal, desacostumados com essa temperatura, resmungavam sem cessar. Aldeia após aldeia se sucedia em nosso caminho, e cada uma delas aumentava a sensação de que nos encaminhávamos para um nada absoluto. A extrema pobreza da região, os rostos assustados e famintos das raras crianças que nos seguiam, de mão estendida, os cães descarnados que latiam sem força à nossa passagem, tudo nos ensimesmava mais e mais, como se estivéssemos indo para um lugar que não nos desejava. A própria aldeia de Rabah'amon, de tamanho considerável perto das que havíamos encontrado em nossa jornada, era foco de enorme tristeza, e ao atravessá-la nosso silêncio aumentou ainda mais. Cruzamos um pântano cheio de miasmas à beira do mar de Arabá, e nossos j'mal, esgotados além de seu natural, insistiam em beber a água do rio que descia das montanhas do norte: mas o cheiro de matéria em decomposição era forte demais, e seguimos caminho. No alto dessas montanhas que atravessamos, ravina após ravina, sempre na direção oeste, acampamos e aguardamos o nascer do sol para, sessenta e dois dias após nossa partida das margens do Eufrates, entrar em Jerusalém, que eu não imaginava o que fosse, mas pela qual já sentia uma ojeriza inexplicável.

Mirradas árvores de acácia, erguendo seus galhos esquálidos para o céu, suas folhas miúdas cobertas por um pó que em tudo se depositava, ladeavam o trecho final da jornada: Jerusalém, oculta de nossos olhos pelos montes que sempre a haviam protegido de seus inimigos, estava em algum lugar mais à frente. O calor do meio-dia pesava como feito de pedra, e quando paramos à beira de um bosque de oliveiras secas, surgiu à nossa frente, amarela e baça como um deserto de pedras com formas estranhas, a ruína que antes fora Jerusalém. O céu e a terra estavam unidos em um mesmo horizonte, porque a luz do sol, filtrada pela massa de nuvens pesadas, tingia o solo e as construções amarelas, e refletida neles tingia com a mesma cor baça as nuvens, tornando a cidade um lugar antes de tudo muito feio. Os restos de uma grande muralha, esboroada aqui e ali pela força dos homens e da natureza, marcava tristemente os limites da grande cidade de Salomão e seus descendentes.

Era como se a luz do Universo não brilhasse ali, e tudo estivesse permanentemente em sombra. Poucas pessoas, envoltas em trapos e coladas às paredes, arrastando-se pelas ruas, marcadas por ruínas mal sustentadas. A caravana atravessou estes espaços, sabendo que por trás das paredes semiderrubadas se escondiam fome, miséria e medo. Eu, vindo do luxo e da fartura da Grande Baab'el, não compreendia como podia haver vida em um lugar desses. Daruj se aproximou de mim, em seu animal balouçante, dizendo, em voz baixa:

— Por Marduq e Baall Onde viemos parar, meu irmãozinho? Esses pedreiros são loucos: aqui não há o que comer nem o que beber, e decerto acabaremos por pegar alguma doença, respirando esse ar viciado.

— Aquieta-te, Daruj: eles devem saber o que fazem. Somos convidados em sua caravana e temos que aceitar seu modo de viajar. Lembra-te que dependemos deles para ir ao Egito.

— Só mesmo a idéia do Egito ainda me anima, Zerub: mas se soubesse que teria que entrar em lugar tão asqueroso, juro que teria vindo a pé, atravessando o mundo em diagonal. A estas horas já estaríamos no exército do Faraó, dando mostras de nossa capacidade de combate.

Em vez disso, estamos atravessando essa sujeira milenar que não merece o nome de cidade!

Calei Daruj com um gesto, porque Ragel se aproximava de nós, olhos apertados, puxando seu jâmal pela rédea:

_ Precisamos de todos lá na frente, rapazes. Temos que erguer um acampamento sólido, pois ficaremos por aqui alguns dias, fazendo o que viemos fazer.

O suspiro de Daruj foi imenso, encobrindo o meu próprio: nossa vontade era sair dali imediatamente, mas isso não seria possível. Só tínhamos chegado até ali graças à caravana de pedreiros, como se fôssemos parte dela. Eu tinha outros motivos para ficar: sentia que alguma coisa especial estava por acontecer. Os cochichos e olhares de soslaio aumentaram muito quando nos aproximamos dessa gigantesca ruína, e, depois que entramos em Jerusalém o nível de excitação da caravana se tornou imenso. Uma estranha energia agitava até mesmo os pedreiros mais velhos, de fleuma quase infinita, e os jovens pedreiros, com seus aventais brancos, andavam celeremente de um lado para outro, cochichando nos ouvidos uns dos outros, arrastando fardos e erguendo tendas como se isso fosse a grande obra de sua vida. Daruj, com nada mais que o Egito em sua mente, nada percebia: mas eu, atento a tudo que significasse a revelação do segredo que pressentia desde o início da viagem, disfarcei meu interesse, adotando o ar de enfado que se usava na Grande Baab'el, onde nada era novidade ou maravilha. As horas passaram: a temperatura era estranha, o calor abafado nos fazia suar, e alguma coisa fria como gelo das montanhas percorria nossa pele, em ondas, a intervalos irregulares, como febre que estivesse se esforçando para entrar em nossos corpos e ali fazer sua morada. Eu conseguia perceber cochichos sobre mim e Daruj, os únicos estranhos ao grupo de pedreiros, porque os caravaneiros que até ali nos tinham guiado nos deixaram antes mesmo de entrarmos em Jerusalém, como se estivessem impedidos de pisar aquele solo. Talvez por isso eu não tenha estranhado quando Jael, aproximando-se de mim e de Daruj, nos disse, sem nenhuma naturalidade:

— É hora da refeição, amigos. Hoje, por termos finalizado um importante trecho de nossa viagem, serviremos vinho da Fenícia.

— Até que enfim. pensei que estaríamos para sempre impedidos de beber! — disse Daruj, que não perdia uma oportunidade sequer de criticar o modo de vida dos pedreiros. — De tudo o que Baal pôs no mundo, o vinho ainda é a maior das bênçãos. Eu sempre estranhei que os pedreiros não o bebessem.

— E não beberemos, Daruj. —Jael mantinha os olhos baixos, incapaz de fitar-nos diretamente. — Todos fizemos, antes de deixar Qornah, a promessa solene de só pôr vinho em nossa boca quando chegássemos ao fim de nossa jornada, não é?

Os jovens pedreiros que o acompanhavam assentiram, com rapidez demais, como se aquilo fosse ensaiado, e Jael continuou:

— Mas vós não fizestes nenhuma promessa; portanto, estais liberados para provar o delicioso vinho fenício que acompanhará nossa refeição de hoje, na verdade um grande banquete, para comemorar nossa chegada a Jerusalém. Aproveitai bem, pois, assim que deixarmos esta cidade, nossa viagem será ainda mais dura do que foi até aqui. Temos muito a fazer, selecionando pedras para nossos trabalhos, e a partir de amanhã estaremos ocupados: mas hoje estamos livres de obrigações e tarefas. Vamos ao banquete, companheiros?

Daruj correu em direção às fogueiras que começavam a brilhar enquanto a claridade do sol diminuía, deixando uma faixa de cinza mais claro a oeste de onde estávamos. Alguma coisa soava mal, e decidi nada dizer, nem mesmo a Daruj, porque me interessava descobrir que segredo era aquele que só os pedreiros podiam conhecer. Pressentia que tentavam nos alijar de seu convívio, e o fato de sermos os únicos com permissão expressa para beber vinho era muito estranho. Assim, fiz uso da dissimulação aprendida em anos de convivência com cada ladrão e assassino do cais e das tabernas da Grande Baab'el: era sempre preciso não oferecer nenhum perigo, tornando-nos quase invisíveis para realizar nossas aventuras, de forma que ninguém percebesse que os adolescentes alegres e inocentes eram exatamente os meliantes que iriam aliviá-los de suas riquezas mais amadas. Minha face tomou a aparência vazia dessas horas, e eu me mostrei aparentemente absorto a tudo que estivesse acontecendo.

Enquanto sentávamos à roda da grande fogueira, e pratos de cobre marchetado eram distribuídos pelos que cuidavam do banquete, senti o olhar de Jerubaal sobre mim, com Ragel a seu lado, também mirando em minha direção seus olhinhos apertados. Por um instante, pensei se não estariam percebendo minha dissimulação, por isso ergui a taça em sua direção e virei-a de uma vez, voltando a olhá-los com um sorriso idiota no rosto, limpando a boca. O que não sabiam é que eu já havia esvaziado a taça na areia, fazendo isso de cada vez que apanhava comida no prato, que os cozinheiros mantinham sempre cheio, assim como à taça que parecia nunca se esvaziar. Antes de sentar-me-à roda, apanhei um pequeno odre de azeite e, sem que ninguém percebesse, tomei três ou quatro grandes talagadas dele: sabia por experiência das tabernas que um estômago forrado de azeite cru se torna incapaz de absorver o vinho, e contava com isso, caso algum dos pedreiros decidisse se certificar de que eu o estava bebendo. Não foi necessário: eu exagerava a minha alegria, imitando Daruj, e quando percebi que meu amigo estava cabeceando, virei mais uma vez a taça vazia, estalando os lábios, deixando que o vinho fortemente perfumado com alguma coisa que me tonteava escorresse pelos cantos da boca e empapasse a frente de minha túnica, dando a quem me visse a certeza de que eu já estava bêbado além de qualquer possibilidade de compreensão da realidade.

Recostei-me como se estivesse dormindo e, ocultando minha face com o braço, deixei um espaço para observar o que aconteceria. Vi quando Ragel chamou a atenção de Jerubaal para minha quietude, e logo depois ouvi Daruj ressonando ao meu lado. O silêncio na roda de pedreiros era sepulcral: pareciam esperar que caíssemos em sono profundo para finalmente realizar o que quer que os fizera entorpecer-nos dessa maneira. Pus-me a ressonar compassadamente, e algum tempo depois os roncos guturais de Daruj se somaram aos meus: quando isso aconteceu, a roda de pedreiros ganhou vida inesperada. Todos se ergueram, em atenção profunda, pondo-se em fila dupla, os mais jovens à frente e os mais velhos atrás, em ordem, aguardando alguma coisa que eu não sabia o que era. O tempo escorria lentamente, como se não estivesse passando, e eu estava quase mudando de posição, quando um assovio intenso e longo percorreu os ares, gerando um murmúrio de antecipação em todos, inclusive eu, que movi a cabeça lentamente, para olhar a entrada do acampamento.

Um grupo de homens portando archotes se aproximava a pé, em fila dupla, parando à entrada do acampamento, dando um passo para o lado e abrindo caminho para três homens que se aproximaram, dois deles à frente e um dois passos atrás. Os mantos não deixavam ver seus rostos: Jerubaal, acompanhado de Ragel e de outro pedreiro mais velho, dirigiu-se em passo cadenciado pelo meio dos pedreiros de nossa caravana, que, obedecendo a alguma ordem silenciosa, haviam repentinamente se afastado para o lado, abrindo uma larga avenida pela qual os dois grupos de três se aproximavam um do outro. Era quase uma dança ritual, e muitos anos se passaram até que eu pudesse perceber a antigüidade dos gestos que ali se fazia, e sua profundidade simbólica. Quando os dois grupos chegaram um à frente do outro, Jerubaal se adiantou e, tirando da bolsa de seu avental um malhete de madeira, estendeu-o com as duas mãos ao homem que vinha ao centro. Este, afastando o capuz, mostrou a cabeça coberta por uma basta cabeleira totalmente branca, que se unia à barba longa, num contraste flagrante com sua tez azei-tonada, crestada de rugas. Era uma figura impressionante, de dignidade tão grande, que só muito mais tarde percebi que as roupas que vestia eram trapos, ainda que limpos, cuidadosamente cerzidos para dar-lhe a aparência que tinha, imponente e cheia de autoridade. Jerubaal era um homem de grande poder pessoal, mas perto desse homem parecia um menino. Os dois se aproximaram e trocaram um longo abraço, coroado por um beijo emocionado que cada um deu na face esquerda do outro. Jerubaal entregou-lhe o malhete que havia tirado da bolsa, e o homem o aceitou, dando um passo à frente. Atrás de si, as duas filas dos homens que tinham vindo com ele foram se fechando, e os dois caminharam lado a lado até o fim da fila de pedreiros do acampamento, que viraram quando os dois já haviam passado, fixando-os em silêncio, com as faces alegres e cheias de uma emoção que eu nunca vira e que não conseguia reconhecer. Haviam-me esquecido, por isso arrisquei erguer-me sobre um cotovelo, mantendo a posição de adormecido, não fosse algum dos pedreiros olhar em minha direção e ver-me acordado. O interesse em manter-me adormecido fora tão grande, que eu não duvidava que fossem capazes de matar-me, caso percebessem que eu via tudo que faziam e diziam.

Ao chegarem juntos à porta da tenda de Jerubaal, o chefe dos visitantes virou-se para ele e estendeu-lhe o malhete, dizendo, em voz grave:

— Está em boas mãos.

Jerubaal baixou a cabeça, profundamente comovido com o gesto. Colocando-se ao lado do visitante, disse, com voz trêmula:

— Irmãos pedreiros, estamos seguros?

Um dos homens que o ladeavam olhou cuidadosamente a fileira de homens que estavam atrás de si, que imediatamente fizeram um estranho gesto com suas mãos e pés. O pedreiro que tinha sido questionado virou-se para Ragel e disse:

— De meu lado não há ninguém que não seja pedreiro.

Ragel, com seus olhinhos quase fechados, olhou para os homens de seu lado, e todos fizeram também o gesto que eu não consegui entender, e disse, em voz bem alta:

— De ambos os lados não há ninguém que não seja pedreiro, irmão mestre.

Jerubaal ergueu os braços em ambas as direções e todos se puseram com as mãos atrás das costas, olhando-o em silêncio:

— Irmãos, estes são vossos irmãos pedreiros de Jerusalém: estendei-lhes vossa amizade e fraternidade como eu o fiz com meu irmão Ananias.

Os pedreiros do acampamento viraram para os que haviam vindo com Ananias e da mesma forma os abraçaram e beijaram na face esquerda. Seu chefe, com voz muito grave, perguntou a Jerubaal:

— Posso dirigir-me aos homens sob vosso comando, irmão?

— É vosso privilégio, irmão. Fazei uso dele.

Ananias usava a língua do Império, mas eu sentia em sua maneira de expressá-la um estranho eco das coisas que ouvira em casa de meu pai, velhas histórias contadas semana após semana em uma língua que eu me tornara incapaz de entender e de falar. Fora desse lugar que minha família havia vindo, meus avós aqui haviam nascido, e uma estranha familiaridade me cobriu quando ouvi a voz desse homem:

— Vós não imaginais, irmãos pedreiros, o quanto vossa presença aqui nos alegra. Há momentos da vida em que quase chegamos a duvidar que existam outros como nós. Mais do que as coisas de que necessitamos e que nos trouxestes, é a vossa fraternidade que nos faz grande falta, e que hoje nos enche o coração de justa alegria. Só podemos devolver-vos o que nos trazeis com aquilo de que somos guardiões, por nossa própria escolha. Segui-nos: o lugar para onde vamos não fica muito longe daqui, e lá podereis conhecer e entender de onde vem a tradição da qual todos fazemos parte, e que nos une, não importa onde estivermos.

Dito isso, Ananias tomou o braço de Jerubaal e atravessou de novo as fileiras duplas, que foram se desmontando e remontando atrás deles, seguindo para a saída do acampamento, ali deixando alguns poucos irmãos que se dispuseram a fazer a sentinela de nossos haveres. Os archotes foram se afastando na escuridão, e seu clarão continuou sendo visto, mesmo muito tempo depois que já se haviam ido do acampamento.

Os guardas eram membros da caravana, e com eles haviam ficado alguns outros, habitantes dessa cidade destruída: com alegria, começaram a conversar à beira do fogo, avivando as brasas e partilhando a comida que ainda restava nos grandes pratos à beira do lume. Eu, deitado perto de Daruj, à beira de uma das grandes tendas, comecei lentamente a puxar-lhe a borda, formando com seus panos um monte que ocupasse o lugar onde eu estava, pois pretendia seguir os pedreiros que haviam saído dali para conhecer aquilo que Ananias mencionara. A escuridão se adensava quanto mais longe da fogueira estávamos, sendo suficiente para que eu, movendo-me com enervante lentidão, conseguisse finalmente entrar na tenda, deixando de fora meu amigo e um monte de areia coberto por meu manto. Várias vezes os guardas olharam em nossa direção, mas os roncos de Daruj os convenceram de que estávamos ambos imersos em sono profundo: Quando algum tempo passou sem que olhassem em nossa direção, senti-me seguro o suficiente para esgueirar-me pelo fundo da tenda, afastando-me pela terra empedrada do solo até uma boa distância, fazendo uma grande curva pelo lado do acampamento até estar longe o suficiente para me pôr de pé.

Estava encostado a algumas paredes de pedra, na borda das quais havia restos de madeira queimada e pedaços de metal incrustados na pedra, como se aquilo tivesse sido um imenso portão, destruído pelo fogo. Olhando para o alto, tentando encontrar um ponto de referência para poder voltar quando precisasse, divisei os restos de uma torre circular. Avancei um pouco mais, tateando a parede com a mão direita, e de repente o muro terminou no ângulo de uma parede que margeava um caminho ascendente, no fim do qual eu podia ver o brilho dos archotes do grupo de pedreiros que devia seguir.

Estava indo em busca do que queria saber, movido exclusivamente pela curiosidade que me despertara, como não fizera meu camarada Daruj, bêbado e adormecido. Tinha certeza de que finalmente saberia o que os pedreiros me haviam ocultado todo o tempo: mas nunca, nem em meus sonhos mais alucinados, poderia imaginar o que estava por experimentar, quanto mais as revelações que me seriam feitas sobre o mundo em que vivíamos, sobre mim mesmo e sobre meu inacreditável futuro.

 

É verdade que ninguém pode fugir de seu futuro e que tudo está escrito, também é verdade que cada um de nós é muitos, cada um com um a história a ser vivida, e em certos momentos deixamos de ser quem éramos para nos transformarmos em outro, daí em diante vivendo a vida deste outro como se jamais tivéssemos feito coisa diferente. A existência do homem no Universo é assim, um livro feito de todas as histórias, em número tão infinito quanto as estrelas do céu. Quando uma delas chega a um ponto crucial, sempre existe a possibilidade de mudar-se de história, folheando esse livro e seguindo daí em diante do ponto onde a vida nos tiver feito abrir suas páginas. Nada é inesperado ou acontece sem motivo, contudo: não nasce uma tamareira em frente à porta de uma casa sem que, um dia, tenha ali sido plantado o caroço de uma tâmara.

Caminhei com cuidado atrás da procissão de pedreiros, e depois que atravessaram o muro de pedras gigantescas, cruzando um portal encimado por uma enorme trave de pedra onde o tempo quase apagara a imagem de dois peixes, ainda mantive distância segura. A reação deles à minha presença decerto não seria gentil: eu pretendia descobrir o mais que pudesse, retornando ao acampamento antes que eles o fizessem.

Estávamos no alto de uma elevação coberta por pedras finamente trabalhadas, sem qualquer obstáculo ao caminhar a não ser os restos de muros de outras construções, de que esse grande terreno um dia fora coberto. Era a minha sorte: com a pouca luz de que dispunha, qualquer tropeço teria sido fatal. O pior era a sensação de estar sendo espreitado por centenas de olhos ocultos na escuridão, e tomei ainda mais cuidado, tateando com a ponta da sandália à minha frente, enquanto mantinha os olhos fixos nos archotes à distância. A procissão de pedreiros fazia um caminho estranho, sempre desviando em ângulo reto à direita, em espiral. Subitamente pararam, depois de galgar duas grandes plataformas. Ocultei-me no espaço entre a primeira e a segunda, observando o caminho desses homens misteriosos. A luz trêmula das chamas, vi que atravessavam restos de paredes grossas, feitas de blocos de pedra aparelhados, que haviam sido derrubados de cima de outros, como restos de um brinquedo gigantesco destruído por um deus louco. Havia marcas de fogo em todas as pedras, e uma grande mancha negra no chão, como se ali houvesse sido acesa uma grande fogueira. No centro desse piso, algumas braças antes de um largo degrau solitário, havia um enorme buraco quadrado, ao lado do qual jazia uma grande pedra de espessura exagerada, que certamente precisara dos esforços combinados de mais de vinte homens para ser retirada da boca da abertura, pela qual brilhava a luz de outros archotes. Os pedreiros, em ordem, começaram a descer para o subterrâneo por meio de duas escadas de mão, apoiando mãos e pés nas traves horizontais que formavam seus degraus. De onde eu estava, não fazia idéia da profundidade desse subterrâneo, e quando todos os homens finalmente o adentraram, aproximei-me vagarosamente, cuidando que não houvesse algum guarda que me pudesse descobrir. Arrastei-me pelo solo, chegando finalmente à boca dessa cova, e me debrucei sobre ela.

Era uma sala de altura bem grande, o piso formado por quadrados de pedra brancos e negros, à volta de um bloco de pedra que era apenas a ponta visível de um enorme rochedo enterrado no solo. Em volta dele se aglutinavam os pedreiros, em imobilidade total, as mãos caídas ao longo do corpo, olhando com toda a atenção para Ananias e Jerubaal, colocados lado a lado na face leste da sala: desta vez, era Ananias quem segurava com a mão direita o malhete de madeira sobre o peito. Os dois grupos no espaço entre as paredes e a grande pedra eram formados por uma fila de pedreiros mais velhos, atrás dos quais se acumulavam, em ordem, os pedreiros mais jovens. No centro da fila dos mais velhos, estavam, dividindo-a, Ragel à minha esquerda, e à minha direita o homem que chegara com Ananias. Cada um dos dois levava também um malhete, cruzado sobre o peito, e isso me fez entender que essa ferramenta dos pedreiros era um símbolo de autoridade. Firmei minha atenção quando Ananias pigarreou, limpando a garganta, e disse aos que ali estavam:

— Esta é a vida dos pedreiros: ver, ouvir, calar; observar, aprender, fazer; ensinar o que é certo, corrigir o que é errado, alegrar-se por saber a diferença entre um e outro.

Essas estranhas palavras me encheram de sentimentos tão controversos, que eu nem tinha palavras para descrevê-los. Ainda era criança, mesmo me acreditando adulto, e nesse momento me senti fraco e atemorizado, lidando com coisas que não conhecia e de cujo poder não fazia a menor idéia. Já não me podia mexer: tinha que ficar imóvel, tentando ser o mais invisível que pudesse. Se me fosse dado voltar atrás, juro que beberia o vinho preparado e acordaria no dia seguinte sem nada saber nem desejar. Impossível: o livro da vida, ainda que com infinitas histórias, só pode ser folheado para a frente. Nunca se volta atrás, embora sempre seja possível corrigir os erros da história anterior, de uma forma ou de outra. Eu jamais havia pensado nisso e sentia uma força desconhecida dentro de mim: dividido entre o temor do novo e a curiosidade sobre o que o futuro me reservava, abandonei quaisquer dúvidas. Se ali chegara, ali devia permanecer até que descobrisse o que ainda não conhecia.

Os pedreiros se postaram de frente para Ananias e Jerubaal, com a mesma estranha posição de mãos e pés que eu havia visto no acampamento. Jerubaal também estava na mesma posição, de olhos fechados, perfeitamente concentrado, enquanto Ananias, com sua voz grave de impressionante volume, dizia:

— Estão por terminar as dez semanas de anos da profecia, irmãos pedreiros: o cativeiro dos filhos de Israel está por findar, e a marca desse momento será a reconstrução do Templo que um dia se ergueu em toda a sua glória no terreno sagrado acima de nós. A ignorância de alguns e a brutalidade de outros foram as causas de sua destruição, e ainda há filhos de Israel no cativeiro. Temos trabalhado por sua libertação, mas nem sempre nossos esforços são reconhecidos. Nossa luta contra o erro não tem fim: por isso, devemos desconfiar de tudo e de todos, tanto dos

inimigos quanto dos próprios irmãos, até que a profecia

Seja cumprida. Enquanto os devotos de Yahweh sofrem no cativeiro, mesmo entre eles existem os que não compreendem nossos propósitos, e tentam impedir que cumpramos nossa tarefa.

Eu tremia de medo: se me encontrassem, certamente estaria perdido. No entanto, ainda maior que o medo era a fascinação por esses homens que nunca antes vira, e cujos hábitos me encantavam.

— O Templo há de ser reerguido em toda a sua glória, pois só assim Yahweh retornará à sua morada, bendizendo a terra de Israel, que com Sua ausência transformou-se em terreno morto. Nós, pedreiros, que um dia erguemos o antigo Templo, hoje somos artífices de sua reconstrução. De nós depende o cumprimento da profecia. Preparemo-nos!

A voz de Ananias ecoava nas paredes do subterrâneo, e eu admirei a tenacidade desses que viviam em miséria absoluta, aguardando o instante em que uma profecia se cumprisse. Eram como meu pai: viviam em um mundo de fantasia, sugando os ossos do passado sem perceber que já eram ossos secos, mortos, sem tutano. A capacidade de iludir-se é infinita, porque nenhum homem é capaz de viver sem algum tipo de ilusão, mas naquele momento, olhando por sobre a borda de um buraco para o grupo de indigentes com delírios de grandeza, fiquei desapontado: então era esse o segredo dos pedreiros? Estavam todos crendo ser mais do que realmente eram, sem conseguir enxergar a dura realidade em que realizavam seus rituais sem sentido?

Ananias ergueu seus braços para o alto, os dedos unidos de forma desusada, e, fechando os olhos, proferiu a oração que eu ouvira diversas vezes, mas nunca na língua franca do Império. Meu pai sempre a dizia na língua antiga que meu coração renegara:

— Deus, a alma que me deste pura, Tu mesmo a criaste, Tu mesmo a formaste, Tu a sopraste em mim, Tu a conservas em mim e Tu um dia a tomaras e a mim a restituirás na vida futura. Em todo o tempo que essa alma estiver em mim, confessarei que és meu Deus e Deus de meus pais, que és o Supervisor de todas as obras e o Senhor de todas as almas. Bendito sejas Tu, Eterno, que restituis as almas dos mortos.

No exato momento em que a palavra "mortos" foi proferida, uma mão caiu sobre meu ombro, erguendo-me com violência de onde estava, enquanto meus olhos eram tampados. Ouvi as vozes nervosas dos que estavam dentro do subterrâneo: um pano negro me cobriu a cara e fui virado de cabeça para baixo, pendurado pelos pés e enfiado pelo buraco, enquanto o alarido das vozes crescia assustadoramente. Dezenas de mãos me apanharam, e fui jogado de um lado para o outro, até ser finalmente atirado ao chão. O pó de pedra me entrava pela boca, fazendo-me arquejar e tossir. O barulho crescia até o limite do insuportável, mas, antes que eu me pusesse a gritar, fez-se um silêncio súbito, durante o qual eu só ouvia as batidas do coração em meus ouvidos. Haviam dito que deviam desconfiar de todos, e eu invadira seu segredo: não sabiam que eu seria capaz de qualquer coisa para que não me matassem, aceitando qualquer condição que me impusessem. Eu sentia a ira dos que me cercavam: lentamente me soergui e ajoelhei, mas, antes que conseguisse tirar o pano de cima do rosto, uma mão forte me rojou ao solo, e lá fiquei eu, ajoelhado, com a cabeça entre as pernas, novamente respirando o pó de pedra.

A voz portentosa de Ananias soou acima de minha cabeça:

— Quem é esse temerário que se arrogou o direito de forçar sua presença neste Templo? Como chegou até aqui? Quem o guiou até nós?

Ninguém respondeu. O medo me transiu

o coração, e as lágrimas começaram a correr de meus olhos, enquanto soluços incontroláveis saíam de minha boca. Uma voz às minhas costas gritou:

— Cala-te, invasor!

— Suspende tua espada! — Era o que eu temia: alguém às minhas costas estava pronto para desfechar-me o golpe fatal, separando-me a cabeça do corpo. Ananias, após essa última ordem, caminhou até mim. Ouvi o ruído de seus passos e percebi quando parou à minha frente, pondo a mão em meu ombro e dizendo-me, em voz firme:

— Ergue-te.

Confesso que hesitei: mas a ordem que ele me dava era irrecusável. Levantei-me sobre um joelho e depois, sem nada enxergar, pus-me de pé. Minha vontade era rojar-me ao solo, pedindo perdão, assegurando a todos que nenhum mal pretendia. O medo era maior que essa vontade, e permaneci de pé, sentindo o peso de inumeráveis olhos sobre mim. A minha frente estava Ananias, que falou:

— Que desejas aqui, profano? Desde quando estás observando nossos mistérios?

Minha voz saiu trêmula, fina, aterrorizada. Eu era um fantasma de mim mesmo:

— Perdão, mas não pretendia nenhum mal! Só fiquei curioso com vossos segredos, e vos segui até este lugar.

— Mas o que viste???

— Eu vos vi reunidos em três lados desta sala, nada mais.

— Não mintas para nós! O que mais viste? O que ouviste?

Não havia maneira de escapar, por isso contei-lhes à minha maneira o que tinha visto, sua postura, gestos, as frases que tinha ouvido. Ao terminar, o silêncio era gelado. Estava perdido: só me restava ouvir a sentença de minha execução nesse lugar inóspito. Imagens de minha existência passavam por minha cabeça, a Grande Baar/el, meu pai, Bel'Cherub e Na'zzur rindo de minha desgraça, meus amigos, os braceletes azuis que nunca fôramos capazes de roubar, Sha'hawaniah e sua inesquecível dança, que tanto prazer me dera. A mesma mão forte me empurrou para o chão, curvando-me outra vez, e aguardei o assovio da lâmina atravessando o ar antes de cortar meu pescoço. Soltei um grito e tremi, pela última vez em minha vida ouvindo a voz de Ananias:

— Ele já conhece mais sobre nós do que poderíamos aceitar. Nossa tradição é clara: quando um profano invade nossos templos e toma conhecimento de nossos segredos, só existe uma alternativa.

Um silêncio, terrível, insuportável, e Ananias proferiu uma inesperada sentença de vida:

— Preparemos o invasor para ser iniciado. Ele será um de nós.

Não compreendi nada. Com que então eu invadia uma reunião secreta, vulnerando seus mistérios, e o único castigo que me dariam era fazer-me um deles? Inaceitável! Não era assim que o mundo funcionava! Traições são sempre punidas com a morte ou a escravidão. Meu lugar entre eles seria certamente o mais ínfimo de todos, com tarefas vergonhosas e sem importância a executar, para que pagasse eternamente por meu crime, ansiando pela morte que me libertaria. Eu temia a morte acima de tudo, e, mesmo com a possibilidade de um futuro de sofrimentos e de dor, me regozijei por estar salvo. Avancei minhas mãos e toquei os pés de Ananias, em um agradecimento mudo, mas ele rapidamente tirou os pés de meu alcance e gritou:

— É preciso, no entanto, segundo nossas tradições, que ele seja recomendado por três dentre nós. Alguém o conhece, alguém sabe quem seja, alguém tem algo a dizer que o torne merecedor de ser um irmão pedreiro?

Minha esperança se desvaneceu: quem dentre essas pessoas que não me conheciam teria algo a dizer sobre mim? Não haveria ninguém: ofendidos por minha invasão de seu reduto, nada de bom diriam sobre minha pessoa. Nunca conhecera ninguém capaz de dizer uma palavra boa a favor de quem quer que fosse: cada um tratava de seus próprios negócios, sendo esta a lei da Grande Baab'el, mesmo entre amigos. Ninguém se arriscaria por mim, desconhecido, invasor, mendigo, a quem fora dado teto, trabalho, alimento e água, que pagara com a moeda torpe da traição. Meu coração novamente se encheu de trevas, esperando pelo pior.

O pior não veio: em vez disso, ouvi uma voz conhecida, dizendo:

— Eu tenho.

Uma outra voz disse:

— Mestre, um dos pedreiros de minha região se dispõe a falar pelo candidato.

Ananias, suavemente, respondeu:

— Podeis conceder-lhe esse direito, irmão.

E com um ruído de pancada na pedra, a segunda voz disse:

— Podeis falar, irmão Jael.

Jael, o jovem pedreiro com quem eu tinha feito uma amizade inesperada, dispunha-se a falar em meu favor. Como de costume, eu me enganara, e atordoado ouvi suas palavras de empenho por mim:

— Posso falar por ele, mestre. Temos convivido diariamente pelo tempo de nossa viagem até aqui, e ele sempre demonstrou interesse em nossa maneira de viver. Apesar de poder fazer como tantos outros, que insistem em saber nossos segredos e não param de nos incomodar com perguntas sem sentido, ele nunca o fez.

— Fez pior, hoje. — Uma voz de escárnio lançou esta frase no ar, e a assembléia assentiu, com murmúrios de concordância. Jael, no entanto, aumentou o volume de sua voz:

— Certamente o fez, mas movido por uma curiosidade saudável e nem um pouco mesquinha, meus irmãos. Ele sempre nos respeitou, e tudo que lhe podia ser ensinado sem ferir nossos segredos, ele aprendeu rápida e interessadamente: nunca recusou qualquer tarefa, nem reclamou das difíceis condições da viagem, que enfrentou com resignação e coragem.

— Qualidades de que raros homens podem se orgulhar. Mas ainda não basta. Alguém mais tem algo a dizer sobre o candidato?

Outro longo silêncio. Seria possível que ninguém tivesse mais nada a dizer em meu benefício? Eu não seria merecedor da misericórdia de mais ninguém?

Uma forte batida do outro lado do subterrâneo me fez saltar. Ananias, com a mesma suavidade, disse:

— Podeis falar, irmão Ragel.

O pequeno médico de face enrugada, que estava sempre com os olhos apertados postos sobre mim, falou, com voz descansada:

— Venho observando esse jovem nos últimos dois meses, desde que se uniu a nós em Erech, quando ele e seu camarada surgiram das ruínas para aquecer-se em nossa fogueira. Com eles dividimos nosso alimento e roupas, e eles nos concederam o benefício de sua força. Cheirei nesse que aqui está alguma coisa especial, que não consigo definir, e por isso me responsabilizei por ele. Se cometeu algum erro, que a responsabilidade desse erro seja minha. Assumo esse dever sem medo, pois o que o moveu é mais que a simples curiosidade, e o que ele tem dentro de si o torna capaz de ser um de nós, se assim o desejarmos.

Suspirei aliviado, ainda não totalmente sem medo. O que era tudo isso? Se eu estava sendo observado com tal atenção, talvez esse homem soubesse mais sobre mim que eu mesmo.

Ananias falou, com tristeza na voz:

— Nem sempre nossos desejos são garantia, irmão Ragel: por mais que tenhamos cuidado com aqueles a quem fazemos unir-se a nós, não têm sido poucas as vezes em que nos enganamos redondamente. Quantos temos visto que pareciam excelentes candidatos e que afinal não eram mais que dissimulados, desejando apenas o poder que os que nos caluniam dizem possuirmos? Seria este jovem um desses dissimulados?

— Creio que não, mestre. Como bem disse o irmão Jael, a curiosidade que o trouxe até nós é fruto do acaso que o pôs em nosso caminho, e me parece muito saudável. Se assim não fosse, com ele aqui estaria certamente o seu companheiro de viagem. Que motivo se não a lisura de seus propósitos o faria excluir seu amigo mais íntimo da busca por nosso segredo? Por que não conspiraram ambos na execução dessa tarefa? Creio que o que move o jovem é um sentimento positivo, e falo pela segunda vez a favor dele.

Nunca pensei que se podia resolver as questões da vida dessa maneira: acostumado a agir por impulso, não percebia como uma questão de vida e morte pudesse ser tratada sem nenhuma emoção violenta, apenas colocando fatos ao lado de fatos e tirando conclusões lógicas sobre os mesmos. Já me sentia quase aliviado, quando Ananias disse:

— Pois muito bem: temos duas opiniões favoráveis. Precisamos de uma terceira. Alguém mais fala a favor do candidato?

Não havia ninguém: eu não tinha tido contato íntimo com mais ninguém da caravana, apenas Ragel e Jael. Se houvesse mais alguém, sem dúvida ja teria se manifestado. Mas o silêncio era total. Ananias ergueu novamente a voz e falou:

— Pela segunda vez, pergunto: existe mais alguém que queira falar a favor do candidato?

Mais silêncio, seguido de um murmúrio surdo, como o zumbido de abelhas que se armam antes de sair e ferroar os inimigos em defesa própria. Comecei a desejar ansiosamente que alguém, mesmo que falsamente, falasse em meu favor: mas a certeza de que isso nunca aconteceria me esmagava o peito. A pausa foi imensamente longa, e Ananias, com voz estentórea, gritou:

— Pela terceira e última vez, pergunto: existe mais alguém que queira falar a favor do candidato?

Às minhas costas, uma voz conhecida se fez ouvir:

— Eu quero!

Um grito de alívio escapou de todas as bocas, inclusive a minha. E foi com surpresa incalculável que finalmente percebi o que se passava, pois Ananias, ele próprio tão aliviado quanto todos nós, gritou:

— Podeis falar, irmão Feq'qesh!

Feq'qesh! Impossível! Meu mestre prometido, o homem que me havia mostrado um sentido para a vida, acenando com a música como ferramenta para minha felicidade, transformada em uma impossibilidade no turbilhão de acontecimentos que se seguiram! Como ele teria chegado até esse lugar?

Uma saraivada de batidas de malhete, provavelmente nas paredes de pedra que nos cercavam, acompanhou a entrada de Feq'qesh, e quando cessou ouvi a sua voz à minha frente, ao lado esquerdo de Ananias, soando bela e educada como quando eu o ouvira cantar pela primeira vez, na suja Taberna do Boi Gordo:

— Eu conheço o candidato há mais tempo que todos vós, meus irmãos: somos da mesma Grande Baab'el, capital do Império da Babilônia, onde a iniqüidade floresce graças à destruição de outros homens, cidades e povos. É um jovem de valor: da última vez que nos vimos, preferiu enfrentar um destino adverso a abandonar os amigos que lhe eram caros. Que maior prova de capacidade fraterna pode haver do que essa que o colocou em perigo extremo, apenas para que seus amigos não tivessem que sofrer sozinhos? Eu o testei, nesse momento: mostrei-lhe a possibilidade de fuga e lhe disse "Vai! Foge! Ocultarei teus passos!" Ele não o fez, porque seu instinto é o da cooperação, mais que o da competição, maior até mesmo que o da sobrevivência. Homens como ele nunca recuam, e sempre fazem aquilo que deve ser feito, mesmo à custa de sua própria vida. Em meu espírito não resta nenhuma dúvida: falo pela terceira vez a favor do candidato.

A audiência reagiu com alegria à fala de Feq'qesh, e eu, ainda em trevas, sentia uma imensa sensação de liberdade, e da garganta me escaparam soluços de alívio. Nunca percebera que no mundo tudo é causa e conseqüência, e nada que façamos ou recusemos fazer deixa de ser causa de outro acontecimento mais à frente. Meu espanto era grande: como este homem surgira assim tão inesperadamente, pronto a ceder de si a boa palavra de que eu necessitava? A coincidência que o colocava ali, naquele exato instante, era uma dessas que nunca mais aconteceria. Eu ainda não sabia que, no Universo Vivo, as coincidências são simplesmente a maneira como o Criador age quando não quer se identificar. Feq'qesh não surgira apenas para dar testemunho de um valor que eu não sabia ter. Ele também tinha uma missão a cumprir: a diferença entre nós dois é que ele sabia disso.

Os ruídos haviam se transformado: não havia mais a tensão que eu percebera desde que fora brutalmente imobilizado. A minha volta vibrava uma onda benfazeja que eu nunca antes experimentara, como se cada um que ali estava pudesse projetar em minha direção o que sentia e pensava sobre mim. A percepção disso me deixava quase sufocado: Ananias aproximou-se de mim e retirou-me o pano de sobre a cabeça:

— Costumamos iniciar nossos novos irmãos com os olhos cobertos, para que só nos vejam depois que já forem parte de nós. Tu conse-guiste ver mais do que um profano, portanto seria um contra-senso tratar-te como se ainda fosses um deles. Estás a meio caminho: viste, e não sabes o que viste. No entanto, ainda que possas enxergar o lugar onde estás, é preciso que recebas a marca da Verdadeira Luz, sem a qual ninguém pode considerar-se pedreiro.

O subterrâneo era impressionantemente grande, quanto visto de dentro: inúmeras mãos haviam mordido o rochedo, com seus cinzéis, e as pequenas marcas de sua tarefa formavam um padrão miúdo sobre as paredes e o teto, no qual a fuligem de incontáveis archotes se acumulava. O chão, à volta da pedra que se erguia até a altura de nossa cintura, era bastante gasto pelos incontáveis pés que o haviam pisado, e tão perfeitamente unido à pedra que circundava, que parecia ter nascido assim.

— Este subterrâneo — entoou Ananias —, chamamo-lo Poço das Almas, e tem sido o lugar de reunião dos pedreiros desde que o rei David, nosso primeiro protetor, recebeu a tarefa de erguer o Templo de Yahweh na terra acima de nós. Não o fez, por ter falhado com o Deus que lhe concedeu esta bênção, deixando a tarefa para seu filho, Salomão, que foi o principal membro do triunvirato que nos governou até que o Templo estivesse erguido, com Yahweh habitando dentro dele. Salomão, o ungido de Yahweh, também errou, ao prestar homenagens a outro deus que não o seu próprio. O povo de Jerusalém seguiu seu exemplo, e o Deus que morava no Templo o abandonou, tirando a proteção de seu povo escolhido, sentenciando-o a setenta anos de escravidão. Vazio de Yahweh, o Templo foi queimado e derrubado, e suas pedras espalhadas em toda a volta do terreno pelos conquistadores que aqui vieram escravizar o povo judeu, sob as ordens de deuses cruéis e invejosos.

Os pedreiros balançavam seus corpos da frente para trás, lentamente, enquanto um ruído grave crescia em suas gargantas: Ananias narrava esses acontecimentos com a familiaridade de quem já os repetira várias vezes, mas a emoção em suas palavras era genuína:

— A terra sem Deus está morta, até que se cumpra a profecia. Dez semanas de anos haveriam de se passar, até que chegasse o tempo de reerguer o Templo de suas ruínas. E nós, irmãos na pedra, aqui esperamos o momento em que de novo seremos úteis. Temos iniciado nossos novos irmãos, passando-lhes de boca a ouvido os segredos do ofício, preparando-nos para fazer o que deve ser feito assim que chegar a hora. O povo que ainda habita as ruínas de Jerusalém não nos apoia, temendo que nossa tarefa volte a trazer violência, soldados, guerra, prisão, morte: mas é nosso dever, e hoje mais um profano se tornará um de nossos irmãos nesse dever.

Como mais tarde pude me assegurar, a proximidade física entre pedreiros tem o dom de acalmar os espíritos mais agitados: o meu agora experimentava uma estranha tranqüilidade, dissipando a ansiedade de que eu sempre fora vítima. A minha frente, os chefes da estranha assembléia, Ananias e Jerubaal, haviam aberto espaço para Feq'qesh, vestido de maneira tão idêntica à dos viajantes, que por um momento me indaguei se ele não estivera o tempo todo conosco, atravessando o grande e inóspito deserto. Meu mestre prometido me olhava seriamente, mas em seus olhos bailava a chama de uma estranha alegria, como se tudo aquilo tivesse sido planejado, e esse fosse o fim para o qual eu tivesse sido encaminhado.

— Irmãos pedreiros, vossa atenção. — Era Ananias quem assim falava, a voz grave tomando o espaço à minha volta. — Está entre nós um profano que pretende ser iniciado nos Sagrados Mistérios de nosso ofício. Três dentre nós já garantiram sua integridade e capacidade, e peço a todos os Irmãos presentes que, concordando com essa iniciação, expressem tal concordância da maneira usual.

Eu estava de costas, com os olhos presos à profundidade sem fim dos olhos de Feq'qesh, e nem percebi ter havido qualquer sinal de sua aprovação, porque Ananias continuou:

— Então, meus irmãos, sendo pela unanimidade dos presentes, demos início ao ritual.

Fui levado de novo para a parte de trás do subterrâneo, como se tivesse acabado de descer as escadas, e dois homens me ladearam, se-gurando-me cada um por um cotovelo. Passamos novamente ao lado da pedra que tomava todo o centro dessa sala, e mais uma vez fui colocado frente a frente com Ananias, que me olhava como se estivesse perscrutando o meu íntimo e, sem tirar os olhos de mim, perguntou a quem estava do meu lado:

— Existe uma condição essencial para ser recebido entre nós? O homem à minha esquerda respondeu:

— Ser livre. Ananias continuou:

— Mas é tão vergonhoso assim ser escravo, que um homem não o possa nem deva ser?

O homem à minha direita foi quem falou desta vez:

— Nosso juramento nos obriga a lutar sempre pela libertação de todos os escravos. O pior de todos eles, o mais difícil de ser libertado, não é o que foi vencido em batalha e transformado, contra a sua vontade, em servo de algum poderoso, mas sim aquele que vende a própria consciência, defendendo aquilo em que não crê, servindo à tirania de quem o domina, e usando sua inteligência para que este tirano domine outros homens como ele.

Ananias sorriu:

— E o que faz um homem livre?

A assembléia inteira respondeu, a uma só voz:

— Um homem livre procura a Verdade, e a pratica, cumprindo o seu dever.

Aquela frase ecoou fortemente na sala de pedra, causando-me tão profunda impressão no espírito, que pela primeira vez percebi ter sido até esse dia escravo do Império da Babilônia, dos reis e senhores da Grande Baab'el, e até de meus pequenos vícios e desejos sem medida. Por isso, tremi de medo quando Ananias proferiu a mais terrível das perguntas:

— E o candidato é livre, irmãos pedreiros?

Para alívio de minha alma, a assembléia, a uma só voz, gritou:

— Nós assim o afirmamos!

Gritei de alívio: como uma vez na Grande Baab'el já me dispusera a entregar minha vida em troca de tão pouco, agora me sentia disposto a cedê-la sem hesitar para ser parte dessa assembléia que me acolhia. Sentia o verdadeiro desejo de ser parte de alguma coisa, como se para ela tivesse sido criado.

Por que nossa alma raramente percebe não haver medida para as emoções? Nesse momento de alegria, acreditei estar vivendo a maior delas. Reencontrara meu mestre prometido, era aceito em um grupo que me parecia de grande valor: o que mais me poderia acontecer nesse dia de ocorrências inacreditáveis?

O inacreditável, efetivamente, era a minha mais valiosa bagagem, sem que eu soubessse disso, e também o motivo pelo qual uma mão invisível me guiara até esse lugar. Ananias perguntou, com a mesma tranqüilidade de sempre:

— Qual é o nome do candidato? Quem é seu pai? A que povo pertence?

Um instante de silêncio, e Feq'qesh, sem tirar seus olhos profundos dos meus, escandiu as sílabas do nome que eu abandonara quando decidira não mais ser filho de meu pai — Zerub-ben-Salatiel ha-David!

Outra pausa, e Ananias, que até esse momento não perdera a sua postura hierática, estranhamente virou-se para a esquerda, olhando a face firme de Feq'qesh:

— Ouvimos bem, irmão Feq'qesh? Filho de Salatiel, da tribo de David?

— Exatamente, meus irmãos: o candidato à vossa frente é filho do rosh'ha'golah da Grande Baab'el, o último primogênito da tribo de Judah a trazer em suas veias o sangue do Rei David!

Um grito imenso percorreu a assembléia, que perdeu a compostura para erguer as mãos aos céus, proferindo agradecimentos e louvações ao Senhor Yahweh. Eu, perdido em meio a essas manifestações de regozijo, nada percebia, nada compreendia, não tinha sequer uma fagulha de entendimento do que estava acontecendo, enquanto os gritos aumentavam:

— O Rei de Israel! O Sangue de David! A Semente de David que nasceu na Grande Baab'el! Zerubb'baab'el Está entre nós a Semente de Baab'el! Zorobabel! Zorobabel! Zorobabel!

 

Ó quando a euforia amainou, houve tentativas de me fazer compreender o que me estava reservado, por motivos rigorosamente alheios à minha vontade e dos quais eu sequer fazia idéia. Meu pai era filho de Jeconias, descendente da casa de David, que viera entre os cativos para a Grande Baab'el: nascêramos nesta cidade, tanto meu pai e seu irmão Sheshba'zzar, que não tinha descendentes, quanto eu e meus irmãos mais novos, dos quais o único outro homem era o caçula Shimei. De todos os descendentes dos cativos trazidos para a Grande Baab'el, apenas nossa família podia dizer-se descendente direta de David: ao que tudo indica, a profecia dizia claramente que o sangue de David reconstruiria o Templo de Yahweh, salvando Jerusalém do esquecimento entre as nações do mundo. Quando Feq'qesh revelou meu nome aos irmãos, eles se comportaram como se tivesse acontecido um milagre. Eu não me senti assim: não reconhecia nessa revelação nenhum tipo de intervenção divina. Com sinceridade, achei tudo extremamente exagerado. Entre esses homens dos quais ainda não era irmão, já que a revelação havia interrompido a cerimônia de iniciação, apenas eu e Feq'qesh havíamos nos comportado normalmente: eu, por não entender patavina do que acontecera, e Feq'qesh, por saborear a seu próprio modo o momento que criara com sua revelação. Não entendo por que o sangue que corre nas veias de alguém possa trazer mudanças tão radicais: acostumado a conseguir por meu próprio esforço qualquer coisa que desejasse, nunca havia me preocupado com os motivos pelos quais alguém nasce rei e outro alguém não. As marcas que Deus coloca sobre os homens costumam ser de outro tipo: amigos sempre me importaram mais que parentes, e talvez por isso eu tenha preferido ser parte dessa irmandade de pedreiros. Se algum dia me tivessem perguntado o que me interessava mais, um irmão ou um amigo, eu diria "um amigo", porque amigos nós mesmos escolhemos, e irmãos, temos que aceitar os que a vida nos dá. Laços de sangue nunca tinham sido minha prioridade, e sempre que pude escolher entre meus amigos aqueles que me interessava ter como irmãos, fui muito mais feliz.

A cerimônia de iniciação entre os pedreiros do Templo de Jerusalém se interrompeu depois da revelação inesperada, e a partir desse instante todos passaram a me tratar como se eu fosse o supra-sumo da criação humana: pela minha própria natureza profundamente incrédula, eu me sentia envergonhado com qualquer tratamento que me destacasse dos que estavam a meu lado. Não acreditava no que diziam sobre mim, porque não me via como esse fenômeno caído dos céus no momento exato da consumação de uma profecia: mas, se os pedreiros de Jerusalém assim o desejavam, que assim fosse. Seria irmão desses homens, como muitos antes de mim o tinham sido, através de rituais cujo significado não me era claro, e ainda teria grande trabalho até sua compreensão, porque meu espírito nesse sentido era muito pobre, incapaz de qualquer vôo mais alto.

Feq'qesh desapareceu de minhas vistas depois da cerimônia interrompida: eu soube que ficaria conosco no acampamento, mas quando o sol começou a raiar por detrás das montanhas enevoadas a leste da cidade, nem ele nem Jerubaal retornaram conosco às tendas. Antes de qualquer coisa, ele teria que explicar de que maneira aparecera do nada para salvar-me do destino, e mais uma vez mudar-me a vida de maneira tão absoluta. Voltando ao acampamento, despedi-me de meus novos irmãos como se já fosse um deles, mesmo não estando totalmente iniciado em seus mistérios. O pequeno conhecimento que tinha fora ganho apenas por minha ousadia e curiosidade, não pelo direito do sangue que me corria nas veias. Entrei na tenda onde Daruj ressonava, envolto no sono do vinho batizado com ervas, e me arrumei silenciosamente a seu lado, para que ele não percebesse minha ausência durante a noite. Foi impossível conciliar o sono, não só porque a luz começava a ser a cada instante mais forte, mas também porque minha cabeça andava à roda. Eu tinha certeza de que, se dormisse, acordaria para ver que tudo não fora mais que um sonho, desses tão reais que ainda permanecem em nós por muito tempo depois que acordamos. Não conseguia compreender que motivos teria para aceitar ser rei: essa realidade, sim, me parecia mais ilusória que qualquer outra, porque tinha muito pouco valor. O país era pobre, decadente, sem nenhuma riqueza aparente ou oculta, ocupado por um povo invisível, e os planos de ser rico e poderoso em terras do Faraó ainda me pareciam muito mais interessantes.

Determinadas coisas custam a entrar no coração, e quanto mais insólitas são, maior é o tempo que levam para ser assimiladas. Devo ter cochilado, porque repentinamente dei acordo de mim meio sufocado, piscando na luz difusa do dia enevoado, recordando a figura de Sha'hawaniah dizendo: — "O que queres, não posso te dar, tu bem o sabes... minha Deusa exige que eu só seja tocada por um rei... ah, se fosses rei... tudo terias de mim..."

Um baque em meu peito quase me fez perder a respiração. Se eu fosse rei? Mas eu o era! Haviam dito que eu o era, e por direito de sangue, indiscutível! Não importa de que reino, com que valor, para que fim, mas eu era! Num repente, em meu coração começou a brotar a certeza de que o destino me havia feito rei para que eu pudesse usufruir de Sha'hawaniah. Minha realeza só agora começava a fazer sentido, e minha felicidade precisava ser partilhada com alguém. A meu lado ressonava, com a cara franzida, meu companheiro de aventuras e viagem, suando no calor de mais uma das opressivas manhãs de Jerusalém. Sacudi-o com a familiaridade dos amigos íntimos, e ele afastou minhas mãos com um muxoxo gutural, abrindo um olho em minha direção:

— Ah, és tu, pequeno chacal?

Daruj se ergueu, bocejando e esfregando a cabeça onde os cabelos já haviam crescido e coçando a barba de alguns dias, que lhe deixava uma sombra escura no rosto. Ao perceber isso, passei a mão em minhas próprias faces, sentindo a aspereza dos duros fios curtos que me tomavam a face, dos zigomas para baixo. Como os pedreiros não partilhavam do hábito babilônico de raspar a barba, nos havíamos esquecido dela, e eu devia estar uma figura desagradável. Fiz uma anotação mental para me escanhoar assim que pudesse, pois um verdadeiro rei não pode se mostrar dessa maneira pouco exemplar a ninguém. Daruj se dirigiu ao odre mais próximo, seguido de perto por mim: abriu o gargalo e, erguendo-o acima da cabeça, derramou sobre si mesmo uns bons dois ou três batos de água, sacudindo-se ao sol como um cão que tivesse caído ao rio, deixando a gola e o peito de suas vestes empapados. Pensei em impedi-lo, mas achei que ambos merecíamos o prazer da coisa mais parecida com um banho que pudéssemos ter. Tomei-lhe o odre das mãos e derramei-o sobre minha cabeça também enevoada, despertando de vez com o choque do líquido. Segurando o odre pelo fundo, atirei um tanto de água sobre Daruj, que se jogou em minha direção, tentando me impedir de continuar a brincadeira. O odre caiu ao chão, e a areia começou a absorver a água preciosa: eu e Daruj nem vimos, envolvidos na briga falsa em que estávamos envolvidos, com a alegria que sempre fora nossa companheira, mas que em mim hoje tinha novas e mais profundas razões. Subitamente, uma voz nos assustou:

— Mas como podem desperdiçar água dessa maneira?

Era um pedreiro mais velho, com as mãos na cintura, andando em nossa direção, passos firmes e apressados. Demos um salto, um para longe do outro, e a coisa mais estranha aconteceu: ao me reconhecer, a face do pedreiro se cobriu de uma mistura de receio e preocupação, e ele se curvou, dizendo:

— Perdão, senhor...

Suas mãos se dirigiram hesitantemente ao odre que se derramava, tateando-o sem tirar os olhos de mim, fazendo-me perceber que o "senhor" a quem ele se havia tão respeitosamente dirigido era eu, e que, se a minha vontade fosse derramar toda a água do mundo, ela seria respeitada. Curvei-me antes dele e peguei o odre, tampando-o, e o pedreiro, curvando várias vezes a cabeça, deu alguns passos para trás, levando o odre e desaparecendo por detrás da tenda. Fiquei rindo na luz da manhã cada vez mais clara, e ao virar-me vi um Daruj cheio de incompreensão absoluta: ele repetiu de sobrecenho comicamente franzido a palavra que saíra da boca do pedreiro:

— Senhor? Como assim, "senhor"?

Chegara o momento de contar o que tinha me acontecido. Coloquei a mão no ombro de Daruj e não desviei os olhos dele enquanto lhe narrei tudo o que se passara desde a hora em que nos haviam servido o vinho, minha perseguição disfarçada aos pedreiros, minha entrada no subterrâneo, o momento em que fora descoberto e o ritual, que citei sem entrar em detalhes. Daruj refletiu no rosto todas as emoções que eu lhe causava, experimentando cada uma das minhas ações e cada um dos problemas que a mim se tinham apresentado. Sempre fora assim: narrativas entre nós tinham sabor de coisa vivida, e Daruj, por sua ousadia, sempre tinha mais coisas para nos fazer reviver, cada um à sua maneira. Pela primeira vez em muitos anos, eu estava no lugar do narrador, partilhando com meu amigo o que me acontecera, e que a cada instante me soava mais e mais incrível. Quando revelei minha identidade de último primogênito da casa de David, rei de Israel e Judah, o rosto de Daruj foi-se esvaziando de qualquer emoção, ficando vazio como uma parede branca antes que os artistas nela inscrevam os delírios de sua imaginação. O que surgiu nesse rosto, vindo à tona lentamente, como a lama que por vezes explode na superfície de uma nascente limpa, conspurcando-a com sua turva matéria, foi uma emoção da qual nem ele mesmo tinha consciência, e que lá estava tingindo sua face e seus olhos, quase que o transformando em outra pessoa, desconhecida, desagradavelmente nova: a inveja. O sorriso sem cor que ele me deu, quando terminei minha narrativa, foi terrível: o esforço com que seus lábios se distenderam era cheio dessa emoção que eu já tinha visto em tantos outros. Se ao menos ele tivesse mantido os olhos nos meus, eu teria suportado o que vira: seu olhar, no entanto, desviou-se para o chão, para o lado, para o nada, enquanto ele me disse:

— Meus respeitos, senhor Rei de Jerusalém: nem precisou chegar ao Egito para alcançar a fama e o poder...

Meu companheiro de toda uma vida era outro nesse instante: e eu, que nada pretendia fazer sem sua companhia, comecei a temer que também ele me abandonasse. No rosto de Daruj, vi a mesma emoção dos rostos de Re'hum e Sam'sai, e ela envenenava o sangue de Daruj, meu único companheiro remanescente. Era triste, mas era verdade: eu podia sentir os laços que nos uniam se desfazendo um após o outro, enquanto ele dizia:

— Acho pouco para nossos sonhos, pequeno chacal: isto aqui é a lixeira do mundo, uma terra sem valor nenhum. Duvido muito que tu queiras abandonar tudo em nome de uma tradição que nunca te valeu de nada. Eu, se fosse tu, trocaria essa subida honra por qualquer outra coisa de mais importância. É melhor ser súdito de um grande rei que ser rei de súditos tão pequenos: pelo menos, essa é a escolha que eu faria.

— Mas, Daruj, meu irmão, não é uma escolha da qual eu possa escapar assim tão facilmente, não vês? Esses homens dependem de mim...                                                          

A gargalhada de Daruj doeu nele e em mim, amarga, áspera. O que ele disse daí em diante foi fonte de infinita tristeza, mostrando que esse trecho da estrada da vida eu trilharia sozinho:

— Cada um de nós nasce para uma determinada coisa, Zerub, e nada pior do que tentar-se ser aquilo que não se é. O que se espera de um rei, mesmo o rei de um reino tão sem valor quanto este, é a capacidade de lutar nas guerras, vencer inimigos, aumentar territórios, acumular riquezas tomadas dos perdedores e defender-se de todos que porventura desejem o seu lugar. Crês que serás capaz disso?

Por mais que fosse a inveja o que impulsionava Daruj, o que ele dizia tinha um fundo de verdade: eu verdadeiramente não tinha as capacidades que se consideravam essenciais a um rei. Mesmo em nossos momentos de aventuras e pelejas, eu sempre fora seguidor, não líder, fora soldado, não general. Nosso comandante, mesmo quando Re'hum e SanVsai ainda estavam entre nós, era esse Daruj que agora, sobre o chão empedrado da Jerusalém morta, me revelava as verdades da vida:

— Quando te exigirem essas aptidões, o que farás? Dirás que não as tens? Crês que ficará por isso mesmo? O sangue de David, por mais sagrado que fosse, não protegeu nem a ele nem a nenhum de seus descendentes. Por que contigo seria diferente? Reis também são passados no fio da espada. Não viste Belshah'zzar? Não viste seu tio Nabuni'dush? Tens certeza de que sabes ser rei?

— Daruj, meu irmão, para isso eu conto contigo! Não combinamos que, onde um fosse, o outro também iria?

O gesto de rejeição de Daruj foi tão brusco que eu o senti como um abalo em meu espírito:

— Nem pensar! Se tivermos que seguir juntos, sigamos juntos para o Egito, o reino mais rico, mais cheio de oportunidades, aquele onde o sangue só vale se for o dos inimigos, derramado sobre a areia.

— O que desejávamos já nos foi oferecido, e o que esperam de mim eu conto contigo para realizar. Não prometemos um ao outro união eterna até alcançar fama e riqueza?

— Riqueza? — Daruj gargalhou. — Não te reconheço, Zerub. Olha à tua volta, olha o que te oferecem e pensa: achas que dessa terra estéril há de nascer algo que valha a pena? Terra escrava de povo escravo, sem serventia.

— A terra está assim porque Deus a abandonou. Se reconstruirmos o templo que era a Sua casa, certamente Ele voltará!

— Tolice! Que deus voltaria a esta terra? Deuses também exigem o melhor, Zerub, e esse exemplo devemos seguir. Perdoa, mas não fico aqui nem que me ofereçam o lugar que estão te oferecendo!

Eu não tinha argumentos, e nem pretendia ter, principalmente porque ele rejeitava sumariamente qualquer possibilidade de estar comigo nesta empreitada. A Daruj só interessava a primeira posição: e eu, que nunca antes conseguira ser o primeiro, tinha agora a oportunidade real de realizar todos os sonhos que acalentara em silêncio. Chegáramos a um impasse: cada uma de nossas vontades se afirmava na tenacidade do amor-próprio ferido. Não sabíamos ser de outra maneira, nunca havíamos aprendido a sê-lo: a capacidade de raciocinar em meio às mais difíceis condições, como faziam os pedreiros, não era nosso natural. Se preciso fosse, envelheceríamos neste pedaço de chão empoeirado, ambos cada vez mais firmes em suas próprias opiniões, e quanto mais enganados estivéssemos, mais firmes sairíamos em sua defesa:

— Se achas que mereces tão pouco quanto te estão dando, é problema teu, Zerub: eu almejo mais, muito mais!

Parei de discutir: com amigos, vale mais a pena calar-se. Sorri meu melhor sorriso, colocando minha mão no ombro de Daruj, e lhe disse:

— Pois seja: que cada um de nós faça o que quer fazer. Não foi sempre assim? Sempre fizemos aquilo que queríamos: mas desta vez eu tenho que ficar, amigo. Não posso rejeitar o que sou.

— Nem eu dispensar o que serei. Se tu chegaste a Rei de Jerusalém, imagina o que eu não conseguirei? Faraó do Egito? Quem sabe?

Daruj riu, eu também, sabendo que tudo o que ali dizíamos era da máxima seriedade. A mim não importaria a realização de meus desejos, se nossa amizade se preservasse, mas, para que eu conquistasse o meu lugar, era preciso abrir mão de meu amigo mais próximo, e eu o fiz:

— Se assim o queres, amigo, assim seja: deves ir buscar teu reino, como eu encontrei o meu. Quem sabe um dia não nos encontremos, ambos reis, eu de um reino que se ergue de seus destroços, e tu, senhor de um reino conquistado pelo teu próprio valor?

— Não tenho nenhuma dúvida: se chegaste a ser rei, eu também o farei, com ou sem o auxílio dos deuses. Se for sem este auxílio, maior ainda será o meu valor. Quando isso acontecer, nos saudaremos como iguais, e sempre poderemos contar um com o outro, mesmo de lados opostos no campo de batalha.

Estávamos emocionados, porque havia entre nós amizade verdadeira. Não poderíamos permanecer juntos, no entanto: nossos objetivos se haviam tornado o oposto um do outro. De certo modo, os deuses haviam sido razoáveis: a mim, que não possuía espírito empreendedor, haviam concedido tudo o que Daruj teria que lutar para alcançar, se esse fosse o seu destino. Ele, ao contrário de mim, sempre sonhara com esse poder incomensurável: talvez nunca o alcançasse, porque o que mais se deseja é sempre o mais impossível de se conseguir, e o que mais se teme é sempre nosso destino irrecusável. Abraçamo-nos e, como amigos verdadeiros que éramos, caminhamos pelo acampamento; que logo seguiria numa viagem de apenas dez dias rumo às cidades sagradas do Faraó do Egito, coisa ínfima perto do tempo que passáramos no meio do deserto. Eu sentia pena pela perda de meu melhor amigo, com quem ainda pequeno já brincava de batalhas nas ruas da Grande Baab'el. Com ele fiz meu primeiro roubo, no grande Mercado da Esagila, repetindo a dose tantas vezes quantas ele quisera, tornando-me afinal absolutamente frio, como deve ser um ladrão que se preza. Sob seu comando, enfrentei Bel'Cherub e seu preboste Na'zzur, assim como a traição de Re'hum e Sam'sai. Eu, dentre todos, havia sido quem costurara a ferida que o caco de vidro lhe havia deixado no antebraço, dando-lhe uma cicatriz feia e repuxada, que ele exibia sem temor, como se fosse uma condecoração de batalha.

Os j'mal que nos haviam servido desde a aldeia de Hai'tam não continuariam com a caravana em direção ao Egito: os mercadores de cavalos traziam de volta escuros animais de pêlo negro e pernas esguias, ágeis e nervosos, e as negociações envolviam enormes discussões, porque nesse momento o pior cavalo ainda valia mais que o melhor jâmal, e não havia como conseguir uma troca justa. Os mercadores acabaram sendo convencidos a trocar três j'mal por cada cavalo, nenhum deles de grande qualidade. A manada incluía também algumas fêmeas prenhes, por isso a viagem teria que ser rápida, já que a qualquer momento elas teriam que parir as crias que atrasariam a todos, se tivessem que ser levadas junto com as mães. Minha aproximação criou um movimento respeitoso entre os pedreiros, e os mercadores, percebendo isso, puseram a dirigir-se a mim, como se fosse eu o senhor e chefe da caravana. Por algum tempo, o tratamento me deixou orgulhoso, mas logo cansei de tentar ser quem não era: nada entendia de cavalos, e mesmo com a ajuda de Daruj, um apaixonado por esses animais, minha presença de nada valia. Decidi deixar o caso com o melhor homem da caravana, que era o quase cego Ragel: ele apalpava e cheirava os animais com tal segurança, que em nenhum momento se enganou. Os mercadores tentaram empurrar para Ragel um cavalo velho e doente, ou pelo menos possuidor de um desses dois defeitos, e eu me diverti muito com suas tentativas infrutíferas: Ragel tinha um nariz fenomenal, e rejeitava, por vezes à distância de dez braças, um cavalo que não interessasse.

No fim desse dia, comprados todos os cavalos necessários, a caravana já arrumada para a viagem, unimo-nos para uma última ceia entre pedreiros, com a presença de alguns profanos, entre eles os chefes dos mercadores e meu amigo Daruj, que fiz questão de sentar a meu lado esquerdo. A minha direita, reservei um lugar para Feq'qesh, que não chegou ao acampamento senão muito depois de ter-se iniciado a refeição, acompanhado por Jerubaal e Ananias, saudando-me com grande cerimônia. Eu esperava que meu mestre trouxesse sua harpa babilônia, a mesma que eu conhecia, mas ele carregava uma harpa bem diferente, menor e de frente abaulada, com dezesseis cordas, e assim que a ceia terminou começou a dedilhá-la com um plectro de osso. As notas que Feq'qesh tocava em sucessão rápida se somavam no ar, num efeito que eu nunca imaginara ser possível. Eu queria, assim que houvesse oportunidade, iniciar meus estudos com ele, imaginando ser a vida de rei feita de alegrias e descuidos, com centenas de servos a meus serviços, prontos a realizar qualquer de meus desejos. Não sabia o quanto de cuidados e trabalhos já me haviam sido impostos: os dois reinos que haviam sido separados tão logo Salomão morrera deveriam ser novamente reunidos em torno do Templo reconstruído; a casa real, restaurada para o retorno do povo ao lugar onde seu deus viveria eternamente. Na incons-ciência de minha juventude, eu não fazia a menor idéia do que se esperava de mim: mas o tempo, senhor absoluto da razão, se encarregaria de me ensinar a verdade.

Feq'qesh tocou sua harpa chamada kirínor, dividido entre um copo de bebida e um bocado de comida, e ainda assim enchendo o ar de belas sonoridades, que entravam em meu coração como setas bem apontadas, acentuando cada uma das emoções de que eu estava carregado, ao mesmo tempo unidas e isoladas em meu espírito trêmulo. Desejei que essa noite nunca terminasse, pois no dia seguinte todas as promessas teriam que ser cumpridas: mas por enquanto ainda estava suspenso entre o nada e o coisa nenhuma, não sendo mais quem tinha sido e nem ainda sendo quem seria. Quando, após os pratos, Feq'qesh limpou a garganta e se pôs a cantar, a melodia do salmo que escolheu para emoldurar essa noite suspensa no tempo e no espaço foi forte demais para mim:

— "Vede como é bom, como é agradável habitarmos todos juntos, como irmãos. É como o óleo fino descendo sobre a cabeça, descendo pela barba, a barba de Aarão, descendo sobre a gola de suas vestes. É como o orvalho do Hermon, descendo sobre os montes de Sião, porque aí concede Yahweh a bênção e a vida para sempre."

Minhas faces também se molharam com o pranto. Eu tentava me controlar, como um rei devia fazer, mas era impossível: ganhar tantos irmãos pedreiros custava caro, pois o preço era a perda do mais querido de todos os amigos. Daruj, sério a meu lado, não olhava em minha direção, piscando os olhos cada vez mais amiúde, escondendo a face na borda da taça de metal em que bebia. Feq'qesh fazia sua voz de beleza incom-parável ecoar pelas ruínas de pedra que nos cercavam, reverberando na noite sem estrelas, os olhos de cada um dos presentes brilhando bem mais do que seria normal, à luz da fogueira. Não foi cantada mais nenhuma canção nessa noite: Feq'qesh, quando terminou, pôs a harpa de lado e não mais a tocou, nem mesmo a pedidos. Logo depois, Jerubaal se ergueu e, batendo palmas, exortou-nos:

— Vamos, irmãos pedreiros! Antes que o sol se erga, a caravana deve estar a caminho! Retiremo-nos!

Ergui-me, junto com todos, dirigindo-me para a tenda de sempre, quando fui impedido por Ananias:

— A semente de David merece a melhor de todas as tendas. Tu não necessitas mais dormir com os outros.

Com todos os olhos postos sobre mim, senti-me mais envergonhado que se tivesse sido apanhado em pleno flagrante de roubo. Meu sangue garantia muitas coisas, principalmente a solidão, que comecei a aprender nessa noite. Na tenda principal, uma montanha de almofadas cobertas por rolos de tecidos brocados me aguardava: notei que minha comitiva a cada instante ficava menor, de maneira que, quando cruzei a abertura da tenda, só me acompanhavam Ananias e Feq'qesh, que pararam antes de pisar nos tapetes sobre a terra dentro da tenda. Pequenas lâmpadas de azeite brilhavam em cada uma das arestas da tenda hexagonal, um perfume macio e suave se espalhando pelo espaço confinado. Ela era bem maior e confortável que aquela onde eu dormira durante a viagem. Ananias indicou-me as almofadas, perguntou-me se eu desejava alguma coisa e avisou-me:

— Assim que o sol nascer, a caravana em que tu vieste até aqui seguirá seu caminho, e tu ficarás em Jerusalém, para iniciar teu aprendizado fundamental e ser Rei de Israel. Prepara-te: um árduo trabalho te aguarda.

Erguendo as duas mãos sobre mim, Ananias cerrou os olhos e proferiu, com voz profunda:

— Conforme a promessa salvadora e piedosa, ó Deus, concede-nos a Tua graça e a Tua piedade, e salva-nos, porque nossos olhos estão fixados em ti, Rei do Universo.

Quando eu ia mover-me, sua voz soou mais forte e emocionada ainda:

— E reconstrói Jerusalém, a Cidade Santa, prontamente em nossos dias. Bendito sejas Tu, Eterno, que por Tua misericórdia reconstróis Jerusalém.

Com uma leve curvatura de cabeça, Ananias saiu da tenda, e Feq'qesh, um leve sorriso nos lábios, disse-me:

— Reza para que teus mestres sejam os melhores que puderes encontrar. Boa noite, Zerub.

A abertura se fechou, deixando-me rigorosa e totalmente só, enquanto do lado de fora das paredes de pano sombras cada vez mais raras se moviam, até que todo o acampamento ficou em total silêncio. Deitei-me nas almofadas, minha mente tão atarefada com a sucessão de acontecimentos inesperados, que não pude conciliar o sono. Meu corpo chegava a doer de tanto cansaço, mas a mente percorria caminhos mais e mais sinuosos, fixando-se em todos e em nenhum deles, numa corrida sem descanso em direção a um objetivo que nem ela mesma conhecia. Reconstruir Jerusalém? O que é que eu sabia disso? O que é que se esperava de mim, em que me haviam transformado, sem que nada em mim reconhecesse qualquer transformação? O deserto adormeceu e acordou, e eu me revirei sobre as almofadas, na primeira de muitas noites em que, ao me descobrir só, perdia o controle sobre mim mesmo e me tornava escravo de minha mente. Quando ouvi as primeiras vozes, enrolei-me em um manto e saí para o descampado, que não exibia mais nenhuma tenda a não ser a minha própria, repleto de cavalos ajaezados para montaria e outros com seus fardos de carga.

O exército de pedreiros que atravessara o deserto já estava menor, porque a maior parte dos jovens havia vindo para ficar na cidade. Avancei, com a mão sobre os olhos, em direção ao grupo de cavaleiros, vendo Jerubaal organizando a partida e cuidando da distribuição das montarias. Lá estava Daruj, os olhos brilhando de excitação pela proximidade dos cavalos que adorava. Parei a certa distância, tentando manter-me firme e controlado, para não empanar sua partida com qualquer exibição emocional: meu medo não era por ele, mas por mim. A insô-nia da noite anterior me tinha deixado em estado lastimável,e era com dificuldade que mantinha a aparência de tranqüilidade.

Daruj, na fila de distribuição de cavalos, olhava os animais que vinham em sua direção, percebendo que seria do pedreiro que estava atrás dele o grande cavalo negro, de crinas mais claras e ventas nervosas, em tudo parecido com a montaria que ele usara na primeira parte da viagem. Ele foi lentamente se colocando ao lado desse homem, dando um ou dois passos para trás, e quando a fila se moveu, ficou atrás dele, para que o cavalo que escolhera fosse seu. O animal estava indócil, erguendo a cabeça e retesando o pescoço, revirando os olhos nas órbitas. Quando Daruj pôs a mão em suas rédeas, preparando-se para subir em suas costas, com ar de vitória, o cavalo repentinamente ergueu a cabeça para trás e se pôs a relinchar, alargando as ventas. Daruj ficou saltitando em um pé só, ao lado do animal, que girava em torno de si mesmo, relin-chando fortemente, até que estacou, firme nas quatro patas, olhando uma égua que escapara dos laços de seus treinadores e vinha galopando em sua direção. Antes que Daruj conseguisse soltar as rédeas e tirar o pé do laço que lhe serviria de estribo, o cavalo deu um salto para a frente, iniciando uma corrida quase saltitante, arrastando meu amigo, que se pendurou em seus flancos. Em poucos instantes o animal estava ao lado da égua, que se virou de costas para ele, erguendo a cauda em um formato arredondado, e o cavalo aproximou o focinho de sua traseira, fartando-se com o cheiro que dali emanava e que para ele devia ser delicioso perfume. Daruj acabou por montar em suas costas, mas antes que pudesse tomar qualquer atitude a montaria empinou, avançando sobre as patas de trás em direção à fêmea, que o esperava fremindo, e derrubando Daruj no chão com a violência de seus movimentos.

A caravana inteira riu, e Daruj num salto ficou de pé, tão cheio de raiva, que, ao olhá-lo, todos imediatamente se calaram. O silêncio ficou quase insuportável, enquanto Daruj corria os olhos pela assembléia, que agora já não ria: subitamente soltou uma forte gargalhada, dizendo:

— Nem sempre o cheiro de uma fêmea há de derrubar um cavaleiro...

Ri alto, e nesse momento percebi a mudança no comportamento de todos: minha chegada lhes tirara toda a naturalidade. Só eu e Daruj continuamos como estávamos, rindo à vontade: éramos companheiros de juventude, e isso sempre vale mais que qualquer posição. Amizades e inimizades feitas no início de nossas vidas têm valor bastante diverso das que se fazem na vida adulta, impregnando-se em nossas almas por serem as primeiras que experimentamos. No meu caso, eram os baluartes de meu espírito, cada uma de seu lado e com papel definido. Amigos e inimigos, tanto os reais quanto os que minha imaginação criara, opunham-se dentro de mim, cada um deles me puxando em sua direção ou forçando-me a rejeitá-los, e eu saltava entre eles, tentando cumprir o que se esperava de mim. Eu e Daruj nos abraçamos, porque nada era mais forte que o laço que nos ligava, feito de aventuras mútuas e segredos nunca revelados. Percebi nele o alívio por estar se afastando de mim, e pressenti que sem ele tudo me seria muito mais difícil. Meu amigo montou em seu cavalo, dizendo com o mesmo ar de desprezo fingido que usava quando tinha que se defender de alguma emoção mais forte:

— Pois então, senhor Rei de Israel, sigo viagem: o reino que tu arranjaste é pequeno demais para nós dois.

— Concordo contigo, Daruj: teria que ser imenso, para que pudesses ser arrastado pelos cavalos excitados que correm atrás das éguas no cio...

Daruj riu mais ainda, segurando as rédeas de outro cavalo, mais dócil e sossegado, que lhe haviam trazido enquanto conversávamos:

— Ainda prefiro o outro, mas ele me parece ocupado demais. — Daruj apontou para o cavalo negro que escolhera, correndo em volta da égua que acabara de cobrir, ainda insatisfeito. — Ele se parece demais comigo: nunca acha que o que já tem seja o bastante.

— Assim o digam as mulheres da Grande Baab'el, poderoso Daruj.

— Não falemos de coisas menores, senhor Rei de Israel: o harém que vos espera deve ser gigantesco. Mas, onde estarão essas beldades? Escondidas debaixo das pedras? Cuidado para que, ao virá-las, não encontres nenhum escorpião...

Essa era a nossa maneira de conversar, e eu já começava a sentir saudades dela, vendo que este amigo deixaria o maior de todos os espaços vazios dentro de minha alma. Daruj percebeu que eu me calara, e também se calou: voltou a abraçar-me e subitamente montou em seu cavalo, olhando-me fixamente. Em sua face, li toda a nossa história até esse momento, visualizei toda a nossa vida em comum, inclusive o pedido mudo pára que nunca revelasse segredos que só nos dois conhecíamos. Sorri para ele, que se afastou em trote cadenciado, unindo-se à caravana, avançando mais e mais para dentro dela, de tal forma que em pouco tempo eu já não o distinguia dos outros. Ele se apagava de meus olhos como Yeoshua e Mitridates se haviam apagado: e quando a caravana iniciou seu caminho, aos gritos dos condutores, a poeira quente que subiu de suas patas foi uma boa desculpa para as lágrimas que insistiam em me subir aos olhos. Eu estava só, como nunca antes estivera, à beira de algo que sequer desconfiava o que seria. Olhei a caravana, que serpenteou pelas ruínas de Jerusalém, e quando dei acordo de mim estava ladeado por dois jovens e fortes irmãos pedreiros, que me olhavam com profundo respeito. Atrás de mim, ouvi a voz de Ananias, dizendo-me:

— Zorobabel, futuro Rei de Israel, deves acompanhar-nos até o lugar onde viverás de agora em diante.

Era meu destino, e só me restava aceitá-lo, enquanto significasse prazer e poder. Até esse dia, eu nada tivera, e perdera o pouco em que pusera as mãos. Curvando-me ao destino que me impusera uma cena inesperada de seu grande livro, acompanhei Ananias: daí em diante, viveria o inesperado dos inesperados, como se já me fosse profundamente familiar.

 

Quem creia que ser rei signifique uma cornucópia de infinitas benesses, que nunca cessam de existir. Meus primeiros dias de vida como próximo Rei de Israel fizeram com que eu tremesse cada vez que encarava o que não compreendia, coisas de que comecei a ter uma noção mais que terrível. Feq'qesh me aguardava acima da antiga Fonte de Gion, para onde Ananias e meus acompanhantes me levaram: lá havia sido erguida uma construção de madeira que se pretendia bela e grandiosa, mas que para mim, acostumado ao fausto da Grande Baab'el, não passava de um barracão. Dentro dele havia uma sucessão de salas mais ou menos amplas, iluminadas por janelas de um lado e outro, pelas quais também entrava o vento abafado. Era impressionante a quantidade de trovões e relâmpagos no céu de Jerusalém quando esse vento soprava: mas quando os trovões silenciavam, nenhuma chuva caía, e o ar se abafava mais ainda. Quando me sentei na penúltima das salas, atrás da qual ficavam meus aposentos, o trono que me foi dado era de pedra, trabalhado com cinzel. Impressionante a maneira como havia sido feito: eu nunca havia visto trabalho tão perfeito, pois não havia espaço entre os blocos de pedra que o formavam. Cheguei a correr minha unha pela união de dois deles, e ela não penetrou. Quando me ergui, vi Feq'qesh, com o riso nos olhos:

— Essa é a arte dos pedreiros, Zerub: fazer de pedaços de pedra uma pedra só, porque todas as pedras são pedaços da Grande Pedra original de que o Universo nasceu. Nosso trabalho é reconstruir dia a dia esse Universo, reajuntando pedaços de pedra que andavam separados de sua raiz.

Feq'qesh dizia coisas que ocultavam outras, e eu tinha que descobri-las por mim mesmo. Nada tinha apenas um significado, e a riqueza de sentidos no que ele me dizia era demais para mim, acostumado a um mundo de opções simples. Minha mente até esse dia só pensava o mundo em termos de Isso Ou Aquilo, raras vezes conseguindo enfrentar a opção Isso E Aquilo: mas nunca me acostumara a pensar o mundo em termos de Nem Isso Nem Aquilo, tendo ainda mais dificuldade quando ele se mostrava como Isso E Aquilo E Aquilo Também. Feq'qesh mostrava o mundo como sendo uma cebola descascada camada por camada, sendo cada camada o oposto da anterior. Mesmo assim, com todas as novidades à minha volta, além dos dois guardiães que de mim não arredavam pé, eu começava a me sentir importante. Aparentemente, tudo existia para me servir, e isso era bom. Minha alma se comprazia com isso, até o momento em que Feq'qesh e Ananias se acomodaram em pequenos escabelos aos meus pés, olhando-me com gravidade:

— Zorobabel, é preciso organizar tua vida de amanhã em diante. — A voz grave de Ananias me causou um frio na espinha. — Para que sejas o Rei de Israel, é necessário que estejas preparado para isso, não restando nenhuma dúvida quanto à tua linhagem e teu poder.

Feq'qesh completou:

— Tudo que for necessário, terás que saber. O que não souberes, terás que aprender.

— Eo que eu não aprender?

— Isso não se discute: o que tiveres que aprender, aprenderás. Não importa o quanto custe ou o esforço que tenhas que fazer.

Meu sorriso se apagou: seria essa a vida de um rei? Eu não podia acreditar: tinha visto a vida de fausto que o Rei da Babilônia levava, entre riquezas sem conta. Seria isto real apenas em grandes impérios? Quis dizer a Ananias e Feq'qesh que assim o trato estaria desfeito, mas cada um dos dois puxou de dentro de seus mantos uma tabuinha encerada, onde alguns sinais estavam riscados, vermes congelados sobre carne putrefata. Eles olhavam para essas tabuinhas de quando em quando, como se nelas estivesse traçada a minha vida, e Feq'qesh me perguntou:

— Sabes ler e escrever, Zerub? — Um rubor intenso me tomou as faces, e Feq'qesh, percebendo-o, sorriu. — Não te agastes. Raríssimos reis o sabem, e todos dispõem de escribas e auxiliares para o que é considerado coisa menor. Em teu caso, é importante que aprendas, e também alguns rudimentos de certas ciências, o suficiente para que te destaques entre tantos outros, ao seres apresentado como descendente do mais sábio de todos os reis, teu avô Salomão.

A vergonha me cobria: como podia pretender igualar o maior de todos os sábios, se não era capaz de aprender nem o mínimo com que me ameaçavam?

Ananias debruçou-se para a frente, com um ar de grande interesse:

— Teu pai, como rosh'ha'golah da Grande Baab'el, não te instruiu na arte da leitura e da escrita?

Era um momento difícil, que eu devia encarar da melhor maneira possível:

— Não. Na verdade, tentou muitas vezes, mas eu não me interessei.

— Mesmo quando ainda muito jovem?

— Todas as vezes em que tentou, eu reagi: nada do que ele tinha a dizer me despertava qualquer interesse, e assim que pude me livrar de seu jugo, escapuli. Eram sempre histórias de um povo morto, cantadas com tristeza em uma língua também morta. Por que eu deveria me preocupar com isso?

— Para saberes de onde vens, quem és, para onde vais. Nunca pen-saste nisso?

— Claro que sim! Mas de que me adianta saber coisas que aconteceram antes que eu nascesse? Sei de onde vim: vim da Grande Baab'el. Sei quem sou: meu nome é Zerub e tenho nas veias o sangue de um certo David. Para onde vou? Que me importa? Se os deuses decidem meu destino, e eu nada posso fazer quanto a isso, aceito o que me derem, e para mim isso é o bastante.

— Crês então que estamos no mundo como simples joguete dos deuses?

Foi a minha vez de sorrir:

— Senhores, minha própria história é garantia disso: não faz muito tempo, saltava feliz pelos muros da Grande Baab'el. E ainda ontem não era mais que um simples agregado da caravana dos pedreiros que segui quando se embrenharam na escuridão da cidade, e que, depois de quase me matar, me glorificaram como rei destas ruínas. Se isso não é ser joguete dos deuses, não sei o que o seria...

Feq'qesh deu uma gostosa gargalhada:

— Já fala como um rei. A linguagem desabrida parece ser intrínseca à realeza... ontem não falarias assim, Zerub...

— Ontem ainda não o era. Mas, se estiverdes arrependidos, a mim pouco se me dá: não pedi a posição, e tenho tão pouco interesse por ela quanto tinha pelas histórias de meu pai. Posso vagar-vos o lugar imediatamente...

Dizendo isso, ergui-me do trono, pronto a deixá-lo: na verdade, esperava ansiosamente que não vissem por trás de minha arrogância o terror que estava sentindo, nem o alívio que sentiria caso aceitassem minha desistência. Mas Ananias se ergueu rapidamente, com preocupação na voz:

— Por Yahweh e pelo sangue de David que corre em tuas veias. Como podemos abrir mão do Ungido, do mélech prometido, se foi por ti que esperamos durante dez semanas de anos? Tua vinda foi anunciada por inúmeros profetas que viveram antes de nós, e agora que te encontramos, não podemos desperdiçar-te!

Estanquei sobre meus pés, principalmente porque os dois latagões que não se haviam afastado de mim desde o subterrâneo cheio de pedreiros deram um passo conjunto em minha direção, apoiando as lanças com o braço esticado, a outra mão rigidamente posta sobre as espadas à sua cinta. Não seria fácil escapar dessa tarefa que a cada instante me atraía menos: a visão desses esbirros — não sabia se ali estavam para defender-me ou constranger-me — era atenuada pela face sorridente de Feq'qesh, olhando-me como quem diz: "Caíste em mais uma armadilha, ladrãozinho da Grande BaaVel."

Respirei fundo, pus no rosto um sorriso parecido com o de Feq'qesh, e, com o ar de enfado comum a todos os reis, disse:

— Dizei-me então quais são minhas obrigações, já que estou sendo elevado à posição de menino de escola.

— Existisse uma escola para reis, e o mundo seria um Éden — disse Feq'qesh. — Mas nós, pedreiros de Yahweh, que sabemos o valor do conhecimento, podemos dar-te coisa melhor: nossa experiência, ensinan-do-te tudo o que sabemos e fazendo com que te transformes naquilo que nunca pensaste ser. Se o que te ensinarmos não for verdadeiramente aprendido, tua realeza será apenas uma casca que usarás de quando em vez, e sempre da maneira mais errada. Cada um tem seu papel a cumprir no Universo de Yahweh, e no momento o teu é esse. Queres que te mostre a vida que levarás até que possas dizer "sou o rei de meu povo"?

Não havia saída. Os latagões continuavam olhando em minha direção. Minha fuga daquela realidade não seria coisa fácil: enquanto conseguisse fazê-los crer em mim e em meus bons préstimos e intenções, comeria, beberia, seria tratado com algum respeito, tendo um teto firme sobre a cabeça e a garantia de almofadas limpas onde descansaria o corpo. Não era o melhor dos mundos, mas também não era o pior, mesmo com a presença dos dois guardas me recordando a temporada que passara nas casernas da Grande Baab'el. Dei meu melhor sorriso, aquele que sempre convencia os outros de que eu era um sujeito decente, e continuei ouvindo Feq'qesh:

— Tens que aprender a história de teu povo: conheces a língua de teus antepassados?

Meu silêncio foi suficiente para que Ananias suspirasse, e Feq'qesh seguiu com seu interrogatório:

— Bem, não sabes o hebraico, a história de teu povo nunca te interessou. És versado em alguma arte, ciência, tens algum conhecimento das verdades do Universo?

Meu rosto se avermelhava mais e mais a cada pergunta: Feq'qesh, plenamente consciente de minhas limitações, estava disposto a ressaltá-las sem cessar, até que eu explodisse. O sorriso se congelava em meu rosto, enquanto eu aguardava uma mudança de rumo: Feq'qesh olhou para Ananias e ergueu as mãos acima dos ombros, torcendo a boca em desalento:

— Teremos que definir o indispensável para o Rei de Israel e insistir apenas nisso, para que dentro de um ano ele possa cumprir a primeira parte de sua missão.

Um ano? Uma missão? Eu não a desejava, nem pretendia perder tempo com essa falsa liberdade. Assim que pudesse, escapuliria e iria juntar-me a meu amigo Daruj, no Egito do Faraó. Só precisava esperar o momento certo, e até lá aproveitaria o melhor que me dessem, preparando meu inevitável desaparecimento.

— Se pudesses viver entre nós, pedreiros, trabalhando a pedra e o espírito ao mesmo tempo... mas o próprio tempo nos impede disso:

Há que ensinar-te antes de tudo as coisas essenciais a um Rei de Israel, que precisa ser três — disse Feq'qesh, com o olhar rútilo. — Um verdadeiro mélech deve trazer em si o empenho, a força e a sabedoria de nossos três maiores homens: Moisés, David, Salomão.

Esperava-se de mim três vezes mais do que me era impossível dar: qualquer comparação com heróis sempre seria degradante. A essência do heroísmo é verdadeiramente a autoconfiança, e o que em mim passava por essa virtude era apenas a ostentação de qualidades que eu não possuía, mas das quais me vangloriava sempre que podia.

Feq'qesh continuou, enquanto Ananias sacudia a cabeça:

— Tem que ser maríhig, líder de seu povo, pronto para guiá-lo pelo deserto até a Terra Prometida: tem que ser me'faked, apto a comandar o povo nas batalhas contra os inimigos: e tem que ser ma'shiach, ungido por Yahweh para erguer-lhe Templo e Morada!

— Impossível! — O grito saiu de minha boca sem que eu pudesse retê-lo. — Sou um homem comum, e nada disso alguma vez me foi exigido nem ensinado. Por que me impor o peso de uma tarefa que não cumprirei?

Ananias pigarreou:

— Pelo contrário, Zorobabel: não te estamos impondo nada. Estamos apenas reconhecendo em ti aquele a quem essa tarefa foi dada, para ajudar-te a realizá-la da melhor forma possível. Teu sangue e tua descendência te impedem de recusá-la: deves aceitar nossa ajuda e fazer de teu destino o melhor destino possível.

Era uma armadilha, um enovelado de idéias que só serviam para paralisar as ações de quem nelas estivesse preso. Eu estava manietado em meu falso palácio, e, sem saber como, vi dentro de minha mente, escrita em línguas de fogo negro, a palavra assir, significando exatamente o que eu era: prisioneiro. O mundo à minha volta se apagou: devo ter mudado de cor, porque, quando dei acordo de mim, Ananias estava semi-erguido, sua mão posta em meu braço, olhando-me com genuína preocupação:

— Meu rei sente algo?

Olhei para fora das janelas: no céu plúmbeo de Jerusalém pairava uma gigantesca nuvem negra, vertical, indo do solo aos píncaros do céu, em volta dela revoando aves negras. Desviei meu olhar, tomado por um frêmito de medo: mas a imagem das letras de fogo negro ficou gravada em minha mente, levando tanto tempo para desvanescer-se quanto a imagem do sol em minhas retinas, sempre que eu o olhara de frente. Feq'qesh me observava, e quando se recostou para trás, um sorriso suave bailava em seus lábios. Fiz-me de forte: franzi o sobrecenho, dan-do-me ar de seriedade, e, colocando um cotovelo nos braços de pedra do frio trono, apoiei o queixo na mão, passando os dedos pela frente do rosto, deixando-o semi-oculto entre as falanges, para com isso disfarçar o rugir do coração em meus ouvidos.

Ananias parecia ter gostado de minha atitude, pondo-se a ler na tabuinha rabiscada uma série de tarefas com horários determinados, que eu deveria cumprir à risca. Acordar ao nascer exato do sol; um período de exercícios físicos, seguidos de banhos frios e quentes, uma refeição frugal, verdadeiramente indigna de um rei; horários de estudo com pessoas as mais diversas, que ensinariam de boca a ouvido a língua que eu deveria falar, a história do povo sobre o qual eu deveria reinar, e até mesmo a maneira como ela devia ser registrada, usando a variação das letras fenícias que era o método de escrita em toda a região; aulas de combate, armado e desarmado, a cavalo, de carro e a pé, com lança, espada e escudo, arco e flecha, funda, e até com as mãos e os pés, além de uma série de atividades que Feq'qesh chamava de "vida palaciana", modos e maneiras de um rei se comportar em meio a sua corte, seus súditos, seu povo, em eventos públicos e no trato privado, e mais todos os detalhes de seu relacionamento com outros reis e com suas mulheres, sem as quais não havia soberano que pudesse dizer-se verdadeiramente poderoso. Esse programa verdadeiramente exaustivo se estendia até o pôr-do-sol, astrologicamente determinado pelo momento em que a nesga de luz amarelada se escondia por detrás da mais baixa das montanhas a oeste da cidade. Daí em diante eu estaria livre para tomar a última refeição do dia e deitar-me para dormir, se já não tivesse desmaiado antes, pelo esforço excessivo. Regozijei-me por ter a mão ocultando o rosto: aquilo ficava a cada instante pior do que antes. Se minha vontade tinha sido a de abandonar a sala, agora era de que se me abrisse aos pés um buraco mais fundo que os abismos do fim do mundo. O que restaria para mim mesmo? Pelo andar do carro, ser Rei de Israel era bem pior que ser soldado de Belshah'zzar, pois nos subterrâneos do Império ainda se tinha algum tempo livre. Não reagi, contudo: dissimulei meu desagrado, e Ananias abriu um largo sorriso, acenando grave e satisfeito. A seu lado, Feq'qesh, cujo sorriso era bem diferente, pois com toda certeza percebia o que me ia no espírito, questionou-me:

— Não queres saber o que fazer com o que resta de vosso dia, Rei Zerub?

Feq'qesh certamente brincava comigo, e continuou:

— Os pedreiros dividimos o dia em três partes: uma para o trabalho, uma para a meditação e uma para o descanso. No caso dos reis, e principalmente no teu, essa divisão se faz de forma diversa, porque até mesmo os reis precisam descansar corpo e espírito em contato com a beleza. Nenhum homem pode considerar-se digno desse nome se não conhece a beleza, pois é a partir dela que toma decisões sobre a vida. Quantos no mundo nunca vislumbraram uma migalha sequer do que é belo? Um rei só pode dar aquilo que conhece, e por isso tem que estar em contato com as duas formas perfeitas pelas quais a beleza se apresenta.

Batendo palmas duas vezes, Feq'qesh criou nas salas da frente do palácio um movimento inesperado: uma figura coberta por um manto cor de açafrão afastou os reposteiros e entrou na sala, sobraçando a harpa kinríor que Feq'qesh tocara na noite anterior. Meu coração bateu descompassado, e uma esperança sem sentido tomou conta de mim: seria Sha'hawaniah quem ali estava, vindo conceder ao rei os favores de seu corpo inebriante? Enquanto a mulher se aproximava de mim, minhas narinas tremiam, tentando sugar do ar à sua volta todo o perfume que ela evolava. A mulher se ajoelhou à minha frente, apresentando a harpa a Feq'qesh, que fez soar suas cordas. O som da harpa me deu a certeza de que era Sha'hawaniah quem ali estava, e foi com grande frustração que percebi ser apenas uma mulher morena, um tanto envelhecida, ainda que mantendo em seu corpo e pele crestadas as formas da feminilidade. Mesmo assim, enquanto ela revoluteou e ondeou seus quadris ao som da música de Feq'qesh, a lembrança de Sha'hawaniah fazia crescer a sensação de desejo em meu ventre: dei graças por estar sentado, com o manto formando uma barreira entre mim e o mundo. Minha excita-Ção aumentava cada vez mais, e eu só temia que o resultado dessa dança fosse o mesmo da outra. Por sorte, Feq'qesh interrompeu seu toque no kinn'or antes que eu me esvaísse de prazer em público: ergueu-se com Ananias, enquanto a mulher, curvando-se sem cessar, andou de costas até sair da sala.

— Boa noite, Zorobabel: que teu sono seja reparador e que Yahweh te indique o caminho que deves trilhar — disse Ananias, também curvando a cabeça.

Feq'qesh, sempre com seu olhar penetrante fixado em meu rosto, disse:

— Amanhã começaremos a fazer de ti um rei. Descansa o melhor que puderes.

Os dois saíram, e os dois esbirros indicaram, delicada mas firmemente, a porta oculta por reposteiros, atrás de meu trono. Eu a atravessei, chegando a meus aposentos: os dois guardas não entraram, mas suas silhuetas permaneceram toda a noite marcando o tecido da cortina atrás da qual ficavam, sem mover um músculo sequer. Eu estava só, olhando uma mesa baixa com frutas, vinho e água que me aguardava ao pé das grandes almofadas onde eu deveria dormir. Não houve sono que me pudesse tomar: as frutas e o vinho não me apeteceram, e tomei apenas dois grandes goles de água numa taça de madeira muito fina e lisa, dei-tando-me sobre o leito e debatendo-me de um lado a outro, percebendo o vento quente nas cortinas das janelas e sentindo em meu ventre a rigidez do membro excitado. Imagens de imensa volúpia me atravessavam a mente, e só consegui conciliar o sono depois de me masturbar por alguns poucos e sôfregos instantes, derramando minha semente nas dobras do tecido, desejando que o sonho me trouxesse um pouco mais do prazer de que só conhecia a superfície.

Acordei sobressaltado com a sonoridade de sinetas que se aproximavam. Tirei de cima do rosto a almofada com a qual o cobrira: a luz baça já entrava horizontal pelas janelas de meu quarto. Os reposteiros da entrada se afastaram, e Feq'qesh pisou a soleira, acompanhado pelos dois latagões que seriam minha sombra. Atrás dele entraram duas servas trazendo figos e uvas muito mirrados, bolas de queijo de cabra temperadas com manjerona e sálvia, e duas jarras metálicas, uma com água e outra com um vinho de cheiro muito resinoso, que me desinteressou vivamente. Comi um pouco de tudo: os figos e uvas, apesar de pequenos, tinham sabor muito intenso, e a água fresca possuía um gosto e um perfume que eu nunca havia experimentado. Feq'qesh apontou para a jarra e me disse:

— Vem da fonte subterrânea de Gion: o Rei Ezeqias, atacado pelos assírios, cavou um imenso canal por dentro da pedra, enchendo permanentemente a piscina de Siloé. Foi um dos trabalhos que nós pedreiros executamos nessa cidade. É a água que os reis de Jerusalém devem usar para beber e banhar-se, e tu fizeste a escolha acertada, não tomando o vinho. Os que começam o dia enevoando o espírito raramente encontram forças para dominar o corpo. Agora, ergue-te, Zerub. Hoje se inicia a tua educação essencial.

As duas mulheres se aproximaram e me despiram, deixando apenas a cinta de pano com a qual eu cingia os rins para sustentar meu membro. Por um instante, fiquei envergonhado: o pano tinha sinais de minha ejaculação na noite anterior, e temi algum sinal de reprovação. Em momento algum, no entanto, passaram perto de qualquer parte sensível de meu corpo: com esponjas de pano macio, esfregaram minha pele, e depois de secar-me derramaram sobre minha cabeça um óleo muito fino com perfume de olíbano, que escorreu por minha face e minha incipiente barba, descendo em filetes por meu peito. Minhas unhas dos pés e mãos foram cortadas e limpas, e dois cachos dos cabelos ainda curtos, na região das fontes, foram puxados para baixo, separados do resto da cabeleira, que foi aparada para ter melhor forma. As mulheres saíram, e Feq'qesh ordenou que eu tirasse a cinta de pano branco: obedeci, ficando envergonhado e nu, no centro de meu quarto. Feq'qesh deu uma volta em torno de mim, observando minha anatomia, falando logo após:

— Não estás em mau estado, Zerub: a vida de excessos na Grande Baab'el não conseguiu estragar-te o corpo nem desgastar-te a juventude. Tens aí em cima desses músculos mal trabalhados uma camada de gordura que em nada te ajuda, pois o excesso de gordura só serve para aumentar o calor de quem o sente.

Olhando em direção a meu membro, deixando-me completamente sem jeito, Feq'qesh continuou:

— Temi por um instante que, sendo assim tão rebelde quanto aos hábitos dos antepassados, tivesses conseguido escapar da circuncisão. Ainda bem que um menino de oito dias de idade não pode fugir sozinho. Teu pai garantiu tua inclusão no pacto entre Yahweh e Seu povo.

Um relâmpago de fogo negro surgiu em minha mente quando Feq'qesh disse a palavra circuncisão, e, da mesma maneira que na noite anterior, estranhas letras de fogo negro cobriram o espaço subitamente vazio dentro de minha mente: oito delas, agrupadas quatro a quatro, dizendo, sem que nenhum som fosse proferido, a expressão brWmílâ. Quando dei acordo de mim Feq'qesh estava no mesmo lugar à minha frente, e eu não sabia quanto tempo havia passado nesse delírio, que pela segunda vez caía como um raio sobre mim. Temi ter perdido a consciência, mas aparentemente isso não tinha acontecido, porque Feq'qesh continuou como sempre, perguntando-me:

— Tens algum ardor, algum fluxo malcheiroso que te escape do pênis?

Acenei negativamente, e Feq'qesh suspirou, satisfeito:

— Ainda bem: para o povo de quem serás rei, a pureza é essencial. Não tenhamos pressa: hás de aprender tudo, e no devido tempo estarás pronto para fazer o que deves fazer. Vamos?

Vesti-me rapidamente, buscando fugir do momento embaraçoso: as roupas eram macias e perfumadas, ainda que usadas. O cinto de couro muito lixado estava apertado em minha barriga, e um dos dois guardas fez-lhe um furo extra com seu punhal, para que a fivela em formato de estrela de seis pontas, estranhamente entrelaçada, não machucasse meu ventre. Depois que meu manto curto já estava cintado e arrumado, trouxeram um estranho peitoral de couro e prata, muito antigo, cujas peças de metal haviam sido brunidas e escovadas até a exaustão. As estrelas de seis pontas, também entrelaçadas como se feitas de uma só fita de prata trabalhada, serviam para manter sobre meus ombros uma capa mais ou menos longa de cor vermelha. Depois, puseram-me aos punhos duas largas pulseiras de metal batido, que me iam até o meio dos braços. Um deles se ajoelhou e tentou colocar em meus pés um par de sandálias de couro muito macio, trabalhado com pequenos nós de prata, mas não deu certo: meus pés eram muito pequenos e literalmente dançavam dentro do calçado. Feq'qesh olhou aquilo e disse:

— Não é necessário. As sandálias que ele usa estão em pior estado que essas, mas pelo menos não lhe magoarão os pés. Deixemo-lo com elas.

Então Feq'qesh se aproximou de mim, pegando, no monte de roupas que havia sido trazido, um saco de pano negro e tirando de dentro dele uma tiara de formato triangular, feita de prata e esmalte muito azul, incrustada de pequenas estrelas de seis pontas, salpicadas aleatoriamente no esmalte como se fossem estrelas no céu. Colocaram-na sobre minha cabeça, e se afastaram de mim, deixando-me no centro do aposento, observado de todos os lados por quem pretendia fazer de mim aquilo que eu não era.

O mais constrangedor ainda estava por vir: quando entramos na sala onde ficava o trono de pedra, lá estavam muitos velhos a quem eu nunca tinha visto. Os poucos jovens que ali estavam, homens na sua grande maioria, pareciam raquíticos e depauperados, como se tomados por alguma perigosa doença. Alguns traziam pequenos ramos de palmeira nas mãos, e todos foram unânimes em gritar meu nome quando entrei na sala, acenando com os ramos e desfilando à minha frente depois que me sentei ao trono, tocando a fímbria de meu manto e as estrelas de seis pontas em meu peitoral, dizendo mélech Zerub, zera'David, Zerub'baab'el. Eu era rei de um povo arruinado e doente, e o destino, além de me fazer perder o que mais desejava, ainda me impunha um papel que eu não queria, tornando-me prisioneiro de meus antepassados, como um dia já o fora de meu pai. Amaldiçoei em silêncio esse pai que me dera o sangue dos reis do povo moribundo. Sua maldição fora mais terrível que a minha, pois me infectara com a sina que não me agradava. Eram vingativos, meu pai e seu deus: mas eu escaparia do destino por minhas próprias forças e meu próprio desejo. Mantendo um exterior calmo e sereno, meu peito era turbilhão, ódio, desprezo, e muito tempo se passaria até que eu compreendesse as palavras de meu avô Salomão, ao dizer que a maior glória do homem é a capacidade de superar todas as transgressões, principalmente as próprias.

 

O poder é, antes de tudo, uma sucessão de deveres a cumprir, rituais a realizar, e a manutenção de uma aparência calma e tranqüila, eivada de autoridade sem jaca. Espera-se do soberano que ele seja naturalmente superior à capacidade de ser humano, e qualquer atitude humana nos reis é sempre encarada como um absurdo. A outra coisa que percebi é que reis, de maneira geral, não têm nenhum direito à privacidade, sendo bem menos aquinhoados que os anônimos que os saúdam. Meus dois protetores, Heman e Iditum, eram um par de gêmeos idênticos, imensos de físico e adeptos do silêncio mais absoluto. Se alguma vez ouvi de qualquer dos dois alguma palavra, não me recordo. Estavam sempre a meu lado, seus olhos não se desviavam de mim nem por um instante: quando um deles tinha que dar atenção a qualquer coisa que não fosse a minha pessoa, o outro arregalava os seus, tentando vigiar-me por dois. Era essa a sensação que eu tinha, e, depois de tentar entabular com eles alguma conversa em que não apenas eu falasse, desisti, passando a encará-los como apêndices que tivesse que carregar por toda parte. Na hora em que me recolhia para dormir, eles se postavam do lado de fora dos reposteiros, e muitas vezes acordei para me dar conta de suas sombras do lado de fora, como se fossem estátuas de pedra.

Minha programação de vida nos primeiros dias foi tão idêntica, que depois de pouco tempo eu já acordava com vontade de gritar, ansioso por alguma diferença na rotina entediante. O que me esperava era exatamente igual, todos os dias: primeiro o banho ritual, executado pelas mulheres cobertas até a alma com seus mantos; depois os exercícios físicos, feitos de forma repetitiva segundo as ordens de um grande soldado chamado Théron, de mãos calejadas e um sotaque carregado por causa de sua origem grega. Passei pelos exames que ele me fez e depois pelos exercícios diários com e sem armamento, que me tiravam o fôlego, deixando-me preocupado apenas em sobreviver, odiando cada esforço, cada queda, cada incapacidade de realizar com precisão ou agilidade o que ele me obrigava a fazer. O mais terrível de tudo era a platéia, observando e comentando cada movimento e cada passo que eu desse, como se eu fosse um animal de raça em exibição.

A tarde trazia um outro tipo de ensinamento: um velho de longas barbas brancas, coberto por um puído manto branco bordejado de azul, sentava-se à minha frente e proferia, de cor e com voz pausada, uma longa série de sons na língua dos hebreus, a mesma que meu pai me tentara fazer saber à força, e que eu tinha expulsado de minha mente por considerar inútil. Minha opinião continuava a mesma: a longa série de palavras sem sentido se repetia circularmente durante horas, fazen-do-me cabecear. Eu me sobressaltava e percebia que o velho nem se dava conta disso, pois, ao chegar ao fim de seu discurso monótono, respirava fundo e começava de novo a partir da primeira palavra que me dissera, e que no primeiro dia foi bereshit. Cheguei a cochilar nesse primeiro dia, calculando quantas vezes ele já repetira aquele som na tarde morna e sufocante, chegando a sonhar com um desfile interminável de letras sobre o cinzento do céu, na frente das quais sempre estava um daqueles rabiscos de fogo negro, feito de três chamas articuladas e aberto de seu lado esquerdo, como uma boca de serpente que se projetasse para o futuro, arrastando atrás de si as vértebras de suas semelhantes, buscando morder o próprio rabo. Ao lado do velho, de vez em quando se sentava um outro tipo, de nariz adunco e olhos vesgos, que lia de um papiro, na mesma língua arrevesada, uma série de palavras que parecia indicar maneiras de agir, já que ele se erguia e fazia os gestos, olhando-me com curiosidade, aguardando que eu o imitasse, coisa que me recusei a fazer.

Quando as trombetas tocavam, anunciando o final do dia de trabalho, o velho e o vesgo se erguiam e deslizavam para fora do salão real, deixando-me virtualmente só, ainda que cercado pela presença de meus vigilantes. Logo após, as trombetas soavam, e o salão era invadido pelos súditos envelhecidos que ali haviam estado na manhã do primeiro dia, e a mesma série de orações incompreensíveis se dava, antes que o céu se enchesse de trevas, os candeeiros fossem acesos em todas as salas de meu palácio tão ridiculamente pobre, e todos se retirassem, deixando-me em companhia dos que cuidavam de minha higiene e alimentação, até que eu, cabeceando de sono, fosse deitado sobre as suaves e macias almofadas. Era muito difícil dormir, nessas condições, sentindo-me um joguete sem vontade nem decisão sobre a própria vida. Meu pai não me conseguira enquadrar, e nem esses estranhos fariam melhor, a não ser que eu o permitisse. O fato de ser rei um dia me traria alguma vantagem, riqueza, algum poder com o qual eu realizasse desejos que só revelava a mim mesmo, sonhando com um mundo onde Sha'hawaniah dançava sem descanso à minha frente. O prazer que esse sonho me dava quando passei a me recordar dele antes de dormir era incomparável, e meu corpo se encarregava de minha satisfação, realizando em forma de polução noturna os prazeres de que meus sonhos viviam cheios. Ao acordar, estava a cada dia mais entediado e irritado, pois não via vantagem em ser rei, se os prazeres que podia ter eram apenas os de minha imaginação. Aquilo tinha que acabar imediatamente. Na manhã do oitavo dia, quando as trombetas soaram para me encontrar insone e agastado, não me ergui do leito. Meus protetores e os outros súditos entraram em meus aposentos, e eu me agarrei com toda a força à borda da plataforma onde estava deitado, travando os maxilares, disposto a não mover nem um dedo enquanto a situação não se modificasse, e assim permaneci sem dar atenção à agitação dos que me cercavam. Quando um dos guardas tocou meu corpo, repeli-o bruscamente, voltando a me agarrar ao leito. Só então perceberam que eu o fazia por minha própria vontade: sem entender meus motivos, perderam o controle e se puseram a esbravejar, chorar, erguer as mãos para o céu e amaldiçoar o dia em que Yahweh pusera sobre mim a marca da realeza. Continuei hirto, sem um movimento sequer. Passado algum tempo, percebi pelo canto dos olhos que Feq'qesh e Ananias estavam a meu lado. Saltei subitamente sobre as almofadas, com o olhar fuzilando, e gritei:

— Saiam todos! Que só fiquem aqui Ananias e Feq'qesh! Quero todos os outros fora daqui!

Minha figura devia mesmo ser muito estranha: um jovem desgrenhado, aos berros, agarrado às almofadas de seu leito como se fossem sua última salvação, parecendo mais um dos reis loucos de que a história está cheia. De minha parte, era tudo voluntário: mas, não tendo como chamar-lhes a atenção, fiz uso desse expediente, conseguindo que até mesmo meus dois guardiões saíssem da câmara, deixando-me a sós com Feq'qesh e Ananias. O pedreiro nada compreendia, ao passo que Feq'qesh, com o rosto sério, tinha no fundo dos olhos um ar de riso que me fez realmente perder as estribeiras:

— Recuso-me a ser um brinquedo em vossas mãos! Não quero mais nada disso! Não quero, não gosto, não faço mais! Basta!

Ananias, sinceramente preocupado, perguntou-me:

— Zorobabel, o que está acontecendo? Alguma coisa te desagradou? Vociferei:

— Tudo, Ananias, tudo! A comida, a bebida, os horários, as tarefas, as pessoas, a língua, este palácio onde sou prisioneiro, esta cidade pobre e sempre escura! Não suporto mais! E pelo que pude perceber, não sou o único que não suporta mais! Livremo-nos imediatamente uns dos outros, Ananias! Encerremos imediatamente nossa ligação!

Os olhos de Ananias encheram-se de lágrimas, e subitamente ele virou-me as costas e saiu da sala, em passo acelerado. Berrei em sua direção:

— Aonde pensas que vais, animal? Não terminei contigo, ainda! Os dedos de Feq'qesh morderam-me a carne dos ombros, e ele me sacudiu diversas vezes, enquanto dizia, em voz surpreendentemente calma:

— És um mal-agradecido, Zerub. Não percebeste ainda o que te cerca? Presta atenção ao que fica além de teus desejos e vontades! Se o que recebes de nós não te agrada, é o melhor que temos a dar: a cidade é pobre, fraca, as terras à nossa volta dificilmente suportam alguma colheita maior que azeitonas e uvas. As frutas que comes diariamente são escolhidas entre as melhores que temos, para que o rei prometido dos hebreus possa ter sempre o melhor. Os panos com que te vestimos são relíquias sagradas, restos do tesouro espoliado pela Babilônia, guardados com carinho para que o rei possa estar coberto de acordo com sua posição. A cidade é sempre escura durante à noite por tua causa, Zerub. Não notaste que teu palácio, ao contrário da cidade, está sempre iluminado, com candeeiros queimando azeite a cada braça de parede? O povo de Jerusalám abre mão do azeite que devia estar iluminando suas noites, passando-as às escuras para que seu rei nunca precise reclamar da escuridão. És o rei dessas pessoas, Zerub, por direito de sangue, e elas tudo te dão porque te esperavam ansiosamente: o que tens a dar-lhes em troca?

Minhas faces ficaram rubras, de vergonha: Feq'qesh afrouxou seu aperto, sem desviar seu olhar do meu. Eu não conseguia encará-lo, consciente de meu próprio erro. Balbuciei:

— Eu não sabia...

Feq'qesh deu um de seus sorrisos insondáveis:

— Mas agora já o sabes. O que faremos, então?

Como superar esse momento de vergonha? Se estivesse em outro lugar, como estaria? Decerto em péssimas condições, vagando pelo mundo sem destino certo. A comida que me davam era segura, o tratamento que me dispensavam, eu nunca o teria em nenhuma outra parte: o rei só tem importância verdadeira para seus súditos. Feq'qesh falara em um ano: eu tinha que garantir-lhe um ano e depois aceitar ou rejeitar a missão, e daí ou seguiria sendo rei dos hebreus, ou partiria para perseguir minha própria felicidade. Que mais havia a fazer? Correr atrás de um império nas terras do Faraó, como fizera Daruj? Não via sentido nisso: não era guerreiro, e se tivesse que defender meu reino com a força das armas, não me sairia muito bem, porque a melhor defesa que conhecia ainda era a rapidez de minhas pernas. Só me restava ficar entre meu povo, aproveitar ao máximo essa oportunidade inesperada, e depois seguir em frente, para fazer o que me apetecesse. O problema agora era voltar atrás no que dissera sem envergonhar-me mais ainda. Ergui-me do leito sem olhar para Feq'qesh, sabendo que o seu sorriso me desarmaria. Vesti-me o mais rapidamente possível e atravessei os reposteiros, repentinamente, assustando a todos que estavam em minha exígua sala do trono, recebendo deles um pesado silêncio. Agi como se nada estivesse fora de ordem: caminhei os poucos passos que me separavam do trono como se fossem a maior das distâncias, sen-tando-me em meu lugar. Por dentro, meus nervos tremiam e o coração batia descompassadamente, mas meu exterior nunca foi tão hierático. Ao ver-me em meu lugar de sempre, ainda que fora do horário, os súditos que estavam na sala se regozijaram por minha saúde. Ao fundo, junto aos pedreiros, com a face transtornada, estava Ananias, e meu coração deu um salto ao percebê-lo tão magoado por minhas palavras. Mantive a frieza: se não desejava ser um títere em mãos alheias, era preciso que tomasse minha própria vida em minhas próprias mãos. Ergui a voz:

— Tive uma indisposição passageira, e por causa dela fui obrigado a modificar o programa de hoje, cancelando os exercícios físicos que deveria fazer. Gostaria, nesta oportunidade, de agradecer os esforços que todos fazem para que eu me transforme em um rei digno, principalmente a Ananias, a quem devo, mais do que respeito, o alimento, as vestes, a luz, a vida. Sou teu eterno servidor, meu mestre.

A face de Ananias esvaziou-se dos sentimentos que a distorciam, e eu mantive meu olhar sobre ele, num pedido mudo de desculpas, que ele percebeu e aceitou, curvando a cabeça com extrema delicadeza, sabendo perfeitamente a que eu me referia. Nunca tinha aprendido a desculpar-me, e ele, compreendendo essa incapacidade, sorriu. Só me restava agradecer-lhe por livrar-me da vergonha: mas antes que o assunto se desdobrasse, pigarreei e continuei:

— Vós desejais que eu seja vosso rei e cumpra a missão para a qual vosso deus me destinou. Todas as vontades, tanto a de vosso deus quanto a vossa, estão sendo respeitadas: mas, e a minha? Em nenhum momento me perguntaram se desejava ou não essa honra, e desde que pusestes vossas mãos sobre mim tenho sido apenas um cumpridor de deveres, nada mais. Eis-me aqui, joguete em vossas mãos. Por isso vos pergunto: pode haver um rei sem vontade própria?

Um frêmito de emoção tomou a audiência, e eu saboreei a pequena vitória, que se tornou menor quando Ananias, dando um passo à frente, curvou a cabeça, dizendo:

— Meu senhor Zorobabel, acabas de colocar-nos em posição muito difícil. Temos sido açodados em nossa alegria de cumprir a profecia, felizes por Yahweh nos ter dado aquele que nos reergueria às alturas. Nem por um momento pensamos naquilo que tu desejas, e desrespeitamos a tua vontade.

Um dos sacerdotes presentes irritou-se:

— Tolice! A vontade de um rei é perfeitamente atrelada à vontade do deus que o escolheu! Ai do rei que ousar desrespeitar a vontade de seu deus!

Um murmúrio de aprovação correu a sala, e os únicos que não reagiram favoravelmente foram os pedreiros, que, na audiência, eram minoria. Dentre eles, soou a voz de Feq'qesh, dando rumo à questão:

— Yahweh, ao criar o Universo, o fez para que tudo servisse à Sua obra máxima, o Homem, feito à Sua imagem e semelhança. Para que fôssemos em tudo e por tudo semelhantes a Ele é que nos dotou de uma qualidade divina, que o homem e apenas os homens temos como parte essencial de nossa existência: o direito de escolher livremente o que desejamos fazer de nossas vidas.

Um muxoxo se ouviu, saído da boca do sacerdote: mas Feq'qesh, erguendo a mão direita, fez silêncio na sala, para dizer:

— Um homem só pode estar perto de seu Deus se assim o quiser, por uma escolha consciente, e não uma obrigação forçada. Yahweh nos fez a todos livres, não escravos, dando-nos a liberdade de escolhê-Lo por nossa própria vontade. Como podemos pretender homenageá-Lo desrespeitando Seu mais poderoso desígnio?

Os muxoxos se ergueram novamente: Feq'qesh tinha sobre as pessoas uma ascendência verdadeiramente admirável: suas opiniões eram respeitadas acima e além da conta, e isso se devia à profunda certeza que mostrava. Ele estava decidindo a questão a meu favor: o que eu deveria fazer? Arrancar as vestes reais e refazer meu caminho até a Grande Baab'el? Ou enfrentar o futuro inesperado que o destino me concedera e fazer o que me fosse possível? O sacerdote, com menos veemência, ergueu a voz para Feq'qesh:

— Não é assim! A vontade de Yahweh é a única que importa! Feq'qesh riu:

— Então, para que nos teria dado Ele a capacidade de escolha? Se apenas a vontade de Yahweh importasse, só haveria a vontade de Yahweh, e nenhum de nós, suas criaturas, seria capaz de qualquer outra coisa que não fosse essa vontade. Não sendo assim, como assim não é, a capacidade de escolha tem um motivo: é a capacidade de escolher que nos faz semelhantes a Ele. Não existe no Universo nada mais belo que o momento em que a escolha de um homem faz com que sua vontade seja uma só com a vontade de Yahweh...

Foi como se eu entendesse o motivo de minhas dúvidas: esse deus Yahweh esperava que eu fizesse a escolha certa, porque só através de minhas dúvidas e pela minha própria escolha é que Sua vontade teria sentido. A decisão era minha, e o que eu decidisse afetaria muitas outras pessoas, além de mim. Chegara enfim a hora de tornar-me adulto, e a palavra acharaiut, responsabilidade, atravessou o espaço de minha mente. Olhei para Feq'qesh: ele sabia o que me ia na alma, de cuja existência eu tivera o primeiro vislumbre. Não estava livre de minhas dúvidas, mas entendia que elas deveriam ser enfrentadas da maneira mais honesta, pois de nada valia ser do povo de Israel se não o fosse de mim mesmo. Respirei fundo, erguendo a mão direita, e disse:

— Não sei se posso ser o rei que desejais. O sangue que me corre nas veias nada me diz: mas não posso negar esse sangue que me une a vosso destino. Não pretendo enganar-vos: meu desejo mais intenso seria estar longe daqui. Reconheço uma tarefa a cumprir. Se o momento mais belo do Universo acontece quando uma criatura de Deus faz por sua própria vontade a mesma escolha que Yahweh, este é o meu momento da escolha, e eu o enfrentarei da melhor forma possível.

Silenciei, o coração escurecido por anos de inconsciência, começando a iluminar-se pela estranha luz negra que andava escrevendo palavras desconhecidas em minha mente, trevas iluminando trevas e delas extraindo a claridade mais intensa, feita de algumas poucas certezas. Eu seria o que devia ser: se um dia tivesse que superar a mim mesmo, que esse momento chegasse quando eu já soubesse como ser mais do que era. Os homens que estavam na sala me olhavam, mas foi a Feq'qesh que encarei, para dizer:

— Aceito ser vosso rei e cumprir a profecia, e nada além disso. Assim que o Templo de Yahweh estiver reerguido, seguirei minha vida. Faço essa escolha por minha vontade própria, sem equívoco nem reserva mental de qualquer tipo.

A alegria foi grande, mas do meio do riso de júbilo se ergueu a voz de Feq'qesh, dizendo o que imediatamente gerou um silêncio ainda maior que o anterior:

— E o que desejas em troca disso, Zerub? Se ides prestar-nos esse serviço, é justo que te seja dada alguma coisa em troca. O que queres?

Finalmente: eu teria o que desejava, numa troca justa. Milhares de coisas passaram por minha mente, riquezas, prazeres incontáveis, os desejos mais absurdos. No entanto, do fundo de meu coração se ergueu o mais singelo de todos eles, permanecendo de pé enquanto os outros ruíam, talvez por ser o único que podia ser realizado. Eu aceitava esse desígnio como vontade de deus, por ser nesse momento o único comum entre nós. Suspirei fundo, ergui a cabeça e disse:

— Todas as noites, depois de minha última refeição, Feq'qesh deve fazer de mim o que me prometeu na Grande Baab'el: quero que me ensine a ser músico como ele, para que, quando minha tarefa estiver cumprida, eu possa finalmente viver como meu coração anseia.

Ninguém entendeu, mas Feq'qesh, sabendo o que eu desejava, avançou em minha direção e apertou-me a mão, selando o contrato entre nós. Depois, estreitou-me em seu peito com tal emoção, que eu não pude conter o pranto, e chorei, passando em instantes de menino a homem. Meus motivos para chorar eram muitos, mas o mais forte deles era o pensamento "se meu pai me visse agora", fazendo lembranças se derramarem de meus olhos, lavando minha alma.

A figura de meu pai, oculta sob camadas e camadas de ressentimento e rebeldia, apareceu-me nesse instante como realmente era, sem nada do que a ocultava desde que eu decidira ser o oposto do que ele desejava. Nunca entendera o que ele queria de mim: mas agora podia ver que, como todos os outros, ele também queria o meu melhor, mesmo que isso não fosse o meu desejo. Meu pai não respeitara minha vontade, e as razões que o levavam a isso eram agora claras: obrigar-me a aprender o que não me interessava e preparar-me para um futuro que eu não conhecia, ainda que isso criasse um abismo entre nós. Se eu tivesse entendido seus motivos, tudo teria sido mais fácil: mas minha alma nada sabia dos motivos alheios, porque eu só via os meus próprios. Enxuguei os olhos com as costas da mão, e um levita imediatamente pôs entre meus dedos um pano macio, para que eu secasse a face. Havia grande diferença entre esses súditos, formados por levitas e kohanim, e os pedreiros que permaneciam unidos, aguardando com tranqüilidade. Determinadas pessoas, principalmente as que estavam em posição inferior, sempre agiam de maneira subserviente, e eu estranhava isso, admirando cada vez mais os pedreiros, pois percebia neles a altivez que nunca se apaga, não importa o que se esteja fazendo. Para os pedreiros, a execução de um serviço qualquer não os diminuía: pelo contrário, cada tarefa os engrandecia, por ser realização do dever. Os outros eram gente tacanha, movida exclusivamente por preconceitos sem sentido, todos em nome de seu deus, como se isso os transformasse em seres de perfeição absoluta. Eu preferia os pedreiros, vendo que neles havia qualidades de que os outros careciam, e novamente recordei a figura de meu pai, sua rigidez absoluta em relação a qualquer compromisso assumido, dizendo sua frase preferida:

— Assumido o compromisso, morro, mas faço.

Era isso que de mim exigiam: que eu cumprisse o compromisso assumido, e nada mais. Eu o aceitara, com a figura de meu pai iluminando essa decisão: em minha mente havia um lugar onde ele se tornara sempre presente, ainda que eu não lhe ouvisse a voz, e na tarde desse mesmo dia, durante a aula de hebraico, meu pai deixou de estar mudo. O velho que tossia entre frases, mordendo os grãos de minha paciência, sentou-se à minha frente, enfadado, e começou a falar:

— Al nàharot Baav'el, sham iashávnu gam bachinu bezocWrênu et Tsion...

Um violento relâmpago de fogo negro explodiu em minha mente, com um lancinante lampejo de dor aguda, penetrante, uma barra de ferro em brasa atravessando-me a cabeça por trás dos olhos de um lado a outro do crânio, e eu inesperadamente compreendi cada uma das palavras que ele me dizia, que elas me eram conhecidas, que eram as palavras que meu pai dissera na sala de nossa casa na Grande Baab'el exatamente no dia em que dela eu fora expulso, morrendo por sua bofetada:

— Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, lem-brando-nos de Sião...                                

Eu entendia! Eu sabia o que aquilo queria dizer! A língua que o velho e seus ajudantes haviam balbuciado à minha frente durante tantas tardes repentinamente ganhava significado! Ergui minha voz acima da voz do velho e continuei a oração sem precisar imitar a ninguém:

— Al aravim betocha talinu kinorotênu!

Outro relâmpago negro explodiu em minha mente: a língua que eu rejeitara, ao rejeitar pai, mãe, irmãos, família, sangue e carne de meu povo, a língua que eu bebera no leite materno e nos olhos de meu pai, tornava-se novamente parte de mim. Eu entendia, eu percebia, eu voltara a pensar nessa língua, e me recordava de tudo, pois, ao mesmo tempo em que o fazia, era novamente criança na sala escura da pequena casa na Grande Baab'el, gritando em coro com meus irmãos e tantos outros meninos como eu:

— Sobre seus salgueiros, penduramos nossas harpas...

Voltei até os dias de minha infância, antes que as delícias da Grande Baab'el se tivessem tornado mais fortes em mim do que eu mesmo. Meus gritos na língua de Israel deviam ser fortes, porque a sala se encheu de homens e mulheres de todos os tipos, cores e tamanhos, boquiabertos, enquanto minha boca derramava sobre eles o fogo líquido das palavras que eu não sabia que sabia:

— Pois ali nossos captores nos exigiam canções, e nossos atormen-tadores ordenavam que nos alegrássemos, dizendo: "Cantai-nos um dos cânticos do Sião!" Mas como podemos entoar o Cântico do Eterno em terra estranha?

Cobri a face, ocultando a dor de nunca ter percebido quem verdadeiramente era. O pior escravo é aquele que, por sua própria vontade, aceita o jugo de seu captor. Eu fizera pior que isso: regozijara-me na escravidão, e nela chafurdara, cortando meus laços apenas para poder ser mais escravo do que seria humanamente possível. Eu não sabia que era escravo até que a luz da língua sagrada se impôs sobre mim:

— Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita esqueça a sua destreza, que minha língua se cole ao céu de minha boca, se eu não me lembrar de ti!

Recordei tudo que esquecera, num roldão: a língua, os cânticos, as palavras e verbos, a vida em família, as frases corriqueiras do dia-a-dia, as histórias e os rituais, as festas comemoradas a meio tom, a tristeza que cobria todas as faces quando as lembranças se avizinhavam. Quando um homem perde o seu passado, perde mais da metade do que é: quando é todo um povo que o perde, perde-se inteiramente. Eu jogara fora meu passado e minha identidade: e no momento em que a língua abandonada reflorescia dentro de mim, eu só desejava recuperar o tempo perdido, fazendo o que devia ser feito para encontrar minha própria felicidade. Disse isso na nova velha língua para o velho, que arregalou os olhos, e os outros ergueram as mãos para os céus, saudando a deus nessa língua que era novamente minha velha conhecida. A língua familiar voltava à minha mente, tendo como centro a figura de meu pai, de quem eu nesse momento sentia profunda saudade. Ninguém melhor do que ele para me dar o rumo de que eu tanto precisava: mas estávamos tão longe um do outro, que eu só poderia mesmo contar com minhas tênues lembranças. Mais tarde, sozinho em meus aposentos, suspirei de alívio sobre as almofadas, derreado, como se tivesse lutado contra um anjo mais forte que eu. Quando Feq'qesh, encontrando de saída os que me haviam trazido o jantar, entrou em meus aposentos com sua harpa, percebeu o meu cansaço: eu mal conseguia manter os olhos abertos, pois a lembrança de tudo o que eu fora tinha exaurido minhas forças. Ele se sentou a meu lado, e naquele instante tudo foi como num sonho, por detrás de uma névoa de cansaço. Passando o braço por meus ombros, sustentou-me, enquanto me dizia:

— O dia de hoje foi de grande exigência para tua mente e tua alma, porque despertou em ti um homem que não sabias que eras. Esse homem nunca mais adormecerá, e será teu companheiro de viagem de hoje em diante. E a ele que darás conta de tuas ações e de teus impulsos, buscando o equilíbrio exato, porque estamos no mundo apenas para aprender este equilíbrio.

— O sono que estou sentindo torna quase impossível compreender-te, meu mestre. Acredita; a única coisa que esse homem deseja é poder dormir sem que o acordem mais.

Feq'qesh tocou os dedos em sua harpa, mansamente:

— E pena que estejas assim tão cansado: tinha para ti um presente que decerto muito te agradaria.

Bateu palmas, os reposteiros de minha câmara se abriram, e uma figura de mulher deu alguns passos para dentro do aposento, curvando se à minha frente. Despertei incontinenti, porque meu corpo, ainda que muito cansado, foi imediatamente tomado pelo perfume que dela se evolava. Seu manto caiu, e eu reconheci a mulher morena que dançara para mim em minha primeira noite no palácio: era mais velha que moça, um ar cansado no rosto, mas seu corpo ainda ágil começou a retorcer-se suavemente ao som da harpa de Feq'qesh, no mesmo ritmo de oito batidas sobre cinco, três curtas e mais três curtas por duas longas, que eu ouvira durante a subida da torre da Grande Baab'el, acompanhando Sha'hawaniah. O ritmo, o perfume, a lembrança dela começaram a ferver em meu baixo-ventre, e enquanto o sono tomava meu corpo, o vulcão entre minhas pernas acordou, e nem notei que Feq'qesh estava saindo da câmara. A mulher estava cada vez mais linda à luz bruxuleante das lamparinas, e o som da música de Feq'qesh, afastando-se lentamente para fora do quarto, sustentava a minha respiração e a dela, enquanto meu coração pulsava em meus ouvidos. Os véus flutuavam à sua volta como se estivéssemos dentro d'água, e quando ela pôs um joelho sobre as almofadas de meu leito e se aproximou de mim, avançando sua mão enfeitada de anéis dourados pela minha coxa, em direção a meu membro pulsante, eu me entreguei à vertigem do prazer, perdendo qualquer noção de tempo e espaço, reduzido apenas a essa fonte de deleite que saía de mim para ela.

Ao acordar por mim mesmo na manhã seguinte, antes que as trom-betas soassem, meu primeiro movimento foi procurar a meu lado aquela que tanto prazer me dera: não me recordava de nada, nenhum detalhe, apenas da sensação de completa saciedade que ainda permanecia em meus rins e boca. Ao erguer-me, contudo, recordei algo que ela me dissera, depois de satisfazer-me e satisfazer-se, várias vezes: arrumara-me sobre o leito, com a delicadeza de uma mãe, e, chegando junto a meu ouvido, sussurrara:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças...

Fiquei por alguns instantes imerso nessa lembrança da qual não tinha muita certeza: uma agitação do lado de fora do palácio me chamou a atenção, e me vesti rapidamente. Estava atando minhas sandálias, quando meus dois protetores ergueram os reposteiros e ouvi do lado de fora um grito inesperado:

— A caravana de pedreiros está retornando da viagem!

Isso era impossível: fazia apenas oito dias que haviam deixado Jerusalém, e, por mais céleres que fossem seus cavalos, não havia tempo para chegar ao destino no Egito e dele retornar. Algo devia ter acontecido para que interrompessem sua viagem: cobri-me com o manto vermelho e, sem me lembrar da coroa, atravessei as salas do palácio de madeira, deixando-o. Meu coração ansiava rever Daruj, o único amigo que me restara, com quem desejava partilhar as alegrias do reinado e as descobertas da alma, desejando apenas enxergar minha felicidade refletida em sua face.

 

A possibilidade de ver a face de meu amigo ensandeceu meu coração. Saí correndo para encontrá-lo, pensando no que lhe tinha a contar, as descobertas que fizera sobre o mundo e sobre mim mesmo, as vitórias que poderíamos colher juntos. Não me incomodaria de dividir o poder com Daruj, tal a felicidade que sua volta me dava: sentar-me-ia com ele fraternalmente, no trono de Israel e Judah, se ele assim o desejasse. Juntos, seríamos um excelente rei, porque ele tinha tudo o que me faltava para o exercício da função, enquanto eu era possuidor de certas coisas de que ele verdadeiramente carecia.

No terreno onde meus exercícios eram realizados, todos os dias, a caravana começava a arriar seus fardos, e eu, seguido de perto por meus protetores, avancei por entre cavalos e homens, procurando por Daruj, o amigo que o destino outra vez colocava em minha presença. As faces eram familiares, mas o rosto que eu ansiava ver não surgia entre os viajantes. Repentinamente, atrás de uma tenda, vi a face enrugada de Ragel. Gritei seu nome, e ele, com os olhos apertados, moveu a cabeça de um lado para outro, até perceber a direção de onde vinha a minha voz. O sol lavado da manhã enevoada o impedia de enxergar, o que já não lhe era muito fácil: mas ele reconheceu minha voz, e o abraço que lhe dei teve resposta intensa, como a de um pai ou irmão, enchendo-me a alma de alegria. Minha preocupação, contudo, era outra, e enquanto Ragel iniciava seu relato dos acontecimentos que os tinham feito retornar tão rapidamente a Jerusalém, eu esquadrinhava cada rosto à minha volta, na ânsia de rever o amigo perdido:

— Não andamos mais que quatro dias, atravessando o Wadih Arabah. Na beira do mar, em Aqabah, onde navios nos esperavam, estava um grande batalhão de soldados de Cyro, interrompendo a passagem de quem queria cruzar o mar, em direção ao Egito do Faraó. A multidão se acotovelava, e os soldados armados só permitiam o retorno. Ainda tentamos negociar com o comandante do batalhão, que foi inflexível: até que o império de Cyro esteja totalmente organizado, ninguém se desloca dentro das fronteiras, para impedir movimentos de rebelião ou inimigos ocultos. Os navios que lá estavam voltaram todos vazios para seus portos de origem, porque nem mesmo as mercadorias foram embarcadas.

Ao lado dos caravaneiros, vi Jael, meu primeiro amigo pedreiro, junto a muitos outros: de Daruj, nem sinal. Jael adiantou-se em minha direção, curvando a cabeça ao chegar perto de mim. Não titubeei: abracei-o com a mesma intensidade com que abraçara Ragel, beijando-o na face esquerda, e lhe perguntei:

— Onde está Daruj, meu amigo da Grande Baab'el? Jael franziu o sobrecenho:

— Zerub, ele partiu conosco mas não retornou: na noite em que acampamos na confusão do porto de Aqabah, mostrou-se muito irritado com a proibição de atravessar o mar: na refeição da noite, comeu rapidamente e se enfiou pelo meio da multidão, não voltando para dormir conosco. Quando começamos a preparar a caravana para a volta, ele já não estava entre nós. A confusão no porto aumentava sem cessar, com navios que saíam para aproveitar o vento da manhã, e toda uma população que esbravejava e era reprimida pelos soldados, fazendo tal alaúza que era impossível ouvir até mesmo os próprios pensamentos. Havia de tudo naquele lugar: ladrões, mulheres, mendigos e aleijados de toda espécie, uma caterva sem rosto tão violentamente asquerosa, que foi um verdadeiro alívio sair de lá.

— Mas não houve nenhum sinal dele?

— Nenhum: até mesmo o pequeno fardo que ele carregava em seu cavalo foi abandonado. Quando os soldados começaram a espicaçar suas montarias sobre a multidão, as espadas erguidas sobre a cabeça, vimos que era hora de partir sem olhar para trás. Foi o que fizemos, Zerub. Sinto muito não poder dar-te as notícias que querias ouvir, nem mostrar-te o amigo que desejavas ver. Foi desejo dele afastar-se de nossa companhia: como poderíamos obrigá-lo a ficar conosco?

Fiquei triste, porque acabara de perder meu amigo de juventude, como perdera a todos os outros. Meus companheiros, eu os perdera a todos, como se meu destino fosse a solidão mais absoluta, sem um amigo sequer que pudesse chamar de meu.

Ragel percebeu minha tristeza e passou seu braço em volta de mim, enquanto me dizia:

— Tranqüiliza-te, Zerub: cada vez que se perde um amigo, outros surgem para substituí-lo, sempre na medida exata de nossas necessidades e anseios. A perda de um amigo é como a de uma perna, ou um braço: o tempo pode até curar a angústia da ferida, mas nunca cicatriza a ausência. Um amigo é um presente de Yahweh, pois apenas Ele, que criou os corações, pode verdadeiramente uni-los. Quem sabe ele já não te pôs nas mãos esse novo amigo, para substituir o velho amigo perdido?

Meu coração se transformara em pedra. Com quem dividiria meus sonhos agora? Não havia o que fazer, a não ser sepultar bem fundo as lembranças e seguir em frente, aceitando que o destino separe os que deveriam estar juntos, como às vezes junta os que nunca deviam ter-se encontrado. Cumprimentei Ragel e Jael, em silêncio, tomando o caminho de volta para meu palácio, seguido por Heman e Iditum, a quem cada vez percebia menos. No pátio em frente, encontrei Théron, o grego que me dava o treinamento físico, trabalhando com um pequeno cinzel em uma pedra comprida. Ao ver-me, ele jogou um pano encardido sobre a pedra, mas eu o afastei para ver a obra. Era uma espécie de friso, e eu nunca tinha visto nenhum tão belo, com figuras de perfil em baixo-relevo executando exercícios físicos muito familiares: reconheci a mim mesmo ali representado, por causa da coroa, estirando um arco até o ponto máximo, os músculos finamente desenhados pela mordida do pequeno cinzel. Procurei pelo próprio Théron naquele friso, e lá estava ele, no canto esquerdo, sentado com os braços entre os joelhos, a cabeça voltada em minha direção, como sempre fazia, na posição de descanso absolutamente atenta que, havendo necessidade, o faria saltar, como os felinos que eu vira na Grande Baab'el, enormes gatos de pêlo listrado de negro e amarelo, os dentes cobertos pelo sangue de suas vítimas.

O rosto de meu treinador se transformou em uma expressão de prazer quando eu lhe disse achar belo seu trabalho, e ele voltou a trabalhar com delicadeza em um detalhe da moldura, contando-me como descobrira esse talento:

— Foi durante um longo cerco, quando o tédio e a ousadia me levaram ao oráculo: eu precisava de um pretexto para tirar-me daquele acampamento, onde minhas pernas ja começavam a enferrujar, e escapei durante a noite, subindo até a caverna de Sifnós. No meio dos fumos de cheiro forte, que me entonteciam a cabeça, a voz do oráculo disse que eu era irmão da pedra. Desci das montanhas com aquilo na cabeça, e quando cheguei ao acampamento, já pensava como faria para realizar em pedra as pequenas esculturas que desde pequeno fazia em madeira. A maior parte do que sei aprendi sozinho, até encontrar um pedreiro que se encantou com meu talento e me convidou para segui-lo pelo mundo, como seu aprendiz. Abandonei a vida de soldado e fui atrás dele, viajando por todas as ilhas, exercendo a arte da escultura em pedra. Uma noite, em Atenas, fui iniciado na irmandade da pedra, e desde então viajo para onde quer que meus irmãos necessitem de mim. Faz três anos, espero aqui em Jerusalém, porque me foi dito que minha presença aqui seria necessária: mas nunca pensei que precisassem mais de meus talentos de soldado que dos de pedreiro.

Com um suspiro, Théron espanou a pedra e, percebendo a aproximação de alguém, cobriu-a com o pano sujo, explicando-me:

— Em Jerusalém, não admitem que se represente a figura humana de nenhuma maneira, por isso oculto minha obra de todos os olhos que não devam vê-la. Temia que meu rei também partilhasse dessa noção, por isso nunca permiti que visse o que faço com minhas mãos inábeis.

Era interessante ouvir a história de Théron contada por sua própria boca, de maneira tão lenta e descansada, enquanto seus dedos nodosos e calejados passavam carinhosamente pelos cortes que o cinzel deixava na pedra. O servo do palácio se aproximou com uma jarra de água fresca, e eu, orgulhoso da confiança que meu instrutor em mim depositava, fiz questão que ele bebesse dela antes de mim, em minha própria taça. O levita que me servia abriu a boca de espanto, chocado com a familiaridade entre seu rei e um soldado estrangeiro, e Théron, percebendo isso, fez questão de limpar a borda da taça na parte superior de seu manto, ajoelhando-se à minha frente para oferecê-la já seca. O levi-ta suspirou, aliviado, e o olhar de cumplicidade que eu e meu instrutor trocamos lhe escapou, porque logo retornou à atitude servil de sempre, olhos baixos, cabeça curvada. Iniciamos nossos exercícios, e nesse dia foi Théron quem teve que dizer-me "basta", porque me atirei de tal modo ao treino, que só ao parar percebi o quanto me esgotara. Retornei ao palácio, onde, em vez de sentar-me ao trono como sempre, deitei-me ao leito, com o corpo cheio de dores, curioso sobre essa intimidade com a pedra que homens como Ragel, Théron e Jerubaal tinham, fazendo deles homens tão diferentes dos outros homens.

Os reposteiros se abriram, e Jael aproximou-se solicitamente de mim. Meu corpo doía, meu humor se azedava, mas a preocupação sincera de Jael aliviou um pouco o peso sobre meu coração. Com rara sensibilidade, ele me perguntou:

— Há alguma coisa que eu possa fazer por ti, Zerub? Eu sorri, com tristeza:

— Tens como levar-me de volta ao tempo em que nenhuma preocupação me toldava a mente? Porque os tempos que hoje vivo não são de forma alguma os que imaginei quando pensei em meu futuro. Reconheço que meu destino tem que se realizar, mas não entendo por que, para que isso aconteça, eu deva perder tudo o que me é mais caro.

Jael também sorriu, tão triste quanto eu:

— As perdas são a marca da vida, meu rei, é nelas que se aprende a valorizar os ganhos. Quando meu próprio pai me vendeu como escravo, acreditei que nunca mais encontraria um momento sequer de felicidade. Tudo estava perdido: mas o pedreiro que me comprou do homem a quem meu pai me vendera era sábio, e quando fui aceito como aprendiz, ainda em Qornah, não sabia que o que me parecia perda era na verdade meu maior lucro. Viver entre os pedreiros me fez desejar ser um deles. Recordo uma frase que meu mestre me disse, exatamente antes de perguntar-me se desejava ir mais longe: quando a riqueza se perde, nada se perde; quando a saúde se perde, perde-se alguma coisa; mas quando o caráter se perde, tudo está perdido. Isso me fez desejar ser como eles, e a vida entre os pedreiros, mesmo dura, cansativa, sem recompensas aparentes, é a única coisa que me tranqüiliza o coração, porque eu, como todos os homens, também tenho a nostalgia daquilo que não conheci.

Olhei para Jael como se estivesse olhando para mim mesmo. Sinceramente o invejei, porque ele parecia ter chegado a um domínio de si próprio que eu não acreditava ser possível. Era certamente a característica mais forte dos pedreiros: o autodomínio, o permanente estado de alerta, sem deixar que emoções inferiores tomassem as rédeas de suas vidas. De repente, num relâmpago súbito, recordei de algo muito importante, que me pareceu a descoberta dos verdadeiros motivos pelos quais eu me sentia mal:

— Jael, é isso o que me faltai A revelação de minha herança de sangue interrompeu minha iniciação! Para ser rei, deixei de ser pedreiro, e ouvindo as tuas palavras vejo que é preciso ser pedreiro para ser rei. Sabes se nunca mais terminarei minha iniciação? Ficarei para sempre pendurado a meio caminho entre uma coisa e outra, sem ser nenhuma das duas?

A boca de Jael se abriu:

— Com efeito, Rei Zerub, tua iniciação foi interrompida pela revelação de tua descendência, e nunca mais se falou sobre o assunto. E estranho, porque não se costuma agir assim em matéria de iniciações: parece que desde Salomão não se inicia nenhum rei, havendo mesmo dúvidas se ele ou seu pai David foram verdadeiramente iniciados em nossos mistérios. Talvez tenhamos sido paralisados por essa dúvida ... Meu rei, é preciso indagar sobre isso a nossos irmãos. Quereis que eu faça isso?

Ergui-me do trono, determinado:

— Não, Jael, façamos isso juntos! Dedicarei o que resta de meu dia a ser pedreiro, porque no momento nada me parece mais importante do que isso!

Na sala do trono, quando saí de meus aposentos, estavam o velho e o vesgo, prontos para mais uma longa sessão de narrativas e comentários na língua sagrada: com um gesto, descartei-os, sem maiores explicações. Eu e Jael, seguidos de perto por Heman e Iditum, atravessamos as ruínas da cidade semi-abandonada, indo para onde os pedreiros costumavam se reunir. As ruas tortuosas e vazias eram formadas por casinholas de alvenaria e pedra, extremamente pobres e maltratadas, com suas pequenas janelas sempre fechadas, como se lá não houvesse ninguém. Jerusalém parecia ter apenas velhos sem força, porque todos os outros homens e mulheres com algum valor se esfalfavam de manhã à noite nas terras áridas e secas que cercavam a cidade, tentando delas tirar seu sustento. Os magros e descarnados rebanhos de cabras eram mantidos quase que apenas para produzir o leite, que servia para alimentá-los antes de alimentar seus criadores.

Na curva de certa rua estava uma taberna que já não o era mais, com janelas fechadas por tábuas e a porta apenas ligeiramente aberta: era o lugar onde os pedreiros que habitavam Jerusalém dormiam e se alimentavam. Ao entrar na sala escura, perfurada aqui e ali por alguns raios de sol que manchavam o assoalho de pedra, recordei as casernas do palácio de Belshah'zzar, onde vivera os momentos mais terríveis e assustadores de minha vida. Aqui, uma vez os olhos se acostumando à obscuridade, a impressão era quase que oposta: uma grande calma a tudo cobria, e os homens que ocupavam os três salões sucessivos, cada um envolvido em suas próprias tarefas, estavam tranqüilos, como sempre acontece quando pedreiros se reúnem.

Quando dei três passos para dentro daquele lugar, alguns homens se ergueram, mas um deles, reconhecendo-me, acalmou os outros e me saudou:

— Zerub, bem-vindo à casa dos pedreiros. Como te podemos ser úteis?

Avancei em sua direção, e todos os pedreiros do aposento se ergueram, interrompendo suas tarefas. Aproveitei a atenção e disse:

— Nada melhor que esta também fosse a minha casa, e eu nela não fosse um visitante.

— Não compreendo, meu rei: ao que eu saiba, tu és um de nós... — Jerubaal, a meio de sua frase, percebeu a que eu me referia. — Na verdade, não o és, ainda, não completamente, pelo menos. Mas te garanto ...

Interrompi-o:

— Não me garantas coisa alguma, Jerubaal: se o acaso fez com que eu soubesse a metade do que não devia, garantindo-me o direito de ser um de vós, o que me impede de conhecer a outra metade e ser vosso irmão por inteiro, sem que nenhuma diferença nos separe?

O burburinho na sala aumentou, enquanto todos comentavam o fato de eu ser apenas meio-pedreiro. Jerubaal sorriu, desanuviando o clima, e falou:

— De certa maneira, aconteceu o que tinha que acontecer. Todos fomos escolhidos para ser pedreiros por movimentos insondáveis do Universo, mas tu és o primeiro a se prevalecer dessa garantia que o conhecimento fortuito dá. Alguém aqui se recorda de outro alguém que se tenha tornado irmão nas mesmas circunstâncias?

A sala se encheu de negativas: Jerubaal virou-se para mim, com ar de certeza:

— Vês, meu rei? Teu caso é único em toda a nossa história, e de certa maneira emblemático, dada a tua importância para Jerusalém e a fraternidade da pedra. — Jerubaal estendeu o braço em círculo, como que abrangendo toda a sala. — Este lugar tem sido abrigo e moradia de inúmeros pedreiros, desde os tempos do rei David: quando deixou de ser a taberna de Naftuli, permaneceu sendo o porto seguro de todos os pedreiros que passam por Jerusalém. Aqui nos reunimos, e quando não estamos trabalhando em nenhuma obra, é aqui que os aprendizes são treinados nos rudimentos de nosso ofício. Esta é nossa casa, o lugar onde os pedreiros estudam as mesmas coisas que os reis.

Minha face deve ter mudado, porque repentinamente uma onda de riso nos cobriu a todos. Olhando para o lado, percebi que Jael também tinha o riso estampado na face. Apenas eu não estava rindo, determinado a ter tudo que fosse meu por direito. Sentei-me em um escabelo, e disse:

— Era o que eu queria ouvir: podem começar a transformar esse rei em um pedreiro.

As risadas aumentaram, e a sala ficou mais calorosa e familiar do que antes. Jerubaal, ajudado por alguns outros, contou-me a história da fraternidade da pedra, de como se formara a partir do conhecimento que alguns possuíam sobre a natureza interna das pedras do mundo, sua formação, seus veios, a maneira correta de cortar e trabalhar as melhores dentre elas, e também de transformar as praticamente imprestáveis em verdadeiras obras de arte:

— Muito desse conhecimento prático da natureza da pedra tem extrema semelhança com o trabalho interno pelo qual cada um de nós Passa enquanto a trabalha, porque pedra e homem são uma só coisa. — Jerubaal falava com voz muito calma. —Alguns de nós, iniciados em mistérios mais antigos que a própria humanidade, também percebemos a semelhança entre esses mistérios e o desbastar de nossa pedra bruta, e isso enriqueceu o corpo de conhecimentos da fraternidade. O segredo de ofício é para nós tão importante quanto o mistério para os iniciados, e essa semelhança nos une em um só corpo. Os iniciados nos mistérios partilham os símbolos do trabalho dos pedreiros, assim como os pedreiros se tornam iniciados em seus mistérios.

Fascinado com essas idéias, não pude deixar de perguntar:

— Sim, de iniciados a pedreiros, e vice-versa, mas... e os reis? Os risos tomaram a sala novamente, e Jerubaal continuou:

— Para que um rei seja rei, precisa antes deixar de sê-lo, tornando-se pedreiro de si mesmo. Com tempo e trabalho, há de acordar numa determinada manhã e perceber que a pedra bruta se transformou em pedra polida, e que o pedreiro se transformou em rei. Por isso dizemos que os reis e os pedreiros estudam as mesmas coisas, e todos os pedreiros podem ser reis, se isso for necessário.

— Então, se devo ser rei deste povo, é preciso que me ensineis a ser pedreiro. Na verdade, como bem o sabeis, estou mais que disposto a deixar de ser rei, se a oportunidade se apresentar...

Gargalhadas explodiram entre nós, porque todos conheciam minha relutância em aceitar a herança que me era imposta. Compreendi nesse instante que podia fazer parte desse grupo de homens de todos os tipos e origens, se esquecesse meu orgulho, vencesse minhas paixões, submetesse minhas vontades e estivesse disposto a ser apenas mais um pedreiro entre muitos. Não me considerei capaz de tanto: mas acreditei que, se me fizessem pedreiro e me dessem o conhecimento do poder que guardavam, eu seria um rei mais poderoso que todos os outros.

Jerubaal aproximou-se de mim, tomado de uma emoção tão forte que eu quase a podia sentir refletir-se em meu ser, cálida, intensa:

— Creio que breve te chamaremos de irmão. Não basta que sejas escolhido pelo destino, pelo sangue, ou por qualquer um dos elos inexplicáveis que fazem homens como nós nos reconhecermos como iguais, descobrindo, entre muitos, exatamente aquele a quem chamaremos de irmão. É preciso também que a tua vontade intervenha, e que tenhas verdadeiro desejo de encontrar dentro de ti não só o pedreiro que podes ser, mas a pedra bruta que és, vislumbrando a pedra polida em que podes te tornar. É o que desejas, Zerub?

Ergui-me e disse sim, mesmo não entendendo muito bem o que ele me perguntara. Os outros homens que estavam na sala vieram abraçar-me com emoção e carinho indescritíveis, dificultando-me manter a tranqüilidade. Na volta ao palácio, fui acompanhado pelos pedreiros, que ainda me saudaram por três vezes à beira da grande escadaria, criando estranheza entre os levitas que me aguardavam, preocupados com minha ausência. Deitei-me em meu leito tomado por dúvidas que nunca havia tido, e adormeci sem que meu corpo precisasse do alívio a que freqüentemente vinha recorrendo. Sonhei com Sha'hawaniah, dançando à minha frente. O lugar onde ela dançava, no entanto, era um céu formado por palavras escritas com letras de fogo negro, cercando-a cada vez mais e por fim dissipando sua imagem, deixando no ar apenas o grito de que sua senhora Ishtar me mandava lembranças.

Acordei sem sinais de emissão noturna, sentindo que a vida poderia ser mais fácil, pois ao me recordar do encontro entre pedreiros minha alma se enchia de uma paz tão grande, que nenhuma outra emoção a conseguia sobrepujar. Eu invejava essa paz impossível de preservar, desejando que minha iniciação completa me desse o poder de convocá-la a meu espírito sempre que me desse vontade.

Quatro dias depois, avisaram-me que eu seria finalmente iniciado como pedreiro, completando o ritual que fora interrompido. Aguardei ansiosamente que a noite chegasse, e mesmo com a cara fechada dos levitas e kohanim de meu séquito, absolutamente avessos a qualquer coisa que não fosse exatamente os rituais de sua crença, esperei, cheio de uma ansiedade que não sabia explicar. Se toda a minha vida anterior tivesse sido uma preparação para esse exato momento, talvez não estivesse assim. O que me movia era a possibilidade indiscutível de ter em mãos um poder maior que qualquer poder imaginado: eu seria o primeiro rei pedreiro a dispor desse poder sem que ninguém viesse dizer-me como usá-lo ou o que fazer com ele.

Quando a noite caiu, entraram na sala do trono, onde eu estava à espera, alguns pedreiros vestidos com simples mantos brancos, todos portando seus aventais de ofício e também luvas brancas feitas da mesma pelica macia dos aventais. Dentre eles surgiu Feq'qesh, com seu eterno sorriso, trazendo uma corda verde que, depois que me vestiram uma túnica branca igual à que os pedreiros usavam sob os mantos, foi atada à minha cintura com duas voltas. A partir daí, ninguém mais tocou em mim: todos os meus passos foram guiados por puxões e toques na corda verde. Atravessamos a escuridão das ruas desertas da Jerusalém semi-abandonada em procissão ardente, seguindo o mesmo caminho de antes, desta vez passando por trás do subterrâneo onde eu havia espionado a primeira reunião de minha vida, durante a qual fora revelada minha identidade. Ao fundo do grande platô onde estavam as ruínas do Templo de Salomão, havia outra abertura, pela qual eu via a luz dos archotes, tingindo de amarelo a névoa seca que pairava sobre o solo.

O subterrâneo em que entramos, diferente do outro que eu conhecera, era uma sala cúbica, de um de seus lados se projetando uma pedra razoavelmente grande, na qual havia uma depressão do tamanho de um alguidar de barro. Este calhau atravessava os reposteiros de cor carmesim que cobriam as paredes, do chão ao teto, e um grande número de pedreiros se alinhava em três lados da sala, deixando o lado onde estava a pedra ocupado apenas por Jerubaal e Ananias, um de cada lado. Feq'qesh, guiando-me pela corda verde, postou-me à frente desses homens, enquanto eu observava pequenas luminárias feitas de vidro egípcio de cores diversas, azuis, amarelas, encarnadas, alaranjadas, brancas e arroxeadas, que tingiam as faces e paredes à nossa volta com matizes variados dessas cores, simples e combinadas. O ar era frio, mais do que o normal, principalmente por estarmos em um subterrâneo: devia haver alguma fonte de ar puro que alimentava a sala, e por diversas vezes no decorrer da cerimônia tive arrepios, sem poder verdadeiramente precisar-lhes as causas.

Não posso dizer com sinceridade que compreendi o que ali se passou. O ritual de que me fizeram participar não fez nenhum sentido: algumas frases dele, no entanto, impregnaram-se em mim de tal maneira, que se tornaram inesquecíveis, talvez por tocarem pontos mais controversos de minha alma. A primeira delas foi uma que se repetia constantemente e cada vez mais alto, ficando gravada a fogo em minha memória:

— Se minha razão for impotente, de que me serve a liberdade?

Fui arrastado à volta do assoalho, feito das mesmas pedras brancas e negras incrustadas uma na outra, sem junção aparente entre elas, tal a perfeição do trabalho. Ouvi coisas como "o neófito sai das profundezas da terra", "o neófito viaja pelos domínios do ar", "é preciso que o neófito seja purificado pela água e pelo fogo", sem que em nenhum momento percebesse qualquer relação entre esses elementos e as direções em que Feq'qesh me movia com leves puxões da corda em minha cintura. Tudo parecia se referir a outros rituais anteriores, como se eu tivesse passado por eles. Parecia haver, por trás dessa iniciação, outros motivos e intenções que me escapavam completamente à compreensão.

Outra frase repetida com certa constância de modo cada vez mais triste e acabrunhado chegou a ser um sussurro, escapando como vento das gargantas dos presentes:

— A ignorância e a dor são as eternas companheiras do homem. Mesmo sendo de natureza alegre e otimista, eu reconhecia a marca da tristeza nos acontecimentos dos últimos tempos, principalmente por não ser dono de minha própria vontade, vivendo para cumprir uma missão que não compreendia. Tinha perdido todos que me eram caros, pelos motivos mais inesperados, e estava absolutamente só.

Chegou o momento em que prestei o juramento dos pedreiros, minha mão direita sobre a pedra estranhamente quente em ambiente tão frio, transferindo seu calor por meu braço acima até o centro de meu peito, enquanto eu me declarei fiel às obrigações de que ser pedreiro me investia, mesmo sem entender a que obrigações esse juramento se referia. Um anel me foi posto no dedo anular da mão esquerda, e o ouro bruto de que era feito contrastava profundamente com a superfície lisa e brilhante da pedra negra que o enfeitava. Nesse momento, foi proferida a uma só voz a terceira das frases inesquecíveis, com tal vigor que até mesmo as chamas das lamparinas, até então firmes e retas, sentiram seu efeito:

— Juramos ser fiéis uns aos outros, honrando todos os atos de nossas vidas, levando os princípios de nossa fraternidade até o sacrifício, se preciso for, declarando infame todo aquele dentre nós que desonrar qualquer outro de seus irmãos, nas pessoas de sua esposa, sua filha, sua mãe, sua irmã.

Sem compreender essa frase inesperada, corri os olhos pela audiência, e meu olhar se fixou no de Jael, que me deu um suave sorriso, cheio da amizade que começávamos a devotar-nos mutuamente, e eu me senti um pouco menos abandonado, menos inadequado, menos só. A partir desse momento, poderia contar com esse homem tão igual e tão diferente de mim, e sua presença preencheria os poços secos das amizades perdidas, dos quais o deserto de minha alma estava coalhado. A corda me foi tirada da cintura e jogada aos pés, enquanto os reposteiros carmesim que envolviam a pedra eram afastados, deixando ver atrás dela um longo corredor iluminado aqui e ali por archotes de luz estranhamente prateada. Feq'qesh tomou esse corredor e eu o segui, tendo logo atrás de mim alguns dos pedreiros mais velhos, entre eles o engelhado Ragel, seus olhos cada vez mais apertados. Atravessamos nove pequenos arcos feitos de pedra, chegando a uma sala também cúbica, muito menor que a anterior, onde estava posto sobre um pedestal de mármore muito branco, um cubo razoavelmente grande feito de ágata perfeitamente polida, em cujo centro do qual brilhava algo que não pude definir o que era, pois mesmo quando diminuí a distância entre mim e esse cubo, o que estava lá dentro me escapava ao entendimento. Parecia ser uma lâmina de metal em volta da qual o cubo se formara, cheia de inscrições incompreensíveis. Tentei decifrá-las, enquanto Ananias falava em voz pausada e respeitosa:

— O corredor que atravessamos é a réplica da câmara de nove arcos que nosso pai Enoch construiu, para nela guardar o cubo de ágata cuja cópia ora vemos. Quando da destruição do Templo pelos serviçais de Nebbuchadrena'zzar, o verdadeiro cubo foi oculto em um subterrâneo ainda mais profundo, cuja localização nenhum de nós conhece, repleto dos verdadeiros tesouros a que nossos invasores nunca puderam ter acesso. O verdadeiro cubo tem milhares de anos: foi visto pela primeira vez algumas gerações antes do Grande Dilúvio, que renovou a humanidade. Nele se incrusta um triângulo de ouro onde está gravado o Verdadeiro Nome do Grande Arquiteto do Universo, nome que ninguém pode pronunciar, pois ninguém sabe o que significam as letras em que ele está traçado, tal a sua antigüidade.

Um zumbido muito forte em meus ouvidos me tonteou, enquanto os riscos sobre a lâmina de metal dentro do cubo de ágata se iluminaram com o mesmo fogo negro que ultimamente vinha surgindo em minha mente, cada vez que minha inteligência se abria para aquilo que eu desconhecia. Voando pelo espaço de luz amarela onde minha consciência se encontrava, meu corpo penetrou o cubo e por ele foi cercado, enquanto minha alma sobrevoava os setenta e dois sinais na superfície da lâmina de ouro, conhecendo e decifrando cada um deles, entendendo o valor de cada letra e de cada som, separados e juntos, num turbilhão de vozes formando uma única e poderosa voz que gritava Seu Único e Múltiplo Nome, formado por todos os infinitos aspectos através dos quais a Criação havia surgido, na Luz Infinita em cujo centro a Lanterna das Trevas abrira espaço para que surgisse o Universo Criado, celebrando num imenso movimento de amor uníssono o Verdadeiro Nome de Deus, que eu gritei, pois acabava de ouvir esse nome na partícula de vida que estava no centro de minha própria existência.

Ao dar novamente acordo de mim, estava caído de bruços sobre o solo. Mãos amigas me ergueram, preocupadas, mas Feq'qesh, ao verme a face transfigurada, ergueu as mãos para o céu, gritando:

— SHEMA YISRAEL! Ouve, Israel! ADONAI ELOHÊNUJ O Eterno é nosso Deus! ADONAI ECHAD1 O Eterno é Uml

Enquanto Feq'qesh proferia estas palavras, com temor, veneração e estremecimento, dentro de mim uma voz como a de meu pai sussurrou, idêntica ao sopro divino que me dotou de vida:

— Bendito seja o Nome daquele cujo Glorioso Reino é eterno. Firmando-me com dificuldade sobre os pés, fitando o grande Nada e Tudo incompreensíveis, minha alma se entonteceu consigo mesma, e eu pensei que, se não me transformasse no pedreiro que precisava ser, talvez nunca pudesse me tornar o rei para cuja missão Yahweh me criara.

 

A manhã seguinte me encontrou fisicamente esgotado: era como se a noite anterior me tivesse exaurido de toda a energia, usando-a para que eu pudesse mergulhar no cubo de ágata e conhecer o verdadeiro nome de Yahweh; impronunciável pela voz humana, mas que se repetia dentro de mim sem cessar, cada vez que me recordava do acontecido. Não sei como voltei para meu leito no palácio, mas senti que o dia já ia bem alto quando finalmente abri os olhos. Ninguém estava em meus aposentos: quando me vesti e atravessei as cortinas, percebendo pela primeira vez em muito tempo a ausência de meus dois guardiões no umbral da porta, a sala do trono também estava vazia. Cansado, sentei-me ao trono, o cotovelo esquerdo apoiado sobre o braço de pedra, o queixo firmemente fincado na palma dessa mão, tentando concatenar os acontecimentos da noite anterior. Lembrava muito pouco do que se passara: as ações, movimentos e frases proferidas no estranho subterrâneo cúbico, por me serem incompreensíveis, eram quase impossíveis de recordar, e as únicas três frases que me haviam marcado a alma se destacavam da mixórdia de passos, sussurros, gestos e símbolos por serem as três únicas idéias claras o suficiente para ser lembradas. O caminho que minha mente fizera até o estranho cubo de ágata, a inesperada viagem por seu interior, o conhecimento desse nome imenso que soava com clareza quase mecânica em minha mente, isso sim era inesquecível. Diz-se que cada pedreiro guarda de sua iniciação aquilo que lhe dão: eu creio que guarda apenas o que pode compreender dela, e o que lhe fica no espírito, ainda que nebuloso, aguarda que a vida real lhe venha ao encontro para finalmente fazer sentido, como aconteceu comigo. Só a realidade vivida dá sentido aos símbolos, só através dos símbolos firmemente embebidos no espírito é que a realidade faz sentido. Isso eu entendi no decorrer de minha existência, mas nesse dia sentia como se tivesse passado por um umbral que me modificara, ainda que não percebesse como. O menino de rua da Grande Baab'el não existia mais, certamente, a não ser como lembrança. Eu era verdadeiramente outra pessoa, sem perceber como essa transformação se dera. Meu corpo, minha mente, o sangue que corria dentro de mim, os pensamentos que me passavam pela cabeça, tudo parecia tão novo que eu me acreditava capaz de grandes coisas, até mesmo da realeza que me havia sido imposta e que já não me incomodava tanto assim, graças a esse poder de que a iniciação me dotara. Eu era pedreiro, ainda que nunca houvesse tocado em uma pedra, e portanto era rei, mesmo que as provas de meu poder ainda estivessem por vir. Os acontecimentos, no entanto, vieram a mostrar-me que o poder de um rei e de um pedreiro são iguais, pois devem acontecer dentro do espírito antes que aconteçam no mundo real, já que este é apenas uma decorrência do que se passa dentro de nós.

Ruídos do lado de fora da grande sala me tiraram de minha abstração, e quando o grupo misto de pedreiros e súditos se aproximou, discutindo, preparei-me para mais uma das infinitas disputas por minha pessoa e minhas ações, nas quais os pedreiros e os religiosos, ainda que desejando o mesmo fim, sempre entravam em conflito, por não haver acordo sobre os meios de alcançá-lo, puxando-me para um lado e para outro, sem pensar que o objeto de sua disputa podia terminar dilacerado. Eu não pretendia mais ser esse objeto, queria ser o único dono de minha vida, tendo a palavra final nessas decisões. Assim, sem que ninguém esperasse por isso, bati várias vezes com a taça que estava a meu lado sobre o braço do trono, e o ruído forte e repetido ecoou pela sala até que todos se calassem, olhando-me com espanto. Meu rosto devia estar diferente do que havia sido até esse dia: quando eu sorri, seguro de mim como nunca dantes, houve um movimento de recuo por parte de todos, como se não reconhecessem o homem que estava sentado no trono de seu rei. A única face sem mudanças era a de Feq'qesh, com seu sorriso indecifrável nos olhos, destacando-se em meio à platitude infinita dos que se assustavam com o inesperado. Perguntei, sem me abalar:

— Qual é o motivo da disputa, senhores?

Todos falaram ao mesmo tempo, mas assim que ergui minha mão direita fez-se silêncio: percorri com o olhar as faces à minha frente, lendo em cada uma delas as pequenas e grandes questões que impulsionavam suas vidas, a maneira pela qual essas vidas se entrelaçavam umas às outras, e o poder que eu tinha para fazer delas o que bem entendesse. Meu olhar se fixou em Ananias, que, com uma curvatura de cabeça, disse:

— Zorobabel, entre nós há os que crêem que devamos iniciar imediatamente a reconstrução do Templo, por já haver rei sobre o Trono de Israel e Judah. Outros, no entanto, acreditam que a reconstrução só pode se dar quando esse rei for reconhecido como tal pelos outros reis do mundo. Uns pensam que basta haver rei para que a profecia se realize, outros acreditam que isso só se dará pelo reconhecimento desse futuro rei. Enquanto tu descansavas, fomos tomados por esta questão que nos parece insolúvel, pois nenhum de nós está disposto a aceitar opinião contrária à sua.

O velho que me recitava as antigas tradições, chamado Elimelech, ergueu a voz rouca entremeada por pigarros cada vez mais fortes:

— É a vontade de Yahweh! Já se passaram as dez semanas de anos que a profecia estabeleceu! Aí está o rei sentado sobre o Trono de nossos antepassados! O que mais temos que esperar? Que esse invasor Cyro nos dê sua permissão? Um invasor com mais poder que Yahweh?

Seus companheiros de sempre esbravejaram, erguendo os punhos contra os pedreiros, alguns deles virando os olhos para o céu e sacudindo as mãos em desespero. Ananias interveio:

— Não se pode comparar o poder de um deus ao poder de um rei, por mais forte que este seja. Mas o poder de Cyro é verdadeiro: ele derrotou os antigos senhores desta terra, tomando para si território e poder, acrescentando-os ao seu próprio. Em termos absolutos, não existe comparação entre o poder de um deus e um rei: mas no caso presente, e para os objetivos que nos interessa alcançar, o poder desse rei certamente vem antes do poder de deus.

— Blasfêmia! Vós pedreiros não sois crentes no verdadeiro Deus! — retrucou Elimelech. — Colocais a vontade dos homens acima da vontade de Deus! Sequer tendes respeito suficiente para dar-lhe seu verdadeiro nome, Yahwehl Vós o chamais de arquiteto ou coisa mais baixa ainda, como se Yahweh não fosse mais que um de vós! Feq'qesh ergueu sua voz:

— Pelo contrário, Elimelech: assim fazemos por reconhecer que todos os homens, sem exceção de um só que seja, somos filhos do mesmo Deus que nos criou, não importa sob que nome O estejamos reverenciando. Se existe apenas um Deus, como dizemos ambos, então tudo o que existe sobre a terra é parte Dele, por Ele tendo sido criado. Reverenciá-lo de maneira diversa da nossa não torna ninguém menos parte d

'Ele. Se insistirmos em rejeitar homens que parecem diferentes de nós, considerando não serem filhos do mesmo Deus que adoramos, estaremos reconhecendo a existência de outros deuses, tão poderosos quanto o nosso, e o nosso deixa de ser único para ser apenas mais um, não é verdade?

O silêncio na sala se fez subitamente sepulcral, e de repente os le-vitas e kohanim, liderados por Elimelech, ergueram as mãos para os céus, revirando os olhos e retirando-se da sala uns após os outros, com grande exibição de irritação, deixando-me apenas com os pedreiros de quem agora era irmão, ainda que não compreendesse nem a sexta parte do que isso significava. Sem a presença negativa dos religiosos, os pedreiros ficaram mais à vontade, cercando meu trono com uma familiaridade que em outras condições seria vista como desrespeito. Eu, sempre mais solitário do que gostaria, aceitei com grande prazer a demonstração de amizade, ordenando que apanhassem alguns escabelos baixos que estavam pelas paredes da sala e que nos sentássemos todos. A alegria de meus novos irmãos foi imensa, porque sentar-se na presença de um rei era uma licença a que poucos tinham acesso.

Feq'qesh sentou-se a meu lado, comentando:

— São pouco afeitos ao argumento claro, Zerub, os vossos súditos: quando colocados frente a alguma coisa que se choque com seus preconceitos, simplesmente voltam as costas à verdade e prosseguem no caminho semicego de antes.

Acenei em concordância:

— Compreendo, Feq'qesh, mas de certa maneira também partilho de suas dúvidas. Se sou por sangue o herdeiro deste trono em que me sento, não vejo motivo para não tornar fato aquilo que tenho sido na prática. Existe algum impedimento para isso?

Os mais velhos entre meus irmãos pedreiros se entreolharam, e Ananias quebrou o silêncio:

__ Nenhum impedimento, a não ser a tua capacidade de ser rei, irmão Zorobabel;: não te esqueças de que estás sendo preparado para exercer essa função, com uma missão muito específica. Reerguer o Templo de Salomão não é tarefa simples, principalmente porque nós e os religiosos, ainda que desejemos a mesma coisa, temos motivos bem diversos. Tu mesmo sabes disso, irmão, pois juraste ser rei deste povo apenas para que a profecia se cumprisse, com certeza conhecendo o verdadeiro valor dessa promessa. Para que isso se dê, é preciso que estejas pronto, dando-nos provas de que podes fazer o que deve ser feito. Por isso, é nosso dever preparar-te da melhor maneira possível: o povo de tua terra merece a prova definitiva de que és o rei pelo qual esperavam. Pedreiro já és, desde que te aceitamos entre nós, e para os pedreiros que desejamos reerguer o Templo de Yahweh, isso basta. Resta agora conquistar o direito ao trono, que só se torna verdadeiramente teu na medida em que proves teu valor e sejas reconhecido pelos povos e seus reis. Para isso, é preciso que cumpras tua missão, mostrando a todos que és quem dizes que és.

Feq'qesh ergueu a voz:

— Nada menos valioso que um rei que não tem o amor de seu povo. Esse amor precisa ser conquistado, e o que tens a fazer para conquistar esse amor não é coisa simples.

Bati com a palma da mão sobre a pedra de meu trono:

— Quereis dizer que enquanto não realizar isso que chamais de minha missão não serei efetivamente o rei desse povo?

— Exatamente. É preciso que não reste nenhuma dúvida, e para isso é preciso haver provas definitivas.

Meu coração tremeu, porque a missão subitamente pareceu maior que minha capacidade, e até eu mesmo duvidei de mim. Já não me agradava ter que passar pelo que estava vivendo, mas ainda por cima ter que dar provas de meu valor para realizar algo que não era parte de mim abalava meu espírito. Sacudi a cabeça, em negativa: antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Feq'qesh pôs sua mão sobre a minha:

— Acalma-te, irmão Zerub: se te fizemos pedreiro antes que te fizesses rei, foi exatamente para que pudesses contar com teus irmãos em todos os quadrantes do Universo, na realização da tarefa. O Templo de Salomão tem um valor diferente para cada um que faz dele o foco de sua vida: para nós pedreiros é centro e fonte geradora de força e sabedoria. Onde quer que estejas, não importa o que estiveres sofrendo ou desejando, recorda-te sempre que teus irmãos estão permanentemente junto de ti.

— Como diz nossa tradição, uma vez pedreiro, sempre pedreiro — ajuntou Ragel, com uma face jocosamente séria. — Nunca mais te li-vrarás de nós, irmão Zerub. Onde quer que estejas, não importa a direção em que olhes, noite, dia, sol, chuva, sempre nos encontrarás.

Isso me aliviou muito: saber que sempre poderia contar com meus irmãos pedreiros me enchia de uma força que quase sustentava a decisão de cumprir a missão que me fora confiada. Seria este o poder da fraternidade dos pedreiros? Quaisquer dúvidas que eu ainda tivesse sobre minha capacidade de realizá-la foram instantaneamente relegadas a plano inferior, pois nesse momento a presença de meus irmãos me reassegurava de meu próprio poder.

E assim foi: o ano quase inteiro que se seguiu à minha aceitação na fraternidade dos pedreiros foi vivido como sempre, cumprindo uma rotina que seria enlouquecedora se eu não estivesse determinado a cumpri-la. Os religiosos que me cercavam me tratavam com toda a deferência de que um rei é merecedor, sempre deixando claro que eu ainda não era rei. Meu ramerrão poucas novidades tinha: continuei sendo acordado aos primeiros raios do sol e fazendo meus exercícios diários com Théron, a quem cada dia respeitava mais, por seu conhecimento tanto das artes da guerra quanto da mente dos que guerreiam, ficando também fascinado por sua arte no trabalho da pedra. Ele algumas vezes me permitiu experimentar o cinzel e o malho, mas minha paciência era mínima, e a pressa com que eu movia as ferramentas fazia com que meu trabalho se perdesse. Théron ria, eu também, e cada um de nós seguia seu ritmo, porque meu corpo e minha mente estavam certamente mais próximos de se tornar os de um soldado que os de um pedreiro.

As tardes também eram sempre as mesmas, e eu comecei a traçar, com o auxílio de Elimelech, as letras da linguagem sagrada, primeiro em pequenos pedaços de lousa esverdeada, onde podia apagar meus erros, e depois em pedaços de papiro ou de couro de cabra muito raspado, onde o que escrevesse estaria fixado para sempre. Percebi, com o decorrer dessas lições, a identidade entre os sinais e os sons das letras, como umas se formavam das outras, mantendo sua personalidade até mesmo quando já totalmente modificadas, e como todas eram feitas das mesmas línguas de fogo negro que eu via naqueles momentos em que o inesperado me perfurava o cérebro, e a compreensão de algum conceito, do qual nunca tivera sequer a noção, fazia de mim sua morada. O longo nome de Deus, que eu enxergara em minha viagem por dentro do cubo de ágata, era feito dessas mesmas línguas de fogo, estruturadas de modo diferente, agrupadas três a três, e acabei decorando os setenta e dois nomes correspondentes. Não conseguia encontrar entre eles nenhuma palavra que fizesse sentido, mas pressentia haver em cada uma delas um poder excepcional. Jael estava cada dia mais próximo, e quando, numa visita à taberna dos pedreiros, me contaram a história do pedreiro que fora secretário íntimo de Salomão, uma súbita inspiração me fez decretar que Jael ocuparia essa mesma posição a meu lado, mais pela intimidade que pelas atividades de secretário: eu precisava substituir os amigos que perdera.

As noites, depois que um dia terminava e outro se iniciava, eram sempre dedicadas à música que Feq'qesh pacientemente me ensinava. Meu corpo e mente, cansados pelos treinos e concentração na linguagem sagrada, encontravam nesses momentos um verdadeiro bálsamo: através das notas que me bailavam na alma e na capacidade cada vez mais apurada de deixá-las fluir por meus dedos e garganta, eu me esquecia de tudo, até mesmo de quem era, tornando-me um só com a música que enchia a sala, ansiando apenas ter com ela a mesma intimidade natural que Feq'qesh demonstrava, entoando e executando sem nenhum esforço as melodias que nunca deixaram de trazer-me lágrimas aos olhos. Feq'qesh, ao que tudo indica, estava a cada dia mais satisfeito comigo, e quando percebeu que minha memória era tão boa para palavras quanto para melodias, pôs-se a ensinar-me os cânticos que Salomão compusera, mostrando-me as belas canções de amor que meu avô imaginara: enquanto eu as ouvia, decorava ou tentava reproduzir, pensava como seria bela a vida se em meu caminho como músico não tivesse surgido a missão de reerguer o Templo destruído. Eu me satisfaria plenamente em expressar apenas amor, para deleite de todos: quem sabe até um dia pudesse acompanhar a dança de Sha'hawaniah, como fizera na tarde ensolarada em que por impulso tomara o adufe de um músico extenuado...

Sha'hawaniah surgia sempre em minha mente, assim que a noite caía: sua imagem, gestos e palavras eram a princípio tênues e difusos, mas estranhamente, com o correr do tempo, tornaram-se tão perfeitamente delineados, que por vezes eu quase a sentia em carne e osso na minha presença. Feq'qesh, com certeza, percebia isso, e começou a premiar-me com prazer cada vez que eu me superava em uma de nossas aulas. Sempre que isso acontecia, logo que eu me retirava para meus aposentos, esfregando as pontas dos dedos calejados pelas cordas da harpa, uma mulher, que a mim sempre parecia voluptuosamente bela e desejável, mesmo não o sendo verdadeiramente, entrava por minha porta, curvando-se em minha direção, pronta a realizar todos os desejos de meu corpo. Vinham das cercanias de Jerusalém, uma cidade sem muita importância num território cheio de negócios e diversões, e a arte da dança de que eram praticantes fazia delas objeto de desejo de muitos negociantes e viajantes da região. Não duvido que muitas tenham vindo visitar-me por dinheiro, mas algumas, certamente, teriam tido a curiosidade de conhecer esse quase-rei de um povo disperso, jovem e pouco senhor de seu próprio corpo. Em todos esses encontros, o mais estranho era quando, depois de me dar a benesse de seu calor para que nele eu encontrasse o meu prazer mais explosivo, todas me dissessem ao ouvido:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças.

Nunca revelei isso a ninguém, temendo que fosse considerado blasfêmia, fazendo-me perder os rápidos e intensos momentos de prazer que me concediam. Afinal, era normal que pessoas diferentes louvassem a deuses e deusas diversos, e mesmo na Grande Baab'el isso não perturbava demasiadamente os sacerdotes da religião oficial. Eu duvidava que o mundo tivesse sido obra de um deus apenas, e que os outros fossem apenas ídolos sem nenhum poder, como dizia Elimelech. Feq'qesh me explicou isso de forma mais interessante:

— Deus é como nós, irmão Zerub, cheio de facetas e aspectos: se assim somos, é porque fomos feitos à sua imagem e semelhança. Nem todos compreendem isso, e costumam achar que os múltiplos aspectos do Deus Único são uma infinidade de deuses e deusas, alguns até mesmo pretendendo que as deusas do mundo sejam coisa diferente do Grande Deus que a tudo criou. Mas tudo está em Yahweh, e Yahweh está em tudo, pois o Tudo e Yahweh são uma coisa só.

Essas conversas faziam parte de minha educação formal: por influência cada vez mais crescente dos gregos, ia se tornando essencial que homens de alguma importância pudessem discorrer sobre os mais diversos assuntos, mesmo que essa capacidade não fosse de nenhuma utilidade frente a algum conquistador brutal capaz de manejar com perícia suas armas mortais. Graças a essas conjeturas, meu espírito se enriquecia com outras armas: o conhecimento é uma fonte de poder, e grande parte do poder dos pedreiros talvez estivesse no conhecimento de que eram guardiões. Eu queria aplicar bem o conhecimento amealhado durante esse tempo em que me moldava para o cumprimento de minha missão e acabei por praticar tudo o que se considerava dever e atribuição de um verdadeiro rei, intervindo em pequenas disputas, ouvindo com paciência as opiniões alheias antes de formar a minha própria, agindo com força e dureza cada vez que uma dessas disputas passava dos limites, e aproveitando tudo o que ouvia para formular a minha própria opinião sobre todos os assuntos, executando-a segundo meu próprio discernimento, que se tornava a cada dia mais equilibrado. Devo ter amadurecido uns cinco anos nesse ano quase inteiro que passei sendo preparado, vindo quase a esquecer-me da missão que tinha a realizar, tão acostumado estava com minha rotina. Por isso, fui tomado de surpresa quando, determinada manhã, depois de uma noite particularmente satisfatória com uma dançarina de longos cabelos negro-azulados e quadris exageradamente grandes, encontrei a sala do trono cheia de gente, como havia muito não acontecia. Estavam todos hieraticamente postados ao longo da sala, em ordem decrescente de importância, e tanto os pedreiros quanto os religiosos pareciam vestir seus melhores trajes, os pedreiros com suas luvas brancas e os mais velhos dos kohanim com mantos multicoloridos, peitorais recobertos de pedras preciosas, chapéus de formato estranho cobrindo-lhes as cabeças. Meu ar de espanto deve ter sido grande, mas nem uma sombra de riso cruzou as faces que miravam em minha direção. Quando me sentei ao trono, mesmo antes que pudesse dizer qualquer palavra, Elimelech ergueu suas mãos para o alto e falou, em voz clara e alta:

— Iehi ratson milefanêcha Adonai Elohênu velohê avotênu...

A Oração dos Viajantes, que eu aprendera na infância, estava sendo dita em minha presença, e eu sabia o que isso significava: chegara a hora em que eu deveria partir de Jerusalém para cumprir a missão. Eu sabia que esse dia chegaria, mas, como tudo era sempre igual, eu me habituara a estar na proteção do palácio, que nunca antes me parecera tão aconchegante. Amedrontado, repeti em meu espírito as frases que abençoavam minha viagem:

— Que seja da Tua vontade, Eterno, nosso Deus e Deus de nossos pais, conduzir-nos em paz, dirigir nossos passos em paz, guiar-nos em paz, fazer-nos chegar a nosso destino em vida, com alegria e paz, e fa-zer-me retornar em paz.

O momento havia chegado: o rei devia tomar o mundo. A idéia de abandonar o sossego e a segurança do aprendizado me enchia o coração de temor, mas eu estava comprometido com essas pessoas, que me viam como sua última oportunidade, enquanto em minha alma soava sem cessar a frase de meu pai: "Assumi um compromisso? Morro, mas faço.

Não havia outra possibilidade a não ser cumprir o destino que o destino me impusera: eu tinha que encontrar o poderoso Cyro e dele conseguir, não importa por que meios, permissão para que o Templo de Salomão fosse reerguido. Muitos poderiam fazer isso, mas nenhum deles tinha dentro das veias o sangue de David, como eu, e só esse sangue real poderia trazer de volta a Jerusalém todos os judeus que agora viviam na Grande Baab'el, ansiosos por um líder, um man'hig que os guiasse de volta à Terra Prometida. Por mais que o tempo de preparação me tivesse dado o necessário para realizar essa tarefa, faltava-me o essencial: a crença em minha própria capacidade de realizá-la. No fundo de meu espírito havia grande dúvida, e a idéia de enfrentar um poderoso senhor de povos e dele arrancar essa promessa gigantesca me parecia muito além de minhas forças. Eu tremia por dentro, apesar do exterior plácido, ouvindo os planos que meus irmãos e meus súditos contrapunham uns aos outros:

— As notícias vindas da Grande Baab'el são de que Cyro é um monarca esclarecido, que insiste em espalhar a liberdade entre seus súditos, permitindo que morem onde quiserem, cultuem os deuses que desejarem e vivam da maneira que melhor lhes aprouver. — As palavras de Jerubaal ecoavam na sala silenciosa. — Tudo que precisamos é que ele reconheça o direito que os habitantes de Jerusalém têm de reerguer o templo de seu deus, e talvez essa idéia de liberdade religiosa, que parece ser parte muito importante de sua política, possa nos ser muito útil.

Elimelech, como sempre, esbravejou, acompanhado por seus acólitos:

— Yahweh nos dará forças para que imponhamos Sua vontade sobre Cyro. Devemos exibir a vontade de Yahweh a esse pretenso poderoso e dele tomar tudo o que é nosso.

Os levitas concordaram ruidosamente, como sempre, repetindo de maneira atabalhoada as palavras de Elimelech, como se fossem parte do Livro Sagrado. Era flagrante a má vontade dos religiosos para com os pedreiros, como se sua existência fosse um incômodo para o povo de Jerusalém: não me recordo de uma vez sequer em que estivessem de acordo. De maneira geral, as opiniões e posições dos pedreiros eram mais coerentes e racionais, enquanto as dos kohanim e seus seguidores eram geradas por impulso, nascido de sua incapacidade de aceitar a existência de quem não fosse exatamente igual a eles. Os pedreiros, pela experiência na fraternidade da pedra, eram unidos por outros fatores que não raça, cor, língua ou hábitos: suas diferenças os tornavam mais fortes, porque era além das diferenças e das semelhanças que ficava o território comum onde todos eram irmãos.

Eu me sentia estranho em meio a essa discussão: mesmo que quisesse, teria que aceitar o que decidissem em relação à minha forma de agir. Pretendia chegar à Grande Baab'el investido de grande autoridade, desfilar na larga avenida em frente à Esagila e ouvir o murmúrio embevecido da multidão, reconhecendo-me como o Rei de Jerusalém, para depois ser recebido por Cyro com todas as honras, aclamado pela corte e, mais tarde, em pleno templo no alto da Grande Torre, encontrar-me com Sha'hawaniah e mostrar-lhe minha realeza, finalmente usufruindo de suas delícias.

Voltei ao mundo real em meio aos gritos de Elimelech e dos levitas, percebendo a realidade mais áspera que meus sonhos. Em sã consciência, por maior que fosse o desejo de exibir meus poderes, eu não os tinha: era apenas o quase-rei de um quase-reino, senhor de um povo que raramente via e que bem podia ser uma ilusão criada pelas palavras e atos dos que me cercavam. Meus irmãos na pedra tinham razão: era melhor retornar à Grande Baab'el da maneira menos flagrante, estudar as condições em que me encontrava e só então, caso fossem propícias, revelar minha verdadeira identidade, tentando conseguir de Cyro aquilo que fora buscar. Aceitando o dever que meu sangue me impunha, e acreditando ser esta a última prova que me restava, limpei a garganta e disse:

— Não posso me apresentar ao poderoso Cyro sem saber exatamente onde estou pisando. Decido viajar até a Grande Baab'el sem revelar meu verdadeiro papel, tentando descobrir as verdadeiras intenções desse novo senhor do Império antes de revelar-me. Se ele realmente for como dizem que é, apresentar-me-ei como Rei de Jerusalém, conseguindo apoio para nossa tarefa. Para isso, devo ser acompanhado por um grupo pequeno o suficiente para não chamar sobre mim mais atenção que a necessária, mas grande o bastante para que, quando tiver que me apresentar como rei, possa fazê-lo da forma adequada.

A decisão estava tomada: eu dera a última palavra sobre meu próprio destino, ainda que dentro de mim, como uma criança, tremesse de medo. A perspectiva de retornar à minha cidade natal, no entanto, enchia-me de uma excitação que eu nunca conhecera. Pedreiros e acólitos me olhavam, sem perceber o torvelinho que me ia dentro do espírito, fruto de tantos sonhos e desejos, e principalmente da saudade que sentia dos lugares onde passara os melhores anos de minha vida.

Os dias que se seguiram foram de preparação intensa: uma caravana fora reservada para nossa viagem, e quando se aproximou de Jerusalém, acampando ao fundo de meu palácio, senti durante três dias inteiros o cheiro dos j'ma.1 que me recordavam a viagem anterior, terminando ilhado entre as ruínas de Jerusalém, para que me declarassem rei. Na memória circulavam imagens do passado cada vez mais rápidas, como rodas d'água no palácio de Belshah'zzar, ativadas por uma torrente mais rápida que o Eufrates. Não consegui me concentrar em nada durante esses três dias de tensão quase insuportável, e nem mesmo a harpa, que costumava ser meu grande calmante, conseguiu fazer mais que irritar-me, cada vez que não soava como eu queria. Na verdade, tudo escapava a meu controle: como aceitar que mais uma vez estaria à mercê da vontade alheia, sem poder sequer discutir as conseqüências dos atos que devia realizar?

Na manhã do terceiro dia, depois de mais uma noite insone e solitária, em que nem mesmo a masturbação compulsiva me trouxe algum prazer ou descanso, ergui-me antes que as trombetas soassem, vestindo os limpos trajes de mercador que estavam sobre meu leito desde o dia anterior. Alguém havia desencavado em seus guardados um manto idêntico ao que eu usara quando chegara a esta cidade, e o tecido rústico e com cheiro de guardado, urdido com os nós e laçadas dos teares da Grande Baab'el, fez-me sentir reatando os laços com minha origem, como se essa viagem não tivesse outro objetivo senão recolocar-me em meu devido lugar. Meu pai tinha um manto igual a esse, com as mesmas franjas e a mesma borda de tecido azul-escuro: mesmo havendo o tempo me modificado a face e o porte, esse pedaço de pano seria testemunha de minha identidade na Grande Baab'el. Eu queria, antes de qualquer coisa, encontrar meu pai, mostrar-lhe o manto com que me cobria exatamente como ele fazia, dar-lhe a notícia de que sua vontade estava sendo cumprida. O homem que ele queria que eu fosse estava finalmente caminhando à luz do sol, e eu precisava de sua ajuda para isso.

Feq'qesh entrou em meus aposentos antes de todos, e, vendo a harpa jogada descuidadamente ao solo, apanhou-a, junto com o saco de pano vermelho dentro do qual ela ficava guardada, perguntando-me:

— Pretendes abandonar teus estudos da arte só enquanto durar tua viagem, ou é em definitivo que estás desprezando o kinn'or?

Eu não tinha cabeça para música nenhuma, envolvido nessa difícil missão que, se pudesse, recusaria. Era tarde para isso: minha sorte estava lançada, e eu, sem proferir palavra, continuei a me vestir, atando as sandálias por sobre os calções amplos, à moda babilônia, cobrindo as pernas inteiramente. Feq'qesh sentou-se de pernas cruzadas, dedilhando minha harpa, enquanto distraidamente me dizia:

— É uma pena que não a leves: terás tempo suficiente durante a viagem para dedicar-te, dessa vez por ti mesmo, ao aprimoramento de teu talento natural para a música. E sempre há de surgir uma oportunidade em que teu talento será tudo de que precisarás para alcançar sucesso. A música opera milagres, e os milagres são essenciais para quem, como tu, espera realizar aquilo de que não se reconhece capaz.

Olhei-o, com espanto: era impressionante a capacidade que Feq'qesh tinha de ler o que me ia na alma, como se lá dentro estivesse. Dedilhando na harpa uma frase que me era familiar, mas que eu não conseguia precisar onde tinha ouvido pela primeira vez, ele continuou, alternando suas frases musicais com o que me dizia:

— Infelizmente, não posso seguir contigo para a Grande Baab'el, porque, quando retornares com a permissão imperial para reconstruirmos nosso templo, não haverá tempo a perder.

— Duvido que o consiga, mestre. — Eu estava certo de minha incapacidade, e Feq'qesh o percebera. — Não tenho nenhum traquejo quanto a essas questões, e, por mais que tenha sido treinado pelos melhores, o que sei é apenas uma nuvem que se dissipará quando em contato com a realidade dos fatos.

— Acalma-te, Zerub: acredita que és rei e comporta-te como tal. Os compromissos que assumiste com nossos irmãos pedreiros te ajudarão muito, pois se enraízam na alma de maneira inexplicável, causando, mesmo sem que o percebamos, uma mudança em nossa maneira de ser. Não importa o que te aconteça, lembra-te sempre que juraste por tua própria vontade, e deves tanta obediência a esse juramento quanto a ti mesmo.

— Meu mestre, eu tenho medo de não ser capaz de manter as promessas que fiz. Minha alma é fraca.

— Todas as almas o são, e a vontade é o que as impulsiona no caminho que trilharão. Não te esqueças também que as situações mais insuportáveis, antes de chegar a seu limite, sempre admitem uma última possibilidade.

— E qual é ela?

— O milagre, o inesperado, o de que só Deus é capaz. A vida está cheia de milagres que não percebemos, pois eles acontecem a todo instante.

Feq'qesh envolveu minha harpa no pano vermelho, atando-a com as cordas de seda, e colocou-a por sobre minha pequena bagagem, dizendo:

— Leva tua harpa, treina tua arte sempre que tiveres oportunidade, deixa que tua alma divague com a música, em busca das respostas para as perguntas que te serão feitas. Procura no que te ensinei aquilo que melhor preencha o momento, e acredita no milagre, porque Yahweh é o Senhor do Impossível.

Saí de meus aposentos como que sonhando, e quando me vi por sobre um j'mal, ladeado por meus dois eternos protetores, com Jael à frente, cercados pela pequena e colorida caravana, o sol nascendo entre as pesadas nuvens, percebi não haver retorno possível. Voltei os olhos para trás, vendo a figura impávida de Feq'qesh em uma janela de meu pobre palácio de madeira gasta. E só quando sua figura se desvaneceu pela distância, foi que me recordei onde tinha ouvido a frase musical que ele repetira como um fundo constante de seus conselhos: era a frase em ritmo quinário que soara na rampa da Torre da Grande Baab'el, acompanhando a dança de Sha'hawaniah.

Essa lembrança me encheu de alegria e excitação: dessa vez, a mulher que eu desejava não escaparia de mim. Ela dissera claramente que seria minha se eu fosse rei, e eu o era, mesmo que de um povo pobre e sem rosto, e ainda que covardemente disfarçado de mercador. Os recados que ela me enviara, através de tantas mulheres diferentes, estavam marcados indelevelmente dentro de mim: cada mulher que comigo tivesse estado fortalecera em mim sua presença. Tomei nesse instante uma decisão inesperada: guardar-me-ia para esse encontro, faria qualquer coisa para preservar-me para ela, buscando o maior de todos os prazeres, a grande recompensa de meus feitos ainda por realizar. Sorrindo, ajeitei-me em minha sela colorida e, instigando minha montaria aos gritos de sulíahl sullah!, como fizeram os cameleiros de minha primeira viagem, avancei para a cabeça da caravana, em nosso caminho para fora de Jerusalém.

A primeira sensação nova foi sentir o calor do sol no rosto, enxergando por trás das nuvens o azul do céu, e notando que fazia quase um ano que não via esse azul, de que já quase me esquecera. O céu plúmbeo e carregado de Jerusalém, tão baixo que parecia poder ser tocado, impunha uma tristeza ainda maior sobre tudo e todos, e nessa cidade era fácil estar cada vez mais triste e ensimesmado, até sucumbir. Do lado de fora da massa de nuvens, permanentemente pousada sobre a cidade, entendi a imensa ausência de vida que cobria seu território. Tudo era muito difícil na Jerusalém abandonada por Yahweh, a terra praticamente morta nada mais tendo a oferecer, como se estivesse esgotada de toda a sua seiva vital, e eu duvidava que algum dia pudesse voltar a ser fértil e benfazeja.

Meu espírito se animou com a visão do céu azul e do sol, e cobrindo melhor minha cabeça para escapar da força de seus raios a cada instante mais fortes, pus-me a cantar com voz bem alta o último salmo de David que Feq'qesh me ensinara:

— "Os céus cantam a Glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de Suas mãos. O dia entrega a mensagem a outro dia, e a noite a dá a conhecer a outra noite."

Minha voz, solta nas montanhas que íamos atravessando, soava mais bela que em qualquer outro dia. Os salmos que meu parente distante arrancara de dentro de sua própria alma, muito antes de tornar-se rei, falavam claramente desse Deus que eu sentia presente em alguns lugares e ausente em outros. Na viagem para o meu remoto-ainda-que-próximo passado, era flagrante a presença divina em cada coisa que a Natureza nos mostrava, cada animal e planta e cada contato entre eles, como se todo o movimento estivesse incluído em uma imensa roda girando tão lentamente que parecesse estar parada. Durante todo o caminho entre Jerusalém e a Grande Baab'el, fiz soar a minha voz, quando o caminhar era mais manso, e toquei minha harpa todas as noites, entre a última refeição do dia e o sono que a ela se seguia.

Depois de descer as montanhas que cercavam Jerusalém pelo leste, cruzamos o Jordão, pastoso e enlameado, ladeando íngremes falésias de pedra, logo acima de Bet-Nemrah, encontrando o sol claro e céu aberto no território dos amonitas. Era quase tempo de plantio, e a terra úmida e rica brilhando ao sol era um choque perto da cidade seca de Jerusalém. Quando contei a Heman e Iditum que em volta da Grande Baab'el a terra era sempre fértil e costumeiramente carregada de verde, os dois sorriram juntos, duvidando de mim. E por toda a margem esquerda do Jordão, entre Bet-Nemrah e Afeq, na terra de Basã, após dois dias atravessando o território dos gaaladitas, cruzamos o Jamuc: cada volta do caminho era uma nova surpresa, tal a luxuriante vegetação natural que cercava as margens dos pequenos e médios regatos que atravessávamos. Uvas, figos, laranjas e limões, imensos bosques de ta-mareiras, gente de toda espécie deitando ao solo as sementes que ali brotariam em pujança cem vezes multiplicada. Essa exibição de fartura era tão grande, que por diversas vezes percebi os olhos tristes de meus guardiões silenciosos, filhos de agricultores de Jerusalém, nascidos e criados em meio à imensa pobreza das terras onde se achava a cidade. Subimos rumo norte, e eu estranhei, pois chegara a Jerusalém praticamente em linha reta, passando pelos desertos e pelo Wadi Shir'han, mas Jael disse que nessa época do ano, quando a cheia do Eufrates era grande, valia a pena desviar-se para o norte até Shaubak, onde ficavam as minas de cobre, e de lá seguir a trilha que levava a Dimashq, e depois à cidade de Tadmohr, que seus habitantes chamavam de Palmyra, indo depois para Rusafah, logo depois do grande lago onde nasce o Eufrates. Aproveitaríamos a velocidade que suas águas ganham assim que ele faz a grande curva do leste para o sudeste para descer com ele em linha reta, célere, ágil, até alcançar os campos férteis da poderosa Grande Baab'el. Os quase setenta dias de minha primeira viagem se reduziriam muito, pois entre Jerusalém e Rusafah, mesmo se descansássemos mais do que o costume em Dimashq, viajaríamos de dez a quinze dias, e menos de uma semana depois disso estaríamos aportando no cais de minha cidade natal.

Quanto mais nos movíamos para longe de Jerusalém, melhor eu me sentia: a cidade era o cemitério de minha alma. Eu rejuvenescia dia a dia, reencontrando uma alegria que a todos contagiou, e cantava o dia inteiro, balançando sobre a colorida sela de meu ;''mal, que, por não ser tão afetivo quanto o primeiro de que fizera uso, era mais rápido e sensivelmente mais bem adaptado à viagem. Em Dimashq, cidade próspera e grande, se comparada com o lugar acanhado de onde eu vinha, passamos três dias, e eu pude aliviar-me do peso que sentia entre as pernas, causado não só pelo roçar contínuo do pênis nas roupas, mas também por minha recusa em tocar-me para alcançar prazer. As três noites em que lá estivemos foram gastas em uma taberna ao ar livre, coberta apenas por uma imensa tenda de pano azul e amarelo, sob a qual se comia, bebia, dançava, cantava e tudo o mais. Grandes narg'hillas das quais escapava o forte olor da tam'bakha estavam espalhadas pelas mesas, onde inúmeros homens vestidos como nós, também mercadores, negociavam suas cargas, aproveitando-se da fraqueza mental de outros para obter imensos lucros. Quando sentamos a uma das mesas baixas, junto com os cameleiros mais graduados de nossa caravana, ninguém nos deu atenção, Foi difícil encontrar até quem nos servisse, pelo menos enquanto não tomei da harpa e pus-me a cantar uma das canções de meu avô David, que, falando dos filhos de Coreh, dizia "meu coração transborda em um belo poema, dedico minha obra a um rei", criando tal silêncio na taberna, que, quando terminei o canto com um toque rápido em oito de minhas doze cordas, pôde-se ouvir o vento soprando nas folhas da tenda, e logo depois todos ergueram suas mãos e começaram a estalar os dedos e gritar agudamente, aprovando minha arte. Isso imediatamente trouxe até nós várias pessoas, querendo nos obsequiar com vinhos e alimentos dos quais tomamos o que nos interessava, assim como várias mulheres, que nos cercaram com propósitos evidentemente lascivos. A todas olhei, mas nenhuma delas me despertou mais que a excitação do corpo, e quando já estava por aceitar qualquer uma que me fosse menos desinteressante, aproximou-se de mim a mais velha dentre elas, olhos pintados de negro e azul, dizendo-me ao ouvido o que me parecia mais uma ordem que um cumprimento:

— Minha senhora Ishtar te manda lembranças.

Das três noites que passei em companhia desse arremedo do que eu verdadeiramente desejava, a melhor sem dúvida foi a primeira, com prazeres quase indescritíveis. Na segunda, eu já pude perceber que seus movimentos eram um tanto canhestros, e o perfume de seu corpo, que tanto me excitara na primeira noite, ia ficando cada vez mais enjoativo. Na terceira noite, assim que alcancei com ela o meu prazer, demorando apenas uma pequena fração do tempo em que o perseguira na noite anterior, pedi-lhe que se afastasse, pois desejava dormir, e, como seguiria viagem na manhã seguinte, queria descansar à vontade. Notei que ela saiu de minha tenda com um ar de amuo em seu rosto vincado, mas logo que desapareceu fui em busca de Jael, já que Heman e Iditum haviam adormecido à porta da tenda, um apoiado no outro.

Jael estava derreado em suas almofadas, abraçado cora uma pequena houri que dançara à minha frente nessa noite, e por quem eu chegara a me interessar. A perna esquerda de Jael cobria a anca das mulheres, e eu notei na nádega esquerda dele um sinal triangular de cor sépia, com as bordas tão retas como se tivesse sido pintado por alguém, manchado no centro por uma pinta mais escura, tão diferente dos sinais comuns que nunca mais dele me esqueci. Como ele dormia, voltei para minha tenda, logo ao lado, e ressonei até a manhã seguinte, quando partimos de Dimashq em direção ao Eufrates, bem mais a nordeste de onde estávamos. Treze dias depois de deixar Jerusalém, chegamos ao pequeno porto de Rusafah, onde negociamos um barco nem grande nem pequeno, arredondado à frente e à popa mas reto dos lados, um dos barcos do Império da Babilônia encompridado para suportar mais carga. A nossa era pequena: alguns fardos de seda que Jael adquirira em Dimashq, e que junto com nossa bagagem ocupava os seis j'mal nos quais nós e dois cameleiros contratados seguiríamos montados assim que aportássemos no cais da Grande Baab'el. Nosso projeto era simples: enquanto os cameleiros estivessem negociando a seda no mercado da Esagila, nós quatro, fazendo-nos de grandes negociantes, flanaríamos pela cidade em busca de informações. Se as condições nos fossem propícias, eu pediria uma audiência ao poderoso Cyro, agora senhor de todo o Império, e abriria meu coração, revelando-lhe o verdadeiro motivo de minha viagem.

Por seis dias, à força de remos que serviam mais de leme que de impulso, descemos a célere correnteza do Eufrates, que alagava suas próprias margens, observando a enorme quantidade de casebres com água até o meio das paredes de barro, lentamente voltando a ser parte da terra, e a cada dia em maior quantidade. Na manhã do sexto dia, os casebres de barro já estavam praticamente grudados um no outro, e ainda que os campos atrás deles estivesssem coalhados de plantas verdes, eram um prenuncio da cidade que se avizinhava, e que surgiu, brilhante e colorida, de um lado e outro do rio, tão cheio de barcos que era difícil enxergar-se a água em que se moviam, atravessada por pontes tão conhecidas e coalhadas de gente, a mesma gente de quem eu agora percebia estar tremendamente saudoso. A maior saudade, no entanto, era de meu pai, a quem desejava encontrar mais do que a qualquer outro, para que fosse meu guia nesse caminho tão difícil, onde apenas o amor de um pai serve de garantia.

Com a cabeça cheia desses pensamentos, e o olhar perdido na distância, mergulhado dentro de mim mesmo, senti um súbito golpe no peito, forte como se o barco houvesse batido em algum obstáculo. Olhando à minha volta, divisei ao longe a Grande Torre de Marduq: as trom-betas que marcavam o fim de mais um dia soaram e um relâmpago de luz dourada em sua parte mais alta me feriu a vista e a alma, enquanto a voz de Feq'qesh, tão claramente quanto se ele estivesse a meu lado, soou em meus ouvidos:

— Agora é tarde. Teu pai morreu.

 

Foi como se eu estivesse enlouquecendo: ouvia as vozes dos ausentes dizendo coisas que não faziam o menor sentido. Dentro de mim vibrava o prenuncio da sandice que um dia me tomaria corpo e alma, rojando-me ao solo de quatro, para que me alimentasse das ervas do campo, tal qual Nebbuchadrena'zzar. O sol no horizonte alongava as sombras da Grande BaaVel por sobre o rio em que navegávamos com muito cuidado, desviando-nos de uma miríade de barcos que nos cercavam, e cada vez que passávamos por uma dessas sombras um arrepio gelado me percorria o espinhaço. A náusea que eu não sentira em toda a descida do Eufrates agora me assomava em ondas, e eu só desejava pôr os pés em terra, correr até o teVaviv e encontrar meu pai, a quem pediria perdão e apoio. Tudo se me esvaiu da mente enquanto eu tentava com todas as minhas forças manter a sanidade que me restava, cada vez menor.

Quando nosso barco encontrou uma vaga nos molhes inteiramente tomados por pessoas e cargas, quase me joguei de cabeça nas pedras, tal a pressa de alcançar o bairro onde nascera, e do qual me recordava vivamente, visualizando o que estava em minha memória. Pulei no cais, afastando os que vinham em minha direção: toda a Grande Baab'el decidira ali se encontrar para caminhar na direção contrária à minha, criando essa poderosa onda de carne humana que eu tentava furar com meu corpo cansado. Eram muitos os que me arrastaram para trás, e as lágrimas de impotência me subiram aos olhos: não fosse o apoio constante de meus guardiões Heman e Iditum, e também o braço amigo de Jael, que de mim se aproximara, ajudando-me a romper a barreira semovente até encontrar uma saída que me deixasse próximo à grande avenida, eu não andaria em direção ao Chebar, para atravessar o canal estreito e avançar pelo bairro dos alfaiates até encontrar a casa de meu pai. A sensação física piorava sensivelmente a cada passo que eu dava, e no meio do caminho o ar já me faltava, deixando-me mais ofegante. Jael segurou-me pelo manto, mas eu me atirei para a frente, quase caindo de cara ao chão, acabando por ajoelhar-me, olhando na direção norte, fortemente atraído para o meu destino.

Jael, com uma mão fria como gelo, segurou-me pela testa:

— Espera, meu irmão! Tem calma! O que te sucedeu?

Eu não podia dizê-lo, com medo de que meus amigos de mim se afastassem: eu queria, precisava, tinha que ir ao encontro de meu pai, tinha que encontrá-lo vivo:

— Minha casa, tenho que ir até minha casa...

— Acalma-te, então! Não vês que estamos chamando a atenção de todos? Se estamos disfarçados, não nos entreguemos assim, sem motivo! Acalma-te!

Jael tinha toda razão, mas nem meu corpo nem meu espírito queriam saber de coisas razoáveis: a voz de Feq'qesh ainda ecoava em meus ouvidos, ampliando meu medo de perder o que precisava encontrar. O pai que me amara à sua moda, sem que disso eu me apercebesse, nunca havia tentado explicar-me por que me tratava daquela maneira, no silêncio e na exigência mais absolutos. Eu não o compreendera, como compreendia agora, e precisava dizer-lhe isso. Aprumei-me, mas não desisti: reduzindo um pouco meu impulso físico, continuei em passo acelerado por entre a multidão que enchia a grande avenida, seguindo para o norte, vendo ao longe os azulejos de azul brilhante da Porta de Ishtar, que logo atravessamos, deparando com a pequena ponte tão minha conhecida pousada em eterno movimento por sobre as águas do Chebar. De sua outra margem viramos à direita, entrando pelo labirinto de casas cada vez menos suntuosas, sentindo os perfumes familiares de que me tinha esquecido completamente. Eu ansiava chegar à porta de minha casa, vê-la abrir-se e na sala central, de costas para o fogo que minha mãe sempre avivava, avistar meu pai, barbas longas e cabeça coberta por um manto, aos pés de quem me rojaria, pedindo perdão, rogando que me aceitasse de novo como se nunca tivesse deixado de ser filho para ele.

Ao virar a esquina de um beco coberto por panos de um azul tão intenso que mudava as cores de tudo, encontrei uma multidão indo na mesma direção que eu, composta por homens a quem reconhecia, mas cujas faces não eram mais que um fundo para a face de meu pai, a cada instante mais e mais clara em minha memória. Passei pela casa de Yeoshua, seguindo junto com a multidão, enquanto meu coração se apertava cada vez mais. Cada passo me era mais difícil que o anterior, a cada instante a dor surda doía mais. Avistei a porta da casa de meus pais, à frente da qual a multidão se ajuntava. Ladeado por Heman e Iditum, cheguei à porta, sem perceber o interior da casa, que a escuridão não me deixava ver. Pisei na soleira, atravessei a porta, esperando ver a imagem do pai sentado à mesa, com meus irmãos à sua volta, e ele me sorriria e mandaria que eu entrasse, como se eu fosse o filho pródigo que retornasse à casa paterna...

Meus olhos se acostumaram à escuridão: sobre a mesa estava um corpo inerte, coberto pelo manto branco debruado de azul de que me recordava perfeitamente. Na parede do fundo, descalços e com a cabeça coberta, estavam minha mãe, meu jovem irmão, minhas irmãs, acocorados, as cabeças mais baixas que as dos visitantes. Não compreendi: decerto meu pai estava doente e, na falta de cama em que deitar-se, havia deitado sobre a mesa. Todos me olhavam, sem me reconhecer, até que minha mãe, erguendo os olhos do chão, deu comigo, e uma luz de alegria por minha presença foi imediatamente sufocada pela profunda mágoa do que estávamos vendo. Ela abriu os braços e disse:

— Zerub, meu filho! Agora é tarde. Teu pai morreu. Acaba de morrer. Foi na hora exata em que o sol se pôs sobre a torre dos gentios.

Debrucei-me sobre ela, beijando-lhe as faces úmidas, sem reconhecer que experimentara um terrível instante de poder imenso, quando a voz do mestre ausente me dissera o que acontecera no exato momento em que se dera. Ergui-me, a medo, e me dirigi para a mesa, ouvindo o burburinho dos que estavam em volta "é o filho morto", "é o que foi expulso", "Yahweh o trouxe até o pai, tardiamente", e lentamente ergui a borda do manto que ficava por sobre a cabeça de meu pai. Lá estava o mesmo rosto, as barbas longas, os olhos meio entreabertos, a boca mostrando a fímbria dos dentes, o nariz muito mais afilado, como se seu osso se tivesse tornado uma lâmina cortante. A pele azeitonada estava mais amarelada e pálida do que eu me recordava, e a mão crispada sobre o peito murcho ainda era a mesma que me esbofeteara no dia em que ele desistira de mim. Eu também desistira dele, mas a vida em Jerusalém só se fizera possível porque ele me dera tudo de que eu precisava, ainda que eu tivesse rejeitado tudo que ele me dera. Tardiamente, a língua que eu rejeitara trouxera tudo de volta, menos meu pai: este estava morto à minha frente, e eu nunca mais poderia dizer-lhe o que sentia nem mostrar-lhe que o havia compreendido.

Estendi minha mão e toquei a face gelada de meu pai, para horror dos que ali estavam:

— Não! Não se toca no cadáver! Vais ficar impuro!

Tive vontade de rir, e o teria feito se não estivesse tão desespera-damente triste: a idéia de ficar impuro por tocar a casca vazia que tinha abrigado a vida de meu pai me soava como a pior das tolices. Cerrei os dentes e segurei sua face com as duas mãos, dando-lhe um beijo na testa úmida. As pessoas à minha volta reagiam com cada vez mais desagrado:

— Como é possível? Ele não compreende as tradições? Já está impuro!

Alguém se destacou da multidão, aproximando-se de mim:

— Não devias tocá-lo, amigo: mas já que o fizeste, deves ir comigo até a mikvah para purificar-te.

A voz era conhecida, assim como a face sardenta, coberta por pêlos encaracolados como os cabelos que escapavam por debaixo do manto, e os olhos de um castanho claríssimo, quase amarelos, fitando-me com tristeza. Seu nome me escapou dos lábios:

— Yeoshua!

Avancei para ele, que recuou, colocando em meu peito uma mão coberta pelo manto:

— Meu amigo, não me toques; porque então seremos dois impuros. Eu também estou feliz em rever-te, mas esperemos o momento certo, depois que estiveres purificado pelas águas da mikvah.

Recuei, sem compreender a crença que me impedia de demonstrar o quanto precisava desse amigo. Minha mãe, de seu lugar, sussurrou:

— Yeoshua foi para teu pai o filho que ele não tinha mais, Zerub: ficou em teu lugar, fazendo tua parte como se fosse o próprio Zerub.

Meu amigo me substituíra, enquanto eu andava longe? Mas meu amigo tinha um pai, eu me recordava disso. Yeoshua, lendo a dúvida em minha face, disse:

— Meu pai, ao contrário do teu, nunca se interessou pelas coisas de nosso povo. Quando eu quis saber delas, foi em teu pai que encontrei apoio e ensinamento.

— O que queres dizer com isso? Que eu devia ser o filho de teu pai, e tu o filho do meu?

Minha frase estava cheia de veneno, ciúme, inveja, mas Yeoshua, sentindo a força de minha emoção, resistiu ao golpe:

— Se soubesses o quanto ele te via ao me olhar, não dirias isso. Cada vez que eu vinha até ele em busca de ensinamento, era a ti que ele instruía, através de mim. Agora mesmo, nos arquejos finais da morte, quando o ar já não mais lhe entrava pelos pulmões e ele se debatia, pus-me a fazer as orações, e ele morreu dizendo uma única palavra: o teu nome.

Um urro de dor escapou de minha garganta. Perdera meu pai no momento em que dele mais precisava: outros haviam usufruído de tudo o que ele tinha a dar-me, e ele ansiara por mim, pressentindo que eu estava chegando. O maldito Eufrates fora lento demais, tornando-me mais um dos que não podem tocar as mãos do pai nem olhá-lo nos olhos nem ouvir-lhe a voz, mas eu certamente era o mais prejudicado de todos, porque meu pai me faltaria exatamente quando eu mais precisava dele. Pior que isso só a sensação de não ter sido perdoado. Meus olhos derramavam toda a minha mágoa, e Yeoshua, num impulso, passou-me o braço pelos ombros, estreitando-me contra seu corpo. Eu o abracei fortemente, e nossas faces se tocaram, enquanto ele me dizia, como que sabendo o que me ia no coração:

— Pensa, amigo, que teu pai sempre te amou, e mesmo tendo aplicado a lei sobre ti, nunca deixaste de ser seu filho. Cada vez que ele tratava um de seus discípulos com severidade, ensinando e corrigindo nossos erros, era a ti que ele corrigia e ensinava. O maior sonho de teu pai era o de ser teu mestre, como fora nos anos de nossa infância. Recordas das aulas que ele nos dava, aqui nesta mesma sala? Mesmo depois que abandonaste o aprendizado, as aulas só tinham sentido porque eram para ti: mesmo quando aqui não estavas, era a ti que ele se dirigia.

— Isso não me traz nenhum consolo, amigo, nenhum consolo... quando entendi que meu pai era a única pessoa a quem eu deveria ouvir, retornei em busca de seu perdão. Por alguns instantes, alguns instantes apenas, perdi a oportunidade de ouvir esse perdão de sua própria voz! Por que Yahweh é tão cruel?

O amargor em meu peito era imenso, mas o amigo de tantos anos e tantas aventuras me amparava, sendo meu consolo e meu suporte nessa hora de dor. Yeoshua engordara bastante nesse ano em que estivéra-mos separados, e mesmo por trás da barba razoavelmente cerrada ainda mostrava o rosto rubicundo e sardento, estranhamente adulto através dos mesmos traços de sempre:

— Meu amigo, o perdão de teu pai de nada vale, se não fores capaz de perdoar-te a ti mesmo. Talvez seja o perdão mais difícil de alcançar, e com certeza é dele que tu precisas. O de teu pai, podes ter certeza de que te foi dado quando ele exalou seu último suspiro dizendo teu nome.

Não tive como me controlar mais: aos urros, dei vazão a todo o meu desespero, sendo cercado pelo carinho dos que ali estavam, apesar de nenhum deles me tocar, com exceção de Yeoshua. Disse-lhe ao ouvido:

— Yeoshua, também ficaste impuro...

— Não há o que eu não faça para confortar um amigo: é minha obrigação cuidar de teu pai. Façamos isso juntos, e juntos depois nos purificaremos.

Pedimos que todos se retirassem da sala, inclusive minha mãe, minhas irmãs e meu irmão caçula, a quem eu quase não reconhecera, com sua cara de menino sobre um corpo espigado. Envolvemos meu pai em seu manto e mais uma grande peça de pano branco, e atravessamos a rua do teVaviv, andando algumas braças até entrar no edifício que fora construído sobre a fonte de água limpa que alimentava a mikvah de meu povo. Na sala onde eram banhados e cuidados os mortos, já estava numa das duas mesas de pedra o cadáver de um velho muito gordo, que havia morrido ao norte da cidade, endurecido e fedendo. Três homens com túnicas brancas haviam começado a lavá-lo, e meu amigo Yeoshua, maduro como se o tempo que passara entre nós fosse não um ano, mas uma década, mantinha-se contrito, murmurando em silêncio. Lavaram o velho com panos encharcados de água, primeiro de frente, e depois de costas, começando sempre pelo lado direito: depois o arrumaram sobre a mesa, com o máximo respeito possível, e forçaram suas juntas rígidas a tomar uma posição de acordo com sua natureza, para que pudesse ser entregue ao solo. Vestiram-lhe uma túnica branca sem costuras, colocando em suas mãos entrelaçadas um pequeno galho de árvore, que foi puxado para cima até que as palmas das mãos ficassem expostas, e prepararam uma mistura de terra, tirada de uma caixinha de madeira, com a água que molhava a mesa de pedra, formando uma pasta com a qual selaram seus olhos e boca, envolvendo-o depois em um grande manto de orações muito puído, que o cobriu totalmente, não deixando nada para ser visto.

Quando se dirigiram para o corpo de meu pai, alguma coisa em mim se quebrou, e me pus a chorar tão convulsivamente, que Yeoshua achou melhor tirar-me dali: ficamos na frente da casa de tijolos onde a fonte alimentava a mikvah, enquanto eu me esvaziava de um pranto antigo como o mundo. A tarde se foi, e quando percebi, a noite vinha caindo: Yeoshua murmurava baixinho uma série de frases na língua de nosso povo, até que eu lhe perguntei:

— A casca de meu pai está vazia: para onde foi sua alma?

— Ainda está entre nós, Zerub: a morte não separa as almas dos corpos onde habitou de imediato. Ela ainda vaga perto de seu antigo invólucro, depois acompanha a vida da família por um tempo, ficando presa à casa onde morou; só no sétimo dia após a morte, é que finalmente encontra seu caminho para longe deste mundo.

Eu não entendia por que Deus me tirara a oportunidade de ver meu pai vivo, ainda que por instantes apenas:

— Não aceito! Agora que me era mais necessário, meu pai me é tirado para sempre? Não é justo...

Yeoshua suspirou profundamente, ergueu as mãos para o céu e me disse:

— A morte não é o fim, amigo: enquanto a lembrança de teu pai estiver dentro de ti, ele permanece vivo, acrescentando à tua alma tudo que dele recordares. Aqueles de quem nos recordamos permanecem vivos dentro de nós.

— Isso de nada me adianta. — esbravejei, sentindo o espírito cada vez menor. — Eu necessito dele vivo, para me ensinar a fazer o que deve ser feito! A quem mais posso recorrer?

Yeoshua me olhou com calma:

— A esse mesmo pai cuja morte agora deploras. Se nunca te es-queceres dele, ele continuará vivo dentro de ti, e basta que abras os teus ouvidos àquilo que ele tem a te dizer. Não duvides, amigo: se per-mitires, ele te dirá tudo que precisas ouvir.

Parecia que meus olhos nunca mais cessariam de verter o pranto. Ficamos em silêncio, e Yeoshua subitamente me perguntou:

— Mas por que voltaste à Grande Baab'el, Zerub? Da última vez que nos vimos, estavas decidido a nunca mais pôr os pés deste lado do mundo. Por que exatamente agora o conselho de teu pai te seria tão necessário?

Um frio súbito me percorreu a espinha: eu não podia revelar a ninguém, a não ser a Cyro, o objetivo de minha viagem e quem eu realmente era. Meu amigo de tantos anos me olhava curioso, e subitamente algo em meu espírito me disse: "Confia em teu amigo", cogitei que meu pai verdadeiramente continuava vivo dentro de mim, como Yeoshua dissera. Olhei-o longamente, pesando os riscos: então, sem pensar mais no assunto, contei-lhe tudo o que me acontecera, desde que o deixara ao lado de Mitridates ao sul de nossa cidade. Não escondi nem o encontro com os pedreiros, nem a ida para Jerusalém, nem minha invasão de sua reunião e a descoberta de meu papel em seus negócios, nem mesmo os meses de dúvidas e treinamento pelos quais eu passara. A face de Yeoshua ia ficando mais e mais escura, porque a luz do dia diminuía enquanto eu falava, e por diversas vezes hesitei em continuar, sem saber se estava sendo compreendido ou aceito. Subitamente, ele pôs a mão sobre a minha, sussurrando:

— Então és tu! O messias da profecia és tu, meu amigo! Meu amigo de infância, o reconstrutor de nossa nação! Agora entendo esses três homens que nos seguem desde que saímos da casa de teu pai e não cessam de olhar para nós... são teus guardiões?

Eu tinha esquecido de Jael, Heman e Iditum, que estavam a alguns passos de nós, observando-nos atentos. Ergui o braço e chamei-os, apresentando-os a Yeoshua. Os quatro se saudaram com muitas reservas, por mais que eu esperasse por amizade entre eles. Como Jael fez questão de recordar, era preciso que descobríssemos a melhor maneira de entrar em contato com Cyro, o grande senhor do Império. Yeoshua foi um choque de água fria:

— Cyro não está na Grande Baab'el, Zerub: somos apenas uma das grandes cidades que ele tomou. No momento se encontra perto de Fars, onde pretende construir uma nova capital para seu Império dos Persas. Logo depois de conquistar a cidade, Cyro seguiu viagem, em busca desse lugar onde erguerá o centro de seu poder.

— Mas, então, quem está no comando? — perguntou Jael, tão desacorçoado quanto eu. Não deve tê-la deixado sozinha, por conta dos que nela estavam.

— Quase isso: escolheu entre seus primos um ve'zzur com parentes na Grande Baab'el, chamado Darius, e o deixou no comando, enquanto solidifica suas vitórias em todo o novo Grande Império dos Persas.

— Isso é mau — ponderou Jael, percebendo meu desalento. — O assunto que aqui nos traz não deve ser debatido com um ve'zzur, e sim com o verdadeiro rei.

Yeoshua franziu o cenho:

— Concordo contigo: num mundo conturbado como este, seria um grande risco apresentar-se como rei de uma outra nação ao ve'zzur de um poderoso: ele pode entender mal a tua intenção, e simplesmente acabar contigo, para que não representes ameaça a seu senhor. Darius é estranho: sendo filho da cidade, acaba sendo mais persa que o próprio Cyro na defesa do Império. As ordens do Imperador são apenas palavras; na realidade, pouca coisa mudou. Continuamos livres para ser os mesmos escravos que sempre fomos, e os abastados da Grande Baab'el são a corte deste Darius, como sempre têm sido. Precisamos esperar que os acontecimentos se tornem promissores, para que não te ocorra o mesmo que aconteceu a Daniel, mais conhecido entre os de Baab'y'lon como Baal'tassar.

Eu me lembrava de Daniel e de seus três seguidores, na reunião dos astrólogos e magos de Belshah'zzar: fora ele quem decifrara as mensagens que a gigantesca mão do milagre escrevera sobre as paredes do salão. Aconchegamo-nos sobre o muro de pedra à frente da mikhvah, enquanto Yeoshua narrava os fatos:

— Daniel foi escolhido para ser um dos trezentos e sessenta homens de poder da Grande Baab'el, que formam o conselho de ministros de Darius, a quem tudo deve ser apresentado e com quem todas as ações devem ser discutidas. A sabedoria de Daniel é tal, que Darius já nada mais fazia sem ouvir-lhe a opinião. Os outros trezentos e cinqüenta e nove ministros resmungaram: "Por que esse escravo tem tanto poder? É preciso colocá-lo em seu devido lugar!" Tudo fizeram para que Daniel se desvalorizasse perante seu senhor Darius: mas Daniel, ao contrário deles, é incapaz de receber um presente que lhe manche as mãos. Tudo tentaram, mas nada conseguiram. Percebendo que Daniel três vezes ao dia se retirava para orar a seu deus, convenceram Darius a suspender durante um mês lunar todas as orações a todos os deuses, estabelecendo como castigo para os que não obedecessem ser atirado numa cova de leões. Darius, movido por grande vaidade, acabou baixando essa ordem em todo o Império da Babilônia.

Yeoshua era um bom contador de histórias, mas agora havia nele uma qualidade inefável que se ajuntava à sua narrativa, como se movido por uma força além de suas próprias, quando continuou:

— Daniel ignorou o edito sem sentido e continuou a fazer suas orações à vista de todos. Três dias depois, seus inimigos levaram a Darius a notícia de que Daniel desobedecia sua lei, e que era um traidor, por descumprir ordem tão clara em público. E então o próprio Daniel disse: "Se por devoção a meu deus, descumpri uma de vossas leis, não há nada a fazer a não ser aplicar-me o merecido castigo." E ele mesmo se encaminhou à cova dos leões nos subterrâneos do palácio, pedindo que lá o deixassem trancado.

Yeoshua se aprumou, enquanto os ruídos da Grande Baab'el chegavam até nós, trazidos pelo vento quente:

— Na manhã seguinte, quando os tratadores dos leões foram ao covil, tiveram uma imensa surpresa: Os leões dormiam, Daniel estava vivo, absorto em suas orações, sem que um pêlo sequer de seu corpo houvesse sido tocado!

Eu ri, e Jael sacudiu a cabeça, dizendo:

— Isso é muito fácil: os que se dizem domadores de leões sempre os alimentam muito bem antes de qualquer contato com eles. Leões bem alimentados são extremamente dóceis, e como sua digestão é muito lenta, permanecem desinteressados por comida durante muito, muito tempo...

— Daniel é, antes de tudo, um homem muito inteligente — disse eu, sem querer acreditar no prodígio que Yeoshua nos narrava. — Sabia que os leões estavam alimentados e se arriscou com segurança.

Dessa vez foi Yeoshua quem riu, francamente:

— Foi exatamente isso que os mais afoitos entre os trezentos e cinqüenta e nove disseram: mas Darius, impressionado, mandou chamar Daniel para confrontá-lo com seus acusadores. Daniel lhe disse que aquilo era uma prova do poder do deus Yahweh, Bendito seja. Foi recebido com risadas e acusações de desrespeito: Darius, bastante irritado com as atitudes dos agressivos acusadores de Daniel, tomou uma dessas decisões que só os poderosos podem se dar ao luxo de tomar: mandou alimentar com fartura os leões, para que se colocassem na cova exatamente aqueles que tanta certeza tinham de que a sobrevivência de Daniel fora um truque. Seis acusadores não puderam recuar: colhiam o que haviam plantado, e só Darius tinha poder para confrontá-los com a verdade. No mesmo instante em que os seis foram jogados à cova dos leões bem alimentados, estes os dilaceraram e estraçalharam com toda a sua força, e seus gritos fizeram Darius rir muito, calando definitivamente quaisquer vozes que pudessem se erguer contra Daniel. Dizem que Darius se ajoelhou aos pés de Daniel, reconhecendo Yahweh como deus poderoso, verdadeiro e único, mas eu não creio nisso: homens de poder rapidamente se esquecem dos portentos a que assistiram, como se tudo o que viram fosse apenas um sonho.

— Isso é mau — disse Jael, preocupado —, vejo que Darius também é um impulsivo, vivendo por rompantes. Acho que devemos esperar a presença de Cyro para que tu possas te apresentar a ele como o que verdadeiramente és, pedindo-lhe que te conceda o que vieste pedir.

— Mas o que mais vieste pedir além da permissão para reerguer o Templo de Yahweh?

Yeoshua estava curioso, olhando minha face, que, como a sua, era um mar de sombras. Eu lhe disse, candidamente:

— É preciso que ele me permita levar nosso povo de volta para Jerusalém...

O grito que Yeoshua soltou foi inesperado, gutural, e ele se rojou ao chão, esfregando a testa na areia amarela, enquanto nós o olhávamos, boquiabertos. Depois se ergueu, e à fraca luz da noite eu pude ver as lágrimas que riscavam sua face. Ele se ergueu, pondo as mãos sobre meus ombros, apertando-os e dizendo:

— Meu irmão, meu amigo da infância! És tu o maríhig que teu pai prometia a nós, seus discípulos! Tu és o novo Moisés e nos levarás de volta à Terra Prometida de nossos avós!

— Se o trabalho for bem-feito, a Grande Baab'el vai ficar quase vazia! — disse Jael, sorrindo. — Quantos descendentes dos primeiros prisioneiros moram aqui?

— Na Grande Baab'el moram quase duzentas mil pessoas, e, destas, creio que mais da metade somos descendentes dos que vieram de Jerusalém com Nebbuchadrena'zzar, atados por correntes triangulares.

— Como assim, triangulares? Não se usavam correntes comuns no Império de Baab'y'k>n?

— Essas foram mandadas fazer especialmente, para atar a Zedeqias, o rei cego de Jerusalém, que se recusava a revelar o lugar onde estava o cubo de ágata em que se enraíza o triângulo de ouro com o Verdadeiro Nome de Deus. Nebbuchadrena'zzar sabia que Enoch havia escondido esse triângulo de ouro e foi buscá-lo em Jerusalém, reconhecendo seu grande poder.

Sonolento, eu ouvia as vozes de Yeoshua e Jael cada vez mais longínquas, aninhado sob meu manto no canto de muro onde estávamos, apoiando a cabeça sobre os joelhos. Era difícil manter os olhos abertos, mesmo com a menção a esse triângulo cuja cópia eu vira no subterrâneo do templo, e dentro do qual viajara como que em um rodamoinho, por causa do poder que as letras tinham sobre mim. Olhá-las era sempre algo especial, porque, ao mesmo tempo em que traçavam palavras, determinavam também quantidades, números, operações infinitas, cujo objetivo sempre me escapava, como se por trás delas houvesse outras letras, outras realidades, outras verdades. As grandes filas se desenrolavam e giravam da direita para a esquerda, a tudo permeando e a tudo formando, céu, nuvens, plantas, pessoas, todo o Universo feito de letras e números, cada ser e espaço à minha frente perfeitamente repleto dessas quantidades e palavras, e por dentro de todas elas uma palavra que se repetia, o nome de Yahweh, ponto de partida e lugar de chegada de todo o movimento, que eu via dentro de todas as outras, e que se ergueu de sua posição deitada e se pôs de pé, com suas letras umas sobre as outras, o yod por cima de todas, como uma cabeça, o primeiro heh formando ombros e braços, o vau no centro da barriga e ventre, e o segundo heh se apoiando no chão como as pernas desse ser, que se agigantou à minha frente, ficando de incomensurável altura, passando acima das nuvens, do céu negro azulado onde as estrelas brilhavam, e subitamente até mesmo as estrelas eram letras-números, tudo dentro do ser gigantesco, em meus ouvidos soando distintamente a frase "à sua imagem e semelhança": com um sobressalto, cambaleei e tentei me segurar, acordando assustado com a mão de Jael em meu peito. O dia estava nascendo: eu dormira não sei quantas horas naquele canto de muro, mas em meu sonho só se haviam passado alguns instantes, sem que eu compreendesse como isso se dera. Yeoshua me fitava preocupado, e me disse:

— Vamos, meu amigo: devemos enterrar teu pai.

A realidade da morte caiu sobre mim como uma pedra: eu me esquecera dela, como que narcotizado para passar pela lenta transformação da perda em alguma coisa suportável, ainda que para sempre inesquecível. Entramos na mikvah, apanhando o corpo, que carregamos em direção ao norte: um pequeno outeiro marcava o lugar onde os moradores do teVaviv enterravam seus mortos, em contato direto com a terra, para que o pó pudesse ao pó retornar, tendo como única e última proteção a mortalha. O caminho era aquele onde eu passara a maior parte de minha vida, e essas ruas em minha memória traziam todas a marca e a figura de meu pai. Subitamente, ao virar uma esquina, saindo na rua mais larga do teVaviv, onde os comerciantes faziam seus negócios, havia uma multidão que nos aguardava, abrindo passagem para nosso pequeno cortejo, seguindo-nos a uma distância respeitosa. Yeoshua comandava nosso passo e controlava nosso ritmo, fazendo com que parássemos de vez em quando e pousássemos o lúgubre fardo no chão, até que finalmente nos encontramos no ponto mais alto do outeiro, onde um buraco já estava aberto no solo.

Só havia homens à nossa volta, e eu voltara a chorar convulsivamente, sentindo-me cada vez mais perdido, isolado, abandonado, enquanto meu pai era colocado dentro do buraco profundo e a terra acumulada em sua borda ia sendo lentamente devolvida a seu lugar, cobrindo-o para sempre. Os torrões de terra caíam sobre ele, e no momento em que uma grande quantidade cobriu o lugar onde estava sua cabeça, meu corpo fez um movimento instintivo para livrá-lo daquilo, com medo de que se sufocasse, mas logo percebi a tolice de meu gesto, voltando a chorar mais ainda. Jael estava do lado esquerdo de minhas costas, e eu sentia meus dois guardiões, Heman e Iditum, em silêncio total como sempre, ladeando-me discretamente. Yeoshua, acompanhado por uma meia dúzia de homens que, como ele, traziam a cabeça completamente coberta por seus mantos, tinha os olhos fechados, e seus lábios se moviam em oração. Em determinado momento, olhou-me, dizendo em meu lugar o Kadish que eu mesmo deveria estar fazendo, como filho mais velho. Isso me era impossível: mesmo com as rezas soando na memória, a garganta se fechava, junto com o buraco que abrigaria para sempre o cadáver de meu pai.

Quando não restava mais nada a fazer, voltamos as costas ao pequeno monte de terra que dois coveiros alisavam, descendo o pequeno outeiro. No seu sopé, virei-me em direção à rua onde ficava minha casa, sendo impedido por Yeoshua:

— Onde vais?

— Para casa: minha mãe e irmãos certamente precisam de mim. Yeoshua fez um ar de desagrado:

— Não deves ir até lá: não percebes que o Anjo da Morte nos seguiu até aqui? Devemos enganá-lo: se voltarmos diretamente para lá, ele pode querer levar mais alguém. É melhor dar uma volta pela cidade, de preferência passando por lugares onde haja muita vida, pois é de vida que o Anjo da Morte se alimenta, e quanto mais vida ele encontrar, mais longe de nós ficará. Aí sim, com segurança, poderemos voltar à tua casa, retomando a vida familiar, depois dos sete dias de praxe.

Os homens mais velhos em volta de nós aprovaram as palavras de Yeoshua: era interessante ver que, tão jovem, já tivesse tanta ascendência sobre a comunidade. A impressão que dava era a de que, havendo morrido meu pai, o papel de rosh'ha'golah da Grande Baab'el lhe estivesse naturalmente destinado: não parecia haver mais ninguém que conhecesse tão bem os hábitos e costumes de nosso povo, preservando no cativeiro um pouco do que era a essência dessa existência. Yeoshua deu alguns passos à frente, e todos o seguimos, inclusive eu: ele me tomou pelo braço e me fez andar a seu lado, descendo a rua principal do teVaviv e seguindo para o sul, atravessando a Esagila cheia de mercadores e caravaneiros, ruídos e perfumes indestacáveis uns dos outros, dando a impressão de que ali estava toda a população da Grande Baab'el.

Ao nosso lado se erguiam os palácios e templos que formavam essa avenida, e olhando para a esquerda vi a Grande Torre de Marduq, sete imensos degraus uns sobre os outros, e em seu topo a mesa do deus de ouro, onde Sha'hawaniah dançara e eu invejara o rei que podia usufruir de seu corpo.

Era estranho estar de volta à minha cidade depois de tão pouco tempo, um ano que se transformara em eternidade pelas mudanças em minha vida. Respirei profundamente o ar quente da Grande Baab'el, flanando por sua avenida congestionada com passo tão sem ritmo, que em pouco tempo me separara de meus companheiros. Heman e Iditum, acostumados à intensa frugalidade da Jerusalém em ruínas onde haviam nascido, a cada instante que se passava prestavam menos atenção a mim e mais ao que os cercava, boquiabertos e ávidos da fartura que o mercado da Esagila exibia. O sol brilhava sobre nossas cabeças, o cheiro de lama tão familiar penetrava em minhas narinas a cada rajada mais forte do vento, que fazia tremular os estandartes dos deuses nos mastros em frente aos templos gigantescos, de onde saía o som de cânticos dos fiéis que entravam e saíam. Com um suspiro profundo, olhei para o céu me sentindo instantânea e inexplicavelmente feliz por um breve instante em que tudo em mim e à minha volta estava perfeito, como se deus houvesse criado esse instante de beleza absoluta para que minha alma pudesse nele se regozijar.

Foi exatamente no meio desse instante de felicidade pura que uma pesada mão caiu sobre meu ombro e eu ouvi a voz rascante de meu pior pesadelo, encarando seus olhinhos de porco, brilhando na face molenga, encimada por um capacete de grande tamanho:

— Mas se não é o ladrãozinho fujão que me escapou das mãos uma vez. Marduq é grande. Acaba de me dar a oportunidade de terminar o trabalho que tive de largar pelo meio...

Na'zzur me segurava com mão de ferro, cercado por seus soldados, e minha felicidade momentânea foi imediatamente substituída pelo terror do passado, engolfando-me com a infinita maldade desse inimigo sem misericórdia.

 

                                                                                            CONTINUA

 

                      

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