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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A REGRA DE QUATRO 2 Ian Cadwell e Dustin Thomason
A REGRA DE QUATRO 2 Ian Cadwell e Dustin Thomason

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                             CAPÍTULO 14

— Embora — digo eu, movendo apenas os lábios, ao mesmo tempo que empurro o Paul para a porta da biblioteca.

Espreitamos para a escuridão da sala através de uma pequena janela formada por uma placa de vidro de segurança, aberta no painel.

Uma sombra desliza por uma das secretárias. Um feixe de luz varre a superfície. Vejo uma mão que remexe numa gaveta.

— É a secretaria do Bill — sussurra o Paul. A voz dele ressoa pela caixa da escada. O feixe de luz imobiliza-se e depois volta-se na nossa direcção.

Empurro o Paul para debaixo da janela.

 

 

 Segunda Parte

 

— Quem é? — pergunto eu.

— Não consegui ver.

Esperamos, escutando para ver se ouvimos passos. Quando se afastam, espreito para a sala. Está vazia.

O Paul empurra a porta. O espaço está todo mergulhado nas longas sombras das estantes. O luar reflecte-se nos vidros das janelas a norte. As gavetas da secretária de Stein ainda estão abertas.

— Há mais alguma saída? — sussurro quando nos aproximamos.

O Paul acena, apontando com a cabeça para lá de uma série de estantes que se erguem até ao tecto.

Subitamente os passos regressam, deslocando-se na direcção da saída, seguidos por um clique. A porta encaixa suavemente.

Dirijo-me na direcção do som.

— O que é que estás a fazer? — murmura o Paul. Faz-me sinal para regressar para o pé dele, ao lado da secretária.

Espreito pelo vidro de segurança para a caixa da escada, mas não vejo nada.

O Paul está a a esquadrinhar os papéis do Stein, fazendo incidir a sua lanterna de bolso sobre um monte de notas e cartas. Aponta para uma gaveta, cuja fechadura foi forçada. Os ficheiros estão cá fora, espalhados em cima da secretária. Cantos de papel curvam-se como relva por cortar. Parece haver uma pasta para cada professor do departamento de História.

 

RECOMENDAÇÃO: PRESIDENTE WORTHINGTON

REC (A-M): BAUM, CARTER, GODFREY, LI

REC (N-Z): NEWMAN, ROSSINI, SACKLER, WORTHINGTON (ANTERIOR À PRESIDÊNCIA)

REC (OUTROS DEPARTAMENTOS): CONNER, DELFOSSE, LUTKE, MASON, QUINN

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: HARGRAVE/WILLIAMS, OXFORD

CORRESPONDÊNCIA ANTIGA: APPLETON, HARVARD

 

Para mim, não significa nada, mas o Paul tem os olhos fixos neles.

— O que é? — pergunto eu.

O Paul passa o feixe de luz pela secretária. — Para que é que ele precisa de todas estas recomendações?

Estão mais dois arquivos abertos. Um tem como título REC/CORRESPONDÊNCIA: TAFT. O outro, INFLUÊNCIAS/POSSIBILIDADES.

A carta de Taft tem um canto dobrado e foi posta de parte. O Paul cobre os dedos com a manga da camisa e empurra o papel até ficar à vista.

William Stein é um jovem competente. Trabalhou sob a minha orientação durante cinco anos e tem sido especialmente útil em questões administrativas e trabalho de escritório. Estou certo de que preencherá satisfatoriamente um lugar semelhante para onde quer que vá.

— Meu Deus — suspira o Paul. — O Vincent lixou-o. — Lê de novo. — Fala do Bill como de um secretário.

Quando o Paul desdobra o canto da página, vemos que a data é do mês passado. Ele pega-lhe, descobrindo um pós-escrito à mão.

Bill: apesar de tudo, estou a escrever isto acerca de ti. Merecias menos. Vincent.

— Filho da puta... — murmura o Paul. — O Bill andava a ver se se livrava de ti.

Faz incidir a luz sobre a pasta INFLUÊNCIAS/POSSIBILIDADES. Ao cimo está uma série de rascunhos de cartas do Stein, emendadas com canetas diferentes. Algumas linhas foram retiradas e acrescentadas, tornando difícil compreender o texto. Enquanto o Paul as lê, vejo a luz da lanterna estremecer na sua mão.

DOon Hargrave — assim começa a primeira carta — tenho o prazer de informar que a minha investigação sobre a Hypnerotomachia Poliphili

Completa, está quase completa. Os resultados estarão disponíveis cerca do fim de Abril ou mesmo antes. Asseguro-lhe de que justificam a espera. Como não tenho tido notícias suas nem do professor Williams desde a minha carta de 17 de Janeiro, por favor confirme-me se o lugar de prufessor de que falámos continua disponível. O meu coração pertence a Oxford, mas poderei não estar em condições de recusar outras universidades a partir do momento em que a minha comunicação for publicada e tiver novas ofertas a considerar.

O Paul passa para a página seguinte. Ouço a sua respiração ofegante.

Presidente Appieton, escrevo para lhe enviar boas notícias. O meu trabalho sobre a Hypnerotomachia está quase completo. Conforme prometi, Os resultados irão ofuscar tudo o que se realizar na área dos estudos históricos sobre o Renascimento — ou quaisquer estudos históricos — este ano e no próximo. Antes de publicar os resultados, pretendia confirmar que o lugar de professor assistente ainda está disponível. O meu coração pertence a Harvard, mas poderei não estar em condições de recusar outras tentações a partir do momento em que a minha comunicação seja publicada e tiver novas ofertas a considerar.

O Paul lê-a uma segunda vez e depois uma terceira.

— Ele estava a pensar em apoderar-se dela — murmura em voz sumida, afastando-se da secretária e encostando-se à parede.

— Como é que é possível?

— Acho que ele pensava que ninguém acreditaria que fosse trabalho de um estudante.

Volto a olhar para a carta. — Quando é que ele se ofereceu para mandar dactilografar a tua tese?

— No mês passado.

— E andava assim há tanto tempo a preparar-se para a roubar? O Paul olha para mim fixamente e aponta para a secretária.

— Obviamente. Desde Janeiro que tem estado a escrever a estas pessoas.

Quando todas as cartas estão expostas sobre a secretária, uma última folha de correspondência espreita por baixo das cartas de Oxford e Harvard. Quando o Paul se apercebe da ponta de papel timbrado, puxa por ela.

Richard — começa — espero que esta carta te vá encontrar bem. talvez estejas a ter mais sorte em Itália do que tiveste em Nova Iorque. Se não, ambos temos consciência da situação em que te encontras. Ambos conhecemos o Vincent. Penso que se pode dizer que ele tem planos próprios relativamente a tudo o que se relaciona com isto. Portanto, tenho uma proposta para te fazer. Há mais do que suficiente para ambos e planeei uma divisão de trabalho que penso que considerarás justa. Por favor, entra em contacto comigo o mais breve possível, para a discutirmos. Deixa-me o teu número de telefone em Florença e em Roma — não tenho confiança no correio daqui e prefiro esclarecer isto tudo o mais breve possível. — B.

A resposta, com uma caneta e caligrafia diferentes, tinha sido escrita no fundo da carta original e devolvida. Tem dois números de telefone, um precedido da letra F, o outro de um R. No final tem uma nota garatujada:

Aqui está o que pediste. Liga depois das horas de serviço. E o Paul? — Richard.

O Paul está sem fala. Folheia de novo a papelada, mas não encontra mais nada. Quando eu tento consolá-lo, afasta-me.

— Devíamos dizer ao reitor — digo eu, por fim.

— Dizer-lhe o quê? Que andámos a vasculhar as coisas do Bill? Subitamente, um reflexo brilhante desenha uma curva na parede em frente de nós, seguida de luzes de cor que relampejam através dos vidros das janelas. Um carro da polícia parou no pátio da frente do museu, com as sirenes desligadas. Surgem dois polícias. As luzes vermelhas e azuis apagam-se no momento em que um segundo carro de patrulha chega e saem mais dois polícias.

— Alguém lhes disse que estávamos aqui — digo eu. A nota do Curry abana na mão do Paul. Este está imóvel, a observar as formas negras que se dirigem apressadamente para a porta principal.

— Anda — digo eu, empurrando-o para as estantes ao lado da saída das traseiras.

Nesse momento, a porta da frente da biblioteca abre-se e um feixe de luz varre a sala. Escondemo-nos num canto. Os dois polícias entram na sala.

— Ali — indica o primeiro polícia, fazendo um gesto na nossa direcção.

Agarro o puxador e abro a porta das traseiras. O Paul consegue escapar-se para o corredor no momento em que o primeiro polícia se aproxima. Eu saio de gatas e volto a levantar-me rapidamente. Escapamo-nos, de costas contra a parede e o Paul encaminha-nos até às escadas que dão para o rés-do-chão. Quando chegamos ao espaço aberto da entrada principal, vejo um feixe de luz a percorrer uma parede.

— Para baixo — diz o Paul. — Há um elevador de serviço.

Entramos na ala asiática do museu. Por trás de fantasmagóricas paredes de vidro, erguem-se esculturas e vasos. Papiros chineses jazem nas vitrinas, ao lado de figuras tumulares. A sala é de um tom de verde sombrio.

— Por aqui — apressa-me o Paul, enquanto os passos se aproximam.

Contornamos uma esquina e chegamos a um corredor sem saída, onde só existem as portas metálicas do elevador de serviço.

As vozes estão cada vez mais perto. Vejo os dois polícias ao fundo da escada, tentando encontrar o caminho na escuridão. Subitamente todo o andar se ilumina. —á temos luz... — diz a voz de um terceiro polícia. O Paul introduz a chave na ranhura da parede. Quando as portas do elevador se abrem, empurra-me lá para dentro. Um tropel de passos aproxima-se, direitos a nós.

— Vá lá, vá lá...

As portas continuam abertas. Por um segundo, penso que cortaram a energia ao elevador. Depois, no momento preciso em que o primeiro polícia dobra a esquina, as portas de metal fecham-se. Uma mão bate contra elas, mas o som dilui-se e a cabina começa a mover-se.

— Para onde vamos? — pergunto.

— Para o cais de carga — diz o Paul, recuperando o fôlego. Saímos para uma espécie de área de armazém e o Paul empurra a porta que dá para uma sala enorme e fria. Espero que os meus olhos se adaptem à luz. Na nossa frente erguem-se as portas que dão acesso ao cais de carga. O vento lá fora está tão perto que faz tremer os painéis de metal. Imagino os passos a correrem pela escada abaixo, na nossa direcção, mas através da porta espessa não se ouve nada.

O Paul corre para um interruptor na parede. Quando o acciona, um motor começa a funcionar e a porta retráctil por onde se efectuam os carregamentos começa a mover-se lentamente.

—Já dá — digo eu logo que a abertura é suficiente para nos deixar passar.

Mas o Paul abana a cabeça e a porta continua a levantar.

— O que é que estás a fazer?

O espaço entre o chão e a parte inferior da porta aumenta até nos permitir a visão de toda a parte sul do campus. Por um segundo detenho-me deslumbrado pela sua beleza, assim tão vazio.

Subitamente o Paul acciona o interruptor no sentido contrário e a porta começa a descer.

— Depressa! — grita ele.

Parte a correr da parede até à entrada aberta e eu sigo-o. O Paul está já à minha frente. Rebola por baixo da porta e depois puxa-me, no momento exacto em que o metal vai tocar no chão.            

Levanto-me, tentando recuperar o fôlego. Quando começo a correr na direcção de Dod, o Paul puxa-me para trás.                  

— Lá de cima eles vêem-nos. — Aponta para as janelas do lado oeste do edifício. Depois de ter observado o caminho para leste, diz:— Por aqui.                                                  

— Estás bem? — pergunto eu, seguindo-o.                  

Ele acena afirmativamente e corremos pela noite dentro, para longe da nossa residência e da linha de visão deles. Sinto o vento a infiltrar-se pela gola do casaco, arrefecendo o suor na minha nuca. Quando olho para trás, Dod e Brown Hall estão mergulhados em profunda escuridão, assim como todas as residências, lá ao longe. A noite invadiu todos os cantos do campus. Só as janelas do museu de arte se encontram iluminadas. Continuamos para oriente, através de Prospect Gardens, um país das maravilhas botânico no coração do campus. As pequeninas plantas primaveris estão salpicadas de branco e mal se vêem, mas a faia americana e o cedro-do-líbano erguem-se como anjos da guarda com as suas asas estendidas para as proteger da neve. Um carro-polícia patrulha uma das ruas laterais e nós estugamos o passo.

Os meus pensamentos estão confusos, a minha mente trabalha aceleradamente para compreender o que vimos lá atrás. Talvez fosse o Taft que eu vi na secretária do Stein, a remexer nos papéis, para fazer desaparecer qualquer ligação que se pudesse vir a estabelecer entre eles. Talvez tivesse alertado a polícia para a nossa presença. Olho para o Paul, a ver se o mesmo pensamento lhe passou pela cabeça, mas a sua expressão está completamente vazia.

Apercebemo-nos de sinais de vida no novo departamento de Música, ao longe.

— Podemos entrar por um bocado — sugiro eu.

— Onde?

— Para as salas de ensaios da cave. Até ter acalmado tudo. Quando nos aproximamos, ouvimos notas dispersas ecoarem pelo ar. Músicos corujas vêm a Woolworth ensaiar em privado. Na direcção de Prospect passa outro carro da polícia do campus salpicando de lama e sal o passeio. Esforço-me por andar mais depressa.

A construção de Woolworth foi acabada recentemente e o edifício que surgiu dos andaimes é uma coisa curiosa, parece uma fortaleza quando visto do exterior, mas por dentro é de vidro e tem um aspecto frágil. Os seus átrios curvam-se como um rio através da biblioteca de música e das salas de aula do andar térreo, erguendo-se em três pisos, até às clarabóias no tecto. O vento assobia invejoso em seu redor. O Paul abre a porta de entrada com o cartão de identificação e segura-a para eu passar.

— Para que lado? — pergunta ele.

Conduzo-o para a escada mais próxima. O Gil e eu já aqui estivemos duas vezes desde que o edifício abriu, ambas depois de termos ido tomar uns copos, em noites ronceiras de sábado. A segunda mulher do pai do Gil insistira para que este aprendesse a tocar qualquer coisa do Duke Ellington, da mesma forma que o meu pai insistira para que eu aprendesse a tocar qualquer coisa do Arcangelo Corelli e, entre os dois, temos oito anos de lições e quase nada para mostrar. Matraqueando um antigo piano, o Gil executava miseravelmente «A'Train» e eu assassinava «La Foilia» e ambos fingíamos manter um ritmo que nenhum de nós tinha assimilado.

O Paul e eu caminhamos em silêncio pelo corredor da cave e descobrimos que apenas um piano está ainda a ser utilizado. Alguém, numa sala de ensaios ao longe, está a tocar a «Rapsódia em Azul». Entramos para um pequeno estúdio à prova de som e o Paul desliza para trás do piano vertical e senta-se no banco. Olha para o teclado, para ele tão misterioso como o de um computador, e não lhe toca. A luz do tecto estremece uma vez e depois apaga-se. Não faz diferença.

— Não consigo acreditar — diz ele, por fim, inspirando profundamente.

— Por que é que terão feito aquilo? — pergunto eu. O Paul passa o dedo por uma tecla, afagando o ébano. Como ele parece não ter ouvido, repito a pergunta.

— O que é que queres que te diga, Tom?

— Talvez fosse por causa disto que o Stein tentou ajudar.

— Quando? Esta noite, com o diário?

— Já há meses.

— Referes-te a quando tu deixaste de trabalhar na Hypnerotomachia?

A cronologia é um directo ao meu estômago, para me recordar que o envolvimento do Stein está, em última análise, relacionado comigo.

— Achas que a culpa é minha?

— Não — diz o Paul tranquilamente. — Claro está que não.

Mas a acusação fíca a flutuar no ar. O mapa de Roma, tal como o diário, vieram recordar-me tudo o que eu abandonei, todo o progresso que fizemos antes de eu me ter afastado, e quanto me agradou trabalhar no livro. Olho para as minhas mãos, abandonadas no colo. O meu pai costumava dizer que eu tinha mãos preguiçosas. Cinco anos de '' lições não tinham produzido uma única sonata de Corelli apresentável; foi então que ele me começou a entusiasmar pelo basquetebol.

Os fortes levam a melhor sobre os fracos, Thomas, mas os inteligentes levam a melhor sobre os fortes.                                                   — E então a nota dirigida ao Curry? — digo eu, fixando as costas do piano. A madeira da superfície que deveria estar encostada à parede não foi envernizada. Impressiona-me esta estranha forma de economia, como um professor que não penteasse a parte de trás do cabelo, porque no espelho não a vê. O meu pai costumava fazer isso. Eu sempre pensei que era um problema de perspectiva — o problema de uma pessoa que só consegue ver as coisas sob um único ângulo. Os alunos dele devem ter reparado nisso tantas vezes quanto eu. Sempre que ele se virava de costas para eles.                            

— O Richard nunca tentaria roubar-me — diz o Paul, roendo uma unha. — Há qualquer coisa que nos está a escapar.          

O silêncio instala-se. A sala de ensaios está aquecida e estamos ambos calados, não se ouve o mais pequeno som, excepto um vaguíssimo rumor ocasional, vindo do fundo do corredor, onde o Gershwin foi substituído por uma sonata de Beethoven, que se ouve à distância. Lembra-me dos tempos em que era miúdo e ficava sentado a ouvir as tempestades de Verão. A energia eléctrica desligada, a casa tranquila e nada que se ouça, para além do ribombar longínquo do trovão. A minha mãe lê para mim à luz da vela — Bartholomew Cubbins ou um Sherlock Holmes ilustrado — e a única coisa que me passa pela cabeça é por que é que será que as melhores histórias metem sempre um homem com um chapéu engraçado.

— Acho que quem lá estava dentro era o Vincent — opina o Paul.

— Na polícia ele mentiu acerca das suas relações com o Bill. Disse-lhes que o Bill era o melhor estudante que ele tinha orientado em muitos anos.

Ambos conhecemos o Vincent — dizia a carta de Stein. — Penso que se pode dizer que ele tem planos próprios relativamente a tudo o que se relaciona com o assunto.

— Achas que o Taft o quer para ele? — pergunto. — Há anos que não tenta publicar nada sobre a Hypnerotomachia.

— Não se trata de publicar, Tom.

— Então de que é que se trata?

O Paul fica calado por um momento e por fim diz: — Ouviste o que o Vincent disse esta noite. Ele nunca admitira antes que o Francesco era de Roma. — O Paul olha para os pedais do piano, que sobressaem á madeira como sapatinhos dourados. — Ele está a tentar roubar-me.

— Roubar-te o quê?

Mas o Paul hesita de novo. — Não interessa. Esquece.

— E se era o Curry que estava no museu? — sugiro eu, quando ele se afasta. A carta do Stein para o Curry tinha maculado a imagem que eu tinha dele. Lembrou-me de que ele estava mais absorvido pela Hetnerotomachia do que qualquer outra pessoa.

— Ele não está envolvido, Tom.

— Viste como ele se comportou quando lhe mostraste o diário. O Curry continuava convencido de que lhe pertencia.

— Não. Eu conheço-o Tom, está bem? Tu não o conheces.

— E o que é que isso significa?

— Tu nunca confiaste no Richard. Mesmo quando ele tentou ajudar-te.

— Eu não precisava da ajuda dele.

— E detestas o Vincent por causa do teu pai.

Volto-me para ele, surpreendido. — Ele levou o meu pai a...

— A quê? A sair da estrada?

— Levou-o a distrair-se. Mas que raio é que se passa contigo?

— Ele escreveu uma crítica ao livro Tom.

— Arruinou a vida dele.

— Arruinou a carreira. Há uma diferença.

— Por que é que o defendes?

— Não o defendo. Estou a defender o Richard. Mas o Vincent nunca te fez nada.

Estou quase a responder-lhe quando me apercebo do efeito que a nossa conversa está a ter no Paul. Passa a palma das mãos pelas faces, para as secar. Por um segundo, só consigo ver os faróis e a estrada. Uma buzina que soa estrondosamente.

O Richard foi sempre bom para mim — diz o Paul.

Não me lembro de o meu pai ter emitido um único som. Nunca, ao longo de toda a viagem, nem mesmo quando nos despistámos para fora da estrada.

Tu não os conheces — insiste ele. — Nenhum deles.

Não sei bem quando é que começou a chover — se foi quando íamos ao encontro da minha mãe, que estava na feira do livro, ou se foi na ambulância, a caminho do hospital.

— Uma vez encontrei uma crítica a um dos primeiros trabalhos importantes do Vincent — continua o Paul. — Um recorte, em casa dele, do início dos anos setenta, quando ele estava na moda em Columbia, antes de ter vindo para o Instituto e a sua carreira se ter desmoronado. Era uma recensão brilhante, do género que qualquer professor sonha. No fim, dizia: «Vincent Taft já está a trabalhar no seu novo projecto: uma história definitiva do Renascimento italiano. A avaliar pelo trabalho já existente, irá sem dúvida ser uma obra fundamental; o género de rara realização no qual o escrever da história se transforma em o fazer da história.» Lembro-me disto, palavra por palavra. Encontrei-a na Primavera do meu segundo ano, antes de o conhecer bem. Foi a primeira vez que comecei a perceber verdadeiramente quem ele era.

Uma crítica a um livro. Como a que ele enviou ao meu pai, só para ter a certeza de que ele a via. A Mistificação da Beladona por Vincent Taft.

— Ele era uma estrela, Tom. Tu sabes isso. Ele tinha mais dentro daquela cabeça do que a universidade toda junta. Mas perdeu tudo. Não o gastou, perdeu-o, simplesmente.

As palavras ganham força própria, acumulam-se no ar, como se fosse possível estabelecer um equilíbrio entre o silêncio do exterior e a pressão no interior do Paul. Sinto-me como se estivesse a nadar, perdendo o pé à medida que a maré me puxa. O Paul recomeça a falar do Taft e do Curry e eu digo a mim próprio que são apenas personagens de um livro diferente, homens com chapéus, fragmentos de imaginação. Mas quanto mais ele fala, mais eu os começo a ver segundo o ponto de vista dele.

Como consequência do colapso que rodeou o diário do capitão portuário, o Taft abandonou Manhattan e foi viver para uma casa branca de ripas, no Instituto, a pouco mais de um quilómetro a sudoeste do campus de Princeton. Talvez a solidão o tenha transtornado ou a ausência de colegas contra quem debater, mas, dentro de poucos meses, começaram a correr boatos na comunidade académica de que ele bebia. A história definitiva que ele tinha planeado foi-se perdendo no silêncio. A sua paixão, o seu domínio sobre o seu próprio talento, pareciam ter-se desmoronado.

Três anos mais tarde, por ocasião da sua próxima publicação — um volume de poucas páginas sobre o papel dos hieróglifos na arte da Renascença — tornou-se evidente que a carreira do Taft estava num impasse. Sete anos mais tarde, quando saiu numa publicação pouco importante o seu próximo artigo, um crítico intitulou de tragédia o seu declínio. Segundo o Paul, a perda do que o Taft tinha em conjunto com o Curry e o meu pai continuava a persegui-lo. Nos vinte e cinco anos que decorreram entre a sua chegada ao Instituto e o seu encontro com o Paul, Vincent Taft publicou apenas quatro vezes, preferindo passar o seu tempo a escrever críticas aos trabalhos de outros académicos, especialmente do meu pai. Nem uma única vez recuperou o génio brilhante da sua juventude.

Foi a chegada do Paul à sua porta, durante a Primavera do nosso primeiro ano, que voltou a trazer à sua vida a Hypnerotomachia. Depois de o Taft e o Stein terem começado a orientar o seu trabalho de tese, o Paul contou-me acerca dos lampejos impressionantes de brilho que tinha o seu mentor. Durante muitas noites, o velho urso trabalhou arduamente ao seu lado, recitando longas passagens de textos primitivos completamente obscuros, quando o Paul não os conseguia encontrar na biblioteca.

— Foi no ano em que o Taft financiou a minha viagem a Itália — diz o Paul, esfregando a palma da mão contra o estofo do banco do piano. — Estávamos tão excitados. Inclusivamente o Vincent. Ele e o Richard continuavam sem se falar, mas sabiam que eu estava à beira de conseguir qualquer coisa. Eu estava a começar a compreender as coisas.

«Fiquei num andar que o Richard alugou, o andar de cima inteiro de um velho palácio renascentista. Era espantoso, absolutamente fabuloso. Havia quadros nas paredes, pinturas nos tectos, pinturas por toda a parte. Em nichos, por cima das escadas. Tintorettos, Carraccis, Peruginos. Era o paraíso, Tom. Tão bonito que até tirava a respiração. E de manhã ele acordava e dizia, com o ar mais profissional do mundo, "Paul, hoje tenho de trabalhar". Depois começávamos a conversar e meia hora mais tarde, tirava a gravata e dizia: "Que se lixe. Vamos tirar o dia de folga." Acabávamos a passear pelas piazza e a conversar. Nós os dois, a andar e a conversar durante horas.

«Foi então que ele me começou a falar dos seus dias em Princeton. Acerca de Ivy e de todas as suas aventuras, as noites loucas que tinha passado, as pessoas que tinha conhecido. Principalmente o teu pai. Era tudo tão real, tão vívido. Não tinha nada a ver com o que Princeton sempre significara para mim. Eu estava completamente hipnotizado. Era como viver um sonho, um sonho perfeito. Richard até lhe chamou assim. Durante todo o tempo que estivemos em Itália, parecia que ele andava em cima de nuvens. Tinha começado a andar com uma escultora de Veneza e já falava em propor-lhe casamento. Pensei mesmo que depois desse Verão, ele iria reconciliar-se com o Vincent.

— Mas nunca se reconciliaram.

— Não, quando voltámos aos Estados Unidos, voltou tudo atrás. Ele e o Vincent nunca voltaram a falar-se. A mulher com quem andava acabou com ele. O Richard começou a voltar ao campus para tentar recuperar o fogo que o incendiara quando ele e o teu pai tinham estudado com o McBee. Desde então, vive cada vez mais no passado. O Vincent tentou avisar-me para que me mantivesse afastado dele, mas este ano foi do Vincent que eu me afastei, tentando evitar o Instituto e trabalhar em Ivy sempre que possível. Não lhe queria dizer nada acerca do que tínhamos encontrado, a não ser quando não tivesse outra hipótese.

«Foi então que o Vincent começou a forçar-me a mostrar-lhe as minhas conclusões, obrigando-me a apresentar relatórios semanais de progressos. Talvez ele pensasse que era a única hipótese que tinha de reaver a Hypnerotomachia. — O Paul passa a mão pelo cabelo. — Eu devia ter compreendido. Devia ter escrito uma tese para 17 valores e depois punha-me a andar daqui para fora. São as casas mais grandiosas e as árvores mais altas que os deuses deitam abaixo com raios e trovões. Porque os deuses gostam de contrariar o que é maior do que o resto. Não suportam o orgulho, a não ser em si próprios. Foi Heródoto quem escreveu isto. Devo ter lido estas linhas cinquenta vezes sem nunca lhes ter dado importância. Foi o Vincent quem mas mostrou. Ele sabia bem a que é que se referiam.

— Tu não acreditas nisso?

— Já não sei em que é que acredito ou não. Eu devia ter observado mais atentamente o Vincent e o Bill. Se eu não estivesse tão obcecado comigo próprio, poderia ter previsto o que ia acontecer.

Olho para a luz que se infiltra por baixo da porta. O piano ao fundo do corredor emudeceu.

O Paul levanta-se e começa a dirigir-se para a porta. — Vamos embora daqui — diz ele.

 

                                         CAPITULO 15

Quando saímos de Woolworth, mal falamos. O Paul caminha ligeiramente à minha frente, criando um espaço suficiente para que cada um mergulhe nos seus próprios pensamentos. Avisto ao longe a torre da capela. Os carros da polícia estão recolhidos à sua volta, como sapos debaixo de um carvalho, à espera de que a tormenta se afaste. Fitas de barreiras de polícia abanam ao vento. O anjo de neve do Bill Stein já deve ter desaparecido, não tendo deixado nem uma marca na brancura.

Ao chegarmos a Dod, encontramos o Charlie acordado mas preparando-se para se voltar a deitar. Tem estado a limpar a sala comum, pondo em ordem os papéis espalhados e organizando em pilhas o correio por abrir, tentando afastar da memória o que viu na ambulância. Depois de verificar as horas, olha para nós com ar de censura, mas está demasiado cansado para dizer o que quer que seja. Eu fico parado, a ouvir o Paul explicar o que vimos no museu, sabendo que o Charlie irá insistir para que chamemos a polícia. No entanto, depois de eu ter explicado que andávamos a bisbilhotar nas coisas do Stein quando encontrámos as cartas, até o próprio Charlie parece pensar melhor no assunto.

O Paul e eu retiramo-nos para o quarto, mudamos de roupa em silêncio e depois vamos para os nossos respectivos beliches. Só quando estou já deitado e recordo a emoção do Paul ao descrever o Curry é que me ocorre algo que nunca compreendera antes. Ainda que breve, a relação entre eles fora de uma perfeição quase total. Curry nunca tinha conseguido compreender a Hypnerotomachia, até que o Paul entrou na sua vida com a solução que o Curry não encontrara, e puderam partilhá-la. O Paul, por seu lado, tinha ambicionado sempre muito, até que o Curry entrou na sua vida e lhe mostrou tudo o que ele nunca tinha tido, e assim puderam partilhá-lo. Como Delia e James na velha história de O. Henry — James vende o relógio de ouro para comprar a Delia travessas para o cabelo e Delia vende o cabelo para comprar a James uma corrente para o relógio — as suas ofertas e sacrifícios estão em perfeita sintonia. Mas desta vez poderia haver um desfecho feliz. A única coisa que cada um tinha para oferecer era tudo aquilo de que o outro precisava.

Não posso censurar o Paul por ele ter esta sorte. Se alguém a merece, é ele. O Paul nunca teve uma família, um rosto numa moldura, uma voz no outro extremo da linha. Mesmo depois de o meu pai ter morrido, eu tive todas essas coisas, por muito imperfeitas que pudessem ser. No entanto, aqui existe algo de maior em jogo. O diário do capitão do porto pode provar que o meu pai tinha razão no que respeita à Hypnerotomachia — que ele a viu tal como era, para além do pó e dos tempos, através da floresta de línguas mortas e gravuras. Eu não acreditara nele, pensando que, ao considerar que poderia existir algo de especial num velho livro completamente ultrapassado, ele estava simplesmente a ser ridículo, presunçoso e de vistas curtas. E durante todo o tempo em que acusei o meu pai de erro de perspectiva, o único erro de perspectiva fora meu.

— Não faças isso a ti, Tom — diz o Paul inesperadamente, lá de cima, tão baixo que mal o consigo ouvir.

— Fazer o quê?

— Teres pena de ti.

— Estava a pensar no meu pai.

— Eu sei. Tenta pensar noutra coisa qualquer.

— Tal como?

— Não sei. Nós, por exemplo.

— Não entendo.

— Nós os quatro. Tenta estar agradecido pelo que tens. — Hesita. — E quanto ao próximo ano? O que é que estás inclinado a fazer?

— Não sei.

— Texas?

— Talvez. Mas a Katie fica cá.

Ouço os lençóis restolharem quando ele muda de posição. — E se eu te disser que se calhar vou para Chicago?

— O quê?

— Fazer um doutoramento. Recebi a carta no dia seguinte a teres recebido a tua.

Estou estupefacto.

— Para onde pensavas que eu ia para o ano? — pergunta ele.

— Trabalhar com o Pinto, em Yale. Mas porquê Chicago?

— O Pinto reforma-se este ano. E o programa de Chicago é melhor de qualquer forma. O Melotti ainda lá está.

Melotti. Mais um dos raros académicos da Hypnerotomachia de que me lembro de ouvir o meu pai falar.

— Para além disso — acrescenta o Paul —, se serviu para o teu pai então há-de servir para mim, não é?

Tinha-me ocorrido a mesma ideia antes de me candidatar, mas o que eu pensara fora que se o meu pai conseguira entrar, então eu também havia de conseguir.

— Acho que sim.

— E então, o que achas?

— Sobre ires para Chicago?

Ele hesita de novo. Eu não percebi aonde é que ele queria chegar.

— Sobre nós irmos para Chicago.

Por cima das nossas cabeças estalam as madeiras dos soalhos, movimentos que se passam num outro mundo.

— Por que é que não me tinhas dito?

— Não sabia o que é que tu irias pensar — diz ele.

— Irias fazer o mesmo programa que ele fez.

— Tanto quanto possível.

Não tenho a certeza se serei capaz de aguentar ser perseguido pelo meu pai durante mais cinco anos. Vê-lo-ia na sombra do Paul ainda mais do que vejo agora.

— E a tua primeira escolha?

Passa-se muito tempo antes que ele responda.

— Só restam o Taft e o Melotti.

Académicos da Hypnerotomachia, deduzo eu que seja a ideia.

— Podia sempre ficar a trabalhar aqui no campus com alguém que não fosse especialista — diz ele. — O Batali ou o Todesco.

Mas escrever uma dissertação sobre a Hypnerotomachia com alguém que não seja especialista, seria como escrever música para surdos.

— Deves ir para Chicago — digo eu, tentando parecer perfeitamente convicto. E talvez esteja.

— E isso significa que tu vais para o Texas?

— Ainda não decidi.

— Sabes que não podes fazer depender sempre tudo dele.

— Eu sei.

— Bem — diz o Paul, decidindo não insistir. — Creio que o prazo limite é o mesmo para os dois.

Os dois envelopes estão onde eu os deixei, ao lado um do outro, sobre a secretária dele. A secretária, lembro-me agora, onde o Paul começou a decifrar a Hypnerotomachia. Por um segundo imagino o meu pai pairando sobre ela, um anjo da guarda, a orientar o Paul para a verdade, noite após noite, desde o início.                      

— Vá, descansa — diz o Paul e ouço-o rolar no beliche, com um suspiro profundo. A força do que aconteceu está de volta.        

— O que é que vais fazer de manhã? — pergunto, sem saber se ele quer falar acerca disso.                                          

— Tenho de falar ao Richard nas cartas — diz ele.

— Queres que vá contigo?

— Tenho de ir sozinho.                                    

E nessa noite não voltámos a falar.                            

A avaliar pela sua respiração, o Paul adormeceu rapidamente. Quem me dera poder fazer o mesmo, mas a minha cabeça está demasiado cheia. Pergunto-me o que é que o meu pai pensaria de termos encontrado o diário do capitão do porto depois de todos estes anos. Isso poderia ter preenchido a solidão que eu sempre pressenti nele, ao trabalhar tanto numa coisa que representava tão pouco e para tão poucos. Penso que, para ele, saber que o flho tinha finalmente conseguido, poderia ter sido muito importante.

— Por que é que chegaste tarde? — perguntei-lhe uma noite, depois de ele ter aparecido só na segunda parte do último jogo de basquetebol que eu joguei.

— Desculpa — disse ele. — Levou-me mais tempo do que eu pensava.

Ele ia à minha frente, a caminho do carro. Fixei os olhos no bocado de cabelo que ele se esquecia sempre de pentear, aquele que ele não via no espelho. Estávamos a meio de Novembro, mas ele tinha vindo ao jogo com um casaco de Primavera, de tal forma absorvido pelo trabalho que tinha tirado o casaco errado do bengaleiro.

— O quê? — espicacei eu. — O teu trabalho? Trabalho era o eufemismo que eu usava para evitar aquele título que me envergonhava perante os meus colegas.

— Não foi o trabalho — disse ele em surdina. — Foi o trânsito. No regresso, ele manteve-se a dois ou três quilómetros por hora acima do limite de velocidade, como era seu costume. Essa pequena transgressão, a sua forma muito própria de não se deixar dobrar pelas regras, associada à sua incapacidade para as quebrar, ainda me irritava mais depois de ter tirado a carta de condução.

— Jogaste bem — comentou, voltando a cabeça para o lugar do passageiro, para olhar para mim. — Foste tu que meteste os dois livres que vi.

— Na primeira parte fiz zero de cinco. Disse ao treinador Ames que não quero continuar a jogar.

O meu pai respondeu de imediato, o que me deu a perceber que já o tinha previsto.

— Não queres? Porquê?

— Os espertos levam a melhor sobre os fortes — disse eu, sabendo que essa seria a próxima coisa que ele iria dizer. — Mas os altos levam a melhor sobre os baixos.

Depois disso pareceu culpar-se para sempre pela minha decisão, como se o basquetebol fosse o último laço entre nós. Duas semanas depois, quando voltei da escola, o arco e a tabela da nossa garagem tinham sido retirados e oferecidos a uma instituição de caridade. A minha mãe disse que não sabia bem por que é que o meu pai tinha feito aquilo. Porque ele achou que era o melhor, foi tudo quanto ela conseguiu dizer.

Pensando nisso, tento imaginar qual seria a melhor prenda que eu poderia ter dado ao meu pai. E, quando me afundo no sono, a resposta parece estranhamente evidente: a minha fé nos seus ídolos. Foi isso que ele sempre quis — sentir que estávamos ligados por qualquer coisa permanente, saber que, enquanto ele e eu acreditássemos nas mesmas coisas, nunca nos separaríamos. E que bem que eu consegui que isso nunca acontecesse. A Hypnerotomachia não era diferente das lições de piano, do basquetebol e da forma como ele se penteava: era erro dele. Então, tal como ele deve ter sentido que aconteceria um dia, a partir do momento em que eu perdi a fé naquele livro, fomo-nos afastando cada vez mais, mesmo que nos sentássemos em redor da mesma mesa de jantar. Ele tinha feito os possíveis por nos juntar com um nó indestrutível e eu consegui desatá-lo.

A esperança, disse-me uma vez o Paul, que se manifestou só depois de todas as outras pragas e tristezas terem escapado da caixa de Pandora, é a melhor e a última de todas as coisas. Sem ela, apenas existe o tempo. E o tempo empurra-nos pelas costas como uma força centrífuga, forçando-nos a afastarmo-nos para fora e para longe, até que nos lança no esquecimento. Essa é — creio eu — a única explicação para o que aconteceu ao meu pai e a mim, da mesma maneira que aconteceu ao Taft e ao Curry, da mesma maneira que nos acontecerá a nós os três, aqui em Dod, por muito inseparáveis que possamos parecer neste momento. É a lei do movimento, um facto da física para o qual o Charlie deveria ter a designação correcta e que não difere dos anões brancos e dos gigantes vermelhos. Como todas as coisas do universo, estamos destinados, desde que nascemos, a divergir. O tempo é apenas a unidade de medida dessa separação. Se nós somos partículas num mar de distância, que explodiram de um todo original, então existe uma ciência para a nossa solidão. Estamos sós em proporção aos nossos anos.

 

                                         CAPÍTULO 16

No Verão seguinte ao meu sexto ano, o meu pai mandou-me para um acampamento, um programa de duas semanas para ex-escuteiros indisciplinados, cujo objectivo, compreendo agora, era reintegrar-me entre os meus pares detentores de medalhas de mérito. As minhas insígnias de escuteiro tinham-me sido retiradas no ano anterior por ter disparado foguetes de luz dentro da tenda de Willy Carlson e, mais especificamente, por ter continuado a afirmar que era divertido apesar de me terem explicado que o Willy era de constituição fraca e que tinha um problema de bexiga. O tempo tinha passado e os meus pais esperavam que as leviandades tivessem sido esquecidas. Na confusão que rodeou Jake Ferguson, um rapaz de doze anos cujo negócio de bandas desenhadas pornográficas transformou a experiência moralmente obstrutiva de um acampamento de escuteiros num empreendimento lucrativo e alargador de horizontes, fui despromovido a um estatuto de mal menor. Catorze dias na margem sul do Lago Erie, segundo os meus pais pareciam pensar, iriam reconduzir-me ao redil.

Levou menos de noventa e seis horas a provar-lhes que estavam errados. Algures no meio da primeira semana, um chefe dos escuteiros foi levar-me a casa e afastou-se sem dizer palavra. Tinha sido expulso desonrosamente, desta vez por estar a ensinar uma canção imoral aos meus companheiros de acampamento. Uma carta de três páginas, do director do campo, carregada de adjectivos correccionais empoados, colocava-me entre os piores Escuteiros reincidentes do Ohio. Sem ter bem a certeza do que era um reincidente, contei aos meus pais o que tinha feito.

Um grupo de Escuteiras tinha-se juntado a nós para um dia de canoagem e cantavam uma canção que eu conhecia dos tempos obscuros de acampamentos e divisas da minha irmã: Novos amigos são bons, mas os velhos são um tesouro; se uns são prata, os outros são ouro. Sendo o legítimo herdeiro de uma série de letras alternativas para a canção resolvi partilhá-las com os meus companheiros.

Nada de novos amigos, chuta os velhos que não são nenhum tesouro.

A única coisa que quero na vida é ter prata e muito ouro.            

Estes versos, por si só, dificilmente constituiriam matéria para expulsão, mas o Willy Carlson, num golpe brilhante de vingança, deu um pontapé no instrutor mais antigo, no momento em que este se baixava para acender uma fogueira e depois deitou as culpas para cima de mim, argumentando que a letra que eu lhes tinha ensinado é que empurrou o pé dele contra o rabo do velho. Dentro de poucas horas a máquina de justiça dos Escuteiros estava em pleno movimento e ambos fomos intimados a fazer as malas.                        

Desta experiência só saíram duas coisas, para além de me ter visto livre dos escuteiros para sempre. Em primeiro lugar, tornei-me um grande amigo do Willy Carlson, cuja bexiga sensível, conforme vim a descobrir, não passava de mais uma mentira que ele tinha inventado para me expulsarem da primeira vez. Não podia deixar de gostar dum gajo destes. E, em segundo lugar, levei um sermão da minha mãe, que só viria a compreender quase no final da minha estadia em Princepon. Não era contra o primeiro verso da versão revista da canção que ela se opunha, apesar de que, tecnicamente, a ideia de chutar velhos tivesse sido o motivo da minha expulsão. Era a estranha obsessão do segundo verso que a incomodava.

— Porquê prata e ouro? — disse ela, obrigando-me a sentar no quartinho das traseiras da livraria, onde guardava as sobras e o arquivo morto.

— O que é que quer dizer? — perguntei eu. Na parede estava suspenso um calendário antigo do Museu de Arte de Columbus, aberto no mês de Maio, mostrando um quadro de Edward Hopper, uma mulher sentada sozinha numa cama. Eu não conseguia despregar os olhos dele.

— Por que não foguetes? — perguntou ela. — Ou fogueiras?

— Porque não dá. — Recordo-me de estar irritado; as respostas pareciam tão óbvias. — Tem de rimar.

— Ouve-me bem, Tom. — A minha mãe segurou-me o queixo com uma mão e virou a minha cabeça até eu a olhar nos olhos. Naquela luz o cabelo dela parecia ouro, como o da mulher no quadro do Hopper. — Não é normal. Um rapaz da tua idade não devia querer saber da prata e do ouro.

— E eu não quero saber. Qual é o problema?

— Porque todo o desejo tem o seu objecto próprio.

Parecia qualquer coisa que eu tinha ouvido dizer na catequese. — O que é que isso quer dizer?

— Quer dizer que as pessoas passam a vida a querer coisas que não eviam. O mundo confunde as pessoas e leva-as a dirigir o seu amor e o seu desejo para as coisas erradas. — Ajeitou a gola do seu vestido de Verão e depois sentou-se ao meu lado. — A única coisa necessária para se ser feliz é amar o que é digno de amor, na medida certa. Não o dinheiro. Não os livros. As pessoas. Os adultos que não compreendem isto nunca são felizes. E eu não quero que tu sejas assim.

Por que é que o objecto correcto das minhas paixões haveria de significar tanto para ela é que eu nunca compreendi. Acenei com a cabeça em tom solene e prometi-lhe que nunca mais cantava acerca de metais preciosos, o que pareceu tranquilizar a minha mãe.

Mas o problema nunca tinha sido os metais preciosos. O que eu compreendo agora é que a guerra que a minha mãe travava era muito mais abrangente, ela estava a tentar salvar-me de uma coisa muito pior:

de me tornar igual ao meu pai. A fixação do meu pai na Hypnerotomachia constituía para ela a personificação de uma paixão mal orientada e ela lutou contra ela até ao dia em que ele morreu. Ela acreditava, creio eu, que o seu amor pelo livro não passava de uma perversão, um desvio indigno, do seu amor pela mulher e pela família. Não havia força ou persuasão que alterassem isso e creio que foi quando ela percebeu que tinha perdido a batalha de chamar à razão o meu pai que ela transpôs a luta para mim.

Temo não ter conseguido cumprir a minha promessa. A teimosia dos rapazes na sua forma infantil deve ser um prodígio para as mulheres, que aprendem muito mais depressa a portar-se bem do que os anjos. Ao longo de toda a minha infância, houve sempre um monopólio de erros em minha casa e eu era o Rockefeller desse império. Nunca avaliei a grandeza do erro contra o qual a minha mãe me estava a prevenir, até ter tido a pouca sorte de cair nele. Nessa altura, contudo, foi a Katie e não a minha família que sofreu com ele.

Chegou o mês de Janeiro e o primeiro enigma de Colonna deu lugar a outro e depois a um terceiro. O Paul sabia onde os procurar porque tinha detectado um padrão na Hypnerotomachia: de acordo com um ciclo regular, os capítulos iam aumentando de cinco ou dez páginas para vinte, trinta ou até quarenta. Os capítulos mais curtos apareciam agrupados em séries de três ou quatro, enquanto os mais longos eram independentes. Quando colocados em gráfico, os longos períodos de menor intensidade eram interrompidos por picos ao longo do capítulo, criando um perfil visual que ambos considerámos o pulse da Hypnerotomachia. O padrão mantinha-se até ao fim da primeira parte do livro, altura em que se iniciava uma estranha sequência desordenada e nenhum capítulo excedia as onze páginas.        

O Paul compreendeu-o rapidamente, utilizando o nosso êxito como o Moisés e os seus cornos: cada pico de um capítulo longo e independente continha um enigma; a solução do enigma, a sua mensagem codificada, era então aplicada à sequência de capítulos curtos que se lhe seguiam, revelando mais uma parte da mensagem de Colonna. A segunda metade do livro, segundo a opinião do Paul, devia ser o recheio, tal como pareciam ser os primeiros capítulos da primeira parte: uma distracção para manter a sensação da narrativa numa história que de outra forma pareceria fragmentada.                    

Dividimos o trabalho entre os dois. O Paul procurava os enigmas nos capítulos mais longos, deixando-os depois de lado para eu os resolver. O primeiro que decifrei, dizia: Qual é a mais pequena harmonia dentro de uma grande vitória?

— Faz-me lembrar Pitágoras — disse a Katie quando lhe contei, em frente de um bolo e de um chocolate quente no Small World Coffee. — Tudo em Pitágoras são harmonias. A astronomia, a virtude, a matemática...

— Eu acho que tem a ver com campanhas bélicas — contrapus eu, que tinha passado bastante tempo em Firestone a analisar textos do Renascimento sobre engenharia. Leonardo, numa carta ao Duque de Milão, afirmava que podia construir carros impenetráveis, como tanques renascentistas, equipados com canhões portáteis e grandes catapultas para serem usados em cercos. A filosofia e a tecnologia começavam a fundir-se: havia uma matemática da vitória, um conjunto de proporções para a máquina de guerra perfeita. Da matemática à música ia apenas um pequeno passo.

Na manhã seguinte, a Katie acordou-me às 7h30 para irmos correr antes da aula dela das 9 horas.

— Material bélico não faz sentido — disse ela, começando a analisar o enigma como só um estudante de Filosofia seria capaz de fazer. — A questão tem duas partes distintas: a mais pequena harmonia e a grande vitória. Grande vitória pode significar o que se quiser. Devias, portanto, concentrar-te na parte mais evidente. A mais pequena harmonia tem muito menos significados concretos.

Quando passámos pela estação de comboios de Dinky, a caminho da parte ocidental do campus invejei os passageiros que esperavam o comboio das 7h43. Correr e pensar eram coisas antinaturais de se fazer quando o Sol estava ainda a nascer e ela sabia que o nevoeiro só desaparecia dos meus pensamentos lá para o meio-dia. Isto era só para me castigar por não levar o Pitágoras a sério.

— E então, qual é a tua sugestão? — perguntei. Ela nem sequer parecia estar sem fôlego. — Na volta, paramos em Firestone e mostro-te onde é que eu acho que devias procurar.

Continuámos assim por mais duas semanas, acordando de madrugada para cultura física e exercícios mentais, contando eu à Katie as minhas ideias meio alinhavadas sobre Colonna, para ela ter de abrandar para ouvir e depois forçando-me a correr mais, para ela ter menos tempo para me dizer que eu estava errado. Passámos juntos o final de tantas tardes e tantas madrugadas, que pensei que lhe poderia ocorrer, sendo uma pessoa tão racional, que seria mais sensato passar a noite em Dod do que andar para cá e para lá a fazer o percurso entre Dod e Holder. Todas as manhãs, ao vê-la em calções de Lycra e sweatshirt, tentava pensar numa forma de lhe fazer o convite, mas a Katie faz sempre questão de não compreender. O Gil disse-me que o antigo namorado dela, o jogador de lacrosse que fez o seminário comigo, tinha feito com ela um jogo desde o início: não abusava dela nas raras ocasiões em que ela tinha bebido de mais e assim ela derretia-se de gratidão quando estava sóbria. O esquema desta manipulação levou-lhe tanto tempo a descobrir que o seu sabor amargo ainda persistiu durante o primeiro mês da nossa relação.

— O que é que eu hei-de fazer? — perguntei uma noite, depois de a Katie ter saído, quando a frustração era já insuportável. Depois de cada corrida matinal recebia um beijinho na cara, beijo esse que, bem feitas as contas, mal cobria as despesas e agora, que eu passava cada vez mais tempo com a Hypnerotomachia, e não dormia mais de cinco ou seis horas por noite, o débito não parava de aumentar. Tântalo e as suas uvas não eram nada, comparados comigo: quando queria a Katie, a única coisa que tinha era o Colonna; quando tentava concentrar-me no Colonna, a única coisa em que conseguia pensar era dormir; e quando, por fim, tentava dormir, ouvia bater à porta, porque estava na hora da corrida com a Katie. A comédia de estar cronicamente atrasado para a minha própria vida estava a dar cabo de mim. Eu merecia melhor.

Penso que foi a única vez em que o Gil e o Charlie foram unânimes: — Tem paciência — disseram eles. — Ela merece.

E, como de costume, tinham razão. Uma noite, na nossa quinta semana juntos, a Katie eclipsou-nos a todos. Ao regressar de um seminário de Filosofia, apareceu em Dod com uma ideia.

— Ouçam lá isto — disse ela, tirando da mala um exemplar da Utopia de Thomas More e lendo.

Os habitantes de Utopia têm dois jogos parecidos com o xadrez. O primeiro é uma espécie de concurso de aritmética, no qual certos números «ganham» a outros. O segundo é uma batalha campal entre virtudes e vícios, que ilustra de forma brilhante como é que os vícios tendem a entrar em conflito uns com os outros, mas se combinam contra as virtudes. Mostra o que determina, por fim, a vitória de um lado ou do outro.

Pegou na minha mão e entregou-me o livro, esperando que eu lesse outra vez.

Olhei para a contracapa. — Escrito em 1516 — constatei eu. — Menos de vinte anos depois do Hypnerotomachia. As épocas não eram distantes.

— Uma batalha campal entre virtudes e vícios — repetiu ela —, que mostra o que determina a vitória de um lado ou do outro. E comecei a pôr a hipótese de que ela poderia ter razão.

Lana McKnight costumava ter uma regra, na época em que namorávamos. Nunca misturar livros e cama. No espectro da excitação, o sexo e o pensamento estavam em pólos opostos, ambos existiam para ser apreciados, mas nunca ao mesmo tempo. Surpreendia-me como é que uma rapariga tão esperta podia tornar-se tão desenfreadamente estúpida no escuro, esvoaçando de um lado para o outro no seu negligee a imitar pele de leopardo como uma mulher das cavernas atingida pela minha marreta, a ladrar enormidades que teriam horrorizado até a própria matilha de lobos que a tinha criado. Nunca ousei dizer à Lana que se ela gemesse menos, a coisa poderia ter mais significado, mas desde a primeira noite que não deixava de pensar como seria maravilhoso que a minha mente e o meu corpo pudessem ser estimulados em simultâneo. Provavelmente foi essa possibilidade que eu vi na Katie desde o início, depois de todas as manhãs que passámos a exercitar os nossos músculos em simultâneo. Mas foi apenas nessa noite que aconteceu: foi quando estávamos a explorar as implicações da descoberta dela que o último resíduo do seu velho jogador de lacrose foi eliminado, erradicado, e ficámos livres para recomeçar tudo.

O que recordo mais claramente dessa noite foi que o Paul teve a feliz ideia de dormir em Ivy e que, durante todo o tempo em que a Katie ficou comigo, as luzes estiveram sempre acesas. Mantivemo-las assim enquanto lemos Sir Thomas More, tentando perceber a que jogo é que ele se referia, quais as grandes vitórias que eram possíveis quando as virtudes estavam em harmonia. Mantivemo-las acesas quando percebemos que um dos jogos que o More mencionava, chamado o Jogo dos Filósofos, ou Rithmomachia era precisamente o género de jogo que Colonna teria gostado, o mais provocador de todos os que eram jogados pêlos renascentistas. Mantivemo-las acesas quando ela me beijou por eu dizer que pensava que ela tinha razão porque o Rithmomachia conforme descobrimos, só podia ser ganho criando harmonias de números, produzindo a mais perfeita das quais o raro resultado que era conhecido por grande vitória. E mantivemo-las acesas quando ela me voltou a beijar, porque eu admiti que provavelmente as minhas outras ideias estariam erradas e que eu a devia ter ouvido desde o início. Compreendi, finalmente, o desentendimento que persistia desde a nossa primeira manhã de jogging: enquanto eu me esforçava por me manter ao nível dela, ela tinha-se esforçado por se manter um passo à frente. Ela tinha tentado provar que não se deixava intimidar por finalistas, que merecia ser levada a sério... e nunca lhe tinha ocorrido, até essa noite, que tinha conseguido.

Quando chegou ao momento de irmos juntos para a cama, já sem sequer pretendermos fingir que continuávamos a ler, o meu colchão estava carregado de livros. Provavelmente é verdade que o quarto estava demasiado quente para a camisola de lã que ela tinha vestida. E é provavelmente verdade que o quarto estaria demasiado quente para a camisola que ela tinha vestida, mesmo que o ar condicionado estivesse ligado e a neve caísse como no fim-de-semana de Páscoa. Ela trazia uma T-shirt por baixo e um sutiã preto por baixo da T-shirt mas foi ao observar Katie a tirar a camisola e a forma como o seu cabelo ficava todo despenteado, com madeixas a flutuar num halo de estática, que me deu aquela sensação que Tântalo nunca chegou a conhecer: que um futuro fantástico se tinha finalmente sobreposto a um presente cheio de esperança, ligando o interruptor que acciona o circuito do tempo.

Quando chegou a minha vez de tirar a roupa, de compartilhar com a Katie os destroços da minha perna esquerda, com cicatrizes e tudo não hesitei nem por um segundo: e ela também não hesitou, no momento em que as viu. Se tivéssemos passado essas horas na escuridão, nunca teria pensado nisso. Mas nunca estivemos no escuro durante essa noite. Rolámos, enrolados um no outro, por cima do São Thomas More e pelas páginas da sua Utopia para a nova posição da nossa relação e as luzes nunca deixaram de estar acesas.

O primeiro sinal de que eu tinha interpretado mal as forças que actuavam na minha vida, surgiu na semana seguinte. O Paul e eu passámos a maior parte da segunda e terça-feira a debater o significado do próximo enigma: Quantos braço vão desde os teus pés até ao horizonte?

— Penso que tem a ver com geometria — sugeriu o Paul.

— Euclides?

Mas ele abanou a cabeça. — Medições da Terra. Eratóstenes calculou a circunferência da Terra medindo os ângulos das projecções das sombras em Siena e Alexandria, ao meio-dia do solstício de Verão. Depois utilizou os ângulos...

Só a meio da sua explicação é que percebi que ele estava a utilizar a palavra geometria no seu sentido etimológico — literalmente: «medição da terra».

— Portanto, sabendo a distância entre as duas cidades, ele podia calcular, por triangulação, a curvatura da Terra.

— E o que é que isso tem a ver com o enigma? — indaguei eu.

— Francesco pergunta a distância entre ti o horizonte. Calcula a distância que vai de um ponto determinado da Terra até à linha em que a Terra curva e tens a resposta. Ou então procura no teu livro de Física. Provavelmente será uma constante.

Ele disse isto como se a resposta fosse uma conclusão garantida de antemão, mas eu suspeitava que não era assim.

— E por que é que Colonna pede essa distância em braços? — perguntei.

O Paul debruçou-se para o meu exemplar e riscou a palavra braços substituindo-a por uma palavra em italiano. — Provavelmente será braccia — disse ele. — É a mesma palavra, mas braccia era a unidade de medida florentina. Um braccio tem aproximadamente o comprimento de um braço.

Pela primeira vez, eu andava a dormir menos do que ele, o inesperado ponto alto em que se encontrava a minha vida levava-me a continuar a desafiar a sorte, a manter a minha mistura de bebidas, porque este cocktail de Katie e Francesco parecia ser exactamente o que o médico me tinha receitado. Considerei um sinal o facto de que o meu regresso à Hypnerotomachia tivesse trazido uma nova estrutura ao mundo em que eu vivia. Rapidamente comecei a cair na armadilha do meu pai, aquela contra a qual a minha mãe tinha tentado prevenir-me.

Na quarta-feira de manhã, quando disse à Katie que tinha sonhado com o meu pai, ela fez uma coisa que nunca fizera em todas as nossas sessões matinais de jogging: parou.

— Tom, eu não quero continuar a falar disto — disse ela.

— A falar de quê?

— Da tese do Paul. Vamos falar doutra coisa qualquer.

— Eu estava a falar do meu pai.

Mas eu estava demasiado habituado, das conversas com o Paul, a que o simples facto de mencionar o meu pai fosse o suficiente para pôr termo a qualquer tipo de crítica.

— O teu pai trabalhou no livro que o Paul está a estudar — disse ela. — E a mesma coisa.

Interpretei como medo o sentimento que se ocultava por detrás das palavras dela: medo de que ela não fosse capaz de resolver um novo enigma da mesma forma que tinha resolvido o último e de que o meu interesse por ela pudesse diminuir.

— Está bem — disse eu, pensando que a estava a salvar dessa situação. — Falemos então de outra coisa.

E assim começou um período de muitas semanas agradáveis, construído sobre um engano tão completo como aquele por que a nossa relação tinha começado. Durante o primeiro mês em que andámos juntos, até àquela noite que a Katie passou em Dod, ela construiu uma fachada para mim, tentando criar aquilo que ela pensava que eu queria; e no segundo mês eu retribuí o favor, evitando qualquer menção à Hypnerotomachia em frente dela, não porque a sua importância tivesse diminuído na minha vida, mas porque pensei que os enigmas de Colonna a incomodavam.

Se a Katie tivesse sabido a verdade, teria toda a razão para começar a preocupar-se. A Hypnerotomachia estava lentamente a relegar para segundo plano todos os meus outros pensamentos e nteresses. O equilíbrio que eu pensava ter encontrado entre a tese do Paul e a minha — a valsa entre Mary Shelley e Francesco Colonna, que eu imaginava mais vívida quanto mais tempo passava com a Katie — estava a transformar-se numa batalha que Colonna ia gradualment ganhando.                                                 Entretanto, sem que a Katie e eu nos tivéssemos apercebido tinham-se formado veredas em todos os recantos da nossa experiência comum. Corríamos pêlos mesmos trilhos todas as manhãs; parávamo nos mesmos cafés antes das aulas; e introduzia-a sub-repticiamente no meu clube quando os meus cartões para convidados se esgotavam. Nas noites de quinta-feira íamos dançar com o Charlie ao Cloiste Inn; aos sábados à noite jogávamos bilhar com o Gil em Ivy; e nas sextas-feiras à noite, quando os clubes de Prospect estavam pacatos, íamos ver os amigos representar comédias de Shakespeare ou frequentávamos os concertos ou espectáculos à cappella que se faziam um pouco por todo o campus. A aventura dos nossos primeiros dias juntos floria lentamente para se transformar numa coisa diferente: um sentimento que eu nunca tinha tido com a Lana ou com qualquer das suas antecessoras, que eu só consigo comparar com a sensação de regressar a casa, de conseguir um equilíbrio que não precisa de ajustes, como se os pratos da balança da minha vida tivessem estado desde sempre à sua espera.

Na primeira noite em que a Katie se apercebeu de que eu não conseguia dormir, recitou um trabalho do seu autor preferido e eu segui o Curious George até aos confins da terra, até que o peso nas minhas pálpebras venceu. Depois disso houve muitas noites em que eu me mexia e voltava na cama e a Katie encontrou sempre uma solução diferente. Episódios tardios do MASH; longas leituras de Camus; programas de rádio que ela costumava ouvir em casa, agora captados numa emissão cheia de interferências, vinda da costa. As vezes deixávamos a janela aberta, para ouvir a chuva nos últimos dias de Fevereiro, ou as conversas dos caloiros embriagados. Chegámos mesmo a inventar um jogo de rimas para as noites em que não acontecia nada, algo que Francesco Colonna não teria considerado tão edificante como o Rithmomachia mas de que nos divertia na mesma.

— Era uma vez um homem chamado Camus — dizia eu, puxando por ela.

Quando a Katie sorria na noite, parecia o gato da Alice no País das Maravilhas no escuro.

— Que na Argélia comia cajus — respondia ela.

— Era dado ao estrangeirismo.

— Mas não ao existencialismo.

— O que deixou o velho Jean-Paul Sartre com uma grande neura.

Todavia, apesar de todas as formas que a Katie tinha encontrado para me fazer dormir, a Hypnerotomachia continuava a manter-me acordado a maior parte das vezes. Tinha descoberto o que era a mais pequena harmonia de uma grande vitória: no Rithmomachia, onde o objectivo é estabelecer um número de esquemas que contenham harmonias aritméticas, geométricas ou musicais, apenas três sequências produzem as três harmonias em simultâneo — o requisito para uma grande vitória. A mais pequena dessas sequências, a que Colonna queria, era 3-4-6-9.

O Paul pegou nos números e pô-los rapidamente em código. Leu a terceira letra, depois a quarta e de seguida a sexta e a nona dos capítulos apropriados e, dentro de uma hora, obtinha mais uma mensagem de Colonna:

Começo a minha história com uma confissão. A guardar este segredo morreram muitos homens. Alguns pereceram na construção da minha cripta, que, criada por Bramante e edificada pelo meu irmão romano Terragni, é uma invenção excelente para o que se destina. impenetrável por todas as coisas, mas acima de tudo pela agua. Fez muitas vitimas, mesmo entre os homens mais experientes. Três morreram devido à deslocação de grandes pedras, dois na queda de arvores, cinco no próprio processo de construção. Outros mortos não menciono, porque morreram de forma vergonhosa e serão esquecidos.

Aqui registarei a natureza do inimigo que enfrento, cujo poder crescente está no coração das minhas acções. Leitor, perguntarás por que é que datei este livro de 1467, trinta anos antes de escrever estas linhas. A razão foi a seguinte: nesse ano teve início a guerra que ainda hoje se trava e que estamos agora a perder. Três anos antes Sua Santidade Paulo Ii despedira os abreviadores*26 da corte, deixando claras as suas intenções para com a minha irmandade. Contudo, os membros da geração do meu tio eram homens poderosos, com muita influencia, e os irmãos expulsos dslocaram-se para a Accademia Romana, que era mantida pelo bom Pomponio Leto. Paulo viu que o número de irmãos se mantinha e a sua fúria cresceu. Nesse ano, 147, esmagou a Academia pela força. Para que todos conhecessem a força da sua determinação, mandou prender Pomponio Leto e acusou-o de sodomia. Outros do nosso grupo foram torturados. Um, pelo menos, morreu.

Agora somos desafiados por um velho inimigo, subitamente renascido. Este novo esprito cresce em força e encontra uma voz mais poderosa, portanto não

 

26 Oficiais da chancelaria romana que minutavam em cifra ou abreviatura as bulas ou outros documentos do Papa. (NT)

 

tenho outra solução a não ser construir, com a ajuda de amigos mais sábios do que eu, este dispositivo cujo segredo deixo aqui escondido. Mesmo o padre, por muito bom filósofo que seja, não o consegue igualar. Continua, leitor e dir-te-ei mais.

— Os abreviadores da corte eram os humanistas — explicou o Paul. — O Papa pensava que o humanismo alimentava a corrupção moral. Nem sequer permitia que as crianças ouvissem as obras dos poetas antigos. O Papa Paulo fez de Leto um exemplo. Por uma qualquer razão, Francesco considerou isso uma declaração de guerra.

As palavras de Colonna permaneceram comigo durante essa noite e durante todas as noites que se lhe seguiram. Pela primeira vez faltei a uma corrida matinal com a Katie, demasiado cansado para me arrancar da cama. Qualquer coisa me dizia que o Paul estava errado acerca do novo enigma — Quantos braços vão dos teus pés até ao horizonte? — e que Eratóstenes e a geometria não eram solução. O Charlie confirmou que a distância do horizonte dependia da altura do observador; e mesmo que conseguíssemos encontrar uma resposta simples e calculá-la em braccia percebi que a resposta seria enorme, demasiado grande para ser utilizada como cifra.

— Quando é que Eratóstenes fez estes cálculos? — perguntei.

— Cerca de 200 a. C. Isso resolveu as dúvidas.

— Acho que estás enganado — disse eu. — Todos os enigmas até agora estão ligados com o conhecimento renascentista, as descobertas do Renascimento. Ele está a testar-nos com o que os humanistas sabiam nos anos 1400.

— Moisés e cornuta tinham a ver com a linguística — disse o Paul, a ver se a ideia pegava. — Corrigindo as traduções erradas, como a que Valia fez com a Doação de Constantino.

— E o enigma do Rithmomachia tinha a ver com matemática — continuei eu. — Portanto o Colonna não podia usar de novo a matemática. Acho que ele escolhe uma disciplina diferente de cada vez.

Foi só quando o Paul se mostrou tão surpreendido pela clareza do meu pensamento que me apercebi de como o meu papel se tinha alterado. Agora éramos iguais, sócios no empreendimento.

Começámos a encontrar-nos em Ivy todas as noites, como naqueles tempos em que ele mantinha a Sala do Presidente com melhor aspecto, esperando a todo o momento que o Gil pudesse aparecer para ver como iam as coisas. Eu jantava lá em cima, com o Gil e a Katie, que estava apenas a algumas semanas de começar o processo de candidatura e depois descia para me reunir ao Paul e ao Francesco Colona. pensei que não fazia mal deixá-la sozinha, já que ela estava a trabalhar tanto para se posicionar favoravelmente para a admissão no clube. Ocupada com os rituais, ela não parecia dar muito pela minha falta.

Mas na noite depois de eu ter faltado pela terceira vez à corrida matinal, tudo mudou. Estava quase a encontrar uma solução para o enigma, pensava eu, quando, por um simples acaso, ela percebeu como é que eu passava as horas em que não estávamos juntos.

— Isto é para ti — disse ela entrando de surpresa no nosso quarto, em Dod.

O Gil tinha deixado a porta aberta mais uma vez e a Katie já não batia quando pensava que eu estava sozinho.

Era uma caneca de sopa que ela me tinha trazido de uma cafetaria ali ao pé. Ela pensava que eu tinha ficado retido pela minha tese durante este tempo todo.

— O que é que estás a fazer? — perguntou ela. — Mais Frankenstein?

Depois viu os livros espalhados à minha volta, e todos eles tinham no título uma referência ao Renascimento.

Eu nunca pensara que era possível mentir sem saber. Há semanas que eu a andava a aldrabar sob uma imensidade de pretextos — Mary Shelley; insónias; a pressão a que ambos estávamos sujeitos, que tornava difícil, passarmos mais tempo juntos — e por fim tinha-me deixado levar, desviando-me da verdade tão lentamente que não notava a distância de dia para dia. Pensava que ela sabia que eu estava a trabalhar na tese do Paul; e que ela apenas não queria ouvir falar nisso. Era esse o acordo que tínhamos estabelecido, sem sequer termos de o dizer.

A conversa que se seguiu foi toda feita de silêncios, traduzida na forma como ela olhava para mim e como eu tentava aguentar o seu olhar. Por fim, a Katie pôs a caneca de sopa em cima da minha cómoda e abotoou o casaco. Olhou em redor do quarto, como se quisesse gravar na memória todos os pormenores, depois virou-se para a porta e trancou-a, antes de sair.

Nessa noite eu ia telefonar-lhe — sabia que ela esperava que eu fizesse, quando ela regressasse ao quarto sozinha e ficou à espera ao lado do telefone, como as suas colegas de quarto me contaram depois — só que houve uma coisa que se meteu pelo meio. Uma amante fantástica, aquele livro, mostrando a perna sempre no momento exacto. Assim que a Katie saiu, a solução para o enigma de Colonna surgiu-me perante os olhos; e como uma lufada de perfume ou a curva de um decote, fez-me esquecer tudo o mais.

A solução era o horizonte num quadro: o ponto de convergência num sistema de perspectivas. O enigma não era de matemática; era de arte. Encaixava perfeitamente no perfil dos outros puzzles, apoiando-se numa disciplina característica do Renascimento, desenvolvida pêlos mesmos humanistas que Colonna parecia defender. A medida de que nós precisávamos era a distância, em braccia entre o primeiro plano do quadro, onde se encontravam as figuras, e a linha teórica do horizonte, onde a terra encontra o céu. E lembrando-me da preferência de Colonna por Alberti em arquitectura, quando o Paul usou o De ré aedificatoria para decifrar o primeiro enigma, foi para Alberti que me voltei em primeiro lugar. Na superfície eu pretendo pintar, escreveu Alberti no tratado que encontrei entre os livros do Paul, decido o tamanho que deverão ter a figura no primeiro plano do quadro. Divido a altura deste homem em três partes, que seriam proporcionais a medida normalmente conhecida por «braccio»; porque, como se pode ver pela relação dos membros, três «braccia» é a média normal da altura de um homem. A posição correcta para o ponto cêntrico não deve estar mais acima da linha de base do que a altura do homem que irá ser representado neste quadro. Depois desenho uma linha que atravessa o ponto cêntrico e esta linha é, para mim, o limite ou a fronteira que não deverá ser excedida. E por isso que um homem representado mais longe é muito mais pequeno do que aqueles que ficam perto de nós.

A linha cêntrica de Alberti, como se tornava claro pelas ilustrações, era o horizonte. Segundo o seu sistema, ficava colocado à mesma altura de um homem de pé em primeiro plano, que por sua vez tinha três bracci de altura. A solução para o enigma — o número de braccia desde os pés do homem até ao horizonte — era precisamente esse: três.

Ao Paul bastou apenas meia hora para perceber como a deveria aplicar. A primeira letra de cada terceira palavra dos próximos capítulos, quando colocadas em fila, escrevia a passagem seguinte de Colonna.

Agora, leitor, vou dizer-te qual a natureza da composição deste trabalho. Com a ajuda dos meus irmãos, estudei os livros de códigos dos árabes, dos judeus e dos antigos. Aprendi com os cabalistas a pratica denominada gematria, segundo a qual, quando esta escrito no Génesis que Abrazão trouxe 318 servos para ajudar Lot, vemos que o número 318 significa apenas a serva de Abrazão, Eliezer, porque essa é a soma das letras hebraicas do nome de Eliezer. Aprendi as praticas dos gregos, cujos deuses falavam por enigmas e cujos generais, como é descrito pelo Fazedor de Mitos na sua História, disfarçava astuciosamente os seus significados, como quando Histiaeo tatuou uma mensagem no couro cabeludo do seu escravo, para que Aristágoras pudesse, ao rapar a cabeça do homem, lê-la.

Revelar-te-ei agora os nomes dos homens sábios cuja sabedoria inventou os meus enigmas. Pomponio Leto, mestre da Academia de Roma, aluno de Valia velho amigo da minha família, instruiu-me nas questões de línguas e tradução, onde os meus próprios olhos e ouvidos não chegavam. Na arte e nas harmonias dos números, fui guiado pelo francês Jacques Lefivre d'Etaples, admirador de Roger Bacon e Boécius, que conhecia todas as formas de numeração que o meu intelecto não abrangia. O grande Alberti, que por sua vez aprendeu a sua arte com os mestres Masaccio e Brunelleschi (que o seu génio nunca seja esquecido), instruiu-me muito na ciência do horizonte e dos quadros; louvo-o agora e sempre. O conhecimento da escrita sagrada dos descendentes de Hermes Trimesgisto, primeiro profeta do Egipto, devo-o a Ficino, mestre de línguas e filosofias, que não tem igual entre os seguidores de Platão. Finalmente, é a Andrea Alpago, discípulo do venerável Ibn al-Nafis, que eu estou em dívida relativamente a temas que irão ainda ser revelados; e que esta contribuição seja vista ainda de forma mais favorável do que todas as outras, porque é no estudo do próprio homem, portanto onde todos os outros estudos encontram a sua origem, que ele mais de perto contempla a perfeição.

Estes, leitor, são os meus mais sábios amigos, que entre eles aprenderam o que eu não aprendi, uma sabedoria que em tempos mais antigos esteve vedada ao homem. Um a um, concordaram em responder ao meu pedido: cada omem, sem que os outros o soubessem, criou um enigma para o qual só ele e eu conhecemos a solução e que apenas um outro apaixonado do conhecimento é que poderia resolver. Estes enigmas, por sua vez, coloquei-os dentro do meu texto em fragmentos, segundo um esquema que não revelei a ninguém; e só a resposta pode reproduzir as minhas palavras verdadeiras.

Tudo isto eu fiz, leitor, para proteger o meu segredo, mas também para o transmitir a ti, se conseguisses descobrir o que eu escrevi. Bastará resolveres apenas mais dois enigmas e começarei a revelar a verdadeira natureza do meu texto cifrado.

A Katie não me acordou na manhã seguinte para irmos correr. Na verdade, durante o resto da semana falei com as suas companheiras de quarto e com o atendedor de chamadas, mas nunca com a Katie. Cego pêlos progressos que estava a fazer com o Paul, não vi a erosão que se estava a produzir na paisagem da minha vida. Os percursos do jogging e os cafés afastavam-se à medida que a nossa distância aumentava. A Katie não voltou a comer comigo no Cloister, mas eu mal dei por isso, porque durante semanas eu próprio também não fui lá comer: o Paul e eu viajávamos como ratazanas pêlos túneis entre Dod e Ivy evitando a luz do dia, ignorando o som das candidaturas que decorriam sobre as nossas cabeças, comprando café e sanduíches empacotadas nos WaWa que estavam abertos durante toda a noite, fora do campus para que pudéssemos trabalhar e comer segundo os nossos próprios horários.

Durante todo esse tempo, a Katie estava apenas a um andar de distância de mim, tentando não roer as unhas enquanto se deslocava de camarilha em camarilha, procurando o equilíbrio certo entre firmeza e submissão para que os finalistas a encarassem favoravelmente. Que ela não quereria a minha interferência na sua vida naquele momento, era uma conclusão a que eu tinha chegado quase desde o princípio, mais uma desculpa para passar longos dias e noites com o Paul. Que ela tivesse apreciado alguma companhia, um rosto amigo para quem se voltar à noite, um companheiro quando as suas manhãs se tornavam mais cinzentas e frias — que ela desejava o meu apoio, agora que tinha chegado à primeira encruzilhada importante da sua vida em Princeton — era uma coisa que eu estava demasiado preocupado para pensar. Nunca imaginei que a candidatura poderia ser uma prova para ela, uma experiência que punha muito mais à prova a sua tenacidade do que o seu encanto. Para ela, eu era como um desconhecido; nunca soube por que é que ela tinha passado naquelas noites em Ivy.

O clube aceitou-a, segundo me disse o Gil na semana seguinte. Ele estava a preparar-se para uma longa noite em que tinha de comunicar as notícias, boas e más, a cada candidato. O Parker Hasset tinha colocado alguns obstáculos no caminho da Katie, focando-a como alvo especial da sua ira, provavelmente porque sabia que ela era uma das preferidas do Gil; mas mesmo o Parker acabou por se render, no final. A cerimónia de apresentação da nova selecção de membros teria lugar na semana seguinte, depois das iniciações, e o baile anual de Ivy foi marcado para o fim-de-semana da Páscoa. O Gil fez um inventário tão cuidadoso dos acontecimentos que eu percebi que ele me estava a dizer qualquer coisa. Estas eram as oportunidades de que eu dispunha para remediar as coisas com a Katie. Este era o calendário da minha reabilitação.

Se assim era, não consegui ser melhor namorado do que Escuteiro. O amor, desviado do seu objecto certo, tinha encontrado um novo. Nas semanas que se seguiram vi cada vez menos o Gil e não vi de todo a Katie. Ouvi um boato de que ela se tinha interessado por um finalista de Ivy, uma nova versão do seu antigo jogador de acrosse, um homem de chapéu amarelo para juntar ao meu Curious George. Mas nessa altura o Paul tinha decifrado mais um enigma e começávamos ambos a pensar qual seria o segredo escondido na cripta de Colonna. Um antigo mantra, que há muito se encontrava adormecido, despertou do seu torpor e preparou-se para um novo ciclo de vida.

Nada de novos amigos, chuta os velhos, que não são nenhum tesouro. A única coisa que quero na vida é ter prata e muito ouro.

 

                                           CAPITULO 17

Acordo ao som de um telefone, em plena luz de dia. O relógio marca nove e meia. Aos tropeções, saio da cama para apanhar o telefone sem fios, antes que o Paul acorde.

— Estavas a dormir? — é a primeira coisa que a Katie diz.

— Mais ou menos.

— Não posso acreditar que foi o Bill Stein.

— Nós também não. O que é que se passa?

— Estou na sala de imprensa. Podes vir aqui?

— Agora?

— Estás ocupado?

Embora esteja ainda meio a dormir, percebo na sua voz um toque de distância que não me agrada.

— Deixa-me só tomar um duche rápido. Dentro de um quarto de hora estou aí.

Quando ela desliga o telefone, já estou a despir-me.

Enquanto me arranjo, duas coisas ocupam o meu espírito: Stein e Katie. Alternam-se nos meus pensamentos como se alguém ligasse e desligasse um interruptor para verificar o funcionamento de uma lâmpada. Na luz vejo-a a ela, mas no escuro vejo o pátio de Dickinson, coberto de neve, em silêncio, depois da partida da ambulância.

De regresso ao quarto, enfio a roupa na sala comum, tentando não acordar o Paul. Ao procurar o relógio, reparo numa coisa: a sala está ainda mais arrumada do que quando me fui deitar. Alguém estendeu os tapetes e esvaziou os cestos do lixo. Mau sinal. O Charlie não dormiu a noite passada.

Depois vejo uma mensagem escrita no painel.

Tom, não consegui dormir. Fui para Ivy trabalhar. Liga-me quando acordares. P.

Volto ao quarto e verifico que o beliche do Paul está vazio. Olhando de novo para o painel, vejo os números por cima do texto: 2h15. Esteve fora a noite toda.

Levanto de novo o auscultador para ligar para a Sala do Presidente e ouço o sinal do voice mail.

Sexta-feira diz o atendedor automático quando primo os dígitos. Vinte e três horas e cinquenta e quatro minutos.

Segue-se a chamada que eu não ouvi, que deve ter sido feita quando o Paul e eu estávamos no museu.

Tom, é a Katie. Pausa. Não sei onde é que estás. Talvez já venhas a caminho daqui. A Karen e a Trish querem cortar agora o bolo de aniversario. Disse-lhes para esperarem por ti. Mais uma pausa. Bem, acho que nos vemos quando chegares.

Sinto o telefone queimar-me a mão. A fotografia a preto e branco que comprei para o aniversário dela tem um ar deprimente, na sua moldura, dir-se-ia uma coisa mais barata do que parecia ontem. Para saber o nome de um fotógrafo para além de Ansel Adams e Mathew Brady tive de andar a perguntar por aí. Nunca estive suficientemente atento ao passatempo da Katie para me sentir confiante relativamente ao seu gosto. Pensando melhor, decido que não vou levar a fotografia agora.

Dirijo-me para o Prince com um passo apressado. A Katie vem ao meu encontro à entrada e leva-me para a sala escura, fechando e abrindo portas à medidda que avançamos. Está com a mesma roupa que tinha em Holder: uma T-shirt e uns jeans velhos. Tem o cabelo apanhado descuidadamente, como se não estivesse à espera de companhia e o decote da T-shirt está deformado. Vejo um pequeno fio de ouro a aparecer sobre a clavícula e detenho-me num buraquinho nos jeans, por onde espreita o branco da pele.

— Tom — diz ela, apontando para alguém que está sentada a um computador a um canto —, está aqui uma pessoa que gostava de te apresentar. Sam Felton.

Sam sorri como se me conhecesse. Está vestida com calças de treino de hóquei e uma T-shirt de mangas compridas que diz SE O JORNALISMO FOSSE FÁCIL, A NEWSWEEK FAZIA-O. Depois de carregar num botão do gravador que está ao lado dela, tira do ouvido o auricular.

— É o teu acompanhante desta noite? — diz ela para a Katie, para se certificar de que ouviu bem.

A Katie diz que sim, mas não acrescenta o que eu esperava ouvir:

o meu namorado.

— A Sam está a trabalhar na notícia do Bill Stein — diz ela.

— Divirtam-se no baile — diz a Sam, antes de voltar a ligar o gravador.

— Não vens? — pergunta a Katie. Deduzo que também se conhecem de Ivy.

— Duvido. — A Sam regressa ao computador, onde linhas de palavras fazem pela vida atravessando o ecrã, uma colónia de formigas atrás do vidro. Faz-me lembrar o Charlie no seu laboratório: inspirada pelo muito que está ainda por fazer. Haverá sempre mais notícias para escrever, mais teorias para provar, mais fenómenos para observar. A deliciosa futilidade das tarefas impossíveis é o estímulo daqueles que superam as expectativas.

A Katie lança-lhe um olhar de simpatia e a Sam continua a transcrever.

— De que é que querias falar? — pergunto.

Mas a Katie conduz-me de novo para a câmara escura.

— Aqui está um bocadinho quente — diz ela abrindo uma porta e afastando um conjunto de pesadas cortinas pretas. — Se quiseres, podes tirar o casaco.

É o que faço e ela pendura-o num cabide ao pé da porta. Desde que a conheço que tenho evitado o interior desta sala, aterrorizado com a ideia de que posso estragar uma película.

A Katie dirige-se para uma corda da roupa esticada ao longo de uma parede, onde estão penduradas fotografias com molas da roupa. — Aqui dentro não deviam estar mais de vinte e quatro graus — diz ela —, a sopa pode estragar os negativos.

Por mim, até podia estar a falar grego. Há uma velha regra que as minhas irmãs me ensinaram: sempre que tiveres um encontro com uma rapariga, fá-lo sempre num sítio que conheças bem. Os restaurantes franceses só são impressionantes se se conseguir ler a ementa, assim como um filme intelectual pode ser uma armadilha se não se conseguir perceber a história. Aqui no escuro, as possibilidades que eu tenho de falhar são realmente espectaculares.

— Dá-me só um segundo — diz ela, deslocando-se de um lado para o outro do compartimento, como um colibri. — Estou quase pronta.

Abre a tampa de um pequeno tanque, mete o filme num carreto e põe-no debaixo de água corrente. Começo a sentir-me abafado. A câmara escura é pequena e está cheia, as bancadas estão cobertas de tinas e tabuleiros, as prateleiras carregadas de reveladores e fixadores. A Katie parece ter um domínio quase perfeito da situação. Ao vê-la, lembro-me da forma como ela enrolou o cabelo na recepção, prendendo-o com ganchos, como se estivesse a ver perfeitamente o que estava a fazer.

— Desligo as luzes? — pergunto eu, começando a sentir-me inútil.

— Como quiseres. Os negativos já fixaram. Portanto, fico como um espantalho no meio da sala.

— Como é que o Paul está a aguentar-se? — pergunta ela.

— Bem.

Segue-se um silêncio respeitador e a Katie parece perder o fio à conversa, debruçando-se sobre um novo conjunto de fotografias.

— Passei por Dod depois da meia-noite e meia — recomeça ela. — O Charlie disse-me que estavas com o Paul. Detecto na voz dela uma simpatia inesperada.

— Foi bom teres ficado com ele — acrescenta ela. — Isto deve ser terrível para o Paul. Para todos, aliás.

Quero contar-lhe das cartas do Stein, mas estou consciente de que será preciso explicar muitas coisas. Ela volta para o meu lado, agora com uma mão-cheia de fotografias.

— O que são?

— Revelei o nosso rolo.

— Do campo de filme?

Ela confirma.

O campo de filme é um lugar que a Katie me levou a ver, um espaço aberto no Princeton Battlefield Park, que parece mais extenso e plano do que qualquer terra a leste do Kansas. No meio, ergue-se um carvalho solitário, como uma sentinela que se recusa a abandonar o seu posto, repetindo o último gesto de um general que morreu debaixo dos ramos da árvore durante a Guerra da Independência. A primeira vez que a Katie viu este local foi num filme com o Walter Mathau e, desde então, vive encantada por aquela árvore. Tornou-se um dos locais que formam uma pequena cadeia, um rosário que ela visita repetidamente e a que mais se afeiçoa quanto mais os visita. Uma semana depois da sua primeira noite em Dod levou-me a vê-lo e foi como se o velho carvalho fosse um familiar seu e estivéssemos os três empenhados em causar uma boa impressão nesta primeira visita. Eu levei um cobertor, uma lanterna e um cesto de piquenique; a Katie levou película e máquina fotográfica.

As fotografias são um artifício que eu não esperava, uma pequena parte de nós gravada em âmbar. Vemo-las em conjunto, passando-as das mãos de um para as do outro.

— O que é que achas? — pergunta ela.

Ao vê-las recordo como o Inverno estava suave. A luz esbatida de Janeiro é quase da cor do mel e lá estamos nós os dois, com camisolas leves, sem sombra de casacos, gorros ou luvas. As estrias da árvore atrás de nós têm a textura da idade.

— Estão fantásticas — respondo eu.

A Katie sorri, acanhada, ainda sem saber muito bem como aceitar um elogio. Reparo nas manchas nos seus dedos, cor de tinta de jornal, deixadas por um qualquer químico dos que se alinham nas prateleiras da câmara escura. Os dedos dela são longos e finos, mas têm um toque de operário, com o resíduo de demasiado filme mergulhado em demasiados banhos químicos. «Isto éramos nós» diz ela, com uma carga de mil palavras «lembras-te?»

— Desculpa — digo-lhe.

Quase deixo cair as fotografias, mas ela segura-as com a outra mão.

— Não se trata do meu aniversário — diz ela, preocupada que eu não tivesse compreendido. Aguardo.

— Aonde é que tu e o Paul foram ontem depois de terem saído de Holder?

— Ver o Bill Stein.

Ela faz uma pausa ao ouvir o nome, mas continua. — Por causa da tese do Paul?

— Era urgente.

— E quando eu fui ao teu quarto, logo a seguir à meia-noite?

— Estávamos no museu de arte.

— Porquê?

Sinto-me desconfortável com o rumo que a conversa toma. — Desculpa não ter aparecido. O Paul pensou que podia encontrar a cripta de Colonna e precisava de consultar uns mapas antigos.

A Katie não parece surpreendida. As suas próximas palavras são apressadas e eu sei que é para esta conclusão que ela tem estado a dirigir.

— Pensei que já não estavas a trabalhar na tese do Paul — diz ela.

— Também eu.

— Não podes esperar que eu fique a ver-te fazer de novo as mesmas coisas Tom. Da última vez não nos falámos durante semanas. — Ela hesita, sem saber como o há-de dizer. — Eu mereço melhor do

que isso.

A forma de um rapaz se defender é argumentar, arranjar uma posição defensiva e mante-la, mesmo que sem grande convicção. Sinto os argumentos atropelarem-se na minha boca, em pequenos impulsos de autopreservação, mas a Katie não me deixa continuar.

— Não digas nada — diz ela. — Quero que penses bem nisto.

Não precisou de o dizer duas vezes. As nossas mãos afastam-se; ela deixa as fotografias na minha. O zumbido da câmara escura volta a ouvir-se. Como um cão a quem eu tivesse dado um pontapé, o silêncio está sempre do lado dela.

A escolha está feita, quero eu dizer. Não preciso de pensar bem. É simples: amo-te mais do que ao livro.

Mas dizê-lo agora seria fazer a escolha errada. A questão não é responder correctamente à pergunta: é mostrar que sou capaz de me corrigir; que, embora partido duas vezes, é possível mesmo assim voltar a colar-me. Há doze horas, perdi a festa de aniversário dela por causa da Hypnerotomachia. Neste momento, as minhas promessas pareceriam completamente improváveis, até mesmo para mim.

— Está bem — digo eu.

A Katie leva uma mão à boca e morde uma unha, depois controla-se e pára.

— Tenho de trabalhar — diz ela, voltando a tocar nos meus dedos. — Logo à noite voltamos a falar disto.

Fico a olhar para a unha roída dela, desejando ser capaz de lhe inspirar mais confiança.

Ela empurra-me para as cortinas pretas, estende-me o casaco e voltamos ao gabinete principal. — Preciso de terminar o resto dos meus rolos antes de os fotógrafos mais velhos se apoderarem da câmara escura — diz ela pelo caminho, dirigindo-se mais à Sam do que a mim. — Tu distrais-me.

A deixa não tem qualquer efeito. Os auscultadores da Sam estão de novo no lugar e ela está concentrada no trabalho e nem dá pela minha saída.

À porta, a Katie tira as mãos das minhas costas. Parece preparada para falar, mas não fala. Em vez disso, inclina-se e dá-me um beijo na face, como costumava fazer, nos primeiros tempos em que andávamos juntos, para me compensar pêlos joggings matinais. Depois segura a porta para eu sair.

 

                               CAPITULO 18

O amor consegue tudo.

No sétimo ano, numa pequena banca de recordações de Nova Iorque, comprei uma pulseira de prata com esta inscrição para uma rapariga chamada Jenny Harlow. Pensei que reunia todas as características do homem de quem ela poderia gostar: cosmopolita, com o seu estilo Manhattan; romântico, com o seu lema poético; e sofisticado, com o seu brilho subtil. Deixei a pulseira anonimamente no cacifo da Jenny no Dia dos Namorados, depois esperei durante o dia inteiro por uma resposta, pensando que ela não poderia ter dúvidas acerca de quem a tinha lá deixado.

No entanto, infelizmente, cosmopolita, romântico e sofisticado não era exactamente a pista que conduzia directamente a mim. Um rapaz do oitavo ano, chamado Julius Murphy, deve ter reunido a combinação de virtudes em muito maior dose do que eu, porque foi o Julius quem recebeu um beijo da Jenny Harlow no fim do dia, enquanto eu fiquei apenas com a triste desconfiança de que a excursão familiar a Nova Iorque tinha sido um zero.

A experiência no seu todo, como tantas outras da infância, foi edificada sobre um mal-entendido. Só muito mais tarde é que eu iria descobrir que a pulseira não era feita em Nova Iorque e nem sequer era de prata. Mas nessa mesma noite do Dia de São Valentim, o meu pai explicou que o mal-entendido que ele considerava mais evidente, que era aquele lema que parecia tão poético, não era tão romântico como o Julius, a Jenny e eu pensávamos.

— Podes ter ficado com uma ideia errada de Chaucer — começou ele, com aquele sorriso de sabedoria paterna. — Na frase «o amor consegue tudo» está contido muito mais do que sugeria a pregadeira da Prioresa*27.

Pressenti que a conversa ia ser um bocado na linha de uma sobre bebés e cegonhas que tínhamos tido uns anos antes: bem intencionada, mas baseada num sério mal-entendido sobre o que eu estava a aprender na escola.

Seguiu-se uma longa explicação acerca da décima écloga de Virgílio e omnia vincit amor, com digressões em redor das neves de Sitónia e os carneiros da Etiópia, tudo coisas que eram muito menos importantes para mim do que o facto de a Jenny Harlow pensar que eu não era romântico e de ter gasto tão ingloriamente doze dólares. Se o amor conseguia tudo, concluí, era porque o amor nunca tinha conhecido o Julius Murphy.

Mas o meu pai era um homem sábio à sua maneira e quando percebeu que não me estava a convencer, abriu um livro e mostrou-me uma gravura que provava o seu ponto de vista.

— Agostino Carracci fez esta gravura, intitulada O Amor Consegue Tudo — disse ele. — O que é que vês?

No lado direito da gravura estavam duas mulheres nuas. À esquerda, havia um menino a bater num sátiro muito maior e mais musculado do que ele.

 

27 A Prioresa é uma personagem do Prólogo de Canterbury Tales, a obra mais famosa de Chaucer (Inglaterra, 1340-1400). A frase citada pertence a este texto. (NT)

 

— Não sei — digo eu, sem ter a certeza de qual dos lados da gravura é que eu deveria estar a tirar ensinamentos.

— Este — disse o meu pai, apontando para o menino — é o Amor.

Deixou a informação assentar.

— Não costuma estar do nosso lado. Lutamos contra ele; tentamos desfazer o que ele faz aos outros. Mas ele tem demasiado poder. Por muito que soframos, diz Virgílio, o nosso sofrimento não o demove.

Não tenho a certeza se cheguei a compreender a lição que o meu pai me estava a transmitir. Creio que captei o essencial: ao tentar que a Jenny Harlow ficasse caidinha de todo por mim, estava a medir forças com o Amor, o que, segundo dizia na própria pulseira de pechisbeque que eu tinha comprado, era inútil. Mas percebi, mesmo então, que o meu pai estava a usar a Jenny e o Julius apenas como tema para uma lição. O que ele me queria verdadeiramente transmitir era um pedaço da sabedoria a que ele tinha chegado pelo caminho mais difícil, que ele esperava que ficasse gravada em mim enquanto os danos causados pêlos meus insucessos eram ainda de pouca monta. A minha mãe tinha-me prevenido contra o amor dirigido para o objecto errado, tendo sempre presente no seu pensamento o caso amoroso do meu pai com a Hypnerotomachia e agora o meu pai estava a oferecer-me o seu contraponto, apresentado de forma codificada em Virgílio e Chaucer. Ele sabia exactamente o que ela sentia, estava ele a querer dizer, e era mesmo capaz de concordar com ela. Mas como é que ele lhe poderia pôr termo, que domínio é que ele tinha sobre a força contra a qual lutava, se o Amor consegue tudo?

Nunca cheguei a saber qual dos dois é que tinha razão. O mundo é uma Jenny Harlow, penso eu; todos nós não passamos de pescadores contando histórias sobre o peixe que nos escapou. Mas até hoje continuo sem saber como é que a Prioresa de Chaucer interpretava Virgílio ou como Virgílio interpretava o amor. O que me continua a intrigar na gravura que o meu pai me mostrou é a parte sobre a qual ele nunca me disse uma palavra, aquela onde as duas mulheres nuas observam o Amor a vencer o sátiro. Sempre me questionei sobre a razão por que Carracci colocou duas mulheres naquela ilustração, quando apenas precisava de uma. Algures por aí está a moral que eu tirei da história: na geometria do amor, tudo é triangular. Para cada Tom e Jenny existe um Julius; para cada Katie e Tom, existe um Francesco Colonna; e a língua do desejo é bifurcada, beijando ambos mas amando apenas um. O amor traça linhas entre nós como um astrónomo desenha uma constelação a partir das estrelas, ligando entre si pontos que formam planos que não têm qualquer base na natureza. O vértce de qualquer triângulo transforma-se no coração de outro, até que o tecto da realidade esteja transformado numa teia de relações amorosas. Juntando-as todas, foram o padrão de uma rede; e por trás delas está, creio eu, o Amor. O Amor é o único pescador perfeito, o que lança a rede maior, a que nenhum peixe consegue escapar. A sua recompensa é ficar sentado sozinho na taberna da vida, um eterno rapazinho no meio dos homens, esperando poder um dia contar a história daquele peixe que lhe escapou.

Corria o boato de que Katie tinha arranjado outra pessoa. Eu tinha sido substituído por um tipo do terceiro ano chamado Donald Morgan, um homem enorme e seco que usava blazer quando uma camisa era mais do que suficiente e que se gabava já de ser o sucessor do Gil como presidente de Ivy. Dei por acaso de caras com o novo casal uma noite, no fim de Fevereiro, no Small World Coffee, o lugar onde tinha conhecido há três anos o Paul e seguiu-se uma troca de cumprimentos gelada. O Donald conseguiu dizer apenas duas ou três coisas de circunstância e inócuas, antes de ter percebido que eu não era um potencial votante nas eleições para o clube e nessa altura empurrou a Katie para fora do café e para dentro do seu velho Sheby Cobra estacionado na rua.

Foi uma perfeita tortura ficar a vê-lo ligar a ignição três vezes antes de o motor se ter finalmente decidido começar a ronronar. Não sei se terá sido por mim ou pela sua vaidade, mas manteve-se imóvel durante mais um minuto até a rua estar completamente vazia e, finalmente, arrancou. O que eu notei foi que a Katie nunca olhou para mim, nem mesmo quando se afastaram; o pior é que ela parecia ignorar-me mais por raiva do que por vergonha, como se fosse por culpa minha e não dela que tínhamos chegado a este ponto. O desespero foi-me corroendo até eu decidir que não havia mais nada a fazer a não ser render-me. «Ela que fique com o Donald Morgan», pensei eu. «Deixa-a lá fazer a cama em que se há-de deitar em Ivy.»

Está claro que a Katie tinha razão. A culpa era minha. Há semanas que eu me debatia com o quarto enigma — O que é que têm em comum um escaravelho cego, uma coruja e uma águia de bico retorcido? — e sentia que a minha sorte se tinha acabado. Os animais eram uma coisa muito complicada no mundo intelectual do Renascimento. No mesmo ano em que Carracci fez a sua gravura Omnia Vincit Amor, um professor italiano chamado Ulisse Aldrovandi publicou o primeiro de catorze volumes sobre história natural. Um dos exemplos que melhor ilustra o seu método de classificação é que Aldrovandi passa apenas duas páginas a identificar as várias raças de galinhas e depois acrescenta trezentas páginas para a mitologia das galinhas, receitas relacionadas com galinhas e até tratamentos de cosmética com base em galinhas.

Entretanto, Plnio, o Velho da antiga autoridade do mundo antigo i em animis, colocou os unicórnios, basiliscos e manticores na mesma página, entre os rinocerontes e os lobos, e reproduziu as suas próprias teorias acerca de como os ovos de galinha podiam prever o sexo de uma criança antes de nascer. Depois de passar dez dias a olhar para o enigma, sentia-me como um dos golfinhos que Plínio descreve, enfeitiçado pela música humana, mas incapaz de a compor. Era evidente que Colonna pensara em qualquer coisa inteligente ao escrever este enigma; eu é que era estúpido de mais para o compreender.

Três dias depois, falhei o primeiro prazo para a entrega da minha tese e só dei por isso, quando encontrei, escondido por baixo de uma pilha de fotocópias de Aldrovani, um capítulo inacabado de Frankenstein que tinha ficado esquecido na minha secretária. O meu orientador, o Dr. Montrose, um velho e matreiro professor de Literatura, reparou nos meus olhos injectados e percebeu que eu andava atrás de qualquer coisa e, sem sequer suspeitar de que não era exactamente a Mary Shelley que me mantinha acordado noite após noite, deixou passar o prazo. O próximo passou também e assim, muito discretamente, começou o pior período do meu último ano, uma sucessão de semanas durante as quais ninguém pareceu reparar no meu abandono progressivo da minha própria vida.

Dormia durante as aulas da manhã e passava as conferências da tarde a revolver soluções de enigmas dentro da minha cabeça. Mais do que uma noite fiquei a olhar para o Paul, que interrompia os estudos mais cedo, por volta das onze, e saía com o Charlie para irem ao Hoagie Haven, comer a última sanduíche da noite. Ao princípio, pediam-me sempre para ir com eles, depois perguntavam-me se me podiam trazer alguma coisa, mas eu recusava sempre, primeiro porque me orgulhava do carácter monástico que tinha conseguido imprimir à minha vida e mais tarde porque considerava que havia algo de abandono na forma como eles pareciam ignorar o trabalho. Na noite em que o Paul resolveu ir buscar gelado com o Gil, em vez de continuar a investigação na Hypnerotomachia pensei pela primeira vez que ele não estava a fazer a parte que lhe competia na nossa sociedade.

— Perdeste a concentração — disse-lhe. Os meus olhos estavam a piorar, porque eu tinha de ler no escuro e a altura não podia ser pior.

— Eu fiz o quê? — disse o Paul, virando-se para mim, antes de subir para o seu beliche. Pensou que tinha ouvido mal.

— Quantas horas passas tu por dia a trabalhar nisto?

— Não sei. Talvez oito.

— Eu trabalhei dez, todos os dias, durante esta semana. E tu é que vais comprar gelado?

— Saí por dez minutos, Tom. E esta noite fiz imensos progressos. Qual é o problema?

— Estamos quase em Março. Dentro de um mês acaba o nosso prazo.

Ele deixou passar a questão do pronome. — Vou conseguir um prolongamento.

— Talvez devesses trabalhar mais.

Era provavelmente a primeira vez que alguém proferia tais palavras na presença do Paul. Eu já o tinha visto zangado uma vez ou outra, mas nunca desta maneira.

— Eu estou a trabalhar muito. Com quem é que pensas que estás a falar?

— Estou perto de decifrar o enigma. E tu, onde é que vais?

— Perto? — O Paul abanou a cabeça. — Tu não estás a trabalhar desta forma por estares perto. Estás a trabalhar assim, porque estás perdido. Esse enigma não devia estar a levar tanto tempo. Não devia ser assim tão difícil. Tu é que já perdeste a paciência.

Olhei para ele fixamente.

— É verdade — disse ele, como se andasse já há vários dias para dizer aquilo. — Eu já quase que acabei o trabalho com o próximo enigma e tu ainda vais no anterior. Mas eu tenho tentado manter-me fora disto. Trabalhamos conforme os nossos próprios ritmos e tu nem sequer queres a minha ajuda. Portanto, tudo bem, continua sozinho. Não tentes é atirar com as culpas para cima de mim.

Nessa noite não voltámos a falar.

Se eu lhe tivesse dado ouvidos, teria provavelmente aprendido a lição mais cedo. Em vez disso, fiz os impossíveis só para provar ao Paul que ele não tinha razão. Comecei a trabalhar até mais tarde e a acordar mais cedo, criando o hábito de pôr o despertador para quinze minutos mais cedo todos os dias, na esperança de que o Paul compreendesse a firme imposição de disciplina naquilo em que eu era mais desleixado. Todos os dias arranjava forma de passar mais tempo' na companhia de Colonna e todas as noites contabilizava as horas como um agiota a contar as moedas. Oito na segunda-feira; nove na terça-feira; dez na quarta e na quinta; quase doze na sexta-feira.    

O que é que tem em comum um escaravelho cego, uma coruja e uma águia de bico retorcido? Segundo Plínio, penduram-se escaravelhos com cornos ao pescoço das crianças como remédio contra as doenças; escaravelhos dourados fazem um mel venenoso e não sobrevivem numa localidade junto da Trácia chamada Cantharolethus; escaravelhos pretos reúnem-se em cantos escuros e encontram-se principalmente em casas de banho. Mas escaravelhos cegos?                          

Consegui economizar tempo não indo comer ao Cloister; cada viagem de ida e volta a Prospect Avenue custava-me meia hora e comer acompanhado, em vez de sozinho, custava-me provavelmente mais meia hora. Deixei de ir trabalhar para a Sala do Presidente, em Ivy, não só para evitar encontrar-me com o Paul, mas também para não perder tempo nas deslocações. Reduzi ao mínimo as chamadas telefónicas, só tomava banho e me barbeava quando era necessário, deixava o Gil e o Charlie abrir a porta e consegui estruturar uma ciência baseada na economia que conseguia produzir desistindo de todos os pequenos hábitos da minha vida.

O que é que tem em comum um escaravelho cego, uma coruja e uma águia de bico retorcido? De entre todas as criaturas que voam e não têm circulação sanguínea, escreveu Aristóteles, algumas são coleópteros, como o escaravelho; dos pássaros que conseguem voar de noite, alguns têm unhas retorcidas, como o mocho e a coruja; e com a idade, o bico superior da águia cresce gradualmente e encurva-se, de maneira que a ave acaba por morrer de fome. Mas o que é que há em comum entre os três?

Acabei por decidir que a Katie era uma causa perdida. O que quer que tivesse sido para mim, tinha-se tornado outra pessoa para Donald Morgan. Como é que era possível vê-los tanto, saindo tão pouco do meu quarto, deve ter explicação nos meus pensamentos e sonhos, onde eles apareciam constantemente fazendo figura de parvos. Nos recantos e nas alamedas, nas sombras e nas nuvens, lá estavam eles. De mãos dadas, aos beijos e com conversas apaixonadas, sempre por minha causa, para me provar que um coração frívolo se remenda com a mesma facilidade com que se parte. No meu quarto tinha ficado há uns tempos um sutiã preto da Katie, que eu nunca me lembrara de lhe devolver, e que se tornou para mim uma espécie de trofeu, um símbolo de uma parte dela que ela tinha deixado para trás e que o Donald não podia ter. Tinha visões dela nua, no meu quarto, recordações do dia em que ela se tinha sentido tão bem comigo que se esquecera de si própria, esquecera que eu era outra pessoa e abandonara as suas inibições. Conservava comigo todos os pormenores das suas formas, todas as sardas das suas costas, todos os matizes de sombras debaixo dos seus seios. Ela dançara ao som da música do meu despertador, passando uma mão pêlos cabelos, segurando com a outra microfone invisível em frente da boca e eu era o seu único público.

O que é que tem em comum um escaravelho cego, uma coruja e uma águia de bico retorcido? Todos eles voam — mas Plínio diz que por vezes os escaravelhos escavam túneis. Todos respiram — mas Aristóteles diz que os insectos não inspiram. Nunca aprendem com os seus erros, porque Aristóteles diz que muitos animais tem memória... mas nenhuma outra criatura, para além do homem, é capaz de recordar o passado voluntariamente. Mas até os homens às vezes não conseguem aprender com o passado. Por essa bitola, somos todos escaravelhos cegos e corujas.

Na quinta-feira, 4 de Março, atingi o meu recorde de tempo a trabalhar na Hypnerotomachia. Nesse dia passei catorze horas a ler extractos de seis autores de História Natural do Renascimento e escrevi vinte e uma páginas de notas, a um espaço. Não fui às aulas, comi as três refeições sentado à secretária e dormi exactamente três horas e meia nessa noite. Há semanas que não punha os olhos no Frankenstein. Os únicos pensamentos que me passavam pela cabeça eram relativos à Katie, o que me obrigava a destruir ainda mais a minha vida. Estava a viciar-me no autodomínio. Só podia ser isso, porque progressos relativamente ao enigma, era coisa que não fazia.

— Fecha os livros — disse finalmente o Charlie nessa sexta-feira à noite, impondo-se. Agarrou-me pelo colarinho e pôs-me em frente do espelho. — Olha para ti.

— Eu estou bem... — comecei a dizer, ignorando aquela coisa com ar de lobo que me fitava, de olhos vermelhos, nariz rosado e ar desleixado.

Mas o Gil pôs-se ao lado do Charlie. — Tom, tu estás com um aspecto horroroso. — Entrou no quarto, coisa que não fazia há semanas. — Ouve lá, ela quer falar contigo. Deixa de ser casmurro.

— Não sou casmurro. Só que tenho mais que fazer. O Charlie fez uma careta. — A tese do Paul, por exemplo? Franzi o sobrolho, esperando que o Paul intercedesse em meu favor. Mas ele limitou-se a ficar por trás deles, em silêncio. Há mais de uma semana que ele esperava que estivesse prestes a sair-me com uma resposta, que estivesse a fazer progressos no enigma, ainda que progressos dolorosos.                                            

— Vamos ouvir o coro, a Blair — sugeriu o Gil referindo-se a um concerto a capella que tinha lugar ao ar livre, nessa sexta-feira.    

— Nós os quatro — acrescentou o Charlie.                     O Gil fechou suavemente o livro. — A Katie vai lá estar. E eu disse-lhe que tu ias. Mas quando eu voltei a abrir o livro e disse que não ia, lembro-me da expressão que lhe atravessou o rosto. Era como se estivesse perante um Gil que eu nunca tinha visto antes — aquele Gil que ele tinha sempre guardado para Parker Hasset e para um palhaço ou outro que não tivesse a noção de quando devia parar.

— Tu vens — disse o Charlie, avançando para mim. Mas o Gil afastou-o. — Esquece. Vamos nós. E eu fiquei sozinho.

Não era a casmurrice ou o orgulho ou sequer a dedicação a Cólonna que me mantinham afastado de Blair Arch. Era o desgosto, penso eu, e o sentimento de derrota. A verdade é que eu amava a Katie e, de uma forma um pouco estranha, também amava a Hypnerotomachia e não tinha conseguido conquistar nenhuma delas. A expressão do Paul, ao sair, significava que eu tinha perdido as minhas hipóteses com o enigma, quer soubesse a solução ou não; e a expressão no rosto do Gil, ao sair, significava que eu tinha acabado de fazer o mesmo com a Katie. Olhando para uma colecção de gravuras da Hypnerotomachia — as mesmas que o Taft usara na conferência no mês anterior, as do Cupido a conduzir as mulheres para a floresta num carro em chamas — pensei na gravura de Carracci. Aqui estava eu, a ser agredido pelo menino enquanto os meus dois amores assistiam. Era isto que o meu pai queria dizer, a lição que ele esperava que eu aprendesse. As nossas ores não o comovem. O amor consegue tudo.

As duas coisas mais difíceis de contemplar na vida — tinha uma vez o Richard Curry dito ao Paul — eram o fracasso e a idade; e elas são uma e a mesma coisa. A perfeição é a consequência natural da eternidade: espera o tempo que for preciso e tudo realizará o seu potencial. O carvão transforma-se em diamante, a areia em pérolas, os gorilas em homens. Apenas não nos é dado a nós, no tempo de uma vida, ver essas transformações e é por isso que cada fracasso se transforma num aviso da morte.

Mas o amor perdido é uma forma especial de fracasso, penso eu. É um aviso de que algumas consumações, por muito que as desejemos, nunca acontecerão; de que alguns gorilas nunca se transformarão em homens, nem que para isso disponham de toda a eternidade. O que pensará um macaco, se nem com uma máquina de escrever e a eternidade pela frente conseguirá compreender Shakespeare? Ouvir a Katie dizer que queria pôr um ponto final na questão, que entre ela e eu estava tudo definitivamente acabado, iria destruir todo o meu sentido de possibilidade. Observá-la, por baixo do Blair Arch, aquecendo-se nos braços do Donald Morgan, iria arrancar todas as pérolas e diamantes do meu futuro.

E então, aconteceu: quando eu tinha descido bem ao fundo do poço da minha autocondescendência, ouvi bater à porta. Logo a seguir o manipulo rodou e, tal como acontecera centenas de vezes antes, a Katie entrou. Vi que por baixo do casaco tinha vestida a minha camisola preferida, a cor de esmeralda, que liga com os seus olhos.

— Devias estar no concerto — foi a primeira coisa que consegui dizer e, de todas as soluções a que o gorila e a sua máquina de escrever conseguissem chegar, essa era provavelmente a pior.

— Tu também — retorquiu ela, olhando-me dos pés à cabeça. Eu sabia qual era o meu aspecto. O lobo que o Charlie me tinha mostrado no espelho estava agora à sua frente.

— Por que é que estás aqui? — disse eu, lançando um olhar à porta.

— Eles não vêem. — Ela deslocou-se de modo a ficar dentro do meu campo de visão. — Eu estou aqui para me pedires desculpa.

Durante um segundo, pensei que o Gil a tinha forçado a isto, contando-lhe que eu me sentia pouco à vontade, que não sabia o que lhe havia de dizer. Mas um segundo olhar fez-me perceber que não se tratava disso, antes pelo contrário. Ela sabia que eu não tinha a mais pequena intenção de me desculpar.

— E então?

— Achas que a culpa é minha? — perguntei.

— Toda a gente acha.

— Quem é toda a gente?

— Vá lá, Tom. Pede desculpa.

Discutir com ela tinha apenas o efeito de me pôr mais em fúria comigo próprio.

— Está bem. Amo-te. Gostava que as coisas tivessem resultado. Lamento que não tenham.

— Se querias que as coisas resultassem, por que é que não fizeste por isso?

— Olha para mim — disse eu. Barba de quatro dias, cabelo por pentear. — Isto foi o que eu fiz.                                

— Isso fizeste tu pelo livro.                                      

— É a mesma coisa.                                    

— Eu sou a mesma coisa do que o livro?                    

Sim.                                                

Ela olhou fixamente para mim, como se eu tivesse acabado de cavar a minha sepultura. Mas ela sabia o que eu ia dizer só que nunca tinha aceite.

— O meu pai trabalhou toda a vida na Hypnerotomachia — disse-lhe eu. — Nunca me senti tão entusiasmado como a trabalhar neste livro. Deixo de dormir por causa dele, deixo de comer por causa dele, sonho com ele. — Dou por mim a olhar em redor, à procura de palavras. —Não sei de que outra maneira o hei-de dizer. É como ir a Battlefield ver a tua árvore. Estar ao pé dele faz-me sentir como se tudo estivesse certo, como se eu já não estivesse perdido. — Mantenho os olhos desviados dela. — E então, não serás tu para mim o mesmo do que o livro? Sim. E claro que és. Es a única coisa que para mim é igual ao livro.

Cometi um erro. Pensei que podia ficar com ambos. Enganei-me.        

— Por que é que eu estou aqui, Tom?

— Para mo atirares à cara.

— Porquê?

— Para me obrigares a pedir dês...

— Tom. — Ela calou-me com um olhar. — Por que é que eu estou aqui?

Porque sentes o mesmo que eu.

Sim.

Porque isto era demasiado importante para deixares por minha conta.

Sim.

— O que é que queres? — disse eu.

— Quero que deixes de trabalhar no livro.

— E é tudo?

— É tudo É tudo?

Agora, de súbito, a emoção.

— Deveria eu ter pena de ti, porque tu desististe de nós e decidiste armar-te em parvo e viver dentro desse livro? Idiota, passei quatro dias de estores corridos e de porta fechada. A Karen teve de telefonar aos meus pais. A minha mãe veio de New Hampshire.

— Lamento...

— Tu cala-te. Não é a tua vez de falares. Fui a Battlefield ver a minha árvore e não consegui. Não consegui, porque agora ela é a nossa árvore. Não posso ouvir música, porque todas as músicas me lembram de que as cantámos no carro, ou no meu quarto, ou aqui. Levo uma hora a preparar-me para as aulas, porque parece que ando sempre desorientada, não encontro as meias, nem consigo encontrar o meu sutiã preto preferido. O Donald está sempre a perguntar-me: «O que é que se passa, querida? O que é que se passa, querida? Não se passa nada, Donald.» Enfia os punhos nas mangas da camisola e limpa os olhos.

— Não é po... — começo de novo. Mas ainda não era a minha vez.

— Pelo menos com o Peter eu percebia o que se passava. Nós os dois, nunca funcionou, ele gostava mais do lacrosse do que de mim; eu sabia isso perfeitamente. Queria ir comigo para a cama, mas depois disso, perdeu o interesse. — Passou a mão pelo cabelo, tentando afastar as madeixas que se colavam à cara com as lágrimas. — Mas tu. Eu lutei por ti. Esperei um mês antes de te deixar beijar-me pela primeira vez. Chorei na noite em que fomos para a cama pela primeira vez, porque pensei que te iria perder. — Calou-se, ferida pela recordação. — E agora estou a perder-te por causa de um livro. Um livro. Pelo menos diz-me que não é o que eu estou a pensar, Tom. Diz-me que durante este tempo todo tens andado com uma finalista, às escondidas. Diz-me que é porque ela não faz as coisas estúpidas que eu faço, que não dança nua à tua frente como uma idiota só por pensar que gostas de a ouvir cantar, ou que não te acorda às seis da manhã para ir correr só porque quer ter a certeza, todas as manhãs, de que tu ainda não desapareceste. Diz-me qualquer coisa.

Ela olhava para mim, completamente destroçada, num estado que eu sabia que a humilhava e eu só conseguia pensar numa coisa. Houve uma noite, não muito tempo antes do acidente, em que eu acusei a minha mãe de não se preocupar com o meu pai. Se o amasse — disse-lhe eu — apoiava o trabalho dele. A expressão que lhe invadiu o rosto nesse momento, que eu nem sequer consigo descrever, disse-me que não havia no mundo nada mais indigno do que eu tinha acabado de dizer.

— Eu amo-te — disse à Katie, avançando para ela, para que ela pudesse esconder o rosto na minha camisa e tornar-se invisível por um momento. — Lamento tanto.

E foi nesse momento, penso eu, que a maré começou a mudar. O meu estado terminal, a relação amorosa que eu pensava que estava nos meus genes, começou lentamente a libertar-me. O triângulo estava a desmoronar-se. No seu lugar erguiam-se dois pontos, uma estrela binária, separada pela mais pequena distância existente.

Seguiu-se uma confusão de silêncios, povoada por todas as coisas que ela precisava de dizer, mas que sabia que não precisava de dizer por todas as coisas que eu tinha querido dizer, mas não sabia como.

— Vou dizer ao Paul — disse eu, porque era a coisa melhor e mais verdadeira que podia dizer — que vou parar de trabalhar no livro.  

Salvação. A compreensão de que eu não iria começar uma guerra, que eu tinha finalmente percebido o que era o melhor para a minha felicidade, foi o suficiente para fazer com que a Katie fizesse uma coisa que eu penso que ela estava a guardar para muito mais tarde, :

para depois de eu ter regressado, sem lugar para dúvidas. Beijou-me. E esse momento de contacto, como o raio que deu ao monstro a sua segunda vida, criou um novo começo.

Não vi o Paul nessa noite; passei-a com a Katie e acabei por o informar da minha decisão no dia seguinte, em Dod. Também ele não pareceu surpreendido. Eu tinha sofrido tanto com o Colonna que ele sentiu que eu iria atirar a toalha ao primeiro sinal. Ele tinha sido persuadido pelo Gil e pelo Charlie de que era a melhor coisa a fazer e, aparentemente, não se mostrou contrariado. Talvez ele pensasse que eu haveria de voltar. Talvez ele tivesse já suficientemente adiantado para perceber que conseguia resolver os enigmas sozinho. Fosse como fosse, quando lhe contei por fim o meu raciocínio — a lição de Jenny Harlow e da gravura de Carracci — ele pareceu concordar. Percebi pela sua expressão que conhecia melhor Carracci do que eu, mas nunca me corrigiu. O Paul, que tinha mais razões do que qualquer outra pessoa para acreditar que algumas interpretações são melhores do que outras, e que as correctas fazem toda a diferença, foi generoso perante a minha forma de ver as coisas, como sempre tinha sido. Era mais do que a sua forma de mostrar respeito, penso; era a sua forma de mostrar a amizade.

— É melhor amares alguma coisa que te consiga retribuir o amor — aconselhou-me ele.

E não precisou de dizer mais nada.

Aquilo que começara por ser a tese do Paul voltou a ser a tese do Paul. Ao princípio tudo levava a crer que ele ia conseguir fazê-la sozinho. O quarto enigma, que tinha dado cabo de mim, ele resolveu-o em três dias. Eu desconfio de que ele sempre tinha tido a ideia, mas que

não me disse nada, porque sabia que eu não queria o conselho dele. A resposta estava num livro chamado Hierogliphica, escrito por um homem chamado Horapollo, que surgiu no Renascimento italiano nos anos 1420, pretendendo ter resolvido os problemas seculares da interpretação dos hieróglifos egípcios. Horapollo, que foi considerado pêlos humanistas como uma espécie de sábio do antigo Egipto, era na realidade um erudito do século V que escreveu em grego e que provavelmente não sabia muito mais acerca de hieróglifos do que os esquimós sabem do Verão. Alguns dos símbolos na sua Hieroglíphica envolvem animais que nem sequer são egípcios. Mas mesmo assim, no meio da febre por novos conhecimentos que alastrava entre os humanistas, o texto tornou-se muito popular pelo menos em círculos restritos onde a grande popularidade e as línguas mortas não se excluíam mutuamente.

A coruja, segundo Horapollo, é o símbolo da morte, porque a coruja desce subitamente sobre os filhotes de corvo durante a noite, como a morte desce subitamente sobre o homem. Uma águia com um bico retorcido, escreveu Horapollo, significa um velho a morrer de fome, porque quando uma águia envelhece, o bico dela retorce-se e ela morre de fome. O escaravelho cego, por fim, é um glifo que significa que um homem morreu de um golpe de sol, porque um escaravelho morre quando é cego pelo sol. Por muito críptico que fosse o raciocínio de Horapollo, o Paul percebeu imediatamente que tinha encontrado a fonte correcta. E viu imediatamente o que os três animais tinham em comum: a morte. Aplicando a palavra latina para morte, mors, como cifra, produziu a quarta mensagem de Colonna.

Tu que chegaste tão longe estas na companhia dos filósofos do meu tempo, que na tua época serão talvez pó dos séculos, mas que na minha eram os gigantes da humanidade. Em breve irei colocar aos teus ombros o fardo daquilo que resta, porque há muito para contar e eu tenho cada vez mais medo de que o meu segredo se espalhe muito facilmente. Mas em primeiro lugar, por deferência para com o teu feito, vou oferecer-te o princípio da minha história, para que saibas que não te trouxe até aqui em vão.

Existe na terra dos meus irmãos um pregador que lançou uma grande pestilência sobre os apaixonados do conhecimento. Combatemo-lo com toda a nossa astúcia e influencia, mas este único homem consegue por os nossos conterrâneos contra nós. Ele brame nas praças e nos púlpitos e os homens comuns de todas as nações põem-se em pé de guerra para nos fazer mal. Como Deus, por ciúmes, deitou abaixo a torre da planície de Sinar, que os homens construíram para chegar ao céu, assim ele levanta o punho contra nós, os que tentamos algo de semelhante. Ha muito tempo, tive esperanças de que os homens desejasem libertar-se da sua ignorância da mesma forma que o escravo procura libertar-se da sua escravatura. Esta é uma condição que não favorece a nossa dignidade e é contraria à nossa natureza. Acho agora porém, que a raça humana é cobarde, uma perversão como a coruja do meu' enigma, que, apesar de poder apreciar a luz do sol, prefere a escuridão. Não' irás ouvir mais as minhas palavras, leitor, depois da conclusão da minha cripta. Ser príncipe de gente como esta, é como ser uma espécie de pedinte num castelo. Este livro será o meu único filho; que possa viver por longos anos e fazer-te proveito.

O Paul mal se deteve na sua contemplação; passou imediatamente ao quinto e último enigma, que ele descobrira enquanto eu lutava, com o quarto: Onde é que o sangue e o espírito se encontram?          

— É a mais velha questão filosófica contida no livro — disse-me ele, enquanto eu me atarefava pelo quarto, preparando-me para passar a noite com a Katie.

— O que é?

— A intersecção da mente e do corpo, a dualidade carne-espírito. Encontra-la em Santo Agostinho, em Contra Manichaeos. Encontra-la na filosofia moderna. Descartes pensou que podia situar a alma algures perto de glândula pineal, no cérebro.

Ele continuou, folheando um livro de Firestone e desbobinando filosofia, enquanto eu arrumava o meu saco.

— O que é que estás a ler? — perguntei eu, tirando o meu Paraíso Perdido da estante, para o levar comigo.

— Galeno — disse o Paul.

— Quem?

— O segundo pai da medicina ocidental, depois de Hipócrates. Eu lembrava-me. O Charlie tinha estudado Galeno na cadeira de História da Ciência. Pêlos padrões do Renascimento, contudo, Galeno não era nenhum franganote: tinha morrido mil e trezentos anos antes de a Hypnerotomachia ter sido publicada.

— Porquê? — perguntei.

— Penso que o enigma é sobre anatomia. Francesco deve ter pensado que existia realmente no corpo um órgão onde o espírito e o sangue se misturavam.

O Charlie apareceu à porta do quarto, com os restos de uma maçã na mão. — De que é que vocês estão a falar, seus amadores? — inquiriu ele, tendo ouvido termos de medicina na conversa.

— Um órgão assim — disse o Paul, ignorando-o. — A rete mirabile. — Apontou para um diagrama no livro. — Uma rede de nervos e vasos na base do cérebro. Galeno pensou que aqui é que os espíritos vitais se transformavam em animais.

— E o que é que está errado? — perguntei, verificando as horas no relógio.

— Não sei. Não funciona como cifra.

— É porque não existe nos humanos — adiantou o Charlie.

— O que é que queres dizer?

Charlie olhou para nós e deu uma última dentada na maçã. — O Galeno só dissecou animais. A rete mirabile é uma coisa que ele encontrou num boi ou num carneiro.

A expressão do Paul desvaneceu-se.

— Ele também fez uma grande trapalhada com a anatomia cardíaca — continuou o Charlie.

— O septo não existe? — disse o Paul como se soubesse ao que é que o Charlie se referia.

— Existe. Só que não tem poros.

— O que é um septo? — perguntei.

— A parede de tecido que divide o coração em duas metades. — O Charlie pega no livro do Paul e folheia-o, à procura de um diagrama do sistema circulatório. — O Galeno baralhou tudo. Disse que havia pequenos poros no septo, por onde o sangue passava entre as duas câmaras.

— E não há?

— Não — respondeu asperamente o Paul, como se estivesse a trabalhar naquilo há muito mais tempo do que eu pensava. — Mas o Mondino caiu no mesmo erro relativamente ao septo. Vesalius e Servetus descobriram-no, mas só nos meados dos anos 1500. Leonardo seguiu Galeno. Harvey só descreveu o sistema circulatório nos anos

  1. Este enigma é dos finais dos anos 1400, Charlie. Tem de ser ou a rete mirabile ou o septo. Ninguém sabia então que o ar se misturava com o sangue nos pulmões.

O Charlie riu por entre dentes. — Ninguém no mundo ocidental. Os árabes já o sabiam duzentos anos antes de esse vosso sujeito ter escrito o livro.

O Paul começou a rebuscar no meio dos papéis. Pensando que o assunto estava arrumado, voltei-me para me ir embora. — Tenho de me despachar. Até logo, gente.

Mas quando eu já ia a caminho do corredor, o Paul encontrou aquilo que procurava: o latim que ele tinha traduzido há umas semanas, o texto da terceira mensagem de Colonna.

— O médico árabe — disse ele. — O nome dele não era Ibn al-Nafis?

Charlie assentiu. — Esse mesmo.

O Paul estava excitadissimo. — O Francesco deve ter ido buscar o texto a Andrea Alpago.

— Quem?

— O homem que ele menciona na mensagem. Discípulo do venerável Ibn alNafs. — Antes que algum de nós se tivesse pronunciado, o Paul estava a falar consigo mesmo. — Como é que se diz pulmão em latim? Pulmo?

Dirigi-me para a porta.

— Não vais esperar para ver o que diz? — perguntou ele, olhando para mim.

— Combinei estar com a Katie daqui a dez minutos.

— Isto não leva mais de quinze. No máximo, trinta. Penso que só nesse momento é que ele percebeu como as coisas tinham mudado.

— Encontramo-nos amanhã de manhã, pessoal — disse eu.

O Charlie, que tinha compreendido, sorriu e desejou-me boa sorte.

Suponho que aquela foi uma noite memorável para o Paul. Compreendeu que me tinha perdido definitivamente. Sentiu também que, fosse qual fosse a mensagem final de Colonna, não poderia de forma alguma conter o segredo completo, atendendo ao pouco que tinha sido revelado nas outras quatro. A segunda metade do Hypnerotomachia que ele tinha sempre suposto que seria palha, deveria afinal conter mais texto cifrado. E, por muito que os conhecimentos médicos do Charlie tivessem animado o Paul, ou o facto de ter decifrado o quinto enigma, essa animação dissipou-se rapidamente quando viu a mensagem de Colonna e percebeu que tinha razão.

Temo por ti, leitor, da mesma forma que temo por mim. Como percebeste, foi minha intenção no início deste livro revelar-te todos os meus segredos, por muito embrulhados que eles estivessem em códigos. Desejei que chegasses àquilo que procuras e agi como teu guia.

Agora, contudo, achei que não tenho fé suficiente na minha criação para continuar desta maneira. Talvez eu não consiga julgar a verdadeira dificuldade dos enigmas aqui contidos, apesar de os seus criadores me assegurarem de que apenas um verdadeiro filósofo os poderá resolver. Talvez também esses homens sábios tenham inveja do meu segredo e me tenham enganado para poderem roubar-me aquilo que é nosso por direito. É inteligente, sem duvida, o pregador, e tem seguidores em todos os campos; temo que ele mande contra mim os meus soldados.

É portanto numa defesa para ti, leitor, que eu prossigo na minha presente direcção. Onde te habituaste a encontrar enigmas dentro dos meus capítulos, não encontrarás daqui para a frente nenhum enigma e nenhumas soluções para te orientar. Utilizarei apenas a minha Regra de Quatro durante toda a viagem de Poliphilo, mas não te fornecerei nenhuma orientação sobre a sua natureza. Só a tua inteligência te guiará a partir de agora. Possam Deus e a genialidade, amigo, conduzir-te a bom porto.

Só a confiança em si mesmo, penso eu, é que conseguiu que o Paul só viesse a sentir o seu abandono depois de terem passados muitos dias. Eu tinha-o deixado; Colonna tinha-o deixado; agora navegava sozinho. Tentou, ao princípio, voltar a envolver-me no processo. Tnhamos resolvido tanto juntos, que pensou que seria egoísmo dele deixar-me de fora na última hora. Estávamos tão perto, pensava ele;

faltava fazer tão pouco.

Depois passou-se uma semana e mais outra. Eu estava a recomeçar com a Katie, reaprendendo-a, amando-a só a ela. Tinha acontecido tanto durante as semanas em que tínhamos estado separados, que eu estava totalmente ocupado em pôr-me em dia. Alternávamos refeições no Cloister e no Ivy. Ela tinha novos amigos; ambos tínhamos novos hábitos. Havia assuntos da família dela em que eu me começava a envolver. Sentia que, logo que tivesse reconquistado completamente a sua confiança, havia coisas que ela me queria dizer.

Tudo o que o Paul tinha aprendido acerca dos enigmas do Colonna começara entretanto a cair pela base. Como um corpo cujas funções começam lentamente a deteriorar-se, a Hypnerotomachia resistia a todas as curas fiáveis. A Regra de Quatro era elusiva; Colonna não tinha dado quaisquer indicações quanto à sua origem. O Charlie, o herói do quinto enigma, acompanhou o Paul durante algumas noites, preocupado com o efeito que a minha partida poderia ter sobre ele. Nunca me pediu para o ajudar, sabendo o que o livro já me tinha feito uma vez, mas eu via a forma como ele esvoaçava em redor do Paul, como um médico a vigiar um doente cujo estado ele teme que evolua negativamente. Instalava-se uma escuridão, um desgosto de amor de um apaixonado por um livro e o Paul nada podia contra isso. Iria sofrer, sem a minha ajuda, até ao fim de semana da Páscoa.

 

                                       CAPÍTULO 19

Quando volto a Dod, revejo as fotografias da Katie no Princeton Battlefield. Eu fiz uma sequência dela, em movimento, a correr na minha direcção, com o cabelo a flutuar para trás, a boca entreaberta, as palavras gravadas nos registos da experiência que vão mais longe do que o alcance da câmara. O prazer de imaginar a sua voz é a grande alegria destas fotografias. Daqui a doze horas vou ter com ela a Ivy, para a acompanhar ao baile com que ela tem estado a sonhar quase desde que nos conhecemos e sei o que é que ela está à espera de me ouvir dizer. Que eu fiz a minha escolha e que me vou manter fiel a ela; que aprendi. Que nunca mais voltarei à Hypnerotomachia.

Quando regresso ao quarto, espero encontrar o Paul à secretária, mas o beliche dele continua vazio e os livros que estavam em cima da cómoda desapareceram. Colada com fita adesiva à porta está uma nota, em grandes letras vermelhas.

Tom,onde estás? Voltei aqui à tua procura. Descobri o 4S-10E-2N-60! Fui buscar o atlas topográfico a Firestone e depois vou para o McCosh. O Vincent diz que tem a planta. 10h15.

P.

Li de novo a mensagem, reunindo as peças. A cave de McCosh Hall é onde se situa o gabinete do Taft no campus. Mas a última linha deixa-me gelado: O Vincent diz que tem a planta. Pego no telefone e ligo o número da emergência médica. Em segundos, o Charlie está em linha.

— O que é que aconteceu, Tom?

— O Paul foi encontrar-se com o Taft.

— O quê? Eu pensava que ele ia falar com o reitor por causa do Stein.

— Temos de o encontrar. Consegues arranjar alguém para te sub...

Antes de eu acabar, um som abafado interrompe a chamada e ouço do outro lado o Charlie falar com alguém.

— Quando é que o Paul saiu? — diz ele, regressando à linha.

— Há dez minutos.

— Estou a caminho. Ainda o conseguimos apanhar.

O Volkswagen Karmann Ghia de 1973 do Charlie chega às traseiras de Dod mais de um quarto de hora depois. O velho carro parece um sapo de metal que ficou oxidado a meio de um salto. Antes de eu ter tido tempo de me baixar para me sentar no lugar do passageiro, já o Charlie meteu a marcha-atrás.

— Por que é que demoraste tanto?

— Apareceu uma jornalista quando estava já a sair — explicou. — Queria falar comigo acerca da noite passada.

— E então?

— Alguém do departamento de polícia tinha-lhe revelado o que o Taft respondeu no interrogatório. — Entramos em Elm Drive, onde pequenos montículos de neve dão ao asfalto uma superfície irregular, como a água do oceano à noite. — Não me disseste que o Taft conhecia o Curry há imenso tempo?

— Sim. Porquê?

— Porque ele disse à polícia que só tinha conhecido o Curry por intermédio do Paul.

Estamos a entrar na zona norte do campu quando vejo o Paul no pátio entre a biblioteca e o departamento de História, a dirigir-se para McCosh.

— Paul! — chamo pela janela.

— O que é que estás a fazer? — grita-lhe o Charlie, encostando ao passeio.

— Resolvi-o! — exclama o Paul, admirado por nos ver. — Resolvi tudo. Só preciso da planta. Tom, tu não vais acreditar. É a coisa mais espant...

— O quê? Diz lá.

Mas o Charlie não está a prestar atenção. — Tu não vais ter com o Taft — diz ele.

— Não estás a perceber. Está tudo resolvido... O Charlie prime a buzina, fazendo estremecer o pátio com o barulho.

— Ouve-me — interrompe o Charlie. — Paul, entra para o carro. Vamos voltar para casa.

— Ele tem razão — digo eu. — Nunca devias ter vindo aqui sozinho.

— Vou ter com o Vincent — afirma o Paul tranquilamente e começa a dirigir-se para o gabinete do Taft. — Eu sei o que estou a fazer.

O Charlie mete a marcha-atrás, mantendo-se a par do Paul. — E achas que ele vai simplesmente dar-te aquilo que queres?

— Foi ele quem me chamou, Charlie. E foi ele quem disse que o ia fazer.

— E confessou que a tinha roubado ao Curry? — pergunto eu.

— Por que é que ele te havia de dar agora a planta?

— Paul — diz o Charlie, parando o carro. — Ele não te vai dar nada.

A forma como ele o diz faz parar o Paul. O Charlie baixa a voz e conta-lhe o que lhe disse a jornalista.

— Quando na noite passada a polícia perguntou ao Taft se se lembrava de alguém que pudesse ter feito uma coisa destas ao Stein, o Taft disse que era capaz de pensar em duas pessoas.

A expressão no rosto do Paul começa a transformar-se, a excitação da descoberta começa a desvanecer-se.

— A primeira pessoa era o Curry — disse o Charlie. — A segunda, eras tu. — faz uma pausa, para enfatizar o que acaba de dizer.

— Portanto, não quero saber do que o homem te disse pelo telefone. Tens de te afastar dele.

Uma velha camioneta branca de carga desce a estrada, passando por nós, fazendo estalar a neve debaixo dos pneus.

— Então, ajudem-me — diz o Paul.

— Ajudamos. — O Charlie abre a porta. — Levamos-te para casa. O Paul enrola-se melhor no casaco. — Ajudem-me vindo comigo. Depois de ter a planta do Vincent, já não preciso mais dele. O Charlie olha espantado. — Tu estás pelo menos a ouvir-nos? Mas há aspectos da questão que o Charlie não consegue compreender. Ele não sabe o que significa o Taft ter escondido a planta durante este tempo todo.

— Estou a esta distância de a ter nas mãos, Charlie — insiste o Paul. — A única coisa que tenho de fazer é defender o que descobri. E tu dizes-me para voltar para casa?

— Ouve — começa o Charlie. — Estou apenas a dizer que temos... Mas eu interrompo. — Nós vamos contigo, Paul.

— O quê? — diz o Charlie.

— Vá, vamos lá. — Abro a porta do passageiro. Paul volta-se, sem estar à espera disto.

— Se ele vai, connosco ou sem nós — digo eu ao Charlie, entre dentes, voltando a entrar para o carro —, então eu também vou.

O Paul continua a dirigir-se para McCosh, enquanto o Charlie reconsidera.

— O Taft não pode fazer nada se formos três — digo eu. — Tu sabes isso.

O Charlie suspira profundamente, soltando no ar uma nuvem de vapor. Finalmente estaciona o carro no meio da neve e tira as chaves da ignição.

O caminho até ao gabinete do Taft leva uma eternidade, por muito que aceleremos o passo na direcção do edifício cinzento. A sala fica nas entranhas de McCosh, onde os corredores são tão estreitos e as escadas tão íngremes que temos de avançar em fila indiana. Custa a acreditar que o Taft consiga respirar aqui dentro, quanto mais deslocar-se. Mesmo eu sinto-me demasiado grande para o espaço. O Charlie deve estar a sentir-se completamente entalado.

Olho para trás, só para ter a certeza de que ele ainda aí vem. A sua presença atrás de nós, enchendo as portas e cobrindo-nos a retaguarda dá-me a confiança necessária para avançar. Agora apercebo-me daquilo que não fora capaz de admitir antes: se o Charlie não tivesse vindo connosco, eu não conseguiria continuar em frente.

O Paul conduz-nos pelo último corredor até à sala isolada, ao fundo. Como é fim-de-semana e estamos nas férias, quase todos os gabinetes estão fechados e às escuras. Só por baixo da porta branca que tem uma placa com o nome do Taft é que se vê passar o brilho de uma luz. A tinta da porta está lascada, enrolada sobre si própria nos rebordos, no ponto em que encaixa na ombreira. No fundo do painel há uma ligeira linha sem cor, a marca de uma inundação antiga, originada nos canos de vapor que ficam por baixo da cave, uma mancha que não voltou a ser pintada desde a chegada do Taft, que se perde nos tempos.

Quando o Paul levanta a mão para bater à porta, ouve-se uma voz vinda do interior. — Chegaste atrasado — protesta o Taft.

O puxador range quando o Paul o faz girar. Sinto o Charlie estremecer contra as minhas costas.

— Vá — sussurra ele, empurrando-me para a frente. Taft está sentado, sozinho, atrás de uma grande secretária antiga, enterrado num cadeirão de couro. Pendurou o casaco de tweed nas costas da cadeira e, com as mangas da camisa arregaçadas, está a rever 1 as páginas de um manuscrito, corrigindo-as com uma caneta vermelha que parece muito fina nas mãos dele.

— Por que é que eles vieram? — pergunta ele.                

— Dê-ma a planta — diz o Paul, indo direito ao assunto.      

O Taft olha para o Charlie e depois para mim. — Sentem-se — diz ele, apontando para duas cadeiras, com os seus dedos gordos.

Olho em redor, tentando ignorá-lo. O escritório diminuto está rodeado de estantes de madeira por todos os lados, cobrindo as paredes brancas. Na sua superfície vêem-se os traços que a deslocação dos livros deixou na poeira, ao serem retirados para consulta. No tapete há um trilho gasto no sítio em que o Taft passa para ir da porta até à secretária.

— Sentem-se — repete o Taft.

O Paul está prestes a recusar, quando o Charlie lhe faz um gesto na direcção da cadeira, desejoso de que nos despachemos disto.

O Taft enrola um pano na mão e limpa com ele a boca. — Tom Sullivan — declara ele, descobrindo finalmente a parecença.

Assinto, mas não digo nada. Por cima da sua cabeça, na parede, está uma velha picota, de mandíbulas abertas. O único toque de cor ou de luz na sala é o vermelho das encadernações dos livros e o dourado do rebordo das páginas.

— Deixe-o em paz — diz o Paul, inclinando-se para a frente. — Onde é que está a planta?

Surpreende-me a sua força.

O Taft emite um som de impaciência e leva uma chávena de chá aos lábios. Nos olhos dele há uma expressão desagradável, como se estivesse à espera de que um de nós começasse uma discussão. Por fim, levanta-se do cadeirão de couro, arregaça um pouco mais as mangas da camisa e dirige-se penosamente para um espaço na estante onde se encontra um cofre embutido na parede. Marca a combinação com a sua mão peluda, depois puxa o manipulo e abre a porta. Mete a mão dentro do cofre e tira um livro de notas de couro.

— É isso? — pergunta o Paul debilmente.

No entanto, quando o Taft o abre e estende uma coisa ao Paul, trata-se apenas de uma folha timbrada do Instituto, escrita e datada de há duas semanas.

— Quero que saibas em que pé é que as coisas estão — diz o Taft.

—Lê.

Quando verifico o efeito que o papel provoca no Paul, inclino-e para a frente para o ler também.

Reitor Meadow:

Na sequência da nossa conversa de 12 de Março relativa a Paul Harris, junto envio a informação adicional que solicitou. Como é do seu conhecimento, o Sr. Harris tem pedido várias extensões do prazo e mantém em grande segredo o conteúdo do seu trabalho. Foi só quando, instado por mim, ele apresentou um relatório relativo aos progressos finais, na semana passada, é que eu compreendi a razão. Junto encontrara uma cópia do meu artigo que irá em breve ser publicado, «A Revelação do Mistério: Francesco Colonna e a Hypnerotomachia Poliphili» cuja publicação está agendada para o número do Outono da Renaissance Quarterly. Junto encontrará igualmente uma cópia do relatório do Sr. Harris, para comparação. Peço o favor de me contactar em caso de dúvida.

Atentamente,

Dr. incent Taft

Ficámos sem fala.

O ogre volta-se para o Charlie e para mim. — Há trinta anos que trabalho nisto — diz ele, com uma estranha serenidade na voz.

— E agora os resultados nem trazem o meu nome. Nunca me demonstraste gratidão, Paul. Nem quando te apresentei o Steven Gelbman. Nem quando te facilitei o acesso especial à Sala de Livros Raros. Nem sequer quando te assegurei os múltiplos prolongamentos para o teu trabalho inútil. Nunca.

O Paul está demasiado estupefacto para responder.

— Não vou deixar que mo roubes — continua o Taft. — Esperei demasiado tempo.

— Eles têm os meus outros relatórios — gagueja o Paul. — Têm os registos do Bill.

— Eles nunca viram um único dos teus relatórios — diz o Taft, abrindo uma gaveta e tirando um maço de folhas. — E podes ter a certeza de que não têm os registos do Bill.

— Eles sabem que não é seu. Você não publicou nada sobre o Francesco durante os últimos vinte e cinco anos. Já nem sequer trabalha na Hypnerotomachia.

O Taft afaga a barbicha. — A Renaisaissance Quarterly já viu três esboços preliminares do meu artigo. E receberam muitas chamadas de parabéns pela minha intervenção da noite passada.

Recordando as datas das cartas do Stein, vejo como esta ideia já remonta a longa data, a meses de suspeitas entre o Stein e o Taft para ver quem é que roubaria em primeiro lugar a investigação do Paul.

— Mas ele tem as conclusões a que chegou — intervenho eu, vendo que ao Paul não lhe ocorre. — E não contou a ninguém.

Esperava uma má reacção do Taft, mas ele parece divertido. —Já a chegar a conclusões, Paul? — diz ele. — A que atribuímos esse sucesso súbito?

Ele sabe do diário.

— Você deixou o Bill descobrir — acusa-o o Paul.

— Você ainda nem sequer sabe o que é que o Paul descobriu — insisto eu.

— Quanto a ti — diz o Taft, voltando-se para mim —, tens tantas ilusões como o teu pai. Então achas que se um rapaz consegue descobrir o significado desse diário, eu não hei-de conseguir?

O Paul está desnorteado, os seus olhos chispam, percorrendo a sala.

— O meu pai achava que você era um idiota — digo eu.

— O teu pai morreu à espera de que uma Musa lhe viesse soprar ao ouvido. — Ri. — A erudição é rigor, não é inspiração. Ele nunca me deu ouvidos e veio a sofrer por isso.

— Ele tinha razão acerca desse livro. Você está errado.

Nos olhos do Taft dança o ódio. — Eu sei o que é que ele fez, rapazinho. Não tens motivos para estar assim tão orgulhoso.

Olho para o Paul, sem perceber nada, mas ele afastou-se da secretária, na direcção da estante.

O Taft inclina-se para a frente. — E poderemos censurá-lo? Falhado, desgraçado. A rejeição do livro dele foi o golpe de misericórdia.

Volto-me, atingido por um raio.

— E ainda por cima foi fazer aquilo com o próprio filho dentro do carro — continua o Taft. — Que coisa tão carregada de significado.

— Foi um acidente... — digo eu. O Taft sorri e no seu sorriso brilham mil dentes. Avanço para ele. O Charlie põe uma mão contra o meu peito, para me deter, mas eu afasto-a. O Taft ergue-se lentamente da cadeira.

— Tu é que foste o culpado do que aconteceu ao meu pai — digo eu com uma noção vaga de que estou aos berros. A mão do Charlie apoia-se de novo em mim, mas eu afasto-a, avançando até a esquina da secretária a comprimir a minha cicatriz.

O Taft sai detrás da secretária, colocando-se ao meu alcance. — Ele está a provocar-te Tom — diz tranquilamente o Paul, do outro lado da sala.

Não, a culpa foi apenas dele próprio — riposta o Taft.

E a última coisa de que me lembro, antes de o empurrar com quantas forças tinha, é do sorriso estampado na cara dele. Ele cai, desequilibrando-se sob o seu próprio peso e no chão da sala ressoa um trovão. De repente tudo parece confundir-se, as vozes que gritam, as imagens que se toldam e de novo as mãos de Charlie em cima de mim, a puxarem-me para trás.

— Anda embora — diz ele.

Tento libertar-me, mas a força do Charlie domina-me.

— Vamos embora — repete ele para o Paul, que está a olhar para o Taft estendido no chão.

Mas é demasiado tarde. O Taft equilibra-se, põe-se de pé e avança para mim.

— Afasta-te dele — diz o Charlie, estendendo uma mão na direcção do Taft.

O Taft fixa-me por cima da barreira do braço do Charlie. O Paul está à procura de qualquer coisa pela sala toda, sem se importar com eles. Finalmente, o Taft regressa a si e pega no telefone.

Pelo rosto do Charlie perpassa um lampejo de medo. — Vamos embora — diz ele, recuando. — Agora.

O Taft prime três números, que o Charlie conhece bem de mais para confundir. — Polícia — diz ele, olhando fixamente para mim. — Venham imediatamente. Estou a ser atacado no meu gabinete.

O Charlie continua a empurrar-me para a porta. — Vamos — diz ele.

Precisamente nesse momento, o Paul dispara a correr, na direcção do cofre que está aberto e tira cá para fora tudo o que estava lá dentro. Depois começa a tirar livros e papéis das estantes, arrancando encostos de livros, revolvendo tudo o que se encontra ao seu alcance. Quando já tem na mão um monte de papéis do Taft, afasta-se e corre pela porta fora, sem um olhar para o Charlie ou para mim.

Corremos atrás dele. A última coisa que ouço vinda de dentro do gabinete é a voz do Taft ao telefone, a dar os nossos nomes à polícia. A voz dele sai pela porta aberta, repercutindo-se por todo o corredor.

Corremos pelo corredor fora, para a escada que vai dar às caves escuras, quando sentimos uma lufada de ar frio sobre as nossas cabeças. Dois polícias do campus chegaram aos pés da escada do rés-do-chão, por cima de nós.

— Fiquem onde estão! — grita um deles, ao aproximar-se da estreita escada.

Paramos imediatamente.

— Polícia do campus Não se mexam!

O Paul está a olhar para o fundo do corredor, por cima do meu ombro, enquanto aperta na mão os papéis do Taft.                

— Faz o que eles estão a dizer — diz-lhe o Charlie             Mas eu sei o que é que chamou a atenção do Paul. Há uma cabina de elevador ao fundo. Lá dentro fica uma entrada para os túneis.  

— Lá em baixo não é seguro — diz entre dentes o Charlie, dirigindo-

-se ao Paul, para o impedir de correr. — Estão em obras de cons...     Os zeladores tomam o movimento por uma tentativa de fuga e um

deles corre pela escada abaixo no momento exacto em que o Paul chega à porta.

— Pára! — grita o zelador. — Não entre aí!

Mas o Paul está já à entrada, deslocando o painel de madeira para passar. Desaparece lá dentro.

O Charlie não hesita. Antes que algum dos polícias tenha tido tempo de reagir, ele já está com dois passos de avanço, correndo para a porta. Ouço um baque quando ele salta para o chão do túnel, tentando deter o Paul. Depois a sua voz, gritando o nome do Paul, vem num eco lá de baixo.

— Saiam! — grita o zelador, empurrando-me. O polícia debruça-se e volta a chamar, mas só o silêncio lhe responde.

— Chama-o... — começa o primeiro a dizer, quando um estrondo de trovão, medonho, se ergue dos túneis e a sala da caldeira ao nosso lado começa a silvar. Percebo imediatamente o que aconteceu: rebentou um cano de vapor. E agora ouço os gritos do Charlie.

Num instante, encontro-me na entrada da porta do elevador. O buraco não é mais do que escuridão profunda, portanto dou um salto no escuro. Quando toco no chão, a adrenalina percorre-me, viva como um relâmpago e a dor da queda esbate-se antes mesmo de se instalar. Faço um esforço para me levantar. O Charlie geme ao longe, conduzindo-me até ele, mesmo que o zelador grite tentando sobrepor-se a tudo. Um dos policias tem o bom senso de perceber o que se está a passar.

— Vamos chamar uma ambulância — grita para dentro do túnel. Estão a ouvir-me?

Desloco-me através de um nevoeiro denso como uma sopa. O calor é cada vez mais forte, mas a única coisa que ocupa o meu espírito é o Charlie. Com intervalos de segundos, o silvo do vapor a sair do cano abafa todos os outros sons.

Os gemidos do Charlie são agora mais distintos. Avanço com dificuldade, tentando chegar até ele. Finalmente, passando uma curva dos canos, encontro-o. Está dobrado sobre si mesmo, sem se mover. Tem as roupas rasgadas e o cabelo colado à cabeça. Na distância, enquanto espero que os meus olhos se adaptem, consigo distinguir um buraco no cano do tamanho de um barril, junto do chão.

— Hum — geme o Charlie. Não compreendo.

— Hum...

Percebo que ele está a tentar dizer o meu nome.

O peito dele está ensopado. O vapor atingiu-o mesmo no peito.

— Consegues levantar-te? — pergunto eu, tentando colocar o braço dele em redor dos meus ombros.

— Hummm... — murmura ele, e perde os sentidos. Apertando os dentes, tento levantá-lo, mas é como tentar deslocar uma montanha.

— Vamos lá, Charlie — suplico, abanando-o ligeiramente. — Não me fujas.

Mas sinto que cada vez me está a ouvir menos. Sinto-o cada vez mais um peso morto.

— Socorro! — grito eu para longe. — Por favor, ajudem! A camisa dele está em tiras no ponto em que a pressão rasgou o tecido, empapando-o até à pele. Mas consigo sentir a sua respiração.

— Mmm... — geme ele, tentando apertar a minha mão com um dedo.

Agarro-o pêlos ombros e volto a abaná-lo. Por fím, ouço passos. Um feixe de luz corta o nevoeiro e vejo um paramédico — dois — correrem na minha direcção.

Num segundo estão suficientemente perto de mim para que consiga ver os seus rostos. Mas quando os feixes das lanternas finalmente iluminam o corpo do Charlie, ouço um deles dizer «Oh, meu Deus!»

— Está ferido? — pergunta-me o outro, tacteando com as mãos o meu peito.

Eu olho para ele, sem compreender. Depois, olho para o círculo que a luz das lanternas desenha no meu estômago e percebo. A água que empapa o peito do Charlie não é água. Estou coberto com o sangue dele.

Ambos os paramédicos estão agora a ocupar-se dele, procurando reanimá-lo. Um terceiro chega e tenta deslocar-me, mas eu debato-me, porque quero ficar ao lado do Charlie. Lentamente sinto que começo a perder os sentidos. No calor e na escuridão estou a perder a noção da realidade. Umas mãos conduzem-me para fora dos túneis e vejo os dois polícias, a que se juntaram outros dois, a observarem quando a equipa da ambulância me traz para a superfície.

A última coisa de que me consigo recordar é da expressão na cara do zelador, ali de pé, vendo-me surgir da escuridão, coberto de sangue desde a cara às pontas dos dedos. Ao princípio parece aliviado, por me ver erguer do meio dos destroços. Depois a sua expressão muda e o alívio desaparece dos seus olhos, quando compreende que todo aquele sangue não me pertence.

 

                                       CAPITULO 20

Recupero os sentidos numa cama no Centro Médico de Princeton, várias horas após o acidente. O Paul está sentado ao meu lado, satisfeito por me ver acordar, e um polícia está de pé, à porta. Alguém trocou a minha roupa por uma bata de papel que range como uma fralda quando me sento. Tenho sangue debaixo das unhas, preto como terra e há no ar um cheiro familiar, qualquer coisa que me recorda o meu antigo passado hospitalar. É o cheiro de doença limpa com desinfectante. O cheiro da medicina.

— Tom? — chama o Paul.

Tento soerguer-me para olhar para ele, mas a dor atravessa-me o braço.

— Com cuidado — diz ele. — O médico diz que magoaste o ombro.

Agora, que estou mais consciente, sinto a dor por baixo das ligaduras. — O que é que vos aconteceu lá me baixo?

— Fui estúpido. Reagi por impulso. Não consegui voltar para o pé do Charlie depois da explosão. O vapor vinha todo na minha direcção, então dirigi-me à saída mais próxima e a polícia trouxe-me para aqui.

— Onde está o Charlie?

— Nas urgências. Não pode ter visitas.

A voz dele tornara-se inexpressiva. Depois de esfregar os olhos, olha para fora da porta. Uma velha passa na sua cadeira de rodas, tão rápida como um miúdo no seu carro de corridas. O polícia observa-a, mas não sorri. No chão de lajes, está uma tabuleta amarela que diz CUIDADO: SUPERFÍCIE ESCORREGADIA.

— Ele está bem? — pergunto.

O Paul mantém os olhos fixos na porta. — Não sei. O Will disse que ele estava mesmo ao lado do cano roto quando o encontraram.

— Will?

— Will Clay, o amigo do Charlie. — O Paul pousa a mão no ferro da cama. — Foi ele quem te tirou cá para fora.

Tento recordar, mas só vejo silhuetas no túnel, com os contornos iluminados pelas lanternas.

— Ele e o Charlie tinham trocado de turnos quando vocês foram à minha procura — acrescenta o Paul.

Na sua voz há uma grande tristeza. Ele culpa-se por isto tudo.

— Queres que telefone à Katie para lhe dizer que estás aqui? — pergunta ele.

Abano a cabeça, desejando estar primeiro um pouco mais firme.

— Eu depois telefono-lhe.

A velha passa de novo, na sua cadeira, e agora vejo que tem uma perna engessada, desde o joelho aos dedos do pé. Tem o cabelo em desordem e as calças enroladas até acima do joelho, mas há um brilho nos seus olhos e, quando passa pelo polícia, lança-lhe um olhar de desafio, como se tivesse quebrado a lei, em vez da perna. O Charlie contou-me uma vez que os doentes idosos por vezes até gostam de uma pequena fractura ou uma doença menor. Perdem uma batalha, mas lembra-

-lhes de que estão ainda a travar uma grande guerra. De repente sinto-me chocado pela ausência do Charlie, pelo vazio que encontro no local preciso em que se espera ouvir a sua voz.

— Deve ter perdido imenso sangue — digo eu.

O Paul fixa as mãos. No silêncio, ouço respirar com dificuldade do lado de lá do biombo que separa a minha cama da próxima. Nesse momento, entra uma médica na sala. O polícia que está à porta toca na manga da sua bata branca e ela pára. Os dois trocam entre si algumas palavras.

— Thomas? — diz ela, chegando ao pé da minha cama com um bloco e o sobrolho franzido.

—Sim?

— Eu sou a DrJansen. — Dirige-se ao outro lado da cama, para ver o meu braço. — Como se sente?

— Bem. Como é que está o Charlie?

Ela faz um pouco de força no meu ombro, apenas o suciente para me fazer contorcer. — Não sei. Continua no serviço de urgência.

Não estou suficientemente lúcido para perceber o que significa o facto de ela reconhecer o Charlie pelo primeiro nome.

— E vai ficar bem?

— Ainda é muito cedo para sabermos — diz ela, sem olhar para mim.

— Quando é que o podemos ver? — pergunta o Paul.

— Uma coisa de cada vez — diz ela, colocando uma mão entre as minhas costas e a almofada e depois erguendo-me. — Dói?

— Não.

— E assim?

Pressiona com dois dedos a minha clavícula.

— Não.

Continua a pressionar-me as costas, o cotovelo, o pulso e a cabeça. Examna-me com o estetoscópio, por uma questão de segurança, e depois senta-se. Os médicos são como jogadores. Procuram sempre a combinação certa. Os doentes são como slot machine: se forem convenientemente puxadas, talvez dêem jackpot.

— Teve sorte em não ser pior — disse ela. — Não tem fracturas, mas os tecidos moles estão lesionados. Quando o analgésico começar a perder o efeito, vai sentir. Ponha gelo duas vezes por dia, durante uma semana, e depois volte cá para voltar a ser observado.

Ela tem um cheiro a terra, uma mistura de suor e sabonete. Recordando o armazém de drogas que reuni depois do acidente, estou à espera de a ver sacar de um bloco de receitas, mas não.

— Está uma pessoa lá fora que quer falar-lhe — diz ela, entretanto.

Como ela o diz de uma forma tão descontraída, penso que estará um amigo na sala de espera — talvez o Gil, que regressou do clube. Ou até a minha mãe, que tenha vindo do Ohio. Subitamente não tenho a noção de quanto tempo terá passado desde que nos retiraram debaixo de terra.

Mas é uma cara diferente a que surge no corredor, uma cara que eu não conheço de parte alguma. Outra mulher, mas não é uma médica e, definitivamente, não é a minha mãe. É baixa e entroncada; tem uma saia preta até aos tornozelos e meias pretas e opacas. A blusa branca e o casaco vermelho dão-lhe um ar maternal, mas o que me passa primeiro pela cabeça é que seja uma administrativa da universidade.

A médica e a mulher trocam olhares e depois trocam de posições:

uma entra e a outra sai. A mulher das meias pretas pára ao lado da cama e faz um gesto para o Paul, chamando-o. Têm uma conversa em voz baixa — e depois, inesperadamente, ele pergunta-me se eu estou bem, aguarda que eu confirme e afasta-se, na companhia de outro homem que está à porta.

— Senhor Agente — pede a mulher —, importa-se de fechar a porta quando sair?                                             

Para minha surpresa, ele fecha a porta, deixando-nos a sós.       A mulher chega-se para o lado da cama, depois de ter lançado um olhar para a cama do outro lado da cortina.                      

— Como é que estás, Tom? — Senta-se na cadeira onde o Paul esteve sentado, fazendo-a desaparecer. Tem bochechas de esquilo. Quando fala, parece que estão cheias de nozes.                    

— Assim, assim — digo prudentemente. Estendo para ela o lado direito, mostrando-lhe as ligaduras.                              

— Queres que te arranje alguma coisa?

Não, obrigado.                                          

— O meu filho esteve aqui no mês passado — adianta ela distraídamente, procurando qualquer coisa no bolso do casaco. — Apendicite.

Estou quase para lhe perguntar quem ela é, quando tira do bolso do peito uma carteirinha de couro. — Tom, eu sou a Detective Gwynn. Gostava de falar contigo sobre o que se passou hoje.      

Abre a carteira, mostra-me o distintivo e volta a metê-la no bolso.

— Onde está o Paul?

— A falar com o Detective Martin. Gostava de te fazer algumas perguntas sobre o William Stein. Sabes quem era?

— Morreu a noite passada.

— Foi morto. — Ela deixa um silêncio destacar a última palavra.

— Algum dos teus colegas de quarto o conhecia?

— O Paul. Trabalhavam juntos no Instituto de Estudos Avançados.

Ela tira do bolso um bloco de notas. — Conheces o Vincent Taft?

— Mais ou menos — digo eu, pressentindo que algo de maior vulto se desenha no horizonte.

— Foste hoje ao gabinete dele?

A tensão faz-me ferver as têmporas. — Porquê?

— Andaste à luta com ele?

— Bem, não creio que se possa chamar uma luta. Ela toma notas.

— Tu e os teus amigos estiveram no museu a noite passada?

— pergunta ela, revendo uma ficha que tem na mão.

A pergunta parece poder estar carregada com mil armadilhas diferentes. Tento recordar. O Paul cobriu as mãos com os punhos da camisa quando tocou nas cartas de Stein. No escuro, ninguém pode ter visto as nossas caras.

— Não.

A detective rola os lábios, daquela forma que as mulheres fazem para espalhar o batom. Não consigo decifrar a sua linguagem corporal. Finalmente tira do dossier uma folha de papel e entrega-ma. É uma fotocópia da folha timbrada que eu e o Paul assinámos para o guarda do museu. A data e a hora estão carimbadas ao lado das entradas.

— Como é que entraram na biblioteca do museu?

— O Paul tinha o código — digo eu, desistindo. — Foi o Bill Stein que lho deu.

— A secretária do Stein fazia parte da nossa cena do crime. O que é que procuravam lá?

— Não sei.

A detective olha para mim, com um olhar simpático. — Eu acho que o teu amigo Paul — declara ela — te está a meter em mais sarilhos do que tu possas imaginar.

Espero que ela os especifique, que lhes dê um nome legal, mas nada. Em vez disso, diz: — É o teu nome que está na folha do segurança, não é? — Levanta a folha de papel, voltando a guardá-la.

— E foste tu que atacaste o Dr. Taft.

— Eu não...

— E é estranho que fosse o teu amigo Charlie a tentar ressuscitar o William Stein.

— O Charlie é paramédico...

— Mas onde é que estava o Paul Harris? Durante um momento, a fachada desaparece. Sobe uma cortina, descobrindo o olhar dela e verifico que a senhora gentil desapareceu.

— Tens de começar a tomar conta de ti, Tom. Não sei se se trata de uma ameaça ou de um aviso.

— O teu amigo Charlie está no mesmo barco — diz ela. — Se escapar desta. — Ela espera um pouco, para a frase causar efeito.

— Diz-me a verdade.

— Já disse.

— O Paul Harris saiu do auditório antes de a conferência do Dr. Taft ter chegado ao fim.

— Sim.

— E sabia onde ficava o gabinete de Stein.

— Trabalhavam juntos. Sim.

— Foi ideia dele, essa de entrarem clandestinamente no museu de arte?

— Ele tinha as chaves. Não entrámos clandestinamente.

— E foi ideia dele revistarem a secretária do Stein.

Era melhor não continuar a responder. A partir daqui não havia respostas certas.

— Ele fugiu da polícia do campus quando vocês saíram do gabinete do Dr. Taft, Tom. Porquê?

Mas ela nunca compreenderia. Nem quer. Eu sei para onde é que isto se encaminha, mas neste momento a única coisa em que consigo pensar é no que ela disse sobre o Charlie.

Se ele escapar desta.

— Ele é um estudante de 20 valores Tom. Essa é a fama dele no campus. E vem o Dr. Taft e descobre o plágio. Quem é que achas que contou ao Taft?

Tijolo a tijolo, como se se tratasse apenas de erguer um muro entre os amigos.

— O William Stein — diz ela, percebendo que desisti de a ajudar. — Imagina como o Paul se sentiu. Achas que terá ficado furioso?

Subitamente, batem à porta. Antes que algum de nós tenha podido dizer uma palavra, a porta abriu-se.

— Detective? — diz outro polícia.

— O que foi?

— Está aqui uma pessoa que lhe quer falar.

— Quem?

Ele olha para um cartão que tem na mão. — O presidente do Conselho Directivo da universidade.

A detective fica sentada por um segundo, depois levanta-se e dirige-se para a porta.

Quando ela sai, faz-se um silêncio. Passado um bom bocado, vendo que ela não volta, sento-me na cama, olhando em volta, à procura da camisa. Já tenho a minha conta de hospitais e posso perfeitamente tratar do braço sozinho. Quero ver o Charlie: quero saber o que é que eles disseram ao Paul. O meu casaco está pendurado no cabide e eu começo a deslizar muito cuidadosamente da cama.

Nesse momento, o fecho roda e a porta abre-se. A Detective Gwynn regressa.

— Podes ir-te embora — diz ela, subitamente. — Hão-de entrar em contacto contigo, do Conselho Directivo.

Não consigo imaginar o que é que poderá ter-se passado lá fora. A mulher estende-me o seu cartão e olha-me fixamente. — Mas quero que penses naquilo que eu te disse, Tom.

Acenei com a cabeça.

Parece que está com vontade de acrescentar mais alguma coisa, mas contem-se. Sem mais uma palavra, volta-se e sai.

Quando a porta se fecha, outra mão se encarrega de a abrir. Fico imóvel, esperando ver aparecer o presidente do Conselho Directivo. Mas desta vez trata-se de um rosto amigável. O Gil chegou e traz presentes. Na sua mão esquerda está exactamente o que eu ambicionava neste momento: uma muda de roupa limpa.

— Estás bem? — pergunta ele.

— Estou. O que é que se passa?

— Recebi um telefonema do Will Clay. Disse-me o que é que tinha acontecido. Como é que vai o teu ombro?

— Bem. Ele disse alguma coisa acerca do Charlie?

— Pouco.

— Está bem?

— Melhor do que quando aqui chegou.

Há qualquer coisa de estranho na forma como Gil diz isto.

— O que é que se passa? — pergunto.

— Nada — diz finalmente o Gil. — Os polícias falaram contigo?

— Sim. O Paul também. Viste-o lá fora?

— Está na sala de espera. O Richard Curry está com ele. Dou um salto para fora da cama. — Está? Porquê? O Gil encolhe os ombros, deitando um olhar para a comida do hospital. — Precisas de ajuda?

— Para quê?

— Para te vestires.

Não sei se ele está a brincar. — Acho que consigo.

Sorri quando me vê a lutar para me libertar da camisa do hospital. — Vamos saber como está o Charlie — digo eu, habituando-me de novo a usar os pés.

Mas agora ele hesita.

— O que é que se passa?

O olhar dele torna-se estranho, envergonhado e zangado ao mesmo tempo.

— Ele e eu tivemos uma grande discussão a noite passada, Tom.

— Eu sei.

— Depois de tu e o Paul terem saído. Disse-lhe coisas que não devia.

Lembro-me de como a sala estava arrumada e limpa, esta manhã. Foi então por isso que o Charlie não dormiu.

— Agora não interessa — digo eu. — Vamos saber como é que ele está.

— Neste momento acho que ele não me quer ver.

— É claro que quer.

O Gil passa um dedo pela cana do nariz e depois diz: — Os médicos não querem que ele seja incomodado, de qualquer maneira. Eu volto mais tarde.

Tira as chaves do bolso. Os seus olhos denotam uma certa tristeza. Por fim, leva a mão ao puxador.

— Liga-me para Ivy se precisares de alguma coisa — despede-se ele e, quando a porta se abre, slenciosa nas dobradiças, ele avança para o corredor.

O polícia desapareceu e até a velha da cadeira de rodas não se vê em parte alguma. Alguém retirou o aviso amarelo. Espero que o Gil olhe para trás, mas não olha. Antes de eu ter tido oportunidade de dizer o que quer que fosse, ele já virou a esquina, na direcção da porta e saiu.

O Charlie descreveu-me uma vez o efeito que, nos séculos passados, as epidemias tinham sobre as relações humanas, como as doenças levavam os homens a evitar os infectados e temer os sãos, ao ponto de pais e filhos deixarem de se sentar à mesma mesa e toda a sociedade começar a degradar-se. Não se adoece se se ficar sozinho disse-lhe eu, simpatizando com os que fugiam para as montanhas. Então o Charlie olhou para mim e em dez palavras deu-me o melhor argumento a favor dos médicos que eu jamais ouvi e que eu penso que se pode também aplicar às amizades. Talvez não, admitiu ele. Mas desa forma também não se melhora.

O sentimento que eu tive ao ver o Gil afastar-se — e que me fez pensar no que o Charlie tinha dito — é o mesmo que sinto ao entrar na sala de espera e ver o Paul sentado, sozinho: agora estamos todos sós no meio disto e para o pior. A imagem do Paul é estranha, ali, solitário, sentado no meio de uma fila de cadeiras de plástico, com a cabeça entre as mãos e a olhar para o chão. E uma atitude que ele tem sempre que está mergulhado em pensamentos profundos, inclinado, com os dedos cruzados na nuca e os cotovelos apoiados nos joelhos. Foram mais do que muitas as noites em que acordei e o vi assim, sentado à secretária, com uma caneta na mão, um velho candeeiro a iluminar as páginas do seu livro de notas.

O meu primeiro instinto, pensando nisso, é perguntar-lhe o que é que ele encontrou no diário. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, eu quero saber; quero ajudar; quero recordar-lhe a nossa velha sociedade, para que ele não se sinta só. Mas ao vê-lo assim dobrado daquela maneira, lutando consigo próprio na peugada de uma ideia, penso melhor. Tenho de pensar em como ele trabalhou como um escravo pela tese, depois de eu o ter abandonado, quantas manhãs ele veio tomar o pequeno-almoço com os olhos vermelhos, quantas noites lhe trouxemos canecas de café do WaWa. Se alguém pudesse contabilizar os sacrifícios que ele fez pelo livro do Colonna, numerá-los da forma que um prisioneiro marca os dias numa parede, eles mostrariam como tinha sido ínfima a minha contribuição. O que ele tinha procurado, nos últimos meses, era camaradagem e eu tinha-lha recusado. A única coisa que lhe posso oferecer agora é companhia.

— Olá — saúdo-o eu calmamente, aproximando-me dele.

— Tom... — diz ele, levantando-se. Os olhos dele estão congestionados.

— Estás bem? — pergunto-lhe.

Ele passa a manga pelo rosto. — Estou. E tu?

— Estou bem.

Ele olha para o meu braço.

— Vai ficar bom — asseguro-lhe eu. Antes de lhe falar no Gil, um jovem médico com uma barba rala entra na sala de espera.

— O Charlie está bem? — pergunta o Paul.

Ao observar o médico, sinto um choque tremendo, como se estivesse nos carris no momento em que o comboio se aproxima. Ele vem vestido de verde, da cor das paredes do hospital onde fiz a minha reabilitação depois do acidente. Uma cor amarga, como azeitonas amassadas com limas. O fisioterapeuta disse-me que não olhasse para baixo, que se não deixasse de olhar para os ferros que tinha na perna, nunca mais conseguiria voltar a andar. Olhe para a frente, dizia ele. Sempre para a frente. E então eu comecei a olhar para as paredes verdes.

— O seu estado é estacionário — diz o homem de verde. Estacionário, penso eu. Palavras de médico. Durante dois dias, depois de eles terem conseguido parar a hemorragia na minha perna, eu fiquei estacionário. Isso queria apenas dizer que estava a morrer um bocadinho menos depressa.

— Podemos vê-lo? — pergunta o Paul.

— Não — diz o homem. — O Charlie ainda está inconsciente. O Paul hesita, como se estável e inconsciente fossem palavras que

se excluíssem mutuamente. — E vai ficar bem?

O médico dirige-nos um olhar entre o amável e o convicto e diz:

— Penso que o pior já passou.

O Paul sorri debilmente para o homem e depois agradece. Não digo ao Paul o que aquilo significa na realidade. No serviço de urgência estão agora a lavar as mãos e a lavar o chão, aguardando que uma nova maca saia da ambulância. Para os médicos, o pior já passou. Para o Charlie está a começar.

— Graças a Deus — diz o Paul, quase para consigo.

E ao olhar para ele agora, vendo o alívio instalar-se no seu rosto, percebo uma coisa. Nunca acreditei que o Charlie morresse por causa daquilo que aconteceu lá em baixo. Nunca acreditei que pudesse acontecer.

Enquanto eu trato da minha alta, o Paul quase não fala, limita-se a murmurar qualquer coisa acerca da crueldade do que o Taft me disse no gabinete. Praticamente não há formalidades a cumprir, apenas um ou dois formulários para assinar, mostrar o cartão de identificação do campus e, enquanto eu desespero para escrever o meu nome com a mão doente, sinto que o presidente do Conselho Directivo já por ali passou, para facilitar as coisas. Pergunto-me de novo por que é que ele terá dito à polícia para nos libertar aos dois.

Depois lembro-me do que o Gil disse. — O Curry esteve cá?

— Foi-se embora mesmo antes de tu saíres. Não estava nada com bom aspecto.

— Porquê?

— Tinha o mesmo fato da noite passada.

— Ele já sabia do Bill?

—Já. Foi quase como se ele pensasse que... — O Paul deixa o pensamento no ar. — Disse: «Nós os dois compreendemo-nos, filho.»

— O que é que isso quer dizer?

— Não sei Acho que me estava a perdoar.

— Perdoar-te?

— Disse-me para não me preocupar. E que ia tudo correr bem. Estou completamente desorientado. — Como é que ele pode pensar que tu podias fazer uma coisa dessas? O que é que lhe disseste?

— Disse-lhe que não fui eu. — O Paul hesita. — Não sabia que mais havia de dizer, portanto, contei-lhe o que tinha encontrado.

— No diário?

— Não me lembrei de mais nada. Pareceu-me tão excitado. Disse-me que não conseguia dormir, que estava tão preocupado.

— Preocupado com quê?

— Comigo.

— Ouve — digo eu porque começo a sentir na sua voz até que ponto o Curry o afectou. — Ele não sabe do que está a falar.

— «Se eu soubesse o que ias fazer, teria feito as coisas doutra maneira.» Foi a última coisa que ele disse.

A minha vontade é deitar abaixo o Curry, mas tenho de pensar que o homem que disse estas coisas é o que o Paul teve de mais parecido com um pai.

— O que é que a detective te disse? — pergunta ele, mudando de assunto.

— Tentou assustar-me.

— Ela pensa o mesmo que o Richard?

— Sim. Não tentaram fazer-te admiti-lo?

— O presidente do Conselho Directivo chegou antes de eles me perguntarem e disse para eu não responder a perguntas.

— O que é que vai fazer?

— Ela disse para eu arranjar um advogado. Diz isto como se fosse mais fácil arranjar um basilisco ou um unicórnio.

— Havemos de arranjar qualquer coisa — digo-lhe eu. Depois de ter tratado da papelada da alta, saímos. À entrada está um polícia, que nos encara quando nos dirigimos para ele. No momento em que saímos do edifício, somos envolvidos por um vento frio.

Percorremos sozinhos o curto caminho até ao campus. As ruas estão vazias, o céu está a escurecer e passa por nós uma bicicleta conduzida por um entregador de pizas. Deixa atrás de si o rasto de cheiros, uma nuvem de levedura e vapor e quando o vento se levanta de novo, espalhando a neve como se fosse pó, o meu estômago protesta, lembrando-me de que estamos de novo no mundo dos vivos.

— Vem comigo à biblioteca — pede o Paul, quando nos aproximamos de Nassau Street. — Quero mostrar-te uma coisa.

Pára no cruzamento. Atrás de um pátio branco, fica Nassau Hall. Recordo-me das pernas de calças a flutuar na cúpula e do badalo do sino que não estava lá.

— Mostrar-me o quê?

As mãos do Paul estão enfiadas nos bolsos e ele caminha de cabeça baixa, contra o vento. Passamos pela Porta Fitzrandolph sem olhar para trás. Conta-se que se pode entrar no campus pela porta as vezes que se quiser, mas se sair uma vez que seja, nunca nos formaremos.

— O Vincent disse-me para nunca confiar nos amigos — diz o Paul. — Disse que os amigos são inconstantes.

Um guia turístico conduz um pequeno grupo pelo nosso caminho. Parece um grupo que vem cantar cânticos de Natal. O guia está a dizer que foi Nathaniel Fitzrandolph que deu a terra para construir Nassau Hall. Está enterrado no local em que se ergue actualmente o pátio de Holder.

— Quando o cano explodiu, fiquei sem saber o que fazer. Não percebi que o Charlie só tinha entrado nos túneis para me procurar.

Atravessamos East Pine, na direcção da biblioteca. A distância avistam-se as salas de mármore das antigas sociedades de debates. Whig, o clube Madison e Clisophic, de Aaron Burr. A voz do guia continua a chegar até nós e eu tenho a sensação crescente de que aqui sou um turista, um turista que atravessou um túnel escuro desde o dia em que chegou a Princeton, tal como fizemos pelas entranhas de Holder, rodeados por sepulturas.

— E então ouvi-te vir atrás dele. Não te preocupaste com o que estava lá em baixo. Sabias que ele estava ferido e isso foi o suficiente. O Paul olha para mim pela primeira vez.

— Ouvia-te pedir socorro, mas não via nada. Estava paralisado pelo medo. Só conseguia pensar, mas que espécie de amigo é que eu sou? Eu é que sou o amigo inconstante.

— Paul — digo eu interrompendo-o. — Não precisas de fazer isto.

Estamos no pátio de East Pine, um edifício com a forma de um claustro, no centro do qual a neve cai. Inesperadamente, sinto a presença do meu pai, como uma sombra nas paredes, porque me consciencializo de que ele percorreu estes caminhos antes de eu ter nascido e viu estes mesmos edifícios. Caminho na sua peugada sem sequer ter consciência disso, porque nenhum de nós deixou a mais pequena marca neste lugar.

O Paul volta-se, vendo que eu parei e, durante um segundo, somos as únicas coisas vivas entre estas paredes de pedra.

— Preciso — responde ele, voltando-se para mim. — Porque quando eu te disser o que encontrei no diário, tudo o mais vai parecer tão pequeno. E nem tudo o mais é assim tão pequeno.

— Diz-me só se é tão grande como nós esperávamos. Porque se for, então a sombra projectada pelo meu pai será uma sombra grande.

Olhe para a frente, ouço a voz do físioterapeuta. Sempre para a frente.

Mas então, tal como agora, estou rodeado por paredes.

— Sim — confirma o Paul, sabendo exactamente o que eu quero dizer. — Sim, é.

Há no seu rosto um brilho que me dá a verdadeira dimensão dessas três palavras e eu empolgo-me de novo, atingido por aquela sensação que tinha sonhado encontrar. Era como se o meu pai tivesse conseguido penetrar através de qualquer coisa de impensável, como se de repente ele tivesse regressado e sido reabilitado.

Não sei o que é que o Paul está a preparar para me revelar, mas a ideia de que pode ser maior do que eu imaginava é o suficiente para me provocar uma sensação que me tem faltado há muito mais tempo do que eu imaginava. Faz-me voltar a olhar em frente uma vez mais e ver realmente qualquer coisa na minha frente, qualquer coisa mais do que uma parede. Faz-me sentir esperança.

 

                                 CAPITULO 21

No caminho para Firestone, Carrie Shaw, uma aluna do terceiro ano que reconheço por termos feito uma cadeira de Literatura no ano passado, passa por nós e diz-nos olá. Ela e eu trocámos olhares através da mesa do seminário durante várias semanas, antes de eu ter conhecido a Katie. Pergunto-me o que é que terá mudado na vida dela desde então. E se ela se aperceberá de tudo o que mudou na minha.

— O meu envolvimento com a Hypnerotomachia parecia uma coisa tão acidental — diz o Paul, enquanto continuamos a dirigir-nos para a biblioteca. — Era tudo tão indirecto, tão casual. Tal como aconteceu com o teu pai.

— Teres conhecido o McBee, é o que queres dizer?

— E o Richard. E se eles nunca se tivessem conhecido? E se eles nunca tivessem sido colegas? E se eu nunca tivesse ido buscar o livro do teu pai?

— Não estaríamos aqui.

Ao princípio ele pensa que eu disse isto por dizer, depois percebe onde é que quero chegar. Sem o Curry, o McBee e O Documento Beladona, o Paul e eu nunca nos teríamos conhecido. Ter-nos-íamos cruzado pêlos caminhos do campus, da mesma forma que a Carrie e eu acabámos de nos cruzar, dizíamos olá, perguntando-nos onde é que já nos tínhamos visto, pensando vagamente que era uma pena que ao fim de quatro anos ainda houvesse tanta gente que não conhecíamos.

— Às vezes — diz ele —, pergunto a mim mesmo por que é que eu tinha de conhecer o Vincent? Por que é que tive de conhecer o Bill? Por que é que tenho de tomar sempre o caminho mais comprido para chegar onde quero?

— O que é que queres dizer?

— Viste que as direcções do capitão do porto também não vão directamente ao ponto? Quatro para sul, dez para leste, duas para norte, seis para oeste. Deslocam-se num grande círculo. Quase terminam onde começam.

Por fim compreendo a ligação: a larga curva das circunstâncias, a forma como a sua viagem com a Hypnerotomachia serpenteou no tempo e no espaço, desde os dois amigos de Princeton da época do meu pai, até aos três homens em Nova Iorque, a pai e filho em Itália e agora de novo a outros dois amigos em Princeton — tudo se assemelha ao estranho enigma de Colonna, as direcções que se enovelam sobre si próprias.

— Não achas que faz sentido que tenha sido o teu pai a levar-me a começar a estudar a Hypnerotomachia — pergunta o Paul.

Chegamos à entrada da biblioteca e abrigamo-nos da neve, enquanto o Paul abre a porta, para eu passar. Agora encontramo-nos no velho coração do campus, um lugar feito de pedras. Nos dias de Verão, quando os carros passam com as janelas abertas e os rádios a tocar alto e todos os estudantes andam de shorts e T-shirt edifícios como Firestone, a capela e Nassau Hall parecem cavernas no meio de uma metrópole. Mas quando as temperaturas baixam e a neve cai, não existe lugar mais tranquilizador.

— Na noite passada comecei a pensar — continua o Paul — que os amigos do Francesco o ajudaram a escrever os enigmas, não é verdade? Agora os nossos amigos estão a ajudar a resolve-los. Tu descobriste o primeiro. A Katie decifrou o segundo. O Charlie sabia o último. O teu pai descobriu O Documento Beladona. O Richard descobriu o diário.

Paramos no torniquete da entrada, mostrando os cartões de identificação aos guardas. Enquanto esperamos pelo elevador para o andar C, lá mesmo no subterrâneo, o Paul aponta para uma placa de metal na porta do elevador. Tem gravado um símbolo em que eu nunca tinha reparado.

— Aldine Press — digo eu, reconhecendo-o por o ter visto no velho escritório do meu pai, na nossa casa.

O impressor de Colonna, Aldus Manutius, foi buscar o seu famoso emblema do golfinho com a âncora, um dos mais célebres na história da tipografia, à Hypnerotomachia.

O Paul assente e eu percebo que isto faz parte do que ele está a tentar dizer-me. Para onde quer que ele se tenha voltado na sua espiral de quatro anos que nos leva de regresso ao início, ele sentiu sempre uma mão nas costas. Todo o seu mundo, mesmo nos pormenores mais discretos, lhe tinha estado sempre a enviar sinais, a ajudá-lo a penetrar no livro de Colonna.

As portas do elevador abrem-se e entramos.

— Como eu estava a dizer, pensei nisto tudo a noite passada — diz ele, carregando no botão para o andar C e enquanto iniciamos a descida. — Pensei em como tudo parecia fechar-se num círculo. E então, percebi.

Toca uma campainha por cima das nossas cabeças e a porta abre-se para a mais desolada paisagem da biblioteca, muitos metros abaixo da terra. As estantes que vão até ao tecto do piso C são tão compactas que parecem desenhadas para suportar o peso dos cinco andares que ficam acima de nós. Para a esquerda, ficam os Serviços de Microfilmagem, a gruta escura onde os professores e os alunos do último ano mergulham numa confusão de máquinas de microfilme, olhando de olhos semicerrados para ecrãs luminosos. O Paul começa a conduzir-me através das pilhas de livros, passando o dedo pelas lombadas empoeiradas. Percebo que ele me está a conduzir ao seu reservado.

— Há uma razão para que tudo neste livro regresse ao ponto de partida. Os inícios são a chave para a Hypnerotomachia. As primeiras letras de cada capítulo criam o acróstico de Fra Francesco Colonna. As primeiras letras dos termos de arquitectura revelam o primeiro enigma. Não se trata de uma coincidência que Francesco tenha feito tudo regressar ao início.

Vejo à distância longas filas de portas metálicas, tão encostadas umas às outras como as portas dos cacifos do liceu. As salas que elas preservam não são maiores do que armários. Mas centenas de finalistas fecham-se lá dentro durante semanas para finalizarem as suas teses em paz. O reservado do Paul, onde eu não venho há meses, fica ao fundo.

— Talvez eu estivesse apenas a ficar cansado, mas pensei: e se ele soubesse exactamente o que estava a fazer? E se fosse possível descobrir a forma de decifrar a segunda parte do livro pela simples concentração no primeiro enigma? Francesco diz que não dá soluções, mas não diz que não deixa pistas. E eu tinha as direcções do diário do capitão do porto para me ajudar.

Chegamos à frente do reservado e o Paul começa a marcar a combinação da fechadura da porta. Na pequena janela rectangular foi colada uma folha de papel negro, forte, tornando impossível ver-se lá para dentro.

— Pensava que as direcções tinham obrigatoriamente de se referir a um local físico. Como chegar de um estádio a uma cripta, medido em estádios. Até o capitão do porto pensou que as direcções eram geográficas. — Abana a cabeça. — Eu não estava a pensar como o Francesco.

O Paul abre o cadeado e empurra a porta. A pequena divisão está cheia de livros, pilhas e pilhas deles, uma versão em ponto pequeno da sala do Presidente, em Ivy. O chão está carregado de papéis de embalagens de comida. Nas paredes estão coladas folhas de papel, finíssimas, cada uma delas rabiscada com uma mensagem. Phineus, filho de Beus, não era Phineus, rei de Salmydesus, diz uma. erificar Hesíodo: Hesperethousa ou Hesperia e Arethousa — diz outra. Comprar bolachas lembra uma terceira.

Levanto uma pilha de fotocópias de uma das cadeiras que atafulham o reservado e tento sentar-me sem deitar nada abaixo.

— E então voltei aos enigmas — diz ele. — Qual era o assunto do primeiro enigma?

— Moisés. O termo latino para cornos.

— Certo. — Volta-me as costas para fechar a porta do reservado. — Era acerca de uma tradução incorrecta. Filologia, linguística histórica. Era acerca da linguagem.

Começa a procurar numa pilha de livros que se equilibram em cima da secretária. Finalmente, encontra o que procura: a História da Arte do Renascimento de Hartt.

— Por que é que tivemos sorte com o primeiro enigma? — diz ele.

— Porque eu tive aquele sonho.

— Não — corrige-me ele, encontrando a página com a escultura de Moisés por Miguel Angelo, a imagem que deu início à nossa parceria. — Tivemos sorte, porque o enigma era sobre uma questão verbal e nós estávamos à espera de qualquer coisa física. O Francesco não estava a pensar em cornos autênticos, físicos; ele estava a pensar numa palavra, uma tradução incorrecta. Tivemos sorte, porque essa tradução incorrecta se manifestou eventualmente numa forma física. O Miguel Angelo esculpiu o seu Moisés com cornos e tu lembraste-te disso. Se não fosse pela representação física, nunca teríamos descoberto a resposta linguística, mas a chave era essa: as palavras.

— Portanto, procuraste uma representação linguística das direcções.

— Exacto. Norte, Sul, Este e Oeste não são pistas fisicas. São pistas verbais. Quando analisei a segunda parte do livro, percebi que tinha razão. A palavra stadia aparece muito perto do início do primeiro capítulo. Olha — diz ele, encontrando uma folha de papel onde esteve a trabalhar em qualquer coisa.

Há duas frases escritas na página: Gil e Charlie vão ao estádio ver Princeton vs. Harvard. Tom espera pelo Paul. A Katie tira fotografias enquanto sorri sedutoramente e diz, mexendo apenas os lábios: Amo-te, Tom.

— Sedutoramente? — pergunto eu.

Não tem grande aspecto, pois não? Um pouco na linha da história do Poliphilo, meras divagações. Mas experimenta colocá-la numa quadrícula — diz ele, voltando a folha — E obténs isto:

 

[segue-se um quadro de dificil representação sem recurso ao formato imagem (nota da digitalização)]

 

Estou à espera de que me salte algo à vista imediatamente, mas não salta.

— É tudo? — pergunto.

— É tudo. Agora segue as direcções. Quatro para sul, dez para leste, dois para norte, seis para oeste. De Stadio... «do estádio». Começa com o «s» de «stadio».

Pego numa caneta de cima da secretária e experimento, descendo quatro, dez para a direita, duas para cima e seis para a esquerda.

 

[segue-se outro quadro (nota da digitalização)]

 

— As letras não estão espacejadas de modo a formar uma grelha. Como é que descobriste o que ficava exactamente para norte e para sul?

Ele assente. — Não podes, porque é muito difícil dizer que letra é que fica directamente por cima ou por baixo de outra. Tive de o fazer matematicamente e não graficamente.

Continua a surpreender-me a forma como ele consegue reunir a simplicidade e a complexidade dentro da mesma ideia.

— Vê, por exemplo, o que eu escrevi. Neste caso temos... — faz a conta — ... dezoito letras por linha, não é verdade? Se trabalhares nesta base, quer dizer que «quatro para sul» serão sempre quatro linhas directamente para baixo, o que é o mesmo do que setenta e duas letras para a direita do ponto de partida original. Usando a mesma matemática, «duas para norte» serão as mesmas trinta e seis letras para a esquerda. Desde que saibas o comprimento das linhas-

tipo do Francesco, podes fazer o cálculo matemático e utilizá-lo. Passado algum tempo, torna-se muito rápido contar as letras.

Ocorre-me que na nossa parceria a única coisa que eu jamais tivera que se pudesse comparar à velocidade de raciocínio do Paul era a minha intuição — sorte, sonhos, associações por acaso. É difícil considerar-se justo para ele que trabalhássemos os dois em pé de igualdade.

O Paul dobra a folha e deita-a para o cesto dos papéis. Durante um segundo, olha em redor do reservado, depois levanta uma pilha de livros e pede-me para a segurar, enquanto pega também ele noutra pilha. O analgésico ainda deve estar a fazer efeito, porque o meu ombro não se ressente com o peso.

— Estou espantado como é que tu descobriste isto — observo eu.

— E o que é que dizia?

— Ajuda-me a devolver estes livros às estantes, primeiro — responde ele. — Preciso de esvaziar este espaço.

— Porquê?

— Para estar a salvo.

— De quê?

Faz-me um meio sorriso. — Das multas da biblioteca? Saímos do reservado e o Paul conduz-me até um longo corredor que se perde na escuridão. Há estantes de ambos os lados, por sua vez subdivididas noutras estantes, onde sítios sem saída se ligam a outros sítios sem saída. Estamos num recanto da biblioteca tão raramente visitado que os bibliotecários mantêm as luzes apagadas, devendo os visitantes ligar os interruptores de cada estante que usam.

— Quando terminei, nem eu próprio conseguia acreditar — admite ele. — Mesmo antes de ter acabado de descodificar, já estava a tremer. Estava feito. Depois de todo este tempo, estava feito.

Pára numa das estantes mais distantes e só consigo distinguir a silhueta do seu rosto.

— E valeu a pena Tom. Eu nem sequer desconfiava do que podia estar na segunda metade do livro. Lembras-te do que vimos na carta do Bill?

— Lembro.

— A maior parte da carta era uma mentira pegada. Tu sabes que este trabalho é meu, Tom. O máximo que o Bill jamais fez foi traduzir meia dúzia de caracteres árabes. Fez algumas cópias e investigou alguns livros. Tudo o resto fui eu que fiz, sozinho.

— Eu sei — digo eu.

Por um segundo, o Paul tapa a boca com a mão.

— Não é verdade. Sem tudo o que o teu pai e o Richard descobriram, e sem tudo o que vocês decifraram... principalmente tu... eu nunca teria conseguido. Não fui eu que fiz tudo sozinho. Vocês é que me mostraram o caminho.

O Paul invoca o nome do meu pai e o do Curry como se eles fossem dois santos, dois dos mártires das gravuras da conferência do Taft. Durante um momento, sinto-me como o Sancho Pança a ouvir o Dom Quixote. Os gigantes que ele vê não passam de moinhos de vento, eu sei. E no entanto é ele quem vê claramente no escuro e eu sou o que duvida dos próprios olhos. Talvez tenha sido sempre essa a questão, penso eu: somos animais de imaginação. Só um homem que vê gigantes é que pode algum dia colocar-se aos seus ombros.

— Mas numa coisa o Bill tinha razão — declara o Paul. — Os resultados vão realmente ofuscar tudo o que se fizer em estudos históricos. Por muito tempo.

Tira a pilha de livros das minhas mãos e, subitamente, sinto-me leve. O corredor atrás de nós estende-se em direcção a uma luz lá ao longe, devida à inclinação para o exterior das alas que o ladeiam, de um lado e outro. Mesmo na escuridão, consigo ver o sorriso do Paul.

 

                             CAPITULO 22

Começamos a fazer percursos entre o reservado e as estantes, repondo dezenas de livros, a maior parte deles em estantes a que não pertencem. O Paul parece apenas preocupado em os colocar longe da vista.

— Lembras-te do que se estava a passar em Itália antes de o Hypnerotomachia ser publicado? — pergunta ele.

— Aquilo que aparece no livro turístico sobre o Vaticano. O Paul deposita mais uma pilha de livros nos meus braços e voltamos a embrenhar-nos nas trevas.

— A vida intelectual em Itália durante os tempos do Francesco passa-se toda em redor de uma única cidade — diz ele.

— Roma.

Mas o Paul abana a cabeça. — Mais pequena. Do tamanho de Princeton... do campus, não da cidade.

Vejo como ele está encantado com o que descobriu, como para ele é já uma coisa tão real.

— Nessa cidade — prossegue ele —, tens tantos intelectuais reunidos que ninguém sabe o que há-de fazer com eles. Génios. Polímatos. Pensadores que se debatem por encontrar as grandes respostas para as grandes questões. Autodidactas que ensinaram a si próprios línguas antigas que mais ninguém conhece. Filósofos que articulam pontos de vista religiosos da Bíblia com ideias dos textos gregos e romanos, o misticismo egípcio, manuscritos persas tão antigos que ninguém sabe como os datar. O supra-sumo absoluto do humanismo. Pensa nos enigmas. Professores universitários a brincarem ao Rithmomachia. Tradutores a interpretarem Horapollo. Anatomistas a reverem Galeno.

Na minha mente desenha-se a cúpula de Santa Maria dei Fiore. O meu pai costumava chamar-lhe a cidade-berço da erudição moderna. — Florença — digo eu.

— Certo. Mas isso é apenas o princípio. Seja em que disciplina for, encontras os maiores nomes da Europa. Na arquitectura tens o Brunelleschi, que traçou o trabalho de engenharia da maior cúpula de catedral feita num milhar de anos. Na escultura tens Ghiberti, que criou um conjunto de relevos tão belos que são conhecidos como as portas do paraíso. E o assistente de Ghiberti, que viria a ser o pai da escultura moderna... Donatello.

— Os pintores também não eram maus — recordo-lhe. O Paul sorri. — A maior concentração de génios na história da arte ocidental, tudo reunido nesta pequena cidade. Aplicando novas técnicas, inventando novas teorias da perspectiva, transformando a pintura de um ofício numa ciência e numa arte. Devem ter existido três dúzias, como Alberti, que teriam sido considerados de primeira classe em qualquer parte do mundo. Mas nesta cidade, são segunda escolha. E isso porque competiam com gigantes. Masaccio. Botticelli. Miguel Angelo.

À medida que as suas ideias engrandecem, aumenta a velocidade dos seus passos pelo corredor escuro.

— Queres cientistas? — diz ele. — E que tal Leonardo da Vinci? Queres políticos? Maquiavel. Poetas? Boccaccio e Dante. E muitos deles foram contemporâneos. No topo de tudo isto, tens os Medecis, uma família tão rica que se podia dar ao luxo de proteger todos os artistas e intelectuais que a cidade conseguisse produzir.

«Todos juntos, numa pequena cidade, ao mesmo tempo. Os maiores heróis da cultura de toda a história ocidental, cruzando-se uns com os outros nas ruas, tratando-se pelo nome próprio, conversando uns com os outros, trabalhando em conjunto, competindo, influenciando e estimulando-se uns aos outros para irem mais longe do que conseguiriam ir sozinhos. Tudo reunido num lugar onde a beleza e a verdade reinam, onde as famílias principais lutam umas com as outras pelo direito de patrocinar a arte mais destacada, de subsidiar os pensadores mais brilhantes, de possuir a maior biblioteca. Imagina. Tudo isso. É como um sonho. Uma coisa impossível.

Voltamos ao reservado e finalmente ele senta-se.

— E então, nos últimos anos do século XV, mesmo antes de ter sido escrita a Hypnerotomachia acontece uma coisa ainda mais espantosa. Uma coisa que todos os estudiosos do Renascimento conhecem, mas que nunca ninguém associou a esse livro. O enigma de Francesco nunca deixa de falar de um poderoso pregador na terra dos seus irmãos. Só que eu não conseguia compreender qual poderia ser a ligação.

— Pensei que Lutero só aparece em 1517. E Colonna escreveu em 1490.

— Não era Lutero — diz ele. — Nos finais dos anos de 1400, um monge dominicano foi enviado para Florença para entrar para um mosteiro chamado San Marco.

Subitamente faz-se luz no meu espírito. — Savonorola. O grande pregador evangélico, que galvanizou Florença na viragem do século, a tentar restaurar a fé na cidade a qualquer preço.

— Exacto — assente o Paul. — Savonorola é um homem de ideias fixas... as ideias mais fixas que se podem imaginar. E quando chega a Florença, começa a pregar. Diz às pessoas que o seu comportamento é perverso, que a sua arte e a sua cultura são profanas, que o governo é injusto. Diz que Deus está desagradado com eles. Diz para se arrependerem.

Abano a cabeça.

— Eu sei a impressão que faz — continua o Paul —, mas ele tem razão. Sob um certo ponto de vista, o Renascimento é um tempo sem Deus. A Igreja está corrupta. O Papa foi eleito por motivos políticos. Prospero Colonna, o tio de Francesco, morre alegadamente de gota, mas há pessoas que pensam que o Papa Alexandre o mandou envenenar, porque ele era de uma família rival. Era assim aquele mundo, onde as pessoas suspeitavam de que o Papa teria cometido um assassinato. E isso era apenas o princípio... acusavam-no também de sadismo, incesto, sei lá, tudo o que te venha à cabeça.

«Entretanto, no meio dessa vanguarda da arte e da erudição, Florença está em constante convulsão política. As várias facções enfrentam-se nas ruas, famílias proeminentes conspiram umas contra as outras para conquistar o poder, e, apesar de a cidade ser supostamente uma república, os Medicis controlam tudo. A morte é uma coisa vulgar, a extorsão e a coerção são ainda mais vulgares, a injustiça e a desigualdade são regra geral. É um lugar bastante perturbador, se pensarmos nas coisas maravilhosas que dali vieram.

«Então Savonorola chega a Florença e vê o mal para onde quer que olhe. Avisa os cidadãos da urgência de limparem as suas vidas, de deixarem de jogar, de começarem a ler a Bíblia, de ajudarem os pobres e alimentarem os famintos. Em San Marco começa a conquistar seguidores. Mesmo alguns dos mais importantes humanistas admiram-no. Apercebem-se de que ele é bastante letrado e sabe de filosofia. Pouco a pouco, Savonorola ascende.

Interrompo-o. — Pensei que isto se passava enquanto a cidade estava ainda sob o controlo dos Medcis.

O Paul abana a cabeça. — Infelizmente para eles, o seu último herdeiro, Piero, era um idiota. Não conseguia governar a cidade. As pessoas começaram a clamar por liberdade, um grito sagrado em Florença e, por fim, os Medecis foram expulsos. Lembras-te da gravura quarenta e oito? A criança no carro, a matar as duas mulheres?

— A que o Taft mostrou na conferência.

— Essa. Foi assim que o Vincent sempre a interpretou. O castigo por uma traição. Ele disse o que pensava que significava?

— Não. Deixou para o público resolver.

— Mas perguntou alguma coisa em relação à criança. Por que é que ela tem uma espada... ou qualquer coisa assim?

Vejo a imagem do Taft em frente da projecção, a sua sombra recortada no ecrã. — Por que é que ele obriga as mulheres a puxarem o carro através da floresta e depois as mata assim? — digo eu.

— A teoria do Vincent era que a figura de Cupido representava Piero, o novo herdeiro dos Médicis. Piero comportava-se como uma criança, portanto fora assim que o artista o representara. Por causa dele, os Medecis perderam o domínio de Florença e foram expulsos. Por isso as gravuras o mostram a retirar-se através da floresta.

— E então, quem são as mulheres?

— Florença e Itália, segundo o Vincent. Ao agir como uma criança, Piero destruiu ambas.

— Parece possível.

— É uma interpretação plausível — concorda o Paul, metendo a mão debaixo do tampo da secretária, à procura de qualquer coisa. — Só que não é a correcta. O Vincent recusou-se a aceitar o facto de que a regra acróstica era a chave. Ele nunca acreditou que a primeira das duas imagens é que era a importante. Teimava em ver as coisas apenas à sua maneira.

«A questão é que quando os Medecis foram expulsos, as outras famílias importantes reuniram-se para discutir um novo governo para Florença. O problema é que já ninguém confiava em ninguém. No final concordaram em deixar Savonorola ganhar uma posição de autoridade. Ele era o único homem que todos sabiam ser incorruptível.

«Assim a popularidade de Savonorola cresce ainda mais. As pessoas começam a levar à letra os seus sermões. Os lojistas começam a ler a Bíblia nas horas vagas. Os jogadores já não jogam cartas tão às claras. A bebida e a desordem parecem começar a diminuir. Porém, para Savonorola, o mal persiste. E então passa ao passo seguinte do seu programa para o progresso cívico e espiritual.

O Paul enfia mais o braço por baixo da secretária. Ouve-se o som de fita autocolante a despegar-se e a sua mão surge, com um envelope castanho. Lá dentro está um calendário que ele próprio desenhou. Quando passa as páginas, vejo marcadas com caneta vermelha festas religiosas que eu desconheço — dias de santos, celebrações religiosas — e a preto uma série de notas que não chego a perceber.

— Isto é Fevereiro de 1497 — diz ele, apontando para aquele mês —, dois anos antes de o Hypnerotomachia ter sido publicado, e a Quaresma está a aproximar-se. Naquele tempo, a tradição era a seguinte: como a Quaresma era um período de jejum e abstinência, os dias que conduziam a ela eram um período de celebração, uma enorme festa, para que as pessoas pudessem divertir-se antes de começar a Quaresma. Tal como hoje, esse período era chamado Carnaval. Como os quarenta dias da Quaresma começavam na Quarta-Feira de Cinzas, o Carnaval tinha sempre o seu apogeu no dia anterior — Terça-Feira Gorda ou Mardiz Gras.

Reconheço coisas no meio de tudo o que ele me está a dizer. O meu pai deve ter-me contado tudo isto em tempos, antes de ter desistido de me ensinar, ou de eu ter desistido de aprender com ele. Ou talvez seja o pouco que aprendi na igreja, antes de ter idade para escolher a forma de passar as minhas manhãs de domingo.

O Paul desenterra um novo diagrama. O título é FLORENÇA, 1500.

— O Carnaval em Florença era um período de grande desordem, bebedeiras, deboche. Bandos de jovens fechavam as entradas das ruas e forçavam as pessoas a pagar uma portagem para as atravessar em segurança. Depois gastavam o dinheiro em álcool e jogo.

Aponta para um espaço grande no meio do desenho.

— Quando estavam todos completamente bêbados, acampavam em redor de fogueiras na praça principal e acabavam a noite numa enorme zaragata, atirando pedras ao grupo adversário. Todos os anos havia feridos e até mortos.

Claro está que Savonorola é o mais encarniçado opositor ao Carnaval. Aos seus olhos tratava-se de um desafio à Cristandade, uma forma de levar o povo de Florença à tentação. E reconhece que existe uma força, mais poderosa do que todas as outras, que contribui para a corrupção da cidade. Essa força ensina aos homens que as autoridades pagãs podem rivalizar com a Bíblia, que a sabedoria e a beleza em coisas não cristãs podem ser adoradas. Leva os homens a acreditar que a vida humana é uma procura do conhecimento e da satisfação terrena, distraindo-os da única coisa realmente importante: a salvação. Essa força é o humanismo. E os seus maiores advogados são os principais intelectuais da cidade, os humanistas.

«É então que Savonorola tem a ideia que constituiu provavelmente a maior herança que iria deixar à história. Decide que na Terça-Feira de Entrudo, o dia culminante do Carnaval, vai encenar um gigantesco acontecimento... uma coisa que irá mostrar o progresso e a transformação da cidade, mas ao mesmo tempo recordar aos habitantes de Florença a sua vida de pecado. Deixa os bandos de jovens continuar a vaguear pela cidade, mas dá-lhes um objectivo. Diz-lhes para recolherem os objectos não cristãos de todos os bairros e trazê-los para a praça principal. Forma com esses objectos uma gigantesca pirâmide. E nesse dia, Terça-Feira de Entrudo, quando tradicionalmente os bandos da rua estariam sentados à volta de fogueiras e travando lutas entre eles, à pedrada, Savonorola manda-os acender um outro tipo de fogueira. — O Paul olha para o mapa e depois fixa os olhos em mim.

— A fogueira das vaidades — digo eu.

— Certo. Os bandos chegavam empurrando carros e carros. Traziam cartas e dados. Tabuleiros de xadrez. Sombra para os olhos, potes de carmim para os lábios, perfume, redes para o cabelo, jóias. Máscaras de Carnaval e fatos. E, o mais importante de tudo, livros pagãos. Manuscritos de escritores gregos e romanos. Esculturas e pinturas dos clássicos.

O Paul volta a meter o desenho no envelope castanho. A sua voz torna-se soturna.

— Na Terça-Feira de Entrudo, dia 7 de Fevereiro de 1497, toda a cidade vem para a rua, para ver. As narrativas dizem que a pirâmide tinha vinte metros de altura e noventa metros de perímetro de base. E tudo acabou consumido pelas chamas.

«A fogueira das vaidades torna-se um momento inesquecível da história do Renascimento. — Faz uma pausa, olhando para trás de mim, para as folhas de papel pregadas na parede. Abanam ligeiramente quando o ar entra no reservado. — Savonorola torna-se famoso. Em breve é conhecido em toda a Itália e além fronteiras. Os seus sermões são impressos e lidos em mais de seis países. E admirado e odiado. Miguel Angelo sentia-se fascinado por ele. Maquiavel considerava-o um aldrabão. Mas toda a gente tinha uma opinião e toda a gente admitia o seu poder. Toda a gente.

Vejo aonde é que ele me quer levar. — Incluindo o Francesco Colonna.

— E é aí que entra a Hypnerotomachia.

— E, portanto, um manifesto?

— De certo modo. O Francesco não podia suportar Savonorola. Para ele, Savonorola representava a pior forma de fanatismo, tudo aquilo que o Cristianismo tinha de errado. Era destrutivo. Vingativo. Recusava-se a deixar os homens usar os dotes que Deus lhes tinha dado. Francesco era um humanista, um amante da antiguidade. Ele e os primos tinham passado os anos da juventude a estudar os grandes mestres da antiga prosa e poesia. Aos trinta anos, tinha reunido uma das mais preciosas colecções de manuscritos originais de Roma.

«Muito antes da primeira fogueira, tinha coleccionado arte e livros, levando mercadores em Florença a comprar tudo o que podiam e a enviar tudo para uma das propriedades da sua família em Roma. Isto provocou uma grande ruptura entre Francesco e a sua família, porque eles achavam que ele desbaratava o dinheiro em bugigangas florentinas. Porém, à medida que Savonorola conquistava poder, Francesco tornou-se cada vez mais determinado: não podia suportar a ideia de ver a pirâmide desfazer-se em fumo, por muito que isso lhe custasse a ele ou à sua fortuna. Bustos de mármore, quadros de Botticelli, centenas de objectos de incalculável valor. E, acima de tudo, os livros. Livros raros e insubstituíveis. Ele encontrava-se no ponto diametralmente oposto do universo de Savonorola. Para ele, a maior violência no mundo era a que se praticava contra a arte, contra o conhecimento.

«No Verão de 1497, Francesco dirige-se a Florença para ver com os seus próprios olhos. E aquilo que toda a gente admira em Savonorola... a sua santidade, a sua capacidade de pensar exclusivamente na salvação... faz Francesco sentir o mais profundo ódio e temor. Vê o que Savonorola é capaz de fazer: destruir as maiores realizações do primeiro ressurgimento do conhecimento clássico desde a queda da antiga Roma. Vê a morte da arte, a morte do conhecimento, a morte do espírito clássico. E a morte do humanismo: o fim da vontade de ultrapassar fronteiras e exceder os limites, para ver a total possibilidade do pensamento.

— Foi isso que ele escreveu na segunda metade do livro? Paul volta a assentir. — Francesco escreveu tudo, todas as coisas que teve medo de dizer na primeira metade. Conta o que viu em Florença e o que temia. Que a influência de Savonorola aumentava sem cessar. Que, de um modo ou de outro, ele iria conseguir ganhar a confiança do Rei de França. Que ele tinha admiradores em toda a Alemanha e Itália. Quanto mais Francesco escreve, mais nós vemos o poder de Savonorola crescer. Ele convence-se cada vez mais que por detrás de Savonorola existem legiões de apoiantes, em todos os países da Cristandade. Este pregador escreve ele, é apenas o início de um novo

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espírito do Cristianismo. Irão surgir revoltas de pregadores fanáticos, erupções de fogueiras por toda a Itália. Ele diz que a Europa está à beira de uma revolução religiosa. E se considerarmos a aproximação da Reforma, ele tem razão. Savonorola já não irá estar presente para o ver acontecer, mas, como tu disseste, quando, uns anos mais tarde, Lutero põe de pé o seu plano, irá recordar Savonorola como um herói.

— E então Colonna previu tudo.

— Sim. E depois de ver Savonorola em pessoa, Francesco toma uma decisão: usar os seus contactos para fazer o que muito poucas pessoas em Roma, ou onde quer que fosse no mundo ocidental, poderiam ter feito. Usando uma pequena rede formada por amigos de absoluta confiança, começou a reunir uma colecção cada vez maior de obras de arte e manuscritos raros. Comunica com uma grande rede de humanistas e pintores para reunirem o maior número de tesouros, o maior número de realizações do conhecimento humano que fosse possível. Procura entre abades e bibliotecários, aristocratas e negociantes. Mercadores viajam de um lado ao outro do continente ao seu serviço. Vão às ruínas do Império Bizantino, onde a antiga sabedoria é ainda preservada. Vão às terras infiéis à procura de textos árabes. Vão a mosteiros na Alemanha, na França e no Norte. E, durante todo esse tempo, Francesco consegue manter a sua identidade em segredo, protegido pêlos amigos mais chegados e pêlos irmãos humanistas. Só eles é que sabem o que é que ele quer fazer com todos

esses tesouros.

Subitamente, lembro-me do diário do capitão do porto. O genovês, perguntando-se o que poderia ser transportado num barco tão pequeno, vindo de um porto tão obscuro. Perguntando-se por que estaria um nobre como Francesco Colonna tão interessado nele.

— Descobre obras-primas — continua o Paul. — Obras que ao longo de centenas de anos ninguém viu. Títulos que ninguém sabia que existiam. O Eudemus, o Protrepticus e o Grylius de Aristóteles. Imitações greco-romanas de Miguel Angelo. Os quarenta e dois volumes completos de Hermes Trismegisto, o profeta egípcio que se julga que foi mais velho do que Moisés. Descobre trinta e oito peças de Sófocles, doze de Eurípedes, vinte e três de Esquilo, todas elas hoje consideradas perdidas. Num único mosteiro alemão encontra tratados filosóficos de Parménides, Empédocles e Demócrito, todos eles escondidos durante séculos pêlos monges. Um observador no Adriático descobre obras do antigo pintor Apeles, o retrato de Alexandre, a Afrodite Anadiómena e a linha de Protogenes, e Francesco fica tão excitado que diz para os comprar, sem sequer se certificar de que não são falsificações. Um livreiro em Constantinopla vende-lhe os Oráculos Caldeus pelo peso em prata de um leitão... e Francesco considera-o uma pechincha, porque o autor dos oráculos, Zaratusta, o Pera, é o único profeta mais antigo do que Hermes Trismegisto. Sete capítulos de Tácito e um livro de Lívio aparecem no fim da lista de Francesco, como se fossem coisa de pouca importância. Quase que se esquece de mencionar meia dúzia de obras de Botticelli.

O Paul abana a cabeça, imaginando-o. — Em menos de dois anos, Francesco Colonna reuniu uma das maiores bibliotecas de arte e literatura antigas do mundo renascentista. Traz para o seu círculo mais íntimo dois marinheiros para comandar os seus barcos e transportar as suas cargas. Emprega os filhos de dignos membros da Academia Romana para proteger as caravanas que percorriam as estradas através da Europa. Testa os homens que suspeita de traição, registando todos os seus movimentos, para poder ir na sua peugada. Francesco sabia que só podia confiar o seu segredo a muito poucos e estava disposto a fazer fosse o que fosse para o proteger.

Neste momento impressiona-me a força extraordinária daquilo que eu e o meu pai encontrámos: um único fio solto, numa teia de comunicações entre Colonna e os seus assistentes, uma rede elaborada com o único objectivo de proteger o segredo do nobre.

— Talvez Rodrigo e Donato não tenham sido os únicos que ele testou — sugiro. — Talvez existam mais cartas beladona.

— Provavelmente — admite ele. — E quando Francesco terminou, colocou tudo o que tinha num sítio onde ninguém pensaria jamais procurar. Um lugar onde ele diz que os seus tesouros estariam a salvo dos inimigos.

«Apresenta uma petição aos membros mais velhos da família para poder dispor das grandes extensões de terra que possuíam nos arredores de Roma, sob o pretexto de montar um empreendimento muito lucrativo. Mas em vez de construir sobre a terra, no meio das florestas onde os seus antepassados costumavam caçar, ele desenha uma cripta. Um enorme subterrâneo abobadado. Apenas cinco dos seus homens conheciam a sua localização.

«Depois, quando o ano de 1498 se aproxima, Francesco toma uma decisão crucial. Em Florença, Savonorola parece ter atingido o auge da popularidade. Declara que na Terça-Feira de Entrudo irão acender uma fogueira ainda maior do que a última. Francesco relata parte do seu discurso na Hypnerotomachía. Diz que toda a Itália está ao rubro com esta nova loucura religiosa... e ele teme pêlos seus tesouros. Já gastou praticamente toda a sua fortuna e com Savonorola a conquistar um lugar no espírito da Europa ocidental, ele sente que os bens são cada vez mais difíceis de deslocar e esconder. Portanto, reúne tudo o que até então tinha coleccionado, guarda tudo na cripta e sela-a definitivamente.

Lentamente ocorre-me que um dos pormenores mais curiosos da segunda mensagem começa finalmente a fazer sentido. A minha cripta, escreveu Colonna, é um artifício incomparavelmente adequado à finalidade a que se destina, impenetrável a tudo, mas, acima de tudo, à agua. Impermeabilizou a abóbada, sabendo que de outro modo, fechadas debaixo da terra, os seus tesouros apodreceriam.

— Decide que nos dias antes de a fogueira ser acendida — continua o Paul — iria viajar até Florença. Que iria a San Marco. E, numa tentativa final para defender a sua causa, iria enfrentar Savonorola. Apelando ao amor do homem pela sabedoria, ao seu respeito pela verdade e pela beleza, Francesco irá persuadi-lo a salvar do fogo os objectos de maior valor. Iria impedir o pregador de destruir aquilo que os humanistas consideravam sagrado.

«Mas o Francesco é um realista. Depois de ter ouvido os sermões de Savonorola, ele sabe como o homem é impetuoso, como ele está convencido de que as fogueiras são uma coisa justa. Se Savonorola não concordasse com ele, Francesco sabe que lhe resta apenas uma hipótese. Ele tem de mostrar a Florença o bárbaro que, na realidade, o profeta é. Irá até à fogueira e retirará ele mesmo os objectos da pirâmide. Se mesmo assim Savonorola quiser atear o fogo, Francesco morrerá como mártir na pira, em frente de toda a cidade. Irá forçar Savonorola a ser um assassino. Só isto, diz ele, será capaz de voltar Florença contra o fanatismo... e com Florença, o resto da Europa.

— Estava disposto a morrer pela causa — digo eu, um pouco para mim próprio.

— Estava disposto a matar por ela — corrige-me o Paul. — Francesco tinha cinco amigos íntimos, humanistas, dentro da irmandade. Um deles era Terragni, o arquitecto. Dois eram irmãos na realidade, Matteo e Cesare. Os dois últimos eram Rodrigo e Donato e esses morreram por o terem traído. Ele faria fosse o que fosse para proteger aquilo em que acreditava.

Por um segundo, o pequeno espaço do reservado parece fechar-se ainda mais, os ângulos colidem entre si como fragmentos de tempo que se cruzam. Vejo de novo o meu pai, no seu escritório, a escrever o original de O Documento Beladona na velha máquina de escrever. Ele sabia exactamente o que essa carta significava; ele só não conhecia o seu contexto. Agora o Paul encontrou o seu lugar. Apesar de sentir uma satisfação súbita por tudo isto, sinto também uma grande tristeza, que se infiltra em mim à medida que o Paul continua a sua história. Quanto mais ouço acerca de Francesco Colonna, o homem desesperado que não podia confiar nem sequer nos seus amigos, mais penso no Paul, trabalhando como um escravo na Hypnerotomachia da mesma forma que Colonna fez, cada um no seu extremo de um fio no tempo, um como leitor, outro como escritor. Vincent Taft pode ter tentado envenenar o Paul contra nós, contando-lhe que os amigos eram inconstantes, mas quanto mais eu via o que o Paul tinha feito por este livro — como tinha vivido dentro dele durante anos a fio, da mesma forma que eu tinha vivido apenas uns meses — melhor o compreendia. Foi Francesco Colonna quem o fez duvidar, da mesma forma que o poderia ter feito qualquer homem vivo.

 

                                     CAPITULO 23

— Nos meses que antecedem a partida de Francesco para Florença — prossegue o Paul —, ele toma uma precaução que considera realmente infalível. Decide escrever um livro. Um livro que revelará a localização da cripta, mas só a uns raros estudiosos... não a um leigo e, acima de tudo, não aos fanáticos. Ele convenceu-se de que ninguém, a não ser um verdadeiro amante do conhecimento, a conseguiria decifrar... alguém que temesse Savonorola tanto como Francesco e que nunca permitiria que os tesouros fossem queimados. E sonha com um tempo em que o humanismo reinará de novo e a sua colecção estará a salvo.

«Portanto, termina o livro e pede a Terragni que o faça chegar, anonimamente, por correio, a Aldus. Fingindo ser mecenas do livro, ele diz que poderá pressionar Aldus a mante-lo em segredo. Não se identificará como autor, para que ninguém suspeite do que poderá conter.

«E então, com a proximidade do Carnaval, Francesco recruta o arquitecto e os dois irmãos, os únicos membros restantes do seu circulo da Academia Romana e viajam para Florença. São homens de princípios, mas Francesco compreende como a sua tarefa é difícil, portanto insiste com cada um deles para que faça o juramento de que, se necessário, morrerá na Piazza delia Signoria.

«Na noite anterior à fogueira, pede aos três amigos que se reunam a ele para uma refeição e uma oração. Eles contam histórias das suas aventuras em conjunto, das suas viagens, das coisas que fizeram nas suas vidas. Ao longo de toda essa noite, contudo, Francesco diz que vê uma sombra escura que se adensa sobre as suas cabeças. Nessa noite não dorme. Na manhã seguinte, vai encontrar-se com Savonorola.

«A partir deste ponto, todo o texto é escrito pelo arquitecto. Francesco diz que Terragni é o único homem a quem pode confiar tal tarefa. Sabendo que necessita de alguém para zelar pêlos seus interesses no caso de alguma coisa correr mal em Florença, ele deposita em Terragni um enorme voto de confiança. Entrega ao arquitecto o seu código final e pede-lhe que acrescente umpost-scrzptum, codificado nos capítulos finais, para descrever o que é que aconteceu aos seus amigos da Academia Romana. Confia a Terragni a responsabilidade de supervisionar a Hypnerotomachia depois de chegar a Aldus, para ter a certeza de que o livro é impresso. Francesco diz que teve uma visão da sua própria morte e sabe que não conseguirá realizar toda a sua tarefa. Leva consigo Terragni para registar a sua conversa com Savonorola.

«Nessa altura, Savonorola está já à sua espera na sua cela no mosteiro. O encontro foi combinado antecipadamente, portanto ambas as partes estão preparadas. Francesco, tentando ser diplomático, diz que admira Savonorola e partilha os seus objectivos, e está animado do mesmo ódio ao pecado. Cita Aristóteles na defesa da virtude.

«Savonorola responde citando Aquino, numa passagem quase idêntica. Pergunta a Francesco por que é que ele prefere uma fonte pagã a uma cristã. Francesco louva Aquino, mas diz que Aquino bebeu em Aristóteles. Savonorola perde a paciência. Cita um excerto do Evangelho segundo Paulo: Vou destruir a sabedoria dos sábios e reduzir a nada a compreensão de todos os que compreendem. Não vês como Deus mostrou a vacuidade da sabedoria humana?

«Francesco ouve-o com horror. Pergunta a Savonorola por que é que ele não acolhe a arte e a erudição, porque é que se dedica a destruí-las. Diz a Savonorola que se deviam unir contra o pecado, que a fé é a fonte da verdade e da beleza, que eles não podem ser inimigos. Mas Savonorola abana a cabeça. Diz que a verdade e a beleza se limitam a servir a fé. Quando se desviam dessa finalidade, o orgulho e o lucro levam o homem a cair em tentação.

«— E portanto — diz ele a Francesco —, nada me pode dissuadir. Há mais mal nos livros e nos quadros do que em tudo o mais que for queimado. Porque enquanto os jogos de cartas e dados podem ser um motivo de distracção para os parvos, a "sabedoria" a que te referes é a tentação dos poderosos. As maiores famílias desta cidade disputam a honra de ser vossos mecenas. Os vossos filósofos pregam aos poetas, cujas obras são lidas por toda a parte. Vocês contaminam os pintores com as vossas ideias e os quadros deles estão nas paredes dos palácios dos príncipes e os seus frescos cobrem as paredes e tectos de todas as igrejas. Vocês atingem duques e reis, porque eles se rodeiam pêlos vossos seguidores, pedindo orientação aos astrólogos e engenheiros que vos estão agradecidos, contratando os vossos eruditos para traduzirem os seus livros. Não — diz ele —, eu não deixarei que o orgulho e a cupidez continuem a governar Florença. A verdade e a beleza que vocês amam são falsos ídolos, vaidades, e só conduzirão os homens à fraqueza.

«Francesco prepara-se para sair, sabendo que é impossível conciliar a sua causa com a de Savonorola, mas num impulso final de ira, volta-se e diz a Savonorola o que pretende fazer. "— Se não acederes aos meus pedidos — diz-lhe Francesco — mostrarei ao mundo inteiro que és um louco e não um profeta. Retirarei da tua pirâmide todos os livros e quadros que conseguir, até que o fogo me consuma e as tuas mãos fiquem, assim, manchadas com o meu sangue. E o mundo voltar-se-á contra ti.

«Prepara-se de novo para sair, quando Savonorola diz uma coisa que Francesco nunca esperou ouvir. "— Nada me fará mudar de opinião — diz ele —, mas se estás disposto a morrer pelas tuas convicções, então concedo-te todo o meu respeito e considero-te meu filho. Qualquer causa que seja verdadeira aos olhos de Deus renascerá e qualquer mártir que seja fiel a uma causa sagrada erguer-se-á das próprias cinzas e será conduzido para o céu. Não desejo ver morrer um homem de tais convicções, mas os homens que tu representas, aqueles que são donos dos objectos que tu pretendes salvar, são apenas movidos pela ganância e pela vaidade. Nunca aceitarão a vontade de Deus, a não ser pela força. Por vezes é desígnio de Deus sacrificar os inocentes para testar os fiéis e talvez seja este um dos casos.

«Francesco está a pensar em responder, em argumentar que o conhecimento e a beleza nunca deveriam ser sacrificados para salvar as almas de corruptos, quando pensa nos seus próprios homens, Donato e Rodrigo, e percebe a verdade daquilo que Savonorola diz. Compreende que a vaidade e a avareza existem, mesmo entre os humanistas e compreende que não há solução. Savonorola pede-lhe que abandone o mosteiro, porque os monges têm de se preparar para a cerimónia e Francesco obedece.

«Quando regressa para junto dos seus homens com as notícias, eles começam a preparar-se para os seus actos finais. Os quatro homens, Francesco e Terragni, Matteo e Cesare, dirigem-se à Piazza delia Signoria. Enquanto os assistentes de Savonorola preparam o fogo, Francesco, Matteo e Cesare começam a tirar textos e quadros da pirâmide, tal como Francesco prometeu. Terragni observa e tira notas. Os assistentes perguntam a Savonorola se devem interromper os preparativos, mas ele diz-lhes para continuarem. Quando Francesco e os irmãos fazem repetidamente o mesmo percurso, transportando braçados de livros e colocando-os numa pilha a uma distância segura Savonorola avisa-os de que o fogo vai ser acendido. Anuncia que, se continuarem, morrerão nas chamas. Os três homens ignoram-no.

«A cidade toda está já reunida na praça, à espera de ver o fogo. A multidão canta. As chamas começam pela base da pirâmide e crescem. Francesco e os dois irmãos continuam as suas viagens. A medida que o fogo aquece, enrolam panos em volta da boca, para evitarem respirar o fumo. sam luvas para proteger as mãos, mas o fogo queima através delas. A terceira ou quarta viagem, os seus rostos estão negros do fumo. As mãos e os pés estão negros de remexerem no fogo. Os homens sentem que a morte se aproxima e, nesse momento, escreve o arquitecto, eles compreendem a glória dos mártires.

«A medida que a pilha cresce, Savonorola ordena a um monge com um carro de mão que devolva os objectos às chamas. Assim que os homens deixam cair os livros e os quadros, o monge reúne-os e leva-os de regresso. Após seis ou sete viagens, tudo o que Francesco salvou do fogo está já nas chamas. Matteo e Cesare desistiram já dos quadros, porque as telas estão destruídas. Os três sacodem com as mãos as chamas das capas dos livros, para que as páginas não se queimem. Um deles começa a gritar em agonia, clamando por Deus.

«Mas agora não resta qualquer esperança de salvar o que quer que seja. Todas as obras de arte da pirâmide estão destruídas, quase todos os livros estão irremediavelmente queimados. O monge do carrinho de mão está ainda a transportar de volta para a fogueira tudo o que se encontrava na pilha. Cada uma das suas viagens desfaz o que os três acabaram de fazer. Lentamente o silêncio instala-se entre a multidão. Os assobios e apupos calam-se. As pessoas que gritaram a Francesco, chamando-lhe louco por tentar salvar os livros, estão agora em silêncio. Algumas gritam para os homens pararem. Mas eles continuam as suas viagens, para a frente e para trás, enfiando os braços nas chamas, pisando as cinzas, desaparecendo durante segundos para reaparecerem. Neste momento, o som mais alto que se ouve na praça é o rugir do fogo. Os três homens arfam. Inspiraram demasiado fumo para conseguirem gritar. De cada vez que eles voltam à pilha, diz o arquitecto, vê-se a carne viva das suas mãos e pés, nos sítios onde o fogo já arrancou a pele.

«O primeiro a cair nas cinzas, de rosto para baixo, é Matteo, o mais novo. Cesare pára para o ajudar, mas Francesco afasta-o. Matteo não se mexe. O fogo envolve-o e o corpo dele funde-se na pirâmide. Cesare tenta chamá-lo, grita-lhe que se levante, mas Matteo não responde. Por fim, Cesare corre para o local em que o irmão caiu. Quando está já perto do corpo de Matteo, também ele cai. Francesco observa tudo isto ao lado da fogueira. Quando ouve a voz de Cesare chamando por Matteo e depois a ouve sumir-se até desaparecer, então percebe que está sozinho e deixa-se cair de joelhos. Durante um segundo não se mexe.

«Quando a multidão pensa que está morto, faz um esforço e levanta-se de novo. Entra pela última vez dentro da fogueira, pega em dois punhados de cinza e dirige-se para Savonorola. Um dos assistentes de Savonorola avança para lhe barrar a passagem, mas Francesco pára. Abre os dedos e deixa cair as cinzas entre eles, como se fosse areia. Depois diz: Inde ferunt, totidem qui vivere debeat amos, corpore de pátrio parvum phoenica renasci. E de Ovídio. Significa: "Uma pequena fénix nasceu de novo do corpo de seu pai, destinada a viver o mesmo número de anos." Depois cai aos pés de Savonorola e morre.

«A narrativa de Terragni acaba com o funeral de Colonna. Francesco e os dois irmãos têm honras de funerais quase imperiais por parte das famílias e dos humanistas amigos. E sabemos que o seu martírio resultou. Dentro de semanas a opinião pública relativamente a Savonorola altera-se. Florença está cansada do seu extremismo, das suas permanentes trevas e maldição. Inimigos espalham rumores a seu respeito, tentando provocar a sua queda. O Papa Alexandre excomunga-o. Quando Savonorola resiste, Alexandre considera-o culpado de heresia e de incitar à sedição. É condenado à morte. No dia vinte e três de Maio, três meses apenas após Francesco ter morrido nas chamas, Florença acende uma nova pira na Piazza delia Signoria. Aqui, no exacto lugar das duas fogueiras, enforcam Savonorola e queimam o corpo numa fogueira.

— O que é que aconteceu a Terragni? — pergunto.

— A única coisa que sabemos é que honrou a promessa feita a Francesco. A Hypnerotomachia foi publicado pelo Aldus no ano seguinte, 1499.

Levanto-me da cadeira, demasiado excitado para me manter sentado.

— Desde então — diz o Paul —, toda a gente que tem tentado interpretá-lo tem sido como se utilizasse ferramentas do século XIX ou XX para abrir uma fechadura do século XV. — Encosta-se para trás na cadeira e respira fundo. — Até agora.

Cala-se, sem fôlego, e fica em silêncio. Ouvem-se passos no corredor, abafados pela porta. Olho para ele, estupefacto. Lentamente, a realidade, o autêntico lá fora, começa a regressar, devolvendo Savonorola e Francesco Colonna a uma estante na minha memória. Mas uma interacção desconfortável entre os dois mundos permanece no ar. Olho para o Paul e compreendo que, de certa forma, ele se tornou o ponto de intersecção entre eles, a ligação do tempo consigo próprio.

— Não consigo acreditar — digo-lhe.

O meu pai devia estar aqui. O meu pai, Richard Curry e McBee. Todos aqueles que souberam alguma vez da existência deste livro e que sacrificaram alguma coisa para o decifrarem. Isto é uma prenda para todos eles.

— O Francesco dá indicações para chegar à cripta a partir de três pontos de referência diferentes — diz o Paul. — Não vai ser difícil encontrar a localização. Dá mesmo as dimensões e a lista de tudo o que contém. A única coisa que falta é o plano do fecho da cripta. Terragni desenhou um fecho especial cilíndrico para a entrada. É tão hermético, diz o Francesco, que manterá à distância os ladrões e a humidade durante tanto tempo quanto o necessário para alguém decifrar este livro. Ele continua a dizer que vai dar o plano da fechadura e as instruções, mas distrai-se sempre, a falar de Savonorola. Talvez Prancesco tivesse dito a Terragni para o incluir nos capítulos finais, mas Terragni tinha tantas coisas com que se preocupar que não o fez.

— E era disso que andavas à procura no escritório do Taft? O Paul acena afirmativamente. — O Richard afirma que havia um plano dentro do diário do capitão do porto, quando ele o encontrou, há trinta anos. Eu acho que o Vincent ficou com ele quando permitiu que o Bill encontrasse o resto do diário.

— Recuperaste-o?

Ele abana a cabeça. — A única coisa que consegui foi um monte de velhos apontamentos do Vincent.

— E então, o que é que vais fazer? — pergunto. O Paul começa a retirar mais qualquer coisa debaixo da mesa. — Estou à mercê do Vincent.

— Até aonde é que lhe contaste?

Quando as suas mãos reaparecem, estão vazias. Perdendo a paciência, ele desvia para trás a cadeira e ajoelha-se. — Ele não conhece pormenores sobre a cripta. Só sabe que existe.

Vejo que no chão há marcas, sulcos que traçam um quarto de círculo debaixo dos pés metálicos da secretária.

— A noite passada comecei a fazer um mapa de tudo o que o Prancesco diz acerca da cripta na segunda parte do Hypnerotomachia. A localização, as dimensões, os pontos de referência. Eu sabia que o Vincent podia aparecer por aí, à procura do que eu tinha descoberto, portanto guardei o mapa no sítio onde costumava guardar o melhor do trabalho que aqui fiz.

Ouve-se um toque de metal contra metal e, do canto mais afastado da parte de baixo da secretária, o Paul tira uma chave de parafusos. A tira de fita adesiva que a segurava à parte de baixo da secretária pende da sua mão, como uma erva daninha. Arranca a fita e depois roda a secretária na nossa direcção. As pernas dianteiras arrastam-se ao longo das marcas no chão de ladrilho e subitamente a conduta da ventilação fica à vista. Quatro parafusos seguram a grelha à parede. A tinta que cobria todos eles foi raspada.

O Paul começa a desaparafusar a grelha. Um canto de cada vez e o respiradouro fica destapado. Enfia o braço na conduta e, quando tira a mão, traz um envelope cheio de papéis. O meu primeiro instinto é olhar para a porta do reservado, para me certificar de que não está ninguém a ver-nos. Agora compreendo por que é que está coberta com uma folha de papel preto.

O Paul abre o envelope. Primeiro tira duas fotografias, já gastas de tanto serem manuseadas. A primeira é de Paul e Richard Curry em Itália. Estão no meio da Piazza delia Signoria em Florença, mesmo em frente da Fonte de Neptuno. Ao fundo, desfocada, a cópia do David de Miguel Angelo. O Paul está de shorts e mochila às costas; Richard Curry está de fato, mas com a gravata alargada e o colarinho da camisa desapertado. Estão ambos a sorrir.

A segunda fotografia é de nós os quatro, no segundo ano. O Paul está de joelhos, no meio da fotografia, com uma gravata emprestada e segurando uma medalha. Nós os três estamos em volta dele, e, atrás, estão dois professores, que parecem divertidos. O Paul acabara de ganhar o concurso anual de ensaio da Sociedade Francófila de Princeton. Nós aparecemos mascarados de figuras da história de França, para o apoiar. Eu sou o Robespierre, Gil é o Napoleão e o Charlie, co um enorme vestido que arranjámos numa loja de disfarces, é a Maria Antonieta.

Paul parece nem reparar nas fotografias, pousando-as delicadamente em cima da secretária, como se estivesse habituadíssimo a vê-las. Então esvazia o resto do envelope. O que eu pensei que era um monte de papéis é na realidade uma única folha, dobrada várias vezes para caber dentro do envelope.

— Cá está — diz ele, desdobrando-a sobre o tampo da secretária.

Ali, com todos os pormenores, está um mapa topológico desenhado à mão. As linhas de elevação descrevem círculos desiguais e o esboço da sinalização das direcções forma uma leve quadrícula. Perto do centro, assinalado a vermelho, está um objecto angular com o feitio de uma cruz. Segundo a escala representada ao canto, é mais ou menos do tamanho de uma residência de estudantes.

— É isso? — pergunto. Ele assente.

É gigantesco. Durante um segundo, ficamos ambos em silêncio tentando assimilar.

— O que é que vais fazer com o mapa? — pergunto eu, vendo que o esconderijo está vazio.

O Paul abre a mão. Os quatro pequenos parafusos da conduta de ventilação rolam como sementes, — Colocá-lo num local seguro.

— Na parede outra vez?

— Não.

Inclina-se para voltar a aparafusar a grelha e parece que subitamente a calma o invadiu. Quando se levanta e começa a arrancar as folhas das paredes, as mensagens vão desaparecendo, uma após a outra. Reis e monstros, nomes antigos, notas que ele nunca tinha tido a intenção de mostrar a quem quer que fosse.

— Então, o que é que vais fazer com ele? — digo eu, continuando a olhar para o mapa.

Amarrota as folhas nas mãos. As paredes estão de novo brancas. Depois de se sentar e dobrar o mapa pêlos vincos, diz muito calmamente: — Vou dar-to.

— O quê?

O Paul mete o mapa no envelope e estende-mo. Guarda as fotografias com ele.

— Prometi que tu serias o primeiro a saber. Merece-lo. Diz isto como se estivesse apenas a cumprir uma promessa.

O que é que queres que eu faça com ele?

Sorri. — Que não o percas.

— E se o Taft vier procurá-lo?

— A ideia é essa. Se vier, há-de vir à minha procura. — O Paul faz uma pausa, antes de recomeçar a falar. — E para além disso, eu quero que te vás habituando a ele.

— Porquê?

Ele volta a sentar-se. — Porque quero que continuemos a trabalhar juntos. Quero que encontremos a cripta do Francesco juntos. Finalmente, compreendo. — No próximo ano. Ele assente. — Em Chicago. E Roma. O ventilador zune uma última vez, suspirando através da grelha.

— Isto é teu — é a única coisa que consigo dizer. — A tua tese. Acabaste-a.

— Isto é tão maior do que uma tese Tom.

— É muito maior do que uma dissertação de doutoramento, também.

— Exactamente.

Agora consigo descortiná-lo na sua voz. Isto é apenas o princípio.

— Não quero fazê-lo sozinho — insiste ele.

— O que é que eu posso fazer?

Ele sorri. — Para já, tomar conta do mapa. Deixa-o a queimar-te o bolso, por agora.

Enerva-me sentir como é leve o envelope, como é efémero o que tenho na mão. Parece um argumento contra tudo isto, o facto de que o conhecimento da Hypnerotomachia possa caber na palma da minha mão.

— Vamos — diz ele finalmente, olhando para o relógio. — Vamos para casa. Temos de ir buscar umas coisas para o Charlie.

Com um movimento final do braço, recolhe a última marca do seu trabalho. No reservado não há qualquer vestígio do Paul, do Colonna ou do grande fio das ideas que os liga através de mais de quinhentos anos. A folha de papel preto na porta desapareceu.

 

                                 CAPÍTULO 24

A última pergunta que o funcionário do departamento de recursos humanos da Daedalus me fez, durante a minha entrevista, era uma adivinha: se uma rã cair num poço de cinquenta pés*28 de profundidade e tiver de trepar para sair, avançando três pés por dia e recuando dois pés por noite, quantos dias precisa para sair do poço?

A resposta do Charlie foi que não consegue nunca sair, porque uma rã que cai de uma altura de cinquenta pés não consegue sair de parte alguma. A resposta do Paul teve qualquer coisa a ver com um antigo filósofo que caiu a um poço e morreu por estar a olhar para as estrelas. A resposta do Gil foi que nunca tinha ouvido falar em rãs que trepassem poços e, de qualquer maneira, qual era a relação com o desenvolvimento de software no Texas?

A resposta certa, penso eu, é que a rã leva quarenta e oito dias, ou seja, menos dois dias do que se poderia pensar. O truque é perceber que a rã, feitas as contas, avança um pé por dia — mas no quadragésimo oitavo dia trepa três pés e chega ao topo antes de voltar a escorregar.

Não sei por que é que me fui lembrar disto agora. Talvez este seja o género de momento em que os enigmas ganham um encanto próprio, uma sabedoria que ilumina as encruzilhadas da experiência quando mais nada o consegue fazer. Num mundo em que metade dos habitantes mente sempre e a outra metade diz a verdade; em que a lebre nunca apanha a tartaruga, porque a distância entre ambas é encurtada por uma infinidade de metades; onde a raposa nunca pode

 

28 Medida de comprimento utilizada em Inglaterra e EUA. Um pé equivale a aproximadamente 30,5 centímetros. (NT)

 

ser deixada na mesma margem do rio do que a galinha, ou a galinha na mesma margem do milho, por que senão uma delas irá devorar o outro sem que nada o possa impedir; nesse mundo tudo é racional, com a excepção da premissa. Um enigma é um castelo construído no ar, perfeitamente habitável se não olharmos para baixo. A grande impossibilidade do que o Paul me disse — que uma antiga rivalidade entre um monge e um humanista tivesse dado origem à existência de uma cripta cheia de tesouros escondida numa floresta esquecida — baseia-se na impossibilidade muito mais básica de que um livro como o Hypnerotomachia, escrito num código impenetrável, ignorado pêlos académicos ao longo de cinco séculos, pudesse realmente existir. Não poderia, e no entanto é tão real para mim como eu próprio. E se eu aceito a sua existência, então a base está assente e o castelo impossível pode ser construído. O resto é apenas argamassa e pedras.

Quando as portas do elevador se abrem, e a entrada da biblioteca parece tão leve à luz glacial, sinto como se tivéssemos emergido de um túnel. Cada vez que penso na adivinha da Daedalus, imagino a surpresa da rã quando, pela primeira vez, no último dia, os três pés para a frente não são seguidos de dois pés para trás. No cimo do poço há uma sensação de repentino, uma aceleração inesperada da viagem que se aproxima do fim, tal como eu sinto neste momento. O enigma que me acompanhou desde que eu era criança — o enigma da Hypnerotomachia — tinha sido resolvido em menos de um dia.

Passamos pelo torniquete da entrada da biblioteca e sentimos a agressão do vento que passa por baixo da porta. O Paul segura a porta aberta e eu aperto bem o casaco. Há neve por todos os lados, nem pedras, nem paredes, nem sombras, apenas tornados brilhantes de branco. Em meu redor rodopia Chicago e Texas; licenciatura; Dod e casa. Aqui estou eu, subitamente pairando acima do chão.

Avançamos para sul. No regresso à residência, encontramos um contentor de lixo que foi voltado. Pequenos ninhos de lixo surgem debaixo de montinhos de neve e os esquilos estão já à sua volta, tirando caroços de maçã e frascos de loção quase vazios, farejando bem tudo antes de comerem. São umas criaturinhas muito inteligentes. A experiência ensinou-lhes que aqui haverá sempre comida fresca, todos os dias, portanto por todo o lado as nozes e bolotas ficam espalhadas. Quando um corvo do tamanho de um abutre aterra na roda do contentor voltado ao contrário, fazendo valer a sua prioridade os esquilos limitam-se a trincar e a mordiscar, ignorando-o.

— Sabes o que é que aquele corvo me lembra? — diz o Paul. Abano a cabeça e os pássaros levantam voo, zangados, estendendo as asas até uma dimensão fantástica, fugindo com uma única bolsa de migalhas.

— A águia que matou Esquilo deixando cair uma tartaruga em cima dele — afirma o Paul.

Tenho de olhar para ele para ter a certeza de que está a falar a sério.

— Esquilo era careca — continua ele. — A águia estava a ver se conseguia partir a casca da tartaruga, deixando-a cair em cima de uma pedra. Não se apercebeu da diferença.

Isto volta a lembrar-me da história do filósofo que caiu no poço. A mente do Paul está sempre nisto, a remeter o presente para o passado, fazendo hoje a cama de ontem.

— Se tu pudesses estar onde quisesses neste momento, onde é que querias estar? — pergunto-lhe.

Ele olha para mim, divertido — Qualquer sítio? Aceno afirmativamente.

— Em Roma, com uma pá.

Um esquilo olha para nós, desviou momentaneamente a cabeça de uma fatia de pão que encontrou e observa-nos. O Paul volta-se para mim. — E tu? No Texas?

— Não.

— Chicago?

— Não sei.

Atravessamos o pátio das traseiras, na direcção do museu de arte, aquele que é separado de Dod. Aqui vêem-se pegadas, de um lado para o outro, em ziguezague.

— Sabes o que é que o Charlie me disse? — diz ele, olhando para as marcas na neve.

— O que foi?

— Se dispararmos uma arma, o projéctil cai com a mesma velocidade do que a deixares cair.

Isto lembra-me qualquer coisa que aprendi na Introdução à Física.

— Nunca se pode ser mais rápido do que a gravidade — adianta o Paul. — Por muito que corras, cairás sempre como uma pedra. Faz pensar se o movimento horizontal será algo mais do que uma ilusão. Se não nos deslocamos só para nos convencermos de que não estamos a cair.

— Aonde é que queres chegar com isso?

— A casca da tartaruga — diz ele. — Era uma parte de uma profecia. Um oráculo dissera que o Esquilo havia de morrer de um golpe vindo do céu.

Um golpe do céu, penso eu. Deus perdido de riso.

— Esquilo não podia fugir a um oráculo — continua o Paul. — Nós não podemos fugir à gravidade. — Faz com os dedos um gesto de encalhe. — O céu e a terra a falarem a uma só voz.

Tem os olhos desmesuradamente abertos, tentando absorver tudo, como um miúdo no jardim zoológico.

— Ora, tu dizes a mesma coisa a todas — digo eu. Ele sorri. — Desculpa. Sobrecarga sensorial. Parece que pairo no ar, por toda a parte. Não sei porquê.

Eu sei. Agora há mais alguém a preocupar-se com a cripta, mais alguém a preocupar-se com o Hypnerotomachia. Atlas sente-se mais leve sem ter de suportar às costas o peso do mundo.

— É como a tua pergunta — acrescenta ele, voltando-se para trás, de frente para mim, quando nos dirigimos para o quarto. — Se pudesses estar em qualquer sítio, onde é que querias estar? — Ele abre as mãos, com as palmas para cima e a verdade parece vir pousar nelas. — Resposta: não interessa, porque estejas onde estiveres, estarás sempre a cair.

Sorri ao dizer isto, como se não houvesse nada de deprimente na ideia de estarmos todos em queda livre. A equivalência fundamental de ir a qualquer sítio, de fazer qualquer coisa, parece estar o Paul a querer dizer, é que estar comigo em Dod é tão bom como estar em Roma com uma pá. À sua maneira, penso eu, pelas suas palavras, o que ele está a dizer é que está feliz.

Procura a chave e mete-a na fechadura. Quando entramos o quarto está em silêncio. Tem decorrido tanta acção neste local desde ontem, assaltos, zeladores e polícias, que se torna inquietante vê-lo tão vazio e escuro.

O Paul entra no quarto para deixar o casaco. Instintivamente, levanto o auscultador do telefone para verificar se há mensagens no voice mail.

Olá, Tom, a voz do Gil soa por entre ruídos de estática. Vou tentar ir ter convosco mais logo, mas... parece que não vou conseguir chegar a tempo ao hospital... ao Charlie da minha parte... Tom... gravata preta. Podes pedir emprestada... precises.

Gravata preta. O baile.

A segunda mensagem começa.

Tom, é a Katie. Só queria dizer-te que vou para o clube para ajudar, logo que esteja despachada aqui da câmara escura. Creio que disseste que vinhas com o Gil. Pausa. Portanto, penso que falamos logo.

Antes de desligar, sente-se uma pequena hesitação, como se não estivesse bem certa de ter colocado a ênfase devida nestas últimas palavras, que recordavam que tínhamos um assunto em suspenso.

— O que é que se passa? — pergunta o Paul, do quarto.

— Tenho de me arranjar — digo eu, calmamente, sentindo o rumo que as coisas estão a tomar. O Paul sai do quarto. — Para quê?

— Para o baile.

Ele não compreende. Não lhe contei a conversa que tive com a Katie na câmara escura. O que eu vi hoje, tudo o que ele me disse, virou o mundo de pernas para o ar. Mas no silêncio que se segue, sinto que estou na situação em que já me encontrei antes. A antiga amante, abandonada, regressou para me tentar. Há aqui um círculo que até ao momento me senti demasiado ocupado para quebrar. O livro de Colonna acena-me com visões de perfeição, uma irrealidade a que posso ter acesso pelo preço módico da minha devoção louca, do meu abandono do mundo. Francesco, ao inventar este estranho negócio, inventou igualmente o seu nome: Hypnerotomachia, a luta pelo amor num sonho. Se alguma vez existiu um momento em que tenho de ter os pés bem firmes na terra, de resistir à luta e ao sonho — se alguma vez existiu um momento feito para recordar que um amor que se dedicou loucamente a mim para recordar a promessa que fiz à Katie — esse momento é agora.

— O que é que se passa? — pergunta o Paul. Não sei como lhe dizer. Nem sequer sei exactamente o que lhe dizer.

— Toma — digo eu, estendendo o braço. Mas ele não se mexe.

— Toma o mapa.

— Porquê? — De início, ele parece apenas confuso, ainda demasiado excitado para compreender.

— Não posso Paul. Desculpa.

O sorriso dele desvanece-se. — Como não podes?

— Não posso continuar a trabalhar nisto. — Coloco o mapa na mão dele. — E teu.

— É teu — diz ele sem perceber o que é que me passou pela cabeça.

Mas não é. Não é ele que nos pertence; desde o início fomos nós que pertencemos a este livro.

— Desculpa, mas não posso.

Nem aqui; nem em Chicago; nem em Roma.

— Tu conseguiste. Está feito. Agora só nos falta o plano da fechadura.

Contudo, a certeza do desenlace introduziu-se já entre nós. Nos olhos dele instala-se lentamente uma expressão, uma expressão de quem se afoga, como se a força que o tinha feito flutuar até aí o tivesse subitamente abandonado e todo o mundo tivesse ficado, num momento, de pernas para o ar. Passámos tanto tempo juntos que percebo-o sem que ele tenha sequer de dizer uma palavra: a liberdade que eu sinto, a minha emancipação de uma cadeia de acontecimentos que teve o seu início antes mesmo de eu nascer, está reflectida ao contrário no Paul.

— Não se trata de escolher entre as duas coisas — salienta ele, recompondo-se. — Podes ter as duas, se quiseres.

— Não creio.

— O teu pai conseguiu.

Mas ele está consciente de que o meu pai não o conseguiu.

— Tu não precisas da minha ajuda — digo eu. — Já tens o que querias.

Mas eu estou consciente de que ele não o tem.

Segue-se um estranho silêncio, durante o qual cada um de nós sente que o outro tem razão, mas que nenhum de nós está errado. A matemática da moralidade vacila. Ele está com o ar de querer argumentar comigo, defender pela última vez o seu ponto de vista, mas é completamente inútil e ele sabe-o bem.

Em vez disso, o Paul repete calmamente uma piada que eu já ouvi um milhar de vezes ao Gil. São as únicas palavras que ele consegue arranjar para exprimir o que sente.

— O último homem à face da terra entra num bar — murmura ele. — O que é que ele diz?

O Paul vira a cabeça para a janela, mas não dá a resposta. Ambos sabemos o que diz o último homem à face da terra. Olha para a cerveja, só e perturbado e diz: «Bebida, traga-me mais um empregado.»

— Lamento — digo eu.

Mas o Paul já não está ali. — Tenho de ir à procura do Richard — diz entre dentes.

— Paul?

Ele volta-se. — O que é que queres que eu diga?

— O que é que queres do Curry?

— Lembras-te do que eu te perguntei quando íamos para Firestone? — interroga-me ele. — O que é que teria acontecido se eu nunca tivesse pegado no livro do teu pai? Lembras-te do que respondeste?

— Disse que nunca nos teríamos conhecido.

Um milhar de acidentes subtis reuniu-se para que ele e eu nos encontrássemos — para que pudéssemos estar aqui, neste momento. O destino, sobre os destroços de quinhentos anos, tinha construído um castelo no ar para que dois jovens universitários pudessem ser reis. E é assim, quer ele dizer, que tu o tratas.

— Quando vires o Gil — diz ele, apanhando o casaco do chão —, diz-lhe que já pode ficar com a Sala do Presidente. Já não preciso dela.

Ao lembrar-me do carro dele, avariado numa ruela perto do Instituto, imagino-o a caminhar pela neve, ao encontro do Curry.

— Não é seguro ires sozinho... — começo eu a dizer.

Eu poderia ter ido atrás dele, se não fosse uma chamada do hospital, um minuto depois, com uma mensagem do Charlie.

— Está acordado e a falar — anuncia a enfermeira. — E pede para o ver.

Estou já a pôr o gorro e as luvas.

Quando estou a meio caminho do Centro Médico, a neve pára de cair. Ao longo de alguns quarteirões torna-se mesmo visível uma réstia de sol no horizonte. As nuvens, um pouco por toda a parte, têm a forma de uma mesa posta — terrinas, tigelas para a sopa e jarros, um garfo e uma colher que rolam lado a lado — e eu apercebo-me da fome que tenho. Espero que o Charlie esteja tão bem como a enfermeira disse. Espero que o estejam a alimentar.

Ao chegar, encontro a porta do quarto bloqueada por uma pessoa ainda mais assustadora do que o Charlie: a mãe dele. Mrs. Freeman está a explicar a um médico que, depois de ter apanhado o primeiro comboio de Filadélfia para chegar aqui, de ouvir alguém do gabinete do reitor dizer que o Charlie está perigosamente ameaçado de suspensão, e tendo ela sido enfermeira profissional durante dezassete anos, antes de se ter tornado professora de Ciências, não está de forma alguma disposta a ouvir um médico em tom condescendente falar-lhe do estado em que o filho se encontra. Pela cor do equipamento, reconheço o homem que disse ao Paul e a mim que o estado do Charlie era estacionário. Precisamente esse, o das palavras de hospital e sorrisos enlatados. Parece não ter ainda compreendido que está por inventar o sorriso que faça mover esta montanha.

Quando estou quase a entrar no quarto do Charlie, Mrs. Freeman vê-me.

— Thomas — diz ela, deslocando o peso de um pé para o outro. Quando Mrs. Freeman está por perto, tem-se sempre a sensação de se estar na presença de um fenómeno geológico e que, se não se tiver cuidado, corre-se o risco de se ser esmagado. Ela sabe que a minha mãe me está a criar sozinha, portanto faz questão de dar o seu contributo.

— Thomas! — repete ela, a única pessoa que me chama assim. — Vem cá.

Aproximo-me ligeiramente.

— Em que é que o meteste? — pergunta ela.

— Ele estava a tentar...

Ela avança, envolvendo-me na sua sombra. — Eu avisei-te acerca dessas coisas. Não avisei? Depois daquela história no telhado daquele edifício?

O badalo do sino. — Mrs. Freeman, a ideia foi dele...

— Ah, isso não. A mesma história outra vez? O meu Charlie não é nenhum génio, Thomas. Ele tem de ser arrastado para a tentação.

Mães. Quem a ouvisse havia de dizer que o Charlie não era capaz de distinguir um boi de um palácio. Mrs. Freeman olha para nós os três e só consegue ver más companhias. Se contabilizarmos a minha mãe solitária, a ausência de pais do Paul e o carrossel de padrastos e madrastas do Gil, não temos entre nós os três tantos modelos positivos de comportamento como o Charlie debaixo de um só tecto. E, vá lá saber-se porquê, sou precisamente eu que tenho os cornos e a cauda em forquilha. Se ela soubesse a verdade, penso eu: Moisés também tinha cornos.

— Deixa-o em paz — ouve-se uma voz vinda do interior do quarto.

Mrs. Freeman gira como o mundo sobre o seu eixo.

— O Tom tentou tirar-me de lá — intervém o Charlie, agora com voz mais fraca.

Segue-se um silêncio. Mrs. Freeman olha para mim como se quisesse dizer: «Não te atrevas a sorrir, não há nada de especial em tirar o meu filho do meio de um sarilho em que o meteste.» Mas quando o Charlie começa de novo a falar, ela diz-me para entrar para falar com o filho, antes que ele se canse de estar a gritar assim de dentro do quarto. Ela tem umas coisas a tratar com o médico.

— E, Thomas — acrescenta ela, antes de eu ter conseguido escapar-me —, não metas ideias na cabeça desse rapaz.

Assinto. Mrs. Freeman é a única professora que faz com que a palavra ideia pareça um palavrão.

O Charlie está reclinado numa cama de hospital com protecções metálicas de ambos os lados, não sucientemente altas para impedir que um tipo corpulento caia da cama numa noite dificil, mas com a altura ideal para um enfermeiro enfiar um pau de vassoura entre as grades e manter uma pessoa amarrada à cama para sempre, transformado num convalescente permanente. Já tive mais pesadelos com hospitais do que Scheherazade teve histórias e nem mesmo o tempo conseguiu apagá-las da minha memória.

— A hora da visita termina dentro de dez minutos — avisa a enfermeira sem olhar para o relógio. Tem numa mão um tabuleiro em forma de rim e, na outra, um pano de limpeza.

O Charlie fica a vê-la sair, arrastando os pés. Numa voz rouca e lenta, diz: — Acho que ela gosta de ti.

Do pescoço para cima, ele parece quase bem. Vê-se um pedacinho de pele cor-de-rosa a espreitar mesmo por cima da clavícula; tirando isso, dir-se-ia que estava apenas cansado. Foi o peito que sofreu mais. Está envolvido em gaze até ao ponto em que a roupa da cama se aconchega muito levemente em redor da cintura e em certos pontos, um pus húmido atravessou a gaze até à superfície.

— Podes ficar por aí para ajudar a mudar as ligaduras — sugere o Charlie, desviando a minha atenção.

Os olhos dele parecem amarelos de icterícia. Tem uma humidade em redor do nariz que ele provavelmente limparia se pudesse.

— Como é que te sentes? — pergunto.

— Qual é o meu aspecto?

— Bastante bom, se tivermos em conta...

Ele consegue esboçar um sorriso. Contudo, quando tenta olhar para baixo, para o corpo, percebo que não faz a mais pequena ideia do seu aspecto. Está sucientemente lúcido para saber que não deve confiar nos seus sentidos.

— Veio alguém mais ver-te? — pergunto. Leva um certo tempo a responder. — O Gil não veio, se é a isso que te referes.

— Refiro-me a quem quer que seja.

— Se calhar não reparaste na minha mãe, lá fora. — O Charlie sorri e repete para si próprio sem se aperceber. — É fácil não dar por ela.

Olho de novo para a porta. Mrs. Freeman ainda está a conversar com o médico.

— Não te preocupes — diz o Charlie, interpretando mal a minha ideia. — Ele há-de vir.

Mas neste momento, a enfermeira já informou todas as pessoas que poderiam estar interessadas em saber se o Charlie está ou não consciente. Se o Gil não está aqui, é porque não vai aparecer.

— Eh — diz o Charlie, mudando de assunto. — Tudo bem contigo com aquilo que se passou?

— O quê?

— Aquela história que o Taft contou. Tento recordar as palavras. Estivemos no Instituto há horas. Provavelmente é a última coisa de que se lembra.

— Acerca do teu pai. — O Charlie tenta mudar de posição e faz uma expressão de dor.

Olho fixamente para as grades, subitamente paralisado. Mrs. Freeman intimidou tanto o médico que ele leva-a finalmente para uma sala privada para conferenciarem. Desaparecem os dois atrás de uma porta distante e o corredor fica deserto.

— Ouve — diz o Charlie debilmente —, não deixes que um tipo daqueles dê cabo de ti.

É nisto que o Charlie pensa no momento em que está à beira da morte. Nos meus problemas.

— Estou muito contente por estares bem — digo-lhe. Tenho consciência de que ele está a pensar em dizer qualquer coisa

de irónico, mas quando sente a pressão da minha mão no seu braço, desiste.

— Eu também.

O Charlie volta a sorrir para mim e depois, ri-se. — Quem havia de dizer — diz ele, abanando a cabeça. Tem os olhos fixos em qualquer coisa por trás da mim. — Quem havia de dizer — repete.

Penso que ele está a desfalecer. Mas quando me volto, vejo o Gil, de pé à porta, com um ramo de flores na mão.

— Roubei-as dos arranjos do baile — confessa ele, hesitante, como se não tivesse a certeza de ser bem-vindo. — O melhor é gostares delas.

— E vinho, não trouxeste? — A voz do Charlie está muito fraca. O Gil faz um sorriso contrafeito. — Para ti, só se fosse do mais barato. — Avança e estende a mão ao Charlie.

— A enfermeira disse-me que só temos dois minutos. — diz o Gil. — Como é que te sentes?

— Tenho tido dias melhores — diz o Charlie. — Mas também já estive pior.

— Acho que a tua mãe está cá — responde o Gil, ainda à procura de uma forma de começar a conversa.

Charlie está a começar a deixar-se adormecer, mas ainda consegue fazer mais um sorriso. — Não é fácil dar por ela.

— Não te vais embora sem te despedires, pois não? — pergunta o Gil em voz baixa.

— Do hospital? — diz o Charlie, agora já muito longe para perceber o sentido da frase.

— Sim.

— Talvez — suspira o Charlie. — A comida aqui — dá um suspiro — é horrível.

A cabeça dele cai na almofada precisamente no momento em que a enfermeira de cara de pau regressa para dizer que o nosso tempo acabou e que o Charlie precisa de descansar.

— Dorme bem, chefe — diz o Gil, pousando o ramo na mesa-de-cabeceira.

O Charlie não o ouve. Está já a respirar pela boca. Quando estamos a sair olho para trás e vejo-o reclinado na cama, envolvido em ligaduras e ligado aos tubos do soro. Lembra-me os livros de banda desenhada que eu lia em miúdo. O gigante destruído que a medicina reconstitui. A recuperação misteriosa do doente que surpreendeu os médicos. A noite cai sobre Gotham, mas os títulos são sempre iguais. Hoje um super-herói combateu contra uma força da natureza e está vivo para se queixar da comida.

— Será que ele vai ficar bom? — pergunta o Gil quando chegamos ao parque de estacionamento dos visitantes. O Saab está estacionado sozinho, no meio do parque, o motor emana ainda calor suficiente para derreter a neve que caiu.

— Acho que sim.

— O peito parece-me bastante mal.

Não sei que tipo de reabilitação é que se usa para doentes queimados, mas habituarmo-nos de novo à nossa própria pele não pode de modo algum ser fácil.

— Não pensei que aparecesses — digo.

O Gil hesita. — Só queria ter lá estado com vocês.

— Quando?

— Durante o dia todo.

— Isso é uma piada?

Ele volta-se para mim. — Não. A que propósito vem isso? Paramos a pouca distância do carro. Percebo quanto estou zangado com ele, zangado por lhe ter sido tão difícil arranjar alguma coisa para dizer ao Charlie, zangado por parecer ter medo de visitar o Charlie esta tarde.

— Estiveste onde querias estar — digo.

— Vim logo que soube.

— Não estavas connosco.

— Quando? — pergunta ele. — Esta manhã?

— Este tempo todo.

— Valha-me Deus. Tom...

— Sabes por que é que ele está ali? — digo.

— Porque tomou a decisão errada.

— Porque tentou ajudar. Não quis deixar-nos ir sozinhos ao gabinete do Taft. Não queria que o Paul se magoasse nos túneis.

— O que é que queres Tom? Um pedido de desculpas? Mea culpa. Não posso realmente competir com o Charlie. É a manera de ser dele. Sempre foi.

— Era a tua maneira de ser. Sabes o que é que a Mrs. Freeman me disse lá dentro? A primeira coisa que ela foi buscar? O roubo do badalo do sino de Nassau Hall.

O Gil passa os dedos pelo cabelo.

— Ela culpa-te disso. Sempre culpou. E sabes porquê?

— Porque ela pensa que o Charlie é um santo.

— Porque ela não acredita que tu sejas o tipo de pessoa capaz de fazer uma coisa destas. Ele suspira. — E então?

— Mas tu és o tipo de pessoa que faria uma coisa dessas. Foste tu que o fizeste.

Ele parece não saber muito bem o que dizer. — Já alguma vez pensaste que eu se calhar tinha meia dúzia de cervejas no bucho nessa noite em que vos conheci? Talvez eu não estivesse a bater bem.

— Ou talvez fosses diferente, nesse tempo.

— Sim, Tom. Talvez fosse.

O silêncio instala-se. Em cima do capot do Saab começam a formar-se os primeiros montinhos de neve. De uma certa forma as palavras dele tiveram o tom de uma confissão.

— Ouve — diz ele —, lamento.

— O quê?

— Devia ter ido logo ver o Charlie. Quando vos vi, a ti e ao Paul.

— Esquece.

— Eu sou teimoso. Sempre fui teimoso.

Coloca a ênfase na palavra sempre, como a querer dizer: «Olha, Tom, algumas coisas não mudam.»

Mas tudo mudou. Numa semana, num dia, numa hora. Primeiro o Charlie, depois o Paul. E agora, de repente, o Gil.

— Não sei — hesito eu.

— O que é que não sabes?

— O que é que tens andado a fazer durante este tempo todo. Por que é que está tudo diferente? Meu Deus, eu nem sequer sei o que é que vais fazer no próximo ano.

O Gil tira do bolso de trás a corrente com as chaves e destranca as portas.

— Vá, anda — sugere ele. — Antes que morramos gelados. Estamos no meio da neve, sozinhos, no parque de estacionamento do hospital. O Sol está praticamente a desaparecer no horizonte, trazendo consigo a escuridão, conferindo a tudo a textura de cinzas.

— Entra — diz ele. — Vamos conversar.

 

                                         CAPITLO 23

Nessa noite conheci de novo o Gil pela primeira vez e provavelmente também pela última. Era quase tão encantador como eu o recordava: divertido, interessado, inteligente em relação às coisas importantes, presunçoso em relação às que não tinham importância. Voltámos no carro para a residência, a ouvir o Sinatra, mantendo uma conversa sem hesitações e, antes mesmo de eu ter tido tempo de perguntar o que é que ia vestir para o baile, abri a porta do meu quarto e encontrei um smoking à minha espera num cabide, imaculado e bem passado a ferro, com uma nota presa ao saco de plástico. Tom — Se não te servir, é porque encolheste. — G. No meio de tudo o mais, ele tinha arranjado tempo para levar um dos meus fatos a uma loja de aluguer de roupa e alugar um smoking do meu tamanho.

— O meu pai acha que eu devia parar por uns tempos — diz ele, respondendo à minha pergunta anterior. — Viajar. Europa, América do Sul.

É estranho recordar uma pessoa que se conheceu toda a vida. Não é como regressar à casa onde se cresceu e reparar como tínhamos a sua forma bem presente, como todas as paredes que entretanto erguemos e as portas que entretanto abrimos seguiram todas o modelo que ali vimos pela primeira vez. É mais como regressar a casa e ver a nossa mãe ou a nossa irmã, que têm a idade suficiente para não terem crescido desde a última vez que as vimos, mas são suficientemente novas para não terem envelhecido, e compreender pela primeira vez como é que elas são aos olhos das outras pessoas, como as acharíamos bonitas se não as conhecêssemos; perceber aquilo que o nosso pai e o nosso cunhado viram quando mais as avaliaram e menos as conheciam.

— Honestamente? — diz o Gil. — Ainda não decidi. Não sei se o meu pai é a pessoa ideal para dar conselhos. O Saab foi ideia dele e foi um erro. Ele estava a pensar no que ele gostaria de ter tido quando tinha a nossa idade. Fala comigo como se eu fosse uma pessoa que não sou.

O Gil tinha razão. Ele já não é o caloiro que deixava as calças a voar por cima de Nassau Hall. Hoje é uma pessoa mais cuidadosa, mais circunspecta. Ao olhar-se para ele, pensa-se que ele é experiente e introvertido. A autoridade natural do seu discurso e a sua linguagem corporal são agora mais pronunciadas, qualidade que cultivou em Ivy. As roupas dele são mais discretas e o cabelo, que ele sempre usou suficientemente comprido para se fazer notar, agora nunca está despenteado. Por trás disso há toda uma ciência, porque nunca se nota quando é que foi cortado. Engordou ligeiramente, o que lhe dá uma beleza diferente, um toque de seriedade e os pequenos tiques afectados que trazia de Exeter — o anel que usava no dedo mindinho, o brinco na orelha — desapareceram discretamente.

— Acho que vou esperar até ao último momento. Vou decidir durante a graduação... qualquer coisa de espontâneo, de inesperado. Talvez venha a ser arquitecto. Ou talvez volte a navegar.

E ali está ele, mudando de roupa, despindo as calças de lã à minha frente, sem compreender que eu sou um total desconhecido, uma pessoa a quem esta versão dele nunca foi apresentada. Percebo que eu próprio sou um desconhecido para mim, que nunca fui capaz de ver a pessoa por quem a Katie esperou toda a noite de ontem, o mais recente modelo, o eu acabado de surgir. Existe aqui algures um paradoxo. Rãs e poços e o estranho caso de Tom Sullivan, que olhou para um espelho e viu o passado.

— Um homem entra num bar — diz o Gil, recuperando uma piada clássica de comédia. — Completamente nu, com um pato em cima da cabeça. O empregado do bar diz: «Cari, o que é que tens hoje, pareces diferente? — O pato abana a cabeça e diz: — Se eu te disser, Harry, não vais acreditar».

Pergunto-me por que é que ele escolheu esta piada. Talvez durante este tempo todo ele tenha estado sempre a pensar na mesma coisa. Todo nós temos estado a falar com ele como se ele fosse outra pessoa. O Saab era a ideia que tínhamos dele e esse foi o nosso erro. O Gil é algo de inesperado, de espontâneo. Um arquitecto, um marinheiro, um pato.

— Sabes o que é que eu ouvi na rádio, um dia destes? — pergunta ele. — Depois de a Ana e eu termos acabado?

— Sinatra. — Mas eu sei que é a resposta errada.

— Samba — diz ele. — Estava a procurar uma estação que me agradasse e a WPRB estava a transmitir um programa de músicas latinas. Uma coisa instrumental, sem voes. Que ritmo do caraças. Espantoso aquele ritmo.

WPRB. A estação de rádio do campus que tinha transmitido o Messias de Handel quando as mulheres vieram pela primeira vez para Princeton. Recordo o Gil na noite em que o conheci, ao pé da torre do sino de Nassau Hall. Saiu da escuridão a fazer uns passos de rumba e a dizer. — Assim é que é, vamos a abanar, boneca. Dança. — A música esteve sempre ligada a ele, o jazz que ele tem tentado tocar ao piano desde o dia em que nos conhecemos. Talvez afinal haja algo de antigo no novo.

— Não sinto a falta dela — diz ele, tentando pela primeira vez fazer-me participar. — Ela punha uma coisa qualquer no cabelo. Gel. Uma coisa que o cabeleireiro lhe tinha dado. Sabes o cheiro que fica depois de usarmos certos aspiradores? Assim uma espécie de quente e limpo?

— Claro.

— Era assim. Ela devia queimá-lo com o calor do secador. Sempre que encostava a cabeça a mim, eu pensava sempre que ela tinha o cheiro da minha alcatifa.

Parte à desfilada agora, associando livremente as ideias.

— Sabes quem é que também tinha o mesmo cheiro? — pergunta ele.

— Quem?

— Lembra-te lá. O nosso primeiro ano. Quente e limpo. A lareira em Rockefeller vem imediatamente à minha memória.

— Lana McKnight — digo eu.

Ele assente. — Nunca percebi como é que vocês aguentaram tanto tempo juntos. Era uma química tão estranha. O Charlie e eu costumávamos fazer apostas sobre quando é que vocês acabariam.

— Ele disse-me que gostava da Lana.

— Lembras-te daquela rapariga com quem ele namorou no segundo ano? — diz o Gil, já noutra.

— O Charlie?

— Chamava-se Sharon, não era?

— A que tinha os olhos de cores diferentes?

— Pois; essa sim, tinha um cabelo que cheirava espantosamente. Lembro-me de que ela costumava ficar sentada na nossa sala, à espera do Charlie. A sala ficava toda a cheirar à loção que a minha mãe costumava usar. Nunca descobri o que era, mas sempre adorei o cheiro. Recordo-me de que até aqui, o Gil só me tinha falado em madrastas, mas nunca na mãe biológica. A ternura liberta-o.

— Sabes por que é que eles acabaram? — diz ele.

— Porque ela lhe deu com os pés.

O Gil abana a cabeça. — Porque ele se fartou de andar sempre a apanhar as coisas dela. Ela deixava tudo por todo o lado, na nossa sala:

camisolas, carteiras, tudo, e o Charlie tinha sempre de lhas ir devolver. Ele nunca percebeu que era apenas uma manobra dela. Estava só a dar-lhe pretextos para a ir visitar à noite. O Charlie pensava apenas que ela era uma desleixada.

Debato-me com o meu laço, tentando manter o nó entre as pontas do colarinho. Grande Charlie. A religião da arrumação.

— Não foi ela quem acabou — continua o Gil. — As raparigas que se apaixonam pelo Charlie nunca acabam. E sempre ele quem acaba.

Há na sua voz uma leve sugestão de que este é um aspecto a ter em consideração quando se fala do Charlie, um importante traço de carácter, esta tendência para descobrir os defeitos dos outros. Como se isso ajudasse a explicar os problemas que o Gil teve com ele.

— É um bom gajo — diz o Gil, reconsiderando.

Parece satisfeito por as coisas ficarem por ali. Durante um segundo, o único som que se ouve no quarto é o da fricção do tecido cada vez que eu desfaço o nó do laço e volto a fazê-lo. O Gil está sentado na cama e passa os dedos por entre os cabelos. Ficou com esse hábito do tempo em que tinha o cabelo mais comprido. As mãos dele ainda não se habituaram à mudança.

Por fim, consigo fazer o nó, uma espécie de noz com asas. Olho para o espelho e decido que está bem assim. Visto o casaco. Cai-me como uma luva, melhor ainda do que o meu próprio casaco.

O Gil continua calado, observando a sua imagem no espelho, como se fosse um quadro. Aqui estamos nós, no final da sua presidência. O seu adeus a Ivy. Amanhã o clube será governado pêlos responsáveis do próximo ano, os membros por ele escolhidos no processo de candidatura e Gil passará a ser um fantasma na sua própria casa. O melhor de Princeton segundo o seu ponto de vista está a chegar ao fim.

— Eh — digo eu, atravessando a entrada e chegando ao quarto dele. — Tenta divertir-te esta noite.

Aparentemente nem me ouviu. Pousa o telemóvel no carregador, observando a luz intermitente. — Gostava que as coisas não se tivessem passado assim — confessa ele.

— O Charlie vai ficar bom — digo eu.

Mas ele limita-se a olhar para a sua caixa das jóias, um pequen cofre de madeira onde guarda as suas coisas de valor, e passa a mão pela tampa, limpando-a da poeira. Na metade do quarto que pertence ao Charlie, as coisas são velhas, mas estão absolutamente impecáveis um par de sapatos de atletismo, do primeiro ano, está à entrada do armário, com os atacadores atados; os do ano passado ainda andam ;

uso durante os fins-de-semana. Mas na metade do Gil, parece que as

coisas não foram vividas, tudo novo e, ao mesmo tempo, cheio de poeira. De dentro da caixa, tira um relógio de prata, o que ele usa nas

ocasiões especiais. Os ponteiros estão parados e ele agita-o suavement para lhe dar corda.

— Que horas tens? — diz ele.

Mostro-lhe o meu relógio e ele acerta o dele.

Lá fora caiu a noite. O Gil pega na argola das chaves e tira telemóvel do carregador. — O dia preferido do meu pai na Universi dade foi o baile em Ivy no seu último ano — conta-me ele. — Falava sempre nisso.

Penso no Richard Curry, nas histórias que ele contou ao Pau acerca de Ivy.

Ele disse que era como viver um sonho, um sonho perfeito.

O Gil leva o relógio ao ouvido. Escuta como se no seu son existisse alguma coisa de miraculoso, um oceano aprisionado numa concha.

— Estás pronto? — diz ele, colocando a pulseira em volta do pulso e prendendo-a.

Agora tem o olhar fixo em mim e verifica o corte do smoking.

— Nada mal — diz ele. — Acho que ela vai aprovar.

— Estás bem? — pergunto.

O Gil ajeita o casaco e acena com a cabeça.

— Não creio que esta noite seja uma história para contar aos meus filhos. Mas tudo bem.

Antes de fecharmos a porta, lançamos os dois um último olhar Com as luzes apagadas, as sombras invadem o quarto. Quando olho pela última vez pela janela para a lua, vejo na minha mente o Paul, atravessar o campus com o seu velho casaco de Inverno, sozinho.

O Gil olha para o relógio e diz: — Vamos chegar mesmo à hora.

Depois ele e eu, com os nossos fatos e sapatos pretos, dirigimo-nos para o Saab por entre as dunas de neve que brilham na noite.

Um baile de máscaras tinha dito o Gil. E, na verdade, era um baile de máscaras. O clube está deslumbrante, o pólo de todas as atenções em Prospect Avenue. Bermas altas cobertas de neve erguem-se como muralhas ao longo da parede de tijolo que rodeia o clube, mas o camnho que leva à porta principal foi limpo e o passeio coberto com uma camada fina de pedras pretas. Como o sal de rocha, abrem um caminho no gelo. Correspondendo a esse efeito, quatro longos panos estão pendurados ao longo dos vãos da frente do edifício, cada um com uma tira vertical verde-hera, ladeada por finos pilares dourados.

Quando o Gil estaciona o Saab no seu lugar, outros membros do clube convidados estão a aproximar-se aos pares da entrada, como se entrassem para a arca, com intervalos entre si como manda a etiqueta, com o cuidado de não se atrapalharem uns aos outros. Os alunos do último ano chegam no fím, porque é hábito estar reservado um acolhimento caloroso aos que terminam os cursos, segundo me disse o Gil, enquanto desliga as luzes do carro.

Atravessamos a entrada e entramos no clube, que está muito animado. O ar está denso do calor dos corpos, o cheiro doce do álcool e da comida cozinhada, as conversas que se cruzam e descruzam através de toda a sala. A entrada do Gil é recebida com aplausos e vivas. Os alunos do segundo e terceiro anos que se encontram espalhados um pouco por todo o primeiro andar voltam-se para a porta para o receberem, alguns chamando alto pelo seu nome e, durante um segundo, parece que esta poderá ainda vir a ser a noite que ele desejava, uma noite como o seu pai tivera.

— Bem — diz ele para mim, ignorando o aplauso que se prolonga por demasiado tempo —, é assim.

Olho em redor para apreciar a transformação do clube. De repente o trabalho que o Gil andou a fazer, os recados, as planificações, as conversas com floristas e fornecedores de comida já não parecem uma desculpa para deixar o nosso quarto no momento em que as coisas não corriam bem. Está tudo diferente. As cadeiras e as mesas que costumam mobilar a sala desapareceram. No seu lugar, os cantos da sala principal foram rodeados por mesas em quarto de circulo, todas cobertas com toalhas de seda num verde-escuro e travessas de porcelana cheias de comida. Atrás de cada uma, bem como do bar à nossa direita, está um empregado de luvas brancas. Por todos os lados vêem-se arranjos de flores, nos quais não se descortina o mais leve toque de cor: apenas lírios brancos, orquídeas negras e variedades que eu nunca vi na vida. Na confusão dos smokings e dos vestidos pretos de noite, é possível distinguir o castanho do carvalho das paredes.

— Faz favor — diz um empregado de laço branco, que surgiu não se sabe donde, trazendo uma bandeja de canapés e trufas. — Cordeiro — diz ele, apontando para os primeiros — e chocolate branco — apontando para as segundas.

— Experimenta — diz o Gil.

Assim faço e toda a fome acumulada durante o dia, as refeições em branco e as fantasias do hospital, tudo regressa instantaneamente. Quando outro empregado passa com uma bandeja com flutes de champanhe, volto a servir-me. As bolhinhas sobem-me directamente à cabeça, ajudando a impedir que os meus pensamentos regressem ao Paul.

Nesse momento, um quarteto musical irrompe da antecâmara da sala de jantar, um espaço habitualmente ocupado por espreguiçadeiras muito usadas. A um canto foram colocados um piano e uma bateria e, no meio deles, ficou espaço para um baixo e uma guitarra eléctrica. Por agora tocam os habituais R&B. Mais tarde, estou certo, se o Gil fez isto à sua maneira, irá haver sessão de jazz.

—Já volto — diz ele e subitamente sai de ao pé de mim e dirige-se para as escadas. A cada degrau é interrompido por um membro do clube para lhe dizer qualquer coisa de simpático, sorrir e apertar-lhe a mão e às vezes, dar-lhe um abraço. Vejo o Donald Morgan pousar cuidadosamente uma mão nas costas do Gil quando passa por ele, as felicitações fáceis e sinceras do homem que desejara ser rei. As alunas do terceiro ano, já um pouco bebidas, olham para o Gil com olhares embaciados, tornando-se sentimentais pela perda que o clube irá sofrer, que elas irão sofrer. Percebo que ele é o herói da noite, simultaneamente anfitrião e convidado de honra. Por todos os lados para onde vai, há sempre alguém ao lado dele. Mas, de um certo modo, sem ninguém ao seu lado — Brooks, ou a Anna ou algum de nós — parece já um homem solitário.

— Tom! — diz uma voz atrás de mim.

Volto-me e o ar fica cheio de um aroma único, provavelmente o que a mãe do Gil e a namorada do Charlie usavam, porque produz o mesmo efeito em mim. Se eu imaginava que a forma como gostava mais de ver a Katie era com as suas imperfeições, o cabelo apanhado descuidadamente e a camisa fora das calças, então estava redondamente enganado. Porque agora ela está diante de mim, com um vestido comprido preto, o cabelo Caído, toda ela clavículas e seios e eu sinto-me completamente perdido.

—Uau!

Ela leva a mão à minha lapela e sacode um oco de poeira que era afinal neve, que ainda se mantinha, apesar de todo o calor.

— Para ti também — diz ela.

Há na sua voz qualquer coisa de maravilhoso, uma agradável descontracção. — Onde está o Gil? — pergunta ela.

— Lá em cima.

Ela retira mais dois flutes de champanhe de uma bandeja que vai a passar.

— À nossa — diz ela, estendendo-me uma. — Então e estás vestido de quê?

Hesito, sem perceber o que é que ela quer dizer.

— O teu fato de máscara E de quê? O Gil reapareceu.

— Olá — cumprimenta-o a Katie. — Há séculos que não te via.

O Gil coloca os braços em redor de nós os dois e depois sorri, como um pai orgulhoso. — Vocês estão lindos.

A Katie ri-se. — Então e tu de que é que estás vestido? — pergunta ela.

Com um gesto largo, o Gil afasta a banda do casaco. Só agora é que percebo o que é que ele foi buscar lá acima. Suspenso entre o flanco esquerdo da sua cintura e a anca direita, está um cinto de couro preto. O cinto tem um coldre e, dentro do coldre, está uma pistola de punho de marfim.

— Aaron Burr — diz ele. — Curso de 1772.

— Muito vistoso — comenta a Katie, admirando o punho de marfim da arma.

— Quem? — digo bruscamente.

O Gil parece desiludido. — O meu fato de máscara. O Burr matou o Hamilton num duelo.

Passa-me o braço pêlos ombros e conduz-me até ao patamar entre o primeiro e o segundo andares.

— Estás a ver os emblemas na lapela do Jamie Ness? — Aponta para um finalista loiro, com um laço bordado com claves de sol e fá.

Na sua lapela esquerda vejo uma forma oval castanha e na direita, um ponto preto.

— Aquilo é uma bola de futebol — diz o Gil. — E aquilo um disco de hóquei no gelo. Está de Hobey Baker, Ivy, 1914. O único homem jamais admitido em ambos os quadros de honra, de futebol e hóquei. O Hobey fazia parte de um grupo coral daqui... por isso é que o laço do Jamie tem notas de música.

Agora o Gil está a apontar para um finalista alto, com cabelo de um ruivo intenso. — Chrs Bentham, mesmo ao lado do Doug: James Madison, curso de 1771. Percebe-se pêlos botões da camisa. O de cima é o selo de Princeton... Madison foi o primeiro presidente da associação de estudantes. E o quarto é uma bandeira americana...

Há qualquer coisa de mecânico na sua voz, um tom de guia turístico, como se tivesse memorizado um texto.

— Inventa um fato de máscara — interrompe a Katie, juntando-se à conversa, do fundo das escadas.

Olho para ela e a diferença de níveis permite-me apreciar de uma nova perspectiva a forma como ela está bem vestida.

— Ouçam — diz o Gil, olhando para o fundo da sala —, tenho de ir ali tratar de uma coisa. Será que vocês os dois podem ficar sozinhos por um segundo?

Ao lado do bar, o Brooks está a apontar para um dos empregados de luvas brancas que está pesadamente encostado à parede.

— É que um dos empregados está bêbado — diz o Gil.

— Não te preocupes — digo eu, reparando como o pescoço da Katie parece impossivelmente delgado, visto desta altura, como o caule de um girassol.

— Se precisares de alguma coisa — diz ele —, não hesites em chamar-me.

Começamos a descer lado a lado. A banda está a tocar Duke Eilington, os flutes de champanhe entrechocam-se e o batom da Katie é de um vermelho brilhante e vibrante, da cor de um beijo.

— Queres dançar? — digo eu, descendo do patamar.

A Katie sorri e conduz-me pela mão.

Listen... rails a-thrumming... on the "A" train.

Ao fundo da escada o percurso do Gil e o meu separam-se.

 

                                       CAPÍTULO 26

A pista de dança está cinco graus mais quente do que o resto do clube, os pares comprimem-se uns contra os outros, fundindo-se e rodopiando, um anel de asteróides feito de dançarinos lentos, mas eu sinto-me imediatamente confortável. A Katie e eu temo-nos movimentado ao som de todo o género de música desde aquela primeira noite em que nos conhecemos, em Ivy. Todos os fins-de-semana, em Prospect Avenue, os clubes contratam bandas para todos os gostos e, em poucos meses, experimentámos de tudo, desde danças de salão aos ritmos latinos, passando por tudo o que fica no meio. A Katie praticou sapateado durante nove anos, pelo que tem a elegância e a graça de três ou quatro bailarinos, o que significa que, entre nós os dois, conseguimos uma média equivalente a qualquer dos outros pares. Mesmo assim eu, graças à obra de caridade dela, melhorei consideravelmente. Sucumbindo ao efeito do champanhe, quanto mais dançamos, mais nos sentimos ousados. Consigo fazê-la tombar uma vez, sem tombar em cima dela e ela consegue rodopiar agarrada ao meu braço válido, sem deslocar nada e em breve tornamo-nos um verdadeiro perigo sobre a pista de dança.

— Já decidi quem sou — digo eu, puxando-a para mim. O contacto entre os dois é maravilhoso quando o decote dela cede e os seios se erguem.

— Quem? — pergunta ela.

Respiramos ambos ofegantemente. Na testa dela formam-se gotículas de suor.

— F. Scott Fitgerald.

A Katie abana a cabeça e sorri. A ponta da língua dela surge entre os dentes. — Não podes — obsta ela. — Scott Fitzgerald não é permitido.

Estamos a falar altíssimo, com as bocas cada vez mais perto do ouvido um do outro, para nos ouvirmos por cima da música.

— Por que não? — pergunto eu, com alguns fios do cabelo dela prendendo-se-me nos lábios. Do pescoço dela emana um toque de perfume, como no outro dia... na câmara escura e a ideia de continuidade entre aqui e lá (a ideia de que na realidade somos as mesmas pessoas só que vestidos de outra maneira) é tudo do que preciso.

— Porque ele era membro do Cottage — explica ela, inclinando-se para a frente. — E isso é uma blasfémia.

Eu sorrio. — E então até que horas é que isto dura?

— O baile? Até começar a missa.

Levo um segundo a lembrar-me de que amanhã é domingo de Páscoa.

— Até à meia-noite? — pergunto.

Ela acena com a cabeça. — Kelly e os outros estão preocupados com a assistência à missa.

Quase em fíla, damos mais uma volta à pista e vemos passar a Kelly Danner, apontando com o indicador para um aluno do segundo ano com um smoking muito vistoso, como se, com um gesto de bruxa má, pretendesse transformar um príncipe num sapo. A todo-poderosa Kelly Danner, a mulher com que nem o Gil se atreve a brincar.

— Vão obrigar toda a gente a ir? — digo eu, pensando que mesmo para a Kelly essa será uma tarefa demasiado árdua.

A Katie abana a cabeça. — Vão fechar o clube e sugerir às pessoas que vão.

Há um toque de irritação na voz dela quando se refere à Kelly, portanto decido não insistir. Observando os pares que nos rodeiam, não posso deixar de pensar no Paul, que sempre pareceu solitário neste meio.

Nesse momento, o ritmo da festa é completamente quebrado pela chegada de um par, suficientemente atrasado para eclipsar todos os outros. É o Parker Hasset e a acompanhante. Fiel à sua palavra, o Parker pintou o cabelo de castanho, com uma risca bem traçada à esquerda e vestiu um smoking estilo discurso inaugural, com colete e laço branco, conseguindo uma semelhança estranhamente convincente com John Kennedy. A sua acompanhante, a sempre dramática Veronica Terry, vem também como anunciara. Com um penteado platinado e revolto, batom cor de maçã e um vestido que esvoaçava mesmo sem um respiradouro de metropolitano para o assoprar, é a imagem viva de Marilyn Monroe. O baile de máscaras começou. Numa sala cheia de candidatos, a coroa vai para estes dois.

No entanto, a recepção à chegada de Parker, é fatal. O silêncio instala-se na sala; de vários cantos vêm assobios. Ao verificar que o Gil, assomando ao patamar do segundo andar, é o único capaz de acalmar a multidão, percebo que a honra de ser o último a chegar deveria ter sido para ele e que o Parker tinha aparecido como presidente no próprio baile do presidente.

Por insistência do Gil, o clima da sala arrefece lentamente. O Parker desvia-se rapidamente na direcção do bar e depois traz um copo de vinho para a Veronica Terry e outro para si, um em cada mão, e dirige-se para a pista de dança. Aproxima-se num passo arrogante;

nada na sua expressão denuncia que ele é já a pessoa menos popular naquela sala. Quando se aproxima mais, apercebo-me de como o consegue. Desloca-se numa nuvem de vapores de cocktails, já bêbado.

Quando ele se aproxima, a Katie chega-se mais a mim, mas não dou por isso até reparar no olhar que eles trocam. O Parker lança-lhe um olhar eloquente, insidioso, sexual e autoritário, tudo ao mesmo tempo e a Katie puxa-me pela mão, afastando-me da pista de dança.

— O que é que aconteceu? — pergunto eu quando já ninguém nos pode ouvir.

A banda está a tocar uma música de Marvin Gaye, as guitarras gemem e os tambores ressoam: é o tema da chegada do Parker. John Kennedy esfrega-se em Marilyn Monroe, o estranho espectáculo de fornicação histórica, e todos os outros pares os evitam, é a quarentena dos leprosos sociais.

A Katie parece perturbada. Toda a magia da nossa dança se evaporou.

— Esse filho da puta — diz ela.

— O que é que ele fez?

E depois, de repente, vem tudo cá para fora, a história que eu não ouvi, porque não estava lá; a que ela não tinha qualquer intenção de me contar para já.

— O Parker tentou fazer-me o «terceiro andar» na selecção para admissão. Ele disse que me ia boicotar se eu não fizesse uma dança erótica. Agora diz que foi brincadeira.

Estamos no meio da sala principal, suficientemente perto da pista de dança para ver as mãos do Parker nas ancas da Verónica.

— Grande filho da puta. E o que é que lhe fizeste?

— Contei ao Gil. — Quando menciona o seu nome, os olhos dela dirigem-se para as escadas, onde o Gil está a conversar com dois alunos do terceiro ano.

— E foi tudo?

Estou à espera de que ela invoque o nome do Donald, para me lembrar de onde é que eu devia ter estado, mas não.

— Foi — limita-se ela a dizer. — E ele correu com o Parker do processo de candidaturas.

Sei que ela está a querer dizer que eu não devo ligar, que ela nem tencionava que eu descobrisse desta maneira. Ela já passou por muito. Mas a minha temperatura está a subir.

— Vou dizer umas coisas ao Parker — decido eu.

A Katie olha para mim incisivamente. — Não, Tom. Esta noite, não.

— Ele não pode andar por aí a...

— Olha — diz ela, interrompendo-me. — Esquece. Não vamos deixar que ele estrague a nossa noite.

— Só estava a tentar...

Ela põe-me um dedo nos lábios. — Eu sei. Vamos para outro sítio qualquer.

Ela olha em redor, mas, para onde quer que nos viremos, só se vêem smokings, conversas, copos de vinho e homens com bandejas de prata. Esta é a magia de Ivy. Nunca estamos sós.

— Talvez possamos ir para a Sala do Presidente — sugiro eu.

Ela assente. — Vou pedir ao Gil.

Reparo no tom de confiança na sua voz quando pronuncia o nome dele. O Gil foi correcto para com ela, mais do que correcto, possivelmente sem dar por isso. Ela veio ter com ele por causa do Parker quando não me conseguia encontrar em lugar algum. Ele é a primeira pessoa em que ela pensa agora, para uma pequena coisa. Talvez seja importante para ela conversarem durante o pequeno-almoço, mesmo que ele quase se esqueça disso. O Gil tem sido para ela o irmão mais velho, da mesma forma que o foi para mim no meu primeiro ano. Qualquer coisa que seja bom para ele, é bom para nós os dois.

— Não há problema — diz ele. — Não vai lá estar ninguém. Portanto, sigo a Katie, para o andar de baixo, observando os movimentos dos seus músculos debaixo do vestido, a forma como ela move as pernas, a tensão nas suas ancas.

Quando as luzes se acendem, vejo a divisão em que o Paul e eu trabalhámos tantas noites. O lugar continua igual: não sofreu os preparativos para o baile. É uma geografia de anotações, desenhos e livros empilhados em cordilheiras que atravessam a sala de um lado ao outro e atingem, em certos pontos, a nossa altura.

— Aqui não está tanto calor — digo eu, para dizer qualquer coisa. Parece que desligaram o termostato do resto do edifício para evitar que o primeiro piso sobreaqueça.

A Katie olha em redor. As anotações do Paul estão pregadas na pedra da chaminé; os seus diagramas decoram as paredes. Estamos rodeados por Colonna.

— Se calhar não devíamos estar aqui — diz ela.

Não sei se o que a preocupa é que nos intrometamos em qualquer coisa do Paul ou que o Paul se intrometa entre nós. Quanto mais tempo ficamos ali, de pé, examinando a sala, mais sinto a distância que se forma entre nós. Este não é o lugar adequado para as nossas necessidades.

— Ouviste falar no gato de Schrõdinger? — digo eu por fim, porque é a única forma de que me lembro para exprimir o que sinto.

— Em filosofia?

— Em qualquer sítio.

Na minha solitária aula de Física, o professor usava o gato de Schrõdinger como exemplo de mecânica ondulatória quando a maioria de nós era demasiado lenta para perceber v = —e2 / r. Um gato imaginário é colocado numa caixa fechada com uma dose de cianeto a que só tem acesso se activar um contador Geiger. A ideia, penso eu, é que é impossível saber se o gato estará vivo ou morto sem abrir a caixa; até esse momento, a probabilidade obriga-nos a dizer que a caixa contém, em partes iguais, gato vivo e gato morto.

— Sim — anui ela. — E então?

— Neste momento sinto que o gato não está nem morto nem vivo — digo eu. — Não está nada.

A Katie tenta perceber aonde é que eu quero chegar. — Tu queres abrir a caixa — diz ela por m, sentando-se na mesa.

Aceno afirmativamente, sentando-me ao lado dela. A enorme tábua de madeira aceita-nos sem se queixar. Não sei como lhe dizer o resto do que tenho na mente: que nós, individualmente, somos o cientista no exterior; que nós, juntos, somos o gato.

Em vez de responder, ela estende um dedo e passa-mo pela têmpora direita, prendendo o meu cabelo atrás da orelha, como se eu tivesse dito uma coisa encantadora. Talvez ela já saiba como decifrar o meu enigma. Nós somos maiores do que a caixa de Schrõdinger, está ela a dizer. Como um gato que se preza, nós temos nove vidas.

— Também neva assim no Ohio? — pergunta ela, mudando deliberadamente de assunto. Lá fora, eu sei, recomeçou a cair a neve, com muito mais força do que antes, todo o nosso Inverno condensado numa só tempestade.

— Em Abril, pelo menos, não — digo eu.

Estamos em cima da mesa, lado a lado, apenas separados por escassos centímetros. — Em New Hampshire também não — diz ela. — Pelo menos em Abril.

Aceito o que ela está a tentar fazer, aonde é que ela está a tentar levar-me. A qualquer sítio que não seja este. Eu sempre quis saber mais acerca da sua vida em casa, o que é que a família fazia à mesa de jantar. Upper New England, na minha imaginação, são os Alpes americanos, montanhas por todo o lado, cães são-bernardo a trazerem prendinhas.

— A minha irmã mais nova e eu costumávamos fazer uma coisa na neve — conta-me ela.

— A Mary?

Ela assente. — Todos os anos, quando o lago perto de nossa casa gelava, nós íamos fazer buracos no gelo.

— Para quê?

Ela sorri, linda. — Para os peixes poderem respirar. Os membros do clube passam pelo cimo das escadas, pequenas bolsas de calor em movimento.

— Pegávamos em cabos de vassoura e fazíamos buracos em toda a superfície do lago. Era como perfurar a tampa de um boião.

— Para os pirilampos — digo eu.

Ela acena afirmativamente e pega-me na mão. — Os patinadores odiavam-nos.

— As minhas irmãs costumavam levar-me a andar de trenó — digo eu.

Os olhos da Katie brilham. Lembra-se de que tem uma coisa em que é superior a mim: é uma irmã mais velha e eu sou um irmão mais novo.

— Não há muitas colinas em Columbus — continuo —, portanto era sempre a mesma.

— E puxavam-te até ao cimo no trenó.

— Já te contei isto?

— É o que as irmãs mais velhas costumam fazer. Não consigo imaginá-la a puxar um trenó por uma encosta acima. As minhas irmãs eram fortes como cães de carga.

— Já te falei no Dick Mayfield? — pergunto-lhe.

— Quem?

— Um tipo que a minha irmã namorava.

— O que é que ele tinha?

— A Sarah costumava arrancar-me o telefone sempre que o Dick telefonava.

Ela percebe a piada. Isto também é típico de irmãs mais velhas.

— Não creio que o Dick Mayfield tivesse o meu número de telefone. — Sorri, fechando os seus dedos dentro dos meus.

Não consigo deixar de me lembrar do Paul, da forma de encaixe que ele fez com as mãos.

— O Dick tinha o número da minha irmã — digo eu. — A única coisa de que precisou foi de ter um velho Camaro vermelho com chamas pintadas nos lados.

A Katie abana a cabeça, reprovadoramente.

— O Dick Garanhão e a sua Máquina para Garinas — acrescento.

— Disse isto uma noite, quando ele chegou, e a minha mãe obrigou-me a ir para a cama sem jantar.

Dick Mayfíeld apareceu aqui por artes mágicas. Ele chamava-me o Pequeno Tom. Uma vez fomos sair no Camaro e ele contou-me um segredo. Não interessa o tamanho. A única coisa que interessa é a potência do motor.

— A Mary namorou com um tipo que tinha um Mustang 64 — diz a Katie. — Perguntei-lhe se faziam alguma coisa no banco de trás e ela disse-me que ele era muito esquisito e que não queria sujar o carro.

Histórias de sexo sublimadas em histórias de carros, uma forma de falar de tudo, sem falar de nada.

— A minha primeira namorada tinha um VW que tinha sido inundado — disse eu. — Uma pessoa deitava-se no banco de trás e vinha logo aquele cheiro, a sushi. Não se conseguia fazer nada. Ela volta-se para mim. — A tua primeira namorada conduzia? Eu fiquei atrapalhado ao perceber o que acabara de revelar.

— Eu tinha nove anos — digo eu, aclarando a voz. — Ela tinha dezassete.

A Katie ri-se e segue-se um silêncio. Por fim, parece que chegou o momento.

— Já disse ao Paul — digo-lhe. Ela olha para mim.

— Não vou trabalhar mais no livro.

Durante um segundo, ela não reage. Leva as mãos aos ombros, esfregando-os, para aquecer. Percebo, depois de tantas pistas, de tantos contactos, que ela não se conseguiu habituar à temperatura da sala.

— Queres o meu casaco? — pergunto.

Ela aceita com um gesto. — Estou a ficar com pele de galinha. E impossível não olhar. Os braços dela estão completamente cobertos de pequeninas contas. As curvas dos seus seios estão pálidas como a pele de uma bailarina de porcelana.

— Toma — digo eu, tirando o casaco e pondo-lho em cima dos ombros.

O meu braço direito enlaça-a apenas por um segundo, mas ela segura-o. E comigo assim meio curvado em redor dela, à espera, ela encosta-se a mim. O cheiro do seu perfume regressa, trazido pelo movimento do seu cabelo. Esta é, finalmente, a sua resposta.

A Katie levanta a cabeça e eu alcanço o interior do casaco, naquele espaço negro em que ele se encontra suspenso dos seus ombros, colocando uma mão em redor da sua cintura. Os dedos agarram-se ao tecido áspero do vestido, presos numa fricção inesperada e dou por que a estou a abraçar com força e simultaneamente sem esforço. Uma madeixa de cabelo cai-lhe para a cara, mas ela não a afasta. Há uma mancha de batom mesmo por baixo do lábio dela, tão pequenina que só é visível a uma distância mínima e surpreende-me que a tenha alcançado. Depois, ela está tão perto que já nada é perceptível e um calor cola-se à minha boca quando os seus lábios se fecham sobre ela.

 

                                         CAPITULO 27

Precisamente quando o beijo se está a tornar mais profundo, ouço abrir a porta. Estou prestes a gritar com o intruso quando vejo que é o Paul que está à nossa frente.

— O que é que aconteceu? — digo, recuando.

O Paul olha em redor da sala, perturbado. — Levaram outra vez o Vincent para ser interrogado — consegue articular. O choque de encontrar a Katie na sua sala é igual ao choque dela ao vê-lo ali.

Espero que metam dentro o Taft. — Quando?

— Há uma hora ou duas. Acabei de falar com o Tim Stone, no Instituto.

Segue-se um impasse desconfortável.

— Encontraste o Curry? — pergunto, limpando o batom da minha boca.

Mas na pausa que se faz antes da resposta dele, estamos a rever em silêncio a nossa discussão acerca da Hypnerotomachia acerca das prioridades que estabeleci.

— Vim cá falar com o Gil — diz ele, pondo fim à conversa. A Katie e eu vemo-lo a deslocar-se ao longo da parede, na direcção da secretária, reunindo alguns dos seus velhos desenhos, os da cripta que ele andou a desenhar durante meses, e depois desaparecer pela porta, tão rápido como entrou. Os papéis rodopiam no chão no turbilhão que ele deixa para trás, deslocando-se numa pequena corrente perto da porta.

Quando a Katie desce da mesa, creio que consigo ler os seus pensamentos. É impossível fugir a este livro. Nem todas as decisões do mundo me tornam possível abandoná-lo. Mesmo aqui, em Ivy, onde ela pensara que estaríamos seguros, a Hypnerotomachia está por toda a parte: nas paredes, no ar. Metendo-se entre nós quando menos o esperávamos.

Todavia, para minha grande surpresa, ela está apenas concentrada nos factos que o Paul acaba de revelar. — Anda — diz ela, nu rompante de energia —, tenho de encontrar a Sam. Se prenderem o Taft, ela tem de alterar o título.

Lá em cima, na entrada principal, encontramos o Paul e o Gil a falar, num canto. A sala parece ter-se silenciado perante o espectáculo do eremita do clube a fazer uma aparição num acontecimento público deste género.

— Onde é que ela está? — pergunta a Katie, dirigindo-se ao acompanhante da Sam.

Estou demasiado distraído para ouvir a resposta. Durante dois anos imaginei que o Paul seria o objecto de todas as piadas de Ivy, a curiosidade encerrada na adega. Mas agora todos os finalistas estão concentrados nele, como se um dos retratos antigos tivesse subitamente ganho vida. A expressão no rosto do Paul é de ansiedade, quase de desespero; se por acaso se apercebeu de que todo o clube o está a observar, não dá quaisquer sinais disso. Aproximo-me mais deles, tentando ouvir, no momento em que o Paul entrega ao Gil um papel que me é familiar, dobrado. O mapa da cripta de Colonna.

Ambos se voltam para se irem embora e todo o clube fica a ver o Gil sair pela porta principal. Os finalistas são os primeiros a compreender. Um por um, os responsáveis do clube começam a bater com os nós dos dedos nas mesas, corrimãos e velhas paredes de carvalho. Brooks, o vice-presidente, é o primeiro, depois Cárter Simmons, o tesoureiro do clube; e, por fim, de todos os lados, ergue-se o bater, o martelar, o ribombar de adeus. O Parker, que está ainda na pista de dança, começa a bater mais forte do que todos os outros, na esperança de, por uma última vez, sobressair. Mas já é tarde. A saída do Gil, tal como a sua entrada quando chegámos, dá-se no tempo preciso, com a ciência de um passo de dança que só se realiza uma vez. Quando finalmente o barulho da multidão acalma, eu saio atrás deles.

— Vamos levar o Paul a casa do Taft — diz o Gil quando os encontro na Sala dos Oficiais.

— O quê?

— Está lá uma coisa de que ele precisa. Uma planta.

— Vamos lá agora.

— O Taft está na esquadra da polícia — diz ele, repetindo as explicações do Paul. — O Paul precisa de que o levemos lá.

Vejo os dentes da engrenagem a funcionar. Ele quer ajudar, da mesma forma que o Charlie ajudou; ele quer provar que o que eu disse no parque de estacionamento do hospital não é justo.

O Paul não diz nada. Percebo pela sua expressão que esta é uma viagem que ele e o Gil deveriam fazer só os dois.

Estou quase a explicar ao Gíl que não posso, que ele e o Paul têm de ir sem mim, quando tudo se torna mais complicado. A Katie aparece à porta.

— O que é que está a acontecer? — pergunta ela.

— Nada — digo eu. — Vamos voltar para dentro.

— Não consegui apanhar a Sam — diz ela, sem compreender.

— Ela tem de saber do Taft. Importas-te se eu for à redacção do Prince?

Gil entrevê a sua oportunidade. — Tudo bem. O Tom vem connosco ao Instituto. Encontramo-nos na missa.

A Katie está quase a concordar quando a minha expressão nos denuncia.

— Porquê? — pergunta ela.

O Gil limita-se a dizer: — É importante. — Pela primeira vez na história da nossa amizade, o tom em que o diz sugere que a importância a que se refere é muito mais importante do que ele próprio.

— Está bem — acede ela, a medo, pegando na minha mão. — Encontramo-nos na capela.

Ela vai acrescentar mais qualquer coisa, quando se ouve uma enorme explosão, seguida de estilhaçar de vidros.

O Gil corre para as escadas; nós corremos atrás dele e encontramos uma enorme confusão de destroços. Um líquido cor de sangue espalha-se em todas as direcções, arrastando consigo vidros partidos. No meio de tudo isto, num perímetro de que todos se retiraram, está Parker Hasset, vermelho e atrapalhado. Acabou de deitar ao chão todo o bar das bebidas, com prateleiras, garrafas e tudo.

— Que raio é que se passa aqui? — pergunta o Gil a um aluno do segundo ano que está ali perto, a olhar.

— Passou-se. Alguém lhe chamou dipsomaníaco e ele passou-se completamente.

A Veronica Terry está a levantar a saia rodada do seu vestido branco, agora tingido de cor-de-rosa e toda salpicada de vinho.

— Têm estado a chateá-lo a noite toda — grita ela.

— Por amor de Deus! — exclama o Gil. — Como é que o deixaste embebedar-se desta maneira?

Ela lança-lhe um olhar vazio, implorando piedade e recebendo desdém. Os participantes da festa que estão por ali perto falam uns com os outros em voz baixa, contendo sorrisos de satisfação.

Brooks está a pedir a um empregado que volte a montar o bar e que reabasteça as prateleiras com garrafas da adega, enquanto Donald Morgan, com o seu recente ar presidencial, tenta acalmar o Parker no meio das interpelações gerais. Da multidão erguem-se apupos de Bêbado! e Alcoólico! E outros, todos piores. As gargalhadas roçam o insulto. Parker está do outro lado da sala, em frente de mim, tem dezenas de pequenos cortes feitos pelas garrafas derrubadas e está no meio de uma enorme poça de bebidas misturadas, como uma criança apanhada a misturar os fundos dos copos. Quando por fim se volta para Donald, está numa fúria.

A Katie leva a mão à boca perante a cena que se segue. O Parker atira-se ao Donald e caem os dois no chão, primeiro lutando, depois socando-se violentamente. Este é o espectáculo que todos aguardavam: o Parker a pagar por um milhão de ofensas mesquinhas, justiça por tudo o que ele fez no terceiro andar, violência para pôr fim a dois anos de ódios acumulados. Um empregado chega com uma esfregona, criando o espectáculo de um homem a limpar o chão lado a lado com uma luta. Sobre o chão de madeira, as correntes de vinho e licor cruzam-se, reflectindo as paredes de carvalho e nem uma gota é absorvida, quer pela esfregona, quer pela carpete nem sequer pêlos smoking dos dois homens que continuam a lutar, num grande turbilhão de pernas e braços negros, como um insecto tentando erguer-se antes de se afogar.

— Vamos — diz o Gil, contornando a rixa que neste momento é já o problema de outro.

O Paul e eu seguimo-lo, em silêncio, patinhando no pântano de whisky, brandy e vinho.

Os caminhos que percorremos são finas linhas pretas num grande vestido branco.

O Saab avança com segurança, mesmo com o Gil a carregar no acelerador e o vento a assobiar à nossa volta. Em Nassau Street dois carros bateram, as luzes piscam, os condutores discutem, as sombras tremem contra dois camiões de reboque parados na curva. Um zelador surge do quiosque da segurança na zona norte do campus, rosado à lu da sinalização de segurança, gesticulando para nos dizer que a entrada está fechada... Mas o Paul está já a conduzir-nos para fora do campu, para oeste. O Gil mete a terceira e depois a quarta, passando ruas que se assemelham a riscas.

— Mostra-lhe a carta — pede o Gil. O Paul tira de dentro do casaco qualquer coisa e volta-se para mim, que vou no banco de trás, para ma entregar.

— O que é isto?

O envelope foi rasgado no cimo, mas o canto superior esquerdo deixa ainda ver o selo do Conselho Científico.

— Estava na nossa caixa do correio esta noite — diz o Gil.

Mr. Harri,

esta carta serve para o notificar que o meu gabinete esta a levar a cabo uma investigação relativamente a alegado plagio, levantada contra si pelo seu orientador de tese, Dr. Vincent aft. Dada a natureza da alegação, e o seu efeito na sua licenciatura, realizar-se-á na próxima semana uma reunião extraordinária da Comissão de Disciplina para considerar o seu caso e tomar uma decisão. Por favor, entre em contacto comigo para combinarmos um encontro preliminar e para confirmar a recepção desta carta.

Cordialmente,

Marshall Meadows

Vice-Presidente do Conselho Científico dos finalistas

— Ele sabia o que é que estava a fazer — diz o Paul quando eu acabo de ler.

— Quem?

— O Vincent. Esta manhã.

— Ao ameaçar-te com a carta?

— Sabia que não tinha provas contra mim. Então começou a falar no teu pai.

Na voz dele insinua-se uma acusação. Tudo regressa ao momento em que eu empurrei o Taft.

— Tu é que correste — digo eu entre dentes. A lama salpica a carroçaria do carro quando a suspensão salta por cima de um buraco.

Fui também eu quem chamou a polícia — adianta ele.

O quê?

— Foi por isso que a polícia levou o Vincent — explica ele. — Disse-lhes que o vi perto de Dickinson quando o Bill foi atingido.

— Mentiste-lhes.

Estou à espera de que o Gil reaja, mas ele não tira os olhos da estrada. Fixando a nuca do Paul, tenho a estranha sensação de estar a olhar para mim próprio por trás, de estar de novo dentro do carro do meu pai.

— É aqui? — pergunta o Gil.

As casas que se erguem à nossa frente são decoradas com riscas brancas. Na do Taft as janelas estão todas às escuras. Mesmo por trás dela fica o limite dos bosques do Instituto, com as copas cobertas de branco.

— Ainda está na esquadra — diz o Paul quase para consigo. — As luzes estão apagadas.

— Jesus, Paul — digo eu. — Tu nem sequer sabes se a planta está aqui.

— É o único sítio em que ele a pode ter escondido. O Gil nem nos ouve. Perturbado pela visão da casa de Taft, alivia a pressão no travão e deixa o carro seguir em ponto morto, pronto para meter a marcha-atrás. Mas quando o pé dele está quase a tocar na embraiagem, o Paul abre a porta e atira-se para fora.

— Porra. — O Gil pára o Saab e sai. — Paul!

O vento assobia contra a porta no momento em que ele a abre, abafando as suas palavras. Vejo o Paul dizer qualquer coisa, apontando para a casa, mas não ouço. Começa a avançar para ela, no meio da neve.

— Paul... — Saio do carro, tentando manter a voz baixa. Acende-se uma luz numa casa vizinha, mas o Paul nem presta atenção. Aproxima-se rapidamente do alpendre de Taft e encosta o ouvido à porta, batendo levemente.

O vento assobia por entre as colunas da fachada, arrancando tufos de neve das caleiras. A luz na janela da casa ao lado apaga-se. Ao ver que não há resposta, o Paul tenta abrir a porta, mas está bem fechada.

— O que é que fazemos? — diz o Gil, ao lado dele. O Paul volta a bater e depois tira do bolso uma argola com chaves e enfia uma na fechadura. Encostando um ombro à madeira, abre a porta. Os gonzos gemem.

— Não podemos fazer isto — digo eu, avançando para eles, tentando impor alguma autoridade.

Mas o Paul já está lá dentro, perscrutando o primeiro andar. Sem uma palavra, entra para dentro de casa.

— Vincent? — ouve-se a voz dele, atravessando a escuridão. — Vincent, está aqui?

As palavras distanciam-se. Ouço passos numa escada e depois mais nada.

— Aonde é que ele foi? — diz o Gil, aproximando-se de mim.

Sente-se no ar um cheiro estranho. Distante mas forte. O vento entra pelas nossas costas, abanando os nossos casacos, fazendo ondular no ar o cabelo do Gil. Volto-me e fecho a porta atrás de nós. O telemóvel do Gil começa a tocar.

Ligo um interruptor na parede, mas a sala continua às escuras. Os meus olhos começam a adaptar-se. Na minha frente está a sala de jantar do Taft, com mobília barroca, paredes escuras e cadeiras de garras. Ao fundo há uma escada.

O telemóvel do Gil volta a tocar. Ele está atrás de mim e chama pelo Paul. O cheiro intensifica-se. Há três objectos pousados desordenadamente na mesinha aos pés da escada. Uma carteira esfarrapada, um conjunto de chaves e uns óculos de sol. Subitamente tudo faz sentido.

Volto-me para trás. — Atende o telefone.

Ainda ele está a levar a mão ao bolso, já eu estou a subir as escadas.

— Katie?... — ouço-o dizer.

Tudo são sombras sobre sombras. A escada parece fracturada, como a escuridão, através de um prisma. A voz do Gil soa mais alto.

— O quê P Jesus...

Depois ele corre pelas escadas acima, empurra-me pelas costas, grita-me para me apressar, diz-me o que eu já sabia.

— O Taft não está na esquadra. Libertaram-no ha mais de uma hora. Chegamos ao patamar mesmo a tempo do grito do Paul. O Gil empurra-me para a frente, na direcção do som. Como a sombra de uma onda no momento imediatamente anterior ao impacto, percebo que é demasiado tarde, que já aconteceu. O Gil empurra-me para o lado e corre por um corredor à direita e eu tenho consciência de mim próprio por lampejos, nos intervalos entre os meus movimentos instintivos. As minhas pernas mexem-se. O tempo torna-se mais lento; o mundo está a avançar a baixa velocidade.

— Ó meu Deus — geme o Paul. — Ajuda-me.

As paredes do quarto estão invadidas pelo luar. A voz do Paul vem da casa de banho. O cheiro vem daqui, a fogo-de-artifício e pistolas de fulminantes, a coisas em desordem. Há sangue nas paredes. Na banheira está um corpo. O Paul está de joelhos, dobrado sobre o rebordo de porcelana.

O Taft está morto.

O Gil sai aos trambolhões do quarto, mas os meus olhos percorrem o cenário. O Taft está deitado para cima, dentro da banheira, com as entranhas espalhadas por cima dele. Tem um tiro no peito e outro entre os olhos, com um rio de sangue ainda a correr pela testa. Quando o Paul estende um braço trémulo, sinto uma vontade irreprimível de rir. A sensação invade-me e depois dissipa-se. Sinto-me atordoado, quase embriagado.

O Gil está a chamar a polícia. É uma emergência — diz ele. — Olden Street. No Instituto.

A voz dele soa muito alto, no silêncio. O Paul murmura o número da porta e o Gil repete-o para o telefone.

— Depressa.

Subitamente o Paul levanta-se. — Temos de sair daqui.

— O quê?

Estou a começar a recuperar a noção das coisas. Pouso a mão no ombro do Paul, mas ele dispara para o quarto, procurando por toda a parte — por baixo da cama, no espaço entre as portas do armário do Taft, em espaços ao acaso em estantes altas.

— Não está aqui... — diz ele. Depois volta-se, atingido por um qualquer pensamento. — O mapa! — exclama bruscamente. — Onde está o meu mapa?

O Gil olha para mim como se fosse, definitivamente, o sinal de que o Paul enlouqueceu.

— No cofre, em Ivy — diz ele, levando o Paul pelo braço.

— Onde o guardámos.

Mas o Paul sacode-o e dirige-se sozinho para a escada. Ao longe começam a ouvir-se as sirenes.

— Não podemos sair — grito eu.

O Gil olha para mim, mas vai atrás dele. As sirenes estão agora mais perto — a quarteirões de distância, mas a aproximarem-se. Lá fora, pela janela, as colinas estão da cor do metal. Numa igreja, algures, celebra-se a Páscoa.

— Menti à polícia acerca do Vincent — grita o Paul em resposta.

— Não posso estar aqui quando o encontrarem.

Sigo-os pela porta da frente, correndo para o Saab. O Gil liga o motor, carrega a fundo e o carro ruge, em ponto morto, com barulho suficiente para fazer acender as luzes na janela da casa ao lado. Metendo a primeira, acelera de novo. Quando os pneus se agarram ao asfalto, o carro arranca disparado. No preciso momento em que o Gil mete por uma rua ao lado, o primeiro carro-patrulha chega pelo extremo oposto da rua. Vemo-lo chegar em frente da casa do Taft e parar.

— Para onde é que vamos? — pergunta o Gil, olhando para o Paul pelo retrovisor.

— Ivy — decide ele.

 

                                       CAPITULO 28

Quando chegamos, o clube está em silêncio. Alguém encheu o chão da sala principal com panos para ensopar o álcool que o Parker espalhou, mas continuam a brilhar poças de bebidas. As cortinas e toalhas estão manchadas. Não se vê pessoal nenhum. Parece que o Kelly Danner esvaziou completamente o clube.

A carpete da escada que leva ao primeiro andar está húmida das pegadas dos participantes que espalharam o álcool com os sapatos. Na entrada para a Sala dos Oficiais, o Gil fecha a porta e liga a luz do tecto. Os restos do bar partido estão empurrados para um canto. O fogo foi deixado na lareira, a apagar-se lentamente, mas as brasas estão ainda vivas, lançando para o ar chamas e calor intenso.

Ao ver o telefone na mesa, penso no número que não me vinha à ideia quando o telemóvel do Gil ficou sem bateria e subitamente percebo o que é que se passa. Uma falha de memória; uma falta de comunicação. A linha que ligava Richard Curry ao Paul estava cheia de estática e a mensagem do Curry perdeu-se. No entanto, a exigência de Curry tinha sido muito claramente formulada.

Diz-me onde está a planta, Vincent, dissera ele na conferência de Sexta-Feira Santa, e não me voltarás a ver. É o único asunto que temos já em comum. Mas o Taft recusara.

O Gil escolhe uma chave e abre o cofre de mogno. — Cá está — diz ele para o Paul, tirando o mapa.

Vejo de novo o Curry a avançar para o Paul no pátio e depois a voltar para trás, na direcção da capela, de Dickinson Hall e do gabinete de Bill Stein.

—Jesus — diz o Gil —, como é que vamos resolver isto?

— Chama a polícia — sugiro eu. — O Curry pode vir à procura do Paul.

— Não — diz o Paul. — Ele não me vai fazer mal.

Mas o Gil referia-se a outra coisa: como íamos resolver a questão de termos fugido da casa do Taft. — O Curry matou o Taft? — pergunta ele.

Eu tranco a porta. — E matou o Stein.

De repente falta o ar dentro da sala. Os destroços do bar sobem do andar de baixo, traendo um cheiro doce e podre.

O Gil está à cabeceira da mesa, sem palavras.

— Ele não me vai fazer mal — repete o Paul.

Mas eu lembro-me da carta que encontrámos na secretária do Stein. Tenho uma proposta para si. Ha aqui que chegue e sobre para os dois. Seguida da resposta do Curry, que até agora eu tinha interpretado erradamente: — E o Paul?

— Vai fazer, vai — digo eu.

— Estás enganado Tom — responde bruscamente o Paul. Mas eu estou a ver cada vez mais claramente aonde tudo isto vai levar.

— Tu mostraste o diário ao Curry quando fomos à exposição — digo eu. — Ele sabia que o Taft o tinha roubado.

— Sim, mas...

— O Stein até lhe disse que iam roubar a tua tese. O Curry queria apanhá-la antes dos outros.

— Tom...

— Depois, no hospital, contaste-lhe tudo o que tinhas descoberto. Disseste-lhe até que andavas à procura da planta.

Pego no telefone, mas o Paul pousa a mão no auscultador, colocando-o no descanso.

— Pára, Tom — pede-me ele. — Ouve-me.

— Ele matou-os.

Agora é o Paul que se inclina, parecendo destroçado, para dizer uma coisa que o Gil e eu não esperamos.

— Sim. É o que vos estou a dizer. Importam-se só de ouvir? Foi o que ele quis dizer no hospital. Lembras-te? Precisamente antes de tu entrares na sala de espera? Nós compreendemo-nos, filho. Ele disse-me que não conseguia dormir, porque estava preocupado por minha causa.

— E então?

A voz do Paul estremece. — Depois ele disse: Se eu soubesse o que tu ias fazer, eu teria agido de outra maneira. O Richard pensou que eu sabia que ele tinha morto o Bill. Ele queria dizer que teria agido de outra maneira se soubesse que eu iria sair mais cedo da conferência do Vincent. Assim, a polícia não iria à minha procura.

O Gil começa a andar de um lado para o outro. No outro lado da sala um toro de madeira parte-se na lareira.

— Lembras-te do poema que ele citou na exposição?

— Browning. «Andrea dei Sarto.»

— Como era?

— Tu fazes o que muitos sonharam ao longo de toda a sua vida — digo eu. — «Sonhar? Lutam por o fazer, agonizam por o fazer e não conseguem fazer.»

— Por que é que ele escolheria esse poema?

Por que tinha a ver com o quadro de Dei Sarto. O Paul bate com a cabeça na mesa.

— Não. Porque nós decifrámos o que ele, o teu pai e o Vincent nunca conseguiram decifrar. O que o Richard sonhou fazer toda a sua vida. O que ele lutou, agonizou e não conseguiu fazer.

Invade-o uma frustração que eu não via desde que trabalhávamos juntos e que ele parecia esperar que pudéssemos funcionar como um organismo único, pensar um pensamento único. Não deveria levar-te tanto tempo. Não deveria ser tão difícil. Estamos de novo a decifrar enigmas, retirando significados de um homem que ele acha que deveríamos conhecer igualmente. Para o Paul, eu nunca fui capaz de compreender inteiramente Colonna, ou o Curry.

— Não percebo — diz o Gil, vendo que qualquer coisa surgiu entre nós os dois, qualquer coisa exterior à sua experiência.

— Os quadros — diz o Paul, continuando a dirigir-se a mim, esforçando-se por me fazer ver. — As histórias de José. Eu até te disse o que significavam. Só não sabíamos aonde é que o Richard queria chegar. Então Jacob amava José mais do que todos os seus outros filhos, porque ele era filho da sua idade avançada. E fez-lhe um casaco de muitas cores.

Ele espera um sinal qualquer da minha parte, que eu lhe diga que compreendo, mas não posso.

— É uma prenda — diz ele finalmente. — O Richard pensa que me está a dar uma prenda.

— Uma prenda — pergunta o Gil. — Tu endoideceste? Qual prenda?

— Isto — declara o Paul estendendo os braços, abarcando tudo.

— O que ele fez ao Bill. O que ele fez ao Vincent. Impediu-os de mo roubarem. Ele está a dar-me o que eu descobri na Hypnerotomachia.

Há uma terrível serenidade na forma como o diz, medo, orgulho e tristeza misturados com uma tranquila certeza.

— O Vincent roubou-lho a ele, há trinta anos — afirma o Paul.

— O Richard não podia permitir que me acontecesse o mesmo a mim.

— O Curry mentiu ao Stein — digo eu, não o querendo ver ser enganado por um homem que se aproveita da fragilidade de um órfão. — Ele mentiu ao Taft. E está a fazer a mesma coisa contigo.

Mas o Paul já ultrapassou a margem de quaisquer dúvidas. Para lá do horror e incredulidade na sua voz há algo que se aproxima da gratidão. Estamos de novo num mundo de quadros emprestados, numa exposição no museu da paternidade que o Curry construiu para o filho que nunca teve e os gestos tornaram-se de tal modo grandiosos que os motivos deixaram de ter importância. E a alavanca final. Faz-me pensar que o Paul e eu não somos irmãos. Que acreditamos em coisas diferentes.

O Gil começa a falar, metendo-se entre nós para trazer a discussão de regresso à terra, quando se ouve um som de passos arrastados, vindos do lado de fora da porta. Voltamo-nos todos.

— Que raio foi aquilo? — interroga o Gil. Então ouve-se a voz do Curry.

— Paul — murmura ele, muito junto à porta, do lado de fora. Ficamos todos imóveis.

— Richard — diz o Paul, reagindo. E antes que o Gil ou eu pudéssemos impedi-lo, ele agarra o fecho da porta.

— Sai daí! — diz o Gil.

Mas o Paul já destrancou a porta e uma mão do lado de fora começa a rodar o puxador.

E na entrada, com o mesmo fato preto da noite passada, surge Richard Curry. Tem os olhos muito abertos, assustados. Tem qualquer coisa na mão.

— Preciso de falar a sós com o Paul — diz ele numa voz rouca. O Paul vê aquilo que todos vemos: a leve mancha de sangue junto do colarinho da camisa.

— Saia daqui! — brada o Gil.

— O que é que fez? — diz o Paul.

O Curry olha estupefacto para ele, depois levanta um braço, segurando qualquer coisa na mão estendida.

O Gil avança para o corredor. — Saia! — repete ele. O Curry ignora-o. — Eu tenho-a, Paul. A planta. Toma.

— Não te aproximes dele — diz o Gil, com um estremecimento na voz. — Vamos chamar a polícia.

Os meus olhos, adaptados ao escuro, fixam a mão do Curry. Avanço para a entrada, ao lado do Gil, ficando ambos em frente do Paul. Porém, quando o Gil pega no telemóvel, o Curry aproveita-se da nossa distracção momentânea. Num movimento único, mete-se entre nós, empurrando o Paul para a Sala dos Oficiais e bate com a porta. Antes que Gil e eu tenhamos podido fazer um movimento, ouvimos o fecho de segurança.

O Gil bate na madeira com os punhos. — Abra! — grita ele, empurrando-me para trás e atirando o ombro contra a porta. O espesso painel de madeira não cede. Recuamos para tomar balanço e atiramo-nos os dois contra a porta até que a fechadura parece começar a ceder. De cada vez, ouço sons do outro lado.

— Mais uma — grita o Gil.

Ao terceiro empurrão, o fecho de metal salta do encaixe e a porta abre-se bruscamente com o som de um tiro.

Somos catapultados para dentro da sala e vemos o Curry e o Paul, um de cada lado da lareira. O Curry continua com a mão estendida. O Gil atira-se a eles, batendo violentamente no Curry e atirando-o ao chão, ao lado da lareira. A cabeça do Curry empurra a protecção metálica, fazendo voar faúlhas e pulsar subitamente as cinzas com cor.

— Richard — diz o Paul, correndo para ele.

O Paul puxa o Curry para fora da lareira e encosta-o ao bar. O golpe na cabeça do homem está a deitar sangue que lhe escorre para os olhos e ele luta para se orientar. Só agora é que vejo a planta na mão do Paul.

— Está bem? — pergunta-lhe o Paul, sacudindo o Curry pêlos ombros. — Ele precisa de uma ambulância!

Mas o Gil está atento. — A polícia trata dele.

E então que eu sinto a grande onda de calor. As costas do casaco do Curry incendiaram-se. O bar está em chamas.

— Para trás! — grita o Gil.

Mas eu estou paralisado. O fogo ergue-se até ao tecto, trepa pelas cortinas, pela parede. Aceleradas pelo álcool, as chamas avançam rapidamente, engolindo tudo em seu redor.

— Tom! — berra o Gil. — Foge daí! Vou buscar um extintor! Com a ajuda do Paul, o Curry está a pôr-se de pé. Subitamente ohomem empurra o Paul e avança aos trambolhões para o corredor, arrancando o casaco.

— Richard — suplica o Paul, atrás dele.

O Gil atravessa a porta a correr e começa a regar as cortinas com o extintor. Mas o fogo propaga-se demasiado rapidamente para poder ser controlado. O fumo sai em rolos pela porta, percorrendo o tecto.

Por fim, retiramo-nos para a porta, forçados pelo calor e pelo fumo. Cubro a boca com a mão, sentindo os pulmões sufocados.

Quando me volto para a escada, vejo o Paul e o Curry, à luta, através de uma espessa nuvem de fumo negro. As suas voes sobem de tom.

Grito pelo nome do Paul, mas as garrafas do bar começam a explodir, abafando o som da minha voz. O Gil é atingido pela primeira vaga de estilhaços. Puxo-o para fora do caminho, enquanto ao mesmo tempo espero ouvir a resposta do Paul.

Depois ouço-a, vinda do meio do fumo. — Corre, Tom! Foge!

Pelas paredes espalham-se pequeninos focos de fogo. O gargalo de uma garrafa vem disparado pelo ar por cima das escadas; fica suspenso por cima de nós, espalhando chamas e depois cai para o primeiro andar.

Durante um segundo, não acontece nada. Depois o vidro cai no monte de panos ensopados, encontra o whisky o brandy e o gin e todo o piso se ilumina subitamente. Lá de baixo vêm sons de rebentamentos, madeira a arder, fogo a espalhar-se. A porta da frente está bloqueada. O Gil grita para o telemóvel, pedindo ajuda. O fogo sobe até ao segundo andar. A minha mente parece invadida por centelhas, quando fecho os olhos vejo uma luz muito branca. Estou a flutuar, transportado pelo calor. Tudo parece muito lento e muito pesado. O estuque do tecto cai com estrondo no chão. A pista de dança tremeluz como uma miragem.

— Como é que vamos sair? — grito.

— Pela escada de serviço — diz o Gil. — Para cima.

— Paul! — grito eu.

Mas não obtenho resposta. Avançaram na direcção das escadas e as vozes deles desapareceram. O Paul e o Curry desapareceram.

— Paul — bramo eu.

O fogo engoliu a Sala dos Oficiais e começa a vir na nossa direcção. Sinto uma dormência estranha na coxa. O Gil volta-se para mim e aponta. A perna das minhas calças está rasgada de alto a baixo. O sangue escorre pelo tecido do smoking, negro sobre negro. Ele tira o casaco e ata-o em volta do golpe. O túnel de fogo parece fechar-se em nosso redor, fazendo-nos precipitar pelas escadas acima. O ar está quase negro.

O Gil empurra-me para o terceiro andar. Lá em cima nada está visível, apenas tonalidades de sombra. Uma tira de luz passa por baixo de uma porta ao fundo do corredor. Avançamos. O fogo chegou ao fundo da escada, mas parece manter-se por ali.

E de repente, ouço-o. Um estrondo enorme, de qualquer coisa a cair, vem de dentro da sala.

Por um momento ficamos paralisados pelo som. Depois o Gil avança e abre a porta. Quando o faz, a sensação de embriaguez do baile invade-me de novo. O calor do corpo, como o zumbido do voo. O toque da Katie, a respiração da Katie, os lábios da Katie.

O Richard Curry está a discutir com o Paul atrás de uma mesa comprida, ao fundo da sala. Na mão tem uma garrafa vazia. A cabeça dele balouça sobre os ombros, escorrendo sangue. Ali só se sente o cheiro do álcool, os restos de uma garrafa derramada sobre a mesa, um armário aberto na parede, revelando mais um esconderijo de bebidas, o segredo de um antigo presidente de Ivy. A sala é tão grande como as fundações do edifício, emoldurada em prata pelo luar. Prateleiras de livros forram as paredes, com lombadas de couro a recortarem-se no escuro, por trás da cabeça do Curry. Na parede virada a norte, há mais duas janelas. Por todos os lados brilham poças.

— Paul! — grita o Gil. — Ele está a bloquear a escada de serviço atrás de ti.

O Paul volta-se para olhar, mas os olhos do Curry estão fixos no Gil e em mim. Fico paralisado pela visão dele. As rugas do seu rosto estão tão marcadas que parece que a gravidade está a puxar por ele, a arrastá-lo para baixo.

— Richard — diz o Paul firmemente, como se falasse com uma criança —, temos todos de sair.

— Afasta-te — grita o Gil, avançando.

Mas nesse momento o Curry parte a garrafa na mesa e ataca, ferindo o braço do Gil com o gargalo partido. O sangue escorre por entre os dedos do Gil, como fitas pretas. Ele recua, a olhar o sangue que corre do braço. Ao ver isto, o Paul deixa-se cair contra a parede.

— Toma — grito eu, tirando o lenço do bolso.

O Gil move-se lentamente. Quando estende a mão para agarrar no lenço, vejo como o corte é profundo. Assim que a pressão diminui, o sangue recomeça a correr.

— Vai! — digo eu, empurrando-o para a janela. — Salta! Os arbustos vão atenuar a queda.

Mas ele está paralisado, fixando o gargalo da garrafa na mão do Curry. Agora a porta da biblioteca começa a estalar pelo efeito do ar quente lá fora. Por baixo da porta começam a entrar cordões de fumo e eu sinto os olhos a chorar e o peito oprimido.

— Paul — grito, no meio do fumo. — Tems de sair!

— Richard — grita o Paul. — Vamos!

— Deixe-o ir! — grito eu para o Curry, mas neste momento o fogo ruge, forçando a entrada. De trás da porta ouve-se um som terríve de coisas a rasgarem-se, de madeira a partir-se debaixo do seu próprio peso.

Subitamente o Gil cai contra a parede, ao meu lado. Corro para abrir a janela, puxando-o para o parapeito, lutando para o manter direito.

— Ajuda o Paul... — murmura o Gil e é a última coisa que me diz antes de a vida começar a abandonar os seus olhos.

Um vento gelado atravessa a sala, arrastando a neve dos arbustos lá em baixo. Com o maior cuidado possível, levanto-o. Naquela luz tem um ar angelical, calmo, mesmo neste momento. Olhando para o lenço ensanguentado seguro ao seu braço apenas pelo próprio peso, começo a sentir tudo desvanecer-se em meu redor. Com um último olhar, deixo-o cair. Num instante, o Gil desapareceu.

— Tom — ouço a vo do Paul, tão distante que me parece vinda de dentro de uma nuvem de fumo. — Foge!

Volto-me e vejo o Paul a lutar nos braços do Curry, tentando puxá-lo para a janela, mas o velho é muito mais forte. Não se move um passo. Em vez disso, o Curry empurra o Paul para a escada de serviço.

— Salta! — ouço atrás de mim vozes que vêm pela janela aberta. — Salta!

São os bombeiros que me localizaram no interior. Mas eu volto para trás. — Paul! — grito. — Anda!

— Vai, Tom — ouço-o dizer pela última vez. — Por favor. As palavras distanciam-se demasiado depressa, como se o Curry o arrastasse no meio da névoa. Regressam os dois às velhas fogueiras,

lutando como anjos através das vidas dos homens.

— Para baixo — é a última palavra que ouço, vinda de dentro da sala, na voz do Curry. — Para baixo.

E lá de fora, de novo: — rápido! Salta!

— Paul — grito eu, recuando até ao parapeito da janela, encurralado pelas chamas. O fumo comprime-me o peito como um punho. Do outro lado da sala, a porta da escada de serviço fecha-se com um estrondo. Não se vê ninguém. Deixo-me cair.

Estas são as últimas coisas de que me lembro antes de ser engolido pela neve. Depois há apenas uma explosão, como uma madrugada à meia-noite. Uma conduta de gás faz cair por terra o edifício. E a fuligem começa a cair.

NU silencio, os meus gritos. Grito para os bombeiros. Para o Gil. Para quem quer que seja que me ouça. Eu vi, grito eu: eu vi o Richard Curry a abrir a porta da escada de serviço, a arrastar o Paul com ele.

— Ouçam-me.

E no princípio, ouvem. Dois bombeiros, ao ouvirem-me, aproximam-se do edifício. Um médico, ao meu lado, tenta compreender. — Que escada? — pergunta ele. — Por onde saem?

— Pêlos túneis — digo eu. — Saem pêlos túneis.

Depois o fumo dispersa-se, as mangueiras revelam a fachada do clube e as coisas começam a mudar. As pessoas dedicam-se menos a procurar, dedicam-se menos a ouvir. Não ficou nada, dizem eles, na lentidão dos seus passos. Não há ninguém lá dentro.

— O Paul está vivo — grito eu. — Eu vi-o.

Mas cada segundo que passa é uma probabilidade contra ele. Cada minuto é um punhado de areia. Pela forma como o Gil me olha, percebo que muito mudou.

— Eu estou bem — diz ele aos médicos que ligam o seu braço. Limpa a cara molhada e aponta para mim. — Ajudem o meu amigo.

A lua paira sobre nós como um olho vigilante e eu fico ali, sentado, olhando através dos homens silenciosos que varrem com as mangueiras o edifício destruído e imagino a voz do Paul. De uma forma ou de outra — está ele a dizer, muito longe, olhando para mim por cima de uma chávena de café, eu sinto como se ele também fosse meu pai. Por cima da cortina negra do céu, vejo o seu rosto, tão cheio de certezas que eu continuo a acreditar nele, mesmo agora.

E então, o que é que pensas? está ele a perguntar-me.

Acerca de ires para Chicago?

Acerca de irmos para Chicago.

Não me lembro para onde nos levaram nessa noite, nem que perguntas nos fizeram. O fogo continuava a brilhar na minha frente e a voz do Paul murmurava aos meus ouvidos, como se ele ainda se pudesse erguer de entre as chamas. Antes de nascer o dia, vi milhares de rostos em frente de mim, trazendo mensagens de esperança: amigos arrancados aos seus quartos pelo fogo; professores acordados nas suas camas pelo som das sirenes; a própria missa na capela foi interrompida a meio por todo este espectáculo. E reuniram-se em nosso redor como um tesouro em movimento, cada rosto valendo uma moeda, como se uma força superior tivesse declarado que deveríamos sofrer as nossas perdas contando o que restava. Talvez eu tivesse então consciência de que estávamos a entrar numa pobreza muito, muito rica. Que humor negro o dos deuses que tinham feito isto. O meu irmão Paul sacrificado na Páscoa. A concha de tartaruga da ironia deixada cair com força sobre as nossas cabeças.

Nessa noite, nós os três sobrevivemos juntos, por necessidade. Encontrámo-nos no hospital, o Gil, o Charlie e eu, colegas de cama uma vez mais. Nenhum de nós falou. O Charlie segurava entre os dedos o crucifixo que lhe pendia ao pescoço, o Gil dormia e eu olhava para as paredes. Sem notícias do Paul, todos nós investíamos no mito da sua sobrevivência, o mito da sua ressurreição. Eu não devia ter acreditado que existe numa amizade alguma coisa de indivisível, assim como não existe numa família. E contudo, o mito nessa altura manteve-me vivo. Então e depois, para sempre.

Mito, digo eu. E nunca esperança.

Porque a caixa da esperança está vazia.

 

                                   CAPÍTULO 29

O tempo, como um médico, lavou as mãos relativamente a nós. Mesmo antes de o Charlie ter saído do hospital, já nós éramos notícias ultrapassadas. Os colegas olhavam para nós como se estivéssemos fora do contexto, memórias fugitivas com uma aura de antiga importância.

Dentro de uma semana, a nuvem de violência que ensombrara Princeton tinha-se dissipado. Os estudantes voltaram a andar pelo campus depois do anoitecer, primeiro em grupos, depois sozinhos. Incapaz de dormir, eu ia até ao WaWa a meio da noite, só para ver gente. O Richard Curry continuava a viver nas suas conversas. Assim como o Paul. Mas gradualmente, os nomes que eu conhecia foram desaparecendo, substituídos por exames e jogos e lacrosse, pela palestra anual da Primavera, um finalista que dormiu com a orientadora da tese, o episódio final de uma série de televisão muito popular. Mesmo os títulos que eu lia enquanto esperava na fila do registo, que me mantinham distraídos do facto de me encontrar sozinho quando todos os outros pareciam estar com amigos, sugeriam que o mundo tinha avançado sem nós. No décimo sétimo dia depois da Páscoa, a primeira página do Princeton Packet anunciava que tinha sido recusado o projecto para a construção de um estacionamento subterrâneo na cidade. Só no fundo da página é que se dava notícia de que um antigo aluno abastado tinha doado dois milhões de dólares para a reconstrução de Ivy.

O Charlie largou a cama do hospital ao fim de cinco dias, mas passou mais duas semanas na reabilitação. Os médicos sugeriram que fizesse cirurgia plástica ao peito, onde bocados de pele tinham ficado espessos e cartilaginosos, mas o Charlie recusou. Fui visitá-lo ao centro médico todos os dias, excepto um. O Charlie pedia-me que lhe levasse batatas fritas do WaWa, livros das aulas, os resultados dos jogos dos Sixers. Dava-me sempre um pretexto para voltar.

Mais do que uma vez, fez questão de me mostrar as queimaduras. Ao princípio pensei que era para provar qualquer coisa a si próprio, que não se sentia desfigurado, que era mais forte do que o que lhe acontecera. Mais tarde percebi que era precisamente o contrário. Ele queria ter a certeza de que eu percebia que ele tinha mudado. Parecia temer que no momento em que tinha corrido para o túnel de vapor atrás do Paul, tivesse deixado de fazer parte da minha vida e da do Gil. Nós passávamos bem sem ele, íamos curando as nossas perdas sozinhos. Ele sabia que nos tínhamos começado a sentir estranhos na nossa própria pele e queria que nós soubéssemos que ele estava na mesma posição, que continuávamos todos juntos.

Surpreendeu-me que o Gil o fosse visitar tantas vezes. Encontrei-me com ele lá em algumas das visitas e sentia sempre a mesma estranheza. Ambos se sentiam culpados de uma forma que se intensificava quando estavam juntos. Por muito irracional que isso fosse, o Charlie sentia que nos tinha abandonado por não ter estado em Ivy naquela noite. Por vezes, ele chegava mesmo a ver nas suas mãos o sangue do Paul, considerando a morte do Paul como o preço das nossas próprias fraquezas. O Gil parecia sentir que ele próprio nos abandonara já há muito tempo, de uma forma que era mais complicada de explicar. Que o Charlie se sentisse tão culpado, tendo feito tanto, só fazia o Gil sentir-se pior.

Uma noite, antes de nos irmos deitar, o Gil pediu-me desculpa. Disse que desejava ter feito as coisas de uma maneira diferente. Nós merecíamos mais. Dessa noite em diante, nunca mais o vi a ver filmes antigos. Comia em restaurantes que pareciam cada vez mais afastados do campus. Sempre que eu o convidava para almoçar no meu clube, ele arranjava uma razão para não aceitar. Só após três ou quatro recusas é que eu compreendi que não era contra a companhia que ele estava; era por ter que passar por Ivy no caminho. Quando o Charlie saiu do hospital, ele e eu tomávamos juntos o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Cada vez mais o Gil comia e bebia sozinho.

Lentamente as nossas vidas libertaram-se do julgamento dos outros. Se ao princípio nos sentíamos como párias, quando todos se cansavam de ouvir falar de nós, então sentimo-nos como fantasmas, quando todos começaram a esquecer. A missa da universidade pela alma do Paul teve lugar na capela, mas poderia ter sido feita numa sala de aula, de tal forma a assistência foi reduzida, quase tantos alunos como professores, e a maior parte eram os membros da Emergência Médica ou de Ivy, principalmente por solidariedade para com o Charlie ou com o Gil. O único membro da faculdade que se aproximou de mim depois da missa foi a Professora LaRoque, a mulher que pela primeira vez mandara o Paul falar com o Taft — e mesmo essa parecia estar muito mais interessada na Hypnerotomachia, na descoberta do Paul, do que no próprio Paul. Eu não lhe disse nada e fíz questão de fazer o mesmo sempre que alguém me falasse na Hypnerotomachia. Pensei que era o mínimo que podia fazer, não dar a estranhos o segredo que o Paul tanto se esforçara por manter entre amigos.

O que causou um breve ressurgimento de interesse foi a descoberta, uma semana depois do título sobre o estacionamento subterrâneo, de que o Richard Curry tinha encerrado todas as suas contas bancárias antes de sair de Nova Iorque para ir para Princeton. Tinha colocado o dinheiro num fundo privado, juntamente com as propriedades residuais da sua casa de leilões. Quando os bancos se recusaram a revelar os termos do fundo, Ivy reivindicou o direito ao dinheiro, como compensação pêlos danos. Só quando a direcção do clube decidiu que nem uma pedra do novo edifício seria comprada com o dinheiro do Curry é que a confusão terminou. Entretanto, os jornais atiraram-se às notícias de que o Richard Curry tinha deixado todo o seu dinheiro a um administrador anónimo e alguns chegaram mesmo a sugerir aquilo em que eu já acreditava — que o dinheiro se destinava ao Paul.

Ignorando, no entanto, tudo sobre a tese do Paul, a maior parte do público não via a lógica das intenções do Curry, portanto escavaram fundo na sua amizade com o Taft, até que os dois homens se tornaram uma farsa, uma explicação para todo o caso que não explicava nada. A casa do Taft no Instituto tornou-se uma casa-fantasma. Os novos Membros do Instituto recusaram-se a viver lá e os adolescentes da cidade desafiavam-se entre si para ver quem era capaz de lá entrar.

A única coisa boa do novo clima, todo feito de teorias fantásticas e títulos sensacionalistas, foi que em breve se tornou impossível sugerir que o Gil, o Charlie e eu pudéssemos ter feito o que quer que fosse de errado. As coisas eram de tal maneira bizarras que não nos achavam suficientemente extravagantes para desempenhar um papel no que tinha acontecido, pelo menos não quando as notícias locais podiam ilustrar as suas matérias com imagens do Rasputine Taft e do louco Curry que o tinha morto. A polícia e a universidade reconheceram que não havia razão para instaurarem qualquer processo contra nós e suponho que para os nossos pais deve ter sido um imenso alívio que nós tivéssemos acabado os cursos sem desonra. Nada disso interessava particularmente ao Gil, como nunca tinha interessado esse estilo de coisas, e eu também não consegui dar grande importância ao assunto.

No entanto, creio que tirou um grande peso de cima do Charlie. Vivia cada vez mais na sombra do que tinha acontecido. O Gil achava que era complexo de perseguição, a forma como ele esperava que acontecesse alguma desgraça a qualquer momento, mas eu acho que o Charlie estava simplesmente convencido de que poderia ter salvo o Paul. Fosse o que fosse, o seu fracasso haveria de ser julgado — se não em Princeton, algures no futuro. Não era tanto a perseguição que o Charlie temia; era o julgamento.

O único lampejo de prazer nos meus últimos dias na universidade, devo-o à Katie. Ao principio trazia comida para o Gil e para mim, quando o Charlie estava ainda no hospital. Na sequência do fogo, ela e outros alunos do segundo ano tinham criado uma cooperativa, comprando a sua própria comida e cozinhando as suas refeições. Temendo que não nos estivéssemos a alimentar, ela cozinhava sempre para três. Mais tarde, levava-me a passear, insistindo em que o sol tinha poderes regeneradores, que havia nos raios cósmicos resíduos de lítio que só se conseguem captar ao pôr do Sol. Tirou mesmo fotografias de nós os dois, como se visse nesses dias alguma coisa digna de ser recordada. A fotógrafa nela estava convencida de que a solução estava toda na exposição correcta à luz.

Sem Ivy na sua vida, a Katie parecia mais próxima do que eu queria que ela fosse e ainda menos próxima daquele lado do Gil que eu nunca compreendera. Estava sempre com o moral em cima e o cabelo caído. Na noite antes da formatura, convidou-me a ir ao quarto dela depois de vermos um filme, argumentando que queria que eu me despedisse das suas colegas de quarto. Eu sabia que ela tinha algo mais em mente, mas nessa noite disse-lhe que não podia. Iria ver demasiadas fotografias das certezas que a acompanhavam, a família, os velhos amigos e o cão aos pés da sua cama em New Hampshire. Uma última noite num quarto rodeado por todas as suas estrelas fixas só me faria recordar tudo aquilo que na minha vida era transitório.

Nessas semanas finais vimos chegar a uma conclusão a investigação do que se tinha passado em Ivy. Por fim, na sexta-feira antes da cerimónia da formatura, como se o anúncio tivesse sido preparado para encerrar o ano académico, as autoridades locais reconheceram que Richard Curry, «de uma forma coincidente com os primeiros relatos, provocou um fogo dentro do Ivy Club, causando a morte dos dois homens que se encontravam no interior do edifício». Como provas, apresentaram dois fragmentos de maxilar humano que condiziam com os registos médicos do Curry. A explosão da conduta de gás pouco mais tinha deixado.

Contudo, a investigação continuava em aberto e nada específico foi dito do Paul. Eu sei porquê. Apenas três dias após a explosão, um investigador tinha confessado ao Gil que mantinham a esperança de que o Paul tivesse sobrevivido: os destroços que eles tinham descoberto eram apenas fragmentos e os poucos identificáveis pertenciam ao Curry. Durante os dias seguintes, portanto, aguardámos cheios de esperança o regresso do Paul. Mas como ele nunca regressou, nunca surgiu dos bosques ou apareceu num lugar familiar, vítima de uma amnésia temporal, os investigadores pareceram compreender que era melhor o silêncio do que darem-nos falsas esperanças.

A formatura chegou, verde e quente, sem um sopro de vento, como se uma coisa como o fim-de-semana da Páscoa nunca pudesse ter acontecido. Havia mesmo uma borboleta no ar, esvoaçando como um emblema deslocado, quando eu estava sentado no pátio de Nassau Hall, rodeado pêlos meus colegas, com as nossas togas e borlas, esperando que nos chamassem. Lá em cima, na torre, imaginei um sino a tocar silenciosamente sem badalo: era o Paul, a celebrar a nossa sorte, mesmo por detrás das pregas deste mundo.

Havia fantasmas por toda a parte em plena luz do dia. Mulheres de vestidos de noite, do baile de Ivy, dançando no céu como anjos da natividade, anunciando uma nova estação. Atletas das Olimpíadas Nuas, a correr pêlos pátios, sem vergonha da sua nudez, num espectro da estação que terminara. O orador da cerimónia citava em latim piadas que eu não compreendia e, por um instante, imaginei que era o Taft que se estava a dirigir a nós; Taft e, por trás dele, Francesco Colonna e por trás deles um coro de filósofos encarquilhados que repetiam em coro um refrão solene, como apóstolos bêbados a cantar o «Battle Hymn of the Republic».

Depois da cerimónia regressámos os três ao quarto pela última vez. O Charlie ia para Filadélfia, para fazer serviço durante o Verão numa ambulância, antes de entrar para a escola médica no Outono. Tinha escolhido a Universidade de Pennsylvania, disse-nos por fim, depois de ter hesitado durante tanto tempo. Queria ficar perto de casa. O Gil estava a reunir as tralhas do quarto com um certo entusiasmo que eu não esperava. Confessou que tinha um bilhete para um voo que partia de Nova Iorque nessa noite. Ia para a Europa por uns tempos, disse ele. Principalmente para Itália. Precisava de uns tempos para pensar.

Depois de o Gil ter partido, o Charlie e eu reunimos o nosso correio dos últimos dias. Dentro da caixa havia quatro pequenos envelopes, de tamanhos iguais. Continham impressos de registo para o directório de antigos alunos, um para cada um de nós. Meti o meu no bolso e guardei também o do Paul, concluindo que ele não tinha sido excluído da lista do nosso curso. Pensei por momentos se teriam também feito um diploma para ele, que estaria agora num sítio qualquer, sem que ninguém o levantasse. Mas no quarto envelope, o que era dirigido ao Gil, o nome tinha sido riscado e substituído pelo meu, escrito com a sua letra. Abri e li. O impresso tinha sido preenchido, com a morada de um hotel em Itália. Caro Tom, dizia, escrito na badana interior do envelope. Deixo aqui o do Paul para ti. Pensei que o quererias. Diz ao Charlie que lamento partir tão à pressa. Sei que compreendes. Se fores a Itália, por favor, telefona. — G.

Abracei o Charlie antes de nos separarmos. Uma semana mais tarde, telefonou-me para casa para saber se eu estava a pensar em assistir à reunião do nosso curso no ano seguinte. Era mesmo o tipo de pretexto que o Charlie inventaria para telefonar e ficámos a falar durante várias horas. Por fim, perguntou se eu lhe dava a morada do Gil em Itália. Disse que tinha encontrado um postal que achava que o Gil iria gostar e tentou descrever-mo. Percebi, por trás das palavras dele, que o Gil não lhe tinha dado nenhuma morada para onde lhe pudesse escrever. As coisas entre eles nunca tinham recuperado a cem por cento.

Não fui a Itália, nem nesse Verão, nem mais tarde. O Gil e eu encontrámo-nos três vezes nos quatro anos que se seguiram, sempre numa reunião de curso. Cada vez havia menos para contar entre nós. Os factos da sua vida foram-se sucedendo gradualmente com a graciosa ordenação das palavras numa litania. Acabou por voltar a Manhattan; como o seu pai, tornou-se banqueiro. Ao contrário de mim, parecia envelhecer bem. Aos vinte e seis anos anunciou o seu noivado com uma rapariga bonita, um ano mais nova do que nós, que me lembrava uma estrela de um filme antigo de Hollywood. Ao vê-los juntos, não pude continuar a negar o padrão de vida do Gil.

O Charlie e eu continuámos a dar-nos bastante mais. Para ser honesto, ele não abria mão de mim. Ele ganha o prémio, na minha vida, de ser o amigo mais esforçado que jamais tive, o que se recusa a deixar cair uma amizade só porque a distância aumenta e as memórias se diluem. No primeiro ano da escola médica, casou-se com uma rapariga que me faz lembrar a mãe dele. O primeiro filho deles, uma menina, tem o nome dela. O segundo, um menino, tem o meu nome. Sendo eu solteiro, consigo julgar o Charlie como pai com toda a honestidade, sem temer comparações. E a única maneira de fazer justiça é dizendo que como pai o Charlie é ainda melhor do que como amigo. Na forma com que ele se ocupa dos filhos há uma dose do natural sentido de protecção, da energia capaz de levar tudo à sua frente, da enorme gratidão pelo privilégio da vida que ele sempre mostrou em Princeton. Actualmente é pediatra, o próprio médico de Deus. A mulher diz que nalguns fins-de-semana ele ainda faz serviço de ambulância. Espero que um dia, tal como ele continua a acreditar, Charlie Freeman esteja à porta do céu na hora do juízo final. Nunca conheci um homem melhor.

Quanto à minha vida, é uma coisa de que evito falar. Depois da licenciatura, voltei para Columbus. Excluindo uma única visita a New Hampshire, passei os três meses de Verão em casa. Ou fosse porque a minha mãe compreendia a minha perda ainda melhor do que eu, ou porque não podia deixar de se sentir feliz por Princeton ter ficado definitivamente para trás na minha vida — na nossa vida — tornou-se mais aberta. Falávamos; ela brincava. Comíamos juntos, só nós os dois. Sentávamo-nos na velha colina, aquela que as minhas irmãs subiam a puxar pelo meu trenó e ela contou-me o que andava a fazer. Tinha planos para abrir uma segunda livraria, desta vez em Cleveland. Explicou qual era o modelo de negócio, a forma como organizara a contabilidade, a possibilidade de vender a casa, agora que iria ficar vazia. Compreendi apenas a parte mais importante, que ela finalmente arrancara.

Contudo, para mim, o problema não era arrancar. Era compreender. A medida que os anos passavam, as outras incertezas da minha vida pareciam ir-se esclarecendo de uma forma que o meu pai nunca tinha conseguido fazer. Imagino o que é que o Richard Curry estaria a pensar naquele fím-de-semana de Páscoa: que o Paul estava na mesma posição em que o Curry estivera, que seria insuportável deixar o seu filho órfão tornar-se mais um Bill Stein ou um Vincent Taft, ou mesmo um Richard Curry. O velho amigo do meu pai acreditava na dádiva de um quadro em branco, um cheque em branco sobre um fundo ilimitado; só que levámos demasiado tempo a compreendê-lo. Mesmo o Paul, nos dias em que eu ainda tinha esperança na sua sobrevivência, deu-me razão para pensar que ele nos tinha simplesmente abandonado a todos, fugindo pêlos túneis sem sequer olhar para trás; o reitor tinha-lhe dado poucas esperanças na licenciatura e eu não lhe tinha dado quaisquer esperanças em Chicago. Quando eu lhe perguntara onde é que ele queria estar, ele respondera com toda a honestidade: em Roma, com uma pá. Mas eu nunca cheguei à idade de perguntar ao meu pai essas coisas, mesmo que ele, olhando retrospectivamente, fosse o tipo de homem capaz de me dar uma resposta honesta.

Suponho portanto, olhando para o passado, que a única forma que tenho de explicar por que é que fiz um doutoramento em Literatura depois de ter perdido a fé nos livros — por que é que eu tive a sensação de possibilidade ao trabalhar no livro de Colonna depois de ter rejeitado o amor do meu pai por ele — é que eu andava à procura daquelas peças que eu acredito que o meu pai me deixou, aquelas que o poderão reconstruir. Porque durante o tempo em que eu estive com o Paul, durante a nossa investigação na Hypnerotomachia a resposta pareceu sempre estar ao meu alcance. Porque enquanto trabalhássemos juntos, havia sempre a esperança de que eu pudesse eventualmente compreender.

Quando a esperança se desvaneceu, honrei o meu contrato e tornei-me analista de software. O emprego que eu ganhei por resolver um enigma, fiquei com ele por não ter conseguido resolver outro. O tempo no Texas passou mais rapidamente do que levaria a contar. O calor do Verão ali não se comparava a nada que eu tivesse conhecido, portanto, fiquei. A Katie e eu escrevemo-nos quase todas as semanas durante os seus dois últimos anos em Princeton, cartas que eu me habituei a esperar no correio, mesmo quando se tornaram menos frequentes. A última vez que a vi foi durante uma viagem a Nova Iorque para comemorar o meu vigésimo sexto aniversário. Quando terminou, penso que até o Charlie sentia que o tempo se tinha entreposto entre a Katie e eu. Quando passeávamos por Prospect Park, ao sol de Outono, perto da galeria onde a Katie trabalhava, em Brooklyn, comecei a compreender que as coisas que amáramos em tempos tinham ficado para trás, em Princeton e que o futuro não as tinha conseguido substituir com uma visão das coisas que estavam para vir. Eu sabia que a Katie tinha tido esperanças de começar qualquer coisa de novo nesse fim-de-semana, traçar uma nova rota, usando uma nova constelação. Mas as possibilidades de um renascer, que durante tanto tempo tinham encorajado o meu pai e preservado a sua fé no filho, eram um artigo de fé de que tinha vindo lentamente a duvidar. Depois desse fím-de-semana, comecei a afastar-me completamente da vida da Katie. Pouco tempo depois ela telefonou-me para o emprego pela última vez. Ela sabia que o problema estava na forma de eu terminar as coisas e que as minhas cartas se tinham tornado cada vez mais curtas e distantes. A voz dela reabriu uma ferida que eu não esperava. Disse-me que não voltaria a ouvir falar nela até eu decidir por mim em que pé é que estávamos. Por fim, deu-me o número de telefone dela numa galeria de arte nova e disse-me para lhe telefonar quando as coisas se alterassem.

As coisas nunca se alteraram. Pelo menos para mim. Pouco tempo depois a nova livraria da minha mãe começou a prosperar e ela chamou-me para dirigir a de Columbus. Disse-lhe que era muito difícil deixar o Texas, agora que tinha criado raízes. As minhas irmãs vieram visitar-me e o Charlie também veio uma vez, com a família e todos eles me deram conselhos sobre como é que eu poderia sair desta crise, como é que eu a poderia ultrapassar, qualquer que fosse. A verdade é que me tenho limitado a ver as coisas mudarem em meu redor. Os rostos são mais jovens a cada ano que passa, mas vejo em todos eles as mesmas expressões, novas tiragens, como o dinheiro, novos sacerdotes numa velha denominação. Lembro-me de que na aula de Economia que eu frequentei com o Brooks, nos ensinavam que um único dólar, desde que circulasse o tempo suciente, podia comprar tudo o que existe no mundo — como se o comércio fosse uma vela que nunca se gasta. Mas agora vejo esse mesmo dólar em cada transacção. Já não preciso dos bens que ele compra. A maior parte dos dias nem sequer os vejo já como bens.

Foi o Paul quem melhor suportou a passagem do tempo. Ele ficou sempre ao meu lado, nos seus vinte e dois anos e brilhante, como um incorruptível Dorian Gray. Creio que foi quando o meu noivado com uma professora da Universidade do Texas começou a sucumbir — uma mulher, que, vendo agora a esta distância, me fazia lembrar o meu pai e minha mãe e a Katie, ao mesmo tempo — que eu comecei a telefonar ao Charlie todas as semanas e a pensar cada vez mais no Paul. Pergunto-me se ele não terá saído da melhor maneira. Lutando.

Jovem. Enquanto nós, como o Richard Curry, sofremos as depredações da idade, as desilusões de uma juventude promissora. A morte é a única forma de escapar ao tempo, parece-me agora. Talvez o Paul soubesse que estava a vencer tudo de uma só vez: passado, presente e qualquer distinção que fique pelo meio. Mesmo agora ele parece orientar-me para as conclusões mais importantes da minha vida. Continuo a considerá-lo o meu melhor amigo.

 

                                    CAPITULO 30

Provavelmente eu já tinha tomado a minha decisão quando recebi aquela encomenda pelo correio. Talvez a encomenda fosse só o acelerador, como o álcool que o Parker espalhou no chão do clube naquela noite. Nem trinta anos feitos e sinto-me um velho. Na véspera da nossa quinta reunião de curso, parecia-me que tinham passado cinquenta anos.

Imagina, dissera-me uma vez o Paul, que o presente é apenas um reflexo do futuro. Imagina que passamos toda a nossa vida a olhar para um espelho com o futuro nas nossas costas, vendo-o apenas no reflexo do que está aqui e agora. Alguns de nós começariam a acreditar que poderiam ver o futuro melhor se se voltassem para trás e o olhassem directamente. Mas os que o fizessem, mesmo sem o saber, estariam a perder a chave da perspectiva que tinham tido antes. Porque uma coisa nunca seriam capaes de ver nele: eles próprios. Ao voltar as costas ao espelho, tornar-se-iam um elemento do futuro que os seus olhos nunca lograriam alcançar.

Nessa altura pensei que o Paul estava a repetir a sabedoria que recebera do Taft e que o Taft teria roubado a um qualquer filósofo grego, a ideia de que passamos a vida de costas voltadas para o futuro. O que eu não consegui ver, porque estava virado para o sítio errado, era que o Paul o dizia para mim, acerca de mim. Durante anos estive determinado a seguir com a minha vida perseguindo obstinadamente o futuro. Era o que toda a gente me dizia que eu devia fazer, esquecer o passado, olhar em frente e por fim acabei por o fazer melhor do que alguém esperara. Quando lá cheguei, no entanto, comecei a imaginar que sentia exactamente o que o meu pai sentia, que me conseguia identificar com a forma como as coisas pareciam virar-se contra ele sem qualquer explicação.

O facto é que eu não conheço o princípio das coisas. Volto-me agora para o presente e descubro que não tenho nada que se compare às desilusões que ele sofreu. Num negócio de que não percebo nada, que nunca me seduziu, correu-me tudo bem. Os meus superiores maravilham-se porque, sendo eu o último a sair do escritório durante cinco anos, nunca tirei um único dia de folga. Não conhecendo razão melhor, tomam isso por dedicação.

Vendo isso agora e comparando com a vida do meu pai, que nunca fez uma única coisa de que não gostasse, consigo atingir um certo grau de compreensão. Não o conheço melhor do que sempre o conheci, mas sei algo acerca da posição que assumi durante estes anos todos, voltando-me para olhar para o futuro. É uma forma cega de encarar a vida, uma atitude que deixa o mundo passar-nos ao lado, precisamente quando se pensa que o estamos a enfrentar.

Esta noite, muito depois de ter saído do escritório, demito-me do meu trabalho no Texas. Vejo o Sol descer sobre Austin, apercebendo-me de que nem uma vez nevou aqui, nem em Abril, nem mesmo no pino do Inverno. Quase que já me esqueci da sensação de entrar numa cama tão fria, que desejamos que estivesse mais alguém lá dentro. No Texas faz tanto calor que acabamos por acreditar que se está melhor a dormir sozinho.

A encomenda estava à minha espera em casa quando cheguei hoje do emprego. Um tubo castanho, pequeno, encostado à minha porta e tão surpreendentemente leve que pensei que estava vazio. No exterior não havia nada, excepto o número da minha casa e o código postal, sem remetente, apenas um número de identificação escrito à mão no canto esquerdo. Lembrei-me de que o Charlie tinha dito que me ia enviar um póster, um quadro de Eakins representando um remador solitário no Rio Schuylkill. Anda a tentar convencer-me a mudar-me para mais perto de Filadélfia, a tentar convencer-me de que era a cidade ideal para um homem como eu. O filho veria assim mais vezes o padrinho, dizia ele. O Charlie achava que eu estava a escapar-lhe.

Portanto abri o tubo e deixei ficar para depois o outro correio: ofertas dos cartões de crédito, notificações de sorteios e nada que se assemelhasse a uma carta da Katie. Na luminosidade da televisão, o tubo pareceu-me oco, não tinha nenhum póster do Charlie, nenhuma mensagem. Só quando introduzi os dedos no interior é que senti uma coisa enrolada contra o cartão. Um dos lados parecia escorregadio, o outro rugoso. Puxei com menos delicadeza que devia ter feito, tendo em consideração do que se tratava.

Dentro do pequeno tubo de cartão estava uma pintura a óleo. Desenrolei-a, pensando se o Charlie teria perdido a cabeça e comprado um original. Mas quando vi a imagem na tela, percebi que não. O estilo era muito mais antigo do que o americano do século XIX, muito mais antigo do que qualquer século americano. O assunto era religioso. Era europeu, do inicio da pintura.

É difícil explicar a sensação de segurar nas mãos o passado. O cheiro da tela era mais forte e mais complexo do que qualquer coisa existente no Texas, onde até o vinho e o dinheiro são novos. Havia um vestígio de um cheiro semelhante em Princeton, talvez em Ivy, certamente nas salas mais antigas de Nassau Hall. Mas aqui o cheiro estava muito mais concentrado, dentro deste cilindro fininho, o cheiro da idade, pesado e espesso.

A tela era escura e de pouca qualidade, mas lentamente comecei a apreender o assunto. Ao fundo estava o santuário do antigo Egipto, obeliscos, hieróglifos e monumentos desconhecidos. À frente, um homem só, a quem outros tinham vindo prestar preito. Vendo um toque de pigmento, observei mais de perto. A túnica do homem estava pintada com uma tinta mais brilhante do que o resto da cena. Na poeira do deserto, parecia radiosa. Há anos que eu não pensava naquele homem, que estava ali à minha frente. Era José, agora um alto dignitário do Egipto, recompensado pelo faraó pela sua capacidade de interpretar sonhos. José, revelando-se aos seus irmãos que tinham vindo comprar trigo, os mesmos irmãos que o haviam deixado como morto há tantos anos. José, renovado, com a sua capa multicolor.

Na base das estátuas estavam pintadas três inscrições. A primeira dizia: CRESCEBAT AUTEM COTIDIE FAMES IN OMNI TERRA APERUITQUE IOSEPH UNIVERSA HORREA. Havia fome em todo o mundo. E então José abriu os celeiros. A outra: FESTINAVITQUE QUIA COMMOTA FUERANT VÍSCERA EIUS SUPER FRATRE SUO ET ERUMPEBANT LACRIMAE ET INTROIENS CUBICULUM FLEVIT. José apressou-se a sair; o afecto que ele sentia pelo seu irmão era tão forte que lhe apetecia chorar. Na base da terceira estátua estava apenas inscrita uma assinatura. SANDRO Dl MARIANO — mais conhecido pela alcunha que o seu irmão mais velho lhe tinha dado: «barrilinho», ou Botticelli. Segundo a data por baixo do nome, a tela tinha mais de quinhentos anos.

Fiquei a olhar para ela, aquela relíquia que só tinha sido tocada-por umas mãos desde o dia em que fora selada e enterrada. Bela de uma forma a que nenhum humanista poderia resistir, com o seu santuário pagão que Savonorola não poderia nunca destruir. Aqui estava ela, quase destruída pelo tempo, mas de certo modo ainda intacta, ainda vibrante sob a fuligem. Viva, depois de todo este tempo.

Quando a minha mão não teve firmeza suficiente para a segurar, pu-la em cima da mesa. Voltei a meter a mão no tubo, à procura de qualquer coisa que me tivesse escapado. Uma carta, uma nota, ou mesmo apenas um símbolo. Mas estava vazio. No exterior, a caligrafia em que a minha morada estava escrita com tanto cuidado. Mas nada mais. Apenas carimbos dos correios e um código de controlo no canto.

Então esse código de controlo chamou-me a atenção: 39-055-210185-GEN4519. Existia nele um padrão, como a lógica de um enigma. Formava um número de telefone, um número no estrangeiro.

Encontrei, perdido no fundo de uma estante, um volume que alguém me tinha dado há anos, pelo Natal, um almanaque, com tabelas de temperaturas, datas e códigos postais, subitamente tornado útil. Lá para o fim tinha uma lista dos prefixos telefónicos dos países estrangeiros.

39 era o código de Itália.

055, o código de área para Florença.

Olhei para os outros números, começando a sentir o sangue regressar, o velho bater de tambores nos meus ouvidos. 21 01 85, um número de telefone local. GEN4519, possivelmente o número de um quarto, uma extensão. Ele estava num hotel, num apartamento.

Havia fome por todo o mundo. Então José abriu os celeiros.

Olhei de novo para o quadro e depois para o tubo dos correios.

GEN4519.

José apressou-se a sair; o afecto que ele sentia pelo seu irmão era tão forte que lhe apetecia chorar.

GEN4519. GEN45:19.

No lar que eu tinha montado era mais fácil encontrar um almanaque do que uma Bíblia. Tive de remexer nas velhas caixas arrumadas no sótão antes de encontrar a Bíblia que o Charlie assegurava que tinha deixado esquecida na sua última visita. Ele pensava que poderia transmitir-me um pouco da sua fé, e as certezas que o acompanhavam. Incansável Charlie, com esperança até ao fim.

Agora está à minha frente. Génesis 45:129 é a conclusão da história que Botticelli pintou. Depois de se revelar aos irmãos, José torna-se um doador de ofertas, tal como o seu pai tinha sido. Depois de tudo o que sofrera, diz que vai levar os irmãos de volta, aqueles que morrem agora de fome em Canaan, e vai deixá-los partilhar a abundância no seu Egipto. E eu, que cometi o maior erro da minha vida ao abandonar o meu pai, ao pensar que podia seguir em frente, mantendo-o no passado, eu mais do que qualquer outra pessoa, compreendo-o.

Traz o teu pai e vem — diz o versículo. Não te preocupes com as tuas propriedades, porque o melhor do gipto será teu.

Pego no telefone.

Traz o teu pai e vem, penso eu, perguntando-me como é que ele compreendeu, se mesmo eu não fora capaz de o fazer.

Volto a pousar o auscultador e pego na minha agenda, para copiar o número, antes que lhes aconteça qualquer coisa. Naquelas páginas solitárias, o novo H de Paul Harris e o antigo M de Katie Marchand são os dois únicos nomes que aparecem. Parece pouco natural acrescentar um nome agora, mas tenho a sensação de que a única coisa que tenho é este conjunto de algarismos no tubo dos correios, uma hipótese remota de que possam desaparecer por engano, uma oportunidade que se perderia com uma simples gota de água.

Quando volto a pegar no auscultador, as minhas mãos estão suadas, mal tenho consciência do tempo que passou desde que me sentei ali, tentando pensar como pôr isto em palavras. Para lá da janela do meu quarto, na noite brilhante do Texas, a única coisa que vejo é o céu.

Não te preocupes com as tuas propriedades, porque o melhor do Egipto será teu.

Volto a obter o sinal de marcar e começo a premir os botões. Um número que nunca pensei que os meus dedos poderiam compor, uma voz que eu pensava nunca mais voltar a ouvir. Ouve-se ao longe um zumbido, o toque de um telefone num outro fuso horário. Depois do terceiro toque, uma voz.

Ligou para Katie Marchand, da Hudson Gallery, Manhattan. Por favor deixe mensagem.

E depois um bip.

— Katie — digo eu para o telefone mudo —, fala o Tom. É quase meia-nôite aqui, hora do Texas.

O silêncio do outro lado é perturbador. Ter-me-ia assustado se não soubesse exactamente o que quero dizer.

— Saio de Austin logo de manhã. Vou estar ausente durante algum tempo; não sei bem quanto.

Numa pequena moldura em cima da minha secretária está uma fotografia de nós os dois. Estamos ligeiramente descentrados, segurando cada um, um lado da máquina fotográfica e apontando para nós. A capela do campus está por trás de nós, de pedra e silêncio, o sussurro de Princeton ao fundo, mesmo passado este tempo.

— Quando voltar de Florença — digo eu à miúda do segundo ano da minha fotografia, a minha dádiva acidental, mesmo antes de a gravação em Nova Iorque ser interrompida —, quero ver-te.

Depois volto a pousar o auscultador e olho uma vez mais pela janela. Vou ter malas para fazer, telefonemas para agências de viagens, novas fotografias para tirar. No momento em que começo a compenetrar-me da grandeza do que estou a fazer, surge-me um pensamento. Algures na cidade do Renascimento, o Paul está a levantar-se da cama, a olhar pela janela e a esperar. Há pombos a arrulhar nos telhados, sinos de catedrais a tocar em torres distantes. Estamos sentados, separados por continentes, da mesma forma que sempre estivemos: na beira das nossas camas, juntos. Nos tectos para onde eu vou, vai haver santos e deuses e voos de anjos. Por todos os lados por onde eu ande, vai haver coisas para nos lembrar de tudo aquilo que o tempo não consegue tocar. O meu coração é um pássaro numa gaiola, agitando as asas na ansiedade da expectativa. Em Itália, o Sol está a nascer.

 

 

NOTA DOS AUTORES

A identidade do autor da Hypnerotomachia manteve-se desconhecida durante quinhentos anos. Na ausência de provas concludentes a favor de Francesco Colonna ou do seu homónimo veneziano, os estudiosos continuaram a agarrar-se ao estranho acróstico «Poliam Frater Franciscus Columna Peramavit», por vezes citando-o como prova das intenções misteriosas do autor.

Girolamo Savonorola (1452-1498) foi tão respeitado como injuriado pêlos cidadãos de Florença durante o seu breve exercício como chefe religioso da cidade. Embora para alguns continue a ser o símbolo da reforma espiritual contra os excessos do seu tempo, para outros é conhecido apenas como o destruidor de inúmeros quadros, esculturas e manuscritos nas fogueiras pelas quais é mais recordado.

Até à publicação de A Regra de Quatro não foi estabelecida qualquer ligação entre a Hypnerotomachia e Savonorola.

Richard Curry altera o poema de Browning, «Andrea dei Sarto» para se adaptar às suas necessidades e Tom, recordando a utilização de Curry, faz o mesmo. O verso original de Browning é: «Eu faço o que muitos sonham fazer, durante toda a vida» (o itálico é nosso). Tom e Paul por vezes referem-se a livros eruditos, incluindo os de Braudel e Hartt, pêlos seus títulos abreviados; e Paul, na sua descrição entusiasta da história de Florença, diz que os artistas e intelectuais florentinos, cujas vidas se estendem por vários séculos, viviam «na mesma época». Tom toma a liberdade de encurtar o nome oficial do Princeton Battlefield State Park para Princeton Battlefield Park, de atribuir «Take the "A" Train» a Duke Ellington em vez de Billy Stayhorn e de sugerir, no seu primeiro encontro com Katie, que o nome do poeta E. E. Cummings deveria aparecer em caixa baixa, quando o próprio Cummings (pelo menos nesta questão) preferia provavelmente a capitalização convencional.

Os autores responsabilizam-se por outras invenções e simplificações. As Olimpíadas Nuas começam tradicionalmente à meia-noite — e não ao pôr do Sol, como é sugerido em A Regra de Quatro. Jonathan Edwards foi na realidade o terceiro presidente de Princeton e morreu da forma descrita neste romance, mas não iniciou as cerimónias de Páscoa aqui descritas, que são totalmente inventadas. Apesar de os clubes de Prospect realizarem muitos eventos formais todos os anos, o baile a que Tom assiste em Ivy é ficção. E a planta do Ivy Club, bem como as de outros locais mencionados, foi alterada para satisfazer as necessidades da história.

Por fim, o próprio tempo fez vítimas entre alguns factos tão familiares a Tom e aos seus amigos. O curso em que a Katie foi aluna do segundo ano foi o último que correu nu em Holder Courtyard na noite do primeiro nevão (embora tivesse acontecido em Janeiro e não em Abril): a universidade proibiu as Olimpíadas Nuas em 1999, mesmo antes da formatura de Paul. E a amada árvore de Katie, o Carvalho Mercer que existiu em tempos no Princeton Battlefield State Park, caiu no dia 3 de Março de 2000, de morte natural. Pode ainda ser visto no filme com Walter Matthau, IQ.29

Em quase todos os outros aspectos, tentámos ser tão fiéis quanto possível à história do Renascimento italiano e de Princeton. Estamos em dívida para com esses dois grandes cenários do espírito.

  1. C. e D. T.

 

29 O Génio do Amor (EUA, 1994) — de Fred Schepisi, com Tim Robbins, Meg Ryan e Walter Matthau. (NT) 

 

                                                                                Ian Cadwell & Dustin Thomason

 

 

                      

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