Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A RELIGIOSA
A resposta do senhor marquês de Croismare, se é que me dá alguma, é que irá proporcionar as primeiras linhas deste relato. Antes de lhe escrever quis conhecê-lo. É um homem mundano, ilustrado, já entrado nos anos, foi casado e tem uma filha e dois filhos a quem ama e que o amam. Pertence a uma nobre linhagem, é inteligente, talentoso, alegre, gosta das belas-artes e, sobretudo, é original. Elogiaram-me a sua sensibilidade, a sua honra e a sua honestidade; e eu creio, pelo vivo interesse que manifestou pelo meu assunto e por tudo o que me contaram sobre ele, que não me enganei ao dirigir-me à sua pessoa. Mas não posso presumir que se decida a mudar a minha sorte sem saber quem eu sou, e é por este motivo que estou resolvida a vencer o meu amor próprio e a minha repugnância iniciando estas Memórias, nas quais, sem talento nem arte, com a ingenuidade de uma criança da minha idade e a franqueza do meu carácter, descrevo parte das minhas desgraças. Como meu protector poderia exigir-mas ou, quem sabe, a minha fantasia far-me-ia acabá-las quando certos feitos longínquos já não estivessem presentes na minha memória, e creio que o resultado final e a profunda impressão que me deixaram, enquanto for viva, bastarão para que os recorde com exactidão.
Meu pai era advogado. Tinha desposado a minha mãe em idade bastante avançada; desse casamento teve três filhas. Tinha uma fortuna mais do que suficiente para as casar bem, mas, para tal, era preciso que, no mínimo, a sua ternura fosse igualmente repartida; e é-lhe indiferente que eu lha elogie ou não. É certo que eu valia mais do que as minhas irmãs, pelos atractivos do espírito e físicos, de carácter e artísticos; e parecia que os meus pais se aborreciam com isso. A vantagem que sobre elas a natureza e o zelo me tinham concedido tornava-se para mim uma fonte de desgostos para ser amada, querida, festejada, desculpada sempre como elas o eram; desde muito nova desejei assemelhar-me a elas. Se acontecia dizerem à minha mãe: «Tem umas filhas encantadoras...», isso nunca era extensível a mim. Por vezes sentia-me vingada dessa injustiça; mas os elogios que recebera custavam-me tão caro quando estávamos sós que eu teria preferido de longe a indiferença, ou mesmo injúrias; quanto mais os estranhos me distinguiam com a sua predilecção, mais mau humor se instalava quando partiam. Oh! Quantas vezes chorei por não ter nascido feia, estúpida, pateta, arrogante, numa palavra, com todos os defeitos com que triunfavam perante os nossos pais! Interroguei-me sobre a origem desta singularidade num pai e numa mãe aliás honestos, justos e piedosos. Confessar-lho-ei, senhor? Algumas circunstâncias reunidas em diferentes momentos, as falas dos vizinhos, as conversas dos criados, faziam-me desconfiar de uma razão que os poderia desculpar um pouco. Talvez o meu pai tivesse alguma dúvida acerca do meu nascimento; talvez eu recordasse à minha mãe uma falta cometida e a ingratidão de um homem a quem ela teria dado ouvidos em demasia; que sei eu? Mas quando estas suspeitas não fossem fundamentadas que arriscava eu em vo-las confiar? O senhor queimará este escrito, eu prometo-lhe queimar as suas respostas.
Como entre nós havia pouca diferença de idade, tornámo-nos adultas ao mesmo tempo. Começaram a aparecer os pretendentes. Um jovem muito agradável cortejava a minha irmã mais velha, mas eu compreendi que era a mim que ele preferia e ela não passava de um pretexto incessante para a sua assiduidade. Pressenti quantas penas podiam acarretar-me as suas atenções e adverti a minha mãe sobre isso. Acaso tenha sido a única coisa grata que aos olhos dela fiz em toda a minha vida, eis aqui a recompensa: quatro dias depois, pouco mais ou menos, disseram-me que tinham pedido um lugar, para mim, num convento, e para lá me levaram no dia seguinte. Sentia-me tão mal em minha casa que este acontecimento não me afligiu em absoluto; fui para Santa Maria, o meu primeiro convento, com grande júbilo. Entretanto, o pretendente da minha irmã, como não voltasse a ver-me, esqueceu-me e tornou-se seu marido. Chama-se M. K.***, é notário e vive em Corbeil; o casal não se dá muito bem. A minha segunda irmã casou-se com um tal Sr. Bauchon, comerciante de sedas em Paris, na rua Quincampoix, e vive muito bem com ele.
Uma vez casadas as minhas duas irmãs, acreditei que pensariam em mim e que não tardaria a sair do convento. Tinha, então, dezasseis anos e meio. As minhas irmãs tinham recebido dotes consideráveis; eu sonhava para mim uma sorte igual e tinha a cabeça cheia de projectos quando me chamaram ao locutório. Era o padre Serafim, director espiritual da minha mãe e que também tinha sido o meu; sendo assim, não teve dificuldades em explicar-me o motivo da sua visita: tratava-se de me convencer a tomar o hábito. Rebelei-me contra esta estranha proposta e disse-lhe, francamente, que não sentia nenhuma inclinação para a vida religiosa. «Pouca sorte», disse-me ele, «pois os seus pais desfizeram-se de tudo em benefício das suas irmãs, e não vejo o que poderão fazer por si na apertada situação a que se vêem reduzidos. Reflicta, menina. Ou entra para sempre nesta casa ou vai para um convento de pronvíncia onde aceitem recebê-la por uma módica pensão e de onde só sairá após a morte de seus pais, o que pode demorar muito». Queixei-me com amargura e verti uma torrente de lágrimas. A superiora estava prevenida e esperava-me à saída do locutório. Eu sentia uma confusão indescritível. Disse-me.- «O que é que se passa, querida filha? (ela sabia melhor do que eu o que é que se passava). Que estado o seu! Nunca vi um desespero assim, faz-me medo! Perdeu o seu pai ou a sua mãe?». Pensei atirar-me nos seus braços e responder-lhe: «Se Deus quisesse!...» Mas contentei-me com gritar: « Ai! Não tenho pai nem mãe, sou muito desgraçada, odeiam-me e querem enterrar-me viva aqui!» Ela deixou passar a tormenta e esperou que eu me acalmasse. Expliquei-lhe com mais clareza o que acabavam de anunciar-me. Pareceu compadecer-se de mim, confortou-me e animou-me a não abraçar uma vida pela qual não sentia a minima inclinação; prometeu-me pedir, solicitar, interceder por mim. Oh senhor! Quão artificiais são estas superioras de convento! Não pode imaginar. Escreveu aos meus pais, com efeito. Não ignorava as respostas que lhe dariam e comunicou-mas; só muito depois aprendi a duvidar da sua boa-fé. Entretanto, chegou ao fim o prazo que me tinham dado para me decidir e ela veio anunciar-mo com a mais fingida das tristezas. Ao princípio, ficou em silêncio e depois disse-me algumas palavras de comiseração através das quais compreendi tudo. Então, tive outro ataque de desespero; pouco mais tenho a descrever-lhe, porque para estas mulheres a contenção é uma arte. Logo depois disse-me, creio que chorando de verdade: «Pois bem, minha filha, vai abandonar-nos! Querida filha, não voltaremos a ver-nos!... E outras coisas que não compreendi. Tinha-me deixado cair numa cadeira; tão depressa ficava em silêncio como soluçava, ficava imóvel ou levantava-me, procurava apoio nas paredes ou chorava contra o seu seio. Enquanto tudo isto se passava, acrescentou: «Mas por que não faz uma coisa? Oiça e, sobretudo, não diga a ninguém que lhe dei este conselho. Conto com a sua discrição absoluta pois não quero, por nada deste mundo, que haja algo que possam reprovar-me. Que é que lhe pedem? Que tome o hábito? Bem, e por que não o toma? A que é que se compromete? A nada, só a viver dois anos entre nós. Ninguém sabe se viverá ou morrerá; dois anos é tempo suficiente. Podem acontecer muitas coisas em dois anos...» Acompanhou estas frases insidiosas com tantas carícias, tais protestos de amizade e tão doces mentiras; e eu sabia onde estava, mas não sabia para onde me levariam, e foi assim que me deixei convencer. Escreveu, então, ao meu pai. Uma carta magnífica; isso, fazem-no como ninguém: a minha aflição, a minha dor e os meus protestos eram ali descritos tão fielmente que, garanto-lhe, uma jovem mais hábil do que eu ter-se-ia enganado também. No entanto, terminava comunicando o meu consentimento. Com que celeridade se preparou tudo! Fixou-se o dia, fizeram-se os meus hábitos e chegou o momento da cerimónia sem que, ainda hoje, eu possa perceber o menor intervalo entre todas estas coisas.
Esquecia-me já de lhe contar que vi meu pai e minha mãe, que tentei tudo para os comover e que ambos foram inflexíveis. Foi o padre Blin, doutor na Sorbonne, quem me exortou e o senhor bispo de Alepo quem me deu o hábito. Esta cerimónia não é, já de si, alegre; naquele dia, foi uma das mais tristes. Apesar das religiosas tentarem suster-me, vinte vezes senti os meus joelhos fraquejarem e estive a ponto de cair nas grades do altar. Não ouvia nem via nada; tinha tonturas. Levavam-me e eu ia; faziam-me perguntas e respondiam por mim. No entanto, esta cruel cerimónia chegou ao fim, toda a gente se retirou, e eu permaneci no meio do grupo a que acabava de unir-me. As minhas companheiras rodeavam-me, abraçavam-me e diziam: «Veja, irmã, que bonita que está. Como o véu realça a brancura da sua pele! Que bem lhe assenta a touca! Como lhe arredonda o rosto! Como lhe destaca as faces! Como o hábito lhe realça a figura, os braços!...» Eu ouvia-as, simplesmente, pois estava aflita. No entanto, tenho de reconhecer que, já sozinha na minha cela, recordei os elogios e não pude abster-me de os comprovar no meu espelhinho; pareceu-me que não tinham exagerado. Há certas honras que fazem parte deste dia. Exageraram-nas para mim, mas mal me dei conta; no entanto, pareciam acreditar no contrário e diziam-tno, apesar de estar claro que nada era assim. Ao entardecer, depois das orações, a superiora veio à minha cela. «Verdadeiramente», disse-me depois de me ter contemplado uns instantes, «não sei por que mostra tanta repugnância por esse hábito. Fica-lhe às mil maravilhas, está encantadora. A irmã Susana é uma linda religiosa e isso só fará que gostem ainda mais de si. Vamos, ande um pouco... Não se mantém suficientemente direita; não tem de estar assim curvada...» Compôs-me a cabeça, os pés, as mãos, o corpo, os braços; foi quase uma lição de Marcel sobre os encantos monásticos, pois cada estado tem os seus. Depois sentou-se e disse-me: «Está bem. Agora, vamos falar mais seriamente. Ganhámos dois anos; os seus pais podem mudar de opinião e a menina, mesmo, pode querer ficar aqui quando eles vierem buscá-la. Isso não é impossível. Não acredita! Esteve muito tempo entre nós, mas ainda não conhece a nossa vida; sem dúvida, tem as suas penas mas também tem as suas doçuras...» Já pode imaginar tudo o que disse do mundo e do claustro; está escrito em todo o lado e sempre da mesma forma. Graças a Deus, deram-me a ler a abundante literatura onde os religiosos elogiam o seu estado, que tão bem conhecem e tanto detestam, contra o mundo que amam e difamam sem conhecer.
Não lhe contarei em detalhe o meu noviciado. Se a sua austeridade tivesse sido inteiramente respeitada, eu não teria resistido. E, no entanto, é o período mais doce da vida monástica. Uma madre de noviças é a irmã triais indulgente que se pode encontrar. O seu propósito é ocultar-nos todos os espinhos da vida religiosa. É toda uma lição da mais subtil e bem preparada sedução. É ela que aumenta as trevas que nos rodeiam, quem nos embala e nos adormece, nos impõe respeito e nos fascina. A nossa dedicou-se a mim, particularmente. Não creio que exista uma alma jovem e sem experiência que possa resistir a esta arte funesta. O mundo tem os seus abismos, mas não creio que se chegue a eles por uma encosta tão suave. Se eu espirrava duas vezes seguidas, dispensavam-me do ofício, do trabalho e da oração; habituei-me depressa a levantar-me cada vez mais tarde; a regra do convento suspendia-se para mim. Imagine, senhor, que havia dias em que suspirava pelo momento de sacrificar-me. Não há história desagradável do mundo de que não nos falem; deformam-se as verdadeiras e fazem-se com elas enormes falsidades, e logo tudo são louvores sem fim e acções de graças a Deus, que nos protege destas aventuras humilhantes. Entretanto, aproximava-se o momento que os meus desejos iam adiando. Tornei-me pensativa e senti que as minhas repugnâncias despertavam e cresciam, e ia confessá-las à superiora ou à nossa mestra de noviças. Estas mulheres vingam-se enormemente do incómodo que lhes causamos, pois não é de crer que as divirta o hipócrito papel que representam nem as patetices que se vêem forçadas a repetir-nos; acaba por ser algo penoso e desagradável para elas. Mas decidem-se a fazê-lo por um milhar de escudos que entra em sua casa. Está aqui o importante propósito pelo qual mentem durante toda a vida e encaminham as jovens inocentes para um desespero de quarenta ou cinquenta anos, e talvez para a desgraça eterna; porque é certo, senhor, que de cem religiosas que morrem antes dos cinquenta anos, exactamente, cem se condenam, sem contar com as que ficam loucas, estúpidas ou furiosas, até esse momento.
Chegou o dia em que uma destas últimas se lhes escapou da cela onde estava fechada. Eu vi-a. A minha felicidade ou a minha desgraça dependem, senhor, da forma como puder sofrer comigo, porque nunca vi nada tão horrível. Estava desgrenhada e quase nua; arrastava correntes de ferro; os olhos esbugalhados; arrancava cabelos; dava murros no peito, corria, uivava; atirava imprecações terríveis sobre si mesma e sobre as outras; procurava uma janela para se atirar. Deixei-me levar pelo assombro e todos os meus membros tremiam. Vi a minha própria sorte naquela infeliz mulher, e ali mesmo decidi, em segredo, que morreria mil vezes antes de me expor a tal coisa. Pressentiram o efeito que este acontecimento podia causar no meu espírito e acreditaram em que era um dever preveni-lo. Contaram-me, sobre esta religiosa, não sei quantas mentiras ridículas que se contradiziam: que já estava transtornada quando ali entrou; que tinha experimentado um grande terror numa época crítica; que era dada a visões; que acreditava estar em contacto com os anjos; que as suas leituras perniciosas lhe tinham feito mal ao espírito; que tinha dado ouvidos a inovadores de uma moral exagerada, que lhe tinham infundido um tal medo pelos juízos de Deus que a sua razão, vacilante, se tinha transtornado e só via demónios, o inferno e fogo; que elas eram muito infelizes; que tal coisa era inédita no convento, e não sei que mais. Não acreditei em nada do que me disseram. A todo o momento estava presente no meu espírito a religiosa louca e renovava a promessa de não fazer os votos.
E, no entanto, chegou o momento em que tinha de provar que era capaz de manter a minha palavra. Uma manhã, depois da missa, vi entrar a superiora na minha cela. Trazia uma carta. A tristeza e o abatimento reflectiam-se no seu semblante; trazia os braços caídos e parecia que a sua mão não tinha força para levantar a carta. Olhava-me e parecia que as lágrimas lhe afloravam os olhos; estávamos ambas em silêncio; ela esperava que eu falasse primeiro. Senti-me tentada a fazê-lo, mas contive-me. Perguntou-me como é que me sentia; disse-me que a missa tinha sido muito longa naquele dia, que eu tinha tossido um pouco, que parecia indisposta. A tudo aquilo respondi: «Não, querida madre.» Mantinha a carta na mão caída e, no meio destas perguntas, pô-la sobre os joelhos e ocultou-a, em parte, com a mão. Finalmente, depois de alguns rodeios e perguntas sobre o meu pai e a minha mãe, e vendo que eu não lhe perguntava o que era aquele papel, disse-me: «Tenho aqui uma carta...»
Quando ouvi estas palavras senti perturbar-se-me o coração e disse, com voz entrecortada e os lábios a tremer: «É da minha mãe?
- Assim é; tome e leia...»
Tranquilizei-me um pouco, peguei na carta e comecei a lê-la com firmeza; mas, à medida que avançava, a surpresa, a indignação, a cólera, o despeito, diferentes paixões sucediam-se em mim e eu falava com vozes diversas, adoptava vários semblantes e fazia movimentos distintos. Às vezes, quase não podia sustentar o papel, outras, pegava nele como se o quisesse rasgar ou apertava-o violentamente como se quisesse amachucá-lo e atirá-lo para longe de mim. -Pois bem, minha filha, que respondemos a isto?
- Bem sabe, senhora.
- Não, não sei. Os tempos que correm são adversos e a sua família sofreu grandes perdas; os negócios das suas irmãs não correm bem e tanto uma como outra têm muitos filhos; casá-las significou a pobreza e mante-las é a ruína. É impossível darem-lhe um dote a si; quando tomou o hábito isso trouxe alguns gastos. Ao dar esse passo alimentou esperanças, e o rumor de que vai professar espalhou-se por todo o lado. Apesar de tudo, conte sempre com todo o meu apoio. Nunca atraí ninguém para a vida religiosa; é um estado para que Deus nos chama, e é perigoso misturar a nossa voz com a Dele. Não tenho intenção de lhe falar ao coração se a graça ainda o não o fez. Até hoje não posso acusar-me de ter feito a desgraça de ninguém; ia começar consigo, minha filha, que me é tão querida? Não esqueço que fui eu quem a persuadiu a dar os primeiros passos; e não consinto que se abuse disso para a comprometer para além da sua vontade. Vamos examinar isto juntas e pôr-mo-nos de acordo. Quer professar?
- Não, senhora.
- Não sente nenhuma inclinação para a vida religiosa?
- Não, senhora.
- Que quer ser, pois?
- Qualquer coisa, excepto religiosa. Não desejo sê-lo e não o serei.
- Está bem. Não o será. Vamos, temos de preparar uma resposta para a sua mãe.»
Combinámos algumas ideias. Ela escreveu e mostrou-me a carta, que mais uma vez me pareceu muito bem. No entanto, mandaram-me ao director da casa e ao doutor que tinha feito a prédica no dia em que tomei o hábito; recomendaram-me à madre das noviças; tive uma entrevista com o bispo de Alepo; tive de encontrar-me com mulheres piedosas que se imiscuíram nos meus assuntos sem que eu as conhecesse; estava continuamente em conferência com monges e padres; veio o meu pai, as minhas irmãs escreveram-me e, por último, apareceu a minha mãe: resisti a tudo. Apesar disso, marcaram a data em que eu devia professar. Não descuraram nada para obterem o meu consentimento, mas, quando perceberam que era inútil pedirem-mo, decidiram passar sem ele.
A partir dessa altura fecharam-me na minha cela. Impuseram-me silêncio e separaram-me de toda a gente, abandonaram-me a mim mesma. E vi, com toda a clareza, que estavam decididos a dispor de mim, sem mim. Eu não queria professar, isso estava decidido; os terrores, verdadeiros ou falsos que, sem cessar, tratavam de infundir-me, não me comoviam. No entanto, encontrava-me num estado deplorável; não sabia quanto tempo podia durar tudo aquilo e, ainda menos, o que me aconteceria quando acabasse. No meio destas incertezas, tomei uma decisão que o senhor julgará como lhe parecer. Eu não via ninguém; nem a superiora, nem a madre das noviças, nem as minhas companheiras. Fiz avisar a primeira e fingi inclinarme perante a vontade dos meus pais; mas a minha intenção era pôr fim a esta perseguição com um escândalo e protestar, publicamente, contra a violência que planeavam. Disse que eram donos da minha sorte, que podiam dispor de mim como quisessem e que, se exigiam que eu professasse, o faria. A alegria espalhou-se por toda a casa, voltaram as carícias, os afagos e as irresistíveis seduções. «Deus tinha falado ao meu coração; não havia ninguém mais apto que eu para professar. Era impossível não acontecer, desde sempre que o esperavam. Nunca se cumprem os deveres com tanta edificação e constância quando não se está, verdadeiramente, destinado a eles. A madre das noviças nunca tinha visto em nenhuma das suas discípulas uma vocação tão clara; estava surpreendida com o rumo que eu tinha tomado, mas tinha dito sempre à nossa superiora que era preciso esperar, porque tudo acabaria por passar; que as melhores religiosas também tinham passado por momentos como aqueles; que tudo eram sugestões do espírito maligno, que redobrava os seus esforços porque via que estava a perder a sua presa; que eu ia conseguir escapar-lhe; que as obrigações da vida religiosa me pareceriam tanto mais suportáveis quanto mas tinham exagerado; que este súbito jugo pesado era uma graça do Céu, que se tinha servido deste meio para, depois, o tornar mais suave...» Parecia-me bastante singular que a mesma coisa viesse de Deus e do Diabo, tal como quiseram considerá-lo. Há muitas ocasiões semelhantes na religião; amiúde, as pessoas que me consolaram disseram-me, também, que os meus pensamentos eram instigados por Satanás ou que eram inspirados por Deus. O mesmo mal vem de Deus, que nos prova, ou do Diabo, que nos tenta.
Conduzi-me com discrição porque acreditei poder responder por mim. Vi o meu pai, que me falou friamente; vi a minha mãe, que me abraçou. Recebi cartas com felicitações das minhas irmãs e de muitas outras pessoas. Soube que seria o padre Sornin, vigário de São Roque, quem faria o sermão, e o padre Thierry, conselheiro da Universidade, quem receberia os meus votos. Correu tudo bem até à véspera do grande dia, só que, quando soube que a cerimónia seria clandestina, que muito pouca gente assistiria e que a porta da igreja só seria aberta aos parentes, fiz a irmã porteira chamar todas as pessoas da vizinhança, os meus amigos e amigas. Tive licença para escrever a algumas amizades. Toda esta gente era inesperada, mas já que se apresentaram foi preciso deixá-los entrar; e a assembleia foi quase a necessária para os meus protestos.
Oh, senhor, que noite a da véspera! Não me deitei; estava sentada na minha cama. Pedia ajuda a Deus, levantava as mãos ao Céu e tomava-o por testemunha da violência a que estava a ser sujeita. Imaginava a minha figura aos pés do altar; uma jovem protestando, em voz alta, contra uma acção à qual, aparentemente, tinha dado o seu consentimento, o escândalo dos assistentes, o desespero das religiosas, a fúria dos meus pais. «Oh, meu Deus! Que vai ser de mim?...» Ao pronunciar estas palavras, fui vítima de um desfalecimento geral e caí desmaiada sobre a minha almofada; ao desfalecimento seguiu-se um calafrio, os meus joelhos entrechocavam-se e os meus dentes batiam ruidosamente; ao calafrio seguiu-se um calor terrível. O meu espírito perturbou-se. Não me lembro de me ter despido nem de ter saído da cela; e, no entanto, encontraram-me só com uma camisa, estendida no chão à porta da superiora, imóvel e quase sem vida. Soube isto tudo depois. Levaram-me para a minha cela e, de manhã, a superiora, a madre das noviças e essas a quem chamam assistentes rodeavam a minha cama. Estava muito abatida. Fizeram-me algumas perguntas e viram, pelas minhas respostas, que não sabia nada do que se tinha passado e, por isso, não me falaram no assunto. Perguntaram-me como me sentia, se continuava com a minha santa resolução e se estava em condições de suportar a fadiga do dia. Eu disse que sim e, ao contrário do que esperavam, nada se alterou.
Estava tudo pronto desde o dia anterior. Os sinos tocaram para anunciar a toda a gente que iam fazer mais uma desgraçada. O meu coração bateu com mais força. Vieram enfeitar-me, pois este é um dia de cerimónia. Agora, que recordo todo este aparato, parece-me que tinha algo de solene e comovedor para uma jovem inocente sem outras inclinações. Conduziram-me à igreja. Foi celebrada a santa missa. O bom vigário supunha em mim uma resignação que eu não tinha e dedicou-me um sermão em que cada palavra era um contra-senso; era ridículo tudo o que dizia da minha felicidade, da graça, da minha firmeza, do meu zelo, do meu fervor e de todos os sentimentos bonitos que supunha que fossem os meus. Perturbou-me o contraste entre o seu elogio e o passo que eu ia dar; tive momentos de incerteza, mas duraram pouco. Compreendi melhor do que nunca que não tinha nenhuma das qualidades necessárias para ser uma boa religiosa. Entretanto, chegou o momento terrível. Quando tive de entrar no lugar onde devia pronunciar os votos do meu compromisso, não sentia as pernas. Duas das minhas companheiras seguravam-me pelos braços e, com a cabeça caída sobre uma delas, arrastei-me como pude. Não sei o que sentiram as pessoas que assistiam, ao verem uma jovem vítima moribunda a ser levada ao altar; mas de todo o lado escapavam suspiros e soluços, entre os quais, tenho a certeza, os dos meus pais não se fizeram ouvir. Estava toda a gente em pé; havia jovens em cima das cadeiras e agarrados às barras da grade. Fez-se um silêncio profundo quando o padre que presidia à minha profissão me disse: «Maria Susana Simonin, promete dizer a verdade?
- Prometo.
- Está aqui por sua própria e livre vontade?»
Eu respondi: «Não»; mas as que me acompanhavam responderam por mim: «Sim.»
«Maria Susana Simonin, promete a Deus castidade, pobreza e obediência?»
Duvidei um momento; o padre estava à espera e eu respondi:
«Não, senhor.»
Ele repetiu:
«Maria Susana Simonin, promete a Deus castidade, pobreza e obediência?»
Respondi-lhe com a voz mais firme:
«Não, senhor, não.»
Deteve-se e disse-me: «Tranquilize-se, minha filha, e oiça-me.
- Senhor, disse-lhe eu, perguntou-me se prometo a Deus castidade, pobreza e obediência; compreendi-o bem e respondi-lhe que não.»
E, voltando-me para a assistência, entre a qual se elevava um enorme borburinho, avisei que desejava falar. Os murmúrios pararam e eu disse:
«Senhores, e em especial meu pai e minha mãe, tomo-os por testemunhas...»
Ditas estas palavras, uma das irmãs deixou cair o véu da grade e vi que era inútil continuar. Fui rodeada pelas religiosas que me encheram de reprovações; ouvi-as sem dizer palavra. Conduziram-me à minha cela e fecharam-me à chave.
Ali, sozinha e entregue às minhas reflexões, comecei a tranquilizar o espírito. Reflecti sobre a minha decisão e não me arrependi dela. Compreendi que, depois do escândalo que tinha feito, era impossível ficar ali muito tempo e que, talvez, não ousassem levar-me para outro convento. Não sabia o que fariam comigo, mas não havia nada pior do que ser religiosa contra a própria vontade. Fiquei assim muito tempo, sem saber o que ia acontecer. As que me traziam a comida entravam, punham os alimentos no chão e saíam em silêncio. Ao fim de um mês deram-me roupa de secular e tirei o hábito. Apareceu a superiora e mandou-me segui-la. Segui-a até à porta do convento; aí, subi para uma carruagem onde encontrei a minha mãe, à minha espera. Sentei-me na parte da frente e a carruagem partiu. Ficámos cara a cara sem dizer palavra, durante algum tempo; eu tinha os olhos baixos e não me atrevia a olhá-la. Não sei o que aconteceu na minha alma, mas depressa me atirei para os seus pés e pus a cabeça nos seus joelhos. Não lhe disse nada, mas soluçava e cheguei a engasgar-me. Ela repeliu-me com dureza. Não me levantei; comecei a sangrar do nariz; contra sua vontade, peguei-lhe numa mão e, regando-a com lágrimas e com o sangue que gotejava, apoiando a minha boca contra essa mão, beijava-a e dizia: «Continue a ser minha mãe e eu continuarei a ser sua filha...» Ela respondeu-me, empurrando-me com mais rudeza e arrancando a mão de entre as minhas: «Levante-se, desgraçada, levante-se.» Obedeci-lhe, voltei a sentar-me e escondi a cara com a touca. Tinha posto tanta autoridade e firmeza no som da sua voz que acreditei dever evitar os seus olhos. As minhas lágrimas e o sangue que me caía do nariz misturavam-se e desciam pelos meus braços, cobrindo-me sem que eu desse por isso. Por qualquer coisa que disse, percebi que lhe tinha manchado o vestido e a roupa interior, e que isso a aborrecia. Chegámos a casa e conduziram-me a um pequeno quarto que tinham preparado para mim. Na escada, ainda me agarrei aos seus joelhos, prendendo-lhe o vestido, mas tudo o que consegui foi que se voltasse para mim e me olhasse movendo com indignação a cabeça, a boca e os olhos, num gesto que pode imaginar melhor do que eu seria capaz de descrever.
Entrei na minha nova prisão, onde passei seis meses; todos os dias pedia, inutilmente, a graça de poder falar com ela, ver o meu pai ou escrever-lhe. Traziam-me a comida e serviam-me. Uma criada acompanhava-me à missa, nos dias de festa, e voltava a fechar-me. Eu lia, trabalhava, chorava e, às vezes, cantava; assim passava os dias. Sustinha-me um sentimento secreto: eu era livre e a minha sorte, por mais dura que fosse, podia mudar. Mas estava decidido que eu seria religiosa, e fui-o.
Tanta desumanidade e obstinação por parte dos meus pais acabaram por confirmar as suspeitas que eu tinha sobre o meu nascimento; nunca consegui encontrar outra forma de os desculpar. Aparentemente, a minha mãe tinha medo que eu, um dia, insistisse na partilha dos bens, que voltasse a pedir a minha parte e igualasse, assim, uma filha natural às filhas legítimas. Mas o que não passava de uma conjectura ia tornar-se numa certeza.
Enquanto estava fechada em casa, tinha poucas práticas religiosas; no entanto, na véspera dos dias de festa mandavam-me confessar. Já vos disse que eu e minha mãe tínhamos o mesmo director espiritual. Falei-lhe, expus-lhe toda a dureza da conduta que tinham mantido comigo nos últimos três anos. Ele sabia. Queixei-me, sobretudo, de minha mãe com amargura e ressentimento. Este sacerdote tinha entrado tarde na vida religiosa; não lhe faltava humanidade. Ouviu-me tranquilamente e, no fim, disse-me:
«Minha filha, compadeça-se da sua mãe; tenha mais compaixão por ela em vez de a culpar. Tem bom coração. E pode ter a certeza de que é com a maior das penas que faz tudo isto.
- Com a maior das penas, senhor! E o que pode obrigá-la a isso? Não foi ela que me trouxe ao mundo? Que diferença há entre mim e as minhas irmãs?
- Muita.
-Muita! Não compreendo a sua resposta...»
Ia começar a fazer a comparação entre mim e as minhas irmãs, quando ele me deteve e disse:
«Vamos, vamos. A falta de humanidade não é o pecado dos seus pais. Trate de viver com paciência a sua sorte e converta-a num mérito aos olhos de Deus. Verei a sua mãe e pode estar certa de que empregarei em seu favor todo o ascendente que possa ter sobre a alma dela.»
Aquele «muita» com que me respondeu foi um rasgo de luz para mim; já não tinha dúvidas de que era verdade aquilo que tinha pensado sobre o meu nascimento.
No sábado seguinte, por volta das cinco e meia, ao cair da tarde, a criada que me tinham destinado subiu ao meu quarto e disse-me: «Senhora, a vossa mãe ordena-lhe que se vista.» E uma hora depois: -A senhora deseja que desça comigo.» Encontrei à porta uma carruagem em que entrámos, a criada e eu; e soube que íamos aos Feuillants, a casa do padre Serafim. Estava à nossa espera, só. A criada afastou-se e eu entrei no locutório. Sentei-me, inquieta e curiosa sobre o que teria a dizer-me. Foi assim que me falou:
«Menina, vou explicar-lhe o enigma da severa conduta dos seus pais; a senhora sua mãe autorizou-me a fazê-lo. Seja sensata; tenha ânimo e coragem; está numa idade em que se lhe pode confiar um segredo, ainda que não lhe diga respeito. Há já muito tempo que venho aconselhando a sua mãe a contar-lhe o que vai saber agora; ela nunca foi capaz de se decidir: para uma mãe, é muito difícil confessar à própria filha uma falta grave. Conhece o seu carácter: não suporta a humilhação de ter de reconhecer certas coisas. Acreditou que a podia levar a fazer-lhe a vontade sem ter de se humilhar, mas enganou-se. Está muito desgostosa com tudo isto. Hoje, veio pedir-me conselho e encarregou-me de lhe dizer que não é filha do senhor Simonin.»
Respondi-lhe imediatamente: «Já suspeitava.
- E agora, menina, considere, sopese e julgue se a sua mãe pode, sem o consentimento do seu pai, ou mesmo com ele, igualá-la a outros filhos que não são seus irmãos e se pode confessar ao seu pai um feito sobre o qual ele próprio tem enormes suspeitas.
- Mas, senhor, quem é o meu pai?
- Menina, esse segredo não me foi confiado. Do que não há dúvida, menina, é que favoreceram enormemente as suas irmãs e tomaram todas as precauções que se possam imaginar, nos contratos matrimoniais, na desnaturalização dos bens, nas estipulações, nos fideicomissos e outros meios, para reduzir a nada a sua legítima, no caso de um dia a poder reclamar judicialmente. No dia em que perder os seus pais encontrará muito pouca coisa. Recusa o convento, mas talvez venha a lamentar não estar lá.
- É impossível, senhor. Eu não peço nada!
- Não sabe o que é o esforço, o trabalho, a indigência.
- Conheço, ao menos, o preço da liberdade e o peso de uma vida para a qual não fui chamada.
- Disse-lhe o que tinha a dizer. Agora, cabe-lhe a si reflectir, menina.»
De seguida, levantou-se.
«Só mais uma pergunta, senhor.
- As que quiser.
- As minhas irmãs sabem o que acaba de me contar?
- Não, menina.
- Então, como puderam deixar uma irmã assim, sem nada? Porque foi isso que me fizeram.
- Ah, menina! O interesse! O interesse! De outra maneira, nunca teriam encontrado os bons partidos com que casaram. Neste mundo, cada um pensa em si mesmo, e eu não a aconselho a contar com nenhuma delas quando perder os seus pais. Pode estar segura de que vão disputar até ao último centime a pequena quantia que haverá para repartir entre as três. Têm muitos filhos, e esse honrado pretexto bastará para a reduzir, a si, à mendicidade. Além de mais, elas não podem fazer nada; são os maridos que vão tratar de tudo. Se tiverem algum sentimento de comiseração, a ajuda que lhe derem, nas costas dos maridos, irá tornar-se numa fonte de desunião doméstica. Estou sempre a ver coisas como esta, ou filhos abandonados ou filhos, mesmo legítimos, socorridos à custa da paz doméstica. E por outro lado, menina, é muito duro o pão que se recebe. Se acredita em mim, reconcilie-se com os seus pais; faça o que a sua mãe espera de si; entrará para freira e ser-lhe-á dada uma pequena pensão com a qual os seus dias, se não forem felizes, serão, ao menos, suportáveis. Para mais, não lhe escondo que o abandono aparente da sua mãe, a sua obstinação em fechá-la e outras coisas que agora não recordo, mas das quais soube há algum tempo, produziram no seu pai o mesmo efeito que tiveram em si: suspeita sobre o seu nascimento e tem suspeitas acerca da sua mãe; não é segredo que já não tem dúvidas de que só é sua filha segundo a lei que atribui os descendentes a quem tem o título de esposo. Vamos, menina, é boa e sensata. Pense no que acaba de saber.»
Levantei-me e comecei a chorar. Vi que também ele se havia enternecido; levantou, suavemente, os olhos aos céu e acompanhou-me. Fui ter com a criada, subimos as duas para a carruagem e voltámos para casa.
Era tarde. Durante grande parte da noite sonhei com o que acabavam de me revelar e o mesmo aconteceu no dia seguinte. Não tinha pai; os escrúpulos tinham-me arrancado a minha mãe; as precauções que tinham sido tomadas para que não pudesse aspirar a um nascimento legítimo; nenhuma esperança, nenhum recurso. Talvez, se mo tivessem explicado antes, depois de terem casado as minhas duas irmãs, se me tivessem deixado em casa, que era muito frequentada, talvez tivesse encontrado alguém que achasse dote suficiente o meu carácter, o meu engenho e os meus talentos. Isso não era completamente impossível, mas o escândalo que eu tinha dado no convento tornava tudo mais difícil. Só uma firmeza fora do comum permitia que uma jovem de dezassete ou dezoito anos tivesse chegado àquele extremo. E os homens apreciam muito esta qualidade, mas preferem não a encontrar nas mulheres com quem casam. No entanto, era um recurso que se podia experimentar antes de tomar outras medidas. Decidi confiar-me à minha mãe e pedi-lhe uma entrevista, que me foi concedida.
Era Inverno. Estava sentada à lareira, num cadeirão; o ar severo, os olhos fixos e a expressão imóvel. Aproximei-me, atirei-me a seus pés e pedi-lhe perdão por todas as minhas culpas.
«Vai merecê-lo ou não», respondeu-me, «depende do que me diga. Levante-se. O seu pai está ausente; tem tempo para se explicar. Viu o padre Serafim, já sabe quem é e o que pode esperar de mim, se é que não quer castigar-me toda a minha vida por uma falta que cometi e que já paguei com juros. Pois bem, filha, o que espera de mim? O que é que resolveu?
- Mamã - respondi-lhe - sei que nada tenho e que a nada devo aspirar. Estou longe de querer aumentar as suas penas, sejam elas quais forem; talvez me tivesse encontrado mais submissa à sua vontade se me tivesse contado algumas circunstâncias das quais era difícil eu suspeitar. Mas, finalmente, sei quem sou e só me resta fazer aquilo que deve fazer alguém no meu estado. Já não me surpreendem as diferenças que fizeram entre mim e as minhas irmãs. Reconheço que são justas e concordo com elas; mas continuo a ser sua filha: trouxe-me no seio e espero que não se esqueça disso.
- Ai de mim! - exclamou ela, vivamente - Fiz por si tudo o que me foi possível!
- Está bem, mamã - disse-lhe eu -, devolva-me a sua bondade; devolva-me a sua presença; devolva-me a ternura daquele que acredita ser meu pai.
- Pouco falta - exclamou ela - para que também ele esteja tão seguro do seu nascimento como nós as duas. Sempre que está consigo oiço as suas reprovações; é a mim que as dirige, pela dureza que emprega consigo. Nunca espere dele sentimentos próprios de um pai terno. Além de mais, tenho de lhe confessar que me recorda uma traição, uma ingratidão tão odiosa de outro homem que não posso suportar a ideia; esse homem interpõe-se, sem cessar, entre nós as duas, afastando-me, e o ódio que lhe tenho a ele estende-se a si.
- Como! - disse-lhe - Só posso esperar de si e do senhor Simonin que me tratem como uma estranha, uma desconhecida que recolheram por caridade?
- Nem eu nem ele podemos fazer mais nada. Minha filha, não envenene a minha vida por mais tempo. Se não tivesse irmãs, eu sei o que podia fazer; mas tem duas, e ambas têm uma família numerosa. Há muito que a paixão se acabou; estou consciente outra vez.
- Mas, e aquele a quem devo a vida?
- Já não existe. Morreu sem se lembrar de si, e essa é a menor das suas faltas...»
Neste ponto, o seu rosto alterou-se; os olhos faiscavam-Ihe e a indignação apoderou-se dela; queria falar, mas não pôde articular uma palavra, porque o tremor dos lábios a impedia. Estava sentada; baixou a cabeça até às mãos para me esconder o violento arrebatamento que a tomou. Permaneceu assim algum tempo e, depois, levantou-se. Deu algumas voltas pelo quarto sem dizer palavra; continha as lágrimas, que caíam com dificuldade, e dizia:
«O monstro! Se dependesse dele, tinha-a afogado no meu seio por todas as penas que me causou; mas Deus conservou-nos uma à outra para que a mãe expiasse a falta por meio da filha... Minha filha, não tem nada e não vai ter nunca nada. O pouco que lhe posso dar tirei-o às suas irmãs; são estas as consequências de uma fraqueza. No entanto, na hora da minha morte espero não ter nada de que arrepender-me, pois ganhei o seu dote com as minhas economias. Nunca abusei das facilidades que me dá meu esposo, mas todos os dias guardo o que, de vez em quando, obtenho da sua largueza. Vendi as minhas jóias e ele deixou-me dispor, à minha vontade, do dinheiro que obti com a venda. Gostava de jogar, mas já não jogo; gostava de espectáculos, e privei-me deles; gostava de companhia, e vivo retirada; gostava de luxo, e renunciei a ele. Se entrar para freira, como é minha vontade e do senhor Simonin, o seu dote será o fruto dos meus esforços quotidianos.
- Mas, mamã - disse-lhe eu -, entra nesta casa muita gente de bem; talvez haja algum que, satisfeito comigo, não exija nem sequer as poupanças que fez para o meu dote.
- Não pense nisso. O escândalo perdeu-a.
- Não tem remédio o dano?
- Não, não tem.
- Mas, mesmo que não encontre marido, é necessário fecharem-me num convento?
- A menos que queira perpetuar a minha dor e o meu remorso até que a morte me feche os olhos. Imagine: as suas irmãs, nesse momento, estarão à volta do meu leito; se a vejo entre elas, veja qual será o efeito da sua presença nesses últimos momentos! Minha filha, por muito que me pese, tenho de chamá-la assim porque o é, as suas irmãs têm, por lei, um nome que a si foi dado por um crime; não aflija uma mãe que está a morrer; deixe-a descer à sepultura em paz. Assim, pode dizer a si mesma, quando chegar a sua hora de comparecer perante o grande juiz, que reparou a falta quando lhe foi possível; que pode afirmar que depois da morte da sua mãe não levou a discórdia ao seu lar e que não reivindicou direitos que não tinha.
- Mamã - disse eu -, não seja isso a preocupá-la. Chame um advogado e diga-lhe que lavre uma acta de renúncia. Eu assino tudo o que quiser.
- Isso não é possível: um filho não se deserda a si mesmo; castigam-no, assim, o pai ou a mãe quando justamente irritados. Se Deus quiser chamar-me amanhã, amanhã terei de chegar ao extremo de confessar tudo a meu marido, para que, de comum acordo, possamos tomar medidas. Não me exponha a uma indiscrição que me fará odiosa aos seus olhos, e cujas consequências a desonrariam a si. Se me sobrevivesse, ficaria sem nome, sem fortuna e sem estado. Diga-me, desgraçada, que vai ser de si? Que ideia quer que leve quando morrer? Teria de dizer ao seu pai... O quê? Que não é sua filha!... Minha filha, se atirando-me aos seus pés obtivesse de si... Mas não ouve nada. Tem a alma inflexível do seu pai...»
Neste momento, entrou o senhor Simonin. Viu o transtorno em que estava a mulher. Amava-a e era violento. Deteve-se e, dirigindo-me um olhar terrível, disse-me:
«Saia!»
Se ele fosse meu pai, não lhe teria obedecido, mas não era. E acrescentou, dirigindo-se à criada que me alumiava o caminho:
«Diz-lhe que não volte a aparecer.»
Fechei-me, outra vez, na minha pequena prisão. Pensei no que a minha mãe me tinha dito. Ajoelhei-me e pedi a Deus que me inspirasse. Rezei durante muito tempo e permaneci com o rosto por terra. Quase nunca se invoca a voz do céu, só quando não se sabe o que decidir e é raro que, então, o céu não nos aconselhe a obedecer. Foi esse o partido que tomei. «Querem que seja religiosa. Quem sabe se é essa, também, a vontade de Deus. Pois bem, sê-lo-ei. Já que tenho de ser desgraçada, não me importa onde vou sê-lo!» Recomendei à minha criada para me avisar quando o meu pai saísse. No dia seguinte, pedi para ver minha mãe. Ela fez-me saber que tinha prometido o contrário ao senhor Simonin, mas podia escrever-lhe com o lápis que me tinham dado. Escrevi, pois, sobre um bocado de papel (esse papel fatal foi descoberto e utilizado contra mim):
«Mamã, afligem-me muito todas as penas que lhe causei, e peço-lhe perdão por elas. Não desejo fazê-la sofrer mais. Ordene-me tudo quanto desejar. Se é sua vontade que entre num convento, desejo que seja, também, a vontade de Deus.»
A criada pegou no papel e levou-o a minha mãe. Voltou a subir pouco depois e disse-me com certo arrebatamento:
«Menina, se só era necessária uma palavra para fazer a felicidade do seu pai, da sua mãe e a sua, porque tardou tanto em dizê-la? O senhor e a senhora têm um ar que nunca lhes tinha visto desde que aqui estou. Discutiam constantemente por sua causa. Graças a Deus não voltará a acontecer...
Enquanto me falava, pensei que tinha acabado de assinar a minha sentença de morte, e este pressentimento, se o senhor me abandonar, tornar-se-á realidade.
Passaram alguns dias sem que tenha ouvido falar de nada. Mas uma manhã, cerca das nove horas, a minha porta abriu-se bruscamente. Era o senhor Simonin que entrava em camisa e gorro de dormir. Desde que soube que não era meu pai, a presença dele só me causava surpresa. Levantei-me e fiz-lhe uma reverência. Parecia que eu tinha dois corações: não podia pensar na minha mãe sem me enternecer e sem sentir vontade de chorar; mas não me acontecia o mesmo com o senhor Simonin. É certo que só um pai inspira certos sentimentos; isso só o sabe quem já se encontrou, como eu, cara a cara com um homem que, durante muito tempo, teve e acaba de perder tão augusta qualidade. Quem nunca passou por isto ignora o que é. Se eu passava da sua presença para a da minha mãe, parecia que eu era outra pessoa. Disse-me: «Susana, reconhece este bilhete?
- Sim, senhor.
- Escreveu-o de livre vontade?
- Só posso dizer que sim.
- Está, pelo menos, decidida a cumprir o que promete?
- Estou.
- Tem preferência por algum convento?
- Não. É-me indiferente.
- Isso chega.»
Foi isto que lhe respondi, mas infelizmente não o fiz por escrito. Passei quinze dias na mais completa ignorância do que se estava a passar. Parece-me que se dirigiram a várias casas religiosas, e que o escândalo da minha primeira decisão impediu que me recebessem como postulante. Houve menos dificuldades em Longchamp, e isso deveu-se, sem dúvida, a terem insinuado que eu sabia música e tinha boa voz. Exageraram-me muito as dificuldades que tinham tido e o favor que se me fazia ao aceitarem-me naquela casa. Chegaram mesmo a aconselhar-me a escrever à superiora. Eu não compreendia as consequências deste testemunho escrito que me exigiam: aparentemente, temiam que, algum dia, eu quisesse voltar atrás nos meus votos. Queriam ter um testemunho escrito pelo meu punho e com a minha letra de que os meus votos tinham sido livres. Sem um motivo assim, como é possível que esta carta, que devia ter ficado nas mãos da superiora, tenha chegado, depois, às mãos dos meus cunhados? Mas deixemos isso porque me mostra o senhor Simonin como não desejo vê-lo: agora, já não existe.
Fui conduzida a Longchamp; a minha mãe acompanhou-me. Não pedi para me despedir do senhor Simonin; confesso que quando me lembrei disso já ia a caminho. Estavam à minha espera; a minha história e os meus talentos precederam-me: de início não me disseram nada, mas, depois, quiseram saber se valia a pena a aquisição que tinham acabado de fazer. Quando já tínhamos falado de muitas coisas banais (já que, depois do que aconteceu, compreenderá que não se falou de Deus, da vocação nem dos perigos do mundo, nem da doçura da vida religiosa e que não se aventurou uma única palavra sobre as piedosas simplicidades com que se enchem esses primeiros momentos), a superiora disse: «Menina, sabe música e canta. Temos um cravo. Se quiser, podemos ir ao nosso locutório...» Eu tinha a alma oprimida, mas não era este o momento para mostrar repugnância. Passou a minha mãe e eu segui-a; a superiora encerrava o cortejo seguida por algumas religiosas atraídas pela curiosidade. Já era tarde e trouxeram-me velas. Sentei-me e aproximei-me do cravo. Experimentei o instrumento durante muito tempo, procurando um fragmento musical na minha cabeça; mas, apesar de saber muitos, não encontrava nenhum. A superiora apressou-me e cantei sem delicadeza nenhuma, por costume, já que o fragmento me era familiar: «Tristes preparativos, pálidas velas, dias mais horríveis que as trevas...» Não sei que efeito produziu, mas não me ouviram muito tempo: interromperam-me com elogios, que muito me surprendeu merecer tão rapidamente e com tão pouco esforço. A minha mãe recomendou-me à superiora, deu-me a mão a beijar e foi-se embora.
Eis-me aqui, noutra casa religiosa, postulante e com todas as aparências de postular de muito bom agrado. Mas o senhor, que conhece tudo o que se passou até este momento, que pensa disto? A maior parte destas coisas não foram alegadas quando quis retratar-me dos meus votos; umas, porque eram verdades desprovidas de provas, outras, porque me teriam feito odiosa sem me terem sido úteis. Eu teria passado por uma filha desnaturada que difamava a memória dos pais para obter a liberdade. Existia uma prova daquilo que se alegava contra mim; o que havia afavornão podia nem alegar-se nem provar-se. Nem sequer queria que se insinuasse, nos juizes, a suspeita do meu nascimento; algumas pessoas não versadas em leis aconselharam-me a acusar o director espiritual da minha mãe, que também era o meu. Isso não era possível e, mesmo que o fosse, eu não o teria permitido. A propósito: temo esquecer uma coisa e recomendo-lhe que o desejo de me ajudar não o impeça de reflectir sobre ela. Creio necessário calar que sei música e que toco cravo: não precisavam de mais para me descobrir; a ostentação destes dotes não convêm à obscuridade e segurança que procuro. As pessoas do meu estado não sabem nada destas coisas, assim, também eu devo ignorá-las. Se for obrigada a expatriar-me, servir-me-ão de meio de vida. Expatriar-me! Pode dizer-me por que me espanta esta ideia? É porque não sei para onde ir; porque sou jovem e sem experiência; porque temo a miséria, os homens e o vício, porque vivi sempre fechada e, se estiver fora de Paris, sinto-me perdida no mundo. Talvez nem seja assim; mas é o que sinto. Senhor, não sei para onde ir nem o que fazer: isso depende de si.
As superioras de Longchamp, como as da maioria das casas religiosas, mudam de três em três anos. Uma tal senhora de Moni era quem tinha o cargo quando cheguei àquela casa. Não posso falar-lhe demasiado bem dela, e, no entanto, foi a sua bondade que me perdeu. Era uma mulher sensata e conhecia o coração humano; era indulgente, apesar de não precisar de o ser; todas nós éramos suas filhas. Nunca via outras faltas senão as que eram impossíveis de ignorar, ou cuja importância não lhe permitia fechar os olhos. Falo-lhe dela sem interesse; eu cumpri o meu dever com exactidão, e ela, com justiça, não teve nem de me castigar nem de me perdoar falta alguma. Se tinha alguma predilecção, era inspirada pelo mérito. Depois disto, não sei se é conveniente dizer-lhe que gostava ternamente de mim e que não fui a última entre as suas favoritas. Sei que é um grande elogio que me faço, maior do que pode imaginar por não a ter conhecido. As outras chamam, invejosamente, favoritas às predilectas da superiora. Se tivesse de apontar um defeito à senhora de Moni, seria que o seu gosto pela virtude, pela piedade, pela franqueza, pela doçura, pelos talentos e pela honestidade a influenciavam claramente; e não ignorava que as que não tinham estas qualidades se sentiam ainda mais humilhadas. Também tinha o dom, talvez mais comum no convento que no mundo, de discernir muito rapidamente os caracteres. Era raro que uma religiosa de que não tinha gostado no primeiro momento lhe viesse a agradar depois. Não tardou a ter-me afecto e eu logo depositei nela toda a minha confiança. Ai daquelas que se lhe não confiavam facilmente! Era preciso que fossem más, sem remédio, e que lho confessassem. Falou-me da minha aventura em Santa Maria e eu contei-lhe tudo, como a si; disse-lhe tudo quanto acabo de escrever, mesmo a história do meu nascimento e as minhas tribulações. Não esqueci nada. Compadeceu-se de mim, consolou-me e desejou-me um futuro mais grato.
Entretanto, passou o tempo de postulado; chegou o momento de tomar o hábito e tomei-o. Fiz o noviciado sem desgosto. Passo rapidamente sobre estes anos porque a única tristeza que tiveram, para mim, foi o sentimento secreto de que avançava, passo a passo, para um estado para o qual não tinha sido feita. Algumas vezes este sentimento avivava-se muito. Mas eu recorria logo à minha boa superiora que me abraçava e aliviava o meu espírito. Expunha-me claramente as suas razões, e terminava, sempre, dizendo-me: «E os outros estados? Não têm, também, os seus espinhos? Nós é que só sentimos os próprios. Vamos, minha filha, ajoelhemos e rezemos.» Então, prostrava-se e rezava alto, mas com tanta devoção, eloquência, doçura, elevação e força que se diria que era Deus quem a inspirava. Os seus pensamentos, as suas expressões e as suas imagens penetravam até ao fundo do coração. Começava por ouvi-la e, pouco a pouco, sentia-me arrastada e unia-me a ela. A minha alma vibrava e partilhava os seus transportes. Não queria seduzir, mas era certo que o fazia: depois de estar com ela, o coração ardia, a alegria e o êxtase estampavam-se no rosto e vertiam-se lágrimas muito doces. Ela própria recebia esta impressão, mantinha-a durante muito tempo e esforçava-se por a conservar. Não falo só da minha própria experiência, mas da de todas as religiosas. Algumas disseram-me que sentiam nascer nelas uma necessidade de serem consoladas, o que era um grande prazer; creio que a mim só me faltou um pouco mais de costume para chegar a esse ponto.
No entanto, ao aproximar-se a minha profissão, experimentei uma melancolia tão profunda que pus terrivelmente à prova a minha boa superiora. O seu dom abandonou-a; foi ela mesma quem mo confessou. -Não sei, disse-me, o que se passa comigo; quando vem, parece que Deus se retira e que o Seu Espírito se cala. É inútil excitar-me, procurar ideias e querer exaltar a minha alma; fico uma mulher normal e limitada e tenho medo de falar.
- Ah, querida madre! - disse eu - Que pressentimento! Se é Deus quem a emudece!...»
Um dia em que me sentia mais insegura e mais abatida que nunca, fui à sua cela. Ao princípio a minha presença desconcertou-a; aparentemente, leu nos meus olhos e em toda a minha pessoa que o meu profundo sentimento estava fora do seu alcance; e não queria lutar sem ter a certeza de que sairia vitoriosa. No entanto, tentou e inflamou-se pouco a pouco; à medida que a minha dor cedia, o seu entusiasmo aumentava. Subitamente, ajoelhou-se e eu imitei-a. Pensei que ia partilhar comigo o seu transporte, e desejava-o. Pronunciou algumas palavras e logo, de seguida, calou-se. Esperei inutilmente: já não falou. Levantou-se, desfeita em lágrimas e pegando-me na mão, apertou-me nos seus braços: «Querida filha, disse-me, que efeito tão cruel operou em mim! Assim é, o Espírito retirou-se, posso senti-lo. Vá e que Deus lhe fale por Si mesmo, já que não lhe apraz fazer-se ouvir pela minha boca.»
Com efeito, não sei o que é que lhe aconteceu, se lhe tinha inspirado uma desconfiança nas suas próprias forças que não se dissipou, se a tinha intimidado ou se se tinha acabado, verdadeiramente, o seu comércio com o Céu; mas não recuperou o seu dom de consolar. Fui vê-la na véspera da minha profissão. Estava tão melancólica como eu. Comecei a chorar e ela também. Atirei-me a seus pés e ela abençoou-me, levantou-me, abraçou-me e despediu-se dizendo-me: «Estou cansada de viver; desejo morrer e pedi a Deus para não ver este dia, mas a Sua vontade é outra. Vá. Falarei com a sua mãe e passarei a noite em oração. Reze também, mas deite-se, ordeno-lhe.
- Permita-me - respondi-lhe - que me una a si.
- Permito-lho das nove às onze, não mais. Às nove e meia começaremos a rezar, mas a partir das onze deixar-me-á a rezar sozinha e vai descansar. Vá, querida filha; eu ficarei a velar, diante de Deus, o resto da noite.»
Quis rezar, mas não pude. Eu dormia e, entretanto, esta santa mulher andava pelos corredores chamando a cada porta, acordando as religiosas e fazendo-as descer, em silêncio, até à igreja. Foram todas. E quando já ali estavam reunidas, convidou-as a pedir por mim ao Céu. Primeiro, a oração foi feita em silêncio; depois, apagou as luzes e recitaram todas juntas o Miserere, excepto a superiora que, prostrada aos pés do altar se mortificava cruelmente, dizendo: «Oh, Deus! Se vos haveis retirado de mim por alguma falta que cometi, perdoai-ma. Não Vos peço que me devolvais o dom que me haveis tirado, mas que Vos dirijais Vós mesmo a essa inocente que dorme enquanto eu Vos invoco aqui por ela. Meu Deus, falai-lhe, falai aos seus pais e perdoai-me.»
No dia seguinte, entrou de manhã muito cedo na minha cela; não a ouvi porque ainda não tinha acordado. Sentou-se ao lado da minha cama. Tinha pousado ligeiramente uma mão na minha fronte e olhava-me. A inquietação, a turbação e a dor sucediam-se no seu rosto e foi assim que a vi quando abri os olhos. Não me disse nada do que se tinha passado durante a noite. Só me perguntou se me tinha deitado cedo (e eu respondi-lhe: «À hora que me mandou»), se tinha descansado («Profundamente. -Já o esperava»), como estava: «Muito bem. E a querida madre?
- Ai! - disse-me ela - nunca conheci nenhuma pessoa religiosa que não tivesse inquietações, mas em nenhuma encontrei tanta confusão como em si. E gostava que fosse feliz.
- Se me amar sempre, serei.
- Ah, se isso fosse tudo! Não pensou em nada, durante a noite?
- Não.
- Não teve nenhum sonho?
- Nenhum.
- E o que lhe vai, agora, na alma?
- Estou espantada. Obedeço à minha sorte sem repugnância e sem gosto. Sinto que a necessidade me arrasta e deixo-
-me levar. Querida madre! Não sinto nada dessa doce alegria, desse estremecimento, essa melancolia, essa doce inquietação que algumas vezes vi em quem se encontrava como eu neste momento. Nem sequer consigo chorar. Querem-no, é necessário: é a única ideia que me ocorre... Mas não diz nada.
- Não vim para conversar consigo, mas sim para a ver e a ouvir. Estou à espera da sua mãe. Trate de não me comover; deixe que os sentimentos se acumulem na minha alma, e, quando estiver repleta deles, deixo-a. É necessário que se cale, pois eu conheço-me; só tenho um arrebatamento, mas é violento e não é a si que devo dirigi-lo. Repouse ainda um momento, deixe que a contemple; diga-me só algumas palavras e deixe-me tomar aquilo que vim buscar. Vou-me logo embora e Deus fará o resto.»
Guardei silêncio e recostei-me na minha almofada. Estendi-lhe uma das minhas mãos, que ela tomou. Parecia meditar, e muito profundamente; tinha os olhos fechados com força. Às vezes abria-os, dirigia-os ao alto e pousava-os, de novo, em mim. Agitava-se, a sua alma enchia-se de tumulto, resignava-se e voltava a agitar-se. Em verdade, esta mulher tinha nascido para ser profetisa; tinha o carácter e o semblante próprios. Tinha sido bonita; mas a idade, ao fundir-lhe os traços do rosto e ao marcá-los com grandes pregas, tinha acrescentado mais dignidade à sua fisionomia. Tinha uns olhos pequenos que pareciam olhar para dentro dela ou atravessar os objectos próximos e vislumbrar mais além, a uma grande distância, sempre no passado ou no futuro. Às vezes, apertava-me a mão com força. Perguntou-me, bruscamente, que horas eram.
«Falta pouco para as seis.
- Adeus, vou-me embora. Não tarda vêm vesti-la. Não quero estar aqui, pois ia distrair-me. Só desejo poder manter a moderação nos primeiros momentos.»
Mal tinha saído quando entraram a madre das noviças e as minhas companheiras. Tiraram-me o hábito de religiosa e vestiram-me roupas mundanas; é o costume, como sabe. Não ouvi nada do que diziam à minha volta, pois estava quase reduzida ao estado de automata; não me dei conta de nada; tinha só, espaçados, como pequenos movimentos convulsivos. Diziam-me o que tinha de fazer; amiúde viam-se obrigadas a repetirem-mo, pois não as tinha ouvido da primeira vez, e fazia-o. Não é que estivesse a pensar noutra coisa, mas estava absorta; tinha a mente fatigada, como quando se reflectiu demasiado. Enquanto isto, a superiora falava com a minha mãe. Nunca soube o que se passou nesse encontro, que durou muito tempo; só me disseram que, quando ambas se separaram, a minha mãe estava tão confusa que não conseguia encontrar a porta por onde tinha entrado, e que a superiora tinha saído com as mãos apertadas e apoiadas contra a fronte.
Entretanto, tocaram os sinos e desci. A assembleia era pouco numerosa. Não sei se o sermão foi bom ou mau, pois não o ouvi. Aquela manhã desapareceu completamente da minha vida; não sei o que fiz nem o que disse. Sem dúvida, fizeram-me perguntas e eu respondi; pronunciei os meus votos, mas não me lembro de nada, e encontrei-me feita religiosa tão inocentemente como quando me tinham feito cristã. Não compreendi mais da cerimónia da minha profissão do que tinha compreendido da do meu baptismo, com a diferença de que uma confere a graça e a outra supõe-na. Pois bem, senhor! Ainda que não me tenha revoltado em Longchamp como tinha feito em Santa Maria, acredita que estava mais comprometida? Apelo ao seu juízo; apelo ao juízo de Deus. Encontrava-me num estado de abatimento tão profundo que, uns dias depois, quando me anunciaram que estava no coro, não soube o que queriam dizer-me. Perguntava-me se era verdade que tinha professado; quis ver a assinatura dos meus votos e tiveram de acrescentar a estas provas o testemunho de toda a comunidade e de algumas pessoas alheias a ela mas que tinham assistido à cerimónia. Várias vezes, dirigindo-me à superiora, dizia-lhe: «Então, é certo?» E estava sempre à espera que me respondesse: «Não, minha filha; está enganada.» A sua reiterada certeza não me convencia, pois não podia conceber que no intervalo de um dia inteiro, tão tumultuoso e variado, tão cheio de circunstâncias singulares e surpreendentes, eu não me lembrasse de alguma coisa, nem sequer do rosto das que me tinham ajudado, nem do do padre que me tinha predicado, nem do daquele de quem eu tinha recebido os votos. A mudança do hábito religioso para as roupas mundanas era a única coisa de que me recordava; a partir desse momento estive o que fisicamente chamam alienada. Foram necessários meses inteiros para sair desse estado; à duração dessa espécie de convalescença atribuo o esquecimento de tudo o que se tinha passado: como acontece a quem sofreu uma longa doença, durante a qual continua a falar ajuizadamente, recebe os sacramentos e, ao recuperar a saúde, não se lembra de nada. Vi vários exemplos deste na casa e disse a mim mesma: «Isto é, aparentemente, o que me aconteceu a mim no dia da minha profissão.» Mas fica-se sem saber se estas acções são conscientes, ainda que a pessoa pareça sê-lo.
No mesmo ano tive três perdas importantes: a do meu pai ou, melhor dizendo, do que passava por tal (era velho, tinha trabalhado muito e consumiu-se), a da minha superiora e a da minha mãe.
Esta digna religiosa pressentiu que a sua hora se aproximava. Condenou-se ao silêncio e mandou que lhe levassem o ataúde ao quarto. Tinha perdido o sono e passava os dias e as noites a meditar e a escrever: deixou quinze meditações, que a mim me pareceram da maior beleza. Tenho uma cópia; se algum dia tiver curiosidade sobre o que sugere o instante da morte, empresto-lhas. Intitulam-se Os Últimos Instantes da Irmã de Moni.
Ao aproximar-se o momento da sua morte, pediu que a visitassem. Estava estendida no leito e administraram-lhe os santos sacramentos. Tinha um Cristo entre os braços. Era de noite; o reflexo dos candelabros iluminava esta lúgubre cena. Nós rodeámo-la, desfeitas em lágrimas. Na cela ressoavam as nossas queixas, quando, de repente, os seus olhos brilharam. Endireitou-se bruscamente e falou. A voz era quase tão forte como quando estava sã, e tinha recuperado o dom perdido: reprovou as nossas lágrimas que pareciam invejar-lhe a felicidade eterna. «Minhas filhas, a dor domina-vos. Desde ali, desde ali, dizia apontando o céu, servir-vos-ei. Os meus olhos pousarão sem cessar sobre esta casa. Intercederei por vós e serei escutada. Aproximem-se todas para que as possa beijar; venham receber a minha benção e a minha despedida...» Depois de pronunciar estas últimas palavras, faleceu esta extraordinária mulher, que deixou atrás de si tantas recordações inesquecíveis.
A minha mãe morreu ao voltar de uma curta viagem que fez, no fim do Outono, a casa de uma das suas filhas. Tinha sofrido muito e a sua saúde estava debilitada. Nunca soube o nome do meu pai nem a história do meu nascimento. O padre que tinha sido seu e meu director espiritual enviou-me, da parte de minha mãe, um pacotinho; continha cinquenta luíses e um bilhete, envoltos e cosidos no pedaço de tecido. O bilhete dizia:
«Minha filha, é pouca coisa; mas a minha consciência não me permite dispor de uma soma maior. É o que resta do que pude economizar dos pequenos presentes do senhor Simonin.
Viva santamente, pois é o melhor, inclusive, para a sua felicidade neste mundo. Rogue por mim; o seu nascimento foi a única falta importante que cometi. Ajude-me a expiá-la, e que Deus me perdoe tê-la trazido ao mundo, tomando em consideração as boas obras que fará. Sobretudo, não incomode a família; e, ainda que a eleição que fez do seu estado não tenha sido tão voluntária como eu desejei, receie uma mudança. Oxalá tivesse eu vivido fechada num convento toda a minha vida! Não me transtornaria tanto pensar no momento do terrível juízo. Pense, minha filha, que a sorte da sua mãe, no outro mundo, depende muito da conduta que tiver aqui: Deus, que tudo vê, aplicar-me-á, a mim, com toda a justiça, todo o bem e todo o mal que aqui faça. Adeus, Susana. Não peça nada às suas irmãs; não estão em posição de a socorrer. Não espere nada do seu pai, pois ele precedeu-me, viu o grande dia e espera-me. A minha presença será menos terrível para ele do que a sua é para mim. Adeus, mais uma vez. Ah, desgraçada mãe! Ah, desgraçada filha! As suas irmãs chegaram; não estou nada satisfeita com elas: pegam, levam, têm ante uma mãe moribunda disputas de interesses que me afligem. Quando se aproximam da cama, volto-me para o outro lado. Que posso ver nelas? Duas criaturas em quem a indigência apagou o sentimento natural. Suspiram pelo pouco que deixo; fazem perguntas indecentes ao médico e à enfermeira, mostrando, assim, com que impaciência esperam o momento da minha morte para se apoderarem de tudo o que me rodeia. Pensaram, não sei porquê, que podia ter algum dinheiro escondido no meu colchão; fizeram tudo para que eu me levantasse e conseguiram-no. Mas, felizmente, o meu depositário tinha cá estado na véspera e eu tinha-lhe entregado este pacotinho, com esta carta que lhe ditei. Queime a carta e, quando souber que morri, o que acontecerá em breve, mande dizer uma missa por mim e renove, durante ela, os seus votos; desejo que permaneça sempre religiosa: a ideia de a imaginar no mundo, sem recursos, jovem e sem apoios, transtornaria ainda mais os meus últimos momentos.»
O meu pai morreu em 5 de Janeiro, a minha superiora no final do mesmo mês e a minha mãe no Natal do mesmo ano.
A irmã Santa Cristina sucedeu à madre de Moni. Ai, senhor! Que diferença entre uma e outra! Já lhe disse como era a primeira. Esta outra tinha um carácter mesquinho, uma mente estreita e cheia de superstições; entregava-se às novas opiniões e conferenciava com jesuítas e padres sulpícios. Tomou aversão a todas as favoritas da superiora que a tinha precedido: num instante, a casa encheu-se de dissensões, ódios, maledicências, acusações, calúnias e perseguições. Tivemos de nos pronunciar em questões de teologia que não entendíamos, subscrever fórmulas, entregar-nos a práticas singulares. A madre de Moni não aprovava exercícios de penitência feitos sobre o corpo; em toda a sua vida só se tinha mortificado duas vezes: uma na véspera da minha profissão e a outra numa circunstância semelhante. Dizia que estas penitências não corrigem nenhum defeito e que só servem para fomentar o orgulho. Queria que as suas religiosas se sentissem bem, tivessem o corpo são e o espírito sereno. A primeira coisa que fez, quando chegou ao cargo, foi mandar buscar todos os cilícios e as disciplinas; proibiu alterar os alimentos com cinza, dormir no chão e a posse de instrumentos de cilício. Esta, pelo contrário, devolveu a cada religiosa o seu cilício e a sua disciplina e retirou o Antigo e o Novo Testamento. As favoritas do reinado anterior nunca são as favoritas do reinado que lhe sucede. Eu fui indiferente à actual superiora, para não dizer nada pior, pela mesma razão que tinha sido querida à superiora anterior; mas não tardei a piorar a minha sorte com acções que qualificará de imprudência ou de firmeza, segundo o ponto de vista com que as considerar.
A primeira, foi ter-me abandonado à dor que sentia pela perda da nossa primeira superiora; elogiá-la em qualquer circunstância; provocar comparações entre ela e a que agora nos governava, e que não eram favoráveis a esta; descrever o estado da casa nos anos anteriores; trazer a recordação da paz de que gozávamos, da indulgência de que éramos objecto, do alimento, espiritual e temporal, que nos era administrado então; e exaltar os costumes, os sentimentos e o carácter da irmã de Moni. A segunda, foi deitar no fogo o cilício e desfazer-me da minha disciplina, contá-lo às minhas amigas e ter instigado algumas a seguirem o meu exemplo. A terceira, prover-me de um Antigo e de um Novo Testamento. A quarta, recusar qualquer partido e ater-me ao título de cristã, sem aceitar o nome de jansenista C1) ou de molinista (2). A quinta, reduzir-me rigorosamente à regra da casa, sem querer fazer mais ou menos; consequentemente, não me prestar a nenhum excesso, pois a obrigação já me parecia demasiado dura; não subir ao órgão senão nos dias de festa; cantar só quando era a minha vez de estar no coro; não tolerar que se abusasse da minha complacência e dos meus dotes prestando-me a tudo, todos os dias. Li e reli as constituições; sabia-as de cor. Se me mandavam fazer alguma coisa que nelas não vinha claramente explicada, ou que me parecesse contrária a elas, recusava firmemente, pegava no livro e dizia: «São estes os compromissos que aceitei, e não outros.»
(2) O molinismo é uma doutrina religiosa sobre o livre arbítrio e a graça. (N. T.)
As minhas razões convenceram algumas. A autoridade das mestras ficou muito limitada; já não podiam dispor de nós como escravas. Era raro passar um dia sem que houvesse algum alvoroço. Nos casos duvidosos, as minhas companheiras consultavam-me sempre e eu apoiava a regra contra o despotismo. Logo tive o aspecto (e talvez, também, a conduta) de uma rebelde. Apelava-se, sem cessar, aos grandes vigários do senhor arcebispo; eu comparecia, defendia-me e defendia as minhas companheiras; nem uma só vez me condenaram, tal era o cuidado que punha em ter sempre a razão do meu lado. Era impossível atacarem-me nos meus deveres, porque os cumpria escrupulosamente. Quanto às pequenas graças que uma superiora é sempre livre de dar ou de negar, eu nunca as pedia. Nunca ia ao locutório; e, como não conhecia ninguém, não recebia visitas. Mas tinha queimado o meu cilício e deitado fora a minha disciplina; tinha aconselhado outras a fazerem o mesmo; não queria ouvir falar de jansenismo ou de molinismo, nem bem nem mal. Quando me perguntavam se estava submetida à constituição, respondia que estava submetida à Igreja; se aceitava a Bula, que aceitava o Evangelho. Visitaram a minha cela e descobriram o Antigo e o Novo Testamento. Tinha-me permitido certas indiscrições sobre a suspeita intimidade de algumas das favoritas; a superiora tinha frequentes e longas entrevistas com um jovem eclesiástico, e eu tinha esclarecido a razão e o pretexto dos encontros. Não omiti nada para fazer que me temessem, me odiassem e me perdessem; e consegui-o. Já não se queixavam de mim aos superiores, mas ocuparam-se a tornar-me a vida impossível. Proibiram as outras religiosas de se aproximarem de mim e, muito rapidamente, estava só. Tinha muito poucas amigas; supuseram que podiam evitar a proibição que lhes tinham feito e que, ao não poderem ver-me durante o dia, seria possível visitarem-me de noite ou a horas proibidas. Espiaram-nos e surpreenderam-me com uma e com outra; fizeram com esta imprudência o que bem entenderam e castigaram-me da forma mais desumana. Condenaram-me, durante semanas, a assistir ao ofício de joelhos, separada de todas as outras, no meio do coro; a viver de pão e água; a permanecer fechada na minha cela e a cumprir as funções mais humildes da casa. As minhas supostas cúmplices não foram mais bem tratadas. Quando não me apanhavam em falta, era como se o tivessem feito; davam-me, ao mesmo tempo, ordens imcompatíveis e castigavam-me por não as cumprir; antecipavam as horas dos ofícios e das refeições; alteravam, nas minhas costas, toda a conduta no claustro e, apesar de eu ter a maior atenção, todos os dias era culpada e todos os dias me castigavam. Eu sou valente, mas isso de nada serve contra o abandono, a solidão e a perseguição. As coisas chegaram a um ponto em que atormentarem-me era um jogo; era a diversão de cinquenta pessoas aliadas. É-me impossível entrar nos detalhes de tais maldades; impediam-me de dormir, de velar, de rezar. Um dia, roubavam-me algumas peças de vestuário; outro dia, eram as minhas chaves ou o meu breviário; a minha fechadura aparecia trancada. Impediam-me de fazer bem as coisas ou, então, estragavam as que estavam bem feitas. Atribuíam-me frases e acções; responsabilizavam-me por tudo, e a minha vida era uma sucessão de delitos reais ou simulados e de castigos.
A minha saúde não resistiu a tão grandes e duras provas; caí no abatimento, na aflição e na melancolia. Ao princípio, ia buscar forças aos pés do altar, e às vezes encontrava-as. Flutuava entre a resignação e o desespero, tão depressa me submetia a todo o rigor da minha sorte como pensava em livrar-me dela por meios violentos. No fundo do jardim havia um poço profundo; quantas vezes lá fui! Quantas vezes o contemplei! Ao lado, havia um banco de pedra; quantas vezes me sentei nele, com a cabeça apoiada na boca do poço! Quantas vezes, no tumulto das minhas ideias, me levantava bruscamente, resolvida a acabar com as minhas penas! O que é que me reteve? Por que preferi, então, chorar, gemer em voz alta, pisar o meu véu, arrancar os cabelos e arranhar a cara com as unhas? Se era Deus que impedia que eu me perdesse, por que não detinha, também, todos esses movimentos?
Vou dizer-lhe uma coisa que talvez lhe pareça estranha, mas nem por isso é menos certa; tenho a certeza de que as minhas frequentes visitas a esse poço eram conhecidas e as minhas cruéis inimigas esperavam que eu, algum dia, cumprisse o desejo que fervia no fundo do meu coração. Quando me encaminhava naquela direcção, fingiam afastar-se ou olhavam para outro lado. Várias vezes encontrava a porta do jardim aberta, a horas em que devia estar fechada, sobretudo nos dias em que tinham multiplicado sobre mim as tristezas ou tinham levado ao extremo a violência e pensavam que estava alienada. Mas, logo que adivinhei que esse meio de deixar a vida se oferecia, por assim dizer, ao meu desespero, que me levavam pela mão até ao poço e que ele estaria lá sempre pronto para me receber, deixei de me preocupar com o assunto. O meu espírito voltou-se para outros lados; ficava nos corredores e media a altura das janelas. À noite, ao despir-me, experimentava, sem me dar conta, a força das minhas ligas; outro dia, recusava a comida; descia ao refeitório e deixava-me ficar com as costas encostadas à parede e as mãos uma de cada lado, coladas ao corpo, os olhos fechados e sem tocar na comida que me tinham posto à frente. Abstraía-me tanto neste estado que, quando todas as religiosas já tinham saído, eu continuava ali. Então, fingiam retirar-se em silêncio e deixavam-me; depois, castigavam-me por ter faltado aos exercícios. Que lhe direi? Fizeram-me recusar todos os meios de me matar, porque me parecia que, longe de se lhes oporem, mós ofereciam. Aparentemente, não desejamos que nos empurrem para fora deste mundo, se não talvez eu já não estivesse aqui, se elas tivessem fingido deter-me. Quando alguém tira a vida a si próprio, talvez tente desesperar os outros, e conserva-a quando acredita satisfazê-los; são impulsos que passam muito subtilmente por nós. Na realidade, se é possível recordar-me do meu estado quando estava ao lado do poço, parece-me que, dentro de mim, gritava a essas desgraçadas que se afastavam para facilitar um crime: «Dêem um passo até mim, mostrem o mais pequeno desejo de me salvarem, venham deter-me e podem estar seguras de que chegarão demasiado tarde.» Na verdade, só vivia porque elas desejavam a minha morte. O deleite em atormentar e perder alguém esgota-se no mundo; mas não se esgota nunca nos claustros.
Estava assim quando, reflectindo sobre a minha vida anterior, me ocorreu pedir a anulação dos meus votos. Ao princípio, pensei nisso levemente; só, abandonada e sem apoio, como ter êxito num projecto tão difícil, ainda mais faltando-me tantas ajudas? No entanto, esta ideia tranquilizou-me; o meu espírito voltou a serenar e, de novo, voltei a ser o que era. Evitava as tristezas e suportava mais pacientemente as que me davam. Repararam nesta mudança, e espantaram-se com ela; a maldade corta-se a seco, como a um inimigo ruim que nos persegue e a quem fazemos frente quando menos espera. Senhor, há uma pergunta que lhe queria fazer, que é por que, de entre todas as ideias funestas que passam pela cabeça de uma religiosa desesperada, a de incendiar a casa nunca lhe ocorre? Não me ocorreu tal coisa, nem tão-pouco a outras como eu, apesar de ser o mais fácil de se fazer; é só preciso levar, num dia de vento, uma tocha para um celeiro, uma casa de lenha ou um corredor. Não há conventos queimados e, no entanto, quando tal coisa acontece, abrem-se as portas e salve-se quem puder. Não será porque se teme o próprio perigo e o daquelas a quem se ama, e se desdenha um recurso comum com aquelas que odiamos? Esta última ideia é muito subtil para ser certa.
A força de nos interessarmos por uma coisa, chegamos a considerá-la justa e, mesmo, a acreditar que é possível; é-se mais forte quando se chega a isto. Para mim, foi uma questão de quinze dias, pois o meu pensamento é rápido. De que se tratava? De fazer uma informação e de a submeter a consulta; uma coisa e outra eram arriscadas. Desde que havia uma revolução na minha cabeça, observavam-me com mais atenção que nunca; seguiam-me com os olhos; não dava um passo sem ter de o explicar nem dizia uma palavra que não fosse considerada. Aproximaram-se de mim e tentaram sondar-me; faziam-me perguntas, fingiam compaixão e amizade. Recordavam a minha vida passada e acusavam-me debilmente ou desculpavam-me; esperavam uma conduta melhor e auguravam-me um futuro mais doce. No entanto, entravam a todo o momento na minha cela, de dia ou de noite, com pretextos, bruscamente ou em segredo; entreabriam as minhas cortinas e iam-se embora. Eu tinha apanhado o costume de me deitar vestida e, também, o de escrever a minha confissão. Nos dias de confissão, que são marcados, pedia tinta e papel à superiora, que não mós negava. Esperava pois o dia da confissão e, entretanto, redigia na minha cabeça o que ia propor; em resumo, era tudo o que acabo de lhe escrever, só que utilizava nomes falsos. Mas tive três descuidos: o primeiro, dizer à superiora que tinha muitas coisas para escrever e pedir-lhe, com esse pretexto, mais papel do que aquele que é normalmente concedido; o segundo, ocupar-me do meu relatório e deixar de lado a confissão; e o terceiro, como nunca me tinha confessado nem estava preparada para esse acto religioso, ficar não mais que um instante no confessionário. Tudo isto as advertiu e concluíram que o papel que eu tinha pedido era empregue em qualquer coisa diferente. Mas, se não tinha servido para a minha confissão, como era evidente, que uso lhe tinha dado?
Sem saber que se preocupavam com isso, compreendi, no entanto, que não deviam encontrar-me um papel com tal importância. Primeiro, pensei em cosê-lo na minha almofada, logo depois, em escondê-lo na roupa que vestia, enterrá-lo no jardim ou deitá-lo no fogo. Não pode acreditar com que rapidez o escrevi e como me estorvou, uma vez escrito. Primeiro, selei-o, depois apertei-o contra o peito e respondi à chamada para o ofício. A minha inquietação adivinhava-se nos meus movimentos. Estava sentada ao lado de uma jovem religiosa que gostava muito de mim; já a tinha visto, algumas vezes, a olhar para mim com piedade e chorando. Não me falava, mas era certo que sofria. Arriscando-me a tudo, resolvi confiar-lhe o meu papel; num momento da oração em que todas as religiosas se ajoelham, se inclinam e parecem submergidas nos seus lugares, tirei suavemente o papel do seio e estendi-lho por detrás; pegou nele e apertou-o contra o peito. Este foi o serviço mais importante de todos quantos me havia prestado, mas já me tinha feito muitos outros: durante meses ocupou-se em tirar, sem se comprometer, todos os pequenos obstáculos que punham aos meus deveres para me poderem castigar; vinha bater à minha porta quando eram horas de sair; arranjava o que tinham estragado; ia chamar ou responder quando era necessário; estava em todos os sítios onde eu devia estar. Eu ignorava tudo isto.
Fiz bem em tomar aquela decisão. Quando saímos do coro, a superiora disse-me: «Irmã Susana, siga-me.» Eu segui-a; deteve-se noutra porta do corredor: «É aqui», disse-me, «a sua cela; a irmã São Jerónimo ocupará a que era sua.» Entrei, e ela entrou comigo. Estávamos as duas sentadas e em silêncio, quando uma religiosa apareceu com uns hábitos, que pôs sobre uma cadeira. A superiora disse-me: «Irmã Susana, dispa-se e vista esta roupa.» Obedeci na presença dela. Enquanto isso, ela estava atenta a todos os meus movimentos. A irmã que tinha trazido os hábitos estava à porta; voltou a entrar, pegou no hábito que eu tinha tirado e voltou a sair. A superiora seguiu-a. Não me disseram a razão deste procedimento, nem eu perguntei nada. No entanto, tinham revistado a minha cela; tinham descosido a almofada e o colchão; tinham afastado tudo o que podia ser afastado; tinham seguido os meus passos; foram ao confessionário, à igreja, ao jardim, ao poço, ao banco de pedra. Eu vi uma parte destas pesquisas e adivinhei o resto. Não encontraram nada, mas continuavam convencidas de que havia alguma coisa. Continuaram a espiar-me durante vários dias: iam onde eu tinha estado e procuravam por todo o lado, mas inutilmente. Por fim, a superiora convenceu-se de que só podia saber a verdade por mim. Um dia, entrou na minha cela e disse-me:
«Irmã Susana, tem defeitos, mas não é mentirosa. Diga-me, pois, a verdade: que fez com todo o papel que lhe dei?
- Senhora, já lho disse.
- É impossível, pois pediu muito e só esteve uns momentos no confessionário.
- É verdade.
- Então, que fez com ele?
- Fiz o que lhe disse.
- Muito bem! Jure-me, pela santa obediência que prometeu a Deus, que é como diz; e, apesar das aparências, acreditarei em si.
- Senhora, não lhe é permitido exigir um juramento por uma coisa tão leviana; e a mim não me é permitido fazê-lo. Não poderia jurar.
- Está a enganar-me, irmã Susana, e não sabe a que se expõe. Que fez do papel que lhe dei?
- Já lhe disse.
- Onde está? -Já não o tenho.
- Que lhe fez?
- O que se faz com este género de papéis, que são inúteis quando já nos servimos deles.
- Jure-me, pela santa obediência, que o usou todo para escrever a sua confissão, e que já não o tem.
- Senhora, repito-lhe: esta segunda coisa não é mais importante que a primeira, e não posso jurar.
-Jure-me - disse-me - ou...
- Não jurarei.
- Não jurará?
- Não, senhora.
- É, pois, culpada?
- E de que posso ser culpada?
- De tudo; não há nada de que não seja capaz. Fingiu elogiar a superiora que me precedeu, para me rebaixar a mim; despreza os costumes que ela proibiu, as leis que aboliu e que eu penso ser um dever restabelecer; sublevou a comunidade inteira, infringindo as regras e dividindo as almas; faltou a todos os seus deveres, forçou-me a castigá-la e a castigar as que conseguiu convencer, o que para mim é o mais doloroso. Podia tê-la castigado com métodos mais duros, mas tratei-a com consideração: pensei que reconheceria as suas faltas, que recuperaria o espírito do seu estado e que se voltaria para mim; não o fez. Qualquer coisa de estranho se passa no seu espírito; tem projectos, e o interesse desta casa exige que eu os conheça, e eu hei-de saber quais são. Garanto-lhe. Irmã Susana, diga-me a verdade.
- Já lhe disse.
- Vou sair, e vai ter razões para temer o meu regresso... Vou sentar-me e dou-lhe uns momentos para tomar uma decisão... Os seus papéis, se os tem...
-Já não os tenho.
- Ou o juramento de que só continham a sua confissão.
- Não posso fazê-lo.»
Permaneceu um momento em silêncio, depois saiu e voltou com quatro das suas favoritas. Tinham um ar perverso e furioso. Arrojei-me a seus pés, implorei-lhe misericórdia. Todas gritavam em uníssono: «Nada de misericórdia, senhora; não se deixe comover: que entregue os papéis ou que se vá em paz.- Eu abraçava os joelhos de uma e de outra; dizia-lhes, chamando-as pelos seus nomes: «Irmã Inês, irmã Santa Júlia, que foi que eu lhes fiz? Por que instigam a superiora contra mim? Eu portei-me assim? Quantas vezes supliquei por vocês? Já não se lembram. Vocês estavam em falta, mas eu não.»
A superiora, imóvel, olhava para mim e dizia-me: «Entrega os teus papéis, desgraçada, ou revela o que continham.
- Senhora - diziam-lhe elas - não lhos peça mais. Está a ser demasiado boa. Não a conhece: é uma alma rebelde, que só se pode vencer com meios extremos. É ela própria que obriga a isso; tanto pior para ela.
- Querida Madre - disse-lhe eu - não fiz nada que possa ofender a Deus nem aos homens, juro-lhe.
- Não é esse o juramento que desejo.
- Escreveu contra si, contra nós, alguma informação para o grande vigário, para o arcebispo; só Deus sabe como terá pintado o que se passa no interior desta casa. No mal acredita-se sempre facilmente. Senhora, temos de meter na ordem esta criatura se não queremos que seja ela a mandar em nós.»
A superiora acrescentou: «Veja, irmã Susana...»
Levantei-me bruscamente e disse-lhe: «Senhora, já vi tudo e sei que estou perdida; mas, antes ou depois, tanto faz. Faça de mim o que quiser: dê ouvidos à fúria, consuma a sua injustiça.»
E nesse instante, estendi-lhe os braços. As companheiras afastaram-na. Arrancaram-me o véu e despiram-me sem nenhum pudor. Encontraram-me no seio um pequeno retrato da antiga superiora, e apoderaram-se dele. Supliquei-lhes que me deixassem beijá-lo mais uma vez, mas negaram-mo. Atiraram-me uma camisa, tiraram-me as medidas e cobriram-me com um saco. Conduziram-me, com a cabeça nua e os pés descalços, através dos corredores. Eu gritava e pedia socorro, mas tinham tocado o sino a avisar que ninguém acudisse. Eu invocava o céu e deitava-me para o chão, e arrastavam-me. Quando cheguei ao pé das escadas, tinha os pés ensanguentados e as pernas magoadas; teria comovido uma alma de bronze. Abriram com uma grande chave a porta de um pequeno canto subterrâneo e escuro e atiraram-me para cima de uma esteira meio apodrecida pela humidade. Ali, encontrei um bocado de pão negro e um cântaro de água e mais alguns recipientes necessários e toscos. A esteira, enrolada numa das pontas, formava uma almofada. Num bloco de pedra havia uma caveira e um crucifixo de madeira. O meu primeiro impulso foi destruir-me; levei as mãos à garganta, rasguei a minha roupa com os dentes, dei gritos pavorosos. Uivava como um animal feroz, batia com a cabeça nas paredes e fiquei coberta de sangue. Tentei matar-me até que me faltaram as forças, o que aconteceu depressa. Passei ali três dias e pensei que ia lá passar o resto da minha vida. Todas as manhãs, uma das minhas executoras aparecia e dizia-me:
«Obedeça à nossa superiora e sairá daqui.
- Não fiz nada, nem sei o que me pede. Irmã São Clemente, existe um Deus...»
No terceiro dia, às nove da noite, a porta abriu-se; eram as mesmas religiosas que me tinham levado para ali. Depois de terem elogiado a bondade da nossa superiora, anunciaram-me que ela me perdoava e que iam pôr-me em liberdade.
»É demasiado tarde - disse-lhes -, deixem-me aqui, quero morrer aqui.»
Mas, enquanto eu dizia isto, levantavam-me e arrastavam-me. Voltaram a levar-me para a minha cela, onde encontrei a superiora.
«Consultei Deus sobre a sua sorte e Ele comoveu o meu coração: deseja que tenha piedade de si, e eu obedeço. Ajoelhe-se e peça perdão.»
Ajoelhei-me e disse:
«Meu Deus, peço-Vos perdão pelas faltas que cometi, como Vós haveis pedido por mim na cruz.
- Que orgulho! - gritaram elas - Compara-se com Jesus Cristo, e compara-nos, a nós, aos judeus que o crucificaram.
- Não pensem em mim - disse-lhes -, mas em vocês mesmas, e julguem.
- Isto não basta - disse-me a superiora - jure-me, pela santa obediência, que nunca falará sobre o que se passou.
- Admite que fez mal, já que exige que eu jure que guardarei silêncio? Juro-lhe que nunca ninguém saberá nada; só a sua consciência.
- Jura-o?
- Sim, juro.”
Depois disto, tiraram-me a roupa que me tinham dado e deixaram-me vestir as minhas.
A humidade tinha-me afectado; estava numa situação crítica, pois todo o meu corpo estava magoado. Desde há dias que só tomava umas gotas de água e um pouco de pão. Acreditei ser esta a última perseguição que tinha de sofrer. Este é o efeito momentâneo de tão violentas sacudidelas, que mostra bem a grande força da natureza das pessoas jovens. Recuperei em muito pouco tempo e encontrei, quando reapareci, toda a comunidade convencida de que eu tinha estado doente. Voltei aos exercícios da casa e ao meu lugar na igreja. Não tinha esquecido o meu papel, nem a jovem irmã a quem o tinha confiado. Estava certa de que ela não tinha abusado daquele segredo, mas que o tinha guardado com inquietação. Uns dias depois da minha saída da prisão, no coro, exactamente no mesmo momento em que lho tinha dado, quer dizer, quando nos pomos de joelhos e, inclinadas umas para as outras, desaparecemos nos nossos assentos, senti que me puxavam, suavemente, o hábito. Estendi a mão e deram-me um bilhete que só continha estas palavras: «Deixou-me tão preocupada! Que hei-de fazer com esse cruel documento?» Depois de o ter lido, amachuquei-o com as mãos e enguli-o. Isto aconteceu no começo da Quaresma. Estava a chegar a altura em que a curiosidade de ouvir cantar levava a Longchamp a gente boa e má de Paris. Eu tinha uma voz muito bonita e quase não a tinha perdido. Nas casas religiosas dá-se atenção aos mais pequenos interesses, e foi assim que tiveram algumas amabilidades para comigo. Gozei de um pouco mais de liberdade, e as irmãs a quem ensinava canto puderam aproximar-se de mim sem problemas. Uma delas era aquela a quem tinha entregado os meus papéis. Durante as horas de recreio que passávamos no jardim, chamava-a à parte e fazia-a cantar. Enquanto cantava, disse-lhe isto:
«Conhece muita gente, mas eu não conheço ninguém. Não queria comprometê-la; preferia morrer aqui do que expô-la à suspeita de me ter ajudado. Minha amiga, estaria perdida, e sei que isso não me salvaria a mim. E, ainda que a sua perda me salvasse, não desejo a salvação a esse preço.
- Deixemos isso - disse-me ela -. De que se trata?
-Trata-se de fazer passar essa consulta a um advogado hábil, sem que ele saiba de que casa religiosa vem, e de obter uma resposta que me dará na igreja ou em qualquer outro lugar.
- A propósito - disse-me ela -, que fez com o meu bilhete?
- Fique tranquila, engoli-o.
- Fique tranquila, também; pensarei no seu assunto.» Terá por certo observado, senhor, que eu cantava enquanto ela falava e ela cantava enquanto eu lhe respondia; a nossa conversa era entrecortada com frases de canto. Esta jovem, senhor, ainda está na casa. O seu bem-estar está nas suas mãos. Se se chegasse a descobrir o que ela fez por mim, ficava exposta a todo o género de tormentos. Não lhe quero abrira porta do calabouço; preferia ser eu a entrar nele. Queime, pois, estas cartas, senhor; se tirar delas o interesse que quiser tomar pela minha sorte, não contêm nada que valha a pena ser conservado.»
Era isto o que eu lhe dizia então; mas, ai!, ela já não existe e eu estou só.
Não tardou a voltar a falar-me e informou-me da maneira que era costume. Chegou a Semana Santa. A assistência às nossas cerimónias foi numerosa. Eu cantava suficientemente bem para, com tumulto, suscitar esses escandalosos aplausos que se dão aos comediantes nas suas salas de espectáculo, e que nunca se devem ouvir nos templos do Senhor, sobretudo nos dias solenes e tristes em que se celebra a memória do Seu filho pregado na cruz pela expiação dos crimes do género humano. As minhas jovens alunas estavam bem preparadas; algumas tinham boa voz, e quase todas expressão e gosto. Pareceu-me que o público as ouviu com prazer, e que a comunidade estava satisfeita com o êxito da minha dedicação.Como sabe, senhor, na Quinta-Feira Santa transporta-se o Santíssimo Sacramento do tabernáculo para um monumento especial, onde fica até à manhã de sexta-feira. Este intervalo enche-se com as orações sucessivas das religiosas, que vão ao monumento umas atrás das outras e a duas e duas. Há um quadro que indica a cada uma a sua hora de adoração; alegrou-me muito ler nele: «A irmã Santa Susana e a irmã Santa Ursula, das duas às três da manhã.» Fui ao monumento à hora marcada; a minha companheira já lá estava. Pusemo-nos uma ao lado da outra nas grades do altar. Prostrámo-nos juntas e adorámos a Deus durante meia hora. Ao fim desse tempo, a minha jovem amiga estendeu-me a mão e apertou a minha, dizendo:
«Talvez não voltemos a ter ocasião de falar tanto tempo e com tanta liberdade. Deus sabe a coacção em que vivemos, e perdoará se partilhamos um tempo que Lhe devemos por inteiro. Não li os seus papéis, mas não é difícil adivinhar o que contêm. De um momento para o outro, terei a resposta; mas se essa resposta a autorizar a prosseguir com a anulação dos seus votos, não lhe parece absolutamente necessário entrevistar-se com um homem de leis?
- Sim, claro.
- Não lhe parece que precisa de liberdade?
- Sim.
- E que, se actuar bem, aproveitará as disposições presentes para a procurar?
- Já tinha pensado nisso.
- Então, fá-lo-á?
- Veremos.
- Outra coisa: se se der início ao seu processo, continuará aqui, abandonada à fúria da comunidade. Já pensou nas perseguições que a esperam?
- Não serão maiores do que as que já sofri.
- Não sei nada disso.
- Perdoe-me. Ao principio não se atreverão a dispor da minha liberdade.
- E porquê?
- Porque, nessa altura, estarei debaixo da protecção das leis: terão de me representar e estarei, por assim dizer, entre o mundo e o claustro; terei a boca aberta e a liberdade de me queixar. Tomar-vos-ei a todas por testemunhas, e ninguém ousará fazer nada de que eu possa queixar-me. Terão cuidado para não agravar o caso. Não podia pedir nada melhor do que uma má conduta para comigo, mas não acontecerá; pode estar certa de que tomarão a atitude oposta. Vão pedir-me que veja os danos que posso causar a mim mesma e à casa. Pode acreditar que só chegarão às ameaças quando virem que a doçura e a convicção não bastam, mas não vão poder utilizar a força.
- Mas é incrível que sinta tanta aversão por um estado cujos deveres cumpre tão fácil e escrupulosamente.
- Sinto esta aversão; já a sentia ao nascer, e nunca me abandonará. Acabarei por ser uma má religiosa; é preciso prevenir esse momento.
- Mas se por desgraça não resistir?
- Se não resistir poderei mudar de casa ou morrer nesta.
- Sofre-se muito antes de morrer. Minha amiga, a sua decisão faz-me tremer: temo que os seus votos não sejam anulados, e também temo que os anulem. Se forem anulados, em que é que se vai converter? Que fará no mundo? Tem beleza, talento, dotes; mas dizem que nada disso ajuda a virtude, e eu sei que não quer deixar de ser virtuosa.
- Faz-me justiça a mim, mas não a está a fazer à virtude; só conto com ela: quanto mais rara é entre os homens, mais deve ser considerada.
- Fala-se muito, mas não se faz nada por ela.
- É ela que me anima e me mantém no meu projecto. Seja o que for que me censurem, respeitarão os meus costumes. Pelo menos não dirão, como das outras, que foi uma paixão desordenada que me arrastou para fora do meu estado. Não conheço ninguém nem vejo ninguém. Peço para ser livre porque o sacrifício da minha liberdade não foi voluntário. Leu os meus papéis?
- Não; abri o embrulho que me deu porque não estava dirigido a ninguém e pensei que era para mim. Mas as primeiras linhas desenganaram-me e não continuei. Que inspirada estava quando mo deu! Mais um momento e tinham-no encontrado consigo... Aproxima-se a hora de terminarmos a adoração; ajoelhemo-nos. Que as que vierem substituírem-nos nos encontrem tal como devemos estar. Peça a Deus que a ilumine e que a conduza; eu unirei a minha prece e os meus suspiros aos seus.»
A minha alma estava um pouco aliviada. A minha companheira rezava em pé; eu ajoelhei-me. A minha testa apoiada na última grade do altar e os meus braços estendidos para as grades superiores. Não creio que alguma vez me tenha dirigido a Deus com maior consolo e fervor; o meu coração batia com violência, e esqueci, por um instante, tudo o que me rodeava. Não sei quanto tempo estive nesta posição, nem quanto tempo continuaria assim; mas foi um espectáculo comovedor, parece-me, para a minha companheira e para as duas religiosas que, entretanto, chegaram. Quando me levantei, pensei que estava só, mas enganei-me; as outras três estavam atrás de mim, de pé e desfeitas em lágrimas: não se tinham atrevido a interromper-me e esperavam que eu saísse, por mim mesma, do estado de transe e efusão em que me viam. Quando me voltei para elas, o meu rosto tinha, sem dúvida, um aspecto muito imponente, a julgar pelo efeito que produziu nelas e por aquilo que acrescentaram: que nesse momento lhes recordava a nossa antiga superiora, quando nos consolava, e que ver-me lhes tinha causado o mesmo estremecimento. Se eu tivesse alguma inclinação para a hipocrisia ou para o fanatismo e quisesse desempenhar um papel naquela casa, não duvido de que o teria conseguido. A minha alma inflama-se facilmente, exalta-se e comove-se; e aquela boa superiora tinha-me dito mais de cem vezes que ninguém tinha amado a Deus como eu, que eu tinha um coração de carne e as outras um coração de pedra. O certo é que eu tinha extrema facilidade em partilhar os seus êxtases e que, nas preces que fazia em voz alta, às vezes eu tomava a palavra, seguia o trilho das suas ideias e encontrava, como por inspiração, uma parte daquilo que ela mesma teria dito. As outras escutavam-na em silêncio ou seguiam-na; eu interrompia-a, adiantava-me ou falava com ela. Eu conservava durante muito tempo a impressão recebida, e aparentemente qualquer coisa parecida acontecia com ela, pois, tal como se percebia nas outras que tinham estado a falar com ela, também se percebia nela que tinha estado a falar comigo. Mas que significa isto quando não há vocação?... Acabada a nossa adoração, cedemos o lugar às que nos vinham substituir; a minha jovem companheira e eu abraçámo-nos muito ternamente antes de nos separarmos.
A cena do monumento teve muita repercurssão na casa; acrescentei a isto o êxito das nossas cerimónias de Sexta-Feira Santa: eu cantei, toquei órgão e fui aplaudida. Oh, loucas cabeças de religiosas! Não tive de fazer quase nada para me reconciliar com toda a comunidade; vieram todas ver-me, a primeira foi a superiora. Algumas pessoas do mundo queriam conhecer-me; isto enquadrava-se demasiado bem no meu projecto para que pudesse recusar-me a ele. Vi o primeiro presidente, a senhora de Soubise e uma grande quantidade de pessoas honestas: monges, sacerdotes, militares, magistrados, mulheres piedosas, mulheres do mundo; e entre todos eles, essa classe de atoleimados a que chamam cortesãos, aos quais mandei embora rapidamente. Só cultivei aquelas relações que eram irrepreensíveis e deixei o resto para aquelas religiosas que não estavam em situação tão delicada como eu.
Esquecia-me de lhe dizer que a primeira mostra de bondade que me deram foi a de voltarem a instalar-me na minha cela. Tive coragem para pedir, de novo, o pequeno retrato da nossa antiga superiora, e não tiveram maneira de mo recusar; recuperou o seu lugar junto do meu coração, e aí continuará enquanto eu viver. Todas as manhãs, o meu primeiro gesto era elevar a alma a Deus, o segundo era beijar o retrato. Quando quero rezar e sinto a minha alma ausente, tiro-o do seio e ponho-o à minha frente; olho para ele e inspiro-me. É uma grande pena não termos conhecido as santas personagens cujas imagens se expõem à nossa veneração; causariam uma impressão muito diferente sobre nós. Não ficaríamos a seus pés ou à sua frente tão indiferentes como é costume acontecer.
Tive resposta ao meu relatório; era de um tal senhor Manouri, nem favorável nem desfavorável. Antes de se pronunciar sobre o assunto, pedia um grande número de esclarecimentos que eram difíceis de satisfazer sem nos vermos. Assim, pois, dei o meu nome e convidei o senhor Manouri a vir a Longchamp. Estes senhores não se deslocam facilmente, e, no entanto, ele veio. Conversámos longamente e acordámos em que nos escreveríamos, e por esse meio ele faria chegar com segurança as suas perguntas, e eu enviava-lhe as minhas respostas. Pela minha parte, tratei de empregar o tempo que ele calculou ser necessário para tratar do meu assunto, para preparar os ânimos, despertar interesse pela minha sorte e a procurar protecção. Dei-me a conhecer; revelei a minha conduta na primeira casa onde tinha estado, o que tinha sofrido em casa dos meus pais, as penas por que tinha passado no convento, o meu protesto em Santa Maria, a minha estada em Longchamp, a minha tomada do hábito, a minha profissão, a crueldade com que fui tratada depois de ter feito os votos. Compadeceram-se de mim e ofereceram-me ajuda. Guardei a boa vontade que me testemunhavam para o momento em que tivesse necessidade dela, sem dar mais explicações. Nada transparecia na casa; eu tinha obtido de Roma a autorização para me retratar dos meus votos. A todo o momento ia tentar-se realizar a acção, e ali estavam em total segurança. Deixo-lhe, pois, imaginar qual foi a surpresa da minha superiora quando a notificaram, em nome de Maria Susana Simonin, de um protesto contra os votos, com o pedido de deixar o hábito religioso e sair do claustro para dispor de si mesma como ju’gasse mais conveniente.
Eu tinha previsto que ia encontrar vários tipos de oposição; a das leis, a da casa religiosa e a dos meus cunhados e irmãs, alarmados; tinham ficado com todos os bens da família e eu, uma vez livre, podia fazer-lhes reclamações consideráveis. Escrevi às minhas irmãs e supliquei-lhes que não se opusessem à minha saída; apelei à consciência delas acerca da escassa liberdade dos meus votos. Ofereci-lhes uma renúncia, por meio de acta oficial, de todas as minhas pretensões à sucessão do meu pai e da minha mãe; não poupei nada para as persuadir de que a minha decisão não era nem interessada nem apaixonada. Não tratei de impor-me aos sentimentos delas, pois a acta que lhes propunha, feita enquanto ainda estava comprometida com os meus votos, não seria logo válida. E para elas não era muito seguro que eu a ratificasse quando estivesse livre. Por outro lado, convinha-lhes aceitar a minha proposta? Deixariam uma irmã sem casa e sem fortuna, aproveitando-se dos seus bens? Que iam dizer delas? Se vier pedir-nos sustento, mandamo-la embora? Se pensar em casar, com que género de homem se casará? E se tiver filhos? É preciso opormo-nos com toda a força a esta perigosa tentativa. Era isto que me diriam e que fariam.
A superiora, mal recebeu a acta jurídica com a minha demanda, foi à minha cela.
«Como, irmã Susana - disse-me -, quer deixar-nos?
- Sim, senhora.
- E vai retratar-se dos seus votos?
- Sim, senhora.
- Não os fez livremente?
- Não, senhora.
- E quem a obrigou a isso?
- Todos.
- O seu pai?
- O meu pai.
- A sua mãe?
- A mesma coisa.
- E por que não se retratou logo deles aos pés do altar?
- Estava tão fora de mim que nem me recordo de ter assistido a eles.
- Como pode falar assim?
- Digo a verdade.
- Como! Não ouviu o sacerdote perguntar-lhe: «Irmã Santa Susana Simonin, promete a Deus obediência, castidade e pobreza?
- Não me recordo.
- Não respondeu que sim?
- Não me recordo.
- E imagina que vão acreditar em si?
- Acreditem ou não, não deixará de ser verdade.
- Querida filha, se semelhantes pretextos fossem escutados, a que abusos não dariam lugar! Tomou uma decisão sem considerar. Deixou-se levar por um sentimento de vingança, pois tem presentes os castigos que me obrigou a inflingir-lhe. Pensou que eram suficientes para romper os seus votos, mas equivoca-se, pois isso é impossível ante os homens e ante Deus. Considera que o perjúrio é o maior de todos os crimes e que já o cometeu no seu coração; agora vai consumá-lo.
- Não serei perjura, porque não jurei nada.
- Não foram reparados os erros que se cometeram consigo?
- Não foram esses erros que me decidiram.
- Porquê, então?
- Pela falta de vocação e pela falta de liberdade nos meus votos.
- Se não se sentia chamada, se estava a ser obrigada, por que não o disse no momento próprio?
- E de que me tinha servido?
- Por que não mostrou a mesma firmeza que teve em Santa Maria?
-A firmeza depende de nós? Fui firme da primeira vez; da segunda, fui imbecil.
- Por que não chamou um advogado? Por que não protestou? Teve vinte e quatro horas para ter a certeza do seu desgosto.
- Que sabia eu dessas formalidades? E, mesmo que o soubesse, estava com disposição de as utilizar? E, ainda que tivesse estado com disposição de as utilizar, teria podido? Como, senhora! Não se apercebeu da minha alienação? Se a desse como minha testemunha, juraria que eu estava no meu perfeito juízo?
- Jurava.
- Pois bem, senhora, será perjura, mas eu não.
- Minha filha, vai dar um escândalo inútil. Reflicta; peço-lhe que o faça no seu próprio interesse, no interesse desta casa. Este género de assuntos trazem sempre consigo discussões escandalosas.
- Não será por minha culpa.
- As pessoas do mundo são más; farão as suposições mais desfavoráveis sobre o seu espírito, o seu coração e os seus costumes. Acreditarão...
- Acreditem no que quiserem.
- Mas fale-me francamente; se tem algum descontentamento secreto, seja qual for, há sempre remédio.
- Estava, estou e estarei descontente com o meu estado.
- O espírito sedutor que nos rodeia sem cessar e que tenta perder-nos não se terá aproveitado da liberdade excessiva que tem tido, ultimamente, para lhe inspirar alguma inclinação funesta?
- Não, senhora. Já sabe que não juro com facilidade: tomo a Deus por testemunha de que o meu coração é inocente, e que nunca tive nenhum sentimento de que me envergonhe.
- Não se pode conceber tal coisa.
- E no entanto, senhora, nada é mais fácil de conceber. Cada um tem o seu carácter, e eu tenho o meu; ama a vida monástica, e eu odeio-a; recebeu de Deus as graças próprias do seu estado, e a mim faltam-me essas graças; ter-se-ia perdido no mundo e garante aqui a sua salvação; eu perder-me-ei aqui e espero salvar-me no mundo. Sou e serei uma má religiosa.
- E porquê? Nenhuma outra cumpre tão bem os seus deveres.
- Mas com esforço e desgosto.
- Isso aumenta o seu mérito.
- Ninguém pode saber tão bem como eu aquilo que mereço; e vejo-me obrigada a reconhecer que, ao submeter-me a tudo, não mereço nada. Estou cansada de ser hipócrita; fazendo de salvadora das outras, detesto-me e condeno-me. Numa palavra, senhora, só reconheço como verdadeiras religiosas as que aqui estão por gostarem de estar retiradas, e que permaneceriam aqui ainda que não tivessem à sua volta nem grade nem muralha que as retivesse... Estou longe de ser uma delas: o meu corpo está aqui, mas o meu coração não, está lá fora. Se tivesse de eleger entre a morte e a clausura perpétua, não teria dúvida em morrer. Estes são os meus sentimentos.
- Como! Deixava sem remorsos este véu e este hábito que a consagraram a Jesus Cristo?
- Sim, senhora, porque os tomei sem reflexão e sem liberdade.»
Respondi-lhe com bastante moderação, ainda que não fosse isso o que me sugeria o coração, que me dizia: «Quando chegará o momento em que os possa rasgar e atirar para bem longe de mim!...»
E, no entanto, a minha resposta alterou-a; empalideceu e quis dizer alguma coisa, mas os seus lábios tremiam. Não estava muito segura sobre aquilo que me devia dizer. Eu dava grandes passadas pela minha cela, e ela exclamava:
«Oh, meu Deus! Que dirão as nossas irmãs? Oh, Jesus, volvei para ela um olhar piedoso! Irmã Santa Susana!»
- Senhora?
- Está, pois, decidida? Quer desonrar-nos, converter-nos no alvo de escárnio de toda a gente, quer perder-se?
- Quero sair daqui.
- Mas se é só a casa que lhe desagrada...
- É a casa, é o meu estado, é a religião; não quero estar fechada nem aqui nem em nenhum outro lugar.
- Minha filha, está possuída pelo demónio; é ele quem a agita, quem a faz falar, quem a tira dos eixos. Nada mais certo: veja em que estado se encontra.»
Com efeito; olhei para mim e vi que a minha roupa estava em desordem, o meu toucado tinha dado a volta e o meu véu estava caído sobre os ombros. As palavras daquela malvada superiora contrariavam-me, falava comigo num tom calmo e falso, e eu disse-lhe com despeito:
«Não, senhora, não, não quero mais este hábito, não o quero...»
No entanto, tratei de ajustar o véu; as mãos tremiam-me e, quanto mais me esforçava para o arranjar, mais o desmanchava. Impaciemtei-me e agi com violência, arranquei o véu e atirei-o para o chão. Fiquei cara a cara com a minha superiora, com uma tira apertada à volta da testa e o cabelo despenteado. Entretanto, ela, indecisa sobre se devia ficar ou sair, andava de um lado para o outro e dizia:
«Oh, Jesus! Está possuída; não há dúvida, está possuída...»
E a grande hipócrita persignava-se com a cruz do seu rosário.
Não tardei a recompor-me; compreendi a indecência do meu estado e a imprudência das minhas palavras. Arranjei-me o melhor que pude; apanhei o meu véu e voltei a pô-lo. E em seguida, voltando-me para ela, disse-lhe:
«Senhora, não estou louca nem possuída. Envergonho-me da minha violência e peço-lhe perdão por isso; mas julgue, por isto, o pouco que me convém a vida do claustro e quão justo é que tente sair dela, se puder.»
Ela, sem me ouvir, repetia: «Que dirá o mundo? Que dirão as nossas irmãs?
- Senhora - disse-lhe eu -, quer evitar um escândalo? Há um meio. Não me interessa o meu dote: só lhe peço a liberdade: não digo que me abra as portas, mas hoje, amanhã ou outro dia qualquer, podem estar mal guardadas. E se se aperceber da minha fuga o mais tarde possível...
- Desgraçada! O que me propõe?
- É um conselho que uma superiora boa e sábia devia seguir com todas aquelas para quem o seu convento é uma prisão; e o convento é, para mim, uma prisão mil vezes mais penosa do que aquelas que encerram os malfeitores. Hei-de sair dela ou perecer nela... Senhora - disse-lhe num tom grave e com o olhar firme - oiça-me: se as leis a que me dirigi defraudarem a minha esperança e, impulsionada pelo desespero que conheço demasiado bem... há um poço... há janelas nesta casa... e paredes por todos os lados... o próprio hábito pode rasgar-se... podem usar-se as mãos...
- Pare, infeliz! Faz-me tremer. Poderá?...
- Posso, à falta de tudo o que acaba depressa com os males da vida, recusar os alimentos; somos donos de comer e beber, ou de não o fazer... Se isso acontecer, se depois do que acabo de lhe dizer eu tiver coragem... Sabe que ela não me falta e que, às vezes, é mais necessária para viver do que para morrer, imagine-se diante de Deus e diga-me: qual das duas, a superiora ou a sua religiosa, Lhe parecerá mais culpada?... Senhora, não peço mais nem nunca pedirei mais a esta casa; poupe-me um crime, poupe-se a si um grande remorso: ponhamo-nos de acordo...
- É isso que pensa, irmã Santa Susana? Que eu falte ao primeiro dos meus deveres, que ajude a cometer um crime, que compartilhe um sacrilégio?
- O verdadeiro sacrilégio, senhora, sou eu quem o comete todos os dias profanando com o meu desprezo os hábitos sagrados que tenho vestidos. Tire-mos, não sou digna deles. Mande buscar à aldeia os farrapos da mais pobre das aldeãs, e abra-me a clausura.
- E em que outro sítio está melhor que aqui?
- Não sei para onde irei; mas só sei que se está mal onde Deus não nos quer. E Deus não me quer aqui.
- Não tem nada.
- É verdade; mas não é a indigência o que mais temo.
- Deve temer as desgraças a que ela arrasta.
- O meu passado responde pelo meu futuro; se quisesse dar ouvidos ao mal, já estava livre. Mas, se me convém sair desta casa, quero fazê-lo com o seu consentimento ou pela autoridade das leis. Pode escolher.
Esta conversa tinha sido longa. Ao recordá-la, ruborizo-me com coisas indiscretas e ridículas que fiz e disse; mas era demasiado tarde. A superiora ainda continuava com as suas exclamações («Que dirá o mundo! Que direi às nossas irmãs!»} quando o sino a chamar para o ofício nos separou. Disse-me ao sair:
«Irmã Santa Susana, vá à igreja. Peça a Deus que a conduza e que lhe devolva o espírito próprio do seu estado; pergunte à sua consciência e acredite no que ela lhe disser; é impossível que a acuse. Dispenso-a do canto.»
Descemos quase a par. Acabou o ofício e, no fim, quando todas as irmãs se preparavam para se separar, bateu com o breviário e deteve-as.
«Minhas irmãs - disse-lhes -, convido-as a prostrarem-se aos pés do altar e a implorarem a misericórdia de Deus para uma religiosa abandonada que perdeu o gosto e o espírito religioso e que está prestes a cometer uma acção sacrílega aos olhos de Deus, e vergonhosa aos olhos dos homens.»
Não sei descrever-lhe a surpresa geral. Cada uma, com um olhar, percorria o rosto das suas companheiras sem se mexer, procurando descobrir a culpada de tanta perturbação. Todas se ajoelharam e rezaram em silêncio. Passado um considerável lapso de tempo, a superiora entoou em voz baixa o Veni Creator, e todas continuaram em voz baixa o Veni Creator. Em seguida, depois de um novo silêncio, a superiora bateu na sua cadeira e saímos.
Deixo-o imaginar o murmúrio que se elevou na comunidade: «Quem será? Quem não será? Que terá feito? Que quer fazer?... » As suspeitas não duraram muito tempo. A minha demanda começava a ser conhecida no mundo e eu recebia visitas continuamente: uns reprovavam-me e outros davam-me conselhos; uns aprovavam-me e outros censuravam-me. Só tinha um meio de me justificar perante todos, e esse meio era informá-los da conduta dos meus pais; e pode imaginar que reserva fazia eu desse assunto. Só a algumas pessoas, ligadas a mim por laços sinceros, e com o senhor Manouri, que se encarregava do meu assunto, pude confiar-me abertamente. Quando me assustava com os tormentos que me ameaçavam, aquele calabouço para onde uma vez me tinham arrastado representava-se-me mentalmente em todo o seu horror; eu conhecia a fúria das religiosas. Contei os meus temores ao senhor Manouri, e ele disse-me: «É impossível evitar-lhe toda a espécie de pesares; vai tê-los, é algo que deve esperar. Tem de se armar com a paciência e apoiar-se na esperança de que terão um fim. Quanto a esse calabouço, prometo-lhe que nunca mais voltará a lá entrar; disso me encarrego eu...» Com efeito, uns dias depois trouxe à superiora uma ordem segundo a qual eu devia apresentar-me todas as vezes que ele o requeresse.
No dia seguinte, depois do ofício, ainda me recomendaram nas orações públicas da comunidade: rezou-se em silêncio e disse-se, em voz baixa, o mesmo hino da véspera. No terceiro dia passou-se a mesma coisa, a única diferença foi mandarem-me pôr de pé, no meio do coro, e recitaram-se as preces pelos agonizantes e as ladainhas dos santos, com o refrão Ora pro ea. No quarto dia deu-se uma comédia que demonstrava muito bem o estranho carácter da superiora. No fim do ofício, fizeram-me deitar num ataúde posto no meio do coro; colocaram candelabros de ambos os lados e uma pia de água benta. Cobriram-me com um sudário e recitaram o ofício dos defuntos, depois do qual cada religiosa, ao sair, deitava-me água benta dizendo: Requiescat in pace. Há que entender a linguagem dos conventos para saber que género de ameaça continham estas últimas palavras. Duas religiosas retiraram o sudário e deixaram-me ali, empapada na água com que maliciosamente me tinham regado. O hábito secou-me no corpo, pois não tinha roupa para mudar. Esta mortificação precedeu outra. A comunidade reuniu-se; olharam-me como a uma réproba e a minha demanda foi apelidada de apostasia. Proibiram, sob pena de desobediência, que as religiosas me falassem, me socorressem, se aproximassem de mim ou, até, que tocassem nas coisas de que eu me tivesse servido. Estas ordens foram executadas com rigor. Os nossos corredores são estreitos e duas pessoas, em alguns lugares, têm dificuldade de passar de frente. Se eu ia e uma religiosa vinha na minha direcção, ou voltava para trás ou colava-se à parede, segurando no véu e no hábito, com medo de que esvoaçassem sobre mim. Se tinham de receber alguma coisa minha, eu punha-a no chão e pegavam nela com um lenço; se tinham de me dar alguma coisa, atiravam-ma. Se tinham a infelicidade de me tocar, pensavam que estavam maculadas e iam confessar-se e pedir perdão à superiora. Diz-se que a adulação é vil e má; também é muito cruel e talentosa, quando se propõe agradar por meio das mortificações que inventa. Quantas vezes recordei a frase da minha celestial superiora de Moni: «Entre todas estas criaturas que vê à minha volta, tão dóceis, tão inocentes, tão doces, minha filha, não há sequer uma, nem uma, de quem eu não possa fazer uma besta feroz; estranha metamorfose para a qual se tem tanta mais disposição quanto mais jovem se entrou para uma cela e menos se conhece a vida social. Estas palavras assombram-vos; que Deus vos livre de lhes provar a veracidade. Irmã Susana, a boa religiosa é aquela que traz para o claustro alguma grande falta para expiar.»
Privaram-me de todas as funções. Na igreja, deixavam um assento vago de cada lado daquele que eu ocupava. Estava só numa mesa do refeitório; não me serviam e era obrigada a ir à cozinha pedir a minha ração. A primeira vez, a irmã cozinheira gritou-me: «Não entre, afaste-se...» Eu obedeci. •«Que quer?
- Comida.
- Comida! Não é digna de viver.»
Algumas vezes, ia-me embora e passava o dia sem comer nada. Outras vezes, insistia e punham-me no umbral da porta alimentos que não teriam dado aos animais. Eu comia-os a chorar e saía. Se alguma vez era a última a chegar à porta do coro, encontrava-a fechada; ajoelhava-me e ficava ali até ao fim do ofício. Se estava no jardim, voltava para a minha cela. Assim, pois, as minhas forças se foram esgotando pela escassez de alimentos, a má qualidade dos que comia e, sobretudo, pelo esforço que fazia para suportar tantos e tão reiterados sinais de desumanidade. Compreendi que, se continuasse a sofrer sem me queixar, não veria o fim do meu processo. Decidi-me, pois, a falar com a superiora. Estava meio morta de medo. No entanto, fui bater suavemente à sua porta. Ela abriu; ao ver-me, retrocedeu vários passos, gritando-me:
«Afaste-se, apóstata!» Afastei-me. «Mais...»
Afastei-me mais. «Que quer?
- Visto que nem Deus nem os homens me condenaram à morte, quero, senhora, que ordene que me façam viver.
- Viver! - disse-me, repetindo a frase da irmã cozinheira será que é digna disso?
- Só Deus sabe; mas previno-a de que se me negarem alimento me verei forçada a levar as minhas queixas aos que me aceitaram sob a sua protecção. Estou aqui à espera, até que a minha sorte e o meu estado se decidam.
- Vá-se embora - disse-me -, não me manche com os seus olhares; vou tratar disso.»
Saí e ela fechou a porta com violência. Aparentemente deu as suas ordens, mas não me trataram melhor, pois consideravam meritório desobedecer-lhe: atiravam-me os alimentos piores. Chegavam mesmo a estragá-los com cinza e todo o género de imundícies.
Foi esta a vida que levei enquanto durou o meu processo. Não me proibiram completamente de ir ao locutório, pois não me podiam tirar a liberdade de conferenciar com os meus juizes e o meu advogado; mas este viu-se várias vezes obrigado a usar de ameaças para me poder falar. Então uma irmã acompanhava-me e queixava-se se eu falava muito baixo; impacientava-se se ficava ali demasiado tempo; interrompia-me, desmentia-me, contradizia-me, repetia à superiora as minhas frases, alterava-as, envenenava-as ou inventava algumas que eu não tinha dito; que sei eu? Chegaram mesmo a roubar-me, a despojar-me; tiraram-me as cadeiras, os cobertores e o colchão. Não me davam roupa interior; os meus vestidos rasgavam-se e estava quase sem meias e sem sapatos. Custava-me muito ter água; várias vezes me vi obrigada a ir buscá-la ao poço, a esse poço de que já lhe falei. Partiram os meus cântaros, e assim vi-me obrigada a beber, apenas, a água que conseguia tirar do poço, sem a poder levar. Se passava por baixo das janelas, tinha de fugir, pois expunha-me a apanhar com as imundícies que me atiravam das celas. Algumas irmãs cuspiram-me no rosto. Estava tão suja que repelia. Como temiam as queixas que pudesse fazer aos nossos superiores, proibiram que me confessasse.
Num dia de festa importante - era, creio, dia da Assunção -, trancaram a minha fechadura e não pude assistir à missa. Provavelmente teria faltado a todos os outros ofícios se não tivesse sido a visita do senhor Manouri, a quem disseram, ao principio, que não sabiam nada de mim, que já não me viam e que eu não praticava nenhum acto de cristianismo. Entretanto, à força de lhe dar pancadas, a fechadura soltou-se e cheguei à porta do coro, que encontrei fechada tal como acontecia sempre que não era das primeiras a entrar. Estava sentada no chão, com a cabeça e as costas apoiadas na parede, os braços cruzados sobre o peito e o resto do corpo estendido, impedindo a passagem. Quando acabou o ofício e as religiosas iam a sair, a primeira deteve-se insensivelmente; as outras chegaram depois dela, e a superiora suspeitou do que se passava. Disse: «Pisem-na, não passa de um cadáver.» Algumas obedeceram e espezinharam-me; outras foram menos desumanas, mas nenhuma se atreveu a estender-me a mão para me levantar. Enquanto eu estava ausente, levaram da minha cela o genuflexório, o retrato da nossa fundadora, as outras imagens piedosas e o crucifixo. Só fiquei com o que trazia no meu rosário, que também me deixaram conservar durante muito pouco tempo. Vivia, pois, entre quatro paredes nuas, num quarto sem porta, sem cadeira, de pé ou sobre o enxergão, sem nenhum dos recipientes mais necessários, obrigada a sair à noite para satisfazer as minhas necessidades naturais e acusada, de manhã, de ter perturbado o repouso da casa, de errar pelos corredores e de estar a ficar louca. Como não podia fechar a minha cela, entravam em tumulto durante a noite, gritavam, puxavam a minha cama, partiam as janelas e pregavam-me toda a espécie de sustos. O barulho chegava aos andares de cima e de baixo; e aquelas que não faziam parte do grupo que me atormentava diziam que no meu quarto se passavam coisas estranhas; que tinham ouvido vozes lúgubres, gritos, choques de correntes, e que eu falava com as almas do outro mundo e com os espíritos maus. Que eu tinha de ter feito um pacto e que se devia evitar o meu corredor.
Nas comunidades há mentes débeis, são, inclusive, a maioria. E essas acreditavam no que lhes diziam e não se atreviam a passar à minha porta, na sua imaginação viam-me transtornada, com uma figura repelente, faziam o sinal da cruz quando me encontravam e fugiam gritando: «Afaste-se de mim, Satanás! Meu Deus, vinde em meu socorro!...» Uma das mais jovens estava, um dia, ao fundo de um corredor; eu ia na direcção dela e não havia maneira de me evitar. Foi tomada pelo mais terrível dos pavores-, primeiro, voltou a cara contra a parede, murmurando com a voz a tremer: «Meu Deus! Meu Deus! Jesus! Maria!... Enquanto isso eu avançava; quando me sentiu chegar, cobriu o rosto com ambas as mãos para não me ver, lançou-se na minha direcção e precipitou-se, violentamente, para os meus braços, gritando-. «Socorro! Socorro! Misericórdia! Estou perdida! Irmã Santa Susana, não me faça mal; Irmã Santa Susana, tenha piedade de mim!...» Dizendo estas palavras, caiu desamparada e meio morta sobre os ladrilhos. Acudiram aos seus gritos e levaram-na. Não lhe sei dizer como deturparam este acontecimento; fizeram dele a mais criminosa das histórias; disseram que o demónio da impureza se tinha apoderado de mim; supuseram-me propósitos e acções que não me atrevo a repetir e desejos estranhos a que atribuíram a evidente desordem em que estava a jovem religiosa. Na verdade, eu não sou um homem e não sei o que se pode imaginar de duas mulheres, e menos ainda de uma só mulher; e, no entanto, como a minha cama não tinha cortinas e entravam no meu quarto a todas as horas, que lhe posso dizer, senhor? É preciso que, com toda a contenção exterior, a modéstia dos olhares e a castidade de expressão, estas mulheres tenham um coração muito corrupto: pelo menos, sabem que a sós se podem fazer acções desonestas, e eu não sei. Por isso, nunca compreendi bem de que me acusavam, e elas expressavam-se em termos tão obscuros que nunca soube como lhes havia de responder.
Nunca mais acabava se lhe contasse os detalhes das perseguições. Senhor, se tem filhos, aprenda com a minha sorte o que os espera se consentir que algum dia entrem na vida religiosa sem os sinais de uma vocação forte e decidida. Que injusto é o mundo! Permite-se a um filho dispor da sua liberdade numa idade em que não se lhe permite dispor de um escudo. Antes matar a sua filha do que fechá-la num convento contra vontade; sim, matá-la. Quantas vezes desejei que a minha mãe me tivesse afogado ao nascer! Teria sido menos cruel. Acredita que me tiraram o breviário e que me proibiram de rezar? Pensará que não obedeci; por desgraça, era o meu único consolo. Levantava as mãos ao céu, lançava gemidos e atrevia-me a esperar que fossem compreendidos pelo único Ser que via toda a minha miséria. Escutavam à minha porta e, um dia em que me dirigia a Deus com todo o abatimento do meu coração, e que O chamava em minha ajuda, disseram-me:
«Está a chamar Deus em vão; não há Deus para si. Morra desesperada e condene-se...»
E outras acrescentaram: «Amém sobre a apóstata! Amém sobre ela!»
Mas há aqui um ponto que lhe parecerá muito mais estranho que qualquer outro. Não sei se foi uma velhacaria ou uma ilusão. Aconteceu que, ainda que eu não fizesse nada que denotasse um espírito perturbado, e menos ainda um espírito atormentado por um ente infernal, discutiram entre elas se não deviam exorcizar-me. E concluíram, por maioria, que eu tinha renunciado ao meu crisma e ao meu baptismo, que o demónio estava dentro de mim e que eu me afastava das cerimónias divinas. Uma acrescentou que em certas preces eu rangia os dentes, que estremecia na igreja e que na elevação do Santo Sacramento retorcia os braços. Outra disse que eu espezinhava o Cristo, que já não usava o rosário (tinham-mo roubado) e que proferia blasfémias que não me atrevo a repetir-lhe. Todas diziam que se passava comigo qualquer coisa que não era natural, e que era preciso avisar o grande vigário, o que fizeram.
Este grande vigário era um tal senhor Hébert, homem de idade e de experiência, ríspido, mas culto e justo. Contaram-lhe com detalhes a desordem da casa, que era grande, e, se eu era a causa, era uma causa bem inocente. Como pode imaginar não omitiram, no memorando que enviaram, os meus passeios nocturnos, as minhas ausências no coro, os tumultos na minha cela, o que uma tinha visto, o que outra tinha ouvido, a minha aversão às coisas santas, as minhas blasfémias, as acções obscenas que me imputavam; com a aventura da jovem religiosa fizeram o que muito bem quiseram. As acusações eram tão graves e tão numerosas que, com todo o seu bom senso, o senhor Hébert não pode deixar de duvidar de parte delas e pensar que também continham muito de verdade. O assunto pareceu-lhe suficientemente importante para que tivesse de fazer as suas próprias averiguações. Fez anunciar a sua visita e apareceu, com efeito, acompanhado por dois jovens eclesiásticos que eram seus adjuntos e o ajudavam nas suas penosas funções.
Uns dias antes, durante a noite, senti que entravam suavemente na minha cela. Não disse nada e esperei que falassem comigo. Chamaram-me baixo e com uma voz que tremia:
«Irmã Santa Susana, está a dormir?»
- Não, não estou. Quem é?
- Sou eu.
- E quem é?
- A sua amiga, que morre de medo e se arrisca a perder-se por lhe dar um conselho, talvez útil. Oiça-me: amanhã ou depois, vai haver a visita do grande vigário; será acusada. Prepare-se para se defender. Adeus; seja corajosa e que o Senhor esteja consigo.»
Dito isto, afastou-se com a ligeireza de uma sombra.
Entretanto, o meu processo era seguido calorosamente. Muitas pessoas de vários estados e de ambos os sexos, gente de todas as condições que eu não conhecia, interessaram-se pela minha sorte e pediram para me ver. O senhor está entre elas, e talvez conheça melhor a história do meu processo que eu, pois já estava no final e eu não podia falar com o senhor Manouri. Disseram-lhe que eu estava doente e suspeitou de que lhe estavam a mentir, temendo que me tivessem atirado para o calabouço. Dirigiu-se ao arcebispado, onde não se dignaram ouvi-lo, pois estavam avisados de que eu era uma louca ou qualquer coisa pior. Dirigiu-se, então, aos juizes; insistiu na execução da ordem dada à superiora para me apresentar, morta ou viva, quando lhe pedisse para o fazer. Os juizes seculares insistiram com os juizes eclesiásticos, e estes pressentiram as consequências que o incidente podia ter se não fosse travado; e foi isso, aparentemente, que acelerou a visita do grande vigário, porque estes senhores, cansados dos eternos enredos dos conventos, não se apressam a meter-se neles: sabem, por experiência, que a sua autoridade acaba por ser iludida e sair comprometida.
Aproveitei o aviso da minha amiga para invocar o auxílio de Deus, tranquilizar a minha alma e preparar a minha defesa. Só pedi ao Céu a felicidade de ser interrogada e ouvida com imparcialidade; e obtive-a, mas vai ver a que preço. Se a mim me interessava aparecer frente ao juiz inocente e sensata, não interessava menos à minha superiora que me vissem maligna, atormentada pelo demónio, culpada e louca. Assim, pois, enquanto eu redobrava o fervor e as orações, as maldades que me faziam também tinham redobrado: só me deram os alimentos indispensáveis a impedir que eu morresse de fome; exageraram as mortificações e multiplicaram os terrores à minha volta. Impediram-me completamente o repouso nocturno; tudo o que pudesse prejudicar a saúde e turvar o espírito foi posto em prática. Foi um refinamento de crueldade como não se pode conceber. Julgue por este detalhe. Um dia em que saí da minha cela para ir à igreja ou a outro sítio, vi no chão uma tenaz, atravessada no corredor; baixei-me para a apanhar e pô-la de maneira que quem a tivesse perdido a encontrasse com facilidade. A luz impediu-me de ver que estava quase vermelha e peguei-lhe. Ao deixá-la cair, levou atrás quase toda a pele da palma da minha mão. De noite punham, nos lugares por onde eu devia passar, obstáculos nos meus pés ou à altura da minha cabeça. Feri-me cem vezes e não sei como não me matei. Não tinha com que me alumiar e era obrigada a vacilar com as mãos à frente. Deitavam vidros partidos no chão. Eu estava decidida a contar tudo, e cumpri mais ou menos a promessa. Encontrava a porta da latrina fechada e era forçada a descer vários andares ou a ir ao fundo do jardim, se a porta estivesse aberta; se não estivesse... Ah, senhor! Que malvadas criaturas são as mulheres no claustro, que estão completamente seguras de secundarem o ódio da superiora e que acreditam servir a Deus desesperando as outras! Já estava na hora do arcediago chegar; já era tempo de o meu processo acabar.
Este foi o momento mais terrível da minha vida. E já pode imaginar, senhor, com que cores me tinham pintado aos olhos daquele eclesiástico, que chegava com a curiosidade de ver uma jovem possuída ou que o simulava estar. Pensaram que só com um grande pavor podiam mostrar-me nesse estado, e eis aqui o que fizeram para o conseguir.
No dia da visita, de manhã muito cedo, a superiora entrou na minha cela; estava acompanhada por três irmãs. Uma levava água benta, a outra um crucifixo e a terceira cordas. A superiora disse-me, com voz forte e ameaçadora:
«Levante-se... Ponha-se de joelhos e encomende a alma a Deus.
- Senhora - disse-lhe eu -, antes de lhe obedecer, posso perguntar-lhe o que vai ser de mim? O que é que decidiu e que devo pedir a Deus?»
Um suor frio estendeu-se por todo o meu corpo; eu tremia e sentia os joelhos a tremer. Olhava com assombro as três freiras que a acompanhavam. Estavam em pé, ao lado umas das outras, com o rosto sombrio, os lábios apertados e os olhos fechados. O terror tinha separado cada palavra das perguntas que eu fiz; e pensei, pelo silêncio que se fez, que não me tinham percebido. Repeti as últimas palavras da pergunta, pois não tive forças para a repetir por inteiro. Disse, pois, com uma voz débil e apagada:
«Que graça devo pedir a Deus?
- Peça-Lhe perdão por todos os pecados da sua vida; fale-Lhe como se tivesse chegado o momento de se apresentar perante Ele.»
Ao ouvir isto, pensei que tinham reunido o conselho e que tinham resolvido desfazer-se de mim. Já tinha ouvido dizer que se fazia isso, algumas vezes, nos conventos de certos religiosos que julgavam, condenavam e executavam. Não acreditava que tão desumana jurisdição pudesse ser exercida em nenhum convento de mulheres, mas eram tantas as coisas que nunca pude adivinhar e que, no entanto, aconteciam! Ao pensar na minha morte próxima, quis gritar; mas a minha boca estava aberta e nenhum som saía dela. Estendi os meus braços suplicantes para a superiora e o meu corpo desfalecido caiu para trás desamparado. Caí, mas não senti nada, porque nesses momentos de ansiedade em que a força nos abandona insensivelmente os membros vacilam e fundem-se, por assim dizer, uns com os outros; a natureza, ao não poder suster-nos, parece querer desfalecer brandamente. Perdi o conhecimento e os sentidos; só ouvia vozes confusas e longínquas à minha volta. Não sei se elas falavam ou se eram os meus ouvidos que zumbiam, mas não percebia nada daquele zumbido inacabado. Ignoro quanto tempo permaneci neste estado, mas saí dele com um calafrio súbito que me provocou uma ligeira convulsão e me arrancou um profundo suspiro. Estava empapada em água, que caía da minha roupa para o chão; era a água benta de uma enorme pia que me tinham deitado por todo o corpo. Estava deitada de lado, estendida nessa água, com a cabeça apoiada na parede, a boca entreaberta e os olhos meio mortos e quase fechados. Tratei de os abrir e olhar; mas pareceu-me que um ar espesso me envolvia, através do qual só entrevia roupa flutuante, à qual tentava agarrar-me sem o conseguir. Tentei mexer o braço em que não estava apoiada e quis levantá-lo, mas sentia-o muito pesado. A minha extrema debilidade foi diminuindo pouco a pouco; sentei-me com as costas contra a parede. Tinha as mãos na água e a cabeça caída sobre o peito. Lançava um queixume inarticulado, entrecortado e penoso. Aquelas mulheres olharam para mim numa atitude inflexível que me roubou a coragem para implorar. A superiora disse:
«Ponham-na de pé.»
Pegaram-me por baixo dos braços e levantaram-me. Ela acrescentou:
«Se não se quer encomendar a Deus, tanto pior para ela; já sabem o que têm a fazer. Acabem...»
Pensei que as cordas que tinham trazido iam servir para me estrangularem; olhei-as e os meus olhos encheram-se de lágrimas. Pedi para beijar o crucifixo e negaram-mo. Pedi para beijar as cordas, e deram-mas. Baixei-me, peguei no escapulário da superiora e beijei-o. Disse: «Meu Deus, tende piedade de mim! Meu Deus, tende piedade de mim! Queridas irmãs, não me façam sofrer.» Estendi-lhes o pescoço. Não lhe sei dizer em que é que me converti, nem o que é que me fizeram: é certo que aqueles que são levados para o suplício, e assim pensava eu que ia, morrem antes de serem executados. Estava sobre o enxergão que me servia de leito, com os braços atados atrás das costas, sentada e com um crucifixo de ferro sobre os joelhos...
...Senhor marquês, compreendo todo o mal que lhe estou a causar; mas foi o senhor que quis saber se eu mereço a compaixão que espero de si.
Foi então que senti a superioridade da religião cristã sobre todas as outras religiões do mundo; que profunda sabedoria reside naquilo a que a cega filosofia chama a loucura da cruz. No estado em que me encontrava, de que me teria servido a imagem de um legislador feliz e coroado de glória? Eu só via o inocente com o lado trespassado, a testa coroada de espinhos, as mãos e os pés perfurados com cravos e expirando entre sofrimentos. E dizia a mim mesma: «Aqui está o meu Deus, e ainda me atrevo a queixar!» Agarrei-me a esta ideia e senti renascer o consolo no meu coração; compreendi quanto era vã a vida e achei que era muito ditosa por ir perdê-la antes de ter tido tempo de aumentar as minhas faltas. No entanto, ao contar os meus anos, dava-me conta de que só tinha dezanove, e suspirava. Estava demasiado debilitada, demasiado abatida para que o meu espírito se pudesse elevar acima dos terrores da morte. Se estivesse de melhor saúde, creio que teria podido tomar uma decisão mais corajosa.
A superiora voltou com as suas acompanhantes. Encontraram-me com mais ânimo do que esperavam e do que queriam. Puseram-me em pé e puxaram-me o véu para a cara. Duas delas seguraram-me por baixo dos braços e uma terceira empurrava-me por trás. A superiora mandava-me andar. Eu ia sem saber para onde, mas pensava no suplício, e dizia: «Meu Deus, tende piedade de mim! Meu Deus, perdoai-me se vos ofendi!»
Cheguei à igreja. O grande vigário tinha estado a celebrar a missa. A comunidade estava reunida. Esquecia-me de lhe dizer que, quando cheguei à porta, as três religiosas que me conduziam apertavam-me, empurravam-me com violência, pareciam agitar-se à minha volta e arrastavam-me, umas pelos braços, enquanto outras me retinham atrás, como se eu resistisse e me repugnasse entrar na igreja; no entanto, isso não era verdade. Conduziram-me às grades do altar. Eu mal me podia ter em pé e obrigaram-me a ajoelhar, como se eu resistisse a fazê-lo. Agarravam-me como se eu quisesse fugir. Cantou-se o Veni Creator, expôs-se o Santíssimo Sacramento e foi dada a bênção. No momento da bênção, quando toda a gente se inclina em sinal de veneração, as que me seguravam pelos braços fizeram-me baixar com força, e as outras apoiavam as mãos sobre os meus ombros. Reparei em todos estes movimentos, mas era-me impossível adivinhar o objectivo; mas depressa ficou bem claro.
Depois da benção, o grande vigário tirou a casula, revestiu-se só com a alba e a estola e avançou até às grades do altar onde eu estava ajoelhada. Ele estava entre os dois eclesiásticos, de costas voltadas para o altar sobre o qual estava exposto o Santíssimo Sacramento, e olhava para mim. Aproximou-se e disse-me:
«Irmã Santa Susana, levante-se.»
As irmãs que me seguravam levantaram-me com brusquidão. As outras estavam à minha volta e abraçavam-me pela cintura, como se tivessem medo de que eu escapasse. Ele acrescentou: «Desatem-na.
Não lhe obedeceram; fingiram que era inconveniente, ou mesmo perigoso, deixarem-me livre. Mas já lhe disse que este homem era ríspido. Repetiu com uma voz firme e dura: «Desatem-na.» Obedeceram.
Mal tive as mãos livres, lancei uma dolorosa e aguda queixa, que o fez empalidecer; as hipócritas das religiosas que me rodeavam afastaram-se fingindo-se espavoridas. Ele recompôs-se e as irmãs voltaram fingindo que tremiam. Eu continuei imóvel, e ele disse-me: «O que tem?»
Respondi mostrando-lhe os braços; a corda com que mós tinham apertado quase me tinha entrado, completamente, na carne. Estavam manchados do sangue que não circulava e que tinha extravasado. Ele percebeu que a minha queixa era por causa da súbita dor provocada pelo sangue que voltava a circular. Disse:
- Levantem-lhe o véu.»
Tinham-no cosido em tantos lados, sem que eu me desse conta; assim, pois, tiveram muita dificuldade em fazer algo bem mais fácil, tendo sido elas próprias a prepará-lo. Queriam que o sacerdote me visse cheia de obsessões, possessa e louca. No entanto, à força de puxar, o fio partiu-se em vários sítios, o véu e o meu hábito romperam-se por outros, e puderam ver-me. Tenho um rosto interessante; a dor profunda tinha-o transformado, mas não lhe tinha tirado nada do carácter. Também tenho uma voz comovente, e pode intuir-se que falo a verdade. Estas qualidades reunidas provocaram uma enorme piedade aos dois jovens acólitos do arcediago; ele ignorava estes sentimentos, porque era justo mas pouco sensível. Era uma dessas pessoas infelizmente nascidas para praticar a virtude, sem que esta lhes seja doce; fazem o bem por uma questão de ordem, tal como raciocinam. Pegou na ponta da sua estola, e, pondo-a sobre a minha cabeça, disse-me:
«Irmã Susana, crê em Deus Pai, Filho e Espírito Santo?»
Eu respondi:
«Creio.
- Crê na Santa Madre Igreja?
- Creio.
- Renuncia a Satanás e às suas obras?»
Em vez de responder, fiz um movimento súbito para a frente, dei um grito, e a ponta da sua estola saltou da minha cabeça. Ele perturbou-se e os seus companheiros empalideceram. Entre as irmãs, umas fugiram e as outras, que estavam sentadas nos seus lugares, levantaram-se no maior tumulto. Ele fez sinais para que se acalmassem, enquanto me olhava; esperava qualquer coisa extraordinária. Mas eu tranquilizei-o dizendo:
«Não é nada, senhor; uma destas religiosas picou-me com um objecto pontiagudo»; e, levantando os olhos e as mãos ao céu, acrescentei, vertendo uma torrente de lágrimas:
«Feriram-me no momento em que me perguntou se renuncio a Satanás e às suas pompas, e entendo porquê.»
Protestaram todas pela boca da superiora, garantindo que não me tinham tocado. O arcediago pôs-me, de novo, a ponta da estola na cabeça. As religiosas voltaram a aproximar-se de mim, mas ele mandou-as afastar-se e voltou a perguntar-me se renunciava a Satanás e às suas obras. Eu respondi-lhe com firmeza:
«Renuncio, renuncio.»
Mandou trazerem-lhe um Cristo e deu-mo a beijar; beijei-o nos pés, nas mãos e na ferida do peito. Mandou-me adorá-lo em voz alta; pu-lo no chão e disse, de joelhos:
«Meu Deus, Meu Salvador, Vós que haveis morrido na cruz pelos meus pecados e pelos de toda a Humanidade, eu Vos adoro; aplicai-me o mérito dos tormentos que haveis sofrido; fazei cair sobre mim uma gota do sangue que haveis derramado, e serei purificada. Perdoai-me, meu Deus, como eu perdou-o a todos os meus inimigos...»
Ele disse-me imediatamente:
«Faça um acto de fé...», e eu fi-lo.
«Faça um acto de amor...», e eu fi-lo.
«Faça um acto de esperança...», e eu fi-lo.
«Faça um acto de caridade...», e eu fi-lo.
Não me lembro em que termos fiz estes actos; mas devem ter sido muito comovedores, pois arranquei soluços a algumas religiosas, os dois jovens eclesiásticos deixaram correr as lágrimas e o arcediago, assombrado, perguntou-me de onde tinha eu tirado as preces que tinha acabado de dizer.
Disse-lhe:
«Do fundo do meu coração; são o meu pensamento e os meus sentimentos. Ponho Deus, que nos ouve sempre e que está presente neste altar, por testemunha de como digo a verdade. Sou cristã e inocente; se cometi alguns erros, só Deus os conhece. E só Ele tem direito a pedir-me contas deles e a castigar-me...»
Ao ouvir estas palavras, o arcediago deitou um olhar terrível à superiora.
No fim desta cena, em que a majestade de Deus acabava de ser insultada, as coisas mais santas profanadas e o ministro da Igreja posto a ridículo, a cerimónia acabou. As religiosas retiraram-se, excepto a superiora e eu, e os dois jovens eclesiásticos. O arcediago sentou-se e, puxando do relatório que lhe tinham apresentado contra mim, leu-o em voz alta, e fez-me perguntas sobre as acusações que continha.
«Por que é que não se confessa?», perguntou-me.
«Porque mo impedem.
- Por que não recebe os sacramentos?
- Porque mo impedem.
- Por que não assiste à missa e aos ofícios divinos?
- Porque mo impedem.»
A superiora quis tomar a palavra; mas ele disse-lhe num tom ríspido:
«Esteja calada, senhora... Por que sai da sua cela de noite?
- Porque me tiraram a água, o cântaro e todos os recipientes necessários para as funções da natureza.
- Por que é que, de noite, se ouvem barulhos no seu quarto?
- Porque se dedicam a impedir-me o repouso.»
A superiora quis falar de novo; pela segunda vez, ele disse-lhe: «Senhora, já lhe disse para estar calada... O que é isso de uma religiosa que arrancaram das suas mãos e que encontraram desmaiada no corredor?
- É consequência do terror que lhe tinham feito ter de mim.
- É sua amiga?
- Não, senhor.
- Nunca entrou na cela dela?
- Jamais.
- Nunca lhe fez nada indecente, a ela ou a outras?
- Jamais.
- Por que a ataram?
- Ignoro.
- Por que é que a sua cela não se fecha?
- Porque estraguei a fechadura.
- Por que é que a estragou?
- Para abrir a porta e assistir à missa no dia de Ascensão.
- Então, foi à igreja nesse dia?
- Sim, senhor.
A superiora disse:
«Senhor, isso não é verdade; toda a comunidade...»
Eu interrompi-a.
«... assegurará que a porta do coro estava fechada; que eu estava deitada à frente dessa porta e que deu ordens para me pisarem, o que algumas fizeram; mas eu perdoo-lhes, e a si, senhora, perdoo-lhe tê-lo ordenado. Não vim para acusar, mas para me defender.
- Por que não tem nem rosário nem crucifixo?
- Porque mós tiraram.
- Onde está o seu breviário?
- Tiraram-mo.
- Como reza, então?
- Faço as minhas preces com o coração e o espírito, apesar de me terem proibido rezar.
- Quem lhe fez essa proibição?
- A madre superiora.»
A superiora quis falar de novo.
«Senhora», disse-lhe ele, «é verdadeiro ou falso que a proibiu de rezar? Diga sim ou não.
- Eu acreditava, e tinha razões para acreditar...
- Não se trata disso; proibiu-a de rezar? Sim ou não?
- Proibi-a, mas...» Queria continuar.
«Mas», interrompeu o arcediago, «mas... irmã Susana, por que está descalça?
- Porque não me dão meias nem sapatos.
- Por que é que a sua roupa interior e o seu hábito estão tão velhos e sujos?
- Porque faz mais de três meses que me negam roupa interior e sou obrigada a dormir vestida.
- Por que dorme vestida?
- Porque a minha cama não tem cortinas, nem colchão, nem cobertores, nem lençóis, nem camisa de dormir.
- Por que não tem nada dessas coisas?
- Porque mas tiraram.
- Está alimentada?
- Queria estar.
- Então, não está?» Calei-me, e ele acrescentou:
«É incrível que se tenham portado tão severamente consigo, sem que tenha cometido alguma falta para o merecer.
- A minha falta consiste em não ter sido chamada para a vida religiosa, e retractar-me de uns votos que não fiz livremente.
- É às leis que compete decidir isso; e seja qual for a decisão é necessário, entretanto, que cumpra os seus deveres religiosos.
- Ninguém, senhor, ninguém é mais exacta neles que eu.
- Deve levar a mesma vida que as suas companheiras.
- Isso é tudo o que peço.
- Não tem nenhuma queixa?
- Não, senhor, já lho disse; não vim acusar, mas defender-me.
- Pode ir.
- Para onde, senhor?
- Para a sua cela.»
Dei alguns passos, voltei-me e ajoelhei aos pés da superiora e do arcediago.
«Bem», disse ele, - o que se passa?»
Mostrei-lhe a cabeça ferida em muitos sítios, os pés ensanguentados, os braços lívidos e descarnados, o hábito sujo e roto, e disse-lhe:
Veja!»
Já o oiço dizer, senhor marquês, tal como à maioria dos que lerem estas memórias: «Quantos horrores, tão variados e tão contínuos! Que sucessão de atrocidades tão rebuscadas em almas religiosas! Isto não é verosímil!», dirão ou dirá o senhor. Convenho que não o é, mas tudo isto é verdade, e o céu me julgará com todo o seu rigor e condenar-me-á ao fogo eterno se eu permitir que a calúnia obscureça, ainda que seja só ligeiramente, uma das minhas linhas. Ainda que eu tenha podido comprovar, durante muito tempo, que a aversão de uma superiora é um acicate violento à perversidade natural, sobretudo quando esta se pode converter num mérito, aplaudir-se e vangloriar-se das suas façanhas, o ressentimento não me impedirá de ser justa. Quanto mais reflicto sobre isto mais me convenço de que o que se passou comigo nunca tinha acontecido e não acontecerá nunca mais.Uma vez (e queira Deus que tenha sido a primeira e a última!) quis a Providência, cujos desígnios nos são desconhecidos, amontoar sobre uma única infeliz toda a espécie de crueldades repartidas, nos seus impenetráveis decretos, sobre a infinita quantidade de desgraçadas que a precederam no claustro, e que deviam suceder-lhe. Sofri, e sofri muito; mas a sorte das minhas perseguidoras parece-me e sempre me pareceu mais digna de compaixão que a minha. Preferiria e teria preferido morrer a trocar o meu papel pelo delas. As minhas desditas terminaram; assim o espero da sua bondade. A recordação, a vergonha e o remorso dos seus crimes não as abandonarão até à última hora. Já se acusam, não tenha dúvidas; vão acusar-se durante toda a vida, e o terror descerá com elas à sepultura. Entretanto, senhor marquês, a minha situação presente é deplorável; a vida parece-me um fardo. Sou mulher e tenho o espírito fraco como é próprio do meu sexo; Deus pode abandonar-me; não me sinto nem com a força nem com a coragem necessárias para suportar, ainda, por muito mais tempo o que tenho suportado. Senhor marquês, pode chegar um momento fatal e, ainda que os seus olhos chorem pelo meu destino, ainda que os remorsos os arranquem, nem por isso eu sairei do abismo em que terei caído; fechar-se-á para sempre sobre uma desesperada.
«Pode ir», disse-me o arcediago.
Um dos eclesiásticos estendeu a mão para me levantar, e o grande vigário acrescentou:
«Interroguei-a e agora vou interrogar a sua superiora. Não sairei daqui sem que a ordem tenha sido restabelecida.»
Retirei-me. Encontrei o resto da casa cheio de inquietações. Todas as religiosas estavam à porta das suas celas; falavam-se de um extremo ao outro do corredor; tão depressa como eu apareci, retiraram-se e ouviu-se um longo bater de portas que se fechavam umas atrás das outras com violência. Voltei para a minha cela; ajoelhei-me frente à parede e pedi a Deus que tivesse em consideração a moderação com que eu tinha falado ao arcediago, dando-lhe a conhecer a minha inocência e a verdade.
Estava a rezar quando o arcediago, os seus dois companheiros e a superiora apareceram na minha cela. Como já lhe disse, eu não tinha almofada, nem cadeira, nem genuflexório, nem cortinas, nem colchão, nem cobertores, nem lençóis, nem nenhum recipiente, nem porta para fechar, nem quase um vidro intacto nas janelas. Levantei-me.
O arcediago deteve-se bruscamente e lançou um olhar de indignação à superiora, dizendo-lhe: «E então, senhora?» Ela respondeu: - Eu ignorava.
- Ignorava? Mente! Será que passou um único dia sem que tenha entrado aqui? Não foi daqui que saiu ainda há pouco?... Irmã Susana, fale: esta senhora entrou aqui hoje?»
Não respondi. Ele não insistiu, mas os jovens eclesiásticos, deixando cair os braços, com a cabeça baixa e os olhos fixos no chão, demonstravam assim a pena e o assombro que sentiam. Saíram todos, e ouvi o arcediago dizer à superiora no corredor:
«É indigna das suas funções; merecia ser destituída. Vou queixar-me a Monsenhor. Que toda esta desordem seja reparada antes de eu me ir embora.»
E, enquanto caminhava, abanando a cabeça, acrescentou: «Isto é horrível. São cristãs! São religiosas! São criaturas humanas! Isto é horrível.»
A partir desse momento não voltei a ouvir nada, mas tive roupa interior, outros vestidos, cortinas, lençóis, cobertores, recipientes, o meu breviário, os meus livros piedosos, o meu rosário, o meu crucifixo, vidros, numa palavra, tudo o que era preciso para que eu fosse uma religiosa como as outras. Também me devolveram a liberdade de ir ao locutório, mas só para os meus assuntos.
Estes assuntos iam mal. O senhor Manouri publicou um primeiro relatório que causou pouca impressão, pois era engenhoso mas patético, e careciam-lhe razões. A culpa não era toda do hábil advogado, pois eu não quis, em absoluto, que a reputação dos meus pais fosse atacada, mas apenas que se considerasse a vida religiosa e, sobretudo, a casa em que eu estava. Não quis que pintasse com traços demasiado odiosos os meus cunhados e as minhas irmãs. Só tinha a meu favor o meu primeiro protesto, em verdade, solene, mas feito noutro convento, e que depois não voltei a renovar. Quando se põem limites tão apertados à própria defesa, mas a parte contrária não limita o seu ataque, espezinha o justo e o injusto, afirma e nega com o mesmo impudor e não se envergonha de lançar acusações, suspeitas, maledicências e calúnias, é difícil ter êxito, especialmente perante os tribunais, onde o costume e o tédio dos assuntos quase não permitem que se examinem com alguma atenção as coisas mais importantes e onde os protestos como o meu são sempre vistos com olhos desfavoráveis pelo homem político, que teme que, depois do êxito de uma religiosa que se retracta dos seus votos, muitas outras lhe sigam os passos. Pensa-se, em segredo, que se se consentir que as portas destas prisões se abram em favor de uma desgraçada muitas outras tratariam de as forçar. Tentam desanimar-nos e fazer que nos resignemos com a nossa sorte pela desesperança de a mudar. Parece-me, no entanto, que num Estado bem governado, devia passar-se o contrário: devia ser difícil entrar num convento, e fácil sair. E por que não acrescentar este caso a tantos outros, em que o mínimo defeito de forma anula um procedimento, ainda que seja justo? Os conventos são, pois, tão essenciais à constituição de um Estado? Jesus Cristo instituiu os monges e as freiras? A Igreja não pode passar sem eles? Que necessidade tem o esposo de tantas virgens loucas? E a espécie humana de tantas vítimas? Será que nunca se vai sentir a necessidade de estreitar a abertura destes abismos onde vão cair as gerações futuras? Todas as preces rotineiras que neles se fazem valem uma esmola que por piedade se dá a um pobre? Deus, que fez o homem sociável, aprova que ele seja encerrado? Deus, que o fez tão inconstante, tão frágil, pode autorizar a teme-ridade dos votos? Estes votos, que se opõem à tendência geral da natureza, poderiam alguma vez ser observados se não fossem algumas criaturas mal constituídas em quem os germes das paixões murcharam, e que deviam contar-se entre os monstros se as nossas luzes nos permitissem conhecer com tanta facilidade e tão correctamente a estrutura interior do homem como nos é possível conhecer a sua forma exterior? Todas estas cerimónias lúgrubes que se fazem para tomar os hábitos e para fazer a profissão, quando se consagra um homem ou uma mulher à vida monástica e à desdita, suspendem as funções animais? Pelo contrário, não ficarão despertos, no silêncio, na coacção e no ócio com uma violência desconhecida às pessoas do mundo, que têm imensas distracções? Onde se vêem mentes obcecadas por espíritos impuros que as perseguem e as agitam? Onde se vê este tédio profundo, esta palidez, esta delgadez e todos estes sintomas da natureza que enlanguesce e consome? Onde se perturbam as noites com gemidos e se submergem os dias com lágrimas vertidas sem causa e precedidas de uma melancolia que não se sabe a que atribuir? Onde acontece que a natureza, rebelde a uma imposição para a qual não foi feita, transponha os obstáculos que se lhe opõem, fique furiosa e ponha a economia animal numa desordem sem remédio? Em que lugar a tristeza e mau humor aniquilam todas as qualidades sociais? Onde não há pai, nem irmão, nem irmã, nem parente, nem amigo? Onde acontece que o homem, ao não se considerar mais do que um ser de um instante que passa e acaba, trate as relações mais doces deste mundo como um viajante trata os objectos que encontra, sem afecto? Ondeestão a falta de vontade, o asco e as vertigens? Qual é o lugar da servidão e do despotismo? Onde estão os ódios que nunca se apagam? Onde estão as paixões incubadas em silêncio? Onde residem a crueldade e a curiosidade? Ignora-se a história destes asilos, dizia o senhor Manouri na sua alegação, não se conhece. Acrescentava nou-tro lugar: «Fazer voto de pobreza é comprometer-se, por juramento, a ser preguiçoso e ladrão; fazer voto de castidade é prometer a Deus a infracção constante da mais sábia e mais importante das suas leis; fazer voto de obediência é renunciar à prerrogativa inalienável do homem, a liberdade. Se se observam estes votos, é-se um criminoso; se não se observam, é-se perjuro. A vida de claustro é a de um fanático ou de um hipócrita.»
Uma jovem pediu aos pais licença para entrar no nosso convento. O pai disse-lhe que lhe dava licença, mas que lhe dava três anos para pensar melhor. Isto pareceu muito duro à jovem, cheia de fervor. No entanto, teve de se submeter à espera. Como a sua vocação não se desmentiu, voltou a falar com o pai e disse-lhe que já tinham passado os três anos. «Muito bem, minha filha, respondeu-lhe ele; dei-lhe três anos para se pôr à prova, e espero que me conceda outros tantos para me decidir...» Isto ainda pareceu mais duro à jovem, e chorou; mas o pai era um homem firme e resistiu. No fim desses seis anos, ela entrou no convento e professou. Era uma boa religiosa, meiga, piedosa, escrupulosa em todos os seus deveres; mas aconteceu que os directores abusaram da sua franqueza para se informarem, através da confissão, do que se passava na casa. As nossas superioras suspeitaram; fecharam-na e privaram-na dos exercícios religiosos: ela enlouqueceu. Como podia resistir a mente às perseguições de cinquenta pessoas que se ocupam em atormentar-nos de manhã à noite? Previamente, tinham dito à mãe uma mentira que denotava a avareza dos conventos. Inspiraram na mãe desta religiosa o desejo de entrar na casa e de visitar a cela da filha. Ela dirigiu-se aos grandes vigários, que lhe concederam a ordem que solicitava. Entrou e foi a correr ver a cela da filha; mas qual não foi o seu espanto quando só viu quatro paredes nuas! Tinham levado tudo; adivinharam que esta terna e sensível mãe não deixaria a filha naquele estado. Com efeito, enviou-lhe móveis, vestidos e roupa interior e protestou junto das religiosas, dizendo que o que estava a fazer lhe custava muito caro para poder repetir, e que três ou quatro visitas por ano como aquela acabariam por arruinar os seus outros filhos. Ali, por ambição e luxo, sacrificam-se umas quantas famílias para que o destino das freiras seja mais vantajoso. Aquilo é uma latrina onde se deitam os desejos da sociedade. Quantas mães como a minha expiam um crime secreto por meio de outro!
O senhor Manouri publicou um segundo relatório que fez um pouco mais de efeito. A solicitação era mais viva. Voltei a oferecer às minhas irmãs a posse, inteira e tranquila, da herança dos meus pais. Houve um momento em que o meu processo tomou um caminho mais favorável, e eu já esperava a liberdade. Mas enganaram-me cruelmente. O meu assunto foi discutido durante uma audiência e perdeu-se. Toda a comunidade sabia disto, mas eu ignorava-o. Havia movimento, tumulto, alegria, cochichos secretos, idas e vindas à superiora e das religiosas entre si. Eu estava muito inquieta; não conseguia ficar na minha cela, nem tão pouco sair, e não tinha uma amiga que me estendesse os braços. Que manhã tão cruel a da audiência de um processo! Queria rezar e não podia; ajoelhava-me, levantava-me, começava uma oração e logo o meu espírito se escapava, com muita pena minha, para os juizes: via-os, ouvia os advogados, dirigia-me a eles, interrompia o meu, achava que a minha causa estava mal defendida. Não conhecia nenhum dos magistrados; no entanto, imaginava-os de muitas maneiras, uns favoráveis, outros sinistros, outros indiferentes. Estava em tal agitação, num torvelinho de ideias que não se pode imaginar. O burburinho deu lugar a um profundo silêncio; as religiosas já não falavam; pareceu-me que, no coro, tinham a voz mais brilhante do que era costume, pelo menos as que cantavam. As outras não cantavam; ao saírem do ofício, retiraram-se em silêncio. Pensei que a espera as inquietava tanto como a mim. Mas, à tarde, o ruído e o movimento voltaram subitamente, por todo o lado; ouvi portas que se abriam e fechavam, religiosas que iam e vinham e murmúrios de pessoas que falavam baixo. Pus a orelha na fechadura; mas pareceu-me que se calavam ao passar perto do meu quarto e que andavam em bicos de pés. Pressenti que tinha perdido o processo; não tive nem um instante de dúvida. Pus-me às voltas na minha cela sem falar; sufocava, não podia sequer queixar-me. Cruzava os braços sobre a cabeça, apoiava a testa ora numa parede ora noutra; queria repousar na minha cama, mas o bater do meu coração impedia-mo: tenho a certeza de que o ouvia bater e que fazia mexer o meu vestido. Estava assim quando me vieram dizer que alguém perguntava por mim. Desci, mas não me atrevia a avançar. A que me tinha avisado estava tão alegre que pensei que a notícia que me traziam só podia ser muito triste. No entanto, fui e quando cheguei à porta do locutório detive-me de repente e apoiei-me num canto entre duas paredes; não podia suster-me, mas, não obstante, entrei. Não estava ninguém; esperei; tinham impedido a entrada a quem me chamou. Suspeitavam de que era um emissário do meu advogado; queriam saber o que se ia passar entre nós; tinham-se reunido para o ouvir. Quando apareceu, eu estava sentada, com a cabeça em cima do braço e apoiada contra as barras da grade.
«É da parte do senhor Manouri - disse-me.
- É - respondi eu - para me dizer que perdi o processo.
- Senhora, eu não sei nada; mas ele deu-me esta carta e tinha um ar aflito quando ma entregou; vim a correr, como me pediu.
- Dê-ma...»
Estendeu-me a carta e peguei nela sem me mexer e sem olhar para ele; pu-la sobre os joelhos, e continuei como estava. O homem perguntou-me:
«Não há nenhuma resposta?
- Não - disse-lhe -, pode ir.»
Foi-se embora; e eu continuei no mesmo sítio, sem me poder mexer e sem me decidir a sair.
No convento não é permitido receber cartas nem escrevê-las sem autorização da superiora; entregam-se-lhe as que se recebem e as que se escrevem. Assim, pois, tinha de lhe levar a minha. Pus-me a caminho para o fazer, e pensei que nunca mais lá chegaria; um recluso que sai do calabouço para ouvir a sua condenação não anda nem mais devagar nem vai mais abatido do que eu ia. No entanto, cheguei à porta. As religiosas olhavam-me de longe; não queriam perder nada do espectáculo da minha dor e humilhação. Bati e abriram. A superiora estava com algumas religiosas; soube-o pelas bainhas dos hábitos, pois em nenhum momento me atrevi a levantar os olhos. Dei-lhe a minha carta com uma mão a tremer; pegou nela, leu-a e devolveu-ma. Eu voltei para a minha cela e deitei-me na cama, com a carta a meu lado, e permaneci sem a ler, sem me levantar para ir jantar, sem fazer nenhum movimento até ao ofício da tarde. Às três e meia, o sino avisou-me de que devia descer. Já lá estavam algumas religiosas, e a superiora estava à entrada do coro. Deteve-me, mandou-me ajoelhar cá fora; o resto da comunidade entrou e a porta fechou-se. Depois do ofício, saíram todas; deixei-as passar e só depois me levantei para ir atrás delas. Desde esse momento, comecei a condenar-me a tudo o que me quisessem fazer: acabavam de me proibir a igreja; eu proibi-me o refeitório e o recreio. Avaliei a minha situação segundo todos os pontos de vista, e só vi apoio no meu talento e na minha submissão. Ter-me-ia contentado com a espécie de esquecimento em que me deixaram durante vários dias. Tive algumas visitas, mas a única que me permitiram receber foi a do senhor Manouri. Encontrei-o, ao entrar no locutório, exactamente como eu estava quando recebi o seu emissário, com a cabeça sobre os braços e estes apoiados contra a grade. Reconheci-o e não disse nada. Não se atrevia a olhar para mim nem a falar.
«Senhora - disse-me sem se mexer -, escrevi-lhe; leu a minha carta?
- Recebi-a mas não a li.
- Então ignora...
- Não, senhor, não ignoro nada; adivinhei a minha sorte e estou resignada com ela.
- Como se portam consigo?
- Nem se lembram de mim; mas o passado ensina-me o que me prepara o futuro. Só tenho um consolo e é que, sem a esperança que me sustinha, morrerei. A falta que cometi não é daquelas que a religião perdoa. Não peço a Deus que abrande o coração daquelas a cuja disposição se digna abandonar-me, mas que me dê forças para sofrer, para me salvar do desespero e que me chame a Si depressa.
- Senhora - disse-me ele a chorar -, se fosse a minha própria irmã, não teria feito mais por si...»
Aquele homem tinha um coração sensível. «Senhora - acrescentou -, se lhe puder ser útil em alguma coisa, disponha de mim. Irei ver o primeiro presidente, que me considera; irei aos grandes vigários e ao arcebispo.
- Senhor, não faça nada; terminou tudo.
- Mas, e se pudéssemos fazer que a mudem de casa?
- Há demasiados obstáculos.
- Que obstáculos são esses?
- Uma autorização difícil de obter, um novo dote que é preciso entregar, ou o antigo, que era necessário tirar desta casa. E, além disso, que encontraria eu noutro convento? O meu coração inflexível, superioras desapiedadas, religiosas que não são melhores que estas, os mesmos deveres, as mesmas penas. Mais vale acabar aqui os meus dias; assim, serão mais curtos.
- Mas, senhora, suscitou o interesse de muitas pessoas honestas, a maioria das quais são ricas. Não a reterão aqui se sair sem levar nada.
- Eu creio que sim.
- Uma religiosa que sai ou que morre aumenta o bem-estar das que ficam.
- Mas essas pessoas honestas, essas pessoas ricas, já não pensam em mim e irá encontrá-las indiferentes quando lhes pedir que me paguem o dote. Por que pensa que é mais fácil, para as pessoas do mundo, tirar do convento uma religiosa sem vocação do que para as pessoas piedosas fazer entrar uma que a tenha? Ai, senhor! Toda a gente se afastou; desde que perdi o processo que não vejo ninguém.
- Senhora, só lhe peço que me encarregue deste assunto; vou-me sentir mais feliz.
- Não peço nada, não espero nada e não me oponho a nada; o único recurso que me restava falhou. Só posso esperar que Deus me modifique e que as qualidades da vida religiosa substituam na minha alma a esperança de a deixar, que já a perdi... Mas não pode ser; esta roupa colou-se à minha pele e aos meus ossos, e cada vez me incomoda mais. Que sorte a minha! Ser religiosa para sempre, e saber que nunca serei mais do que uma má religiosa! Passar a vida a bater com a cabeça contra as barras da minha prisão!»
Nesta altura, comecei a gritar. Queria afogar os meus gritos, mas não podia. O senhor Manouri, surpreendido, disse-me:
«Senhora, posso atrever-me a fazer-lhe uma pergunta?
- Faça-a, senhor.
- Uma dor tão violenta não terá algum motivo secreto?
- Não, senhor. Odeio a vida solitária, sinto que a odeio e que a odiarei sempre. Não saberei submeter-me a todas as misérias que enchem o caminho de uma prisioneira: é uma urdidura de puerilidades que detesto. Ter-me-ia acostumado a elas se me fosse possível. Mais de cem vezes tentei obrigar-me, deixar que se me impusessem, e não consigo. Invejei e pedi a Deus a ditosa imbecilidade de espírito das minhas companheiras; não ma deu e não ma dará. Faço tudo mal, digo tudo ao contrário; a falta de vocação transparece em todas as minhas acções, vê-se; a todo o momento insulto a vida monástica. Chamam orgulho à minha inaptidão; humilham-me; as faltas e os castigos multiplicam-se até ao infinito, e passo os dias a medir com os olhos a altura das paredes.
- Senhora, não posso deitá-las abaixo, mas posso fazer outra coisa.
- Não tente nada, senhor.
- Deve mudar de casa; vou ocupar-me disso. Voltarei para a ver e espero que não a escondam. Terá sempre notícias minhas. Esteja certa de que, se consentir, conseguirei tirá-la daqui. Se se portarem muito severamente consigo não mo oculte.»
Era tarde quando o senhor Manouri saiu. Voltei para a minha cela. O ofício nocturno não tardou a ser anunciado.
Fui das primeiras a chegar e deixei passar as outras religiosas pois dava como assente que tinha de ficar à porta. E, com efeito, a superiora, fechou-ma. À noite, no jantar, fez-me sinal, à entrada, para que me sentasse no chão, no meio do refeitório; obedeci-lhe e só me deram pão e água. Comi um pouco, regado com algumas lágrimas. No dia seguinte, tiveram conselho; toda a comunidade foi chamada para me julgar e condenaram-me a ficar sem recreio, a ouvir durante um mês o ofício à porta do coro, a comer no chão no meio do refeitório, a retractar-me publicamente durante três dias seguidos, a renovar a minha tomada de hábitos e os meus votos, a pôr o cilício, a ajudar em dias alternados e a flagelar-me depois do ofício da noite todas as sextas-feiras. Eu estava ajoelhada, com o véu descido, enquanto pronunciavam a minha sentença.
No dia seguinte, a superiora veio à minha cela com uma outra religiosa que trazia debaixo do braço um cilício e aquela túnica tosca que me tinham vestido quando me levaram para o calabouço. Compreendi o que aquilo significava; despi-me, ou, melhor dizendo, arrancaram-me o véu e despiram-me, e vesti aquela túnica. Tinha a cabeça nua, os pés descalços, os meus cabelos compridos caíam-me sobre os ombros e toda a minha roupa se reduzia ao cilício que me tinham dado, a uma camisa muito áspera e àquela longa túnica que me chegava do pescoço aos pés. Assim fiquei vestida durante todo o dia e foi assim que apareci em todos os ofícios.
À noite, quando me retirei para a minha cela, ouvi que se aproximavam cantando as ladainhas; era a comunidade inteira, formada em duas filas. Entraram e fiquei de frente para elas. Puseram-me uma corda ao pescoço; meteram-me na mão uma tocha acesa e uma disciplina na outra. Uma religiosa pegou na corda por uma ponta e arrastou-me pelo meio das duas filas. A procissão seguiu o seu caminho até a um pequeno oratório interior consagrado a Santa Maria. Chegaram a cantar em voz baixa e saíram em silêncio. Quando cheguei ao pequeno oratório, que estava iluminado com duas luzes, mandaram-me pedir perdão a Deus e à comunidade pelo escândalo que tinha dado; a religiosa que me conduzia era quem me dizia, em voz baixa, o que eu tinha de repetir, e eu repetia-o palavra por palavra. Depois disto, tiraram-me a corda, despiram-me até à cintura, apanharam os meus cabelos espalhados pelos ombros e desviaram-mos para um dos lados do pescoço. Puseram-me na mão direita a disciplina que trazia na mão esquerda e começaram o Miserere. Percebi o que esperavam de mim, e fi-lo. Terminado o Miserere, a superiora exortou-me brevemente. Apagaram as luzes, as religiosas saíram e eu tornei a vestir-me.
Quando voltei à minha cela, senti dores violentas nos pés; olhei e estavam completamente ensaguentados por causa dos cortes com bocados de vidros que tiveram a maldade de espalhar pelo meu caminho.
Retractei-me publicamente, da mesma forma, nos dois dias seguintes; só no último acrescentaram um salmo ao Miserere.
No quarto dia devolveram-me o hábito de religiosa, quase com a mesma solenidade que é dada a esta cerimónia quando é pública.
No quinto, renovei os meus votos. Cumpri durante um mês o resto da penitência que me tinha sido imposta, após o que quase voltei a entrar na ordem normal da comunidade: recuperei o meu lugar no coro e no refeitório e ocupei-me, quando chegava a minha vez, das diferentes funções da casa. Mas qual não seria a minha surpresa quando os meus olhos viram aquela jovem amiga que se interessava pela minha sorte! Pareceu-me tão mudada como eu própria; estava tão magra que metia medo; tinha no rosto a palidez da morte, os lábios brancos e os olhos quase apagados.
«Irmã Ursula - disse-lhe em voz baixa - o que é que tem?
- O que tenho? - respondeu-me - Eu gosto de si e ainda me pergunta! Já era tempo de o seu suplício acabar; caso contrário, eu teria morrido.»
Se nos dois últimos dias da minha retractação não feri os pés foi porque ela teve a atenção de varrer os corredores às escondidas e de deitar para os lados os bocados de vidro. Nos dias em que estive condenada a jejuar a pão e água, ela privou-se de uma parte da sua ração, que envolvia num lenço branco e atirava para a minha cela. Tinham sorteado a religiosa que me havia de conduzir com a corda, e tinha-lhe calhado a ela. Teve a firmeza de ir procurar a superiora para lhe dizer que preferia morrer a ter de fazer tão infame e cruel acção. Felizmente esta jovem era de uma família muito considerada; gozava de uma grande pensão que empregava ao gosto da superiora. E encontrou, com algumas libras de açúcar e de café, uma religiosa para a substituir. Não me atreveria a pensar que a mão de Deus pesou sobre esta indigna; ficou louca e está encarcerada. Mas a superiora vive, governa, atormenta e está bem.
Era impossível que a minha saúde resistisse a tão grandes e duras provas; fiquei doente. Nesta circunstância, a Irmã Ursula mostrou claramente a amizade que me tinha; devo-lhe a vida. Não era um bem que me conservava, ela mesma mo disse muitas vezes; e, no entanto, não havia solicitude que não tivesse para comigo nos dias em que estava na enfermaria; nos outros dias não me descuravam graças pelo interesse que ela tinha por mim e pelas pequenas recompensas que dava às que me velavam, segundo eu tivesse ficado mais ou menos satisfeita. Pediu para ser ela a velar-me, mas a superiora negou-lho, sob o pretexto de que ela era muito frágil para suportar essa fadiga; isso foi um verdadeiro desgosto para ela. Todos os seus cuidados não puderam impedir que a minha enfermidade aumentasse; vi-me reduzida ao extremo e recebi os últimos sacramentos. Uns momentos antes tinha pedido para ver a comunidade reunida, e concederam-mo. As religiosas rodearam o meu leito com a superiora no meio delas; a minha jovem amiga estava à minha cabeceira, e pegava-me numa das mãos que regava com lágrimas. Pensaram que eu tinha qualquer coisa para dizer e sentaram-me, mantendo-me direita com a ajuda de almofadas. Então, dirigindo-me à superiora, pedi-lhe que me desse a sua bênção e que esquecesse as faltas que eu tinha cometido; pedi perdão a todas as minhas companheiras pelo escândalo que tinha dado. Tinha feito que me dessem uma infinidade de bagatelas que adornavam a minha cela ou que eram do meu uso particular, e pedi à superiora que me permitisse dispor delas; consentiu, e eu dei-as às que a tinham ajudado quando me fecharam no calabouço. Pedi à religiosa que me tinha levado pela corda no dia da minha retractação pública que se aproximasse e disse-lhe, abraçando-a e mostrando-lhe o meu rosário e o meu crucifixo: «Querida irmã, lembre-se de mim nas suas orações e esteja segura de que não me esquecerei de si perante Deus...» Por que não me levou Deus nesse momento? Ia para Ele sem inquietação. É uma felicidade tão grande, e quem pode esperar que aconteça duas vezes? Quem sabe o que me espera no último momento? E, no entanto, terei de chegar lá. Se Deus quisesse renovar-me os sofrimentos e conceder-mo tão plácido como foi então! Via o céu aberto, e sem dúvida estava-o; pois a consciência não se engana nestes momentos, e prometia-me uma felicidade eterna.
Quando me ministraram os sacramentos caí numa espécie de letargia; durante toda aquela noite perderam as esperanças. Vinham de vez em quando tomar-me o pulso; eu sentia mãos que me percorriam a cara e ouvia várias vozes que diziam, como se estivessem muito longe: «A febre voltou a subir... Tem o nariz frio... Não chegara a amanhã... O rosário e o crucifixo são para si...» E uma voz triste que dizia: «Afastem-se, afastem-se; deixem-na morrer em paz; não a atormentaram o suficiente?» Um momento muito doce, para mim, foi aquele em que saí da crise e abri os olhos e me encontrei nos braços da minha amiga. Não me tinha deixado; tinha passado a noite a encomendar-me, repetindo as preces dos agonizantes, fazendo-me beijar o crucifixo e beijando-o ela também, depois de o ter afastado dos meus lábios. Pensou, ao ver-me abrir tanto os olhos e lançar um profundo suspiro, que era o último; e pôs-se a gritar e a chamar a sua amiga dizendo: «Meu Deus, tende piedade dela e de mim! Meu Deus, recebei a sua alma! Querida amiga, quando estiver ante Deus lembre-se da irmã Ursula...» Olhei para ela sorrindo tristemente, deitei uma lágrima e apertei-lhe a mão. O senhor B... chegou nessa altura; é o médico da casa. É um homem hábil, segundo dizem, mas um déspota, orgulhoso e duro. Afastou com violência a minha amiga. Tomou-me o pulso e tocou na minha pele. Estava acompanhado pela superiora e as suas favoritas; fez algumas perguntas monossilábicas sobre o que se tinha passado e disse logo: «Vai sair desta.» E olhando para a superiora, a quem aquilo não tinha agradado, acrescentou: «Sim, senhora, vai sair desta; a pele está bem, a febre baixou e a vida começa a voltar-lhe aos olhos.»
A cada uma destas palavras a alegria aumentava no rosto da minha amiga, e no rosto da superiora e das suas companheiras nem sei que tristeza, só dissimulada por obrigação.
«Senhor - disse-lhe -, não quero viver.
-Tanto pior para si», respondeu-me. Deu algumas ordens e saiu. Disse-se que, durante a minha letargia, eu tinha dito muitas vezes: «Querida madre, vou reunir-me a si e contar-lhe-ei tudo.» Aparentemente, dirigia-me à antiga superiora, estou certa disso. Não dei o retrato dela a ninguém, pois queria levá-lo comigo para a sepultura.
O prognóstico do senhor B... confirmou-se; a febre diminuiu e suores abundantes acabaram com ela. Já não tinham dúvidas quanto à minha cura. Fiquei bem, com efeito, mas a minha convalescença foi muito longa.
Estava escrito que eu tinha de passar, nesta casa, por todos os sofrimentos que é possível experimentar. A maldade tinha estado presente durante a minha doença. A irmã Ursula quase não me tinha deixado, e quando comecei a recobrar as forças as dela faltaram-lhe, as digestões tornaram-se-lhe difíceis e, depois das refeições, tinha desmaios que, às vezes, duravam um quarto de hora. Quando isso acontecia, parecia morta; o olhar apagava-se, um suor frio cobria-lhe a fronte e reunia-se em gotas que lhe rolavam pelas faces; os braços, imóveis, colados às costelas; só se sentia um pouco aliviada quando a desapertavam e lhe afastavam a roupa. Quando voltava a si dos desfalecimentos, a sua primeira ideia era procurar-me a seu lado, onde me encontrava sempre; algumas vezes, quando lhe restava um pouco de conhecimento e de sentidos, chegava a procurar-me com a mão à sua volta, sem abrir os olhos. Este acto era tão inequívoco que algumas religiosas que pegavam naquela mão que tacteava, ao não serem reconhecidas, já que a mão continuava imóvel, diziam-me: «Irmã Susana, é a si que procura; aproxime-se pois...» Eu aproximava-me dos seus joelhos, atraía a mão dela para mim e deixava-a ficar assim até ao fim do desmaio; quando já tinha passado, ela dizia-me:
«Bem, irmã Susana! Sou eu quem vai, a irmã fica; eu vou vê-la primeiro, e falar-lhe-ei de si. Vai ouvir-me a chorar. Se existem as lágrimas amargas, também existem as doces, e se lá em cima se ama por que é que não se chora?» Então descansava a cabeça no meu colo; vertia lágrimas abundantes e acrescentava: «Adeus, irmã Susana; adeus, minha amiga. Quem partilhará as suas penas quando eu já aqui não estiver? Quem?... Ai, querida amiga, como me compadeço de si! Morro, sinto que estou a morrer. Se a irmã for feliz, quanta pena me daria morrer!»
O estado dela assustava-me. Falei com a superiora. Eu queria que a levassem para a enfermaria, que a dispensassem dos ofícios e das outras tarefas penosas da casa, que chamassem o médico. Mas respondiam-me sempre que não era nada, que os desfalecimentos passariam por si mesmos e que a querida irmã Ursula não pedia outra coisa senão que a deixassem cumprir os seus deveres e continuar a vida normal. Um dia, depois das matinas, a que tinha assistido, não voltou a aparecer. Pensei que devia estar muito mal. No fim do ofício da manhã, corri para a cela dela. Encontrei-a deitada na cama, completamente vestida. Disse-me: «Está aí, querida amiga? Já suspeitava de que não tardaria a aparecer e estava à sua espera. Oiça-me. Que impaciente estava com a sua chegada! O meu desmaio foi tão forte e tão longo que pensei que não voltava a vê-la. Tome, esta chave é do meu oratório; abra o armário e tire a tabuinha que divide em duas a gaveta de baixo. Atrás da tabuinha está um pacote com papéis; nunca fui capaz de decidir separar-me deles, por muito perigo que corresse ao guardá-los e por maior que fosse a dor que sentia ao lê-los. Por desgraça, estão quase todos esborratados pelas minhas lágrimas. Queime-os quando eu morrer.»
Estava tão fraca e tão cansada que não pôde pronunciar duas palavras seguidas ao dizer-me isto; detinha-se quase a cada sílaba e, para mais, falava tão baixo que me custava ouvi-la, ainda que a minha orelha estivesse quase colada à sua boca. Peguei na chave e apontei para o oratório; disse que sim com a cabeça. Então, pressentindo que a ia perder, e convencida de que a doença dela era consequência da minha, da tristeza que tinha experimentado ou dos cuidados que me tinha dispensado, comecei a chorar e a afligir-me muito. Beijava-lhe a testa, os olhos, o rosto, as mãos; pedia-lhe perdão. No entanto, ela estava distraída e não me ouvia. Uma das suas mãos descansava na minha cara e acariciava-me; creio que já não me via, talvez pensasse que já me tinha ido embora, pois chamou-me.
«Irmã Susana?»
Eu disse-lhe: «Estou aqui.
- Que horas são?
- Onze e meia.
- Onze e meia! Vá comer; vá e volte depois.»
Tocou a chamada para o almoço e tive de a deixar. Quando cheguei à porta, voltou a chamar-me e eu voltei. Fez um esforço para me dar a face; eu beijei-a. Pegou na minha mão e apertou-a. Parecia que não podia, que não queria deixar-me: «E, no entanto, é preciso - disse largando-me -, é Deus que o quer. Adeus irmã Susana. Dê-me o meu crucifixo.» Pus-lho entre as mãos e saí.
Estavam quase a acabar de comer. Dirigi-me à superiora e falei-lhe, na presença de todas as religiosas, do perigo em que estava a irmã Ursula. Pressionei-a para que julgasse por ela própria. «Bem!», disse ela, -É preciso ir vê-la.» Subiu, acompanhada de algumas outras, e eu segui-as. Entraram na cela, mas a pobre irmã já não existia. Estava estendida na cama, completamente vestida, com a cabeça inclinada na almofada, a boca entreaberta, os olhos fechados e o crucifixo nas mãos. A superiora olhou para ela friamente e disse: «Está morta. Quem podia acreditar que o seu fim estava tão próximo? Era uma excelente jovem. Mandem tocar os sinos por ela e amortalhem-na.»
Fiquei sozinha à sua cabeceira. Não sei pintar-lhe a minha dor, apesar de lhe invejar a sorte. Aproximei-me dela, chorei-a, beijei-a várias vezes e tapei-lhe o rosto com o lençol, pois a sua expressão começava a alterar-se. Depois, pensei fazer o que me tinha pedido. Para não ser interrompida nesta ocupação, esperei até toda a gente estar no ofício; abri o oratório, tirei a tábua e encontrei um rolo de papéis bastante grande que queimei quando a noite chegou. Esta jovem foi sempre melancólica; não me lembro de a ter visto sorrir, excepto uma vez, durante a sua doença.
Assim, pois, fiquei só naquela casa e no mundo, já que não conhecia ninguém que se interessasse por mim. Não tinha voltado a ouvir falar do advogado Manouri; pensei que tinha desanimado com as dificuldades ou que, distraído com as diversões ou com o trabalho, as ofertas que me tinha feito já estavam longe da sua memória, e não o censurava: tenho um carácter propenso à indulgência; posso perdoar tudo aos homens, excepto a injustiça, a ingratidão e a falta de humanidade. Desculpava, pois, o advogado Manouri tanto quanto podia, e também todas essas pessoas mundanas que tinham mostrado um interesse tão vivo pelo meu processo e para quem eu já não existia. Também o desculpava a si, senhor marquês, quando os nossos superiores eclesiásticos fizeram uma visita à casa.
Quando isto acontece, entram, percorrem as celas, interrogam as religiosas, pedem contas da administração temporal e espiritual; e, segundo o interesse que têm pelas suas funções, reparam ou aumentam a desordem. Voltei, pois, a ver o honesto e duro senhor Hébert, com os seus dois jovens e compassivos acólitos. Aparentemente, lembravam-se do estado deplorável em que uma vez tinha comparecido perante eles, e os olhos humedeceram-se-lhes; notei nos seus rostos a ternura e a alegria. O senhor Hébert sentou-se e fez-me sentar à frente dele; os seus dois companheiros ficaram de pé atrás da cadeira; os olhares estavam cravados em mim. O senhor Hébert disse-me:
«Pois bem, irmã Susana, como se portam agora consigo?»
Respondi-lhe: «Esquecem-me, senhor.
- Tanto melhor.
- É tudo o que desejo; mas tenho um pedido importante a fazer-lhe, que é o de chamar aqui a minha superiora.
- Para quê?
- Para que se alguém lhe fizer uma queixa dela não me possa acusar a mim.
- Compreendo; mas diga-me tudo o que sabe.
- Senhor, suplico-lhe que a mande chamar, para que oiça ela mesma as suas perguntas e as minhas respostas.
- Continue a falar.
- Senhor, vai-me perder.
- Não, não tema nada; a partir de hoje já não está sob a autoridade dela. Antes do final da semana será transferida para Santa Eutrópia, perto de Arpajon. Tem um bom amigo.
- Um bom amigo, senhor? Não conheço ninguém.
- O seu advogado.
- O senhor Manouri?
- Ele mesmo.
- Não pensei que ainda se lembrasse de mim.
- Foi visitar as suas irmãs; encontrou-se com o senhor arcebispo, com o primeiro presidente, com todas as pessoas conhecidas pela sua piedade; dotou-a da casa que acabo de mencionar, e já falta pouco para sair daqui. Assim, pois, se tem conhecimento de alguma desordem, pode informar-me sem se comprometer; sou eu que lho ordeno pela santa obediência.
- Não conheço nenhuma.
- Como! Foram cometidas algumas medidas para consigo depois de ter perdido o processo?
- Pensaram, tiveram de pensar que eu tinha cometido uma falta retractando-me dos meus votos; e fizeram-me pedir perdão a Deus por isso.
- São as circunstância desse perdão que eu quero saber...» Ao dizer isto, abanava a cabeça, franzia as sobrancelhas
e eu soube que só dependia de mim devolver à superiora uma parte dos golpes de disciplina que me mandou dar; mas não era esse o meu desejo. O arcediago percebeu que não saberia nada por mim, e saiu recomendando-me segredo daquilo que me tinha dito sobre a minha transferência para Santra Eutrópia de Arpajon. Como o bom senhor Hébert ia sozinho pelo corredor, os seus dois companheiros voltaram-se e saudaram-me com um ar muito afectuoso e doce. Não sei quem são, mas queira Deus conservar-lhes este carácter terno e misericordioso que é tão raro no estado deles e que tanto convém aos depositários das debilidades humanas e aos intercessores da misericórdia de Deus. Pensei que o senhor Hébert estivesse ocupado a consolar, interrogar ou repreender outra religiosa, quando ele voltou a entrar na minha cela. Disse-me:
«De onde conhece o senhor Manouri?
- Do meu processo.
- Quem lhe deu o nome dele?
- A senhora presidente ***.
- Teve de falar muitas vezes com ele durante o seu processo?
- Não, senhor, vi-o muito poucas vezes.
- Como é que o informava?
- Por meio de algumas memórias escritas pelo meu punho.
- Tem cópia dessas memórias?
- Não, senhor.
- Quem é que lhe fazia chegar essas memórias?
- A senhora presidente ***.
- De onde a conhece?
- Conheci-a através da irmã Ursula, minha amiga e parente dela.
- Voltou a ver o senhor Manouri desde que perdeu o processo?
- Uma vez.
- É muito pouco. Não lhe escreveu?
- Não, senhor.
- A irmã escreveu-lhe?
- Não, senhor.
- Sem dúvida que vai notificá-la daquilo que fez por si. Ordeno-lhe que não o veja no locutório; e se lhe escrever, directa ou indirectamente, ordeno-lhe que me mande a carta sem a abrir. Percebeu bem, sem a abrir.
- Sim senhor, obedeço-lhe.
A desconfiança do senhor Hébert feriu-me, quer fosse dirigida a mim ou ao meu benfeitor.
O senhor Manouri veio a Longchamp naquela mesma tarde. Mantive a palavra dada ao arcediago e recusei falar-lhe. No dia seguinte enviou-me uma carta pelo seu emissário; eu recebi a carta e mandei-a, sem a abrir, ao senhor Hébert. Era terça-feira, se bem me lembro. Eu continuava a esperar, com impaciência, o cumprimento da promessa do arcediago e o efeito das diligências do senhor Manouri. Passaram quarta-feira, quinta-feira e sexta-feira sem que eu soubesse nada. Quão longos me pareceram esses dias! Temia que algum obstáculo se tivesse interposto e tivesse transtornado tudo. Não ganhava a liberdade, mas mudava de prisão, e isso já era alguma coisa. Um primeiro acontecimento feliz faz nascer em nós a esperança de outro; talvez seja essa a origem do provérbio «não há mal que sempre dure...».
Como conhecia as companheiras que ia deixar, não me custava supor que podia ganhar alguma coisa vivendo com outras prisioneiras; fosse como fosse, não podiam ser nem piores nem mais mal intencionadas. No sábado de manhã, às nove horas, houve um grande movimento na casa; é preciso pouca coisa para alterar as religiosas. Iam e vinham, falando baixo. As portas dos quartos abriam-se e fechavam-se, o que é, como pode ver até aqui, o sinal das revoluções monásticas. Eu estava sozinha na minha cela e esperava; o coração batia-me com força. Escutava atrás da porta, olhava pela janela, agitava-me sem saber o que fazia. Dizia a mim mesma, tremendo de alegria: «Vêm buscar-me; falta pouco para me ir embora...», e não me enganava.
Apareceram-me duas pessoas desconhecidas; eram uma religiosa, e a irmã porteira de Arpajon. Em poucas palavras contaram-me o motivo da sua visita. Peguei apressadamente no pequeno espólio que me pertencia e atirei-o, feito uma trouxa, para o avental da irmã porteira, que o meteu numa mala. Não pedi para ver a superiora; a irmã Ursula já não existia, assim eu não abandonava ninguém. Desci e abriram-me as portas, depois de terem inspeccionado o que eu levava. Subi para uma carruagem e partimos.
O grande vigário e os seus dois jovens eclesiásticos, a senhora presidente *** e o senhor de Manouri tinham-se reunido com a superiora, e informaram-na da minha saída. Enquanto íamos a caminho, a religiosa dava-me informações sobre a casa, e a irmã porteira acrescentava, como um estribilho a cada frase de elogio ao meu novo convento: «É a pura verdade!» Felicitava-se por ter sido escolhida para me ir buscar e dizia que queria ser minha amiga; por causa disso confiou-me alguns segredos e deu-me alguns conselhos sobre a minha conduta. Estes conselhos eram, aparentemente, para uso dela, mas não serviam para mim. Não sei se conhece o convento de Arpajon. É um edifício quadrado, um dos lados dá para a estrada real e o outro dá para o campo e para os jardins. Em cada janela da primeira fachada havia uma, duas ou três religiosas; esta única circunstância disse-me mais sobre a ordem que reinava na casa do que tudo aquilo que a religiosa e a companheira me tinham contado. Pareciam conhecer a carruagem em que íamos, pois num abrir e fechar de olhos desapareceram todas as cabeças com véus, e cheguei à porta da minha nova prisão. A superiora correu para mim com os braços abertos, abraçou-me, pegou-me na mão e levou-me para a sala da comunidade, onde já estavam algumas religiosas e onde, depois, apareceram as outras.
Esta superiora chama-se senhora Não posso resistir ao desejo de a descrever antes de continuar. É uma mulherzinha gorda, mas rápida e viva nos movimentos; a sua cabeça nunca está quieta sobre os ombros; há sempre alguma coisa que tilinta entre os seus vestidos; o seu rosto é mais bonito que feio; o olho direito está mais acima e é maior que o outro, e ambos estão cheios de fogo e distraídos. Quando anda, balança os braços para a frente e para trás. Quando quer falar, abre a boca antes de ordenar as ideias, por isso tartamudeia um pouco. Quando está sentada, agita-se no cadeirão, como se alguma coisa a incomodasse; esquece-se da compostura; levanta a touca para se coçar e cruza as pernas. Se nos pergunta alguma coisa, respondemos-lhe, mas ela já não ouve; fala-nos, perde-se, detém-se de repente, não se lembra de onde é que ia, aborrece-se e chama-nos tonta, estúpida, imbecil, se não lhe recordamos o assunto de que estava a falar. Tão depressa está íntima e nos trata por tu como se torna imperiosa e altiva até chegar ao desprezo; os seus momentos de dignidade são curtos, e é compassiva e dura alternadamente. O seu rosto desordenado mostra a falta de ordem da sua mente e a desigualdade do seu carácter; a ordem e a desordem sucedem-se na casa. Havia dias em que tudo estava baralhado: as pensionistas com as noviças, as noviças com as religiosas, iam para os quartos umas das outras, tomavam juntas chá, café, chocolate, licores, o ofício fazia-se na mais indecente das pressas, e, no meio deste tumulto, muda subitamente a cara da superiora, toca o sino, todas se retiram, se fecham, o mais profundo silêncio sucede ao barulho, aos gritos e ao tumulto, e podia pensar-se que toda a gente tinha morrido de repente. Então, uma religiosa comete a mais pequena das faltas, e ela chama-a à sua cela, trata-a com dureza, manda-a despir-se e chicotear-se vinte vezes com a disciplina; a religiosa obedece, despe-se, pega na disciplina, flagela-se. E, mal deu os primeiros golpes, a superiora fica compassiva, arranca-lhe o instrumento de penitência, põe-se a chorar, diz que se sente muito infeliz por ter de impor castigos, beija-lhe a testa, os olhos, a boca, os ombros, acaricia-a, lisonjeia-a: «Que pele tão branca e tão suave! Que formosas carnes! Que lindo colo! Que pescoço tão bonito! Irmã Santa Agustina, não sejas tola, não tenhas vergonha e deixa cair este linho: sou mulher e tua superiora. Oh, que pescoço tão belo e tão firme! Como podia eu permitir que te magoasses com o castigo? Não, não, nada disso...» Volta a beijá-la, levanta-a, veste-a ela mesma, diz-lhe as coisas mais doces, dispensa-a do ofício e manda-a voltar à cela. Com estas mulheres nunca se pode estar tranquila; nunca se sabe se vão gostar ou não, nunca se sabe o que é preciso fazer ou não fazer. Nada tem regras: ou servem muita comida ou deixam-nos morrer de fome; a economia da casa baralha-se, as repreensões ignoram-se ou descuidam-se. Está-se sempre ou demasiado perto ou demasiado longe das superiores que têm um caracter assim; não há verdadeira distância nem medida. Passa-se da desgraça ao favor e do favor à desgraça, sem que se saiba porquê. Quer que dê um exemplo, com detalhe, da sua administração? Duas vezes por ano ia de cela em cela, e fazia voar pelas janelas todas as garrafas de licor que encontrava, e quatro dias depois, ela própria volta a dá-las à maioria das religiosas. E aqui estava aquela a quem eu tinha feito voto solene de obediência, pois levamos os votos connosco, mesmo quando mudamos de casa.
Entrei com ela. Levava-me abraçada pela cintura. Serviu-se uma refeição leve de fruta, massapão e compotas. O grave arcediago começou o meu elogio, que ela interrompeu dizendo: «Enganaram-se, enganaram-se, bem sei...» O grave arcediago quis continuar, e a superiora interrompeu-o dizendo: «Como é que se desfizeram dela? É a modéstia e a doçura em pessoa; vê-se logo que tem imensos dotes...» O grande vigário quis continuar as suas últimas palavras; a superiora voltou a interrompê-lo, dizendo-me ao ouvido: «Amo-a com loucura; quando estes pedantes se forem embora, mando chamar as irmãs e cantará qualquer coisinha, está bem?» Tive vontade de rir. O grave senhor Hébert ficou um pouco desconsertado; os seus dois jovens companheiros sorriam face à sua atrapalhação e à minha. No entanto, o senhor Hébert recuperou a compostura e as maneiras do costume, mandou-a sentar com rispidez, e impôs-lhe silêncio. Ela sentou-se, mas não estava quieta; revolvia-se no lugar, coçava a cabeça, ajeitava o vestido, ainda que estivesse em ordem, e bocejava.
E, entretanto, o arcediago perorava sensatamente sobre a casa que eu tinha deixado, sobre os desgostos que eu lá tinha tido, sobre a casa onde me encontrava agora, sobre o agradecimento que eu devia às pessoas que me tinham ajudado. Nesta altura olhei para o senhor Manouri, que baixou os olhos. Então a conversa generalizou-se, e terminou o penoso silêncio imposto à superiora. Aproximei-me do senhor Manouri e agradeci-lhe os serviços que me tinha prestado. Eu estava a tremer e balbuciava, sem saber que espécie de reconhecimento lhe havia de prometer. A minha perturbação, o meu embaraço, o meu enternecimento, pois estava verdadeiramente comovida, uma mistura de lágrimas e alegria, toda a minha atitude falaram-lhe melhor do que eu teria podido fazer. A resposta dele não foi muito mais ordenada do que tinham sido as minhas palavras, pois estava tão perturbado como eu. Mas compreendi que se sentiria muito mais do que recompensado se tivesse conseguido dulcificar o rigor da minha sorte; que, no entanto, se lembraria do que tinha feito com mais prazer do que eu; que o aborrecia muito que as suas ocupações, que o retinham no Palácio de Justiça em Paris, não lhe permitissem visitar amiúde o claustro de Arpajon; mas que esperava obter do senhor arcediago e da superiora a autorização para se informar sobre a minha saúde e a minha situação.
O arcediago não ouviu isto; mas a superiora respondeu: «Senhor, sempre que quiser; ela fará tudo o que desejar, e vamos tratar de reparar aqui as tristezas que lhe causaram...» E logo, em voz baixa, disse-me: «Minha filha, sofreste muito? Mas como é que essas criaturas de Longchamp tiveram coragem de te maltratar? Eu conhecia a tua superiora, fomos ambas pensionistas em Port-Royal: era a ovelha negra das outras. Teremos tempo para nos vermos e contas-me isso tudo...» E, dizendo estas palavras, pegava numa das minhas mãos e dava-lhe palmadinhas com a sua. Os dois jovens eclesiásticos também me felicitaram. Era tarde; o senhor Manouri despediu-se de nós; o arcediago e os companheiros foram para casa de ***, senhor de Arpajon, que os tinha convidado, e eu fiquei só com a superiora; mas isso não durou muito tempo, pois todas as religiosas, todas as noviças e todas as pensionistas apareceram de tropel: num instante vi-me rodeada por uma centena de pessoas. Não havia ninguém a quem ouvir ou a quem responder; havia semblantes de todos os géneros e palavras de todas as cores; no entanto, percebi que nem as minhas respostas nem a minha pessoa lhes desagradavam. Quando esta importuna conferência já durava algum tempo e a primeira curiosidade já estava satisfeita, a multidão diminuiu; a superiora afastou as que restavam e veio instalar-me, ela própria, na minha cela. Fez as honras à sua maneira; mostrava-me o oratório e dizia: «Aqui, a minha amiguinha rezará a Deus; quero que lhe ponham uma almofada neste tamborete para que os seus joelhinhos não se firam. Não há água benta nesta pia; esta irmã Doroteia esquece-se sempre de qualquer coisa. Experimente este cadeirão, veja se o acha cómodo...»
E, enquanto me dizia isto. fez-me sentar, pôs-me a cabeça no espaldar e beijou-me a testa. Depois, foi à janela, para ter a certeza de que os estores subiam e desciam facilmente; na minha cama abriu e fechou as cortinas, para ver se funcionavam bem. Examinou os cobertores: «São bons.» Pegou na almofada e, enquanto a apalpava, dizia: «Essa cabecinha ficará aqui muito bem... Estes lençóis não são finos, mas são os da comunidade... O colchão é bom.» Feito isto, voltou para ao pé de mim, abraçou-me e saiu. Durante esta cena eu dizia-me: «Que criatura tão louca!» E esperei dias bons e dias maus.
Instalei-me na minha cela. Fui ao ofício nocturno, ao jantar e ao recreio que se seguiu. Algumas religiosas aproximaram-se de mim, e outras afastaram-se; as primeiras contavam com a minha protecção junto da superiora; as segundas já estavam alarmadas com a predilecção que ela tinha mostrado por mim. Estes primeiros momentos foram passados em elogios recíprocos, em perguntas sobre a casa que eu tinha deixado, em análises ao meu carácter, às minhas inclinações, aos meus gostos e ao meu talento: sondavam-me por todos os lados; com essa espécie de pequenas emboscadas que estendem, tiram as conclusões mais exactas. Por exemplo, deixam cair uma observação de maledicência, e olham para nós; começam a contar uma história, e esperam que se lhes peça que continuem ou que se deixem ficar assim; se dizia uma palavra comum achavam-na encantadora, apesar de saberem que o não é; louvam-nos ou censuram-nos intencionalmente. Tentam penetrar nos nossos pensamentos mais secretos; interrogam-nos sobre as nossas leituras, oferecem-nos livros sagrados e profanos e observam a nossa escolha. Convidam-nos a infringir ligeiramente a regra; fazem-nos confidências e deixam cair algumas palavras sobre os defeitos da superiora; tudo se ouve e se repete. Deixam-nos e voltam logo a prestar-nos atenção; sondam os nossos pensamentos sobre os costumes, a piedade, o mundo, a religião, a vida monástica, sobre qualquer coisa. Destas reiteradas experiências sai um epíteto que nos caracteriza e que se acrescenta, como um apelido, ao nosso nome; a mim chamaram-me Santa Susana a reservada.
Na primeira noite recebi a visita da superiora. Veio despir-me. Foi ela que me tirou o véu e a touca e quem me penteou antes de me deitar. Foi ela quem me despiu. Disse-me muitas palavras doces e fez-me mil carícias que me perturbaram um pouco, não sei porquê, pois não significavam nada para mim, nem tão-pouco para ela; mesmo agora, reflectindo sobre isso, pergunto-me o que poderiam significar para nós. No entanto, falei no assunto ao meu director espiritual, que opinou que esta familiaridade, que a mim me parecia inocente e que ainda me parece, era uma coisa muito séria, e proibiu-me terminantemente de me prestar a tal coisa outra vez. A superiora beijou-me o colo, os ombros, os braços; louvou a firmeza das minhas carnes e a minha figura, e meteu-me na cama. Puxou os cobertores de um e de outro lado da cama, beijou-me os olhos, correu-me as cortinas e saiu. Esquecia-me de contar que ela supôs que eu estava cansada e permitiu-me ficar na cama até me apetecer.
Eu usei a autorização que ela me deu, e foi, creio, a única noite tranquila que passei no claustro, de que quase nunca tinha saído. No dia seguinte, às nove horas, ouvi bater suavemente à minha porta. Ainda estava deitada, mas respondi e entraram; era uma religiosa que me disse, com bastante mau humor, que era tarde e que a superiora me queria ver. Levantei-me, vesti-me rapidamente e fui ter com ela. «Bom-dia, minha filha» - disse-me -, «passou bem a noite? O café está aqui à sua espera há mais de uma hora; penso que deve estar bom. Tome-o depressa e logo conversaremos...» Enquanto dizia isto, punha um pano na mesa, desdobrava outro para mim, servia-me o café e adoçava-o. As outras religiosas faziam o mesmo umas às outras. Enquanto eu tomava o pequeno-almoço, falou-me nas minhas companheiras, pintou-as segundo a aversão ou o gosto que tinha por elas, deu-me mil mostras de amizade, fez-me mil perguntas sobre a casa que eu tinha deixado, sobre os meus pais, sobre os desgostos que eu tinha tido; louvou e censurou tudo o que estava à sua volta e não ouviu, em nenhum momento, as minhas respostas até ao fim. Não a contradisse em nada, e ela ficou muito contente com o meu talento, o meu discernimento e a minha discrição. Entretanto, aproximou-se uma religiosa, depois outra, depois uma terceira, uma quarta, uma quinta. Falou-se das fantasias desta madre, dos tiques daquela irmã, de todas as pequenas ridicularias das ausentes; estavam todas muito alegres. Havia um pequeno cravo num recanto da cela, e eu pousei nele os dedos distraidamente porque, recém-chegada à casa e sem conhecer as pessoas sobre quem diziam graças, não me divertia; e, ainda que estivesse mais a par, mesmo assim não me teria divertido, pois é preciso muito talento para brincar com graça, e, além de mais, quem é que não tem alguma coisa de ridículo? Enquanto elas se riam, eu tocava acordes e, pouco a pouco, fui atraindo as atenções. A superiora veio para ao pé de mim e, dando-me uma pancadinha no ombro, disse-me: «Vamos, Santa Susana, distraia-nos; toque primeiro e depois cante.» Eu fiz o que ela me mandou, executando algumas peças que sabia de memória; depois cantei alguns versículos dos salmos de Mondonville. «Está muito bem - disse a superiora - mas temos toda a santidade que desejamos na igreja. Estamos sós; estas são minhas amigas, e também vão ser as tuas. Canta-nos qualquer coisa mais alegre.» Algumas religiosas disseram: «Mas talvez não saiba outra coisa senão isto; está fatigada com a viagem, e é preciso tratar dela; desta vez chega.
- Não, não - disse a superiora - ela acompanha-se maravilhosamente e tem a voz mais bonita do mundo (e, com efeito, é uma bonita voz, apesar de ter mais timbre, doçura e flexibilidade que força e registo) e não a deixo em paz até que nos cante qualquer coisa.»
Eu estava um pouco ofendida com as palavras das religiosas; respondi à superiora que as irmãs já não se estavam a divertir. «Mas ainda me diverte a mim.» Era a resposta que me esperava. Cantei, pois, uma cançoneta bastante delicada, e todas aplaudiram, elogiaram-me, abraçaram-me, acariciaram-me e pediram outra: eram falsos cumprimentos, ditados pela resposta da superiora; a maioria das que ali estavam, se pudesse, tinha-me arrancado a voz e partido os dedos. As que talvez nunca tivessem ouvido música em toda a sua vida apressaram-se a louvar o meu canto com palavras tão ridículas como desagradáveis, que não agradaram à superiora.
«Calem-se!» - disse-lhes. - «Toca e canta como um anjo e quero que venha aqui todos os dias; noutro tempo eu própria soube um pouco de cravo, e quero que ela mo recorde.
- Ah, senhora! - disse-lhe eu. - Quando já se soube, não se esquece completamente...
- Com muito gosto, dá-me o teu lugar.»
Preludiou e tocou peças loucas, estranhas, desirmanadas como as suas ideias; mas pude ver, através de todos os defeitos da sua execução, que tinha uma mão infinitamente mais leve que eu. Disse-lho, pois gosto de louvar e nunca perco a oportunidade de o fazer com sinceridade: é tão agradável! As religiosas eclipsaram-se umas atrás das outras, e fiquei quase sozinha com a superiora, a falar de música. Ela estava sentada e eu de pé; pegava-me nas mãos e dizia-me, apertando-as: «E além de tocar bem, tem os dedos mais bonitos do mundo; veja, irmã Teresa...» A irmã Teresa baixava os olhos, corava e balbuciava; e, no entanto, quer eu tivesse os dedos bonitos ou não, estivesse a superiora enganada ou não ao observá-los, que importava isso à irmã? A superiora abraçava-me pela cintura e dizia que eu tinha uma figura linda. Tinha-me atraído a si; fez-me sentar nos seus joelhos e levantava-me a cabeça com as mãos, convidando-me a olhar para ela. Elogiava os meus olhos, a minha boca, as minhas faces, a minha pele; eu não respondia nada, mantinha os olhos baixos e deixava-me ir, como uma idiota, nestas carícias todas. A irmã Teresa estava distraída, inquieta, passeava de um lado para o outro, tocando em tudo embora não precisasse de nada, sem saber o que fazer, olhando pela janela e dizendo que tinha ouvido bater à porta. A superiora disse-lhe: «Santa Teresa, podes ir-te embora se estás aborrecida.
- Não estou aborrecida, senhora.
- Mas tenho de perguntar mil coisas a esta jovem.
- Acredito.
- Quero saber a sua história toda: como posso reparar as tristezas que lhe causaram se as ignoro? Quero que mas contes sem omitires nada; tenho a certeza de que me arrancarão o coração e de que chorarei, mas não importa. Santa Susana, quando poderei saber tudo?
- Quando quiser, senhora.
- Podia ser agora, se tivéssemos tempo. Que horas são?» A Irmã Teresa respondeu:
«São cinco horas, senhora, e vão tocar para vésperas.
- De qualquer maneira, começa.
- Mas, senhora, tinha-me prometido um minuto de consolo antes das vésperas. Tenho pensamentos inquietantes; gostava de abrir o coração à mamã. Se for para o ofício sem o fazer, não poderei rezar, estarei distraída.
- Não, não - disse a superiora. - Estás com ideias loucas. Aposto que sei o que se passa; falamos amanhã.
- Ai, querida madre! - disse a irmã Teresa, atirando-se aos pés da superiora e desfazendo-se em lágrimas - Tem de ser agora!
- Senhora! - disse eu à superiora, levantando-me dos seus joelhos, onde tinha continuado sentada até esse momento Conceda à minha irmã o que lhe pede; não prolongue a sua pena. Vou-me embora; terei muito tempo para satisfazer o interesse que tem por mim. E depois de ter ouvido a irmã Teresa ela deixará de sofrer.»
Fiz um movimento até à porta para sair. A superiora retinha-me com uma mão. A irmã Teresa, de joelhos, tinha-se apoderado da outra, beijava-a e chorava; e a superiora dizia-lhe:
«Verdadeiramente, Santa Teresa, és muito incómoda com as tuas inquietações; já te disse que isso me desagrada e me incomoda; não quero que me incomodem.
- Eu sei, mas não sou dona dos meus sentimentos; ainda que quissesse, não podia...»
Entretanto, eu saí e deixei a superiora com a jovem irmã. Não pude evitar olhar para ela na igreja; continuava abatida e triste. Os nossos olhos encontraram-se várias vezes, e pareceu-me que lhe custava manter o olhar. Quanto à superiora, estava a dormitar no seu banco.
O ofício despachou-se num abrir e fechar de olhos. O coro não era, pelo que pude ver, o lugar da casa onde mais gostavam de estar. Saíram com a rapidez e o gorjeio de um bando de pássaros a fugir de uma gaiola; e as irmãs fizeram pequenos grupos que corriam, riam e falavam. A superiora fechou-se na sua cela e a irmã Teresa ficou à porta da dela, como se tivesse curiosidade em saber o que eu ia fazer. Entrei na minha cela, e a porta da dela fechou-se, suavemente, quase logo a seguir. Ocorreu-me que aquela jovem estava com ciúmes de mim, e que tinha medo de que eu lhe roubasse o lugar que ocupava nas bondades e na intimidade da superiora. Observei-a durante vários dias, e quando tive a certeza das minhas suspeitas com os seus pequenos enfados, as suas birras pueris, a sua perseverança em me seguir os passos, em me examinar, em interpor-se entre mim e a superiora, em interromper as nossas conversas, desdenhar as minhas qualidades e ressaltar os meus defeitos, além da desordem na sua saúde, e mesmo no espírito dela, a sua dor e os seus prantos, fui ao seu encontro e disse-lhe: «Querida amiga, o que é que tem?» Não me respondeu; a minha visita causou-lhe surpresa e embaraço. Não sabia o que fazer e o que dizer.
«Não é justa comigo; diga-me sinceramente: teme que eu abuse da simpatia que a nossa madre tem por mim, que a afaste do seu coração. Fique tranquila, pois o meu carácter não é assim. Se alguma vez tiver a felicidade de alcançar algum domínio sobre o espírito dela...
- Já tem o que deseja; ela ama-a e hoje faz por si o que fez por mim no início.
- Pois bem; pode estar certa de que não me servirei da confiança que deposita em mim senão para fazer que a ame mais a si.
- Será que isso vai depender de si?
- E por que não?»
Em vez de me responder, atirou-se para os meus braços e disse-me, suspirando: «A culpa não é sua, bem sei e repito-o a mim mesma a todo o momento; mas prometa-me...
- Que quer que lhe prometa?
- Que...
- Acabe; farei tudo o que depender de mim.» Duvidou, tapou os olhos com as mãos e, com uma voz tão
baixa que eu mal podia ouvi-la, disse: «Veja-a o menos possível.»
Este pedido pareceu-me tão estranho, que não pude evitar responder-lhe: «E que diferença faz que eu veja muito ou pouco a nossa superiora? Não me preocupa que ela a veja a si a todo o momento. Não se deve importar de que eu faça outro tanto: não basta que eu lhe prometa que não a prejudicarei perante ela, nem a si nem a ninguém?»
Respondeu-me, simplesmente, com umas palavras que pronunciou de forma dolorosa, afastando-se de mim e atirando-se para cima da cama: «Estou perdida!
- Perdida? E porquê? Então acha que eu sou a criatura mais malvada do mundo!»
Estávamos nisto quando a superiora entrou. Tinha passado pela minha cela e não me tinha encontrado; correu, inutilmente, quase toda a casa, pois não se tinha lembrado de que eu podia estar com a irmã Teresa. Quando o soube, através das irmãs que tinha mandado procurarem-me, veio apressadamente. Tinha uma certa perturbação no olhar e no rosto, mas toda ela era tão pouco harmoniosa... A irmã Santa Teresa estava em silêncio, sentada na cama; eu estava em pé. Disse-lhe: «Minha querida madre, peço-lhe perdão por ter vindo aqui sem lhe ter pedido licença.
- É verdade - disse ela -. Teria sido melhor pedir.
- Mas esta querida irmã causou-me tal compaixão; percebi que estava a sofrer.
- E porquê?
- Digo-lhe? E por que não? É uma delicadeza que honra a sua alma e que mostra bem o grande afecto que tem por si. Os testemunhos de bondade que me tem dado alarmaram a ternura dela: teme que eu obtenha, no seu coração, preferência sobre ela; este sentimento de ciúme, além de mais honesto, tão natural e tão carinhoso para consigo, querida madre, chegou, ao que me pareceu, a ser cruel para a minha irmã, e quis tranquilizá-la.»
A superiora, depois de me ter ouvido, adoptou um ar severo e imponente, e disse-lhe:
«Irmã Teresa, amei-a e ainda a amo; não tenho queixas suas e não tem queixas minhas; mas não posso tolerar estas pretensões de exclusividade. Desfaça-se delas se não quer apagar o que me resta de afecto por si, e se se recorda da sorte da irmã Ágata...» Depois, voltando-se para mim, disse: «É aquela morena alta que viu no coro, à minha frente.» (Eu aparecia tão pouco, estava há tão pouco tempo naquela casa e era tão nova que ainda não sabia os nomes de todas as minhas companheiras.) Acrescentou: «Eu amava-a, quando a irmã Teresa entrou nesta casa comecei a ter carinho por ela. A irmã Ágata teve as mesmas inquietações e fez as mesmas loucuras; adverti-a, mas não se corrigiu. Vi-me obrigada a chegar a medidas severas que duraram muito tempo e que são contrárias ao meu carácter; pois todas elas sabem que sou boa e que quando castigo o faço com pesar.»
Depois, dirigindo-se a Santa Teresa, acrescentou: «Minha filha, não quero que se aborreça, já lhe disse; conhece-me, não me faça sair do meu carácter...» E, a seguir, disse-me apoiando uma mão no meu ombro: «Venha, Santa Susana, venha comigo.»
Saímos. A irmã Teresa quis seguir-nos, mas a superiora voltou a cabeça com desprezo, por cima do meu ombro, e disse-lhe num tom despótico: «Volte para a sua cela e não saia de lá sem minha autorização.» Ela obedeceu, fechou a porta com violência e deixou escapar algumas frases que fizeram estremecer a superiora, não sei porquê, pois não faziam sentido. Vi a cólera dela e disse-lhe: «Querida madre, se me quer fazer algum bem, perdoe à irmã Teresa; perdeu a cabeça, não sabe o que diz nem o que faz.
- Perdoá-la? Posso fazê-lo, mas que me dará em troca?
- Ah, querida madre! Serei tão ditosa para ter alguma coisa que lhe agrade e a sossegue?»
Ela baixou os olhos, corou e suspirou; na verdade, era como um amante.
Em seguida, disse-me, encostando-se indolentemente a mim como se se sentisse desfalecer: «Dê-me a sua testa, para que a possa beijar...» Inclinei-me e ela beijou-me a testa. Desde então, quando uma religiosa cometia uma falta, eu intercedia por ela e tinha a certeza de obter o seu perdão com um favor inocente; era sempre um beijo na testa, no pescoço, nos olhos, nas faces, na boca, nas mãos, no colo ou nos braços, mas mais frequentemente na boca; ela dizia que eu tinha um hálito puro, dentes brancos e lábios frescos e vermelhos. Na verdade, eu seria muito bela se pudesse merecer a mais pequena parte dos elogios que ela me fazia; se se tratava da minha testa, era branca, lisa e com uma forma encantadora; se se referia aos meus olhos, eram brilhantes; se às minhas faces, vermelhas e suaves; se às minhas mãos, pequenas e arredondadas; se ao meu pescoço, achava-o firme como uma pedra e com um contorno admirável; se aos meus braços, era impossível que alguém os tivesse mais bem torneados e mais redondos; quanto ao meu colo, nenhuma das irmãs o tinha tão bem formado e de uma beleza tão delicada e tão rara; que sei eu de tudo o que me dizia! Havia alguma verdade nos seus louvores; eu recusava muitos deles, mas não todos. Algumas vezes, enquanto me olhava dos pés à cabeça com um ar de complacência que nunca vi noutra mulher, dizia-me: «É uma grande felicidade que Deus a tenha chamado para o convento; com essa figura, no mundo, teria condenado quantos homens a vissem, e ter-se-ia condenado com eles. Deus, quando faz, faz bem.»
Entretanto, aproximávamo-nos da cela dela; já me dispunha a deixá-la ali, mas ela pegou-me na mão e disse: «É muito tarde para começar a sua história sobre Santa Maria e Longchamp, mas entre; dá-me uma pequena lição de cravo.» Segui-a. Num instante, abriu o cravo, preparou um livro e puxou uma cadeira, pois era muito rápida. Sentei-me. Ela pensou que eu podia ter frio; desatou uma almofada de uma cadeira e pô-la à minha frente, inclinou-se e pegou-me nos pés pondo-os sobre a almofada; depois, foi pôr-se atrás de mim apoiada nas costas da cadeira. Primeiro toquei uns acordes e depois executei algumas peças de Couperin, de Rameau e de Scarlatti. Entretanto ela tinha levantado uma ponta da minha touca, uma das suas mãos estava pousada no meu ombro nu e a ponta dos dedos repousava no meu pescoço. Suspirava, parecia oprimida e o seu hálito incomodava-me; com a mão que tinha no meu ombro apertava-me e depois largava-me, como se tivesse ficado sem forças e sem vida, e a cabeça dela caía sobre a minha. Na verdade, aquela louca tinha uma sensibilidade incrível e a mais viva afeição pela música. Nunca conheci ninguém que experimentasse com a música afectos tão singulares como os dela.
Assim nos entretínhamos de uma forma simples e doce quando, de repente, a porta se abriu violentamente; eu assustei-me, e a superiora também. Era a extravagante irmã Teresa: o hábito estava em desordem; olhava para nós com olhos esgazeados, dando-nos uma atenção estranha; os lábios tremiam-lhe e não conseguia falar. No entanto voltou a si e atirou-se aos pés da superiora; eu uni-me à prece dela e obtive, mais uma vez, perdão para ela. Mas a superiora avisou-a, com muita firmeza, de que o fazia pela última vez, pelo menos quanto a faltas deste género, e saímos as duas juntas.
Enquanto voltávamos para as nossas celas, disse-lhe: «Querida irmã, tenha cuidado ou ainda vai acabar por se indispor com a nossa madre. Não penso abandoná-la, mas se abusar da minha influência junto dela deixarei de poder fazer alguma coisa por si ou pelas outras. Em que está a pensar?» Não houve resposta. «O que teme em mim?» Não houve resposta. «A nossa madre não nos pode amar às duas de igual modo?
- Não, não - respondeu-me com violência -. Não pode ser; depressa me afastará e eu morrerei de dor. Ah! Por que veio? Não será feliz durante muito tempo, estou certa disso; e eu serei desgraçada para sempre.
- Mas - disse-lhe -, apesar de saber que é um grande desgosto perder a benevolência da superiora, conheço um ainda maior, que é merecê-lo: não tem nada de que se arrependa?
- Assim Deus o quisesse!
- Se se acusa interiormente de alguma falta, tem de a reparar; e o meio mais seguro é suportar com paciência a pena que lhe cause.
- Não posso, não posso; e, além disso, compete-lhe a ela castigar-me?
-A ela, irmã Teresa, a ela! Fala-se assim de uma superiora? Isso não está certo, está a esquecer-se de quem é. Tenho a certeza de que esta falta é mais grave do que qualquer outra de que se acuse.
- Assim Deus quisesse! - repetiu-me ela - Assim Deus quisesse!» E separámo-nos, ela para ir desolada para a sua cela e eu para pensar, na minha, na estranheza que me causavam estas mentes femininas.
Aqui está o efeito de se viver retirada. O homem nasceu para a vida em sociedade. Separem-no, ponham-no de lado, e as suas ideias confundem-se, o carácter distorce-se, mil afectos ridículos surgem-lhe no coração, nascem-lhe na mente pensamentos extravagantes, como as silvas em terra inculta. Ponham um homem numa selva e ele torna-se feroz; num claustro, onde a ideia de necessidade se une à de servidão, é ainda pior: sai-se de uma selva, mas não se sai de um convento. É-se livre na selva, mas é-se escravo no claustro. Talvez seja precisa mais força para resistir à solidão do que à miséria; a miséria avilta, o retiro deprava. É melhor viver na abjecção do que na loucura? Não me atrevo a escolher; há que evitar tanto uma coisa como a outra.
De dia para dia eu via crescer a ternura que a superiora me dedicava. Estava constantemente na cela dela ou, então, era ela que estava na minha. À menor indisposição mandava-me ir à enfermaria, dispensava-me dos ofícios, mandava-me deitar cedo ou proibia-me a oração da manhã. No coro, no refeitório, no recreio, encontrava maneira de me dar mostras da sua amizade; no coro, se se recitava algum versículo que tivesse algum sentimento afectuoso ou terno, ela cantava-o dirigindo-se a mim e olhava-me se era outra quem cantava; no refeitório, mandava-me sempre qualquer alimento delicado que lhe tivessem servido; no recreio, abraçava-me pela cintura e dizia-me as coisas mais doces e amáveis. Não havia nenhum presente que não partilhasse comigo: chocolate, açúcar, café, licores, tabaco, lenços, fosse o que fosse; tinha tirado da sua cela roupa, estampas, utensílios, móveis e uma infinidade de coisas agradáveis e cómodas, com o objectivo de adornar a minha; quase não podia sair um momento sem que, ao regressar, não encontrasse a minha cela enriquecida com mais alguma coisa. Ia agradecer-lhe, e ela sentia uma alegria impossível de descrever; abraçava-me, acariciava-me, sentava-me nos seus joelhos, contava-me as coisas mais secretas da casa e prometia-me, se eu a amasse, uma vida mil vezes mais fácil do que aquela que eu tinha tido no mundo. Depois disto, detinha-se, olhava-me com olhos enternecidos e dizia-me: «Irmã Susana, ama-me?»
- E como posso não a amar? Tinha de ter uma alma muito ingrata.
- Isso é verdade.
- Tem tanta bondade...
- Diga, antes, afeição por si.
E, ao dizer estas palavras, baixava os olhos, a mão que me abraçava apertava-me com mais força, a que tinha pousada no meu joelho apertava-se mais, atraía-me para ela, a minha cara ficava colada à dela, suspirava, recostava-se na cadeira, tremia, e dir-se-ia que tinha alguma coisa para me dizer, mas não se atrevia a fazê-lo. Deixava cair algumas lágrimas e, depois, dizia-me: «Ah, irmã Susana, não me ama!
- Não a amo, querida madre! -Não.
- Diga-me o que tenho de fazer para o provar.
- Tem de o adivinhar.
- Eu tento, mas não adivinho.
Entretanto tinha levantado a touca e tinha posto uma das minhas mãos no seu pescoço. Calou-se e eu fiz o mesmo. Parecia experimentar o maior dos prazeres. Convidava-me a beijar-lhe a testa, as faces, os olhos e a boca, e eu obedecia-lhe: não creio que houvesse mal nisto. Entretanto, o prazer aumentava, e, como eu não desejava outra coisa senão contribuir para a felicidade dela de forma tão inocente, continuava a beijar-lhe a testa, as faces, os olhos e a boca. A mão que tinha posta no meu joelho percorria-me a roupa, desde a ponta dos pés à cintura, pressionando-me aqui e ali. Murmurando, com a voz alterada e baixa, exortava-me a redobrar as carícias, e assim fiz. Por fim chegou um momento, não sei se de prazer se de dor, em que ficou pálida como a morte; os olhos fecharam-se-lhe, o corpo dela esticou-se com violência e os lábios fecharam-se de princípio, como que humedecidos por uma ligeira espuma; entreabriu logo a boca e pareceu-me que estava a morrer, pois soltou um grande suspiro. Levantei-me bruscamente; pensei que se sentia mal e quis sair para chamar alguém. Ela entreabriu debilmente os olhos e disse-me numa voz apagada: «Inocente! Isto não é nada; que vais fazer? Pára...» Olhei-a com os olhos muito abertos e espantados, indecisa sobre se devia ficar ou sair. Voltou a abrir os olhos; não conseguia falar. Disse-me, por sinais, para me aproximar e para me voltar a sentar nos seus joelhos. Não sei o que se passava comigo; tinha medo, tremia, o meu coração palpitava, tinha dificuldade em respirar e sentia-me oprimida, perturbada, agitada, assustada, parecia que as forças me abandonavam e que ia desfalecer; e, no entanto, não posso dizer que era tristeza aquilo que eu sentia. Aproximei-me dela; voltou a indicar-me, com a mão, que me sentasse nos seus joelhos, e eu fi-lo. Estava como morta, e eu como se fosse morrer. Ficámos as duas durante muito tempo nesse estado singular; se tivesse entrado alguma religiosa, teria apanhado um grande susto; teria imaginado que nos sentíamos mal ou que estávamos a dormir. Entretanto, esta boa superiora, pois é impossível ser tão sensível sem ser boa, pareceu voltar a si; continuava recostada na cadeira e mantinha os olhos fechados; mas o seu rosto estava animado pelas mais vivas cores. Pegou numa das minhas mãos e beijava-a enquanto eu lhe dizia: «Querida madre, pregou-me um grande susto!...» Ela sorriu com doçura, sem abrir os olhos. «Mas não lhe doía nada?
- Não.
- Pensei que sim.
- A inocente! A querida inocente! Como me agrada!» Ao dizer estas palavras, endireitou-se e voltou a acomodar-se na cadeira, abraçou-me pela cintura e beijou-me as faces com muita força; depois disse-me: «Que idade tem?
- Ainda não completei dezanove anos.
- Não é possível.
- Mas é verdade, querida madre.
- Quero conhecer a sua vida toda; conta-ma?
- Sim, querida madre.
- Toda?
- Toda.
- Mas pode vir alguém; vamos sentar-nos no cravo e dá-me uma lição.»
Sentámo-nos; mas não sei o que aconteceu, pois as mãos tremiam-me, o papel mostrava-me uma confusa mistura de notas e não consegui tocar. Disse-lho e ela começou a rir; tomou o meu lugar, mas foi ainda pior, pois mal podia suster os braços.
«Minha filha - disse-me -, vejo que não estás com disposição para me ensinar, nem eu para aprender; estou um pouco fatigada e tenho de descansar. Adeus. Amanhã, sem falta, quero saber tudo o que se passou nessa querida e pequena alma. Adeus...»
As outras vezes, quando eu saía, ela acompanhava-me até à porta, seguia-me com o olhar ao longo do corredor até eu chegar à minha cela, atirava-me um beijo com a mão e não voltava a entrar até que eu o tivesse feito. Desta vez, mal se levantou; tudo o que conseguiu fazer foi chegar ao cadeirão que estava ao lado da cama; sentou-se, apoiou a cabeça na almofada, atirou-me um beijo com as mãos, fechou os olhos, e eu saí.
A minha cela era quase em frente à da irmã Teresa; ela tinha a porta aberta e estava à minha espera. Deteve-me e disse:
«Santa Susana, vem da cela da nossa madre?
- Sim - disse-lhe.
- Esteve lá muito tempo?
- Tanto quanto ela quis.
- Não foi isso que me prometeu. Atreve-se a dizer-me o que esteve lá a fazer?»
Ainda que a minha consciência não me acusasse de nada, tenho de lhe confessar, senhor marquês, que a pergunta dela me perturbou; ela notou-o, insistiu, e eu respondi-lhe: «Querida irmã, talvez não acredite em mim, mas acredita na nossa querida madre, e eu vou-lhe pedir que a informe.
- Minha querida Santa Susana - disse-me com vivacidade -, não faça isso; não me quer fazer desgraçada, e ela nunca me perdoaria. Não a conhece: é capaz de passar da maior sensibilidade à maior ferocidade. Nem sei o que seria de mim. Prometa-me que não diz nada.
- É isso que quer?
- Peço-lho de joelhos. Estou desesperada; vejo claramente que tenho de me decidir e é isso que farei. Prometa-me não dizer nada.»
Levantei-a e dei-lhe a minha palavra; confiou em mim e não se enganou. Fechámo-nos ambas, ela na sua cela e eu na minha.
De novo na minha cela, estava pensativa. Quis rezar e não fui capaz; começava a fazer qualquer coisa e logo a deixava para fazer outra, que também trocava por uma terceira; as minhas mãos detinham-se por si mesmas, e eu estava tonta. Nunca tinha experimentado nada parecido; os meus olhos fechavam-se sozinhos, e dormi um pouco, apesar de eu nunca dormir durante o dia. Quando acordei, perguntei-me sobre o que se tinha passado entre mim e a superiora; examinei-me repetidamente e pensei entrever... mas eram ideias tão vagas, tão loucas, tão ridículas, que as afastei. O resultado das minhas reflecções foi que, talvez, aquilo fosse uma doença de que a superiora padecia; e logo me ocorreu que era possível que aquela doença se pegasse, que Santa Teresa tinha sido contagiada e que me ia acontecer o mesmo.
No dia seguinte, depois do ofício da manhã, a nossa superiora disse-me: «Santa Susana, hoje espero ficar a saber tudo o que se passou consigo. Venha.»
Fui. Ela fez-me sentar no seu cadeirão, ao lado da sua cama, e sentou-se numa cadeira um pouco mais baixa; eu fiquei um pouco acima dela, pois sou alta e estava mais elevada. Estava tão perto de mim que os meus joelhos ficaram cruzados com os dela, e apoiava-se com um cotovelo sobre a cama. Depois de um momento de silêncio, disse-lhe:
«Apesar de ser muito jovem, sofri muito; dentro de pouco tempo faz vinte anos que estou neste mundo, vinte anos de tristezas. Não sei se lhe consigo contar tudo nem se tem coragem para o ouvir. Tristezas em casa dos meus pais, tristezas no convento de Santa Maria, tristezas no convento de Longchamp, tristezas por todo o lado; querida madre, por onde quer que comece?
- Pelas primeiras.
- Mas, querida madre - disse-lhe -, isso será muito longo e muito triste, e não quero entristecê-la durante muito tempo.
- Não temas nada; gosto de chorar, para uma alma terna é delicioso poder verter algumas lágrimas. Também deves gostar de chorar; tu enxugarás as minhas lágrimas, eu enxugarei as tuas, e talvez sejamos felizes no meio dos teus sofrimentos. Quem sabe até onde pode levar o enternecimento?...» E, ao dizer estas últimas palavras, olhou-me de cima a baixo com os olhos já húmidos, pegou-me em ambas as mãos e aproximou-se mais de mim, de maneira que nos tocávamos uma à outra.
«Conta, minha filha - disse -, aguardo e sinto-me na maior disposição para me enternecer; penso que nunca tive, em toda a minha vida, um dia mais compassivo e afectuoso que este...»
Comecei, pois, o meu relato mais ou menos como acabo de o escrever. Não lhe sei dizer o efeito que produziu nela, os suspiros que exalou, as lágrimas que deitou, as manifestações de indignação que teve contra a crueldade dos meus pais, contra as horríveis filhas de Santa Maria, contra as de Longchamp; desagradar-me-ia muito que lhes acontecesse a mais pequena parte dos males que ela lhes desejou: não queria que tocasse num cabelo da cabeça do meu mais cruel inimigo. De quando em quando, interrompia-me, levantava-se, passeava e logo voltava a sentar-se no seu lugar; outras vezes, elevava os olhos e as mãos ao céu e escondia a cabeça entre os meus joelhos. Quando lhe falei do episódio do calabouço, no do meu exorcismo, da minha retratação pública, quase gritou; quando cheguei ao fim, calei-me e ela ficou durante algum tempo com o corpo reclinado sobre a cama, o rosto escondido no cobertor e os braços estendidos em cima da cabeça. Eu disse-lhe: «Querida madre, peço-lhe perdão pela pena que lhe causei; já a tinha prevenido disso, mas insistiu...» Ela respondeu-me com estas palavras:
«Malvadas e horríveis criaturas! Só nos conventos a humanidade pode corromper-se até esse ponto. Quando o ódio se une ao mau humor habitual, não se sabe onde as coisas podem chegar. Felizmente, eu sou doce e gosto de todas as minhas religiosas; umas mais que outras adoptaram o meu carácter, e todas se amam entre si. Mas como pôde resistir esta delicada saúde a tantos tormentos? Como não se partiram todos estes pequenos membros? Como não ficou destruída esta delicada máquina? Como não se apagou em lágrimas o brilho destes olhos? Cruéis! Prender estes braços com cordas!...» E pegava nos meus, braços e beijava-os. «Condenar este rosto sereno e encantador a cobrir-se, sem cessar, de nuvens de tristeza!...” E beijava-o. «Murchar as rosas destas faces!...» E acariciava-as com a mão e beijava-as. «Despojar esta cabeça! Arrancar estes cabelos! Esmagar de aflição esta testa!...» E beijava-me a cabeça, a testa, os cabelos. «Atreverem-se a rodear este colo com uma corda e a rasgar estes ombros com disciplinas!...» E destapava-me o colo e a cabeça; entreabria o decote do meu vestido, os cabelos caíam-me, espalhados, sobre os ombros descobertos, o meu peito estava seminu, e os beijos dela repartiam-se pelo meu pescoço, os meus ombros descobertos e o meu peito seminu.
Então percebi, pelo tremor que a sacudia, pelo transtorno da sua linguagem, o extravio dos olhos e das mãos, pelo seu joelho que se apertava entre os meus, o ardor com que me prendia e a violência com que os seus braços me enlaçavam, que a doença não tardaria a apossar-se dela. Não sei o que se passava comigo, mas sentia uma surpresa, um estremecimento e um desmaio que só aumentavam a minha suspeita de que aquele mal era contagioso.
Disse-lhe: «Querida madre, veja em que desordem me pôs; se entrasse alguém!
- Espera, espera - disse-me com uma voz afogeada ninguém entra...»
No entanto, eu tentava levantar-me e afastar-me dela, e dizia-lhe: «Querida madre, tenha cuidado; a sua doença está a manifestar-se. Permita que me afaste...» Eu queria afastar-me; queria, tenho a certeza, mas não podia. Sentia-me sem forças, os meus joelhos não me sustinham. Ela estava sentada e eu em pé; atraía-me para si e eu tinha medo de cair em cima dela e magoá-la. Sentei-me na beira da sua cama e disse-lhe:
«Querida madre, não sei o que se passa comigo; sinto-me mal.
- Eu também - disse ela -, mas descansa um pouco e vais ver que passa. Não é nada...»
Com efeito, a minha superiora recuperou a calma, e eu também. Estávamos ambas tombadas; eu com a cabeça apoiada numa das suas almofadas, e ela com a cabeça nos meus joelhos e a testa numa das minhas mãos. Ficámos assim durante uns momentos. Não sei em que pensava ela; quanto a mim, não pensava em nada, pois não podia; sentia uma debilidade total. Estávamos em silêncio, e a superiora foi a primeira a rompê-lo. Disse-me: «Susana, pelo que me disse pareceu-me que a sua primeira superiora lhe era muito querida.
- Muito.
- Ela não a amava mais do que eu, e, no entanto, ama-a mais... Não me responde?
- Eu era desgraçada e ela dulcificava as minhas penas.
- Mas de onde vem a sua repugnância pela vida religiosa? Susana, não me contou tudo.
- Perdoe-me, senhora.
- Não é possível que, sendo amável como é, pois, minha filha, é-o muito, nem sabe quanto, nunca ninguém lho tenha dito.
- Já mo disseram.
- E a pessoa que lho disse desagradava-lhe?
- Não.
- E não se afeiçoou a ela?
- De modo algum.
- Como! Nunca sentiu nada no seu coração?
- Nada.
- Como! Não foi uma paixão, secreta ou proibida pelos seus pais, que lhe causou aversão pelo convento? Confie em mim; sou indulgente.
- Não tenho, querida madre, nada para lhe contar sobre isso.
- Mas, mais uma vez, de onde vem a sua repugnância pela vida religiosa?
- Dela própria. Odeio os deveres, as ocupações, a clausura, a obrigação; parece-me que fui chamada para outra coisa.
- Por que pensa isso?
- Pelo fastio que me oprime; estou enfastiada.
- Mesmo aqui?
- Sim, querida madre, mesmo aqui, apesar de toda a bondade com que me trata.
- Mas sente dentro de si impulsos ou desejos?
- Nenhuns.
- Acredito; parece-me que tem um carácter tranquilo.
- Bastante.
- Frio, mesmo.
- Não sei.
- Não conhece o mundo?
- Conheço muito pouco.
- Então, que atractivo pode ter para si?
- Não sei explicar bem; mas algum deve ter.
- É a liberdade que lhe faz falta?
- Isso e talvez muitas outras coisas.
- E que coisas são essas? Minha amiga, fale-me de coração aberto; gostava de estar casada?
- Preferia-o a isto, certamente.
- Porquê essa preferência?
- Ignoro.
- Ignora? Mas, diga-me, que impressão lhe causa um homem?
- Nenhuma. Se é talentoso e fala bem, oiço-o com prazer; se é elegante, olho-o.
- E o seu coração continua tranquilo?
- Até agora, não senti emoção.
- Como! Quando os olhares de interesse coincidiram com os seus, não sentiu?...
- Aflição, algumas vezes; mas baixava os olhos.
- Sem nenhuma perturbação?
- Nenhuma.
- Os seus sentidos não lhe diziam nada?
- Não sei o que é a linguagem dos sentidos.
- E, no entanto, têm uma.
- É possível.
- E não a conhece?
- Em absoluto.
- Como!... É uma linguagem muito doce; gostava de a conhecer?
- Não, querida madre; de que me serviria?
- Para dissipar o enfado.
- Ou para o aumentar, talvez. E, além disso, que significado tem essa linguagem dos sentidos sem um objecto?
- Quando se fala, é sempre com alguém; é melhor, sem dúvida, do que falar sozinho, ainda que isso não esteja isento de prazer.
- Não percebo nada disso.
- Se quiseres, minha filha, falo-te com mais clareza.
- Não, querida madre, não. Não sei nada e prefiro não saber nada a adquirir conhecimentos que, talvez, me tornem mais desgraçada do que já sou. Não tenho desejos, e não quero procurar nenhum que não possa satisfazer.
- E por que não irias poder?
- E como?
- Como eu.
- Como a madre! Mas se nesta casa não há ninguém...
- Eu estou aqui, minha amiga; e também aqui está.
- Pois bem, que sou eu para si? O que é a madre para mim?
- Que inocente que é!
- Oh, é verdade, querida madre! Sou muito inocente e preferia morrer a deixar de o ser.»
Não sei o que estas últimas palavras podiam ter de desagradável para ela, mas fizeram-na mudar repentinamente de atitude; ficou séria e pareceu-me violenta; a mão, que tinha pousado em cima de um dos meus joelhos, primeiro deixou de o apertar e, depois, retirou-se; tinha os olhos baixos. Eu disse-lhe: «Querida madre, que foi que eu disse? Disse alguma coisa que a ofendeu? Perdoe-me. Fiz uso da liberdade que me concedeu; não meditei em nada do que lhe disse e, ainda que tivesse meditado, talvez o tivesse dito de forma pior. As coisas de que falámos são-me tão alheias! Perdoe-me...» E, dizendo estas palavras, deitei-lhe os braços ao colo e apoiei a cabeça no seu ombro. Ela pôs os braços à minha volta e abraçou-me com muita ternura. Ficámos assim alguns instantes; depois, recuperando a ternura e a serenidade, disse-me: «Susana, dorme bem?
- Muito bem - disse-lhe -, sobretudo desde há uns tempos para cá.
- Adormece logo?
- Com frequência.
- Mas quando não adormece logo em que pensa?
- Na minha vida passada, na minha vida futura, ou rezo a Deus, ou choro, que sei eu?
- E de manhã, quando acorda cedo?
- Levanto-me
- Logo?
- Logo.
- Não gosta de sonhar?
- Não.
- Nem de descansar na almofada?
- Não.
- Nem de gozar o suave calor da cama? -Não.
- Nunca?...»
Deteve-se nesta palavra, e com razão; o que me queria perguntar não estava certo, e talvez seja pior ainda eu dizê-lo, mas decidi não ocultar nada. «Nunca sentiu a tentação de olhar, com satisfação, quão bela é?
- Não, querida madre. Não sei se sou tão bela como diz; e, ainda que fosse, é-se belo para os outros e nunca para nós.
- Nunca lhe aconteceu passear as mãos por este pescoço, estes músculos, este ventre, estas carnes tão firmes, tão suaves e tão brancas?
- Oh, não, nada disso! Isso é pecado, e, se o tivesse feito, nem sei como haveria de o confessar...»
Não sei quanto mais tempo estivemos a falar, mas vieram avisá-la de que alguém a esperava no locutório. Pareceu-me que esta visita lhe desagradava, e que teria preferido continuar a falar comigo, apesar de não valer a pena recordar o que dizíamos. No entanto, separámo-nos.
Nunca a comunidade tinha sido tão feliz como desde que eu entrei. A superiora parecia ter perdido a desigualdade de carácter. Dizia-se que eu o tinha fixado. Inclusive, deu em meu favor vários dias de recreio, e o que se chamam «festas»; nestes dias come-se melhor do que é costume, os ofícios são mais curtos e o tempo que medeia entre eles é dedicado ao recreio. Mas este tempo feliz tinha de acabar para mim e para as outras.
À cena que acabo de descrever seguiram-se muitas outras parecidas que passarei sem contar. Eis a consequência da precedente:
A inquietação começava a apoderar-se da superiora; estava a perder a alegria, a gordura e o sono. Na noite seguinte, quando toda a gente dormia e a casa estava em silêncio, levantou-se. Depois de ter errado durante algum tempo pelos corredores, veio à minha cela. Tenho o sono leve e reconhecia-a. Deteve-se e, apoiando a testa na minha porta, fez barulho suficiente para me acordar, se eu estivesse a dormir. Fiquei em silêncio. Pareceu-me ouvir uma voz que se queixava, alguém que suspirava. Ao principio senti um arrepio e decidi-me logo a dizer -Ave». Em vez de me responder, alguém se afastava em passos rápidos. Voltou algum tempo depois; as queixas e os suspiros recomeçaram; voltei a dizer «Ave», e afastaram-se pela segunda vez. Tranquilizei-me e adormeci. Enquanto dormia, alguém entrou e sentou-se ao lado da minha cama; as cortinas estavam entreabertas. Esse alguém tinha uma velinha cuja chama me iluminava o rosto, e quem a segurava contemplava o meu sono. Isto foi, pelo menos, o que me pareceu quando abri os olhos; e essa pessoa era a superiora. Levantei-me subitamente; ela viu o meu espanto e disse-me: «Susana, tranquilize-se, sou eu...» Recostei-me de novo na almofada e disse-lhe: «Querida madre, o que faz aqui a esta hora? O que a trouxe? Por que não dorme?
- Não conseguia dormir - respondeu-me -, não consigo dormir muito tempo. Tenho sonhos terríveis que me atormentam; mal fecho os olhos, as penas que sofreu aparecem na minha cabeça; vejo-a nas mãos dessas desumanas, vejo-a com os cabelos espalhados pela cara. Vejo-a com os pés ensanguentados, com o archote na mão, a corda ao pescoço, e penso que vão dispor da sua vida. Estremeço, tremo, um suor frio espalha-se pelo meu corpo, e quero ir ajudá-la. Dou gritos, acordo e espero inutilmente que o sono volte. Foi isto que me aconteceu esta noite. Temi que o céu me anunciasse alguma desgraça para a minha amiga; levantei-me, aproximei-me da sua porta, escutei e pareceu-me que não dormia. Falou e eu fui-me embora. Voltei, tornou a falar e eu afastei-me outra vez. Voltei pela terceira vez e, quando pensei que estava a dormir, entrei. Já há algum tempo que estou ao seu lado, temendo despertá-la. Primeiro, pensei abrir as cortinas; queria ir-me embora, com medo de perturbar o seu repouso, mas não pude resistir ao desejo de ver se a minha querida Susana estava bem. Estive a contemplá-la: que bonita que é, mesmo a dormir!
- Querida madre, que boa que é!
- Apanhei frio, mas sei que não há nada a temer com a minha menina, parece-me que já posso dormir. Dê-me a sua mão.” Eu dei-lha. «Que pulso tão firme! Que regular! Nada a perturba.
- Tenho um sono tranquilo.
- Que feliz que é!
- Querida madre, vai continuar a arrefecer.
- Tem razão; adeus, linda amiga, adeus. Vou-me embora.» E, no entanto, não ia; continuava a olhar para mim.
Caíram-lhe duas lágrimas dos olhos. «Querida madre», disse-lhe eu, «o que tem? Está a chorar; como lamento ter-lhe falado das minhas penas!...» Nesse instante fechou a minha porta, apagou a vela e precipitou-se sobre mim. Abraçava-me, estava deitada sobre o cobertor, a meu lado, o rosto colado ao meu, as suas lágrimas molhavam-me a face, suspirava e dizia-me com uma voz lastimosa e entrecortada: «Querida amiga, tenha piedade de mim!
- Querida madre - disse-lhe -, o que se passa? Sente-se mal? Que hei-de fazer?
- Estou a tremer - disse -, sinto calafrios; invade-me um frio mortal.
- Quer que me levante e lhe ceda a minha cama?
- Não - disse-me ela -, não é preciso levantar-se; afaste só um pouco o cobertor para que eu me possa chegar a si; aqueço e recomponho-me.
- Querida madre - disse-lhe -, isso é proibido. Que dirão se souberem? Vi castigar religiosas por faltas muito menos graves. No convento de Santa Maria, uma religiosa foi uma noite à cela de outra, de quem era muito amiga, e nem lhe sei dizer o mal que se pensou daquilo. O director perguntou-me, algumas vezes, se nunca me propuseram dormir comigo, e recomendou-me severamente que não tolere tal coisa. Inclusive, falei-lhe nas carícias que me faz; eu acho-as muito inocentes, mas ele não pensa assim. Não sei como pude esquecer os conselhos dele; tinha pensado falar-lhe sobre isso.
- Querida amiga - disse ela -, está toda a gente a dormir à nossa volta e ninguém saberá de nada. Sou eu quem recompensa ou castiga; e ainda que o director o diga, não vejo que mal tem que uma amiga receba a seu lado alguém que está inquieta, que acordou e que veio ver, durante a noite e apesar do rigor da estação, se a sua bem-amada corria algum perigo. Susana, em casa dos seus pais nunca partilhou a cama com nenhuma das suas irmãs?
- Não, nunca.
- Se tivesse havido ocasião, não o teria feito sem escrúpulos? Se a sua irmã, alarmada e cheia de frio, lhe tivesse pedido um lugar ao seu lado, teria recusado?
- Creio que não.
- E não sou eu a sua querida madre?
- Sim, é, mas isto é proibido.
- Querida amiga, sou eu quem o proíbe às outras, e quem o permite a si e lho pede. Aqueço-me num instante e vou-me embora. Dê-me a sua mão...» Eu dei-lha. «Veja - disse ela -, toque; tremo, estremeço, estou como mármore...» E era verdade. «Oh, a querida madre vai ficar doente! - disse eu Mas espere, vou afastar-me para a beira da cama e a madre põe-se no lugar que está quente.» Pus-me de lado, levantei o cobertor e ela pôs-se no meu lugar. Que mal estava! Tinha um tremor geral em todos os seus membros; queria falar-me e chegar-se a mim; não conseguia articular palavra nem mexer-se. Dizia-me em voz baixa: «Susana, minha amiga, aproxime-se um pouco...» Estendeu os braços; eu voltei-lhe as costas; ela segurou-me com doçura e atraiu-me a si; passou o braço direito por baixo do meu corpo e o outro por cima, e disse-me: «Estou gelada; tenho tanto frio que até tenho medo de lhe tocar, temo causar-lhe algum mal.
- Querida madre, nada tema.»
Nesta altura, pôs umas das suas mãos sobre o meu peito e a outra à volta da minha cintura; os seus pés estavam debaixo dos meus, e eu apertava-os para os aquecer. E a querida madre dizia-me: «Ah, querida amiga! Veja como os meus pés aqueceram depressa, pois não há nada que os separe dos seus.
- Mas - disse-lhe eu - o que a impede de aquecer o resto da mesma maneira?
- Nada, se assim o deseja.»
Eu tinha dado a volta; ela tinha-se despido e eu ia fazê-lo, quando subitamente se ouviram duas violentas pancadas na porta. Surpreendida, saltei para um lado da cama, e a superiora para o outro; pusemo-nos à escuta, e ouvimos que alguém se afastava, em bicos de pés, até à cela vizinha. «Ah! - disse eu - é a irmã Teresa; deve tê-la visto passar no corredor e entrar aqui; deve ter ficado à escuta e ouviu a nossa conversa; o que é que ela não vai dizer?...» Eu estava mais morta que viva. «Sim, é ela - disse-me a superiora, irritada -, é ela, não tenho dúvida, mas tenho a certeza de que se vai lembrar durante muito tempo desta temeridade.
- Querida madre - disse-lhe -, não lhe faça mal!
- Susana - respondeu ela -, adeus, boa-noite. Volte a deitar-se e durma tranquila; dispenso-a da oração. Vou ver essa estouvada. Dê-me a sua mão...»
Estendi-lha de um lado para o outro da cama; ela levantou a manga que me cobria o braço, beijou-o a todo o comprimento, suspirando, desde os dedos até ao ombro; e saiu, assegurando que aquela temerária que se tinha atrevido a perturbá-la havia de se recordar do que tinha feito. Em seguida aproximei-me do outro lado da cama, até à porta, e fiquei à escuta. Entrou na cela da irmã Teresa. Estive tentada a levantar-me e a ir pôr-me entre a irmã Teresa e a superiora, se a cena chegasse a ser violenta. Mas estava tão perturbada e tão desgostosa que preferi ficar na cama, apesar de não dormir. Pensei que me ia tornar assunto das conversas da casa, que esta aventura, que em si mesma não tinha nada de extraordinário, ia andar de boca em boca, enfeitada com todos os pormenores desfavoráveis; que não ia ser pior ali do que tinha sido em Longchamp, onde me acusaram nem sei de quê; que a nossa falta chegaria ao conhecimento dos superiores, que a nossa madre seria substituída e que seríamos, as duas, severamente castigadas. Entretanto, tinha o ouvido à escuta e esperava com impaciência que a nossa madre saísse da cela da irmã Teresa. O assunto deve ter sido difícil de resolver, pois ela passou quase toda a noite lá. Como tinha pena dela! Estava em camisa, quase nua, e transida de cólera e de frio.
De manhã, tinha vontade de fazer uso da autorização que a superiora me tinha dado e ficar deitada; no entanto, achei melhor levantar-me. Vesti-me depressa e fui a primeira a chegar ao coro, onde a superiora e a irmã Teresa não apareceram, o que muito me agradou; primeiro, porque mal teria podido suportar, sem embaraço, a presença delas; depois, porque se a superiora lhe tinha dado licença para não ir ao ofício, devia ser porque a irmã Teresa tinha obtido um perdão que só devia ter sido concedido sob condições que me tranquilizavam. Estava certa; mal o ofício acabou, a superiora mandou-me chamar. Fui vê-la; ainda estava na cama e tinha um aspecto abatido. Disse-me: «Não me sinto bem e não dormi nada; Santa Teresa está louca; se isto voltar a acontecer, tenho de a mandar fechar.
- Querida madre - disse-lhe -, não a feche.
- Isso vai depender da conduta dela; prometeu que se portaria melhor e eu conto com isso. E a querida Susana, como se sente?
- Bem, querida madre.
- Descansou um pouco?
- Muito pouco.
- Disseram-me que foi ao coro; por que não ficou na cama?
- Não podia; e, além disso, pensei que era melhor...
- Não, não havia nenhum inconveniente. Mas sinto vontade de dormir um bocadinho; aconselho-a a fazer o mesmo, a menos que prefira aceitar um lugar aqui ao meu lado.
- Querida madre, estou-lhe infinitamente grata. Tenho o costume de dormir sozinha, e não consigo dormir com ninguém.
- Então vá. Não tenciono descer ao refeitório para comer, vêm-me servir aqui; talvez nem me levante durante todo o dia. Venha até cá com mais algumas outras a quem já mandei avisar.
- E a irmã Teresa virá? - perguntei.
- Não - respondeu-me.
- Isso não me desagrada.
- Porquê?
- Não sei, parece-me que tenho medo de a encontrar.
- Tranquiliza-te, minha filha; garanto-te que ela tem mais medo de ti que tu dela.»
Deixei-a e fui descansar. À tarde, voltei à sua cela, onde encontrei uma assembleia bastante numerosa das mais jovens e mais bonitas religiosas da casa; as outras já tinham feito a sua visita e tinham-se retirado. O senhor é um entendido em pintura; asseguro-lhe, senhor marquês, que era um quadro muito agradável de se ver. Imagine um grupo de dez ou doze pessoas, a mais jovem das quais teria uns quinze anos, e a mais velha não mais de vinte e três; uma superiora que roçava os quarenta, branca, fresca, louçã, meio sentada na cama, com uma papada que exibia com muito donaire, braços redondos e bem torneados, dedos afuselados e cheios de covinhas, olhos negros, grandes, vivos e ternos, quase nunca completamente abertos, meio fechados, como se à sua dona lhe custasse abri-los, lábios vermelhos como rosas, dentes brancos como leite, umas faces lindas, a cabeça muito agradável sobre uma almofada profunda e fofa, os braços estendidos comodamente para ambos os lados, com pequenos coxins debaixo dos cotovelos, para os apoiar. Eu estava sentada à beira da cama, e não fazia nada; outra estava num cadeirão, com um pequeno bastidor nos joelhos; outras, nas janelas, bordavam encaixes; no chão, em almofadas que tinham tirado das cadeiras, havia outras que cosiam, bordavam, fiavam ou desfiavam na roca. Umas eram loiras, outras morenas; eram todas diferentes, apesar de serem todas muito bonitas. E os seus caracteres eram tão variados como as suas fisionomias; aquelas estavam serenas, estas alegres, as outras sérias, melancólicas ou tristes. Todas trabalhavam, excepto eu, como lhe disse. Não era difícil distinguir as amigas das indiferentes ou das inimigas: as amigas estavam ao lado ou em frente umas às outras e, enquanto faziam o seu trabalho, conversavam, aconselhavam-se, olhavam-se furtivamente, estreitavam os dedos com o pretexto de passarem uma à outra um alfinete, uma agulha ou a tesoura. A superiora comtemplava-as; repreendia uma pela sua aplicação, a outra a ociosidade, a esta a indiferença, àquela a tristeza. Mandava que lhe mostrassem o trabalho e elogiava-o ou censurava-o; ajeitava o toucado a uma: «Este véu está demasiado para a frente... Este véu tapa-lhe muito o rosto, e não se lhe vêem bem as faces... Estas pregas assentam mal...» Distribuía a cada uma pequenas repreensões ou pequenas carícias.
Enquanto estávamos assim ocupadas, ouvi chamar suavemente à porta e fui abrir. A superiora perguntou-me:
«Santa Susana, volta?
- Sim, querida madre.
- Não falte. Tenho uma coisa importante a dizer-lhe.
- Volto já...»
Era a pobre Santa Teresa. Ficou um breve momento sem falar, e eu também. Depois, disse-lhe: «Querida irmã, estava à minha procura?
-Sim.
- Em que posso ajudá-la?
- Vou dizer-lhe. Caí em desgraça perante a nossa madre; pensei que me tinha perdoado, e tinha certas razões para pensar assim. No entanto, estão todas reunidas com ela menos eu e tenho ordem para ficar na minha cela.
- Quer entrar?
- Sim.
- Quer que eu peça autorização? -Sim.
- Espere, querida irmã, vou pedir.
- É verdade que fará isso por mim?
- Sem dúvida. De outro modo, por que havia de o prometer? E por que não o faria depois de o ter prometido?
- Ah! - disse ela, olhando-me ternamente - Perdoo-lhe. Perdoo-lhe a afeição que tem por si; possui todos os encantos, a alma mais bonita e o mais bonito dos corpos.”
Eu estava encantada por lhe poder prestar aquele pequeno serviço. Voltei a entrar. Durante a minha ausência outra tinha ocupado o meu lugar na beira da cama da superiora, e estava inclinada para ela, com o cotovelo apoiado entre as coxas, e mostrava-lhe o trabalho. A superiora, com os olhos quase fechados, dizia-lhe que sim ou que não quase sem a olhar, e eu estava de pé, a seu lado, sem que ela se desse conta. Não tardou a sair da sua ligeira distracção e a que tinha ocupado o meu lugar devolveu-mo; voltei a sentar-me; depois, inclinando-me suavemente para a directora, que se tinha endireitado um pouco sobre as almofadas, fiquei em silêncio, mas olhei para ela como se tivesse de lhe pedir uma graça. «Muito bem - disse-me ela -, o que se passa? Diga-me, o que quer? Será que lhe posso negar alguma coisa?
- A irmã Santa Teresa...
- Compreendo. Estou muito descontente com ela, mas Santa Susana intercede por ela e eu perdoo-lhe; vá dizer-lhe que pode entrar.»
Corri a dizer-lho. A pobre irmãzinha estava à porta; contei-lhe o que se tinha passado e ela entrou a tremer. Tinha os olhos baixos e levava uma musselina comprida que se lhe escapou das mãos quando deu o primeiro passo; apanhei o pano, peguei-lhe por um braço e levei-a à superiora. Ela pôs-se de joelhos, tomou uma das mãos da outra, que beijou lançando alguns suspiros e deitando uma lágrima, e logo se apoderou, também, de uma das minhas mãos, que uniu à da superiora e beijou ambas. A superiora indicou-lhe, com um gesto, que se levantasse e se sentasse onde quisesse; ela obedeceu. Serviram uma refeição leve. A superiora levantou-se; não se sentou connosco, mas passeava à volta da mesa, pousando a mão na cabeça de uma, deitando-a suavemente para trás e beijando-lhe a testa, levantando a touca a outra, pondo-lhe a mão no pescoço e permanecendo apoiada nas costas do cadeirão; passava a uma terceira e acariciava-a com a mão, ou punha-a na boca, provando sem vontade a comida que nos tinham servido e distribuindo-a a esta e àquela. Depois de ter circulado desta forma durante algum tempo, deteve-se à minha frente, olhando-me muito afectuosa e ternamente; as outras tinham baixado os olhos, como se temessem magoá-la ou distraí-la, sobretudo a irmã Santa Teresa. Terminada a refeição, sentei-me no cravo e acompanhei duas irmãs que cantavam sem método, mas com gosto, bom timbre e boa voz; eu também cantei enquanto tocava. A superiora estava sentada ao pé do cravo, e parecia experimentar o maior prazer em ouvir-me e ver-me; as outras ouviam em pé sem fazerem nada, ou tinham pegado outra vez nos seus trabalhos. Aquela tarde foi deliciosa.
Depois, todas se retiraram. Preparava-me para sair com as outras, quando a superiora me deteve: «Que horas são?», perguntou-me.
«São quase seis horas.
- Estão a chegar algumas das nossas discretas (1). Reflecti no que me disse sobre a sua saída de Longchamp; comuniquei-lhes as minhas ideias, elas aprovaram-nas, e temos uma proposta para lhe fazer. É impossível que não tenhamos êxito, e, se tivermos, isso supõe um pequeno benefício para esta casa e certa tranquilidade para si.»
Às seis entraram as discretas; nas casas religiosas este cargo recai sempre sobre pessoas muito decrépitas e idosas. Levantei-me, elas sentaram-se e a superiora disse-me: «Irmã Santa Susana, não me disse que deve à benevolência do senhor de Manouri o dote que trouxe para cá?
- Sim, querida madre.
_ Então não me enganei, e as irmãs de Longchamp continuam na posse do dote que lhes pagou ao entrar para lá?
- Sim, querida madre.
- Não lhe devolveram nada?
- Não, querida madre.
- Nem lhe pagam uma pensão?
- Não, querida madre.
O Discretas é o nome dado, nas comunidades religiosas, às freiras que exercem funções de conselheiras da madre superiora de um convento. (N. T.)
- Isso não é justo; por isso o comuniquei às nossas discretas, e elas pensam, como eu, que está no seu direito de as demandar; ou o dote lhe é restituído em proveito da nossa casa ou terão de lhe pagar uma renda. O que possui pelo interesse que o senhor Manouri mostrou pela sua sorte não tem nada a ver com o que as irmãs de Longchamp lhe devem; ele deu-lhe um dote sem ter recebido nada do outro.
- Creio que é assim; mas, para ter a certeza, o melhor é escrever-lhe.
- Sem dúvida; mas, no caso de a sua resposta ser aquela que pensamos, são estas as propostas que temos para si: poremos, em seu nome, um processo contra a casa de Longchamp; os gastos, que não serão importantes, correrão por nossa conta, já que é muito provável que o senhor Manouri não rejeite o encargo deste assunto. E se ganharmos a causa dividirá consigo, em partes iguais, o capital ou a renda. Que lhe parece, querida irmã? Não responde, está pensativa.
- Penso que as irmãs de Longchamp me causaram muitos males, mas terei um grande desgosto se virem nisto uma vingança.
- Não se trata de se vingar, mas de pedir o que lhe devem.
- E dar, mais uma vez, um espectáculo!
- Esse é o inconveniente menor, pois mal se falará de si. E, além do mais, a nossa comunidade é pobre e a de Longchamp é rica. Será nossa benfeitora, pelo menos enquanto viver. Mas não é preciso isso para nos interessarmos por si, pois todas a amamos...» E as discretas disseram em coro: «E quem pode não a amar? É perfeita.
- Eu posso deixar o meu cargo a qualquer momento; talvez a outra superiora não tenha por si os mesmos sentimentos que eu, oh, não!, por certo não terá. Pode ter pequenas indisposições ou pequenas necessidades; e é muito agradável ter algum dinheiro para nos poder aliviar ou para ajudar outras irmãs.
- Queridas madres - disse-lhes eu -, tomarei em conta estas considerações, já que têm a bondade de as fazer; há outras que me afectam mais, mas estou disposta a sacrificar-vos qualquer escrúpulo. A única graça que lhe peço, querida madre, é que não se comece nada sem ter falado com o senhor Manouri na minha presença.
- Nada mais conveniente. Quer escrever-lhe?
- Como deseje, querida madre.
- Escreva-lhe; e para não se voltar a falar nisto, pois estes assuntos me desagradam, aborrecem-me mortalmente, escreva-lhe imediatamente.»
Deram-me uma pena, tinta e papel, e ali mesmo pedi ao senhor Manouri que se dignasse vir a Arpajon tão depressa quanto as suas ocupações lho permitissem, pois voltava, mais uma vez, a precisar da sua ajuda e do seu conselho num assunto de certa importância, etc. A assembleia leu a carta, aprovou-a, e esta foi enviada.
O senhor Manouri veio alguns dias depois. A superiora expôs-lhe o assunto e ele não duvidou, nem por um momento, em ser da mesma opinião. Ridicularizaram os meus escrúpulos e decidiram citar as religiosas de Longchamp logo no dia seguinte. Assim se fez e, muito a meu pesar, o meu nome apareceu em relatórios, alegações, na audiência, e com todos os detalhes, suposições, mentiras e todas as perfídias que podem criar uma imagem desfavorável aos olhos dos juizes e odiosa aos do público. Senhor marquês, é permitido aos advogados caluniar como lhes apetece? Não há justiça contra eles? Se eu pudesse prever todas as amarguras que este assunto ia trazer, asseguro-lhe que nunca teria dado o meu consentimento. Tiveram a atenção de enviar a várias religiosas da nossa casa cópia dos documentos que publicaram contra mim. A todo o momento elas vinham pedir-me detalhes de acontecimentos horríveis que nem por sombra eram verdade. Quanto mais ignorante eu me mostrava mais culpada me julgavam; como não explicava nada nem contava nada e negava tudo, acreditavam que o que se dizia era verdade; sorriam; diziam-me coisas confusas, mas muito ofensivas, e encolhiam os ombros perante a minha inocência. Eu chorava e estava desolada.
Mas uma desgraça nunca vem só. Chegou o momento de me ir confessar. Eu já me tinha acusado das primeiras carícias que a superiora me tinha feito; o director tinha-me proibido, expressamente, prestar-me a elas de novo; mas qual é o meio de nos recusarmos a fazer coisas que dão tão grande prazer a alguém de quem se depende por completo e nas quais não se vê nenhum mal?
Como este director vai jogar um papel importante no resto das minhas memórias, acho que é conveniente que o conheça.
É um franciscano; chama-se padre Lemoine e não tem mais de quarenta e cinco anos. Quando está tranquilo tem uma das fisionomias mais bonitas que se pode imaginar: suave, serena, aberta, sorridente, agradável; mas quando o não está a testa enruga-se-lhe, franze as sobrancelhas, baixa os olhos, e a sua atitude é austera. Não conheço dois homens tão diferentes como o padre Lemoine no altar e o padre Lemoine no locutório sozinho ou acompanhado. Além de mais, passa-se o mesmo com outros religiosos, e eu mesma me surpreendi muitas vezes, quando ia à grade, detendo-me de repente, reajustando o véu, a touca, compondo o rosto, os olhos, a boca, as mãos, os braços, a atitude, o passo, e fingindo um porte e uma modéstia que duravam mais ou menos, segundo as pessoas com quem tivesse de falar. O padre Lemoine é alto, bem proporcionado, alegre, muito amável quando se esquece de si mesmo; fala maravilhosamente e tem na sua casa a reputação de ser um grande teólogo, e no mundo a de grande pregador. É um homem muito conversador e muito instruído numa infinidade de conhecimentos alheios ao seu estado: tem uma voz excelente, sabe música, história e línguas; é doutor pela Sorbonne: apesar de ser jovem, já passou pelas principais dignidades da sua ordem; acredito que não é pessoa de intrigas e não tem ambição, e os seus companheiros estimam-no. Tinha solicitado ser superior da casa de Etampes, como um posto tranquilo onde se podia entregar, sem distracções, a alguns estudos que tinha começado, e tinham-lho concedido. É muito importante, para uma casa de religiosas, a escolha do confessor: tem de se ser dirigida por um homem importante e com valor. Fez-se o possível para que fosse o padre Lemoine, e conseguiu-se, pelo menos em ocasiões extraordinárias.
Na véspera das grandes festas, mandava-se-lhe a carruagem a casa e ele vinha. Era digno de se ver o movimento em toda a comunidade enquanto se esperava que ele chegasse; todas ficavam contentes, recolhiam-se e faziam um profundo exame de consciência, preparando-se para estar no confessionário o mais tempo possível.
Era véspera de Pentecostes e estávamos à espera dele; eu estava inquieta; a superiora percebeu e falou-me no assunto. Não lhe escondi a razão do meu desassossego. Pareceu-me que ainda estava mais alarmada do que eu, embora tenha feito o possível por escondê-lo; falou do padre Lemoine como sendo um homem ridículo, riu-se dos meus escrúpulos, perguntou-me se o padre Lemoine sabia mais do que a nossa consciência sobre a inocência dos meus sentimentos e dos dela, e se eu me arrependia de alguma coisa. Eu respondi-lhe que não. «Pois bem! - disse-me - Sou a sua superiora, deve-me obediência e ordeno-lhe que não lhe fale desses disparates. É inútil ir confessar-se se só tem para lhe contar essas miudezas.”
Entretanto, chegou o padre Lemoine, e eu dispunha-me a ir confessar, pois as mais apressadas tinham-no monopolizado. Estava a chegar a minha vez, quando a superiora veio ter comigo, puxou-me à parte e disse-me: «Santa Susana, pensei no que me disse. Volte para a sua cela, pois não quero que se confesse hoje.
- E porquê, querida madre?- respondi-lhe -Amanhã é um grande dia, é dia de comunhão geral; quer que pensem que sou a única que não se aproxima da santa mesa?
- Não importa; digam o que quiserem, mas não se vai confessar.
- Querida madre - disse-lhe -, se é verdade que me ama, não me imponha esta mortificação, peço-lhe, por favor.
- Não, não, não pode ser; ainda me arranja algum sarilho com esse homem e eu não quero.
- Não, querida madre, não lhe causarei nenhum problema!
- Então, prometa-me... É inútil; venha amanhã ao meu quarto e acusa-se perante mim; não cometeu nenhuma falta de que eu não possa tranquilizá-la e absolvê-la. E comungará com as outras. Vá.»
Retirei-me e estava na minha cela, triste, inquieta, pensativa, sem saber o que fazer, se ir ao padre Lemoine contra a vontade da minha superiora, se esperar a absolvição dela no dia seguinte, se fazer as minhas devoções com o resto da casa, se afastar-me dos sacramentos, apesar de dar lugar a murmúrios, quando a superiora entrou. Tinha-se confessado e o padre Lemoine perguntou-lhe por que é que ainda não me tinha visto, se eu estava doente; não sei o que ela lhe respondeu, mas, em resumo, ele estava à minha espera no confessionário. «Vá, pois - disse-me -, já que tem de ir, mas garanta-me que ficará calada.» Tive dúvidas, e ela insistiu. «Louca! - dizia-me - que mal crês que há em calar o que não houve mal em fazer?
- E que mal há em dizê-lo? - respondi.
- Nenhum, mas é inconveniente. Quem sabe a importância que este homem lhe pode dar? Garanta-me pois...» Eu duvidei ainda, mas no fim comprometi-me a não dizer nada se ele não me perguntasse, e fui.
Confessei-me e calei, mas o director fez-me perguntas e eu não lhe ocultei nada.
Fez-me mil perguntas estranhas, das quais continuo sem perceber nada quando as recordo. Tratou-me com indulgência, mas expressou-se sobre a superiora em termos que me fizeram tremer; chamou-lhe indigna, libertina, má religiosa, mulher perniciosa, alma corrupta e ordenou-me, sob pena de cair em pecado mortal, que nunca mais ficasse sozinha com ela e que não admitisse nenhuma das suas carícias.
«Mas, meu padre, é a minha superiora; pode entrar na minha cela ou chamar-me à dela quando lhe apetecer.
- Eu sei, eu sei, e estou desolado com isso. Querida filha - disse-me -, louvado seja Deus que a guardou até este momento! Sem me atrever a dar-lhe explicações mais claras, com temor de me converter, eu próprio, num cúmplice da sua indigna superiora e murchar, com o sopro envenenado que a meu pesar me sairia dos lábios, uma flor delicada que só se mantém fresca e sem mancha até à sua idade com uma protecção especial da providência, ordeno-lhe que fuja da sua superiora, recuse as suas carícias, nunca entre sozinha na cela dela, feche a sua porta, especialmente de noite, saia da sua cama se ela lá entrar apesar da sua oposição, vá ao corredor e chame alguém, e se preciso for desça despida até aos pés do altar, encha a casa com os seus gritos, e faça tudo o que o amor de Deus, o temor ao crime, a santidade do seu estado e o interesse que a sua salvação lhe inspirariam se Satanás, em pessoa, lhe aparecesse e a perseguisse. Sim, minha filha, Satanás; é sob esse aspecto que me vejo obrigado a mostrar-lhe a sua superiora. Ela afundou-se no abismo do crime e tenta arrastá-la a si; talvez já estivesse com ela se a sua inocência não a tivesse enchido de terror e não a detivesse.» Depois, levantando os olhos ao céu, exclamou: «Meu Deus! Continuai a proteger esta criatura... Diga comigo: Satana, vade retro, apage, Satana. Se essa desgraçada lhe perguntar alguma coisa, conte-lhe tudo, repita-lhe as minhas palavras; diga-lhe que mais valia não ter nascido ou que se precipite sozinha nos infernos com uma morte violenta.
- Mas, padre - repliquei eu -, ainda há pouco a acabou de ouvir em confissão.»
Ele não me respondeu, mas suspirou profundamente, apoiou os braços contra uma das paredes do confessionário e repousou neles a cabeça, como um homem trespassado pela dor. Ficou assim durante algum tempo. Eu não sabia o que pensar, tremiam-me os joelhos, estava transtornada e sentia-me desconcertada até não poder mais; assim se devia sentir um viajante que caminhasse nas trevas, entre precipícios que não conseguisse ver, e a quem vozes subterrâneas chamassem, de todos os lados, gritando: «Estás perdido!» Olhando-me com um ar tranquilo, mas comovido, disse-me:
«A sua saúde é boa?
- Sim, padre.
- Incomoda-a muito passar uma noite sem dormir?
- Não, padre.
- Pois bem! - disse-me - esta noite não se deite; assim que acabar a sua refeição, vá à igreja, ajoelhe-se aos pés do altar e passe aí a noite a rezar. Não sabe o perigo que correu; dê graças a Deus por a ter protegido e amanhã comungue como todas as outras religiosas. Não lhe dou outra penitência senão que se mantenha afastada da sua superiora e que recuse todas as suas carícias peçonhentas. Pode ir; pela minha parte, unirei as minhas preces às suas. Quão preocupado estarei por si! Sei as consequências do conselho que lhe dou, mas devo-lhe isto e devo-o a mim mesmo. Deus é o Senhor, e nós só temos uma lei.»
Senhor, só muito vagamente recordo tudo quanto ele me disse. Agora, que comparo as suas palavras, tal como acabo de as relatar, com a terrível impressão que me causaram, não encontro nenhuma proporção; mas isto acontece porque o meu relato está entrecortado, desalinhado; faltam-lhe muitas coisas de que não me recordo e nada daquilo me parecia claro. Tão-pouco via e ainda não vejo a menor importância em coisas de que ele se queixava com a maior violência. Por exemplo, o que lhe pareceu tão estranho na cena do cravo? Não há pessoas sobre as quais a música causa uma impressão assim tão forte? A mim disseram-me que algumas passagens e certas modulações me alteravam, completamente, a fisionomia; nesses momentos, eu estava fora de mim e quase nem sabia o que me estava a acontecer. Não creio que por isso eu fosse menos inocente. Porque não podia acontecer a mesma coisa à superiora, que era, certamente, apesar de todas as suas loucuras e disparidades, uma das mulheres mais sensíveis que se pode imaginar? Não podia ouvir um relato mais comovedor sem se desfazer em lágrimas; quando eu lhe contei a minha história, o estado dela inspirava compaixão. A sua comiseração também era um crime? E a cena da noite, cujo desenlace ele esperava com um terror mortal... Certamente, aquele homem é demasiado severo.
De qualquer forma, fiz exactamente como ele me mandou, e cuja consequência imediata tinha, sem dúvida, previsto. Quando saí do confessionário fui prostrar-me aos pés do altar; a minha mente estava perturbada pelo espanto e fiquei ali até à hora do jantar. A superiora, inquieta comigo, tinha-me mandado chamar. Tinham-lhe respondido que eu estava em oração. Apareceu várias vezes à porta do coro, mas eu fiz de conta que não a vi. Tocou a campainha para o jantar e eu fui para o refeitório. Comi depressa e, uma vez terminado o jantar, voltei logo para a igreja. Não apareci no recreio da tarde; à hora de nos retirarmos e de dormir, não subi. A superiora não ignorava o que me estava a acontecer. Já a noite estava muito avançada e tudo na casa era silêncio quando ela desceu ao meu encontro. A imagem com que o director ma tinha pintado desenhou-se na minha imaginação; comecei a tremer e não me atrevia a olhar para ela, pois acreditava que a ia ver com uma cara horrível e envolta em chamas. E dizia interiormente: Satana, vade retro, apage, Satana. Meu Deus, protegei-me, afastai de mim este demónio.»
Ela ajoelhou-se e, depois de ter rezado durante algum tempo, disse-me: «Santa Susana, que faz aqui?
- Bem vê, senhora.
- Sabe que horas são?
- Sim, senhora.
- Por que não foi para a sua cela à hora de recolher?
- Porque me estou a preparar para celebrar, amanhã, o grande dia.
- Então, pensa passar aqui a noite?
- Sim, senhora.
- E quem lhe deu autorização?
- Foi o director que mo ordenou.
- O director não pode dar ordens contra a regra desta casa; e eu ordeno-lhe que se vá deitar.
- Senhora, é a penitência que ele me deu.
- Substitua-a por outras obras.
- Não tenho escolha.
- Vamos - disse-me -, minha filha, venha. O frio da igreja, durante a noite, vai-lhe fazer mal; reze na sua cela.»
Depois disto, quis pegar-me na mão, mas eu afastei-a rapidamente.
«Evita-me! - disse-me.
- Sim, senhora. Evito-a.»
Tranquilizada pela santidade do lugar, pela presença de Deus, e pela inocência do meu coração, atrevi-me a levantar os olhos para ela; mas mal a vi dei um grande grito e pus-me a correr pelo coro como uma insensata, gritando: «Afasta-te de mim Satanás!...» Ela não me seguia; permaneceu no lugar e dizia-me, estendendo suavemente os braços para mim, com uma voz muito comovedora e doce: -O que tem? O que a assusta? Pare. Não sou Satanás, sou a sua superiora e sua amiga.» Eu detive-me e voltei, uma vez mais, a cabeça para ela. Percebi que me tinha atemorizado com uma estranha aparência que a minha imaginação tinha forjado; ela tinha-se posto, em relação a uma lâmpada da igreja, de forma que só ficavam iluminados o seu rosto e a extremidade das mãos, e o resto estava na sombra, o que lhe dava um aspecto singular. Um pouco recuperada, atirei-me para um assento. Ela aproximou-se, e ia sentar-se no lugar ao meu lado, quando me levantei e fui para o banco inferior. Assim fui mudando, de lugar em lugar, e ela também, até ao último. Foi aí que parei e supliquei-lhe que deixasse, ao menos, um lugar vazio entre nós as duas.
«Consinto», disse-me.
Sentámo-nos ambas; separava-nos um assento. Então, a superiora, tomando a palavra, disse-me: «Pode-se saber, Santa Susana, de onde vem o assombro que a minha presença lhe causa?
- Querida madre - disse-lhe -, perdoe-me, não sou eu, é o padre Lemoine. A ternura que me demonstra, as carícias que me faz, e nas quais, confesso-lhe, não vejo mal nenhum, tudo isso ele me pintou com as cores mais horríveis. Ordenou-me que fuja de si, que não volte a entrar sozinha na sua cela, que saia da minha se a madre lá entrar; apresenta-ma como um demónio, não sei quantas coisas me disse sobre isso.
- Então, falou-lhe?
- Não, querida madre, mas tive de lhe responder.
- Assim, pois, sou horrível aos seus olhos?
- Não, querida madre, não posso evitar amá-la, apreciar o valor da sua bondade, pedir que continue a dispensar-ma; mas obedecerei ao meu director.
- Então, não voltará a visitar-me?
- Não, querida madre.
- Não me receberá na sua cela?
- Não, querida madre.
- Recusará as minhas carícias?
- Vai custar-me muito, porque nasci afectuosa e gosto de ser acariciada; mas terei de o fazer, porque prometi ao meu director e jurei cumpri-lo aos pés do altar. Se pudesse repetir-lhe a forma como ele se explica! É um homem piedoso, é um homem culto; que interesse poderia ter em mostrar-me perigo onde ele não existe, em afastar o coração de uma religiosa do da sua superiora? Talvez, em acções muito inocentes da sua parte e da minha, reconheça um germe de secreta corrupção que pensa estar muito desenvolvido em si, e que teme que o desenvolva em mim. Não lhe oculto que, ao recordar as sensações que às vezes tive... Por que, querida madre, ao sair da sua cela para voltar à minha, eu me sentia tão agitada, tão pensativa? Por que não conseguia rezar, nem me distraía? Porquê esta espécie de tédio que eu nunca tinha sentido? Por que é que eu, que nunca dormi de dia, me sentia tão sonolenta? Eu pensei que era uma doença contagiosa que a madre tinha e que começava a ter os primeiros efeitos em mim. O padre Lemoine vê-o de maneira muito diferente.
- E como é que ele o vê?
- Vê nisso todas as coisas tenebrosas do crime, vê-a definitivamente perdida e acha que está a planear a minha perdição. Que sei eu?
- Vamos - disse-me ela -, o seu padre Lemoine é um visionário; não é a primeira algazarra deste género que me faz. Basta que eu sinta uma amizade terna por alguém para que ele se ponha logo a baralhar ideias; pouco faltou para pôr louca a pobre Santa Teresa. Isso começa a aborrecer-me, vou-me desfazer desse homem; além disso, vive a dez léguas daqui, é um transtorno trazê-lo cá e nunca está quando precisamos dele. Mas já falaremos disso com mais tranquilidade. Então, não quer subir?
- Não, querida madre, peço-lhe, por favor, que me permita passar aqui a noite. Se faltar a este dever, amanhã não me atrevo a aproximar-me dos sacramentos com o resto da comunidade. Mas a querida madre irá comungar?
- Sem dúvida.
- Mas o padre Lemoine não lhe disse nada?
- Não.
- Como é possível?
- Porque não teve oportunidade de me dizer nada. Confessamo-nos para nos acusarmos dos nossos pecados, e eu não vejo pecado algum em gostar ternamente de uma criatura tão amável como a Santa Susana. Se houvesse nisso alguma falta, seria a de reunir só em si um sentimento que deve ser repartido igualmente por todas as religiosas que fazem parte da comunidade, mas isso não depende de mim; não sei como poderia deixar de distinguir o mérito onde o há e de sentir preferência por ele. Já pedi perdão a Deus por isso, e não concebo como é que o seu padre Lemoine vê confirmada a minha condenação por causa de uma parcialidade tão natural e à qual é tão difícil alguém poder fugir. Tento fazer que todas sejam felizes, mas estimo e amo mais umas que outras, porque são mais dignas de estima e mais amáveis. Este é o meu crime para consigo; Santa Susana, acha-o assim tão grave?
- Não, querida madre.
- Vamos, querida filha, façamos cada uma de nós uma pequena oração e, depois, retiremo-nos.»
Eu supliquei-lhe, novamente, que me autorizasse a passar a noite na igreja; ela consentiu, com a condição de ser a última vez, e foi-se embora. Pensei no que ela me tinha dito. Pedi a Deus que me iluminasse. Reflecti e concluí que, uma vez considerado o assunto, ainda que as pessoas sejam do mesmo sexo, pode haver indecência pelo menos na forma como testemunham a sua amizade, que o padre Lemoine, homem austero, talvez tivesse exagerado as coisas, mas, o conselho de evitar a extrema familiaridade da minha superiora, por meio de muita reserva, era bom segui-lo, e prometi a mim mesma que o faria.
De manhã, quando as outras religiosas vieram ao coro, encontraram-me no meu lugar. Todas se aproximaram da santa mesa, e a primeira foi a superiora, o que acabou por me persuadir da sua inocência, sem me afastar da resolução que já tinha tomado. E, além disso, eu estava longe de sentir por ela toda a atracção que ela sentia por mim. Não podia evitar a comparação com a minha primeira superiora; que diferença! Não tinha a mesma piedade, nem gravidade, nem dignidade, nem o mesmo fervor, nem o mesmo talento, nem o mesmo gosto pela ordem.
Num curto espaço de dias tiveram lugar dois acontecimentos importantes. Um foi o de eu ter ganho o meu processo contra as religiosas de Longchamp; foram condenadas a pagar à casa de Santa Eutrópia, onde eu estava, uma pensão proporcional ao meu dote. O outro foi a mudança de director. Foi a superiora quem me anunciou este último.
Eu já não ia à cela dela senão acompanhada e ela também vinha poucas vezes, sozinha, ver-me. Estava sempre à minha procura, mas eu evitava-a; ela dava-se conta disso e repreendia-me. Não sei o que se passava naquela alma, mas tinha de ser qualquer coisa de extraordinário. Levantava-se de noite e passeava pelos corredores, sobretudo pelo meu; ouvia-a ir e vir, parar à minha porta, queixar-se e suspirar. Eu tremia e enroscava-me na minha cama. Durante o dia, se me encontrava a passear, na sala de trabalho ou no quarto de recreio, passava horas inteiras a contemplar-me, de forma que eu a não pudesse ver. Espiava todos os meus passos: se descia, encontrava-a ao fundo dos degraus; esperava-me no alto quando voltava a subir. Um dia deteve-me; pôs-se a olhar-me sem dizer palavra, com o pranto a inundar-lhe os olhos, e depois, de repente, atirou-se para o chão e apertou-me um joelho com ambas as mãos dizendo-me: «Irmã cruel, pede-me a vida e dou-ta, mas não me evites, não posso viver sem ti...» O estado dela causou-me piedade: tinha os olhos apagados, tinha emagrecido e perdeu as cores. Era a minha superiora, estava aos meus pés, com a cabeça apoiada nos meus joelhos, que abraçava. Estendi-lhe as mãos e pegou nelas com ardor; beijava-as e olhava-me, voltava a beijá-las e olhava-me de novo. Fi-la levantar-se. Vacilava e andava com esforço; levei-a à sua cela. Quando abriu a porta, pegou-me na mão e puxou-me suavemente para me fazer entrar, mas sem dizer nada e sem olhar para mim.
«Não, querida madre - disse-lhe -, não, prometi-o a mim mesma. É melhor para si e para mim. Ocupo demasiado espaço na sua alma, tanto quanto Deus perde, a quem o deve por inteiro.
- E é a irmã quem mo reprova?»
Eu tentava, enquanto falava com ela, soltar a minha mão.
«- De verdade que não quer entrar?
- Não, querida madre, não.
- Não o quer fazer, Santa Susana? Não sabe o que pode acontecer por causa disso, não, não sabe; causará a minha morte...»
Estas últimas palavras inspiraram-me um sentimento muito contrário àquele que ela se propunha; retirei a minha mão com vivacidade e afastei-me. Ela voltou-se, viu-me dar alguns passos e depois, entrando na cela cuja porta continuava aberta, queixou-se amargamente. Eu ouvi e fiquei impressionada. Por um momento, fiquei indecisa sobre se devia continuar a afastar-me ou voltar para trás; no entanto, não sei por que impulso de aversão, afastei-me, apesar de sofrer por a deixar naquele estado: sou compassiva por natureza. Fechei-me na minha cela, mas estava muito inquieta. Não sabia o que fazer; dei várias voltas ao comprido e à largura do quarto, distraída e perturbada; saí e voltei a entrar. Por fim, fui bater à porta de Santa Teresa, que era minha vizinha. Estava em conversa intima com uma jovem religiosa de quem era muito amiga. Disse-lhe: «Querida irmã, lamento interrompê-la, mas peço-lhe que me oiça um instante. Tenho uma coisa para lhe dizer.» Ela seguiu-me até à minha cela, e eu disse-lhe: «Não sei o que se passa com a nossa madre superiora; está desolada. Se a fosse ver, talvez a pudesse consolar...» Ela não me respondeu, deixou a amiga na cela, fechou a porta e foi a correr para onde a superiora estava. No entanto, esta mulher piorava de dia para dia; tornou-se melancólica e séria. A alegria, que não tinha cessado desde o dia em que eu entrei naquela casa, desapareceu de repente; tudo entrou na mais austera das ordens; os ofícios começaram a fazer-se com a dignidade conveniente, e os estranhos ficaram quase completamente afastados do locutório. As religiosas foram proibidas de ir às celas umas das outras; os exercícios voltaram a ser feitos com a mais escrupulosa das exactidões; já não havia reuniões com a superiora, nem refeições leves. As faltas mais pequenas eram severamente castigadas; ainda vinham ter comigo pedindo a minha intervenção, mas eu recusava em absoluto interceder. Ninguém ignorava as causas desta revolução. As mais antigas não estavam incomodadas, mas as mais jovens desesperavam e olhavam para mim de lado. Mas eu, tranquila com a minha conduta, ignorava o mau humor e as repreensões das outras.
A superiora, a quem eu não podia nem aliviar nem deixar de lamentar, passou sucessivamente da melancolia à piedade e da piedade ao delírio. Não vou descrever o curso destas diferentes fases, pois iria perder-me em detalhes sem fim; só lhe direi que, no primeiro estado, tão depressa me procurava como me evitava; às vezes tratava-nos, a mim e às outras, com a sua costumada doçura, e depois passava subitamente ao mais exagerado dos rigores. Chamava-nos e logo nos mandava embora, concedia recreio e revogava a ordem um momento depois, mandava-nos chamar ao coro e, quando tudo estava em movimento para lhe obedecer, um segundo toque de sino voltava a fazer a comunidade retirar-se. É difícil imaginar o transtorno que era a vida assim; passava-se o dia a entrar e a sair da cela, a pegar e a largar o breviário, a subir e a descer, a pôr e a tirar o véu. E a noite era interrompida quase da mesma maneira que o dia.
Algumas religiosas vieram ter comigo e trataram de me fazer compreender que, com um pouco mais de complacência e de atenção para com a superiora, tudo voltaria a entrar na ordem (deveriam ter dito na desordem) do costume. Eu respondi-lhes tristemente: «Lamento muito, mas digam-me claramente o que querem que eu faça.» Umas iam-se embora, com a cabeça baixa e sem me responderem; outras, davam-me conselhos impossíveis de conciliar com os do nosso director; estou a falar daquele que tinha deixado de o ser, pois quanto ao seu sucessor ainda não o tínhamos visto.
A superiora já não saía de noite. Passava semanas inteiras sem aparecer no ofício, no coro, no refeitório ou no recreio; ficava fechada no quarto. Vagueava pelos corredores ou descia à igreja; ia bater à porta das religiosas e dizia-lhes com voz suplicante: «Irmã tal, reze por mim...» Espalhou-se o rumor de que ela se dispunha a fazer uma confissão geral.
Um dia em que fui a primeira a entrar na igreja, vi um papel preso no véu da grade, aproximei-me e li-o: «Queridas irmãs, pede-se-lhes que rezem por uma religiosa que se afastou dos seus deveres e que quer voltar para Deus...» Estive tentada a arrancá-lo, mas acabei por o deixar ficar. Uns dias depois, apareceu outro onde tinham escrito: «Queridas irmãs, pede-se-lhes que implorem a misericórdia de Deus para uma religiosa que reconheceu os seus erros. São grandes...» Outro dia havia um novo convite que dizia: «Queridas irmãs, pede-se-lhes que rezem a Deus para que afaste o desespero de uma religiosa que perdeu toda a confiança na misericórdia divina...»
Todos estes convites, onde se pintavam as cruéis vissicitudes daquela alma em sofrimento, me entristeciam profundamente. Uma vez, fiquei imóvel perante um destes bilhetes, perguntando-me a mim mesma quais seriam os erros de que se censurava, de onde vinha a angústia daquela mulher, de que crimes se podia acusar; lembrava-me das exclamações do director, voltava a ouvir as expressões dele e procurava-lhes um sentido; e, como não encontrava nenhum, continuava absorta. Algumas religiosas que me observavam falavam entre si e, se não me engano, acreditavam que eu estava continuamente ameaçada pelos mesmos terrores.
A pobre superiora só aparecia com o véu puxado para baixo; já não se metia nos assuntos da casa nem falava com ninguém. Conversava frequentemente com o novo director. Era um jovem beneditino. Não sei se foi ele que lhe impôs todas as mortificações que praticava; jejuava três dias por semana, flagelava-se e ouvia o ofício nos bancos inferiores. No caminho para a igreja tínhamos de passar à porta dela e encontrávamo-la prostrada, com o rosto por terra, e só se levantava quando estava sozinha. Durante a noite descia à igreja em camisa de dormir e descalça; se Santa Teresa ou eu a encontrávamos, por acaso, voltava-se de costas e virava a cara para a parede. Um dia em que eu saía da minha cela, encontrei-a prostrada, com os braços estendidos e o rosto no chão. Disse-me: «Vamos! Avance e pise-me pois não mereço outro tratamento.»
Durante os muitos meses que esta doença durou, o resto da comunidade teve tempo para se ressentir e tomar-me aversão. Não voltarei a falar nos desgostos de uma religiosa odiada na casa em que está, pois já está informado sobre isso. Pouco a pouco senti renascer a falta de gosto pelo meu estado. Levei esse meu desgosto e as minhas penas ao seio do nosso novo director. Chama-se Morei; é um homem de carácter ardente e deve rondar os quarenta anos. Pareceu-me que me ouvia com atenção e interesse. Quis conhecer todos os acontecimentos da minha vida; fez-me entrar nos detalhes mais minuciosos sobre a minha família, as minhas inclinações, o meu carácter, as casas em que tinha estado, o que se tinha passado entre mim e a minha superiora. Não lhe escondi nada. Não me pareceu que desse à conduta da minha superiora para comigo a mesma importância que o padre Lemoine tinha dado; mal se dignou dizer-me algumas palavras sobre o assunto, e considerou o caso encerrado. O que mais o afectou foram as minhas disposições secretas sobre a vida religiosa. À medida que me ia confiando a ele, a confiança dele fazia os mesmos progressos: eu confessava-me a ele e ele confessava-se a mim. O que me contava das suas penas tinha a maior das afinidades com as minhas: tinha entrado para o convento contra vontade e suportava o seu estado com o mesmo desgosto que eu. «Mas, querida irmã - acrescentava -, o que se pode fazer? Não nos resta senão um recurso, que é viver a nossa condição de religiosos o melhor possível.» E dava-me conselhos que ele próprio seguia e que eram sábios. «Com isto - acrescentava - não se evitam as tristezas; mas conseguimos suportá-las. As pessoas religiosas não são felizes enquanto não oferecerem a Deus as suas cruzes; só então se alegram e vão ao encontro das mortificações: quanto mais frequentes e amargas são mais essas pessoas se sentem felizes. Trocam a felicidade presente pela felicidade futura, e esta garantem-na com o sacrifício voluntário daquela. Quando já sofreram muito, dizem: Amplius, Domine, Senhor, mais ainda... e é um pedido que Deus nunca deixa de atender. Mas, apesar de as penas serem iguais para si e para mim, nós não merecemos a mesma recompensa que eles, porque nos falta a única coisa que lhes dá valor e resignação; e isso é triste. Ai! Como posso inspirar-lhe a virtude que lhe falta e que eu não tenho! No entanto, sem ela estamos sujeitos a perdermo-nos na outra vida depois de termos sido tão infelizes nesta. Condenamo-nos entre penitências, quase tão seguramente como a gente do mundo entre prazeres; nós negamo-nos, eles gozam-nos, e depois desta vida esperam-nos suplícios idênticos. Que lamentável é a condição religiosa sem vocação! E, não obstante, é a nossa, e não a podemos trocar. Estamos presos com pesadas correntes, condenados a sacudi-las sem cessar e sem nunca as conseguirmos partir; tratemos, querida irmã, de as arrastar. Agora vá! Voltarei a vê-la.»
Voltou uns dias depois. Vi-o no locutório e pude examiná-lo mais de perto. Confiou-me toda a sua vida e eu confiei-lhe a minha; uma infinidade de circunstâncias que formavam entre ele e eu tantos pontos de contacto como semelhanças, pois ele tinha sofrido quase as mesmas perseguições domésticas e religiosas. Eu nem me dava conta de que o relato dos seus desgostos era pouco próprio para afastar os meus; e, no entanto, era esse o efeito que tinha em mim, e creio que o relato dos meus desgostos também tinha o mesmo efeito sobre ele. Assim, a semelhança dos nossos caracteres unia-se à dos acontecimentos, e quanto mais nos víamos mais gostávamos um do outro; a história dos seus momentos era a história dos meus; a história dos seus sentimentos era a história dos meus; a história da sua alma era a história da minha.
Quando já tínhamos falado suficientemente de nós, falámos também sobre os outros, e especialmente sobre a superiora. A sua qualidade de director tornava-o muito reservado, mas eu percebi, através das suas palavras, que a disposição actual daquela mulher não ia durar, porque era em vão que lutava contra si mesma, e que acabaria por acontecer uma de duas coisas: ou voltava às suas primeiras inclinações, ou perdia o juízo. Eu tinha uma enorme curiosidade em saber mais sobre este assunto. Ele podia aclarar questões que eu tinha posto a mim mesma e às quais nunca consegui dar resposta, mas não ousava perguntar-lhe. Só me arrisquei a perguntar se conhecia o padre Lemoine.
«Sim - disse-me -, conheço-o; é um homem com muito mérito.
- Deixámos de o ter como director espiritual repentinamente.
- É verdade.
- Sabe-me dizer porquê?
- Gostava que isto não saísse daqui.
- Pode contar com a minha discrição.
- Escreveram ao arcebispo queixando-se dele.
- E o que é que podem ter dito?
- Que vivia demasiado longe da casa, que nunca estava quando precisavam dele, que a moral dele era demasiado austera, que existiam razões para pensar que era defensor de sentimentos inovadores, que semeava a discórdia na casa e que afastava as religiosas da superiora.
- Como é que soube isso tudo?
- Foi ele quem mo disse.
- Então, costuma vê-lo?
- Sim, costumo; falou-me de si algumas vezes.
- E que foi que lhe disse de mim?
- Que era digna de compaixão, que não percebia como é que conseguiu resistir a todas as penas que sofreu e que, apesar de só ter falado consigo uma ou duas vezes, não acredita que a irmã se possa acomodar à vida religiosa; que tinha pensado...»
Aqui, parou de repente, e eu acrescentei: «O que é que ele tinha pensado?»
Dom Morei respondeu-me: «Isso é um assunto confidencial, tão particular que não lho posso acabar de contar.»
Não insisti. Só acrescentei: «É verdade que foi o padre Lemoine que me inspirou o afastamento da minha superiora.
- E fez bem.
- Porquê?
- Minha irmã - respondeu-me adoptando um ar grave -, siga os conselhos que ele lhe deu e, enquanto for viva, trate de lhes ignorar as razões.
- Mas parece-me que se conhecesse o perigo podia ter mais atenção e evitá-lo melhor.
- Ou talvez acontecesse precisamente o contrário.
- Deve ter uma péssima opinião a meu respeito.
- Tenho dos seus costumes e da sua inocência a opinião que devo ter, mas é preciso que acredite que existem conhecimentos funestos que não poderia adquirir sem se perder com eles. Foi a sua inocência que se impôs à sua superiora; se a irmã soubesse um pouco mais ela tê-la-ia respeitado menos.
- Não compreendo.
- Tanto melhor.
- Mas por que a familiaridade e as carícias de uma mulher podem ser perigosas para outra mulher?»
Dom Morei não me deu nenhuma resposta. «Não sou a mesma que era ao entrar aqui?» Dom Morei voltou a não me responder. «Não teria continuado a ser a mesma? Onde está o mal de se amar, de o dizer e de o testemunhar? É tão doce!
- É verdade - disse dom Morei, levantando para mim os olhos que tinha conservado baixos enquanto eu falava.
- Então, isto é assim tão comum nas casas religiosas? Pobre da minha superiora! Em que estado caiu!
- É terrível, e temo que piore. Não foi feita para esta vida e, mais cedo ou mais tarde, o resultado é este. Quando nos opomos à tendência geral da natureza, essa imposição desvia-nos para afectos desordenados, que são tão mais violentos quanto mais mal fundados; é uma espécie de loucura.
- Ela está louca?
- Sim, está e ficará ainda mais.
- E acha que essa é a sorte que espera todos aqueles que abraçam uma vida para a qual não foram chamados?
- Não, não todos. Há os que morrem antes; há os que têm um carácter flexível, e que acabam por aceitar; e há os que têm esperanças vagas que os sustém por uns tempos.
- E que esperança pode haver para uma religiosa?
- Esperança? A primeira é conseguir revogar os votos.
- E quando essa já não existe?
- Então, esperam encontrar, um dia, as portas abertas, esperam que os homens se arrependam da extravagância de encerrarem pessoas vivas e jovens em sepulcros e que os conventos sejam abolidos, esperam que o fogo queime a casa, que as paredes da clausura caiam, que alguém as socorra. Todas estas suposições fervilham na cabeça e sem sequer nos darmos conta, ao passear pelo jardim, verificamos se as paredes são muito altas; na cela, agarra-se nas barras da grade e sacodem-se distraída e suavemente; se as janelas dão para a rua, olha-se sem cessar; se se ouve alguém passar, o coração palpita e suspira-se em silêncio por um libertador; se há algum tumulto cujo rumor penetre na casa, surge a esperança; pensa-se numa doença, que nos aproximará de um homem ou que nos faça ir tomar águas.
- É verdade, é verdade - gritei eu -, lê no fundo do meu coração; eu tive e ainda tenho essas ilusões.
- E quando as perdemos, através da reflexão, pois estas saudáveis emanações que o coração envia para a razão dissipam-se de vez em quando, então vê-se toda a profundidade da nossa própria miséria; detestamo-nos a nós mesmos e aos outros; chora-se, geme-se, grita-se e sente-se a aproximação do desespero. Nessa altura, umas vão a correr atirar-se aos pés da superiora, à procura de consolo; outras prostram-se na cela ou aos pés do altar e pedem ajuda ao céu; outras rasgam as roupas e arrancam os cabelos; outras procuram um poço profundo, janelas altas, uma corda, e às vezes encontram-nos; outras, depois de se terem atormentado durante muito tempo, caem numa espécie de embrutecimento e perdem o juízo; outras, cuja saúde é débil e delicada, consomem-se em languidez; a algumas o equilíbrio transtorna-se, a imaginação perturba-se, e ficam furiosas. As mais felizes são aquelas a quem as ilusões consoladoras renascem e se deixam embalar por elas quase até à hora da morte; a vida dessas passa-se, alternadamente, entre o erro e o desespero.
- E as mais desgraçadas - acrescentei eu com um profundo suspiro -, as que passam sucessivamente por todas essas fases... Ah padre! Como lamento tê-lo ouvido!
- E porquê?
- Eu não me conhecia, mas agora conheço-me, e as minhas ilusões durarão muito menos. Nos momentos...»
Ia continuar quando entrou uma religiosa, depois outra e ainda uma terceira, e depois quatro, cinco, seis, e não sei quantas mais. A conversa generalizou-se. Umas olhavam para o director; outras ouviam-no em silêncio e de olhos baixos. Várias faziam-lhe perguntas e todas se admiravam da sabedoria das suas respostas. Eu retirei-me para um canto onde me abandonei à fantasia. No meio daquelas conversas, em que cada uma se fazia valer e tratava de chamar a atenção do santo homem para a melhor das suas facetas, ouviram-se os passos lentos de alguém que se aproximava, de vez em quando parava e suspirava; pusemo-nos à escuta e houve alguém que disse em voz baixa: «É ela, é a nossa superiora.» Toda a gente se calou e sentámo-nos em círculo. De facto, era ela. Entrou; o véu caía-lhe até à cintura, tinha os braços cruzados sobre o peito e a cabeça inclinada. Fui eu a primeira pessoa que ela viu; nesse instante, tirou uma mão de debaixo do véu, tapou com ela os olhos e, voltando-se um pouco para o lado, fez-nos sinais, com a outra mão, para que saíssemos todas. Saímos em silêncio e ela ficou sozinha com dom Morei.
Prevejo, senhor marquês, que vai formar uma má opinião sobre mim, mas se não tive vergonha do que fiz por que haveria de corar ao contá-lo? E, além disso, como posso suprimir a este relato um acontecimento que acabou por ter consequências? Digamos pois que me encontro num estado de espírito muito singular; quando as coisas podem fomentar a sua estima ou aumentar a sua comiseração, escrevo bem ou mal, mas com uma rapidez e uma facilidade incríveis; a minha alma está alegre, a expressão surge sem esforço, as minhas lágrimas correm com suavidade, parece-me que o senhor marquês está presente, que o vejo e que me escuta. Se, pelo contrário, me vejo forçada a mostrar-me aos seus olhos sob um aspecto desfavorável, penso com dificuldade, a expressão foge, a pena não anda, e mesmo a forma da minha escrita se ressente, e só continuo porque penso, em segredo, que não lerá essas passagens. Pois bem, cá está um desses casos:
Quando todas as irmãs se retiraram... - Ora bem! Que foi que fez? - Não adivinha? Não, é demasiado honesto para isso. Desci em pontas dos pés e pus-me, sem fazer barulho, à porta do locutório, para ouvir o que ali se dizia. Isso é muito mau, dirá... Sim, é muito mau, disse-o a mim mesma, e a minha aflição, as precauções que tomei para não ser vista, as vezes que me detive e a voz da minha consciência, que a todo o momento me mandava sair dali, não me permitiam duvidar de quanto era mau o que eu estava a fazer. No entanto, a curiosidade era mais forte, e insisti. Mas se é mau ouvir frases de uma conversa de duas pessoas que acreditavam estar sós não é ainda pior repeti-las? Esta é uma das passagens que escrevo presumindo que não a lerá; e, no entanto, isto não é certo e tenho de me convencer disso.
As primeiras palavras que ouvi, depois de um silêncio bastante longo, fizeram-me estremecer; foram: «Padre, estou condenada...»
Acalmei-me. Escutava, e o véu que até então me tinha escondido o perigo rasgava-se. Entretanto, chamaram-me. Tinha de ir, e fui; mas, ai!, já tinha ouvido de mais. Que mulher, senhor marquês, que abominável mulher!...
Aqui, as memórias da irmã Susana interrompem-se. O que se segue são simples notas que, muito possivelmente, se propunha usar no resto do seu relato. Parece que a sua superiora enlouqueceu, e é a esse infeliz estado que é preciso aplicar os fragmentos que vou transcrever.
Depois desta confissão tivemos alguns dias de serenidade. A alegria voltou a entrar na comunidade e por causa disso fazem-me cumprimentos que eu rejeito com indignação.
Ela não me evitava; observava-me, mas a minha presença já não parecia causar-lhe transtorno.
Eu tentava esconder o terror que me inspirava desde que, por uma feliz ou fatal curiosidade, tinha aprendido a conhecê-la melhor.
Depressa se tornou silenciosa; só diz sim ou não; passeia sozinha.
Recusa os alimentos. O sangue aquece-lhe, fica com febre, e o delírio sucede à febre.
Sozinha na sua cama, vê-me, fala-me, convida-me a aproximar-me e dirige-me as frases mais ternas.
Se ouve alguém próximo do seu quarto, grita: «É ela que passa, são os seus passos, reconheço-os. Chamem-na... Não, não, deixem-na.»
Uma coisa estranha é que nunca se enganou e nunca tomou nenhuma outra por mim.
Ria-se às gargalhadas e um momento depois desfazia-se em lágrimas. As nossas irmãs rodeavam-na em silêncio, e algumas choravam com ela.
Dizia de repente: «Não fui à igreja, não rezei a Deus. Quero sair desta cama; quero vestir-me, vistam-me.» Se alguém se opunha, acrescentava: «Dêem-me, ao menos, o meu breviário...» Davam-lho; abria-o, passava as folhas com o dedo e continuava a passá-las mesmo quando já se tinham acabado. E enquanto fazia isto tinha os olhos esgazeados.
Uma noite desceu sozinha à igreja; algumas irmãs seguiram-na. Prostrou-se nas grades do altar, pôs-se a gemer, a suspirar, a rezar em voz alta; saiu, voltou a entrar; disse: «Vão buscá-la; é uma alma tão pura, é uma criatura tão inocente! Se unisse as suas preces às minhas...» Depois, dirigindo-se a toda a comunidade e voltando-se para os bancos vazios, gritava: «Saiam, saiam todas, quero que fique sozinha comigo. Não são dignas de se aproximarem dela; se as vossas vozes se misturarem com a dela, o vosso incenso profano corromperá perante Deus a suavidade do dela. Afastem-se, afastem-se...» E logo a seguir exortava-me a pedir assistência e perdão ao céu. Via Deus; parecia-lhe que os relâmpagos sulcavam o céu, que este se abria e rugia sobre a cabeça dela; desciam anjos enfurecidos e os olhares da Divindade faziam-na tremer; corria para todos os lados, refugiava-se nos cantos escuros da igreja, pedia misericórdia, colava o rosto ao chão e acabava por adormecer ali mesmo. O frio húmido do lugar surpreendia-a, e levavam-na para a cela como morta.
Na manhã seguinte ignorava aquela terrível cena da noite anterior. Dizia: «Onde estão as nossas irmãs? Não vejo ninguém; fiquei sozinha nesta casa, todas me abandonaram, até Santa Teresa; fizeram bem. Como Santa Susana já não está cá, posso sair, não me encontrarei com ela. Ah! Se a encontrasse! Mas já não está cá, não é verdade? Não é verdade que já não está cá?... Feliz a casa que a tem! Vai contar tudo à nova superiora; o que é que pensará de mim?... Santa Teresa morreu? Toda a noite ouvi tocar a defuntos. Pobre filha! Perdeu-se para sempre, e sou eu, sou eu... Um dia estarei frente a frente com ela; que vou dizer-lhe? O que é que lhe vou responder? Desgraçada dela! Desgraçada de mim!»
Noutro momento, dizia: «As nossas irmãs voltaram? Digam-lhes que estou muito doente... Levem a minha almofada... Desapertem-me... Há aí qualquer coisa que me oprime... A cabeça arde-me, tirem-me a coifa... Quero levantar-me... Tragam-me água. Mais, mais ainda... Estão brancas, mas a sujidade da alma permanece... Quem me dera estar morta; quem me dera não ter nascido, assim não a teria visto.»
Uma manhã encontraram-na descalça, em camisa de dormir, despenteada, a uivar; espumava pela boca e corria à volta da cela, com as mãos nas orelhas, os olhos fechados e o corpo encostado à parede. «Afastem-se deste abismo; ouvem estes gritos? São os infernos; consigo ver o fogo que sobe desta cova funda; no meio das chamas oiço vozes confusas que me chamam... Meu Deus, tende piedade de mim!... Depressa, toquem, reunam a comunidade; mandem rezar por mim, eu também rezarei... Mas já está quase a amanhecer, as nossas irmãs estão a dormir. Não fechei os olhos esta noite, quero dormir e não posso.-
Uma das irmãs disse-lhe: «Senhora, está tão aflita; diga-me o que tem, talvez isso a alivie.
- Irmã Ágata, oiça, aproxime-se de mim... mais... mais perto... não quero que nos oiçam; vou contar-lhe tudo, mas guarde segredo... Viu-a?
- Á quem, senhora?
- Não é verdade que ninguém tem a mesma doçura? Como anda! Que decência! Que nobreza! Que modéstia!... Vá ter com ela, diga-lhe... Eh! não, não diga nada, não se vá, não poderia aproximar-se. Os anjos do céu guardam-na, velam à sua volta; eu vi-os, também os verá e ficará horrorizada como eu fiquei. Fique... Se lá for, o que é que lhe vai dizer? Invente qualquer coisa que não a faça corar...
- Mas, senhora, e se consultasse o nosso director...
- Sim, claro... Não, não, já sei o que me vai dizer; ouvi-o tantas vezes... De que é que lhe havia de falar? Se pudesse perder a memória!... Se pudesse voltar ao principio ou renascer!... Não chame o director. Preferia que me lesse a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Leia... Começo a respirar... Basta uma gota desse sangue para me purificar... Veja, sai-Lhe em borbotões das costelas... Incline essa ferida sagrada sobre a minha cabeça... O sangue Dele cai sobre mim e não me toca... Estou perdida! Afaste esse Cristo... Traga-mo...» Levavam-Lho de novo; apertava-O nos braços, beijava-O por todo o lado e acrescentava: «São os seus olhos, é a sua boca; quando voltarei a vê-la? Irmã Ágata, diga-lhe que a amo, pinte-lhe fielmente o meu estado, diga-lhe que estou a morrer.»
Sangraram-na, deram-lhe banhos, mas o mal parecia aumentar com os remédios. Não me atrevo a descrever-lhe todos os actos indecentes que fez, nem a repetir-lhe as frases desonestas que lhe escaparam durante o delírio. A todo o momento levava a mão à testa, como se quisesse afastar ideias inoportunas, imagens, não sei que imagens! Escondia a cabeça na cama, cobria o rosto com os lençóis. «É o tentador - dizia -, é ele. Tomou uma forma tão estranha! Vão buscar agua benta, atirem-me água benta... Já chega, já chega; já se foi embora.»
Não demoraram muito tempo para a encarcerarem, mas a sua prisão não estava tão bem guardada que um dia não pudesse escapar-se. Tinha rasgado as roupas, percorria os corredores nua, só dois bocados de corda rompida lhe pendiam dos braços; gritava: «Sou vossa superiora, todas fizeram o juramento, obedeçam-me. Encarceraram-me; desgraçadas, aqui está a recompensa pela minha bondade! Ofendem-me porque sou boa de mais; bem sei... Fogo! Ajudem! Ladrão! Socorro! A mim, irmã Teresa! A mim, irmã Susana!...-
Entretanto, tinham-na apanhado e levavam-na de novo para o cárcere; e ela dizia: «Têm razão, têm razão; ai! fiquei louca, bem sei.»
Às vezes parecia obcecada pelo espectáculo de diferentes suplícios. Via mulheres com uma corda ao pescoço e as mãos atadas atrás das costas, ou via-as com archotes nas mãos; juntava-se às que se retratavam publicamente; pensava que estava a ser levada para o suplício, e dizia ao verdugo: «Mereço a minha sorte, mereço-a: se este tormento fosse o último... mas, uma eternidade! Uma eternidade de fogo!...»
Tudo o que aqui conto é verdade; e ainda devia acrescentar outras coisas de que não me lembro ou com as quais me envergonharia de sujar este papel.
Depois de viver vários meses neste estado deplorável, morreu. Que morte, senhor marquês! Eu vi-a, vi a imagem terrível do desespero e do crime na sua última hora. Pensava que estava rodeada de espíritos infernais que esperavam a sua alma para se apoderarem dela; dizia com uma voz afogada: «Aqui estão! Aqui estão!... e, mostrando à direita e à esquerda um Cristo que tinha na mão, uivava e gritava: «Meu Deus! Meu Deus!...» A irmã Teresa seguiu-a pouco tempo depois; e tivemos outra superiora, entrada nos anos, mal humorada e cheia de superstições.
Acusam-me de ter enfeitiçado a sua antecessora; ela acredita, e as minhas tristezas renovam-se.
O novo director também é perseguido pelos superiores, e convence-me a fugir daquela casa.
Projectava-se a minha fuga. Vou ao jardim entre as onze e a meia-noite. Atiram-me cordas e eu ato-as ao meu corpo; partem-se e caio; tenho as pernas esfoladas e uma violenta contusão nos rins. Uma segunda, uma terceira tentativa puxa-me até ao cimo do muro; descem-me. Que surpresa! Em vez de um lugar numa carruagem com que esperava ser recebida, encontro uma velha carroça pública. Ali estou eu, a caminho de Paris, com um jovem beneditino. Não tardei a compreender, pelo tom indecente que adoptava e pelas liberdades que se permitia, que não manteria comigo nenhuma das condições que eu tinha estipulado. Então, tive saudades da minha cela e senti todo o horror da minha situação.
Aqui pintarei a cena na carroça. Que cena! Que homem! Grito; o cocheiro vem em meu socorro. Rixa violenta entre o cocheiro e o monge.
Chego a Paris. A carroça pára numa ruela, à frente de uma porta estreita que se abre para um passadiço escuro e sujo. A dona da casa aparece à minha frente e instala-me no último andar, num pequeno quarto onde não encontro mais que os móveis necessários. Recebo visitas da mulher que ocupa o primeiro andar. «É jovem e deve estar aborrecida, menina. Desça comigo e encontra boa companhia de homens e mulheres, nem todas tão amáveis, mas todas da sua idade. Conversamos, rimos, cantamos e dançamos; reunimos todos os géneros de distracções. Se puser todos os cavalheiros loucos, garanto-lhe que as damas não vão sentir nem ciúmes nem enfado. Venha, menina...” Quem me falava assim era uma pessoa de certa idade, com olhar terno, voz doce e palavras muito insinuantes.
Passo quinze dias nesta casa, exposta a todas as insistências do meu pérfido raptor e a todas as cenas tumultuosas de um lugar suspeito, espreitando a cada instante a ocasião de me escapar.
Por fim, um dia, encontrei-a; a noite já ia avançada. Se estivesse perto do meu convento tinha voltado para lá. Corro sem saber para onde vou. Uns homens detêm-me; o pânico apodera-se de mim e caio desfalecida de cansaço à porta de uma loja de velas. Socorrem-me e ao voltar a mim estou estendida num catre, rodeada de várias pessoas. Perguntam-me quem sou, e não sei o que respondo. Emprestam-me a criada da casa para me guiar, pego-lhe no braço e saímos. Já tínhamos feito muito caminho quando esta jovem me disse: «Menina, tem a certeza de que sabe para onde vamos?
- Não, minha filha; acho que é para o hospital.
- Para o hospital! Está fora da sua casa?
- Ai! Sim.
- O que é que fez para a expulsarem a esta hora?... Mas já estamos à porta de Santa Catarina; talvez se consiga que abram. De qualquer maneira, não tenha medo; não ficará na rua, dormirá comigo.»
Volto para casa do fabricante de velas. Assombro da criada quando vê as minhas pernas esfoladas pela queda que dei ao sair do convento. Passo a noite ali. No dia seguinte, à tarde, volto a Santa Catarina; permaneço ali três dias, ao fim dos quais me anunciam que ou vou para o hospital geral ou aceito o primeiro emprego que me ofereçam.
Corri perigo em Santa Catarina, por causa de homens e de mulheres; porque ali, segundo me disseram depois, é onde os libertinos e as matronas da cidade se vão abastecer. A ameaça da miséria não aumentou a força das seduções grosseiras às quais ali estive exposta. Vendo as minhas roupas e escolho outras mais em conformidade com a minha situação.
Entro ao serviço de uma lavadeira, em casa de quem estou actualmente. Recebo a roupa e passo-a a ferro. O meu dia é penoso; estou mal alimentada, mal alojada e não durmo bem, mas tratam-me com humanidade. O marido é cocheiro e a mulher é um pouco ríspida, mas boa pessoa. Estaria contente com a minha sorte se pudesse esperar uma existência tranquila.
Soube que a polícia apanhou o meu raptor e o entregou aos seus superiores. Pobre homem! É mais digno de compaixão do que eu. A sua fuga teve muita repercursão, e nem sabe a crueldade com que os religiosos castigam as faltas com escândalo: vai passar o resto da vida num calabouço, e é essa a sorte que me espera se me apanharem, mas ele viverá mais do que eu.
A dor provocada pela queda que dei dói-me. Tenho as pernas inchadas e não posso dar um passo; trabalho sentada, pois não posso manter-me em pé sem grande esforço. No entanto, temo ficar curada: que pretexto poderei dar, então, para não sair de casa? E a que perigos me vou expor deixando-me ver? Mas, por sorte, ainda tenho tempo.
Os meus parentes, que não acreditam que eu não esteja em Paris, fazem, com certeza, todas as pesquisas imagináveis. Eu ainda morava no sótão para onde fui quando cheguei a Paris quando resolvi chamar o senhor Manouri para lhe pedir conselho, mas ele não estava.
Vivo num contínuo sobressalto. Ao menor ruído que oiço na casa, na escada, na rua, fico cheia de medo e tremo como uma folha, os meus joelhos negam-se a suster-me e o trabalho cai-me das mãos.
Passo quase todas as noites sem dormir; se o faço, o sono é inquieto: falo, grito, choro. Não entendo como é que as pessoas que me rodeiam ainda não descobriram quem eu sou.
Parece que a minha evasão foi tornada pública. Já esperava. Uma das minhas companheiras falou-me disso ontem, acrescentando ao relato circunstâncias odiosas e as mais desoladoras reflexões. Por sorte, estava a estender nas cordas a roupa molhada e de costas para a lâmpada, pelo que não pôde perceber a minha aflição. No entanto, a patroa, notou que eu estava a chorar e disse-me: «Maria, o que é que tem?
- Nada - respondi eu. - Então, acrescentou ela, é tão estúpida que se compadece de uma má religiosa, de conduta imoral, sem religião e que se encapricha com um monge vil com quem foge do convento? Tem compaixão a mais. Essa freira só tinha de beber, comer, rogar a Deus e dormir; estava bem onde estava, por que não ficou lá? Se ela tivesse de ir três ou quatro vezes ao rio com o tempo que está, isso tinha-a feito conformar-se com o seu estado.» À isto respondi que só conhecemos bem as nossas próprias aflições. Tinha feito melhor em calar-me se não ela não teria acrescentado: «É uma malvada e Deus há-de castigá-la...» Quando ouvi isto, inclinei-me sobre a mesa e fiquei assim até que a patroa me disse: «Mas, Maria, está a sonhar com quê? Enquanto está aí a dormir o trabalho não avança.»
Nunca tive espírito de clausura, isso ficou demonstrado pelos passos que dei; mas no convento habituei-me a certas práticas que repito maquinalmente. Por exemplo: toca um sino? Faço o sinal da cruz e ajoelho-me. Batem à porta? Digo «Ave». Perguntam-me alguma coisa? Dou sempre uma resposta que termina com «sim» ou «não», «querida madre» ou «minha irmã». Se aparece um estranho, cruzo os braços sobre o peito e inclino-me em vez de fazer uma reverência. As minhas companheiras fartam-se de rir, e acham que me divirto a imitar uma freira; mas é impossível este engano durar muito tempo, pois a minha perturbação acabará por me denunciar e estarei perdida.
Senhor, socorra-me depressa. Dir-me-á, sem dúvida: mostre-me o que posso fazer por si. Aqui está; não tenho grandes ambições. Preciso de um lugar de perceptora ou de governanta, ou simplesmente de criada, onde possa viver ignorada no campo, perdida no fundo da província, entre pessoas honestas que não recebam muita gente. O salário não interessa; quero segurança, repouso, pão e água. Pode ter a certeza de que ficarão satisfeitos com o meu serviço; na casa do meu pai aprendi a trabalhar, e no convento a obedecer. Sou jovem e tenho um carácter muito doce. Quando as minhas pernas estiverem curadas, terei força suficiente para cumprir os deveres de tal ocupação. Sei coser, fiar, bordar e lavar; quando estava no mundo, eu mesma arranjava os meus bordados e rapidamente voltaria a fazê-lo; tenho boa disposição para tudo e posso habituar-me a qualquer coisa. Tenho uma voz bonita, sei música e toco cravo suficientemente bem para poder entreter uma mãe a quem isso desse prazer, e podia mesmo dar lições aos filhos; mas tenho sempre medo de que estes sinais de uma educação refinada me traiam. Se tivesse de aprender a pentear, arranjaria um mestre e, como tenho gosto, não tardariam a procurar-me por essa pequena habilidade. Senhor, uma condição suportável, se for possível, ou uma condição semelhante a esta, é tudo do que necessito e não desejo nada além disto. Poderá responder pelos meus costumes; apesar das aparências, são bons; e eu sou piedosa. Ah, senhor! Todos os meus males já teriam acabado e não teria nada a temer dos homens se Deus não me tivesse detido. Aquele poço profundo, ao fundo do jardim do convento, quantas vezes lá fui! Se não me atirei foi porque me deram inteira liberdade de o fazer. Ignoro o destino que me está reservado, mas se tenho de entrar de novo num convento, seja ele qual for, não respondo por mim; há poços em todo o lado. Senhor, tenha piedade de mim, não dê a si próprio motivo para enormes remorsos.
S. - Estou esmagada de cansaço, rodeada de terror e não encontro repouso. Acabo de reler com mais calma estas memórias que escrevi apressadamente, e dei-me conta de que, sem a menor intenção, me mostro em cada linha tão desgraçada como o fui na realidade, mas muito mais amável do que realmente sou. Será que achamos os homens muito menos sensíveis às descrições do nosso sofrimento do que à imagem do nosso encanto e parece-nos mais fácil seduzi-los do que comovê-los? Conheço-os excessivamente mal e também não me estudei o suficiente para o saber. No entanto, se o senhor marquês, a quem atribuem a maior delicadeza, se convencer de que não me dirijo à sua bondade, mas ao seu vício, que pensara de mim? Este pensamento inquieta-me. Na verdade, seria um equívoco eu mesma me acusar de um instinto próprio do meu sexo. Sou uma mulher, talvez um pouco vaidosa, que sei eu? Mas de maneira natural e sem artifício.
Denis Diderot
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