Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A REPÚBLICA DOS CORVOS
A REPÚBLICA DOS CORVOS
São Vicente, para ser São Vicente e entrar na História como entrou, teve necessidade de dois corvos para o acompanhar que, por sinal, lhe foram sempre fiéis até hoje. Ora, duma ave como esta, tão convivente e tão enigmática, conta-se muita coisa. A própria Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, depois de muitos rodeios, afirma que o corvo é velhaco e ladrão, e isto, bem entendido, com a devida consideração pela agudeza e pela independência no trato que toda a gente lhe reconhece.
“Caguei para a Enciclopédia”, diz o Corvo. E para comprovar alça a cauda e, zás, despede um esguicho de caca esbranquiçada. Caca esbranquiçada numa criatura tão negra é que ninguém esperava.
O corvo em questão chama-se Vicente. Puseram-lhe um nome de santo, que mais quer ele, mas nem assim se mostra lá muito reconhecido. Pertence a uma das últimas tascas de Lisboa, daquelas que antigamente, além do vinho, vendiam também carvão, pitrol e molhinhos de carqueja, mas isso foi há muitos anos, na idade do fogareiro e do candeeiro de chaminé, e nessa altura ainda ele não era nascido. Ou talvez fosse, com os corvos nunca se sabe. Há quem afirme que chegam a durar eternidades.
Na porta ao lado da tasca estabeleceu-se há muito tempo uma mulher que vende ovos e criação, sentada numa cadeira de balouço. O Corvo conhece-a, por acaso até a visita. Diz-se que matou o marido com gemadas envenenadas, se é que ela alguma vez teve marido, mas de concreto o que se sabe e está à vista é que passa os dias amarrada à cadeira a fazer malha com um certo ar irado. Parece uma gata gorda de bigodes assanhados, uma bichana doméstica que preenche o tempo a dar à agulha e a contar um dois três laça, um dois três mate, para se esquecer de outros tempos. Mas isso não passa de aparência porque, coitada, o que a consome é aquele coração que Deus lhe deu, um coração tão grande e universal que não lhe cabe no corpo. Daí estar sempre no cadeirão a balouçar, a balouçar, como se procurasse dar ar ao peito ou, então, como se tomasse balanço para se projectar pelos ares, rumo a Deus Nosso Senhor.
Nas suas voltas diárias o Corvo nunca se esquece de ir cumprimentar a galinheira que o trata sempre com grande estima, oferecendo-lhe pedaços de tripa e outros desperdícios das aves que estão penduradas no tecto. “Olá, freguês”, cumprimenta-o ela, assim que o vê saltitar no degrau da porta.
Dão-se muito bem, sempre se deram muito bem um com o outro. Dum modo geral a galinheira recebe-o com um sorriso e muda logo para o trágico, levando a mão ao peito e voltando os olhos para o céu: “Sabes, vizinho, este meu coração...” Com isto quer dizer muita coisa, o Corvo sabe. Angina de peito, tonturas, medicações. O Corvo sabe, o Corvo sabe. Faltas de ar, também. Um dois três mate, um dois três laça, ultimamente as faltas de ar têm sido constantes, e a infeliz balança no cadeirão verdadeiramente angustiada. O Corvo, ouvindo-a sempre com a maior atenção, remata toda as vezes da mesma maneira: “Deixe lá, vizinha, deixe lá, que mais dia menos dia todos os males da gente têm fim”, e ela então deixa descair os bigodes e perde-se, resignada, a olhar através da porta o largo das Freiras Descalças que lhe fica mesmo em frente.
O largo das Freiras Descalças, com a capela e o hospital do mesmo nome, está sempre a arrulhar de pombas brancas. O Corvo quando não tem mais que fazer ou quando os clientes da tasca o começam a azedar com parvoíces vai até lá. Vai por ir, só para chatear. Só para criar alvoroço nas mimosas de pena virgem que se passeiam no empedrado a dar à cabecinha. É claro que as pombas quando o vêem aproximar-se abrem logo alas a passo corrido e de peito levantado porque não confiam lá muito no olhinho libertino que ali vem, mas ele avança a direito, luzidio e muito senhor. À passagem deixa cair um ou outro galanteio a esta e àquela. “Sua galdéria”, “Sua aluada”, mas nunca se vira para trás, é o viras. Ouve-as rolar suspiros e a tremer a asa, encandeadas certamente com o seu perfil negro espelhado de reflexos azuis; ouve-as todas saltitantes a azougadas, e quando chega ao outro lado do largo volta-se para as olhar de frente: Então que é isso, meninas?
Na taberna alguns bebedores mais vivaços tentam meter conversa com ele. Começam por lhe perguntar o nome, é o costume, e acabam por lhe chamar Vicente, outra parvoíce.
“Vicente?” pergunta um dia um fulano a fazer-se surpreendido. “Se calhar ainda pertence à família dos que andavam atrás do santo, ou é confusão minha?”
Confusão, uma porra. O Corvo, que é taberneiro por convivência com o dono, conhece todas as velhacarias do vinho e como, ainda por cima, é ateu praticante, a conversa do Santo Vicente e dos corvos de Lisboa fá-lo virar as costas, enojado. Desde que se conhece nunca lhe faltaram doutores a provocá-lo com olhares e a falarem para a assistência em corvos históricos do brasão de Lisboa e noutras fábulas correlativas.
Ao cabo e ao resto estes fala-baratos nunca variam no mandar vir. Descrevem invariavelmente o esqueleto do mártir São Vicente a chegar a Lisboa, por inteiro e muito compostinho, numa barca guardada por dois corvos, consoante se pode ver no brasão da cidade. Dois corvos, um à proa, outro à ré, foi neste preparo que o santo arribou ao Tejo, dizem eles, e isso depois de ter navegado uma data de séculos pelos mares da eternidade.
Mares da eternidade? Mas que é isso, eternidade? Para o Corvo Taberneiro a estória do cadáver já bulia de bichos podres e cheirava mais que pior; acredite-se ou não, só à custa de muito vinho e de muita paciência é que era possível engolir uma aldrabice de tamanha enormidade.
Mas há pior, o Corvo conhece pior. Há um sacristão da capela do Hospital das Freiras Descalças que afirma que os ditos pássaros do São Vicente ainda estão vivinhos e de boa saúde e quem os quiser ver que vá aos recantos românicos da Sé, que é lá que eles estão aninhados desde a altura do milagre, continuamente embalados por um coro de chantres e de meninos de igreja. Isto ouviu o Corvo da taberna com os ouvidos que a terra lhe há-de comer, e não se admirou nem contradisse. O sacristão, sempre que envereda pelo vinho, dá-lhe para ser franciscano, irmão dos pássaros, dos anjos e dos peixes-voadores, só para comover a audiência e o Corvo em particular. Não sabe, o parvo, que o Vicente tem tamanho pó a certos pássaros que até as asas se lhe encrespam quando os ouve nomear.
“Este gajo, se pudesse, comia-me com penas e tudo”, rosna ele a meio bico, lendo o brilho piedoso que baila nos beicinhos do sacristão.
Está farto de corvos históricos, está farto da barca do São Vicente que anda a navegar de boca em boca sempre que se fala de Lisboa, está farto de a ver por toda a cidade com aquelas duas aves desavergonhadas, desenhada em estandartes, talhada na pedra dos chafarizes públicos, reproduzida em porta-chaves e em guias turísticos, recortada em chapa de ferro nos candeeiros das avenidas engalanadas. Farto dessa fantochada, pois então, fartíssimo. Por outro lado, como corvo legítimo que é, acha uma realíssima estupidez terem-lhe posto aquele nome, Vicente para aqui, Vicente para ali, Vicentes eram todos os corvos que havia nesta Lisboa, ora merda.
Empoleira-se no tonel mais alto da casa para se manter afastado da ignorância descarada que tomou voz ao balcão, mas o sacristão de vinho franciscano sobe permanentemente de tom e não pára de fabular. Está com uma diarreia de língua que não há milagre que a estanque, e o mais chato é que se repete, igualzinho, de dia para dia. Agora conta a Parábola do Santo e dos Peixes, que, julga ele, é mais uma das tais, das franciscanas.
O Corvo Taberneiro sabe-a de cor, era uma vez um Santo António que andava descalço pelo mundo a pregar aos animais, e, pronto, a estória começava assim. Daí em diante o santo viajava por montes, por vales e por desertos, era incansável, e quando queria fazer um milagre erguia os olhos a Deus Nosso Pai Misericordioso e brotava-lhe uma flor de sangue do corpo que o tornava iluminado e já não era preciso mais nada para arrumar fosse o que fosse. O sangue, esclarece o sacristão, não se declarava sempre no mesmo sítio, era uma espécie de chaga repentina que tanto podia aparecer na palma da mão, se fosse para deter a tempestade, como no lado do coração para ordenar arrependimento, como na sola do pé para abrir caminho através das águas ou do fogo. E assim por diante, o sacristão enumera sempre os mesmos casos possíveis, mas o Corvo já nem regista. Regista, sim, a maneira assaz cruel e exemplar como o Pregador se fez mártir ao falar um dia aos peixes do Amazonas. Aí, chiça, o caso era de arrepiar. Deus ter-lhe-ia ordenado “Vai e Prossegue”, e ele, por confusão ou qualquer outro deslize, em vez de prosseguir no discurso, julgou que tinha recebido ordem para atravessar o rio e logo lhe despontou no pé o tal sangue que apartava as águas. Feliz e radioso, meteu-se muito pronto à corrente e foi um ar que lhe deu, porque lhe caíram em cima cardumes de piranhas atraídas pelo sangue.
Dantes a parábola acabava aqui, as vorazes piranhas encarregavam-se de dar sumiço ao Pregador, e ámen, o resto era lá com Deus. Mas desta vez o sacristão ainda tem qualquer coisa a acrescentar, qualquer coisa de muito ensinamento que muda o rumo da estória. Conta que o corpo do mártir, embora entregue às piranhas, ficou intacto por fora como que reduzido a uma figura oca. Deste modo, durante anos e anos foi visto a deslizar pelo rio em imagem serena e luminosa, transportando dentro de si os peixes assassinos.
Mais um cadáver a boiar, pensa o Corvo como resumo. Depois do São Vicente de Lisboa tinha tocado a vez ao Pregador do Amazonas, dois mártires desnorteados, qualquer deles. Com isto ficava provado que o sacristão quando se entorna esvoaça de abutre enxertado de albatroz, porque só vê cadáveres navegantes por toda a parte.
Ora, se há coisa para que o Corvo Taberneiro não tem qualquer vocação é para aturar bêbados. Muito menos bêbados franciscanos, que esses então solfejam cá um trinar que deixa qualquer ouvinte desasado. Pela parte que lhe toca, o Corvo acha que já ouviu o suficiente e põe-se a coçar as penas, lá no alto do tonel. Depois vai até à porta ver em que param as nuvens.
Em frente, no largo do hospital, passa uma freira de bicicleta a levantar uma revoada de pombas. Como uma bruxa imaculada a cavalo numa vassoura, pensa o Corvo. E abre o bico para o ar, enfastiado. Enfastiado ou a bocejar?
Tlão, tlão - é o sino da capela a tocar. Lá vai a freira de bicicleta, armada em pomba do Espírito Santo, lá vai ela. E o sacristão também já devia estar ao altar para a receber, só que esta tarde deu-lhe para catequizar bêbados e tão cedo não vai deixar a taberna nem à mão de Deus Padre. Ai, ai, muitas penas tem o Corvo no seu triste labutar. As deste são cada vez mais escuras e mais pesadas, à medida que o sol vai baixando. Pesadíssimas.
Quando está assim, desiludido com o mundo, a primeira coisa que lhe lembra é passar pela vizinha galinheira. Sabe que a vai encontrar a fazer malha e a balançar no cadeirão matriarcal à sombra de galinhas e de patos degolados. Malha para as crianças desvalidas, é o passatempo da mulher. Sobrevoada por cadáveres depenados, produz gorros, casaquinhos e abafos de berço numa lã angorá tão mimosa que faz lembrar a penugem dos pintainhos, um dois três laça, um dois três mate, então por cá, vizinho?
O Corvo salta o degrau, e ela, sem parar de balouçar, estende o comprido gancho com que desprende os galináceos lá do tecto e enfia-o no balde dos desperdícios. Tira de lá o seu pedacinho de enxúndia, a sua sobra de tripas, a sua crista de galo, que são primores que o Corvo Taberneiro muito aprecia.
Enquanto ele come, a lastimosa suspira e conta trivialidades - “Ai”, diz ela. O ai da galinheira serve para tudo: se lhe sai do coração, é um lamento, mas também pode ser rejeição enojada, quando dito com um voltar de cabeça, ou vislumbre de espanto divertido, se os bigodes indicarem que sorri. Ai, menino, diz ela às vezes para o Corvo em momentos de maior intimidade.
Apesar de lastimosa, dá realmente gosto ouvi-la conversar com muitas malhas pelo meio porque é senhora dum coração universal que abrange todas as criancinhas desamparadas e todos os animais da natureza com excepção das aves de capoeira que, palavras dela, não reconhecem quem as trata nem nunca deram lucro ao comércio. A esses bicos junta o porco que também não é da sua devoção mas por outras razões.
Na realidade, o porco, o suíno, como ela prefere chamar-lhe, um dois três laça, um dois três mate, ai, o suíno é um animal campesino que não olha a luz do sol. Não tem ideologia, o suíno. Tem o chamado olho porcino e se ainda guarda algum respeito por Deus é porque nunca o encontrou. No resto segue a direito, come tudo o que lhe vier ao dente, até cadáveres, e diz que cada qual faz pela vida. O porco sabe que é porco mas não se importa e se alguma vez mandasse no mundo, um dois três mate, o mundo, um dois três laça, era governado à trombada. “Sume-te porco sujo”, remata a galinheira.
“Eu cá conheço um porco chamado Senhor João”, diz o Corvo Taberneiro, sem parar de debicar.
“De Lisboa ou da província?” pergunta a galinheira e leva logo a mão a tapar a boca, arrependida: “Ai, vizinho Corvo, a gente hoje está de todo, Deus nos perdoe”.
Suspende-se uns momentos, muito séria, a olhar para longe com as mãos esquecidas sobre a malha. A pensar em quê? Em Deus? Provavelmente em recordações sombrias que só ela sabe. “Enfim”, suspira, e agarra-se outra vez às agulhas.
Sossego na loja, sossego lá fora. Um cadeirão incansável, a balançar como se fosse a vencer ondas. A sombra dela no chão. A aumentar e a encolher em compasso lento, um, dois. O rádio da taberna a derramar sons esfarrapados pela rua.
“Ontem vi-te no Palácio de Sintra”, diz a galinheira sem levantar os olhos da malha.
“A mim?” pergunta o Corvo.
“A ti, a ti, escusas de disfarçar. Andavas a passear no tecto duma sala, então eu não sei?”
O Corvo fica de bico aberto, pasmado. “No tecto duma sala? No Palácio de Sintra?”
Bem, no Palácio, propriamente no Palácio, foi uma maneira de dizer, porque infelizmente a galinheira quase não pode sair daquele cadeirão. Viu-o, de facto, mas foi em fotografia.
“Impossível”, contesta o Corvo. “Aí há confusão com certeza.” A galinheira solta um risinho divertido:
“Ui, ui, confusão nenhuma. Vi-te lá, menino. Estavas pintado em diversas posições num tecto muito bonito e devo dizer-te que te achei parecidíssimo. Aquilo se não eras tu era um filho teu por uma pinta. Tens filhos, vizinho Corvo?”
Só agora é que o prevenido Corvo percebe que a galinheira estava a improvisar, a debicar conversa em entretenimento de boa-fé. Nenhum motivo, portanto, para que ele ficasse melindrado, dir-se-á. E no entanto ficou. Ficou e continuará a ficar por muito tempo porque sabe perfeitamente que o palácio a que a senhora se referiu não tem corvos, tem pêgas, e confundir duas personalidades tão distintas revela, com as devidas desculpas, uma lamentável ignorância. Ignorância ainda mais lamentável por ter saído da boca duma comerciante de aves. Que o pintor dos pássaros tivesse ficado entre uma coisa e outra, vá lá, compreendia-se. Há muito troca-tintas que pinta o que lhe vem à cabeça e depois põe-lhe o nome que lhe dá na gana. Mas uma galinheira? Então isso admite-se?
O Corvo Taberneiro está deveras desgostoso. Sinceramente. Sempre ouviu dizer Sala das Pêgas e não Sala dos Corvos quando se fala de Sintra. É assim em todos os postais, em todos os álbuns e em todas as fotografias, incluindo a que foi parar às mãos da vizinha.
O Corvo, apesar de mais que habituado às lendas e às aldrabices que se contam a seu respeito e da sua tribo, ficou realmente muito sentido com esta desatenção da galinheira. Ninguém gosta de ser desfeiteado, o caso é esse, e, posto isto, adeus vizinha e até à próxima, que este seu amigo vai ver se espairece para outro lado.
Segue ao acaso, pelo entardecer, sem norte nem tempo fixo. Vadiar, chama-se àquilo. Arejar a cauda. A desfeita que a galinheira lhe fez deixou-o engalinhado, é caso para dizer. E agora, poucas ruas mais à frente, é um cão que se mete com ele, só lhe faltava mais essa.
“Vai bardamerda”, atira-lhe então sem o olhar; e segue.
O outro, cão velho e lazarento, fez de conta que não ouviu por uma questão de orgulho. É um monte de ossos coberto de moscas mas, mesmo naquele estado, ainda se lembra de ser cão. Não pensa, o estúpido, que se um corvo é capaz de fazer frente a um milhafre ou a um falcão, com mais facilidade cairia em cima dum escanzelado como ele, cravando-lhe as garras nos lombos até o deixar feito em tiras.
O corvo é bicho de coragem, dizem os livros, e este, embora de asas cortadas por sacanice do tasqueiro com quem vive, defende a sua liberdade por ser muito avisado e saltador. Em menos de nada atravessa uma rua, em menos de nada já está de poleiro, a olhar; tão depressa corre como salta, e neste momento aponta aos barracões da beira-Tejo que ao cair da tarde estão necessariamente sem ninguém. Sossego, é do que ele mais precisa e para isso vai no bom caminho. Comércio quase todo já fechado, gente a caminho de casa sem tempo para se intrometer com quem passa, autocarros a cumprirem horários, a maré baixa da cidade, uma cidade a escoar-se para os dormitórios. Ouve-se um barco a roncar algures no rio.
Nisto, o Corvo salta para um pequeno relvado aos pés dum monumento, e no relvado descobre, o quê?, uma moeda. Prata a luzir, o que ele gosta disso. Rapidamente, deita-lhe o bico e procura um sítio para a enterrar. Um corvo, como qualquer cidadão, tem todo o direito a brincar com o dinheiro, não é assim?
“Desconfio que andas perdido”, diz uma voz avinhada que parece vinda do Além.
O Corvo nem precisa de ouvir mais. Outro bêbado, safa-te! Lisboa anda povoada de bêbados. Aquele tem cá uma pinta que não engana ninguém, e já vem, todo lampeiro, em cima do pássaro.
Que lhe foge, o pássaro. Não é estúpido nenhum.
“Pardalinho, anda cá pardalinho”, acena-lhe o bêbado, com a mãozinha e correndo para o agarrar.
Pardalinho era o corno do pai dele. O Corvo, sem largar a moeda, esquiva-se com uma finta e afasta-se, muito digno. Nova arrancada do bêbado, mais uma vez sem resultado.
O filho da mãe vem a correr de braços abertos a fingir que é a brincar, mas o Corvo, de moeda no bico como se tivesse acabado de sair duma fábula, salta meia dúzia de passos e escapa-se. Corrida para aqui, corrida para ali, o despassarado violador de pássaros tropeça numa pedra e fica espalhado na relva a chamá-lo com mão meiga: “Pardalinho, pardalinho...”
Pardalinho. Aquele, mesmo sem estar bêbado, era menino para depenar um corvo à dentada e chamar-lhe perdiz do campo.
Anoitece. Horas de se ir chegando a casa. Aos pés dum monumento ficou um bêbado frustrado e mais adiante, numa sarjeta, vai ficar uma moeda de prata depositada por um Corvo Taberneiro. A vida é assim, a curiosidade tem o seu tempo e a vadiagem também. Nas estreitas ruas do regresso reina um cheiro a peixe frito e há um desfiar de televisores pela janelas abertas, a cidade em família. Entre um candeeiro de esquina e uma montra iluminada a cores, passa uma velha conduzindo um gato de pêlo azul pela trela.
De pêlo azul? De pêlo azul nunca o Corvo tinha visto nenhum gato, mesmo que essa cor fosse apenas um reflexo de vitrina. E um gato pela trela, também não. Só faltava que a velha não tivesse vista e que, em vez de conduzir, fosse conduzida por um gato de cego.
Decididamente, nesta cidade embalada em lendas tudo é fábula de museu. Cães sem dentes, gatos azuis, como se acabou de ver, pombas corruptas, tudo. Corvos, principalmente. Lisboa é uma república de corvos, tem estórias de corvos a dar com um pau. No entanto, se formos a ver bem, o que encontramos por toda a parte é bicharada de fábula, monstros domésticos disfarçados de canários, de cachorros, de saguis e de mil animais de estimação, e corvos, propriamente corvos, nada. Estão aonde? No brasão da cidade? Conversa. Só pessoas como o sacristão das Freiras Descalças é que podem acreditar nisso de dois corvos desnaturados andarem a passear um esqueleto pelos mares da eternidade.
O Corvo Taberneiro conhece tudo isto mas nem acredita.
Ele, que até é lisboeta de nascimento com grasnar de reguilas e tudo, ouve o esperto de ocasião a lançar floreados deste género e segue. Como quem diz, Corvo Vicente, um seu criado, se faz obséquio, e vai mas é à merda, que eu já te topei, ó urso.
Nítido no negro declarado que lhe dera a Natureza, regressa à tasca onde tem guarida. Passa por travessas e por portas conhecidas, passa ao lago do hospital, passa a loja da galinheira mas, na loja da galinheira, alto aí, que é aquilo? Ainda há luz lá dentro e a porta está entreaberta, a galinheira a trabalhar a esta hora?
Pelo sim e pelo não, aproxima-se. E entra. E com aquele olhar repentino que lhe é habitual dá com a mulher morta no cadeirão de balouço. Morta, não há a menor dúvida. O seu coração universal parou. Branca e matriarcal, está reclinada para trás e de olhos abertos como se seguisse em frente, como se continuasse a ondular ao compasso das agulhas.
O Corvo Taberneiro sacode a asa, não acredita. A sua amiga, a sua confidente, a sua vizinha, está morta no cadeirão. Tem os bigodes compridos a penderem-lhe dos cantos da boca e, assim, parece uma morsa corpulenta sentada num trono. “Morta”, desata ele então a grasnar, arremessando-se de salto contra as paredes, contra o tecto, contra as aves degoladas que se alinham ao fundo da sala. Num golpe, finca as garras no alto espaldar da cadeira e desata a gritar por socorro.
Vem gente, vem polícia, vem o bairro, mas ele, Corvo, não despega. De bico afiado e a bater as asas mantém-se à cabeceira da defunta, não consentindo que ninguém lhe toque e lançando, num cracrá aflitivo, a mais íntima e pessoal de todas as suas vozes.
Dizem que ainda hoje lá está.
ASCENSÃO E QUEDA DOS PORCOS VOADORES
Um juiz aposentado, que nesse outono se encontrava em tratamento de águas numas termas, frente ao mar, viu passar no horizonte do pôr do sol um bando de porcos-voadores. Um juiz no outono é sempre muito prevenido e, se estiver aposentado, pior. Este foi ao quarto buscar um binóculo e sentou-se à espera do pôr do sol do outro dia.
Mas no outro dia, nada, como já era de esperar. E no outro e no outro, idem. Não é todos os dias que aparecem porcos-voadores no horizonte dum juiz e por conseguinte abandonou o terraço do hotel onde tinha instalado o seu posto de observação e foi mas foi às águas, que era para isso que estava nas termas.
Dava grandes passeios pelo parque à volta do fontanário; o parque, antigo e parado no tempo, tinha uma luz, um mistério, um não sei quê que ele não sabia explicar. Árvores patriarcais, arbustos bravos, o levantar dum pássaro que jamais se via. Aqui e ali espreitavam cabeças de mulher no meio da folhagem: todas de pedra e assentes em colunas assinadas em latim. Algumas delas quase que sufocadas pelas silvas e pelas heras; e sujas, corroídas; mas sempre com o nome aberto na pedra: Gloria, Fecunditas, Minerva, Letitia. O Juiz, que era de natureza muito histórica, admitia que se encontrava num Parque Votivo ou num Parque de Deusas Perdidas, mais ou menos desprezado. Um dia descobriu, até, uma bela cabeça de criança no meio de raízes e excrementos (como que caída dum corpo decapitado), uma cabeça anónima, portanto, e só por isso já mais que suficiente para dar que pensar a qualquer investigador. Ele pensou, a missão do magistrado é pensar sobre o acto consumado e não se deixar ir nas aparências. Só que desta vez não o fez com a tranquilidade que seria de desejar porque lhe surgiram os porcos-voadores no horizonte.
Aí mudou o rumo da agulha, como é natural. Apontou ao oceano, a deusa ou anjo degolado podia esperar.
Já se deixa ver que continuava a cumprir as suas visitas ao balneário da Fons Vitae e os passeios pelo parque, a disciplina e o ar puro são essenciais; mas todo ele estava virado para o sol poente, para aí é que o Meritíssimo dirigia os pensamentos, qualquer que fosse o lugar onde se encontrasse. E ao entardecer lá estava, de binóculo apontado no terraço do hotel, nunca falhava. E o sol agonizava em colorido de bilhete postal. E o tempo arrefecia. E dos porvcos-voadores nem amostras nem promessas, então isto não era de desesperar?
Não. Desesperar nunca. O Juiz não era pessoa para se deixar ir abaixo com essa facilidade - e ainda bem. Ainda bem porque num fim de tarde tornou a ver um bando de porcos-voadores na linha do oceano. Acompanhando-os com o binóculo, descobriu com toda a nitidez que tinham asas negras de vampiros e corpos roliços e rosados de animais de pocilga. Caramba, o Juiz ficou de tal maneira embasbacado que só largou o binóculo quando a escuridão e o frio da noite caíram sobre ele.
“Fenómeno surpreendente”, anunciou depois ao Cirurgião Sequerra que se encontrava hospedado no mesmo hotel. Contou-lhe que os animais voavam de focinho levantado e que dispunham de asas muito resistentes para poderem transportar os seus pesados corpos de suínos. “Suínos de verdade?”, com o devido respeito, o Doutor Cirurgião franzia o nariz. Achava que, numa matéria tão desconcertante, toda a prudência era pouca e procurava descobrir no magistrado o conhecido olhar ardente que domina as criaturas possuídas de mistério, apóstolos, visionários ou outros tidos como tal. Pelo sim e pelo não, aconselhava, ou, melhor, sugeria, que se aguardasse o parecer dos especialistas. Isso, os especialistas. Por outro lado, os jornais com certeza que também não deixariam de se pronunciar sobre o assunto com a tradicional objectividade que lhes compete.
Mas, passados dias, novo bando de porcos-voadores. O Juiz acabava de chegar do seu passeio ritual no parque das nascentes das águas sódicas e das deusas petrificadas, quando, ao abrir a porta do terraço, deu de caras com aquilo.
“Que tem, Senhor Doutor?” perguntou-lhe o Cirurgião Sequerra à hora do jantar, impressionado com o silêncio que o magistrado trazia nessa noite.
“Nada, Senhor Doutor”, respondeu ele. E viu, tornou a ver como se fosse pôr do sol e tivesse ali à mão o seu binóculo de longo alcance, uma revoada de porcos-voadores a atravessar-lhe o horizonte da memória. Apresentavam asas desprovidas de penas como as dos vampiros e os focinhos arrebitados dos orelhudos suínos.
Embora retirado há muito tempo do exercício das leis, este cidadão da república dos honrados nunca esquecia os princípios de dúvida e de segredo que fazem regra na magistratura. Como tal, nada de perturbar o semelhante com notícias fora do alcance comum. Em Direito, noli tangere sed tangere, já lá diziam os romanos, e nessa conformidade, o Juiz tratou mas foi de se calar muito bem caladinho e de continuar na disciplina das águas, como todos os outros hóspedes.
Que eram poucos, note-se. Poucos e de idade conceituada, os hóspedes. À data dos acontecimentos o hotel encontrava-se quase despovoado e havia um silêncio outonal que consagrava uma austera majestade às escadarias e aos salões de altas janelas. No meio desse silêncio passava às vezes uma menina de triciclo abraçada a um burro de brinquedo.
Mas era quase uma visão. Chegava e desaparecia nos compridos corredores alcatifados e só tornava a ser vista ao jantar, muito composta no seu vestido de folhos e com o burrinho de brincar pousado no chão, ao lado dela. Dali passava com os pais ao salão de concertos onde as senhoras e os cavalheiros se reuniam para ver a televisão. Naquela vastidão de espelhos e de candelabros, já nada lembrava música, a não ser uma harpa em baixo-relevo dourado a meio do tecto e um piano de cauda sobre o estrado onde a menina se sentava agarrada ao seu burrinho. Ficava ali todas as noites a olhar o televisor; mas muito à parte e muito calada como uma colegial que cumpre um dever do dia-a-dia.
Desta menina contavam-se certas desgraças, veio o Juiz a saber mais tarde, e todas por causa do burrinho de brincar a que chamava Pintinhas. Porquê Pintinhas? perguntavam-se os estranhos. Os pais, pessoas abastadas e de muito viajar, encolhiam os ombros: o nome era o menos e até estava certo, vinha das manchas brancas que o boneco de pêlo tinha antigamente, quando ainda não era aquele nojo que ali se via, sebento e desengonçado.
“Um horror, mas que se há-de fazer?” desculpava-se a mãe da menina.
Pela conversa da senhora, o jerico Pintinhas era um verdadeiro pesadelo, ah sim, dizia ela, verdadeiro pesadelo, uma fatalidade que nem se imagina. Por se terem esquecido da porcaria do boneco, várias vezes se tinham visto obrigados a interromper uma viagem para o irem buscar, o que, sinceramente, não é coisa que agrade seja a quem for. Aquele boneco era uma obsessão, nada a fazer. Sem ele, a pobre criança caía num desespero aflitivo, talvez porque na sua ingenuidade, não é assim, se sentia impotente para aceitar a injustiça que lhe caíra em cima. Chorava, sacudida por soluços que lhe vinham muito do fundo e que continuavam para lá da vontade dela, mesmo quando já não tinha lágrimas para desfazer a sua dor. Um desassossego. Aquilo provocava uma tal angústia, que só Deus é que sabia a confusão que se apoderava dos pais naquela altura.
A insistência com que a mãe da menina relatava episódios do Pintinhas à assembleia dos adultos mostrava bem a preocupação que o boneco representava, já não dizia para ela, para o marido e para a própria criancinha, mas sobretudo para os hóspedes das várias termas por onde o jerico tinha passado. Luso, Cestona, Vichy, Baden-Baden, o Pintinhas, pelo que se estava a ouvir, era viajante de larga pedalada. E os ouvintes dos desmandos que ele provocara acompanhavam as descrições fazendo que sim com a cabeça, mas na verdade sem aceitarem lá muito bem que uma criança tão educada tivesse um tal apego a um asno cheio de nódoas e, coitadinho, já sem graça, Lavá-lo parece que era difícil ou mesmo impossível; e recompô-lo, ainda pior. Jesus, quase gritou a senhora, recompô-lo é que nunca. Qualquer tentativa nesse sentido podia deixar o Pintinhas tão impessoal, tão longe do que tinha sido, que então é que ninguém poderia aturar a pequena.
Uma dama de grandes mamas que nunca tivera filhos levantou os olhos ao céu:
“Oh, estas crianças, estas crianças.”
Sentindo que o burro de brincar era um animal incómodo para a comunidade dos adultos, a menina apertava-o contra o seu pequenino coração como que a embalá-lo e a dizer-lhe que sossegasse, não tivesse medo. Demonstrações como esta aconteciam com bastante frequência nos serões do hotel dos aquistas e delas tomou nota o Cirurgião Doutor Sequerra que, em termos de manual de boas maneiras, era cavalheiros assaz sensível e prático conhecedor tanto das leis do organismo como dos imprevistos da alma. “Há sempre um animal a acompanhar percursos da nossa vida”, pensava ele às vezes, olhando a menina sentada aos pés do piano de cauda.
Menos comunicativo, o Doutor Juiz preenchia os serões a passear para cá e para lá no outro extremo do vasto salão-concerto. Não que os seus passeios fossem tão monótonos como alguém pudesse supor. Ah não, de maneira nenhuma. As graves interrogações que os porcos-voadores lhe tinham deixado obrigavam-no a interessantes raciocínios. Mesmo sem ter tornado a contactar, como se diz, de visu com os estranhos animais, reconstituía-os de memória, encontrando-lhes cada dia sinais de identidade mais evidentes. De resto, o facto de terem desaparecido de vez levava-o a concluir que eram migradores outonais que demandavam o oceano ao cair da noite, e daí estarem providos daquelas fortes asas de morcego.
Mas, e depois, durante o dia? Como poderiam os suínos-vampiros resistir à luz do sol na sua viagem pelos céus dos mares? Cegavam e deixavam-se conduzir pelo instinto? Iam ao sabor dos ventos e só abriam os olhos ao anoitecer para corrigir o rumo? Mistério. Por enquanto, mistério.
Todos os dias, mas todos, o Juiz cumpria à letra o seu programa das termas. Visitas a horas certas ao balneário da Fons Vitae e passeios pelo parque povoado de cabeças de pedra. Ao fim da tarde, era sabido: ele aí estava no terraço, voltado para o pôr do sol à espera da revelação. Ficava até o céu se cobrir de estrelas e então imaginava os porcos-voadores na sua viagem para o infinito a percorrerem signos e constelações com as suas asas dentadas. O mapa astral cruzado por novas e estranhas figuras aladas. Provavelmente era nisso que ele pensava.
E um dia, para seu assombramento, viu-os passar outra vez. A eles, aos porcos-alados. Em bando. Cruzando os céus à mesma hora e na mesma direcção das outras vezes. O Juiz regulou o binóculo até ao olho-limite, até à verdade impossível. E confirmou. Certo, os porcos do sol poente.
Com a alegria do investigador que acaba de comprovar a sua descoberta, correu à procura do Cirurgião Sequerra. Estava-se na pausa que antecede o jantar, como diz a linguagem dos cronistas, e, como igualmente observa a mesma, altura pouco propícia para conversações demoradas e porventura controversas. Apesar disso, o magistrado conduziu o médico à varanda do salão de música e ali, a sós, comunicou-lhe o acontecimento apenas no essencial, o resto ficaria para depois.
Este, na sua qualidade profissional, teve a natural hesitação do prático científico perante o fenómeno inesperado: não só pôs respeitosas reticências no tocante aos estranhos vultos alados como admitiu que a refracção das nuvens sangrentas do ocaso fosse a causa de tão intrigantes imagens. Consequentemente, punha à meritíssima consideração do Juiz a probabilidade, naturalíssima, aliás, de ter sido vítima de qualquer miragem frente à solidão do oceano e à luz agonizante da tarde.
Visivelmente compreensivo, o Doutor Juiz manifestou todo o apreço pela prudência científica do Doutor Cirurgião em relação ao fenómeno. Reconhecia que, embora transmitido sob palavra de magistrado, o assunto tinha que se lhe dissesse. Óbvio. Em matéria de conclusões a dúvida era essencial. Indiscutível. Até aí não podia deixar de concordar. Não obstante, como Juiz de longa carreira ao serviço da Verdade, propunha que o Cirurgião se interrogasse sobre as estranhas criaturas do pôr do sol porque decerto não perdia nada com isso; que as não pusesse de parte como um simples divertissement (sic) queria ele dizer; nem como uma alucinação, longe disso; que, por simples método de análise, aquilo que designara há pouco por “estranhos vultos alados” fosse classificado provisoriamente como AVNIS, “animais volantes não identificados”, enquanto não dispusessem de novos dados de identificação. De acordo? O Juiz esperava que sim, o fenómeno tinha mais que matéria para poder interessar um espírito científico. Adiantou ainda que não era por acaso que os cintilantes porcos de asas negras resultavam dum cruzamento de duas criaturas tão nojosas (palavra dele) como o porco e o morcego. As associações malditas, disse, sempre exerceram uma fascinação irreprimível no homem civilizado e em particular naquele que se interroga sobre A Ordem e A Configuração da Natureza.
Estavam nisto quando alguém veio chamar o Dr. Sequerra para acudir à menina do burrinho Pintinhas. Não foi preciso mais nada: assunto urgente, o Cirurgião, com licença, pôs-se logo a andar. De braços caídos e palavra na boca, o Juiz não teve outro remédio senão ir indo para o jantar, que já era mais que tempo para isso.
Chegou e, mal chegou, percebeu que corria uma aragem de inquietação pela sala. Trocavam-se olhares resignados de mesa para mesa, e todas as conversas eram em voz comedida, boca a boca, pouco menos, e com acenos entendidos. Havia um ar de conspiração em tudo aquilo, pensou o Juiz, mas conspiração porquê?
Porque, informou-o um hóspede aproximando-se da sua mesa, alguém, por indesculpável boa-fé, tinha resolvido mandar para a lavandaria o perturbador burro Pintinhas. Alguém, quem? quis saber o Juiz. Mas o solícito informador fechou-se num encolher de ombros: A criada de quarto? Um paquete que tivesse encontrado o brinquedo em qualquer lado e o deixasse na portaria? Por enquanto nada estava esclarecido. A imprevidência compreendia-se, se atendêssemos ao estado vergonhoso em que o animal, ou, por outra, o boneco, se encontrava. O que já não se percebia muito bem era a precipitação com que o pessoal da lavandaria o entregara à voracidade das máquinas, apesar de tão decrépito. Com que pressa? Com que fim? Devolveram-no reduzido a um trapo, concluiu o solícito informador.
O Juiz, na sua mesa solitária, ficou à espera do regresso do Cirurgião. Podia fazer uma ideia do alarme que não iria àquela hora na família da criança, mas o que também não deixava de lamentar eram os excessos de tolerância com que muitos pais administravam a educação aos filhos. Chacun à sa place, comentou, lá muito no íntimo, pretendendo lembrar com isto que o afecto e o amor ocupam muitas vezes lugares que o dever não consente, e nesse instante entrou na sala o Dr. Sequerra.
Assim que o viram alguns hóspedes pousaram o talher e dirigiram-se para ele, procurando informações. Ao que o Cirurgião respondeu, sossegando-os, que tudo bem, a situação da menina não inspirava cuidados. Estado febril, crise de excitação, disso se tratava. No entanto com a ajuda dum calmante a doente repousava agora em sono tranquilo, concluiu ele, afastando-se para a sua mesa. Mas ainda mal acabara de desdobrar o guardanapo, já tinha o Juiz à sua frente a oferecer-se para lhe fazer um pouco de companhia. “Como eu dizia há pouco”, começou o Meritíssimo puxando da cadeira.
O Cirurgião Sequerra compreendeu que vinha aí a conversa dos porcos-voadores e à cautela pôs-se a falar da menina do burrinho e da sua desventura. O Juiz não se mostrou surpreendido, “cada um traz dentro de si os seus animais particulares”, respondeu ele com um ar implacável. Dentro de si? Animais particulares? Sequerra pôs-se a riscar a toalha com o garfo. E depois: Sem dúvida que o burro Pintinhas representava para a criança uma transferência de afecto, disse então. Ou uma compensação, se assim quiser. Naquele caso, acrescentou ainda, o burro figurava como um confidente, qualquer coisa, imagem ou objecto com quem a garotinha comunicava com inteira liberdade e que lhe era indispensável para o equilíbrio do seu universo.
O Juiz ouviu-o, de olhos baixos. O burro Pintinhas não lhe merecia qualquer interesse, estava-se a ver. Devia achá-lo um capricho de criança ou nem isso. Vertebrados, seres vivos, aí é que estavam as preocupações do Juiz. Animais particulares, dissera ele ainda agora: mas para ser mais conciso acrescentava que não se referia a bonecos, fetiches ou quaisquer outras representações. Vertebrados, insistiu. Na sua designação, animais particulares eram criaturas ou restos de criaturas que cada indivíduo transportava dentro de si sem ter consciência disso. E, naturalmente, todos eles em dimensões suficientemente reduzidas para poderem habitar o homem.
“Se bem entendo”, disse o Dr. Sequerra, seriamente desconfiado, “nesse caso todos nós carregamos uma espécie de bestiário privado, é isso?”
O Juiz abriu os braços: “Porque não?” E depois, em voz pausada: “É minha convicção, meu caro Doutor, que alguns seres humanos contêm no seu interior certos testemunhos da unidade da Criação. Os tais animais que o habitam, não sei se me faço compreender, e que em geral no acto da morte se libertam do corpo hospedeiro.” Para comprovar, contou que há anos, na Áustria, no momento em que um camponês foi atingido na testa por um disparo de carabina pesada, saiu-lhe de dentro da cabeça um pequeno morcego que cresceu rapidamente assombrando os circunstantes. O tiro do morcego, pensou o Cirurgião sem levantar os olhos do prato.
Mastigava sem vontade uma comida de dieta que era ou que lhe pareceu naquela noite desnecessariamente insossa. Beringelas em rodelas tão transparentes que não tinham sabor nenhum. Vitela cozida em águas tristes como num repasto de frades pedintes. E tudo isto em pratos de boa porcelana e talheres de cristofle num exibicionismo pretensioso. Tudo isto com um Meritíssimo carregado de doutrinas a zumbir-lhe aos ouvidos. E já era tarde, já se viam criados a levantar as mesas, altura de deixarem a sala. Dali cada qual só podia ir para o seu quarto ou juntar-se aos hóspedes que viam televisão, não havia outra saída.
E não houve. Assim que arrumou a cadeira, o Dr. Sequerra sentiu a mão do Juiz a agarrar-lhe o braço e daí a nada entravam os dois, muito apessoados, no vasto e desolado salão-concerto.
Salão-concerto, muito bem, mas só para passear e discorrer dum lado para o outro a largas passadas, era a regra do Juiz. E sempre cá ao fundo, sempre o mais longe possível dos cinco ou seis hóspedes que faziam horas para a cama diante do écran estupidificador. Passear, pois. Eles aí estavam, os dois doutores, o do corpo e o da razão. Passear com largueza debaixo de candelabros de cristal além de exercício de muito arranjo na digestão permitia ao magistrado didáctico novos comentários aos animais interiores do homem que se julga civilizado.
Levando o Cirurgião pelo braço, voltava, se lhe era permitido, aos porcos-voadores que tinha visto nessa tarde pela quarta vez. Exacto. Quarta vez em pouco mais de uma semana. E agora pudera observar com maior à-vontade, agora tinha a certeza certezíssima que as criaturas do pôr do sol eram uma associação de dois mamíferos, um dos quais subiu à categoria de voador. Porco e vampiro, alguma vez alguém poderia imaginar semelhante cruzamento?
O Cirurgião, para cá e para lá, começava a andar perdido naquelas confusões de sóis poentes. Teve um desabafo, como se pensasse em voz alta: “Deus criou o cão que nunca mais o largou e para se ver livre dele criou então o homem.”
“Como?” perguntou o Juiz. Pareceu-lhe ter ouvido qualquer coisa sobre o cão, pedia desculpa, mas era ao porco que ele se estava a referir. Ao porco e ao vampiro, uma associação que nunca julgara possível. E no entanto vira, sabia. Depois de muito ponderar chegara mesmo à conclusão que havia uma certa lógica naquela aliança. Vejamos, disse: dum lado um rato de feitiçaria, o vampiro; do outro, o suíno, besta associal e desprovida de virtudes que as religiões excomungaram como demónio da ignorância e dos prazeres imundos.
“Religiões, é como quem diz”, cortou o Cirurgião Sequerra com a voz à beira do sono. “No catolicismo, por exemplo, não há qualquer condenação do porco, penso eu.”
“Não?” O Juiz fez um sorriso tolerante e lembrou o Porco-Sujo que na sabedoria popular era o diabo aldeão assinado com todas as letras. “Isso não queria dizer nada?” perguntou.
O outro, nem sim nem não, murmurou um talvez desinteressado. Queria-se era nos lençóis a ler o Reader's Digest e talvez já fosse tempo de ir indo. “Vou indo”, disse estendendo a mão a despedir-se.
“Também eu”, disse o Juiz. “Mas para terminar, meu caro Doutor, ainda uma coisa. Para terminar, é bom que a gente não deite fora, de ânimo leve, a tal hipótese dos animais interiores.” Prendia a mão do doutor Sequerra na dele. “Compreende? Não é verdade que de porco e de louco todos temos um pouco? E não é igualmente verdade que se queres ver o teu corpo mata o teu porco? Pense no significado destes provérbios, Doutor. E diga-me de quantos animais é que o homem é feito.”
Deixaram-se no corredor, um para cada lado. “Ah, os animais interiores, os animais interiores”, sorria o magistrado, afastando-se, a abanar a cabeça. Se ele tornou a ver porcos-voadores foi coisa que o Cirurgião Sequerra nunca chegou a saber, porque logo de manhãzinha se meteu no carro e regressou à cidade.
Só muito tempo depois, um colega lhe falou do Juiz e dessa vez por causa dum enorme quisto dermóide que lhe tinha tirado. O embrião duma cauda para aí deste comprimento e revestido de pêlos, foi como o operador descreveu o corpo estranho. Disse que o homem andava com aquilo a crescer-lhe não se sabe há quantos anos e que quando o viu recusou-se a acreditar que fosse dele.
O Cirurgião Sequerra fez um sorriso: tinha vislumbrado por instantes o Juiz Fabulador com uma cauda de porquinho em forma de vírgula a dar a dar. E ao mesmo tempo pensou também no hotel das termas à beira do oceano e teve vontade de ir até lá e passear no parque por entre as árvores antigas e figuras de pedra perdidas na ramagem. Do pôr do sol não se lembrava, era como se nunca o tivesse visto. Mas da menina do burro de brincar, sim: dessa tinha uma recordação muito exacta e tranquila.
Sabia que desenhara o retrato do Pintinhas numa folha de papel, um retrato que ninguém mais compreendia mas que era o dele e que agora a acompanhava em todos os seus sonhos ao lado do travesseiro.
AS BARATAS
Quando o estrangeiro errante chegou à boca da mina com aquela capa ao vento, o céu turvou-se de repente e a luz empalideceu nas galerias subterrâneas.
De figura era um homem triste, escanzelado, e, ao que parece, não tinha linguagem de gente. Ou se a tinha não passava dum gargantear desesperado das europas arrevesadas, Boémias, Morávias e outras que tais, como recorda hoje o antigo padre da paróquia dos mineiros, e só por aí já se podia concluir que se tratava dum judeu, como, de resto, lhe estava escrito no formato do nariz e no apelido com que se apresentou.
Kapa, engenheiro Kapa. Foi assim que o administrador da mina o deu a conhecer ao pessoal. Vindo donde se diz que veio, e com semelhante nome, nunca homem algum podia ser um verdadeiro cristão nem que andasse vestido de São Pedro. O padre dos mineiros, que era germanófilo nazi por causa dos comunistas, suspeitava que, se fôssemos a investigar, o apelido não seria mais que a inicial luterana K disfarçada em extenso por motivos clandestinos. A menos, outra hipótese a considerar, que Kapa, escrito a negro e nas letras esvoaçantes com que o homem se assinava, não passasse duma alcunha relacionada com a capa funerária que ele trazia pelos ombros noite e dia. Se assim fosse, teria sido o próprio engenheiro a baptizar-se com aquele sobrenome de consoante trocada, o que, sendo pouco provável, não era nunca impossível, dado que os semitas são capazes dessas judiarias e doutras muito piores.
Mas seja. Fica Kapa, que é como ele figura na Polícia e nos livros da empresa. Franzisko Kapa umas vezes, noutras Franz Kapa ou Franz K., mas sempre engenheiro de minas. Como engenheiro sabe-se que foi remetido, por quem de direito, para aquele povoado fronteiriço com a Espanha, assente sobre galerias subterrâneas na maior parte abandonadas e batido pelos ventos quentes do sul. Castro Alvor chamava-se àquilo. Umas dezenas de habitações de mineiros com uma igrejola a comandar, um poço, uma tenda - e disse. O engenheiro logo que chegou foi ocupar uma casa que lhe estava designada e que era histórica, segundo consta. Ainda lá está, ainda se pode ver uma caveira em labaredas pintada no tecto duma sala que outrora funcionou de Casa de Despacho e de Secreto do imaculado tribunal do Santo Ofício. Parece, não há a certeza, que foi ali que o arquiduque-cardeal Alberto ouviu, na mais cuidadosa clandestinidade, os ricos comerciantes espanhóis que lhe vieram cair às mãos por artes do Diabo e da Santa Madre Igreja.
O engenheiro se alguma vez soube destes factos nunca se deu por achado. Para ele todos os passados eram letra-morta, ou como tal. Nada de desafios, nada de os lembrar. Nascido e criado numa capital da Boémia ou doutro reino assim, teria fugido à invasão dos guerreiros que in namen des Führer lhe queimariam as irmãs e a mulher nos fornos de Treblinka, de Belsen, ou doutro campo de concentração qualquer. Atravessara a Europa, espavorido, e só parou quando deu de caras com o mar Atlântico onde a polícia portuguesa lhe deitou a unha sem mais aquelas. Parecia alucinado e tremia de medo. Verdadeiramente meschugge, como se diz em yiddisch quando a loucura se apossa da pessoa. Se louco ou não, só depois se veria. Preso e interrogado para os devidos efeitos, veio-se a descobrir que era um especialista de nome em matéria de minérios e, como tal, foi colocado no ano de 42, terceiro da Segunda Guerra Mundial, nas hoje extintas minas de volfrâmio de Castro Alvor onde exerceu o cargo de chefe de exploração até ao fim dos seus dias. Oficialmente, estava contratado a baixo preço por uma sociedade portuguesa, subscrita por dois ministros e dois argentinos de contas secretas, que fornecia a indústria de guerra alemã, como foi confessado mais tarde por Walter Schellenberg, chefe da contra-espionagem de Hitler (Walter Schellenberg, Informe à Câmara de Desnazificação de Tübingen, 1946.). Francisco K. muito provavelmente morreu nessa suspeita, mas sabia que se desertasse das minas seria entregue aos nazis num abrir e fechar de olhos.
[Subinspector Alvernaz da Polícia Política, Informação: “De reconhecida competência profissional, o citado não vem mantendo quaisquer relações pessoais, quer no local de trabalho, quer na vizinha povoação onde reside.”]
Por tudo isso, por ser tão reservado é que pouco ou nada se conhece do passado de Franzisko Kapa, e quanto aos anos de servidão nas minas de Alvor o que se recorda dele é que de vez em quando rolava os olhos como um visionário que relembra mundos inconfessáveis. Nesta sua metamorfose de criatura apátrida e sem família circulava de dia pelos labirintos subterrâneos que ia escavando incansavelmente e à noite fechava-se em casa a desenhar insectos e a beber aguardente de medronho.
“Alheio à Igreja e refractário a qualquer convívio social”, cf. Relatório da Polícia Política, o engenheiro dedicava os seus tempos livres à investigação dos insectos, interessando-se muito particularmente pelos antropófilos e cosmopolitas, assim designados devido à sua tendência para procurarem a companhia do homem. Baratas, sobretudo (ah, sim, as baratas eram a sua perdição.) Franzisko K. vivia com um gatarrão enorme, tão preto e tão lustroso como a capa que ele próprio vestia e que se deslocava ao correr das paredes em contínuo sono aparente.
Supõe-se que isto dos insectos era uma obsessão resultante da convivência com as baratas de Castro Alvor que lhe infestavam a casa. Legiões e legiões delas, não é exagero. Gerações atrás de gerações, uma praga. E o terrível é que de pais para filhos, as baratas aumentavam de número e apareciam cada vez mais avisadas, cada vez mais engenhosas e mais carregadas de cheiro pestilento. Uma praga, realmente. Um pesadelo.
Franzisko Kapa, logo que se instalou na povoação, lançou-se numa cruzada contra elas que se iria prolongar por sete anos bem contados e na qual viria a sucumbir, louco e desfigurado. Com assombro e com pavor foi-lhes aprendendo as sagacidades e principalmente as incríveis resistências de que eram dotadas. Como ensinavam os tratados, setenta por cento dos animais do universo são insectos, mas destes coubera-lhe a espécie mais repugnante e sem dúvida mais persistente: a modesta e inconfessada Blatta doméstica que aparecera na Terra há mais de um milhar de milhões de anos e que Lineu, biógrafo da Natureza, nunca soubera descrever com a merecida atenção. Ele, sim, iria desvendá-la por inteiro nos seus segredos mais ferozes e combatê-la até à extinção total. Arregaçou as mangas e, vai disto, começou.
A princípio recorreu a armadilhas convencionais e mais ou menos populares, tais como as barateiras mecânicas com isco de vinho tinto, os pós de bórax e as fumigações de enxofre. No dia seguinte era garantido que ia encontrar montes de cadáveres ao longo dos rodapés, e ainda mais à volta das latrinas e das pias de pedra que eram os lugares que as baratas procuravam em refúgio de agonia.
Mas se à noite se levantava uma asa de vento sul, tudo se animava misteriosamente. Franzisko Kapa acordava, sobressaltado por murmúrio de antenas a vibrar, um rocegar sedoso de patas e um cheiro áspero e crestado, cheiro de decadência e de mistérios de esgotos, e lá estavam elas outra vez. Elas, pois, as baratas. Vinham às centenas povoando a escuridão num fervilhar de patas, correndo e imobilizando-se à mais leve suspeita de luz; hesitando e progredindo às arrancadas; deixando ovos à paisagem - larvando, larvando.
Imóvel, os olhos pregados no escuro, o engenheiro pressentia-as a amarinharem pelas paredes, a explorarem o tecto, por cima dele. Adivinhava-as a percorrerem os lençóis: não tardaria muito, sentiria uma delas a passear-lhe nos lábios transportando o seu terrível odor, e só essa ideia o fazia estremecer de medo. Medo. Não nojo: medo autêntico, daquele que nos arrefece por dentro. E então, num golpe meditado, estendia o braço para a mesa-de-cabeceira, abria a luz de surpresa e tudo desaparecia num restolhar de bichos em fuga. No resto da noite só conseguia dormir de candeeiro aceso.
A princípio isso resultava, mas cada nova praga trazia a sabedoria das anteriores e, às tantas, as baratas já não temiam a luz. Quando muito distribuíam-se pelos cantos mais sombrios (só um olhar experimentado seria capaz de as descobrir, apesar de serem tantas) movimentando-se numa total indiferença. O engenheiro continuava a luta, não desistia. Do enxofre passou ao DDT mais concentrado, das barateiras rudimentares aos engenhos camuflados do tipo trap-a-roach; do DDT e da guerrilha armadilhada aos gases tóxicos que, diga-se de passagem, também o punham a ele próprio em risco de morte, e assim sucessivamente.
Porque ao cabo de tantos anos de luta o engenheiro aprendera de facto o inimigo. Armado duns óculos grossos, sempre sujos, mas incansáveis, descobrira para sua desgraça que a Blatta, essa apagada criatura, resistia diabolicamente à água devido à sua casca impermeável e por isso podia entrar na paz doméstica do cidadão pelos canos ou pelos esgotos mais fedorentos; que no acto de morrer as fêmeas libertavam ovos para prolongarem a espécie e que cada ovo vinha imunizado contra os venenos que tinham destruído a mãe; que eram aos milhares por fêmea, esses ovos, e cada um deles apto a fazer-se rapidamente bicho autónomo para ir à vida. Tudo isso, tudo isso. O engenheiro tomava nota e não se deixava abater. No laboratório da mina ia ensaiando químicas cada vez mais exterminadoras, à medida que as invasões de baratas se sucediam umas às outras, mais couraçadas e mais invulneráveis.
[Polícia Internacional de Defesa do Estado, subinspector Alvernaz: “O suspeito há muito que se vem dedicando a práticas laboratoriais nas instalações da empresa e fora das horas de serviço. Tais actividades, realizadas a sós e em fechado sigilo, estão a ser objecto de vigilância por parte dos informadores desta Polícia, na suposição de que visem objectivos de sabotagem.”]
Franzisko K. transformou-se assim num erudito e pertinaz depredador desta família de insectos. Blattae blattidiae, exconjuro vobis, o coeli, parecia ele congeminar, à maneira de exorcismo, quando investigava à lupa o cadáver das baratas. Estendidas de costas (era assim que a morte as deixava, de costas e na posição sacramental) as baratas tinham as patas cruzadas sobre o peito e as antenas pendentes, emurchecidas. Mas não nos iludamos, em vida aquelas criaturas mesquinhas desafiavam a tenacidade do homem: prolongavam-se para lá dele com uma indiferença suicida.
Para lhes fazer frente o engenheiro tinha reduzido a habitação ao essencial. Com o tempo fora-se libertando dos móveis infestados de larvas, tapando frinchas e buracos, eliminando os recantos suspeitos. A casa, outrora secretaria de inquisidores seiscentistas, era agora uma vasta cela de monge, chão nu, paredões de pedra, uma mesa e uma cama com o Handbuch der Entomologie, de Schrõder, e o Código dos Insectos, de Bank, à cabeceira. Nenhuma recordação do passado, nada que lhe pudesse recordar gente, família, paisagens ou vozes do tempo vencido. Como ilustração tinha a caveira em labaredas a iluminar o tecto, mas isso era da história do casarão e não da sua. Pouco a pouco, porém, começou a rodear aquele espaço deserto com desenhos que colocava nas paredes. Desenhos enormes, coloridos. Gigantescas figuras de insectos que ele desenhava com mão nocturna e minuciosa num rigor de cientista aplicado.
Sete anos de guerra, sete, foi quanto durou este homem na solidão de Castro Alvor. Com o encerramento da mina depois da derrota alemã, a aldeia, que não passava dum amontoado de casebres, despovoou-se num abrir e fechar de olhos, e ele ficou esquecido por lá. Esquecido num silêncio de ruas mortas assaltadas pelas baratas, foi o prémio que a guerra lhe deu. Nas noites em que o vento quente do sul varria os telhados, elas corriam pela casa como loucas, excitadíssimas, e Castro Alvor era um festim de antenas a ondular. Então, na única janela iluminada da aldeia, recortava-se a silhueta do engenheiro, sozinho e de spray na mão, a fazer frente à arrogância dos insectos.
Sete anos, sete guerras, o campo dos mortos crescia, crescia, era uma extensão de cascos escuros, e no ar deslizava o árido e terrível odor dos bichos como uma exalação da peste. Era uma arma, esse cheiro. Com ele as baratas exerciam a atracção sexual entre si para prolongarem a espécie, e com ele repeliam o inimigo; com ele, também, marcavam os territórios que invadiam, cobrindo-os com esse selo invisível, essa pestilência, que as tornava presentes mesmo depois de mortas. A uma repulsa assim tão violenta nenhum animal resistia a não ser o gato da casa, observou o engenheiro. Mas o gato, enorme e sonolento, que a princípio ainda estendia a pata e brincava com as baratas que lhe passavam ao alcance, com o tempo desinteressou-se. A multidão dos insectos cresceu de tal modo à volta dele que acabou por o cobrir e entontecer, encerrando-o numa conspiração de patas buliçosas e de antenas a ondular.
[Comissão Liquidatária da Sociedade Mineira do Alvor, Relatório: “Não se vê inconveniente em que o referido engenheiro continue a ter acesso às instalações das minas até à liquidação oficial das mesmas, considerando-se, inclusivamente, que a sua colaboração pode ser de algum interesse para o inventário a que estamos procedendo.”]
Com os calores de verão, Franzisko K. passava os dias e as noites no laboratório da mina abandonada (em noite perpétua, pode dizer-se) livre das baratas assanhadas e dos vapores pesticidas que lhe dominavam a casa. Ali meditava os insectos que andavam à solta pelo mundo alguns metros acima das cavernas para onde se tinha retirado e onde cumpria a maior parte do tempo estendido numa enxerga, com a mão a pender para uma garrafa de aguardente. Recapitulava de memória as espécies mais remotas de baratas, aquelas que só conhecia dos livros: a Blatella germânica, loura e migradora, a americana, também dita portuária, que atravessava os mares no ventre dos navios e, maior que essa, a Blatta dos arquipélagos, do tamanho dum escorpião gigante, qualquer delas produzia milhares de filhos por ano, abrenúncio, qualquer delas tinha antepassados que vinham da Idade Carbónica e repetia-se por todos os séculos dos séculos deste nosso planeta. Franzisko K. perguntava-se quando e em que quantidade o vento dos trópicos lhe traria um dia a amaldiçoada praga de baratas voadoras a que os sábios nunca se referiam mas que ele aguardava há muito tempo.
Rodeado de insectos perpetuados em frascos de vidro, como múmias, ou em ampliações gigantescas desenhadas a traço fino, o engenheiro tinha por companhia um velho rádio varrido por ecos fantasmas que quando o vento soprava do sul era assaltado por revoadas de discursos ululantes vindos do deserto magrebe ou dos rebanhos de Alá. Verdade se diga que o engenheiro já nem o escutava, porque da mesma maneira que tinha perdido a face do passado também ia esquecendo a voz do presente. Bebia e sublinhava tratados em constante confidência com a sua aguardente de medronho. E bebendo e passando páginas, folheava formigas carnívoras, cegas como a rainha africana mas incomparavelmente mais vorazes; escorpiões voadores, os escorpiões nunca faltavam no seu bestiário; pulgões-elefantes, de trompas elásticas com ventosas na ponta; percevejos eremitas, os mais temíveis porque o engenheiro lhes acrescentava escamas no abdómen; moscas albinas, quase invisíveis de tão brancas - o mundo, já lá dizia o outro, é um nunca acabar de enredos vivos.
[Professor Wentzien, da Academia de Insbrück: Certas ordens mais antigas, como a dos ortópteros, demonstram uma extraordinária resistência aos ambientes agressivos. Em caso de contaminação nuclear do planeta, a capacidade de adaptação destes insectos pode permitir-lhes que sobrevivam e que porventura se desenvolvam em metamorfoses de surpreendentes dimensões.”]
Às vezes, no meio das leituras de maldição, o engenheiro saltava da enxerga e, um olho na lupa, outro no papel, punha-se a desenhar este ou aquele insecto que tinha em observação no microscópio. Desenhava-o sempre enorme, à escala do delírio, e sempre erecto e em corpo inteiro como se ascendesse na vertical, mas à medida que o ia trabalhando aproximava-o infalivelmente da configuração duma barata. Barata enxertada em libélula, barata com unha assassina de lacrau ou com a trompa velocíssima do mosquito, barata-escaravelho, córnea e de mandíbulas com serrilha, baratas-matriarcas, providas duma insaciável bursa copulatrix que as envolvia de alto a baixo, baratas, sempre baratas. Quando terminava, atribuía a cada desenho um nome latino apontado numa bela caligrafia germânica e assinava: Franz K. Assim vivia agora. Entre a enxerga e a mesa coberta de cadáveres, retortas e dissecações, e com imagens de insectos descomunais a penderem das paredes.
Mas voltando atrás:
Voltando atrás o, assim chamado, laboratório da mina não era mais que um compartimento envidraçado, à entrada da primeira galeria, onde se faziam as análises das amostras minerais. Uma gaiola de ácidos a fumegar: de fora, quem a espreitasse entreveria, no meio duma luz branca, gelada, o vulto do engenheiro perdido num rolar de fumos.
Com o correr dos anos a mina fechou e a poeira e a humidade cegaram os vidros com uma fuligem espessa, impenetrável. A partir daí se um viajante, depois da povoação deserta, metesse à planície e deparasse com vagonetas afogadas em vegetação bravia; se, adivinhando os rails soterrados, os seguisse e fosse até um largo portão de ferro que deslizava sobre calhas; e o abrisse; e continuasse no trilho das vagonetas, descendo a rampa de entrada da mina por baixo duma confusão e cabos eléctricos a soltarem-se do tecto; se depois, ao primeiro patamar, olhasse à esquerda uma gaiola envidraçada, anónima e polvorenta; e entrasse; e resistisse ao encandeamento da luz que lhe caía em cima, então o viajante reconheceria, assombrado, que se encontrava num antro de insectos delirantes. Ou antes, num santuário de imagens majestosas de bichos desfigurados. Descobriria ainda que algures, a um canto, havia alguém sentado numa enxerga: um velho, surpreendido com a mão numa garrafa de aguardente.
Talvez sentisse nessa altura um tropel de vozes guturais vindas das áfricas beduínas - sim, podia acontecer. Mas era um rádio esquecido numa prateleira, nada mais; um rádio a transviar, a enlouquecer, e esses acessos só se revelavam quando os ventos quentes do sul andavam à solta. Se assim fosse, o velho estaria tolhido no seu canto a rolar os olhos, desconfiado, e ficaria ainda mais retenso ao ver chegar o intruso, porque receava que ele fosse portador do cheiro maldito que reinava lá fora: as baratas. Pensava nelas, não fazia outra coisa, e quando os calores africanos corriam pela planície, agarrava-se à aguardente e bebia, bebia, para aquecer e olvidar. Por fim, com as goelas queimadas e os olhos grossos, tresnoitados, adormecia de pancada e tinha um sonho sempre o mesmo. Sonhava com um prado nocturno polvilhado de pirilampos.
A paisagem era a da baixa infância, planícies, solidões luminosas atravessadas por um rio que podia ser o Certovka ou Ribeiro do Inferno mas que no sonho aparecia seco e transformado numa entrada pedregosa entre choupos e salgueiros. Numa das margens estendia-se um prado de girassóis, salpicado de enormes cavalos de madeira e com um deslumbrante coreto dourado a brilhar ao sol no horizonte. Só que de repente fazia-se noite (ele mesmo a sonhar já sabia) e os girassóis adormeciam pendendo as enormes cabeças para o chão. E então, no leito do rio seco começava a correr um fio de luzes como se fosse um regato de estrelas, e ele, Franzisco K., tinha um arrepio de estranheza porque descobria que afinal o que ali ia era um cortejo de índios, índios da América, revestidos de centenas de vagalumes para poderem ver na escuridão.
Sulcavam a noite por entre girassóis dormentes, e entretanto, lá longe no coreto dourado, apareciam damas em camisa de dormir com os cabelos salpicados de pirilampos a brilharem como jóias vivas. Estavam constantemente a juntá-los e a sacudi-los na concha da mão para não os deixarem perder a luz.
Franzisko K. acordava quase sempre neste ponto, com punhados de pirilampos a reacenderem-se no escuro. Mas certa noite, num fim de verão, a agitação das luzes trazia vozes e percebeu que já não era o sonho, era o rádio. Transmitia uma tempestade de discursos rasgados pelos ventos do deserto e esses ventos não tardariam a carregar sobre Castro Alvor, admitiu ele.
Conhecia os discursos como alarmes, como avisos, mas o pior é que desta vez vinham mais desvairados do que nunca, a avaliar pela confusão de vozes que saía do aparelho. Mais venenosos, mais ásperos. Por muito que tivesse ouvido aquele linguajar berbere, o engenheiro jamais o conseguira decifrar. Sabia ou adivinhava que fossem os Árabes a bramarem contra os ventos num desespero que os próprios ventos rasgavam com rajadas impiedosas. Inútil mudar de estação porque aquele clamor enchia o quadrante; para o calar só desligando o rádio.
Desligou. Saltou da enxerga e cortou-lhe o fôlego. Acabou-se, disse em voz alta, agora podia descansar porque os ventos abrasadores nunca chegariam até àquele subterrâneo e muito menos as baratas. O frio da mina expulsava-as para longe.
O engenheiro limpou os óculos pacientemente e fechou-se todo na capa preta. Estava há semanas trancado naquele gabinete para fugir às baratas que ocupavam o povoado. Aparentemente fazia só tempo, mas na realidade estudava, a salvo e em tranquila solidão, quais as maldições desses insectos pestilentos, as baratas, comparando-os com os outros que tinha em exposição numa prateleira de frascos.
Aproximou-se dum deles. De pinça no ar, contemplou a personagem que iria desenhar à lupa com todo o rigor dum cientista iluminado. Mantis Religiosa, era aquela. Mantis Religiosa, de seu nome oficial, mas na realidade um vulgaríssimo louva-a-deus irmanado com o verde inocente das tenras ervas do prado.
No entanto, quando olhada ao microscópio, peça por peça, segmento por segmento, a suposta inocente transformava-se numa criatura sinistra, e mais sinistra ficou ainda quando o engenheiro Kapa se pôs a retratá-la à escala dos insectos-patriarcas da sua galeria. Tinha uma cabeça-caveira que a tornava semelhante a um carrasco encapuçado e dois braços recolhidos em posição de oração mas revestidos de espinhos para agarrarem a vítima, dois braços que prendiam rezando, como os monges da Inquisição; e olhos fixos, gelados; e boca miúda, donde espreitavam dois ganchos vorazes.
Com a aplicação dum copista iluminado, o engenheiro foi ampliando o modelo milímetro a milímetro. Talvez sem se aperceber, carregou as asas de solenidade, transformando-as num manto austero; onde estava verde pôs tons de cobre que não tardaram a escurecer até ao púrpura-negro; as patas revestiu-as de muitas unhas e no abdómen cavou os anéis em forma de cruz; ensombrou os olhos, alongou a cabeça de tal forma que se assemelhava a uma mitra de cardeal. Resultado: com toda a majestade de que fora investido, o retrato a corpo inteiro tinha muito mais a ver com uma barata imperial do que propriamente com o louva-a-deus. Pôs-lhe um nome: Blatta Religiosa. E assinou: Franz, tantos de tal. (Datava todos os desenhos, nunca se soube porquê).
A nova personagem alinhava perfeitissimamente com as dos painéis expostos na parede, austeras e de frente para nós como juízes ou patriarcas. O engenheiro serviu-se da garrafa de medronheira e ficou-se a contemplar a obra. Gostou. Franz, tantos de tal. Estendeu uma mão distraída para o rádio e ligou.
Mas o rádio agora estava totalmente desesperado. Agora em português (em português, não havia a menor dúvida) transmitia mensagens de alarme, avisos às populações, comunicando que avançavam sobre o país poeiras radioactivas transportadas pelo vento sudeste, poeiras radioactivas, poeiras radioactivas, não se cansava de avisar o locutor numa voz que parecia o vento a correr sobre a crista das ondas, e era do mar que vinha o extermínio, do Mediterrâneo, ao que se supunha.
Perante isto, nada de ilusões: Franzisko Kapa não podia sair dali, estava prisioneiro das profundidades rochosas. Até quando?
Pousou tristemente os óculos sobre a mesa e mostrou uns olhos empalidecidos como que a desfazerem-se nas órbitas. Ali nunca era dia nem era noite, a luz gelada do néon apagara a cor do tempo, mas lá em cima a vida secava. Lá em cima, a mortandade alastrava à flor do planeta e espalhavam-se avisos; e nas cidades, imaginava o engenheiro, haveria populações encerradas nas caves, nos abrigos militares e nos túneis de metropolitano, o mundo a fugir à luz como baratas espavoridas; ruas e ruas assaltadas por bandos de ratazanas, as ratazanas resistiam quase tanto à destruição universal como as baratas e movimentavam-se tão à vontade nas cidades e nas vilas que toda a gente desertava em direcção ao mar; brigadas de socorro armadas de máscaras e detectores, o engenheiro até já ouvia as ambulâncias a ulular; um calor denso, chamejante e o velho rádio a sacudir-se em estertores de avisos e recomendações.
Franzisko Kapa correu ao armazém da mina onde guardava as provisões. No meio de caixotes, capacetes a monte, máscaras e lanternas, pôs-se a fazer conta às conservas e às garrafas que lhe restavam. A seguir pegou num balde e dirigiu-se à mais profunda das galerias, lá onde a água que escorria da rocha demoraria mais tempo a ser contaminada - muito bem, disse, e procurando chamar a si toda a possível serenidade, sentou-se ao telefone embora sabendo que não valia de nada porque o telefone há séculos que não funcionava. Em todo o caso tentava. Investigou os cabos eléctricos, percorreu ligações, manejou cavilhas, mas sem qualquer esperança porque da vida só conhecia pedras e insectos, nada que o levasse a comunicar com os humanos.
Então sentou-se na cama, de frente para o rádio, e ficou-se a contar o tempo pelos sinais horários.
[“Por ora não temos confirmações seguras, o Instituto Geofísico limitou-se a informar que a onda contaminadora se apresenta com uma densidade média” - locutor de serviço, Radio Nacional de España.]
Ao cabo de nove dias apontados, cruz a cruz, na parede, o rádio cansou-se de transmitir ou se transmitia era em onda marítima, pesqueiros a cumprimentarem-se uns aos outros, braças e códigos de bússola e vozes à deriva pelos oceanos. Franzisko Kapa nessa altura já estava mergulhado numa meia sonolência. Enchia a barriga com água para poupar provisões, mas mesmo assim cada golo de aguardente era uma pedrada de sono que caía dentro dele. E ainda bem, ao menos enquanto tivesse aguardente poderia vencer melhor o tempo sem sair da enxerga que estava imunda e encharcada de líquidos ácidos a arderem-lhe na carne. Diarreia. A diarreia tinha tomado conta dele e não se sentia com a menor vontade para se levantar, nem que fosse para apanhar os óculos que lhe tinham caído há dias no chão. Nem os dentes. A dentadura também estava esquecida algures, não interessava onde.
Subitamente pareceu despertar, era dia, era noite? Encostou o relógio ao ouvido, o tempo não tinha parado. Mas que tempo? E que lugar? Que lugar era aquilo, aquela caverna repassada de luz branca com patriarcas-insectos a vigiarem-no nas paredes, a toda a volta? Antes de mais nada, os óculos - precisava de encontrar os óculos. Desceu penosamente da enxerga e ajoelhou-se no chão, estendendo os braços às apalpadelas. Nada. Ao pé da cama nada, e mais adiante também não. Pôs-se de pé para se orientar e foi nesse momento que os sentiu estalar debaixo da bota: a partir dali estava cego.
Cego, cego, como o insecto mais negro e mais subterrâneo.
Chorou agarrado a esse punhado de estilhaços de vidro que era a luz dos seus olhos até ficar seco por dentro e aceitar que estava mais sozinho e mais fechado em escuridão. Mas pressentia vultos a farejarem-no, ah, disso não tinha dúvida. E fechou-se, apavorado, na capa que estava rígida, revestida de fezes secas já, e era um manto áspero, uma casca. Recuou. Cego e a tremer, ficou colado à parede por baixo dos retratos majestosos dos insectos, abrindo e fechando a boca desprovida de dentes.
Ficou horas assim. A definhar, a perder consistência, face aos vultos confusos que o ameaçavam nas paredes com uma ferocidade de patriarcas. Por baixo do negro manto que lhe cobria o dorso apareciam uns dedos frágeis que tacteavam a medo e da boca pendia-lhe um fio de baba até ao chão. Baba? Exactamente, baba. Uma linha cristalizada que o dividia ao meio na vertical. O resto era tudo vago, sombras e contornos inimigos a encherem a sala, e ele a mascar o medo na boca muda e desdentada.
Até que o desespero ou a inconsciência lhe despertaram um resto de coragem, fazendo-o romper o cerco do terror. De repente, sem saber como, viu-se a atravessar a escuridão rochosa a caminho da saída da mina e logo depois já estava agarrado aos batentes do portão a jogar todo o peso do seu frágil corpo para o abrir. E o que é certo é que conseguiu, o desespero tem muita força. A pesada placa de ferro estremeceu, deslizou nas calhas, e acto contínuo caiu sobre ele um sol tão violento e tão certeiro que o deitou por terra ali mesmo.
Estatelou-se sobre um cascalho vivo, uma nuvem negra e rumorejante que se apossou dele rapidamente, penetrando-o pela roupa, pela carne, pelos cabelos, e essa nuvem, essa praga obstinada, crepitava-lhe no corpo com milhares de pequenas patas e de estalidos secos. Baratas. Perseguidas pelo calor, as baratas tinham-se lançado à planície procurando a humidade da mina. Mas tinham esbarrado no portão, amontoando-se, fazendo onda, e era nesse mar fervilhante que Franzisko Kapa se debatia. Esperneava, esmagava corpos; em pouco tempo estava afogado numa massa leitosa de insectos esventrados, queimado, ressequido pelo terrível cheiro das baratas no meio dum amontoado de destroços, cartilagens, asas crespas, vibrações.
Num último esforço conseguiu libertar a cabeça e encarar o sol. Parecia um bicho decrépito a olhar a luz do dia enquanto uma infinidade de pequenos seres o sepultavam apressadamente. Mas nessa altura ele já não os sentia nem via a planície de Castro Alvor. Via, sim, um prado de girassóis salpicado de estátuas de cavalos e um coreto dourado a cintilar no horizonte.
LULU
Duma vez por todas: a nebulosa Rua do Bisonte que eu contei no romance de Alexandra Alpha não se chamava nada assim e se calhar nunca existiu.
Conforme escrevi na altura, Alexandra Alpha só conheceu a dita rua por descrições de uma amiga que lá morava e presumivelmente por uma ou outra aproximação nocturna que tivesse feito ao local. Sabia que começava numa loja de esquina conhecida por Leitaria do Bisonte (há indicações de que chegou a parar o carro à porta do estabelecimento) mas não passou daí e jamais viu ou vislumbrou o propriamente Bisonte luminoso que estaria lá dentro, atrás do balcão, com um cigarro pendurado na boca e em toda a imponência do tumor luzidio que lhe caía dos queixos até ao peito da camisa crepitante. Camisa de nylon, escusado será dizer, o Bisonte usava sempre camisas de nylon cigano, daquele que despede electricidade e eriça a pele, mas Alexandra ignorava o pormenor. Ou se não ignorava era porque a tal amiga lhe tinha revelado esse e outros a propósitos, tais como a maneira como a rua terminava de surpresa num tapume das traseiras da Avenida de Roma, e como se apresentava permanentemente toldada por uma neblina difusa que talvez não passasse duma ilusão, dum estado de espírito.
Realmente, neblina ali porquê. Com que sentido. E a leitaria? Alguém podia conceber uma lojeca tão sórdida num centro burguês de Lisboa como a Avenida de Roma? Leitaria do Bisonte, com esse nome e esse mesmo cenário, conheço eu que há uma (ou conheci, já nem sei) mas lá para a parte velha e enjeitada da cidade num quase subúrbio a cheirar a restos de Tejo e a armazéns de carga pesada: Marvila, suponho eu, 11º bairro fiscal. Quem andou alguma vez por ali com certeza que não esqueceu a Travessa do Capitão Ornelas, porque é a única rua daquela área que não tem saída.
Esta indicação é suficiente, não há confusão possível. Quem chega vê à esquina a leitaria (se é que a leitaria ainda existe) e uma calçada a subir com sete ou oito prédios dum lado e doutro; lá ao cimo, de repente, a saída cortada por uma cancela. Apeadeiro dos caminhos-de-ferro, é o que se depreende logo pela plataforma de pedra destinada aos passageiros, mas apeadeiro que há muito que não é apeadeiro porque a cancela está cercada de ervas e só lá passam comboios de mercadorias a ofegarem como quem vai de castigo. Fumegam, imagine-se. Pelos vistos, naquela linha as máquinas ainda são a carvão. A gente ouve uma campainha de aviso, sente a aproximar-se um apito antigo a caminho não se sabe donde, o guarda da passagem de nível comparece bem à vista, de bandeirinha na mão, e acto contínuo apaga-se com ela no meio duma fumarada banca.
Portanto, a Travessa do Capitão tem o correr dos dias assinalado por ondas de vapor que a cegam durante momentos. Pelo menos tinha. A certas horas e a certos ventos irrompiam por ela fora pesados rolos de fumo que se desfaziam em direcção às nuvens. Fumo quente, denso (é bom que se assente neste ponto) e nunca a tal neblina misteriosa que paira no romance de Alexandra Alpha. Às vezes, quando passava à porta da leitaria da esquina, o fumo já ia alto; outras vezes, não. Dependia.
Em toda esta ofuscação só o Bisonte é que se mantinha fiel ao romance. Podemos ler o homem como então: calado e solitário atrás do balcão, se bem que menos resplandecente quando o fumo o ensombra ao passar-lhe pela porta. Fora disso o cachaço e o monco que lhe pende sobre o peito conservam a luminosidade de sempre, avantajando-lhe a figura - eu próprio o vi assim nas várias vezes em que entrei na leitaria para me encontrar com Alberto Soares, correspondente comercial e tradutor não publicado de T. S. Eliot.
“Tu não tens juventude nem idade
mas isso é como se fosse um sono depois do jantar”,
dizia-lhe o poeta à noite enquanto ele o traduzia num quarto com janela para a rua por onde passavam rolos de fumo de quando em quando. E então era como se ele estivesse em viagem para a posteridade, sentado a uma secretária, com o mundo a desfilar-lhe na vidraça em nuvens de saudação: Viva, Senhor Alberto das odes conceituadas. Viva, professor Channing-Cheetah, respeitosas saudações ao honorável Sweeney e a todos os cães de Baskerville. Cheer up, allmighty Lord. Quão gratificante é conhecer Mister Eliot com os seus traços de cunho clerical!
E assim por diante.
Alberto traduzia e retraduzia sem levantar o olhar. Habitava aquele quarto alugado há um par de anos mas, a bem dizer, não conhecia a rua que lhe parecia povoada unicamente por mulheres à janela. Ainda estou para saber que espécie de gente é esta, dizia ele quando nós os dois, à porta da Leitaria do Bisonte, olhávamos a correnteza de damas debruçadas no peitoril que ilustravam um e outro lado da rua.
Estavam todas de cão ao lado, essas mulheres. Todas acompanhadas do seu cachorro mui doméstico e mui adaptado, cada qual, dona e cachorro, perfeitamente alheio ao outro. Ambos coabitando sem se olharem mas dia a dia mais parecidos: numa janela havia a velha pó-de-arroz, tão arruinada de dentes como o pekinois que estava com ela; numa outra, a caniche com penteado de puta, lado a lado com uma dama de robe vermelho que usava papelotes no cabelo e respirava segredos de boudoir; noutra, era o lulu e a dona antiga, ambos a gotejarem dos olhos constantemente; noutra ainda, a austera viúva que, ao fim de tantos anos de convívio com o perdigueiro que a acompanhava, passou a ter o nariz fendido como ele. E de janela em janela era tudo assim, sucessivamente, com pares de criaturas expostos em rectângulos ordenados a assistirem ao desfiar dos dias. Ao cimo da rua passavam comboios, mas nem os cães nem as donas se apercebiam, deixavam-se envolver em fumo e quando reapareciam à luz estavam exactamente como antes: indiferentes. Ao fim de meses e de anos as damas-de-janela-e-cão deviam ter-se convencido de que jamais alguém, marido, parente ou amante, atravessaria as cancelas do apeadeiro, acenando-lhes uma saudação.
Tatatan, tatatan, Uuuh... Alberto costumava dizer que aquilo era uma passagem sem destino. Nalguns momentos chegava mesmo a pensar que os comboios, velhas máquinas a carvão, vinham por si sós, sem condutor, ou que, se o traziam, o envolviam em fumo a todo o vapor para que ele não fosse reconhecido.
Eu, pela minha parte, das vezes que me desloquei à Travessa do Capitão, pouco mais vi do que pares de ama-e-cão distribuídos pelas janelas e a Leitaria do Bisonte com o seu proprietário de lipoma descomunal e camisa fosforescente. A princípio ainda me encontrava com Alberto no quarto onde ele vivia a traduzir o indomável Eliot, T. S., mas isso foi só enquanto a dona da casa era viva, ou seja, até pouco depois de a filha dela casar com o primeiro-sargento Norton, instrutor dos Comandos. Logo a seguir deu-se a morte da senhora, deu-se a circunstância de o sargento ter de partir para a guerra colonial, e daí em diante, como se compreende, foi necessário estabelecer um certo rigor para se evitarem as más-línguas da vizinhança, coisa e tal e contratempos. Visitas nunca mais, ficou Alberto a saber, e uma vez que o sargento se ausentava para a guerra em defesa de todos nós e do nosso património, o melhor era arranjar-se um cão para fazer companhia à jovem esposa. Isto sem desprimor para Alberto, hóspede do maior respeito, como afirmou o sargento, mas apenas por precaução contra os ladravazes que assaltavam às claras e em pleno dia os que se lhes afiguram menos protegidos. De dia, nunca Alberto estava em casa para poder oferecer resistência em caso de investida, logo para começar havia esse inconveniente; mas, mais importante ainda, com o marido na guerra a recém-casada fica particularmente indefesa. Questão psicológica, explicou o sargento-comando.
Lembro-me perfeitamente do quarto que o meu amigo ocupava naquela casa. Tinha uma porta para a escada e outra que dava para uma saleta salpicada de revistas de fotonovelas e com um retrato na parede dum atleta em calções de pele de leopardo. O sargento, segredou-me Alberto, sentado à escrita atrás do Oxford Dictionary. Naquela fotografia o personagem ainda era simplesmente noivo da filha da dona da casa, Sandra Luísa de seu nome - ou Lulu, como a tratavam em menina.
Alberto contou-me que Sandra Lulu passava o tempo lá para dentro em arranjos de cozinha e a trinar por toda a casa o All you need is love e o Yellow Submarine, dos Beatles, que ela traduzia de ouvido por Oh, Leonilde, is love e por Ela e o seu marido. Só parava quando o noivo batia à porta, regressado do quartel e se possível em fardamento de combate, bóina assestada e botas de marcha.
Mas dever é dever, e pelas contas do meu amigo, aí ao segundo ano de casado, o nosso sargento foi chamado para a guerra de África que nessa altura, 1971-72, andava assanhadíssima. Recebeu a notícia na vertical, ou seja, de rosto ao alto e em sentido, e depois do bater dos calcanhares da praxe fez meia volta e foi dar a sua mãozinha à pátria ameaçada, prometendo à menina esposa que não tardaria muito estava de regresso. Para que ela ficasse mais sossegada deixou-lhe um canzarrão do tamanho dum burro, um lobo-d'alsácia de raça atravessada que, além de desconfiado, era um manual de fidelidades a toda a prova.
Tinha instintos militares, o sacana, percebeu logo Alberto. Chamava-se Duque, não me perguntes porquê, contou-me ele. Era uma besta de boca negra com um amarelo assassino no olhar e, se bem que corpulento e enormíssimo, deslocava-se com a subtileza duma sombra. Ladrar não era com ele e correr ainda menos. Podia dizer-se que o suspeitoso animal exibia uma indiferença de majestade, surgindo aqui e ali plantado na lisura do soalho como um rochedo indecifrável. Parecia que sabia coisas inconfessáveis do mundo e que o mundo não lhe interessava absolutamente para nada.
Mas não lhe interessava, qual quê. O seu lugar preferido era a saleta, aos pés do sargento ausente que estava no retrato da parede. Aí é que ele passava o tempo, estendido, de frente para a porta do quarto de Alberto, e em posição de salto, a prevenir que daquele limite para lá a casa era sua e da Lulu. De quando em quando ouvia um comboio e deitava um rabo de olho para o fumo que passava na janela; de todos os habitantes daquela rua o Duque era o único que dava notícia disso; e ficava atento noutra direcção, como se pressentisse a chegada de alguém no meio dessa nuvem violenta. Mais: depois do fumo, chegava a ir farejar à porta da rua, desconfiado, inquiridor, e no regresso farejava também a do quarto de Alberto para saber se ele ainda lá estava.
Oh, Leonilde, is love, cantava Sandra Lulu lá para os fundos da casa que, pouco a pouco, se ia tornando toda do Duque. Às tantas já nem ela própria era senhora de assomar à janela porque o vigilante mastim, fiel à sua missão protectora, se punha imediatamente a arreganhar a dentuça e saltava ao parapeito com ameaças de se lançar à rua. Um cão suicida? Ninguém sabia, o que se sabia é que nessas ocasiões se levantava um tal susto na vizinhança que os cachorros de todas as janelas se metiam para dentro a ganirem como loucos. Não há dúvida, o Duque era um lobo-cão possuído pela morte, dizia-me o meu amigo. Devia ter sido cão de assalto nas manobras dos Comandos e com certeza dos mais aguerridos.
“Os tais instintos militares?” perguntei eu.
“Os tais instintos militares”, respondeu Alberto.
Na realidade, todo o comportamento da fera tinha um rigor de disciplina ensinada, um rigor secreto, imprevisto. Quando Sandra cantarolava no quarto ou na cozinha o Oh, Leonilde, is love o Duque levantava a orelha e depois decidia se ia ou não fazer-lhe um pouco de companhia. Mas, mesmo que fosse, mal a pessoa se distraísse, já estava de novo na saleta, aos pés do amo ausente e de focinho apontado à porta de Alberto. Um posto estratégico, como é fácil de perceber. A saleta era o terreno soberano, a antecâmara de Lulu, na saleta é que estavam as fotonovelas, a memória do guerreiro em fotografia de tronco nu e, dado importante, o telefone. Duque situava-se assim no nó das comunicações para o interior e para o exterior, e nunca por nunca ser, Alberto se deslocou à casa de banho sem que ele não viesse postar-se a meio do corredor para lhe vigiar os movimentos.
Durante algum tempo pensei que aquele ódio ao meu amigo viesse da simpatia que ele tinha pelos gatos. Ou que devia ter, não sei. Nunca falámos sobre o assunto mas nada mais natural que um tradutor de T. S. Eliot gostasse de gatos, uma vez que tratava com eles por escrito e a vários nomes, gato Augustus, gato Alonzo, gato Roly-Poly, e se gostava era coisa que não poderia passar despercebida a um lobo-d'alsácia tão ortodoxo como o Duque. Em enterro de cão, gato não chora - princípios destes nunca esquecem, não é assim? E tratando-se de gatos famosos na lenda e famosos na rima, pior ainda.
De qualquer maneira, com Eliot ou sem Eliot, o Duque não podia com Alberto e não fazia segredo disso: quando o encontrava deitava-lhe um olhar tão prevenido, tão carregado, que não precisava de se justificar com gatos para coisíssima nenhuma.
Mas, para lá do hóspede indesejado, a má vontade do lobo-cão apontava também ao telefone e aí já não era ódio, era raiva de impotência (principalmente se adivinhava voz de homem). Enquanto Sandra Lulu falava, abocanhava-lhe os chinelos como se estivesse a brincar, obrigava-a a baixar-se, a sacudi-lo, interrompendo-lhe a conversa, Quieto, Duque, oh este Duque, e chegava a abraçá-la pelo peito ensaiando movimentos obscenos que a obrigavam a bater-lhe. Seu porcalhão, não querem lá ver?
Por duas ou três vezes, poucas, Duque reconheceu que a voz que vinha pelo fio era o sargento a telefonar lá da guerra. E então, Jesus, ficava louco, de cauda espetada, punha-se às voltas na saleta com o pêlo do corpanzil percorrido de tremuras. Dias depois ainda andava em carne viva, e que ninguém ousasse olhá-lo sequer. Talvez fossem as saudades do amo que o pusessem naquele estado; talvez, depois de lhe ter reconhecido a voz distante, se sentisse mais obrigado a defender-lhe a casa e a mulher, talvez isso. O que é certo é que nos tempos mais próximos não largava Sandra Lulu um só instante, nem no quarto, nem na cozinha nem à boca do televisor, e principalmente não podia admitir cheiro de homem, em particular o de Alberto, o hóspede encurralado.
Alberto: “O Duque, nunca é de mais repetir, tem raça de lobo atravessado de polícia.”
Mas as obsessões do cão iriam agravar-se mais tarde com certas noitadas misteriosas que passaram a ter lugar por cima do quarto dele. Noitadas misteriosas, não é exagero nenhum, visto que a casa estava desabitada. Meses antes, Sandra Lulu tinha falado de um velho que teria visto na escada a marinhar pelo corrimão e de passos arrastados a seguir no andar de cima: daquela casa foi o único sinal de vida que ela sentiu desde há muitos meses a esta parte. E contou a Alberto. Contou por curiosidade, sem se preocupar, e foi para a salinha do retrato do noivo (nessa altura ainda não estava casada) cantar o Oh, Leonilde, is love.
E eis que, uma bela noite, o meu amigo sente passos de mulher na casa desabitada. Passos de mulher e silêncio. O compassar inconfundível duns saltos altos a percorrerem o tecto e logo depois a suspensão, paragem de espera.
A coisa começava sempre assim e crescia pela noite adiante. Os passos aceleravam-se; gavetas que se abriam, gavetas atrás de gavetas; uma porta a bater com um estrondo seco - um armário?, um roupeiro? Silêncio, novamente. Demorado, mais demorado do que até aqui. E no meio do silêncio uma gargalhada muito em segredo, contida. Suspiros. Agora ouviam-se suspiros; Alberto nunca sabia quando eles começavam, sabia apenas que iam crescer e prolongar-se em gemidos que ao princípio eram cadenciados mas que acabavam em saltos, em gritos, arrancadas de prazer, porra, porrinha, aquilo era um badanal de fornicações de bradar aos céus. Enquanto isso, cá em baixo, na saleta às escuras, o cão revolvia-se todo pelo avesso, indignado. Um cão puritano - já se viu?
E Alberto, o meu amigo? Bem, a Alberto o que lhe valia é que na paz fumegante da Travessa do Capitão aqueles sobressaltos só aconteciam de longe em longe, dizia ele para se conformar, estendido na sua cama de homem só. Mas nada garantia que amanhã, daí a uma semana ou quando menos esperasse, não desse por si a ser espezinhado mais uma vez pelos sapatos de mulher que cruzavam o tecto, sobrevoado a seguir por suspiros e murmurares ansiados, assim, querido, assim, e tudo acabar num desespero gritado, Jesus, Jesus, Jesus que ele mata-me, mata-me, cabrão, então eu não sei que me estás a matar?, como se numa guerra tão às abertas o mundo não existisse senão para eles.
Indefeso, exposto à insónia, Alberto mantinha-se de sentidos apurados, estendido ao comprido da noite. Do homem nunca lhe chegava qualquer palavra, um sinal sequer, mas da mulher, caramba, da mulher ouvia tudo o que lhe gritavam as entranhas. E Sandra Lulu? Como estaria Sandra Lulu nos seus lençóis de solidão? Acordada também, certamente. Talvez até com o Duque aos pés da cama (e não na saleta) a remorder iras no escuro.
O encontro dos amantes nocturnos acabava de surpresa, como tinha começado. Silêncio primeiro lá em cima, um apagamento que ninguém sabia quando iria terminar, e de repente ouvia-se o arrancar dum carro na rua e eram eles a desertarem para outras paragens. Alberto confessou-me que passou horas atrás das vidraças para os ver sair. Horas e horas, até se cansar, sentia-se nesse direito, como não? Tinha sido invadido na sua intimidade por dois desconhecidos e havia de se deixar ficar amarrado aos lençóis? Vê-los, ao menos. Saber que figura tinham, uma vez que só os conhecia pelos ecos do festim do corpo. E o festim doía-lhe, poça, era uma perversidade. Chegava a convencer-se de que todo aquele bacanal não passava duma exibição para o humilhar.
Se Alberto não fosse o hóspede que era da vida dos outros (hóspede duma esposa de guerra e hóspede dum poeta eterno, entre outras coisas), talvez não se sentisse tão ofendido na sua privacidade. Tão explorado, quero eu dizer. Mas um hóspede é sempre alguém que se vigia fingindo que se ignora, e ele tinha isso muito presente. Mesmo quando se sentava a traduzir, sabia que a alma do Eliot o estava a vigiar. Daí a tendência para se considerar visado secretamente por muitas casualidades suspeitas e, neste caso, misteriosas.
Sentado comigo à mesa na Leitaria do Bisonte, falava dos amantes nocturnos como se andasse perseguido por ecos. O mais repelente, dizia, era a maneira minuciosa como o casal diabólico expunha todas as suas intimidades para o fazer sentir-se irremediavelmente à margem, humilhado. Uma conjura? Não, Alberto não ia tão longe. Puro exibicionismo, nada mais. O mundo sempre esteve e havia de continuar a estar cheio de depravados que só conseguem ter prazer quando se sabem vistos por terceiros. Ou escutados, acrescentei eu. Sim, ou escutados, concordou ele, e nesse caso a crueldade ainda seria muitíssimo maior.
Entretanto, Alberto começou a verificar que, das noitadas do andar de cima, só lhe chegavam sinais de mulher. Esquisito, não era? Delírios, risos ou passos, só dela. E isso frustrava-o, sentia-se cortado ao meio por não receber o menor indício da outra parte. E se a outra parte não existisse? perguntou um dia a si mesmo.
Possível, muito possível. Nada lhe provava que o homem, a outra parte, existisse, nada garantia que a dama nocturna não armasse sozinha aqueles bacanais. Alberto não desconhecia que as masturbações de grande encenação não são nada do outro mundo, e então pôs-se a imaginar a bela debochada a abrir os armários de roupa de homem (a tal porta que rangia), a desfolhar nus de magazine, a passar vídeos eróticos no televisor e tudo o mais. Só e clandestina, afinal. Com um vibrador?
Assim compreendia-se melhor a razão por que é que ela se ocultava tanto, entrando e saindo sem se fazer sentir na escada, concluiu Alberto. A dama nocturna, percebia agora Alberto, além de clandestina, vinha fazer amor com ela mesma e precisava de ocultar isso a todo o custo para não estragar o espectáculo (dirigido ao andar de baixo, pensava o meu amigo). Pelos cálculos dele, a depravada entrava na rua protegida pelo fumo do comboio como se viesse de carroça fantasma, parava o carro mesmo à porta e num salto atravessava o passeio sem deixar rasto nem ruído. Simplicíssimo. Depois, escada acima, escada abaixo, deslizava em pezinhos de seda e quando o meu amigo ouvia o arrancar do carro já era tarde, já ela desaparecia ao virar da esquina.
O levantar da feira, como dizia Alberto, acontecia fatalmente depois dum silêncio súbito que se prolongava tempo sem fim enquanto ele ficava cá em baixo à espera, de ouvido alerta. Nada, absolutamente nada. Dava ideia que a dama estava atenta à primeira oportunidade para lhe escapar. Que fazia tempo, sentada na cama ou de mão na porta, para, de repente, correr para o carro e desaparecer no preciso momento em que o meu amigo chegava à janela.
Atrasado, gaita, sempre atrasado, a desgraça era essa. Mas alguém podia aguentar uma noite de pé à espera duma revelação que nunca chegaria enquanto estivesse de sentinela? Vencido, mas completamente incapaz de dormir, voltava-se então para a mesa de trabalho onde estava o seu Eliot e onde por acaso, no Portrait of a Lady, havia uma citação que nem de propósito:
“Tu praticaste
A fornicação; mas isso foi noutro país
E além disso a mulher morreu.”
No dia seguinte era sabido que o cão andava pior que estragado, a olhar de focinho baixo e cheio de maus avisos. Como que a prevenir Alberto, como que a fazer-lhe sentir que sabia que entre ele e a dama nocturna havia qualquer cumplicidade. Talvez pensasse até que era ele que atraía a libertina àquela rua, sabe-se lá. O Duque era suficientemente ortodoxo para isso e para muito mais.
Ortodoxo, puritano e castrense, nestes termos é que Alberto resumia o Duque à minha frente. Animal de convicções ferozes, dizia-me ele, o seu instinto de posse e de disciplina vinha daí. Como encarregado da protecção de Sandra, era tão desconfiado, tão severo, que encarava qualquer homem, e até a voz do dono ausente, com um pressentimento de rivalidade. A fidelidade canina tem destes exageros, como se sabe, e em especial a dum lobo-d'alsácia. Alberto via-o atravessado no corredor como uma barreira a quem se atrevesse a ir ao fundo da casa: daquela linha em diante, nem pensar. Daquela linha em diante era o castelo onde Sandra estava prisioneira, agarrada às agulhas de tricot, fotonovelas, folhetins de rádio e de televisão, tecendo, em suma, a sua armadura com rendas e lendas enquanto o marido não regressasse coberto de medalhas e de cicatrizes. E o Duque a postos. Sempre. O Duque senhor da casa e da dona a partir do ponto estratégico que achava mais conveniente. Os cães onde se instalam ganham logo um sentido de posse, toda a gente já viu isso.
A guerra, como era de prever, ia de mal a pior. Tão mal que entre a mina e o obus não sobrava um minuto para o sargento-comando poder telefonar à esposa. Ao balcão da leitaria o Bisonte ouvia, impassível, vitórias atrás de vitórias num rádio portátil que tinha ao lado da caixa registadora; nas tribunas dos políticos soltavam-se juras patrióticas a todos os ventos, mas o que é certo é que o marido de Sandra Lulu não regressava nem dava sinal. Andaria transviado pelas selvas? Prisioneiro dos canibais? Escondido numa gruta de diamantes à espera de melhores dias? A esposa solitária deixou de cantar o Oh, Leonilde, is love e nunca mais veio à janela interrogar os fumos do comboio.
O Duque também já não aparecia na saleta, e tanto melhor, suspirava Alberto, o Duque agora não saía do corredor. Do meio do corredor, mais exactamente, um passo além da casa de banho. Isso não significava que se mostrasse mais acolhedor, não se pense. Apesar de as visitas da dama nocturna não se repetirem há muito tempo no andar de cima, o mal-encarado continuava tenso e a acumular espuma aos cantos da boca. Foi assim que Alberto o deixou quando partiu para férias em agosto de 73, um verão escaldante como nenhum outro.
Encontrámo-nos muito mais tarde (na Leitaria do Bisonte, como sempre) mas desta vez achei-o um tanto para o alheado. Não por causa de os editores persistirem em se negar a publicar em Portugal o T. S. Eliot, disse-me então, o Eliot era assunto arrumado, ponto final e antes assim porque, como o próprio poeta já avisara em vida, “cada tentativa de usar as palavras é um começo sempre novo”. De modo que, olha, tinha-se acabado o Eliot, declarou Alberto com algum fatalismo. Tinha-se acabado o Eliot, tinha-se acabado o Four Quartets, tinha-se acabado o Old Possum e mais todos os Predicted Cats que Deus haja, e que se lixasse, agora tudo isso era escrita defunta, e ponto final, repetiu. Ao balcão, de frente para a porta, o Bisonte resplandecia no seu tumor incandescente. Ouvia e fingia que estava longe, era o seu papel.
Não, tornou Alberto. A chatice era outra. Se estava assim, alheado como eu dizia, o motivo era outro. O cão, disse. O lobo-d'alsácia? perguntei eu. E ele: O Duque, pois. O Duque tinha sido preso e devolvido ao quartel, o que já não era sem tempo. E eu: Muito bem, e daí?
Daí, puta que o pariu, o que um monstro daqueles precisava era um tiro. E Alberto contou: dias depois de ter partido para férias, toda a Travessa do Capitão, isto aqui, estas casas, esta pacatez que eu estava a ver, tudo isto fora sobressaltado por um escândalo devastador. Escândalo e pânico. Janelas aos gritos, cães a ladrar, uma aflição, um horror. Porquê? Porque de repente, aparecera, debruçada na varanda da janela da saleta, a esposa-menina a bradar por socorro. A Sandra Lulu, ela mesma. E nua. E a escorrer sangue. Mais: arrastando o Duque, que lhe vinha ligado ao ventre pelo coito.
Deite-lhe água, deite-lhe água, gritavam as vizinhas em todas as janelas; e os cães que as acompanhavam gemiam de excitação.
Sandra, desvairada, esbracejava, batia, contorcia-se para se despegar do cão. E o cão, enorme como nunca e impotente perante a fatalidade do seu membro entumescido, respondia ao pavor e às dores da dona com dentadas sem convicção. Os lobos-d'alsácia são particularmente longos e retidos na erecção, lembrou-me Alberto; e bebeu o resto do bagaço que tinha no copo.
E pronto, pensei eu. Agora ali o tinha, estranho e desnorteado, como habitante solitário duma casa que até há pouco fora dominada por um cão e pela ausência dum guerreiro. Ficaria lá enquanto Sandra Lulu não voltasse do hospital ou enquanto o marido-comando não pusesse fim às batalhas e regressasse à base. Admitindo que o marido alguma vez regressasse da guerra; Alberto tinha as suas dúvidas. Quanto a Sandra, embora lhe parecesse que ela nunca mais tornaria a pôr os pés naquela rua, já não dizia nada, limitava-se a citar Eliot:
“Conhece o temperamento feminino
E limpa o sabão à volta da cara.”
Fez sinal ao Bisonte para lhe servir mais uma aguardente, sexta naquele fim de tarde. Eu sinceramente que nunca o tinha imaginado capaz de semelhante exagero. Mas era. Mostrava um rosto completamente devastado e bebia de golpe como quem se desobriga. Seis aguardentes em menos duma hora não é desperdício nenhum. E com esta, então, Alberto ainda foi mais rápido, uma golada e pronto. Uma golada e ficou de copo no ar, pensativo:
“Sabes”, disse-me lentamente e com um sorriso muito para ele, “a tal tipa, a do andar de cima, nunca mais voltou a dar sinal. Estranho, não achas?”
Já não estou certo, mas ia jurar que naquele momento vi passar uma onda de fumo pela porta da leitaria.
OS PASSOS PERDIDOS
Informe sobre um Congresso
[...] Tudo se configurando de tal modo que, sendo cegos, todos os congressistas pareciam dotados de eternidade.
Segundo lady Selina Hackett, presidente honorária da Organização, tinham atingido esse estado supremo graças a uma prática incessante das leituras mortas e ao culto das minúcias trabalhadas. Foi-me igualmente observado que alguns deles, uma minoria decerto, não tinham contudo logrado atingir o ponto total da cegueira, mas confesso que esses em nada se distinguiam dos restantes (pelo menos aos olhos do profano) pois deslocavam-se no Palácio dos Passos Perdidos com igual serenidade e com a mesma subtileza dos vultos errantes conduzidos por cães.
Aqui repito: muito do que venho relatando e me chegou por lady Hackett não deve ser tomado, como se diz, “ao pé da letra”,
dado que a referida Senhora é pessoa de trato discreto e de falar longínquo (como se fosse cega, não sendo). De resto, no porte e no tom ausente, toda ela assume a altivez dum cego magnífico, e a própria maneira de se exprimir provoca desde logo uma sensação de constrangimento, quer pela impassibilidade do olhar, quer pela ausência de gestos no decorrer das falas. Reparei ainda que na presidência das sessões apresentava-se de rosto erecto e lívido (como que endurecido por uma espessa máscara de cal) mantendo-o na mesma direcção do infinito para onde se orientavam os cegos que a ladeavam. O traçado enigmático de lady Hackett por um lado, e por outro o conhecimento imperfeito que tenho da língua inglesa impedem-me de assegurar que tenha interpretado no bom rigor as informações que dela recebi.
Não obstante, uma coisa creio poder declarar sem a menor reserva e essa é, Excelência, que todos os congressistas eram de cegueira erudita e todos eles da mais alta reputação. Se um ou outro ainda divisava algum resto da nossa luz comum, com certeza que se encontrava no limite para o nada absoluto, “no limbo, caro Senhor”, conforme me confidenciou a mencionada cega honorária lady Hackett.
Com efeito, tratando-se dum acontecimento que reuniu representantes de tantas e tão diferenciadas nações
era impressionante de ver a precisão com que os congressistas se ordenavam e se distinguiam entre si apesar de não se verem
tanto mais que dispensaram, de moto próprio, os serviços e os funcionários que habitualmente prestam assistência a estas assembleias.
Ao vê-los entrar em palácio pela trela dos cães tinha-se a sensação de que eram enviados de outros mundos algures e predestinados por uma misteriosa mensagem que os trazia a reunir. Por mim, ainda admiti que um bando de nobres corvos os tivesse vindo a sobrevoar (corvos e olhos mortos sempre fizeram uma estranha aliança) e que, uma vez chegados ao santuário da Cultura, invadissem as galerias numa saudação de despedida. Mas não. Uma grande serenidade acompanhava os cegos consagrados, tão grande e tão compenetrada que, mal eles chegaram, o esplendor dos mármores e a estridência dos cristais como que perderam a imponência e envolveram-se numa suavidade de meditação. Apercebi-me então de que aquelas criaturas nobilíssimas eram presenças, não figuras. Que a cegueira que os animava nos fazia, a nós próprios, apagar-lhes o traço real. Eles deslocavam-se, Excelência, no “limiar dos apóstolos” ou seja ad limina apostolorum, para usar uma expressão dos antigos.
Sei bem que poderão afigurar-se descabidos estes considerandos pessoais em matéria de serviço e de competência. Porém, se os faço, é menos por abonação própria do que pelo desejo de transmitir, em toda a possível informação, a verdade dos factos que tive o privilégio de presenciar, os quais são, em sua essência, demasiado perturbadores para caberem nos limites dum relato circunstancial. E posto isto, prossigo.
Conforme atrás faço referência, o pessoal do palácio ficou praticamente inactivo durante os três dias do Congresso, circunstância que dava uma configuração algo singular aos acontecimentos que ali se desenrolavam. Presos aos seus postos, os porteiros de libré, as secretárias fin-de-siècle e os criados de bufete guardavam uma imobilidade conformada como se estivessem em vigília sonâmbula. Quanto aos intérpretes suponho que recolheram a alguma dependência do palácio, já que a vastíssima cultura dos congressistas os tornava desnecessários.
Na realidade, os cegos comunicavam entre si em dialectos e cabalas eruditas que variavam consoante as regiões e a época histórica dos temas que versavam, praticando assim as línguas correntes, não na sua forma convencional, mas nas expressões mais íntimas que lhes deram forma. Digamos que falavam em braille - isto para dar uma ideia; e desta sorte reuniam-se em si mesmos (sob a presença tutelar de lady Hackett) sem quaisquer elementos estranhos que lhes registassem o discurso, desvirtuando-o. Enquanto isso, nos salões de armas ou nos respeitáveis corredores de mármore, os cães acompanhantes faziam horas para os ir buscar ao Magnum Auditorium nos intervalos das sessões.
Estes cães, seja dito de passagem, comportavam-se com o mesmo apagamento solitário e com a mesma precisão de instintos dos donos. Mais do que cães de cego eram cães secretários, tal a identificação que tinham com os amos, e ostentavam na coleira o correspondente cartão de congressistas,
Prof. T. Mikkelsen - Dinamarca
Prof. Irving - USA
Dr. Ion Sturdza - Transilvânia
Rev. Aquino - Filipinas
Mestre Feliciano Castilho - Portugal
Sir John, Hon. D. Litt - Inglaterra
Prof.a Zikhova - Bulgária
Etecétera,
todos eles, rafeiros ou puros-sangues, pastores ou burgueses, irmanados por uma missão superior. Passeavam-se no maior silêncio por entre majestosas paredes revestidas de telas bíblicas e deitavam-se pelos cantos, embalados pelas vozes dos oradores que lhes chegavam do Magnum Auditorium num discursar segredado.
Destacava-se pela sua lendária presença um terrier ancião, o honorável Kum Dag Zong M.A., que tomava lugar invariavelmente no átrio principal aos pés da estátua de Pallas. Dele se diz que os anos e o recolhimento o tornaram tão cego como o dono, facto que não pude comprovar, uma vez que por deferência e natural discrição não me aproximei suficientemente da sua pessoa. Sei todavia que muitos dos congressistas, muitos dos perros, digo, padeciam de cataratas gotosas e disso faço menção como cousa digna de reflectir, pois trata-se de mistério a dobrar, um cego-cão conduzindo o amo-cego.
De referir também a solenidade do trato que usavam de uns para os outros. Os animais, bem entendido. Comportavam-se com distância e gravidade, mas sempre que se cruzavam de perto esboçavam um cumprimento de cortesia que consistia em se cheirarem, mutuamente e de passagem, no sítio que lhes é próprio. Não rosnavam sequer (a intimidade com os mestres fizera-lhes esquecer a voz natural), e caturravam, alguns deles, com a sábia moderação dos ouvintes de oratórias.
A dada altura, porém, sentiam-se despontar nos taciturnos animais uns fumos de inquietação: certamente pela cadência do discurso que lhes chegava do auditório (não vejo outra explicação) percebiam que a sessão se aproximava do fim. De sorte que ao soarem os primeiros aplausos já cada qual estava ao pé do seu amo, conduzindo-o depois para as galerias e passeando-o diante da mudez dos porteiros de libré, das secretárias fin-de-siècle e dos criados de bufete.
atitude universal
só possível, quanto a mim, numa irmandade de tão altos e sereníssimos espíritos. Dir-se-ia que naqueles enviados o desgaste e a consequente perda de vista tinham dado lugar a uma capacidade superior de meditação que até ali fora impedida pelas solicitações visuais do mundo circundante. Daí certos poderes de comunicação interior de que os cegos são dotados e que se revelam totalmente inacessíveis a nós outros, homens comuns.
Poderes magnéticos? Alguns estudiosos pensam que sim. Outros sustentam que se trata, antes, de instintos superlativos ou divinatórios; segundo esses, os cegos possuem uma visão topográfica do universo imediato inteligentemente organizada em volumes, cheiros, temperaturas e sons e enriquecida por subtilíssimas ondas de premonição; uma visão, tudo indica, concebida como um labirinto de intuições e valores sensoriais cuja chave lhes é por natureza exclusivamente reservada.
Seja como for, e servindo-me duma expressão de lady Hackett, direi que naquela Assembleia o olhar corrompido tinha secado e que dele nascera a retina sagrada.
Dispenso-me de comentários, Excelência. As origens de tão clamoroso sectarismo são por demais evidentes
porque os cegos, sempre se disse, têm por defesa natural o culto da ordem e do grau;
na verdade eles orientam-se pela referência oculta e por isso se dedicam à minúcia, coisa que é considerada gratuita por este nosso mundo condenado ao geral; ouvem a chama e antecipam-se ao incêndio porque antes da vista vem o cheiro; praticam a pureza da língua em gramática limpa e pronúncia recta porque a recebem exclusivamente pela palavra e sem as sintaxes dos gestos e das máscaras com que os restantes cidadãos a acompanham para corromperem ou contradizerem o discurso. São, em suma, refractários à turbulência que a sociedade implantou para desorientar a inteligência e fomentar o caos.
Parece, pois, fora de dúvida que o contacto visual ou espectacular com a realidade exterior, em toda a confusão das imagens desorientadoras que propaga, conduz à perda das raízes mais íntimas tanto de espírito como da pátria - e eis, Excelência, porque sinto que algo extraordinário acabou de acontecer no Palácio dos Clássicos, também conhecido por dos Passos Perdidos. Sinto, não: tenho a convicção. A certeza certa. As sereníssimas figuras que vieram reunir-se no nosso país foram por certo portadoras de alguma mensagem eterna, visto que qualquer delas percorreu séculos de civilização e ascendeu à mais respeitada cultura oficial, iluminada pelos mestres de sempre.
Já no final das sessões tornei a avistar-me com lady Selina Hackett nos corredores dos Passos Perdidos. Menos crepuscular desta vez, lady Hackett não só me facultou valiosas informações sobre o curriculum de cada um dos cegos doutores (à medida que íamos passando pelos respectivos cães) como me referiu algumas teorias iniciáticas, qualquer delas de difícil enunciação. A terminar, propôs-se candidatar-me a sócio correspondente da Agremiação e antes que lhe exprimisse o meu reconhecimento fez-me saber que, estando previsto novo congresso para o próximo ano académico, em data e país a fixar, lhe seria muito grato contar com a minha presença no mesmo e dessa vez com direito a cão acompanhante, na qualidade de sócio que me fora conferida.
Não me compete a mim decidir sobre tão honroso convite, posto que indirectamente se dirige ao Ministério que sirvo e represento. Não oculto todavia quanto me sensibilizou essa deferência como funcionário de longa carreira que sou e, no plano privado, como curioso que desde há muito se interessa pela cousa cultural.
Com efeito, à margem do meu exercício nas repartições do Estado, há anos que venho sacrificando família, lazeres e saúde em modestos trabalhos de investigação monossilábica, sem prejuízo do serviço, como é de minha consciência. Quero significar com isto que
tenho queimado as pestanas no convívio dos clássicos e dos antigos
e, se sinto que o tempo (e a vista) me fogem para poder vir a realizar os meus limitados objectivos, sei em contrapartida que através dessa experiência adquiri aquele espírito de meticulosa organização sem o qual não pode haver reflexão autorizada nem tranquilidade que baste. A esse espírito devo também, creio eu, muito do respeito metódico que ponho nas minhas funções e na disciplina dos subordinados.
Termino, Excelência, confiado em que não será tida por imodéstia esta minha referência pessoal. Juntei-a apenas como um dado informativo com vista à representação no próximo Congresso, solicitando muito respeitosamente que se digne atribuir-ma a bem da Pátria e da Cultura.
DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO
Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a morte - disse o contador de estórias à sua filha Ritinha.
Contou mais o contador, falando de certo Reino onde nos velhos outroras vivia um imperador astuto, diabo e ladrão - imperador esse que, à força de matar palavras no falar de cada um, finou os seus ricos dias em paralisia da mentira, de sorte que não se sabe se afinal ele era homem, se era estátua ou apenas descrição. Que o saiba quem quiser saber, é questão de procurar (disse o dito contador) pois se firmar bem a vista vê-lo-á no horizonte como um vulto de destroços, arrecife ou praga seca, engalanado em discursos e ossadas.
Paz à sua alma - se é que continua vivo. Porque se trata de alguém a quem roubaram a morte própria, em castigo da mentira com que ele mesmo se inventou.
Supõe-se, está vagamente escrito, que o tal imperador nasceu simplesmente do nada. Que apareceu algures numa choupana, filho de gente-ninguém ou pouca-coisa, camponeses ao desabrigo. Alguns dizem: Enjeitado de príncipes. Outros que não passava duma simples semente de Deus como qualquer de nós quando vem à terra. Mas quem tem razão? Quem garante? Que se saiba aprendeu cedo e por cartilhas de aldeia - ponto assente. Por catecismos também, tudo leva a crer. Depois deve ter entrado pela sebenta mais que benta dos aplicados e o que é certo é que ainda muito mocinho fez ciência entre os doutores - e isso, sim, está provado, vem na História.
A princípio, data a apurar, a criança tanto podia chamar-se Augusto como Adolfo, como Maximino ou como Benedito, que não era daí que vinha mal ao mundo. Nomes são safiras ao preço da água-benta, é só mergulhar e escolher; e Maximino ou Fulgêncio, Teobaldo ou Adolfo, Adolfo Hirto, Benito Bendito ou Sebastião Desejado, embora nomes para fazer destino, naquela altura ainda não davam nas vistas. Por outro lado é bom que se note que este pequeno cristão era dos tais que nascem à flor do maldivino e, como tal, nome, se o teve, deixou-o na pedra do baptismo porque quando o mundo deu pela sua pessoa já ele tinha o corpo e a idade da morte e só respondia por
IMPERADOR
Dinossauro Um, Imperador e Mestre.
Teria tido infância? Mistério, neste ponto mesmo os cronistas mais cautelosos tropeçam no aparo e vão estatelar-se na História, uns anos mais adiante. À falta de melhor põem-se a escrever Saber e Autoridade, Saber e Autoridade, Dinossauro, copiando o lema imperial gravado nas moedas, nas placas de rua e nos edifícios, e assim apuram a caligrafia.
Respeito, cidadãos ignorantes!
Dinossauro, criatura solitária desde o berço, estava escrito que iria subir altíssimo na asa da compostura por cima do casebre mais pobre e do palácio mais louco e que teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local,
“ESTA CRIANÇA VAI PARA LEIS.”
O regedor, muito dado às fardas e às marchas, respondeu que na espada é que estava o mando e que sem espada nunca a balança da Justiça conseguia medir certo. Nessa conformidade o militar valia por 2 (dois): pelo guerreiro e pelo doutor de leis. Salvo melhor opinião, a espada do militar cortava a castigo, como já naquele tempo se sabia, e no acto de julgar não precisava da balança da Justiça nem da venda nos olhos para coisa nenhuma, ao passo que a lei sem espada, ora adeus, não valia a ponta dum chavelho, permita-se a expressão. No modo de ver do regedor o pequeno podia dar um valente general de sete estrelas ou mais.
Estavam nisto quando, pezinhos mansos, teque-teque, apareceu a Dona Madrinha da criança, que era rica e muito solteira. Ouviu falar em espadas e em guerreiros e nem quis saber de mais nada: abriu os braços para o céu, pronunciando as seguintes palavras:
“QUE PERFEITO MISSIONÁRIO”
Entre a cruz e a balança, o regedor nem uma coisa nem outra ou, antes, as duas ao mesmo tempo. Tinha futurado para a criança um ofício em que o divino e o profano se servissem de mãos dadas. Militar. Lembrava a aliança que sempre tinha havido entre a espada e o crucifixo nos reinos da cristandade, sem esquecer o papel dos audazes capitães no desbravar da selva dos infiéis. Sendo assim, militar é que convinha. Militar, insistia, porque servia a Cristo e ao Rei, era a tal coisa. Militar. General, general de sete estrelas. E lambia-se só de pensar.
Pois sim, pois sim, mas a madrinha, muito solteira e mais que dona, agarrava-se aos bentinhos que lhe aqueciam os seios e punha-se a bater o pé: Missionário, missionário e missionário. Protestava que não havia mais valentes batalhadores do que os cavaleiros das missões, que não usavam senão as armas da fé, e por conseguinte a criança havia de ir para os pretos, que pagava ela os estudos.
Linhas do destino, cruzadas e partidas, que só a mão de Deus sabe traçar mas que cada um procurava ler para adivinhar o norte certo. E o prior, que também era gente, não se deixava ficar por fora dos palpites. À mais pequena aberta fazia desvio no rumo, lembrando aos presentes que:
Ele, pastor daquele rebanho de desorientados há não sabia quantos anos, tinha um certo pacto com Deus, mais que não fosse por razões da sua profissão. De acordo? perguntava. Silêncio à volta. Bem, nesse caso o prior sentia-se melhor do que qualquer um, melhor do que ninguém, fosse quem fosse, para afirmar o que convinha à Santa Madre Igreja e ao mundo Pecatorum Orbi e que era:- Doutor. A criança estava destinada às leis por muitas e muitíssimas razões, quod erat demonstrandum.
“ÁMEN”,
respondia a madrinha, atraída pelo latim. Mas emendava logo: Missões, acima de tudo a fé.
“ÁMEN”,
repetia o regedor amigo das fardas porque, como autoridade, nunca poderia negar um ámen à palavra dum sacerdote.
Estava-se em
PARTIDA NULA,
era o costume.
O prior, como a sua paciência não tivesse limites (por causa das Sagradas Escrituras), o prior repetia e tornava a repetir o seu palpite bem intencionado, explicando a beleza dos doutores de leis. Apresentava-os como eminências que se passeavam apoiadas no parágrafo de ouro e que era tão solene como o obstáculo dos bispos mas com mais voltas. Depois, também eles tinham a sua bíblia, acrescentava, o seu Código-Codex-Abrenuntio onde mergulhavam a todo o instante para acertarem o relógio do castigo, razão por que estavam sempre tão estudiosos e meditamundos.
Ora, estudo e meditação era o que o padre encontrava mais à vista na maneira de ser da criança, não falando já (como revelou anos depois) no vício de aprender palavras raras que ultimamente lhe tinha notado. Um orador, era o que se estava ali a gerar.
Os presentes engoliram em seco:
“PALAVRAS?”
Palavras, repetiu o padre. Força do verbo, dom divino - e depois? Com palavras é que se fazem os decretos e se alguém na tenra infância se mostrava tão interessado nelas, o prior não podia ter dúvidas de que se tratava dum futuro juiz todo dado ao recolhimento e à frase de alçapão. Virando-se para a madrinha disse: As leis justas são o apostolado mais caprichoso aos olhos de Deus, fique-se com esta. Virando-se para o regedor lembrou-lhe que na lei está o princípio de tudo: É com decretos que se convoca a tropa e é com decretos que se fazem generais, tenho dito.
Por estas e por outras, os pais do mocinho venderam o burro e o quintal e com o dinheiro apurado levaram-no para uma universidade que ficava no alto duma montanha,
ENTRE NUVENS.
Sofreram muito, pobres deles, antes que se aventurassem à viagem. Primeiro, porque o regedor, considerando-se desautorizado, armou uma campanha contra o cura, acusando-o de mau confessor, inimigo das fardas, refractário e hóstia de sal; pior: chamou-lhe maçónico. Depois foi a madrinha que se sentiu mais do que nunca solteiríssima e, já vais ver, deserdou o afilhado. Não contente em mandar cartas ao bispo, fez logo ali testamento a favor dos frades crúzios ou de quaisquer pregadores corsários que ninguém adivinharia. Finalmente os habitantes da aldeia, ainda mais esses. Levados pela inveja e pela intriga, os da aldeia puseram-se a insultar os pais sacrificados que, afinal, não passavam duns perdulários atrás do sonho dum filho doutor.
Trabalhos. Desgraças que acontecem a quem se vê obrigado a suportar a ignorância do próximo para cumprir um destino.
Mas como diz o outro, o amor dos pais só dá meças ao perdão e um belo dia os dois camponeses, apanhando a aldeia a dormir a sesta, pisgaram-se com o filho na camioneta da carreira.
Conta-se, não há provas, conta-se apenas, que o rapazito que amanhã viria a ser imperador não se mostrou muito satisfeito com a jornada, embora a tivesse escrita no signo. Na sua infância sabedora conhecia todos os passos que lhe estavam reservados mas havia qualquer coisa que o contrariava. O que era, o que não era, só mais para diante se veio a descobrir: queria ir de burro, queixou-se ele e apenas uma vez.
DE BURRO? QUE IDEIA!
Seria por causa dos solavancos da camioneta, tão lastimosa e tão coçada? Possível, nunca se sabe. Seria por se ver à mistura com passageiros folgazões que a cada paragem corriam para as tabernas e desatavam aos abraços uns aos outros? Ou seria muito simplesmente a saudade do jumento que tinha trocado pelo curso de imperador? Enigmas, coisas da História que tem destes passos sem rastro para despistar os curiosos. O pequeno queria ir de burro porque queria. E mais não disse.
A mãe, como é natural quando se é mãe, enterneceu-se muito com um desejo tão humilde como aquele. Segundo a lenda teria sorrido tristemente, aconchegando a criança no regaço e pensando se calhar em como era frágil o seu filho.
“SOSSEGA, ESTAMOS A CHEGAR.”
De paragem em paragem apareciam garotos descalços e de arco na mão a festejar a camioneta. Alguns penduravam-se na escada que dava para o tejadilho onde ia a bagagem dos passageiros; outros, com ar disfarçado, punham o dedo no pó que cobria os guarda-lamas e riscavam bonecos; outros, ainda, espreitavam os passageiros e havia sempre um, mais curioso, que punha a mão no radiador para sentir o trepidar do calor e do cansaço. Era aquilo, a velha carripana: uma aventura tentadora, um mundo em viagem, com o motor a ofegar, o cheiro embriagador da gasolina e a novidade dos rostos alinhados às janelas.
Por isso é que quando ela arrancava estrada fora,
PUF... PUF...
os rapazitos, aqueles diabos, corriam a acompanhá-la, rindo e acenando com os braços, como se a camioneta tivesse chegado ali para os desafiar a uma corrida pelos montes e por esses mundos além. Acabavam, bem entendido, suspensos lá para trás numa nuvem de poeira, enquanto o calhambeque ia à vida, galgando covas e penedos, a assoprar, a assoprar.
Nuvens de jumentos ameaçam os fugitivos.
Volta não volta, a mãe estremecida debruçava-se à janela, receosa de ver levantar-se no horizonte um enxame de camponeses a galope de burros poeirentos. Esperava-os a todo o instante, disparados pelos montes abaixo, catapum, catapum, de punho no ar e aos uivos: Avante, avante, contra a família desertora.
Felizmente que, mesmo ferrugenta, uma camioneta sempre é uma camioneta e não se deixa agarrar assim pelo mais ladino dos jumentos.
E oxalá, era o que aquela mãe lhe desejava. Só pedia a Deus que ela a conduzisse em rodas firmes e a volante certo para levar a jornada a bom termo.
“SÃO CRISTÓVÃO VIAJANTE,
PADRENOSSO, AVÉMARIA.”
A carripana parece que a ouvia e puxava, puxava. Tinha suportado muitas invernias, muita carga desmesurada para a sua idade e, mais que tudo, muitas más-vontades dos passageiros. E ruça. Ainda por cima ruça. Da cor primitiva, da alegre cor da mocidade, não tinha nem recordação, e de cascos era o que se podia ver: mal calçada, como dizem não só os ferradores quando examinam a unha do coice mas também os chauffeurs sempre que se referem a pneus gastos, nas lonas. Para cúmulo nem ao menos dispunha duma boa buzina para se fazer respeitar.
O que valia era que, ao cabo de tantas e tantas carreiras entre os povoados e a cidade dos doutores, a camioneta tinha o caminho de cor e a bem dizer não precisava de mão que a governasse. Meterem-na por desvios era escusado; apertar com ela, pior; moía, moía, e não passava do mesmo sítio. Inclusivamente, podia emperrar de vez e recusar-se a fosse o que fosse, cheia de personalidade. Como os jumentos, afinal.
Quando tal acontecia, nada feito, tudo para a rua; e só com os passageiros a empurrarem e certas habilidades do condutor a camioneta se convencia. Recomeçava a caminhada, um tanto duvidosa, arrastada, mas por fim lá se deixava ir, mais levada pelo fatalismo do que pelo desejo de servir.
“VOU DE BURRO, VOU DE BURRO”,
diria muito para ele o futuro imperador. Enquanto que a mãe, sempre receosa, não deixava de olhar para trás à espera de ver surgir os asnos vingadores.
(Nota: Seria realmente de burro que os cronistas descreveriam a subida ao templo dos doutores. O filho e a mãe em cima da albarda, o pai à frente abrindo caminho com um ramo de esteva em flor).
FINALMENTE,
Pai, mãe e filho extremoso acharam-se no meio de muitas ruas apertadas e antigas. Havia pelourinhos; arcos de ferro e brasões a certas portas. Oratórios também: muitos. E padres, sobretudo. Padres, padres e mais padres, o que ali ia de padres só contado. Levantara-se uma pedra saltava um, acendia-se uma luz voava outro e logo outro e outro e mais outro, padres a dar com um pau. Pareciam gatos a espirrar das sombras.
Isto de padres era fruta corrente, quer nas cidades e nas vilas, quer no Reino em geral. Padres, cisco dos céus. Caíam em chuva peneirada sobre os campos à desgraça e em menos de um ámen já eram um extenso prado de hastes negras com as coroas-corolas das cabeleiras a dar a dar. O vento passava por eles e tirava uma música que já se sabia:
“MISERERE... MISERERE...”
Havia-os das mais variadas formas e feitios, à paisana ou em oficial - dependia do lugar e da estação. Padres em rústico encontravam-se quase sempre à mesa do lavrador ou a correr atrás das lebres; de bicicleta passavam os curas ditos operários a tilintarem as encíclicas; de motoreta, os desportivos de paróquia agitada. Alguns, de unha de verniz e boquilha nos dentes, patinavam nas avenidas de asfalto; outros instalavam-se no écran da televisão, e assim por diante et nunc et semper.
Não se diferençando grandemente dos mexilhões, seus irmãos (eram escuros como eles, apenas com as coroas a luzir) os sacerdotes do Reino viam-se obrigados a labutar o pão que o diabo amassou como qualquer cidadão desprovido do latim. Benziam supermercados e pedras de toda a espécie, amissavam aniversários e paradas, iam ao quartel despachar soldados em paz para os caminhos da guerra. Do sul para o norte, pelo direito e pelo torto, andavam num ver se te avias, montados nas suas máquinas temporais. Onde se levantasse arraial, era sabido, aparecia padre; onde cheirasse a desgraça idem, aspas. E assim é que devia ser porque a palavra de Deus tem de estar em toda a parte, pelo menos.
Mas na cidade onde o pequeno acabava de chegar os padres andavam em bandos colegiais e só se viam batinas e livros sebentos a passear. Mulheres é que poucas, muito raras. Ou estavam escondidas com medo, ou a terra só era boa para machos por causa do clima - nunca se soube.
Segue-se que à falta de mulheres a cidade procurava animar-se com rapazes nocturnos que brincavam aos heróis do vinho tinto e que contavam anedotas em voz alta. Vestiam asas de enterro iguais às dos padres, embora fossem estudantes, tal como os mestres deles, que eram lentes e com filhos, mas que pensavam em latim e usavam capelo na cabeça como os cardeais. O mais curioso é que, talvez por não terem mulher ou por andarem cheios de raiva aos professores, os estudantes vingavam-se constantemente uns nos outros, rasgando as capas à tesourada, rapando o cabelo aos mais fracos e fazendo trinta por uma linha. Nessas ocasiões soltavam gritos de guerra:
“EFE-ERRE-A... FRÁ!”
“EFE-ERRE-E... FRÉ!”
“EFE-ERRE-I... FRI!”
despejando todas as vogais que lhes tinham dado na escola.
Longe, nos quintais, os que andavam de tesoura no ar cantavam para chamar mulher e então esses, Jesus, eram de arrepiar. Gemiam uma guitarra e tudo adormecia em tremidos; espraiavam a voz: tinha trinados de rouxinol capado, era mel e lua cheia. Estava-se, não é preciso dizer mais nada,
Na cidade dos doutores
Das esquinas e dos portais, os três forasteiros eram assaltados por comerciantes da mais variada espécie,
“DOUTORES: VENHAM CÁ, DOUTORES!”
que não percebiam que se estavam a dirigir a uma trindade de camponeses em romagem, pai, mãe e filho secreto. Também tanto se lhes dava, queriam lá saber.
Um, o alfarrabista, anunciava nestes termos: Sebentas em estado novo, doutorzinho. Caveiras e peças anatómicas.
Batinas, gritava um alfaiate de fita métrica ao pescoço.
É entrar, doutores, é entrar, dizia um estalajadeiro apontando a ardósia dos preços. Cá está a Pensão da Malvada, refeições à discrição.
Um pedinte desdentado mostrava feridas: Doutores, doutores, pelas vossas alminhas. No café o cauteleiro prometia o paraíso e na ponta duma calçada a lavadeira, de trouxa à cabeça, lançava um pregão arrastado, de estremecer as casas: Ouuuu-lalaou, doutores...
Estes brados cresciam pela cidade, endoidecendo os habitantes.
Levado na onda de padres e de aprendizes, saudado pelo comércio e pelos brasões dos portais, envolvido no cheiro do azeite que ardia nos lampadários, o pequeno camponês atravessou becos e quelhas e penetrou no antepassado, no luto. A própria Sé estava terrível e sombria, mais carregada de séculos do que ele alguma vez podia ter imaginado. Benzeu-se ao passar por ela e seguiu jornada.
Andou, andou, até que foi dar a um largozinho recatado onde o esperava um enorme crucifixo. Aí, pausa: primeira estação. Ajoelhou como era seu dever, pedindo muitos triunfos para o estudo, memória e disciplina.
Pediu bem e em boa hora porque aquela era a imagem do Cristo Bacharel, conforme se podia ver no letreiro espetado na cruz - Universitas Sapientia Omnium - e pela coroa dos espinhos que eram em número certo, tantos quantas as figuras da Retórica. Na mão direita tinha pregado um cravo de ouro representando a Escolástica, na mão esquerda um de prata, a Praxe. Havia ainda a eterna capa negra pendurada num dos braços que, era voz geral, oferecia protecção a todo aquele que a beijasse, desde que fosse colegial ou bacharel - e só a esse.
Foi o que o pequeno fez, beijou-a.
Entre pai e mãe começou a escalada para o cume da cidade que, a partir dali, entrava já nas nuvens. A bruma rolava pelas ruas apertadas e numa delas, cortando o fumo com as asas esgarçadas, caíram-lhe em cima os ladravazes da tesoura rancorosa. Fez sinal aos pais para que não se assustassem, avançou um passo, e humildemente baixou a cabeça. Raparam-lha. Segunda estação.
“EFE-ERRE-A... FRÁ!”
“EFE-ERRE-E... FRÉ!”
Sempre no denso, trepando a brancura, a marcha agora era cega e por passagens desesperadas. De repente, céu aberto - e deram de caras com um grande mosteiro ou coisa assim, pousado nas nuvens. Mosteiro, tinha todo o ar disso. Lá estava a torre, o sino; lá estavam os claustros de pedra, fria paz da eternidade. Mosteiro, diria qualquer um. Mas o rapaz não se deixou iludir: tinha chegado à Universidade dos Doutores.
Os mestres recebem-no com dureza
“QUEM É ESTE?”
pareciam perguntar, pairando em sombrios cadeirões. Somente não se lhes ouvia a mínima palavra e nem era de esperar que se ouvisse porque aqueles mestres estavam no alto. Não diziam senão o que vinha dito nos livros antigos e nunca se dignavam nomear pessoas que não tivessem sido nomeadas pelos mestres, seus defuntos - e com o devido respeito.
Vestiam paramentos negros e usavam estolas de grandes sacerdotes, mais ou menos. Rostos rapados, cinzentos, olhos encovados, olhos de muita vigília, ali dormitavam eles num friso de catedral como apóstolos da sabedoria. Cada qual empunhava o seu diploma selado a ouro e púrpura e, à maneira de mitra, todos tinham sobre os joelhos o tal chapéu conhecido por capelo que só cabe na cabeça dos muito eminentes e não na de qualquer dos colegiais que circulavam aos pés deles decorando a sebenta:
“PATITI, PATITÁ... NOVES FORA, NADA.”
Diga-se ainda que naquela casa havia muito latim pelos corredores, patiti, muitas memórias pelas paredes, patitá, e que só se falava a pensar nos mortos, nossos maiores,
AD GLORIAM DEI.
Sem perder mais tempo o pequeno aldeão atirou-se aos livros para aprender a maneira de pensar e de fazer frases que o havia de tornar doutor: seria uma língua calculada e muito útil porque só a entenderiam os mestres e os defuntos, o quanto basta. Estudou, queimou as pestanas, amareleceu, e quando levantou a cabeça tinha rosto de homem. Sem idade.
Logo ali, a simples notícia de que se tinha dedicado às palavras e aos raciocínios em antepassado fez com que muito boa gente afirmasse que trazia alguma novidade nova. Traria? Os doutores, no trono da sua gravidade, acenavam que sim: tratava-se de um falar muito próximo dos alfarrábios por onde tinham estudado, logo, o mais perfeito. Juízes e escrivães apoiaram e puseram na acta; habituados a pentear parágrafos, gostavam daquela maneira encarreirada de complicar. Os próprios frades, por via de regra gente recolhida, não resistiam a erguer os olhos, agradecidos: frases de longo ornato, como iluminuras de breviário, quem as podia recusar? Por fim os guerreiros-chefes: Talvez, talvez... Sabiam, ouviram dizer, que cada hora tinha o homem que a decifrava. Talvez este, porque não?
De modo que foi chamado para imperador.
O Reino naquela época tremia de frio e desconfiança. Tinha-se deslocado mais para a beira-mar, não se sabe bem porquê mas calcula-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.
Nesta leva desgarrada, escapavam os camponeses, que tinham a barriga curtida, eram cardos, e que se cravavam na terra à dentada, como uns danados. Espalmavam-se nas tocas e nas dobras das montanhas para deixar passar a ventania, pareciam calhaus, seres empedernidos; depois voltavam ao trabalho, à semente que se enterra e ao fruto que se arranca. Tinham-se habituado de tal maneira à má sina que fome para eles era o pão de cada dia.
Os restantes, os que não conseguiam enganar os vendavais, fugiam de roldão pelo país, atravessando aldeias e planícies, vinhas e repartições, hoje fazendo família neste ponto, amanhã mais naquele, até se verem diante do mar, acossados. Uma vez ali, ou entregavam o corpo aos caranguejos ou faziam como o mexilhão: Pé na rocha e força contra a maré. Daí o nome de Reino do Mexilhão que lhe pôs a geografia em homenagem a esse marisco mais que todos humilde, só tripa e casca.
Quando o mar bate na rocha
quem se lixa é o mexilhão
Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se alimenta de água e sal, do sumo da pedra ou de milagres - o mexilhão, vida negra, tem a ciência certa dos anónimos: pensa e não fala, sabe por ele. Se virou costas à terra foi por culpa dos doutores ditos dê-erres e da conversa em bacharel com que o enrolavam; unicamente por cansaço, desinteresse. Por isso, na condição de habitante do litoral era com o oceano que desabafava. Levava os dias a medir o infinito e a resmoer o seu ditado preferido: Quando o mar bate na rocha... o resto já nós sabemos, segredavam.
Um estrangeiro, mesmo o mais despassarado dos estrangeiros, não podia deixar de concordar que havia muita verdade no provérbio. Logo que nos outros reinos se declaravam guerras ou preços lá vinha o vento a alastrar e quem pagava eram os mexilhões apesar de não terem feito nada por isso; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham bater e viam-se obrigados a fazer parede, ai, vida, para não se deixarem levar pelas águas. Vida. Vida negra.
Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido da palavra, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o quer que fosse. À falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhes trazia a brisa marítima e esse morder em seco e as rugas de tanto fitarem o além faziam-nos velhos antes do tempo. Nasciam já velhos, parece impossível.
Estavam, pois, assim, a mirar as nuvens, a estrela da Índia ou a onda libertadora, e eis senão quando
DECLARA-SE A INVASÃO DOS DÊ-ERRES
Eram cidadãos do interior, filhos ricos de montanheses, que avançavam, friamente treinados pelos mestres da cidade dos doutores. Tinham cercado a capital, mascarados de juízes, mangas-de-alpaca, meninos de coro e curadores dos pobres e acto contínuo infiltraram-se nas secretarias; no púlpito; na praça da jorna; no quartel real. Ocuparam, como se diz, os pontos estratégicos para de repente, a eles, a eles, que é uma pressa, caírem em cima dos mexilhões, brandindo os seus canudos de bacharéis:
“IN HOC SIGNO VINCES!”
“IN HOC SIGNO VINCES!”
Apanhados de costas, os da beira-mar renderam-se sem discussão tanto mais que não compreendiam a língua dos invasores. Ficaram de braços pendurados e de boca ao vento, ao mesmo tempo que os dê-erres triunfantes, repetindo a sebenta dos treinadores, lhes davam a bordoada final com rajadas de discursos. Discursos e contradiscursos, discursos por uma pá velha como só os dê-erres sabem fazer: com excelência para a esquerda e excelência para a direita, e não sei se me faço compreender. E assim é que se enxofra.
Os mexilhões, nem uma nem duas. Era conversa de dê-erres, dialecto em código magistrado com parágrafos à contravolta para atordoar. Ouviam calados e saíam mudos.
Entretanto o Reino foi-se embandeirando em decretos e assinaturas. Esvoaçavam papéis de amanuense, alegria das repartições, e no azul celeste deslizavam frases difíceis através duma poeira dourada de louvores e oratórias. Não tardou muito a nação estava toda dita e arquivada num imenso livro de decretos e castigos, ameaças e mais que também, ao ponto de passar a ser conhecida por Comarca dos Doutores em gratidão aos ocupantes que se pavoneavam, rua abaixo, rua acima, nos cafés e até em casa, com os canudos de bacharel selados a DR. Respeito à sabedoria, queriam eles fazer saber com isso.
Bem, por amor à sabedoria estes cidadãos apresentavam um aspecto de fria gravidade. (Como se disse, excelência para a esquerda e excelência para a direita). Tinham obrigado os mexilhões a vestir de escuro porque a vida não estava para graças, e decretaram que de futuro o riso seria a máscara do desdém, o falar a capados ignorantes e a alegria o fumo da inconsciência. Assim, sem mais conversa. Que se passasse aviso e se cumprisse, soma e segue, Reino da Comarca, tantos de tal.
Um a um, todos os jardins foram ocupados por espiões com o ar de quem não quer a coisa e as bandas de domingo e coreto, muito em piano, pianíssimo, foram-se afastando, afastando, e, andante, sumiram-se sem dar nas vistas. As noites calaram-se, os pobres também. As feiras e romarias, já de si tão na espinha, tão remetidas ao calendário, ficaram entregues às moscas mais desiludidas que se conhecem. Ouviam-se sinos. Ao menos isso. Os sinos, avejões cativos, multiplicavam-se em penitências levadas pelo vento,
BADALÃO... BADALÃO...
ao correr de montes e vales e cobrindo os povoados. Cá em baixo, pés na terra, soldados e procissões, um-dois, esquerda-direita, oremus, patrulhavam as estradas.
De agora em diante onde se lia pobreza devia ler-se modéstia, ditavam os dê-erres marcando o compasso, e essa era uma das regras para o Reino andar em frente. Estava-se numa nação modesta, explicavam, entre gente de poucas posses, capaz de fazer da pedra cama e do osso ceia mas, garantiam, gente possível de enriquecer. Tudo dependia única e exclusivamente da Providência justiceira porque naquela terra a fortuna quando aparecia era uma vez por outra e olha lá, mas nunca pelo processo do suor do rosto. Chegava por decisão do destino superior aos homens e da maneira mais simples: lotarias.
Dizia a lei que qualquer mexilhão podia subir à classe dos ricos desde que jogasse na lotaria. Lotaria, note-se bem. Sorte pela lei e não pela vermelhinha, nada mais simples.
E o mexilhão, sempre que podia, virava o forro às algibeiras e não encontrava outro remédio senão jogar tudo até ao vintém do cotão. Jogava este o que não tinha e o outro o que se lhe acabava; jogava o coxo e o enforcado, e até o cego apalpando os números; metade da nação vendia lotaria à outra metade. Em conclusão: era um reino a vender o abstracto, a negociar o talvez.
Para ajudar a reduzir os pobres, os ilustríssimos mais dedicados combinaram o chamado Golpe da Misericórdia, sorteando entre si um dado número de infelizes. Cara ou coroa, a cada um coube o seu protegido e todos os domingos, chovesse ou fizesse sol, lá iam os benfeitores nos automóveis brasonados a caminho da santa miséria. Cada um levava ao seu protegido sustento e boa-vontade e discursos para o resto da semana.
ERAM INCANSÁVEIS.
Naqueles domingos de Deus lhe pague os bairros da lata ficavam outros. Reinava a animação na miudagem, havia cães e curiosos e chauffeurs de uniforme aos pulinhos nos caneiros. Nalgumas barracas acendia-se a fogueira da paz, mas só nalgumas: tantas quantas os automóveis em visita.
A campanha do A Cada Pobre Seu Rico exigia muita ordem para não acabar num arraial de invejas e de vaidades. Os dê-erres estavam atentos, eram cumpridores até à migalha: abusos não admitiam, trocas de pobres ainda menos porque o que estava assente, estava assente, ou então não tinha valido a pena o sorteio. A prova é que certa vez,
EM PLENA NOITE DE INVERNO,
gemia o frio pelas ruas e nevava nos corações, um determinado notável da Comarca, ao ser acordado por outro notável para ir assistir já, já, ao último suspiro do protegido, tirou-se dos seus lençóis e foi. Foi (em roupão estremunhado e a dar esporas no chauffeur) mas ao chegar à cabeceira do moribundo, eis, que, graças ao Altíssimo, descobriu,
FALSO ALARME,
que estava diante doutro pobre, não do dele. Coçou o queixo mas, regras são regras, deu meia volta e regressou aos lençóis pelo caminho da vinda.
Azares destes só não acontecem a quem não faz protecção. E o notável antes de mergulhar outra vez no quente pegou no telefone e, mais uma vez regras são regras e manda a delicadeza, ligou para o colega notável que o tinha acordado. Excelência, disse, lamento muito mas não era o meu pobre, era o seu.
“PASSE BEM.”
É que, bem visto, bem visto, proteger com ordem é uma coisa e caridade de mãos rotas é outra (princípio do Curador dos Pobres) e ai do dê-erre que não cumprisse. O menos que se poderia dizer era que estava a atraiçoar a vontade divina, visto que no amparo por sorteio há sempre a mão do Altíssimo a comandar à distância. É Ele, apenas Ele, que por manigâncias do acaso junta o feliz contemplado ao nobre benfeitor e é Ele que escolhe a hora e a vez, o sacrifício e a gratidão. Digamos para simplificar que “A Cada Rico, Seu Pobre”, muito certo, mas segundo a vontade de Deus. Entendido?
Com as lotarias era igual - escolha de Deus, Número da Providência, também chamado. Mas as lotarias tinham mais que se dissesse porque, além de serem uma receita de produzir felicidade (a mais sábia), eram também uma forma de despertar a dignidade nos mexilhões adormecidos. Não ignores o teu semelhante porque pode estar ali o Sorte-Grande de amanhã, segredava-lhes o bichinho do ouvido e só isso já era cultivar a dignidade, o tão apreciado respeitinho que existe nas nações asseadas. Por essa razão é que muitos mexilhões, pressentindo a felicidade a passar por eles a toda a hora, já se cumprimentavam a torto e a direito com
“SALVE-O DEUS, NOSSA EXCELÊNCIA”
tirando o chapéu ao movimento geral que continuava a ser em marcha de procissão, esquerda-direita, oremus.
Alto! cortaram os dê-erres quando muito bem lhes pareceu.
Ficou tudo suspenso. Sinos de boca a meia haste, patrulhas em sentido, chapeladas, tudo suspenso. Então, aproveitando a surpresa, uma embaixada de casaca e risca ao meio foi num instantinho às montanhas e trouxe de lá um imperador. Trata-se, nem mais nem menos, do camponês nosso conhecido, o dito.
Vinha magro e iluminado de tanto estudar, mas vestido de mestre. Porque o era.
Na parada dos doutores
os pedintes-voadores
O camponês mestre-doutor foi recebido na cidade com milmilhares de bandeirinhas e foguetes de estrela e trovão. Fez o seu discurso, para muitos talvez o mais famoso, o mais lembrado, onde começou por citar a conhecida história da “Camisa do Homem Feliz”, que é aquela que descreve a alegria de ser-se pobre e a difícil vida dos ricos. A seguir, coisa e tal, navegou em pensamentos de onda larga e a grande profundidade, fez duas abordagens na metáfora, apontou aos enigmas do amanhã - enfim, falou. E tal. Disse coisas.
Durante largos dias o Reino ficou constelado de florinhas de pólvora e de canas de foguetes riscando as nuvens. As cartilhas escolares salpicaram-se de histórias de muito exemplo acerca da honra da pobreza e das desgraças que acontecem fatalmente aos ricos, no outro mundo. Muito bem calados, os mexilhões pensaram: pobrezinhos, sim, mas honrados é que não - e o pior é que toda a gente ouviu.
Foi a partir desse momento que passaram a circular certos ditos venenosos que não faziam o menor sentido a não ser para os mexilhões. A cada instante nascia um mais maluco que o outro, alguns tão esparvoados que ficaram célebres logo ao primeiro dia, como aquele do “mais vale um rico na mão que dois pobres a voar” que não tardaria a ser proibido. Também era o que faltava que não fosse.
Os pobres não voam, tinha respondido o Imperador quando lhe vieram contar a estupidez do provérbio. Ou se voam é porque têm dinheiro para o bilhete de avião e são falsos pobres.
Resumindo, tratava-se de uma calúnia sem ponta por onde se pegasse e ainda por cima gravíssima porque ofendia a classe dos humildes, já de si tão sacrificada.
Isto era no tempo em que a palavra de cada um não tinha valor oficial, ou se tinha mudava constantemente conforme os azares do Reino. Os mexilhões sabiam muito bem que era assim e fechavam-se na casca, segredando apesar de tudo palavras que logo apareciam espalmadas nos muros (mesmo nos muros mais frequentados pelas varejeiras do Paço) e que faziam perder a cabeça aos dê-erres. O Imperador não gostava mas fazia de conta. Palavrices, era como ele respondia àquela literatura de cal e pincel, palavreado para tapar o olho cego. (Ele próprio limpava o rabo aos jornais). E lá muito para ele: Ou eu me engano muito ou esta gente ainda vai acabar com uma diarreira de palavras (ameaçava, puxando o autoclismo).
Tendo sido doutor entre os doutores, a especialidade da Alteza Imperial eram precisamente as palavras. Adormecera com elas no berço e agora que estava sentado a governar magicava num plano que pusesse o Reino a falar numa linguagem pura e severa, sal e estopa, uma linguagem que unisse o jovem ao velho, o rico ao necessitado, o caneta ao militar - ou seja, a dos dê-erres.
E vá de varrer decretos e caiar muros, vá de arredondar alíneas e enxertar jornais, compêndios, orações, o que calhava. Palavras correntes, mais vivazes ou menos próprias, fogueira com elas porque pingavam peçonha nas entrelinhas. Outras, quase esquecidas na mortalha dos pergaminhos, essas é que sim: convinha salvá-las da traça maçónica e lançá-las em circulação quanto mais depressa melhor, dizia o nosso Imperador.
No meio deste trabalho vinham pedir-lhe conselhos os homens mais poderosos da Comarca dos Doutores. Isso desgostava-o, como se depreende, não só porque era um atraso para o rendimento da nação mas também porque lhe fazia crer que as pessoas ainda estavam longe de avaliar a importância das palavras na construção da ordem e da consciência.
Por exemplo, uma vez apareceu-lhe o Patriarca do Alto Comércio e, caramba, o que ali ia, o que ali ia. O homem mostrava-se desnorteado:
“NÃO POSSO MAIS, EXCELÊNCIA.
OS EXCELENTÍSSIMOS MENDIGOS TIRAM-ME
O SONO COM AS LAMENTAÇÕES.”
O Imperador encolheu os ombros e deu o problema por resolvido: quais mendigos, inadaptados é que o cavalheiro do alto comércio queria dizer. E
“INADAPTADOS SEMPRE EXISTIRAM
E CONTINUARÃO A EXISTIR
ATÉ NOS REINOS MAIS PRÓSPEROS.
DURMA EM PAZ.”
Atrás deste milionário em noite branca veio, admitamos, o Guerreiro-Mor do Reino. E se veio, esse como de costume despejava o recado duma penada e em posição de sentido:
“SENHOR MESTRE EXCELENTÍSSIMO
PERDEMOS MAIS UMA BATALHA
NÃO CONHECEMOS AS LEIS DE GUERRA
DOS INFIÉIS NEM O CAMPO
QUE ESCOLHERAM POSSO-ME RETIRAR?”
Momento! ordenou o Imperador. Depois, voz medida, dedo espetado, explicou ao Guerreiro-Excelência que batalha era luta entre exércitos devidamente registados, com patentes, estandartes e tratados de honra. Ora, tanto quanto era do conhecimento dele, Excelentíssimo, não acontecia assim com os infiéis, que não passavam de uma tropa-fandanga sem capelão nem uniforme. Conclusão: não tinha havido batalha nenhuma. Militarmente, pelo menos.
“O OUTRO QUE SE SEGUE”
O que se seguia era o Tesoureiro das Arcas, às voltas com o eterno problema dos impostos.
Impostos ou donativos? perguntou o Imperador, insistindo na diferença. (Distinguo, disse até, para ser mais claro.)
O das Arcas trancou-se nos ferrolhos da indecisão, mas Sua Alteza não perdeu tempo: mais impostos era-lhe impossível autorizar; donativos, sim, achava bem. Não via inconveniente em que fossem decretados donativos que só os indivíduos de maus sentimentos ou inimigos da pátria se recusariam a pagar. E com gente dessa nada de contemplações.
Quanto tempo gastou o Imperador a perseguir as palavras que empestavam, dizia ele, o Reino? Meses e meses. Anos. O melhor da vida, o suor da insónia. Bandos de espiões batiam as ruas atrás da frase solta e do dito por dito, confrarias de mafarricos adejavam pelas entrelinhas dos compêndios, sacudiam a letra de forma e se fosse preciso esmagavam-na, davam-lhe jeitos, maneiras. A fala dos mexilhões era passada a crivo cerrado e havia orelhas de morcego a caçá-la nas pregas de cada sombra.
O Mestre é que não se dava por satisfeito. Queria melhor, cismava num remédio infalível que não podia dizer. Reunido no gabinete com alguns engenhosos muito dele, ligou lâmpadas e megalâmpadas, meteu cérebros electrónicos, olhinhos a alta voltagem e cabelos de platina; vozes cifradas; computadores de inconcebível crueldade. E ao ver o monstro a funcionar esfregou as mãos: agora sim, agora sim, a música ia ser outra. Seguidamente pagou aos engenhosos e despachou-os para o
OLHO DA RUA!
(Ou mandou-os matar, resta saber.)
Aquilo que até ali não passava de um gabinete de silêncio e mesa dourada iria ser conhecido por
A CÂMARA DE TORTURAR PALAVRAS
onde o verbo e o substantivo, a cedilha e restante população dos dicionários sofreriam tratamentos de último grau.
Seguindo o esquema (que deve andar algures pelos arquivos ou nalgum microfilme em código-espia) a máquina infernal devia resumir-se a
Isto numa ideia muito geral.
Penetrar no gabinete era impossível. Os únicos que tinham licença de chegar mais perto os pares do Reino e um ou outro notável em visita - ficavam na sala ao lado, onde reunia o conselho dos excelentes, e esperavam pelo Imperador.
Em boa verdade ele já lá estava e há muito. De pé, atrás da cadeira da presidência. Numa estátua em tamanho natural.
A estátua
Vestidos em rigor de luto, os cortesãos esperavam horas diante da estátua, de chapéu na mão. Aquele Imperador de bronze recordava-lhes o jovem doutor camponês, Modéstia e Autoridade, que viera do nada para assombrar os mestres. Olhava para longe, erecto como um promontório.
Certos visitantes tocavam-lhe com o dedo: tinham à frente deles o Chefe!, o irmão-irmão, o gémeo; o que ficaria para os séculos, Saber e Autoridade, como um vasto eco de panteão à meia-luz. Sentiam um sossego de passado e de viagem naquela figura esverdeada, qualquer coisa de emissário do velho Império, de passageiro de galeão, representado na imponência da capa e das borlas de doutor que eram as mesmas dos nobres de há trezentos anos; as próprias feições, raspadas a aço de Albacete, tinham a secura sobranceira de quem viu mundo e não conta.
E na verdade ele conservava-se ali como um cristão de muita história, o último a abandonar os impérios revoltados e os delírios coloniais, e estava numa indiferença solitária, tal como o tinham encontrado as tropas em retirada. Nenhuma das estátuas do Imperador espalhadas na imensidão da selva e das capitanias tinha resistido à vingança dos rebeldes, só aquela. Os soldados atravessavam a floresta a sete pés na direcção da costa quando esbarraram com ela, estendida num leito de folhagem, à sombra (como contaram mais tarde) de uma abóbada de tamarindos e de morcegos adormecidos.
Nenhum deles, retirantes em desordem, pôde resistir a uma tão súbita presença e principalmente à soberania que comandava aquela figura de bronze, apesar de já amarrada de pés e mãos pelas ervas trepadeiras, apesar dos lacraus que se passeavam por cima dela e da merda dos morcegos. Apesar de, como notaram com estranheza, lhe ter sido arrancado um braço e, para mais, o direito - repararam a seguir - o da mão que assinava as sentenças. Aí perceberam
A LIÇÃO DA VINGANÇA.
Aquele sinal de punição aparecia como um aviso, uma profanação calculada, na serenidade de um corpo que a morte tinha em seu poder. E a morte, no parecer de um dos capelães da expedição, protegera a imagem mutilada revestindo-a de um sal verde, de floresta, vómito ou fel do bronze, que a tornava mais antiga e com manchas que faziam lembrar as chagas dos cadáveres sagrados. E além da mortalha de azebre havia um perfume funerário de sândalo e de hibisco a flutuar sobre o corpo e era um incenso, onda ou qualquer coisa muito nobre que (cf. Relatório Militar) repudiava para longe o respirar dos morcegos pendurados nas árvores, como trapos; os quais morcegos, escreveu ainda o mesmo capelão, compunham a abóbada dos infernos, impedindo que o olhar cego do grande ausente recebesse a luz do céu. E com tudo isto os soldados ficaram entre a urgência e a comoção, incapazes de uma primeira palavra.
Isto era ele, estava assim. E a coluna em debandada juntou-se em redor do Mestre e Soberano que, embora longe, na pátria, aparecia ali como uma visão de martírio, ostentando o braço decepado. E cada soldado, de seu impulso, logo ajoelhou nessa terra de excomunhão, e todos fizeram o sinal da cruz em nome do Pai, do Filho e do Espritossanto sem contudo chegarem ao Ámen porque, tomados de exaltação ou de Piedade cristã, despediram selva fora em demanda do braço da estátua. Estes casos passaram-se e foram testemunhados. Tiveram lugar no lado de lá da Terranostra, a muitas léguas do Reino, por ocasião da perda da última feitoria imperial e na manhã duma sexta-feira, dia de São Bartolomeu e do Anjo Satanás.
O braço foram encontrá-lo, parece, espetado numa falésia como um adeus (ou como uma gargalhada do inimigo, pensaram alguns) quando estavam já à vista do mar com milhares de selvagens às canelas. Mas na passada da aflição não largaram o grande cadáver de bronze que traziam com eles e, mais, ao verem o braço a acenar-lhes lá do alto ainda arranjaram forças para lhe deitarem a mão. A bordo soldaram-no ao resto do corpo com pedaços fundidos das inúteis bocas de fogo e pelo que depois se viu não se pode dizer que tenham feito obra asseada, pois enganaram-se nos cálculos da liga e quando deram pela coisa nada a fazer: o braço tinha ficado maior do que o outro.
Assim restituíram eles o Imperador e assim o colocaram ali, em palácio, para valer de exemplo e recordar. Verde do suor de bronze, verde da selva e do salitre do mar, ficou, solitário e para sempre, na vasta sala de mármore onde o Outro, o verdadeiro, vinha receber os convocados ilustres. Estes, respeitosos e confusos, esperavam ali horas e dias sem fim pelo privilégio de poderem ver de perto o amado Soberano, mas enquanto ele não vinha fixavam-se na estátua que o antecedia. Era um tanto ridículo com aquele braço da palavra escrita e do sinal da cruz a sair dela como um enxerto, como uma veemência desmesurada. Mas não importava, isto só a tornava mais arcaica e mais terrível.
De pé, atrás do cadeiral onde o Excelentíssimo iria tomar lugar, o Imperador de bronze olhava os visitantes com frieza, mas às vezes, com o declinar da luz, parecia que até ganhava expressão.
Ganhava? O missionário que por lá passou garantia que sim. De tanto fixar os olhos na estátua, jurou ter-lhe visto movimentos secretos nos lábios e no braço descomunal, breves sinais talvez, coisas minúsculas mas reveladoras como todos os avisos enviados por Deus. A partir de certa altura, o missionário da vista delirante já não distinguia entre a estátua e o imperador real, a verdade era essa - mas também não constituía surpresa de maior para um conhecedor da História antiga como ele. Estátuas de carne, não seria aquela a primeira: que se lembrasse, havia pelo menos a do fugitivo que noutros tempos ficara empedernido em sal para todo o sempre. Ou era confusão dele?
Por sua vez os cortesãos e os conselheiros ao chegarem diante do Imperador de bronze sentiam-no carregado de antiguidade e de mistério. Era o mestre em versão de catedral. O mestre para lá deles, do tempo e do juízo comum. Demoravam-se a lê-lo, a decifrá-lo, aproveitando esse momento único de o poderem olhar de frente e muitos deles, se estavam sozinhos, falavam-lhe, diziam queixas; outros ensaiavam os seus discursos, fazendo desse primeiro encontro o prefácio à conversa com o Imperador real.
“EXCELENTÍSSIMA ESTÁTUA”,
começava o Governador da Ilha das Duas Casas, abrindo-se à sala deserta. E vinha com a conversa costumada: pedia uma nova emissão de moeda-osso visto que os nativos, por alturas da última seca, tinham engolido uma boa parte das que andavam em circulação; e porque torna e porque deixa era urgente reforçar o mercado, concluía o Governador sem vintém. O Imperador verde nem se dignava olhá-lo, de tal modo era distante e tão de bronze.
Com o Juiz das Causas Combinadas era tudo em fado barroco. Atirava-se ao discurso com aberturas de largos cumprimentos mas ao entrar no propriamente da matéria punha-se com sustenidos, muitos sins e mais que também e retirava-se às arrecuas, todo vénias. Saía em paz, julgava ele.
E como estes, mais. Até o Missionário da Alta Cruz, que padecia de cataratas e era um campeão em mistérios, até esse acabava por se perder na oração, perguntando se a estátua não teria realmente vida. É que lhe descobria certas expressões, de trazer episódios sagrados para animar o dia-a-dia dos mortais. Mas desta vez nem precisava de ir tão longe, bastava-lhe citar o caso dum general conspirador, que dias antes, ao ver-se diante da estátua, foi tocado pela Revelação, não resistiu, e, catrapus, badalou tudo ao Imperador. Facto histórico, facto militar e histórico. O arrependimento andou na boca das casernas, subiu aos tribunais, deu em louvor e em juras para todo o sempre e teve lugar ali, entre aquelas quatro paredes. Que lhe teria dito a estátua?
NADA,
a estátua não disse nada, está-se mesmo a ver. O cornetas do general é que, enquanto esperava pelo Imperador, começou a desconfiar da demora e a empreender, a empreender, e às tantas já sonhava com folhetins de traição, espiões de todas as patentes, segredinhos a bichanar e forcas no horizonte. E ele no meio. Ele com um grandessíssimo par de chavelhos, que é o que acontece a quem fica no quartel em noites de baile geral.
Durante a espera na sala da estátua teve tempo para tecer os mil e um pavores que acontecem a um cabo de guerra quando se encontra à vista do tribunal, pois é sabido que tanto lhe podem pôr o colar da condecoração ao pescoço como o baraço da forca. E lá estava ele: outra vez a forca, já era mania.
De qualquer maneira via-se só, isso é que não oferecia dúvida. E pior que só, vigiado pela estátua que se mostrava feroz, ferocíssima. Tinha um não sei quê de desprezo que não enganava ninguém. Na boca, principalmente; a boca, descobriu o general Cornetas, parecia traçada à faca, era um gume de desprezo. Ou de nojo, emendou. De impiedade. Vingança.
Coragem, disse ele voltando-se para as estrelas da farda. Que diabo.
À segunda hora de espera já tinha o mapa da situação estudado com toda a serenidade dum militar sitiado e não havia sombra de dúvida, o Imperador sabia o que nem ele sabia e preparava-se para aproveitar a revolta e passá-lo à reserva dos cadáveres
“MAS ISSO AÍ MAIS DEVAGAR!”
protestou o general no tom do honrado que está disposto a vender cara a pele. Era um especialista em batalhas de vaivém e como tal sabia recorrer à defensiva por antecipação. Perder a tempo é meia vitória ganha, disse; e pôs-se a pensar.
Pensou depressa porque, vendo isto e mais aquilo, e com mais pró e menos contra, o golpe só podia ser um; precisava era de o ensaiar bem ensaiado e já.
Avançou para a estátua; compôs o rosto, compôs a voz. A seguir perfilou-se em torre-e-espada e, olhos nos olhos do Imperador de bronze, entregou-lhe de mão beijada.
A CONFISSÃO:
Eu, cavaleiro de primeiro grau, declaro por minha honra que tomei parte com animus conspirandi em reuniões de charuto e mascarilha com vista à transformação da ordem do Reino. Ponto final, parágrafo.
Mais declaro que dessa conspiração não podia resultar em caso algum o menor dano ou substituição na pessoa e no cargo do Imperador Excelentíssimo, nosso Pai, Mestre e Nação. Sublinhado menor dano e nova pausa.
Com efeito, continuou o cavaleiro Cornetas, o objectivo dos descontentes era eminentemente patriótico e civilizado, como se pode verificar pelo respectivo esquema das operações que foi, todo ele, inspirado am altos ditames humanitários de tolerância e cristandade e em tiros nem pensar. Assim,
1ª fase: A certa hora de coruja, entre o fecho do programa da televisão e a entrada para as oficinas, seriam trocados os sinais de trânsito, marcos quilométricos e indicativos de todas as povoações que ligam a Capital à Cidade Segunda deste Reino. Onde se via seta para ali, punha-se seta para acolá; onde estava Norte marcava-se Sul; onde aparecia Vila ou Cidade colocava-se a placa de uma aldeia em casa do diabo mais velho. E assim pela noite fora.
2ª fase: Baralhada a geografia, seria comunicado aos quartéis da Capital que na Cidade Segunda havia bernarda e era preciso acudir. Aos da Cidade Segunda dizia-se o mesmo em vice-versa.
3ª fase: Activos e de espoleta pronta, como é da sua tradição, os dois exércitos do Reino viriam dum lado e doutro mas nunca chegariam a encontrar-se por não lhes ser possível ajustar os mapas ao terreno do país.
4ª fase: Enquanto os exércitos andavam a sonambular por fora de casa, os conspiradores tomariam conta da Capital com bons modos, fechando os ministros à chave...
O General Cornetas não teve tempo de terminar a revolução. Sua Alteza acabava de entrar e, nem bom dia nem boa tarde, sentou-se à cabeceira da mesa:
“SABER E AUTORIDADE,
VAMOS À ORDEM DO DIA!”
De pé, o irmão de bronze ficou a guardá-lo pelas costas, cabeça levantada.
Dr... rrrrr!
Naquele Reino da Comarca dos Doutores, o dê-erre, Dr, R-D, Herr D, Senhor D ou Senhor Dom, distinguia-se à légua dos restantes mexilhões pelo porte de todo contentinho com a sua pessoa, pelos tons escuros com que revestia o corpo e pelo cantar inconfundível, que era esdrúxulo e gargarejado.
Filho e neto de camponeses que enriqueceram e que em ricos foram e em ricos seriam sempre camponeses, este exemplar preferia o habitat das secretarias e dos purgatórios do carimbo onde tudo obedece à ordem natural dos impostos. Deslocava-se com solenidade difusa à custa do canudo de bacharel que manobrava como um apêndice perfurador para abrir caminho nos subterrâneos dos decretos e que ao mesmo tempo lhe servia de membrana extensora do aparelho bucal. Ávido e depredador, nisso ninguém o batia. Contudo, dotado de apreciável sentido colectivo, observam os especialistas - e não admira: na luta contra a maioria dos mexilhões vulgaris Sp, o dê-erre fazia barreira ao lado dos restantes irmãos da espécie, espadeirando com o canudo do diploma e entoando decretos até à confusão.
Também era por natureza “instável e desconfiado” (anotou um curioso de passagem pelo Reino) e como em toda a coroa imperial não havia senão 1-Único Mestre que tudo lo podia e tudo lo mandava, cada dê-erre andava a enganar os outros fingindo que era o mais importante a seguir ao Chefe, conforme se pode ver pelo conhecido parêntesis
“O VOSSA EXCELÊNCIA NÃO SABE
COM QUEM ESTÁ A FALAR”
que todo o gato-sapato metia na sua pessoa em conversas de coisa nenhuma.
Mas a doença do mandar-mais era como o arroto sem vintém, ao primeiro azar sufocava. E os dê-erres, muito discurso, muita Excelência, muita Ordem e Faz-Favor, mas assim que lhes caía uma pedra de granizo fora das regras do Borda d'Água, espinoteavam, viam dilúvios, mosquitos por cordas, e não sabiam onde se haviam de meter. Aconteceu isso quando os bárbaros impacientes ocuparam determinada ilha fora do mapa, que por acaso era a mais caprichada da Coroa. Foi assim:
Uma vez, estavam os dê-erres muito satisfeitos da vida a passear no Reino, quando estalou a notícia de que a dita caprichada ilha se tinha revoltado.
Os dê-erres, com mil diabos, subiram às paredes; houve missas, paradas, discursos de protestar
VINGANÇA!
mas os bárbaros até se riam. Quanto mais eles assopravam em nervoso miudinho mais a ilha se afastava, de vento em popa numa festa de zagaias.
Foi então que se ouviu a voz do Imperador: Que era aquilo, que era aquilo, criaturas turvadas de razão? Dê-erres e cortesãos deram um passo atrás e puseram os olhos na Praça dos Acontecimentos donde tinha vindo a voz.
“A ILHA NÃO SE PERDEU”
anunciou o Mestre - e pausa. A nação estava toda ouvidos.
“A ILHA...”
(pausa e mais ouvidos)
“... ESTÁ MAIS PERTO
DE NÓS DO QUE NUNCA!”
Oh, alegria, oh, vitória, Os dê-erres abraçaram-se, aplaudiram, trocaram parabéns. Mas daí a pouco punha-se-lhes a questão: Mais perto, onde? Mais perto do coração, seria? Começaram a baixar as cabecinhas, a murchar.
O Imperador então foi como se tivesse adivinhado. Do alto da tribuna estendeu o braço na direcção de duas casas no extremo da cidade: Acolá, disse.
As cabecinhas, tocadas pelo sol da palavra imperial, desabrocharam e seguiram o traço de luz que o Mestre lhes apontava: Acolá. O Imperador tinha mudado para ali o Governador humilhado, o capitão vencido mas não convencido, o juiz de palmatória, o padre, o médico, e meia dose mal servida de indígenas de rabo pelado. A Ilha.
Estava ali a Ilha,
“QUE TODOS TOMASSEM NOTA.”
Disse e voltou para o palácio, para as palavras.
Todos tomaram nota e a Ilha passou a ser na cidade e não onde queria a geografia. Limites: a norte o largo do chafariz, a sul e a nascente o jardim zoológico com a variedade da sua fauna característica, a ocidente um campo de futebol, e mais para diante, mar. O extenso, o pródigo e venerável mar.
A partir daqui, atenção escolas, atenção cartógrafos atenção navegantes, havia que corrigir
a população, que era de oitenta e três nativos, todos funcionários,
o clima, menos húmido que antigamente,
e a divisão administrativa em dois distritos autónomos com as respectivas comarcas distribuídas pelos andares dos prédios. Existia ainda uma zona independente - a de maior densidade florestal - ocupando a garagem e os terrenos baldios das traseiras (ainda por demarcar) e um enclave de dois pisos onde funcionavam os serviços missionários, a comissão da caça grossa e as brigadas contra o sono tsé-tsé.
Por aqui já se pode avaliar o exemplo de civilização que era a Ilha das Duas Casas, rodeada de cidade por todos os lados. Pérola serena, bandeirinha na imensidão, eis o que ela lembrava. Mas para que tudo ficasse como dantes, o Imperador ordenou que as salas fossem forradas com enormes fotografias da paisagem de cada distrito, de modo a que os indígenas não estranhassem a mudança. Pôs também palhotas: duas por cada quarto; nos corredores plantou capim e palmeiras de plástico transformando-os em caminhos de sertão. Que mais faltava?
Os pássaros, faltavam os pássaros, esses mensageiros franciscanos que alegram a natureza e despertam a inocência. Onde estavam eles, os pássaros? Resposta: no lugar que lhes competia - entre a folhagem. Havia-os de porcelana e em plumagem de nylon e, já agora, puseram-se também macacos embalsamados para animar a ramaria. Nas paredes insectos fluorescentes de luzir à noitinha; pelos cantos serpentes a giboiar. Em matéria de som, a fidelidade era de deitar por terra um explorador de cem carabinas - vinha todo do natural, gravado em fita magnética: choro de hienas, roncos de leão, macacadas barulhentas; o tritrinar das aves e o cascalhar dos riachos; tambores ao longe. O essencial.
Cada habitante tinha por dever andar de tanga dentro dos prédios e falar o dialecto da respectiva região. Assim ajustava-se melhor à paisagem e aos climas que continuavam a respeitar os horários do outro hemisfério, com monções e tudo. Verdade, as monções eram essenciais. Para esse efeito utilizavam-se uns engenheiros alucinados que na altura dos equinócios inundavam os prédios a jacto de mangueira, derrubando algumas palhotas para exemplificar.
“AMANHÃ HÁ MONÇÃO”,
avisava o porteiro, e era infalível porque já tinha topado os engenheiros da mangueira a rondarem o bairro.
Este porteiro, além de porteiro propriamente dito, fazia de Alfândega e de Polícia das Fronteiras. Uma vez que a Ilha das Duas Casas continuava a usar a moeda local - os vinténs de osso, conhecidos por “vinténs selvagens” - tinha de impedir que a misturassem com o dinheiro do Reino que era de vinténs, sim, mas dos civilizados. Fugas de divisas só trariam prejuízos a ambas as partes e por isso os indígenas deviam ser revistados quando saíam para as compras ou para irem ao cinema.
Passaporte em sete chaves
A teia das palavras zumbia em fios sensíveis e de transaltíssima tensão; devorava palavras, sugava-as até à última sílaba, até à letra, ao acento - e bem na ponta, bem no nó, estava o Mestre. À espreita atrás duma secretária com pernas de leão de ouro e tampo de plumagens lavradas. Sobrevoado por electrões errantes.
O seu covil era ali: pzzz... pzzz... canais, pzz... sons de alarme, computadores a maquinar, e que ninguém o interrompesse. O povo lembrava-se dele pelos retratos oficiais e pelos bustos de jardim ou, mais dificilmente, pelas notas de banco que traziam a cena histórica do “Imperador Entre os Doutores, Saber Autoridade, moeda-ouro”. Poucos, raríssimos cidadãos podiam entrar na torrezinha onde ele se tinha fechado a sete chaves, todas de segredo e cada qual com o seu nome:
Chave da Força, a mais pesada.
Chave das Bênçãos ou dos Santos Óleos, trabalhada a ouro e a incenso.
Chave do Comércio, modelo universal.
Chave dos Espiões ou Gazua da Inconfidência.
Quinta Chave, também chamada das Alianças, para uso dos estrangeiros de boa vontade.
Chave do Suborno, a de mais voltas.
Chave dos Caprichos e Acasos, pessoal e intransmissível.
Conforme a pessoa, assim a chave que lhe dava entrada na torre.
Parece que com o andar dos tempos os conselheiros criaram também as suas chaves para receber os cavalheiros abaixo deles. Estes fizeram o mesmo em relação aos mais abaixo que, por sua vez, inventaram logo outras chaves para os ainda mais abaixo, e nesta cegarrega - chave que abre a chave da chave - até os contínuos de repartição, eternamente a bocejar as horas, tinham as suas chaves minúsculas que nem por isso deixavam de ser muito úteis.
O reino desdobrava-se num imenso arquivo de gavetas a abrirem-se umas às outras.
Não menos importantes eram certas palavras que se usavam para abrir portas e discursos. Bem manobradas, valiam como gazuas de ouro, feliz de quem as soubesse usar. Ordem, nem se discutia, era infalível; Destino, Mortos, Heróis, obrigavam a tirar o chapéu; Fidelidade salvava a frase mais comprometida. Havia mesmo expressões que só cabiam na boca dos dê-erres porque tinham esplendor a mais e não suportavam certas pronúncias.
E cá veio a gente dar às palavras. Como sempre. “Com palavras e com moscas povoa a miséria o Reino”, rosnavam os mexilhões descontentes, os Pedintes Voadores. Mas o Mestre tratava-lhes do desconversar, queimando diariamente uma boa porção de palavras que lhes faziam falta. Queria o Reino lavado de termos menos legítimos e da frase enviesada ou de dois bicos, e ia conseguindo. Não tardou muito os dicionários estavam no nervo e os mexilhões já só falavam pela calada.
“GENTE DISCRETA”
escreveram alguns trotamundos que fizeram carreira na época, entre os quais João Bule das Inglas, François Le Sensitive, da Gália-à-Noite, e o piemontês Doménico Ecuménico, frade dos anos bissextos. Passaram, viram e registaram. Nunca por nunca ser se houvera notícia de povo tão poupado de falas nem de Soberano tão nelas comedido, já que por razões de governo, sageza, etecétera, and so on, vivia em ermitão e se furtava à voz corrente com suprema austeridade. Chefe discretíssimo, com efeito. Se bem que sempre excelentíssimo, acrescentaram.
O que os viajantes trotamundos não sabiam era que, na cegueira de perseguir as palavras, Sua Alteza iria cair
PRISIONEIRO!
encerrado no casulo.
Visitas, não recebia - dispensava. Conversas nem a sonhar: falar, falava ele mas a sós, para o gravador, e em discursos de ogiva larga. Ditava-os à boca da teia devoradora, iluminado por descargas eléctricas e vibrações, e as ideias saíam-lhe em circuito fechado e em frases de alta intenção. Escutava-os sem se cansar ou, melhor, escutava-se. Seguia-se com ouvido diurno e nocturno, com o ar do Mestre que segue o Discípulo e o Discípulo continha o Mestre e o Mestre estava no Discípulo e eram uma única e só pessoa representada pelo verbo. Verbo, com letra grande.
Os conselheiros e os bacharéis também moldavam a palavra pela palavra do Imperador, sem se aperceberem muitos deles. Outros era de propósito.
A-COCO-RA-DOS
diante da campânula do gramofone his master's voice giravam os discursos do Dinossauro para lhe apanharem o toque e a gramática, a vírgula sonora. Curso ardiloso, eles que o dissessem: vinha todo em rotações maneirinhas devido ao subentendido e à análise em espiral.
Foram tempos heróicos aqueles, a nação jamais poderia esquecê-los. Tempos em que ilustrados pioneiros desbravavam o matagal tempestuoso das palavras correntes, procurando fazer brotar uma língua de pátria, solene e regrada, há lá coisa mais bonita. E os bacharéis enfrentavam a missão, viviam num solfejo permanente. De dia praticavam, repetiam o estilo Dinossauro nas repartições e nas academias e até na cama com as amantíssimas. Ao serão estudavam: fechados de cócoras, agarravam-se às grafonolas, girando o Curso Saurofone até ao derreter da agulha. Não sonhavam sequer que nas suas costas já os Pedintes Voadores tinham disparado mais um provérbio dos deles e esse tão disparatado, tão intriguista e tão invejoso que, francamente, era demais. Só isto: “Burro que aprende línguas esquece o coice e perde o dono.” Um despropósito.
O que vale é que vozes de pedinte não chegam ao céu e os doutores aprendizes já iam muito alto para as poderem ouvir. Percorriam um caminho todo histórico, a escalada para a voz imperial, e mesmo que as ouvissem nada de desencabrestarem. De beiço estendido (para afinarem a pronúncia) e de orelhas em riste (para apanharem a entoação) subiam pelo Discurso acima em rotações apertadas, tentando atingir o cume, o cristal donde ele irradiava. De caminho afiavam os cascos da unha nas raízes do dicionário e nos vocábulos rasteiros; esmagavam as palavras que o Imperador ia abatendo no gabinete, desenterravam outras, as mesmas que ele tinha ressuscitado. Nos silvados da retórica tasquinhavam com alegria, retórica era com eles, mas logo adiante empinavam-se à beira dum precipício em branco que era nada mais, nada menos que um dos apreciados silêncios do pensamento em que o Mestre se tornara useiro e vezeiro. Para sair dali só dando a volta precisa, a tal. E eles sabiam-na, tinham aprendido.
Mais para o finalmente, quando pouco havia que aprender, os dê-erres deram-se por afinados e foi um varrer de feira. Lançaram-se à rédea solta pela escrita do país, levantaram poeira e cascalho nos terreiros da televisão, praças públicas, academias, caíram em cima dos jornais da cidade e de toda a folha de couve da província. Era vê-los, era vê-los, aos doutores amestrados. Corriam de dentes no ar e discursavam em dinossauro rigoroso.
Já ensinavam os mexilhões-avós que fingir de cego é virtude de quem vê demais, e o Mestre devia ser desses. Lendo e ouvindo os bacharéis albardados com as frases imperiais, não se dava por achado. Eles ainda menos. Desen-terravam datas, palitavam jantares, descobriam inaugurações e pretextos de meia-tigela para molharem a sua palavrinha de hora e tal. Repetiam-se uns aos outros, repetindo os conselheiros que repetiam o Imperador que estava no início das palavras. Chave que abre chave, discurso que abre discurso, quando é que aquilo teria fim?
Teve. O povo deixou de ouvir o Mestre,
QUE INGRATIDÃO!
Crise de público, havia crise de público em todas as nações, justificavam os dê-erres. Mas com o Imperador mais cuidadinho, ele nunca admitiria que o pusessem a falar para as paredes da Praça dos Acontecimentos e para três ou quatro ramalhetes de bacharéis mais os jarrões dos conselheiros. Nesse caso, do mal o menos, foram-se buscar uns aldeões especiais que havia em Cu de Judas e pronto, palmas ao Imperador. Infelizmente tratava-se de uma malta tão adormecida que quando a iam desaninhar aos impossíveis e a punham diante do espectáculo da capital ficava de boca aberta e só a tornava a fechar quando recebia novamente o ar puro das montanhas.
Trabalhar com semelhantes indígenas correspondia a bater no vento, catequizar as moscas. Eram analfabetos convictos e expedicionários, que se comportavam como rebanhos nocturnos em viagem para o tanto se lhes faz. Dir-se-á que vinham acompanhados do indispensável prior da freguesia, do sargento reformado e da professora Minha Senhora, o que, enfim, sempre podia dar um certo brilho à excursão. Mas mestres-escolas, clérigos e tarimbeiros não adiantavam muito para o caso, só vinham à capital para visitar parentes.
De qualquer maneira era o público que se arranjava e
VIVÓ VELHO!
Palmas.
O Discurso Fatal
Vinte e quatro horas antes de se declarar o discurso do Cu de Judas iniciavam a marcha sobre a capital em formação de autocarros de aluguer. Vinham de mochila aviada - pão fresco, o vinho do alpendre, a galinha mártir tostada a preceito, a navalha de talhar na palma da mão - e por aí já demonstravam a sua qualidade de sapadores individualistas e auto-abastecidos. Depois, traziam estandartes das regiões onde tinham sido recrutados,
“MUI NOBRE E LEAL ALDEIA DOS CONFINS”
lia-se num,
“FREGUESIA DOS CALHAUS, PRESENTE!”
lia-se noutro, e à mistura carregavam vários pendões de igreja com o coração do Redentor pintado a chamas do purgatório sobre trevas de cetim. Era à volta destas bandeiras que eles se concentravam na hora do desembarque, como vultos escorridos, despontando para o amanhecer.
Pouco a pouco, à medida que a cidade ia aparecendo à luz em corpo inteiro, percebia-se como eram secos e escuros; como mantinham reserva e se mostravam receosos, se bem que obstinados. Não tinham ar de invasores, não se emboscavam. Como única camuflagem traziam, e nem todos, uma flor de papel espetada na lapela porque vinham fardados de domingo e feira, certamente para caírem bem aos olhos da população local.
População? Mas qual população? Os transportes andavam vazios, preenchendo horários, o comércio tinha fechado (e muito bem porque em dia de Discurso não se cantam mercadorias) os cais onde se alinhavam os mexilhões estavam desertos, entregues aos caranguejos. Qual população?
A CIDADE TINHA SIDO OCUPADA
SEM RESISTÊNCIA.
Os camponeses deslocavam-se em grupo. Batiam as ruas, o comércio luminoso, sob o comando do prior ou da professora Minha-Senhora que lhes iam dando esclarecimentos acerca do museu de progresso que estavam a percorrer, ele e ela contentíssimos por provarem àquelas abécolas como é ignorante o homem do interior em relação à vida da capital. Mal sabiam os abécolas que nada daquilo era a vida da capital, pois em datas de Discurso os habitantes da cidade emigravam para o campo e os camponeses é que aproveitavam a excursão do Estado para ver as montras e o mar e se possível mulheres pintadas, marafonas. Deviam ficar um tanto intrigados por não encontrarem senão ranchos de provincianos, fardados igualmente de romaria. Viam-se a eles e a outros como eles, tropa de aldeia, e já não era mau. Em frente, mandava o dever.
Cansados de olhar e palmilhar, cheirando a vento e a montanha, atingiam, sãos e salvos, a Praça dos Acontecimentos na Hora H em que Sua Alteza subia à tribuna para abrir o discurso com
SABER E AUTORIDADE.
A voz nascia da tribuna, vinha do alto, ou ia para o alto, lançada pelas bocas de um coro de altifalantes apontados às nuvens do inconcebível; era uma voz perseguidora que estava atrás e à frente e por cima também; voz maior, VOZ, emoldurada em palmas. Alinhados em esquadrões, sol e estandartes, os peregrinos esticavam o pescoço a procurar seguir-lhe o traço pelos caprichos das alturas. Percebiam e não percebiam, pouca coisa, quase nada, dados os seus fracos conhecimentos do dialecto dê-erre.
“IMPERADOR! IMPERADOR! IMPERADOR!”
Seria o cúmulo da estupidez pensar que o Mestre se deixava iludir com os analfabetos em peregrinação, acreditando que eles estavam de boca aberta para lhe beber as palavras e que depois de as terem bebido as calcavam com vivas para as guardarem no fundo da consciência, bem guardadas. Qual quê. O Imperador estava mais que bem informado da sonolência dos excursionistas do Discurso mas queria amarrá-los com a voz. Isso é que sim. Queria, teimava, e encontrava-os apardalados, sempre mais distantes. Até que um dia sentiu a saliva a incendiar-se perigosamente na língua e antes que secasse de vez cortou o discurso.
“PRESCINDO”,
disse. (O que em dê-erre elementar significava que se estava nas tintas). Fechou-se no palácio, e praças públicas passai bem, que tinha mais que fazer.
TEVE.
Prescindindo dos homens - péssimo sinal - voltou-se para a História e para o Cosmos na generalidade. Agora, sentado à secretária dourada, estendia a voz para muito longe:
“ATENÇÃO, MUNDO! BONS-DIAS, PLANETAS!”
Desiludido com os camponeses excursionistas e com os mexilhões da capital (que eram excursionistas ao contrário porque emigravam para o campo assim que lhes cheirava a discurso) o Imperador entrou portanto em capítulo universal. Ofereceu desinteressadamente o melhor da sua sabedoria às nações e aos mundos em redor. Aconselhou, repreendeu. Pediu bom senso e cantou a paz dos continentes. Trabalhou como um danado: minando e congeminando, convocando planetas.
A voz era gravada no gabinete e seguia direitinha para os poderosos de aquém e de além-Terra em fio de tételex-e-telégrafo, passo à escuto, traço-ponto. Às vezes levava tal balanço na mensagem que ultrapassava tudo e entrava em órbita, mas jamais se perdia: ficava a perdurar como um eco... ecoo... da cristandade nos desertos de galáxias e poeiras luminosas.
Os mundos e planetas é que nada, nem um obrigado lhe mandavam. Deviam andar fora do comprimento de onda do Mestre que, como Dinossauro legítimo, não desistia assim às primeiras. Sabia esperar, tempo ao tempo. E enquanto não começavam a chegar respostas ouvia a sua voz - para confirmar. Encontrava-a logo de manhãzinha traduzida em grandes títulos nos jornais da capital, embora ele não desse grande confiança a essas andorinhas diz-que-diz; a rádio e a televisão repetiam-na acompanhada de marchas invencíveis, andava nos boletins dos campanários e em banda desenhada; ouvia-a na boca dos locutores e nos discursos tal qual dos dê-erres. A voz saía e voltava a ele, reflectida.
No gabinete
Entre o discurso e a caça às palavras é que o Dinossauro cumpria o seu reinado. Escrevia e vigiava, à sombra do retrato oficial que tinha em cima da secretária e sempre guiado pela sua voz dentro dele. Mas se abrisse a porta podia continuar a ouvir-se, desdobrado pelos altifalantes que havia nos corredores e na sala ao lado onde estava a estátua que era ele mesmo em corpo histórico.
Havia um frio de eternidade naquela teia de circuitos, uma aragem de zumbidos metálicos, e o Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um sonâmbulo pousado num sonho desértico. Não dormia há séculos, dizia-se dele; outros garantiam: repousa vivo à margem da morte, que é a linha donde se vê mais claro. De quando em quando as nervuras da teia estremeciam, suspendendo uma gota metálica:
TINHA CAÍDO UMA PALAVRA.
Olhos astutos, impassíveis, o Mestre seguia-a a ondular num quadro de luz, traduzida num ponto, crescendo sílaba a sílaba, ora a comprimir-se, ora a inchar, correndo, nervosa, num sulco eléctrico. Os computadores vomitavam fitas perfuradas: ia ali o registo, a denúncia duma palavra em toda a sua biografia, antecedentes, raízes familiares, duplos sentidos, tudo; era uma vida inteira a desenrolar-se em renda de códigos. E de repente, se fosse caso disso, o Imperador saltava do seu poleiro dourado com uma agilidade assustadora e devorava-a. Algures, nesse momento, um mexilhão tinha perdido a voz.
Mas, perguntou ele um belo dia,
“E A PONTUAÇÃO?”
Bem perguntado: a pontuação nas mãos dos mexilhões anarquistas podia muito bem ser usada como rasteira. Mais que certo, ou alguém desconhecia que uma reticência jogada a suspender a frase não serve muitas vezes de rastilho para conclusões inconfessáveis? E a exclamação? Haverá melhor pingo de mel ou granada mais a prumo do que um ponto de exclamação?
O Imperador tinha visto muito bacharel tropeçar na vírgula e não chegar ao fim da oração; ou passar sem dar por ela e perder o fôlego antes do ponto final, o que não era menos desastroso. Entre os imbecis mais contentinhos da Comarca havia meninos e meninas que se perdiam nos parênteses e para lá ficavam, entalados entre duas conchas; e também não faltava quem, para desorientar o parceiro, roubasse na pontuação. Não era urgente pôr cobro a isto?
Dinossauro tomou providências, decretou. Entendia que uma ordem de guerreiro exigia dois pontos de exclamação por razões de autoridade e de ressonância do brado; reticências eram disfarces do tímido; alíneas os ornamentos do jurista - nos pequenos nadas é que se via onde estava a ordem. E em pensamento reforçou a palavra com três pontos de exclamação tão firmes que valiam por uma escolta de baionetas:
ORDEM!!!
Lá ia o tempo em que os jardins da escrita eram um paraíso em lantejoulas de tremas e de reticências e em que o til, essa borboleta, andava em liberdade beijando as vogais da infância. Tempo bom? tempo mau? Num sonho mais desgarrado (se é verdade que lhe era possível sonhar) o Excelentíssimo viu-se a cavalgar um parágrafo de desenho gótico, enorme como um gigantesco hipocampo, e entrar com ele num rio de águas fumegantes. Levava um camaroeiro que em séculos tinha sido o barrete de malha dum capitão cruzado e pescava vírgulas com ele numa abundância que o assombrava. Pescava-as mas não tinha onde as guardar porque sem saber se afastara para longe, montado no hipocampo-parágrafo e o hipocampo, afinal, ia cego (ou morto, não se percebia bem), ao sabor da corrente.
No meio disto desabou sobre ele e sobre o seu cavalo-marinho uma chuva de pontos de exclamação, um disparar cerrado de setas de guerreiro, e logo a seguir, começaram a passar enormes soldados de pedra, deitados à tona de água como figuras tumulares. Passou um, passou outro, outro e mais outro, levados na corrente fumegante, e eram o que se podia chamar um exército de monumentos à deriva.
Dinossauro, quando acordou e se viu sentado à mesa dourada, admirou-se de ter sonhado e principalmente da nitidez com que os guerreiros de pedra se cruzaram com ele, atravessando o fumo à flor da água. Diz-se que se afastou para a sala ao lado e que passou lá a noite, como acontecia sempre que tinha pressentimentos e ouvia ruídos de naufrágio nos ossos. Nessas ocasiões (diz-se também) tinha o costume, muito dele, de passar o braço pelos ombros da estátua e ficarem ambos, irmão com irmão, voltados para a mesa das reuniões. Diz-se, nada garante; diz-se muita coisa. Mas isto do sonho fica entre parêntesis; é um desvio no essencial do longo discurso do Imperador.
TEMPOS DEPOIS...
Tempos depois quem visse os dois imperadores lado a lado, o de bronze e o das faces de cera, perceberia os desgastes que a idade tinha trazido.
Dobrado anos a fio à secretária, o Mestre tinha criado corcovas que lhe ondulavam o dorso de cima a baixo e ganhara um andar curvado e vigilante; e como escrevia com ódio às palavras, murmurando-as e roendo-as ao correr do aparo, os lábios foram-lhe desaparecendo. A boca não passava de uma cicatriz, salvo seja, e os dentes estalavam em escamas. Um bicho.
“JESUS, COMO TU MUDASTE”,
diria a mãe se fosse viva.
A boca, também, era o menos, já que com a idade foi ficando escondida atrás dum nariz em perpétuo crescimento. Porquê? Por humores do interior que a medicina não cura ou, mais simplesmente, porque a lei da gravidade não perdoa (diz a ciência) e o Mestre, sempre de cabeça baixa, sofreu-lhe as consequências, o nariz foi pendendo, pendendo, até dar naquilo. Já não era nariz, era monco e depois nem monco era: uma crista a meia cara ou coisa assim.
Os conselheiros não achavam uma desgraça por aí além. A testa imperial engrossara, era um facto, mas devia ser a pressão das ideias, as famosas bossas da inteligência. Ao braço gigante chamavam-lhe O Sacrificado porque era a alavanca da mão da escrita, sempre a assinar. Quanto às corcovas, sábio fora São Francisco das Avezinhas e também as tivera e grandes.
Entretanto o Mestre, pata arrastada, monco pendido, avançava assustadoramente pelos desastres dos anos com os olhos postos na estátua da sua primeira encarnação. Nunca alguém lhe diria que há muito tinha perdido o traço humano e que já projectava para longe uma sombra de monstro de solidão, dorso ondulante, a errar por paisagens crepusculares de cinza e metal.
O enigma dos espelhos ensinados
Realmente, qual não seria o desgosto dele (e do Reino) se um dia se visse dinossauro-dinosaurus nos retratos dos jornais e na moldura da televisão?
Assunto a pensar, murmuraram os conselheiros, assunto a pensar. Jornais e televisão punham o que se lhes mandava, ora essa; para isso é que havia os arquivos da aldrabice e das datas em repetido. Mas o Mestre? Qual não seria o desgosto dele, se se visse dinossauro na mais triste intimidade?
Estavam neste engonhar de cautelosos quando chegou a notícia dum mágico que fabricava espelhos de formosura e sonhava a cores, com borboletas. Não foi tarde nem foi cedo, encomendaram-lhe uma boa dúzia deles que transformassem a imagem do Dinossauro em imperador novo.
Este cavalheiro das mágicas, com o seu feitio apátrida e visionário, tinha feito fortuna em tempos que já lá foram levantando palácios de espelhos nos luna-parques do el-dorado e em grandes circos coloniais, mas vendo os indígenas a encherem-lhe o chapéu de ouro e de pedrarias para se olharem em caricatura, em bobos redondos ou em carantonhas descomunais, este apóstolo da beleza teve a sua hora de arrependimento e pegou na receita ao contrário. Criou então os espelhos da formosura, maldita hora.
Colocou-os, não em barracões de gargalhadas, como os outros, mas ao ar livre, nas matas de loureiro-rosa e com araras de cauda pendente pousadas ao canto das molduras. Foi mal compreendido, para seu grande espanto. Cuspido a seguir; apedrejado depois; e só mais tarde percebeu que aqueles espelhos eram um insulto à natureza defeituosa dos visitantes. Éramos felizes, Satanás, gritou-lhe um dos clientes mais fiéis dos espelhos grotescos. Éramos felizes e escorreitos quando nos punhas aquelas carantonhas à nossa frente e agora atiras-nos com a imagem do impossível. Some-te, Satanás dos olhos de anjo.
O dos espelhos levantou voo dali para fora, envolvido em araras. Alguém o descobriu muitos anos depois a viver num pardieiro dos quintos dos infernos, na companhia fiel das aves da sua perdição, que agora estavam embalsamadas e numa berraria de cores loucas. Quando os conselheiros o foram lá desencantar dedicava-se a pintar uma delas pela milésima vez para a transformar em ave-do-paraíso. Deixá-lo, era lá com ele.
Com os espelhos de formosura a vida do palácio animou-se um tudo-nada. Logo de manhãzinha o dorso ondulante deslizava de sala em sala, de corredor em corredor, e o Dinossauro dava os bons-dias a si mesmo:
“ESPELHO, FIEL ESPELHO, ONDE É QUE
ALGUÉM DESAFIOU O TEMPO COMO EU?”
“NINGUÉM, SENHOR, NINGUÉM. PALAVRA E
VIDA REGRADA FAZEM O SÁBIO IMORTAL”,
respondiam os espelhos ensinados.
A imagem ficava mas o dorso ia crescendo. Crescendo, crescendo, crescendo. O Dinossauro ia devorando palavras. Devorando, devorando, devorando. Ouvindo os discursos que tinha escrito, ouvindo. E escrevendo outros. E outros, e outros,
“ALÔ, UNIVERSO! ATENÇÃO PALAVRAS!”
preocupado com a desordem dos mundos. Mas o universo é que não tomava conhecimento. Enviava protesto, está lá?, e o universo nem sinal. Mundo surdo, que tempos.
Estranhamente, mesmo muito estranhamente, também ele começava a notar uma certa dificuldade em se ouvir. Abria as goelas do altifalante, aumentava mais o som hoje, aumentava-o mais amanhã. Nada. O gabinete explodia em berros e em vivas, misturados com umas súbitas arrancadas do hino nacional. Desesperado, o Imperador corria para os braços do irmão de bronze, outro surdo.
Dinossauro, morte primeira
Então é que ele deu a última volta à chave que o separava dos vivalmas, foi então. Se até ali estava só, agora estava pior porque nem a si mesmo se podia ouvir. Cada vez perdia mais palavras dos discursos, ele que antes os repetia de cabeça e que já não reconhecia frases, frases inteiras, sem saber se havia de culpar o ouvido ou a memória ou a infidelidade das máquinas que não cumpriam e o desorientavam. Enfurecia-se, urrava para as paredes como um possesso inocente. Depois caía num dormitar inquieto, já desgarrado outra vez do vozear que o rodeava.
Isto, noites e dias; semanas a fio. Amarrado à secretária, a escorrer baba esquecida. Fedendo de sujo. À deriva, entre a sonolência e o desespero.
E NO ENTANTO
a surdez do Dinossauro ouvia-se, chegava à sala ao lado semeando o pasmo e o terror nos conselheiros. O altissimofalante varria o gabinete a todo o furor, estremecia paredes, e os honrados cortesãos à mesa das reuniões só temiam que ele rompesse a muralha do Imperador e lhes caísse em cima como uma culpa desordenada. Tinham de trabalhar aos berros e mais tarde não só aos berros mas por sinais e trocando papelinhos como estudantes trapaceiros reunidos em exame. Diziam e rediziam e muitas vezes aceitavam o não dito pelo dito, perdidos no tresdizer. Pareciam batalhas campais, aquelas sessões comandadas por um surdo de bronze.
O Mestre, na sua ignorância de ouvido, desconhecia a polvorosa que ia nos conselheiros à porta fechada. As reuniões vinham-lhe ter às mãos em relatórios muito compostos, preto no branco, fora do som da tempestade. Aprovava ou não aprovava e também a sua decisão saía rigorosa e clara no auge da estridência que o acompanhava e que era o seu pulsar normal, o tecido do seu anoitecer.
SERPENTES,
as palavras rastejavam-lhe aos pés; continuavam a cair na teia uma por uma, amontoando-se no chão em tiras perfuradas que escorriam dos computadores e que se revolviam, ondulavam,
ERAM SERPENTES
crescendo, crescendo sempre. Cobriam os tapetes, preenchiam os recantos onde se enrolavam a monte e logo se derramavam outra vez pelo sobrado procurando espaço, deslizando. Já enchiam o gabinete até às patas douradas da secretária, já iam nos joelhos do Dinossauro, marinhando por aquela sonolência feroz e embalando-a com o farfalhar dos seus corpos de papel. Não paravam, alongavam-se e reproduziam-se, salpicadas de furos, de pintas quero eu dizer, e nesses furos, nessas pintas, vinha todo o código venenoso das palavras proscritas.
Do seu varandim de ouro o Imperador estendeu o olhar tresnoitado pelo mar de papel que o assaltava. Ergueu-se da cadeira com esforço e com mais esforço ainda começou a travessia do gabinete. Tentava alcançar os fusíveis, parar de vez as máquinas e os sons, mas as tiras malignas, as danadas, tolhiam-lhe os passos. Começou a estrangulá-las, a parti-las: tempo perdido. Por cada pedaço rasgado nascia outro a seguir, e ele tão enfurecido que era incapaz de se deter. Caiu, já se esperava; caiu desamparado no fervilhar branco que se queria apoderar dele e então pensou no castigo da imprevidência e no tanto tempo de apagamento que passara atrás da secretária, vencido pelo desespero. Durante esse tempo tinha perdido o governo das máquinas, pensou, e agora estava louco.
Pensou também que os loucos, se realmente loucos, nunca reconhecem a loucura, e que se encontrava apenas num eclipse de memória. Ou na hora da extrema solidão. Ou da vontade, não sabia. Jurara a si mesmo que não tornaria a sair do gabinete para que nenhuns olhos mortais tornassem a pousar sobre ele, mas tinha perdido o governo das máquinas, repetiu. Alguns instrumentos já não os via. Cerrou os dentes e começou a levantar-se.
Penosa, penosamente, foi abrindo caminho para a porta. Conseguiu. Entrou na sala deserta perseguido por uma onda de papéis revoltos que lhe prendia os passos. Queria desenvencilhar-se mas tropeçava, ia de rastos. E quando alcançou a estátua e estendeu o braço à procura de socorro é que percebeu como era antigo esse braço e como por dentro dele só havia fibras secas, a estalar. O ruído do naufrágio, lembrou-se então, alçando o pesado corpo para se agarrar ao irmão de bronze.
Ficou pendurado nele, a ganhar forças enquanto a onda de serpentes crescia à sua volta, procurando cobri-lo. Num último esforço começou a içar-se: foi nesse momento que a estátua estremeceu um instante e, gentilmente, quase num segredar, inclinou-se sobre ele. Na lenta oscilação de um segundo, Dinossauro, de olhos apavorados, viu-a hesitar, baixar-se, baixar-se ainda mais, e desabar-lhe em cima.
TCHAP!
Quando apareceram os guardas do palácio foi como se tivessem desembarcado num lago de destroços. O ar estremecia com discursos e uivos eléctricos, o chão ondulava remexido pelas tiras de palavras. Mergulharam nelas, afastaram essa espuma branca e descobriram lá no fundo, verde, verde, esmagado pelo irmão verde, o Imperador abraçado à morte.
“PAX VOBIS”,
anunciou o capelão dos guardas. E benzeu-se.
Tiraram-no verde. Verde copiado do verde da estátua, imperador debaixo de imperador; ambos inteiriçados, pesadíssimos. Dinossauro Um ainda soprava uns restos de vida, poucos - mas era um caso perdido, sentenciaram os médicos que, pelo sim e pelo não, iam tentar por tentar.
“ACIMA DE TUDO QUE FIQUE
IGUAL AO RETRATO”
pediram os conselheiros, de lágrima a balouçar.
Para quê igual? pergunta a nossa curiosidade.
Provavelmente para que o povo ficasse com uma recordação digna do Chefe, é o que se depreende. Convinha que, desfilando em último adeus perante o cadáver imperial, os mexilhões de todas as castas o vissem sereno e composto como é próprio dos mortos ilustres, incluindo os de pedra de catedral. A sua imagem tinha de ser Una, sem confusão nem hesitações; devia desafiar os séculos como medalha de um só rosto, perfil para lá do tempo. Além de que as multidões nunca são de confiar em surpresas da última hora, avisava o sempre vivo Guarda-Mor. Nunca se sabia.
Morcego de veludo a vigiar os escuros, este excelência conhecia todas as cavernas do Reino. Tinha gazua e pé-de-cabra, falava com outro peso. Ninguém lhe podia garantir que a população, ao deparar na urna com um imperador diferente daquele a que se habituara a ver nos jornais, nos selos e nos monumentos, ninguém lhé garantia a ele, Guarda-Mor, que essa gente boa e ingénua não desconfiasse que iam sepultar um desconhecido em vez do seu amado protector. Não seria o primeiro caso, afirmava. Revoluções, sangreiras e anarquias resultavam frequentemente de um enterro mal estudado porque uma população excitada com o cheiro a funeral é temível.
“DECERTO, DECERTO,
IGUAL AO RETRATO, IGUAL AO RETRATO...”
cacarejavam os conselheiros. E desandaram à procura de um novo imperador. Os médicos de maior ciência, os mais médicos, baixaram a cabeça: Okay, iam tentar. Pediram ajuda aos cirurgiões-artistas, discutiram os prós e os contras, os antes e os depois, e assim que chegaram a acordo, puseram o retrato oficial diante dos olhos e um-dois-três, vai disto, atiraram-se ao enorme corpo do Dinossaurus. Ao corpus, mais propriamente.
De ponta a ponta do Reino os sinos badalaram a péssima notícia. Os médicos iam formigando por cima do quase cadáver; mas com poucas esperanças - preveniam à cautela e por causa das moscas. Chamaram sábios estrangeiros à cause des mouches e because of les mouches, inventaram sangue, despejaram soro - litros e litros. Diziam: vamos a ver, vamos a ver.
Houve velórios nos outeiros, altares à volta do retrato do Imperador. Discursos também, e muitos. Versos de despedida, lágrimas de sobreaviso. Os jornais anunciavam em letras de caixão alto que para grandes povos, grandes desastres.
Longe, em Cu de Judas, os camponeses excursionistas sabiam que iam ser chamados ao funeral e punham um olho no calendário, outro nas sementeiras, interrogando-se se viria em má altura. Nas repartições públicas suspirava-se fundo: desgraça por desgraça, ao menos que a morte calhasse em tal dia assim e assim para haver ponte de fim-de-semana. Os comerciantes inquietavam-se: feriados de luto nunca beneficiavam senão os da capital. Os presos sonhavam com amnistias e as beatas com embaixadas de estrangeiros em missas de grande pompa. Só os médicos não tinham descanso nem projecto.
Cem dias e cem noites trabalharam no Imperador, apertados no difícil território do entre o nada e a morte. Abriram e esfuracaram, substituíram, coseram. Eram génios minadores, feiticeiros de batas brancas, como asas. Com os seus martelinhos de prata, seu golpes a traço vivo, suas brocas, sua linha, com suas pinças de insecto, esvoaçaram por todo o Dinossauro. Limparam-lhe as bossas, reduziram-lhe o braço maior, e ao centésimo dia fizeram pausa. Para ver, para escutar. Ficaram na mesma.
Cem dias e cem noites é obra, mas não esmoreceram. Mais cem e mais outros cem, e de repente tombaram para trás, assombrados: o corpo começava a emergir.
“RESSUSCITOU!”
bradaram os frades na capela do palácio. Os conselheiros é que marinhavam pelas paredes, bravíssimos, porque já tinham arranjado outro imperador. Depois caíram em si e ficaram diante uns dos outros, sem pinga de sangue: e agora?
Agora paciência e cara alegre, mandava o bom senso. Os cirurgiões de arte arrumaram o estojo, atirando para um canto o retrato oficial que tinham estado a copiar com tanto esmero: Ora gaita. Enquanto os outros médicos se aplicavam em dar vida ao Imperador, eles, como cirurgiões da figura, tinham-se desunhado a compor-lhe uma imagem da morte e isso era trabalho ao contrário, cansava. Naquele momento sentiam-se revoltados, desiludidos. Trabalho escusado, lamentavam-se entre colegas.
E na verdade: Se o Imperador ia viver, como parecia que ia, lá estavam os espelhos ensinados, os jornalistas e a televisão para lhe dar a imagem corrigida, era ou não era evidente? perguntavam os cirurgiões artísticos. No fim de contas tinham sido chamados para a morte, não para a vida.
Pior, infinitamente pior, estavam os conselheiros, que não descobriam onde se haviam de meter. Para maior desgraça estavam surdos de todo, cada qual berrando para si e cada qual agarrado ao pequeno aparelho de pilhas que lhe pendia do ouvido. Era o que se pode chamar desespero em onda curta, curtíssima, sem resposta nem consolo, e eles sacudiam as penas pelos cantos da casa, tentando libertar-se do pesadelo de terem ido buscar outro imperador. Gemiam:
“NINGUÉM PODIA ADIVINHAR
TÃO EXCELENTÍSSIMO MILAGRE...”
ao mesmo tempo que o Sumo Sacerdote não parava de correr, de braços abertos:
“RESSURREIÇÃO! RESSURREIÇÃO!”
Acabaram ajoelhados ao altar do Deográcias, desgraçadamente comovidos por lhes ter salvo o Dinossauro, luz da pátria e arquitecto do século, trave da paz, pai e exemplo dos lares, ámen. Orando e sofrendo: deitando contas à porca da vida, padre-nosso, avé-maria, e perguntando se o Mestre iria resistir quando soubesse que tinha sido substituído. Receavam que não, Deus o amparasse. E receavam que sim, e então Deus os amparasse a eles, conselheiros, porque, embora sem o mando na mão, o Mestre não deixaria de lhes rezar pela pele. Com um magnífico daquela força tudo era possível menos o céu. Os conselheiros levantavam os olhos para o altar, implorando que lhe viesse alguma ideia.
Veio uma e nada má: tratarem o Dinossauro como se ele continuasse no trono de verdade. A máquina das palavras continuaria a lavar os mexilhões e o nome dele a luzir nos cabeçalhos dos jornais. Nas estátuas não se tocaria, eram Artel; nas notas de banco guardava-se a mesma silhueta imperial iluminada a vinténs-ouro. Tudo em faz de conta, numa palavra.
QUANDO O DINOSSAURO ACORDOU
e se viu rodeado dos conselheiros a primeira coisa que pediu foi um espelho. Mirou-se, remirou-se, apalpando o rosto, reconhecendo-se. A seguir comunicou com voz sumida:
“PARA A SEMANA REUNIÃO DE CONSELHO”
O cirurgião mais sábio ia a avançar para recomendar prudência, tempo ao tempo. Mas o Imperador fez o gesto de que o deixassem em paz, fossem à vida.
ABERTA A SESSÃO
pela voz gravada do Mestre, os conselheiros-que-já-não-eram puxavam das pastas e começavam o diálogo das pilhas, a confusão dos aparelhos a piarem como canários, procurando o comprimento de onda deste e daquele, pii ... pi... piii ... Tudo música, afinal. Uma música de surdos que nem sequer tinham pauta para entrarem na devida altura e que estavam ali porque, bico calado, estavam.
Ora como o surdo que muito canta acredita que tem boa voz (ditado dos Pedintes Voadores) os velhinhos, que além de surdos se alimentavam a pilha portátil, ao fim de muito reunirem convenceram-se de que eram mesmo conselheiros. Ambos os imperadores precisavam deles e se assim não fosse nunca o novo os teria chamado, olha quem. Ganhavam como conselheiros, tinham pasta e excelência, donde: não havia dúvida, conselheiros legítimos. Melhor: universais.
Trabalhando no secreto, confiança importantíssima que não se dá a qualquer um, raras pessoas sabiam do papel que andavam a representar e que era o de ministros clandestinos, personagens de Livro Branco. Só esse mistério chegaria para lhes dar valor e responsabilidade e outra vontade de cumprir. Sonhavam-se em missão de homens-sombra, antena na orelhinha de pedra, atravessando o país, teleguiados.
Os anos corriam, a surdez aumentava, a vista esmaecia. Os a-fingir movimentavam-se numa zona confusa, e tão turvados pelo mistério das suas pessoas que, hoje Reino do Dinossauro, amanhã Reino Real, acabaram por não distinguir. No entanto sempre contentes como ratos; as pilhas em botão cantavam-lhes ao ouvido envolvendo-os em primavera.
No palácio a estátua esperava por eles pontualíssima. E eles compareciam, reunidos ao crepúsculo formavam uma estranha assembleia. Tinham-se habituado a discorrer às apalpadelas e por frases de tatebitate, e, vá lá, entendiam-se; ou quase. Em discussão activa, berro e gesto, punham-se a cozinhar leis, pareceres de tanto-faz e relatórios para olvidar, singrando através da névoa da surdez com os seus botõezinhos de pilhas.
PII ... ZZZ ... PEÇO A PALAVRA ...
Paredes meias com eles, o inferno do gabinete imperial continuava cada vez mais na mesma. Os velhadas davam por isso? É o dás. Os velhadas andavam tão entretidos que não tinham olhos e ouvidos senão para eles e continuariam a não ter se um dia, rompendo o nevoeiro de som, não lhes entrasse pela sala adentro o Mestre. O Mestre, ele em pessoa - porquê esse espanto? Aos conselheiros caiu-lhes a alma aos pés.
Apareceu a galope numa cadeira de rodas, todo atirado para a frente como se investisse contra o vento. Travou. E então nesse vulto carregado de tempestade os velhos encontraram um rosto liso, de cera, e perceberam que tudo nele, pele e cabelo, tinha as tintas dos mortos de museu.
Dinossauro, sem uma palavra, atirou um papel para a mesa e ficou à espera. Houve um instante de dúvida, e de repente, todos à uma, os conselheiros desabaram em cima da caligrafia e puseram-se a debicar com os aparelhinhos do entendimento. Liam alto; era um memorandum, comentavam. Um memorandum. Perguntava por pessoas, assuntos em suspenso nas gavetas do esquecimento. O mais estranho é que revelava uma memória poderosa e, mais que isso, uma memória de Juízo Final, pois só se referia a falecidos ou a gente desaparecida. E Fulano?, perguntava. E Sicrano?
“PEÇAM-LHE UM RELATÓRIO.”
Os conselheiros ficaram transidos. Fulano era impossível, tinha morrido, paz à sua alma. Beltrano fugira com uma dactilógrafa e nem uma brigada de cães-polícias conseguiria levantar-lhe o cheiro. O dê-erre Sicrano andava pelos manicómios a coçar-se das poluições trazidas pelos astronautas, não passava de chaga lunar. Voltas da idade, desilusões; desastres que era melhor ocultar. Por conseguinte, bico calado, sempre de bico calado, os conselheiros vá de fabricar memorandos e de trazer cumprimentos dos falecidos com muitas desculpas pelo atraso; vá de adensar a nuvem, o crepúsculo. As reuniões tinham deixado de ser reuniões, eram uma mesa de pé-de-galo a comunicar com o outro mundo em trabalhosa corrente contínua.
Dinossauro, pax perpetua, Dies irae, faleceu com suores de santidade na hora mais alta do século, ano da Comemoração.
Os mexilhões comuns quando o foram espreitar à urna de cristal abanaram a cabeça: acharam-no demasiado igual ao retrato para ser verdade. (E, assim, funcionavam ao contrário do antigo Guarda-Mor que não quis o Mestre com cara de Dinossauro; mas era de esperar, os mexilhões nunca deixariam de ser espíritos de contradição.) Mais tarde, como o corpo estivesse exposto ao Reino por longos dias, os mesmos mexilhões debruçaram-se demoradamente sobre ele, fazendo olhares entendidos: ninguém lhes tirava da cabeça que
O IMPERADOR TINHA SIDO TROCADO
Aquele que ali viam era uma máscara, nunca um homem que contava dezenas de anos sobre a imagem do retrato oficial, séculos talvez.
Foram-se embora, chateados.
Vendo-os partir, como sempre na direcção do mar, as mães da nação respiraram, aliviadas, mas sem perderem a compostura; o Guarda-Mor fez um sinal de liques aos besouros para que fossem atrás e investigassem; e as beatas populares puseram-se a abanar tristemente a cabeça, criticando os mexilhões por falta de sentimentos, que gente.
Era de esperar. Onde se mostre o defunto ilustre é certo e sabido que aparece a beata anónima. Vem atraída pela curiosidade da morte que há em todo o cristão temente a Deus e enquanto preenche o velório sente-se feliz por estar junto de um grande da terra. Estas do Dinossauro faziam o mesmo. Punham os olhos no cadáver sem idade e suspiravam de deslumbramento (está a regressar ao início, à juventude depois da morte, pensavam) pondo um dedo na urna imperial, levando-o à boca muito sentidamente e persignando-se desde a testa ao coração.
Assim, beatas e mexilhões sem fé, cada um por seu lado lia o cadáver como um mistério. Defunto santo ou defunto trocado, mistério de Deus ou mistério de palácio, de mistério é que não se passava. Os mexilhões, ruga na testa, pé na rocha, passavam palavra, à boca calada, contando que ao lado do Imperador se reuniam agora uns conselheiros desmantelados e que também estes tinham perdido a idade, eram perpétuos. Andavam na voragem das palavras, eram outros que tal - diziam. E cegos e moucos, velhos sem tom nem som, parece que convocavam as vozes do Além com intermináveis discursos que dirigiam ao Imperador de bronze,
O DA MÁSCARA
o qual era, sem tirar nem pôr, o mesmo do cadáver oficial e das mil e uma estátuas que vigiavam o Reino.
Não saíam disto, os mexilhões. Morte e mentira da morte - era do que falavam. Mas os canetas da corte, apanhando-os de costas para o Reino em posição de a ver o mar, afirmavam que a conversa era outra e que estavam simplesmente de sentinela às brumas, na esperança de verem regressar o Dinossauro que Deus tinha, numa onda de prata. Contavam o conto e acrescentavam o ponto sem mais aquelas, escrevendo que o Imperador apareceria na desejada onda da lenda empunhando o último discurso e que o mar o deixaria depositado nos cumes dum rochedo.
OUTRA ESTÁTUA
concluíam os mexilhões, com um sorriso cansado.
Sabiam como ninguém o peso e o frio desses monumentos e da sombra que espalhavam a toda a curva do sol. De pai para filho e de filho para neto nunca nenhum mexilhão se esquecia de apontar o Dinossauro nos seus vários pedestais e avisar:
“ANDA LÁ DENTRO, É ESTE”
passando a palavra a quem viesse depois, e daí a outros depois, e aos depois e mais depois e ...
... Ritinha, fecha o livro, é mais que tempo.
Repara, há um riso acolá naquela romã em cima da mesa. Verdade: estalou de sumo e de sol e agora parece que ri, não notas?
Natal de 69 e Março de 71
O PÁSSARO DAS VOZES
O Contabilista da fábrica chegou a casa com a gaiola e mostrou à mulher o enorme pássaro que acabavam de lhe oferecer:
“Isto aqui é espécie rara. Veio das Áfricas e fala todas as línguas.”
“Jesus”, exclamou a mulher; levou a mão à boca para tapar o riso, porque o pássaro tinha um descarado ar de louco.
O Contabilista encolheu os ombros, não via onde é que estava a graça. O exemplar era uma ave decorativa, se assim se lhe quisesse chamar, que dava pelo nome de azougueiro, grulhador ou grou coroado e que há muito se encontrava em vias de extinção. Uma ave um tanto complexa, avisou o Contabilista. Ou, melhor, um tanto difícil se atendêssemos a certas atitudes desdenhosas que assumia no seu trato com as pessoas. Neurasténica? perguntou então a mulher; mas o marido, que era de contas precisas, acenou que não: Difícil, difícil é que o pássaro era, ou talvez antes, caprichoso. Como estava bem à vista, tratava-se de um animal de grande porte, habituado a altas florestas, e daí o seu carácter voluntarioso, caso para averiguar. Isso, porém, era até uma afirmação de personalidade, e o Contabilista sempre admirara as criaturas com personalidade, como a esposa muito bem sabia.
O Azougueiro ouvia tudo, caladíssimo. Viu-se em cima do aparador da sala de jantar como se estivesse exposto num altar de cristais, mas ali não convinha que ele ficasse, sujava tudo, protestou logo a esposa dona de casa, e se não, bastava que se olhasse para os montes de caca acumulada na gaiola. Uma caca que, ainda por cima, deitava um cheiro pestilento, acrescentou ela franzindo o nariz. Sendo assim, o Contabilista pegou na gaiola e preparou-se para a instalar na sala de visitas, mas alto lá: na sala de visitas, onde nunca entrava o sol? Era o pássaro algum morcego ou algum noitibó para o condenarem à penumbra? Não, realmente a sala de visitas também não, concordou o Contabilista tornando a pegar no Azougueiro e levando-o, para onde?, para o escritório, que era igualmente sombrio?, para a cozinha onde ficaria sujeito a fumos e a cheiros e principalmente às más-vontades da criada?, para a marquise das traseiras?
“Ora aí está”, disse a Mulher, “na marquise é que ele fica mesmo a preceito.”
De gaiola na mão, que pesava imenso porque o pássaro era do tamanho dum peru, se não maior, o Contabilista Industrial escolheu o melhor sítio da marquise e chamou os filhos:
“Isto, meninos, não é para estragar, ouviram bem?”
“Morde?” perguntou o mais novo, enfiando o dedo pelas grades da gaiola.
O Contabilista puxou-o para trás e explicou-lhe que os pássaros não mordem, picam, se bem que este fosse um pássaro especial que conhecia línguas africanas e falava como as pessoas.
“Dança?” perguntou então o filho mais velho.
“Eu cá”, disse o irmão, “acho que ele tem unhas muito graaandes.”
De perfil e olho fixo, o Azougueiro observava a gente com quem estava metido. Era como se o tivessem empalhado, salvo seja. Não se lhe descobria um movimento, um levantar de penas, e quanto a pronunciar-se, nada.
Passou-se um dia, passou-se uma semana, os meninos e a criada da casa não despegavam da gaiola a provocá-lo; mas o pássaro-passarão, nem palavra. Ignorava-os. Era o que se podia chamar a indiferença vestida de plumas. Porquê? Orgulho? Dificuldade em se adaptar? Problemas de alimentação? O Contabilista ou muito se enganava, ou havia qualquer coisa no animal que não batia certo. O quê?
Convocou os entendidos, e os entendidos logo que viram o Azougueiro ficaram de boca aberta:
“Não pode ser, este pássaro não existe.”
O Contabilista Industrial ainda fez voz grossa: “Ora essa?” - mas eles não se deixaram impressionar, o que ali estava não era um pássaro, era uma mistura de pássaros. E anotaram: pata alta de cegonha, olhos malignos e de pálpebra cinzenta como o papagaio, bico pesado, de tucano, mas no amarelo dos melros (o que ainda causava maior estranheza), pescoço comprido à maneira dum pato voador, penas brilhantes e tão vistosas que de longe se diria ser um faisão, um faisão sem cauda, se tal coisa fosse possível. Como se isto ainda não chegasse, tinha uma cabeleira eriçada de poeta espavorido. Raio de confusão, rosnavam os especialistas à volta da gaiola.
Um deles, sem tirar os olhos do exemplar, dirigiu-se ao proprietário: “Diz o senhor que é um pássaro azougueiro?” Puxou uma cadeira e sentou-se diante da gaiola, pensativo. “Estupor de nome”, murmurou.
“Talvez. Mas pelo menos foi com esse nome que mo ofereceram”, desculpou-se o Contabilista.
“Azougueiro?” insistiu um segundo especialista, puxando igualmente duma cadeira. “Confesso que nunca ouvi falar.” “Nem eu”, disse o terceiro e último; e, zás, sentou-se também a olhar. Na sua qualidade de investigadores de pássaros, os visitantes mostravam-se desconfiadíssimos como se estivessem a ser enganados com uma cilada qualquer. Azougueiro, azougueiro, que eles soubessem era nome de mosquito, até aí nenhuma dúvida, vinha nos tratados. Mas aprofundando a ave-rara que tinham à frente deles começavam a admitir que se tratasse de pseudónimo. Pseudónimo, nome de guerra ou de cartaz, qualquer disfarce nesse estilo. Num animal tão clandestino e tão teatral tudo era de admitir.
Sem convicção mas apenas por rotina de quem investiga, recorreram então aos manuais que traziam na pasta e, de dedo apontado, puseram-se a ler linha a linha. Lá estava, sim senhor: Azougueiro (Cerotogynna Oediva), ave africana, tal e tal; pelo que lhes era dado apurar, o indivíduo era de subespécie, um produto híbrido, de duvidosas procedências, como de resto eles próprios se tinham apercebido logo ao primeiro relance. Animal de vários nomes, outra característica. E, além de vários nomes (grulhador, grou coroado, espantaleão, também dito pantaleão, etc.), tinha a característica de ser difícil de localizar devido a uma extraordinária capacidade de se confundir com o terreno. O azougueiro era comparado ao camaleão, pelos indígenas, que lhe atribuíam o poder de alterar a coloração das penas de acordo com a vegetação circundante. Um passarão useiro e vezeiro em toda a espécie de camuflagens, comentou um dos visitantes enquanto seguia o texto.
Mas, atenção, atenção, nada de conclusões apressadas, preveniam os manuais, porque a lenda dos nativos também tinha o seu fundamento. Graças a uma extraordinária flexibilidade hemotérmica os azougueiros conseguiam alterar rapidamente a temperatura do corpo, irradiando o calor necessário para se tornarem ora mais luminosos, ora mais sombrios. Eram além disso animais de muita memória e de muitas vozes, pois tanto reproduziam com perfeição o silvo da cobra, como o miar do gato selvagem ou o ciciar do leopardo no cio, chegando a imitar a frase humana com apreciável fidelidade. Com isto, o nosso azougueiro não só semeava frequentemente a desorientação na fauna da selva como podia levar ao engano o caçador menos experimentado, atraindo-o a emboscadas. Era indiscutivelmente um pássaro terrorista, concluíram os entendidos, fechando os manuais. “Como é que este bicho lhe veio parar às mãos, pode saber-se?” perguntaram eles ao Contabilista Industrial.
Bem, o Contabilista hesitou na explicação. O acaso, começou por dizer. Toda a caça depende do acaso, como é sabido, e aquela viera-lhe às mãos sem ter levantado uma palha para isso.
Primeiro, o guarda da fábrica, contou ele. O guarda da fábrica, com as suas manias de passarinheiro, é que lhe tinha oferecido o animal ali presente. Depois, recuando no tempo, o caso dum retornado de Angola a quem iria desaparecer um filho ainda criança e as casualidades que se deram a seguir; e finalmente, o gosto que ele próprio, Contabilista, sempre tivera por adornos de família, desde gatos e cachorros a aves de estimação. Em duas linhas, a história, o circuito do Azougueiro era isto.
“Perdão”, interrompeu um dos especialistas de pássaros, “o que ali está é cem por cento africano, quer-me parecer. Em África é que começou o circuito do animal e não no guarda que lho ofereceu.”
Exacto. O Contabilista estava de acordo, conhecia um pouco do passado do bicho. Sabia que, além de africano, era proveniente de Angola, nascido e criado nas florestas do Quanza e trazido depois para uma cidadezinha que antigamente se chamava Vila Salazar e que hoje, depois da Independência da colónia, figurava no mapa com uma alcunha qualquer. As guerras, disse, trazem sempre confusões à geografia, mas, fosse como fosse, nesse distrito do interior é que um pobre comerciante português apanhara à rede a peça que estava agora em apreciação diante de todos. Comerciante, esse, casado e com um filho mudo de nascença e, por sinal, cunhado do guarda da fábrica onde o Contabilista prestava serviço há longos anos. Nesta coincidência de trabalho, digamos assim, é que estava a razão de o pássaro ter ido parar àquela vivenda dos arredores duma vila industrial, àquela marquise e àquela assembleia de cavalheiros especializados. Era aí que se desenhava um novo capítulo do animal - o nó do circuito, passe a expressão. Entendido?
Postas as coisas nestes termos, o Contabilista considerava conveniente juntar alguns pormenores - ou subsídios, para ser mais exacto - no tocante à pessoa do emigrado português que capturara uma ave tão única e tão sabida como o Azougueiro. Comerciante de porta aberta, o referido era de fracos recursos, já se disse. Pai de mudo, também. Nada mais natural, portanto, que com tanta fatalidade se transformasse num indivíduo supersticioso e desconfiado. O que aconteceu, de facto. Desconfiado a tal ponto que quando os negros tomaram conta de Angola e os ricos fazendeiros se puseram a andar para a Pátria-Mãe deixando para trás berros de alarme de toda a ordem, o desgraçado nem pensou duas vezes e pôs-se a fugir, com a mulher e a criança deficiente, rumo à aldeia do Pereiro onde tinha nascido. Casal do Pereiro, mais precisamente. O infeliz tinha-se ausentado de lá há muitos anos bem contados na esperança de melhores dias, e, coitado, ao fim de tanto tempo voltava de mãos a abanar, sem nada de seu. Sem nada é como quem diz: trazia o pássaro.
Cerotogynna Oediva, de seu nome oficial. Vulgo, Azougueiro. Pois. Azougueiro ou Cerotogynna, o nome era o menos. O pássaro, agora rodeado de visitantes entendidos, estava mudo e de olho fixo. Parecia seguir o relato do Contabilista com uma secreta ironia.
Era de feitio reservado. O próprio guarda da fábrica, no momento de o oferecer ao Contabilista, deixara logo bem claro esse aviso. Reservado, melindroso. E, além de melindroso, intrigante. Tinha uma maneira de ser muito especiosa, porque, se lhe falavam, raramente respondia, primeira regra a fixar, ficando de olho parado como que a tomar nota. Depois segunda regra, como imitador de vozes, caprichava em actuar de surpresa, e, ponto importante, só muito excepcionalmente se permitia copiar gente da casa ou que lhe fosse próxima. Assim, enquanto fez companhia à criança muda, o Azougueiro limitou-se a reproduzir lamentos de chacais, conversas de gansos bravos, sapos nocturnos, recos-recos, e outros animais do seu passado. Vozes humanas é que só lá muito de raro em raro e sempre no quimbundo mais retorcido usado pelos pretos. O Contabilista podia estar muito enganado mas tinha a impressão de que a palavra do bicho-homem não dizia grande coisa ao Azougueiro.
“Também me parece”, rosnou um dos visitantes, “também me parece.”
Nesta conformidade, prosseguiu o Contabilista, o animal não constituía ofensa de maior aos ouvidos de ninguém, visto que se resumia a imitar os irracionais, mas o dono é que não se conformava. Como comerciante perdido nos interiores duma terra estranha, não tinha muito com quem se entender e pôs-se a ensinar-lhe palavrões e ditos campesinos da sua aldeia minhota. Mas o sabido do passarão, pois sim, nem estremecia. Enquanto o dono, armado em professor, batia os beiços a papaguear, o Azougueiro, fitava-o de perfil, mudo e com um olhar de censura que faria vergonha a qualquer mortal.
Claro que assim que o homem virava costas, deixava passar um intervalo de silêncio, horas às vezes, e desatava a discorrer numa linguagem que ninguém esperava. Os tais gritos. As tais gargalhadas. Os tais comentários desgarrados. De noite, então, em cima do balcão do estabelecimento onde o dono o costumava arrumar, tinha um repertório que nunca mais acabava: metia-se nos extras e com esse representar a muitas vozes era como se fosse um eco da selva, um recordar, um espelho da natureza que lhe fora roubada.
No dia seguinte nova lição, o comerciante não desistia assim às primeiras. Com o filho mudo pela mão voltava ao Azougueiro, falava, falava, e sentia-se envergonhado, porque afinal o pássaro falante era ele e não o da gaiola, mas tanto teimava, tanto teimava que havia de conseguir. “Conseguiu?” perguntaram os especialistas pela maneira como olhavam o Contabilista.
Não. O Contabilista fez lentamente que não com a cabeça. Disse que não é o muito porfiar que faz a pedra cantar, e o homenzinho, ofendido, pensou em desfazer-se do animal. Mas desfazer-se como, se o velhaco era a única companhia do seu menino, o único ser deste mundo com quem a criança muda conversava? Conversar, pois. Que sons guturais eram aqueles que a criança dirigia ao pássaro senão um conversar? O comerciante rendeu-se, a Natureza tinha destes inexplicáveis. Mal ou bem, era obrigado a suportar o malfazejo enquanto Deus desse vida e saúde ao seu filho. E suportou. O Contabilista sublinhou bem este ponto, porque era de muito esclarecimento para o destino do Azougueiro.
Diz-se: na primavera os azougueiros em liberdade cobrem-se de borboletas.
“Camuflagem?” tinha perguntado o Contabilista ao guarda da fábrica.
O guarda da fábrica não sabia. Um azougueiro era capaz de tudo, até de se disfarçar em flor.
Isto das borboletas e outras especialidades avulsas que o guarda fez saber ao Contabilista não se podia dizer que fosse garantido. Havia quem chamasse ao azougueiro um pássaro enfeitado de vozes doutros animais - por outras palavras, um pássaro que se enfeitava com o que não lhe pertencia, respirando uma voz por cada pena. Dizia-se até que, por ser tão matizado, tinha vozes às cores e que quando abria as asas em leque era um hino em arco-íris. Seria mesmo?
O pobre do guarda nunca vira, podia lá saber agora. Azougueiros só conhecera um em toda a sua vida e estava ali: aquele que o cunhado tinha trazido do Quanza, distrito norte de Angola, como quem traz uma testemunha das vozes dos pântanos e dos cafezais.
Criatura pouco de fiar, inventiva e de muitas fidelidades à selva natal, o Azougueiro estranhou profundamente com os exílios que passou e nem outra coisa era de esperar. Nascera no florescer duma natureza gigante; fora arrancado aos mistérios selvagens, aos frutos coloridos e ao cantar das cascatas; encerrado a seguir numa gaiola de bambu e transferido para uma família de brancos no meio do mato, um dos quais, o patrão, ficara louco de desgosto por o filho lhe ter nascido mudo; fora inquirido nos seus hábitos; assediado com perguntas; reeducado sem êxito; tolerado; e finalmente trazido pelos ares para uma aldeia portuguesa onde ficou exposto à curiosidade, à ignorância e aos comentários dos camponeses. Isto dói, senhores - então não dói?
O Azougueiro, com a sua crista de penas loucas, sentiu-se definitivamente só. O menino mudo acenava-lhe com brinquedos, falava-lhe aos uivos, coitadinho, mas ele continuava em perfil de ausência, inacessível. Vez por outra chegavam vizinhos e viajantes de passagem: a mesma coisa, o mesmo alheamento. Afinal, perguntaria a aldeia, e com toda a razão, que preciosidade palrante era aquela que não sabia pronunciar uma sílaba? Qual a justificação de a terem trazido de tão longe, se como ave não tinha préstimo algum e era triste como a necessidade?
O dono, se já antes andava de má vontade contra o animal, ainda passou a andar mais. Orgulho, evidentemente. O silêncio empedernido do Azougueiro fazia-o passar por mentiroso aos olhos das pessoas numa altura em que precisava de merecer confiança para arranjar trabalho e refazer a vida. O pássaro comprometia-o, a verdade era essa. Tinha-o apresentado aos vizinhos como uma curiosidade digna de nota, e o sacana transformara-se numa mentira. Pior ainda: transformara-se e transformara-o a ele numa mentira, numa mentira pública. Pode haver coisa mais ruinosa? O Contabilista achava que não porque sempre que a mentira bate à porta dum infeliz traz uma enfiada de desgraças na cauda, disse ele aos visitantes do pássaro, e sob este aspecto o caso do retornado era muitíssimo significativo porque o pobre homem toda a vida fora atraiçoado pela mentira.
Senão, vejamos: mentido pela África que lhe prometeu mundos e fundos e nunca lhe deu nada que se visse, a não ser o pássaro mal-agradecido; mentido pelos ricaços das colónias com alarmes de bradar aos céus, levando-o a fugir também, a ele que não passava dum comerciante sem remorsos nem haveres; mentido pela Natureza que lhe dera um filho mudo; mentido depois aqui, na sua pátria natal, pelo egoísmo dos que cá estavam e pelos políticos da saudosista Angola Nossa que o envenenavam com ódios para se servirem dele. A terminar, e como se ainda fosse pouco, mentido - e desmentido descaradamente - por um pássaro que, sendo artista imitador e como tal reconhecido em todos os manuais, se negava obstinadamente a dar-lhe alguma ajuda para o fazer respeitado. Chegava? perguntou o Contabilista Industrial aos esclarecidos visitantes.
Já era noite fechada e a luz sonolenta da marquise carregava de sombras austeras os rostos dos cavalheiros sentados à volta do Azougueiro. Ele, passarão, é que continuava igual a si mesmo: grande e de perfil, de bico pousado nas penas do peito. Seguindo tudo, evidentemente, e guardando para si, o velhaco. A dado momento sacudiu a cabeça como quem toma uma resolução. E tomou, esticou o pescoço esguio. O Contabilista teve a secreta esperança de que ele começasse a actuar.
Mas não, voltou à mesma. Com certeza que ainda não era a altura. O guarda tinha jurado a pés juntos que o Azougueiro, depois daqueles meses ensimesmados, tornara a fazer-se ouvir aqui mesmo, em Portugal e, ao que parece, ainda com mais sentimento do que nunca. Saudades da selva, remorsos africanos, calculou o dono na altura. E respirou, aliviado. Dali em diante sentia-se reabilitado aos olhos da aldeia, e isso, parecendo que não, compensava-o das horas de sono que tinha perdido. Agora, pronto, o pássaro voltara ao seu natural. De noite, sempre de noite, remoía lembranças de sons distantes no escuro da sua solidão. Soltava gritos de vigia ou algo assim, pios de corujão, silvos, gargalhadas breves, craquejares de bicos de ave a esburacarem troncos gigantes. De sessão em sessão aprimorava mais as suas vozes, e o desfile nocturno foi aumentando numa algazarra tão assustadora que já era a selva em peso a sair daquela gaiola e a espalhar-se pela aldeia toda. “Eu mato o filho da puta”, berrava o comerciante aos saltos na cama.
Mas o pior ainda estava para vir. O pior aconteceu este verão, meses atrás, quando a criança muda desapareceu de casa sem ninguém lhe pôr a vista em cima. Perdida? Assassinada? O nosso homem desvairou, o caso não era para menos. Correu à polícia, sondou poços, bateu estradas, andava como doido dum lado para o outro movido pela sua dor de pai. No meio do desespero deu de caras com a gaiola e não se conteve, atirou-se a ela à paulada.
A mulher, Jesus, que loucura aquela, travou-lhe a mão no momento preciso em que o pássaro saltava da confusão dos destroços. Ferido ou não, o Azougueiro voou em desalinho pela casa contra o tecto e contra as janelas, até descobrir uma saída. Fugiu, deixá-lo ir, o pai desesperado respirou fundo. Finalmente tinha-se visto livre do bandido.
Sentados na presença do pássaro, com os manuais sobre os joelhos, os visitantes escutavam o Contabilista. Não conheciam o local dos acontecimentos, que era uma aldeia qualquer no Minho, a umas duas centenas de quilómetros do sítio onde se encontrava agora o extraviado, mas queriam saber a que propósito viera ele parar ali. Qual o papel do guarda duma fábrica de gás na história de um animal tão intrigante e que conhecimento tinha dele para poder ter falado ao Contabilista com a autoridade com que falou?
“Já lá vamos, já lá vamos”, sossegou-os o Contabilista. “A presa quando é de respeito mete muitas voltas pelo meio.”
Esta meteu. Uma vez em liberdade, o Azougueiro desenhou tais voltas e contravoltas que desapareceu nas nuvens. Ou na memória. Ou no passado. Desapareceu, e está tudo dito. Ferido ou morto, não valia a pena falar dele e da criança muda também não porque nunca mais se soube dela. Nunca mais? Momento, já lá vamos. Não há nada como o tempo para mudar a cor à vida. E o tempo foi passando, e a vida continuou, e os pais, pobres pais, acabaram por aceitar o mistério que o destino lhes trouxera.
Entrementes (entrementes era uma palavra muito própria na opinião do Contabilista Industrial), entrementes, estavam eles uma noite a meditar na sua desgraça enquanto o sono não chegava, ouviram o filho a chamá-los. Ficaram suspensos, sem acreditar. Mas a voz, ou, antes, os uivos eram os mesmos, o mesmo gargantear ansioso. Desconfiados, quase a medo, marido e mulher deslizaram dos lençóis e dirigiram-se de mansinho ao quintal das traseiras, que era donde vinha o apelo. Mas assim que lá chegaram, silêncio. Nem uma aragem, um correr de folha, a noite estava parada com mil estrelas a luzir. E esta?
Voltaram ao quarto, de cabeça baixa mas atentos. E ficaram. A toda a volta da cama abria-se uma suspensão negra, pesada. Um vazio de espera sem contornos. E de repente, zás: o som, outra vez. Sem dizerem palavra um ao outro tremeram por dentro a pensar em avisos do Além, na alma do filho querido a penar por este mundo e a pedir-lhes qualquer socorro que não podiam entender. A mulher encolheu-se de medo. “É ele, o nosso menino”, gemia.
Três, quatro noites depois, a mesma cena. Os uivos, a ida ao quintal, o silêncio. A mulher ajoelhada em cima da cama, a rezar de mãos postas, lavada em lágrimas. Depois, pela semana fora, tudo a repetir-se quase às mesmas horas e com uma precisão de espantar. A alma do mudo andava à solta, dizia a aldeia em peso.
O Contabilista enumerou mais uma ou duas aparições (se assim se lhes podia chamar), alongou-se em sucessivos pormenores, até que num fim de tarde alguém foi encontrar o Azougueiro, murcho e de asa quebrada, numa vala a meia centena de metros do quintal do comerciante. Logo que se achou descoberto, o pássaro pôs-se a lançar uivos exactamente iguais aos da criança muda quando tentava exprimir-se.
Pronto, estava esclarecido o mistério. Não era a alma do filho perdido que andava a rondar a casa mas a ave, o Azougueiro, que falava por ele, talvez movido pela saudade, Pela saudade ou para atormentar o dono desalmado? Antes que fosse tarde, antes que o marido deitasse a mão ao pássaro e descarregasse todo o ódio acumulado, a mulher embrulhou-o no avental e correu a aconselhar-se com o irmão, que era nem mais nem menos que o já citado guarda de fábrica. Compreendido? O homem estava de férias na aldeia e como indivíduo respeitador e de bom coração (pelo menos o Contabilista sempre o tivera nessa conta) recolheu e tratou o desafortunado Azougueiro. Escusado será dizer que dali em diante nunca mais se lhe ouviram gritos de mudo nem quaisquer outros sinais humanos. Hoje o guarda passarinheiro estava seguro, seguríssimo, de que o que tinha acontecido nas noites dos uivos era uma excepção na vida do animal, um lamento ou um apelo ao menino desaparecido.
“E a criança?” perguntaram então os cavalheiros que rodeavam a gaiola. Pela maneira como falavam, percebia-se que seguiam com reservas o relato do Contabilista Industrial.
“Ah, bom”, respondeu ele. “A criança foi encontrada pouco depois quando a Polícia descobriu uma velha que a tinha raptado. Verdade, uma velha com a mania da maternidade, há casos desses. No momento em que a prenderam já ia na terceira criança, imaginem os senhores.”
Os especialistas de pássaros deram a observação por concluída. Cada um pegou na sua pasta com o respectivo manual e, depois de deitarem um último olhar ao Azougueiro, despediram-se do Contabilista. Numa coisa estavam todos de acordo: que o exemplar que acabavam de conhecer tinha muito que se lhe dissesse, muito segredo a averiguar, e era suficientemente desdenhoso para não oferecer a mínima colaboração. E com isto, puseram o chapéu e saíram. “Felicidades”, desejaram eles ao Contabilista.
Como diz o outro, tudo acaba bem quando Deus está para aí virado ou quando se encontra em dia de maré. E com o Azougueiro foi exactamente o que aconteceu. Saiu da selva bem amada, foi aprisionado, expatriado e perseguido de morte, desertou, perdeu o voo, e acabou recuperado por um guarda passarinheiro que o levou para casa e o juntou a certas aves menores como pintassilgos, rolas amestradas e canários tontinhos, mas isso, enfim, era fauna que não lhe fazia sombra, todos os males fossem esse. Além disso, não chegou a estar muito tempo nessa comunidade porque foi oferecido rapidamente a um Contabilista zeloso que o recebeu com grande pompa na companhia de cavalheiros entendidos.
Um inconveniente, porém: o Azougueiro perdera a voz. Ou parecia. Ao contrário do que anunciara o guarda da fábrica, não arriscava um som, quer de noite quer de dia era a prudência em pessoa. Pudera, pensou o Contabilista, depois de tanto sobressalto o pássaro precisava de tempo para se recompor. E esperou, confiante. Naturalmente que o Azougueiro não se apercebia da atenção com que alguém o vigiava, e mesmo que se apercebesse com certeza que se estava nas tintas, dado o seu temperamento individualista.
Mas certa madrugada veio-lhe outra vez a memória da selva e foi um ver se te avias naquela casa. Uma revolução, caiu lá de tudo, não faltou nada: cantares quimbundos, choros de hienas, trinares, garrulhares e macacada aos guinchos, um estardalhaço de tal ordem que à terceira ou quarta noite o Contabilista resolveu devolver o pássaro ao guarda. Paciência mas já não podia mais.
O guarda, sempre a defender as suas horas de sono por causa do relógio de ponto, levou-o para a fábrica e instalou-o no seu gabinete ao lado do telefone. Vinham ordens e chamadas e o pássaro inclinava a cabeça a apurar o ouvido; passavam operários que lhe dirigiam piadas e camionistas que lhe lançavam palavrões pela janela. Nada, daquele bico não saía resposta. Ouvisse o que ouvisse, o desdenhoso passarão não se descosia.
Só muito mas muito mais tarde é que ele voltou a pronunciar-se, e então com toda a alma. Com a diferença de que, em vez de se sair com vozes humanas ou com recordações da selva animal, desatou a apitar e a assoprar como se soltasse jactos de vapor e sons de sirene. Apitos e mais apitos, dali em diante nunca mais se calou. Até ao fim dos seus dias, não fez outra coisa senão imitar os apitos da fábrica, a horas loucas e por qualquer motivo.
Jose Cardoso Pires
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