Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Memórias de Idhún
Volume II
A REVELAÇÃO
DOIS ANOS DEPOIS...
REENCONTROS
Era uma quente manhã de finais de Agosto, e a maioria das pessoas dos apartamentos saíra para a praia. No court de ténis que havia junto ao bar, um jovem de vinte e poucos anos acabava de derrotar o irmão mais velho.
- Bah, rendo-me - disse este. - Está demasiado calor para jogar. vou para a piscina.
- Anda lá, mais um pouco - protestou o vencedor. - Ainda temos tempo antes de começar a aquecer a sério.
- Nem penses, já estou velho para estas coisas.
O mais novo suspirou e dispôs-se a abandonar o court atrás do irmão.
- Posso jogar um bocado contigo, se quiseres - disse uma voz junto dele, num italiano vacilante e com um sotaque estranho.
O jovem voltoU se e viu atrás de si o rapaz do bar. Conhecia-o apenas de vista, porque não falava muito, mas via-se que era estrangeiro, talvez nórdico, e que trabalhava como empregado no bar para poder custear as férias em Itália. Teria uns dezasseis anos, mas o seu olhar era demasiado sério para um rapaz da sua idade.
- Não tens de trabalhar no bar?
- Agora não. Tenho a manhã livre.
- Sabes jogar ténis? - perguntou-lhe.
- Há muito tempo que não jogo - respondeu o empregado -, mas posso tentar. - Fez uma pausa antes de acrescentar: - Sinto falta disso.
O jovem lançou-lhe um olhar avaliador.
- Certo - disse. - Como te chamas?
O rapaz sorriu. Os seus olhos verdes iluminaram-se com um brilho caloroso.
- Jack - respondeu. - Chamo-me Jack.
A partida foi breve, mas intensa. O jovem italiano estava mais bem treinado e tinha mais estilo, mas os golpes de Jack eram imparáveis. Custava a entender como é que um rapaz da sua idade poderia ter tanta força.
Custava a entender, se não se soubesse que aquele rapaz louro treinava esgrima há dois anos com uma espada mítica.
Finalmente, o italiano deixou-se cair sobre o court, rindo e suando por todos os poros.
- Está bem, está bem! Ganhaste. Nunca vi ninguém pegar na raqueta como tu nem bater na bola com tanta raiva, Jack; mas não há dúvida de que és eficaz.
Contudo, Jack não estava a ouvi-lo. Ficara a olhar para alguém que o observava do caminho, fora do limite do court. Apesar de estar demasiado longe para ver as suas feições, apesar de não ser exactamente como se lembrava, a sua figura era inconfundível.
O rapaz sentiu um aperto no coração. Largou a raqueta e desatou a correr para fora do court, sem olhar para trás.
- Até logo - disse o italiano, perplexo.
Jack trepou pelo talude relvado até chegar ao caminho. Quando o alcançou, ficou ali, parado, a poucos metros da pessoa que estivera a observá-lo, mas sem se atrever a aproximar-se mais.
Os dois olharam-se em silêncio.
Finalmente, Jack falou.
- Alsan - disse.
Ele sorriu de forma sinistra.
- Achas mesmo que sou Alsan?
Jack hesitou. Não o vira desde que ele fugira de Limbhad transformado num ser semianimal, mas lembrava-se muito bem do orgulhoso e corajoso príncipe de Vanissar. E aquele jovem que tinha diante de si era ele, mas não era ele.
Vestia roupas terrestres, e, pela primeira vez desde que o conhecia, parecia à vontade com elas. Usava calças de ganga e, apesar do calor, uma camisa preta. O Alsan que recordava nunca se vestia de preto. E Jack, desde que conhecera Kirtash, também não.
O seu porte continuava sereno e altivo, mas agora havia algo de preocupante nele, uma tensão contida que Alsan, sempre tão seguro de si mesmo, nunca demonstrara.
E o rosto...
O seu rosto continuava a ser de pedra, mas as adversidades tinham cinzelado nele os seus sinais, e as feições tinham agora marcas de expressão muito mais profundas. O semblante era sombrio, e havia nos olhos um certo brilho ameaçador que não inspirava confiança.
Contudo, o que mais chamou a atenção de Jack foi o seu cabelo.
O cabelo castanho de Alsan tornara-se completamente grisalho, cinzento como a pedra, ou como a cinza, ou como as nuvens que anunciam chuva. E aquilo contrastava vivamente com o seu rosto juvenil; talvez fosse esse contraste o que lhe dava um aspecto tão inquietante.
Jack respirou fundo. Uma torrente de emoções contraditórias galopava dentro de si; passara dois anos à procura de Alsan e, agora que já perdera toda a esperança de o encontrar, de repente ele apresentava-se ali, naquela pequena localidade italiana, como que surgindo do nada. Não sabia como reagir e, por outro lado, tinha um nó incómodo na garganta que ameaçava impedi-lo de falar. E tinha muito que dizer, muitas perguntas a fazer, muito que contar. Engoliu em seco e conseguiu responder, ainda que com a voz um pouco trémula:
- Mudaste, mas pareces-te mais com o Alsan que conheço do que com a criatura que resgatei na Alemanha.
- Fico contente por veres as coisas pelo lado bom.
O nó continuava ali, e Jack teve de engolir em seco novamente.
- Procurei-te por toda a Europa - repreendeu. - Onde estiveste este tempo todo?
- É uma longa história. Se quiseres...
- Porque é que te foste embora? - cortou Jack.
De repente, o nó na garganta desfez-se e, por alguma razão, transformou-se em lágrimas que lhe marejaram os olhos. Jack pestanejou para contê-las, mas não pôde calar por muito mais tempo as palavras amargas que brotavam do seu coração:
- Procurei-te por todo o lado durante dois anos... dois anos! Porque é que não deste sinais de vida até agora? Porque é que te foste embora? Deixaste-nos sozinhos, a Victoria e a mim... abandonaste a Resistência, depois de tudo o que me ensinaste... Porque é que não confiaste em nós? Eras... maldição! Eras tudo o que me restava! - A voz quebrou-se-lhe, e pestanejou para conter as lágrimas.
Não chegou a chorar, mas baixou a cabeça para que Alsan não visse os seus olhos húmidos. Sentiu que o seu amigo se aproximava, e uma parte de si mesmo gritou-lhe que devia correr, que não devia aproximar-se dele, que ele não era o mesmo Alsan de sempre... Mas Jack cerrou os punhos e ficou onde estava. Embora o seu instinto lhe dissesse que o animal ainda pulsava no interior do seu amigo, o rapaz estava sozinho há muito tempo.
Alsan colocou uma mão sobre o ombro de Jack.
-Jack, lamento - disse-lhe. - Não queria pôr-vos em perigo. Estava... fora de controlo, e...
Interrompeu-se, porque Jack, de imediato, abraçou-o com força, ainda a tremer, como se receasse que voltasse a partir a qualquer momento. Alsan pestanejou, perplexo, mas de algum modo intuiu o quanto aqueles dois anos tinham sido duros para Jack. Quase pôde sentir a sua solidão, o seu desespero, o seu medo. E também ele se perguntou onde estivera Jack durante todo aquele tempo, o que fizera... e porque é que não estava em Limbhad com Victoria.
-Já passou, miúdo - murmurou, dando-lhe umas palmadinhas nas costas, procurando acalmá-lo. -Já estou aqui, está bem? Não me vou embora outra vez. Já não estás só. Não voltarás a estar só nunca mais. Prometo-te.
Jack pareceu recompor-se. Afastou-se dele, desviou o olhar e disse, tentando justificar-se:
- Sim, bom... é que aconteceram muitas coisas desde que te foste embora. Além disso, foi... demasiado tempo sem saber nada de ninguém.
O jovem olhou-o e esboçou um sorriso que lhe recordou o Alsan de antes.
- Estás transpirado e a asfixiar de calor, miúdo - disse. - É melhor irmos para a sombra; convido-te para uma Coca-Cola e falamos com calma, está certo?
Jack aceitou, agradecido. Nunca suportara o calor. No Verão precisava de tomar banho todas as noites com água fria antes de se deitar para dormir. Ainda se perguntava
como permitira que a estação estival o surpreendesse em Itália, em vez de ter partido para algum país do Norte no final da Primavera.
Dirigiram-se ao café mais próximo. Havia um cão deitado em frente à porta, um pastor alemão, que ergueu a cabeça e rosnou a Alsan, com ar de poucos amigos. O jovem limitou-se a lançar-lhe um olhar breve, e o cão baixou as orelhas, levantou-se e foi esconder-se debaixo de uma mesa, a gemer de medo, com o rabo entre as pernas. Jack engoliu em seco, incomodado.
Entraram no café; ao passar junto de uma das mesas, os ocupantes olharam para Alsan com uma certa desconfiança, e os que estavam mais perto dele afastaram as suas cadeiras. Mas ele esboçou um sorriso sinistro, e todos olharam para outro lado.
- Porque fizeram isso? - perguntou Jack, quando ambos se sentaram numa mesa junto à janela. - Não te conhecem de lado nenhum.
- Instinto - respondeu Alsan, sorrindo novamente daquela maneira tão inquietante. - Inconscientemente, as pessoas reconhecem um predador quando o sentem por perto.
Jack estremeceu. Quis perguntar algo, mas chegou o empregado. Jack pediu um refresco de limão, com muito gelo. Alsan não pediu nada.
- A princípio vagueei por ali - começou o jovem a contar -, e devo confessar que causei muitos estragos... dos quais não me sinto orgulhoso.
- Eu sei - disse Jack em voz baixa. - Como a Alma não nos dava nenhuma pista acerca de ti, decidi procurar-te por conta própria. Investiguei nos jornais e na Internet, à procura de artigos que falassem de algum tipo de ani... mons... - Interrompeu-se, confuso.
- Animal ou monstro - ajudou-o Alsan. - Podes dizê-lo à vontade. E o que eu era, e que ainda sou de vez em quando.
- bom, primeiro fui a Londres - disse Jack. - Tenho lá conhecidos, uns amigos dos meus pais. Como há muito tempo que perdêramos o contacto com eles, supus que não saberiam nada do que lhes acontecera, e tinha razão. Mas só fiquei com eles uns dias, o suficiente para saber onde começar a procurar-te. Vi na Internet notícias sobre algumas pessoas que diziam ter visto no bosque um animal estranho, um loup-garou. - Olhou-o fixamente. - Porquê França?
- Não sei, não foi planeado. Quando a Alma me perguntou para onde queria ir, não pude pensar em mais nada a não ser em ir para o mais longe possível da civilização e do lugar onde vivia Victoria. Mas, no fundo, não queria afastar-me muito nem perder-vos de vista. Suponho que foi por isso que não fui muito longe.
" Avancei para este, na direcção dos Alpes, cheguei até à Suíça, depois ao Norte de Itália, Áustria... sempre por zonas de bosques ou montanhas, evitando o contacto com os humanos. Mas era inevitável que de vez em quando alguém me visse, que procurasse caçar-me, matar-me ou capturar-me... com consequências fatais para essa pessoa, na maioria dos casos.
- Segui a pista por meia Europa - sussurrou Jack -, à boleia ou apanhando algum comboio ou autocarro, quando podia. O certo é que não tinha muito dinheiro - confessou -, e vivi quase como um vagabundo todo este tempo. Algumas vezes consegui ganhar uns euros a fazer recados e biscates, mas não muito, na verdade, apenas o bastante para comer, continuar a minha viagem e, de vez em quando, poder dormir em algum albergue em vez de ter de o fazer ao relento. Também tentaram apanhar-me muitas vezes para meter-me em algum orfanato ou reformatório, mas não os deixei.
A voz tremia-lhe novamente. Alsan imaginou Jack sozinho a percorrer a Europa a pé, sem dinheiro, sem nenhum lugar para onde ir, a passar frio nas noites de Inverno, e começou a compreender o quanto a busca do rapaz fora dura. Jack percebeu o seu olhar e acrescentou, procurando diminuir a importância do que tinha passado:
- No fundo, foi divertido. Ia aonde queria, sem nada que me prendesse, sem limites. Nunca me tinha sentido tão livre.
Sorriu, e Alsan sorriu também.
- Devias ter ficado em Limbhad - disse-lhe, ainda assim. - Se Kirtash tivesse chegado a encontrar-te...
- Não o fez. E, mesmo que assim fosse, estou preparado... - Hesitou antes de confessar: - Trouxe comigo a espada, Domivat, quando abandonei Limbhad. Assim, pude treinar todos os dias, repetindo os movimentos uma e outra vez, Alsan, para não esquecer nada do que tu me ensinaste.
Alsan olhou-o, emocionado, mas não disse nada. Jack continuou a falar.
- Mas perdi o teu rastro - disse. - No Sul da Áustria. Deixei de encontrar notícias sobre o animal semi-humano, e já não soube o que pensar. Não tive outro remédio senão estabelecer-me ali, procurar um trabalhito... Mas não pude ficar muito tempo, e assim continuei aos tombos de um lado para o outro, até que cheguei aqui, a Chiavari. Não me perguntes como nem porque é que estou aqui, pois, na verdade, ando perdido há muito tempo. Há um ano que não sei nada de ti, e não tinha como voltar a contactar a Victoria. Sabes que eu sozinho não posso voltar a Limbhad, e também não sei onde vive ao certo, nem o número de telefone dela nem nada. Saí dali com tanta pressa que não me lembrei de lho pedir.
Titubeou por um momento; esteve a ponto de lhe falar da sua discussão, do quanto as palavras de Victoria o magoaram ("Não preciso de ti... Vai-te embora e não voltes a aparecer aqui"), mas o tempo curara as feridas e naquele momento sentia-se muito estúpido por se ter deixado arrastar por uma raiva passageira que agora lhe parecia infantil e absurda. Hoje via as coisas de outra maneira; se não se tivesse precipitado tanto na hora de partir, talvez pudesse ter planeado melhor a procura de Alsan e não teria tido tantos problemas. Mas partira sem ter nenhuma maneira de entrar em contacto com Victoria; e, quando tivera de dormir ao relento nas frias noites de Inverno, sentira falta da sua acolhedora casa de Limbhad e maldissera mil vezes a sua precipitação.
- Cheguei a pensar que nunca mais voltaria a saber de vocês concluiu em voz baixa.
Calou-se e desviou o olhar, apertando com força a corrente com o amuleto do hexágono que Victoria lhe dera algum tempo antes, no dia da sua chegada a Limbhad, e que ainda conservava.
Sentia muitas vezes a sua falta. Muitíssimo. O seu sorriso suave, a luz dos seus olhos, todos os momentos que passaram juntos... tudo aquilo viera-lhe à memória, uma e outra vez. E, frequentemente, a sua mente recuava no tempo, até àquele instante em que pensara que não deveria partir. Imagina vá-se mesmo a dizer em voz alta as palavras que não chegara a pronunciar. No seu íntimo, pedira-lhe perdão de mil formas diferentes. Vira-se a abraçá-la e a prometer-lhe que continuariam juntos... acontecesse o que acontecesse.
Mas isso não se realizara. E já não podia voltar atrás.
Nada iria devolver-lhe os dois anos que passara longe da sua melhor amiga. Chegara mesmo a pensar que nunca mais teria oportunidade de dizer-lhe pessoalmente tudo o que sentia.
Alsan observou-o durante breves instantes.
- Quantos anos tens, Jack? - perguntou.
- Quinze - respondeu o rapaz, um pouco surpreendido pela pergunta. - Faço dezasseis em Abril. Mas pareço mais velho, e com dezasseis já se pode trabalhar; por isso, ultimamente as coisas têm sido um pouco mais fáceis.
- Quinze - repetiu Alsan. - E parece que foi ontem que te salvei de Kirtash e te levei para Limbhad. Na altura eras apenas um miúdo assustado. Agora és um homem.
Jack sorriu, incomodado.
- Ainda não sou um homem. Talvez no teu mundo os rapazes de quinze anos sejam homens, mas aqui continuamos a ser garotos.
- Tu, não. Olha para ti, Jack. Cresceste, e não me refiro à altura. Estás muito mais maduro, e não tenho dúvida de que saberias desenrascar-te em quase todas as situações. Estou orgulhoso de ti.
Jack desviou o olhar.
- Ainda não me disseste porque te foste embora - disse em voz baixa.
- Porque a minha luta deveria ser travada apenas por mim. - Alsan cravou nele os seus inquietantes olhos. - Mas desde o princípio soube que havia muitas possibilidades de eu não sair vencedor, por isso devia afastar-me de vocês o quanto antes.
" E tinha razão. O espírito do animal era muito mais forte, muito mais selvagem do que a minha alma humana. Num dos meus escassos momentos de lucidez, decidi acabar
com a minha vida.
" Um homem salvou-me. Não me lembro do seu nome nem do seu rosto, mas esteve a falar comigo durante muito tempo, enquanto eu me recuperava das minhas feridas numa aldeia da qual nem sequer me lembro do nome.
" É estranho porque, apesar de não conhecer a sua língua, compreendi-o na perfeição. E quando aquele homem desapareceu da minha vida e voltei a ficar sozinho, soube exactamente o que deveria fazer e para onde deveria dirigir-me.
Olhou para Jack, sorrindo.
- Passei estes últimos meses no Tibete, num mosteiro budista.
- A sério!? - exclamou Jack, rindo. - Rapaste o cabelo?
- Não vou responder a isso - riu Alsan; e ficou repentinamente sério. - Aprendi muitas coisas neste tempo todo. Disciplina, autocontrolo... mas, sobretudo, encontrei a paz de que precisava para manter o animal controlado.
- Então conseguiste...
- Não totalmente. Não sou o mesmo de antes e nunca mais o serei. Às vezes ainda me transformo, quando uma força superior à minha controla os meus instintos de lobo. Mas, pelo menos... posso voltar a ser um homem na maior parte do tempo.
Jack compreendeu. Abriu a boca para perguntar algo, mas não se atreveu.
- Em todo o caso - prosseguiu o seu amigo -, deixei de ser Alsan, príncipe de Vanissar. Isso acabou para mim. E, como a minha nova condição já não me torna digno de continuar a ostentar esse nome e essa estirpe, tive de encontrar um nome novo, um nome daqui, da Terra. Agora... agora chamo-me Alexander.
- Alexander - repetiu Jack. - Não soa mal e, além disso, não sei porquê, assenta-te bem. vou chamar-te assim, se preferes, apesar de não entender muito bem porque achas que não és digno de ser quem és.
Alexander esboçou um sorriso.
- Porque já não sou o que era, Jack.
Havia amargura nas suas palavras, e o rapaz decidiu mudar de tema.
- E... como conseguiste encontrar-me? - quis saber.
- Tive um sonho... sonhei contigo, sonhei que estavas aqui, na Itália. Dei-me conta de que devia ser um sinal que me indicava que já estava preparado para me reencontrar convosco outra vez. Assim, vim à tua procura... e, uma vez aqui, segui o meu instinto.
- Quem me dera que me tivesse acontecido algo assim enquanto andava à tua procura - resmungou Jack, impressionado mau grado seu. - E... o que pensas fazer agora que me encontraste?
- Para já, reunir novamente a Resistência em Limbhad.
- Para continuar à procura do dragão e do unicórnio? Como sabes que não é demasiado tarde?
- Porque Kirtash continua aqui, na Terra, e isso quer dizer que ainda não os encontrou.
Os punhos de Jack crisparam-se ante a menção do seu inimigo.
- Como é que sabes isso?
- Sei. Estou preparado para voltar à acção, Jack. Tu estás? Jack hesitou.
- Pensava que sim, mas agora já não tenho tanta certeza. Quero dizer... antes tínhamos mais meios, havia Shail, e olha como acabamos. O que achas que vamos conseguir agora? Porque é que pensas que será diferente?
- Por muitos motivos. Primeiro, porque vamos mudar de estratégia. Segundo, porque ainda que tenhamos perdido Shail, ganhámos-te a ti - olhou-o fixamente -, um novo
guerreiro para a causa, um guerreiro que é capaz de empunhar uma espada mítica, que pode brandir Domivat sem arder em chamas, que triunfou onde tombaram outros mais fortes, mais velhos e mais hábeis.
Jack corou. Não tivera oportunidade de falar com o seu amigo sobre isso, mas era verdade: Domivat, a espada forjada com fogo de dragão que ninguém conseguira empunhar até então, estava agora ao seu serviço, e, pensando bem, não entendia como nem porquê.
- E há outra razão, Jack - prosseguiu Alexander. - Sim, perdemos Shail. Tu contaste-me como aconteceu enquanto estava encerrado em Limbhad. E agora pergunto-te: achas que devemos deixar as coisas assim? Shail morreu para me resgatar e para salvar a vida de Victoria. Seria um insulto à sua memória se desistíssemos agora.
Uma série de imagens atravessou a mente de Jack; imagens de Shail, o jovem feiticeiro da Resistência, sempre agradável e jovial, sempre disposto a aprender coisas novas e a dar uma mão onde fosse preciso. Shail, que liderara o resgate de Alsan na Alemanha e que morrera a proteger Victoria naquela desastrosa expedição. E o fogo da vingança, quase extinto naqueles meses, ardeu novamente com força no seu coração.
- Sim - disse em voz baixa. - Seria um insulto à sua memória. Alexander assentiu.
- Então, recolhe as tuas coisas. Partimos para Madrid assim que estejas pronto.
O coração de Jack acelerou-se.
- Vamos ver Victoria?
- Claro.
- Mas eu não sei onde ela vive - objectou o rapaz -, nem como a contactar.
Alexander lançou-lhe um olhar breve.
- Já percebi - disse. - Para teu bem, espero que a encontremos sã e salva. Lembra-te de que Kirtash tinha uma vaga ideia de onde ela vivia, a sua casa não era nada segura, e a única coisa que te passou pela cabeça foi deixá-la sozinha para vires à minha procura.
O sentimento de culpa tornou-se ainda mais intenso. Por um momento, Jack imaginou Kirtash a encontrar Victoria; Kirtash a sequestrar Victoria; Kirtash... a magoar Victoria. O rapaz sentiu que o sangue lhe fervia nas veias.
Alexander interpretou mal o seu semblante sombrio.
- Enfim, falaremos disso noutra altura. Para tua sorte, eu sei onde vive Victoria. Não estive em condições de ir à procura dela nestes últimos anos, mas, agora que voltei a ser humano durante a maior parte do tempo, não vou perder nem mais um minuto. E se for preciso levo-te por uma orelha para que vás pedir-lhe desculpas.
- Não vai ser preciso seres tão agressivo, tem calma - replicou Jack, aborrecido. - Saberei desculpar-me sozinho.
No fundo, há muito tempo que desejava fazê-lo.
A campainha soou, como todas as tardes, indicando o final das aulas. Houve rebuliço, enquanto as alunas recolhiam as suas coisas e saíam das salas com as mochilas
ao ombro.
Victoria saiu sozinha, como de costume. Quando abandonou o edifício e atravessou o pátio na direcção da saída, deteve-se por um momento e deixou que o sol acariciasse o seu rosto. Era um sol suave, de meados de Setembro, e a sua calidez moribunda era muito agradável. Mas Victoria não gostava de ver como, passado mais um ano, acabava o Verão e chegava o Outono... e com ele o aniversário da morte de Shail.
Sacudiu a cabeça para afastar aqueles pensamentos e baixou-se perto da saída para apertar os atacadores do sapato. Junto dela, um grupo de raparigas da sua turma falava em sussurros e soltava risinhos mal dissimulados.
- Viste-o?
- Sim, tens razão, é um pão!
- De quem estará à espera?
- Não sei, mas é obviamente uma sortuda...
Victoria não lhes prestou atenção. Os rapazes não lhe tiravam o sono. Tinha coisas mais importantes em que pensar, muito trabalho para fazer e, acima de tudo, uma missão a cumprir.
Por isso, quando se levantou e cruzou o portão do colégio, por pouco não via o rapaz que a esperava, um rapaz louro de calças de ganga e camisa aos quadrados fora das calças, e que aguardava numa atitude despreocupada, com as mãos nos bolsos e as costas apoiadas numa árvore, sem ter consciência dos cochichos, dos olhares mal disfarçados e dos risinhos que a sua presença ali provocava.
Victoria teria passado ao largo, mas, por alguma razão, o seu coração deu um salto, e não pôde evitar voltar-se para olhar para ele. O rapaz endireitou-se e também
olhou para ela. O coração de Victoria esqueceu-se de bater por um breve instante. Os seus lábios formaram o nome dele, mas não chegou a pronunciá-lo. O rapaz sorriu, algo embaraçado.
- Olá, Victoria - disse.
Ela quase não o ouviu. De imediato, o seu coração voltara a bater, e fazia-o com demasiada força. Engoliu em seco. Sonhara tantas vezes com aquele momento que tinha a sensação de que aquilo não era real, que a qualquer momento iria acordar... e que ali, à sua frente, não haveria ninguém.
Mas o rapaz continuava ali, a olhar para ela. Não se desvanecera no ar, como uma ilusão, como uma miragem, como um sonho lindo. Era de verdade.
- Jack - conseguiu ela dizer.
Jack voltou a cabeça e desviou o olhar, sem saber o que dizer. Victoria também não se sentia especialmente lúcida. Ambos tinham ensaiado milhares de vezes as palavras que diriam se aquele encontro viesse a acontecer, mas tinha chegado o momento e os dois ficaram completamente em branco.
Há semanas que Jack sabia que iam voltar a encontrar-se e tivera mais tempo para se habituar à ideia, de modo que estava em vantagem. Ergueu a cabeça, decidido, e fitou-a.
- Fico contente por voltar a ver-te.
- Eu também... estou contente por te ver - disse ela, e apercebeu-se de que era verdade.
- Mudaste - disse Jack.
Não lhe pareceu algo muito oportuno, mas era o que estava a pensar. Victoria tinha já catorze anos, quase quinze, e não era a rapariguinha que conhecera. Crescera... em todos os sentidos. Mas, obviamente, não pensava dizer-lho e limitou-se a comentar:
- Já não usas o cabelo tão comprido.
Victoria brincou com uma das suas madeixas de cabelo castanho-escuro, perturbada.
- Cortei-o há alguns meses, mas já cresceu um pouco. E olha, vê só, ficou assim, aos caracóis. Já não o tenho tão liso.
- Fica-te bem - disse ele, e sentiu-se estúpido; depois de tanto tempo sem se verem, só lhe passava pela cabeça falar do cabelo de Victoria.
E dava-se o caso que tinha imensas coisas para lhe dizer.
Poderia contar-lhe como falara com ela nas suas noites sozinho; poderia dizer-lhe que o seu bloco de desenhos estava cheio de esboços dela, do seu rosto, dos seus grandes olhos castanhos, que o contemplaram tantas noites das estrelas; poderia confessar-lhe que escutara a sua voz no vento centenas de vezes, que se lembrara dela em todos os lugares bonitos que visitara... que sentira a sua falta, intensa, dolorosa e desesperadamente.
Mas a rapariga que estava diante de si não era a menina que ele recordava, embora tivesse os mesmos olhos, que ainda irradiavam aquela luz que parecia a Jack tão especial. O tempo parecia ter criado uma distância irreparável entre os dois. O jovem compreendeu que a memória que tinha dela talvez já não correspondesse ao que Victoria era agora; e também soube que aqueles dois anos podiam ter esfriado os sentimentos da sua amiga. Talvez ela não o tivesse perdoado, talvez o tivesse esquecido. Talvez até tivesse namorado. Porque não?
- Tu também mudaste - disse então Victoria, corando ligeiramente.
- Sim? - Jack sorriu; afinal, talvez o seu comentário não tivesse sido tão estúpido. - Em que sentido?
- bom, cresceste, e estás mais moreno... e... e... "E mais giro", pensou, mas não o disse.
Reprimiu um suspiro. Algum tempo antes tinha estado apaixonada por aquele rapaz, mas depressa compreendera que, obviamente, ele não lhe correspondia; caso contrário não teria partido com tanta pressa. Tinha acabado de descobrir aquele sentimento quando Jack abandonou Limbhad para ir à procura de Alsan. Fora doloroso entender o que sentia por ele precisamente quando Jack já não estava, e durante muito tempo o seu coração tinha batido com força de cada vez que via uma cabeça loura entre a multidão. Mas nunca era ele. E agora, quando já achava que o tinha superado, Jack entrava de novo na sua vidaMas não nos seus sentimentos, prometeu Victoria a si mesma. Não, não estava disposta a sofrer outra vez. Durante aquele tempo, tinha protegido o seu coração atrás de uma alta muralha, para que ninguém voltasse a entrar nele, para que não a magoassem outra vez. Não voltara a apaixonar-se. Doía demasiado.
Perguntou-se, no entanto, se aquela muralha era à prova de Jack. Procurou não pensar nisso. Tinha passado demasiado tempo; se ele sentira algo por ela, certamente já o teria esquecido. E Victoria não pensava tropeçar duas vezes na mesma pedra.
Percebeu que ao longe algumas raparigas os espiavam com inveja mal dissimulada e sorriu interiormente. Olhou para Jack e reparou que ele não se tinha apercebido do reboliço que tinha provocado entre as suas colegas. bom, se ele não tinha consciência de que era giro, ela, obviamente, não lho ia dizer.
- E tens o cabelo um pouco mais comprido - concluiu, quase a rir. Ergueu a mão para lhe afastar uma madeixa loura da testa. Sabia que as suas colegas estavam mortas de inveja e desfrutou do momento com um prazer sinistro.
- Vês? Precisas de um bom corte de cabelo.
- O teu cabelo está mais curto, e o meu mais comprido. Que conclusão brilhante.
Ambos desataram a rir. Por um momento, a distância que os separava já não pareceu tão grande.
- bom - disse ele, pondo-se sério. - Sei que sou um estúpido e que não mereço que me ouças depois do que aconteceu, mas... enfim, vim pedir-te... por assim dizer... que me dês "asilo político".
Victoria descobriu então o saco de viagem que estava no chão, aos seus pés.
- Não tens para onde ir? Jack desviou o olhar.
- Na realidade, nunca tive para onde ir. Não voltei à Dinamarca, embora ainda me reste lá família. Mas Kirtash... ele deve estar consciente disso. Assim, decidi não voltar a Silkeborg, para não os colocar em perigo.
Para Victoria, era estranho voltar a falar de Kirtash, voltar a falar com Jack, depois de todo aquele tempo.
- Então onde estiveste até agora? Encontraste Alsan?
- Na realidade, foi ele quem me encontrou. É uma longa história.
- Veio contigo?
- Sim, mas ficou na cidade porque tinha de fazer umas coisas. Disse que te telefonava hoje à tarde para se encontrar contigo e para o levares a Limbhad. Mas mandou-me vir à frente.
Não lhe contou que tinha sido ele próprio que pedira a Alexander que lhe permitisse encontrar-se a sós com Victoria, antes de se reunirem os três. Tinha muitas coisas para falar com ela.
- Queres... voltar a Limbhad? - perguntou a jovem.
- Por favor - disse Jack, e Victoria olhou-o nos olhos, e viu que tinha sofrido, e também amadurecido. Esteve tentada a lembrar-lhe que o tinha avisado, mas não era assim tão cruel. - Se me levasses... ficaria muito agradecido.
Ambos ficaram calados por um momento. Trocaram um olhar intenso, no qual disseram muito do que não se atreviam a pronunciar. Foi um instante mágico, que nenhum dos dois se atrevia a romper por nada deste mundo.
Mas nenhum deles se arriscou a dar o primeiro passo, a falar, a abraçar o outro com força, apesar de o desejarem com tanta intensidade que lhes doía o coração só de o pensar.
Tinha passado demasiado tempo. E eles já não eram nenhuns garotos. As coisas já não eram tão simples.
- Que achas de irmos? - propôs ela.
O rosto do seu amigo iluminou-se com um enorme sorriso.
- Tenho vontade de voltar a ver a Casa na Fronteira - confessou. Victoria também sorriu.
- Então, para quê esperar?
Afastaram-se da entrada do colégio e do autocarro escolar, e dobraram a esquina para ficarem fora do campo de visão das outras raparigas. Uma vez a sós, deram as mãos. Pelo menos, agora tinham uma desculpa para o fazer. Jack quis estreitar com força as mãos de Victoria, mas não se atreveu. E a rapariga, por sua vez, descobriu, em pânico, uma brecha na sua muralha que, pelos vistos, não era à prova de Jack. Desta forma, apressou-se a fechar por um momento os olhos e a chamar a Alma; e a consciência de Limbhad acorreu, feliz por se reencontrar com uma velha amiga. E, ainda de mãos dadas, ambos desapareceram dali, de volta à Casa na Fronteira.
- Não está muito acolhedor - desculpou-se Victoria -, porque já não venho cá tantas vezes. Era tudo tão solitário...
Jack não respondeu de imediato. Passou uma mão por uma das estantes do seu quarto, sem se importar que estivesse coberta de pó. Tinha deixado o seu saco sobre a cama e tinha recuperado a sua guitarra do interior do armário. Puxou algumas cordas e deu-se conta de que estava desafinada. Sorriu.
- Não há problema - disse. - Estou de volta, e isso é que importa. Ela também sorriu.
- Sim - disse em voz baixa. - É isso que importa.
Deu meia-volta para se ir embora e deixar Jack sozinho no seu quarto recém-recuperado. Jack levantou a cabeça, pousou a guitarra e saiu atrás dela.
Não ia deixar passar a oportunidade. Não desta vez.
- Espera - disse, pegando-lhe no braço.
Victoria deteve-se e voltou-se para ele. Jack fitou-a, respirou fundo e disse-lhe algo que há muito tempo queria dizer-lhe:
- Lamento muito. Lamento ter-te deixado sozinha, lamento tudo o que te disse. Não o devia ter feito.
Victoria hesitou. A muralha continuava a desfazer-se.
- Também eu lamento - disse por fim. - Sabes... quando te disse para nunca mais voltares... não estava a falar a sério.
Jack sorriu. O seu coração ficou um pouco mais leve.
- Foi o que supus. - Estendeu-lhe uma mão. - Amigos?
Na realidade, não era isso que queria dizer-lhe. Mas antes de começar a construir algo novo, pensou, teria de reconstruir a amizade que tinham rompido algum tempo antes.
No entanto, Victoria ficou pensativa. Voltou a cabeça e olhou para ele, com uma certa dureza.
- Vais voltar a ir embora, não é? À primeira oportunidade. Logo que te canses de estar aqui.
Não o sentia na realidade. Estava apenas a tentar reparar a sua muralha. Mas Jack não podia sabê-lo.
- O quê? Claro que não! Já te disse que Alsan... quero dizer, Alexander...
- Sim, já me disseste que voltou. E tu vais para onde ele for. Já percebi.
- Mas o que te deu agora? - protestou Jack, aborrecido. - Já te pedi desculpa!
Victoria fitou-o, abanou a cabeça e deu meia-volta para se ir embora.
- Espera!
Jack agarrou-lhe o braço, mas ela libertou-se com uma força e uma agilidade que surpreenderam o rapaz.
- Não penses que vais poder fazer comigo o que quiseres, Jack advertiu-o. - Já não sou a mesma de antes. Aprendi coisas, sabes? Tenho andado a treinar. Sei lutar. Não estou indefesa. E não preciso de ti. Já não.
Jack ia responder, ofendido, mas pensou melhor e engoliu as palavras que a magoariam. Não ia render-se tão depressa. Não depois de ter sonhado tanto com aquele reencontro.
E disse-lhe aquilo que deveria ter-lhe dito dois anos antes e que então não tinha dito:
- Eu preciso de ti, Victoria.
A rapariga voltou-se para ele, surpreendida. Jack respirou fundo, sentindo-se muito ridículo. Mas já estava dito; não podia voltar atrás.
- Queres que me vá embora outra vez? - perguntou-lhe, muito sério.
Victoria abriu a boca, mas não foi capaz de dizer nada. Tomara uma atitude defensiva e preparara-se para lhe dar uma resposta cortante, mas não para responder àquela pergunta. Os olhos verdes de Jack estavam cheios de emoção contida, e Victoria soube que, com aquele olhar, o seu amigo tinha desferido um golpe mortal na muralha que ela continuava a procurar erguer entre os dois.
"Mas para ele sou apenas uma amiga", recordou a si mesma, pela enésima vez.
Para não cair duas vezes no mesmo erro.
No entanto, não podia negar o evidente, por isso disse em voz baixa:
- Não. Não quero que te vás embora. Olharam novamente um para o outro.
E, desta vez, os sentimentos transbordaram, sobrepondo-se à timidez, às dúvidas, à distância. Abraçaram-se com força. Jack tinha consciência de que sentira imenso a falta dela; fechou os olhos e, simplesmente, desfrutou do momento. Victoria, por sua vez, desejou que aquele abraço não terminasse nunca. O calor de Jack derretia novamente o gelo do seu coração. E descobriu, com horror, que da sua alta muralha já não restava mais do que umas tristes ruínas. Estremeceu nos braços de Jack e sonhou, por um glorioso instante... que ele a amava e que sempre a amara.
Mas sabia que isso não era verdade.
- Não quero que te vás embora - repetiu.
- Não irei - prometeu ele. - E... bom, nunca devia ter-me ido embora. Há muito tempo que queria dizer-te que, no fundo... não queria partir. Perdoa-me por te ter deixado sozinha.
Sentiu-se muito melhor depois de o ter dito.
- Não, perdoa-me tu a mim - sussurrou ela. - Na altura, não falei a sério, sabes? Sim, precisava de ti. Eras o meu melhor amigo. O meu mundo não foi o mesmo desde que partiste.
Jack engoliu em seco. Os seus sentimentos estavam descontrolados, e tentou pô-los em ordem. Tanto quanto sabia, tinham sido muito bons amigos, mas nada mais. Devia manter a cabeça fria. Alexander sempre lhe tinha dito que não era bom precipitar-se.
Era impossível que a sua amizade se tivesse convertido em algo mais naquele tempo em que estiveram separados. Aquelas coisas surgiam da proximidade e não da distância.
Além disso, Victoria tinha falado no passado. Nada indicava que continuasse a precisar dele como antes.
E tinha falado de amizade. Apenas de amizade.
Jack apercebeu-se de que precisaria de tempo para tentar entender os seus próprios sentimentos... e os de Victoria. E não queria assustá-la tão depressa. Há muito que não se viam; não era o melhor momento para lhe falar do que sentia por ela, porque, entre outras coisas, também não tinha a certeza do que sentia.
Nem estava preparado para ver a rejeição nos seus olhos.
- Gostava de voltar a ser o teu melhor amigo - disse-lhe. - Se... ainda quiseres, claro.
Como ainda continuavam abraçados, Jack não viu a sombra de dor que passava pelos olhos de Victoria. E também não percebeu que a jovem voltava a reconstruir a sua muralha em torno do seu coração.
A toda a velocidade.
- Claro - disse Victoria, separando-se dele, com decisão. - Mas não quero prender-te mais. Deves querer descansar, não? Acomoda-te, toma um banho se quiseres. vou renovar a magia de Limbhad; poderei fazê-lo se usar o báculo, e a luz e a água quente ficarão a funcionar...
- Não uso água quente - lembrou ele e, de seguida, sentiu-se estúpido por tê-lo dito. Não era importante. Nada era importante, comparado com eles os dois.
Mas Victoria continuou a falar, e Jack compreendeu que o momento tinha passado.
- Ah, sim, estava a esquecer-me. Tomas sempre banho com água fria. bom, já sabes que dentro de algum tempo vai estar tudo a funcionar. Relaxa, descansa até à hora do jantar. Tenho de regressar a casa da minha avó, vai ficar preocupada se me demorar. Além disso, provavelmente Alsan já telefonou. Volto assim que lá em casa estiverem todos a dormir, e então reunimo-nos e decidimos o que fazer.
- O que fazer? Sobre quê? Victoria lançou-lhe um olhar rápido.
- Sobre a Resistência. Sobre a nossa missão. Suponho que Alsan e tu não vieram somente para fazer uma visita de cortesia, não?
Jack abriu a boca para responder, mas não se lembrou de nada inteligente para dizer. Teria ido vê-la muito antes, com ou sem Resistência, se tivesse sabido como chegar até ela. Mas sabia que isso não era desculpa. Afinal de contas, tinha ido embora sem sequer lhe pedir o número de telefone. Era lógico que ela pensasse que não se importava com ela. Jack respirou fundo e percebeu que qualquer coisa que pudesse dizer estaria fora de contexto. Teria de demonstrar a Victoria que ela era importante para ele... mas teria de o demonstrar com factos e não com palavras.
Assim, permaneceu calado.
- Era o que imaginava - disse ela, com certa brusquidão. - Então vemo-nos logo.
Jack assentiu e deu meia-volta em direcção ao seu quarto. Mas Victoria chamou-o novamente. O jovem voltou-se para ela, interrogativo. Ela sorriu.
- Bem-vindo a casa - disse apenas.
Havia carinho nos seus olhos, mas não amor. Qualquer tipo de sentimento além da amizade tinha ficado oculto atrás da muralha com que Victoria protegia o seu coração.
Mas isso Jack não poderia saber.
UMA NOVA ESTRATÉGIA
Deeva estava sentada sobre o molhe, com os pés descalços metidos na água, quando o seu sexto sentido lhe disse que tinha problemas.
Voltou-se rapidamente em todas as direcções. O molhe estava vazio. Apenas se ouvia o sussurro do vento e das ondas e os assobios de tom, o velho pescador, vindos do paredão. Deeva distinguiu o seu vulto um pouco mais adiante.
Procurou relaxar. Talvez fosse um falso alarme. Não era provável que a tivessem seguido até ali, até àquela povoação da costa australiana... até-àquele mundo. Não era possível que alguém tivesse descoberto a sua verdadeira identidade.
Não era possível...
- Olá, Deeva - sussurrou uma voz junto dela. Um enorme calafrio percorreu-lhe a espinha.
Voltou-se e viu junto de si um rapaz vestido de negro. Fungou e olhou para ele com desconfiança. Não o tinha ouvido chegar. De facto, pensou, inquieta, agora nem sequer se ouvia tom a assobiar do paredão.
O jovem não teria mais de dezassete anos, mas erguia-se sereno, tranquilo e, aparentemente, muito seguro de si mesmo. A brisa revolvia o seu fino cabelo castanho-claro, e os seus frios olhos azuis estavam fixos nalgum ponto no horizonte.
- Enganaste-te na pessoa - sussurrou ela. - Chamo-me Dianne. Ele pôs-se de cócoras junto a Deeva e olhou-a nos olhos. Ela sentiu de imediato um forte abalo a nível psíquico. Os olhos daquele rapaz cravavam-se nos seus como um punhal de gelo. Não havia ódio neles, nem desprezo. Simplesmente... uma indiferença total, absoluta... inumana.
- Não - murmurou Deeva, horrorizada.
O rapaz não disse nada. O seu olhar tinha paralisado Deeva por completo.
Foi muito rápido. De imediato os olhos dela apagaram-se, e deslizou até ao chão, inerte. O jovem de negro afastou-se um pouco e contemplou-a com frieza. Estava morta.
Ele também não pareceu surpreender-se quando o corpo da mulher se contorceu e começou a mudar; a pele adquiriu um tom azulado e uma textura escamosa, o cabelo desapareceu por completo, os lábios e olhos ficaram maiores, o nariz achatou-se e as orelhas foram substituídas por duas guelras de ambos lados da cabeça. As mãos e os pés tinham-se alongado, e entre os dedos tinham aparecido membranas natatórias.
A mulher do molhe tinha-se transformado numa estranha criatura anfíbia.
Kirtash sorriu ligeiramente e assentiu para si mesmo. Uma feiticeira varu. Os renegados varu eram os mais difíceis de localizar na Terra, porque tinham todo um oceano para se perderem. Um oceano que, no caso daquele mundo, era demasiado vasto para que o olhar de Kirtash pudesse abarcá-lo na totalidade.
Por sorte sua, embora os varu fossem criaturas aquáticas, também necessitavam de vir à superfície de vez em quando, e a maioria não costumava afastar-se da costa. Algo que tinha custado a vida a Deeva.
Kirtash colocou então uma mão sobre a testa dela, sem chegar a roçá-la, e semicerrou os olhos.
Houve um brevíssimo raio de luz.
Depois, o corpo anfíbio desapareceu do molhe, como se nunca tivesse existido. Kirtash levantou-se tranquilamente e voltou a fixar o olhar no horizonte. A sua atitude continuava a ser calma.
Permaneceu ali durante um momento, em silêncio. Então deu meia-volta e afastou-se na direcção da praia, sem fazer ruído, deslizando como uma sombra sobre o molhe.
Ainda restava muito por fazer.
Victoria girou a anca e desferiu um pontapé lateral com toda a sua força. Depois saltou para a frente e encadeou um pontapé frontal com um gancho. O rapaz que tinha a luva para aparar os golpes retrocedeu a cada passo que ela avançava, num movimento perfeitamente sincronizado.
- Caramba, estás em forma hoje - comentou ele quando terminaram o exercício, tirando a luva e apertando-lhe a mão. - O que é que comeste ao pequeno-almoço?
Victoria sorriu, mas não disse nada. Pegou na luva e ocupou a posição do seu companheiro.
Não falava com ninguém nas aulas de taekwondo; era como se tivesse erguido um muro invisível entre ela e o resto do mundo. O que para outros era um passatempo, para ela parecia uma obsessão. Era a primeira a chegar aos treinos e a última a sair, e tinha subido de nível com uma rapidez surpreendente. Estava já a preparar-se para se apresentar no exame para o cinto negro. E só começara a praticar artes marciais dois anos antes.
Claro que ela treinava todos os dias, e tinha-se matriculado em dois grupos, o das terças e quintas-feiras, e o das segundas e quartas-feiras, e desde o curso anterior conseguira que lhe permitissem matricular-se nas aulas para adultos que se realizavam às sextas-feiras. Não faltava um único dia, e levava os treinos tão a sério como se fossem a sua vida. Os seus colegas tinham-na visto sempre sozinha, e por isso alguns não puderam evitar observar com curiosidade, ainda que de relance, o jovem que tinha entrado naquela tarde com ela e que ficara de pé junto ao tatami para ver a aula. No início, alguns tinham pensado que se tratava do pai de Victoria, porque tinha cabelo grisalho, mas, quando o viram de perto, perceberam que o tipo em questão teria no máximo uns vinte e dois ou vinte e três anos. Era sisudo e um tanto sinistro, mas não havia dúvida de que ele e Victoria se conheciam bastante bem.
Talvez fosse por ele estar a observá-la ou talvez porque, simplesmente, naquele dia precisava de desabafar, o certo é que ela demonstrou ao longo daquela aula que estava no seu melhor momento, esforçando-se ao máximo, como se quisesse provar até onde era capaz de chegar e o quanto tinha aprendido. De vez em quando voltava-se na direcção do jovem que a observava, como se esperasse a sua aprovação.
No final da aula, a professora indicou que formassem pares para fazer um combate; era apenas um combate de treino, mas Victoria deu o melhor de si mesma e lutou com toda a sua força. Quando um dos seus pontapés alcançou o estômago do seu parceiro, o rapaz deixou escapar um gemido de dor e fez-lhe sinal para parar. Victoria demorou um pouco a reagir e parou quando o seu pé estava a escassos centímetros do corpo do seu parceiro. Voltou à realidade.
- Magoei-te? Desculpa!
- Podias ter avisado que estavas a lutar a sério; teria colocado os protectores.
A expressão dela endureceu.
- Luto sempre a sério.
- Sim, pois, mas sabes de uma coisa? Eu não. E já treino contigo há muito tempo e nunca te tinha visto de tão mau humor, Victoria.
Ela acalmou.
- Sim, sim. Tens razão. Lamento.
Ia acrescentar algo, mas naquele momento a professora deu a aula por terminada.
Victoria não demorou nem dez minutos a sair do balneário, já com o banho tomado. Alexander esperava-a fora do ginásio. A rapariga juntou-se a ele, e ambos caminharam em silêncio durante uns minutos.
- O que te pareceu? - perguntou ela ao fim de algum tempo.
- É uma forma curiosa de lutar. com os pés. Nunca o tinha visto. Como dizes que se chama?
- Taekwondo. Também nos treinam para dar golpes com as mãos, mas utilizamo-las menos. Sabes porque escolhi esta modalidade? Por causa do báculo. Não posso lutar com as mãos se tiver de segurar o báculo.
- Faz sentido - assentiu Alexander.
- Também fiz um curso intensivo de kendo no Verão passado. Ensinam-te a lutar com uma espada de madeira, e pensei que seria útil aprender a manejar o báculo como se fosse uma arma, para aparar golpes e estocadas. Antes fazia-o um pouco por instinto, mas agora já tenho uma técnica.
- O que mais me agrada em tudo isto - comentou Alexander - é que tens estado a treinar-te, estás mais forte, mais rápida, mais resistente. Independentemente de utilizares a magia do báculo para lutar, é bom que sejas capaz de correr rápido e golpear com força, se for necessário.
- Eu sei - assentiu Victoria. Fez uma pausa antes de continuar, em voz baixa: - Agora que Shail não está cã para me ensinar a aperfeiçoar a minha magia, tenho de aprender outras maneiras de me defender.
- Fazes bem.
Novo silêncio. Por fim, Alexander disse:
- Quero perguntar-te algo, Victoria. Voltaste a saber algo de Kirtash neste tempo todo?
O nome atravessou a alma de Victoria como um sopro de ar frio. Ainda recordava com toda a clareza o olhar do jovem assassino, as suas palavras, o contacto da sua pele quando lhe pegara na mão. Sabia que ele tinha explorado a sua mente e que já devia estar ao corrente de quem era ela e de onde vivia. Mas não voltara a vê-lo.
No entanto, sabia que ele andava por perto. Sentira algumas vezes aquele estremecimento, como se uma corrente de ar gelado percorresse a sua nuca; tinha percebido o olhar de gelo de Kirtash das sombras, mas, ao voltar-se, não o tinha visto em lado nenhum. Numa ocasião tinha-o sentido a vigiá-la da escuridão, quando atravessava um parque solitário e sombrio, e tinha-se voltado e gritado à noite: "Já chega! Mostra-te e luta de uma vez!"
Mas apenas obtivera o silêncio como resposta. Ignorava por que razão ele se comportava daquela forma. E muitas vezes tinha chegado a duvidar da sua percepção, pensando que aquelas intuições eram apenas fruto da sua imaginação. Por vezes temia que Kirtash se cansasse daquele jogo e decidisse que tinha chegado o momento de a matar, e estremecia de medo. Noutras ocasiões, sonhava que chegava a hora daquele encontro em que seria preciso dar a cara e lutar, e matá-lo ou morrer a combatê-lo. E outras vezes, muitas mais do que teria admitido, nem sequer a si mesma, desejava que ele regressasse para lhe estender a mão outra vez e voltasse a sussurrar-lhe: "Vem comigo..." Eram sentimentos confusos e contraditórios e, por esse motivo, Victoria não gostava de pensar em Kirtash. Sacudiu a cabeça.
- Não voltei a vê-lo - disse. - Mas ele já deve saber onde vivo, Alexander. Se não veio buscar-me foi porque não quis. Mas... - fitou-o - ainda que tenha decidido deixar-me em paz, isso não vos exclui dos seus planos. Talvez fosse melhor que nem Jack nem tu voltassem a aparecer por aqui.
- Não é uma boa ideia que ele nos surpreenda, isso é certo. Não porque devamos continuar a esconder-nos dele, mas sim porque, desta vez, atacaremos nós primeiro. E seremos mais eficazes se não nos vir chegar.
Victoria olhou-o sem compreender.
- Leva-me a Limbhad - pediu ele. - Esta noite teremos reunião.
Jack saiu do duche a assobiar, de bom humor. Naquela tarde, Alexander tinha ido ver Victoria ao seu treino de taekwondo, mas, ao regressar, os dois jovens tinham estado a praticar esgrima, como nos velhos tempos. Habituado a brandir Domivat, a espada de treino pareceu-lhe muito mais fácil de manejar, e os seus próprios movimentos eram mais rápidos e ligeiros. Contudo, passara demasiado tempo a treinar sozinho, e iria custar-lhe voltar a acostumar-se a reagir aos movimentos do rival e, sobretudo, a antecipar-se a eles.
Tinha-se divertido com o exercício. De novo em Limbhad, como antes. Alexander já não era certamente o Alsan que tinha conhecido, mas, de qualquer modo, tinha recuperado o amigo.
Passou em frente do quarto de Victoria e recordou de imediato que ela não voltaria a ver Shail. Deteve-se, indeciso, sentindo-se um pouco culpado por estar tão contente quando sabia que faltava algo a Victoria.
A porta estava fechada. Do outro lado soava uma música que Jack achou desagradável, sem saber porquê. Ou talvez não fosse a música, mas sim a voz do cantor... em todo o caso, não gostava.
Suspirou e bateu à porta, com suavidade.
- Entra - disse Victoria do interior.
Jack entrou. A jovem estava sentada diante da sua secretária a forrar os seus livros escolares sem muito interesse. Havia indícios de profunda nostalgia e melancolia no seu olhar, que procurou apagar quando ergueu a cabeça para o saudar com um sorriso.
- Olá. Que tal o teu treino?
- Perdi alguma prática, mas não tardarei a ficar em dia. E tu? Alexander disse-me que lutas muito bem.
Ela encolheu os ombros.
- Faço o que posso.
Jack olhou em volta. Depois de todo aquele tempo, o quarto de Victoria tinha mudado um pouco. A novidade que mais se destacava eram os unicórnios. Havia unicórnios por todo o lado: as paredes estavam forradas de posters que mostravam imagens de unicórnios, as estantes estavam salpicadas de figurinhas de unicórnios e os títulos dos livros que estavam atrás delas eram significativos - Lendas do Uni cómio, Último Unicórnio, De historia et veritate unicomis...
Jack não fez nenhum comentário. A procura do unicórnio, de Lunnaris, em concreto, tinha sido a missão vital de Shail, e parecia evidente que Victoria estava disposta a continuá-la.
Sobre uma das estantes repousava um grande corno em forma de espiral. Jack contemplou-o com respeito.
- Não é um corno de unicórnio, pois não?
- Não, que disparate - replicou ela, horrorizada. - Isso é um dente de narval , um tipo de baleia que tem um dente desses.* Na Idade Média
*Espécie de cetáceo com cerca de seis metros de comprimento, que possui apenas dois dentes incisivos, um deles pequeno e outro que pode medir cerca de três metros.
Também conhecido como unicórnio-do-mar. (N. da T.)
as pessoas comercializavam-nos, vendiam-nos fazendo-os passar por cornos de unicórnio autênticos.
- E onde é que o conseguiste? Victoria não respondeu de imediato.
- Era de Shail - disse por fim, em voz baixa.
Jack não insistiu. Continuou a olhar em volta e chamou-lhe a atenção um mapa-múndi que pendia de uma das paredes, marcado com múltiplas tachas coloridas.
- E isso? - perguntou, indicando-o com a cabeça.
Victoria demorou um pouco a reagir. Jack apercebeu-se de que os seus olhos tinham um brilho nostálgico e o seu rosto mostrava uma estranha expressão distante. O rapaz perguntou-se a que se deveria.
- Também era de Shail - disse Victoria por fim, esforçando-se por voltar à realidade. - Enquanto esteve aqui, foi marcando no mapa todos os lugares relacionados com as histórias ou lendas que encontrava acerca dos unicórnios. Eu continuei a fazê-lo e até visitei pessoalmente alguns desses sítios. Mas todas as notícias e lendas são antigas, nenhuma é recente. E como se ninguém tivesse visto um unicórnio desde há séculos.
Jack abanou a cabeça com desaprovação.
- Continuaste a investigar por conta própria... sozinha? E se te tivesses deparado com Kirtash?
Victoria não respondeu. A simples menção do nome do assassino fez com que estremecesse; mas, como tantas outras vezes, não tinha a certeza se aquele calafrio era produzido pelo medo... ou pela lembrança da sua voz, do seu olhar, do seu contacto. Voltou a cabeça bruscamente. Aqueles pensamentos confundiam-na.
Jack segurou-a pelos ombros para a olhar de frente.
A Lágrima de Unicórnio, o pendente que Shail tinha oferecido a Victoria há dois anos, pelo seu aniversário, brilhou sobre o seu peito, atingido pela luz do candeeiro.
- Já entendo - disse ele, muito sério. - Estás a tentar provocar um encontro, certo?
Victoria fitou-o, assustada. Não era possível que ele tivesse adivinhado o que passava pela sua mente... ou pelo seu coração.
- Ouve-me, Victoria, não vale a pena, entendes? Sei que ainda estás furiosa pelo que aconteceu a Shail, mas não deves tentar enfrentar Kirtash sozinha. Se lutarmos todos juntos, talvez tenhamos alguma possibilidade de acabar com ele.
Victoria respirou, aliviada. Não queria nem pensar no que diriam os seus amigos se soubessem que Kirtash provocava dentro de si sentimentos diferentes do ódio que ela, como membro da Resistência, deveria nutrir em relação a ele.
- Olha quem fala - disse, no entanto. - Porque é que achas que tive de continuar sozinha?
Jack não se zangou. Pelo contrário, sorriu, aceitando a reprimenda.
- Está bem, já não está aqui quem falou. Agora que penso nisso acrescentou, mudando de tema -, não vi a Dama em lado nenhum. O que é feito dela?
- Como deixei de vir a Limbhad, levei-a para casa da minha avó, para não a deixar sozinha - respondeu Victoria, encolhendo os ombros. - Não imaginas o que me custou convencê-la a deixar-me tê-la em casa. E o maldito animal fugiu à primeira oportunidade. Não voltámos a saber dela desde então.
Jack ficou surpreendido com o tom indiferente da amiga. Pelo que se lembrava, Victoria tinha muito carinho pela sua gata. Perguntou-se se aquele semblante duro e combativo que mostrava agora era um verdadeiro reflexo do seu coração... ou simplesmente uma fachada.
Sacudiu a cabeça. A música estava a começar a deixá-lo nervoso, e perguntou:
- O que estás a ouvir?
Victoria dirigiu-lhe um grande sorriso, e de novo apareceu aquele brilho sonhador no seu olhar. Jack compreendeu que era aquela música que a transportava para longe... tão longe dele. Ao rapaz, no entanto, parecia-lhe estranha e desagradável e percebeu que, mesmo que os dois tivessem muitas coisas em comum, definitivamente os gostos musicais não eram uma delas.
- É Beyond, o CD de Chris Tara - explicou Victoria. Ao ver o ar de estranheza de Jack, acrescentou: - Não me digas que não ouviste falar dele.
- Não, não me parece. Seja como for, é uma música muito... esquisita. Põe-me os cabelos em pé.
Ela pareceu ofendida, mas esforçou-se por sorrir.
- Eu gosto - disse com suavidade. - Esta canção em concreto fala do que sentes quando achas que vives num mundo que não é o teu. Quando te sentes... encerrado numa prisão da qual nunca vais poder escapar. E desejas voar, voar muito alto ou para muito longe, mas não sabes o que te espera do outro lado - suspirou. - Sei que é uma música estranha, mas cada vez tem mais fãs.
- Deve ser um tipo todo convencido - exclamou Jack. - Vamos ver que aspecto tem.
Pegou na capa do CD, mas teve uma decepção. Não havia nenhuma fotografia do cantor. Apenas tinha uma espécie de símbolo tribal com a forma de uma serpente.
- Que nojo - murmurou Jack, mas Victoria não o ouviu; fosse como fosse, ela conhecia perfeitamente a sua aversão a serpentes.
- Não sei como ele é - estava a rapariga a dizer. - E, além do mais, para mim vai dar ao mesmo. Gosto da sua música, não dele.
- Sim, isso é o que todas dizem - sorriu Jack. Victoria voltou-se para ele, muito séria.
- É o meu cantor favorito - disse. - Se vieste aqui para implicar com a música de que eu gosto, já sabes onde é a porta.
Jack disse para si mesmo que, se o que pretendia era recuperar a antiga amizade e confiança que o tinham unido a ela, certamente não estava no bom caminho. De qualquer
forma, pensou, Victoria estava mais susceptível do que ele se lembrava.
- Lamento, não pretendia ofender-te - disse. - Não sei o que se passa comigo ultimamente, meto sempre a pata na poça quando falo contigo.
Parecia verdadeiramente arrependido, e Victoria sorriu.
- Não faz mal. É melhor irmos à biblioteca. Alexander deve estar à
nossa espera.
Alexander olhou para os dois jovens, que estavam pendentes dele e das suas palavras. Achou-os mais maduros, mais adultos, apercebeu-se de que, apesar das adversidades, ou quiçá precisamente por causa delas, ambos tinham crescido, por fora e por dentro. Já não viu dois miúdos indefesos, mas sim dois jovens guerreiros da Resistência, e sentiu-se muito orgulhoso deles. No entanto, não pôde evitar pensar em Shail. "Oxalá estivesses aqui para os ver, amigo", disse em silêncio.
- Bem, escutem - começou. - Passaram dois anos, mas voltámos a reunir a Resistência em Limbhad. Sei que não estamos todos - Victoria desviou o olhar -, mas devemos continuar a lutar, porque, enquanto existir neste planeta um dragão e um unicórnio, haverá esperança para Idhún, e o sacrifício de Shail não terá sido em vão.
" Há algum tempo que me pergunto o que estamos a fazer mal. Os unicórnios são criaturas esquivas por natureza, e não me espanta que no nosso mundo tenham conseguido ocultar-se do olhar dos humanos sem problemas. Por sua vez, um dragão chama bastante mais a atenção, e o meu, em concreto, já não deve ser propriamente nenhuma cria.
Jack sorriu interiormente ao ouvir Alexander dizer "o meu". Algum tempo antes, Shail tinha-lhes contado que Alexander salvara da morte o dragão de que estavam à procura quando era apenas uma cria; mas o jovem nunca falava disso, e Jack prometeu a si mesmo que um dia lhe pediria que lhe contasse a história daquele encontro.
- Estive a pensar - prosseguiu Alexander - que talvez eles tenham alguma maneira de se ocultar de toda a gente, algo que nos escapou. E sei porque é que se escondem.
Victoria também o soube:
- Por causa de Kirtash? - perguntou em voz baixa. Alexander assentiu.
- Exacto. Portanto, cheguei à conclusão de que, se acabarmos com Kirtash, se nos desfizermos da sua ameaça, o dragão e o unicórnio acabarão por se manifestar, mais cedo ou mais tarde.
- E, mesmo que não o façam - declarou Jack, carrancudo -, não há dúvida de que o mundo se livraria de uma praga, e nós trabalharíamos mais tranquilos.
- Não queria dizê-lo assim dessa maneira - comentou Alexander -, mas sim, basicamente, é essa a ideia.
- Vamos ver se entendi bem - disse Victoria. - Estás a propor que deixemos de procurar o dragão e o unicórnio e tentemos adiantar-nos a Kirtash para ir directamente atrás dele? Para o matar antes que ele nos mate?
- Passar da defesa ao ataque - compreendeu Jack, assentindo. Parece-me bem.
- Estão a falar de lhe montarmos uma armadilha ou algo assim? Mas como saberemos onde o encontrar?
- Não é difícil de localizar - informou Alexander. - Jack fez isso uma vez, e eu acabo de voltar a fazê-lo, através da Alma...
- O quê? - disparou Jack. - Depois da bronca que me deste na altura, vais e fazes tu o mesmo?
- com precaução - especificou Alexander. - Sem me aproximar demasiado. Sem que chegue a aperceber-se de num. É assim que se fazem as coisas, rapaz.
- Sim, está bem - replicou Jack, aborrecido. - Resumindo, viste-o através da Alma. E o que está a fazer, se é que se pode saber?
Alexander ignorou o tom impertinente do rapaz.
- Continua à procura de idhunitas exilados - disse a meia-voz.
- E a caçá-los um a um, como sempre fez. Só que agora trabalha sozinho. Que é o que sempre quis, suponho.
Victoria recordou, como se tivesse acabado de o viver, o momento em que Kirtash tinha assassinado o seu aliado, o feiticeiro Elrion, imediatamente após a morte de Shail. Tê-lo-ia feito para o castigar por ter morto Shail? Ou apenas porque estava a desejar fazê-lo e Elrion tinha-lhe proporcionado a desculpa perfeita?
- Mas parece ter-se adaptado bastante bem à vida na Terra - prosseguiu Alexander. - Vive numa grande cidade, nos Estados Unidos da América, e faz-se passar por um terráqueo. Tem trabalho e parece até que ganha bastante dinheiro.
- Não me surpreende - disse Jack, enojado. - Não sei como consegue, mas, faça o que fizer, tudo lhe sai bem.
Victoria não fez nenhum comentário, mas mordeu o lábio inferior, pensativa. Perguntou como seria Kirtash agora e se teria mudado muito.
Pelos vistos, Jack estava a pensar o mesmo.
- Deve ter crescido, como nós - disse entre dentes.
- Os anos também passam por ele - assentiu Alexander. - Deve ter agora dezasseis ou dezassete anos, se não estou em erro.
"Será sempre mais velho que eu", pensou Jack, desanimado. Não importava o quanto treinasse com a espada, Kirtash ganhar-lhe-ia sempre em experiência.
Fez-se um silêncio tenso na biblioteca.
- bom, e então qual é o teu plano? - perguntou por fim Victoria.
- Pensei que, se formos atrás dele quando estiver a trabalhar, iremos apanhá-lo desprevenido. Além disso, se houver muito mais gente à nossa volta, vai ser mais difícil para ele detectar-nos. Vi o que vocês sabem fazer e creio que já estamos preparados para entrar em acção.
- O quê! ? - exclamou Victoria. - Agora?
- Não, agora não. Sei onde Kirtash vai estar dentro de oito horas. Será o momento perfeito para atacar.
Victoria olhou para o seu relógio. Em sua casa eram apenas oito e meia da noite. Fez um rápido cálculo mental.
- Quer dizer, às quatro e meia da manhã, hora de Madrid.
- Às sete e meia da tarde, hora de Seattle - respondeu Alexander, sorrindo.
- Vais levar-nos a Seattle? - perguntou Jack, animado.
- Seja como for - suspirou Victoria -, espero que não dure mais de duas horas, porque começo as aulas às oito, e o mais tardar às sete tenho de estar de volta à minha cama...
Interrompeu-se ao sentir os olhares de reprovação que os seus amigos lhe dirigiram.
- bom, está bem, se a missão se prolongar não vou às aulas. Mas vão ver como a minha avó descobre. Vai ficar chateada.
MAIS ALÉM
- Explica-me outra vez o que raio estamos aqui a fazer - disse Jack, irritado.
- A caçar Kirtash - foi a resposta de Alexander.
- E como vamos vê-lo no meio de tanta gente? - protestou o rapaz. O pavilhão Key Arena de Seattle estava a abarrotar de jovens e adolescentes que gritavam, cantavam e faziam em geral um grande alvoroço. Os dois sentiam-se desconfortáveis, mas o único que não disfarçava era Jack.
Não fora difícil entrar ali. Era certo que não tinham bilhetes, mas Victoria tinha aprendido a utilizar a camuflagem mágica em qualquer situação, e os feitiços que anos antes era incapaz de realizar eram agora muito mais simples graças ao poder do báculo. Jack sentiu algum receio quando ela entregou três papéis em branco à entrada do pavilhão, sorrindo ao revisor. O homem tinha olhado para os papéis e a magia fizera o resto.
- Como é que fizeste? - perguntara Jack, perplexo, uma vez dentro do recinto.
- Era apenas uma ilusão. Igual àquela que nos dissimula agora mesmo.
Ele assentiu, compreendendo. Victoria vestia roupa desportiva e tinha o báculo preso às costas, e tanto Jack como Alexander levavam no cinto as suas respectivas espadas míticas, mas qualquer pessoa que olhasse para eles não veria outra coisa senão três jovens que iam divertir-se num concerto.
Apesar da facilidade que tiveram para entrar, Jack não estava certo de que aquilo fora uma boa ideia, e Alexander parecia também bastante perplexo. A ideia era fazer uma emboscada a Kirtash naquele lugar, mas só agora começava a compreender todos os significados e implicações do conceito terráqueo de "concerto de rock".
Jack sentia-se especialmente incomodado. Perguntava-se, uma e outra vez, por que motivo esse tal Chris Tara tinha escolhido como símbolo, de entre todos os animais possíveis, precisamente uma serpente.
Agora via-as em todo o lado: toda a gente usava camisas, sueat-shirts, braceletes, pendentes ou tatuagens em forma de serpente em honra do seu ídolo. O rapaz estava a começar a ficar atordoado. Para ele, que tinha fobia daqueles répteis, aquele era um ambiente claramente hostil.
Apenas Victoria sorria de orelha a orelha e parecia estar a flutuar sobre uma nuvem.
- De certeza que viemos numa missão? - perguntou pela enésima vez. - Não me trouxeram aqui para me fazer uma surpresa?
Mas Alexander não tinha cara de quem tido ido ao Key Arena para se divertir, e Jack supôs que aquilo, por mais absurdo que parecesse, era a sério.
- Acredita, Victoria, Kirtash gosta da mesma música que tu. A não ser, claro, que tenha vindo aqui à procura de alguém. Por isso, deixa de sorrir dessa maneira e abre os olhos a ver se o encontras, está bem?
- bom, não é preciso seres malcriado - defendeu-se ela. - Trazem-me a um concerto ao vivo do meu cantor favorito, o que é que querem que eu pense?
Jack respirou fundo e tentou esquecer as serpentes. Pensou em Victoria, no quanto queria recuperar o que o tinha ligado a ela, e procurou remediar:
- Suponho que não há nada de mal em desfrutares da música disse, sorrindo e apertando-lhe o braço com carinho. - Não faças caso; sabes que não gosto muito das canções desse sujeito, e a ideia de ouvi-lo ao vivo não me deixa muito entusiasmado. Mas não é nada pessoal.
- Suponho que não - murmurou Victoria, pouco convencida.
- Além disso - tentou Jack explicar -, há o facto de que aqui a serpente parece ser o emblema oficial. Para onde quer que olhe, vejo serpentes por todo o lado. É compreensível que não me sinta à vontade.
- Entendo - disse Victoria após um breve silêncio. - É verdade que te tornas mais agressivo quando vês serpentes.
- Agressivo? Não, na realidade, eu...
- Estejam atentos - avisou então Alexander. - Isto está quase a começar.
Estavam num dos corredores superiores, à direita do palco; tinham subido ali para terem uma visão geral do pavilhão, mas havia demasiada gente, e Jack perguntou-se, uma vez mais, como é que Alexander esperava encontrar Kirtash no meio daquela multidão. Voltou-se para Victoria para o comentar, mas ela tinha-se segurado à balaustrada e tinha o olhar pregado ao palco. Os olhos brilhavam-lhe de excitação, e seu rosto estava animado. Jack olhou para ela com carinho e pensou que, ao fim e ao cabo, até era bom que a rapariga se divertisse um pouco. Acima de tudo era jovem, e a responsabilidade que Shail tinha descarregado em cima dos seus ombros, embora de forma involuntária, era demasiado pesada.
- Alexander! - exclamou, para fazer-se ouvir por cima dos fãs que entoavam o nome de Chris Tara. - Como sabes que Kirtash estará aqui?
- Estava no programa do concerto - respondeu Alexander no mesmo tom. - com o seu outro nome, claro. - com o seu outro nome? - repetiu Jack. - O que queres dizer?
Mas começava a suspeitar, e voltou a cabeça, como que movido por uma mola, na direcção do palco, que se tinha iluminado com uma fria luz verde-azulada, enquanto o resto das luzes que banhavam o interior do Key Arena se desvaneciam até se apagarem completamente.
Chris Tara subiu ao palco, aclamado por milhares de fãs. Teria uns dezassete anos, vestia-se de preto, era magro e esbelto, e movia-se com a subtileza de um felino. E algo parecido com um sopro de gelo oprimiu o coração de Jack quando o reconheceu. O jovem colocou-se a meio do palco, diante dos seus seguidores, e levantou um braço no ar. O pavilhão inteiro pareceu desabar. Milhares de pessoas entoaram em coro o nome de Chris Tara, entusiasticamente, e as serpentes que adornavam as suas roupas e os seus corpos pareceram ondular sob a fria luz dos focos. Jack sentiu-se por um momento como se estivesse no meio de um obscuro ritual de adoração a uma espécie de deus das serpentes e teve de se segurar com força à balaustrada porque tinha as pernas a tremer. Nunca tinha imaginado nada assim, nem nos seus piores pesadelos.
- Digam-me que estou a sonhar - murmurou, mas as vozes excitadas dos fãs, que aclamavam o seu ídolo, afogaram as suas palavras, e ninguém o ouviu. Viu que Victoria empalidecera e que sussurrava algo, mas também não pôde ouvir o que dizia.
Pouco a pouco, a música foi-se apoderando do pavilhão, por cima das ovações. E Chris Tara começou a cantar. A sua música era magnética, hipnótica, fascinante, como que vinda de outro mundo; a sua voz suave, acariciadora, sugestiva.
Jack sentiu que ficava com pele de galinha. Inclinou-se para Victoria, ainda desconcertado, e disse-lhe ao ouvido:
- Estás a ver o mesmo que eu? Este é o tal Chris Tara? Victoria fitou-o e assentiu, com os olhos muito abertos.
- Não o ouves cantar? É ele.
Jack abanou a cabeça, atónito. Aquela situação era cada vez mais estranha e sentia-se cada vez mais esmagado por aquele ambiente opressivo, de modo que falou com mais dureza do que pretendia:
- Estás a dizer-me que o teu cantor favorito é Kirtash? Enlouqueceste?
- Eu não sabia que era ele! - defendeu-se ela. - Já te disse que nunca o tinha visto! Não aparece nas revistas de música nem dá entrevistas, apenas se deixa ver nos concertos.
- Não posso acreditar! - exclamou Jack. - Por alguma razão eu não gostava da sua música!
Alexander inclinou-se para eles e disse-lhes, olhando para o palco:
- Expliquem-me o que é que ele está a fazer ao certo.
- O que está a fazer não tem pés nem cabeça - respondeu Jack, ainda aborrecido. - É um cantor de pop-rock, entendes? Simplesmente canta, e as pessoas vêm ouvi-lo cantar. E, como vês, tem muito êxito. Tornou-se famoso. Não posso acreditar - repetiu, irritado, abanando a cabeça.
-Já te disse que não sabia! - insistiu Victoria, entre confusa, envergonhada e zangada.
- Não, não, tem de haver uma explicação - disse Jack, cada vez mais atordoado. - De certeza que está a hipnotizá-los ou algo do género... tem poderes telepáticos, não?
- Eu não estou hipnotizada! - rebelou-se Victoria. - Sei muito bem o que estou a fazer.
- A ouvir a música de Kirtash?
Victoria corou, mas não baixou o olhar quando lhe disse:
- Se eu gosto da música, qual é o problema?
- Ouçam - disse Alexander. - Sejam quais forem os seus motivos, agora está distraído.
É o momento de acabar com ele.
- O quê? - gritou Victoria. - Diante de toda esta gente? Não podemos esperar que o concerto termine?
- E depois vais fazer o quê? - fez notar Jack. - Se já é praticamente impossível chegar até qualquer estrela depois de um concerto, como pensas surpreender Kirtash?
- Mas não daqui, não temos um ângulo bom - disse Alexander. Deveríamos aproximar-nos mais.
- Estão a pedir-me que lhe lance um raio mágico daqui, à socapa?
- protestou Victoria.
- Porque não? - replicou Jack, zangado. - Por acaso merece algo melhor?
- Quanto tempo irá durar isto? - interveio Alexander.
- Umas duas horas, suponho.
- Perfeito. Temos tempo para procurar um lugar melhor para tentar acertar lhe. Victoria, espera aqui - disse à rapariga - e vai concentrando energia, ou o que quer que fazes quando usas o báculo. Nós vamos tentar aproximar-nos e encontrar um lugar de onde possas acertar-lhe mais facilmente, mas longe o suficiente para que não nos descubra. Se encontrarmos, mando Jack à tua procura. Se não, daqui a menos de quinze minutos estaremos aqui outra vez.
- Mas... - quis protestar Victoria; mas os dois rapazes já se tinham posto de pé, e Jack dirigiu-lhe um olhar feroz.
- Desfruta do concerto - disse, com certo sarcasmo.
Os dois perderam-se entre a multidão, e Victoria ficou sozinha.
Sentia-se muito confusa. Jack estava zangado, e com razão, e Alexander não conseguia entender o que estava a acontecer. De qualquer das formas, ela também não. O rosto ardia-lhe, e apoiou a cara contra um dos barrotes da balaustrada, aturdida. Não pôde evitar fixar o olhar em Kirtash, Chris Tara, que cantava sobre o palco uma daquelas canções que ela conhecia tão bem, porque tinha-a escutado dezenas de vezes e poderia tê-la cantarolado em qualquer lugar, em qualquer situação. Era ele, sem dúvida. Os seus gestos, os seus movimentos... Victoria soube que, se estivesse mais perto, chegaria a sentir, uma vez mais, o olhar daqueles olhos azuis que queimavam como gelo.
Naquele momento, Kirtash começava a cantar "Beyond", a canção que dava nome ao seu disco, e os seus fãs aclamaram-no uma vez mais. Victoria fechou os olhos e deixou-se levar pela música, sedutora, fascinante e evocativa daquela canção que a tinha cativado desde o primeiro dia. E pela voz de Kirtash... acariciadora, insinuante...
This is not your home, not your world, not the place where you should be. And you understand, deep in your heart, though you didrít want to betieve. No wyou feel
só lost in the crowd wondering if this is ali, if theres something beyond.
Beyond these people, beyond this noise, beyond night and day, beyond heaven and hett. Beyond you and me. Just let it be, just take my hand and come with me, come with me...
And rim, fly away, dont look back, they dont understand you aí ali, they left you alone in the dark where nobody could see your light. Do you dare to cross the door.
Do you dare to come with me to the place where we belong?
Beyond this smoke, beyond this pla.net,
beyond lies and truths, beyond life and death.
Beyond you and me.
Just let it be,
just take my hand and come with me,
come with me...
Os olhos de Victoria encheram-se de lágrimas.
Come with me...*
"Vem comigo", dissera Kirtash. Aquela voz suave e sussurrante... como é que não a reconhecera antes? Talvez porque era tão absurdo encontrar Kirtash também na rádio
que nem sequer lhe tinha passado pela cabeça?
Como era possível? A música de Chris Tara tocara-a muito fundo, tinha-se identificado com aquelas canções, com aquelas letras, como se tivessem sido escritas para
ela. E a ideia de que tinha sido Kirtash a criá-las era muito inquietante... porque isso queria dizer que ele, de
*Esta não é a tua casa, não é o teu mundo, não é o lugar onde deverias estar. E tu sabe-lo, no fundo do teu coração, ainda que não queiras acreditar. Agora sentes-te
perdida entre a multidão perguntando-te se é só isto que existe, se há algo mais. Além de toda esta gente, além de todo este ruído, além do dia e da noite, além
do Céu e do Inferno. Além de ti e de mim. Deixa que aconteça, pega apenas na minha mão e vem comigo, vem comigo... E corre, foge, não olhes para trás, eles não te
entendem, deixaram-te sozinha na escuridão onde ninguém pode ver a tua luz. Atreves-te a atravessar a porta? Atreves-te a acompanhar-me ao lugar onde pertencemos
Além deste fumo, além deste planeta, além das mentiras e das verdades, além da vida e da morte. Além de ti e de mim. Deixa que aconteça, pega apenas na minha mão
e vem comigo, vem comigo... alguma forma, conhecia os seus sentimentos, os seus desejos mais íntimos, e tinha-lhes dado a forma de canção. E isso significava que, até ao momento, apenas Kirtash tinha encontrado o modo de chegar até ao fundo do seu coração.
Não era um pensamento agradável.
Victoria abriu os olhos e contemplou o jovem sobre o palco.
Não parecia ter-se dado conta da sua presença. Alexander estava certo: com tanta gente, não lhe seria fácil detectá-los. A rapariga observou-o, consciente de que os papéis se tinham invertido, de que, pela primeira vez, era ela quem o estudava das sombras e não o contrário. Procurou encontrar uma explicação para o que faria ele ali, um assassino idhunita, em cima de um palco, oferecendo a sua misteriosa música a milhares de jovens terráqueos, e perguntou-se se Jack teria razão e se era uma maneira de os dominar a todos. Mas... para quê?
Victoria continuou a observar Kirtash e surpreendeu-se ao descobrir que, aparentemente, estava a gostar do que fazia. Não parecia concentrado nas pessoas que o aclamavam, limita vá-se a cantar, a expressar-se... "A expressar o quê?", perguntou-se Victoria. "Os seus sentimentos? Quais sentimentos?"
"Porque tu e eu não somos muito diferentes", dissera-lhe ele. "E não vais demorar a percebê-lo."
Poderia ser verdade? Seriam tão parecidos que sentiam as mesmas coisas, e por isso ela gostava tanto da sua música?
Victoria olhou em volta e viu milhares de pessoas extasiadas com a música de Chris Tara, a música de Kirtash. Algo no seu interior se rebelou perante a ideia de que todas elas sentiam o mesmo que ela ao ouvir aquelas canções. Não, Kirtash não chegara até aos seus pensamentos mais íntimos; Jack estava certo, aquela música tinha algo de magnético, de sugestivo, que os mergulhava a todos naquele estado hipnótico. E isso não podia ser bom.
Obrigou-se a si mesma a lembrar-se de que para lá de Chris Tara, para lá daquela música que a subjugava, não havia outra coisa senão o rosto de Kirtash... o rosto de um assassino.
De súbito, Victoria sentiu-se furiosa e humilhada. Kirtash enganara-a uma vez mais, e ela tinha-se deixado seduzir, como uma tonta, como uma miúda. Mas já não era uma miúda. Há algum tempo tinha jurado que ele não voltaria a fazê-la sentir-se indefesa, e já era hora de fazer algo a esse respeito.
O ar no interior do pavilhão Key Arena estava carregado de uma energia vibrante, faiscante, gerada por aqueles milhares de pessoas que electrizavam o ambiente com o seu entusiasmo. Victoria tirou o báculo da bolsa que levava ajustada às costas, segurou-o com ambas as mãos e ordenou-lhe em silêncio que recolhesse aquela energia.
A pequena bola de cristal que rematava o Báculo de Ayshel iluminou-se como um candeeiro, mas ninguém a via, porque o feitiço de camuflagem continuava a funcionar. No entanto, Victoria sabia que Kirtash não demoraria a perceber o seu poder. Não dispunha de muito tempo.
Kirtash tinha começado a cantar outro tema, um tema cheio de força, duro, brutal e, até certo ponto, desagradável. Victoria conhecia-o. Era aquele de que menos gostava no disco, porque revolvia algo no seu interior e perturbava-a profundamente. Se não conhecesse Kirtash, teria jurado que aquela canção estava cheia de raiva, amargura e desespero.
Mas isso não era possível, porque Kirtash não sentia aquelas coisas.
- Não quero saber o que fazes, nem porque o fazes - murmurou Victoria, com os olhos cheios de lágrimas de ódio, enquanto o báculo faiscava por cima da sua cabeça, cheio de energia que exigia ser libertada. - vou matar-te, e deixarei de ter medo e dúvidas por tua causa.
Ergueu o báculo.
Jack regressava naquele momento. Não o viu, mas apercebeu-se dele, correndo na sua direcção para a impedir.
Demasiado tarde.
"Beyond lies and trutas, beyond life and death", recordou Victoria, "Beyond you and me. Just it be, just take my hand and come with me...
Come with me."
"Vem comigo."
- Nunca mais - jurou Victoria, e girou o báculo com violência. Toda aquela energia saiu disparada na direcção do palco. Kirtash,
apanhado de surpresa, conseguiu saltar para o lado no último instante. O chão irrompeu em chamas a um escasso metro dele.
Houve confusão, consternação, gritos, pânico. Kirtash voltou a cabeça na direcção dela, e Victoria viu com satisfação que, pela primeira vez desde que o conhecia, ele parecia surpreendido e confuso.
- Victoria, falhaste! - disse Jack ao seu lado, horrorizado.
Mas logo de seguida apercebeu-se de que ela falhara de propósito.
A jovem estava de pé, segurando firmemente o báculo, que brilhava na escuridão, iluminando o seu semblante sério, decidido e desafiador. Era uma imagem temível e perturbadora, e os espectadores daquele sector afastaram-se dela, aterrorizados e confusos. De imediato, Victoria viu-se sozinha, com o seu báculo, naquele corredor, na parte superior dos assentos, olhando fixamente para Kirtash.
Ele recompusera-se já da surpresa e, do palco, tinha erguido os olhos na direcção dela, com os músculos tensos, mas mantendo sempre o domínio sobre si mesmo.
- O que estás a fazer? - Victoria ouviu a voz de Alexander, que acabava de chegar.
Ela não fez caso. Sabia que Kirtash a tinha visto, que estava a olhar para ela. Sabia que podia tê-lo morto se quisesse. E sabia que ele também o sabia.
Victoria viu Kirtash assentir com a cabeça. Então, silencioso como uma sombra, o jovem assassino deslizou em direcção ao fundo do palco e desapareceu.
Victoria sentiu-se imediatamente muito fraca, e teve de se apoiar no báculo para não cair. Jack agarrou-a pelo braço.
- Vamos embora daqui - disse-lhe. - Vêm aí os seguranças.
- Más quem eram aqueles loucos? - disparou o agente de Chris Tara. - E porque é que a polícia não conseguiu deitar-lhes a mão?
Kirtash podia ter respondido a ambas as perguntas, mas permaneceu em silêncio, sentado numa cadeira a um canto, com o ar enganadoramente calmo que o caracterizava.
- bom, o importante é que Chris está bem - disse o produtor. Vejam as coisas pelo lado positivo: isto provocará publicidade extra para a promoção do disco.
- De que é que estás a falar? Isto foi uma tentativa de assassinato, Justin, não tem nada de bom. Pode haver mais. Temos de descobrir quem eram esses três e o que
queriam, e como diabos conseguiram entrar com esse... o que quer que seja... dentro do pavilhão.
O produtor respondeu, mas Kirtash não lhe prestou atenção. Levantou-se e dirigiu-se para a porta sem uma única palavra.
- Pode saber-se onde vais, Chris? - interpelou-o o seu agente.
- A escolta especial que pedimos ainda não chegou.
Kirtash voltou-se para ele.
- Fizemos um trato, Philip - disse, com suavidade. - Eu cumpro com os meus compromissos. E tu, em troca...
O homem empalideceu.
- Nada de entrevistas - murmurou, como se o tivesse aprendido de cor. - Nada de fotografias. Nada de aparições públicas, excepto nos concertos. Nada de perguntas. Nada de controlo. Liberdade total.
49
- É assim que eu gosto - sorriu Kirtash. A porta fechou-se atrás dele.
- Mas quem é que pensas que és? - quase gritou o produtor. - Phil! Diz-lhe que...
Mas o outro deteve-o com um gesto.
- Deixa-o ir - murmurou. - Garanto-te que sabe o que faz.
- Mas... lá fora está tudo cheio de gente, e...!
- Não o verão se ele não quiser deixar-se ver. Acredita em mim. Deixa-o, Justin. Se queres Chris Tara, terá de ser de acordo com as suas próprias condições.
O produtor não disse nada, mas abanou a cabeça, perplexo.
Era já meia-noite quando tudo ficou vazio. A polícia também se retirou, depois de ter revistado o Key Arena e todo o Seattle Center sem ter encontrado os três maníacos que tinham interrompido o concerto de Chris Tara.
Os maníacos em questão não se tinham afastado da porta do pavilhão, mas ninguém os via. O feitiço de camuflagem mágica, baseado em criar ilusões, tinha muitas variantes. A percepção de um idhunita, mais habituado à magia, não podia ser enganada facilmente; neste caso, seria preciso criar um disfarce, a imagem de outra pessoa, para se passar despercebido. Mas com os terráqueos, mais incrédulos e, portanto, mais incautos, o feitiço funcionava muito melhor. Se fosse necessário, era possível convencê-los de que alguém não se encontrava ali.
Jack, Victoria e Alexander esperaram junto à entrada do Key Arena que todos fossem embora e que fechassem o pavilhão. Eram já nove da manhã em Madrid, mas Victoria parecia ter-se esquecido completamente da hora, e permanecia pálida e calada, agarrada ao báculo, esquadrinhando as sombras. Jack estava sentado ao seu lado, muito colado a ela. Os dois intuíam que se avizinhava um momento importante e, de maneira inconsciente, aproximavam-se um do outro tanto quanto podiam, como se quisessem encorajar-se mutuamente. Jack passou o braço em torno dos ombros de Victoria e ela recostou-se contra ele, esquecendo-se por um momento dos seus esforços para se distanciar do seu amigo.
Quando o silêncio se apoderou daquele sector do Seattle Center, Alexander olhou fixamente para Victoria.
- Falhaste de propósito - disse-lhe. - Porquê?
- Porque não me pareceu correcto - respondeu ela a meia-voz.
- Correcto! - repetiu Alexander. - Não te parece correcto acabar com um assassino que matou sorrateiramente muitos dos nossos?
- Quero acabar com ele, mas não dessa maneira - Victoria olhou-o nos olhos, impassível. - O que é que se passa contigo, Alexander? Não eras tu que não gostavas das armas de fogo porque matar à distância era coisa de cobardes?
- Um indivíduo como Kirtash não merece que o tratem com tanta benevolência.
- Pois eu creio que ao pensares assim estás a rebaixar-te ao nível dele - replicou Victoria. - Compreendo que tenhas mudado e que já não sejas o mesmo, Alexander. Mas sei que dentro de ti resta algo daquele cavaleiro que nos falava de honra e justiça. E essa parte de ti sabe muito bem porque não fiz o que me pedias.
Jack ouvia sem intervir. Apesar de odiar Kirtash, no fundo estava de acordo com Victoria.
Alexander reflectiu sobre as palavras da rapariga e finalmente assentiu energicamente com a cabeça.
- Compreendo-o e respeito, Victoria. Mas... então porque atacaste? Victoria abriu a boca para responder, mas foi Jack quem falou por
ela.
- Para lançar um desafio - disse. - Para desafiar Kirtash a vir enfrentar-nos. Por isso é que estamos aqui à espera dele.
-Não era essa a ideia... - começou Alexander, mas Victoria levantou-se rapidamente, como se tivesse recebido algum tipo de sinal.
- Atenção - disse aos seus companheiros. - Está na hora.
Começou a andar, afastando-se da entrada do Key Arena, na direcção do coração do Seattle Centre. Os amigos seguiram-na. Sobre eles, a Space Needle, a emblemática torre de Seattle, cintilava fantasticamente no meio da noite.
Encontraram Kirtash à espera deles numa clareira relvada. Atrás dele, uma enorme fonte lançava jorros de água na direcção das estrelas e da Lua em quarto crescente. Recortada contra as luzes dos focos, a figura do jovem assassino parecia mais ameaçadora do que nunca, mas também, achou Victoria, mais perturbante.
Jack franziu o sobrolho. Agora que o via de perto, o ódio que sentia por ele, e que estava adormecido há algum tempo, reavivou-se. Também achou que Kirtash era agora mais alto do que ele se lembrava. Jack também tinha crescido, mas o seu rival continuava a ser mais alto do que ele.
- Vieram matar-me - disse Kirtash, com suavidade; era uma afirmação, não uma pergunta.
- Poderíamos tê-lo feito antes, durante o concerto - disse Victoria, tentando que a voz não lhe tremesse.
- Eu sei - limitou-se Kirtash a responder. - Fui descuidado. Não voltará a acontecer.
Jack percebeu que ele observava Victoria com evidente interesse. Apertou com força o punho de Domivat, até quase se magoar, tentando dominar a sua raiva. Não permitiria que Kirtash levasse Victoria. Nunca.
- Vais enfrentar-nos? - perguntou, desafiador. Kirtash voltou-se para ele.
- Jack - disse calmamente, embora se tivesse notado na sua voz uma nota de ódio contido. - Como preferes que vos enfrente? Vão lutar um a um, ou os três de uma vez?
Jack abriu a boca para responder, mas Kirtash não esperou que o fizesse. Desembainhou Haiass, a sua espada, e o seu brilho branco-azulado lampejou na escuridão.
"SE TEVE ALGUM SIGNIFICADO PARA TI..."
Jack pôs-se em guarda demasiado tarde. Kirtash, com um ágil e elegante movimento, descarregou a sua espada sobre ele. O rapaz moveu Domivat para a interpor entre o seu corpo e a arma do seu inimigo. Os dois fios chocaram na obscuridade, fogo e gelo, e, de novo, algo no universo pareceu estremecer.
Victoria e Alexander também pareceram notá-lo. com um grito, Victoria correu na direcção dos dois combatentes, mas deteve-se, indecisa. Kirtash era demasiado rápido e ligeiro para ser atingido, e a roupa preta tornava-o ainda mais difícil de distinguir na escuridão. Victoria não podia arriscar-se a lançar um golpe e errar o alvo ou, pior ainda, acertar em Jack. Mordeu o lábio inferior, preocupada.
O fio de Haiass cintilava na noite, mas Jack já não era um novato e sabia usar a sua espada. Sentiu o poder de Domivat, sentiu como o seu fogo resistia sem problemas às investidas do inimigo e procurou contra-atacar. Pensou no rosto de Victoria e recordou o que lhe prometera algum tempo antes: que acabaria com a ameaça de Kirtash para que o mundo fosse um lugar mais seguro para ela. Este pensamento deu-lhe forças. Apercebeu-se de Kirtash junto de si e voltou-se rapidamente. Domivat deixou escapar uma breve labareda, e Kirtash teve de saltar para o lado para a evitar. Jack nem o deixou respirar. Golpeou com todas as suas forças. Kirtash interpôs a sua espada entre ambos, e de novo se produziu um choque brutal. As duas espadas míticas estremeceram por um momento, cheias de cólera. Nenhuma das duas venceu aquele confronto. Jack e Kirtash retrocederam alguns passos, em guarda. Jack voltou a atacar.
No entanto, estava destreinado e a velocidade de Kirtash superava-o. Durante dois angustiosos minutos, ambos trocaram entre si uma série de rápidas estocadas... até que Kirtash golpeou de novo, com ligeireza e decisão. Jack ergueu Domivat no último momento, mas não pôde imprimir ao seu movimento a firmeza necessária. Quando as duas espadas voltaram a chocar, algo estourou no impacto, e Jack foi violentamente lançado para trás, enquanto Kirtash permaneceu firmemente de pé, em guarda, com a espada ao alto.
Jack estatelou-se contra o jorro de água da fonte e caiu de costas no chão. Esforçou-se por se levantar, molhado e aturdido, e ergueu novamente a sua espada, mas viu que Kirtash já combatia outro rival.
Alexander tinha desembainhado a sua espada, Sumlaris, também chamada a Imbatível, uma arma suficientemente poderosa para resistir à gélida mordedura de Haiass.
Mas a escuridão jogava a favor de Kirtash. O jovem movia-se como uma sombra, tão depressa que custava seguir os seus movimentos, e a sua espada golpeava uma e outra vez como um relâmpago na noite. Jack observou, surpreendido, como Alexander respondia, lutando com uma ferocidade que ele, sempre tão sereno e contido, jamais tinha mostrado antes. com um nó na garganta, Jack contemplou a Lua em quarto crescente no céu e perguntou-se até que ponto o animal tinha poder sobre a alma do seu amigo.
Também Kirtash pareceu achar interessante a mudança verificada no seu opositor, porque desferiu vários golpes arriscados, com a intenção de o provocar. Alexander respondeu com ferocidade, mas sem se deixar levar pela cólera e, por um momento, pareceu que tinha possibilidades de vencer.
Mas foi apenas por um momento. Kirtash pareceu desaparecer durante um segundo e, no instante seguinte, o fio da sua espada enterrou-se no corpo de Alexander.
O jovem emitiu um som indefinido, uma mistura de dor e surpresa.
- Alsan! - gritou Jack, chamando-o inconscientemente pelo seu antigo nome. Levantou-se de um salto, tiritando, e correu na direcção deles.
Alexander tinha conseguido deter o fio de Haiass com a sua espada antes que penetrasse mais no seu corpo. com um esforço sobre-humano, empurrou Kirtash para trás e fê-lo retroceder.
Depois, caiu no chão, ainda segurando Sumlaris ao alto, para manter as distâncias.
Kirtash não teve dúvidas. Ergueu Haiass sobre ele, para o matar.
Jack chegou a correr para tentar impedi-lo, mas alguém se adiantou.
Victoria estava de pé entre Kirtash e Alexander, serena e desafiadora, e a luz do báculo palpitava na noite como o coração de uma estrela. Kirtash descarregou a sua espada contra ela, mas a jovem estava preparada e levantou o báculo para deter o golpe. Saltaram faíscas.
Enquanto isso, Jack tinha-se ajoelhado junto de Alexander, que tinha deixado cair a espada. Abriu-lhe a camisa para ver se a ferida era grave. À luz de Domivat, descobriu, aliviado, que Alexander tinha conseguido desviar a estocada no último momento e não pareciaque tivesse atravessado nenhum órgão vital. Contudo, a pele em volta da zona ferida tinha um aspecto estranho, como se estivesse coberta de geada.
Kirtash tinha retrocedido alguns passos. O débil brilho branco-azulado de Haiass iluminava o seu rosto, e Victoria pôde ver que a olhava nos olhos... e sorria.
E então, de novo, Kirtash desapareceu. Victoria manteve-se em guarda, esperando vê-lo emergir das sombras a qualquer momento. Jack também se levantou de um salto, foi para junto da sua amiga, erguendo Domivat, e esquadrinhou a escuridão. Mas Kirtash não apareceu, e Victoria soube, de alguma maneira, que se tinha ido embora.
Jack voltou-se em todas as direcções, desconcertado.
- Por ali! - exclamou então Victoria, assinalando uma sombra que deslizava entre as árvores.
Desatou a correr atrás dela, com o báculo preparado, a sua extremidade iluminada como um farol.
- Victoria! - chamou Jack. - Victoria, espera!
Voltou-se para Alexander, indeciso, sem saber o que fazer. O seu amigo continuava estendido no chão, tiritando de frio, e Jack soube que deveria levá-lo para um sítio quente o quanto antes ou todo o seu corpo congelaria por completo. Tinha de receber tratamento médico urgentemente. Mas Jack não podia deixar Victoria sozinha, não com Kirtash a espreitar na escuridão.
Alexander entendeu o seu dilema.
- Vai à procura de Victoria, Jack - disse-lhe. - Tens de impedi-la. Vai direita a uma armadilha.
O rapaz não precisou de mais. Assentiu e correu atrás da amiga.
Victoria tinha chegado junto do Memorial Stadium e voltou-se em todas as direcções, indecisa. Percebeu então que tinha perdido os seus amigos e perguntou-se como tinha sido. Lembrou-se de que Alexander tinha ficado ferido e supôs que Jack tivesse ficado com ele. De qualquer modo, agora estava sozinha.
Sentiu aquele ar gélido atrás dela e ouviu a voz de Kirtash da escuridão.
- Já pensaste na minha proposta, Victoria?
- Proposta? - repetiu ela, olhando em volta, preparada para lutar.
- Estendi-te a mão. - A voz de Kirtash soou junto ao seu ouvido, sobressaltando-a, mas tão suave e sugestiva que a fez estremecer.
- A oferta ainda continua de pé.
Victoria obrigou-se a si mesma a reprimir a sua perturbação e voltou-se com rapidez, com o Báculo de Ayshel em riste.
- Não estou interessada nas tuas ofertas - replicou, carrancuda. vou matar-te, por isso dá a cara e luta de uma vez.
- Como queiras - disse ele.
E o fio de Haiass caiu sobre ela. Victoria reagiu e ergueu o báculo. Uma vez mais, ambas as armas se encontraram e produziu-se uma crepitação que iluminou os rostos dos dois jovens. Victoria aguentou um pouco mais, girou a anca e desferiu um pontapé lateral. Kirtash evitou-o, mas teve de afastar a espada. Victoria recuperou o equilíbrio, baixou o báculo e pôs-se novamente em guarda. Os dois fitaram-se por um breve instante, mas Victoria não deixou que os sentimentos contraditórios que aquele rapaz lhe inspirava se sobrepusessem à sua determinação de acabar com ele. Virou o báculo contra ele, e Kirtash deteve-o com a sua espada. Victoria voltou a movê-lo, com rapidez, e conseguiu roçar o braço do seu inimigo. Houve um crepitar e um cheiro a queimado; Kirtash fez um esgar de dor, mas não se queixou. Moveu-se para o lado, rápido como o pensamento, e, antes que Victoria pudesse aperceber-se, estava atrás dela e o fio de Haiass repousava sobre o seu pescoço.
- Parece-me que já brincámos o suficiente, Victoria - disse ele, com um certo tom de irritação contida.
Ela não quis render-se tão depressa. Embora sabendo que tinha a vida em jogo, agachou-se e girou para lhe desferir um pontapé no estômago.
Kirtash poderia tê-la morto apenas com um golpe de pulso, mas não o fez; limitou-se a esquivar-se do pontapé. Victoria voltou-se e golpeou com o canto da mão, com todas as suas forças. Notou que atingia Kirtash no rosto, mas, antes que a rapariga soubesse sequer o que tinha acontecido, já ele a tinha segurado pelos pulsos e tinha-a encurralado contra a parede. Fitaram-se por um breve instante; estavam fisicamente muito perto, e Victoria sentiu que se esquecia de respirar por um momento. Havia nele algo tão misterioso e fascinante que a impedia de pensar com clareza.
Mas os olhos de Kirtash mostravam um brilho perigoso.
- É uma pena que tenha de ser a mal - comentou ele.
Olhou-a nos olhos, e Victoria percebeu que a consciência de Kirtash se introduzia na sua, manipulando os fios que a prendiam à vida, e soube que ia morrer. Gritou, tentou debater-se, mas percebeu que na realidade não se tinha movido nem tinha saído o mais pequeno som da sua boca, porque estava paralisada de terror.
O seu último pensamento foi para Jack. Não voltaria a vê-lo e nem sequer pudera despedir-se.
E foi o seu rosto o primeiro que viu quando abriu os olhos.
- Jack... - murmurou. Levantou-se e procurou mexer a cabeça, mas doía-lhe imenso. - O que...?
Não pôde dizer mais nada, porque de imediato o seu amigo abraçou-a com força, sem uma única palavra, e Victoria sentiu que ficava
sem ar.
-Jack?
- Pensei que te tinha perdido - disse ele, com voz rouca. - Quando cheguei e te vi aí no chão... pensei que tinha chegado demasiado tarde, que Kirtash te tinha... Victoria, Victoria, não me teria perdoado nunca.
A rapariga fechou os olhos, atordoada, e recostou a cabeça no ombro de Jack. Não entendia muito bem o que
tinha acontecido, mas sabia que gostava daquele abraço.
- Estou viva - disse. - Estou... estou bem. Acho. O que aconteceu? Jack separou-se dela para a olhar nos olhos.
- Estás num hospital. Kirtash atacou-te e deixou-te inconsciente. Vais recuperar, mas precisas de descansar.
Victoria tentou ordenar as ideias.
- Pensei... que ia matar-me - murmurou.
- Mas não o fez - disse Jack. Parecia tão desconcertado como ela, e acrescentou, não sem um certo esforço: - E teve ocasião para isso. Podia ter-te matado, podia ter-te levado com ele... mas deixou-te ali, inconsciente.
- Não queria lutar contra mim - murmurou ela.
"Porquê?", perguntou-se, desconcertada. "Porque é que não quer matar-me?"
Jack acariciou-lhe os cabelos com ternura.
- O importante é que estás bem - hesitou antes de continuar. Lamento muito ter-me zangado contigo no concerto.
- Por... - Victoria tinha dificuldade em lembrar-se dos pormenores.
- Ah. Está tudo bem.
- Não, não está - insistiu ele; pegou-lhe no rosto com as mãos, com doçura, e fitou-a. - Ando sempre à bulha contigo, e desta vez estive a ponto de te perder, e...
bom, se te acontecesse alguma coisa, eu... - Corara, e parecia que lhe custava encontrar as palavras adequadas. - O que estou a tentar dizer é que tudo isso não é a sério, Victoria, que no fundo importo-me muito contigo e que não quero estragar tudo com discussões tontas, porque... bom, porque, agora que voltámos à luta... não posso evitar pensar que cada vez que nos vemos pode ser a última. Entendes-me?
Fitou-a intensamente, procurando transmitir-lhe tudo o que sentia. Victoria devolveu-lhe o olhar, um pouco perdida. Sentia que Jack estava a tentar dizer-lhe algo importante, intuía que havia algo mais por detrás daquelas palavras, mas custava-lhe muito concentrar-se na situação. Por alguma razão, não podia deixar de recordar os olhos de gelo de Kirtash. E agora estava a olhar para Jack, mas dificilmente o via. A sua mente e o seu coração encontravam-se muito longe dali.
- Queres dizer... que tiveste medo por mim - conseguiu dizer.
- Sim, era isso que queria dizer - respondeu Jack, após um breve silêncio; abriu a boca para acrescentar algo mais, mas percebeu que Victoria quase não o ouvia e permaneceu calado.
- Mas... não deves ter - murmurou ela, ainda atordoada. - Kirtash não me vai matar. Não me vai fazer mal.
Não sabia porque é que tinha tanta certeza disso, mas estava convencida de que não se enganava. Mas era tudo tão confuso... Gemeu e levou uma mão à cabeça.
- Estás feita num caco - disse ele -, é natural. Estiveste inconsciente durante duas horas e vais precisar de recuperar forças, mas acho que amanhã já estarás em condições de voltar para casa.
- Ainda estamos em Seattle? Jack assentiu.
- Sem ti, não podemos voltar a Limbhad.
- Devia estar na escola agora mesmo - murmurou ela, cheia de remorsos. - Avisaram a minha avó a dizer-lhe que faltei. O que é que lhe vou dizer?
- Pensas nisso amanhã.
Victoria lembrou-se de uma coisa e voltou-se para Jack, preocupada.
- Como está Alexander?
- Também está hospitalizado, mas a recuperar. Os médicos estão um pouco desconcertados porque nunca tinham visto uma ferida como aquela. Congelou-lhe parte do ventre.
- Haiass - murmurou Victoria. - Devo tentar curá-lo com a minha magia. Recuperará mais depressa.
- Mas agora não, Victoria. Agora, dorme, está bem?
- Não - cortou ela com energia. - Tenho de ver como está Alexander.
Levantou-se da cama subitamente, mas ficou tonta e teve de se apoiar em Jack. O rapaz ajudou-a a sair do quarto. Olharam para ambos os lados do corredor, mas não viram ninguém. O hospital estava em silêncio e só se ouvia o murmúrio da conversa de duas enfermeiras um pouco mais longe.
Jack guiou Victoria até ao quarto de Alexander. De imediato, os passos da rapariga tornaram-se mais firmes, mas ela não deixou de se apoiar em Jack. Depois de tudo o que tinha sucedido, o seu contacto fazia-a sentir-se muito mais segura.
Além disso, mantinha-a com os pés na terra. É que, se se descuidava, voltava a recordar Kirtash e, por alguma razão, a voz dele voltava a ecoar na sua mente, suave e sedutora, confundindo-a, mas também transportando-a para lugares longínquos, onde tudo era possível.
Entraram no quarto de Alexander. Estava a dormir, mas ouviu-os entrar e abriu imediatamente os olhos; voltou-se para eles e fitou-os, e os seus olhos cintilaram na escuridão com um brilho ameaçador.
- Alexander, somos nós - murmurou Jack, algo inquieto.
- Ah. Entra, Jack. Não acendam a luz.
Aproximaram-se dele, com precaução. Victoria sentou-se na cama, junto a Alexander, que entendeu quais eram as suas intenções. Afastou os lençóis e deixou que ela lhe examinasse o tronco, sob a suave luz que entrava pela janela.
- Ligaram-me a ferida - disse. - Precisas...?
- Não é necessário - cortou ela. - A minha magia pode passar através das ligaduras.
Colocou as mãos sobre a zona magoada, sem chegar a tocar Alexander, e deixou que a sua energia fluísse em direcção a ele.
Teve de se esforçar muito. O gelo de Kirtash parecia não querer desaparecer e, além disso, ela estava fraca e alheada. Mas obrigou-se a si mesma a continuar a transmitir energia e, pouco a pouco, o calor da sua magia derreteu a geada que tomara conta da pele de Alexander. No entanto, apercebeu-se de imediato, assustada, de que se tinha empenhado tanto em curar Alexander que ela mesma estava a ficar sem forças. Cerrou os dentes. Se o deixasse agora, talvez o gelo voltasse a expandir-se, e ela estaria demasiado débil para tentar outra cura. Não, deveria terminar o que tinha começado.
Só mais um esforço...
Sentiu de imediato a mão de Jack a apertar-lhe o braço.
- Deixa-o já, Victoria - disse ele, muito sério. - Não podes mais.
Por alguma razão, o contacto de Jack deu-lhe as forças de que necessitava. Victoria transmitiu uma última torrente de energia, e o gelo desapareceu por completo.
Alexander percebeu-o.
- Creio que já está - disse. - Já não tenho frio.
- Bem - murmurou Victoria, sorrindo. Tentou levantar-se... mas estava tudo a andar à roda...
Por sorte, Jack estava ali para a amparar. Segurou-a nos seus braços, preocupado. A jovem tinha desmaiado.
- Victoria! O que...?
- Está cansada - respondeu Alexander. - Precisa de recuperar forças. Não usa o báculo para curar, e a sua magia, ao contrário da desse artefacto, não é inesgotável.
Leva-a para o quarto dela e deixa-a dormir. Vai recuperar - acrescentou, ao ver que Jack olhava para a amiga com uma expressão profundamente preocupada. - Precisa apenas de descansar.
O rapaz assentiu. Pegou em Victoria e levou-a em braços de volta para o seu quarto. Estendeu-a na cama e tapou-a com o lençol, com cuidado. Ficou a observá-la durante uns segundos. Pensou novamente no instante em que a tinha visto junto ao estádio, jazendo no chão, como morta. Todo o seu mundo se desfizera em mil pedaços, e o seu coração não voltara a bater até descobrir que ela continuava viva. Naquele momento, até teria agradecido a Kirtash por não a ter levado. Estreitara-a com força entre os seus braços e sussurrara-lhe ao ouvido o quanto significava para ele. Mas, naquele momento, ela não podia ouvi-lo.
E agora também não.
Jack sorriu e acariciou-lhe o cabelo com doçura.
- Descansa, pequena - sussurrou. - Quando estiveres melhor, falaremos. Tenho de contar-te muitas coisas... mas agora tens de dormir e recuperar forças. Estarei por perto se precisares de alguma coisa... agora e sempre.
Victoria acordou de madrugada. Demorou um pouco a recordar tudo o que tinha acontecido, mas, quando o fez, olhou em volta. Viu Jack a dormir no cadeirão, junto a ela, e sorriu, comovida, apercebendo-se de que ele tinha preferido ficar a velar o seu sono em vez de ficar com Alexander.
Ia a sentar-se na cama, mas sentiu-se tonta. Esperou sentir-se um pouco melhor e só depois se levantou para ir buscar a mochila, que estava junto ao cadeirão. Enquanto a vasculhava à procura do seu relógio, que marcava a hora de Madrid, voltou-se para olhar para Jack. Sorriu de novo, recordando o quanto ele se tinha preocupado com ela. Sem saber muito bem porquê, estendeu a mão para lhe acariciar o cabelo, mas não chegou a fazê-lo, por vergonha e por receio de que ele acordasse. No entanto, tocou-lhe a testa com a ponta dos dedos. Jack não se mexeu. Sempre tivera o sono muito profundo.
Voltou para a cama, ainda com a mochila, e rebuscou o seu interior, sem saber muito bem o que esperava encontrar. Viu o diseman, e lembrou-se de qual era o CD que tinha dentro. Abriu a tampa e tirou-o, e ficou a olhar, sob a luz da lua, para a imagem da serpente que entrelaçava os seus anéis em torno da palavra Beyond. Sentindo-se furiosa e humilhada, foi até ao caixote do lixo para atirar o disco lá para dentro. Mas antes de regressar à cama já havia mudado de ideia. Recuperou o CD, inseriu-o no diseman, pôs os auriculares e premiu o botão play.
As notas da música de Chris Tara, Kirtash, voltaram a invadir a sua mente, cheias de significados ocultos. Victoria voltou a escutar "Beyond" pela enésima vez, tentando imaginar porque é que Kirtash dizia aquelas coisas, porque é que era a voz do seu inimigo que lhe trazia as palavras de consolo que chegavam às profundezas do seu coração.
"Victoria..."
Endireitou-se, alerta.
"Victoria..."
Desligou o diseman. Pela terceira vez o chamamento ecoou na sua mente, mas, desta vez, seguido de um convite:
"Victoria... temos de falar."
A rapariga estremeceu. Estava demasiado débil para lutar, mas desejava voltar a ver Kirtash. Tinha estado à sua mercê, tinha perdido contra ele, no entanto, o jovem tinha-a deixado ir. Victoria precisava de saber porquê.
Por outro lado, ele não ia magoá-la. Se a quisesse matar ou sequestrar, já o teria feito. Tivera ocasiões de sobra.
Como num sonho, Victoria levantou-se e, em silêncio, mudou de roupa. Jack mexeu-se no meio dos sonhos, mas não acordou. Victoria calçou as sapatilhas e encaminhou-se para a porta.
Titubeou momentaneamente e voltou a olhar para o Báculo de Ayshel, que descansava num canto, embrulhado na sua bolsa e apoiado contra a parede. Por fim, decidiu não o levar. Se Kirtash tivesse mudado de ideias e estivesse empenhado em levá-la consigo, não obteria o báculo à custa dela.
Deslizou para fora do quarto, com o coração a bater com força. Percorreu os corredores silenciosos do hospital. Passou pela recepção sem que a enfermeira tivesse sequer levantado a cabeça, o que não era de estranhar. Victoria tinha um maravilhoso talento para passar despercebida.
Na rua, foi recebida por uma rajada de vento frio, mas ela quase nem o sentiu. Olhou em volta, desorientada. Nem sequer sabia onde se encontrava.
"Victoria...", chamou-a novamente. E a rapariga não teve outro remédio a não ser seguir aquele chamamento.
Os seus passos vacilantes levaram-na até um parque próximo. Victoria dirigiu-se para o caminho, bordejado de ervas e tenuemente iluminado por pequenos candeeiros, na direcção do coração daquele pequeno pulmão no meio da cidade.
Deteve-se quando viu uma sombra ao fundo, apoiada contra uma árvore, e soube que tinha chegado ao seu destino.
Avançou um pouco mais, até ficar a poucos metros dele. Fitaram-se.
Kirtash tinha enfiado as mãos nos bolsos do seu casaco preto e esperava-a com as costas apoiadas contra o tronco da árvore, numa atitude descontraída. Não trazia a espada. Se não fosse por aquele estranho halo de mistério que o envolvia, teria parecido um rapaz normal, como tantos outros.
Mas não o era.
Victoria deu-se então conta de que tinha fugido do hospital, sem dizer nada aos seus amigos, para se encontrar com Kirtash, o assassino, o seu inimigo, e sentiu-se culpada. Talvez por isso, perguntou com brusquidão:
- De que queres falar?
No entanto, a resposta confundiu-a:
- De ti.
Os olhos azuis de Kirtash cravaram-se nos seus, e Victoria estremeceu.
- Não entendo - murmurou. - O que queres de mim?
- Não tenho a certeza - confessou ele. - Talvez entender-te, talvez conhecer-te. Talvez... não voltar a ver-te. E o que estou a tentar perceber.
- Mas, porquê...? - Sentiu que não encontrava as palavras adequadas. Há anos que temia aquele rapaz, tremendo à simples menção do seu nome, e ali estavam os dois, a falar como se nada tivesse acontecido; era demasiado surreal. - Porque é que te dás a tanto trabalho? Porque é que sou tão importante para ti?
Ele inclinou a cabeça, fitou-a, mas não disse nada.
- Responde-me, por favor. Não entendo nada. Estou confusa. Às vezes penso que... deveria matar-te. Por tudo o que fizeste. Mas outras vezes... - Calou-se, assustada.
- Aproxima-te - disse Kirtash, com suavidade.
Ela assim fez. Havia algo no seu olhar que a atraía como um íman.
Kirtash ergueu a mão e acariciou-lhe o rosto. Victoria fechou os olhos e deixou-se levar pela carícia, que despertava sensações inesperadas dentro de si. Aquilo só podia ser um sonho estranho...
- Sabes que estamos em guerra - disse ele por fim.
Victoria abriu os olhos, bruscamente trazida de volta à realidade.
- Mas não é a minha guerra - disse a rapariga. - É a guerra de Alexander e de Jack, porque os seus pais morreram nela. E era a guerra de Shail - acrescentou em voz baixa. - Mas eu... eu não tenho nada a ver com tudo isto.
- Isso é o que tu pensas e, no entanto, estiveste estes dois anos a treinar-te para me matar - observou ele.
Ela pensou na resposta que devia dar-lhe.
- Para me defender - corrigiu. - Porque tu querias matar-me, embora nunca tenha sabido porquê. Mas agora dizes que não queres magoar-me e, por outro lado... - Calou-se, confusa; lembrou-se então de algo que queria perguntar-lhe há muito tempo. - Lembras-te de Shail, certo? - Kirtash assentiu quase imperceptivelmente - Tentaste salvar-lhe a vida, não foi?
Kirtash não respondeu.
- Eu vi - insistiu Victoria. - Tentaste deter Elrion. Porque o fizeste?
- Porque supus que a morte de Shail naquele momento não seria boa para a nossa futura aliança. E, como vês, não me enganei.
- Mas continuo sem entender... porque queres que vá contigo.
- Porque é a única maneira de te salvar a vida, Victoria. Se não vieres comigo, se não te juntares a nós, terei de te matar.
- Não há outra solução? Kirtash negou com a cabeça.
Victoria recordou as suas canções, as suas promessas de um mundo novo, de magia, de liberdade, e soube que era o que desejara desde criança. Mas ficava desconcertada perante a ideia de que fosse precisamente Kirtash quem se oferecia para realizar os seus sonhos.
- Mas não posso partir - disse, com um suspiro. - Não posso ir contigo. Não quero deixar Alexander nem... - hesitou.
- Jack - completou Kirtash, e a sua voz tinha um tom perigoso. Victoria desviou o olhar.
- Os dois morrerão mais cedo ou mais tarde - disse Kirtash com frieza. - Também hei-de matá-los. Mas estou a tentar salvar-te a ti.
Victoria pareceu voltar à realidade e olhou-o com ferocidade.
- Não. Não, nem pensar. Não irei deixar que te aproximes deles.
- Oh, mas já sei tudo sobre Limbhad, o vosso refúgio secreto sorria ele. - Tu contaste-me, ainda que não quisesses fazê-lo... há dois anos, na Alemanha. - Ao ver a expressão horrorizada de Victoria, acrescentou: - Mas não te preocupes, sabes que não posso chegar até lá. A menos que tu me leves... ou me chames através dessa Alma que guarda a vossa pequena fortaleza.
"Sabe tudo", pensou, aterrada.
Quis voltar-se para ir embora, para fugir, mas Kirtash reteve-a segurando-a pelo braço.
- vou matar os teus amigos - assegurou-lhe, olhando-a. - Sabes que o farei, mais cedo ou mais tarde. Porque acorreste ao meu chamamento?
- Porque me hipnotizaste - replicou ela com ferocidade.
- Sabes que não é verdade. A tua mente é só tua, e os teus sentimentos também. Não te manipulei... embora pudesse tê-lo feito. Mas não é assim que quero que as coisas aconteçam. Não, Victoria. Vieste por vontade própria.
- Solta-me. Solta-me ou...
- O quê?
Kirtash tirou um punhal de um dos bolsos interiores do casaco, e Victoria retrocedeu, temerosa, maldizendo-se a si mesma por ter ido sem uma arma para se defender.
Mas o que Kirtash fez a seguir surpreendeu-a. Aproximou-se até ficar muito perto dela, pôs-lhe o punhal na mão e colocou-o sobre o seu próprio pescoço.
- vou matar os teus amigos - repetiu. - Tenho de o fazer; eles são renegados e é a minha obrigação. Mas agora tu tens a oportunidade de me matar. Não é assim tão difícil. Não me irei defender.
Victoria pestanejou, perplexa.
- Não... não entendo.
Mas continuava a erguer o punhal, a segurá-lo contra a garganta de Kirtash; podia degolá-lo, podia baixá-lo um pouco mais e cravar-lho no coração... com apenas um movimento da mão... e salvaria muitas vidas, porque o jovem já tinha manifestado a sua intenção de continuar a matar.
- Pensa nisso - insistiu ele. - Podes acabar comigo. Como tentaste fazer esta tarde, durante o concerto. Já te disse que mais cedo ou mais tarde assassinarei os teus amigos. Especialmente Jack! - Victoria cerrou os dentes. - Não mato por prazer nem por desporto, mas devo confessar que tenho muita vontade de acabar com ele.
Victoria pensou em Jack, a dormir no cadeirão do quarto do hospital, velando o seu descanso, e sentiu que os olhos se lhe enchiam de lágrimas de raiva e ódio.
- Não te atrevas - sussurrou. - Não te atrevas a tocar em Jack, porque, se o fizeres...
- O quê? Matas-me? Força, podes fazê-lo agora.
Victoria apertou com força o cabo do punhal. Um fino fio de sangue correu do pescoço de Kirtash, mas ele ficou impassível.
- vou matar Jack - disse novamente.
Victoria gritou e apertou a adaga contra o pescoço de Kirtash. Mas, por alguma razão, o objecto fugiu-lhe dos dedos e caiu ao chão. Victoria quis golpear o jovem com os punhos, mas ele segurou-a pelos pulsos. Odiando-se a si mesma por ser tão fraca, Victoria deixou tombar a cabeça para que os cabelos lhe ocultassem o rosto e as lágrimas que lhe cobriam os olhos.
- Porque é que não consigo matar-te? - perguntou, angustiada. Ele fê-la erguer a cabeça para a olhar de frente.
- Eu ia fazer-te a mesma pergunta - disse em voz baixa.
Inclinando-se para ela, beijou-a com suavidade. Victoria arquejou, perplexa, mas fechou os olhos e deixou-se levar, sentindo que algo explodia dentro do seu peito e que um estranho formigueiro percorria todo o seu corpo. Os lábios de Kirtash acariciaram os seus, com ternura e, quando ele se separou dela, a jovem sentia-se tão fraca que teve de se apoiar no peito dele para não cair.
- Porque é que me fazes isto? - sussurrou, deixando cair a cabeça sobre o ombro de Kirtash. - Não é justo.
- A vida não é justa.
Por algum estranho motivo, no meio de toda aquela situação, Victoria não pôde evitar pensar em Jack. Reuniu forças para se separar de Kirtash e olhou-o por um momento.
- Sabes onde está Jack agora, não é? Descobriste onde estávamos e por isso pudeste chamar-me.
Kirtash assentiu, e Victoria sentiu que se lhe gelava o sangue nas veias. Jack tinha ficado no hospital, para cuidar dela e de Alexander, e ali encontrava-se vulnerável. Devia regressar e levá-lo para Limbhad, antes que Kirtash chegasse...
Kirtash, que queria matar Jack e que estava a falar a sério. Kirtash, que acabava de a beijar. E Victoria tinha gostado daquele beijo.
Odiando-se a si mesma, sentindo-se uma traidora à Resistência e, o que era pior, aos seus amigos, Victoria surpreendeu-se a si mesma voltando-se de novo para o seu inimigo para lhe suplicar:
- Esta noite, não. Por favor, não lhe faças mal hoje. Por favor... Os olhos de Kirtash faiscaram por um instante.
- Sabes o que estás a pedir-me?
- Por favor. Pelo beijo - disse subitamente. - Se teve algum significado para ti... não vás ter com Jack esta noite.
Kirtash olhou-a por um momento, mas voltou-lhe de imediato as costas.
- Vai-te embora - disse em voz baixa. - Daqui a pouco vão dar pela tua falta.
Victoria permaneceu ali, mas ele não se moveu. Sem saber muito bem o que fazer ou o que dizer, ela deu meia-volta e desatou a correr, em direcção ao hospital.
Quando entrou novamente no seu quarto, viu que Jack continuava a dormir. Olhou para ele por um momento e sentiu, durante um confuso instante, que estaria disposta a dar a sua vida para salvar a do seu amigo; mas, por outro lado, não tinha sido capaz de matar Kirtash quando tivera oportunidade.
E tinha deixado que ele a beijasse. Pestanejou para conter as lágrimas.
- Há muito tempo - confessou a Jack num sussurro -, desejei que tu fosses o primeiro a beijar-me. Sonhava que o farias algum dia. Mas foste-te embora, e estive à tua espera e não voltaste. E agora... é demasiado tarde.
Sabia que ele não a tinha ouvido e perguntou-se se seria capaz de lho dizer quando ele pudesse ouvi-la. Provavelmente não.
Acariciou o cabelo louro de Jack e voltou a deslizar para dentro dos lençóis. com o rosto a arder, apoiou a cabeça na almofada, virada para o cadeirão onde Jack dormia, para não o perder de vista nem por um segundo. Mas nos seus lábios ainda tinha as marcas do beijo que Kirtash lhe dera, e sentiu-se mesquinha por ter atraiçoado o seu melhor amigo.
Não queria dormir, mas estava exausta e acabou por adormecer; e sonhou com Kirtash. Quando acordou na manhã seguinte, sobressaltada e confusa, com as primeiras luzes da aurora, viu que Jack continuava a dormir, são e salvo.
SEGREDOS
A Torre de Drackwen estava abandonada há séculos. Erigida mesmo no meio de Alis Lithban, o bosque sagrado dos unicórnios, nos tempos mais pujantes da Ordem Mágica, tinha sido o berço dos arquifeiticeiros, feiticeiros poderosos que se tinham formado ali, onde a magia vibrava no ar com mais intensidade do que em qualquer outro lugar de Idhún. A simples existência da Torre de Drackwen ameaçava o frágil equilíbrio entre a Ordem Mágica e os Oráculos, entre o poder mágico e o poder sagrado, e por isso se havia decidido finalmente, de comum acordo, que os feiticeiros renunciariam a ela. E as suas ruínas continuavam ali, no coração de Alis Lithban.
Só que já não estavam desabitadas.
Já não restavam unicórnios no bosque e, portanto, este havia agonizado nos últimos tempos. Depois da morte de todos os unicórnios, também o povo feérico desaparecera de Alis Lithban, fugindo para o bosque de Awa, onde resistiam ainda ao império de Ashran, o Necromante, e dos seus aliados, os sheks.
A Torre de Drackwen também não era o que tinha sido. No entanto, Ashran tinha-se instalado nela e governava dali os destinos do mundo que tinha conquistado.
Kirtash avançava pelos corredores da torre, com o andar ágil e sereno que o caracterizava. Deteve-se por um momento junto a uma janela e deu uma olhadela ao exterior. No céu, uma figura longa e esbelta sobrevoava as árvores moribundas com elegância, e Kirtash contemplou-a por um momento. O shek pareceu dar-se conta da sua presença, porque parou e ficou suspenso no ar, projectando a sombra das suas enormes asas sobre o que restava de Alis Lithban, e dirigiu os seus olhos irisados para a janela onde se encontrava o jovem assassino. Kirtash saudou-o com uma inclinação da cabeça. A gigantesca serpente correspondeu ao seu cumprimento e prosseguiu o seu caminho para norte.
Kirtash continuou a avançar até que chegou à sala que se abria ao fundo do corredor. Não foi necessário bater à porta; esta abriu-se diante ele.
Kirtash ficou na entrada e ergueu os olhos. Ao fundo da sala, junto da janela e de costas para ele, encontrava-se Ashran, o Necromante. Kirtash pousou um joelho no chão para saudar o seu senhor. Sem precisar de se voltar, este apercebeu-se da sua presença.
- Kirtash - disse, e a palavra soou como o golpe de um chicote.
- Meu senhor - murmurou o rapaz.
- Chamei-te para falar do teu último relatório.
Kirtash não disse nada. Contemplou a alta figura de Ashran, recortada contra a luz do ocaso do último dos três sóis, que começava a ocultar-se para lá do horizonte.
- A Resistência ressurgiu - disse Ashran.
- Assim é, meu senhor.
- E estiveram perto de te matar.
- Admito-o - assentiu Kirtash, suavemente. - Mas não voltará a acontecer.
- Surpreenderam-te, Kirtash. Pensava que a esta altura nada poderia surpreender-te.
Kirtash não respondeu. Não tinha nada a dizer.
- Deixei passar esse teu capricho de te dedicares à música, rapaz, porque estás a servir-me bem - prosseguiu o Necromante. - Fizeste desaparecer quase todos os feiticeiros
renegados que fugiram para a Terra. E não duvido de que mais cedo ou mais tarde encontrarás o dragão e o unicórnio que, segundo a profecia, ameaçam a minha estabilidade futura. No entanto... Porque é que um grupo de jovens te faz tropeçar uma e outra vez?
- Todos eles têm armas míticas, meu senhor. E ocultam-se num refugio ao qual não posso chegar. Seja como for, acabarei por derrotá-los mais cedo ou mais tarde.
- Eu sei, Kirtash; confio em ti e sei que é uma questão de tempo. No entanto... dá-me a sensação de que é demasiado trabalho só para ti.
Kirtash não disse nada, mas franziu levemente o sobrolho.
- Encontrei o feiticeiro que me pediste há algum tempo - disse Ashran. - Alguém do povo dos feéricos, não é assim?
- Mudei de ideias - replicou o rapaz, suavemente, mas com firmeza.
- Trabalho melhor sozinho.
- Isso era antes. - O Necromante voltou-se para ele, mas a luz incidia nas suas costas e o seu rosto continuava na sombra - Esses jovens voltaram a enfrentar-te, e agora estás em minoria. Ela equilibrará a balança e ajudar-te-á a encontrar essas criaturas, particularmente o unicórnio. - Fez uma pausa. - Os feéricos têm uma sensibilidade especial para detectar os unicórnios - acrescentou.
- Ela? - repetiu Kirtash em voz baixa.
- Uma fada que atraiçoou a sua estirpe para se juntar a nós - confirmou Ashran. - Insólito, não é? Não obstante, é uma hábil feiticeira, e não tenho dúvidas de que te será muito útil. vou enviá-la imediatamente à Terra, para que lute a teu lado.
- Mas eu vivo no último andar de um prédio em plena cidade de Nova Iorque - objectou Kirtash. - Não é o lugar adequado para uma fada.
- Então recupera o castelo que tinhas. Continuo sem entender porque o abandonaste, mas, de qualquer modo, não te será difícil tomá-lo novamente habitável, certo?
Kirtash demorou um pouco a responder.
- Não, meu senhor - disse por fim.
- Excelente. - Ashran voltou a virar-lhe as costas para ver como a última nesga de sol desaparecia atrás da linha do ocaso. - Quando tiveres tudo preparado, diz-me, e fá-la-ei cruzar a Porta para ir ter contigo.
Kirtash soube que o encontro tinha terminado. Inclinou a cabeça e deu meia-volta para se ir embora.
- Kirtash - chamou então Ashran, quando já estava na porta. Ele voltou-se. - Suspeito que te apaixonaste por essa rapariga, não? A portadora do Báculo de Ayshel.
Kirtash não respondeu, mas o seu silêncio foi suficientemente eloquente.
- Vale a pena? - perguntou por fim o Necromante, e a sua voz tinha um tom perigoso.
- Creio que sim. Mas, se desejas que...
Ashran fez um gesto com a mão, pedindo silêncio, e Kirtash emudeceu.
- Ela sente algo por ti? Atraiçoaria os seus amigos por ti, rapaz?
- É isso que estou a tentar descobrir, meu senhor.
- Bem. Não demores muito, Kirtash, porque se duvida demasiado é porque não vale a pena. Ouviste? E, então, terás de a matar. Vai-te habituando à ideia.
- Encarregar-me-ei disso, meu senhor.
- Acho bem - repetiu o Necromante.
Kirtash não disse nada. Inclinou-se novamente e, discreto como uma sombra, abandonou a sala.
Jack ergueu os olhos para o suave céu estrelado de Limbhad.
- Aqui não há Lua - comentou. - Tens a certeza de que te vais transformar mesmo assim?
Alexander assentiu.
- O ritmo da Lua pulsa dentro de mim, rapaz. Lamento, eu sinto-a. É a Lua que brilhava sobre aquele castelo, na Alemanha, na noite em que me transformei pela primeira vez, há dois anos. Desde então, o meu corpo segue o seu ciclo. Esteja onde estiver, eu transformo-me com ela.
- Entendo - anuiu Jack.
- Vais ter de atar-me e prender-me até que passe - disse Alexander.
- Ainda não recuperei totalmente da ferida que Kirtash me provocou, mas, seja como for, será perigoso.
Jack assentiu de novo, pensativo. Estavam no quarto de Alexander. O jovem continuava acamado, a recuperar forças, e Jack estava sentado no parapeito da janela, a contemplar a suave noite de Limbhad. Ergueu os olhos para o terraço da Casa na Fronteira, que sobressaía como uma enorme concha numa das paredes do edifício, e viu uma forma branca acomodada sobre a balaustrada, com as costas apoiadas num dos grandes pilares de mármore das extremidades. Uma suave melodia sem palavras subia em direcção ao céu nocturno de Limbhad.
- Tens de falar com ela - disse-lhe Alexander.
- Sim - assentiu Jack. - Sim, está há alguns dias a comportar-se de um modo muito estranho.
- Não me refiro a isso. Tens de lhe explicar o que me vai acontecer, tens de lhe dizer que não venha a Limbhad por uns dias.
- Ah, isso. Sim, vou fazê-lo.
Alexander fitou-o. Também ele percebera que Victoria não era a mesma desde a sua viagem a Seattle. Parecia ausente, perdida nos seus próprios sonhos, e passava mais tempo no bosque do que o costume. Também costumava sentar-se na balaustrada a tocar flauta ou simplesmente a contemplar as estrelas, meditabunda e suspirando de vez em quando. Quando se sentava a estudar, podia estar meia hora com o olhar fixo na mesma página, incapaz de se concentrar no que lá estava escrito. E Alexander podia jurar que a tinha visto em Limbhad às horas em que tinha treinos de taekwondo. O jovem ignorava o que se passava com a rapariga e pensou que, sem dúvida, Shail teria sabido responder àquela pergunta.
Recordou o seu amigo, tão hábil a decifrar os sentimentos dos demais, e perguntou-se o que diria Shail se estivesse ali.
As notas da melodia de Victoria continuavam a envolver a Casa na Fronteira. Era uma canção doce, melancólica, terna e nostálgica ao mesmo tempo. E Alexander compreendeu,
como se o próprio Shail lhe tivesse sussurrado a solução:
- Está apaixonada - disse a meia-voz.
Jack voltou-se para ele, como se o tivessem beliscado.
- Apaixonada, Victoria? - Abanou a cabeça. - Por quem? No seu colégio não há rapazes e ela não tem muitos amigos, que eu saiba.
Alexander encolheu os ombros.
- Talvez por algum colega das aulas de taekwondo. Ou talvez - sorriu -, talvez por ti, rapaz.
Jack sentiu que se lhe acelerava o coração.
- Por mim? Não, não é possível. Sempre deixou claro que, para ela, eu... - interrompeu-se e concluiu, incomodado. - É-me indiferente.
Era doloroso pensar nisso. Era bom sonhar que Victoria sentia algo de especial por ele, mas sabia que não era verdade. Tinham passado apenas uns dias desde o seu regresso a Limbhad, e Jack não conseguia deixar de pensar nela... mas a jovem estava cada vez mais fria e distante.
- De qualquer forma, vai falar com ela - disse Alexander. - Tens de lhe contar sobre a Lua cheia.
Jack assentiu, feliz por ter uma desculpa para abandonar aquela conversa; se continuassem a falar sobre aquele tema, acabaria por contar a Alexander tudo o que ia dentro de si, e não lhe parecia bem que Victoria não fosse a primeira a sabê-lo. É que, ainda que tivessem de passar semanas, ou meses, ou anos... iria dizer-lho um dia, disso estava certo.
Levantou-se e não tardou a sair do quarto.
Quando saiu para a varanda, Victoria ainda lá estava a tocar flauta. Vestia um roupão branco por cima do pijama, e Jack pensou que deveria ser de noite em sua casa.
De qualquer modo, ela não tardaria em retirar-se para o seu quarto de Limbhad para dormir, ou melhor, para o seu refúgio debaixo do salgueiro. Ultimamente passava
lá muito tempo.
- Victoria - chamou-a, aproximando-se.
Ela deixou de tocar, e Jack sentiu como se tivesse desfeito um feitiço maravilhoso. Victoria lançou-lhe um olhar estranho, melancólico, mas cheio de carinho. Jack ficou sem respiração por um momento.
- Estás bem? - perguntou. - Alexander e eu estávamos a comentar que tens estado um pouco esquisita nestes dias.
- Sim - disse ela. - Apenas me sinto um pouco cansada e, além disso... a minha avó ainda está zangada comigo, sabes... por causa de Seattle. Castigou-me por faltar às aulas.
- bom, sempre podes escapar-te para aqui quando ela estiver a dormir - sorriu Jack.
Houve um breve silêncio. Victoria continuava com o olhar perdido no infinito, e Jack teve a incómoda sensação de que quase não lhe prestava atenção, como se os seus pensamentos estivessem noutro local, muito longe dali. "Alexander está enganado", pensou, desiludido. "Não está apaixonada por mim. É outro aquele em quem pensa." Aquela ideia magoava-o tanto que se obrigou a si mesmo a concentrar-se noutra coisa.
- Tenho de te contar algo - disse. - Algo acerca de Alexander. Victoria forçou-se a si mesma a ouvir.
- Ele. está bem, não? A ferida está a cicatrizar e...
- Não se trata disso. É sobre o que lhe aconteceu na Alemanha, há dois anos. O que Elrion lhe fez. Introduziu no seu corpo o espírito de um lobo e converteu-o numa
espécie de animal.
- Eu sei - murmurou ela, com um calafrio. - Vi-o, lembras-te?
- Bem, pois... o lobo não desapareceu, entendes? Pelo menos, não totalmente. Continua ali, ainda que esteja sob controlo, mas... às vezes... solta-se.
- O que queres dizer?
- Que o lobo assume o controlo do seu corpo... todas as noites de Lua cheia.
Victoria reprimiu uma exclamação de terror.
- Queres dizer que Alexander se converteu num lobisomem? Jack assentiu. Contou-lhe então como tinha sido a viagem desde
Itália até Madrid, no final do Verão. A Lua cheia tinha-os surpreendido em Génova, e tiveram de procurar um refúgio para prender Alexander enquanto durasse a sua transformação.
- São três noites - explicou Jack. - A Lua cheia, a véspera e a seguinte. Encontrámos uma casa abandonada no campo, e prendi-o lá dentro, na cave. Alexander trazia correntes na sua bagagem, entendes? Fá-lo por precaução, para não fazer mal a ninguém enquanto é um lobo. Tive de acorrentá-lo eu mesmo e vigiar a porta durante as três noites.
- Deve ter sido horrível - comentou Victoria, com um estremecimento.
Jack encolheu os ombros.
- Eu vejo o lado bom - disse. - Podia ter sido pior. Lembras-te de como estava quando o tirámos daquele castelo? Podia ter ficado assim para sempre.
Victoria assentiu e brindou-o com um sorriso carinhoso.
- Gosto disso em ti - disse -, vês sempre o lado bom das coisas.
- bom - disse Jack, atrapalhado, desviando o olhar - O que se passa é que... já é quase Lua cheia e... vai voltar a acontecer. Dentro de cinco dias. Ele gostaria... gostaríamos - corrigiu-se - que não viesses a Limbhad nessa altura.
- Porquê? - rebelou-se ela. - Não estou indefesa, sabes disso. Poderei defender-me dele se se enfurecer, poderei ajudar-te a controlá-lo...
- Sei que sabes defender-te - tranquilizou-a. - Demonstraste-o no outro dia, quando enfrentaste Kirtash. Salvaste a vida a Alexander.
Victoria encolheu os ombros.
- Estava atenta, foi só isso.
Mas não pôde evitar pensar que depois também tinha salvado a vida a Jack, e não precisamente com o báculo, mas sim...
"Pelo beijo", dissera ela. "Se teve algum significado para ti... não vás ter com Jack esta noite."
E Kirtash não fora. Queria aquilo dizer que sentia realmente algo por ela? O coração acelerava-se-lhe só de o pensar.
E Jack? Tinha comprado a vida de Jack beijando o seu inimigo. Estremeceu, pensando na cara que faria o seu amigo se o soubesse. Victoria suspeitava que Jack teria preferido enfrentar Kirtash naquela noite, fossem quais fossem as consequências, a permitir que Victoria suplicasse pela sua vida.
Envergonhada, a jovem baixou a cabeça, incapaz de olhar para ele de frente. De cada vez que o fazia, recordava que o tinha atraiçoado. Ainda que não houvesse nada entre Jack e Victoria, ainda que fossem apenas amigos, o rapaz odiava Kirtash com todo o seu ser. Para Victoria, beijar Kirtash fora como cravar um punhal nas costas de Jack.
- Não é por ti - continuou ele a dizer, alheio ao torvelinho de emoções que abalavam o coração da sua amiga. - Alexander diz que tem medo de te magoar, mas creio que o que se passa, no fundo, é que... não quer que o vejas assim.
Victoria esforçou-se por se concentrar na conversa.
- Mas... tu vais ficar - conseguiu dizer.
- Porque alguém tem de o fazer. Vamos, Victoria, não é assim tão grave. Farás um favor a Alexander, e creio que o pobre já está a sentir-se suficientemente mal.
Victoria esboçou um sorriso forçado.
- Claro - disse.
- Bem, pois... era só isso - murmurou Jack, incomodado. - Não te incomodo mais.
Levantou-se de um salto, mas Victoria reteve-o pegando-lhe no braço.
-Jack...
Fitaram-se. Os olhos dela estavam húmidos. Jack sentiu um aperto no coração.
- O que foi? O que se passa?
Subitamente, Victoria lançou-lhe os braços ao pescoço e enterrou o rosto no seu ombro, a tremer. Jack, confuso, abraçou-a, sentindo que o seu coração ardia como o núcleo de um vulcão ao tê-la tão perto. Se dependesse dele, já não se separaria dela.
- Por favor - sussurrou-lhe Victoria ao ouvido -, por favor, Jack, não me odeies...
- O quê...!? - exclamou Jack, perplexo. - Odiar-te, eu? Mas, se eu... Ia dizer-lhe que a amava mais do que tudo no mundo, mas ela afastou-se dele bruscamente e desatou a correr para dentro de casa. E Jack ficou ali plantado, na varanda, muito desconcertado e perguntando-se se todas as mulheres eram assim complicadas ou se era apenas um problema de Victoria.
Victoria não voltou a Limbhad nem uma única noite em toda a semana, e Jack começou a perguntar-se se tinha feito ou dito algo que a tivesse aborrecido. À medida que o tempo foi passando, as dúvidas e a angústia atormentavam-no cada vez mais; não poder sair dali nem comunicar com Victoria também não o ajudavam em nada. A eterna noite de Limbhad, sem ela, sem saber quando voltaria, sem compreender o que passava pela mente ou pelo coração da sua amiga, estava a deixá-lo louco. Assim, decidiu concentrar-se noutras coisas para não pensar mais nisso.
Aproximava-se a Lua cheia. Alexander estava cada vez mais arisco e os seus olhos começavam a adquirir aquele brilho amarelado que denotava a presença do animal. A porta da cave estava há muito tempo feita em pedaços, e Jack e Alexander tiveram de se empenhar a fundo para a reparar antes da noite em que o jovem se transformaria por completo. Naqueles dias, os dois praticaram esgrima, prepararam-se para a Lua cheia e, sobretudo, falaram muito. Muitas coisas aconteceram naqueles dois anos, e ambos tinham muitas aventuras e vivências para compartilhar.
Mas, apesar de Jack procurar manter-se ocupado, não podia deixar de pensar em Victoria.
Ela, por sua vez, encerrou-se no seu mundo e afundou-se numa profunda melancolia. Não prestava atenção às aulas e foi repreendida mais de uma vez. Quase não tinha vontade de comer e de noite quase não dormia. Passava o tempo a ouvir a música de Kirtash no seu diseman, fechava os olhos e deixava-se levar por ela, sonhava que o voltava a ver, recordava aquele beijo e desejava que se repetisse. E, de cada vez que o fazia, sentia-se mais e mais miserável.
A sua avó notou que estava diferente, estranha e melancólica, e procurou falar com ela. Embora Victoria respondesse com evasivas, àquela altura já Allegra sabia que o que se passava com a sua menina era, pura e simplesmente, que se tinha apaixonado. Mas Victoria sentia-se tão envergonhada que não respondeu às perguntas que ela lhe fez a esse respeito. A avó fitou-a com um profundo brilho de compreensão nos olhos, como se pudesse ler no fundo do seu coração, sorriu e disse-lhe:
- Tens catorze anos, sei que é uma idade difícil e que estás a sofrer. Mas vai passar e tu ficarás mais velha e mais sábia. Tens apenas de ter paciência...
Victoria assentiu, mas não disse nada. E, quando ficou novamente sozinha, perguntou-se seriamente, pela primeira vez, se era verdade, se se tinha apaixonado por Kirtash. O coração bateu-lhe mais depressa, como de cada vez que pensava nele, e enterrou a cabeça na almofada. Como poderia ter feito algo assim? Como permitira que ele a seduzisse, que a enganasse daquela maneira? Porquê? Sentia-se fraca e indigna de pertencer à Resistência, e recordava que Shail tinha morrido para lhe salvar a vida. Ela, por sua vez, o que fazia? Encontrava-se a sós com Kirtash, permitia que ele a beijasse... apaixonava-se por ele.
Desejou poder falar com Jack e confessar-lhe tudo, mas pensou que ele não o entenderia. Não porque não fosse compreensivo, mas porque, simplesmente, qualquer coisa que tivesse a ver com Kirtash, desde a sua música até à cor da sua roupa, tirava-o do sério. E, na realidade, Victoria não podia culpá-lo por isso.
Naquela noite, depois de dar muitas voltas sem poder dormir, tinha tomado já a decisão de esquecer Kirtash para sempre, quando ele a chamou de novo.
Ouviu a sua voz em algum recanto da sua mente e soube que ele estava por perto. com o coração a bater com força, Victoria levantou-se e vestiu-se, e logo a seguir saiu em silêncio do seu quarto, caminhando em bicos de pés para não fazer barulho.
Uma vez fora de casa, ergueu os olhos para o céu. Uma belíssima Lua cheia brilhava sobre ela, e Victoria lembrou-se então de Alexander e de Jack, que tinha ficado com ele em Limbhad, e perguntou-se se estariam bem.
Apressou-se a descer a enorme escadaria e a seguir o seu instinto.
E este levou-a directamente a Kirtash.
O jovem esperava-a nas traseiras da mansão, onde havia um miradouro que dava para um pequeno pinhal. Sentara-se sobre o muro de pedra e contemplava a Lua cheia. Victoria avançou e sentou-se junto dele. Os dois ficaram calados por um momento, a admirar a Lua que brilhava sobre eles.
- É bonita a Lua, não é? - murmurou Victoria.
Kirtash assentiu em silêncio. Victoria olhou-o e surpreendeu-se por alguém como ele poder contemplar a Lua cheia daquela maneira, como se estivesse enfeitiçado pela sua beleza. O jovem deu-se conta de que ela o observava e voltou-se para a fitar.
- Victoria - disse simplesmente.
- Kirtash - disse ela; era a primeira vez que pronunciava o seu nome diante dele e, por alguma razão, isso teve um sabor amargo.
- Porque é que vieste?
- Porque tu me chamaste - respondeu Victoria com suavidade, como se fosse evidente. - Porque é que não mataste Jack na outra noite?
- Porque tu me pediste que não o fizesse.
O coração de Victoria batia com tanta força que lhe pareceu querer sair do peito. Não era possível que as respostas àquelas perguntas fossem tão simples, tão directas, tão óbvias. Não era possível... que ambos sentissem algo um pelo outro.
No entanto...
Enfeitiçada pelo olhar daqueles olhos de gelo, Victoria pronunciou de novo o seu nome, com um sussurro que acabou num suspiro:
- Kirtash... - Esforçou-se por se libertar daquele feitiço e perguntou: - O que significa o teu nome?
O rapaz calou-se por um momento antes de responder:
- Vem de uma variante do idhunaico antigo - disse. - Significa "serpente".
- Não gosto - disse Victoria, sentindo um calafrio. - Posso chamar-te de outra maneira?
Ele encolheu os ombros.
- Como queiras. E apenas um nome. Como Victoria. - Fitou-a intensamente, e ela sentiu que corava. - É apenas um nome, não é? O importante é o que somos por dentro.
A rapariga desviou o olhar, sem entender nada do que ele queria dizer.
- Na Terra conhecem-te como Chris Tara - murmurou. - Porque é que escolheste esse nome?
- Não o escolhi. O meu agente não sabia pronunciar o meu nome e mudou-o para esse. Foi-me indiferente. Como já te disse, é apenas
um nome.
- O que significa Chris? Christopher, Christian...?
- O que quiseres.
- Christian? Posso chamar-te Christian?
- Não me define muito bem, não é? Eu diria que Kirtash se enquadra mais com a minha personalidade - acrescentou ele com um certo sarcasmo.
- Mas, como tu mesmo disseste - notou Victoria -, é apenas um nome.
O rapaz fitou-a sorrindo ligeiramente.
- Então chama-me Christian. Se isso te faz sentir melhor. Se isso te faz esquecer quem sou na realidade: um assassino idhunita enviado para te matar a ti e aos teus amigos.
Victoria desviou o olhar, incomodada.
- Eu, por mim, continuarei a chamar-te Victoria, se não te importares - acrescentou ele. - Também me faz esquecer que tenho de te matar.
A rapariga abanou a cabeça, confusa.
- Mas tu não queres matar-me - disse. Houve um longo silêncio.
- Não - disse finalmente Christian. - Não te quero matar.
- Porque não?
Ele voltou-se para ela, ergueu a mão para pegar no seu queixo e fê-la levantar a cabeça, com suavidade. Pareceu mergulhar no seu olhar durante um eterno segundo. Pareceu que se inclinava para a beijar, e Victoria sentiu que o seu coração ia explodir.
Mas ele não a beijou.
- Fazes muitas perguntas - observou.
- É natural - respondeu ela, afastando o rosto e procurando esconder a sua decepção. - Não sei nada de ti. Tu, pelo contrário, sabes tudo sobre mim.
- Isso é verdade. Sei coisas que nem tu própria sabes ainda. Mas há sempre algo de novo a aprender. Como esta casa, por exemplo - acrescentou, indicando a mansão.
- O que há com a casa?
- Tem uma espécie de aura benéfica que te protege. E desagradável para mim.
- É apenas a casa da minha avó - murmurou Victoria, perplexa.
- Claro, e essa mulher é apenas a tua avó - comentou Christian, sorrindo, meio trocista. - De qualquer forma, viver aqui é bom para ti. Pode vir a proteger-te de muitos perigos.
- Também de ti?
Christian fitou-a novamente com aquela intensidade que a fazia estremecer.
- Poucas coisas podem proteger-te de mim, Victoria, e esta casa não é uma delas. Como vês, estou aqui.
Victoria desviou o olhar.
- Porque é que me dizes essas coisas? Confundes-me. Não sei o que sinto e também não sei o que tu sentes.
Christian encolheu os ombros.
- Por acaso isso importa?
- Claro que importa! Não podes continuar a brincar comigo, entendes? Tenho sentimentos. Pode ser que tu não os tenhas, mas tens de perceber que eu... preciso de
saber com o que conto. Quero saber o que sentes por mim, quero saber se te importas realmente comigo, eu...
Interrompeu-se, porque ele tinha-a agarrado pelo braço e aproximara-se dela, tanto que podia sentir a sua respiração.
- Sabes que tenho de te matar - ciciou Christian - e ainda não o fiz. Nem tenho intenção de o fazer e não imaginas os problemas que isso me pode trazer. Perguntas se me importo contigo? O que te parece?
Soltou-a, e Victoria respirou fundo, aturdida e com o coração a bater com força. Demorou um pouco a recuperar e, quando o fez, olhou outra vez para Christian. Mas ele tinha-se voltado novamente para a frente e continuava a contemplar a Lua, sério, imóvel como uma estátua de mármore.
- Mas isso não vai mudar as coisas - disse ela em voz baixa.
- O que quer que sintamos os dois, quero dizer. Porque tu continuarás a lutar contra nós. Não é verdade?
- E tu continuarás a esconder-te em Limbhad - respondeu ele sem se voltar. - O que é bom, até certo ponto. Porque de momento funciona... mas vais ver, Victoria, não poderás esconder-te sempre. Se não for eu, virá outro para te matar. Alguém decidiu que deves morrer e não vai parar até que o consiga. A única maneira de escapar da morte é aliares-te a nós. - Voltou-se para ela para a olhar de frente. - Já to disse uma vez, mas volto a repetir: vem comigo.
O olhar dele era intenso, electrizante, mas também sugestivo e cheio de promessas e mistérios velados. Victoria soube que tinha ficado presa àquele olhar e que, acontecesse o que acontecesse, não o esqueceria nunca.
- Para Idhún? - perguntou, num fio de voz.
- Para Idhún - confirmou Christian.
Afastou-se dela, e Victoria sentiu-se imediatamente sozinha e vazia. Perguntou-se como seria Idhún, aquele mundo de que tanto ouvira falar, mas que ainda não conhecia. Recordou então que tinha sido invadido pelos sheks, as monstruosas serpentes aladas.
- Alguma vez viste um shek, Christian? Ele olhou-a como se se risse interiormente.
- Sim, muitas vezes.
- E... como são?
- Não tão horríveis como imaginas. São... belos, à sua maneira. Victoria ia comentar que Jack odiava serpentes, mas mordeu a língua a tempo. Pressentia que não era uma boa ideia mencionar Jack.
Pensar em Jack fê-la lembrar-se de que, se fosse com Christian, não voltaria a ver os seus amigos. Pior ainda, iria atraiçoá-los. E aquela perspectiva parecia-lhe ainda mais horrível do que a ideia de morrer às mãos de Christian. Confusa e envergonhada, desejou por um momento que ele a tivesse matado quando tivera oportunidade. As coisas teriam sido muito mais simples.
Procurou afastar aqueles pensamentos da sua mente.
- E... conheces Ashran, o Necrorrwmte? Em pessoa? Fez-se um breve silêncio.
- Sim - disse Christian cor fim. - Conheço-o muito bem. - Voltou-se para ela, sorrindo. - É meu pai.
Victoria fitou-o, atónita.
- O quê? - conseguiu dizer.
Pôs-se em pé de um salto e retrocedeu alguns passos, receosa. Christian... Kirtash... o filho de Ashran, o Necromante... aquilo apanhara-a completamente de surpresa, no entanto, fazia sentido e explicava muitas coisas.
Sem deixar de sorrir, Christian também se levantou e aproximou-se dela. Victoria quis continuar a retroceder, mas esbarrou contra o parapeito do miradouro e, quando se deu conta, Christian estava muito perto dela, olhando-a nos olhos.
- Achas que não cumpro as minhas promessas? - sussurrou. - Disse-te que, se vieres comigo, serás a imperatriz de Idhún, ao meu lado. Achavas que estava a mentir? O nosso mundo, Victoria, é imenso, é belo, e pertence-nos, a ti e a mim, aos dois, se o quiseres.
- Mas... - murmurou Victoria, desolada. - Não posso...
Por alguma razão, a imagem de Jack não lhe saía da cabeça: Jack a sorrir, Jack a fitá-la com aquele brilho de carinho nos seus olhos verdes...
- Não posso... - sussurrou.
Olhou para Christian, viu que ele continuava a observá-la e pela primeira vez viu claramente que os seus olhos azuis, habitualmente frios como cristais de gelo, estavam cheios de ternura.
- Não... - disse.
Mas, quando Christian se inclinou para a beijar Victoria lançou-lhe os braços ao pescoço e aproximou-se mais dele, fechando os olhos, e deixando-se levar; e, quando os lábios dele tocaram os seus, foi como se uma espécie de descarga fizesse estremecer o seu corpo de alto a baixo. Abandonou-se àquele beijo, sentindo que se derretia e, quando terminou, os dois abraçaram-se, a tremer, sob a Lua cheia. Victoria já não se lembrou de Jack, nem de Alexander, nem de Shail, nem sequer de Idhún, nem de Ashran, o Necromante, quando apoiou a cabeça no ombro de Christian e lhe sussurrou ao ouvido:
- Amo-te.
Ele não disse nada, mas estreitou-a com força. Nenhum dos dois viu a sombra que os observava de uma das janelas da mansão.
A SUA VERDADEIRA NATUREZA
Jack brandiu o bordão, respirando entrecortadamente. O animal observou-o, cautelosamente, mas sem deixar de grunhir baixinho.
- Alexander, não - disse o rapaz, embora soubesse que aquela coisa não era Alexander e, portanto, não ia ouvi-lo.
Na primeira noite, as correntes tinham aguentado por milagre. Porém, naquela segunda noite, o lobo tinha reunido forças e, depois de várias horas a puxar, morder, roer e tentar sacudi-las de cima dele, conseguira libertar-se da sua prisão.
Jack podia tê-lo morto. Poderia ter brandido Domivat; até o mais leve roçar do seu fio teria feito o lobo irromper em chamas, se Jack quisesse.
Mas o jovem não podia enfrentá-lo dessa maneira, porque sabia que sob a pele do animal se ocultava Alexander, o seu amigo, o seu professor.
O lobo grunhiu novamente e saltou na direcção dele. Jack tentou esquivar-se e conseguiu atingi-lo com força; mas o lobo aterrou sobre as quatro patas, sacudiu a cabeça e voltou à carga.
Jack não queria magoá-lo; mas, se não o impedisse, o lobo acabaria por matá-lo.
Era um animal magnífico, um enorme lobo cinzento de fortes patas, presas poderosas e garras afiadas. Mas o seu instinto pedia-lhe sangue e Jack estava demasiado perto. O rapaz brandiu o bordão como se fosse uma espada e atingiu o lobo no estômago. com alguma satisfação, viu-o cair para trás, com um queixume. Mas não era suficiente. com um grito selvagem, Jack atirou-se sobre o animal e caiu sobre o seu lombo para tentar segurá-lo. As patas dobraram-se sob o peso do rapaz, mas a criatura voltou a cabeça e procurou mordê-lo. A sua mandíbula fechou-se em volta do antebraço de Jack, que gritou de dor e tentou sacudi-lo de cima de si. Levantou-se abruptamente e retrocedeu, segurando o braço ferido e observando o lobo com cautela. O bordão tinha ficado no chão, longe dele.
Jack inspirou fundo, sem afastar os olhos do animal, que grunhia baixinho, disposto a saltar sobre ele.
- Alexander... - disse o jovem. - Reage, por favor. Sou eu, Jack.
Sentia-se ridículo. Era óbvio que não conseguia ouvi-lo. Retrocedeu uns passos, à medida que o lobo avançava na sua direcção. Percebeu que se preparava para saltar, e pensou que teria apenas uma oportunidade. Retesou os músculos e esperou pelo momento adequado.
O lobo saltou sobre ele. Jack continuou à espera, calculou a distância e, quando já o tinha quase em cima, afastou-se da sua trajectória girando bruscamente a cintura. Lançou-se sobre o animal, rodeando o seu corpo peludo com ambos os braços, e fê-lo cair ao chão. Os dois rolaram sobre a relva. Uma das garras do lobo rasgou a camisola de Jack, que soltou um gemido de dor quando as unhas do animal rasgaram a sua pele sob a lã. Mas não perdeu a concentração. Fazendo um enorme esforço, rodeou o pescoço do lobo com ambos os braços e apertou-o com força. A criatura gemeu e debateu-se, mas logo a seguir deixou de se mover, porque, quanto mais o fazia, mais lhe custava respirar; mesmo assim, foram precisos mais alguns minutos até que ambos ficassem imóveis.
- Então? - arquejou Jack. - Divertiste-te o suficiente?
O lobo grunhiu baixinho. Jack sentiu que se acalmava e agradeceu, aliviado, a chegada do amanhecer. Ali, em Limbhad, era sempre de noite, mas o rapaz conseguia detectar quando terminava o ciclo do licantropo, porque o lobo parecia sempre enfraquecer antes de se transformar de novo em homem... em Alexander.
Jack soltou o animal, que grunhiu; mas não devia ter forças para se levantar, porque tombou sobre a relva e limitou-se a lançar-lhe um olhar ameaçador.
Jack olhou para o seu relógio, que estava sincronizado com a hora da Alemanha. Eram quase sete. Estava quase a amanhecer. Sacudiu a cabeça, esgotado, e, a coxear, entrou em casa para ir à procura da caixa de primeiros socorros e das roupas de Alexander.
Quando regressou, o lobo continuava sobre a relva, e desta vez nem sequer ergueu os olhos quando Jack lhe colocou uma manta por cima. O rapaz tombou na relva, de barriga para cima; tinha o músculo do braço rasgado por uma mordedura do lobo e o peito ainda lhe ardia, no local onde as garras da criatura o tinham atingido. Mas não tinha forças para se levantar novamente, por isso fechou os olhos e suspirou.
- Que noite, hein?
- E tu que o digas - grunhiu o lobo, com a voz de Alexander. Como diabos consegui partir as correntes?
- Diz-mo tu - murmurou Jack; doía-lhe o corpo todo porque, além das mordeduras, tinha arranhões e contusões em todo o lado. Contudo, não receava vir a converter-se num licantropo, como Alexander, porque o estado deste não tinha sido provocado pela mordedura de outro lobisomem, mas sim por um feitiço de necromancia falhado.
Alexander ergueu-se ligeiramente; voltava a ser ele, mas tinha o cabelo revolto, e os seus olhos ainda brilhavam de maneira sinistra.
- Teremos de procurar outra maneira - disse. Jack bocejou.
- Outra maneira? Correntes mais fortes, queres dizer? Ou um sonífero? Hei, olha, isso é uma boa ideia, porque é que não nos lembrámos disso antes?
Alexander olhou-o por um momento, pensativo; admirava o bom humor com que Jack encarava tudo aquilo.
- Estás em muito mau estado, rapaz. É melhor entrarmos para te curar essas feridas.
Jack levantou-se com esforço e pegou na mala de primeiros socorros.
- Olha o que eu trouxe - disse, mostrando-lha. - Sou um rapaz prevenido.
Alexander sorriu. Enquanto desinfectava a mordedura do braço com água oxigenada, Jack lembrou-se de Victoria.
- Achas que Victoria vai voltar? - perguntou. - Há uma semana que não vem cá.
- Disseste-lhe para não vir, não foi?
- Sim, mas... referia-me a ontem e a hoje, e há sete dias que deixou de aparecer em Limbhad. Pergunto-me se terei dito algo que a aborreceu, porque... bom, ela estava muito esquisita e sei que às vezes sou um pouco desbocado...
- Vai voltar, Jack - tranquilizou-o Alexander. - Não podemos sair daqui se ela não o fizer. E ela sabe disso. Achas que nos abandonaria dessa maneira?
- Tens razão - murmurou Jack. - É só que... às vezes... bom, ultimamente tenho a sensação de que estou a perdê-la e... não sei o que fazer.
Alexander inspirou fundo e fechou os olhos. Perguntou-se o que era suposto dizer. Era evidente que Jack estava a pedir-lhe conselhos, mas esse tipo de coisas nunca fora o seu forte.
- Talvez devesses falar-lhe do que sentes por ela - opinou por fim.
Jack sorriu. Não se surpreendeu por Alexander se ter apercebido. Parecia-lhe que era muito evidente; do seu ponto de vista, o estranho era que Victoria ainda não se tivesse dado conta.
- O que sinto por ela? - repetiu. - Não ia querer sabê-lo, podes ter a certeza. Está muito fria comigo. Dois anos foi demasiado tempo. Está claro que apenas gosta de mim como amigo e, se agora lhe disser tudo o que me acontece por dentro quando penso nela... fugirá a correr.
- Porque é que tens tanta certeza?
- Porque ela está apaixonada por outra pessoa, Alexander.
- Mas olha que há dois anos estava apaixonada por ti. Jack voltou-se para ele, surpreendido.
- Na noite em que me fui embora de Limbhad - explicou Alexander -, Victoria deixou-me sair. E sabes porquê? Disse-lhe que o animal que tinha em mim te mataria. Tu estavas presente quando o disse.
- Sim, lembro-me.
- Nessa altura cheirei o seu medo, o seu pânico, o seu desespero. Não tivera tanto medo de mim até então, até ao momento em que pronunciei aquelas palavras. Se me deixou partir foi para te proteger, Jack. Só a ti.
Jack fechou os olhos, confuso. Recordava-se perfeitamente daquele momento. Apenas umas horas depois, ele próprio tinha partido de Limbhad no encalço do seu amigo, deixando Victoria para trás.
- E tu foste e deixaste-a sozinha - concluiu Alexander, como se tivesse adivinhado os seus pensamentos.
- Isso faz-me sentir ainda mais culpado - murmurou o rapaz. Suspirou e acrescentou, pesaroso: - Naquele momento perdi-a para sempre, não foi?
- Eu não teria tanta certeza. Creio que continuas a ser muito especial para ela.
Jack respirou fundo, mas não disse nada. Era melhor não criar ilusões.
Voltou a olhar na direcção da balaustrada da varanda, onde tinha visto Victoria pela última vez, e imaginou-a novamente ali, vestida de branco, a tocar flauta. Quase podia ouvir a sua melodia e perguntou-se como pudera passar dois anos inteiros sem ela.
- Sabes para que servia essa varanda? - perguntou então Alexander. Como Jack negou com a cabeça, o jovem explicou: - Houve uma época em que os dragões vieram de Idhún à Terra, e de vez em quando vinham a Limbhad. A varanda da casa construiu-se para que pudessem pousar sem problemas.
- Como uma pista de aterragem - murmurou Jack, mas Alexander não o entendeu; o rapaz voltou-se então para ele, lembrando-se de uma coisa. - Como encontraste o dragão, Alexander? Refiro-me ao dragão de que estamos à procura.
- Não me lembro de muitos pormenores - replicou ele, pensativo.
- Procurei esquecer tudo porque, se me capturassem... Não queria que Kirtash lesse na minha mente nada referente ao dragão. Não queria dar-lhe pistas.
- É por isso que nunca falas disso? Alexander assentiu.
- Mas, não sei porquê, já não me parece tão importante.
Jack aguardou. Alexander voltou a recostar-se sobre a relva e começou a falar.
- Só me lembro de que me dirigi para sul, para Awinor, o reino dos dragões. Fomos muitos a partir naquela busca, porque era necessário salvar um dragão, pelo menos um, para que a profecia pudesse cumprir-se.
" Mas não havia mais dragões. Por alguma razão, a luz dos seis astros entrelaçados no firmamento era mortal para eles. Simplesmente... incendiavam-se. E caíam do céu como meteoros. De imediato, Awinor também ardeu. E a terra dos dragões morreu com eles.
Jack sentiu uma espécie de nó no estômago, mas queria conhecer o final da história e não o interrompeu.
- Quando cheguei a Awinor - prosseguiu Alexander -, aquilo já não era mais do que um deserto lúgubre coberto de cinza. Havia restos de dragões por todo o lado. Era assombroso.
" Mas continuei à procura e, não sei como nem por que razão, encontrei um ninho. Em circunstâncias normais, não me teria passado pela cabeça entrar, uma vez que os dragões guardam zelosamente os seus ovos, mas estava desesperado, o tempo esgotava-se e, no fundo, sabia que já não restava nenhum dragão que pudesse castigar-me pelo meu atrevimento.
" Os ovos estavam todos abertos. As crias tinham morrido todas. Algumas nem sequer tinham chegado a sair completamente da casca.
" Mas ao fundo vi um ovo intacto e algo que irrompia de dentro dele. Esperei... e, quando a casca se quebrou, saiu do seu interior uma cria de dragão. Estava fraca e trémula, mas viva. E era um dragão dourado.
- O que tem de especial um dragão dourado?
- São uma raridade, Jack. Normalmente os dragões não têm cores metálicas. Mas às vezes nasce um dragão com escamas de tons dourados ou prateados, um entre dez mil, talvez... Não me perguntes porquê, mas são especiais. Os dragões crêem que as crias que nascem com essas cores estão destinadas a grandes feitos. E por isso soube, de alguma maneira, que aquele dragão viveria e que era o dragão da profecia.
" E o resto já sabes. Levei-o para a Torre de Kazlunn. Sobreviveu à viagem. E - acrescentou, após um breve silêncio - espero que tenha sobrevivido à Terra.
Jack assentiu e ficou calado por um momento, a pensar. Repentinamente perguntou:
- Deste-lhe nome? Alexander sorriu com nostalgia.
- bom, nunca o contei a ninguém - confessou -, porque supostamente era algo entre ele e eu. Chamei-lhe... não te rias... chamei-lhe Yandrak.
Jack riu-se. Yandrak significava "depois" em idhunaico.
- Nunca tive muita imaginação - desculpou-se Alexander.
- É um nome apropriado - opinou Jack. - É o que é. Onde achas que estará Yandrak agora? O que achas que estará a fazer?
- Talvez - sorriu Alexander -, talvez esteja a contemplar as estrelas, como nós.
- As estrelas de Idhún ou as da Terra?
- As estrelas, só isso.
Victoria voltou a Limbhad dois dias mais tarde. Jack pensou que ela parecia mais feliz do que no seu último encontro, na varanda. Mas, por alguma razão, evitava-o e não o olhava nos olhos, e Jack não sabia o que pensar. Continuava a achar que Victoria sentia algo por outra pessoa, mas... porque é que se comportava assim com ele? Ambos os factos pareciam não estar relacionados. "Tenho de falar com ela", disse o rapaz para si mesmo.
A ocasião surgiu muito rapidamente. Uma das primeiras coisas que Victoria fez foi curar as feridas de Jack e, para isso, levou-o ao seu refúgio, debaixo do salgueiro, onde a sua magia funcionava melhor. Jack contemplou-a em silêncio enquanto a magia da sua amiga percorria o seu corpo. Era uma sensação doce, cálida e muito agradável. O rapaz desejou que aquele momento não acabasse nunca. Mas as suas feridas estavam a sarar e, quando a cura terminasse, regressariam a casa, e a oportunidade teria passado. De modo que, quando ela terminou, e antes que dissesse algo, Jack perguntou:
- Victoria, estás zangada comigo?
- O quê? - Victoria olhou-o, confusa. - Não, Jack, não estou zangada contigo.
- Então porque te comportas assim? Porque não podes olhar-me de frente nem estar na mesma divisão que eu?
Victoria virou-lhe as costas bruscamente. Mas Jack já tinha visto os seus olhos cheios de lágrimas. Sentou-se junto dela e pôs-lhe um braço por cima dos ombros.
- Lamento, não queria ser brusco. Por favor, diz-me o que se passa. Não gosto de te ver assim. Se a culpa é minha...
- A culpa não é tua - suspirou ela.
Recostou-se contra ele e fechou os olhos. Deixou que Jack a reconfortasse com o seu abraço.
- Fiz algo muito mau, Jack - sussurrou Victoria. - Não mo irias perdoar nunca.
- Que... que disparate - replicou ele, confuso. - Toda a gente faz asneira de vez em quando e, além disso, de certeza que não é assim tão grave.
- Sim, é. E o pior de tudo é que não pude... ou não soube evitá-la.
- Queres... queres contar-me?
- Quero contar-te - assentiu ela -, mas sei que não suportarei olhar-te de frente depois. Não estou preparada, Jack. Não quero perder-te.
Jack fechou os olhos e abraçou-a com força.
"Eu também não quero perder-te", pensou. "E sinto que vais... para muito longe. Gostaria de saber onde estás agora. E se posso acompanhar-te."
Mas não o disse em voz alta.
- Não vais perder-me, Victoria - assegurou-lhe. - Estou aqui, vês? E estarei aqui... sempre que precises. À espera de que voltes... de onde quer que estejas agora.
- Mas... mas estou aqui - murmurou ela, perplexa. Jack negou com a cabeça.
- Não, não estás aqui. Estás muito longe... onde eu não posso alcançar-te.
Os olhos de Victoria encheram-se de lágrimas.
- Tens razão, Jack. Estou muito longe... no último lugar onde gostarias de me ver. Por isso... não mereço que me fales assim, não mereço o teu carinho nem a tua amizade.
Afastou-se bruscamente dele, levantou-se de um salto e desatou a correr em direcção à casa. Jack levantou-se.
- Victoria! - chamou, mas ela não parou.
Não podia deixá-la assim. Não suportava vê-la sofrer daquela tnaneira, queria embalá-la nos seus braços, tranquilizá-la, sussurrar-lhe ao ouvido palavras de consolo... fazer o que fosse para que se sentisse melhor.
Correu atrás dela, procurou alcançá-la, mas ela já tinha entrado no edifício. Jack pressentiu onde podia encontrá-la. Subiu rapidamente à biblioteca e ainda a viu a roçar os dedos pela esfera onde se manifestava a Alma de Limbhad. Jack sabia que regressava a sua casa, mas receou que demorasse vários dias a voltar, como da última vez, e ele não podia esperar tanto tempo.
Correu na direcção dela e estendeu a mão para a segurar pelo braço, mas não chegou a tocar-lhe. No entanto, sem querer, introduziu a mão na esfera, e a sua luz deslumbrou-o. Sentiu que tudo girava e que a Alma lhe perguntava, sem palavras, onde desejava ir. Jack percebeu a sua confusão, mas ele próprio também não conseguia explicar como tinha conseguido contactar com ela e supôs apenas que a magia de Victoria continuava activa na altura em que ele havia tocado a esfera. "com Victoria", pensou, mas logo corrigiu: "Para casa de Victoria."
Quando tudo deixou de dar voltas, encontrou-se num quarto escuro e silencioso. Olhou em volta, incomodado, e reconheceu algumas das coisas da sua amiga, pelo que presumiu que se encontrava no quarto que Victoria tinha na mansão da avó. Procurou a rapariga, mas não estava ali. Viu que o despertador da mesa-de-cabeceira marcava duas da madrugada. Perguntou-se onde teria ido Victoria e se se tinha enganado ao pedir à Alma que o levasse até ali.
Reflectiu. Tinha duas opções: esperar ali até que Victoria voltasse (e arriscar-se a ser descoberto pela sua avó), ou sair para explorar os arredores e ver se a encontrava (e, de qualquer maneira, arriscar-se a ser descoberto pela sua avó).
Optou pela segunda alternativa. A casa parecia estar em silêncio; estavam todos a dormir e, por outro lado, se tinham de o encontrar ali, preferia que fosse em qualquer parte excepto no quarto de Victoria. Seria muito embaraçoso.
Assim, saiu para o corredor, tentando não fazer barulho, e procurou a porta de saída.
Victoria desceu rapidamente pela escadaria de pedra até ao pinhal que se estendia para lá da mansão. Por alguma razão, o bosque chamava-a. Desejava ter permanecido debaixo do salgueiro de Limbhad por mais algum tempo, mas, simplesmente, não podia estar perto de Jack sem que os remorsos a atormentassem cada vez mais. Sentiu uma terna emoção por dentro ao recordar a sinceridade e a doçura com que ele lhe dissera: "Estarei aqui... sempre que precises. À espera de que voltes... de onde quer que estejas agora." Mas ele não sabia... porque, se soubesse...
Deixou-se cair sobre a relva, debaixo de uma árvore, a tremer.
Sentia-se confusa e desorientada. As emoções eram mais fortes do que ela e custava-lhe pensar com clareza.
- É duro pensar que estás a trair a tua gente.
A voz de Christian sobressaltou-a. Ergueu a cabeça e viu-o de pé, junto dela; apenas uma sombra recortada contra a luz das estrelas.
- Sim - murmurou Victoria. - Sabes como me sinto? Christian sentou-se junto dela e assentiu em silêncio.
- Mas como podes sabê-lo?
- Já te disse uma vez que tu e eu não somos assim tão diferentes. Victoria recordou então como a sua música lhe tinha chegado ao coração. E levantou a cabeça para lhe perguntar algo que há muito tempo tinha em mente.
- Porque cantas? Christian encolheu os ombros.
- Talvez por ter necessidade de expressar uma série de coisas. Gostas da minha música?
- Sim - confessou ela, com alguma timidez. - Gostava muito antes de saber que eras tu quem cantava. Gosto, sobretudo, de "Beyond". Não consigo parar de a ouvir.
Christian sorriu.
- "Beyond"... - repetiu. - Compu-la a pensar em ti. O coração de Victoria acelerou-se.
- Já pensavas em mim na altura?
- Pensei muito em ti - respondeu ele -, desde aquela noite em que pude matar-te e não o fiz. Aquela noite em que devia matar-te. Mas intrigas-me, Victoria, e fascinas-me, e de cada vez que olho para dentro de ti sinto vontade de te proteger.
Victoria suspirou e apoiou a cabeça no ombro de Christian. Ele hesitou, como se o contacto não lhe agradasse, mas não se mexeu.
- Achas que é amor? - atreveu-se a perguntar.
- Não acho necessário dar-lhe um nome - replicou ele. - É o que é.
- Sim - murmurou Victoria -, suponho que sim. Mas há tantas coisas em ti... que não compreendo, que me fazem medo... e que não posso perdoar.
- Eu sei.
- E não sei como posso sentir o que sinto, sabendo o que sei de ti. Christian voltou-se para olhar para ela.
- São mais as coisas que não sabes de mim do que as que achas que sabes - disse com suavidade. - Mas a pergunta é: o que te importa mais, a minha vida e as minhas circunstâncias ou os teus sentimentos?
Ela hesitou.
- É tudo importante - defendeu-se.
- E tudo importante - repetiu Christian em voz baixa. - Até que ponto? Eu também mo perguntei. Sabendo o que sei de ti, deveria ter-te matado. Deveria fazê-lo agora mesmo... mas não o fiz e começo a admitir que nunca o farei. E tudo porquê? - Fitou-a de novo, intensamente. - Por um sentimento. Diz-me, vale a pena?
- Não sei. Eu... oh, não sei. A razão diz-me que devo odiar-te. Mas o coração...
Não terminou a frase.
Christian pôs-se de pé repentinamente, e Victoria imitou-o.
- O que posso esperar de ti? - perguntou-lhe.
- Perguntas o que te ofereço? - disse ele, esboçando um sorriso. Não estarei sempre ao teu lado. Não serei um companheiro com o qual possas contar a qualquer momento. Sempre fui um solitário, não fui feito para compartilhar a minha vida com outra pessoa. Mas, apesar de tudo, esteja onde estiver, terei um olho em ti. E irei proteger-te com a minha vida se for preciso. Por um sentimento.
Victoria calou-se, confusa.
- Que posso esperar eu de ti? - perguntou ele.
- Pedes-me que abandone a Resistência - murmurou ela. - Os meus amigos.
- Falaste de mim aos teus amigos?
- Não - confessou Victoria. - Não o entenderiam.
Christian assentiu, sem uma palavra. Voltou-se para ela, olhou-a nos olhos, acariciou-lhe o rosto com suavidade, com doçura. Victoria estremeceu.
- Gosto quando fazes isso - sussurrou.
- Eu sei - limitou-se ele a dizer.
- Ainda que volte logo para casa - disse Victoria -, ainda que recupere o juízo e me dê conta de que não devia estar aqui... ainda que decida regressar a Limbhad e voltar a lutar contra ti... agora... são os meus sentimentos que mandam.
- Eu sei - repetiu Christian, suavemente. - Então, esquece agora quem sou e o que fiz, e deixa-te levar pelo coração.
Inclinou-se para a beijar, e Victoria encostou-se mais a ele, sentindo, uma vez mais, que o seu coração ia explodir. Fechou os olhos e desfrutou da sensação, desejou que aquele momento não acabasse nunca.
Mas acabou.
Victoria sentiu a tensão de Christian, sentiu a sua ira contida, apenas um instante antes de ele se afastar bruscamente dela. E, quando abriu os olhos e olhou na direcção do caminho que dava para a casa, o universo pareceu congelar.
Porque Jack estava ali a olhar para eles.
Jack não pensou nem por um momento que a culpa fosse de Victoria. Apesar de os ter surpreendido numa atitude tão terna como a de qualquer casal de namorados, na realidade a única coisa que via era que Kirtash estava com Victoria, tinha-a seduzido, tinha-a enganado, e aquilo não podia ser bom. Receou que ele lhe fizesse mal de alguma maneira, que magoasse a pessoa que mais lhe importava no mundo. O seu instinto disparou e disse-lhe que Victoria estava em perigo.
E isso enlouqueceu-o.
E, apesar de estar completamente desarmado, lançou-se sobre o seu inimigo com um grito selvagem, para o matar antes que fizesse algum mal à amiga, para acabar com ele antes que Victoria saísse prejudicada.
Foi tudo muito rápido. Victoria viu como Jack chocava contra Christian e ambos rolavam pelo chão.
- vou matar-te! - uivou Jack.
Victoria ficou parada, sem saber o que fazer. Vira-os lutar anteriormente, com espadas, executando movimentos ágeis e elegantes. Mas agora lutavam a murro, a pontapés, como podiam.
Christian debateu-se ferozmente e conseguiu tirar Jack de cima de si. De alguma maneira, tinha conseguido sacar um punhal de alguma parte e agora brandia-o em riste. Nos seus olhos de aço cintilava o brilho da morte, e Victoria soube que, desta vez, não hesitaria em utilizar a arma.
Mas Jack estava descontrolado e algo no seu interior explodiu como um vulcão.
Conhecia a sensação. Experimentara-a apenas duas ou três vezes na sua vida, mas não a esquecera. Quando se deu conta do que lhe estava a acontecer, quis voltar atrás, mas já era tarde. Tinha algo dentro de si que exigia ser libertado. Jack gritou, sem poder evitá-lo.
E o seu corpo gerou em seu redor uma espécie de anel de fogo, que se expandiu pelo ar como uma onda mortífera.
Jack viu então algo que o perseguiria durante muito tempo nos seus piores pesadelos. Viu o rosto aterrorizado de Victoria que, paralisada de medo, tinha os olhos fixos na chama incendiária que Jack enviara directamente para ela. O rapaz só conseguiu gritar o seu nome:
- VICTORIA! !
Foi tudo muito confuso. Victoria sentiu que Christian se lançava sobre ela para a proteger do fogo com o seu próprio corpo, e os dois caíram ao chão. O fogo passou por cima de ambos, atingiu as árvores mais próximas e fê-las irromper em chamas.
A rapariga tentou levantar-se, aturdida. Christian já se tinha posto em pé, com a agilidade que lhe era característica, e, apesar de estar de costas para Victoria, ela percebeu que fervia de ira. Sentiu-se inquieta; nunca o tinha visto assim, mas acreditava que sabia o que o deixara tão furioso.
Jack, muito desconcertado, ficara de pé, um pouco afastado. Toda a sua ira parecia ter-se esfumado; sentiu-se imediatamente fraco, e tremiam-lhe tanto as pernas que caiu de joelhos sobre a relva. Não sabia o que lhe tinha acontecido, nem porquê. E, no fundo, não lhe importava.
Victoria estava bem, a salvo, e isso era a única coisa em que conseguia pensar.
Nisso e no facto de Kirtash ter salvado a vida da sua amiga... uma vida que ele, que tanto a amava, pusera em perigo, procurando protege-la. Era demasiado irónico... e desconcertante. Por isso olhou para Kirtash, aturdido, sem perceber a cólera que ardia nos olhos do seu inimigo. Estava demasiado confuso para perceber o perigo que o ameaçava.
Victoria, por sua vez, soube o que ia acontecer e agarrou Christian pelo braço para tentar impedi-lo. Mas ele libertou-se dela com impaciência, como se se tivesse esquecido de que ela estava ali, e correu na direcção de Jack. O rapaz levantou-se, vacilante. Christian parou a alguns metros dele e observou-o, como se o visse pela primeira vez, com um esgar de ódio infinito.
- Tu! - gritou. - Devia ter imaginado!
Victoria correu na direcção deles, procurando evitar o inevitável, e conseguiu chegar junto de Jack. Mas, apesar de tudo, não estava preparada para o que aconteceu a seguir.
O corpo de Christian, que ainda tremia de cólera, entrou em convulsões momentaneamente e começou a transformar-se. Não foi uma transformação gradual; de súbito, duas imagens sobrepuseram-se num mesmo lugar e fundiram se até que só restou uma. E a que restou não era a figura de um jovem de dezassete anos, mas sim a de uma criatura fantástica, uma gigantesca serpente que se erguia diante de Jack, com o seu corpo anelado vibrando de ira e umas imensas asas com membranas estendidas sobre eles, cobrindo o céu nocturno.
Jack olhou para ele, com horror. Ele e Victoria retrocederam alguns passos, mas Victoria tropeçou e, ao cair, arrastou Jack consigo. Os dois ficaram sentados sobre a relva, paralisados de medo, sem serem capazes de afastar os olhos da enorme serpente. Era uma visão aterradora e surpreendente, porque, apesar de tudo, aquela criatura era fascinante e magnífica, e possuía uma beleza misteriosa e letal. Os sheks tinham nascido das entranhas do planeta, quando Idhún era ainda muito jovem, e eram os filhos predilectos do deus negro, praticamente semideuses, talvez acima dos próprios dragões.
- Christian? - sussurrou ela, sem conseguir acreditar.
- Kirtash - disse Jack, sombrio.
A serpente ergueu a cabeça, abriu ainda mais as asas e lançou uma espécie de silvo de liberdade, como se tivesse estado encerrada durante muito tempo num lugar incómodo e pequeno e agora desfrutasse de novo do espaço de que necessitava.
Depois, fixou os seus olhos irisados em Jack. E Victoria descobriu naqueles olhos o brilho do olhar de Kirtash, Christian, e compreendeu com horror quem era... o que era exactamente... o ser pelo qual acreditava ter-se apaixonado.
O shek não pareceu reparar nela. Destilava ódio e ira por todas as suas escamas, e Victoria sabia, de alguma forma, que era Jack, a sua presença, talvez a sua mera existência, o que o tinha alterado daquela maneira. Jack tinha ficado quieto, incapaz de se mover ou de afastar os olhos do olhar magnético da criatura. Ou não tinha forças para se mover, ou então o shek tinha-o hipnotizado, de alguma forma.
Victoria soube que o amigo ia morrer e não pôde suportá-lo. Lançou-se sobre ele e protegeu-o com o seu próprio corpo. Depois, fechou os olhos à espera da morte.
Jack tornou-se vagamente consciente da sua presença. Sentia-se estranho, como se estivesse a viver um pesadelo do qual fosse acordar a qualquer momento. Aquela serpente era a encarnação de todos os seus medos, o alvo de todo o seu ódio. O que provocava nele era demasiado intenso para ser real.
O shek pareceu reagir. Olhou para Victoria e, embora ela não o pudesse ver, porque continuava com os olhos fechados, sentiu aquele calafrio e reconheceu-o: era o mesmo que a percorria quando percebia que Christian, ou Kirtash, andava por perto. Estava demasiado aterrorizada para analisar a situação com clareza, mas sabia que o seu coração estava a sangrar porque tinha perdido Christian, ou o que ela acreditava ser Christian, para sempre.
"Victoria", sussurrou uma voz na sua mente. Ela tremeu de medo. Era a voz de Christian, tê-la-ia reconhecido em qualquer parte. Mas tinha um timbre inumano, um tom gelado e indiferente que a aterrorizava.
"Victoria", repetiu ele. "Afasta-te."
A rapariga atreveu-se a abrir os olhos.
O shek continuava ali, erguendo-se diante dela, terrível e ameaçador. Mas tinha fechado um pouco as asas e a vibração do seu corpo era menos intensa.
"Afasta-te, Victoria", repetiu a criatura na sua mente.
"Não quer matar-me", compreendeu, de imediato. Voltou-se para o shek, cautelosa.
- Es... Christian?
"Sou Kirtash", respondeu ele.
- Então, esta é... a tua verdadeira natureza. "Surpreendida? E agora sai daí, Victoria. Tenho trabalho a fazer." Victoria inspirou fundo, engoliu em seco e negou com a cabeça.
- Não. Não o vou permitir. Se queres matar Jack, antes terás de me matar a mim.
Aquelas palavras fizeram Jack reagir, despertando-o do seu estranho transe. Continuava sem poder mexer-se, mas tornou-se, por fim, consciente da situação. Fez um esforço sobre-humano para se mexer e afastar Victoria, para a pôr a salvo, mas não foi capaz. O seu corpo continuava paralisado. Tentou falar; e isso conseguiu fazer:
- Não, Victoria - sussurrou. - Faz o que ele diz, eu... vou enfrentá-lo...
- Jack, não podes mexer-te. Não sei o que fizeste, mas ficaste sem forças, e...
- Victoria, por favor - suplicou ele; a ideia de a perder era muito mais insuportável do que a certeza de que ia morrer às mãos daquela criatura -, não deixes que te apanhe; vai-te embora, foge para longe.
Ela fitou-o intensamente e afastou-lhe da testa uma madeixa de cabelo, como costumava fazer.
- Sem ti? Nunca, Jack.
O rapaz estremeceu. Definitivamente, aquilo não podia ser real. "Que comovente", disse Kirtash, mas não parecia de todo comovido. "vou tentar explicar-te, Victoria: ele tem de morrer para que tu vivas."
- O quê? - Victoria voltou-se para ele. - O que queres dizer com isso? "Se Jack morrer, Victoria, tu estarás a salvo. Disse-te que te protegeria e é isso que vou fazer, se me deixares."
- Matando Jack? É essa a maneira de me proteger? - Victoria levantara a voz e tinha os olhos cheios de lágrimas. - Tu... maldito impostor! Era isto que querias desde
o princípio, não era? Chegar até ele para o matar! Usaste-me! Patife!
"Podes pensar assim se te faz sentir melhor", disse o shek, e Victoria fechou os olhos, perdida de dor, recordando como, apenas uns dias antes, Christian pronunciara palavras semelhantes. Mas como podia ser ele mesmo? Victoria compreendia agora que alguém pudesse assassinar como Kirtash; conhecia os seus misteriosos poderes telepáticos, percebia porque podia matar com o olhar e como nada conseguia sobreviver-lhe. Bastava apenas contemplar a criatura que se erguia diante dela para compreender tudo isso.
Mas agora, mais do que nunca... não entendia como podia tê-la beijado com tanta ternura, como havia tanta sinceridade nas suas palavras, como era capaz de o olhar daquela maneira tão intensa. Poderia falar de sentimentos... alguém como Kirtash, o shek, a serpente alada? Havia nele algo de humano ou era apenas uma ilusão?
Mas Victoria não tinha tempo de o descobrir. Fosse como fosse, cometera um erro terrível e não permitiria que Jack morresse por sua causa.
- Não quero a vida que tu me ofereces, se tiver de ser em troca da de Jack - replicou, a tremer -, de modo que podes deixar-nos partir aos dois... ou matar-nos a ambos. Tu mesmo.
Sabia qual ia ser a resposta, e Jack também sabia. com um esforço sobre-humano, conseguiu levantar-se e procurou afastar Victoria, mas ela não o permitiu.
- Victoria - suplicou Jack. - Maldição, vai-te embora. Não quero que...
- Não me vou embora sem ti; é a minha última palavra.
Jack tentou replicar; mas ela abraçou-o com todas as suas forças e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Por favor, perdoa-me. - E depois fechou os olhos. Houve um longo e tenso silêncio.
- Não estás preparada para entender - disse Kirtash com suavidade. Victoria abriu os olhos, surpreendida. Aquela frase não soara na sua mente, mas sim nos seus ouvidos. Voltou-se.
E viu um jovem de cabelo castanho-claro e olhos azuis, que olhava para ela, sombrio. O shek, a serpente alada, tinha desaparecido.
- Chris... Kirtash? - murmurou, confusa.
Ele não disse nada. Lançou um olhar a Jack, e o rapaz encarou-o, desafiador. Depois, voltou-se novamente para Victoria.
- Não poderás protegê-lo sempre, e sabes disso.
Victoria quis chorar, quis gritar, quis insultá-lo, atingi-lo, abraçá-lo... mas ficou ali a olhar para ele, confusa, ainda a tremer nos braços de Jack.
Kirtash dedicou-lhe um dos seus sorrisos, um sorriso irónico e amargo, deu meia-volta e perdeu-se na escuridão da noite. E, para seu desgosto, Victoria sentiu como se algo no seu interior partisse com ele e não fosse voltar nunca mais.
"Não poderás protegê-lo sempre, e sabes disso."
Jack e Victoria ficaram quietos por um momento, tensos. Mas Kirtash não regressou.
Jack sentiu-se de imediato livre da misteriosa paralisia que o tinha impedido de se mover. Respirou fundo e olhou para Victoria.
Então os dois, ainda a tremer e com os olhos cheios de lágrimas, abraçaram-se com força.
"O TEMPO QUE FOR PRECISO"
- Kirtash? - gritou Alexander. - Enlouqueceu? Onde está? - perguntou, furioso, voltando-se em todas as direcções. - Quero falar com ela!
Deparou com Jack, que se plantara diante da porta, impedindo-o de sair.
- Está debaixo do salgueiro. Mas deixa-a em paz. Já sofreu bastante.
- Deixa-me passar, Jack - ordenou Alexander, colérico.
Os seus olhos brilhavam perigosamente, a sua expressão era sombria e ameaçadora e a voz soava muito mais rouca do que era habitual nele. Jack sabia o que isso significava; geralmente, o seu amigo conseguia controlar o animal, mas para isso deveria primeiro controlar as suas emoções. E a raiva, a ira ou o ódio eram algumas das emoções que libertavam a criatura que habitava nele.
Qualquer pessoa teria ficado aterrorizada ante a sua mera presença, mas Jack permaneceu de pé diante dele, sereno e seguro de si mesmo, olhando-o nos olhos, sem se preocupar com o brilho selvagem que os iluminava. Alexander pareceu acalmar-se um pouco.
- Fazes ideia do que ela fez? - perguntou, com maus modos.
- Sim, salvou-me a vida - disse Jack suavemente, mas ainda a fitá-lo, firme e resoluto.
Alexander enfrentou o seu olhar por um momento, e o brilho dos seus olhos apagou-se.
- Diabos, rapaz, não entendo nada. Vais ter de mo explicar com mais calma.
Deixou-se cair sobre o cadeirão e passou uma mão pelo cabelo grisalho, constrangido. Jack fitou-o, entendendo-o. Também ele estava confuso.
Sentou-se junto do amigo.
- Acontece que - disse - Kirtash é um shek.
- Sim, isso já mo tinhas dito. Por isso estou tão perplexo.
- Porquê?
- Porque tem forma humana, Jack, não tens olhos na cara? Os sheks são serpentes gigantes que...
- Eu sei, já o vi sob a sua verdadeira forma...
- Aí está, Jack: não têm uma forma verdadeira e outra falsa. Quando muito podem criar ilusões, podem fazer com que os vejas sob outra forma. Mas são ilusões, entendes? As ilusões são apenas imagens, não podes tocá-las, não podes lutar contra elas, não podes feri-las nem podem ferir-te.
" Os sheks mais poderosos, esses sim, podem adoptar forma humana, mas só temporariamente. E nota-se a milhas que são sheks.
- bom, sempre suspeitámos que Kirtash não era completamente humano, não?
- Não completamente, Jack, é essa a questão. Se fosse um shek, como dizes, não o teríamos suspeitado, teríamos sabido desde o princípio. Por outro lado, nenhum shek permanece tanto tempo sob forma humana. Consideram-se superiores a nós, entendes? Acham-no humilhante. Em contrapartida, vi Kirtash muito à vontade sob a camuflagem de um corpo humano.
Os dois permaneceram em silêncio durante algum tempo, enquanto Alexander procurava entender o que estava a acontecer e Jack assimilava aquela nova informação.
- Como sabes tantas coisas sobre os sheks? - perguntou finalmente. Alexander encolheu os ombros.
- Estudei os dragões - disse. - Era lógico que também lesse sobre os sheks, a única raça de Idhún capaz de os enfrentar e sair vitoriosa.
- Nunca tinha visto um shek - disse Jack em voz baixa. - Não sei se serão todos como Kirtash, mas é....
- Aterrador? - ajudou Alexander. - São de facto criaturas tremendas. Ainda não consegui compreender como é que vocês saíram desta com vida.
- Foi por Victoria. Ele não quis matá-la, entendes? Podia ter acabado com os dois num segundo, estávamos indefesos e, simplesmente... deu meia-volta e foi-se embora. Pôde escolher entre matar-nos aos dois e deixar-nos viver, e escolheu... não entendo - concluiu, abanando a cabeça. - Porque protege Victoria?
- Os sheks possuem uma inteligência tortuosa e malévola. Muito superior à humana, mas tortuosa, no fim de contas. Não procures decifrar por que razão agem como agem, porque não conseguirás.
- Suponho que não. Acontece que... - hesitou. - Será que sente realmente algo por ela?
- Acorda, Jack, é um shek. Não pode sentir nada por uma mulher humana.
- E se tivesse algo de humano? - insistiu Jack.
- Por acaso importa?
Jack demorou um pouco a responder:
- Sim, importa - disse por fim, em voz baixa. - Porque Victoria apaixonou-se por ele.
- E isso dói-te, não?
Jack levantou-se bruscamente e voltou-lhe as costas, para que Alexander não lesse a verdade no seu rosto. Durante uns instantes contemplou em silêncio o céu nocturno através da janela.
- Tem de ter algo de humano - disse, sem responder à pergunta. Victoria não se apaixonaria por uma criatura como aquela.
Alexander não respondeu. Levantou-se também do cadeirão e colocou-se junto de Jack, pousando uma mão sobre o ombro do amigo, num gesto tranquilizador.
- Duvido muito que fosse amor - disse. - Já te disse que os sheks são tortuosos. E têm poderes que nós desconhecemos. Hipnotizou-a, seduziu-a, subjugou-a, ou como queiras chamá-lo. Não era mais do que um feitiço, uma ilusão.
Mas Jack abanou a cabeça. Tinha percebido a dor de Victoria naquela noite, e era uma dor real, não uma ilusão.
- O que não consigo explicar é porque é que ela se deixou enganar
- prosseguiu Alexander, franzindo o sobrolho. - Achava-a mais forte.
- Não sejas duro com ela, Alexander - protestou Jack. - Está certo, eu também me sinto incomodado, mas tu não viste aquele... ser. Se tem poder para hipnotizar as pessoas, como sugeres, duvido muito que mesmo Victoria conseguisse resistir a isso.
"Mas tenho de descobrir", disse o rapaz para si mesmo. "Preciso de descobrir se o que aconteceu entre eles os dois foi real ou, pelo contrário..."
- No entanto, há algo que me preocupa - disse então Alexander.
- De que se trata?
O jovem moveu a cabeça.
- Kirtash é um shek. Isso quer dizer que não o podemos enfrentar.
- Porquê?
- Porque é uma criatura poderosa, Jack. Nenhum humano sobrevive a um confronto com um shek. É uma luta muito desigual.
- Nós sobrevivemos.
- Mas mais cedo ou mais tarde perderemos. Ashran enviou um shek para encontrar o dragão e o unicórnio. Apenas um. Porque não precisa de mais. Entendes? Sabe que, por muitos que sejamos, não temos nenhuma possibilidade de o vencer. A Resistência está condenada ao fracasso.
"Não poderás protegê-lo sempre, e sabes disso."
Victoria abanou a cabeça para tirar aquelas palavras da mente. Envolveu-se mais nas mantas, procurando esconder-se do mundo, procurando esquecer. Mas ainda tinha tudo o que acontecera à flor da pele, e as imagens daquela terrível noite regressavam uma e outra vez para a atormentar.
- Olá - disse Jack.
Ela demorou um pouco a responder.
- Olá - disse por fim, em voz baixa.
Jack sentou-se junto dela, sobre a raiz grande, como costumava fazer. Fitou-a intensamente. Ainda lhe custava assimilar tudo o que acontecera. Victoria tinha-se apaixonado por Kirtash, o seu inimigo, um assassino que, para cúmulo, nem sequer era humano, mas sim... uma enorme serpente. Não havia nada no mundo que pudesse aborrecer mais Jack.
No entanto, para lá dos ciúmes, da raiva, da frustração, o que mais lhe doía era que Kirtash magoara Victoria, que ela estava a sofrer por culpa dele. Compreendeu que, mais do que zangas ou reprimendas, o que ela precisava naqueles momentos era de um amigo, um ombro sobre o qual chorar. De modo que decidiu engolir o seu orgulho e tentar ajudá-la em tudo o que pudesse. Ainda que, uma vez mais, tivesse de guardar para si os seus próprios sentimentos a esse respeito.
- Como estás? - perguntou-lhe, com suavidade.
- Não sei ao certo. Aconteceram demasiadas coisas e... - A voz quebrou-se-lhe. Voltou-se para Jack, para lhe perguntar, mudando de assunto: - Alexander está muito zangado?
Jack encolheu os ombros.
- Há-de passar-lhe. Victoria desviou o olhar.
- Fui uma estúpida - murmurou.
- Enganou-te, Victoria. Pode acontecer a qualquer um.
- Não, maldição, eu sabia quem era, sabia que...
- Sabias que era um shek? Victoria ficou em silêncio.
- Não - disse por fim. - Isso não sabia. Sabia que era um assassino, até sabia... sabia que é filho de Ashran, o Necramante. E ainda assim...
- Espera, espera... filho de queml
- De Ashran, o Necromante. Foi o que me disse.
- Pois... de certeza que te mentiu, Victoria, porque Ashran é humano.
- Sim - disse ela em voz baixa. - E Kirtash não é. Jack hesitou.
- Porque é que não quer fazer-te mal? - perguntou.
- Não sei. Até hoje, pensava que era porque sentia algo por mim. Agora... não sei.
Jack fitou-a e teve vontade de a abraçar, mas não sabia se ela aprovaria. Era estranho, pensou de imediato. Tinham sempre tido confiança suficiente para oferecer um abraço de consolo um ao outro quando era preciso. Mas, agora que sabia que Victoria sentira algo de especial por outra pessoa, por muito que lhe fervesse o sangue ao pensar que essa pessoa... ou o que quer que fosse... tinha sido Kirtash, Jack sentia-se a mais, como se já não houvesse lugar para ele no coração de Victoria. De modo que permaneceu quieto, sem ousar aproximar-se dela.
- Tu sentias algo por ele, não? - atreveu-se a perguntar.
- Isso era o que pensava. - Fitou-o, com os olhos muito abertos, quase a chorar. - Lamento, Jack. Encontrava-me com ele em segredo, traí a Resistência e...
- E salvaste-me a vida. Eu só consigo pensar nisso, Victoria. Só consigo pensar que ele te deu a possibilidade de salvar a tua vida e tu decidiste que preferias morrer comigo.
Victoria abriu a boca para dizer algo, mas não lhe saíram as palavras. Corou e olhou para outro lado, aturdida.
- Importo-me contigo - conseguiu dizer finalmente, em voz baixa.
- Importo-me muito. Achas que poderia afastar-me e deixar que esse monstro te matasse... sobretudo sabendo que era por minha culpa? Nunca mo perdoaria.
Jack sentiu que o seu desejo de a abraçar aumentava até se tornar insuportável. Engoliu em seco. Estendeu a mão para lhe tocar no braço, mas ela afastou-se e olhou-o como uma corça assustada.
- Lamento - murmurou Jack. - Só queria...
"Não sejas estúpido", repreendeu-se a si mesmo. "Não cries ilusões. Ela reparou em Kirtash e não em ti." Voltou a cabeça bruscamente, para que Victoria não visse reflectida no seu rosto a dor do seu coração.
Mas ela viu. Ficou a olhar para ele, sem compreender o que estava a acontecer.
- O que... Jack, não te entendo, não sei o que queres. Já sabes o que fiz, porque é que não me odeias? Porque és tão bom para mim? Porque finges que não te importa o que aconteceu? Porque é que não estás zangado, como Alexander?
- São demasiadas perguntas - protestou Jack, algo confuso; fitou-a e viu que não lhe poderia responder sem confessar o que sentia realmente por ela. - Além do mais - acrescentou -, não creio que seja o momento apropriado.
Victoria ficou a olhar para ele, angustiada.
- O momento apropriado? - repetiu. - Não, por favor, preciso que me respondas. Já sabes o que eu te estava a esconder e preciso de saber o que pensas, porque...
Jack fê-la calar-se, com suavidade, colocando um dedo sobre os seus lábios.
- Está bem, está bem, não te preocupes. Sabes que sou péssimo a explicar as coisas, mas, se insistes, vou tentar.
Victoria assentiu, agradecida. Jack respirou fundo. Ensaiara aquela conversa imensas vezes. Mas nunca imaginara que ela aconteceria depois de saber que Victoria se encontrava em segredo com Kirtash. Tentou não pensar nisso. Fechou os olhos por um momento e procurou ordenar os seus pensamentos antes de começar:
- Claro que me importo com o que aconteceu, Victoria. Claro que me incomoda que... te tenhas... apaixonado, ou seja lá o que for... por Kirtash. Precisamente por ele.
" Mas nem a Resistência, nem o meu orgulho, nem o meu ódio por ele têm nada a ver com isto. O que se passa, Victoria, é, simplesmente...
- inspirou fundo e disse de uma vez - que estou com ciúmes. com uns ciúmes terríveis.
- O quê? - perguntou Victoria, estupefacta.
- Mas não tenho o direito de me zangar contigo. Primeiro, porque arriscaste a vida por mim. Importas-te realmente comigo. Ainda estou a levitar - confessou, corando ainda mais.
" Segundo - prosseguiu, antes que ela pudesse dizer alguma coisa -, entre tu e eu não há nada mais do que amizade. O que fazes com a tua vida privada, de quem decides gostar, é coisa tua. Não sou teu namorado nem nada do género. Não vejo porque haveria de me zangar por estares com outra pessoa que não eu. Os teus sentimentos não me pertencem, nem a mim nem à Resistência, por mais que Alexander tente fazer-te crer o contrário. E nem eu, nem Alexander, nem ninguém tem o direito de tentar controlar o que sentes. Que isso fique bem claro.
" Terceiro... Kirtash é nosso inimigo, é um assassino? Odeio-o com todo o meu ser? É verdade, mas nestes momentos, Victoria, importas-me muito mais do que ele, muito mais do que a Resistência. Uma vez disseste-me que me importava mais com os meus inimigos do que com os meus amigos. Mas isso acabou há muito tempo.
" E por último: a culpa é minha, só minha. Há séculos que deveria ter-te dito o quanto és importante para mim. Mas sou estúpido e teve de vir Kirtash rondar-te para que me decidisse a dizer-to. Tive o meu momento e deixei-o passar. Fui-me embora, virei-te as costas porque era um miúdo e tinha medo de... O que sei é que... pensava que não estava preparado e... bom, resumindo, perdi a minha oportunidade. Até Alexander, que é tão bruto para estas coisas, se apercebeu de que eu estava louco por ti. Tive centenas de ocasiões para to dizer, para te dizer que... que te amo com toda a minha alma, que não te quero perder, que daria o que quer que fosse para te ver feliz - exclamou de uma vez. - Em vez disso, digo-to justamente agora, que tens o coração desfeito e obviamente não estás para te aborrecer com estas coisas... Estou a envolver-me sozinho - concluiu, aturdido. Enterrou o rosto entre as mãos, a tremer.
Victoria ficara muda de assombro. Os olhos tinham-se-lhe enchido de lágrimas.
Mas Jack não tinha acabado de falar. Ergueu novamente a cabeça e prosseguiu, com esforço:
- Estou zangado, mas tenho o que eu mesmo procurei. No entanto, nesta altura a única coisa que realmente me importa é que te vejo destroçada, Victoria, e isso é o que mais me enfurece em tudo isto: não que tenhas chegado a sentir algo por esse... esse... essa coisa, mas sim que ele te tenha enganado, usado e feito muito mal. Não lho posso perdoar. Estou zangado com ele e não contigo. - Inspirou profundamente. - bom, já está. Já disse.
Deixou-se cair, sentindo-se muito fraco, e apoiou as costas contra o tronco da árvore. Não se atrevia a olhar para Victoria.
- Sim, disseste - murmurou ela, atónita. - E expressaste-te... com muita clareza. - Olhou para ele com tristeza. - Oxalá pudesse saber o que sinto. Estou muito confusa.
- Sinto muito - desculpou-se Jack, em voz baixa. - Confundi-te mais. Não era essa a minha intenção. Tinha vindo como amigo, mas agora contei-te tudo isto e vai parecer que tento aproveitar-me da situação e...
Interrompeu-se, surpreendido, porque Victoria se tinha lançado nos seus braços e estreitava-o com força. Jack abraçou-a, confuso, mas não tardou a fechar os olhos e desfrutar da sensação. E aquele sentimento que ela lhe provocava brotou no seu interior como uma torrente de água que transbordava. Abraçou-a com mais força e enterrou o rosto no seu cabelo castanho.
- Obrigada, Jack - sussurrou ela. - Tudo o que me disseste é tão bonito! Oxalá... oxalá as coisas fossem tão claras para mim. És muito importante para mim. Tanto, tanto, que daria a minha vida por ti. Sem hesitar, como fiz esta noite. Será isso amor? Não sei. Parece que sim, não é? Mas há algumas horas estava a beijar Kirtash, Jack. Kirtash, que me disse dezenas de vezes que te vai matar. Entendes? Por isso tenho a sensação de que te traí. Nem que tenha sido apenas como amigo. Mantinha em segredo uma relação com alguém que te quer matar, Jack. Que tipo de amiga sou eu? Por muito intenso que seja o que sinto por ti, não pode ser amor, porque, se o fosse... teria matado Kirtash quando tive oportunidade. Teria evitado todas as possibilidades de...
Quebrou-se-lhe a voz. Jack continuava a abraçá-la.
- Estavas apaixonada por ele - compreendeu. - De verdade. Não era uma ilusão.
- Não, Jack - soluçou ela. - Vês? Vês? Sou... sou uma pessoa horrível.
Jack fechou os olhos, sentindo que o seu coração sangrava por ela.
- Não, Victoria, não és. És maravilhosa. Maldição, e pensar que eu podia ter evitado tudo isto...
Victoria ia responder, quando uma campainha impertinente os interrompeu. Era o alarme do relógio digital dela.
- São sete menos um quarto em minha casa - disse, dirigindo-lhe um olhar de desculpa. - Tenho de ir. Tenho aulas às oito, o despertador vai tocar daqui a quinze minutos e...
- Mas, Victoria, não dormiste nada. Vais às aulas mesmo assim?
- Tenho de ir ou a minha avó suspeitará de alguma coisa. Lembra-te de que ontem à noite incendiámos o pinhal. Alguém deve ter chamado os bombeiros. Se não estiver na mesa do pequeno-almoço às sete, a minha avó vai ficar muito preocupada, vai pensar que tive algo a ver com isso...
Jack demorou um momento a responder.
- Compreendo - assentiu por fim, levantando-se e ajudando-a a levantar-se. - Vai, então. Mas diz-lhe que não estás bem ou algo do género. Não estás em condições de ir ao colégio.
Victoria olhou para ele com carinho e sorriu. Recordou a época em que teria dado qualquer coisa para que ele regressasse da sua viagem para lhe dizer tudo aquilo que lhe tinha confessado agora... demasiado tarde.
Ou não seria ainda demasiado tarde? Descobriu que o seu coração ainda batia com força quando olhava Jack nos olhos. Descobriu a chama que ainda ardia atrás da muralha que ela tentara levantar entre os dois.
- Não quero ir - confessou. - Quero ficar contigo durante mais algum tempo.
"Para sempre", pensou, mas não o disse. Não tinha o direito de o dizer. Não depois de ter cedido ao fascinante feitiço que Kirtash exercia sobre ela. Não, tendo em conta que, apesar de tudo o que acontecera, ainda sentia a falta de Christian. Desesperadamente.
Sacudiu a cabeça. Era tudo muito confuso...
- Mas eu estarei aqui quando voltares - assegurou o rapaz, muito sério.
- A sério?
- Estarei aqui - prometeu ele. - À tua espera. O tempo que for preciso.
Fitou-a com ternura, e Victoria sentiu que se derretia completamente. Soube que ele tinha a intenção de a beijar e desejava realmente que o fizesse, mas afastou-se com alguma brusquidão.
- Não, Jack. Não mereço que me beijes. Porque eu...
Ia dizer "... porque beijei Kirtash", mas não foi capaz de continuar a falar. Jack compreendeu.
- Não te preocupes. Leva o tempo que precisares, esperarei por ti. E, se mudares de ideias... já sabes onde me encontrar.
- Jack... - suspirou ela. - Sabes, eu... gosto imenso de ti, mas não entendo... não entendo o que sinto. Mereces alguém que possa amar-te sem dúvidas, sem condições. Compreendes-me?
- Perfeitamente. Mas agora vai e descansa, OK? Falamos mais logo. Victoria assentiu. Hesitou um pouco antes de se pôr em bicos de
pés para beijar Jack no rosto. Depois, com um sorriso meigo e os olhos brilhantes, afastou-se a correr em direcção à casa.
Jack ficou ali, de pé, junto ao salgueiro que era o refúgio de Victoria, e viu-a partir. Se Victoria se tivesse voltado para olhar para ele naquele preciso momento, talvez tivesse vislumbrado a sua expressão sombria e tivesse adivinhado que tomara uma terrível decisão. Mas não o fez. Apesar da dor e das dúvidas, sentia-se reconfortada pelas calorosas palavras do seu amigo, pelo seu abraço, pelo seu carinho. E estava certa de que, ainda que estivesse a cair no abismo, Jack estaria lá em baixo para a apanhar.
O despertador tocou às sete. Victoria acabava de se materializar sobre a sua cama e por um momento desejou fechar os olhos e dormir. Mas sabia que não devia fazê-lo. Não dissera a Jack, mas receava sonhar com aquela aterradora criatura em que Christian se convertera, temia vê-la novamente nos seus pesadelos e não achava que estivesse preparada para isso.
com um suspiro, levantou-se, vestiu o uniforme e foi à casa de banho. Viu-se ao espelho. Estava com um aspecto horrível. Lavou a cara, mas ainda estava pálida, com os olhos inchados e umas terríveis olheiras. Teve a sensação de que os seus olhos pareciam ainda maiores do que eram, e deu consigo a comparar-se mentalmente com uma espécie de coruja. Perguntou-se como podia Jack gostar dela. Ou Christian. Eram dois rapazes extraordinários, cada um à sua maneira, e continuava sem compreender o que tinham visto nela.
Pensar em Jack fez com que fosse percorrida interiormente por uma fogosa sensação. Kirtash era enigmático e fascinante, mas Jack era tão doce e carinhoso...
"E é humano", recordou-lhe uma vozinha maliciosa. Victoria suspirou e abanou a cabeça. Tentou melhorar o seu aspecto, para pelo menos não parecer um vampiro subalimentado. Nunca usava maquilhagem, mas pôs um pouco, para tapar as olheiras e dissimular a palidez.
Contudo, nada conseguiria apagar dos seus olhos aquela marca de profunda tristeza. Afastou o olhar do espelho e desceu para tomar o pequeno-almoço.
A avó já lá estava, a ler o jornal enquanto tomava café. Victoria compreendeu que, se a olhasse de frente, teria de dar muitas explicações, de maneira que procurou passar por ela sem que a visse. Mais tarde, comeria alguma coisa na cantina do colégio.
Mas, apesar de não ter feito o mínimo ruído, apesar de ser perita em conseguir que as pessoas não reparassem nela, com a avó aquilo nunca funcionava. Era como se tivesse uma espécie de radar para detectar a sua presença.
- bom dia, Victoria - disse ela sem se voltar.
Victoria reprimiu um suspiro resignado.
- bom dia, avó.
Entrou na cozinha para preparar o pequeno-almoço. Já não lhe servia de nada disfarçar.
- Ouviste o que se passou de noite? - perguntou a avó, sem levantar a cabeça do jornal.
- Não, avó - mentiu ela, enquanto tirava o Nescafé do armário; normalmente tomava cacau ao pequeno-almoço, mas naquele dia precisava de acordar. - O que aconteceu?
- Houve um incêndio nas traseiras, no pinhal. Demasiado perto de casa. O que vale é que os vizinhos avisaram os bombeiros.
- No pinhal? - repetiu Victoria. - Oh, não, gosto tanto do pinhal! Espero que não tenham ardido muitas árvores.
- Acho estranho que não te tenhas apercebido de nada. Mas bom, como não saíste do teu quarto, não quis incomodar-te. Por pouco tínhamos de evacuar a casa.
A mão de Victoria tremeu e deixou cair o pacote de leite.
- Por amor de Deus, filha! Olha que desastre! vou chamar Nati para que limpe...
-Não, deixa, já o faço. Lamento, hoje estou um pouco desastrada.
- Sim. - A avó olhou-a fixamente. - Não estás com boa cara. Não dormiste bem?
- Dormi, mas tive pesadelos. Sonhei... com monstros, e coisas do género.
- Já és crescidinha para ter esse tipo de pesadelos, não? Victoria encolheu os ombros.
- Pois...
Acabou de limpar o leite e voltou à preparação do pequeno-almoço. Segunda tentativa.
- E como vão as coisas com esse rapaz? - perguntou então a avó, de maneira casual.
Os dedos de Victoria crisparam-se sobre o açucareiro e por pouco não o deixou cair também ao chão.
- Qual rapaz?
- Aquele de quem gostavas, tu sabes...
- Eu não gostava de nenhum rapaz.
A avó olhou fixamente para ela, por cima dos óculos, arqueando uma sobrancelha.
- bom, OK. Bem, sim, gostava de um - confessou ela a contragosto.
- Mas descobri como realmente é e... já não gosto.
- Magoou-te? - perguntou a avó, repentinamente séria; os seus olhos brilharam de uma maneira estranha por detrás das lentes dos óculos, mas Victoria não estava a olhar para ela e não deu por isso.
- Magoou-me? - A rapariga ficou quieta, pondo-se de pé pela primeira vez. - Fisicamente, queres dizer? Não, claro que não. De facto, parece obcecado por me proteger de tudo. Mas...
- Partiu-te o coração, não? E porque te deixou?
- Na realidade, não me deixou. Fui eu que decidi deixá-lo.
- Então, foste tu quem lhe partiu o coração.
- O quê!? - exclamou Victoria, estupefacta; não lhe passara pela cabeça ver as coisas dessa maneira. - Mas se ele não tem coração! Não é um rapaz normal, é...
- Um monstro?
Victoria estremeceu e olhou para a avó, desconcertada. Já era bastante insólito que ambas estivessem a falar de rapazes, mas que ela se aproximasse vagamente da verdade... era inquietante. Ela não podia saber...
Recordou o que Christian lhe contara acerca daquela mansão e da sua "aura benéfica", e fitou a avó, inquieta. Mas ela continuou a falar, com toda a tranquilidade:
- Sabes, Victoria, quando nos apaixonamos, nas primeiras vezes, idealizamos a outra pessoa, pensamos que é perfeita. Quanto mais nos convencemos disso, mais dura é a queda. De certeza que não é assim tão mau rapaz.
Victoria respirou, aliviada. Aquilo já fazia mais sentido.
- Como é que sabes?
- Porque ainda gostas dele. Se assim não fosse, não sentirias tantos remorsos por o teres deixado.
- Mas o que é que tu sabe disso? - replicou ela de imediato, de mau humor. - Não sinto remorsos. Já te disse que descobri como é na realidade e...
"E não estamos a falar de um rapaz normal!", quis gritar.
- Falaste com ele depois disso?
- Claro que não! - replicou Victoria, horrorizada.
- Ah, já entendo. Então há outro, não é? Victoria fechou os olhos, atordoada.
- Mas porque é que de repente te interessa tanto a minha vida sentimental?
- Porque até agora nunca tinhas tido uma vida sentimental, filha. Sinto curiosidade. E estou contente. Já era altura de começares a pensar em rapazes. Estava a ficar preocupada.
Victoria abriu a boca, pasmada.
- Que coscuvilheira, avó.
- Vamos, conta-me, conta-me - pressionou-a a avó. - Como é esse rapaz de quem gostas agora?
- Jack? - disse ela irreflectidamente; de seguida, lamentou não ter mordido a língua, mas, enfim, agora a coisa já não tinha remédio. - É... pode dizer-se que é o meu melhor amigo. Confiamos um no outro, é muito carinhoso, muito doce e... parece que gosta de mim.
- E tu gostas dele?
- Sim - confessou ela em voz baixa. - Muito. O que acontece é que...
- Ainda gostas do outro, não é? O "rapaz mau", para o chamarmos de alguma maneira.
- Sim - disse Victoria, desatando a chorar. Sentiu que a avó a abraçava.
- Ai, criança, a doce juventude...
- Sou esquisita, não é verdade, avó?
- Não, filha, tens catorze anos. É uma doença que já todos tivemos. E isso lembra-me que na semana que vem é o teu aniversário. O que queres que te ofereça?
Inconscientemente, Victoria apertou o pendente que usava sempre, um pendente de prata com uma lágrima de cristal, e pensou em Shail, que lho oferecera há dois anos, quando fizera treze. Shail morrera naquela mesma noite e, desde então, para Victoria, o dia do seu aniversário era uma data muito triste.
- Não quero nada, avó - disse em voz baixa.
"Apenas quero recuperar o que perdi há dois anos... mas não vai voltar."
- Obrigada pela conversa, mas tenho de me apressar ou vou perder o autocarro.
Separou-se da avó e levantou-se da cadeira. Ela fitou-a por cima dos óculos.
- Não queres ficar em casa e descansar? Escrevo uma nota a dizer que estás doente.
Victoria olhou para ela, estupefacta.
- Avó, tu é que estás esquisita hoje - comentou. - Obrigada, mas prefiro ir às aulas, a sério.
Não estava com forças para continuar a falar de Jack e de Christian... ou Kirtash... ou o que fosse. "Então, foste tu quem lhe partiu o coração", dissera a avó.
Mas ela não sabia de quem estava a falar. Poderia uma serpente ter coração?
A avó acompanhou-a até à porta e ficou ali na escadaria, a vê-la entrar no autocarro escolar. "Não quero nada, avó", dissera Victoria.
Mas ela vira nos seus olhos que um desejo impossível ardia no seu coração. Uma leve brisa agitou o cabelo grisalho de Allegra d Ascoli, que sorriu.
Jack esperara que Alexander fosse dormir e então fora em silêncio à sala de armas para buscar Domivat, a sua espada mítica. Após um instante de dúvida, decidira levar também uma adaga e prendê-la no cinto, para o caso de precisar.
Depois, subira à biblioteca e chamara a Alma. A consciência de Limbhad não demorara a mostrar-se na esfera que girava sobre a enorme mesa entalhada.
"Alma", pediu Jack. "Leva-me até Kirtash."
A Alma pareceu desconcertada. Não podia fazer o que lhe pedia, porque precisava de alguma magia e Jack não podia proporcioná-la.
"Por favor", suplicou Jack. "Tira-a de onde quer que seja, tira a magia da espada, tira energia de mim, mas tens de me levar até ele. Tenho algo a fazer... e sei
que Victoria não estaria de acordo."
A Alma tentou. Jack sentiu os tentáculos da sua consciência a envolvê-lo, procurando arrastá-lo... mas o rapaz permaneceu firmemente parado na biblioteca de Limbhad.
- O que é necessário? - perguntou, desesperado. - Se usar o báculo de Victoria, poderás levar-me?
A Alma hesitava, e Jack sabia porquê. O báculo funcionava apenas com os semifeiticeiros, e ele não o era. Nem feiticeiro completo, nem semifeiticeiro, como Victoria.
- Victoria disse uma vez que a magia era energia canalizada - recordou Jack. - Todos temos energia, Alma, saca essa energia de mim.
"Não é suficiente", foi a mensagem. Jack cerrou os dentes.
- Para mim dá no mesmo. Faz o que puderes, OK?
A Alma tinha as suas objecções, mas fê-lo. Jack sentiu a sua consciência a entrar no seu ser e a drenar-lhe as forças, pouco a pouco. Jack sentiu que enfraquecia,
mas também que se tornava mais leve, menos consistente. De imediato, foi como se a Alma destapasse um poço profundo que até então tivesse estado oculto. A energia brotou de Jack, aos borbotões, resplandecente, inesgotável, e o rapaz saiu disparado...
"Por ti, Victoria", pensou, antes de o seu corpo desaparecer da biblioteca de Limbhad.
Materializou-se numa praia e olhou em volta, desconcertado. Era uma pequena enseada deserta, entre escarpas, e a Lua em quarto minguante reflectia-se sobre as águas
tranquilas que lambiam a areia com suavidade.
Jack descobriu o vulto esbelto e elegante que o observava do alto da escarpa. Trazia na mão uma espada que brilhava com um suave halo branco-azulado. Jack desembainhou Domivat, que flamejou durante um momento na noite, como uma tocha, para logo recuperar o aspecto de uma espada normal, que só denunciava a sua condição especial pelo leve brilho avermelhado que a luz da lua lhe arrancava.
O vulto desceu de um salto até à praia, com uma ligeireza invejável. A Lua iluminou as feições de Kirtash.
Os dois fitaram-se. Pareceu a Jack que o semblante do shek, habitualmente impenetrável, parecia mais sombrio naquela noite. Contudo, continuava sem mostrar abertamente o ódio que sentia por ele. Ainda que, de alguma maneira, Jack o percebesse.
- Estava à tua espera - disse Kirtash.
O PONTO FRACO DE KIRTASHS
Victoria acomodou-se no autocarro e fechou os olhos, esgotada. Sentara-se como de costume ao fundo, junto à janela. Ao seu lado estava sentada uma rapariga de outra turma, que tagarelava em voz alta, quase aos gritos, com as duas que ocupavam os assentos de trás. Victoria, aborrecida, rebuscou a sua mochila à procura do diseman e pôs os auriculares para não as ouvir. Deu-se conta de que o único CD que levava era o de Chris Tara... Christian, ou Kirtash, ou quem quer que fosse aquele enigmático ser que despertava nela emoções tão intensas e contraditórias. Engoliu em seco. Não estava preparada para voltar a escutar a sua voz, não tão cedo, por isso ligou o rádio, procurou a sua emissora favorita e procurou acalmar-se.
Estavam já a chegar ao colégio quando a locutora anunciou:
"E sim, aquilo de que todos estávamos à espera vai tornar-se brevemente uma realidade. Chris Tara, o jovem misterioso que revolucionou o panorama musical este ano, está a preparar um novo disco."
O coração de Victoria bateu um pouco mais depressa. Quis desligar o rádio, mas não se atreveu.
"Até ao momento, apenas foi lançado um singíe, Why You? , uma bela balada na qual nos mostra o seu lado mais romântico..."
A rapariga continuou a falar enquanto soavam os primeiros acordes de "Why You?", mas Victoria já não a ouvia. A voz de Christian fluiu através dos auriculares, envolveu-a, acariciou-a, mexeu com ela e sussurrou palavras tão doces que Victoria mal pôde conter as lágrimas. Aquela era uma canção de amor, não havia dúvida, e isso era estranho, porque Chris Tara não compunha canções de amor. Cantava acerca de mundos distantes, acerca da solidão, de ser diferente, da ânsia de voar, da incompreensão... mas nunca de amor.
No entanto, "Why You?" era, indubitavelmente, uma balada, uma canção de amor, ainda que tal palavra não aparecesse nem uma única vez na letra.
"Não acho necessário dar-lhe um nome", dissera Christian.
Mas falara de um sentimento, um sentimento pelo qual se cometiam grandes loucuras. Como trair os nossos.
Víctoria estremeceu.
"Mas ele é uma serpente", obrigou-se a recordar a si mesma. "Não é humano. Não pode sentir nada por mim."
Contudo, era a sua voz que lhe estava a sussurrar aquelas palavras, a sua voz que se perguntava, uma e outra vez, porquê, porquê, porque estava a sentir aquelas coisas por uma criatura tão longínqua e distante como a mais fria estrela. Não era uma ilusão. A canção de Christian comovia-a até ao mais íntimo do seu ser. E soube, de alguma maneira, que era ela a rapariga a quem ele dirigira aqueles versos.
Enterrou o rosto entre as mãos, muito confusa. Quando terminou a canção de Chris Tara, a rádio começou a emitir as notas de outro tema que, em comparação, lhe soava barulhento, tosco e desagradável. Incomodada, Victoria desligou o aparelho.
O autocarro parara em frente do colégio, e as raparigas já saíam para o exterior. Victoria pegou na sua mochila e desceu os degraus.
Mas, quando se dispunha a cruzar a porta do colégio, algo parecido com um vento frio fê-la estremecer e voltar-se, insegura.
Não era nada. Estava tudo calmo, tudo normal. No entanto, Victoria tinha um pressentimento, um horrível pressentimento.
Alguém de quem ela gostava estava em grave perigo. Alguém muito importante para ela podia morrer.
Dois nomes surgiram de imediato na sua mente, sem que pudesse ter a certeza de qual dos dois aparecera primeiro. Jack. Christian.
Titubeou. E se fosse apenas mais uma paranóia? Jack estava a salvo em Limbhad, e Christian... haveria algo que pudesse ameaçá-lo, um shek, uma das criaturas mais poderosas de Idhún?
Então soou a campainha que anunciava o começo das aulas, e Victoria vacilou. Tinha de ir depressa, a correr, salvá-los... Ia salvar quem? Jack? Christian?
Os dois?
- vou matar-te - disse Jack, carrancudo.
Kirtash não disse nada.
Jack atacou primeiro. Desferiu uma estocada, procurando o corpo do seu inimigo, mas este moveu-se para o lado e interpôs a lâmina de Haiass entre o seu corpo e a arma de Jack.
As duas espadas chocaram, e algo invisível pareceu agitar-se por um momento. Jack parou, perplexo. Nos olhos de Kirtash surgiu um brilho de interesse.
- Começas a saber utilizar essa espada - comentou.
- Não sejas tão arrogante - grunhiu Jack. - Vais morrer. Desferiu outro golpe de espada contra ele, com todas as suas forças. Kirtash deteve a estocada, e, de novo, saltaram faíscas. Jack insistiu. Uma e outra vez.
Domivat resplandecia como se fosse um coração luminoso a bombear sangue. Jack sabia que era a sua própria energia que estava a ser transmitida à espada e quase conseguiu perceber o ódio que destilava, reflexo dos sentimentos que ele mesmo albergava no seu coração. O fogo de Domivat procurava derreter o gelo de Haiass, mas a espada de Kirtash continuava a ser inquebrável. O ódio do shek manifestava-se através daquela frieza tão absolutamente inumana, e o fio de Haiass era agora da mesma cor dos olhos de gelo de Kirtash.
As duas espadas falavam uma com a outra em cada golpe, procuravam encontrar-se e destruir-se mutuamente, mas nenhuma das duas saía vencedora naquela luta. Por fim, Jack desferiu uma estocada com toda a força do seu ser, e o choque foi tão violento que ambos tiveram de retroceder.
Fitaram-se, a uma distância prudente.
- Ainda não sabes - compreendeu Kirtash.
- O que tenho de saber?
- Porque é preciso proteger Victoria.
- Protejo-a porque a amo, estás a ouvir? - gritou Jack. - E tu... tu... maldito mostrengo... magoaste-a, enganaste-a. Só por isso mereces morrer.
- Só por isso? - repetiu o shek. - Acreditas mesmo que é esse o único motivo por que vieste à minha procura?
- O que queres dela? - exigiu saber Jack. - Porque não a deixas em paz?
- Quero mante-la com vida, Jack - replicou Kirtash com frieza.
- E convém que eu ande por perto, porque, pelos vistos, tu és incapaz de cuidar dela.
- O quê? - explodiu Jack. - Como te atreves a dizer isso? Precisamente tu, que és a criatura mais... perversa e tortuosa que alguma vez vi?
Kirtash sorriu, sem parecer de todo ofendido.
- Já percebi. Estás com ciúmes.
Jack ficou furioso. Voltou a lançar-se sobre ele. Kirtash aparou o golpe e lançou-lhe um olhar frio; mas, por detrás do gelo, os seus olhos relampejavam de ira e desprezo.
- Tens uma maneira estranha de demonstrar o teu amor - comentou. - Voltaste a deixar Victoria sozinha. Não deverias estar ao lado dela, a consolá-la?
- És tu quem está com ciúmes. Por isso estás tão furioso. Por isso mostraste a tua verdadeira forma.
Kirtash deixou escapar uma gargalhada seca. Jack ficou desconcertado por um momento; nunca o ouvira rir. Reagiu a tempo e aparou Haiass a escassos centímetros do seu corpo. Empurrou Kirtash, para o afastar.
- Não podias estar mais longe da realidade - disse o shek. - Estás apaixonado por Victoria, ela também gosta de ti. Isso é justamente a única coisa que poderia ter feito com que eu te poupasse a vida. É uma pena que, apesar disso, pesando tudo, a balança não se incline a teu favor.
- Não me faças rir - grunhiu Jack. - Não podes sentir nada por ela. Não és humano.
Kirtash dirigiu-lhe um olhar tão frio que o rapaz, apesar de estar a ferver de raiva, estremeceu.
- Ah - disse o shek. - Não sou humano. E tu és?
Algo parecido com um sopro gelado sacudiu a alma de Jack.
- O que... o que queres dizer?
Ficou quieto por um momento, como que ferido por um raio. Recordou, num único instante, o mistério da sua vida e das suas estranhas qualidades e compreendeu que Kirtash sabia acerca dele muitas coisas que o próprio Jack ignorava. E o desejo de se descobrir a si mesmo regressou, com mais força do que nunca, ao seu coração.
Esforçou-se por se recompor, recordando que o ser com quem estava a falar era seu inimigo e que se tratava de uma criatura maldosa e traiçoeira.
- Não vais confundir-me - advertiu-o, carrancudo.
Kirtash semicerrou os olhos por um momento. A sua expressão continuava a ser impenetrável, os seus movimentos, perfeitamente calculados; mas Jack percebia o seu ódio e desprezo por ele, tão intensos que, se ele mesmo não se sentisse tão furioso, o sangue teria congelado nas suas veias.
O jovem moveu-se para um lado, como um felino; Jack tardou a captar o seu movimento e perdeu Kirtash de vista.
- Não me fales de humanidade - disse a voz de Kirtash da escuridão.
- Não me fales de sentimentos. Não sabes nada.
Jack voltou-se em todas as direcções, colérico.
- Deixa-te ver e dá a cara de uma vez, cobarde! - gritou.
- Tens de morrer; é a única maneira de salvar Victoria - prosseguiu Kirtash. - E por isso vou matar-te. Isso é o que vou fazer por ela. O que estás tu a fazer?
- Vim lutar - proclamou Jack. - vou matar-te ou morrer a tentar, mas não vou deixar as coisas assim.
- Então, morre a tentar. Será melhor para todos.
Kirtash ressurgiu das sombras, trazendo nos olhos o ar gelado da morte, e desferiu a espada contra Jack com toda a força do seu ódio.
Jack ergueu Domivat no último momento. As duas lâminas encontraram-se novamente. Jack percebeu que a sua raiva alimentava o coração de Domivat, que o seu ódio lhe dava forças; mas aqueles sentimentos, por alguma razão, não favoreciam Kirtash, cujo poder se baseava no autocontrole.
Ainda assim, o fio de Haiass conseguiu atingir Jack de lado, que gemeu de dor quando o gelo congelou a sua pele. Mas reuniu forças e conseguiu fazê-lo retroceder.
Por alguma razão, pensou em Victoria, pensou que aquela criatura que se fazia chamar Kirtash pretendia manipular os fios da sua vida e do seu destino; mas, sobretudo, recordou a serpente, aquela serpente alada que se tinha erguido diante deles na noite anterior, terrível, letal, mas, apesar de tudo, magnífica. Na altura tivera medo, mas agora, ao pensar nisso, sentia apenas aversão, ódio, um ódio tão irracional quanto intenso e profundo. E, de novo, algo explodiu no seu interior.
Desta vez não houve anel de fogo. Todo o poder de Jack se concentrou na através de Domivat, e a espada pareceu conter em si mesma, por um instante, a força de uma supernova. com um grito selvagem, Jack investiu, e Kirtash ergueu Haiass para aparar o golpe.
E então houve um som estranho, como se se quebrasse uma parede de gelo, e Jack retrocedeu alguns passos, a tremer.
Diante dele erguia-se ainda Kirtash, de pé, em guarda. Ainda empunhava Haiass.
Mas a espada de gelo tinha-se partido, partira-se em duas, e um dos pedaços caíra sobre a areia e apagara-se.
Ambos contemplaram os fragmentos da espada, estupefactos. Então, Kirtash ergueu a cabeça e olhou para Jack; pela primeira vez desde que o conhecia, o rosto do assassino era uma máscara de ódio. Pela primeira vez, também, Jack acreditou detectar nos seus olhos... respeito?
- Começas a despertar - disse o shek.
- O quê...? De que estás a falar?
- E já nada pode salvar-te. Nem sequer Victoria. Jack pôs-se em guarda, mas Kirtash abanou a cabeça, aturdido, retrocedeu e... desapareceu entre as sombras.
- Espera! - chamou Jack, ainda confuso. - Não podes ir-te embora! Tens de me dizer... - Calou-se ao dar-se conta de que estava sozinho e terminou em voz baixa: - Quem sou.
Não teve muito tempo para pensar nisso, porque entretanto tomou consciência da ferida que Kirtash lhe infligira e sentiu frio, um frio terrível que o fez cair de joelhos sobre a areia, a tiritar. Apertou a ferida e esforçou-se por se levantar, mas não conseguiu. Estava demasiado fraco e confuso.
Derrotara Kirtash? Quebrara Haiass, a sua espada, símbolo do poder do shek? Ergueu a cabeça para olhar para o fragmento da arma, que ficara abandonado sobre a areia, apagado, morto. Teve tonturas, e sentiu que ia cair...
Mas algo o segurou.
-Jack - sussurrou a voz de Victoria no seu ouvido, profundamente preocupada. - Jack, estás bem?
Jack esforçou-se por abrir os olhos. Estava nos braços de Victoria, que o olhava com ansiedade. Procurou sorrir. Era um sonho lindo.
- Venci - murmurou. - Mas não pude matá-lo. Lamento, Victoria, eu... voltei a falhar.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas, e estreitou-o entre os seus braços. Jack apoiou a cabeça no seu ombro e fechou os olhos, a tiritar de frio, como se se afundasse cada vez mais num profundo glaciar de onde não houvesse escapatória.
Mas havia. Para lá do túnel de gelo havia uma luz morna, e Jack arrastou-se na direcção dela e, enquanto o fazia, uma corrente de energia vivificante percorreu o seu corpo e extirpou o frio, pouco a pouco.
Por fim, Jack abriu os olhos. A primeira coisa que viu foi o olhar de Victoria.
- Estás melhor?
- Curaste-me? - perguntou Jack, atordoado.
Ela assentiu. Jack olhou em volta. Continuavam naquela praia, em algum lugar do mundo, mas o horizonte começava a clarear. Victoria estava de joelhos sobre a areia, ainda com o uniforme da escola vestido, e a cabeça de Jack repousava sobre o seu regaço. Os dedos dela acariciavam o seu cabelo louro. Jack deixou-se levar por aquela sensação.
- Haiass, não é? - perguntou então ela, devolvendo-o à realidade.
- Sim. - Jack abanou a cabeça e tomou consciência do que tinha acontecido. - Mas esta espada já não vai voltar a fazer estragos, Victoria. Parti-a. Vê.
Indicou o que restava da espada de Kirtash.
- Ele levou a outra parte - prosseguiu Jack -, mas não creio que possa arranjá-la. Não achas?
Victoria ficara a olhar fixamente para ele, estupefacta.
- Jack - disse em voz baixa. - Quebraste a espada de Kirtash? Derrotaste um shek?
Jack agitou-se, incomodado.
- Na realidade foi Domivat. - Pronunciou com orgulho e carinho o nome da sua espada. - Eu...
- Jack, Domivat faz parte de ti - cortou Victoria. - Partiste a espada de um shek, uma arma mítica. Como... como o fizeste? É... sobre-humano.
Jack estremeceu, recordando as palavras de Kirtash, carregadas de sarcasmo: "Não sou humano. E tu és?" Sentiu medo, um medo terrível, e soube que estava perto de encontrar as respostas às suas perguntas... mas pela primeira vez intuiu que talvez não fosse gostar de conhecer aquelas respostas.
Abanou novamente a cabeça e decidiu agarrar-se à única certeza que tinha: os seus sentimentos por Victoria. Olhou intensamente para ela.
- Isso não interessa agora, Victoria. O importante é que estou contigo outra vez.
Ela devolveu-lhe o olhar, comovida, e abraçou-o com força. Jack estreitou-a entre os seus braços. Fechou os olhos e recordou as palavras de Kirtash: "Tens de morrer; é a única maneira de salvar Victoria." Não entendia e não sabia se era verdade, mas naquele momento sentiu que, se fosse verdade que tinha de se sacrificar, se tivesse de morrer por ela, fá-lo-ia sem hesitar um único segundo.
- Porque o fizeste? - murmurou ela. - Poderia ter-te morto, e então... que faria eu sem ti, ha?
- Tinha de o fazer - desculpou-se ele. - Não suportava a ideia de Kirtash voltar a magoar-te. Mas, diz-me, como me encontraste?
Olhou para o horizonte, na direcção onde assomava a aurora. A brisa marinha revolveu os seus cabelos negros.
- Tive um pressentimento - confessou. - No colégio. Tive medo por ti e... voltei imediatamente a Limbhad. - Olhou-o fixamente. – Não estavas, e... fiquei muito preocupada. Fui a correr à biblioteca, perguntei à Alma por ti, e ela trouxe-me aqui. Nem sequer acordei Alexander, não sabe que vim. Mesmo assim, devia ter chegado mais cedo.
- Não, Victoria - replicou Jack, negando com a cabeça. - Isto era algo que nós os dois tínhamos de resolver sozinhos.
A rapariga não disse nada. Tinha a desagradável sensação de que, apesar de aparentemente estarem a lutar por ela, na realidade aquilo não passava de um pretexto. Teriam lutado um contra o outro até à morte, de qualquer maneira.
- bom, como disseste - concluiu Victoria, sorrindo -, o importante é que estamos juntos.
Jack também sorriu.
- Sim - disse -, isso é que é importante.
Victoria ajudou-o a levantar-se. O rapaz apoiou-se no seu ombro para se suster de pé. Então, ela fechou os olhos e chamou a Alma de Limbhad, e os dois regressaram ao seu refúgio da Casa na Fronteira.
- Haiass - disse o Necromante, contemplando o que restava da magnífica espada.
Kirtash não se mexeu. Tinha prostrado um joelho no chão e aguardava em silêncio, com a cabeça baixa, diante do seu pai e senhor. Ashran voltou-se para ele.
- Derrotaram-te, Kirtash. Como é possível?
- Domivat, a espada de fogo - disse ele em voz baixa.
- Domivat? - O Necromante negou com a cabeça. - Não, rapaz. Não se trata da espada. Trata-se de ti.
Kirtash estremeceu imperceptivelmente, mas não falou nem levantou o olhar.
- Estás a perder poder, Kirtash - prosseguiu Ashran. - Estás a deixar-te levar pelas emoções, e essa é a tua maior fraqueza, o que te torna vulnerável. Sabes disso.
- Sei - assentiu o rapaz com suavidade.
- Ódio, raiva, impaciência... amor - Ashran olhou-o fixamente, mas Kirtash não se moveu. - Devias estar acima de tudo isso. A Terra está a afectar-te demasiado. Isto - apontou para a espada partida não é mais do que um aviso do que está a acontecer. Há que cortar o mal pela raiz.
- Sim, meu senhor.
- Os teus inimigos são mais poderosos do que tinha pensado. Há na Resistência alguém capaz de brandir Domivat... e com eficácia acrescentou, contemplando a malograda Haiass. - Quem é? Um feiticeiro? Um herói?
- É um homem morto - ciciou Kirtash. Ashran deu uma gargalhada.
- Não duvido, rapaz. Mas continuo a não gostar dessa raiva que vejo em ti. Vejo que tens demasiada confiança. Encontraste um rival e isso perturbou-te. Não, filho. Não é assim que as coisas se fazem. Ninguém deveria sequer conseguir inquietar-te. Esse... futuro cadáver... tem uma espada mítica, sim, mas isso não o torna igual a ti. Ao fim e ao cabo, é apenas humano, não é assim?
Kirtash semicerrou os olhos. Pareceu duvidar por um momento, mas finalmente disse, com frieza:
- Sim, meu senhor, é apenas humano.
- De acordo - assentiu Ashran. - Encarregar-me-ei de que forjem de novo a tua espada, Kirtash, mas, em troca, quero que faças várias coisas. Em primeiro lugar... quero a cabeça do guerreiro da espada de fogo.
- Será um prazer - murmurou Kirtash, com uma expressão irada; mas o Necromante fitou-o com severidade.
- Controla o teu ódio, Kirtash. Faz-te perder a objectividade e a perspectiva. Lembra-te: esse renegado... não é importante. Não mais do que um insecto, certo? Por acaso odeias os insectos que pisas quando caminhas?
- Não, meu senhor.
- Porque não são importantes. Não são nada. Por isso podes esmagá-los com facilidade. Se te deixares levar pelo ódio, o medo ou a raiva, estarás a dar ao teu rival uma vantagem sobre ti, estarás a mostrar-lhe o teu ponto fraco. - Voltou-lhe as costas, irritado. - Parece mentira que ainda não o tenhas aprendido.
- Peço-te perdão, meu senhor; não voltará a acontecer - disse Kirtash, dominando-se. A sua voz soou novamente fria e impessoal quando acrescentou: - Eliminarei esse renegado, dado que é esse o teu desejo.
- Assim já gosto. Mas isso não é tudo o que terás de fazer em troca da tua espada, rapaz. Vais deixar o teu passatempo absurdo, vais deixar a música. Não serve para nada, distrai-te e, além disso, torna-te cada vez mais humano. Isso não me agrada.
Kirtash cerrou os dentes, mas a sua voz soou impassível quando respondeu:
- Como ordenares, meu senhor.
- E por último - concluiu Ashran -, está o caso dessa rapariga. Kirtash semicerrou os olhos, mas não disse nada.
- Não voltarás a vê-la - decretou Ashran; Kirtash pareceu relaxar um pouco. - Já te entretiveste bastante, já brincaste um pouco com ela, e a única coisa que conseguiste foi isto. - Apontou novamente para Haiass. - Tornaste-te mais fraco, Kirtash. Despertou sentimentos no teu interior. Ter-te-ia perdoado se tivesses dominado a sua vontade; no fim de contas, alguém que consegue manejar o Báculo de Ayshel, mesmo sendo apenas uma semifeiticeira, não deixa de ser um elemento valioso. Mas não a seduziste; pelo contrário, ela é que te cativou.
Disse-te que, se não conseguisses dominá-la, terias de a matar. Mas mudei de ideias. Essa jovem é perigosa para ti, portanto, seria um erro ordenar-te que acabasses com a sua vida. Não, rapaz; a rapariga morrerá, mas não às tuas mãos.
Kirtash conteve-se para manter o olhar baixo.
- Enviarei Gerde para a matar - concluiu o Necromante. - Ela não terá tantos escrúpulos. E, quando essa rapariga já não existir, voltarás
a ser como antes.
- Gerde? - repetiu Kirtash em voz baixa. -Já está preparada para ir à Terra?
- Sempre estive - disse atrás dele uma doce voz feminina. - Tu é que pareces pouco disposto a ter-me contigo.
Kirtash levantou-se e voltou-se. De pé junto à porta, estava uma criatura de beleza selvagem, graciosa, delgada e esbelta como um junco. Uns olhos negros, todos eles pupila, brilhavam num rosto de traços exóticos e de um magnetismo perturbador. Um emaranhado de cabelo esverdeado, mas tão suave e delicado como seda, caía pelas suas costas. Vestia roupas vaporosas, que pareciam cintilar de cada vez que se mexia, e estava descalça, deslizando os seus pequenos e delicados pés sobre as frias lajes de mármore.
Contudo, o que mais chamava a atenção era a aura sedutora e invisível que a envolvia e que, como a canção das sereias, como um poderoso feitiço, obrigava quem a via a não afastar o olhar dela.
Mas o feitiço das fadas não conseguia afectar Kirtash.
- Estive ocupado - disse com frieza.
- Hum... - respondeu ela. - Imagino.
Dedicou-lhe o seu sorriso mais encantador enquanto avançava para Ashran. Ao passar junto de Kirtash, o seu braço nu tocou levemente no jovem, e este sentiu o poder inebriante que emanava dela.
- Meu senhor - disse a fada, inclinando-se diante do Necromante, mas dirigindo um último olhar sedutor a Kvrtash, por debaixo das suas sedosas pestanas -, chamaste-me.
- Gerde - disse Ashran. - Há algum tempo juraste-me fidelidade, a mim e aos sheks, e já é hora de demonstrares até onde vai essa lealdade. Estás disposta a viajar para a Terra?
- Sim, meu senhor.
- Já sabes o que hás-de fazer ali - prosseguiu o Necromante. Kirtash está à procura de um dragão e de um unicórnio. Mas, de caminho, está a acabar também com todos os feiticeiros renegados que fugiram para esse outro mundo, particularmente com um grupo de jovens muito impertinentes que se intitulam a si próprios de Resistência e que dificultam a sua busca consecutivamente. Irás com ele para o libertar desse incómodo. Está claro?
- Sim, meu senhor.
- Concretamente - concluiu Ashran -, há uma rapariga humana que tens de eliminar. Chama-se Victoria e é a portadora do Báculo de Ayshel. Quero essa rapariga morta, Gerde. Quero ver o seu cadáver aos meus pés.
Olhou fixamente para Kirtash enquanto pronunciava estas palavras, mas ele não fez o menor gesto. O seu rosto continuava impenetrável e o seu frio olhar não traía os seus sentimentos.
Gerde esboçou um dos seus sorrisos perturbadores.
- Não te falharei, meu senhor - disse com voz aveludada.
A um gesto do Necromante, Gerde levantou-se para sair. Quando passou junto a Kirtash, dedicou-lhe um sorriso sugestivo e disse-lhe ao ouvido:
- A ti também não.
Kirtash não reagiu. Gerde inclinou a cabeça com a graça de uma gazela, e os seus sedosos cabelos acariciaram por um momento o pescoço do rapaz. Ainda a sorrir, a
fada saiu da sala. A sua presença inebriante permaneceu no ar por mais uns segundos.
- É esperta - comentou Ashran. - Sabe perfeitamente que és um bom partido.
- É-me indiferente - replicou Kirtash.
- Não por muito tempo, Kirtash. Logo esquecerás essa rapariga. Ao fim e ao cabo, não está à tua altura; mereces algo muito melhor do que uma simples semifeiticeira humana, não achas? Não sentirás a falta dela. Não tanto como pensas.
Kirtash ergueu a cabeça para olhar para o seu senhor, mas não disse nada.
CHRISTIAN
- O que fizeste foi completamente estúpido, rapaz - repreendeu-o Alexander. - Em que é que estavas supostamente a pensar? Achei que já te tinha entrado na cabeça que não deves enfrentar Kirtash sozinho.
- Mas derrotei-o, Alexander - protestou Jack. - Parti a sua espada. Poderia mesmo tê-lo morto, se não tivesse desaparecido de repente.
Alexander negou com a cabeça.
- Não podes matar um shek. São muito superiores aos seres humanos em todos os aspectos.
- Sim, mas... E se eu não for humano? - perguntou Jack, em voz baixa.
- Não digas disparates. O que te faz pensar isso?
- Pois... o meu poder pirocinético... o que faço com o fogo - explicou, ao ver que Alexander não o entendia.
- Muitos feiticeiros podem fazê-lo. Não é assim tão especial.
- Mas nem sequer Shail foi capaz de encontrar uma explicação para isso. E, por outro lado... há o que se passou com Kirtash.
- Usas uma espada mítica, Jack. Já te disse que apenas Domivat e Sumlaris poderiam derrotar Haiass, não?
- Mas... não é verdade que uma espada mítica se torna parte do guerreiro que a empunha? Não é verdade que Domivat já é parte de mim?
- De alguma maneira. Mas isso não te torna menos humano, Jack. Jack apoiou a cabeça na almofada, aturdido. Fechou os olhos por
um momento. Estava muito cansado. Victoria tinha curado a sua ferida, mas o rapaz ainda não tinha recuperado as forças após o combate contra Kirtash.
- O que querias descobrir? - perguntou então Alexander. Jack abriu os olhos.
- A que te referes?
- Foste ao encontro de Kirtash por alguma razão. O que esperavas saber em concreto?
Jack demorou um pouco a responder. Eram muitos os motivos que o tinham levado a enfrentar Kirtash: o ódio, os ciúmes, o seu amor por Victoria... a certeza de que o shek podia responder a muitas das suas dúvidas... acerca de si mesmo.
Mas apercebeu-se de que havia uma razão que estava acima de todas as outras.
- Queria saber se era verdade que sentia algo por Victoria - murmurou por fim. - E se tivesse estado a brincar com ela... fazê-lo pagar.
Alexander olhou-o, perplexo.
- Caramba, rapaz, bateu-te forte, ha?
Jack corou um pouco, mas não disse nada e também não voltou a cabeça para olhar para o seu amigo.
- E? - perguntou ele, ao cabo de uns instantes.
- Parece... parece que gosta dela. De verdade. Inclusivamente, arriscou a sua vida para salvar a dela. É estranho, não é? - acrescentou, cravando os seus olhos verdes em Alexander. - Acontece que ele, que não é humano, tem reacções humanas. E eu, que supostamente sou humano, faço coisas... sobre-humanas-concluiu, utilizando a palavra que Victoria usara. - Gostaria de saber quem sou. Quem somos... o que somos.
Alexander olhou para Jack e mordeu o lábio inferior, pensativo, mas não disse nada. Não tinha respostas para aquelas perguntas.
Ele chamava-a outra vez.
Victoria meteu a cabeça debaixo da almofada, mas ouvia o chamamento dentro da sua mente e não nos seus ouvidos.
Desta vez resistiria. Ficaria ali na cama, no seu quarto. Não ia deixar que ele a enganasse outra vez. "Victoria...", ouviu pela segunda vez.
"Não vou", pensou. "Bem podes ficar sentado à espera."
Sabia o que era, vira-o sob o seu verdadeiro aspecto. E sabia que Jack quebrara a sua espada; Kirtash era imprevisível, e Victoria não podia sequer adivinhar como estaria o seu humor depois disso. Pelo sim, pelo não, era melhor não se aproximar.
Porém, desejava voltar a vê-lo, desejava perguntar-lhe muitas coisas e, apesar de tudo... desejava olhá-lo nos olhos uma vez mais e sentir o seu contacto, sugestivo, electrizante...
"Não", disse a si mesma, com firmeza. "Já causaste problemas suficientes."
"Victoria...", chamou-a ele, pela terceira vez.
A rapariga fechou os olhos com força. Tinha pensado em ir a Limbhad daí a pouco, para ver como estava Jack, e agarrou-se a essa ideia: Jack, Jack, Jack... ansiava voltar a vê-lo, passara todo o dia com saudades do seu sorriso caloroso, e não permitiria que uma serpente atrasasse aquele momento.
Pensar em Jack fê-la recordar os últimos acontecimentos, a misteriosa força do seu amigo, e perguntou-se, inquieta, se Kirtash saberia de onde ela procedia. Se assim fosse, talvez pudesse explicar-lhe...
Esperou, contendo a respiração, mas Kirtash não voltou a chamá-la. Victoria hesitou. E se se tivesse ido embora? E se não voltasse?
Fechou os olhos e abanou a cabeça. Estava a tentar esquecer Christ... Kirtash, para poder iniciar algo novo com Jack, quando estivesse preparada, e não ia deitar tudo por água abaixo, não agora. Depois de tudo o que Jack fizera por ela, não merecia que voltasse a responder ao chamamento do seu inimigo.
Mas talvez se apenas falassem... talvez ele pudesse explicar-lhe...
Ele não voltou a chamá-la, e Victoria pensou, angustiada, que talvez tivesse achado que três vezes eram mais do que suficientes. Tinha de o verificar.
Levantou-se depressa, vestiu o roupão branco por cima do pijama, calçou as pantufas e saiu do seu quarto em silêncio, com o coração a bater com força. Uma parte dela desejava que Kirtash já se tivesse ido embora, e assim não se meteria em problemas. Mas outra parte queria voltar a vê-lo e, ainda que tentasse convencer-se a si mesma de que era apenas para procurar obter alguma informação, o certo era que essa não era a verdadeira razão por que ia ao seu encontro.
Saiu para o jardim e sentiu que ficava sem fôlego ao distinguir, sob a luz da lua e das estrelas, o vulto de Kirtash no miradouro. Respirou fundo. Ainda estava a tempo de regressar...
Mas avançou até ficar a uns passos dele. O jovem voltou-se para olhar para ela. Estava mais sério do que era habitual nele.
- Boa noite - disse com suavidade. Victoria engoliu em seco.
- Boa noite - respondeu. Titubeou e acrescentou: - Lamento o que se passou com a tua espada.
- Sei que não o sentes na realidade - replicou ele. - Ao fim e ao cabo, ia matar Jack com ela.
Victoria não soube o que dizer.
- Aproxima-te e senta-te, por favor - pediu então o shek. - Preciso de falar contigo.
Victoria negou com a cabeça.
- Se não te importas, ficarei aqui. Kirtash esboçou um sorriso.
- Como queiras. Serei breve, então. Vim avisar-te de que corres perigo.
- O que queres dizer?
- Ashran enviou alguém para te matar. Alguém que não sou eu e que, portanto, não terá escrúpulos em acabar com a tua vida.
Victoria estremeceu. Não pelas notícias que ele lhe trazia, mas sim por tudo o que implicava o facto de ele estar a contar-lhe aquilo.
- Mas... supostamente não deverias dizer-me estas coisas, não é? O que vai acontecer se Ashran souber?
Kirtash encolheu os ombros.
- Isso é problema meu. A única coisa com que tens de te preocupar, Victoria, é que estás em perigo. Fica em Limbhad ou então nesta casa. Como já te disse, protege-te. Não de mim, é certo, mas sim dela.
- Ela? - repetiu Victoria em voz baixa. Kirtash assentiu.
- Chama-se Gerde e tem muito interesse em matar-te. Ashran encomendou-lho como uma missão especial. Receio que seja por minha culpa - acrescentou -, por isso vim também despedir-me: não voltaremos a ver-nos.
Algo atravessou o coração de Victoria como um punhal de gelo.
- Nunca mais?
- Não, até que mate Jack - especificou Kirtash. - Então, poderei pedir a Ashran que não te mate.
- Não suporto ouvir-te dizer isso - replicou ela, irritada. - Fazes ideia do quanto Jack é importante para mim? Como podes continuar a dizer tão tranquilamente que vais matá-lo e esperar que eu aceite isso, assim sem mais nem menos?
- Não espero que o aceites. Sei que não o farás. Mas é tudo uma questão de prioridades, e a única coisa que me importa agora é manter-te com vida, entendes? Quando está em jogo a tua existência futura, Victoria, não posso parar para pensar nos teus sentimentos.
Ela abriu a boca para responder, mas não foi capaz. Kirtash deixara-a novamente sem palavras.
- Por isso tens de permanecer escondida - prosseguiu ele. - Não deves permitir que Gerde te encontre, de forma alguma.
- Posso lutar contra ela. Kirtash olhou-a fixamente.
- Sim. E talvez consigas derrotá-la. Mas não quero correr riscos. E mesmo que Gerde fracasse, Ashran enviará outra pessoa.
- Lutarei contra todos eles - assegurou Victoria, com ferocidade. E - acrescentou, olhando Kirtash nos olhos, desafiadora - continuarei a proteger Jack. Não permitirei que lhe ponhas a mão em cima.
Kirtash não fez nenhum comentário.
Houve um silêncio que para Victoria foi muito desconfortável. Suspeitava que ele não tivesse mais nada a dizer, e isso significava que se iria embora e que talvez não voltasse a vê-lo. E se, para se reencontrar com Kirtash num futuro, Jack tinha de morrer, Victoria preferia que esse reencontro não se desse nunca.
Por isso, tinha de atrasar o mais possível o momento da despedida.
- Como... como conseguiu Jack quebrar a tua espada? - perguntou por fim.
Kirtash fitou-a, muito sério, e Victoria receou ter ido demasiado longe. Mas, finalmente, o shek respondeu:
- Eu estava alterado e perdi a concentração. Isso tirou poder a Haiass. Por isso Jack conseguiu quebrá-la.
Victoria intuía que havia muito mais por detrás daquela simples explicação, algo que Kirtash não queria contar-lhe. Insistiu:
- Mas tu... és um shek, não? És poderoso. És... quase invencível. Kirtash continuava a olhar para ela daquela maneira tão intensa, e Victoria desviou o olhar, incomodada.
- Sou um shek - respondeu ele. - Mas isso não é nada de novo para ti, não é? O que queres saber exactamente?
Victoria abriu a boca para lhe fazer perguntas acerca de Jack, mas os sentimentos contraditórios que Kirtash lhe inspirava voltaram a confundi-la e disse em voz baixa:
- Quero saber se realmente podes sentir algo... algo por mim.
Os frios olhos azuis de Kirtash pareceram iluminar-se com um brilho caloroso.
- Ainda duvidas? - perguntou com suavidade, e o coração de Victoria voltou a bater desenfreadamente. Sacudiu a cabeça. Sabia que não era humano, sabia que...
O que é que sabia, na realidade? Inclinou a cabeça e olhou para ele, procurando decifrar os seus mistérios.
- Quem... quem és? - perguntou.
- Sou Kirtash - respondeu ele, com simplicidade. - Claro que também podes chamar-me Christian, se preferires. Victoria calou-se, confusa. Ele sorriu-lhe.
- A sério que queres saber quem sou? É uma longa história. Estás disposta a ouvi-la?
Victoria hesitou, mas finalmente avançou uns passos, sentou-se junto dele e olhou-o com certa timidez. Kirtash contemplou a Lua em quarto minguante durante uns instantes.
Depois disse:
- Eu nasci humano. Completamente humano. Há dezassete anos, num lugar qualquer de Idhún.
" Tenho poucas lembranças da minha infância. Vivia com a minha mãe numa cabana, coisa pouca, junto ao bosque de Alis Lithban, o lar dos unicórnios. Talvez a minha mãe pensasse que os unicórnios nos protegeriam a ambos, por isso escolheu aquele lugar para viver. Não sei.
" Na altura, eu não me chamava Kirtash, mas não me lembro do nome que .a minha mãe me pôs ao nascer e também não me lembro do nome dela, nem do seu rosto; essas coisas foram apagadas da minha memória há muito tempo.
" Os sheks regressaram a Idhún quando eu tinha dois anos. E lembro-me claramente desse dia. O céu tornou-se vermelho, os seis astros entrelaçaram-se sobre nós. Havia um ambiente... estranho, sobrenatural, que provocava pele de galinha.
" Estava nos arredores do bosque. Não me perguntes o que fazia ali, porque não me lembro. Só sei que tinha saído de casa, talvez num descuido da minha mãe, e tinha-me afastado na direcção da floresta. Foi então que vi o unicórnio.
" Avançou em direcção a mim, a cambalear, a tremer sob a luz dos seis astros. Até que, incapaz de continuar a caminhar, caiu ao chão, agonizante.
" Lembro-me de me ter aproximado dele. Lembro-me de lhe ter tocado ao de leve, talvez querendo ajudá-lo. Não sei, era muito pequeno e não sabia o que estava a acontecer.
" Aquele unicórnio morreu diante dos meus olhos. Não compreendi muito bem porquê... pelo menos naquele momento. Então, a minha mãe chamou-me da cabana, e voltei a correr. Quando cheguei, encontrei-a muito assustada. Fez-me esconder debaixo da cama e pôs-se a fechar todas as portas e portadas, e a segurá-las com tudo o que encontrava, como se temesse que alguém pudesse atacar-nos a qualquer momento. Eu pensava que era por causa daquele céu vermelho, porque as luas e os sóis estavam numa posição estranha, talvez até por causa da morte do unicórnio.
" Mas nem as tábuas pregadas nas janelas nem os móveis amontoados contra a porta podiam detê-lo. E, no fundo, a minha mãe sabia-o, sabia quando se acocorou num canto,
a tremer e abraçando-me com todas as suas forças, desejando que tudo aquilo não fosse mais do que um pesadelo.
" Foi assim que Ashran, o Necromante, nos encontrou, quando fez voar a porta como se fosse uma pena e entrou na casa à nossa procura... à minha procura. A minha mãe tentou impedir que me levasse consigo, mas o que podia uma pobre mulher fazer contra a poderosa magia de Ashran? Eu era seu filho e, portanto, pertencia-lhe. Não sei como os meus pais se conheceram, não sei porque estiveram juntos; posso apenas deduzir, pelo pouco que me lembro, que a minha mãe tenha decidido fugir comigo, quando eu era um bebé, para longe do meu pai, mas sabendo no fundo que, quando ele quisesse reclamar-me, nos encontraria de qualquer maneira, não importava para onde fôssemos.
" E assim foi. Ashran levou-me com ele, à força. Nunca mais voltei a ver a minha mãe.
" Depois...
Calou-se por um momento. Victoria escutava com atenção, e Kirtash continuou a falar:
- Depois, Ashran utilizou-me para selar o seu pacto com os sheks. Eles trouxeram um dos seus, um shek jovem, quase recém-saído do ovo. Ashran ofereceu o seu próprio filho.
" E fundiu-nos aos dois num único ser.
- O quê! ? - exclamou Victoria. Kirtash olhou-a.
- Sabes do que estou a falar - disse-lhe. - É o mesmo feitiço que converteu o teu amigo Alexander no que é agora; aquele que faz com que duas almas, dois espíritos, se fundam num só. Elrion introduziu no seu corpo o espírito de um lobo. Ashran implantou no meu corpo o espírito de um shek. Só que, no meu caso, a magia saiu bem, os dois espíritos fundiram-se totalmente num só. Alexander, em contrapartida, é um híbrido incompleto; o seu corpo alberga dois espíritos, o do homem e o do lobo, e os dois estão em luta permanente pelo controlo do seu ser. No meu caso, essa luta nunca chegou a produzir-se. Ao fim e ao cabo, Ashran é poderoso e sabe o que faz.
- Um... híbrido - repetiu Victoria, desconcertada.
Kirtash assentiu.
- Funciona apenas com indivíduos muito jovens, não com adultos. Além do mais, Alexander, em particular, tem uma grande força de vontade, e a sua alma rebelou-se com todas as suas forças contra a invasão do espírito do lobo... E não é só isso, até consegue controlá-lo durante a maior parte do tempo.
" De qualquer forma, mesmo com crianças, na maior parte das vezes a fusão de espíritos não corre bem. Eu era uma criança e, no entanto, passei muito mal nos primeiros dias.
- Dói? - perguntou Victoria em voz baixa. Kirtash assentiu, mas não entrou em pormenores.
- Depois, já não me importou. Dizer que me tinha convertido num humano com os poderes de um shek é simplificar as coisas, mas poderia definir-me assim. Só que não são simplesmente "poderes". Sou um shek. E também sou humano.
" Ashran chamou Kirtash à nova criatura nascida da sua experiência. Os sheks ensinaram-me a usar as minhas capacidades. Os melhores mercenários e assassinos humanos ensinaram-me a lutar, a matar. O próprio Ashran ensinou-me a utilizar a magia que aquele unicórnio me entregou antes de morrer. Aprendi depressa. Afinal, algo dentro de mim tornava-me superior a todos eles. Ganhava logo vantagem sobre os meus professores, em tudo excepto na magia, que nunca correu bem, dado que o poder mental do shek mantinha subjugado o poder entregue pelo unicórnio; apesar deste pormenor, converti-me no melhor agente de Ashran, naquele em quem ele mais confiava. Acima de tudo, era seu filho.
- E nunca o odiaste... pelo que te fez?
- Não. Porquê? Sou o que sou graças a ele. Não me odeio a mim mesmo, não me arrependo do que faço. O shek não é um parasita no meu interior, Victoria. É parte de mim. A criatura que sou agora é obra de Ashran, o Necromante. A ele devo a minha existência... como híbrido, sim, mas a minha existência, no fim de contas. E - acrescentou, olhando-a fixamente - é justamente o híbrido que te provoca esses sentimentos. Se fosse um shek, iria horrorizar-te. Se fosse um humano, não terias reparado em mim. E a mistura que te atrai. É de Kirtash que gostas, não do humano que poderia ter sido se Ashran não me tivesse feito como sou.
Victoria ia protestar, mas calou-se, confusa, porque percebeu que ele tinha razão.
- Perguntavas-me pelos meus sentimentos - prosseguiu Kirtash. Os sheks não podem amar os humanos, como já imaginavas. Contudo, reparei em ti porque sou um shek. Se tivesse sido simplesmente um assassino humano, ter-te-ia matado sem hesitar. Mas vi algo em ti que me chamou a atenção; primeiro, intrigou-me, e depois, finalmente, fascinou-me.
" Mas se esse fascínio se converteu em algo mais, Victoria, é porque também sou humano e, como humano, posso experimentar emoções. Essas emoções, que para Jack são uma força, para mim são uma fraqueza. O meu pai sabe-o; sabe o que sinto por ti, sabe que és o meu ponto fraco, e por isso decidiu que deves morrer.
Victoria sentiu que lhe faltava o ar. A sua história comovera-a profundamente, mas, sobretudo, voltara a libertar aqueles sentimentos confusos no seu interior. E que agora sabia com certeza o que, no fundo, o seu coração nunca tinha posto em causa nem por um único instante: que havia entre eles uma emoção intensa, real. Porque ele era parcialmente humano. Como ela.
Aproximou-se um pouco mais.
- Christian - sussurrou. - Posso chamar-te Christian?
- Chamas Christian à minha parte humana? - perguntou ele, sorrindo.
Victoria franziu o sobrolho, pensativa.
- Talvez... não sei. Chamo-te Kirtash quando te odeio. Chamo-te Christian quando te amo. É difícil resolver-me por um ou outro sentimento, tratando-se de ti.
O sorriso de Christian tornou-se mais rasgado.
- É confuso - prosseguiu ela. - Tens razão. Se fosses um humano completo não sentiria o que sinto por ti. Mas... talvez também não te odiasse por vezes. Horroriza-me o modo como tens de matar, como se a vida não fosse importante.
- Não é. Pelo menos não para um shek.
- E a isso que me refiro. Não sei a que me ater contigo. E também não ajuda o facto de estares obcecado por matar o meu melhor amigo.
- É muito mais que o teu melhor amigo, Victoria.
- Isso incomoda-te?
- De maneira nenhuma. Não estou com ciúmes, se é isso que pensas. Não vejo porque tens de amar uma só pessoa, se no teu coração há espaço para duas. Não me pertences.
Também não me pertence o que sentes por mim. Mas tu podes sentir outras coisas... por outras pessoas. Os sentimentos são livres e não seguem normas de qualquer espécie.
" Quero matar Jack por dois motivos. Um, por ser o que é. O outro, para te salvar a vida. Como vês, não tem nada a ver com o facto de estares apaixonada por ele. E menos ainda com o facto de ele te corresponder. Isso tornará as coisas mais fáceis, já que é a única coisa em que Jack e eu estamos de acordo: ambos queremos que não te aconteça nenhum mal.
- Mas porquê... porque dizes que tens de matar Jack para salvar a minha vida?
- Ashran tem-vos na sua lista negra, Victoria. Vocês devem morrer. A minha missão consiste em matar os renegados, já sabes. Isso inclui-te a ti... de uma maneira especial, por uma série de razões.
" Se oferecer ao meu pai a vida de Jack, poderá perdoar-te. Não me perguntes porquê; é assim.
Victoria calou-se por um momento. Depois, disse:
- E se for contigo para Idhún, como me propuseste? Será que isso salvaria a vida de Jack?
Chrisfian negou com a cabeça.
- Porquê? - perguntou ela, desolada.
- É demasiado tarde, Victoria. Antes parecia-me a melhor opção para ti. Mas antes não sabia o que sei agora. As coisas mudaram.
- Não entendo nada - murmurou Victoria. - Eu... estou cansada desta guerra, estou cansada desta luta, de tantas mortes. E - acrescentou, fitando-o - não quero viver num mundo onde Jack não exista.
- Eu sei - respondeu Christian com suavidade. - Percebi isso no outro dia, quando me viste como shek e, apesar disso, estavas disposta a morrer para o proteger.
- Incomodou-te?
- Incomodou-me, sim, porque quero ver Jack morto, mas, acima de tudo, quero que continues viva. E, como já te disse uma vez, isso pode trazer-me muitos problemas.
Victoria assentiu, compreendendo.
- Então fica connosco - pediu-lhe. - Não voltes para Ashran. Inspirou fundo antes de o olhar nos olhos e dizer: - Vem comigo.
- Queres dizer que abandone o meu bando? - perguntou Christian, quase a rir. - Pedes-me que traia a minha gente, o meu senhor... o meu pai.
- Já estás a traí-los - recordou Victoria com suavidade. - Ashran quer-me morta. Não sabe que estás aqui.
Christian pareceu hesitar.
- É que, apesar de tudo, não posso trair-me a mim mesmo. - Voltou-se para olhar para ela. - Deixar-me-ia matar antes de permitir que te acontecesse algum mal.
Victoria reprimiu um suspiro. Sabia que falava a sério, sabia que era sincero quando lhe dizia aquilo e isso confundia-a, mas também fazia com que os seus próprios
sentimentos por ele se descontrolassem, como um rio transbordante. No entanto, ainda não tinha a certeza de querer amar alguém que não era completamente humano.
Mas desejava muito aproximar-se mais dele, sentir o seu contacto... uma vez mais...
- Posso abraçar-te? - perguntou-lhe, hesitando.
Christian fitou-a, indeciso. Victoria já tinha percebido que ele não gostava que lhe tocassem, mas insistiu:
- Por favor.
Ele assentiu quase imperceptivelmente. Victoria abraçou-o com todas as suas forças e, após um instante de dúvida, Christian também a abraçou.
A rapariga fechou os olhos e desfrutou daquele toque e das sensações que provocava no seu interior. Humano ou não, compreendeu que precisava de estar junto dele. E isso recordou-lhe que Christian tinha ido ali para se despedir.
- Quando fores - sussurrou ela -, não voltarei a ver-te, não é?
- Vais esconder-te em Limbhad, Victoria? Prometes-me?
- O que irá acontecer a Jack?
- Estamos condenados a enfrentar-nos. Mais cedo ou mais tarde, voltaremos a fazê-lo. Sabes que lutarei com todas as minhas forças para acabar com a sua vida... mas agora, mais do que nunca, sei que é possível que seja ele a matar-me a mim - acrescentou, contemplando pensativo o círculo de árvores queimadas e negras que se via mais abaixo, no pinhal.
- Mas eu não quero perder nenhum dos dois - protestou ela.
- Se vencer essa luta - prosseguiu Christian -, voltarás a ver-me porque estarás a salvo, e poderei levar-te comigo para Idhún, se ainda quiseres. Mas é muito provável que me odeies nessa altura, porque Jack estará morto. No entanto, correrei o risco, se com isso conseguir que Ashran se esqueça de ti.
" Se Jack vencer - acrescentou -, não voltarás a ver-me, porque estarei morto.
Victoria engoliu em seco e abraçou-o ainda com mais força.
- É horrível.
- Eu sei. Mas é assim que as coisas são. Victoria engoliu as lágrimas.
- Então - disse - desfrutemos deste momento. Ainda restam várias horas até ao amanhecer.
Fechou os olhos e apoiou a cabeça no peito de Christian, e ele estreitou-a entre os seus braços, entrelaçou os seus dedos no cabelo negro de Victoria e beijou-a na testa, com ternura.
Longe dali, longe da sua percepção, longe dos seus olhares, uns dedos longos e finos deslizavam sobre uma bacia de água e uma voz melodiosa sussurrava palavras mágicas. A água mudou de cor, escureceu, tremeu durante um instante, e depois, lentamente, aclarou-se até mostrar uma imagem com nitidez.
Era de noite. Sob a Lua e as estrelas via-se uma mansão; nas traseiras estendia-se um jardim, que acabava num miradouro que dominava uma extensão arborizada. Sobre o banco de pedra do miradouro havia dois vultos: um estava vestido de branco, o outro, de preto. E os dois abraçavam-se com força, como se aquela fosse a última noite das suas vidas.
Os dedos crisparam-se sobre a imagem e a voz melodiosa ciciou, enfurecida.
O OLHO DA SERPENTE
- Tenho de ir - sussurrou Christian, afastando-se de Victoria com suavidade.
- Não - suplicou ela. - Não, por favor. Quero voltar a ver-te... Calou-se de imediato, consciente do que significavam aquelas palavras. - Não quero voltar a ver-te - corrigiu-se. - O que eu quero é que não te vás embora.
Christian olhou-a.
- Não irei completamente - disse. - Quero oferecer-te duas coisas. Vem, vê.
Ergueu a mão para lhe mostrar o anel que usava. Victoria estremeceu. Lembrava-se bem; reparara nele dois anos antes, na Alemanha. Era um anel prateado com uma pequena esfera de cristal, de cor indefinida, engastada numa armação em forma de serpente, que enroscava os seus anéis em torno da pedra. Victoria sabia que Christian usava sempre esse anel, mas não gostava de olhar para ele, porque tinha sempre a irracional sensação de que era um olho que a observava.
- Sabes o que é isto? - perguntou Christian em voz baixa. Victoria negou com a cabeça.
- Chama-se Shiskatchegg - disse ele. - O Olho da Serpente. Victoria soltou uma exclamação surda.
- Shiskatchegg! Ouvi falar dele. Não sabia que era um anel. Mas sei que na Era Negra, o imperador Talmannon utilizou-o para controlar a vontade de todos os feiticeiros - acrescentou, recordando tudo o que Shail lhe contara a esse respeito.
- Há séculos que os sacerdotes o despojaram desse poder, uma vez terminada a guerra. Mas os sheks conseguiram recuperar o anel. Dizem que é um dos olhos de Shaksiss, a serpente do coração do mundo, a mãe de toda a nossa raça.
- Não deve ser uma serpente muito grande - disse Victoria.
- Shiskatchegg é muito maior por dentro do que por fora. O seu tamanho pequeno é apenas aparente. De qualquer forma, é um dos símbolos do meu poder. O outro era Haiass - acrescentou após um breve silêncio.
- Que... que propriedades tem?
- É difícil de explicar. Digamos que guarda parte da minha percepção shek.
É como uma extensão de mim mesmo. Também é um dos emblemas do meu povo. A minha missão
era vital para nós, por isso deram-me o anel. - Olhou-a nos olhos antes de dizer: - Agora quero que fiques com ele.
Victoria sentiu que lhe faltava o ar.
- O quê? - perguntou, convencida de que não tinha ouvido bem.
- Disse-te que, ainda que estivesse longe, teria um olho posto em ti. Referia-me, em concreto, a este olho.
Victoria fitou-o, perguntando-se se estaria a troçar dela. Mas Christian não troçava.
- Enquanto o tiveres posto - explicou -, estarei contigo, de alguma maneira. Saberei se estás bem ou se estás em perigo. E, se alguma vez te sentires ameaçada, só tens de me chamar através do anel, que eu irei ter contigo, estejas onde estiveres, para te defender com a minha vida, se for preciso.
Enquanto falava, Christian tirou o anel e colocou-o, com suavidade, num dos dedos de Victoria. Ela teve a sensação de que lhe ficava grande; mas, quase de imediato, deu-se conta de que não era assim: ajustava-se-lhe na perfeição.
- Vês? - sussurrou Christian. - Agradaste-lhe; sabe que és especial para mim.
Victoria pestanejou várias vezes para conter as lágrimas. Sentia-se emocionada e tinha um nó na garganta, por isso foi incapaz de falar. De modo que lhe lançou os braços ao pescoço e o estreitou com todas as suas forças. Christian abraçou-a, apoiando o seu rosto no dela.
- Não vás - suplicou a rapariga. - Por favor, não vás. Não me importa quem és ou o que quer que sejas, não me importa o que tenhas feito, estás a ouvir? Só sei que preciso de ti ao meu lado.
- É isso que te diz o coração? - perguntou Christian com meiguice.
- Sim - sussurrou Victoria. Ele sorriu.
- Se não voltar - disse-lhe ao ouvido -, quero que, aconteça o que acontecer, permaneças junto de Jack. Ele proteger-te-á quando eu não estiver. Entendes?
Victoria abanou a cabeça.
- Porque... porque sou tão importante?
- És - Christian fitou-a. - Não imaginas quanto. Separou-se dela.
- Até sempre - disse. - Aconteça o que acontecer, estarei contigo, sabes disso. Mas, antes de partir, quero oferecer-te outra coisa. Olha para mim.
Victoria fê-lo, com os olhos cheios de lágrimas. Os olhos azuis do shek continuavam a ser tão misteriosos como sugestivos, mas estavam cheios de ternura. Victoria sentiu a consciência dele a introduzir-se na sua, sondando a sua mente, como naquele dia na Alemanha, mas desta vez não teve medo. Não queria ter segredos para ele, já não. Queria que soubesse que, ainda que regressasse com Jack, ainda que desse a vida para proteger a do seu amigo, jamais esqueceria Christian.
Sentiu que o sono a invadia e que as pálpebras lhe pesavam. Lutou desesperadamente contra aquela súbita sonolência, porque não queria separar-se de Christian, porque sabia que, se adormecesse, quando acordasse ele já não estaria ao seu lado. Mas a mente do shek era demasiado poderosa e, finalmente, Victoria rendeu-se ao sono e caiu adormecida nos seus braços.
Christian contemplou-a por um instante, com uma expressão indecifrável. Depois levantou-a, com cuidado, e levou-a em braços até à casa.
Todas as portas se abriram diante dele. O shek não fez o menor ruído enquanto deslizava pelos corredores com a sua preciosa carga. O seu instinto conduziu-o directamente até ao quarto de Victoria e, uma vez ali, depositou-a sobre a cama. Ficou a olhar para ela durante mais algum tempo, adormecida à luz da lua que entrava pela janela. Acariciou-lhe o cabelo e hesitou por um instante, mas acabou por dar meia-volta e sair do quarto.
Desceu a escadaria, silencioso como uma sombra.
Mas na sala encontrou-se com uma figura que o esperava, de pé, serena e segura, junto a uma das janelas. O jovem parou, tenso, e voltou-se para ela.
Christian e Allegra d Ascoli observaram-se por um momento, em silêncio. A mulher não fez nenhum gesto, nenhum movimento, não disse uma palavra. Limitou-se a olhar para o shek, com um profundo brilho de compreensão nos olhos.
Christian também pareceu compreender. Ergueu os olhos para a escadaria, na direcção do quarto onde deixara Victoria a dormir. Allegra assentiu. Christian esboçou um sorriso e saiu da casa.
Allegra não disse nada, não se mexeu. Só quando o shek abandonou a mansão, se dirigiu à porta principal, para voltar a fechá-la à chave.
Depois estremeceu, como se tivesse sentido que uns olhos invisíveis a observavam. Ergueu os olhos, e disse, com desagrado, mas também com firmeza:
- Fora da minha casa.
Longe dali, a água da bacia tornou-se turva, e a espia emitiu uma exclamação de raiva e frustração. Esforçou-se por recuperar a imagem da mansão, mas as águas continuaram mudas e negras como o fundo de um lamaçal.
Furiosa, atirou ao chão o conteúdo da bacia. Depois acalmou-se e pensou que, afinal, não precisava de continuar a observar através da água encantada.
Já vira bastante e já sabia tudo o que precisava de saber.
Victoria viu-se de imediato num bosque frio e escuro, e sentiu medo. Olhou em redor, à procura dos seus amigos: Jack, Christian, Alexander, ou até mesmo Shail, embora soubesse que ele não voltaria. Mas estava sozinha.
Avançou através da floresta cerrada, mas a sua roupa prendia-se nas silvas, os ramos mais baixos arranhavam a sua pele, e os seus pés descalços tropeçavam nas raízes uma e outra vez. Por fim, Victoria caiu de bruços no chão, e os seus joelhos tocaram a terra fria e húmida. A tremer, agachou-se junto ao tronco de uma árvore, sem entender ainda o que estava a fazer ali.
Então, um suave brilho avançou em direcção a ela por entre as árvores. Victoria levantou-se, alerta, disposta a fugir ou a lutar se fosse preciso. Mas aquela luz não parecia agressiva. Havia algo nela que a acalmava e que inundava o seu coração de uma simples e inexplicável alegria.
A criatura luminosa saiu então da vegetação e caminhou na sua direcção.
Victoria ficou sem fôlego.
Era um unicórnio, imaculadamente branco, de crina prateada como raios de lua. Movia-se com uma graça sobrenatural e inclinava o pescoço delicadamente para a frente, olhando Victoria nos olhos enquanto avançava na sua direcção. A rapariga não conseguia mover-se. Os olhos do unicórnio reflectiam uma estranha luz sobrenatural e transmitiam lhe tantas coisas...
A criatura parou diante dela. O seu longo corno em espiral era belo, mas parecia uma arma temível; apesar disso, Victoria não teve medo. Parecia-lhe que se reencontrava
com um velho amigo. Teve vontade de acariciar a sua pelagem sedosa e resplandecente, de pentear a sua crina prateada com os dedos, mas apenas conseguiu suster o olhar daqueles olhos escuros que reflectiam a sua própria imagem.
E então reconheceu-a.
- Lunnaris - sussurrou.
Ela inclinou a cabeça e baixou as pálpebras num assentimento mudo. Engolindo em seco, Victoria aproximou-se mais da criatura e passou os braços pelo seu longo e esbelto pescoço. O unicórnio não se mexeu.
- Porque demorei tanto a encontrar-te? - perguntou-lhe Victoria.
- Procurei-te nos cinco continentes, Lunnaris; chamei-te em sonhos; gritei o teu nome às estrelas. Mas tu não respondias.
O unicórnio não disse nada, mas baixou a cabeça e esfregou o focinho contra ela, procurando consolá-la.
- Shail gostava de ti, sabes? - disse Victoria, com os olhos cheios de lágrimas. - Salvou-te a vida e de seguida consagrou a sua a procurar-te para te salvar outra vez. Porque o abandonaste? Porque o deixaste morrer?
Lunnaris afastou-se dela com suavidade e voltou a olhá-la. Victoria viu-se reflectida nos seus olhos, dois poços luminosos cheios de infinita beleza e sabedoria antiga, mas não compreendeu o que o unicórnio queria dizer-lhe.
Então ouviu-se um ruído distante, algo que soou como uma porta a abrir-se, e Lunnaris voltou a cabeça com uma ligeireza que teria deixado qualquer corça com inveja e levantou as orelhas, alerta.
- Não - pediu-lhe Victoria. - Não vás. Por favor, fica.
Mas o bosque iluminou-se de imediato, e Lunnaris voltou-se para Victoria para olhar para ela uma vez mais, enquanto a sua imagem se esfumava e desaparecia sob a luz da manhã.
- Lunnaris! - chamou Victoria.
- Lunn... - murmurou, virando as costas à janela e procurando tapar a cabeça com a colcha.
- Acorda, dorminhoca - disse a voz da avó. - Sabes que horas são? Já passa do meio-dia.
Victoria abriu os olhos, pestanejando com a luz do dia.
- Meio-dia? - repetiu, desorientada. - Porque... porque é que o despertador não tocou?
- Porque hoje é sábado e não o programaste. Estavas a pensar ir a algum lado? Porque, se estavas, parece-me que vais ter de mudar de planos.
- Porquê? - perguntou Victoria, desembaraçando-se das mantas. A avó estava de pé junto à janela e olhava através do vidro com expressão pensativa.
- Porque chove a cântaros, filha. Olha que dia tão feio! Victoria voltou a cabeça. Efectivamente, um manto de pesadas nuvens cinzentas cobria o céu e uma chuva densa caía sobre a mansão.
- É indiferente - disse. - Não estava a pensar ir a lado nenhum.
A avó voltou-se para ela e sorriu, mas o sorriso morreu-lhe de imediato no rosto. Ficou a olhar fixamente para Victoria, muito séria, e pareceu à rapariga que empalidecia.
- Avó? - perguntou, insegura. - O que se passa? Allegra voltou à realidade.
- Nada, querida. - Sorriu, mas a Victoria pareceu-lhe um sorriso forçado. - Dá-me a impressão de que hoje estás... diferente.
- Diferente? Em que sentido?
- Não faças caso, são disparates meus - concluiu, dando por resolvida a questão. - Dou-te mais dois minutos. Mas não adormeças outra vez, está bem? Já é muito tarde.
- Não te preocupes, não me vou demorar - respondeu Victoria, ainda perplexa.
A avó saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Victoria voltou-se e respirou fundo, tentando ordenar as ideias. A sua mão direita repousava sobre a almofada, e viu que no seu dedo anelar ainda brilhava, misterioso e inquietante, Shiskatchegg, o Olho da Serpente.
- Não foi um sonho - murmurou, recordando o seu encontro com Christian, a conversa, tudo o que acontecera....
E então lembrou-se de Lunnaris. Vira-a em sonhos. Era esse o segundo presente que Christian lhe prometera? Victoria compreendeu que sim. O shek tinha explorado a sua mente até dar com a lembrança do seu encontro com Lunnaris e fizera-o vir à tona. Victoria perguntou-se se realmente vira o unicórnio naquelas circunstâncias, se aquele encontro tinha realmente ocorrido e, caso assim fosse, porque o tinha esquecido. De qualquer maneira, agora compreendia porque é que Christian não procurara usá-la para que o conduzisse até Lunnaris; se aquelas eram todas as suas lembranças acerca dela, não iam ser de muita utilidade.
Mas tinha sido lindo. Lunnaris era uma criatura belíssima, pura magia, e Victoria entendia agora que Shail fosse tão obcecado por ela. O que tornava ainda mais inexplicável que Victoria não se lembrasse dela até àquela noite.
Soergueu-se; a sua cama estava encostada à parede debaixo da janela, e ela apoiou-se no parapeito, ainda sentada com as mantas em cima, para contemplar a chuva que caía sobre o jardim. Debaixo daquela luz cinzenta, o miradouro parecia triste e solitário, e Victoria pensou em Christian e sentiu a falta dele.
Por alguma razão, pensar em Christian fê-la lembrar-se de Jack, que continuava a recuperar em Limbhad. Na noite anterior não tinha ido visitá-lo, e o rapaz estaria sem dúvida com vontade de a ver. Victoria sorriu e notou que um calor agradável inundava o seu coração ao pensar nele. Pela primeira vez, não se sentiu confusa, talvez pelo que Christian lhe dissera a esse respeito. "Os sentimentos não seguem normas de qualquer espécie", recordou Victoria. Começava a admitir que estava apaixonada por duas pessoas ao mesmo tempo. Suspirou. Bem, aceitava-o, podia viver com isso.
O problema era que aquelas duas pessoas queriam matar-se uma à outra. Victoria sabia que não poderia evitar aquele confronto e que, fosse qual fosse o resultado, ela sofreria.
Evitando pensar nisso, olhou para o relógio; era já meio-dia e dez. Victoria decidiu que iria descer para tomar o pequeno-almoço e, de seguida, iria a Limbhad ver Jack.
Antes de se levantar, ficou por um momento a contemplar, pensativa, a pequena esfera de cristal de Shiskatchegg; agora parecia ser de um verde-profundo e brilhava enigmaticamente. Continuava a produzir uma estranha perturbação nela, mas Victoria começava a acostumar-se. Acariciou a pedra com a ponta do dedo, e esta ficou de um tom vermelho-escuro. Victoria sorriu e beijou o anel com infinito carinho.
- Para ti, Christian - sussurrou. - Amo-te.
"Mas", acrescentou em silêncio, "se fizeres mal a Jack, mato-te."
Ainda a sorrir, vestiu um roupão e desceu para tomar o pequeno-almoço.
Do outro lado do mundo, Christian estremeceu e sorriu ao mesmo tempo.
Estava à varanda da sua casa, um último andar que dominava parte da cidade de Nova Iorque. Era um apartamento pequeno e com poucos móveis, os suficientes, mas bastavam para Christian. Não passava ali muito tempo e, de qualquer forma, também não gostava de visitas. Por isso, quando sentiu atrás de si uma presença inebriante que cheirava a lilás, nem sequer se deu ao trabalho de se voltar. Gerde percebeu imediatamente que não era bem-vinda.
- Kirtash - disse, não obstante, com uma voz aveludada.
- Que queres? - perguntou ele sem erguer a voz, mas num tom tão gélido que a fada hesitou.
- Fui enviada pelo nosso senhor, Ashran. Quer ver-te. O tom da sua voz advertiu Christian de que algo estava terrivelmente mal.
- Informa-o de que me apresentarei de imediato diante dele - murmurou, no entanto.
Notou a aura sedutora de Gerde ainda mais perto, por isso não se surpreendeu quando ela lhe disse, quase ao ouvido, com voz suave e melodiosa:
- Estás metido num belo sarilho.
Christian voltou-se com a rapidez de um relâmpago, pegou-lhe pelos pulsos e encostou-a contra a parede.
- Não sabes com quem estás a falar - ciciou, olhando-a nos olhos. Gerde afastou o olhar com um calafrio, receosa do poder do shek.
Contudo, esboçou um sorriso sugestivo.
- Ainda podemos resolver as coisas, Kirtash - disse-lhe em voz baixa; colou-se a ele, sugestiva, e Christian sentiu o seu calor perturbante através das roupas leves que vestia. - Ashran sabe o que fizeste, mas ainda não é demasiado tarde. Mata-a e fica comigo; sabes que só ela se interpõe entre ti e o teu império em Idhún. Vai e mata-a, e oferece a sua cabeça a Ashran. Ele perdoar-te-á.
Christian semicerrou os olhos. O olhar negro de Gerde estava carregado de promessas. Mas o shek replicou com frieza:
- Não me provoques, Gerde. Sinto que a cada segundo que passas aqui enfraqueces cada vez mais, que estás a desejar voltar a correr para o teu bosque, que o fumo, o aço e o cimento da grande cidade murcham a tua aura feérica. Poderia deixar-te aqui paralisada, neste preciso lugar, e sentar-me a ver como te consomes pouco a pouco.
Sem remorsos. Creio que até gostaria do espectáculo.
Um relâmpago de ira passou pelos olhos de Gerde. Afastou-se de Christian; este não deixou de notar, no entanto, que o seu olhar se voltou, instintivamente, para onde, várias ruas mais adiante, se estendia o Central Park, o pulmão verde da cidade, o único oásis onde Gerde poderia refugiar-se num raio de muitos quilómetros. A voz da fada, porém, não traiu o seu despeito quando disse:
- Não a matarias... nem sequer para salvar a tua própria vida?
- O que faço ou deixo de fazer é assunto meu, Gerde - replicou ele, mas a sua voz tinha-se suavizado um pouco.
A fada negou com a cabeça.
- Não, Kirtash. Ela já não é assunto teu. Já te disse: Ashran sabe. Sabe o que tens estado a esconder-lhe durante todo este tempo.
Chrístian não olhou para ela, mas a sua voz tinha um tom perigoso quando disse:
- O que pretendes? Queres que te mate por espiar-me, é isso que queres?
- Sei que não hesitarias em fazê-lo. Mas Ashran saberá porque acabaste comigo. E isso piorará as coisas.
Houve um longo silêncio.
- Vai - disse Christian finalmente.
Gerde sorriu, sem uma palavra. Aquele halo cativante que a envolvia perdera força nos últimos minutos, esmagado pelo ambiente asfixiante da cidade, que enfraquecia o seu poder; pelo que a fada não tardou em obedecer à ordem do shek e desapareceu do apartamento, deixando no ar um leve perfume a lilás. Christian voltou-se e entrou em casa. O fogo ardia na lareira, e de teve-se para o contemplar.
Aquela lareira tinha sido um capricho, dado que o apartamento não dispunha dela, e o jovem fizera-a construir expressamente. Gostava de se sentar a observar o fogo, que produzia nele um estranho fascínio. Todos os sheks odiavam e temiam o fogo, e talvez fosse por isso que Christian gostava da lareira, gostava de ver o fogo prisioneiro nela, escravo da sua vontade.
Sentou-se no sofá, e as chamas iluminaram o seu rosto. Inclinou a cabeça, pensativo. Esteve tentado a ir buscar Victoria, contar-lhe tudo, mas isso implicaria virar as costas a tudo o que conhecia e, por outro lado, também ele tinha o seu orgulho. Não, tinha consciência do que fizera, sabia perfeitamente quais eram as consequências por trair Ashran e devia assumir a sua responsabilidade.
Levantou-se. Aproximou a palma da mão do fogo, com suavidade. Houve um breve brilho de luz, e as chamas apagaram-se. com uma expressão sombria, Christian voltou-se e assomou novamente à varanda. Deixou que a brisa revolvesse o seu cabelo castanho antes de desaparecer dali para ir ao encontro de Ashran, o Necromante.
Uma música suave inundava os corredores da Casa na Fronteira. Era uma voz cantando uma balada e o som de uma guitarra a acompanhá-la. Victoria deixou-se guiar pela música, e esta conduziu-a directamente ao quarto de Jack.
Assomou com timidez e descobriu que era ele quem cantava. Sentara-se em cima da cama, com as costas apoiadas na parede, e tocava a sua guitarra suavemente, com delicadeza, como se a acariciasse. Não se deu conta de que Victoria acabava de chegar, e ela não quis interrompê-lo. Ficou à porta, em silêncio, a ouvir.
A canção era uma balada antiga, talvez dos anos 80; Victoria não conhecia o título nem o autor, mas tinha a certeza de já a ter ouvido noutra ocasião. De qualquer maneira, interpretada por Jack tinha outro significado, muito mais profundo. Fechou os olhos e deixou-se levar pela sua voz, até que a canção acabou, o último acorde desapareceu no ar e sobreveio o silêncio.
Então Jack ergueu os olhos e viu Victoria ali, à porta. Os dois sorriram com alguma timidez.
- É linda - disse ela.
Jack desviou o olhar, aturdido.
- Não é minha - confessou. - Não sei compor canções. Mas às vezes... - titubeou - gosto de tocar guitarra. E de cantar. Se bem que normalmente o faça quando não há ninguém a ouvir.
- Lamento - desculpou-se Victoria. - Talvez devesse ter-te avisado de que estava aqui. Se bem que tenha gostado muito de te ouvir. Jack sorriu. - Posso entrar?
- Por favor.
Victoria aproximou-se e sentou-se junto dele. Os dois evitaram olhar-se. Não sabiam o que dizer, e aquela situação pareceu a Victoria muito estranha.
- Como estás? - perguntou-lhe por fim. - Como vai a ferida?
- Está quase curada.
- Não pode ser. Tão rápido?
- Curo-me muito depressa. Já sabes que eu... - hesitou, e Victoria percebeu que havia algo que o preocupava.
- O quê?
- Já sabes que não sou normal - concluiu ele em voz baixa. Victoria respirou fundo, apoiou a cabeça no seu ombro e pegou-lhe na mão. Sabia que aquilo era algo que atormentava Jack desde a morte dos seus pais. Parecia que a sua longa viagem pela Europa o fizera esquecer um pouco aquelas dúvidas, mas estas tinham inevitavelmente regressado, e com mais força, após o seu reingresso na Resistência. Depois de dois anos, voltara a provocar fogo de maneira espontânea e, além disso, enfrentara Kirtash... vencera-o.
- Não acho assim tão grave - tranquilizou-o ela. - Olha para nós que vivemos nesta casa. Algum de nós é normal, por acaso?
O rosto de Jack iluminou-se com um largo sorriso.
- Acho que não - disse.
- Quanto a mim... gosto de ti assim, como és - confessou Victoria, com simplicidade.
Jack fitou-a, com infinito carinho. Estreitou-lhe a mão com força... Mas então um esgar de dor surgiu no seu rosto, e afastou-se bruscamente.
- O que foi? - perguntou ela, assustada.
Jack não respondeu, mas olhou para a mão, confuso. Tinha na palma algo parecido com uma queimadura, e olhou para a mão de Victoria, para ver o que a tinha provocado.
Os dois compreenderam-no ao mesmo tempo.
Shiskatchegg.
- O que é isso? - perguntou Jack, em voz baixa, contendo a ira com muito esforço.
Victoria engoliu em seco.
- É o anel de Christ... de Kirtash - disse em voz baixa, desviando o olhar. - Lamento muito; a mim não me faz mal, não entendo porque a ti faz...
- Talvez pelo pouco apreço que sinto pelo seu proprietário - resmungou Jack. - Podes explicar-me porque usas isso?
Victoria respirou fundo, uma, duas, três vezes. Depois levantou a cabeça e olhou fixamente para Jack.
- Trago-o porque ele mo ofereceu. É uma prova de carinho - acrescentou, desafiadora.
- Carinho! - repetiu Jack. - Victoria, tu viste-o como eu, sabes o que é! Achas mesmo que pode sentir algum tipo de carinho? Por ti?
Victoria semicerrou os olhos, e Jack percebeu que a tinha magoado. Maldisse-se a si mesmo por ser tão irreflectido. Puxou-a para si e abraçou-a com força.
- Ei - sussurrou. - Lamento, Victoria. Não queria dizer isso. Simplesmente não entendo...
Sacudiu a cabeça, confuso.
Victoria enterrou a cara no seu ombro e respirou fundo. Não podia culpá-lo. Sabia o quando ele gostava dela e, naquelas circunstâncias, pedir-lhe que aceitasse a sua relação com Christian era demasiado... um shek, um assassino, alguém que queria matá-lo. Se ela mesma parasse para pensar, compreenderia que tudo aquilo não passava de uma grande loucura.
Entendeu que Jack merecia uma explicação.
- Tenho muitas coisas para te contar - sussurrou. - Vais ouvir-me? Jack olhou-a de frente, muito sério.
- Sim, vou ouvir-te - prometeu.
Victoria suspirou e, após um breve silêncio, começou a falar.
E já não conseguiu parar.
Contou-lhe tudo o que acontecera entre ela e Christian, todos os seus encontros, todas as suas palavras, com todos os pormenores. Mas também lhe falou do que sentia por ele, por Jack. Enquanto ele a embalava entre os seus braços, escutando-a em silêncio, Victoria confessou-lhe abertamente até onde iam os seus sentimentos; falou-lhe do seu coração dividido, das suas dúvidas, mas, sobretudo, deixou claro que, para ela, Jack era muito mais do que um amigo, que gostava dele, que o amava com loucura e que o amaria sempre, ainda que usasse o anel de Christian, ainda que fosse ao encontro do shek de cada vez que este a chamava.
Por fim, calou-se, e seguiu-se um silêncio incómodo.
- Bem... não sei o que dizer - murmurou Jack, algo aturdido.
Victoria afastou-se dele e pegou-lhe na mão, suavemente. Examinou a palma e viu a marca da ferida que Shiskatchegg produzira. Tocou-a levemente com os dedos e deixou que a sua energia curativa fluísse até ele. Os dois viram como a marca se atenuava até desaparecer por completo.
- Aconteça o que acontecer - disse Victoria -, não deixarei que ele te faça mal. Estás a ouvir? E, se se atrever a... - Sentiu um calafrio ao pensá-lo, mas não chegou a pronunciar a palavra. - Se o fizer, Jack, juro-te que o matarei.
Ele fitou-a por um momento.
- E que me farás a mim se for eu a acabar com a sua vida? Victoria vacilou e afastou o olhar, a tremer. Pela primeira vez, Jack
intuiu os turbulentos sentimentos que habitavam o coração da sua amiga e compreendeu a sua dor. Abraçou-a novamente.
- Pode ser que seja tudo uma armadilha, Victoria - disse-lhe, a meia-voz. - Já pensaste nisso? Como sabes que Kirtash não nos espia através desse anel que te deu? Como sabes que isso não é uma artimanha para chegar a Limbhad?
- Porque teve ocasião de nos matar aos dois, Jack, a ti e a mim. E não o fez.
- É verdade - reconheceu Jack, após um momento de silêncio. - E, além do mais, salvou-te a vida - acrescentou.
- Salvou-me a vida? - repetiu Victoria, sem compreender. Jack assentiu.
- Salvou-te de mim. Eu percebi, Victoria. Na noite em que vos vi aos dois juntos e fiquei... louco. E queimei o arvoredo que há atrás da tua casa. - Fitou-a, muito sério. - O fogo que gerei esteve prestes a alcançar-te, e poderias ter ardido como aquelas árvores. Ele afastou-te das chamas, protegeu-te... com o seu próprio corpo. Não quis pensar nisso até agora e nunca pensei que diria isto, mas... é algo que tenho de lhe agradecer.
Victoria apertou-se mais contra ele. Jack abraçou-a com força.
- Porque é que têm de se enfrentar, Jack? Não há outra maneira? Jack abanou a cabeça.
- É estranho o que me acontece com Kirtash. Odiei-o desde a primeira vez que o vi, porque o associava à morte dos meus pais. No entanto, foi Elrion quem os matou, a eles e a Shail, e converteu Alexander no que é agora... um... híbrido incompleto, se tivermos em conta o que Kirtash te contou. Elrion fez tudo isso, e foi o próprio Kirtash quem acabou com ele e, de alguma maneira, nos vingou a todos. No entanto... nunca odiei esse maldito feiticeiro tanto quanto detesto Kirtash. É quase irracional, é como se o odiasse por...
- Instinto? - ajudou-o Victoria. Jack assentiu.
- Pode ser que tenha a ver com o facto de sempre ter sentido aversão por serpentes. Talvez intuísse que Kirtash era uma espécie de serpente gigante. Não acho que isso ajudasse.
- Acho que não.
- Contudo - acrescentou Jack -, estaria disposto a... esquecer tudo
- conseguiu dizer, não sem esforço -, a renunciar a matar Kirtash... se tu mo pedisses. Porque sei que, ainda que a mim me custe entendê-lo, gostas muito dele e ficarias muito mal se eu... o magoasse.
Victoria engoliu em seco.
- O único problema - prosseguiu Jack - é que ele parece empenhado em matar-me a mim. Terei de me defender. Isso não mo podes negar.
- Claro que não - murmurou Victoria, desolada. - Oxalá as coisas fossem diferentes.
Houve um breve silêncio.
- Porque é que Kirtash diz que estarás a salvo se eu morrer?
- Não sei. Não me quis explicar.
- Se fosse verdade... - Calou-se e desviou o olhar.
- O quê?
- Se fosse verdade - prosseguiu Jack, em voz baixa -, se fosse verdade que posso salvar-te dessa maneira... fá-lo-ia, Victoria. A sério.
- Não... não digas disparates - tartamudeou ela, com um nó na garganta. - Achas que te deixaria fazer algo assim? Sacrificares-te por mim?
- Por acaso não foi o que fizeste quando enfrentaste essa serpente e lhe disseste algo como "se queres matar Jack, terás de nos matar aos dois"? Sinto-me péssimo por te ter posto em perigo daquela maneira.
- Não, Jack; no fundo, eu sabia que ele não me faria mal. Além disso...
"Não quero viver num mundo onde Jack não exista", dissera a Christian. Dissera-o sentindo-o, e continuava a sentir o mesmo. Mas não se atreveu a dizer-lho.
- Tem de haver outra maneira de solucionar isto - concluiu.
- Achas que Kirtash se juntaria a nós? - perguntou Jack a contragosto; Victoria sorriu, agradecida, sabendo o quanto lhe custava aceitar ou considerar sequer aquela possibilidade. - Por ti?
- Não sei se me ama até esse ponto, Jack. São muitas as coisas que o prendem a Ashran.
É seu pai. E os sheks... são a sua gente. Mas oxalá... oxalá decida abandoná-los.
Tenho medo de pensar no que pode acontecer se descobrirem que está a proteger-me.
- Sim - assentiu Jack. - Esse Ashran não parece ser um tipo com o qual se possa brincar.
Victoria desviou o olhar.
- Continuo sem entender... o que vêem em mim - disse então, em voz baixa. - Shail... morreu para me proteger, Christian atraiçoa os seus por mim, e tu... dizes-me todas estas coisas... Mas eu não sou ninguém. Não sou nada, sou apenas uma miúda de catorze anos que nem sequer é capaz de fazer magia como deve ser. Não entendo...
Calou-se, porque Jack fizera-a erguer o queixo e olhava-a nos olhos.
- Eu entendo - disse com suavidade. - Até entendo que Kirtash atraiçoe os sheks, inclusivamente o seu pai... por uns olhos como os teus.
Victoria corou, pouco à vontade e lisonjeada.
- Sabes o que vejo nos teus olhos, Victoria? - prosseguiu Jack. Vejo... algo muito bonito. Como uma estrela a iluminar a noite. Há algo em ti que brilha com luz própria, algo que te torna diferente de todas as outras. E vejo-o tão claramente que não consigo explicar como há gente que não o perceba.
Victoria ficou sem fôlego.
-Jack, isso é... muito bonito.
Jack pareceu voltar à realidade e corou, envergonhado.
- bom... pode parecer uma tolice, mas é o que penso. Pegou-lhe na mão e levantou-a para ver mais de perto o Olho da Serpente, mas tendo muito cuidado para não lhe tocar.
- É... feio - comentou.
- Em contrapartida, eu acho-o bonito... à sua maneira - respondeu Victoria, e perguntou-se onde teria ouvido antes aquelas palavras.
Jack não insistiu. Viu que a outra mão de Victoria brincava nervosamente com a Lágrima de Unicórnio, o pendente que Shail lhe oferecera há dois anos, antes de morrer.
- Todos os rapazes que gostam de ti oferecem-te prendas - comentou, sorrindo. - Eu ainda não te ofereci nada... como símbolo do meu carinho - acrescentou, um pouco sem graça.
Victoria olhou para ele e sorriu.
- Há algo que podes dar-me e que me deixará muito feliz - disse em voz baixa.
- O quê?
Ela ruborizou-se um pouco, mas não baixou o olhar quando lhe pediu:
- Oferece-me um beijo.
Jack achou que o coração lhe ia sair do peito.
Por um instante sentiu pânico, porque nunca beijara nenhuma rapariga e teve medo de o fazer mal. Mas Victoria continuava a olhar para ele, e Jack sonhara demasiadas vezes com aquele momento para o deixar escapar agora.
Engoliu em seco, pegou suavemente no rosto de Victoria com as mãos e fê-la erguer a cabeça. Continuava perdido no seu olhar e surpreendeu-se ao descobrir que dos olhos dela transbordava um amor tão intenso como o que ele sentia naquele momento. Que a ela também lhe custava respirar, que corara, que o seu coração batia a mil à hora, tal como o dele.
Quis dizer algo, mas não encontrou as palavras apropriadas. A tremer como gelatina, inclinou-se para Victoria para lhe dar o presente que ela lhe pedira.
Foi um beijo um pouco desajeitado, mas muito doce, e Victoria soube, nesse instante e sem lugar para dúvidas, que, por estranho que pudesse parecer, era verdade, estava apaixonada por ele, tal como estava por Christian, ou quiçá de maneira um pouco distinta, mas não com menos intensidade. Deixou-se levar pelo fogo do carinho de Jack, que não era enigmático e electrizante como o de Christian, mas que a envolvia como um manto protector que lhe transmitia calor e segurança. E Victoria sentiu que, apesar de Christian ter sido o primeiro a beijá-la, semanas antes, em Seattle... de alguma maneira, o beijo de Jack era outro primeiro beijo para ela.
Alexander chegou naquele momento, à procura de Jack, mas viu-os juntos e estacou à porta; deu meia-volta e afastou-se da entrada, antes que o vissem. Uma vez no corredor, longe do campo de visão dos jovens, olhou por cima do ombro, abanou a cabeça, sorriu e afastou-se em bicos de pés.
"DIZ-ME QUEM ÉS..."
- DiVirtash - disse Ashran.
O jovem não se mexeu, não disse nada. Também não levantou o olhar. Permaneceu ali, com a cabeça baixa e um joelho no chão, inclinado ante o seu senhor.
- Ouvi coisas sobre ti - prosseguiu o Necromante. - Coisas de que não gostei nada, mas que, por outro lado, sei que podem ser verdade.
Voltou-se para ele e fitou-o, e Christian sentiu um calafrio.
- Sabias quem ela era - disse Ashran, e não era uma pergunta. Soubeste-o desde o princípio.
- Soube-o desde a primeira vez que a olhei nos olhos - murmurou Christian, sem levantar o olhar. - Há dois anos.
Percebeu a ira do pai, apesar de este não a manifestar abertamente.
- Não me disseste. Tens consciência do que isso significa?
- Tenho consciência, meu senhor.
O Necromante cruzou os braços à frente do peito.
- Por muito menos qualquer outro já estaria morto, Kirtash. Mas a ti concederei a oportunidade de te explicares. E espero, para teu bem, que seja uma boa explicação.
- Não desejo matá-la.
- Apesar de saberes o que sabes acerca dela?
- Quiçá precisamente por isso.
Christian ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de Ashran, sereno e seguro de si mesmo, quando acrescentou:
- Não desejo que morra. E irei protegê-la com a minha vida, se for preciso.
Ashran semicerrou os olhos.
- Sabes o que estás a dizer, rapaz? Traíste-me...
- Não me juntei à Resistência - explicou Christian com suavidade.
- Continuo a servir-te, meu senhor. Esperava poder suplicar-te que perdoasses Victoria, que me permitisses mante-la ao meu lado... mas queria oferecer-te em troca algo tão valioso como a vida dela, ou até mais.
Ashran compreendeu.
- Podes oferecer-me esse... algo... agora mesmo, Kirtash?
- Sei onde se encontra - respondeu o rapaz. - Sei que mais cedo ou mais tarde poderei pôr o seu corpo sem vida aos teus pés, meu senhor.
- Referes-te ao guerreiro da espada de fogo, não é? E dele que andamos à procura?
- Sim, meu senhor. Da próxima vez matá-lo-ei e, quando o fizer... a morte de Victoria já não será necessária.
- Victoria - repetiu Ashran; voltou as costas a Christian e dirigiu-se à janela. - Agora entendo muitas coisas, rapaz. Muitas coisas.
" Entendo os teus motivos e sei que não me mentes. Apenas por isso pouparei a tua vida desta vez. Mas converteste-te num ser fraco, sacudido pelas tuas emoções humanas; agora não passas de uma marioneta dessa criatura, que te maneja a seu bel-prazer. Serás capaz de dar a tua vida por ela? Sim, Kirtash, não tenho dúvidas. Mas assim... não me serves.
Christian semicerrou os olhos, procurando adivinhar qual era o castigo que o Necromante reservara para ele. Fosse qual fosse, estava preparado para o enfrentar. Ainda que lhe custasse a vida. Mas algo no tom de voz de Ashran sugeria que podia ser pior do que isso. Muito pior.
Sentiu de imediato a sua presença atrás de si, mas não se mexeu.
- Kirtash - sussurrou Ashran, enquanto deslizava os seus longos dedos pela nuca do rapaz. - Meu filho, fiz-te como és. Converti-te no homem mais poderoso de Idhún, depois de mim. És o herdeiro do mundo que conquistámos para ti. Fiz tudo isso por ti, no entanto, tu escondes-me uma informação de vital importância, um segredo que pode deitar por terra tudo aquilo por que trabalhei durante metade da vida. Porquê? Por um... sentimento.
Os dedos de Ashran fecharam-se sobre o cabelo de Kirtash. O Necromante puxou o cabelo do jovem para o fazer levantar a cabeça e olhá-lo nos olhos.
- És pateticamente humano, filho. Leio-o no teu olhar. Isto é o que essa criatura fez contigo... e ainda ousas suplicar-me pela sua vida?
A voz de Ashran era perigosa e ameaçadora, os seus olhos relampejavam com uma fúria tão terrível como a ira de um deus. Mas Christian não afastou o olhar, nem lhe tremeu a voz quando disse:
- Amo-a, pai.
O rosto de Ashran contraiu-se num esgar de cólera. Atirou o filho sobre as frias lajes de pedra. Christian não se queixou, mas também não se mexeu.
- Não mereces chamar-me "pai" - ciciou Ashran. Inclinou-se sobre ele, agarrou-o pela gola da camisola e puxou-o
até se levantar e fazê-lo ficar, de novo, de joelhos no chão.
- Mas nem tudo está perdido ainda - sussurrou-lhe ao ouvido. Ainda podes voltar a ser o meu guerreiro mais poderoso, o mais leal à minha causa... o que sempre foste, Kirtash.
O jovem sentiu que o poder de Ashran o asfixiava lentamente; apesar de tudo, conseguiu dizer a muito custo:
- Não vou fazer nada que possa prejudicar Victoria. Ashran esboçou um sorriso sinistro.
- Claro que vais fazer. Já vais ver.
Os seus dedos apertaram o pescoço de Christian, e ele sentiu que algo se introduzia no seu próprio corpo através deles, algo invisível, mas terrível, maligno e poderoso, que despertava nele a sua parte mais negra e letal.
- N... não - arquejou Christian.
- Sim - sorriu o Necromante.
Cravou as unhas na sua pele, com mais força. Obedecendo à sua vontade, aquilo que percorria Christian por dentro introduziu-se nos cantos mais recônditos do seu ser, revolvendo instintos e linhas de conduta que estavam esquecidos há algum tempo, aplacados pelo olhar luminoso de Victoria. E a parte mais inumana e mortífera do seu ser ergueu-se de novo, estrangulando os sentimentos e as emoções que tinham guiado Christian nos últimos tempos.
Era doloroso, muito doloroso. Christian cerrou os dentes para não gritar.
Ashran soltou-o. O jovem caiu a tremer no chão, aos seus pés.
- Diz-me quem és - ordenou o seu senhor.
Christian engoliu em seco. Sabia o que estava a acontecer.
Ashran estava a tentar sepultar os seus sentimentos humanos debaixo da capa de gelo e indiferença que lhe conferia a sua ascendência shek, que lhe permitia matar sem remorsos e que o fazia estar acima dos simples humanos, acima das emoções, da vida e da morte. Rebelou-se contra ele. Se o Necromante levasse a sua avante, Christian iria imediatamente matar Victoria... e fá-lo-ia sem duvidar nem por um único momento. Talvez dedicasse um breve pensamento a lamentar o desaparecimento de algo belo, já que os sheks eram especialmente sensíveis à beleza.
Mas nada mais.
Tinha de o impedir. Recordou Victoria, o nome que ela lhe dera e que simbolizava tudo o que ela vira de bom e de belo nele.
- Christian - conseguiu dizer, ofegante. - Chamo-me Christian.
Ashran franziu o sobrolho, e aquilo que o martirizava por dentro voltou a atacá-lo com mais rancor. Christian lançou um grito agonizante de dor e retorceu-se aos pés do seu senhor.
"bom tempo em toda a Espanha para todo o fim-de-semana, que durará até..."
Victoria levantou os olhos do livro que estava a ler, intrigada, e olhou para o ecrã do televisor. O mapa de Espanha mostrava um enorme sol sobre Madrid. Perplexa, mas sem se mexer do cadeirão, deu uma olhadela pela janela, para as nuvens negras que cobriam a sua casa, para a pesada chuva que não parara de cair durante toda a manhã.
- O que se passa com os tipos do tempo? - disse. - Não têm olhos na cara, ou quê?
Allegra não respondeu. Estava de pé junto à janela, a contemplar a chuva, com uma expressão profundamente preocupada. Victoria apercebeu-se nesse momento de que estavam as duas sozinhas em casa... e tinham estado sozinhas durante toda a manhã.
- Avó, onde estão Nati e Héctor?
- Disse-lhes que se fossem embora, filha.
Victoria ia fazer nova pergunta quando, de repente, algo atravessou a sua alma e a sua mente como uma adaga de gelo. Ficou sem fôlego e procurou respirar. O livro caiu ao chão.
Allegra voltou-se para ela como que movida por uma mola.
- Victoria?
Victoria arquejou, com os olhos muito abertos. As mãos tremiam-lhe violentamente quando as levou à cabeça. Lançou-se para trás e soltou um gemido de dor.
A avó veio a correr para junto dela e abraçou-a com força.
- O que é, querida? O que tens? - perguntou com ansiedade, sacudindo-a pelos ombros.
Victoria mexeu a cabeça, desesperada. Não era uma dor física, era muito mais subtil, mas, ainda assim, assombrosa. Sentia algo parecido com um chamamento agonizante nalgum recanto da sua mente, sabia que alguém de quem gostava imenso estava a sofrer terrivelmente, e aquela certeza era insuportável, como se uma garra de gelo lhe oprimisse as entranhas, como se a alma lhe pesasse como um bloco de chumbo.
- Christian - murmurou, desolada; Shiskatchegg apertava-lhe o dedo, tentando dizer-lhe algo, mas, mesmo que não o tivesse feito, sabia de alguma maneira que era ele. - Oh, não, Christian.
- O que se passa com ele, Victoria? O que vês?
A rapariga voltou-se para a avó, com o semblante inexpressivo. Estava demasiado transtornada para se aperceber de que ela não parecia intrigada pela sua conduta nem pelas suas palavras, mas que a olhava muito séria, com um brilho de profunda inquietação nos seus olhos pardos.
- Está a sofrer e... oh, não... - Segurou a cabeça com as mãos e gemeu quando percebeu que, num mundo distante, Christian sofria de novo o seu tormento.
Não aguentou mais. Levantou-se, com lágrimas nos olhos, mas a avó segurou-a pelo braço.
- Tenho de o ir salvar!
- Não vais a lado nenhum, Victoria.
- Não entendes! - gritou ela, agitando-se com fúria. - Precisa de mim!
- Está muito longe de ti, não poderás chegar a ele, não percebes?
- Não!! - gritou Victoria, desesperada.
- Não vais sair daqui, Victoria. É perigoso. Se estão a torturar Christian, é porque já sabem quem és. Não tardarão a vir buscar-te.
Victoria voltou-se para a avó. Noutras circunstâncias, ter-se-ia dado conta do que implicavam aquelas palavras, mas estava demasiado furiosa e desesperada para ser racional.
- Não me importa! - gritou. - SOLTA-ME!
Houve um cintilar de luz e algo brilhou na testa de Victoria como uma estrela, algo que cegou Allegra por um instante e a fez soltar o braço da rapariga.
Victoria não teve consciência disso. Livre para ir, deu meia-volta e subiu a escadaria a correr. A avó correu atrás dela, mas, quando chegou ao seu quarto, encontrou a porta fechada e demorou alguns segundos preciosos a abri-la. Mas, quando conseguiu entrar, o quarto estava vazio: Victoria tinha-se ido embora.
Allegra respirou fundo. Sabia perfeitamente onde tinha ido Victoria. Há muito que estava ao corrente das suas escapadelas nocturnas e sabia que ela estava a salvo no lugar para onde ia. Mas a missão de Allegra consistia em criar outro espaço seguro para a rapariga e até àquele momento tinha-o conseguido...
Até àquele momento. Porque sabia que algo invisível estava há já algum tempo a rondar a casa e não tardaria a atacar... e ela devia estar preparada para quando isso acontecesse.
Os seus olhos brilharam, coléricos, e por um momento ficaram completamente negros, duas imensas pupilas como poços sem fundo; no entanto, de imediato adquiriram o seu aspecto habitual, olhos pardos, severos mas sábios. Superando o acesso de ira, Allegra Ascoli saiu do quarto e dispôs-se a organizar as defesas mágicas da mansão.
- Gerde - disse Ashran com interesse.
No meio do seu tormento, Christian conseguiu abrir os olhos. Viu a fada ali, à porta, a observar a cena com uma mistura de curiosidade, medo e fascínio. O Necromante aproximou-se dela, pegou-lhe pelo braço e obrigou-a a aproximar-se e a olhar para o shek, indefeso aos seus pés.
- Vês o que tenho de fazer ao meu filho, Gerde, por não me ser leal?
- sussurrou-lhe ao ouvido. - Que achas que te faria a ti se falhasses?
Gerde tremia violentamente, mas não foi capaz de falar.
- Porque não me trouxeste o cadáver da rapariga? - perguntou Ashran.
- Está... protegida por uma magia antiga e poderosa, meu senhor. Uma magia que, não obstante, conheço muito bem, porque é semelhante à minha.
Os olhos de Ashran cintilaram por um breve instante.
- Olha, Gerde - disse, apontando para Christian. - Este é o meu filho, Kirtash, o teu senhor, príncipe do nosso império. Vê no que essa criatura que se faz chamar Victoria o converteu. Olha para ele, fraco, indefeso, humilhado aos meus pés. Ainda te interessa? Ainda o achas atraente?
- Continua a ser o meu príncipe, meu senhor - murmurou ela, desviando o olhar.
- E voltará a ser o príncipe orgulhoso e invencível que todos recordamos. Então será teu. Em troca, quero apenas que me tragas essa rapariga... morta. – Agarrou na fada pelos ombros e obrigou-a a olhá-lo; Gerde não conseguiu manter aquele olhar e baixou a cabeça, intimidada. - Não me importa quantos feitiços a protegem.
Estás aqui porque és uma feiticeira poderosa. Prova-me que não me fizeste perder o meu tempo, Gerde. Mostra-me que podes ser-me útil. E, quando Victoria estiver morta, Kirtash será teu. Gerde inclinou a cabeça.
- Farei como desejas, meu senhor - respondeu, com um sorriso ambíguo.
Ashran indicou-lhe que podia retirar-se, e a fada afastou-se em direcção à porta. Ficou ali por um momento, no entanto, para ver o que acontecia a seguir.
Ashran voltara-se novamente para Christian, que procurava pôr-se de pé.
- Diz-me quem és.
O rapaz conseguiu levantar a cabeça, e olhou para o pai por debaixo das madeixas de cabelo castanho, húmidas de suor, que lhe caíam sobre os olhos.
- Chamo-me... Christian - repetiu, com um esforço tremendo.
Ashran fechou o punho. A dor voltou, intensa, dilacerante. Christian não conseguiu suportar mais: lançou a cabeça para trás e gritou, torturado por aquela magia negra e tortuosa que estava a destroçá-lo por dentro. Desta vez, o tormento durou muito mais.
Gerde sorriu, satisfeita, e saiu em silêncio da sala, para cumprir a missão que lhe tinham encomendado.
Victoria atravessou o corredor de Limbhad como uma bala e tropeçou em Alexander.
- O que...? - conseguiu dizer o jovem, perplexo. - Victoria, o que se passa?
- Christian... báculo... - conseguiu dizer.
E desatou a correr sem mais explicações. Alexander não entendia nada, mas pressentiu que era algo grave e a correu atrás dela.
- Victoria! - chamou-a. Encontrou-se com Jack no corredor.
- O que se passa, Alexander?
- Não sei. Victoria enlouqueceu. Creio que foi lá abaixo, atrás do Báculo de Ayshel.
Jack olhou para ele, alarmado.
- Temos de a impedir - disse. - Não sei o que se passa com ela, mas não pode ir a lado nenhum, estás a ouvir? Há alguém que está a tentar matá-la.
- O quê? A quem te referes?
- Conto-te mais tarde. Vamos!
Alcançaram Victoria na sala de armas. A rapariga já tinha pegado no báculo e ia sair a correr. Jack procurou impedi-la, mas não conseguiu. A rapariga fitou-o por um momento, com um profundo desespero estampado nos olhos. Entenderam-se sem palavras.
Victoria deu meia-volta e saiu a correr pelo corredor.
- Victoria! - chamou Alexander, disposto a segui-la.
- Espera - impediu-o Jack. - Não vais conseguir detê-la.
- Vais deixá-la ir assim? - perguntou Alexander, estupefacto. Jack negou com a cabeça.
- Não, amigo. Pega em Sumlaris: para onde quer que ela vá, nós vamos com ela.
Victoria caiu de joelhos diante da esfera da Alma, a soluçar. Christian continuava a sofrer, ela sabia, com uma terrível certeza, que assim era, e não podia fazer nada para o ajudar. Estava num mundo ao qual a Alma não podia chegar.
- Por favor... por favor... - murmurou. - Por favor...
Mas não havia maneira. A Porta interdimensional estava fechada. O Necromante fechara-a pouco depois de Alsan e Shail a terem cruzado, há algum tempo, na sua viagem à Terra, e agora era controlada por ele e pelos sheks. Poucas pessoas podiam atravessá-la à vontade.
Uma dessas pessoas era, precisamente, Christian. Victoria levou aos lábios o Olho da Serpente, que palpitava num tom avermelhado, e sentiu como se cada pulsação da jóia fosse um grito de socorro ao qual ela não podia responder.
- Aguenta, Christian, por favor, aguenta - sussurrou ao anel. - Irei buscar-te, irei tirar-te daí, logo que saiba como chegar até ti.
- Está em Idhún, não é? - disse uma voz atrás dela. Victoria voltou-se. Viu Jack e Alexander à porta.
Este tinha prendido Sumlaris ao cinto, ao passo que Jack tinha ajustada às costas uma bainha que continha a sua estimada Domivat. Ela compreendeu a suas intenções e dirigiu-lhes um olhar de agradecimento.
- Sim - murmurou - A Alma não pode mostrar-me a sua imagem, mas...
- Descobriram-no, não é assim?
Victoria assentiu, com os olhos cheios de lágrimas.
- Jack, estão a fazer-lhe algo, não sei o que é... Estão a... torturá-lo...
- De quem estão a falar? - interveio Alexander, taciturno.
- De Kirtash - murmurou Jack. - Arriscou a sua vida para proteger Victoria, veio avisá-la de que o Necromante tinha enviado um assassino à procura dela... e agora paga as consequências da sua traição.
- O quê! ? - exclamou Alexander.
Jack atravessara a sala com duas passadas para abraçar Victoria.
- Ele sabia, Jack - soluçou ela. - Sabia que acabariam por descobrir e, apesar de tudo... arriscou-se por mim.
- Sim - reconheceu Jack, para seu pesar. - Não há dúvida de que o grande canalha é valente.
- A minha avó tinha razão, é inútil, não vou conseguir chegar até ele... - Calou-se de repente e olhou para Jack, com os olhos muito abertos.
- A tua avó? - repetiu Jack, desconcertado.
- É verdade! - exclamou Victoria, recordando a sua conversa com Allegra e apercebendo-se de muitas coisas. - Temos de voltar para casa!
- Diz-me quem és - disse o Necromante, pela terceira vez.
Christian deixou-se cair no chão, exausto. Respirava com dificuldade e tremia como uma criança sob o poder do Necromante. Seria tão fácil... ceder... e deixar de sofrer...
Acarinhou por um momento a ideia de se deixar levar e voltar a ser uma criatura poderosa, alheia às emoções e às dúvidas, livre das debilidades humanas, um ser quase invencível.
Mas pensou em Victoria. E cerrou os dentes.
- O meu nome é... Christian! - exclamou, e aquela palavra soou como um grito de liberdade e fê-lo sentir-se muito melhor.
Mas não durou muito. Ashran fechou o punho com mais força. A dor tornou-se mais intensa. Espantosamente intensa. Insuportável. E Christian sabia que se prolongaria muito, muito mais.
E os gritos do jovem shek ouviram-se por toda a Torre de Drackwen.
Encontraram Allegra de pé junto à janela, a ver a chuva. Victoria sentiu-se inquieta por um momento. E se não tivesse ouvido bem? E se tivesse sido tudo imaginação sua, e a avó fosse exactamente o que ela sempre acreditara que fosse, ou seja, uma idosa italiana endinheirada? Poderia sempre apresentar-lhe Jack (e ela ficaria sem dúvida encantada de o conhecer), mas seria mais difícil explicar a presença de Alexander. Ninguém se sentia à vontade perto dele.
- Avó... - titubeou Victoria.
Allegra voltou-se para eles e lançou-lhes um longo olhar pensativo. Não pareceu surpreender-se ao ver os dois jovens que acompanhavam a sua neta adoptiva.
- Bem-vindos a minha casa - disse em idhunaico perfeito. - Estava à vossa espera. Príncipe Alsan - acrescentou, olhando para Alexander -, vejo-te um pouco mudado.
Tens de me contar o que te aconteceu desde a última vez que te vi.
Alexander ficou admirado. Pela expressão do seu rosto, não parecia que a tivesse reconhecido. Mas Allegra não tinha acabado de falar.
- E tu deves ser Jack - disse, voltando-se para ele. - Victoria falou-me de ti.
Jack corou um pouco, sem saber o que dizer. Victoria também ficara sem fala. Há algum tempo que suspeitava que a avó sabia mais do que aparentava, mas... de onde conhecia Alexander?
- O quê...? - conseguiu dizer, perplexa. - Como sabes...?
Mas naquele momento a dor de Christian voltou a sacudir as suas entranhas e ela gemeu, angustiada. Jack segurou-a para que não caísse. Allegra olhou para eles com um profundo brilho de compreensão nos olhos. Viu como Jack ajudava Victoria a sentar-se no cadeirão, percebeu o olhar inquieto de Alexander cravado nela. Nada disto pareceu intrigá-la ou perturbá-la minimamente.
- Sei, porque não sou terrestre, querida - disse com gravidade. Sou idhunita e cheguei a este mundo há vários anos, fugida do império de Ashran e dos sheks.
- O quê!? - exclamou Victoria. - És... uma feiticeira idhunita exilada? Então sabias...?
Allegra fitou-a e sorriu com carinho. Sentou-se junto dela no sofá. Victoria olhou-a com cautela. Sentia-se muito confusa, como se estivesse a viver um sonho estranho. Passara três anos a esforçar-se para esconder da avó tudo o que se referia à sua vida dupla, a que tinha a ver com Idhún, Limbhad e a Resistência. Era demasiado estranho pensar que ela também pertencia a esse mundo. Sentiu-se atordoada.
- Sabia quem eras desde o princípio, Victoria - disse Allegra. Desde que os teus poderes se começaram a manifestar no orfanato. E por isso adoptei-te. Para cuidar de ti e proteger-te até que pudéssemos regressar juntas a Idhún.
Victoria sentiu que lhe faltava o ar.
- Não, não é verdade. Não... tu não podes ser idhunita. É... demasiado estranho.
Allegra sorriu.
- Olha para mim - disse.
A rapariga obedeceu. Então, algo na avó se transformou e Victoria viu o seu verdadeiro rosto, um rosto etéreo, belo, emoldurado por uma cabeleira prateada e, sobretudo, velho, muito velho, ainda que não houvesse rugas nele. Mas eram os enormes olhos negros de Allegra, apenas pupila, como os de Gerde, olhos que tinham contemplado durante séculos o mundo de Idhún sob a luz dos três sóis, que falavam de segredos e mistérios profundos, que pareciam saber a resposta para todas as perguntas, porque tinham visto muito mais do que qualquer mortal.
-És...
- Em Idhún, os da minha raça são chamados feéricos. Sou uma fada, Victoria.
Então, Alexander reconheceu-a:
- Aile! - exclamou, surpreendido.
Jack e Victoria olharam para os dois, atónitos.
- Já se conheciam? - perguntou Jack.
- Conhecemo-nos na Torre de Kazlunn - explicou ela, recuperando novamente o seu aspecto humano. - Eu pertencia ao grupo de feiticeiros que enviou o dragão e o unicórnio à Terra. Depois, alguns feiticeiros decidiram mandar Alsan e Shail à procura deles, mas nós, os feéricos, intuíamos que era uma tarefa demasiado difícil para duas pessoas apenas, de modo que decidimos por nossa conta... que eu também viajaria à Terra, para ajudar.
- Então, porque não te puseste em contacto connosco? - perguntou Alexander, franzindo o sobrolho.
- Porque Shail e tu chegaram à Terra dez anos depois de mim, rapaz. Cheguei a pensar que se tinham perdido pelo caminho.
- Dez anos! ? - exclamou Alexander. - Isso é impossível! Isso significaria que...
- Há quinze anos que os sheks governam Idhún, príncipe Alsan. E há menos de cinco anos que vocês chegaram à Terra e formaram a Resistência. Na realidade... chegaram ao mesmo tempo que Kirtash...
- Que tinha apenas dois anos no dia da conjunção astral que matou dragões e unicórnios - recordou Jack, de imediato. - Há... quinze anos... Mas isto... isto é uma loucura.
- Por alguma razão que desconheço, houve um desajuste temporal na vossa viagem. E esse tempo não passou por vocês. Alsan, tu devias ter dezoito anos quando te vi pela primeira vez na torre, e... quantos tens agora? Vinte e dois, vinte e três? Deverias ter mais de trinta.
- Não é... possível - murmurou Alexander, atónito.
- Mas porque não me disseste nada? - disparou Victoria. - Se sabias de tudo, porque mo escondeste?
Allegra suspirou.
- Porque queria que vivesses uma vida normal, como qualquer criança normal. Depois chegou Kirtash, e antes de me dar conta já te escapavas todas as noites para um lugar onde eu não podia encontrar-te. Tinha ouvido falar da Resistência e também conhecia as lendas sobre Limbhad: simplesmente juntei as pontas. Apercebi-me de que já conhecias grande parte da informação que eu procurara esconder-te. Mas também reparei que regressavas todas as manhãs para ir ao colégio, para estar aqui comigo, para levar uma vida normal. E foi isso que tentei dar-te, Victoria, porque era o que precisavas de mim. Até que chegasse o momento...
- O momento? - repetiu Victoria, atordoada.
- O momento em que tudo será revelado - respondeu Allegra, levantando-se, decidida. - E esse momento está perto. Já não resta muito tempo, de modo que mais vale deixarmos as explicações para mais tarde.
- Porquê? - quis saber Alexander, erguendo-se. - O que vai acontecer?
- Os nossos inimigos estão a preparar uma ofensiva à casa - explicou Allegra. - Criei uma protecção mágica em redor dela, uma bolha que nos separa do resto do mundo e que, de momento, nos mantém a salvo. Mas eles não tardarão a atravessá-la e temos de estar preparados. - Olhou para Jack e Alexander. - Temos de defender esta casa. Se nos obrigam a retroceder até Limbhad, já não restará um único sítio seguro na Terra para Victoria.
Victoria abriu a boca para perguntar algo... muitas coisas, na realidade; mas não podia continuar a ignorar o tormento de Christian, não podia continuar a falar
quando ele estava a sofrer.
- Não me importa a casa - disse, levantando-se. - Temos de voltar a Idhún agora. Estão a torturar Christian e, se não fizermos algo imediatamente, irão matá-lo...
- Christian é Kirtash - explicou Jack, algo incomodado.
- Foi o que pensei - assentiu Allegra. - Vi-o a rondar por aqui mais de uma vez.
- Como? - rugiu Alexander; os seus olhos iluminaram-se com um fogo selvagem. - Sabias disso? E permitiste que se aproximasse dela? Que espécie de protectora és tu?
Allegra enfrentou o seu olhar sem pestanejar.
- Kirtash é um aliado poderoso, Alsan. E decidiu proteger Victoria. Não sou assim tão estúpida a ponto de desprezar uma ajuda tão providencial como esta. Lembra-te de que os nossos recursos não abundam.
- Mas é um shek, por todos os deuses! Não pensou...!
- Deixem de discutir! - gritou Victoria, desesperada. - Enquanto nós estamos aqui a falar, Christian está a morrer! Não me importa o que vocês pensam a esse respeito, eu vou...!
Não conseguiu terminar a frase, porque de imediato algo parecido com um poderoso trovão pareceu romper os céus. Allegra ergueu a cabeça, inquieta.
- Já está - disse. - Passaram.
Correu até à janela e assomou ao exterior, preocupada. Alexander não entendia o que estava a acontecer, mas sempre reagira com sensatez nos momentos de crise e aproximou-se dela.
- Qual é a situação? - perguntou com frieza.
- Julga por ti mesmo - respondeu Allegra, abanando a cabeça. Alexander assomou ao exterior. E não gostou nada do que viu.
A casa estava rodeada por dezenas de estranhas criaturas que avançavam na sua direcção debaixo da chuva torrencial. Eram seres andrajosos, de pele pardacenta, garras e dentes afiados e olhinhos que cintilavam como brasas.
- Trasgos - murmurou Alexander, com um calafrio. Allegra assentiu.
- Não me orgulho de dizer que fazem parte da grande família dos feéricos - murmurou. - A magia que possuem é limitada, mas são temíveis quando atacam em grandes grupos, porque isso torna-os mais fortes. Normalmente, nós, as fadas e os silfos mais velhos, podemos controlá-los, mas estes servem agora uma feiticeira poderosa, e não tenho domínio sobre eles.
- Uma feiticeira poderosa? - repetiu Alexander em voz baixa. Allegra indicou um vulto que se erguia mais adiante, no jardim, por detrás do círculo de trasgos. A chuva ensopava as suas roupas finas, que se colavam ao corpo, revelando as formas da sua figura esbelta. O seu cabelo acetinado caía pelas costas como um manto pesado a pingar água. Mas ela parecia não se importar. Tinha erguido as mãos na direcção da casa e o seu rosto ostentava uma expressão de sombria determinação. Alexander quase conseguiu sentir a intensa irritação que as suas enormes pupilas negras revelavam.
- Gerde - murmurou Allegra. - Uma traidora à nossa raça. Uma das mais poderosas feiticeiras feéricas, que abandonou a Resistência contra Ashran e se uniu a ele.
Naquele momento, o trasgo mais adiantado chegou a menos de três metros da porta de trás da mansão; ouviu-se então algo semelhante a um estrondo, e a criatura lançou um grito de dor e retrocedeu, chamuscada.
- As defesas da casa ainda funcionam - murmurou Allegra -, mas não sei por quanto tempo.
Mal fizera a observação, ouviu-se a voz de Gerde, lançando um grito agudo e autoritário, e todos os trasgos atacaram ao mesmo tempo. Dezenas de espirais de energia brotaram dos seus dedos aduncos e uniram-se numa espiral ainda maior, resplandecente.
Alexander reagiu depressa, agarrou Allegra pelo braço e afastou-a da janela. Algo chocou contra a mansão com uma violência incrível e sacudiu-a até às fundações. As paredes estremeceram. Mas a casa resistiu.
Jack, que ficara no sofá, abraçando Victoria, ergueu a cabeça, preocupado.
- O que está a acontecer?
- Estão a atacar-nos, rapaz - disse Alexander, muito sério, desembainhando Sumlaris. - Pega na tua espada e vamos dar cabo de uns quantos bichos verdes.
Jack assentiu e levantou-se, ajudando Victoria a erguer-se.
- Victoria - disse-lhe -, estás bem? Gerde está aqui. Temos de defender a casa.
Victoria levantou a cabeça e agarrou-se ao olhar dos olhos verdes de Jack como a uma tábua de salvação. Controlando-se, procurou esquecer-se do sofrimento de Christian e assentiu.
- Vamos lá para fora - decidiu Alexander. - Lutaremos melhor ao ar livre e defenderemos as portas.
- Está bem! - aceitou Jack, decidido, e correu em direcção à porta do jardim.
- Eu cubro a entrada principal - disse Alexander a Allegra.
- O que vais fazer?
- Continuarei a aguentar a magia da mansão a partir de dentro respondeu ela. - Mas, se a barreira cair, sairei para lutar convosco.
Alexander assentiu e, sem mais uma palavra, correu para a porta principal.
Victoria seguiu-o, mas hesitou por um momento e aproximou-se de Allegra. As duas fitaram-se por um momento. A rapariga observava a feiticeira como se a visse pela primeira vez.
- Aconteça o que acontecer - disse então -, tu serás sempre a minha avó.
E, antes que Allegra pudesse responder, Victoria abraçou-a com força.
- Lamento ter-te escondido tudo isto... - murmurou a fada. - Mas era preciso...
- Eu sei, avó - tranquilizou-a Victoria; fez um novo gesto de dor quando, no mais fundo do seu ser, Christian gritou outra vez, em plena agonia. - Christian... - balbuciou, desolada.
- Eu sei, Victoria - sussurrou Allegra.
Victoria abriu a boca para dizer algo, mas ouviu Jack a chamá-la do jardim. Hesitou por um momento.
- Vai ter com ele - animou-a Allegra. - Também precisa de ti. Talvez não possas ajudar Christian agora... mas podes dar uma mão a Jack.
Victoria assentiu, com um sorriso, e saiu a correr ao encontro do seu amigo.
Naquele momento, um novo ataque fez tremer as fundações da mansão, e Allegra franziu o sobrolho, irritada.
- Oh, não, Gerde - murmurou. - Não entrarás em minha casa. Nem sonhes.
- O teu nome, filho - insistiu Ashran, irritado.
- Chris... tian - arquejou o rapaz.
O sofrimento voltou. Christian já quase não tinha forças para gritar, e o seu corpo, esgotado de dor, destroçado por dentro, retorceu-se sobre as lajes de pedra.
- És teimoso, rapaz - disse o Necromante. - Mas dobrarei a tua vontade, sem dúvida.
Houve uma nova descarga de dor, mais violenta e brutal que as anteriores, e Christian deixou escapar um grito.
Mas não cedeu. Uma parte do seu ser estava com Victoria e, ainda que ela se encontrasse longe, num universo remoto, sentia o seu calor, a sua luz, que o guiava como uma estrela na mais negra das noites, e sabia que não estava sozinho. E isso dava-lhe forças. Conseguiu levantar-se por um momento para olhar Ashran nos olhos, respirando com dificuldade. O Necromante aguardou que falasse.
Christian sabia que seria castigado pela sua ousadia, mas ergueu a cabeça para dizer, com as suas últimas forças, mas com orgulho e coragem:
- Chamo-me... Christian. Ashran semicerrou os olhos.
- Como queiras, filho. Vai ter de ser a mal.
Não tardou a ouvir-se um novo grito de agonia que sacudiu a Torre de Drackwen até às suas fundações.
No jardim, Jack e Victoria lutavam debaixo de uma chuva torrencial. A espada de Jack ardia como o núcleo do Sol e nem sequer a chuva conseguia apagar a sua chama. Vira Gerde um pouco mais adiante e tentava avançar na direcção dela, mas a horda de trasgos parecia disposta a defender a sua senhora com a vida; o rapaz tinha de parar constantemente para lutar contra aquelas desagradáveis criaturas que o atacavam com fundas, punhais, picaretas, espadas curtas e, obviamente, com a sua magia, que, embora fosse tosca, era agressiva e eficaz.
Victoria, por sua vez, tinha muitos problemas. O seu coração continuava a sangrar e via-se incapaz de se concentrar na luta. O sofrimento de Christian era cada vez mais intenso, e quase lhe parecia ouvir na própria alma os seus gritos de dor. Via os trasgos através de um véu de lágrimas e tudo aquilo lhe parecia demasiado fantástico, demasiado irreal, como se se tratasse de um sonho. A única coisa que lhe parecia autêntica e verdadeira era o tormento de Christian, que, nalguma estrela distante, estava a pagar muito caro o seu amor por ela.
Então, algo a atingiu nas costas e fê-la cair sobre o chão lamacento. Arquejou de dor e tentou recuperar o báculo, que tinha caído um pouco afastado. Algo a levantou com brusquidão e quase lhe cortou a respiração.
Ergueu a cabeça e viu os olhos negros de Gerde fixos nela.
- És tu a criatura pela qual Kirtash se tem dado a tanto trabalho? disse a fada com uma voz melodiosa, mas com um leve tom irritado. Que coisinha. E pensar que nos traiu por ti... que nem sequer sabes quem és.
Atirou-a ao chão, e Victoria caiu novamente de bruços sobre a lama.
- Christian - disse a fada, com um riso trocista e cruel. - Não tardarás em morrer, Victoria, e o teu Christíem morrerá contigo. Não mereces alguém como ele.
- Não - arquejou Victoria.
Conseguiu levantar-se o suficiente para erguer a cabeça na direcção dela e descobriu o brilho da morte nos seus olhos, totalmente negros e cheios de raiva, rancor... e ciúmes.
Gerde ergueu a mão. Entre os seus dedos apareceu uma chama de fogo azul, que faiscou sob a chuva enquanto se tornava cada vez maior.
- Demasiado fácil - comentou a fada com desdém. E lançou a bola de energia contra Victoria.
Ela fechou os olhos, desejando ter podido fazer algo por Christian, desejando ter podido dizer a Jack que...
Ouviu-se algo parecido com o crepitar de uma enorme fogueira, e Victoria sentiu uma presença diante de si. Abriu os olhos.
Viu Jack, de pé entre Gerde e ela, com Domivat em riste, alto, orgulhoso e feroz, seguro de si mesmo e, sobretudo, muito irritado.
- Não te atrevas a tocar-lhe - advertiu-a o rapaz, muito sério. Gerde tivera de saltar para o lado para se esquivar da magia que lançara contra Victoria e que a espada de Jack fizera ricochetear contra ela. Fitou-o por um momento, desconcertada, mas Jack não esperou que ela se recompusesse da surpresa. Lançou uma estocada directa ao coração da fada.
Ela reagiu depressa. Ergueu as mãos com as palmas abertas, gerou algo parecido com um brilho de luz, e a espada de Jack chocou contra um escudo invisível. Saltaram faíscas.
Os dois fitaram-se por um momento. Jack captou, de imediato, o halo sensual que rodeava Gerde e ficou a olhar para ela, fascinado. A fada era magra e delicada como uma flor, mas o seu rosto, de feições estranhas e sugestivas, atraía-o com a força de um íman poderoso; os lábios dela curvaram-se num sorriso cativante, e Jack desejou beijá-los, sem saber porquê.
O sorriso de Gerde tornou-se mais rasgado.
- Aproxima-te... - cantalorou, e a sua voz soou tão sedutora como o canto de uma sereia.
Jack baixou a espada e deu dois passos na direcção dela, cativado. Mas, então, fitou-a nos olhos e viu-se reflectido neles, dois enormes poços negros cheios de segredos e mistérios. E deu-se conta de que não havia luz naqueles olhos e sentiu falta do olhar claro de Victoria.
Despertou do feitiço, mesmo a tempo de ver Gerde a entrelaçar as mãos num gesto estranho. Jack lançou um grito de advertência, retrocedeu e desferiu um golpe no ar com a sua espada; sentiu que algo muito ténue se rompia e soube que acabara de desfazer o feitiço que Gerde tentara lançar sobre ele. A fada lançou um grito de raiva e frustração e fitou-o com ódio, e Jack apercebeu-se de que o seu rosto já não lhe parecia tão belo. Brandiu Domivat e lançou-se contra ela.
Naquele momento, Victoria gritou, ajoelhada sobre a lama, debaixo da chuva impiedosa. A dor de Christian era cada vez mais intensa, e a rapariga sabia que ele não aguentaria muito mais. A simples possibilidade de que Christian pudesse morrer por sua culpa era insuportável.
E, no seu dedo, Shiskatchegg continuava a transmitir-lhe as emoções de Christian. Victoria não conseguiu aguentar mais. Atirou a cabeça para trás e voltou a gritar por Christian, por não poder fazer nada por ele e por saber o quanto ele estava a sofrer.
Jack voltou-se para ela, desconcertado, e isso quase lhe custou a vida. Gerde lançou um ataque mágico contra ele, e aquela energia acertou-lhe em cheio no ombro, atirando-o violentamente para trás.
- Jack! - gritou Victoria.
Levantou-se com dificuldade. Viu que Jack se levantava, a cambalear; viu que olhava para Gerde com um brilho de determinação nos olhos e soube que tinha de o ajudar. Tentou correr na direcção dele, mas o anel voltou a dizer-lhe, uma vez mais, o quanto Christian estava a sofrer. Victoria tropeçou nos seus próprios pés e caiu no chão. Sentiu-se invadida pela ira e pela impotência. Ergueu a cabeça para olhar para Jack, viu-o desferir estocadas contra a feiticeira, ignorando o seu ombro ferido, e soube que tinha de fazer algo. Não serviria de nada que ficasse ali a sofrer por Christian, sem poder fazer nada por ele. Levantou-se de novo.
De novo, a dor de Christian sacudiu-a como uma descarga e desta vez foi muito mais intensa. Victoria gritou e, sem poder suportar mais, arrancou o anel do dedo.
E então fez-se silêncio.
Shiskatchegg piscou por um momento e a sua luz apagou-se.
Muito longe dali, na Torre de Drackwen, Christian gritou de novo. Procurou a luz na escuridão, mas, desta vez, não a encontrou. E sentiu-se de súbito muito só e vazio, e um sopro gelado apagou-lhe o coração.
"Victoria?", chamou-a, hesitante. Mas ela não respondeu. Podia estar morta ou talvez o tivesse abandonado à sua sorte. Qualquer uma das duas hipóteses era angustiante.
"Victoria...", repetiu Christian.
Mas, de novo, apenas se ouviu o silêncio. E Christian viu-se só, sozinho entre as trevas, demasiado fraco para resistir àquele manto de gelo que pouco a pouco se ia apoderando da sua alma.
Victoria sentiu-se como se a tivessem libertado de uma pesada carga. Sabia que Christian continuava a sofrer, mas já não o sentia da mesma maneira que antes.
Olhou em volta; viu que todo o jardim estava semeado de cadáveres de trasgos, e que apenas restavam uns quantos em pé, e observou Jack com um novo respeito. Contudo, o rapaz começava a estar cansado, e Gerde era uma inimiga perigosa.
Victoria recolheu o báculo e foi ajudar o seu amigo.
Três trasgos vieram ao seu encontro, mas Victoria, furiosa, girou o báculo e fê-los irromper a todos em chamas.
Jack viu-a e sorriu. E já não lhe fez falta a ajuda de ninguém. Seguro de que Victoria saberia cuidar de si sozinha, lançou um novo golpe na direcção de Gerde, libertando grande parte da sua energia oculta através da espada. A feiticeira tentou defender-se, mas Domivat trespassou a sua defesa mágica, tal como, dias antes, tinha quebrado a de Haiass.
Houve uma labareda e um grito, e, quando Victoria conseguiu voltar a olhar, viu Gerde no chão, contemplando, temerosa, Jack, que se erguia diante dela, a tremer de cólera, com a espada ainda a irradiar energia ígnea e um estranho fogo a iluminar os seus olhos verdes.
Victoria juntou-se a ele; algo na sua testa cintilava como uma estrela e a sua aura parecia projectar uma energia pura e antiga, uma magia que estava para lá da compreensão humana. Gerde olhou para eles e achou-os diferentes, mais poderosos, seres formidáveis contra os quais não podia lutar. Sacudiu a cabeça e lançou um amargo grito de raiva.
O seu corpo gerou uma luz tão intensa que Jack e Victoria tiveram de fechar os olhos e, quando os abriram, a fada já ali não estava.
Jack e Victoria fitaram-se. Ficaram de olhos presos um no outro durante um segundo em que o tempo pareceu parar; e depois, feridos e esgotados, mas satisfeitos, abraçaram-se com força.
Tinham vencido.
Ashran riu suavemente. Aos seus pés, o rapaz continuava a tremer, encolhido sobre si mesmo. Parecia que nada tinha mudado, no entanto, o Necromante intuía que osseus esforços começavam por fim a dar fruto.
- Diz-jne quem és - exigiu, pela enésima vez.
O jovem levantou-se, vacilante. Conseguiu pôr-se de pé. Sacudiu a cabeça para afastar o cabelo da testa e cravou no Necromante um olhar tão frio como a geada.
- Sou Kirtash, meu senhor - disse, com uma voz demasiado indiferente para ser humana.
Ashran assentiu, satisfeito. Voltou-se por um momento para a porta, onde aguardava, num silêncio respeitoso, um szish, um dos homens-serpentes da sua guarda pessoal, e fez-lhe um sinal. A criatura avançou na sua direcção e estendeu-lhe o volume estreito e comprido que levava nas mãos.
Ashran pegou-lhe e entregou-o a Kirtash, que o tomou com muito cuidado e o desembainhou. O suave brilho glacial de Haiass iluminou o seu rosto, e o jovem sorriu, satisfeito. A espada estava novamente inteira.
- Bem-vindo a casa, filho - disse Ashran, sorrindo também.
Victoria caiu de joelhos sobre a lama. Tinha parado de chover e uns tímidos raios de sol começavam a iluminar o jardim.
- Por favor... - suplicou a rapariga, com os olhos cheios de lágrimas. - Por favor, diz-me que estás aí. Diz-me que ainda existes. Imploro-te.
Mas Shiskatchegg, que adornava novamente o seu dedo, permaneceu mudo e frio. Victoria encolheu-se sobre si mesma e levou a pedra aos lábios.
- Christian - sussurrou. - Christian, lamento. Por favor, diz-me que não morreste. Por favor... perdoa-me...
A voz quebrou-se-lhe e desatou a chorar, encolhendo-se sobre si mesma. A luz de Christian tinha-se apagado, não sentia ninguém do outro lado. E isso queria dizer que, provavelmente, o jovem shek estava morto. Victoria gritou aos céus o nome de Christian, enquanto Allegra e Alexander a observavam, sem saber o que fazer para a consolar.
Jack aproximou-se, ajoelhou-se junto dela e abraçou-a por trás. Victoria continuou a chorar a perda de Christian, enquanto pronunciava o seu nome uma e outra vez, e beijava o anel, agora morto e frio; e Jack abraçava-a com força, em silêncio, embalando-a suavemente, procurando que a sua presença acalmasse nem que fosse apenas uma ínfima parte da sua dor.
Victoria ergueu os olhos para cima e ainda sussurrou:
- Christian...
Mas no fundo sabia que ele já não podia ouvi-la.
TRAIÇÃO
- Fracassaste - ciciou o Necromante, e Gerde encolheu-se de medo diante dele.
- Aqueles dois... são seres poderosos, meu senhor. A minha magia não pôde derrotá-los.
- Nem poderá - interveio a fria voz de Kirtash do fundo da sala. Já despertaram; Gerde já não é rival para eles.
Ashran voltou-se para o filho, que estava de costas para ele, junto à janela.
- Estás a insinuar que tenho de te enviar a ti outra vez? Kirtash virou-se e fitou-o.
- Podes enviar qualquer outro, meu senhor, mas sabes que irá fracassar.
- Isso é verdade - reconheceu Ashran. - Mas não quero correr riscos, Kirtash. Devem morrer, pelo menos um dos dois. E parece-me que a rapariga é a mais vulnerável.
- É a única que podemos utilizar - murmurou Kirtash.
- O que queres dizer? - Ashran dirigiu-lhe um olhar perigoso, mas o rapaz assomara novamente à janela, pensativo, e indicou o bosque de Alis Lithban que se estendia ante ele.
- Olha, meu senhor. Alis Lithban está a morrer, e é o lugar mais mágico de todo o nosso mundo.
Ashran contemplou a paisagem que Kirtash lhe mostrava. O anteriormente exuberante bosque dos unicórnios estava agora murcho, apagado e cinzento sob a luz dos três sóis.
- Deve-se ao desaparecimento dos unicórnios - disse o Necromante, sem entender onde Kirtash queria chegar. - Eles canalizavam a energia da terra de Alis Lithban e repartiam-na por todo o bosque. Sem eles, a energia estancou, já não flui.
- Mas continua aí - disse Kirtash em voz baixa; ergueu a cabeça para cravar no pai os seus olhos azuis. - E, se continua aí, nós podemos extraí-la. E concentrá-la num ponto, como, por exemplo... esta torre.
Ashran semicerrou os olhos, considerando a proposta do rapaz.
- Se renovássemos a magia da Torre de Drackwen - disse, rapidamente -, iria converter-se numa fortaleza inexpugnável. Como o foi nos tempos antigos.
Kirtash assentiu.
- E, por fim, todo o Idhún cairia nas tuas mãos, meu senhor. Incluindo os feéricos renegados do bosque de Awa e os poucos feiticeiros que resistem ainda na Torre de Kazlunn. E depois... poderias conquistar outros mundos.
- Outros mundos... como a Terra, não é? Verifiquei que gostas muito da Terra.
Kirtash encolheu os ombros.
- É um bom lugar para viver - comentou. O Necromante afastou-se da janela.
- Já percebi o que queres dizer. A rapariga poderia fazê-lo. Kirtash assentiu.
- E apenas ela, meu senhor. Matá-la-ei se for esse o teu desejo, mas, se o fizer, perderemos a oportunidade de ressuscitar a Torre de Drackwen. Decide, pois, se desejas que morra ou que viva para nos servir, e eu agirei em conformidade.
Ashran olhou-o fixamente.
- Podes trazê-la até aqui? Até à Torre de Drackwen? Se é verdade que despertou, o seu poder será muito maior do que antes.
- Talvez. Mas tem um ponto fraco.
- A sério? - O Necromante ergueu uma sobrancelha, com interesse. - E qual é esse ponto fraco?
Kirtash esboçou um sorriso frio.
- Eu - disse apenas.
Allegra percorreu em silêncio os corredores de sua casa, esgotada. Era já de noite e a mansão estava calma. Mas ela sentia-se inquieta e achava pouco provável que pudesse dormir como faziam os seus convidados.
Deslizou pelo corredor e parou diante do quarto de Victoria. Assomou sem fazer barulho, para não acordar Jack e a rapariga. Viu-os estendidos em cima da cama, adormecidos
um junto ao outro, exaustos. O braço de Jack rodeava a cintura de Victoria, em atitude protectora, e Allegra sorriu.
Fora uma tarde muito longa. Victoria estava destroçada e não tinha forças para fazer mais perguntas. Mesmo quando já havia chorado tanto que não lhe restavam mais lágrimas, continuara encolhida sobre si mesma, num canto, com o olhar perdido e a cabeça baixa, repetindo em voz baixa: "A culpa é minha, a culpa é minha..."
Jack levara-a para o seu quarto para que descansasse. Allegra ouvira-a chorar outra vez da sala, ouvira as palavras de consolo que Jack lhe sussurrava e como os soluços dela se iam acalmando pouco a pouco, até que a jovem, esgotada, acabara por adormecer nos braços do seu amigo, que ficara junto dela para velar o seu sono.
Allegra não duvidava de que Victoria sonharia com Christian e deu graças por Jack estar ao seu lado para a reconfortar.
Apoiou-se no umbral da porta e ficou a olhar para eles durante mais algum tempo. Pôde perceber o forte laço que os unia, um afecto tão intenso, tão palpável, que Allegra não pôde evitar interrogar-se de onde procedia.
Contemplou Jack com um novo interesse e perguntou-se quem era ele na realidade. Devia ser alguém especial, caso contrário, Victoria jamais teria reparado nele. Allegra abanou a cabeça, preocupada. Victoria estava tão distante do resto dos mortais como a Lua da Terra, mas nunca lho dissera e, embora tivesse ensaiado milhares de vezes as palavras que usaria, agora que chegara o momento de lhe revelar o mistério da sua existência, faltava-lhe coragem. Victoria precisava de descansar, por isso Allegra decidira deixar as conversas importantes para o dia seguinte, para decepção de Alexander, que exigira várias vezes saber o que estava exactamente a acontecer. Mas Allegra não achava justo que ele soubesse antes de Victoria e mantivera-se firme.
Contemplou a rapariga adormecida com infinito carinho. Passara sete anos à procura dela no mundo caótico em que se tinha perdido, até que finalmente a encontrara. Tal como Gerde, Allegra tinha uma habilidade especial para reconhecer as criaturas como Victoria.
Tirara-a daquele orfanato e proporcionara-lhe um lar seguro. Escolhera uma casa grande nos arredores de uma grande cidade. Uma grande cidade, porque para os seus inimigos seria mais difícil detectadas do que se vivessem num lugar mais isolado. Nos arredores, porque a natureza feérica de Allegra murcharia se passasse demasiado tempo no coração da urbe. Escolhera precisamente aquela mansão porque tinha um bosquezinho nas traseiras, e Allegra achou que um ser como Victoria precisaria de um espaço como aquele para se refugiar e renovar a sua energia.
A casa estava pensada para ser uma fortaleza, para manter Victoria a salvo enquanto crescia e se ia, a pouco e pouco, preparando para assumir o papel que o destino reservara para ela. Mas aquela casa não podia protegê-la da poderosa criatura que Ashran enviara no seu encalço. Allegra apercebera-se disso quando, quatro anos antes, na Suíça, Kirtash estivera prestes a apanhar a rapariga. Repreendera-se mil e uma vezes por aquele descuido; mas Victoria unira-se à Resistência e agora não era Allegra a única que a protegia. Na altura, esteve tentada a falar com ela, contar-lhe tudo, contactar a Resistência. Mas, todas as manhãs, Victoria estava de volta ao seu quarto, e a sua luz própria, aquela luz que se reflectia nos seus olhos e que só alguns, como Allegra e como Kirtash, podiam detectar, brilhava com mais intensidade. A sua avó sabia que tinha encontrado outro lugar melhor, um refúgio ainda mais seguro do que a sua própria casa, um espaço onde podia renovar a sua energia e sentir-se a salvo de tudo, inclusivamente de Kirtash. E soube então que tinha de guardar segredo, porque Victoria precisava de uma vida tranquila, rotineira, uma vida como a das outras raparigas da sua idade, para manter o seu equilíbrio emocional. Limbhad era mais seguro do que a mansão de Allegra, isso era certo. Mas a vida que esta lhe tinha proporcionado era mais segura do que a que a Resistência lhe oferecia, e ambas as vidas, ambos os espaços, compensavam-se mutuamente.
De modo que Allegra limitou-se a observar, não sem inquietação, como a sua protegida se ia preparando para ocupar o seu lugar na história de Idhún. Era arriscado, porque entrara em jogo antes do tempo, mas tinha as suas vantagens. Victoria já não era uma criança inocente. Sofrera, aprendera muito, amadurecera. Estava mais preparada agora do que estaria se Shail, Jack e Alexander não tivessem entrado na sua vida, se se tivesse conformado com a protecção que Allegra lhe oferecia.
Mas Kirtash entrara então em cena.
Allegra sabia quem ele era, tinha detectado o seu interesse por Victoria. Tinha consciência dos encontros clandestinos dos dois jovens e observou-os, com inquietação, mas também com interesse. Era alarmante, mas não tinha a menor dúvida de que Kirtash já conhecia a identidade de Victoria e, apesar disso, ainda não tentara matá-la. Compreendeu então que o shek tinha ficado cativado pela luz de Victoria; porque, mesmo que Kirtash pensasse que continuava a ser fiel ao seu senhor, o certo era que, protegendo a rapariga, se tinha convertido num importante aliado da Resistência.
Allegra fechou os olhos, cansada. Era lamentável tê-lo perdido. Não apenas para a Resistência, mas também por Victoria. Era evidente que o que ambos tinham sentido um pelo outro era muito intenso e muito real. Se assim não fosse, Victoria não poderia ter sofrido daquela maneira com o suplício do jovem, com ou sem o Olho da Serpente a brilhar no seu dedo. Era, até certo ponto, lógico. Victoria e Kirtash eram dois seres muito semelhantes, mas também radicalmente opostos. Era inevitável que sentissem atracção um pelo outro. Ashran deveria ter previsto algo assim.
Nesse caso... onde se encaixava Jack? Porque era evidente que Victoria também sentia algo de muito profundo por ele; portanto, não era um simples rapaz humano, devia ser muito mais. Allegra vira-o brandir Domivat e concluíra que era um feiticeiro poderoso ou talvez um herói. Mas agora já não tinha tanta certeza. Porque aquilo não justificava o imenso afecto que Victoria sentia por ele. Tão-pouco justificava o que estava a contemplar naquele momento.
Para um observador humano, no quarto havia apenas dois adolescentes adormecidos, muito próximos um do outro. Mas Allegra via perfeitamente como as suas duas auras se entrelaçavam, procurando fundir-se numa só, como comunicavam entre si, como se acariciavam uma à outra, e não teve a menor dúvida de que precisavam desesperadamente de estar juntos e que separar aqueles dois seria a coisa mais cruel que se poderia fazer a ambos.
Semicerrou os olhos. A aura de Jack era intensa, resplandecente como um sol. Não, aquele não era um rapaz normal. Não mais do que Victoria. Seria possível, então, que...?
Sobressaltou-se. Não podia ser verdade! Por outro lado, se fosse...
Se fosse, Kirtash devia tê-lo adivinhado há já algum tempo. Algo assim não podia ter escapado à aguda percepção do shek. E, se Kirtash o sabia, Ashran também devia saber.
Sentiu um calafrio. Se as suas suspeitas estivessem correctas, a única coisa que se interpunha entre o Necromante e a sua vitória total estava naquela casa... naquele quarto.
Não era um pensamento tranquilizador. Allegra esteve tentada a acordar Alexander, que descansava num dos quartos de hóspedes, mas pensou com calma e decidiu que era melhor deixá-los dormir a todos. Precisava deles com a cabeça fresca para enfrentar o que se avizinhava.
As defesas mágicas da casa tinham ficado muito debilitadas depois do ataque de Gerde e da sua horda. Allegra deu-se conta de que não podia esperar pelo dia seguinte para as reforçar, de modo que decidiu pôr-se ao trabalho imediatamente. Poria em jogo todo o seu poder para converter a mansão numa fortaleza inexpugnável na qual ninguém pudesse entrar.
Mas não teve em conta que isso não impediria os ocupantes da casa de sair para o exterior.
E, infelizmente, Kirtash contava com isso.
A pedra de cristal de Shiskatchegg brilhou durante um breve instante. Depois, apagou-se, mas não tardou a iluminar-se de novo, com um leve halo esverdeado.
Victoria abriu os olhos lentamente. Viu o anel mesmo à sua frente, porque a mão esquerda repousava sobre a almofada, junto ao rosto. Viu-o brilhar na obscuridade e arquejou, surpreendida, quando percebeu o que isso significava. Esteve quase a pôr-se em pé de um salto, mas conteve-se quando sentiu uma presença junto dela. Voltou-se e viu Jack adormecido ao seu lado. Por um momento esqueceu-se do anel e sorriu com ternura. Suspirou imperceptivelmente e afastou com suavidade o braço de Jack, que lhe rodeava a cintura. O rapaz mexeu-se a sonhar, mas não acordou. Victoria inclinou-se sobre ele para lhe dar um beijo de despedida no rosto.
- Já volto - sussurrou, com o coração a bater com força.
Não demorou a sair do quarto.
Deslizou pela casa, sem fazer barulho. Passou pelo salão, onde a avó, esgotada, adormecera num cadeirão; mas mal deu por isso. O Olho da Serpente brilhava magicamente na escuridão e isso podia significar que Christian estava vivo. Nada, absolutamente nada, poderia ter impedido Victoria de ir ao seu encontro naquela noite.
Saiu para o jardim e parou, com o coração a bater com força. Sentiu um calafrio ao ver o terreno destroçado e ao recordar a luta daquela tarde. No entanto, não demorou a sacudir a cabeça e a voltar-se na direcção do miradouro, iluminado pela lua.
Mas Christian não estava ali. Victoria levou a mão aos lábios, angustiada. No entanto, Shiskatchegg continuava a brilhar, e a rapariga agarrou-se à esperança de que não fosse um sonho, de que Christian se tivesse salvado e tivesse encontrado maneira de chegar até ela.
Desceu a correr a escadaria de pedra até ao pinhal. Embrenhou-se por entre as árvores, à procura da pessoa que achava ter perdido. Parou, indecisa, e olhou em redor.
- Christian? - arquejou.
Viu o seu vulto um pouco mais adiante; era mais uma sombra fundindo-se com a noite; tê-la-ia reconhecido em qualquer parte.
- Christian!
Victoria sentiu que algo ia explodir dentro do peito e correu para ele. Lançou-se nos seus braços, com tanta força que esteve a ponto de o fazer perder o equilíbrio. com os olhos cheios de lágrimas, abraçou-o com todas as suas forças e enterrou o rosto no seu ombro.
- Christian, estás bem... pensava que te tinha perdido, e não imaginas... oh, pelo menos voltaste...
Ele não disse nada, não se mexeu e também não correspondeu ao seu abraço. E Victoria sentiu de imediato... frio.
Ergueu a cabeça e procurou decifrar o olhar dele na obscuridade.
- Christian? Estás bem?
- Estou bem, Victoria. - Mas a sua voz não tinha emoção e o seu tom era tão inumano que a rapariga estremeceu.
- O que... o que é que te fizeram? - murmurou.
Tentou sondar os seus olhos, mas foi contra uma parede de gelo.
E, de alguma maneira, soube que acabava de perder Christian pela segunda vez no mesmo dia. O coração partiu-se-lhe em mil pedaços, quis chorar todas as suas lágrimas, quis dizer muitas coisas, mas não tinha palavras capazes de expressar a sua dor; quis então gritar ao mundo o nome de Christian para o fazer voltar de onde quer que estivesse naquele momento, ainda que tivesse morrido, sepultado para sempre debaixo do frio olhar de Kirtash.
Quis fazer tudo isso, mas o instinto foi mais poderoso. Victoria deu meia-volta e desatou a correr como uma gazela em direcção à casa, para longe daquela criatura que tinha o aspecto de Christian, mas não os seus olhos.
Apenas uma fracção de segundo depois, Kirtash já corria atrás ela. E Victoria soube que, fizesse o que fizesse, a alcançaria.
A dor e a tristeza converteram-se em medo, raiva, frustração. E, quando sentiu a mão fria de Kirtash a agarrar-lhe o braço, voltou-se para ele, furiosa, e lançou-lhe um pontapé entre as pernas.
Kirtash abriu muito os olhos e dobrou-se, surpreendido, mas não a soltou. Victoria lançou a perna atrás para tomar impulso e desferiu um novo pontapé, desta vez acertando-lhe no estômago, com toda a força do seu desespero. Conseguiu libertar-se e desatar a correr outra vez, mas Kirtash conseguiu agarrá-la pela camisola e fê-la cair de bruços no chão, sobre a relva. Victoria virou-se, desesperada, quando sentiu o shek a cair sobre ela. Gritou, e algo explodiu no seu interior. Houve uma espécie de brilho de luz, uma claridade intensa que saía da sua testa e que cegou Kirtash por um breve instante. Victoria voltou-se e procurou arrastar-se para longe do seu perseguidor, mas de imediato sentiu a mão de Kirtash a agarrar-lhe o tornozelo. Debateu-se, assustada e furiosa. Kirtash lançou-se sobre ela e segurou-a contra o chão pelos pulsos. Estavam muito perto um do outro, contudo, Victoria sentia um terror irracional que não tinha nada a ver com o sentimento ambíguo que Christian lhe inspirara, mesmo nos seus primeiros encontros.
A rapariga fechou os olhos e chamou a Alma de Limbhad.
Era a única maneira de escapar dali.
Sentiu que ela ia ao seu encontro, mas Victoria estava demasiado assustada e não conseguia manter a calma necessária para fundir a sua aura com a da Alma.
Kirtash apercebeu-se das suas intenções. Pegou-lhe pelo queixo e obrigou-a a girar a cabeça e a olhá-lo nos olhos. Estava praticamente deitado sobre ela, e Victoria pensou, de maneira absurda, que noutras circunstâncias, apenas um dia antes, o seu coração teria batido a mil à hora por estar tão próxima dele, teria desejado que a beijasse, ter-se-ia derretido completamente ao olhá-lo nos olhos.
Mas agora sentia apenas... terror, desespero... e até mesmo... ódio.
- Olha para mim - disse ele, com voz suave, mas indiferente.
- Não... - sussurrou ela.
Mas era demasiado tarde. Ficou presa ao olhar hipnótico de Kirtash e soube, sem lugar para dúvidas, que ele a tinha capturado.
Jack acordou de repente, com o coração a bater com força. Tinha tido um sonho muito desagradável. Não se lembrava dele, mas sabia que no sonho perdia algo muito importante, algo vital, e ainda sentia essa angustiante sensação de perda.
Demorou um pouco a situar-se e a aperceber-se de que se encontrava ainda na mansão de Allegra d Ascoli, no quarto de Victoria, para ser mais preciso.
Mas ela não estava ali.
Foi como se algo tivesse atravessado o coração de Jack de um lado ao outro. Porque naquele momento, de alguma maneira, soube que a sua amiga estava em perigo.
Precipitou-se para fora do quarto, sem sequer calçar os chinelos, mas sem se esquecer de pegar em Domivat, que descansava num canto. Passou a correr pelo salão, dirigiu-se à porta da entrada e abriu-a violentamente.
Allegra acordou, sobressaltada. Chegou a ver Jack a sair da mansão com a espada desembainhada, brilhando na obscuridade, e compreendeu o que estava a acontecer. Levantou-se de um salto e correu a acordar Alexander.
Jack atravessou o jardim das traseiras como um raio. Sabia por instinto onde devia dirigir-se e, na sua precipitação, por pouco não caiu pela escadaria de pedra. Mas conseguiu chegar ao pinhal a tempo de ver o vulto de Kirtash, que se erguia, levando Victoria nos braços. Jack soube, de alguma forma, que o que quer que o shek pretendesse fazer com ela, fosse o que fosse, não podia ser bom.
- Solta-a, cretino! - gritou, furioso.
Kirtash voltou-se para ele, ainda a segurar Victoria.
Algo no seu olhar cintilou na penumbra. Deixou a rapariga sobre a relva e enfrentou Jack, desembainhando Haiass.
Jack ficou surpreendido. Não esperava que Kirtash tivesse conseguido reparar a espada; mas, em todo o caso, agora tinha de lutar, lutar por Victoria.
De novo, Domivat e Haiass encontraram-se, e o ar estremeceu com o impacto. E Jack percebeu, alarmado, que a chama da sua espada vacilava ante o implacável gelo de Haiass. Retrocedeu dois passos, ainda em guarda, e procurou visualizar a situação. Recordou então que o seu oponente era o mesmo jovem pelo qual Victoria tinha chorado tão amargamente naquela tarde, o mesmo que tinha atraiçoado os seus para a proteger, o mesmo que tinha sofrido por ela um castigo horrível. Tentou pensar com clareza.
- Espera! - conseguiu dizer. - O que te aconteceu? O que... que vais fazer com Victoria?
Mas Kirtash não respondeu. Moveu-se como uma sombra na escuridão, e Jack apressou-se a erguer a sua arma para se defender de Haiass, que caía sobre ele com a rapidez de um relâmpago. Um pouco desconcertado, limitou-se a defender-se, enquanto tentava compreender o que estava a acontecer exactamente.
Fosse o que fosse, não podia ser bom. Kirtash desferiu uma poderosa estocada, e, ante a consternação de Jack, Domivat saiu a voar das suas mãos para ir cair sobre a relva, um pouco mais longe. O rapaz retrocedeu uns passos. Fitaram-se. Kirtash sorriu, e Jack pensou que ali, de pé ante ele, com Haiass na mão, palpitando com um suave brilho branco-azulado, parecia mais alto, mais forte, mais seguro de si mesmo, mais frio se fosse possível e inclusivamente mais... inumano.
Mas naquele momento apareceram Allegra e Alexander a correr. Este último brandia Sumlaris e lançou-se contra Kirtash com um grito de advertência. O jovem shek pôs-se em guarda, e Jack aproveitou para recuperar a sua espada.
Enquanto isso, Alexander tratou de fazer Kirtash retroceder apenas uns passos. Quando este tomou a iniciativa novamente, Jack já estava outra vez à sua frente, junto a Alexander, erguendo Domivat.
Kirtash dirigiu-lhes um breve olhar. E então, com um sorriso gelado de desprezo, transformou-se.
De novo, a enorme serpente alada ergueu-se diante deles, ameaçadora e tremenda, e fixou os seus olhos cambiantes em Jack. Este sentiu um calafrio ao compreender que Kirtash tinha finalmente decidido matá-lo e que não ia poder escapar facilmente naquela ocasião. Também não podia contar com Alexander, de momento; ficara paralisado ao ver a enorme criatura.
Jack também deveria ter tido medo, mas sentiu apenas que fervia de raiva e de ódio ao ver Kirtash sob o seu verdadeiro aspecto. com um grito selvagem, ergueu Domivat e correu para o shek. A criatura bateu as asas para se elevar um pouco mais, e a corrente de ar que gerou por pouco conseguia desequilibrar Jack. O rapaz salto para o lado no último momento, mesmo a tempo de evitar as presas mortíferas do shek, que se tinha lançado sobre ele. Hesitou, apercebendo-se de que era um inimigo demasiado assombroso, e perguntou-se, pela primeira vez, como iam sair todos vivos daquele confronto.
Então Kirtash voltou-se bruscamente, e Jack entreviu o que tinha distraído a sua atenção.
Allegra tinha chegado junto de Victoria, que continuava estendida sobre a relva, olhando para eles com os olhos abertos e cheios de lágrimas, mas, pelos vistos, incapaz de se mexer, como se estivesse paralisada.
Kirtash sacudiu a cauda como se fosse um chicote e varreu literalmente Allegra do chão, lançando-a para longe dali. Jack viu-a aterrar violentamente um pouco mais adiante e desejou que tivesse sobrevivido ao golpe. No entanto, dera-lhe uma oportunidade, e não pensava desperdiçá-la; desferiu a sua espada contra o corpo anelado da criatura.
A serpente emitiu um grito agudo, e Jack pensou por um momento que lhe iam rebentar os tímpanos; mas, quando conseguiu voltar a olhar, viu que Kirtash tinha recuperado a sua aparência humana e segurava a perna, com uma expressão de dor. Jack não pôde evitar um sorriso de triunfo; mas morreu-lhe rapidamente no rosto quando descobriu que o shek ainda empunhava Haiass e, precisamente nesse momento, desferia uma estocada mortífera, rápida e certeira. Jack conseguiu interpor Domivat, mas demasiado tarde. O golpe de Kirtash atingiu-o no ombro, e Jack gemeu de dor e deixou cair a espada. Kirtash avançou para dar o golpe de misericórdia; desta vez foi Alexander quem veio escudar Jack, com o cabelo revolto e os olhos iluminados por um estranho brilho amarelado. Desferiu um golpe contra Kirtash, com um grito que soou como o uivo de um lobo. Sumlaris não conseguiu fazer fraquejar Haiass, mas a perna de Kirtash vacilou por um momento. O shek empurrou Alexander para trás e retrocedeu também, a coxear. Teve de se voltar rapidamente para interceptar com a espada um feitiço que Allegra lhe lançara, ela que, apesar de estar ferida com gravidade, se tinha levantado e ainda o enfrentava.
Kirtash retrocedeu um pouco mais. Dirigiu-lhes um olhar frio e aproximou-se de Victoria. Inclinou-se para ela.
- NÃO! - gritou Jack.
Kirtash sorriu com indiferença. Os seus dedos mal tocaram o cabelo de Victoria, numa cruel imitação de carícia. Jack procurou correr na direcção dele, mas o shek, ainda a sorrir, semicerrou os olhos... e ele e a sua prisioneira desapareceram, esfumaram-se no ar, como se nunca tivessem estado ali.
Jack sentiu que algo se desprendia na sua alma. Correu para o lugar onde tinham estado Victoria e Kirtash, apesar de saber que era inútil, e voltou-se para todos os lados, procurando-os, furioso e desesperado. Gritou ao bosque o nome de Victoria, mas ela não respondeu. E, quando percebeu que a tinha perdido, talvez para sempre, deixou-se cair sobre a relva, desconcertado, sem querer acreditar no que acabava de acontecer.
- Victoria... - sussurrou, mas a voz quebrou-se-lhe, e não conseguiu dizer mais nada.
Era como se, de repente, o Sol, a Lua e todas as estrelas tivessem sido arrancados do céu, mergulhando o seu mundo na mais absoluta escuridão.
Victoria tinha presenciado toda a luta, embora o olhar de Kirtash a tivesse paralisado e se tivesse visto incapaz de se mover para ajudar os seus amigos. Perdera os sentidos logo a seguir, durante a viagem.
Sabia que tinha havido uma viagem, ainda que não se tivesse dado conta. Notava que estava estranha, e não apenas por causa da fraqueza da qual o seu corpo ainda sofria e que a impedia de se mover, mas sim...
Tentou sacudir a cabeça, mas não conseguiu mover-se. Sentia a cabeça cansada e o corpo muito pesado, como se de repente tivesse mudado o ambiente, o ar, tudo. Era desconcertante e, no entanto, era-lhe familiar.
Olhou em volta, e o estômago encolheu-se-lhe de medo.
Estava atada de pés e mãos numa espécie de plataforma redonda que se erguia no centro de uma sala circular, com paredes de pedra. Havia quatro janelas, uma em cada ponto cardeal, e através de uma delas viam-se dois sóis, não um. Victoria pestanejou, mas não era uma alucinação. Um dos dois, uma esfera vermelha, era mais pequeno do que o outro, de cor alaranjada; e ainda percebeu o brilho do terceiro sol, que acabava de se ocultar atrás do horizonte.
Estava, assim, em Idhún. Fechou os olhos, atordoada. Não, não era possível. Ainda não estava preparada, não devia ter cruzado o umbral sem antes saber o que a relacionava exactamente com aquele mundo, e muito menos tê-lo feito completamente sozinha.
Sozinha...?
Abriu os olhos e, com um esforço soberano, conseguiu voltar a cabeça.
E viu que ali, de pé, junto dela, estava Kirtash, observando-a. Esteve quase a chamá-lo pelo nome da pessoa a quem ela amava, Christian, mas mordeu o lábio e conteve-se a tempo. Aquele ser já não era Christian.
- O que vais fazer comigo? - conseguiu perguntar.
Kirtash não disse nada. Limitou-se a erguer a mão e acariciou-lhe o rosto com os dedos, como costumava fazer.
Não, não como costumava fazer, compreendeu Victoria logo a seguir. Não havia ternura nem carinho naquele contacto. Kirtash tinha-a acariciado como quem roça as pétalas de uma flor, admirando a sua beleza, mas sem sentir nada por ela.
Victoria pestanejou para conter as lágrimas, recordando o que tinha perdido. Fez por não chorar. Não ia derramar uma única lágrima, não diante dele.
- Diz-me, porquê? - sussurrou.
- É a minha natureza - respondeu ele com suavidade.
- Antes não eras assim.
- Fui sempre assim, Victoria. E tu sabias disso. Ela procurou soltar-se, mas não conseguiu.
- Não é uma recepção muito amável - murmurou. - O que vais fazer comigo?
Ele ergueu a cabeça e olhou pela janela, para o crepúsculo trissolar.
- Eu, não - respondeu após um breve silêncio. - E Ashran, o Necromante, quem tem planos para ti.
Victoria respirou fundo, inclinou a cabeça e ficou a olhar para ele.
- Vais deixar que me faça mal? - perguntou em voz baixa. - Depois de tudo o que sofreste para me proteger?
- Isso já pertence ao passado - respondeu Kirtash. - O que me recorda uma coisa.
Aproximou-se dela e agarrou na sua mão esquerda. Victoria estremeceu, mas o contacto tinha sido totalmente desapaixonado... indiferente. A rapariga fechou os olhos por um momento, destroçada por dentro. Era demasiado o que tinha perdido... em demasiado pouco tempo.
- O que estás a fazer?
Kirtash não respondeu; tentou tirar-lhe do dedo o Olho da Serpente, mas Victoria apercebeu-se de um formigueiro, e o jovem afastou a mão com brusquidão e um brilho de cólera no olhar.
A rapariga sorriu interiormente, perplexa mas satisfeita. Shiskatchegg tinha reagido contra Kirtash, não queria abandoná-la. Perguntou-se o que poderia significar aquilo. Em todo o caso, estava contente por ficar com o anel. Lembrava-lhe Christian, o Christian que lho dera como prova do seu afecto.
O olhar de Kirtash voltara a ser um punhal de gelo.
- Não importa - disse. - vou recuperá-lo do teu cadáver. Victoria engoliu em seco.
- Não posso acreditar - murmurou. - Vais mesmo matar-me?
- Ainda não. Só quando deixares de ser útil.
Victoria afastou o olhar. Sim, aquela era a forma de pensar do assassino que ela tinha conhecido nos primeiros tempos da Resistência. Odiou-se a si mesma por se ter deixado enganar tão facilmente. Era óbvio que aquela parte de Kirtash que tanto detestava nunca tinha desaparecido completamente, por mais que ela tivesse procurado convencer-se a si mesma do contrário.
Kirtash ergueu então o olhar na direcção da porta, e Victoria virou-se também para ver a pessoa que acabava de entrar.
Ficou sem fôlego.
Diante dela erguia-se Ashran, o Necromante. Tinha de ser ele, dado que Kirtash tinha inclinado a cabeça, em sinal de submissão, e Victoria não sabia de mais ninguém a quem ele prestasse contas. E agora começava a compreender porquê.
Ashran era um homem muito alto, de cabelo cinzento-prateado e rosto frio, perfeito e intemporal como uma estátua de mármore. Poderia ter sido atraente, se não fosse pelos olhos, cujas pupilas eram de um estranho e desconcertante prateado, como se fossem metálicas, e de uma intensidade que provocava calafrios. Contudo, era humano, Victoria podia percebê-lo de alguma maneira, embora tivesse algo de maligno e poderoso que se escondia nalgum recanto da sua alma.
Victoria não conseguiu continuar a olhar para ele. Voltou a cabeça para outro lado, enquanto o seu estômago se retorcia de terror.
- A rapariga está pronta? - ouviu dizer o Necromante.
- Está tudo preparado, meu senhor - respondeu Kirtash com indiferença.
- bom - sorriu Ashran. - Vai avisar Gerde. vou precisar de um feiticeiro de apoio.
Kirtash assentiu e encaminhou-se para a porta, coxeando ligeiramente; Victoria deduziu que fosse devido à ferida que a espada de Jack lhe infligira apenas umas horas antes. Quando passou junto à plataforma onde a rapariga se encontrava, esta voltou a cabeça para ele e disse-lhe:
- Christian, sinto muito.
Ele parou por um momento junto dela, mas não lhe dirigiu o olhar.
- Sinto muito! - repetiu ela, com um nó na garganta. - Lamento ter-te deixado sozinho, lamento ter tirado o anel, estás a ouvir? Por favor, perdoa-me...
Não obteve resposta. Kirtash sorriu com um certo desdém e prosseguiu o seu caminho, sem sequer olhar para ela. Victoria viu-o sair da sala e soube que uma parte do seu ser se ia com ele.
Quando ficou a sós com o Necromante, percebeu a sua presença com mais intensidade e estremeceu, aterrorizada. Ashran aproximou-se dela, e Victoria procurou afastar-se, mas estava bem atada e não conseguiu.
A fria mão do Necromante agarrou o seu queixo e fê-la erguer a cabeça. Victoria viu-se de imediato mergulhada no seu olhar prateado; quis gritar, quis fugir, mas estava paralisada de medo.
- Essa luz - comentou o Necromante. - Escolheste um bom esconderijo, não há dúvida, mas a luz dos teus olhos denuncia-te.
Soltou-a. Victoria deixou-se cair de novo sobre a pedra fria, arquejante.
- Não podias esconder-te de mim - acrescentou Ashran. - Agora, por fim, poderei fazer-te pagar pelo que fizeste a Kirtash. Mas antes... vais prestar-me um pequeno serviço.
- Não vou fazer nada por ti - replicou ela, com ferocidade; o nome de Kirtash tinha-a enfurecido, porque lhe fizera recordar o quanto Christian sofrera, apenas umas horas antes, às mãos daquele homem.
- E não te atrevas a falar dele. Maltrataste-o, estiveste quase a matá-lo. Que tipo de pai és tu?
Esperava que Ashran se encolerizasse e estava preparada, mas a reacção dele surpreendeu-a, porque respondeu com uma gargalhada sarcástica.
- Sou o tipo de pai que quer o melhor para o seu filho - respondeu o Necromante - e que não suporta vê-lo convertido numa marioneta que dança ao som do que tu lhe ditas, Victoria. Kirtash é um ser poderoso, um dia governará Idhún. Por tua causa, quase deitou a perder tudo isso; tinha-lo convertido numa criatura fraca, dependente das suas emoções humanas. Sentias realmente alguma coisa por ele? Permite -me que duvide disso.
Victoria mordeu o lábio inferior e voltou a cabeça, a tremer de raiva. Não estava disposta a falar dos seus sentimentos por Christian, não com aquele homem.
Sentiu-o perto de si, examinando os quatro altos obeliscos de pedra negra que se erguiam em volta da plataforma à qual estava amarrada, e nos quais Victoria não tinha reparado antes. Perguntou-se para que serviriam, e algo lhe disse que não gostaria de o saber.
Como se tivesse lido os seus pensamentos, Ashran disse:
- Enquanto Gerde não chega, acho que não te vais incomodar se fizermos um pequeno teste.
- Um teste? - repetiu Victoria, cautelosa. - Não sei do que estás a falar. Não penso fazer nada que....
Mas algo como uma cãibra percorreu toda a sua coluna e fê-la arquear-se sobre a plataforma. Conteve-se para não gritar.
- Parece que funciona - comentou Ashran. - Bem, vejamos o que sabes fazer.
Contornou a plataforma e saiu do campo de visão de Victoria. Esta perguntou-se, inquieta, o que andaria a tramar, mas não tardou a descobrir.
As pontas de dois dos quatro obeliscos negros pareceram acumular durante um momento... escuridão? Victoria observou, fascinada, como os obeliscos criavam trevas sobre ela, até formar uma espiral negra que começou a girar sobre si mesma. E a rapariga não tardou a sentir uma espécie de movimento de sucção...
Arquejou e procurou escapar, mas não conseguiu. As trevas puxavam-na, arrebatavam algo que, embora não soubesse o que era, intuía que se tratava de uma parte vital do seu ser. Não tardou a reconhecer a sensação.
Era o mesmo que sentia quando utilizava o seu poder curativo. A energia fluía através dela, para fora, como em ondas. Mas havia uma diferença aterradora.
Victoria não estava a entregar aquela energia voluntariamente, mas esta estava a ser arrebatada de forma violenta, tosca, grosseira. A rapariga gemeu e procurou escapar. Era desagradável, era doloroso, era inclusivamente humilhante. Para ela, o acto de curar era algo muito íntimo, porque, de alguma maneira, quando o fazia, entregava parte do seu ser à pessoa que recebia o seu dom; e aquilo que lhe estavam a fazer era horrível, porque estavam a roubar-lhe brutalmente algo que ela não queria dar. Retorceu-se sobre a plataforma e deixou escapar outro gemido, sentindo que se esvaziava e sabendo que, se aquilo continuasse, não tardaria a ficar sem forças e a morrer de esgotamento.
- Não te preocupes - disse Ashran. - Já vem.
"O que é que já vem?", quis perguntar Victoria, mas a angústia da extracção sufocava-a e foi incapaz de pronunciar uma única palavra.
De qualquer maneira, logo o descobriu.
A energia emanou como uma fonte, procedente da própria terra, e passou através dela, atravessando-a, como se tivesse metido os dedos numa tomada. E não fluía com a tranquilidade de um ribeiro, mas sim com a força e a violência de uma torrente transbordante. Victoria gritou, sentindo-se devassada, maltratada, utilizada. Doía, mas o pior era aquela sensação de desamparo, de vergonha, até mesmo de humilhação. Queria parar, queria deixar de lhes entregar a energia, mas não era algo sobre o qual pudesse decidir, e isso era o pior de tudo; ela intuía que aquilo devia ser um acto de livre entrega e nunca passível de ser arrebatado pela força.
- Parem! - gritou, com desespero. - Não quero continuar com isto! Calou-se quando viu Kirtash de pé junto dela. Arquejou e olhou para ele, procurando descobrir alguma compaixão nos seus olhos, mas a única coisa que viu neles foi, se tanto, uma certa curiosidade, como quem observa uma nova experiência científica.
- Christian - suspirou ela.
De repente, o fluxo de energia cessou, e Victoria deixou-se cair sobre a plataforma, enfraquecida e muito débil.
- Não está a utilizar toda a sua capacidade - comentou Kirtash.
- Porque só estamos a usar dois dos extractores - respondeu Ashran.
- Queres ver quanta energia este artefacto é capaz de sugar através dela?
Nos olhos de Kirtash apareceu um brilho de interesse.
- Porque não?
- Gerde - chamou o Necromante.
Victoria voltou a cabeça ao ouvir o nome da fada. Viu-a passar junto de Kirtash, sorrindo. Viu-a pôr-se em bicos de pés para lhe sussurrar algo ao ouvido, enquanto os seus longos dedos acariciavam o braço dele. E viu Kirtash sorrir e responder à sua insinuação, beijando-a rápida mas intensamente. Também não lhe escapou o olhar de soslaio que a fada lhe dirigiu enquanto beijava o rapaz. Victoria pestanejou para conter as lágrimas. Sabia que Kirtash não sentia nada por ela, que era apenas uma diversão para ele, mas...
Respirou fundo e dirigiu a Gerde um olhar no qual esperou ter uma boa dose de desprezo e desdém. Mas quando Kirtash também se voltou para olhar para ela, ainda com Gerde muito colada a ele, virou a cabeça com brusquidão para não ter de voltar a ver aquela indiferença que tanto mal lhe fazia. Teria preferido mil vezes que ele a odiasse, até mesmo que a desprezasse... mas não suportava a ideia de ter desaparecido por completo do seu coração.
Gerde afastou-se de Kirtash e ocupou a posição que lhe correspondia, entre os dois obeliscos que ainda permaneciam inactivos. Victoria viu-a colocar as mãos sobre ela e, apenas uns instantes depois, apercebeu-se novamente da espiral de escuridão, mas desta vez não se mexeu. Nada fazia sentido. Não valia a pena lutar.
No entanto, quando a torrente de energia voltou a atravessá-la, agora com muito mais intensidade, Victoria não conseguiu reprimir um grito, não conseguiu conter as lágrimas e fez todos os possíveis por continuar a olhar noutra direcção, para que Kirtash, que continuava a observá-la em silêncio, não a visse chorar, não a visse sofrer, não visse aquela angústia reflectida no seu rosto.
Porque podia suportar a dor e a humilhação, mas não a impassibilidade inumana com que ele olhava para ela.
A LUZ DE VICTORIA
- Tem de haver algo que possamos fazer - disse Jack, pela enésima vez.
-Já te expliquei, rapaz. Não podemos voltar a Idhún. O Necromante controla a Porta interdimensional. E senta-te de uma vez. Pões-me nervoso.
- Mas tem de haver algo que possamos fazer! - insistiu Jack, desesperado.
- Apenas podemos esperar, Jack - disse Allegra, com um certo esforço. - Esperar que alguém a traga de volta.
- Ninguém a vai trazer de volta, Allegra. Não entendo o que queres dizer.
- Senta-te. vou tentar explicar-te, está bem?
Jack deixou-se cair sobre o sofá e cravou o olhar na dona da casa. Allegra estava a curar-se a si mesma com a sua própria magia, mas o processo era lento, e parecia evidente que demoraria bastante a recuperar as forças. Contudo, tinha-se negado a ir para o seu quarto descansar. A Resistência estava numa situação de crise e todos precisavam de respostas.
- A nossa única esperança de recuperar Victoria - explicou Allegra
- baseia-se no facto de ela ainda continuar viva.
- Como sabes? - perguntou Jack, roído pela angústia.
- Porque a levaram viva, Jack. Isso significa que querem utilizá-la para algo, não sei exactamente para quê; mas apostaria qualquer coisa em como, seja o que for, foi ideia de Kirtash.
- Continuo sem entender aonde queres chegar - interveio Alexander, franzindo o sobrolho.
Allegra abanou a cabeça com impaciência.
- A única coisa que interessa a Ashran é matar Victoria, Alexander. Ela é a única coisa que se interpõe entre ele e o domínio absoluto de Idhún. Não imaginou nem por um momento que pudesse fazer com ela outra coisa que não fosse eliminá-la do mapa. A ideia de a levar viva tem de ter sido de outra pessoa, e estou inclinada a pensar que foi coisa de Kirtash. Se isso for verdade... pode ser que, no fundo, uma parte dele ainda queira protegê-la.
- Mas... porque é que Victoria é tão importante? - perguntou Jack, confuso.
Allegra olhou fixamente para os dois e sorriu, com infinita tristeza, mas também com carinho. Quando falou, as suas palavras caíram sobre o que restava da Resistência como uma pesada pedra:
- Porque ela, Jack, é o unicórnio da profecia. O unicórnio que, segundo os Oráculos, acabará com o poder do Necromante.
Fez-se um silêncio de incredulidade.
- O quê!? - exclamou finalmente Alexander. - Victoria, um unicórnio? Mas... não é possível.
Jack ficou sem fôlego. Custou-lhe um pouco assimilar as palavras de Allegra, mas, quando o fez, todas as peças começaram a encaixar.
- Ela é... Lunnaris - murmurou comovido. - Claro, isso... isso explica tudo.
- O quê? - murmurou Alexander, confuso. - Continuo sem entender...
Mas Jack abanou a cabeça.
- A luz... a luz dos seus olhos. É... mágica. É única. Nunca tinha visto nada igual. Pensei que era porque eu... porque eu... - disse, sentindo-se um pouco embaraçado.
Acabou por não terminar a frase, mas concluiu: - Mas não é verdade. Não sou eu que a vejo assim, é ela que é assim.
- A luz de Victoria - assentiu Allegra. - Um unicórnio pode esconder-se num corpo que não o seu verdadeiro, mas será sempre denunciado pelo seu olhar. Contudo, os humanos em geral são cegos à luz do unicórnio. Nós, os feéricos, podemos detectá-la. - Fez uma pausa. - E as criaturas como Kirtash também podem. Ele soube quem ela era quando a olhou nos olhos pela primeira vez.
- Mas isso é absurdo - bradou Alexander. - Ele veio a este mundo expressamente para matar Yandrak e Lunnaris. Não faz sentido que cometesse o erro de perdoar a vida ao unicórnio... ou, até mesmo, de o salvar.
- Kirtash, no fundo, sabe - murmurou Allegra - que matar Victoria é o maior crime que pode cometer... porque ela é a última, Alexander. O último unicórnio. Quando ela morrer, morrerá a magia em Idhún. Aos sheks em geral não lhes importa, visto que eles não obtêm o seu poder dos unicórnios, mas sim da sua própria mente, superior à das raças que consideram inferiores. E suspeito que também Ashran tem outra fonte de poder.
" Mas o nosso mundo nunca se recuperará totalmente da extinção dos unicórnios. E duvido muito que alguém, mesmo um shek como Kirtash, queira arcar com a responsabilidade de ter acabado com o último da espécie.
Jack enterrou o rosto entre as mãos, esgotado.
- Por isso o báculo não conseguia encontrar Lunnaris. Porque já estava com ela.
- Exacto, o báculo - assentiu Allegra. - Apenas pode ser utilizado por semifeiticeiros... ou por unicórnios, que, ao fim e ao cabo, foram quem o criou. A magia de Victoria não existe para ser utilizada, mas sim para ser entregue. Flui através dela e de momento manifesta-se na forma de poder curativo, mas, no futuro, quando for mais forte, será capaz de outorgar a magia a outras pessoas...
- De consagrar mais feiticeiros? - perguntou Alexander em voz baixa.
Allegra assentiu.
- Esta é a razão por que a magia não lhe saía bem. Porque ela é uma canalizadora, uma ponte, não um receptor. E não foi capaz de utilizar o seu poder até que o báculo caiu nas suas mãos. Esse objecto recolhe a energia que passa através dela para que não se perca.
- Mas como... como é possível? - disse Alexander, ainda confuso. Victoria nasceu na Terra...
- Há quinze anos, Alexander - completou Allegra. - Quando Lunnaris atravessou a Porta interdimensional.
" Shail e tu chegaram à Terra dez anos depois de isto acontecer. Talvez por isso nunca tenham suspeitado que Victoria fosse o unicórnio de que andavam à procura. Porque ela já vivia aqui há dez anos quando a encontraram, e vocês pensavam que Lunnaris acabara de atravessar a Porta interdimensional. Victoria já nasceu Lunnaris, entendem? Os unicórnios não empregam a magia, portanto, Lunnaris não podia camuflar-se sob um feitiço. Neste mundo não há unicórnios. Para sobreviver, a essência de Lunnaris teve de encarnar num corpo humano. No corpo de Victoria, para sermos exactos. Ambas são uma mesma criatura, no entanto, as duas essências convivem no seu interior.
- Queres dizer... que ela é um... híbrido, como Kirtash?
- De alguma maneira, sim. Mas até há dois dias era mais humana do que unicórnio. Agora... despertou.
- A luz dos seus olhos é mais intensa - murmurou Jack, assentindo. - Dei-me conta disso logo a seguir.
- Também eu, filho - sorriu Allegra. - No último encontro que teve com Christian, quando ele lhe entregou o anel... creio que lhe deu algo mais. De alguma maneira, despertou o unicórnio que dormia no seu interior. E parece-me que foi quando Gerde os viu juntos e os denunciou ao Necromante - acrescentou, pensativa.
- Gerde?
- Só pode ter sido ela, Jack. É uma fada, como eu. Reconheceu Lunnaris assim que a viu... como eu, há mais de sete anos. E não perdeu tempo a revelar a Ashran o segredo que o seu filho lhe escondia há tanto tempo.
Jack enterrou o rosto entre as mãos.
- Eu sabia que Victoria era especial, eu sabia - murmurou. - Devia ter adivinhado...
Allegra olhou-o com carinho; abriu a boca para dizer algo mais, mas mudou de ideias e ficou em silêncio. Era demasiada informação, e Jack precisava de assimilar o que lhe tinha dito antes de estar preparado para saber mais coisas... como a verdade acerca de si mesmo.
- Entendem agora? - perguntou, olhando em volta. - Ashran tem Victoria; tem Lunnaris, o último unicórnio. Se ela morrer, a profecia não se cumprirá e o Necromante nunca será derrotado. Para ele e para os seus aliados, a morte de Victoria é de vital importância. Contudo... Kirtash pôde matá-la esta noite e acabar com a ameaça, mas não o fez. De alguma maneira, convenceu Ashran a conservá-la com vida... durante mais algum tempo.
- Entendo. Por isso achas que talvez, no fundo...
- No fundo, talvez a luz de Victoria ainda brilhe no coração desse rapaz, Jack. Agarro-me a essa esperança. Porque - acrescentou Allegra, olhando-os intensamente - é a única coisa que nos resta agora.
Victoria abriu os olhos lentamente, esgotada. Era já noite, e tinham-na deixado sozinha há algum tempo, ainda atada àquela espécie de plataforma de tortura. Quando desmaiou de esgotamento, Ashran tinha decidido interromper o processo para continuar um pouco mais tarde. Agora estava sozinha, e a luz de uma das luas banhava aquela sala gelada onde a tinham deixado. Era grande e muito branca, e Victoria supôs que fosse Érea, a lua maior. Shail contara-lhe que, segundo a tradição, Érea era a morada dos deuses. Victoria inclinou a cabeça e observou o suave brilho da lua idhunita, perguntando-se se realmente estariam ali todos os deuses: a luminosa Irial, o poderoso Aldun, a enigmática Neliam, o místico Yohavir, a caprichosa Wina, o sábio Karevan. Victoria sorriu ligeiramente e repetiu para si os nomes que Shail lhe ensinara anos antes: Irial, Aldun, Neliam, Yohavir, Wina, Karevan. Na altura eram apenas nomes, apenas ideias, tal como Idhún. Mas agora Idhún era real, e Victoria perguntou-se se aqueles deuses das lendas também o seriam.
Percebeu uma presença atrás de si, uma presença subtil, que não fizera o mínimo ruído ao entrar, mas que, apesar de tudo, ela conseguia sentir.
- O que queres? - murmurou, sem se voltar para olhar para ele.
- Falar - disse Kirtash com suavidade.
- E se eu não quiser falar contigo?
- Não estás em posição de escolher, Victoria.
- Acho que não - suspirou ela; tinha os braços entumecidos e retorceu-se sobre a plataforma, tentando encontrar uma posição mais cómoda, mas não conseguiu.
Kirtash sentou-se junto dela, e a luz de Érea banhou o seu rosto. Victoria viu como ele voltava a cabeça para olhar para ela. Esperou que dissesse algo, mas não o fez.
- Estás a olhar para o quê?
- Para ti. És linda.
Victoria voltou a cabeça, aborrecida. Kirtash tinha pronunciado aquelas palavras como se estivesse a referir-se a um jarrão de porcelana chinesa e não a uma mulher; mas não tinha forças para discutir, não tinha forças para se zangar, pelo que permaneceu em silêncio durante algum tempo, até que por fim sussurrou:
- Kirtash... o que estão a fazer comigo?
- A renovar a energia da torre - respondeu ele. - É um feitiço mediante o qual extraímos a magia de Alis Lithban e a canalizamos através de ti. A energia é recolhida naqueles obeliscos - indicou os quatro estreitos obeliscos que rodeavam a plataforma e cujas extremidades ainda vibravam - e transmitida à torre inteira, envolvendo-a num manto de poder. Não notas? Não percebes que já não está tão morta e fria como antes?
Victoria inclinou a cabeça e semicerrou os olhos. De facto, podia sentir com clareza que as pedras centenárias pareciam transpirar energia e a torre inteira palpitava quase imperceptivelmente.
- Não entendo. Eu fiz isto? Não pode ser.
- Subestimas-te, Victoria. Dentro de ti há muito mais do que tu conheces.
- Mas... porquê eu?
- Porque és a única criatura no mundo capaz de extrair a energia de Alis Lithban. Não resta mais ninguém como tu. És a última da tua espécie.
- Não sei... do que estás a falar.
Esperou que ele se explicasse, mas não o fez. Continuou a observá-la, e Victoria viu-se obrigada a quebrar de novo o silêncio.
- Não é por isso, pois não? - murmurou, com os olhos cheios de lágrimas. - É um castigo pelo que te fiz. Porque te deixei sozinho.
Kirtash sorriu com indiferença.
- O que te faz pensar que me importo tanto contigo para querer vingar-me de ti?
Victoria inclinou a cabeça e fechou os olhos.
-Não, é verdade. Nunca devia ter tirado o anel. Perdi-te para sempre, mas o pior é que... te abandonei. Por isso... mereço tudo isto que me estão a fazer, não é? Deste tudo por mim e eu deixei-te ficar mal na primeira oportunidade. Gerde tinha razão: não te mereço.
- Victoria, és muito superior a Gerde, em todos os aspectos - disse ele; mas não o disse com calor nem com carinho, mas sim com a voz desapaixonada de quem descreve os resultados de uma operação matemática. - És o que és, e eu respeito-te como igual. Por isso estou aqui, a falar contigo. Se fosses uma humana qualquer, ou mesmo uma fada como Gerde, não perderia o meu tempo contigo.
- Mas vais matar-me, apesar de tudo. Kirtash encolheu os ombros.
- É a vida.
- Continuo sem entender o que fazes aqui.
- Aproveito as tuas últimas horas para aprender contigo. Não terei outra oportunidade, porque, como já te disse, és única nos dois mundos.
- O que esperas aprender? Eu é que aprendi contigo... tantas coisas...
Kirtash não respondeu. Aproximou a mão do rosto de Victoria e algo brilhou na testa dela como uma estrela, iluminando o rosto do shek com o seu suave esplendor. Kirtash afastou a mão, e a luz da testa de Victoria diminuiu, mas não se apagou.
- Já despertaste - observou ele, com suavidade. Ergueu novamente a mão e acariciou-lhe o rosto.
- Essa luz dos teus olhos... - comentou. - Gostaria de saber de onde provém.
Olhou-a nos olhos, e Victoria procurou transmitir-lhe tudo o que sentia com aquele olhar. Só que nos olhos de Kirtash não havia afecto, mas mera curiosidade.
- Oxalá pudesse voltar atrás - disse Victoria. - Oxalá nunca tivesse tirado o anel. Daria o que fosse... para te recuperar, para ter outra oportunidade...
Kirtash abanou a cabeça.
- Victoria, não vale a pena torturares-te dessa maneira. Não te vai levar a lado nenhum. Sou um shek e não posso sentir nada por ti.
- Diz-me ao menos que me perdoas. Por favor, diz-me que não me guardas rancor. Depois podes matar-me se quiseres, mas...
- Não te guardo rancor - disse ele. - Já te disse que não sinto nada por ti.
- Então - sussurrou ela -, porque é que eu não consigo deixar de gostar de ti?
Kirtash fitou-a, pensativo, mas não respondeu. Voltou-se para a porta uma fracção de segundo antes de Ashran chegar.
A figura do Necromante recortava-se, sombria e ameaçadora, contra a luz que provinha do corredor. Parara à porta e observava Kirtash com uma expressão indecifrável.
- Kirtash! - A sua voz revelava ira contida, e Victoria sentiu um calafrio. - O que estás a fazer?
O jovem levantou-se e devolveu-lhe um olhar sereno.
- Queria apenas... - começou, mas interrompeu-se a meio e franziu o sobrolho, um pouco desconcertado.
- Já percebi - replicou Ashran. - Afasta-te daí. Não quero voltar a ver-te perto dessa criatura. E muito menos a sós.
- Não confias em mim, meu senhor? - perguntou o rapaz com suavidade.
- É nela em quem não confio.
Victoria sorriu interiormente, mas o coração apertou-se-lhe ao ver que Kirtash assentia, conformado, e se afastava dela. Viu também que Gerde tinha entrado na sala e estava a acender novamente as tochas com a sua magia. Kirtash dirigiu ao seu pai um olhar interrogativo.
- Estão a atacar-nos - disse Ashran.
- O quê? - conseguiu dizer Victoria. - Quem? Ninguém lhe prestou atenção.
- Calculei que tentariam algo assim - comentou Kirtash. - Nem que fosse um ataque desesperado. Não têm nenhuma hipótese e sabem disso.
- Também já não têm nada a perder - disse Ashran, lançando um breve olhar a Victoria, amarrada à plataforma. - Sabem que temos a rapariga e que, se morrer, a sua última esperança morrerá com ela.
- Mas como podem ter adivinhado? - interveio Gerde, franzindo o sobrolho.
- Estamos a ressuscitar o poder da Torre de Drackwen - explicou Kirtash. - Isso não é muito difícil de detectar. Devem ter adivinhado logo como estamos a fazê-lo.
- Reúne a tua gente e organiza as defesas, Kirtash - ordenou Ashran.
- Gerde e eu reforçaremos o escudo em volta da torre.
- Para isso vamos precisar de muito mais energia - fez notar Gerde.
- O que acontece se ela não aguentar?
As pupilas prateadas de Ashran cravaram-se em Victoria, que estremeceu de terror.
- Morrerá - disse simplesmente. - Mas, no fim de contas, isso era o que pretendíamos desde o princípio.
Gerde,sorriu; assentiu e dirigiu-se para a plataforma. Victoria entendeu o que estava prestes a acontecer.
- Não! - gritou, debatendo-se, furiosa; mas apenas conseguiu que as correntes se cravassem mais na sua pele. - Não se atrevam a voltar a...! Não vou permitir!
Quis chamar Kirtash, mas o jovem já saíra da sala, sem olhar para trás. No entanto, Victoria ouviu a voz dele na sua mente: "Vais ter de te esforçar muito, Victoria. Pôde ser até que o teu corpo não o suporte desta vez. Mas pensa em Jack. Isso dar-te-á forças."
Ela voltou-se para ele, surpreendida. Mas o shek já se tinha ido embora.
No entanto, ainda lhe chegou uma última mensagem telepática.
"É uma pena..." O pensamento de Kirtash foi apenas um sussurro distante na sua mente, e Victoria teve de se concentrar para não o perder. "És linda", acrescentou ele, por fim.
Victoria esperou um pouco mais, mas a voz de Kirtash não voltou a ouvir-se nos seus pensamentos. Naquele momento viu que os obeliscos vibravam outra vez, com mais intensidade, e que começavam a gerar sobre ela aquela espiral de escuridão que já conhecia tão bem. O estômago encolheu-se-lhe de angústia e terror, mas Gerde e Ashran estavam à sua frente e não tencionava dar-lhes a satisfação de a ver de novo naquela situação tão humilhante, de maneira que lhes dirigiu um olhar cheio de antipatia. Gerde esboçou um dos seus encantadores sorrisos, colocou-se junto dela e pôs as mãos em volta de dois dos obeliscos. Victoria percebeu atrás de si a presença de Ashran, entre os outros dois obeliscos.
De imediato, o artefacto começou a sugar energia através de Victoria. Ela arquejou e tentou travar aquela torrente de energia que a atravessava, mas foi como se se tivesse posto de pé debaixo de uma violenta catarata.
Cerrou os dentes e pensou em Jack, como Kirtash lhe aconselhara. E, para sua surpresa, funcionou. Evocou o doce olhar dos seus olhos verdes, o seu sorriso aberto, o seu reconfortante abraço, a ternura com que ele cantara aquela balada acompanhado pela sua guitarra. Recordou o toque do seu cabelo, o seu primeiro beijo e a agradável
sensação que tinha experimentado ao acordar, apenas umas horas antes, e vê-lo adormecido tão perto dela. Sorriu com nostalgia e perguntou-se se voltaria a vê-lo.
De qualquer forma, estava feliz por ter podido dizer-lhe o que sentia por ele antes de morrer.
- Jack... - suspirou Victoria em voz baixa, enquanto o poder do Necromante se aproveitava dela, uma vez mais, e a forçava a extrair até à última gota a magia de Alis Lithban.
E, ainda que não tivesse consciência disso, a estrela da sua testa brilhava com a pureza e intensidade da luz da aurora.
Jack acariciou o tronco do salgueiro.
- Disse-te que te esperaria aqui mesmo... - sussurrou, embora soubesse que Victoria não podia ouvi-lo. - Que te esperaria... aqui mesmo...
Desolado, deixou-se cair sobre a raiz onde costumava sentar-se quando Victoria estava ali. Nem sequer a suave noite de Limbhad era capaz de mitigar a sua dor.
Tinham regressado à Casa na Fronteira graças a Allegra, que era uma feiticeira; até mesmo a Alma a tinha reconhecido como aliada, apesar de ser a primeira vez que a contactava, e permitiu-lhe a entrada nos seus domínios acompanhada por Jack e Alexander. Da maneira como as coisas estavam, era melhor voltar a Limbhad; se Victoria conseguisse regressar à Terra, aquele era o primeiro lugar para onde iria.
Jack tinha deambulado por toda a casa como um tigre enjaulado e, finalmente, tinha optado por dar um passeio pelo bosque. Mas todos os recantos daquele lugar lhe recordavam Victoria, em especial aquele salgueiro. Os seus olhos encheram-se de lágrimas ao compreender, por fim, porque é que a sua amiga passava tantas noites naquele lugar. Era um unicórnio, uma canalizadora. A energia passava através dela e isso esgotava a sua própria energia; precisava, portanto, de se recarregar, como se recarrega uma bateria, e naquele lugar respirava-se mais vida do que entre as quatro paredes de uma casa. Jack recordou-a ali, agachada aos pés do salgueiro, e evocou a noite em que dissera o que sentia por ela. Nessa altura, tinha-lhe parecido que a rapariga brilhava com luz própria.
Engoliu em seco. Agora que sabia que Victoria era um unicórnio, uma criatura sobre-humana, compreendia melhor a sua relação com Kirtash. Ambos eram seres excepcionais num mundo povoado por humanos, medíocres em comparação com eles. Recordou que Victoria lhe dissera a ele, Jack, que também o amava; o rapaz perguntou-se o que tinha visto nele. Quando ela assumisse a sua verdadeira natureza, certamente que não se daria ao trabalho de olhar mais do que uma vez para ele.
No entanto, Jack não podia deixar de gostar dela, não conseguia deixar de sofrer pela sua ausência. Naquele momento não lhe importavam nada Idhún, a Resistência ou a profecia. Apenas queria que Victoria regressasse sã e salva, embora a perdesse para sempre. Desejou que Allegra estivesse certa e que Kirtash estivesse no fundo a protegê-la. "Renunciaria a ela", disse para si mesmo. "Se Kirtash a trouxesse para casa, se nos devolvesse Victoria... resignar-me-ia a vê-la partir com ele, não me intrometeria mais na sua relação... Só quero vê-la viva, uma vez mais."
Recostou-se contra o tronco do salgueiro e levantou o rosto para as estrelas. Estava há algum tempo a sentir uma horrível angústia por dentro e tinha a terrível sensação de que, em alguma parte, Victoria estava muito mal. E ele não podia fazer nada para a ajudar, porque não podia chegar até ela. O que era frustrante, sobretudo tendo em conta que estava disposto, sem dúvida, a dar a sua vida para a salvar. E ainda mais.
Secou as lágrimas e murmurou para a escuridão:
- Olá, Alexander.
O amigo afastou os ramos do salgueiro, que pendiam como uma cortina entre os dois, para chegar até ele.
- Porque não dormes um pouco, rapaz? Deves estar esgotado. Jack voltou-se para ele, para o olhar nos olhos.
- Achas que poderia dormir? Ela está mal, Alexander, eu sei disso. E não posso fazer nada.
- Maldição, eu também me sinto impotente. Tanto tempo à procura do unicórnio da profecia e tínhamo-lo ao nosso lado. Deixámo-lo escapar... a nossa última esperança de ganhar esta guerra...
Jack voltou-se bruscamente para ele e um brilho de cólera iluminou os seus olhos verdes.
- É isso que te importa? A guerra e a profecia? Alexander olhou para ele.
- Claro que não - disse rapidamente. - Mas tenho de pensar nela como Lunnaris, o unicórnio, porque é a única maneira de conservar um mínimo de calma. Se me lembrar dela como Victoria, a nossa pequena e valente Victoria, ficarei louco de raiva.
Jack baixou a cabeça e pôs-se a brincar com o pendente que usava, o pendente que Victoria lhe tinha dado no dia em que se tinham conhecido.
- Agora entendo - disse a meia-voz. - Agora entendo o que ela sentia quando estavam a torturar Kirtash e não podia fazer nada para o ajudar. É... - Não encontrou palavras para o descrever e enterrou a cara entre as mãos, desolado. - Ainda me custa a crer que ele a tenha atraiçoado, depois de tudo - concluiu.
- Já sabíamos que ele era um shek - murmurou Alexander. - E, ainda que Allegra diga que foi por culpa de Ashran, que continua a ter poder sobre ele... eu não sei até que ponto aquela coisa é humana. Maldição... - acrescentou, cerrando os dentes. Se Shail estivesse connosco, isto não teria acontecido. Ele conhecia muito bem Victoria, compreendia-a, saberia o que fazer para a ajudar.
- Alexander - disse Jack, após um momento de silêncio. - Achas que Shail sabia que Victoria era um unicórnio?
O jovem meditou na resposta e finalmente abanou a cabeça.
- Não, não creio. Mas adorava Lunnaris, e pode ser que no fundo... isso o fizesse sentir um afecto especial por Victoria.
- Ou melhor, inconscientemente sabia - opinou Jack. - Talvez por isso... talvez por isso tenha dado a sua vida para a salvar há dois anos. Não achas?
- Pode ser. Os feiticeiros costumam dizer que quem vê um unicórnio nunca o esquece. Deviam ser criaturas maravilhosas.
- Se todos eram como Victoria, então de certeza - murmurou Jack; recordou então uma coisa e ergueu a cabeça para olhar para o seu amigo. - Kirtash contou a Victoria que viu uma vez um unicórnio, quando era criança. Achas que o terá esquecido?
- Pelo bem de Victoria, espero que não.
Jack sentiu que a angústia voltava a apoderar-se de si e voltou bruscamente a cabeça para que Alexander não o visse chorar. Mas os seus ombros tremeram com um soluço, e o seu amigo apercebeu-se. Passou-lhe um braço pelos ombros, consolador.
- Sê forte, rapaz. Tem fé.
- Fé? Em quê? Em quem? - replicou ele com amargura. - A única coisa em que posso pensar agora, Alexander, é que quero vê-la outra vez, quero ver o seu sorriso e aqueles olhos tão incríveis, quero... abraçá-la de novo... e não a deixar ir nunca mais.
Alexander olhou para Jack com tristeza, mas não disse nada.
- Não suporto estar aqui sentado sem fazer nada - murmurou Jack.
- Não tenho feitio para esperar. Tenho vontade de gritar, de bater em algo, de destruir qualquer coisa... Por isso estou aqui. Se voltar a entrar na casa, é muito provável que desate aos murros à primeira coisa que encontrar.
Alexander observou-o por um momento e então levantou-se de um salto e estendeu-lhe um objecto estreito e alongado. Jack olhou-o na obscuridade, reconheceu-o e compreendeu
o que queria dizer. Assentiu e pôs-se de pé rapidamente, com decisão. Pegou naquilo que o seu amigo lhe entregava e seguiu-o através do bosque.
Alexander parou na clareira que se estendia entre o bosque e a casa e voltou-se na direcção de Jack.
- Em guarda - disse, desembainhando a espada que tinha trazido. Não era uma espada de treino. Era Sumlaris, a Imbatível. E a espada que Jack desembainhou também não era uma qualquer. Tratava-se de Domivat, a espada de fogo.
- Pronto - murmurou Jack, erguendo a sua arma.
Alexander atacou primeiro. Jack defendeu-se. As duas espadas chocaram, e a violência do encontro estremeceu a noite. Retrocederam uns passos, mas Jack voltou à carga quase de seguida.
De início conteve-se. Sabia que, embora estivessem a lutar com as suas espadas míticas, aquele não era mais do que outro treino. Mas a dor e a impotência que sentia pela perda de Victoria foram-se libertando pouco a pouco através de Domivat. Quase sem se dar conta, foi imprimindo cada vez mais força e mais raiva aos seus golpes e, quando por fim desferiu uma última estocada sobre Alexander, com toda a força do seu desespero, tomou consciência de que tinha os olhos cheios de lágrimas. Gritou o nome de Victoria e deixou que o seu poder fluísse através da espada.
Mas Sumlaris esperava-o sólida como uma rocha e aguentou na perfeição Domivat. A violência do choque lançou-os aos dois para trás. Jack caiu sentado sobre a relva e abanou a cabeça para aclarar as ideias. Então deu-se conta do que tinha feito.
Viu Alexander um pouco mais longe, com um joelho fincado em terra, respirando pesadamente. Também ele tinha libertado toda a raiva do seu interior. Os seus olhos brilhavam na noite e o seu rosto era uma máscara animal, uma mistura entre as feições de um homem e os traços de um lobo. Grunhia, mostrando as presas, e a mão que empunhava Sumlaris parecia mais uma garra do que uma mão humana.
Mas, acima de tudo, Jack viu que a roupa de Alexander estava feita em tiras e que a sua pele mostrava graves queimaduras, ainda que ele não parecesse notá-lo. Hesitou e, embora percebesse o perigo que implicava ter Alexander por perto naquele estado, deixou cair a espada.
Domivat criou um círculo de fogo em seu redor, calcinando a relva em torno de si; mas não demorou a apagar-se. Ofegando, Jack olhou para o amigo.
- Sinto muito, Alexander - disse. - Não... não queria fazer-te mal. Houve um silêncio tenso. Alexander deixou de grunhir baixinho e o brilho dos seus olhos extinguiu-se. Jack viu como o jovem recuperava, pouco a pouco, o seu aspecto humano.
- Não importa, rapaz - disse ele então, com voz rouca. - Se tens de lutar com alguém, é melhor que seja comigo.
Jack enterrou o rosto entre as mãos.
- E o pior de tudo - murmurou - é que com isto não vou ajudar Victoria. Porque não é contigo que tenho de lutar, Alexander. - Abanou a cabeça, abatido, mas, quando ergueu os olhos, o fogo do ódio ardia no seu olhar. - Da próxima vez que vir Kirtash, mato-o. Juro que o mato.
Das ameias da Torre de Drackwen, Kirtash, pensativo, observou a paisagem que se estendia à sua frente.
Lá fora desencadeara-se uma terrível batalha entre as forças de Ashran e o grupo de renegados que estava a atacar a torre. Tratava-se de uma coligação liderada pelos feiticeiros da Torre de Kazlunn, um dos poucos lugares de Idhún que resistia ao império do Necromante. com eles, lutavam também feéricos, humanos e celestes, que, apesar de serem um povo pacífico, atacavam agora do céu montados em enormes e belos pássaros dourados. Kirtash tinha visto também vários gigantes nas filas dos renegados, o que não deixava se ser surpreendente. Os gigantes, seres vigorosos e robustos como rochas, de mais de três metros de altura, viviam nas geladas cordilheiras do norte, amavam a solidão e não costumavam misturar-se com as outras raças.
Mas aquela aliança nada podia fazer contra o poder de Ashran. Um exército de szish, os temíveis homens-serpentes, defendia a torre dos ataques por terra, enquanto um grupo de sheks atacava do ar e os belos pássaros dourados dos celestes caíam ante eles como moscas. Kirtash dirigia todos os seus movimentos do alto da torre. Podia comunicar-se telepaticamente com os sheks; quanto aos homens-serpentes, embora a sua mente não fosse tão sofisticada como a das serpentes aladas, podiam captar as ordens de Kirtash. Nunca se teriam atrevido a desobedecer-lhe, porque sabiam que aquele rapaz não era um simples humano, nem simplesmente o filho de Ashran... mas sim uma daquelas poderosas criaturas que atacavam os renegados a partir dos céus.
Algures, os feiticeiros estavam a assaltar a torre, pondo em jogo todo o seu poder, e as suas fundações tremiam de vez em quando, sacudidas por uma magia furiosa e desesperada, que já não tinha nada a perder.
Kirtash estava consciente disso. Sabia que, por muito que a magia daqueles feiticeiros atingisse a Torre de Drackwen, jamais conseguiriam quebrar o escudo que se estava a gerar pela energia extraída através de Victoria.
Victoria...
Kirtash tentou afastar aquele nome da sua mente.
Estava há algum tempo a sentir uma ligeira e incómoda angústia no fundo do coração e compreendia muito bem a que se devia. Shiskatchegg, o Olho da Serpente, ainda brilhava no dedo da rapariga e, através dele, Kirtash podia aperceber-se de parte da sua dor. Não deveria afectá-lo, mas de facto, de alguma maneira e em algum canto recôndito da sua alma, afectava-o. Semicerrou os olhos, pensando que deveria ter-lhe tirado à força aquele maldito anel quando tivera oportunidade, por mais que Shiskatchegg não parecesse disposto a regressar ao seu legítimo dono.
Kirtash viu como o sinuoso corpo de um shek se debruçava sobre um dos pássaros dourados; uma das suas enormes asas tapou o seu campo de visão, mas ele sabia perfeitamente qual ia ser o resultado daquele confronto. Ninguém podia enfrentar os sheks. Só os dragões... e já não restavam dragões.
Excepto um.
Os olhos de Kirtash emitiram um breve brilho de ódio. Quando Victoria morresse, já não seria necessário destruir o dragão, mas Kirtash pensava fazê-lo de qualquer modo.
Quando Victoria morresse...
Algo no seu coração estremeceu ante aquele pensamento, e o jovem fez os possíveis por reprimir a emoção que começava a despertar dentro de si. Mas estava cada vez mais e mais consciente do sofrimento de Victoria, de que a sua vida se apagava pouco a pouco e de que em breve a luz dos seus olhos se extinguiria para sempre.
Então viu que uma das aves douradas se tinha aproximado perigosamente das ameias e obrigou-se a si mesmo a concentrar-se na defesa da torre. Mas em seguida percebeu que aquele pássaro não queria lutar. O seu cavaleiro conduzia-o directamente para as ameias, procurando esquivar-se dos sheks... e Kirtash compreendeu que era ele o objectivo. Pôs-se em guarda e desembainhou Haiass.
Mas a ave parou no ar, a escassos metros dele. A pessoa que a montava ficou a olhar para Kirtash durante um breve instante. Tinha o rosto coberto com um capuz, apenas a luz das três luas banhava a sua figura, mas o jovem soube imediatamente quem era e ao que tinha vindo.
No fundo do seu coração, Victoria continuava a sofrer. A sua luz era cada vez mais fraca.
Kirtash vacilou.
Ashran semicerrou os olhos e afastou-se da plataforma. Victoria sentiu que o caudal de energia que passava através dela diminuía considera velmente.
- Alguém entrou na torre - disse.
- Não pode ser! - sussurrou Gerde.
Ashran fechou os olhos por um momento, tentando comunicar com o filho.
- Kirtash não responde - murmurou. - Se esse intruso é tão poderoso para passar as defesas da torre, é possível que já tenha tido problemas com ele.
Gerde desviou o olhar, mas não disse o que estava a pensar: que também havia a possibilidade de Kirtash ter voltado a atraiçoá-los, franqueando a passagem aos seus inimigos. Mas Ashran parecia demasiado seguro do seu próprio domínio sobre Kirtash, e insinuar que o rapaz se tivesse libertado dele significaria pôr em dúvida o poder do seu senhor. De modo que não disse nada.
Ashran saiu da sala sem dizer uma palavra. Gerde sabia que ia ver o que tinha acontecido com Kirtash e sabia também que ela devia encarregar-se agora de continuar a extrair a magia de Alis Lithban através de Victoria. A rapariga estava tão esgotada que não tardaria a morrer. Mas, quando morresse, a Torre de Drackwen seria já inexpugnável.
Faltava tão pouco para que isso acontecesse que já não eram necessários dois feiticeiros junto dos obeliscos. De qualquer forma, Gerde pensou que não havia nenhum mal em acelerar as coisas. Agarrou-se a dois dos obeliscos e, com um sorriso maldoso, pôs em jogo todo o seu poder para fazer com que o artefacto sugasse toda a energia possível. Victoria reprimiu um grito. Naquele instante, sentiu como se algo se desprendesse no seu interior e soube que ia morrer.
Pensou que teria sido lindo morrer a olhar para os ardentes olhos verdes de Jack, mas ele não estava ali. E, quase sem se dar conta, voltou a cabeça na direcção da porta, desejando que Kirtash regressasse para, ao menos, poder levar consigo uma imagem dele... porque, apesar de tudo, tinha sido uma vez Christian e a sua lembrança ainda lhe queimava o coração.
Mas a energia atravessou-a de novo com tanta violência que ela não conseguiu evitar lançar um grito de angústia e dor, com as poucas forças que lhe restavam. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, e, embora tivesse procurado contê-las, desta vez não conseguiu. Notou que as forças a abandonavam definitivamente e pensou em Jack, pensou em Christian, e os rostos de ambos foram a última coisa a que se agarrou antes de perder os sentidos.
Voltou a si, e a primeira coisa que notou foi uma enorme sensação de alívio. E esgotamento.
A energia já não a atravessava. Tudo tinha terminado. Mas ela estava cansada, tanto que nem sequer tinha forças para se mover. Sentiu algo muito frio junto à sua mão e abriu os olhos com esforço. Escapou-se-lhe um gemido débil quando viu o fio de Haiass mesmo junto dela.
Mas a espada limitou-se a roçar as correntes que a prendiam e estas quebraram-se ao contacto com aquela folha de gelo puro.
Victoria ergueu os olhos e viu Kirtash inclinado junto dela; o rosto dele estava muito perto do seu. Fitava-a com seriedade e uma faísca de emoção contida nos seus frios olhos azuis.
- O que... - conseguiu dizer. O shek abanou a cabeça.
- Não podia deixar-te morrer - murmurou.
Levantou-a com cuidado e abraçou-a suavemente, e Victoria, com os olhos cheios de lágrimas, lançou-lhe os braços ao pescoço com as suas últimas forças e sussurrou:
- Christian...
ALIANÇA
O jovem ajudou Victoria a pôr-se de pé. A rapariga apoiou-se sobre o seu ombro, a tremer, e olhou em volta.
Não estavam sozinhos. Gerde tremia num canto, entre furiosa e assustada, com o olhar fixo no fio de Haiass. Victoria supôs que Christian tivera de lutar contra ela para poder libertá-la. Era claro qual tinha sido o resultado.
- Pagarás muito caro pela tua traição, Kirtash - sussurrou a feiticeira, olhando para os dois com ódio.
Christian dirigiu-lhe um breve olhar, mas não disse nada. Ajudou Victoria a caminhar em direcção à porta.
Os momentos seguintes foram confusos para a rapariga. Pelos vistos, a inesperada rebelião de Christian não tinha passado despercebida aos ocupantes da torre. No corredor apareceram-lhes à frente vários homens-serpentes e dois feiticeiros, e Christian deixou Victoria apoiada contra a parede de pedra enquanto erguia Haiass e enfrentava todos eles.
Victoria quis ajudar, mas não tinha maneira de o fazer.
A sua magia era inútil sem o Báculo de Ayshel, que tinha ficado na casa da avó. E sentia-se demasiado fraca para lutar. Odiava ter de ficar inactiva, mas não teve outro remédio senão ficar ali e ver como Christian acabava com os seus adversários, rápido, certeiro e letal, e procurando assimilar tudo o que estava a acontecer.
Christian tinha mudado de ideias em relação a ela, isso era claro. Victoria estava demasiado confusa para tentar compreender os motivos da sua estranha conduta, mas havia algo que, obviamente, não lhe escapava.
Christian estava a enfrentar os soldados do seu próprio bando, estava a lutar para a salvar... abertamente. Ashran nunca lho perdoaria. Contemplou por um momento o semblante impenetrável do shek, os seus olhos azuis, que brilhavam através da franja de cabelo castanho-claro; viu-o mover-se com a agilidade de um felino e perguntou-se, uma vez mais, o que teria visto nela aquele jovem tão extraordinário.
- Caminho livre, Victoria - disse ele por fim, estendendo-lhe a mão.
Victoria observou-o por um momento, de pé no corredor, brandindo Haiass, cujo fio ainda tremia com a sua própria luz branco-azulada; sabia que aquele era o jovem que a tinha atraiçoado, sabia que podia voltar a fazê-lo. Mas ergueu a cabeça para o olhar nos olhos e decidiu que, se tinha de morrer, preferia que fosse ao seu lado. De modo que, desta vez, sem duvidar nem por um único instante, lhe agarrou na mão. O rapaz sorriu levemente e começou a andar pelo corredor, arrastando-a atrás de si.
- Christian - perguntou ela, com dificuldade. - Porque... porque estás a ajudar-me?
- Porque tu não deves morrer, Victoria. Aconteça o que acontecer, deves continuar viva. E não importa o que digam, não importa a profecia, nem sequer o império do meu pai é importante, comparado com o facto de que a tua morte seria para Idhún o mesmo que apagar um dos seus sóis. Entendes?
- Não - murmurou ela, um pouco assustada. Christian sorriu.
- Não importa - disse. - Já vais entender.
Desceram a escadaria de caracol tão rápido quanto o estado de Victoria permitia. Mas, ao chegar a um dos pisos inferiores, depararam-se com um pelotão inteiro de homens-serpentes à sua espera. Christian retrocedeu uns passos.
- Christian! - exclamou ela. - Tu podes abrir a Porta interdimensional, não podes? Vamos voltar à Terra!
- Não se pode abrir uma Porta interdimensional neste lugar - respondeu o shek. - A magia do meu pai controla a torre inteira e não permite entrar nem sair por meios mágicos. E uma regra elementar de segurança, entendes?
- Então, o que fazemos?
- Temos de sair da torre e abrir a Porta no bosque. Victoria assentiu e apoiou-se na parede, desfalecida.
Tinha consciência de que estava a perder as poucas forças que lhe restavam, mas recusava-se a deixar Christian sozinho, a lutar contra todos aqueles que antes tinham sido seus aliados.
De súbito, Victoria sentiu uma presença atrás de si e voltou-se com rapidez. Ainda teve tempo de desferir instintivamente um pontapé contra a esbelta figura que se aproximava. Ouviu uma exclamação de surpresa quando o seu pé se cravou num estômago desprotegido; era a voz de Gerde, e Victoria sorriu com um prazer sinistro. Mas logo o sorriso lhe morreu nos lábios, porque sentiu que algo a paralisava sem saber porquê, e olhou para a fada, horrorizada. Ela sorriu-lhe, enquanto os seus olhos negros cintilavam com um brilho perverso na obscuridade.
Victoria sentiu que lhe faltava o ar e levou as duas mãos à garganta. Caiu de joelhos sobre o chão, a abrir e a fechar a boca, procurando respirar. Não sabia o que estava a acontecer-lhe, mas suspeitava que se tratava de algum tipo de feitiço. De qualquer modo, ela não podia contrariá-lo.
Reparou no vulto ágil de Christian a passar como uma sombra junto dela, e viu-o arremeter contra Gerde. Mas a fada retrocedeu, fitou-o com ódio e, simplesmente, desapareceu. Tornava-se claro que ainda não se atrevia a enfrentá-lo directamente.
Christian voltou-se para Victoria e procurou fazê-la reagir. Mas havia mais soldados no corredor, soldados szish, humanos e até mesmo um yan, e o rapaz virou-se para eles, com um brilho ameaçador no olhar.
Estavam em apuros. Victoria estava a asfixiar, Christian não sabia o que fazer para a ajudar e a guarda superava-o largamente em número.
- Vai, desimpede a saída - disse então uma voz junto deles. - Eu cuido dela.
Christian girou sobre os calcanhares. Entre as sombras havia alguém que ocultava o rosto debaixo de um capuz. O shek reconheceu-o de imediato; era a pessoa que se tinha dirigido a ele nas ameias. Assentiu e deixou Victoria aos cuidados do estranho, virando-lhes as costas para enfrentar os soldados.
A rapariga tinha receio, pelo que procurou afastar-se do desconhecido, mas estava a ficar sem ar e a sua visão começou a nublar-se.
- Respira - murmurou então o encapuzado, passando uma mão sobre o seu rosto.
O bloqueio desapareceu; Victoria inalou uma intensa golfada de ar. Mas isso foi apenas uns segundos antes de pensar que aquela voz lhe era estranhamente familiar e de perder os sentidos.
O desconhecido tomou-a nos braços e apressou-se a correr para junto de Christian, que já tinha derrotado o último guarda.
- Não consegui entreter Ashran por mais tempo - disse. - Creio que já adivinhou o que está a acontecer.
O shek voltou-se para ele.
- Sabe há um bom tempo - respondeu. - Está à nossa espera à saída. Não poderemos escapar daqui sem o enfrentar.
O outro assentiu, sem um comentário. Os dois continuaram a dêscer, Christian à frente, com Haiass desembainhada, e o seu misterioso aliado atrás, levando Victoria nos braços.
Antes de chegar ao andar de baixo, o encapuzado parou durante um momento e disse:
- Não tive ocasião de te agradecer por me teres salvado a vida.
- Não o fiz por ti - cortou Christian secamente -, mas sim por ela.
- Eu sei. Mas, de qualquer modo, salvaste-me a vida. O rapaz encolheu os ombros, mas não respondeu.
Quando chegaram ao enorme vestíbulo da Torre de Drackwen, uma alta e imponente figura barrou-lhes a passagem. Christian parou abruptamente ao pé da escadaria, ainda a brandir a sua espada, e dirigiu-lhe um olhar indecifrável.
- Aonde pensas que vais, meu filho? - ciciou a voz de Ashran. Christian não disse nada. Também não se mexeu. Ficou ali, em guarda, à espera.
- Entrega-me a rapariga, Kirtash e não te mato - disse o Necromante. - Ainda posso ser generoso.
Christian retrocedeu dois passos.
- Não, pai - disse com suavidade. - Victoria não pode morrer.
- Atreves-te a desafiar-me abertamente?
Christian ergueu os olhos com orgulho e disse simplesmente:
- Sim.
- Então, rapaz, morrerás com ela.
Ashran ergueu as mãos, e Christian e o seu companheiro perceberam perfeitamente o enorme poder que emanava delas. O shek voltou-se por um momento e sussurrou:
- Tenta sair da torre. vou abrir a Porta no exterior. Leva Victoria para longe daqui, para a Terra.
- Mas... e tu?
- Eu fico a cobrir a retirada.
- Não vais sobreviver!
- Não queres que Ashran te siga... até Limbhad, pois não?
O desconhecido estremeceu debaixo da capa. Mas Christian não lhe estava a prestar atenção, porque Ashran lançara o seu ataque e o rapaz ergueu a espada para o deter. Algo atingiu os três com uma força devastadora, mas concentrou-se sobretudo no fio de Haiass. Quando tudo acabou, os três fugitivos estavam incólumes ainda que Christian tremesse, esgotado, e a sua espada deitasse fumo, gravemente danificada. com um esforço soberano, o shek moveu Haiass com violência... e virou todo aquele poder na direcção da entrada da torre, que estava fechada a sete chaves. A porta desfez-se em mil pedaços, deixando desimpedido o caminho para a liberdade.
- Vai! - conseguiu dizer Christian, respirando entrecortadamente. O encapuzado voltou-se e viu, para lá da entrada da torre, uma brecha brilhante... que os conduziria à salvação. Não obstante, hesitou.
- Vai! - insistiu Christian. - Põe-na a salvo!
O outro assentiu por fim e desatou a correr em direcção ao exterior, levando Victoria consigo. Ashran viu-os e voltou-se na direcção deles, com um brilho de cólera a cintilar nos seus olhos de aço. Levantou a mão e, com aquele simples gesto, ergueu-se um altíssimo muro de fogo entre os fugitivos e a saída. O desconhecido estacou de repente, a escassos centímetros das chamas. Mas Christian, com um grito selvagem, lançou Haiass contra o muro de fogo. A espada deu duas voltas no ar até atravessar as chamas, que ficaram instantaneamente congeladas. Ashran voltou-se para Christian. O seu olhar teria petrificado o herói mais poderoso, mas o jovem enfrentou-o sem pestanejar. Sabia que ia morrer, já o assumira, e estava preparado. Por isso não tinha medo. A única coisa que o preocupava era ganhar tempo para que os seus companheiros escapassem.
Pôs-se de pé entre Ashran e a saída da torre, enquanto o desconhecido pronunciava palavras em idioma arcano, e o gelo se desmoronava diante dele. Ashran ergueu novamente as mãos. Agora, Christian estava desarmado e era vulnerável.
Mas ouviu-se outra vez a voz do encapuzado:
- Kirtash!
E o rapaz ergueu a mão para apanhar a espada que o seu aliado lhe tinha lançado. O punho de Haiass voou directamente até à sua mão, e Christian brandiu a arma mesmo a tempo de travar o novo ataque do pai.
A magia de Ashran concentrou-se no fio de Haiass. Christian cravou os pés no chão, procurando aguentar, mas o seu empurrão era demasiado poderoso, e soube que não conseguiria.
No entanto, sentiu uma ondulação no ar e percebeu que a brecha se fechava atrás de si.
Victoria estava a salvo.
Ashran lançou um grito de frustração que fez tremer a torre até às suas fundações. Christian estremeceu. Vacilou e não conseguiu aguentar mais. Haiass caiu no chão com um som parecido ao do vidro a partir-se, e a magia de Ashran atingiu-o em cheio.
Christian foi lançado para trás e chocou contra a parede. Tentou levantar-se, mas sentia-se muito fraco, e todo o seu ser reagiu instintivamente perante o perigo.
O seu corpo estremeceu por um momento e transformou-se, quase instantaneamente, no de uma enorme serpente alada.
Gritou, e foi um grito de liberdade, mas também de ira. Enfrentou Ashran, fazendo vibrar o seu longo corpo anelado.
O Necromante não pareceu impressionado. com um brilho de cólera nos olhos, lançou uma descarga mágica contra o shek, que gritou de novo, mas desta vez de dor, enquanto o poder do Necromante sacudia todas e cada uma das células do seu corpo.
A serpente soube que não podia vencer Ashran e que, se continuasse a tentar, morreria. O instinto levou-a a bater as asas e voar em direcção à janela, deixando para trás a sua espada, esquecida no chão. Quando atravessava a janela, destroçando o vitral, um novo ataque de Ashran fê-lo lançar outro grito, que ecoou em toda a Torre de Drackwen.
Por fim, conseguiu sair para o ar livre e abriu ao máximo as suas asas sob a luz das três luas. Mas de imediato deu-se conta de que não estava a salvo, nem nada que se parecesse.
Dezenas de sheks olhavam para ele com o ódio e o desprezo pintados nos seus olhos irisados, e a sua acusação sem palavras atingiu a sua mente como uma descarga eléctrica.
"Traidor..."
"Vais morrer..."
Victoria abriu os olhos, atordoada. Pestanejou por um instante e demorou um pouco a voltar à realidade. A primeira coisa que sentiu foi a frescura suave do bosque, o murmúrio do ribeiro, a luz das estrelas que brilhavam sobre ela... e a energia.
Fluía através do seu corpo, não de forma violenta, mas sim agradável, renovando-a, reparando-a, enchendo-a por dentro.
Estava em Limbhad, debaixo do salgueiro... em casa. Respirou fundo e por um momento pensou que tudo o que acontecera não tinha sido mais do que um pesadelo.
- Boa noite, Bela Adormecida - disse então uma voz que ela conhecia muito bem.
Victoria voltou-se. E viu Jack, sentado junto dela, sobre aquela raiz que lhe parecia tão cómoda. Sorria com ternura, e pareceu a Victoria que não o via há séculos.
Lembrou-se então de tudo: o sequestro, o seu horrível encontro com o Necromante na Torre de Drackwen, o que lhe tinham feito, a fuga desesperada...
Não recordava como tinham saído da torre, mas, pelos vistos, tinham conseguido. Os olhos de Victoria encheram-se de lágrimas e lançou-se nos braços de Jack.
- Jack! Jack, estou em casa, estás aqui, eu...
- Victoria... Victoria, estás bem...
- Senti tanto a tua falta...
- Pensei que não voltaria a ver-te e, por um momento, eu...
- Não quero voltar a separar-me de ti nunca mais...
- Nunca mais, Victoria...
Os dois falavam ao mesmo tempo, dizendo frases desconexas, incoerentes, sussurradas ao ouvido um do outro enquanto se abraçavam, se beijavam e se acariciavam com ternura. Finalmente, acabaram fundidos num abraço. Nada nem ninguém teria podido separá-los naquele momento.
- Jack, Jack, Jack... - sussurrou Victoria, enquanto enterrava os dedos no seu cabelo louro; o seu nome parecia-lhe a palavra mais mágica do mundo, e não se cansava de o pronunciar, uma e outra vez.
- Não consigo acreditar que tenhas voltado - murmurou ele, beijando-a na testa. - Sentia-me tão impotente... tinhas ido, e não tinha maneira de chegar até ti...
- Não sei como aconteceu - reconheceu ela. - Nem sequer sei como vim para aqui. Christian trouxe-me, certo?
- Christian? - repetiu ele, com uma estranha expressão no rosto. Não, Victoria. Christian não regressou contigo.
- Então, quem...? - começou ela, intrigada, mas calou-se ao ver uma sombra junto ao ribeiro, que se tinha aproximado em silêncio e que a observava com emoção contida.
- Olá, Vic - disse ele, e Victoria reconheceu por fim a sua voz e levou uma mão aos lábios, tão pálida como se acabasse de ver um fantasma.
Não podia ser verdade, tinha de ser um sonho, no entanto...
A sombra avançou um pouco mais e a clara luz das estrelas de Limbhad mostrou-lhe o rosto de um jovem de uns vinte anos, moreno, de expressão amável e grandes olhos castanhos e sonhadores.
- Shail - sussurrou ela, ainda sem acreditar.
O jovem sorriu e avançou para eles, contornando as raízes do enorme salgueiro. Victoria levantou-se, com certa dificuldade, apoiando-se em Jack. Shail abriu os braços, e Victoria, após uma breve hesitação, refugiou-se neles.
O feiticeiro estreitou-a com força. Victoria suspirou, com os olhos cheios de lágrimas, sem conseguir acreditar no que estava a acontecer. Não era um fantasma. Era real.
- Shail, voltaste, estás... - a voz quebrou-se-lhe e soluçou de pura alegria; demorou um pouco até poder falar de novo. - Mas... não entendo, Shail, como...? Pensávamos que tu... que Elrion...
- Me tinha matado? E tê-lo-ia feito, Vic, se a sua magia me tivesse alcançado. Mas não o fez. Outro feitiço chegou antes.
- O quê?
Shail aproximou-se dela para a olhar nos olhos.
- Kirtash foi mais rápido. Salvou-me a vida.
Victoria pestanejou, perplexa. Ainda lhe custava assimilar tudo o que estava a acontecer.
- Mas... mas não entendo... Então onde estiveste durante todo este tempo?
Shail riu e revolveu-lhe os cabelos com carinho.
- Em Idhún, Vic. Kirtash enviou-me de volta a Idhún para me salvar a vida. Como podes imaginar, dado que Ashran ainda controla a Porta interdimensional, não pude regressar a Limbhad até agora.
- Mas... mas... se te salvou a vida... porque não me disse nada? Ele...
- Suspeito que não tinha a certeza de o ter conseguido - replicou Shail, pondo-se sério. - Passei dois anos em Idhún, procurando uma maneira de regressar. Consegui chegar até à Torre de Kazlunn e falar com os feiticeiros que ainda resistem a Ashran e aos seus. Contei-lhes tudo o que se tinha passado e... bom, descobri uma série de coisas. Embora já soubesse algumas delas... e, lamentavelmente, soube-as demasiado tarde.
Dirigiu-lhes um olhar estranho. Victoria ia perguntar-lhe por essas coisas que tinha descoberto, mas o jovem feiticeiro continuava a falar:
- Na outra noite, percebemos que Ashran tentava reavivar o poder da Torre de Drackwen. Só podia fazê-lo de uma forma: através de ti. Soube que te tinha capturado e não desisti até conseguir que os feiticeiros se decidissem a atacar Alis Lithban. Era um ataque desesperado, mas tínhamos de tentar.
- Tu estavas... estavas no ataque à torre?
- Sim. E quase tinha perdido a esperança, quando vi Kirtash nas ameias, e pensei... que talvez ele estivesse disposto a ajudar-te, uma vez mais. Por sorte, não me enganei. Ele permitiu-me entrar na torre e depois foi resgatar-te.
- Então, eras tu! O tipo misterioso que nos ajudou a sair dali.
O sorriso de Shail tornou-se mais rasgado. Afastou-se um pouco de Victoria para a observar sob a luz da suave noite de Limbhad.
- Cresceste muito, Vic. Estás uma mulher.
Ela sorriu, mas corou um pouco e desviou o olhar.
- Daqui a pouco faço quinze anos - murmurou. - Não sei se dentro de um ou dois dias, porque perdi a noção do tempo. Só sei que este ano, tal como no ano passado, o único presente que queria era que voltasses... e pensava que era um desejo impossível.
Shail voltou a abraçá-la com força. Depois afastou-se dela e sorriu ao ver que a rapariga regressava imediatamente para junto de Jack. Quase conseguiu ver o forte laço invisível que os unia quando Victoria se apoiou em Jack, que a tinha abraçado pela cintura. O feiticeiro contemplou-os com carinho.
- Como é que não me dei conta antes - murmurou. - Se vos vi uma vez assim, quando não eram mais do que criaturas recém-nascidas, há quinze anos...
- O quê? - Victoria olhou para ele, confusa. - Shail, do que estás a falar?
- Sentem-se - disse Shail, muito sério. - Tenho de vos contar uma coisa, está bem?
Eles obedeceram. Victoria percebeu que Jack desviava o olhar.
- Jack? Tu sabes do que se trata?
O rapaz assentiu, mas não olhou para ela. Shail observou-o, pensativo.
- Não, Jack, não sabes tudo. Ainda não. Jack voltou-se para ele e franziu o sobrolho.
- O que queres dizer?
Shail mordeu o lábio inferior, certamente perguntando-se por onde começar a falar.
- Há quinze anos - disse por fim -, enviámos para outro mundo um dragão e um unicórnio, para os salvar da ira de Ashran e fazer cumprir uma profecia. Lembro-me
deles estendidos sobre uma manta, na Torre de Kazlunn, a tremer de medo, muito perto um do outro. Recordo que o dragão se voltou para olhar para o unicórnio, a pequena Lunnaris. Olhou-a com esses olhos verde-esmeralda tão estranhos que tinha. E então abriu uma asa para a cobrir, com carinho, com gentileza, como se quisesse dizer-lhe que ele estava ao seu lado, que a protegeria de todo o mal. Lunnaris levantou a cabeça e observou-o.
" Os feiticeiros estavam a discutir sobre os aspectos técnicos do feitiço e não se aperceberam. Mas eu vi-os e soube que era um momento mágico, que as vidas e as almas daquelas duas criaturas, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes, tinham ficado enlaçadas para sempre.
" Fizeram a viagem interdimensional juntos, partilharam um mesmo destino... sabiam disso. Estavam condenados a voltar a encontrar-se.
" Alsan e eu cruzámos a Porta imediatamente depois... mas o Necromante apercebeu-se disso e fechou-a... precisamente nesse momento. E apanhou-nos a nós a meio da viagem entre dois mundos. E ali ficámos, suspensos no meio de nenhures, até que a Porta se abriu de novo... quando Kirtash a cruzou, dez anos depois. Para nós, presos entre duas dimensões, o tempo não tinha passado, por isso não nos demos conta de que não chegávamos à Terra logo depois do dragão e do unicórnio que havíamos enviado, mas sim muitos anos mais tarde. Mas não soube disto até que me pus em contacto com os feiticeiros de Kazlunn, há dois anos.
- Eu sei - assentiu Jack. - Allegra contou-nos.
- Allegra... - Shail sorriu - Aile Alhenai, uma das feiticeiras mais poderosas da Torre de Kazlunn. Chegou à Terra em busca de Lunnaris, e devo dizer que a encontrou antes de mim. Tive-a ao meu lado durante todo o tempo e não me dei conta de quem era até que uma noite, na Alemanha, vi Kirtash enfeitiçado pelo seu olhar... pelo olhar de um unicórnio, do último unicórnio. E soube que era ela e que não podia deixá-la morrer.
- Não... - murmurou Victoria, compreendendo. - Não pode ser verdade.
Shail agarrou-a pelos ombros e olhou-a nos olhos.
- Isto foi o que me explicaram na Torre de Kazlunn, Vic. Não foi o corpo de Lunnaris que chegou à Terra, mas sim o seu espírito... que encontrou refúgio num corpo humano. Numa menina recém-nascida, a quem mais tarde chamariam Victoria.
A verdade atingiu Victoria como um raio. Cravou em Shail os seus enormes olhos negros, cheios de medo e incerteza.
- O quê... Não é verdade. Não pode ser verdade - repetiu. Jack passou-lhe um braço pelos ombros.
- É, Victoria. Allegra contou-nos, disse-nos que é por isso que te tem protegido este tempo todo e Kir... e Christian também o sabia.
Não entendes? Tinha de te matar para que a profecia não se cumprisse... mas sabia que eras o último unicórnio e que a tua raça morreria contigo. Por isso...
- Por isso, Jack - interrompeu Shail, olhando-o fixamente -, entre outras coisas, queria matar-te a ti. Se o conseguisse, evitaria também o cumprimento da profecia... sem necessidade de acabar com a vida de Victoria. Os sheks nunca tiveram nada contra os unicórnios, mas a sua relação com os dragões já é outra história.
Jack ficou gelado. Quando entendeu o que Shail estava a insinuar, o mundo à sua volta parou e o seu coração pareceu deixar de bater por um breve instante. Quis perguntar algo, mas não foi capaz.
- A profecia fala de um dragão e de um unicórnio - continuou o feiticeiro a explicar, lentamente. - Se um dos dois morresse, a profecia não se cumpriria. Duvido muito que pudesses esconder de Kirtash a tua verdadeira identidade durante muito tempo, Jack. Os sheks e os dragões odeiam-se há milénios. O seu instinto levava-o a lutar contra ti... ainda que tu também fosses o último da tua espécie.
- O QUE! ? - exclamou Jack, atónito. Shail esboçou um sorriso embaraçado.
- Disse-te que não sabias tudo, Jack. Se Lunnaris reencarnou num corpo humano, o que te leva a pensar que o dragão que a acompanhava não fez o mesmo?
- Não - disse Jack, a tremer como varas verdes. - Não, estás enganado.
Há muito tempo que ansiava descobrir o segredo da sua identidade, mas agora apercebia-se de que preferia não o saber. No entanto, Shail continuava a falar, e Jack não teve outro remédio a não ser continuar a ouvir.
- Pensa nisso. Podes brandir Domivat, que foi forjada com fogo de dragão. Tens poder sobre o fogo. Tens um calor corporal superior ao normal e nunca ficas doente. Sonhas em voar. Detestas serpentes e, por acréscimo, Kirtash. - Fez uma pausa e continuou: - Não é de estranhar que tantos milénios de confronto com os sheks tenham deixado essa marca indelével no teu instinto, amigo.
Jack não suportou mais. Cada palavra que Shail pronunciava atingia-o profundamente, revelando a verdade que habitava no seu coração. Mas a luz da verdade era demasiado brilhante e magoava.
- Não é verdade! - gritou, levantando-se repentinamente. - Estás a ouvir? Estás a mentir! Eu sou humano, não sou...!
- Um dragão - ajudou Shail.
- Cala-te!! - rugiu Jack. - Não tens o direito de voltar dos mortos para vir dizer-me...!
- Yandrak - chamou então Victoria, e Jack voltou-se, como se tivesse sido movido por uma mola.
Ela não podia saber o nome do último dragão. Era um segredo entre Jack e Alexander. Mas Victoria fitava-o com um profundo brilho de reconhecimento no olhar, e Jack viu-se reflectido nos seus olhos.
E, por algum motivo, a verdade não era tão dolorosa se a visse nos olhos de Victoria.
Jack deixou-se cair contra o tronco do salgueiro, desconcertado, como se de repente tivesse ficado sem forças. Victoria procurou o seu calor, a tremer, e ele rodeou-a com um braço, sem pensar... e de imediato recordou o pequeno unicórnio que tinha protegido do medo e do frio, cobrindo-o com uma das suas asas, muito tempo antes.
Victoria pareceu ter tido a mesma recordação. Os dois olharam um para o outro, surpreendidos, e encontraram-se mutuamente naquele olhar... E recordaram a primeira vez que os seus olhos se tinham cruzado, olhos de dragão, olhos de unicórnio, num dia trágico, na Torre de Kazlunn, enquanto os seis astros brilhavam no céu e eles se preparavam para uma viagem ao desconhecido, uma viagem que os salvaria da morte, mas que os lançaria nos braços de um destino terrível, em prol do cumprimento de uma profecia.
Abraçaram-se com força. Shail sabia que era um momento importante para eles e afastou-se um pouco, para lhes dar privacidade.
- Eu sabia que eras especial - sussurrou Victoria ao ouvido do seu amigo. - Eu sabia que te conhecia desde sempre.
- Não sei se quero ser um dragão, Victoria - respondeu ele em voz baixa.
- Por mim, não quero que sejas outra coisa. Porque, se é verdade que sou Lunnaris... e tu és Yandrak... isso une-me a ti muito mais do que poderia sonhar. Apesar de sermos tão diferentes, estávamos destinados um ao outro. Desde o princípio, entendes?
Jack assentiu, compreendendo o que queria dizer. Abraçou-a com força. Ela não parecia muito surpreendida, e o rapaz supôs que, de alguma maneira, Christian a tinha preparado para aquele momento, que Victoria já intuía qual era a sua verdadeira identidade. Pelo contrário, ele...
Voltou-se para Shail, que se mantinha um pouco afastado.
- Lamento ter gritado contigo - murmurou, ainda a tremer. - Não queria deitar-te as culpas. É que... é tudo muito estranho. Vocês... já sabiam?
- Estive a falar com Allegra e Ais... Alexander enquanto vocês estavam aqui - explicou Shail. - Allegra descobriu quem eras há apenas duas noites, Jack. Acaba de o dizer a Alexander. Não te disseram porque estavas demasiado preocupado com o desaparecimento de Victoria e não era o momento mais indicado. E, bom, eu... eu soube quando os feiticeiros de Kazlunn me explicaram algumas coisas, e até mais. Infelizmente, não estava em situação de voltar para to dizer.
Nem Jack nem Victoria foram capazes de falar.
- Não quero lançar mais achas na fogueira - prosseguiu Shail -, mas devem pensar no que isso significa...
- Já sei o que significa - cortou Jack, impaciente. - Significa que não somos humanos.
- Não completamente humanos, Jack. Mas há em vocês algo de humano. São ambas as coisas, entendem? E graças à vossa parte... sobre-humana, por assim dizer, poderão fazer parte da profecia.
- A profecia? - repetiu Victoria, de imediato. - Essa profecia que nos obriga a enfrentar Ashran para o derrotar ou morrer a enfrentá-lo? - Levantou o olhar e cravou-o em Shail. - Já estive em Idhún, já vi Ashran, e não quero voltar a passar por essa experiência.
- Isso é muito egoísta da tua parte - ralhou Shail, muito sério -, sobretudo tendo em conta que Kirtash se sacrificou para que...
- O quê? - cortou Victoria, em voz alta. - Christian fez o quê? Shail fitou-a, sem entender a sua reacção. Victoria agarrou-se a ele, com os olhos arregalados.
- O que aconteceu a Christian? - inquiriu, com uma nota de pânico na sua voz. - Não cruzou a Porta connosco?
Shail adivinhou então o que estava a acontecer.
- Ah.... Vic - compreendeu. - Ele e tu... mas, então... - acrescentou, intrigado, olhando para Jack e Victoria - vocês os dois...
Jack corou ligeiramente e desviou o olhar, aturdido. Mas Victoria não estava em condições de falar dos seus relacionamentos com ambos os rapazes.
- O que aconteceu a Christian, Shail? Onde está? Shail escolheu a palavras com cuidado:
- Ele... abriu a Porta... e ficou para trás... para cobrir a nossa retirada.
- O QUE!? Deixaste-o para trás? Shaaaail! - gemeu, desesperada. Ashran vai matá-lo!
Examinou com ansiedade o Olho da Serpente, mas Shail pegou-lhe pelo braço e obrigou-a a olhá-lo de frente.
- Não podemos fazer nada, Victoria. Estava escrito na profecia.
- A que te referes?
- É outra das coisas que descobri neste tempo. É a parte que os Oráculos ocultaram e que quase ninguém conhece, nem sequer Ashran. A profecia diz que só um dragão e um unicórnio unidos derrotarão o Necromante... e que um shek lhes abrirá a Porta. Isso já aconteceu, entendes? Kirtash já cumpriu o seu papel na profecia.
Fez-se um silêncio pesado, que Jack quebrou de imediato:
- Não, Shail. Se isso for verdade, essa parte ainda não se cumpriu. Não entendes? Abriu a Porta para Victoria, mas nós ainda continuamos aqui, presos. Se ele é o shek da profecia, ainda precisamos dele para regressar a Idhún.
Shail ia responder quando se ouviu um estrondo que pareceu partir o céu em dois. Os três puseram-se de pé de rompante e ergueram os olhos. E viram uma espécie de relâmpago subtil e fluido como o mercúrio que fendia o céu nocturno de Limbhad, errático e claramente desorientado.
- É um shek! - exclamou Jack, já de pé e pronto para correr em busca de Domivat. - Conseguiram entrar em Limbhad!
- Espera, Jack! - deteve-o Victoria. - É Christian!
- O quê? - Jack parou e olhou com mais atenção para o corpo ondulante que cruzava o céu. - Como sabes?
- Está ferido! - gritou Victoria, sem fazer caso dele. Desatou a correr, e os dois rapazes seguiram-na.
Viram o shek cruzar o firmamento no seu voo instável, ondular o seu longo corpo de mercúrio e cair a pique sobre o bosque. Atravessaram a toda a velocidade a clareira que rodeava a casa e ali encontraram-se com Allegra e Alexander, que também tinham ouvido o estrondo. Alexander tinha pegado nas duas espadas, a sua e a de Jack, bem protegida na sua bainha, e entregou esta ao rapaz.
- O que se passa? O que foi isto? - perguntou, carrancudo. Mas ninguém tinha tempo para responder.
Por fim, chegaram ao lugar onde o shek tinha aterrado. Mas não foi o corpo flexível e esbelto de uma serpente alada que viram ao longe, mas sim a figura de um rapaz vestido de preto, estendido de bruços sobre a erva, junto ao bosque. Victoria começou a correr para junto dele, mas Jack deteve-a, pegando-lhe no braço.
- Espera.
- Mas, Jack! - protestou ela; procurou libertar-se, mas Jack não a soltou. - Está ferido! Não entendes? Jack abanou a cabeça.
- Da última vez que o vi, Victoria, acabava de te enganar para te entregar a Ashran. E não sei o que te fizeram nessa torre, mas, a julgar pelas coisas que murmuravas em sonhos, não deve ter sido nada agradável. Estou enganado?
Victoria recordou o horror que tinha passado na Torre de Drackwen, desviou o olhar e não disse nada. Jack cerrou os dentes.
- Se te fez mal, juro que o mato.
- Não, Jack. Mudou por minha culpa, entendes? Porque o deixei sozinho. Mas, ainda assim... salvou-me a vida. Deixa que me aproxime, por favor. Posso curá-lo se estiver ferido.
- Não, Victoria. Irei eu primeiro. Falarei com ele.
- Jaaack...
- Confia em mim, está bem? Olha para mim, Victoria. Confias em mim
Ela olhou-o nos olhos e sentiu-se reconfortada pela sinceridade, seriedade e doçura que havia neles.
- Confio em ti, Jack.
- bom. Então, espera aqui, está bem?
Victoria assentiu. Jack voltou-se e viu que Shail mantinha Allegra e Alexander a uma distância prudente, como se quisesse deixar que Victoria, Christian e ele mesmo resolvessem sozinhos os seus próprios assuntos. Respirou fundo e assentiu. Era assim que tinha de ser.
Aproximou-se do shek e desembainhou Domivat. Percebeu que Victoria olhava para eles, preocupada. Mas tinha-lhe dado um voto de confiança e esperaria.
Jack inclinou-se junto do seu inimigo. Christian ergueu o olhar, com esforço. Jack viu que estava gravemente ferido. Perguntou se deveria sentir pena ou algum tipo de compaixão; e recordou que, apenas umas horas antes, tinha jurado que mataria aquele monstro logo que voltasse a vê-lo.
Por Victoria.
Os olhos azuis do shek brilhavam por um instante ao descobrir a chama de Domivat, mas não disse nada. Esperou que fosse Jack a falar, e este disse:
- O que vieste fazer aqui? Christian dirigiu-lhe um longo olhar.
- Não tenho a certeza - disse finalmente, com esforço. - Procurava apenas... escapar.
- Vieste fazer mal a Victoria?
- Não. Já não.
- Vieste matar-me?
Christian fitou-o de novo, como se meditasse na resposta.
- Já sabes quem és - compreendeu.
Jack duvidou por um momento; ainda não tinha assimilado completamente a ideia de que no seu interior batia o espírito de Yandrak, o último dragão. Mas lembrou-se então de que Victoria o tinha reconhecido, e assentiu.
- Mata-me, então - disse o shek. - Os nossos povos... têm-se enfrentado há séculos... incontáveis gerações. Nós acabámos... com toda a tua raça. Agora... podes vingar-te. Estou indefeso.
Jack fechou o punho com tanta força que cravou as unhas na palma da mão; aquele ser tinha feito muito mal a Victoria e, apesar disso, ela ainda gostava dele. E isso era muito difícil de assimilar, mais até do que a sua condição de dragão.
Mas, quando falou, a sua voz soou tranquila e serena:
- Se vais fazer mal a Victoria, se queres levá-la, mato-te aqui e agora. Se me queres enfrentar, então dir-lhe-ei que te cure e lutaremos em igualdade de circunstâncias, quando estiveres recuperado. Até à morte, se preferires.
Christian sorriu debilmente.
- Isso é nobre - sussurrou, com as suas últimas forças -, mas já não quero matar-te. Já não devo lealdade ao Necromante. Converti-me... num traidor e... portanto...
não tenho de obedecer às suas ordens. É verdade que... o meu instinto me pede aos gritos que acabe... contigo. Mas Victoria ama-te, precisa de ti, e eu...
- Ama-la de verdade.
Christian já não tinha forças para responder. Fechou os olhos, esgotado.
Jack ficou a olhar para ele e mordeu o lábio inferior, inseguro. Então, tomou uma decisão.
O fogo de Domivat chamejou por um momento, e Victoria gemeu, angustiada.
Mas Jack embainhou a sua espada e estendeu a mão a Christian, para o ajudar a levantar-se. Victoria ficou quieta, sem acreditar no que estava a acontecer, e soube que guardaria aquela imagem no seu coração durante o resto da sua vida: a imagem de Jack a amparar Christian, que avançava a coxear, com o braço em volta dos ombros do seu inimigo.
Victoria não pôde mais. Correu na direcção deles e abraçou-os, e os três pareceram, por um momento, um só ser.
Alexander voltou-se para Shail, como que a exigir uma explicação.
- Deixa-os, Alexander - murmurou o jovem feiticeiro, abanando a cabeça. - Kirtash já é um dos nossos.
- Como podes ter tanta certeza?
Foi Allegra quem respondeu, com um sorriso:
- Porque a Alma lhe franqueou a entrada. Se não fosse assim, como achas que teria podido entrar em Limbhad?
Christian abriu os olhos lentamente. Uma sensação de conforto percorria o seu corpo, regenerando-o, vivificando-o, extirpando do seu organismo o mortífero veneno que lhe tinham inoculado as presas dos outros sheks, antes seus aliados, a sua gente. Percebeu algo muito suave a roçar-lhe o rosto e soube que era o cabelo de Victoria, que estava muito perto dele. Fez um esforço para se libertar de tudo.
Encontrava-se estendido numa cama, num quarto circular. Victoria estava junto a ele, muito concentrada na sua tarefa, e não se deu conta de que tinha acordado. Tinha-lhe tirado a camisola preta e as suas mãos percorriam a pele do shek, sarando as suas feridas. Christian semicerrou os olhos e pôde ver a luz de Victoria, aquela luz que brilhava no seu olhar com mais intensidade do que nunca; também conseguiu ver algo que aos humanos em geral passaria despercebido: uma faísca que despertava de vez em quando na testa da jovem, como uma pequena estrela, no lugar onde Lunnaris tinha erguido, orgulhosa, o seu longo corno em espiral.
Victoria examinava agora uma feia cicatriz que marcava o braço esquerdo de Christian.
- Essa foste tu que ma fizeste - disse ele com suavidade, sobressaltando-a. - Em Seattle. Quando lutámos junto ao estádio, lembras-te?
Ela olhou a cicatriz com mais atenção.
- Eu fiz-te isso? com o báculo? Christian assentiu.
- Aconteceram tantas coisas desde então... - disse ela. - Parece mentira, não é?
Ele sorriu.
- Tu também sabes quem és - disse. Victoria assentiu.
- Tu percebeste-o antes de qualquer um - murmurou. - bom, tu e a minha avó.
- A tua avó - repetiu Christian. - Se tivesse sabido desde o princípio que era uma feiticeira idhunita exilada, e das poderosas, tê-la-ia matado sem hesitar. Mas escondeu-se muito bem de mim.
- Há quanto tempo sabes?
- Suspeitava há algum tempo, mas soube-o com certeza na noite em que te ofereci Shiskatchegg. Ela surpreendeu-me dentro de casa. Fitámo-nos, soube quem era...
- Não lhe fizeste mal na altura.
- Não. Porque te protegia, Victoria, e qualquer um que goste de ti e que te proteja merece o meu respeito.
- Como Shail. Por isso, salvaste-lhe a vida. Porque demonstrou que estava disposto a dar tudo por mim... por Lunnaris - corrigiu-se.
Christian não viu necessidade de responder.
- Ou como Jack - acrescentou ela em voz baixa.
- Procurei evitar a profecia - disse Christian baixinho. - Não só para salvaguardar o império dos sheks, mas também... porque não queria que enfrentasses o meu pai. Poderias morrer na batalha, e eu não quero ter de passar por isso.
Os olhos azuis de Christian cravaram-se nos seus. Por um momento, Victoria esqueceu a sua traição, esqueceu a dor que tinha suportado por sua causa e afastou-lhe o cabelo da testa com infinito carinho.
- Lamento ter tirado o anel, Christian. Disse-to na torre, mas repito-o agora. Lamento que tivesses sofrido tanto por minha causa.
Ele encolheu os ombros.
- Também tu sofreste nas minhas mãos - disse. - Estamos em paz. Mas não pediu perdão, e Victoria sabia porquê. A sua ascendência
shek fazia parte dele e não podia evitar ser como era. No entanto... ao sabê-la à beira da morte na torre, as suas emoções humanas tinham voltado a sair à luz do dia.
- Isto - disse então Victoria, indicando as feridas que marcavam o corpo de Christian - foi Ashran que fez?
- Sim, em parte. Mas também fui atacado pelos sheks. - Fez uma pausa e concluiu: - Já não sou um deles.
- És, então, um de nós? - inquiriu a voz de Jack, da entrada.
Os dois voltaram-se. O rapaz estava de pé, com os braços cruzados diante do peito e as costas apoiadas no umbral da porta. A sua expressão era séria e serena, mas os seus olhos exigiam uma resposta.
- Sou um de vocês? - perguntou-lhe Christian, por sua vez. Jack abanou a cabeça e avançou na direcção deles.
- Foi Ashran quem te obrigou a sequestrar Victoria?
- De certo modo. Ele despertou a minha parte shek, mas essa parte já lá estava, é a minha natureza. De modo que... pode dizer-se que fomos os dois.
- Poderia voltar a acontecer? Poderias voltar-te contra nós outra vez?
Christian susteve o seu olhar.
- Poderia - disse lentamente -, mas, mesmo que a minha parte shek me dominasse de novo, já não teria nada contra Victoria. Sou um traidor ao meu povo, já não me aceitam entre eles e, portanto, os meus interesses já não são os seus.
- Mas o teu instinto pede-te que lutes contra mim. Porque me odeias tanto como eu te odeio a ti. Por isso, num dado momento, poderias tentar matar-me outra vez.
- Sim.
Victoria olhava para um e para o outro, incomodada. Mas Jack sorriu e disse, encolhendo os ombros.
- Bem, assumirei o risco. Mas - advertiu-o -, se voltares a fazer mal a Victoria, mato-te. Estás a ouvir?
Christian sustentou o seu olhar. Pareceu que saltavam faíscas entre os dois, mas, finalmente, o shek sorriu também. Nenhum dos dois podia passar ao lado dos séculos de ódio e confronto entre as suas respectivas raças, no entanto, havia algo que eles tinham em comum e que servia de ponte entre ambos: o seu amor por Victoria, um amor que podia pô-los em confronto, mas também uni-los numa insólita aliança.
Porque, tempos antes, ela tinha pedido a Christian que perdoasse a vida a Jack, e ele fizera-o... por ela.
E porque, naquela noite, Victoria também tinha suplicado pela vida de Christian... e Jack tinha preferido reprimir o seu ódio a vê-la sofrer de novo.
Victoria olhou para os dois, intuindo o quanto aquele momento era importante para os três. Pegou na mão de Christian e apoiou a cabeça no ombro de Jack.
O contacto de Christian era electrizante, intenso, fascinante e perturbador. Por sua vez, o que Jack lhe transmitia era calor, segurança, confiança... e, acima de tudo, a paixão do fogo que ardia na sua alma. Victoria soube que precisava de ambos na sua vida, que sempre os amara e que, mesmo se não tivesse chegado a encontrar-se com eles no mundo para o qual tinham sido enviados, sentiria a falta deles, teria ansiado por eles todas as noites da sua vida, mesmo sem saber exactamente o que tinha perdido.
Fechou os olhos e sentiu Lunnaris no seu interior, a peça que faltava para finalizar aquele quebra-cabeças que decidiria os destinos de Idhún.
E, pela primeira vez em toda a sua vida, sentiu-se completa.
ABRE-SE A PORTA
Jack debruçou-se sobre a balaustrada e fechou os olhos, aspirando o aroma da suave noite de Limbhad. Recordou a vez em que tinha saltado dali para o jardim, procurando escapar; tinham passado mais de dois anos desde então e a sua vida tinha mudado radicalmente. E as mudanças estavam apenas a começar.
Há já várias semanas que tinham acolhido Christian na Casa na Fronteira. Durante esse tempo, o shek foi-se recuperando lentamente das suas feridas, e Jack e Victoria tentavam mentalizar-se de que não tardariam a viajar para Idhún para desafiar o Necromante... como estava determinado na profecia.
Jack sentia-se perdido e confuso. Victoria tinha aceitado bastante bem a sua condição de unicórnio, mas não tinha vontade de regressar a Idhún para enfrentar Ashran. Por sua vez, ele estava desejoso de entrar em acção, visitar aquele mundo de que tanto tinha ouvido falar, fazer o Necromante pagar por tudo o que o tinha feito sofrer... mas não se habituava à ideia de que a essência de Yandrak, o último dragão, habitava no seu interior, apesar de todos os indícios. Só o percebia claramente quando se cruzava com Christian no corredor. Então os dois fitavam-se, e aquele ódio ancestral voltava a palpitar nos seus corações. Mas limitavam-se a respirar fundo e a continuar em frente.
Jack sabia porque o faziam. Não só por a traição de Christian o ter colocado na facção da Resistência, mas também, e sobretudo, por Victoria.
Custava imenso a Jack suportar a presença do shek na casa. E era perfeitamente notório que, no que tocava a Christian, o sentimento era recíproco.
Alexander também não o tinha acolhido com agrado, e até Allegra tinha as suas reservas. Victoria continuava a sentir algo muito intenso pelo shek, mas dava a impressão de que algo no seu interior tinha esfriado desde a sua visita à Torre de Drackwen. Agora que Christian estava bem, parecia que a rapariga receava ficar a sós com ele na mesma sala. Confiava nele, mas, de qualquer forma, não podia evitar ter algum medo dele, ainda que de maneira inconsciente.
Em resumo, Christian estava em Limbhad, com a Resistência, mas não era um membro de pleno direito. Era difícil confiar nele, depois de tudo o que acontecera.
O jovem sabia disso perfeitamente e não parecia lamentá-lo. Jack sabia que, quando o seu estado o permitisse, partiria dali e, provavelmente, não voltariam a vê-lo.
- Estava à tua procura - disse de repente a voz de Alexander atrás dele. - Quero que nos reunamos todos na biblioteca.
Jack desviou o olhar. A sua relação com Alexander tinha esfriado desde o regresso de Shail. Jack intuía que mais cedo ou mais tarde teriam de falar disso e tinha andado a evitar um encontro a sós com ele.
- Christian também? - murmurou.
- Especialmente ele. E, a propósito, podes ir buscar Victoria ao bosque? Acabo de voltar de lá, mas não a encontrei.
- Deve ter-se transformado - murmurou Jack.
- Foi o que pensei. -Bem, vou e...
- Espera - Alexander deteve-o quando passava junto dele. - Pode-se saber o que se passa contigo ultimamente, rapaz? Estás aborrecido com alguma coisa?
Jack voltou bruscamente a cabeça. Os sentimentos confusos que albergava no seu coração ansiavam por sair à luz e finalmente não aguentou mais e disse, com a voz a tremer-lhe:
- Porque não me reconheceste?
- O quê? - Alexander ficou a olhar para ele, perplexo.
- Vieste a este mundo para procurar Yandrak... para me procurares. Encontraste-me, tinhas-me debaixo do teu nariz e não percebeste. Porquê? Porque eu era apenas uma desculpa para enfrentares Ashran e os seus? Ou porque não sou na realidade o dragão de que estavas à procura? Ou talvez porque tudo o que me contaste acerca de Yandrak eram apenas mentiras?
Alexander fitou-o, compreendendo. Os olhos de Jack estavam húmidos e tremia de raiva... e também de angústia.
- Jack - murmurou -, o que queres que te diga? Que estava cego, que fui um estúpido? É isso que queres ouvir? É que tens razão.
Jack desviou o olhar, mas não disse nada. Alexander agarrou-o pelos braços e obrigou-o a fitá-lo de novo.
- Pensa o que quiseres, rapaz. Estás no teu direito. Mas nunca te vou permitir que duvides nem por um instante de que, desde que te vi sair do ovo, soube que consagraria a minha vida a proteger-te. com profecia ou sem ela. Estás a ouvir?
Jack engoliu em seco. Quis falar, mas não foi capaz.
- Vi-te nascer, Jack... Yandrak - prosseguiu Alexander. - Só estava lá eu, e não sei em que é que isso me converte. No teu pai adoptivo? No teu padrinho? Seja o que for, senti-me responsável por ti, embora fosses de uma raça tão diferente da minha. E não por seres parte de uma profecia, não por seres o último da tua espécie, mas sobretudo... porque estavas sozinho e não tinhas mais ninguém. Atravessei a Porta para te encontrar, nunca duvides. Pode ser que eu seja um pouco obtuso para algumas coisas, e por isso não me passou pela cabeça pensar que o dragão de que andava à procura fosse um miúdo de treze anos aterrorizado. Mas, no fundo do meu coração, sabia-o. É que, de repente, procurar Yandrak já não teve tanta importância como acolher-te a ti e ensinaste tudo o que sabia, para que pudesses valer-te a ti mesmo e Kirtash não voltasse a ameaçar-te.
Jack voltou-lhe as costas, incapaz de o olhar nos olhos. Sentiu que Alexander colocava uma mão sobre o seu ombro.
- Tens medo de ser o que és?
- Sim - reconheceu Jack em voz baixa. - Durante toda a minha vida procurei uma explicação para o que me acontecia e, agora que a tenho... parece-me demasiado estranha. Ainda nem sequer pude transformar-me em dragão. Enquanto que Victoria...
- Victoria teve ajuda - recordou Alexander.
- Mas não estou a pensar em pedir a Christian que me ajude a ser dragão - cortou Jack, horrorizado.
- Não - concordou Alexander. - Seria muito esquisito. Houve um breve silêncio.
- Mas, se te serve de consolo - acrescentou Alexander -, os dragões são criaturas magníficas. No passado, muitos adoraram-nos como deuses. Especialmente aos dragões dourados. - Fez uma pausa e continuou: - Gostaria de saber em que tipo de dragão te converteste. Aposto o que quiseres que a tua outra forma de assenta bem.
Jack sorriu.
- Mas... um corpo de dragão é tão diferente... de um corpo humano...
- Estás a pensar em Victoria, não é? Achas mesmo que ela vai gostar menos de ti se te vir sob a tua verdadeira forma?
Jack desviou o olhar, aturdido.
- Como adivinhaste? Alexander observou-o, muito sério.
- Porque uma vez eu pensei que os meus amigos me iriam desprezar por não ser completamente humano - disse. - E fugi. E... sabes de uma coisa? Enganei-me.
Jack lançou-lhe um olhar de agradecimento. Alexander sorriu.
- Rapaz, Victoria continua a sentir algo por Kirtash, apesar de já o ter visto transformado numa serpente... muito feia, por sinal. O que te faz pensar que não lhe vais agradar se te vir como um dragão? Lembra-te de que não seria a primeira vez.
-Talvez... talvez tenhas razão.
- Vais ver como tenho. E agora vai buscá-la, está bem? Estás morto por ir.
Jack assentiu, sorrindo. Deu um abraço ao seu amigo e saiu a correr.
- Não se esqueçam da reunião! - recordou Alexander.
Jack fez um sinal para lhe indicar que tinha isso em conta, mas não parou nem voltou a cabeça.
Não demorou a embrenhar-se no bosque e foi directamente ao salgueiro. Mas Victoria não estava ali. Contudo, respirava-se a sua essência. O bosque parecia brilhar com uma luz própria, tudo parecia muito mais bonito do que de costume.
Engolindo em seco, Jack percorreu a massa verde, à procura de Victoria.
Finalmente viu-a junto ao ribeiro e, como tantas outras vezes, sentiu que ficava sem respiração.
Tinha-se transformado num unicórnio, e os seus pequenos e delicados cascos fendidos pareciam flutuar por cima da erva. A sua pele emitia um suave brilho cor de pérola,
e a sua crina deslizava sobre o delicado pescoço como fios de seda. O longo corno em espiral era tão branco que parecia desafiar as trevas mais negras. E os seus olhos...
Jack nunca conseguia encontrar uma maneira de descrever os seus olhos. Procurou afastar o olhar, mas não conseguiu.
- Olá, Victo... Lunnaris - corrigiu-se.
Ela avançou na direcção dele, e Jack sentiu que o coração se lhe acelerava. Nunca permitia que ninguém a visse quando estava transformada. Nem sequer Christian.
Porém, tinha-se deixado surpreender por Jack várias vezes, de propósito. O rapaz sabia que era um presente, uma espécie de símbolo da cumplicidade que os unia a ambos. Jack perguntou-se pela primeira vez se ela desejava vê-lo transformado em dragão... ou se não queria... ou se simplesmente lhe era indiferente.
O unicórnio estava mesmo junto dele, e o rapaz, fascinado, ergueu a mão para lhe tocar. Mas Lunnaris retrocedeu agilmente. Jack sorriu. Podia vê-la como unicórnio, mas não tocar-lhe. Era uma das novas regras não escritas.
E, infelizmente, não era a única.
Lunnaris transformou-se lentamente numa rapariga de quinze anos, de caracóis negros e de expressivos olhos castanhos, que pareciam demasiado grandes para o seu rosto moreno e miúdo. Inclinou a cabeça e olhou para ele, quase da mesma forma como o unicórnio fizera.
- Olá, Victoria - disse Jack. - Estava à tua procura.
- bom, pois encontraste-me - sorriu ela. - Era por alguma coisa em especial?
- Alexander quer que nos reunamos todos na biblioteca.
Victoria franziu o sobrolho. Sabia o que isso significava. Caminharam juntos para a casa. Jack manteve-se a uma distância prudente para não lhe tocar. Era outra das regras. Depois de se transformar, Victoria demorava um pouco a voltar a acostumar-se ao seu corpo humano e não gostava que lhe tocassem.
Jack reflectiu sobre isso. O amor que Victoria sentia por eles os dois, por Jack e Christian, parecia ter-se intensificado naquele tempo, afirmando-se e tornando-se mais sereno e seguro, mas também mais forte. Notava-o nos seus olhos quando olhava para ela.
Contudo, manifestava-o cada vez menos de forma física. Já não procurava tanto o contacto deles, nem os abraços, nem as carícias. Isso deixava Jack desconcertado, e teria acreditado que ela já não o amava, se não fosse pelo que lia nos olhos e no sorriso de Victoria quando estavam juntos. O rapaz não sabia se a mudança lhe agradava.
Percorreram o trajecto em silêncio, até que Jack disse:
- Teremos de voltar a Idhún muito em breve. Ela desviou o olhar.
- Eu sei. Estive a pensar e, sabes... ainda que não queira fazê-lo, sei que no fundo não pode ser tão mau se estiver contigo.
Jack sentiu que se derretia. Este tipo de comentários, pronunciados com infinito carinho e absoluta sinceridade, indicava-lhe que ela ainda o amava com loucura. Apesar disso...
- Eu também não acho muita graça - confessou. - Mas prometo que cuidarei de ti, Victoria.
Ela olhou para ele e sorriu.
- Pelo contrário, terei de cuidar eu de vocês. Porque, se me descuidar, vão andar à luta outra vez.
Jack compreendeu que ela estava a falar de Christian; desviou o olhar e pigarreou, incomodado.
- Não creio que ele nos acompanhe, Victoria.
Sabia o que ia ver nos seus olhos: surpresa, medo, dor... Victoria ainda temia Christian, mas não suportava a ideia de se separar dele. Jack estava a começar a acostumar-se ao facto de ter de compartilhar a mulher da sua vida com o seu pior inimigo. Mas, de qualquer maneira, ainda era duro. Muito duro.
- Mas... mas... não posso deixá-lo para trás - sussurrou ela, aterrada.
- Vais obrigá-lo a regressar a Idhún? A enfrentar a sua gente, que o considera um traidor, e o seu pai... de novo? Não podes pedir-lhe isso.
Victoria inspirou fundo e fechou os olhos.
- Não, tens razão - murmurou. - Não posso pedir-lhe isso.
- Estará melhor aqui, Victoria. E se... Quando voltarmos - corrigiu-se -, estará à tua espera.
No fundo, Jack duvidava que voltassem a ver o shek no seu regresso, mas sabia que aquela ideia reconfortaria a amiga; enfrentaria a verdade quando regressasse.
Quando entraram na biblioteca, já lá estavam todos. Alexander e Shail, Allegra e Christian, que estava de pé a um canto perto da porta, nas sombras, com os braços cruzados e as costas apoiadas contra a parede, em atitude aparentemente descontraída, mas, como sempre, tenso.
- Lamento o atraso - murmurou Victoria, consciente de que a culpa era sua.
Alexander foi direito ao assunto:
- Chegou a hora de voltar - disse. - Estão preparados? Jack inspirou fundo e respondeu:
- Eu estou.
Victoria teve de pegar na sua mão para reunir coragem suficiente e assentir com a cabeça. Olhou de relance para Christian, mas este não reagiu.
- Precisamos que alguém nos abra a Porta interdimensional - disse Shail a meia-voz, e todos os olhares se voltaram para o shek.
Ele ergueu a cabeça.
- Ainda não decidi o que vou fazer.
- Entendo - assentiu Shail. - É a tua gente e...
- Não se trata disso - cortou Christian; olhou para Jack e Victoria... especialmente para Victoria. - A profecia diz que só vocês os dois têm alguma possibilidade de derrotar Ashran. Mas não assegura que o vão fazer.
- O que queres dizer? - perguntou Jack, franzindo o sobrolho.
- Graças ao poder que Victoria extraiu de Alis Lithban, a Torre de Drackwen é agora inexpugnável - explicou o shek. - Ashran conhece -vos, está de sobreaviso. Não vai ser simples chegar até ele.
E uma vez ali, o que acontece? O que acontece se ele vencer? Vão arriscar a vida de Victoria por uma possibilidade em cem? E se ela morrer na tentativa? Como irão suportar a ideia de ter acabado com o último dos unicórnios... só para expulsar os sheks de Idhún?
A pergunta apanhou-os a todos de surpresa. Olharam uns para os outros, confusos.
Jack sorriu interiormente. Christian não o tinha mencionado, e ele sabia porquê. Para o shek, a extinção dos dragões não seria nenhuma tragédia.. O rapaz não podia culpá-lo; ele sentia o mesmo a respeito dos sheks.
- Estás a falar dos sheks que provocaram a morte de todos os dragões e unicórnios - recordou Allegra, com alguma dureza.
Christian dirigiu-lhe um olhar breve e abanou a cabeça.
- Estou a falar dos sheks que passaram vários séculos num mundo de trevas - disse, de imediato - e que se agarraram à sua única possibilidade de regressar a casa como um náufrago a uma tábua.
- Não me faças rir - soltou Jack. - Nós não exterminámos a tua gente como vocês fizeram com...
Calou-se, perplexo. Ao dizer "nós" não estava a pensar na Resistência, mas sim nos dragões em geral.
Christian olhou para ele com um certo brilho de troça nos seus olhos azuis.
- Já vos disse que isso, no fundo, me é indiferente. Mas uma vez jurei que protegeria Victoria de todas as ameaças, e é o que vou fazer. Não vou abrir a Porta. É a minha última palavra.
As suas palavras caíram sobre a Resistência como uma bomba, e nenhum reagiu a tempo de evitar que o rapaz saísse da sala sem uma palavra.
- Não posso acreditar! - exclamou Alexander. - Isto é...! - vou falar com ele - disse Victoria, e desatou a correr atrás do jovem.
Jack apressou-se a segui-la, e alcançou-a no corredor.
- Espera. Tens a certeza do que estás a fazer? Queres que vá contigo?
Ela olhou para ele.
- Não, Jack. Desta vez, não. É algo entre ele e eu.
Jack sentiu as entranhas revolverem-se, mas, no fundo, compreendia, de modo que assentiu, não sem esforço. Victoria sorriu e pôs-se em bicos de pés para o beijar suavemente nos lábios. Jack ficou sem fôlego. Há dias que ela não fazia algo assim, e ele fechou os olhos, desfrutando ao máximo daquela sensação, bebendo dela, procurando transmitir-lhe tudo o que sentia através daquele contacto. Suspirou quando se afastaram, mas ela não voltou a beijá-lo. Aproximou-se dele outra vez para lhe dizer ao ouvido, em voz baixa:
- Aconteça o que acontecer, Jack, nunca te esqueças de que te amo... loucamente.
Ele assentiu e olhou-a com um carinho infinito. Victoria sorriu de novo e seguiu pelo corredor adiante. E ele sentiu que uma parte do seu ser se ia com ela.
Victoria atravessou a clareira e chegou ao pequeno bosque. Percebeu a presença de Christian, mas não o viu, e sabia que só havia uma maneira de se encontrar com ele: deixar que fosse ele a encontrá-la a ela. De modo que foi até ao seu salgueiro e sentou-se entre as raízes, como costumava fazer. E não demorou a distinguir a silhueta negra e esbelta do shek de pé, junto dela.
- Vieste sozinha - observou ele, em voz baixa.
- Alguma vez tinha de me decidir a fazê-lo, não?
Christian assentiu, mas não se mexeu. Compreendia exactamente como se sentia Victoria. Aquele encontro debaixo do salgueiro recordava-lhes as reuniões nas traseiras da mansão de Allegra, que ambos, especialmente Victoria, evocavam com carinho. Mas era inevitável pensar que, da última vez que ela fora ao seu encontro, ele a tinha atraiçoado para a entregar ao Necromante... com tudo o que tinha acontecido depois.
- Não vou abrir a Porta, Victoria. Não quero que vás a Idhún.
- Também eu não queria ir, Christian, mas estive a pensar muito. Poderia ter sido uma rapariga normal, mas não, sou um unicórnio e sofri muito por isso, muito mesmo. Se desistisse agora, tudo isto não teria valido a pena; teria sofrido... para nada, entendes? O medo, o ódio, até mesmo o amor que sinto por ti e por Jack... quero que tudo tenha um sentido. E consola-me saber que, se passei por tudo isto, é porque se espera de mim que vá salvar o mundo. Sei que não parece um grande consolo, mas é melhor do que pensar que o suportei para nada, por um simples capricho do destino.
Não tinha a certeza de se ter expressado bem, mas Christian assentiu e disse:
- Compreendo.
Victoria reparou então que se tinha sentado junto dela, na mesma raiz que Jack costumava ocupar. Mas não da mesma maneira. Enquanto Jack gostava de se estender ao comprido, com as costas apoiadas no tronco, em atitude descontraída, Christian tinha-se sentado voltado para ela, olhando-a fixamente, com a cabeça ligeiramente inclinada, de modo que os seus olhos cintilavam através da franja. Parecia alerta, como um felino. Victoria não se lembrava de alguma vez o ter visto descontraído, e isso inquietava-a e fascinava-a ao mesmo tempo.
- Tens de nos abrir a Porta, Christian - pediu ela. - Para que tudo acabe o quanto antes, entendes? E para que possamos estar juntos.
Ele negou com a cabeça.
- Sabes que nunca vamos estar juntos.
Ela voltou-se para ele e olhou-o fixamente nos olhos.
- E consegues pensar, mesmo por um milésimo de segundo, que te vou deixar ir? - sussurrou, muito séria.
Nos olhos de gelo do shek apareceu uma faísca de calor.
- Tens de o fazer - disse, no entanto. - Pensa em Jack. Sei porque já quase não nos tocas, nem a ele nem a mim. Sei que tem a ver, em parte, com a tua essência de unicórnio, que acaba de despertar, mas sobretudo... porque não queres estragar o ambiente, não é? Estás a conter-te para não provocar mais tensão do que aquela que já há.
Victoria vacilou e desviou o olhar, sentindo que nunca poderia esconder nada de Christian.
- Em relação a Jack - prosseguiu ele -, quanto tempo achas que poderá suportar a minha presença? É uma prova demasiado dura para ele. Não podes pedir-lhe que aceite a tua relação comigo, como se nada fosse. Não depois de tudo o que aconteceu.
Victoria mordeu o lábio inferior, pensativa. Então recordou as palavras de Jack acerca de Christian: "Vais obrigá-lo a regressar a Idhún? A enfrentar a sua gente, que o considera um traidor, e o seu pai... de novo? Não podes pedir-lhe isso. E pensou que não era por acaso que os dois tinham usado termos tão semelhantes. Tinha de ser um sinal. De quê? Victoria não o sabia, mas intuía que, acontecesse o que acontecesse, tinham de permanecer juntos. Os três.
- Acho que o subestimas - disse. - É mais forte do que pensas. Lembra-te de que é um dragão.
Christian semicerrou os olhos.
- Lamento - desculpou-se Victoria. - Pronunciei a palavra tabu. Fizeste a mesma cara que Jack faz quando menciono qualquer coisa que tenha a ver com serpentes.
Christian percebeu que estava a gozar com ele, com ambos, na realidade, e olhou para ela, sem saber se devia sentir-se ofendido, divertido ou surpreendido.
- Não brinques com isso - advertiu-a, muito sério. Victoria não insistiu.
- Bem - murmurou. - vou pedir-te uma vez mais, Christian. Abre-nos a Porta. Deixa-nos cumprir o nosso destino.
Ele abanou a cabeça.
- E consegues pensar, mesmo por um milésimo de segundo, que te vou deixar ir? - contra-atacou.
Sabia o que ela lhe ia dizer, e estava preparado. Ou, pelo menos, achava que estava. Porque, quando Victoria o olhou nos olhos, soube que tinha ficado preso na sua luz para sempre.
- Então, vem connosco para Idhún. Sei que não tenho o direito de te pedir isto, mas... não suporto a ideia de te perder. E sei que, se algum dia voltarmos a casa, apesar do que Jack diz, tu já não estarás aqui para me receber. Por favor, Christian. Não me deixes agora. Não estou preparada.
Christian hesitou.
- Estás em vantagem - murmurou. - Sabes que não posso negar-te nada quando me olhas dessa forma.
Victoria sorriu. Mas Christian ergueu a cabeça e olhou para ela, decidido.
- Abrirei a Porta se é o que queres, Victoria. vou deixar-te ir. Mas não irei contigo.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas Christian não tinha acabado de falar.
- Não faço parte da Resistência. Não faz sentido que vá convosco. Ia apenas estragar as coisas. De qualquer maneira - acrescentou -, sabes que me tens sempre contigo.
Enquanto usares esse anel... esse anel que te protegeu de mim na Torre de Drackwen.
Victoria voltou-se para ele, surpreendida.
- O anel...? O que queres dizer?
Mas Christian não deu mais explicações. Levantou-se, e Victoria imitou-o.
- Vamos voltar - disse ele. - Tens uma viagem a preparar.
Ela assentiu. Hesitou por um momento e, finalmente, aproximou-se de Christian, tomou-lhe o rosto nas suas mãos e beijou-o com doçura. Quase conseguiu surpreendê-lo, e isso era algo a que o shek não estava acostumado. Mas ambos desfrutaram do beijo, intenso e electrizante, como todos os que trocavam. Victoria separou-se dele, sorrindo.
- É justo - disse ela, mas não acrescentou mais nada.
De qualquer forma, Christian compreendeu exactamente o que queria dizer. Abanou a cabeça e sorriu.
Reuniram-se na clareira que se abria entre a casa e o bosque, e levavam nos seus sacos apenas o estritamente necessário. Eram seis, seis como osv astros de Idhún, como os seis deuses da luz: Shail, Alexander, Jack, Victoria, Christian e Allegra. Mas um deles não os acompanharia através da Porta, e o coração de Victoria sangrava por ele.
Christian abriu a brecha interdimensional sem grandes problemas. Todos contemplaram a brilhante abertura que os conduziria ao mundo que tinham deixado para trás há tanto tempo.
Alexander foi o primeiro a passar, seguido de Allegra. Shail ficou um momento junto à brecha e olhou para os três jovens, indeciso.
- Já vamos - tranquilizou-o Jack. Shail assentiu e atravessou a Porta.
Jack e Victoria olharam um para o outro. Jack assentiu, e Victoria voltou-se na direcção de Christian, um pouco afastado, e com um aspecto mais sombrio do que o habitual. Estendeu-lhe a mão.
- Vem comigo - sussurrou, olhando-o nos olhos. Mas ele retrocedeu um passo.
- Não, Victoria - advertiu-a.
Os dois trocaram um olhar cheio de emoção contida. Victoria leu nos olhos de Christian a dor intensa que aquela separação lhe provocava, mas também entendeu que ele não queria juntar-se a um grupo onde não era bem recebido. "Mas eu preciso de ti", procurou dizer-lhe, embora soubesse que era inútil e que não conseguiria convencê-lo.
- Não pensava que nos ias deixar desamparados desta maneira interveio então Jack. - Sabes o que custa impedir que Victoria se meta em sarilhos? Contava contigo para a vigiar.
Tanto Christian como Victoria se voltaram para ele, desconcertados. Mas Jack inclinou a cabeça e olhou para eles, sorrindo.
- Além disso - acrescentou -, há o facto de não seres grande coisa sem a espada que perdeste, não é?
Nos olhos de Christian surgiu um brilho de interesse.
- É verdade, Haiass.
- Há que a recuperar - comentou Jack.
- Certo. Há que a recuperar.
- Não pensamos fazê-lo por ti, sabes? Já nos meteste em muitos sarilhos, de modo que esperamos que trates sozinho das tuas coisas.
Christian dirigiu-lhes um olhar indecifrável.
- vou atravessar-te com ela de um lado ao outro, sabias?
- Primeiro tens de a recuperar e, sinceramente, espero que o faças. Matar-te não terá nenhuma emoção se não fores capaz de te defender nem que seja durante cinco minutos.
Victoria olhava para um e para o outro como se estivesse a ver uma partida de ténis.
Christian avançou então um passo e pegou na mão da rapariga. Quando esta o fitou, surpreendida, o shek encolheu os ombros e disse apenas:
- Tenho de recuperar a minha espada.
Mas os seus olhos fitavam-na com carinho, e Victoria soube então que ele estava disposto a segui-la até ao fim do mundo e mais além, com espada ou sem ela. Sorriu
e, com a mão que tinha livre, agarrou na de Jack.
E os três atravessaram a Porta interdimensional em direcção ao seu destino, um mundo banhado pela luz de três sóis e três luas, um mundo que estava à espera deles... e que os esperava desde sempre.
Laura Gallego García
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