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Perto do final do século XX, o professor escocês Charles Smart foi bem-sucedido na estabilização de um túnel do tempo ligado à Londres vitoriana (construído a partir de matéria exótica com densidade de energia negativa, dããã). Em poucos meses, o FBI havia estabelecido o Programa de RelocAção de Testemunhas Anônimas, para esconder testemunhas federais no passado. Quando o professor ficou sabendo que o coronel Box, da divisão PRATA, estava planejando usar a fenda espacial para manipular governos e regimes, fugiu para o passado, horrorizado, levando seus códigos — um gesto inútil, na verdade, já que o coronel Box e toda sua unidade haviam desaparecido numa missão apenas alguns dias antes.
Smart retornou ao século XXI alguns anos depois, mas estava morto demais para contar seus segredos. Sua chegada teve repercussões quânticas, arrastando a jovem consultora do FBI, Chevron Savano, e o mais jovem ainda, Riley, um garoto da Londres vitoriana que desejava escapar da carreira de assassino programada para ele por seu patrão maligno, o mágico e matador de aluguel Albert Garrick.
Garrick foi e voltou no futuro perseguindo seu aprendiz, mas acabou lançado à deriva na fenda espacial, sem condições de remontar sua pessoa física.
E mais coisas aconteceram, também. Tremendas aventuras, riscos enormes e risadas de fazer a barriga doer — mas isso é outra história (na verdade, é a história em si, para ser sincero) e não deve atrapalhar este relatório.
Sendo assim, tudo certo com nossa dupla animada de jovens aventureiros?
Para Chevie, nem tanto, conforme vamos descobrir.
Para Riley, menos ainda, porque algo vai se revelar quase imediatamente óbvio.
A breve presença de Chevie na Londres vitoriana provocou ondulações temporais que teriam um péssimo efeito no presente. Dito de modo simples, Chevron Savano foi percebida no passado pelo já mencionado coronel Box, o qual na verdade havia se estabelecido na Londres vitoriana. Como resultado, o coronel foi instigado a mandar assassinar Riley e depois adiar seu plano de dominação mundial durante alguns dias, provocando a queda de grandes poderes mundiais e o surgimento do Império Boxita. Se Chevie não tivesse sido notada, Box iria se ater ao seu Dia de Emersão original e as catacumbas onde ele estabeleceu sua base teriam sido inundadas, estragando seus planos para sempre.
Agora Chevie está vivendo como uma cadete Boxita numa linha temporal que não é a dela. Sua mente está rejeitando a Londres moderna e permitindo o jorrar das lembranças originais das aventuras com viagens no tempo e com o FBI. Para casos como o de Chevie, o professor Smart previu duas hipóteses possíveis: ou o viajante temporal afoga as visões em drogas antipsicóticas, de modo a levar algum tipo de vida normal; ou as visões se tornam tão vívidas que sua discordância em relação aos eventos reais enlouquece a pessoa.
Quando entramos na história, as visões de Chevie Savano estão ficando extremamente vívidas, e se houvesse drogas antipsicóticas à mão elas certamente não seriam desperdiçadas com uma simples cadete.
MÁLEY E GAGÁ
Se você voltar no tempo e assassinar Rasputin, não há necessidade de voltar e assassinar Rasputin. Então o velho Grigori está morto, ou não?
— Professor Charles Smart
Academia Juvenil Boxita. Londres. Atualmente. Nova Albion. 115 CB (Calendário Boxita)
Cidade de Londres.
Antigamente existia uma certa magia em relação à cidade. Só o ouvir do nome já conjurava imagens do jovem trapaceiro Dodger, dos livros de Dickens, ou de Sherlock Holmes na Baker Street, quebrando a cabeça num problema durante o tempo necessário para fumar três cachimbos, ou qualquer uma das mil narrativas de aventura e ousadia tramadas nas magníficas avenidas e na teia sombria de vielas e becos de Londres. Durante séculos as pessoas vinham de todo o mundo para a capital da Inglaterra com o objetivo de ver o cenário de suas histórias prediletas, ou talvez para fazer fortuna, ou, quem sabe, simplesmente ficar paradas admirando as maravilhas da Trafalgar Square ou do Big Ben.
Não mais. Esses dias de magia há muito tinham acabado.
Para começo de conversa, a indústria do turismo não existia de fato no Império Boxita, e, além disso, o Big Ben tinha sido derrubado décadas atrás para abrir espaço para uma estátua gigantesca do Abençoado Coronel, cujos olhos de pedra vigiavam a cidade e todos os que estavam nela. E o Big Ben não era o único marco destruído pelos boxitas. Tijolo por tijolo, o império estava apagando relíquias e refazendo Londres à sua imagem: homogênea, imponente, cinzenta e implacável.
Quase todos os prédios de escritórios eram feitos de concreto com poucas marcas características, apenas fileiras e mais fileiras de janelas mal iluminadas, com pálpebras de persianas semicerradas. À medida que eram gastas pela chuva ácida, as construções mais antigas de Londres iam sendo demolidas e substituídas por blocos utilitários depositados no local por megacópteros. Os blocos eram pré-fabricados, com instalações elétricas e hidráulicas, e só precisavam ser conectados às linhas de suprimento para ficar totalmente operacionais. A história de Londres ia sendo apagada diariamente.
Um desses prédios corroídos pelo desgaste e que deveria ser dinamitado dentro de seis meses era a Academia Juvenil Boxita, escola oficial para militares do império, onde cadetes vindos do mundo inteiro eram doutrinados nas ideias do Abençoado Coronel.
Dentro dessa academia austera não havia qualquer tentativa de fornecer conforto ou bem-estar físico aos cadetes. Os bancos eram de pedra dura e colchões finos eram colocados em pranchas lisas. O modelo espartano era citado com frequência e os candidatos fracos não recebiam incentivo para valorizar seus pontos fortes; em vez disso, eram mandados para um dos institutos mais severos do Império Boxita.
Dentro de seu cubículo, a cadete Chevron Savano, de 17 anos, acordou antes da sirene matinal, porém manteve os olhos fechados a fim de se preparar para os pesadelos do dia.
Não, pesadelos, não, pensou Chevie. Se bem que o Abençoado Coronel sabe que tenho muitos. Terrores diurnos. Visões enquanto estou acordada.
Chevie cobriu a cabeça com o cobertor áspero do exército, de modo que as boxluzes nas paredes não pudessem invadir suas pálpebras com a claridade.
Qual é o meu problema?, pensou. Por que vejo coisas que não existem?
Tais visões estavam interferindo de modo catastrófico em seu treinamento na Academia Juvenil Boxita. As notas de Chevie haviam despencado nos últimos dias, tanto que a prancheta presa ao pé de sua cama tinha um cartão laranja enfiado na pasta de papel.
Um cartão laranja. Uma segunda chamada. O primeiro alerta e talvez o último, caso ela não conseguisse fazer uma apresentação satisfatória. As regras da academia eram sacrossantas. Bastava um escorregão grave e seu lugar seria oferecido ao próximo da fila.
E era uma fila comprida. Com milhões de almas.
Sua segunda chamada era hoje e, se o resultado fosse ruim, ela poderia ser vendida para uma fábrica de soldados Box em Dublin — ou pior: virar um bate-estaca nas minas de Newcastle.
Chevie estremeceu.
Bate-estaca? Sem dúvida seria um destino pior do que a morte.
Chevron era capaz de identificar exatamente o início das visões. Tinha sido há seis meses, na noite em que tivera uma crise de sonambulismo e seguira até o porão mofado da academia, colidindo contra uma pilha de roupas misteriosas e sem par: cordões compridos de pano encharcado, saturado, que enrolavam seu corpo como serpentes escuras. Não estava usando pijama nem chinelos, só aquele material estranho que se dissolvia numa gosma enquanto ela acordava lentamente. Então seu estômago entrou em convulsão e ela vomitou um estranho gel reluzente que se transformou em partículas de luz, as quais voaram para longe como vaga-lumes.
Luz?, ela se lembrou de ter pensado.
Estou morrendo?
Isso é a morte?
Mas sua respiração veio em espasmos entrecortados e o coração martelou um testemunho de sua conexão com a vida.
Como cheguei aqui?
Onde é aqui?
A cadete Savano se cobriu com um pano velho que estava junto de uma pilha de latas de tinta e foi cambaleando até o topo de uma escada de ferro, as pernas fracas como as de um recém-nascido.
Estou em algum tipo de porão, pensou.
Era aqui que o Casulo Temporal ficava, disse uma voz em sua cabeça. Você voltou.
Essa voz, que estava para se tornar muito familiar, não fazia sentido, portanto Chevie a ignorou.
Ela esmurrou a porta trancada, gritando por socorro, o qual acabou chegando na forma encalombada e musculosa dos vigias noturnos da academia: duas Thundercats, Clover Vallicose e Lunka Witmeyer, da polícia secreta e a serviço da academia. Então Chevie estava na academia, pelo menos.
Thundercats?, pensou Chevie. Em seguida, riu e ficou instantaneamente horrorizada.
Thundercats? Por que esse nome a fazia rir? Uma pessoa não ria perto dos Thundercats. Eles eram autorizados a usar força necessária e desnecessária até o ponto de infligir ferimentos fatais, porém sem exceder a isso.
Como é possível exceder a ferimentos fatais?, pensou Chevie.
Dois dias, disseram as Thundercats a ela naquela noite, franzindo a testa acima das viseiras antirrespingos de sangue. Procuramos você por dois dias, órfã. E você aparece numa área restrita. Como em nome do Abençoado Coronel você chegou até aqui? E por que está rindo? Acha que somos engraçadas?
Chevron só conseguia balançar a cabeça de um jeito bem idiota. Em seu pensamento, não havia nada além de sonhos persistentes, confusões e perguntas que se truncavam umas às outras antes de nascerem por completo.
Como foi que eu...
O que foi aquilo...
Riley?
Quem?
Por quê?
Foi nesse momento que as visões começaram — visões que rasgariam sua vida organizada. Diante de seus olhos incrédulos, as Thundercats racharam e se partiram, formando imagens caleidoscópicas de si mesmas. Foram substituídas por uma idosa com um coque bagunçado no alto da cabeça.
Eu sabia que você viria, dissera ela. Charles disse que você viria, e Charles Smart nunca erra.
Então a mulher idosa desapareceu e as Thundercats foram reconstruídas — e Chevie flagrou-se debatendo nos braços delas, desesperada para se livrar do pesadelo no qual havia acordado.
Quietinha, passarinho, aconselhou a irmã Lunka Witmeyer.
Chevie tremia como um criminoso na fogueira pública da Trafalgar Square.
Quem era a tal idosa em suas visões? E quem era Charles Smart?
Essas eram coisas que ela não conseguia responder nem perguntar em voz alta, por medo de ser julgada como instável e de ser mandada para uma escola dos inúteis. A mente de Chevie estava entulhada de perguntas proibidas. Elas a mantinham acordada à noite e faziam com que se sentisse dopada o dia inteiro.
É um tumor, pensava várias vezes por minuto. Meu cérebro está se corroendo.
E agora, vários meses depois, as visões tinham rachado o cálice da vida de Chevie, o qual não estava exatamente transbordando de esperança dourada, para começo de conversa. Ela era cadete numa escola que formava policiais, soldados e espiões para o exército boxita. Uma vida dura cheia de desconfiança e interrogatórios a aguardava, caso tivesse sorte. Pelo visto, agora ela não teria sorte. Assim como sua melhor amiga, DeeDee, não tivera sorte.
Chevie abriu os olhos e, pelo menos por enquanto, o mundo estava como sua teimosa mente insistia que deveria ser. Sem alucinações. Sem a dor aguda na têmpora, que ultimamente vinha precedendo as visões.
Estou no dormitório. Ótimo.
A cama acima dela estava vazia. DeeDee — sua amiga, conselheira e confederada desde o alistamento — costumava dormir ali. Elas haviam estudado a Boxnet e treinado o combate corpo a corpo juntas. Mas agora DeeDee estava morta, executada como espiã, e a própria Chevie passara meses coberta de suspeitas.
Chevie não era traidora e, ainda que tivesse perguntas e dúvidas sobre o Império Boxita, ela as guardava para si, pois as alternativas a viver sob as asas de Box eram o deserto dos Estados Explodidos ou os acampamentos dos bárbaros Jax nas montanhas.
Ninguém é feliz o tempo todo. O próprio coronel fora obrigado a se esconder nas catacumbas de Londres por décadas antes de emergir com suas máquinas divinas.
De repente, e sem o aviso de passos se aproximando, a cortina foi puxada e a visão de Chevie foi obscurecida pela forma corpulenta das Thundercats Lunka Witmeyer e Clover Vallicose. Mais uma vez Chevie lutou contra o impulso de rir.
Thundercats? Por que isso seria engraçado?
Os Thundercats eram uma divisão especial do exército boxita. Um grupo bem treinado e dono de uma temível reputação de brutalidade e meticulosidade. Eram especialistas na segurança do partido e na descoberta de traidores. Era incomum que Thundercats fossem designados para a academia, mas o diretor as requisitara alegando que era melhor arrancar as ervas daninhas a derrubar árvores — querendo dizer que era mais fácil matar os traidores ainda jovens.
— Box saúda você, cadete — disse Vallicose.
— E você também, irmã — respondeu Chevie automaticamente.
— Eu a saúdo ligeiramente menos do que Box — disse Witmeyer. — Mas, afinal de contas, sou uma simples mortal.
Witmeyer era a comediante das duas.
A afabilidade não era um traço de personalidade incentivado pelos militares, a não ser que pudesse ser usado como técnica de interrogatório ou distração em batalha. Dizia-se que, quando lotada na França, a irmã Witmeyer contava piadas bobas até mesmo quando o limpador de seu capacete removia o sangue dos Jax de sua viseira.
Chevie sentou-se na cama, ficou em posição de sentido e aguardou por mais instruções. As Thundercats tinham chegado mais de uma hora antes do combinado, mas não iriam oferecer explicações, e nem Chevie ia pedir. Hoje ela não se desviaria nem um tiquinho do protocolo. Pelo que sabia, a segunda chamada já havia começado.
— Não tem alguma coisa a nos dizer? — perguntou Vallicose.
O quê?, pensou Chevie. O que devo dizer?
Vallicose começou sua frase:
— Feliz...
— Feliz Véspera da Emersão, irmãs — disse Chevie rapidamente.
— Será que você havia se esquecido de que neste dia, em 1899, o Abençoado Coronel e seu exército estavam fazendo os últimos preparativos para emergir das catacumbas e tomar o mundo de volta?
— Não, irmã, eu não tinha me esquecido. Nós devemos tudo ao Abençoado Coronel.
Vallicose examinou o rosto de Chevie, procurando qualquer vislumbre de insubordinação, mas a cadete mantinha os olhos voltados para a frente e as costas eretas como uma régua. Estava em forma, concentrada e fazia parte de uma minoria étnica, era uma nativa americana da tribo Shawnee: o modelo perfeito para os cartazes do exército boxita que cobriam todos os pontos de ônibus e estações do metrô.
— Humpf — disse Vallicose. Talvez estivesse impressionada, talvez o contrário. Seu grunhido era difícil de interpretar.
As palavras de Lunka Witmeyer foram mais explícitas.
— Está nos vendo, queridinha? Não nos transmutamos em velhinhas?
— Estou vendo as duas com clareza, irmãs — respondeu Chevie sem se abalar. — Peço desculpas de novo por aquela noite. Foi só uma febre.
Vallicose resmungou outra vez e comentou:
— Uma febre? Febres não fazem um corpo atravessar portas de aço.
Elas não tinham como saber, ninguém tinha, que não havia sido uma febre que transportara Chevie até um porão lacrado, e sim um paradoxo temporal que fundira a Chevie que retornava da Londres vitoriana à Chevie nativa desta linha temporal.
Witmeyer rosnou por trás da gola alta de sua viseira antirrespingo de sangue, a qual ela não tinha absolutamente nenhuma necessidade de usar no serviço de supervisão dentro de uma academia de estudantes desarmados.
— Aquela noite, Savano? Aquela noite? Mas foi mais do que uma noite, não foi? Parece que toda noite você desaba num ataque histérico, não é, irmã Vallicose?
Vallicose assentiu, e o rosto inteirinho dela se inflou numa raiva suprimida.
— Ela me chamou de Federal na terça-feira passada. O que é um Federal? Para mim, parece gíria de Jax.
Os rebeldes franceses eram apelidados de Jacques, geralmente grafado Jax.
— Eu... eu não sei — gaguejou Chevie. — A febre vem e vai. Preciso de antibióticos, só isso.
De repente, Clover Vallicose estava com a cara grudada na dela.
— Antibióticos? Há soldados morrendo em nome do Abençoado Coronel agora mesmo. Vivendo em montes de lixo no estrangeiro, olhando o sangue da vida se derramar em rochas profanas, e você acha que os remédios deles deveriam ser desviados para suas veias indignas? É isso que você acha, Savano?
Chevie trincou os dentes para não desmaiar.
— Não, irmã. Claro que não. Os heróis do império sempre devem ter prioridade. Qualquer um de nós, cadetes, sentiria orgulho em dar a vida por eles.
Witmeyer gargalhou, depois usou o dedo para dar um tique num item imaginário.
— Direto do manual, mas bem lembrado sob pressão. — E assentiu para a cadete. — Agora prepare-se, cadete; o diretor está esperando.
Chevie estremeceu. Não pôde evitar.
O diretor Waldo Gunn.
Herói da Guerra de Box, condecorado com a Cruz do Império. Durante trinta anos o diretor havia suportado um trabalho sob disfarce na Provença. O diretor Gunn era um verdadeiro crente e um mestre assassino — com a aparência de um pequenino vovô gentil.
Vejam as mãos, sussurravam os outros cadentes enquanto ele passava no corredor. São mais escuras do que o restante da pele, manchadas de vermelho por sangue de Jax.
Chevie só tinha visto o diretor Gunn pessoalmente enquanto este andava pelos corredores a serviço de Box, cercado por membros do comitê e por sua guarda pessoal, uma falange de pernas marchando e braços balançando.
Nunca vi as mãos dele.
Esqueça as mãos do diretor Gunn. Vista-se, cadete, disse Chevie a si mesma. Sua vida está em jogo.
Chevie fechou o zíper do macacão azul-marinho rapidamente, calçou as botas de cano alto e pôs um boné que tinha o brasão dourado da Academia Juvenil Boxita. Passou habilmente por Vallicose e saiu do quarto.
As Thundercats marcharam com Savano pelo longo corredor da academia, as botas provocando rangidos e gemidos nas tábuas do piso que haviam se soltado das cavilhas muito tempo atrás. Os outros cadetes do dormitório estavam escondidos por trás de cortinas fechadas, e os únicos sons relevantes, além das botas e das tábuas, eram um gemido ou outro de alguém com terrores noturnos e o ruído de fundo dos discursos gravados do coronel Clayton Box, transmitidos pelo sistema de som 24 horas por dia.
O corredor tinha 30 metros de comprimento, extensão do que outrora fora quatro casas geminadas na praça Farley, em Bloomsbury. Através das janelas de caixilhos, Chevie via as bordas de aço do mausoléu piramidal do Abençoado Coronel e o brilho de laser carmim do olho que tudo via.
Igual ao Sauron, pensou a segunda Chevie, escondida dentro da mente da primeira. A Chevie Traidora, apelido que ela dera à doença mental que estava determinada a fazer com que ela fosse morta.
Sauron?
O que é um Sauron?
A porta da sala do diretor Gunn era totalmente simples, num contraste nítido com a parede onde ficava. A parede era decorada com um mural heroico mostrando a segunda etapa do Golpe de Box, quando os Estados Unidos, as Ilhas Britânicas e a Europa continental foram trazidos à força sob as asas dos anjos. O estilo era típico do império, com figuras musculosas de perfil e leques de raios de sol crepusculares. A porta era um painel de madeira simples, adornado apenas com uma tinta azul desbotada.
Essa porta fora a única modificação feita pelo diretor Gunn no prédio ao assumir o cargo. Uma entrada transportada da casa de hóspedes na França, onde Waldo Gunn havia arrancado informações gerais e pessoais dos Jax durante todos aqueles anos.
Quantos mortos já tocaram nesta maçaneta?, pensou Chevie pouco antes de bater.
Witmeyer a cutucou com um dedo enluvado.
— Está tensa, queridinha? É isso?
Chevie mordeu o lábio e confirmou com a cabeça. Era verdade; estava mais tensa do que conseguia se lembrar de já ter ficado. Na verdade, estava praticamente frenética.
Estou em guerra comigo mesma, percebeu. Como uma pessoa pode vencer uma luta dessas?
Flexionou os dedos para fazê-los parar de tremer, e então estendeu a mão para a porta mais uma vez.
— Entre, cadete — disse a voz autoritária lá dentro.
O diretor sabe que estou aqui, pensou Chevie. É verdade o que dizem: Waldo Gunn tem a visão.
Claro, a visão, zombou a Chevie Traidora. Ou uma câmera acima da porta.
Chevie fechou o punho, depois o mordeu para conter um soluço. Eles iriam executá-la no pátio caso ela não conseguisse se controlar. Pediriam a voluntários da própria turma para atirar nela.
Lembre-se de DeeDee.
Deirdre Woolen, sua amiga mais querida desde o primeiro ano, fora arrancada da sala de aula, interrogada durante dois dias e depois executada. E tudo porque Deirdre fora flagrada na sala do diretor enquanto os mapas de guerra estavam à mostra.
Ela era uma espiã Jax, foi a fofoca nos dormitórios. Recolhendo informações.
DeeDee, uma espiã?
Chevie ficara em choque.
Em choque porque DeeDee era mais idiota do que um plâncton, sussurrou a Chevie Traidora em seu ouvido. DeeDee era sua amiga, mas não conseguiria reunir informações suficientes nem para soletrar g-a-t-o. Deirdre Woolen provavelmente se perdeu enquanto procurava o banheiro e Gunn atirou nela por causa disso.
Era verdade, Chevie sabia, mas não podia se dar ao luxo de pensar assim, para o caso de falar enquanto dormisse.
A irmã Witmeyer deu um cascudo em seu cocuruto.
— Você foi chamada.
Chevie buscou coragem para segurar a maçaneta e girá-la e, quando entrou na sala, ouviu a Chevie Traidora dentro de sua mente.
É melhor você me deixar sair daqui, cadete, porque senão nenhuma de nós vai sair viva desta sala.
Por favor, pensou Chevie. Por favor, fique quieta.
A sala do diretor era comprida e estreita, com um tapete vermelho se estendendo pelo centro, feito a língua de algum animal gigantesco. O diretor Waldo Gunn era fã da arte da homodermia — um tipo especial de taxidermia —, e os cadáveres empalhados e preservados de mártires notáveis da academia estavam enfileirados junto às paredes. Chevie sabia que os cadáveres semelhantes a cera, pintados com ruge, eram testemunho da dedicação daqueles ex-alunos, mas secretamente ela preferiria ser queimada e esquecida para sempre a acabar como uma sentinela sem vida naquela sala. Chevie manteve o olhar fixo à frente e tentou ignorar os olhares gelados dos heróis do império em suas omoplatas.
O diretor estava sentado à mesa, e a 3 metros de distância Chevie sentia o aroma de almíscar e alho que viajava com ele como uma nuvem pessoal.
Ser membro do comitê tinha seus privilégios, dentre eles ter o diabo de cheiro que você quisesse.
Ele fede, disse a Chevie Traidora. Alguém lave esse cara com um jato d’água.
O diretor Gunn estava batendo uma caneta stylus num tablet da Boxnet e parou de repente, quase como se Chevie tivesse falado em voz alta.
Ah, não, pensou Chevie. Ah, não.
O diretor Gunn parecia um elfo por trás da mesa enorme, com a cabeça grande demais e os olhos azuis pequeninos acima de um rosto com barba grisalha.
— Falou alguma coisa, cadete Savano?
A voz era curiosamente grave. Por algum motivo Chevie sempre esperara que fosse mais aguda.
— Não, senhor, diretor. Acho que não. Não que eu saiba.
Gunn suspirou.
— “Acho que não”? “Não que eu saiba”? É por causa desse tipo de fala que você está à minha frente hoje.
— Exato, diretor — confirmou Witmeyer que, juntamente a sua parceira, tinha acompanhado Chevie para dentro da sala.
— Humpf, diretor — murmurou Clover Vallicose.
Chevie levou um susto, surpresa ao encontrar as Thundercats junto de seus ombros.
Assassinas silenciosas.
Gunn se recostou em sua cadeira de antiquário com os descansos de braço curvados para baixo.
— Aproxime-se, Chevron. Fique bem diante de mim.
Chevie caminhou atordoada e parou quando suas coxas bateram na beira da mesa. Notou então a própria foto na tela do tablet. O diretor estivera olhando sua ficha.
Gunn suspirou de novo.
— Você era muito promissora, Savano. Mostrava muita aptidão... Mas agora...
O diretor pousou o tablet e cruzou os dedos minúsculos e peludos no colo.
Hobbit!, gritou a Chevie Traidora na cabeça dela. Hobbit. HOBBIT. HOBBIT.
Era um grito silencioso, mas de algum modo ensurdecedor. Chevie sentiu um fio de suor riscando sua testa.
— Tenho consciência, diretor, de que os últimos meses foram decepcionantes...
— Decepcionantes? — bufou Clover Vallicose. — Catastróficos.
— Todas essas falas confusas — continuou Waldo Gunn. — Esses termos estranhos. FBI, o que é FBI?
— Eu... não sei, diretor.
— No entanto, você usou essas letras para descrever nossa academia.
Chevie nem mesmo conseguia se lembrar dessa fala específica, ainda que as letras lhe parecessem familiares.
— E na aula de história você gritou: “Diga isso à Oprah!” O que é OPRA? Organização Popular da República Africana, talvez?
Chevie balançou a cabeça, desamparada.
— Não sou eu, diretor. Eu não digo essas coisas.
— Ah, diz sim. A questão é por quê.
— Ela é uma espiã — disse Vallicose bruscamente. — Uma espiã jax enviada para semear a discórdia.
Chevie teve um flashback do rosto de DeeDee antes de a bala acertá-la. Ela aparentava 100 anos de idade.
— Não sou espiã, diretor — disse. — Posso estar doente. Um tumor, talvez, ou um vírus, mas não sou espiã. Eu amo o império. Morreria pela bandeira.
Uma enorme bandeira do império estava pendurada na parede atrás de Gunn, talvez a imagem mais reconhecível do mundo: um círculo dourado e, dentro dele, uma caixa em 3D, com a linha horizontal traseira inferior e a vertical direita anterior mais grossas, para formar uma cruz.
Isso tudo está errado, pensou a Chevie Traidora, com o cérebro estremecendo à simples visão da imagem.
O diretor Gunn girou o tablet distraidamente em cima da mesa, fazendo nuvens de bolor subirem da manga do paletó.
— Você ama o império, cadete?
— Totalmente, diretor. De corpo e alma.
— E conhece o império, Savano? Percebe os sacrifícios que este império exigiu dos fiéis?
Perguntas de história, pensou Chevie. Tenho uma chance.
— Sim — respondeu ela. — Capítulos e versículos.
O diretor Gunn fez hummm. A cadete Savano havia imposto a si mesma um desafio.
— O que sabe sobre o Abençoado Coronel, Clayton Box?
Essa é fácil.
— Coronel Box. Um deus que surgiu entre nós para arrancar o pecado da terra.
Gunn acenou, irritado.
— Sim, sim, sim. Qualquer criança com uma caixa de cereal sabe disso. Você é uma cadete. Qual é o seu entendimento da Revolução?
Chevie franziu a testa; era uma pergunta capciosa. O diretor Gunn queria saber sua abordagem sobre a revolução. Queria que ela resumisse, e resumos costumam incluir opiniões, e opiniões poderiam fazer com que uma pessoa fosse morta.
Chevie falou devagar, demorando-se, tentando ignorar as Thundercats corpulentas que respiravam como feras ao lado de cada ouvido dela, à espera da ordem para atacar.
— O mundo estava um caos. Os impérios do homem eram vastos e cruéis. Milhões de almas pereciam devido à ignorância, à crueldade e à privação.
— Porém mais importante do que o perecimento? — perguntou Gunn numa voz que parecia grave demais para seu corpo em miniatura.
Vá com calma, Bilbo, pensou a Chevie Traidora. Estou chegando lá.
— Mais importante do que corpos moribundos eram as almas perdidas. As pessoas morriam em quantidades enormes sem esclarecimento. Deus decidiu que não podia mais suportar isso, portanto apareceu na terra sob a forma do coronel Box para construir uma Nova Albion que seria um luminoso exemplo de virtude para o mundo.
— E como o coronel planejou construir essa Nova Albion?
— Recrutou seus discípulos, os primeiros Thundercats.
A Chevie Traidora não engoliu essa. É papo furado. Uma fraude, uma piada. O mundo inteiro está caindo num trambique. Box era um soldado desertor. Eu me lembro do dossiê.
O esforço para não revelar tais blasfêmias fez gotas de suor brotarem na testa de Chevie.
— Durante longos trinta anos o coronel Box e seus discípulos ficaram nas catacumbas embaixo de Londres, onde comungaram com as almas dos fiéis e construíram lentamente as máquinas do coronel. Quando retornaram do subterrâneo, no Dia da Emersão, o coronel Box ordenou que seus homens lançassem os primeiros mísseis contra o parlamento, o castelo de Windsor e o porto naval de Portsmouth. A maior parte do governo e da monarquia recebeu o que era merecido em menos de uma hora, e foi necessário pouco mais de um dia para o coronel Box armar sua legião de miseráveis londrinos e tomar a capital. Em um mês a Grã-Bretanha estava completamente entregue ao coronel. O reino do homem estava no fim. O coronel Box estabeleceu as fábricas do exército em Sheffield para construir os grandes mísseis balísticos que ele havia projetado, e em menos de um ano, depois da segunda etapa do Golpe de Box a terra pertencia mais uma vez aos justos.
A Chevie Traidora fungou mentalmente. Miseráveis de Londres? Estão mais para criminosos.
O diretor Gunn assentiu; até agora Chevron Savano estava no rumo.
— O período de transição não foi desprovido de estorvos, não é? Alguns problemas são pequenos demais para ser enfrentados com mísseis.
— Sim, senhor. Houve oposição. Os que negavam o coronel foram enforcados em público ao longo de toda a Swinger’s Row pelo...
O fluxo de ideias de Chevie parou.
Gunn estava em cima dela feito um gato velho diante de um rato encurralado.
— Enforcados em público por quem?
Chevie podia sentir as Thundercats se remexendo junto aos seus ombros.
Quem? Quem foi o Carrasco?
— Sem dúvida você se lembra, cadete. Afinal de contas toda aquela guerra é conhecida como Revolução do Carrasco. Um pouco irreverente, talvez, mas a limpeza era essencial. O Carrasco é um de nossos santos mais homenageados. Foi beatificado pelo coronel em pessoa. O retrato dele está na parede à sua frente, pelo amor de Deus.
Escute esse cara, disse a Chevie Traidora. Ele acredita no próprio papo furado. Box concedeu a santidade a um Carrasco. É como se um monstro condecorasse um troll.
Chevie olhou para o retrato, esperançosa por inspiração, e a imagem lampejou em sua mente. O sujeito magro da pintura, só que segurando uma agulha de tatuador, com as rachaduras das unhas marcadas com tinta. Ela deu voz à imagem sem nem ao menos pensar.
— O tatuador — disse bruscamente. — Anton Farley, o tatuador. Ele era o Carrasco.
Gunn saltou de pé, batendo as palmas na mesa.
As mãos do diretor são vermelhas!, observou Chevie. Vermelhas de sangue dos Jax.
— Farley, o tatuador! — rugiu ele.
Rugiu? Sério mesmo?, disse a Chevie blasfema. Isso mais parece um balido.
— Cale a boca! — disse a Chevie do mundo real. — Cale a boca!
Gunn a encarou com olhos chamejantes.
— Calar a boca? Você mandaria... Você sabe quem eu sou?
— Hobbit! — gritou Chevie. — Hobbit... Hobbit... HOBBIT!
As Thundercats entraram em ação, cada uma segurando um ombro de Chevie.
Já estou completamente farta desse pessoal, pensou a Chevie Traidora, a matadora silenciosa, a prevaricadora.
Se as Thundercats estivessem esperando resistência, teriam se saído melhor, mas a cadete Chevron Savano só havia se mostrado uma combatente mediana, na melhor das hipóteses. E, de qualquer modo, os movimentos específicos que ela usava agora nunca haviam sido ensinados na academia.
Chevie pegou Witmeyer primeiro, girando por baixo do braço esticado da Thundercat e acertando seu rim com quatro dedos esticados. Continuando a pirueta, dobrou o joelho de Vallicose com um chute forte, depois se virou de novo para Witmeyer, que parecia perplexa devido à dor intensa. Agarrou a viseira da mulher e a baixou até os rostos das duas ficarem no mesmo nível.
— Oi — disse Chevie, num tom de algum modo mais chocante do que o ataque em si, e então deu um soco no nariz de Witmeyer. Chevie jamais conseguiria nocautear a Thundercat só usando de força, mas a dor estava distraindo Witmeyer, o que deu a Chevie a chance de arrancar a arma dela e apontar para Vallicose quando a freira guerreira estendeu a mão para o cassetete elétrico pendurado à cintura.
— Deixe isso aí, Miley — ordenou Chevie, engatilhando a pistola. Depois assentiu para Vallicose. — Você também, Gaga.
Por dentro, a cadete Chevie estava uivando de pavor.
O quê?
A Traidora me ensinou a brigar?
De que outro modo eu poderia ter atacado as Thundercats?
A Traidora me condenou ao inferno.
Miley?
Gaga?
Claro que a pessoa mais perigosa na sala fora esquecida, já que o cérebro de Chevie designara erroneamente a ele o papel de pessoa menos perigosa na sala. Esse havia sido o segredo de seu sucesso na França. O diretor Gunn saltou para a mesa, pegou seu tablet e acertou a cabeça de Chevie.
A cadete Savano desmoronou em seções angulares e, enquanto a inconsciência baixava sua cortina vagarosa sobre seus sentidos, a última coisa que ela ouviu foi a voz sarcástica de Gunn.
— Minhas mais temidas Thundercats derrubadas por uma garota impotente. Talvez vocês duas não sejam tão formidáveis quanto acham, hein, Máley e Gagá?
Rá, pensou a Chevie Traidora. Máley e Gagá? O Hobbit é um panacão.
Então as duas Chevies se perderam na escuridão.
PERUCAS EMPOADAS E GUARDA-SÓIS
Um cara entra no bar e diz ao barman: “Me dá um uísque pra mim e dez bilhões pra todos os meus possíveis eus alternativos.”
— Professor Charles Smart
Teatro Orient. Holborn. Londres. 1899
Agora nossa história migra, seguindo a curva da fenda espacial do professor Smart e emergindo na era vitoriana, onde três milhões de almas se agitam e se esparramam às margens do Tâmisa, do Fleet e do Lea. Onde o céu é negro de poluição da era das máquinas, capaz de sufocar um jumento de Pompeia. Onde a vida é barata e a morte é gratuita. E se esta prosa parece exageradamente encharcada de desolação, deixe-me lembrá-lo de que nem mencionamos as grandes favelas, onde banha derretida é considerada um acepipe culinário, e a principal distração para as legiões de órfãos de dedos vermelhos e rosto sujo de fuligem é um alegre jogo de caça ao rato.
Mas não vamos nos demorar nesses atoleiros de privação, já que nossa narrativa nos atrai para outro lugar. Seguimos o agitar das penas das caudas dos corvos sobre a colcha de retalhos dos telhados do Soho e Mayfair em direção a Holborn, mergulhando na vastidão majestosa de seu viaduto e pairando acima de uma calçada caiada que proclama, em letras maiúsculas manchadas por pegadas, que a grandiosa reinauguração do Teatro Orient acontece neste exato dia. Na verdade, a expressão grandiosa reinauguração parece um tanto hiperbólica, dada a condição dilapidada do prédio, mas as afirmações grandiosas são a essência do teatro, não são? O público exige enfeites. Apenas superlativos, por favor. As sopranos são incomparáveis. As viradas cômicas são invariavelmente de rachar o bico (só os palhaços podem oferecer a mutilação como endosso), e os mágicos de vez em quando são magníficos, frequentemente incríveis e, sem exceção, grandiosos.
O ilusionista residente no Teatro Orient se consideraria grandioso no momento, embora na verdade ele seja frequentemente espantoso e de vez em quando até mesmo assombroso. De fato, uma vez ele chegou a brincar com a alcunha profissional Espantoso Assombrozini, antes de se optar pelo título mais modesto de Grande Savano.
Será que esse nome faz lembrar alguma coisa?
Naquela tarde, o Grande Savano, conhecido como Riley por seu punhado de amigos, estava cochilando na banheira de aço que vinha servindo de cama nas últimas semanas. Cerca de seis meses antes, ele tinha herdado o Teatro Orient e os vários baús cheios de soberanos de ouro escondidos nos arredores ou enterrados embaixo do prédio. Pode parecer uma herança luxuosa para um mero ajudante de mágico, mas o garoto havia feito por merecer cem vezes mais em seus 14 anos. Cada jato de gás na ribalta lhe custara um soco no ouvido; cada poltrona representava uma noite tremendo num porão trancado. As cortinas tinham sido pagas com lingotes de servidão e o arco do proscênio tinha sido comprado com as horas passadas num andaime de pintor, semicerrando os olhos enquanto ele contornava os arabescos com um pincel mergulhado em tinta dourada. Essencialmente, ele havia assinado os papéis do teatro com o próprio sangue, e seu suor e suas lágrimas tinham servido como pagamento pelo estoque principal de soberanos reluzentes, embaixo do pódio do maestro.
Mesmo agora, enquanto seu corpo magro se encolhia dentro da banheira, envolto nas ondulações da capa de mágico de veludo com acabamento em pele, os saltos das botas ressoando no invólucro de aço, Riley pagava a propriedade do Orient com sonhos sombrios. Seu antigo patrão, Albert Garrick, o assombrava, pingando ameaças em seu ouvido. Veja bem: ele nunca mostrava o rosto, apenas sussurrava aterrorizações medonhas. O modo como iria castigar Riley, dizendo que ele não havia perecido e que estava apenas à deriva no maldito túnel do professor Smart, descrevendo como sairia da nulidade do etéreo para exercer uma vingança sangrenta.
Tenho tempo para planejar a fuga, Riley meu garoto. Tempo é tudo que tenho.
Garrick era o diabo, pensou Riley enquanto se debatia e tentava chegar à superfície. E o diabo jamais pode ser banido enquanto uma alma tiver medo dele.
Eu tenho medo dele, Deus sabe que tenho.
Não era o diabo que o esperava na terra da rainha e dos homens; era Bob Winkle, resplandecente em seu novo terno de viagem.
Bob Winkle, o jovem golpista que Riley havia resgatado de uma vida de crimes na favela Old Nichol e para quem havia arranjado uma cama no Orient. Bob, o Fórceps, como era conhecido por alguns, pois havia demonstrado um belo jeito de arrancar informações de fontes relutantes.
— Você vai abrir um buraco nesta banheira de tanto se debater. — Foi o comentário de Bob Winkle. — Está chutando feito um enforcado.
Riley concedeu um momento a si mesmo antes de responder. Uma ou duas respirações para exalar a sombra de Garrick e se ancorar no mundo desperto.
— Você ficou nos trinques nessa beca, Bob — disse finalmente. E era verdade. Bob estava uma bela figura em seu terno recém-entregue: um paletó de tweed laranja com brilho de latão nos punhos e no colete; pernas enfiadas em botas de cano alto.
— Pareço um macaco de circo — disse Bob no mesmo tom. Na opinião dele, um macaco de circo estava alguns degraus acima de um morador de favela a caminho da prisão de Newgate.
As mãos de Riley emergiram das dobras de veludo e pele e ele segurou a borda da banheira.
— Já vi um macaco, Bob. Sua fuça não é nem de longe tão bonita.
Uma provocação entre rapazes. Nada extraordinário. Não era mais deslocado do que um marinheiro num boteco de gim, mas para Riley a brincadeira casual tinha uma qualidade recém-nascida. Sua mente estava começando a se livrar da grossa membrana da tirania de Garrick, assim como Bob havia largado seus farrapos de roupas necrosadas, suas camadas arqueológicas de sujeira compacta e o tom ocre pouco higiênico que o havia coberto desde o nascimento. Na verdade, com alguma milhagem entre ele e a sombra da Old Nichol, Bob Winkle estava prosperando. Tinha crescido vários centímetros naquela metade de ano desde sua salvação, e seu cabelo havia se revelado num tom amarelo-trigo. O velho corpo de Riley, por outro lado, se recusava teimosamente a aumentar de tamanho, mas pelo menos seu humor estava ficando um pouco mais reluzente — pelo menos enquanto ele estava acordado.
Bob deu a mão ao seu chefe.
— Não precisa dormir na banheira, patrão. A gente tem uma cama, você sabe.
— Um espectro não caberia nem de lado naquele colchão — disse Riley. — Vou continuar na minha banheira, se você não se incomoda. Você não está exatamente fazendo uso dela a ponto de gastar.
Bob bateu na banheira.
— Não sou peixe, patrão. E a sujeira fecha os poros, mantém a doença fora do corpo.
— E eu não estava dormindo. Fiquei acordado a noite toda fazendo os preparativos no teatro, como você sabe. Isso foi um cochilo merecido.
Havia lugares mais confortáveis para se cochilar, Riley sabia, mas o FBI o havia colocado numa banheira quando Garrick estava em seu encalço no futuro, e ele tinha sobrevivido àquele dia, de modo que, ainda que a banheira em si tivesse pouco a ver com aquela não morte, Riley se agarrava a ela como um símbolo.
Dormir na banheira
Pra não virar caveira.
Os versos jamais seriam imortalizados nas páginas da revista Strand, mas mesmo assim lhe davam conforto.
Bob cutucou a capa de Riley com um dedo, sentindo a cota fina de malha escondida no forro.
— Vejo que você começou a usar essa coisa na banheira, não é? Com certeza isso não está no manual do banho.
Riley flexionou as pernas, testando o peso da capa.
— No palco a cota de malha pode desviar uma faca se algum truque der errado, mas preciso usá-la com destreza, como se não houvesse um grama de força nas minhas pernas. Para ficar à vontade assim, preciso treinar, Bob. E talvez se você treinasse manipular as cartas com alguma dedicação, estaria um pouco mais perto de usar a própria capa.
Bob mudou de assunto rapidamente.
— Recebi um telegrama da minha fonte.
A fonte era um investigador amigo de Bob, que fora despachado para Brighton com o objetivo de encontrar o meio-irmão de Riley, Tom, que fora visto pela última vez naquela cidade litorânea.
Riley levantou os olhos num instante.
— E?
— Nada de mais. Ele está xeretando, mas até agora sem sorte. Se quer saber minha opinião, é um desperdício de grana. Eu vou até lá no trem da tarde.
— Mas vai perder a grande reinauguração.
— Não dá pra evitar, patrão. Você tem seu trampo; eu tenho o meu.
Riley assentiu. Bob iria inundar a cidade com a molecada ranhenta da Old Nichol. Se havia alguém capaz de farejar um fio de cabelo de um homem perdido, era um moleque faminto das favelas.
— Como estão os Trips? O show está armado?
Os Trips eram irmãos de Bob, os quais Riley havia alojado com uma viúva decente que se certificava de que recebessem gororoba e estudos. No tempo livre eles ajudavam no teatro e eram meninos de recados.
— Ainda no lugar, assim como da última vez em que você perguntou. Espelhos, bombas de fumaça, luzes, facas, gramofone, cortinas carregadas. O saco está cheio de ratos, como costumávamos dizer lá na Nichol. Mandei espalharem panfletos. Vão empapelar a cidade inteira.
— Excelente — disse Riley, dando mais ou menos uma dezena de passos até a pequena cozinha onde um pão quente e uma caneca de cerveja o aguardavam na mesa de canto. — Eu lhe disse, Bob. Não estou bebendo mais antes do anoitecer. Chevie arrancaria meu couro.
Bob deu de ombros e serviu-se de cerveja.
— Ah, sim, a princesa índia. Não seria bom merecer o desagrado de Chevron, já que ela está no futuro e tal.
Bob Winkle havia participado de forma ativa no último ato da luta de Riley contra Garrick, de modo que era razoavelmente versado nas estripulias da viagem no tempo, mas só sabia metade da história e só acreditava em um quarto disso.
— Chevie se foi, Riley — disse Bob, depois enfatizou a declaração com um arroto de cerveja. — Para o porvir, ou para um buraco no chão. Você mesmo disse, ela provavelmente está com muita ação no buraco de marte.
— Mutações da fenda de Smart — corrigiu Riley.
— Tanto faz, dá no mesmo. O negócio é que, por mais que eu adorasse ver a Srta. Chevie de novo, já que ela expressou o desejo de passear comigo, isso não é muito provável. Portanto viva sua vida de acordo com suas necessidades e não sob a sombra do futuro.
Tremendo discurso; Riley desconfiava de que Bob Winkle sentisse quase tanta falta de Chevie quanto ele.
— Não há nada de errado em aprender lições, Bob, e em adaptar seu comportamento de acordo com elas.
Bob terminou a cerveja.
— E eu não sei, patrão? Não fui a nenhuma briga de ratos desde que a gente se mudou pra cá. Nem andei pelos esgotos de Belgravia procurando bostas chiques que tenham caído lá.
— Ah, bostas chiques no esgoto — disse Riley, inexpressivo. — As pérolas da cidade de Londres.
Bob riu, revelando uma fileira de marfins notavelmente brancos para um formando de favela.
— Palmas para o comediante. Talvez a gente devesse botar você em segundo lugar no panfleto do teatro. Que tal o nome artístico de Charles Chalaça?
Riley retribuiu o sorriso do amigo e fez uma reverência.
— Escudeiro Charles Chalaça, ao seu dispor.
Os dois gargalharam, então Riley terminou de comer seu pão, mastigando lentamente, saboreando a dissolução vagarosa da massa fresca, sem medo de levar um soco repentino dado por Garrick.
Não tô com medo, pensou. Nesse exato momento do dia não tô com medo.
Riley sentiu como se seu coração enjaulado tivesse sido libertado.
— Aham — disse Bob. — Quando você terminar com esses olhares distantes e esse sorriso simplório, a gente deveria dar uma última passada geral antes de eu dar no pé.
Riley fingiu uma expressão séria.
— Você está ciente do fato de que sou seu patrão, jovem Sr. Winkle?
Bob bufou e desceu os três degraus de madeira até os bastidores.
— Eu não estou ciente nem do que quer dizer a palavra ciente. — Ele parou ao pé da escada. — E Bob Winkle tem uma regra: se ele não entende, dane-se.
Não é uma regra ruim, pensou Riley, depois seguiu o amigo até a barriga do teatro.
Nosso teatro, percebeu, e seu passo ficou mais leve, mais lépido. Era bem possível que Riley jamais tivesse sequer formulado uma frase que contivesse a palavra lépido, para não mencionar a ideia de se tornar um exemplo vivo da definição da mesma.
Lépido, pensou Riley. Olhe para mim, todo lépido e tal. Lépido Riley.
O palco era modesto para os padrões do famoso West End de Londres, apenas 5 metros da esquerda à direita — seis, considerando as coxias —, mas mesmo assim Riley tinha orgulho de seu menino, apesar de ali ter sido socado, chutado, cortado, eterizado e, ocasionalmente, pendurado numa forca presa num caibro.
Deu um tapinha carinhoso numa coluna do arco do proscênio.
— Não foi sua culpa, hein, meninão? Você estava cuidando de mim.
Mesmo assim a lembrança fez Riley se encolher.
— Diga, Sr. Winkle, já contei a história de quando Garrick me disse numa bela manhã: “Riley, que tal recriarmos o enforcamento de Dick Turpin em York? E que tal...
Bob gemeu.
— “E que tal você ser o Turpin?” História mais batida. Já escutei mais vezes do que o badalar do sino da igreja de St. Paul.
Este, pensou Riley, seria o momento ideal para verificar os estudos de Bob, enquanto ele estava atulhado na própria diversão.
— Bom, então, Sr. Winkle, talvez você possa me dizer outra coisa. Na verdade, sete coisas.
A presunção desapareceu do rosto de Bob, e se fosse líquida teria enchido suas botas.
— Bob está ocupado — disse ele. — Bob tem tarefas.
Riley tirou do bolso da calça um volume fino, encadernado em couro. Tinha destruído muitas das posses de Garrick, mas o Guia de Mágikas & Ilusões, escrito à mão, era uma herança inestimável com utilidade prática diária.
Além disso, Riley se alegrava ao pensar que o fantasma de Garrick iria se retorcer de horror com a ideia de ter seu caderno consultado por quem o havia banido desta terra.
— “Capítulo um” — leu ele. — “A magia do tipo teatral, sendo muito independente da conjuração verdadeira, possui sete elementos básicos.” Sete, Robert Winkle. Desembuche todos, por favor.
— Sete — repetiu Bob. — Você disse que não haveria testes hoje, chefe, por causa da grande reinauguração.
— Não, não disse. Sete.
— Sete. — No momento, Bob era o ajudante de Riley, mas seu maior desejo era manusear a própria varinha mágica. Mas para fazê-lo ele precisaria melhorar os estudos, e estudar não era seu forte. Ele levou os dedos às têmporas e olhou para as poltronas da plateia, a imagem perfeita de um mentalista.
— Bom, a primeira é o desvio da atenção. Até os ossos no cemitério sabem disso.
— Desvio de atenção — disse Riley. — Não queremos que os espectadores espiem onde não queremos que espiem.
— Depois a desova. Desovar o que não queremos que os bobões espiem, como os Aríetes fazem com cadáveres em Caversham Lock.
— Descarte — corrigiu Riley. — Não somos uma quadrilha de criminosos lidando com defuntos, só pombos e coisas assim. O próximo?
Bob roeu uma unha.
— Eu sei essa, patrão. É a ocultação, não é?
Riley esfregou as mãos até que uma rosa brotou das pontas dos dedos.
— A ocultação, ou palmear. Esconder um objeto na mão que está aparentemente vazia.
Bob ficou tão boquiaberto que você poderia achar que Riley havia tirado um elefante de um bulbo de tulipa.
— Bom, nunca vi um trabalho de prestidigitação tão bem-feito. Você está sendo desperdiçado, chefe. Devia estar perto do gramado da praça Leicester, batendo carteiras.
Riley não seria distraído por um puxa-saquismo tão descarado, mas permitiu-se sorrir diante do esforço do aprendiz.
— Faltam quatro, Bob, não importa onde eu deveria estar ou não.
Bob fingiu que verificava um relógio de bolso invisível.
— Ah, meu Deus, olha só a hora, como o tempo voa! — disse. — E eu também preciso voar se quiser pegar o trem para Brighton.
Bob abotoou o paletó novo até o pescoço e apertou a mão de Riley.
— Merda pra você, ó Grande Savano. Mandarei um telegrama do litoral.
Riley sabia que não adiantava continuar fazendo perguntas a Bob. Na cabeça do jovem Winkle, ele já estava na metade do caminho para Brighton.
— Muito bem, Bob, vá. Mande o telegrama assim que tiver notícias.
— E vai ser logo, ou meu nome não é Belo Bob Winkle.
Belo Bob?
Essa era nova.
E sem mais delongas, para o caso de Riley conseguir fazer mais uma pergunta, Bob partiu pelo corredor entre as poltronas e saiu pela porta da frente, deixando Riley sozinho num lugar onde este estava decidido a forjar lembranças novinhas em folha.
Os preparativos de Riley foram interrompidos por um estardalhaço vindo da dianteira do teatro, ressoando pelo corredor central e subindo no palco em si. Era a agitação de homens entrando no prédio e não sendo muito delicados; homens que não se incomodavam com coisas como dobradiças arrebentadas ou fechaduras quebradas. Eles queriam entrar, e estavam entrando, independentemente de barreiras.
Inicialmente Riley sorrira, achando que os Trips estavam de volta e famintos, mas seu riso azedou ao ver quem vinha pelo corredor.
— Aríetes — disse. — Com o rei em pessoa à frente.
Riley lutou contra o instinto de fugir e se esconder. Em vez disso, ajeitou os ombros, jogou para trás as dobras de sua capa de veludo preto com acabamento em pele feita sob medida e improvisou uma reverência dramática.
— Majestade — disse, e um bocado de confete choveu dos caibros, como se Otto Malarkey e sua gangue de valentões, patifes, cafajestes, ladrões e malfeitores de todo tipo fossem esperados.
Os Aríetes eram a quadrilha principal de criminosos organizados de Londres, título que anteriormente havia pertencido aos Rapazes Arruaceiros, um pessoal que abrira mão de qualquer reivindicação do termo organizados ao dinamitar o muro leste da prisão de Newgate enquanto a maior parte de seu conselho de guerra aprisionado estava encostado no lado oposto. Disseram que os policiais levaram semanas para retirar os pedaços de Arruaceiros. Os Aríetes eram um pessoal muito mais esperto. Não eram os espalhafatosos encharcados de gim do momento. Não, os Aríetes eram mais do tipo criminosos experientes, trabalhando a longo prazo. Veteranos, na maioria, que tinham feito o batismo de sangue no Transvaal ou na China. Apreciavam um plano de batalha bem-feito e estavam preparados para seguir um homem que tivesse um pouco de perspicácia. E encontraram em Otto Malarkey um gênio tático com perspicácia transbordando de suas amadas botas de pirata.
Otto nunca fora pirata propriamente dito, mas havia contrabandeado produtos taxáveis sob o comando do famoso clérigo contrabandista, reverendo John Pine, que dera as botas a Otto em seu leito de morte. Malarkey aprendeu os clássicos à mesa do reverendo Pine. Captou estratégia de César e política de Cícero. Para sua renomada habilidade com a espada, precisou esperar até ser jogado na prisão da ilha de Little Saltee, onde aprendeu a arte dos cavalheiros com um colega interno. Quando o rei anterior dos Aríetes, um dos irmãos de Otto, pereceu numa luta ignóbil com um gorila da montanha, Otto herdou a coroa chifruda dos Aríetes. Ele guiara a quadrilha a reinos de ganhos ilegítimos com os quais ela jamais poderia ter sonhado sob o comando dos reis anteriores. Mas ultimamente, precisava ser dito, o poder havia subido um pouco à cabeça de Otto e sua perspicácia característica se desviara para o espalhafatoso.
Ele estava criando o próprio caminho na moda e trazendo consigo um bom número de colegas empedernidos.
De modo que agora, quando se desenrolou depois da reverência teatral, Riley foi recebido por uma primeira fila quase cheia de patifes que fungavam eriçados, soando e fedendo tal qual os Aríetes que ele conhecia tão bem. Mas pareciam dândis de alguma corte real antiga, resplandecentes em perucas empoadas e bochechas com ruge, e no meio estava sentado Otto Malarkey em pessoa, o mais empoado de todos.
Riley falou enquanto se empertigava:
— Boa noite, senhoras e...
O tradicional cumprimento teatral ficou preso em sua goela quando ele notou Otto girando uma sombrinha de renda.
— Senhoras... e...
Otto esperou educadamente por um instante, depois sussurrou através de um funil de dedos, como um soprador de ponto nas coxias:
— Senhores. Senhoras e senhores.
Riley forçou um sorriso, mas teve o cuidado de não gargalhar. Uma demonstração de riso nessa situação poderia se mostrar fatal.
— Senhores, claro. Senhoras e senhores. Peço desculpas, Alteza Arietíssima. Não estava esperando uma plateia a esta hora. Talvez o anúncio escrito com giz na calçada aí fora tenha sido manchado pelas pegadas. A cortina só irá subir para os espetáculos da tarde dentro de três horas.
Otto Malarkey abriu e fechou sua sombrinha preguiçosamente, e fazer isso num lugar fechado dava um tremendo azar. Riley sentiu um formigamento de mau agouro nos dentes. O pessoal de teatro é discípulo devoto da Sra. da Sorte.
— Eu é o Rei dos Aríetes, meu jovem conjurador, e não dou uma titica de galinha pelo que é esperado. O mundo, como poderia dizer o Bardo, é como eu gosto. Eu chega como e quando quero. Pago o que gostar, se eu gostar. Não olho pros outros; eles é que olha pro rei Otto querendo dicas e deixas. Vê só essa beca que tô usando, por exemplo.
Então ele fez uma pausa, quase desafiando Riley a rir, um desafio silenciosamente declinado.
— Nós pega as dicas de alta moda com a natureza. O pavão mais forte usa as pena, o tigre adora as próprias lista, e assim nós usa nossas finura, de modo que todo mundo possa ver a gente e não inventar briga com os rapazes chique dos Aríetes.
Durante o discurso, Riley sentiu seu antigo treinamento subir das cavernas crepusculares da mente e se acomodar em seu crânio como uma mortalha. Não era o treino de mágico, embora fosse parte dele; o que ditava suas atitudes agora era a parte dele que havia absorvido as habilidades de Garrick em combate e assassinato. Era possível que Malarkey simplesmente estivesse querendo uma ida ao teatro com seus coleguinhas violentos e que a morte não fosse ser vista ali hoje. Mas se a Alta Arietice tivesse violência em mente, encontraria Riley preparado.
— Será que Vossa Majestade e sua estimada companhia gostariam de uma demonstração dos meus talentos? Uma prévia, por assim dizer?
Malarkey bateu o cabo de sua sombrinha nas tábuas do piso.
— Você é um garoto esperto, um príncipe de verdade. Eu sempre diz, Riley... ou será que devo dizer Grande Savano? Mas antes de abandonar a gente às maravilhas do oriente, vamo tirar um momento pra uma pequena prosa sobre sua obrigação para com a Irmandade.
Esta era outra declaração longa e sinuosa, e enquanto ia serpenteando, Riley examinava o que agora considerava o inimigo. Havia seis Aríetes dispostos diante dele: o próprio Malarkey — ou Golgoth, como era conhecido no ringue —, um gigante mal contido pelos babados do que parecia uma camisa de ópera. Estava flanqueado por Noble e Jeeves, dois de seus capangas mais experientes, que tinham maltratado Riley um bocado em seu encontro anterior, ambos quase irreconhecíveis sob as perucas empoadas, cujo efeito era um tanto arruinado pela escarificação facial e pela barba crescida dos dois. Ao lado de Jeeves estava um homem tão colossal que tinha pele suficiente para dois, e à direita estava um Aríete tão pequeno que poderia precisar de pele extra. O monstro era o irmão mais novo de Otto, Barnabus, cujo apelido era Malarkey “Desumano”, em referência à descrição feita pelo promotor sobre a agressão que garantira a Barnabus um período na prisão de Newgate. O sujeito menor era companheiro constante e burro de carga de Desumano, Pooley. Desumano estava espremido numa casaca de seda azul com debrum dourado feita para um corpo menos robusto, e Pooley vestia um uniforme de hussardo russo. Todos portavam armas óbvias, e possivelmente armas escondidas para complementá-las. Todos menos Farley, o tatuador dos Aríetes, que estava sentado duas fileiras atrás, vestindo seu casaco preto e as calças gastas de sempre. Havia um caderno em seu joelho e ele rabiscava enquanto Malarkey falava. Parecia que agora o tatuador havia se tornado o cronista da vida e dos tempos do rei Otto.
Riley avaliou os Aríetes e calculou friamente que, com seu treinamento, poderia muito bem despachar três antes que os outros o pegassem. Mas havia outro jeito de talvez remover pelo menos um sem qualquer resistência. E ele já estava saltando a este ponto de seu plano feito às pressas quando registrou Otto dizendo a palavra compromisso.
Não era uma palavra comum. Não era como dizer torta e salsicha.
Compromisso era uma palavra forte na Família. Compromisso era uma coisa levada tão a sério quanto a cólera.
— Meu compromisso, Alteza Arietíssima? — disse Riley, tendo o cuidado de não demonstrar medo. — A que compromisso está se referindo? Holborn não é em território dos Aríetes.
Mas ele sabia. Sabia bem no fundo qual era o tal compromisso.
Otto não falou; em vez disso, tirou uma luva de renda de sua pata gigantesca com deliberação absoluta, dedo por dedo, depois bateu no próprio ombro direito.
Riley sabia o que havia sob a manga de seda. Uma tatuagem dos Aríetes semelhante à que Farley havia colocado em seu ombro seis meses antes, durante uma aventura particularmente difícil que deixaria o próprio Allan Quatermain em apuros. A escolha de Riley na ocasião havia sido aceitar a tatuagem ou ser dado de comer aos porcos. Aceitar a tatuagem tinha parecido algo menos imediatamente terminal.
— Tu é um de nós, garoto — disse Desumano. — Tu é da Família.
Riley manteve a expressão artística, mas por trás do sorriso o pânico estava fervendo seus fluidos.
Como é que não previ isso? Eu sou um Aríete. Tudo que faço pertence a eles.
— Tudo que é seu é nosso — disse Malarkey com doçura, como se o rei tivesse acesso aos pensamentos dos membros da quadrilha. — Este prédio aqui. As elegantes poltronas de veludo. Diz, garoto, você não andou gastando prata dos Aríetes em reformas, andou?
Riley abriu os braços.
— Só uns badulaques. Aqui e ali, umas coisinhas. — Era tudo conversa-fiada, mas ele estava tentando ganhar tempo.
— Porque essa seria uma decisão régia. No mínimo de um comitê. Você deveria ter apresentado um formulário de requisição.
— Eu não sabia que existia esse tipo de formulário, Alteza Arietíssima. Jamais imaginei.
Pelo jeito isso era hilariante.
Pooley tamborilou as coxas com seus punhos finos como ossos.
— Ele jamais pensou. Que piada!
— Ele nunca pensa — completou Desumano, dando uma risada grave e demorada, um som semelhante a tiros de canhão distantes. — Esse é o problema.
— Vamos aos finalmentes, então, Sr. Malarkey — disse Riley. — Qual é a minha conta?
— Vamos aos finalmentes — repetiu Malarkey. — Gosto de você, garoto, e é por isso que não tô levando essa coisa pro lado pessoal. Não vou interpretar esses ganhos ardilosos do jeito errado. Eu poderia considerar que você andou enfiando a mão no meu bolso. Tirando o pão da boca do meu irmãozinho faminto.
Um pensamento desumano atingiu.
— Eu estou faminto, por sinal.
Otto gargalhou, balançando a sombrinha como se fosse um cassetete.
— Viu? Ele tá com fome, o Barnabus. É melhor tomar cuidado, ele pode arrancar sua perna com uma mordida. Ele gosta de carne macia, o Barnabus.
Riley partiu rapidamente para a ofensiva.
— Então estamos quites no momento, rei Otto?
Se Riley fosse o famoso cômico George Robey, a cacofonia de gargalhadas subsequente à declaração não poderia ter sido mais entusiasmada. De olhos fechados seríamos capazes de jurar que o Orient estava apinhado até as bordas, somente pelo volume. A diversão sacudiu os homens e os homens sacudiram o teatro até as poltronas forçarem os parafusos que as prendiam ao piso.
— Estamos quites? — chorou o rei Otto, tendo tomado um gole de conhaque do cabo de sua sombrinha. — Ora, Riley. Tu é um tônico, sem dúvida. Estamos quites? — Ele bateu nos Aríetes que estavam ao alcance. — Já ouviram uma coisa assim? Não existe isso de estamos quites na irmandade, meu garoto. Estamos quites não é uma condição que a gente consideramos.
Riley sentiu o desespero baixar como uma rede de pegar borboletas.
— Talvez o senhor possa me esclarecer, rei Otto.
Os detalhes financeiros eram vulgares demais para serem abordados pela realeza, por isso Otto delegou.
— Farley, desembuche para o Grande Savano. Seja simples. Afinal de contas ele não passa de um garoto, apesar do título grandioso.
Farley sorriu para Riley, a primeira exibição de dentes amistosos desde a chegada dos Aríetes. O tatuador vestido de modo conservador parecia deslocado num grupo tão turbulento. Um escriba em meio a pugilistas.
— Aqui vai a má notícia, Riley. Quando você aceita a tatuagem, sua vida está entregue aos Aríetes. Você pode alugá-la de volta de acordo com as vontades do rei, por metade de seus bens materiais passados e presentes.
— Bens materiais passados? Como isso pode ser coletado sem uma máquina do tempo?
Farley ergueu o olhar de seu caderno.
— O rei Otto não tem culpa se você já teve uma fortuna e a perdeu. Ainda assim os cinquenta por cento são devidos.
A Alteza Arietíssima bebericou mais um gole da sua sombrinha-garrafa, depois cuspiu no corredor.
— Magnânimo como sou, abro mão do passado. Somente as fortunas presentes.
Riley fez uma reverência.
— O senhor é gentil demais.
Otto se empertigou.
— Está querendo me embromar? Será que minhas condições são lenientes demais, é? Você poderia pegar uma bala antes do show de mágica. Sessenta por cento se você insistir nessa conversa mole, ó Grande Savano.
Pegar uma bala, pensou Riley. Que esperteza do rei Otto se referir ao truque mais esperado do meu repertório: pegar a bala.
Cinquenta por cento, sessenta. Não fazia diferença. Riley seria um escravo às vontades de Malarkey, e sabia disso.
— Então continuando — disse Farley —, sessenta por cento de tudo que o Orient render. Se não render nada, nós vendemos tudo, com a porteira fechada, e enchemos os cofres com os rendimentos. Se o Grande Savano aceitar, nós espalhamos batedores de carteiras na multidão e fazemos um belo negócio com as carteiras, relógios e lenços.
Desastre.
Mesmo que o Orient rendesse bem, os batedores de carteira afastariam o público. Riley sabia muito bem como isso funcionava. Ele terminaria o restante da vida trabalhando para pagar alguma dívida sonhada enquanto seu meio-irmão se embrenharia mundo afora. Era melhor cortar as amarras antes que os Aríetes farejassem as diversas caixas enterradas onde Garrick havia guardado seus soberanos manchados de sangue. Ele poderia mudar seu nome artístico e partir para o circuito, talvez aparelhar um ônibus antigo e fazer turnê pelas feiras do condado.
— Você é meu, garoto — estava dizendo Otto. — Você é meu soldado. E terei o que me é devido, tão certo quanto a presença do velho Horácio em sua coluna na praça Trafalgar. E quando este lugar aqui tiver sido espremido, vou colocar você para trabalhar para mim na Toca dos Carneiros, tirando ratos de chapéus.
Ah, não, pensou Riley. Eu, não. Já estive no futuro e voltei. Aprendi um ou dois truques. O Grande Savano não entra em servidão para homens que usam perucas empoadas.
— Como Sua Majestade ordenar — disse, fazendo mais uma reverência. — Mas permita-me a oportunidade de uma negociação.
Desumano parou de respirar pela boca por tempo suficiente para comentar.
— “Negociação”, ele diz. Negociação. A gente somos Aríete, garoto. Negociar não é uma condição que... o outro lado... dos... Aríetes a gente somos...
Não adiantava; a frase lhe havia escapado, e assim Desumano ficou em silêncio, tentando deduzi-la nos dedos, mastigando as expressões.
— Concordo com meu irmão em sentimento, ainda que não em expressividade — disse Otto. — Nada de negociações. É uma questão de regras. Regras é que nem corações. Depois de quebrados, eles continuam partido. — Ele balançou a sombrinha em direção a Farley. — Captou essa, não captou? Foi das boas.
O tatuador mergulhou sua pena num tinteiro que estava empoleirado feito um passarinho no bolso do peito.
— Tudo preservado para os reis futuros — disse, correndo a pena pela página em movimentos rápidos.
— Bom. — Malarkey retornou a atenção ao palco. — E então, negociação? Não vai ter nenhuma.
— Ouça minha proposta, rei Otto — disse Riley. — É para benefício do empreendimento. Nosso empreendimento conjunto.
Na verdade, Riley tinha menos interesse em negociação do que Malarkey. Sabia que era inútil, mas aparentar interesse numa barganha fazia parecer que ele havia aceitado a proposta em geral. Era um clássico desvio de atenção.
Otto esticou as pernas e apoiou as botas de pirata na beira do palco.
— Estou me divertindo — disse ele. — Confesso. E enquanto estou entretido, fico inclinado a ouvir. Então vá em frente, garoto Riley, mas cuide de me entreter.
Riley fez mais uma reverência.
— Como quiser, Alteza Arietíssima — disse, a calma da voz negando o tumulto interior. O espetáculo desta noite estava perdido; ele usaria as ilusões já preparadas para sumir do palco indo às entranhas do Orient, onde o tesouro de Garrick estava escondido.
Riley foi rapidamente até as coxias e escolheu uma cadeira dentre três — o modelo de madeira simples, com dobradiças secretas e corda elástica passada entre as pernas ocas e as costas.
Riley, que agora era o Grande Savano em cada centímetro do corpo, inclinou a cadeira até apoiá-la numa única perna traseira, girando-a sob a mão, adorando o olhar da plateia.
— Na verdade, um teatro não é composto apenas de paredes, camarins ou mesmo um palco — disse com a voz ligeiramente cantarolada, hipnotizante. — São os assentos. — A cadeira girava cada vez mais depressa, as pernas virando um borrão. — Os assentos adoram seu trabalho. Eles adoram os traseiros gordos, ricos, que virão de cima.
Desumano franziu a testa, uma expressão que se assentava com alguma familiaridade em suas feições.
— O assento está gostando do meu traseiro?
Riley girou a cadeira acima da cabeça, depois baixou-a com força, fazendo-a desmontar em pedaços e lascas.
— Mas quando os assentos estão vazios, eles simplesmente se despedaçam.
Quebrar uma cadeira velha, mesmo com manipulação hábil, não era um feito tão grande, por isso ninguém aplaudiu.
— Mas quando esses assentos estão cheios...
Riley se abaixou lentamente, para uma posição de assento, até a queda parecer certeira.
— Quando estes assentos estão cheios...
Riley se abaixou mais ainda, mas daí... daí a cadeira quebrada começou a se agitar e a se sacudir, dançando ao som de alguma música inaudível, unindo-se de volta até que, num espasmo, saltou para cima inteira, no instante em que Riley descia para sentar-se nela.
A cadeira, restaurada por magia, recebeu o peso de Riley com um sopro de serragem.
— Quando esses assentos estão cheios, são máquinas de fazer dinheiro — disse Riley à plateia. Então abriu a boca e pôs a língua para fora, revelando o soberano em cima dela.
Riley fez menção de pegá-lo, mas a língua voltou rapidamente para dentro da boca e seus dentes se trancaram com um estalo.
— Ouro! — disse, como se não houvesse nada na língua. — Vocês viram! Ouro brilhante e reluzente. Ele tem. A gente queremos. Então como conseguimos o ouro?
Pooley se levantou da cadeira.
— A gente quebramos a porcaria dos dentes dele e corta fora a porcaria da língua.
Essa verbalização brusca interrompeu um pouco o feitiço do Grande Savano, mas Riley se recuperou bem.
— Sim, meu amigo atrofiado. A gente poderia cortar fora a porcaria da língua dele, mas aí essa seria a única moeda de ouro que o Zé Plateia iria doar para os cofres dos Aríetes.
Agora Malarkey estava escutando. Riley era duas vezes mais esperto do que um trambiqueiro comum, o que o tornava quatro vezes mais brilhante do que os panacas sentados ao lado dele hoje.
— Diga então, garoto inteligente. Como a gente ganha aquele soberano e outros iguais?
— Eis a questão. Um soberano por um soberano. Nós ganhamos o soberano fazendo o Zé Plateia querer nos dá-lo.
Riley estalou os dedos e um jorro de borboletas desceu das pontas, espiralando-se num cone até as poltronas baratas da galeria. As bocas da plateia ficaram abertas, assim como a de Riley, e dela se desenrolou a língua com o ouro. Ele chicoteou a língua e o soberano saltou em sua mão.
— Presto — disse, revezando a moeda habilmente entre as mãos, depois jogando-a no ar. O soberano girou até pousar com o ruído suave de ouro puro sobre a mão ávida de Malarkey.
— A sua parte, rei Otto — disse o mágico, todo elegante e profissional, finalizando o número com uma reverência tão baixa que o fez encarar os ossos do próprio tornozelo.
Malarkey fechou os dedos em volta da moeda, para o caso de o Grande Savano arrancá-la com magia de algum modo.
— O número foi bom, Arietinho — disse ele. — Mas...
Riley o interrompeu suavemente, retomando o controle.
A pessoa que controla a sala controla a ilusão, dissera Garrick. Ela decide se a magia vem ou não ao mundo. Você deve ser essa pessoa.
— Mas meu espetáculo não terminou — disse Riley, projetando a voz até os deuses. — E estou improvisando para adequar minhas ilusões à Sua Majestade. O Grande Savano tem outro argumento, e na forma de um belo entretenimento.
Malarkey se encolheu. Seu cabelo lhe dizia que algo estava errado. Por baixo da peruca, as famosas madeixas negras ansiavam por ficar livres e coçavam nas raízes como sempre faziam quando as coisas estavam ligeiramente esquisitas. A visão capilar de Malarkey salvara sua vida em mais de uma ocasião. Ai, meu Deus, mas esse Aríete júnior não era capaz de fazer números de magia do mais alto nível? Então só mais um truque, depois vamos aos negócios.
Nunca mais vou ao teatro de verdade novamente. São só números com facas e gritos.
Por isso disse:
— Depressa, Arietinho. E é melhor eu não farejar nada furtivo, ou arranco seu couro.
Riley fez mais uma reverência, mas para o rei Otto parecia que todos aqueles rapapés talvez não fossem tão respeitosos quanto poderiam. Era outro ponto em que pensar mais tarde.
Depois do truque.
— Portanto temos nosso cliente, por enquanto — disse Riley, curvando-se ligeiramente. — Mas o que vai acontecer com o Zé Plateia se seguirmos o conselho de nosso amigo Farley e enchermos o teatro com a Família?
Família. Um nome aconchegante para a suposta fraternidade criminosa.
Riley tirou um lenço de um grande bolso na capa e o sacudiu até a peça se desenrolar e ficar do tamanho de uma toalha de mesa.
— Ele estava dobrado, só isso — murmurou Desumano, ansioso para se mostrar espertinho. Então, como acontecia com frequência, suas palavras fugiram depressa demais para que a boca hesitante acompanhasse. — Dobrado, só isso, e depois com o negócio de sacudir... embaixo da... capa. Como é mesmo que se chama uma capa mágica? Bom, de qualquer modo, ele fica grande, e agora vocês ficam falando, ah, nossa, e...
Malarkey cutucou o irmão com sua sombrinha de bebida.
— Eu sei, irmão. Agora pense as palavras dentro da cabeça e deixe o cachorrinho se apresentar.
Riley continuava a mexer no lenço. Era como Desumano havia adivinhado: estava simplesmente dobrado; mas não simplesmente dobrado; o padrão das dobras era tão exato e intrincado feito um dragão de origami, projetado para esconder dois fios moldados que cobriam sua cabeça e seus ombros. Assim que os fios ficaram perpendiculares e a estrutura se agregou, Riley passou o pano por cima do corpo. Ele assumiu sua forma e o encobriu completamente. Riley cambaleou, com as pernas rígidas, para um lado e outro, os braços estendidos à frente, os olhos espiando através da gaze.
— Está vendo? — disse Riley. — Estou cercado, confuso e sem enxergar. Estou sendo afanado, cutucado, sacudido e esfolado. Nunca mais lançarei minha sombra no saguão do teatro Orient. Vou ficar longe daqui e levar meu ouro comigo.
Aquela conversa-fiada era para lhe dar a chance de comprimir o fecho do alçapão com a ponta do pé.
— Jamais voltarei aqui com minha grana que lutei para ganhar, pensa o velho Zé. Porque estou pingando suor nervoso e sendo zombado por bandidos ardilosos com dentes pretos e assassinato nos olhos pequenos. E é isso que acontece com o Zé Plateia quando ouve membros da Família farejando seu cangote.
Riley encontrou o fecho e comprimiu-o. Agora só precisava dar um bom salto para o porão e demonstrar como o Zé Plateia desapareceria — e desaparecer de verdade.
Enrolou a capa de mágico em volta do corpo para o salto, puxando as dobras para acelerar a passagem pela apertada moldura de madeira, quando de repente, para grande surpresa de todos os presentes, o geralmente sereno Anton Farley pareceu se incomodar com a apresentação.
— Não! Não! — disse Farley, saltando de pé. — Chega de bobagem. Afaste-se do alçapão, ou do que quer que você tenha aí, garoto. Desça aqui, para perto destes idiotas.
Silêncio.
Silêncio contundente.
Farley estava mesmo dando ordens? Tinha mesmo acabado de se referir aos seus colegas Aríetes como idiotas? E ele não estava falando mais como um grã-fino empolado do que como um Aríete pé-rapado?
Charada em cima de mistério.
Em situações assim, Malarkey, devido ao posto, teria o direito da primeira reação.
— Farley? Foi uma febre cerebral que atacou você? Idiotas, foi o que você disse? Idiotas, é?
Farley sacou um revólver de sua sacola de tintas, balançando-o casualmente como se fosse um item cotidiano.
— Idiotas, cretinos, tolos. Escolham o que quiserem. — O tatuador bateu na própria testa. — Escutem. Escolham. Escolham o que quiserem. Eu passei tanto tempo disfarçado que... vocês não fazem ideia. Às vezes não sei que dia da semana é.
Pooley estava tirando uma faca da bota disfarçadamente, por isso Farley atirou em seu coração, mal parando para respirar.
— Não foi uma perda, esse aí — disse Farley. — Não vai ficar chorando do lado de fora de Highgate.
O tiro ecoou nos caibros, esvaindo-se em cada balcão até se tornar um sussurro, e Pooley foi morto ali mesmo, sentado, a vida esvaindo dele juntamente ao fiapo de fumaça que subia do buraco no peito.
— Um revólver — disse Malarkey, casual em sua surpresa. — Nunca soube que você tivesse um revólver. É americano, é?
Desumano começou a soluçar, lágrimas fartas se juntando nas órbitas oculares profundas antes de derramar pelas bochechas.
— Não entendo.
Pela primeira vez o gigante imbecil não estava sozinho em sua condição mental. Só uma pessoa entendia o que estava acontecendo, e era a dona das balas. Malarkey ficou petrificado, não por medo, e sim por pura incredulidade. Otto Malarkey era um filho da guerra, nascido nos arredores do campo de batalha de Balaclava durante a Guerra da Crimeia. Tiros de mosquetes e canhões eram suas canções de ninar. Portanto não foi o trovão do revólver de Farley que o enraizou em sua poltrona, foi o choque pelo tatuador chamá-lo de idiota primeiro e depois atirar num dos seus soldados.
— Farley, homem, o que você está fazendo?
— O que eu estou fazendo? — perguntou Farley. — Você está vestido igual ao Elton John na corte de Luís XV e pergunta o que eu estou fazendo? Você está com uma peruca empoada, Otto.
Malarkey tirou a peruca do cocuruto.
— Eu tinha uma leve impressão de que isso era ridículo. Por que nenhum de vocês, seus patifes, me diz a verdade quando peço sua opinião? E o que é um Elton John, em nome de Deus?
Farley ignorou a pergunta, em vez disso falou junto do pulso, como se houvesse uma criaturinha escondida ali dentro.
— Estou com eles, coronel. Todos juntos, todo o círculo interno. E o garoto, como bônus. Não teremos outra oportunidade assim, senhor.
Ele aguardou um momento, inclinando a cabeça como se houvesse um espectro invisível falando em seu ouvido. E essa atitude de falar com o pulso e ouvir o ar agitou alguma coisa na memória de Riley.
Já vi isso antes, percebeu. Ou melhor, vou ver no futuro. Os colegas de Chevie no FBI não se comunicavam assim?
Antes que Riley pudesse desatar completamente o nó de charadas, Farley recebeu sua resposta.
— Sei de tudo isso, senhor. Mas sugiro fortemente adiantarmos nossa programação. O FBI mandou Savano e pode mandar mais alguém. Então ou agimos ou desmantelamos a placa de pouso da fenda espacial na Half Moon Street. — Ele esperou de novo, passeando pelo corredor entre as poltronas.
— Obrigado, senhor — disse, depois suspirou com um alívio que pareceu tirar dez anos de sua idade. — O senhor não vai se arrepender.
— Ficou maluquinho da cachola — sussurrou Malarkey. — Esse sujeito tá falando com o ar.
Riley tirou o pano da cabeça. Farley não estava maluco da cachola. Farley não era quem fingia ser. Estava agindo como um novo homem. A postura obediente havia sumido, bem como o ar de compaixão silencioso. Ombros que tinham passado longas horas curvados trabalhando com as agulhas estavam agora aprumados como aríetes. Seus olhos estavam brilhantes com um novo propósito.
Não. Não era um novo propósito — era um propósito revelado.
— Você não faz ideia de quanto tempo esperei por isso, rei Otto — disse Farley, apontando a arma especificamente para Malarkey. — Todos esses anos escutei suas baboseiras iludidas. Discursando como se você fosse o Escolhido. Bom, hoje você vai conhecer o seu deus e descobrir até que ponto você é escolhido. — Farley baixou a voz para as botas, numa imitação razoável do rei Otto. — “Atualize minha lista de preços; você é um patife decente, Farley.” “Mande pegar uma torta da Old Lady Numpty para mim, ela é supimpa, Farley.” “Acha que devo usar meu casaco de pele na cidade, Farley? Mas ele pinica demais meus ombros.” — Farley acrescentou um tremor à imitação, que de fato lembrava o rei quando estava com algumas doses a mais na pança.
Riley olhou tudo aquilo e pensou: preciso agir enquanto Farley está expondo seus ressentimentos, caso contrário ele pode se lembrar de que estou parado aqui.
Deve ter pensado alto demais, porque Farley girou a arma.
— Você aí, viajante do tempo. Desça para cá com o restante da turma.
Riley sabia que sair do palco sob as condições de Farley significaria a morte, por isso falou diretamente com Malarkey:
— Isto é um revólver, rei Otto. Restam cinco balas.
Farley resfolegou.
— Garoto esperto. Cinco balas. Uma para cada.
Mas Otto já havia levado tiros em numerosas ocasiões. Na verdade, havia uma bala de mosquete alojada em sua coxa, a qual ele gostava de coçar quando estava desocupado ou pensativo.
— É preciso mais de um tiro para matar um Malarkey, Judas — disse ele, e sua voz carregava um tom de ameaça agora que a surpresa havia passado.
Tal ideia não pareceu preocupar Farley. Na verdade, ele parecia feliz com o argumento.
— Eu disse que devíamos ter matado você imediatamente — disse ele. — Escrevi um relatório sobre isso.
Malarkey não entendeu, mas mesmo assim recebeu como um elogio.
— Bom, eu sou mesmo uma criatura perigosa. Mente e músculos entremeados numa pessoa só, por assim dizer.
— Você não, seu cretino cheio de ruge. O garoto. Ele é esperto demais.
O rei Otto se inclinou para frente em seu assento, segurando os braços da poltrona, pronto para agir.
— Não são necessários muitos espertos para contar até cinco, Farley. Você não vai pegar todos nós.
Enquanto isso, Riley estava sentindo uma leve culpa por ter mencionado a contagem de balas. Farley seria obrigado a apagar os Aríetes homicidas antes de virar o berro para o inofensivo garoto-mágico.
E serão necessários três tiros para conter Desumano, aposto.
Nesse ponto, Malarkey estaria no pescoço do tatuador, entregando a Riley o segundo de vantagem necessário para pular pelo alçapão.
Eu sumiria num piscar de olhos. O coelho branco não me pega.
Mas Farley não era idiota. Certamente a contagem de balas devia ter lhe ocorrido.
Sem dúvida.
Malarkey se levantou da poltrona devagar, assim como os homens que restavam.
— Vou enfiar este berro americano pela sua goela, Sr. Farley. E depois disso você vai estar prontinho para um enterro bem rapidinho num saco de farinha. A não ser que tenha mais balas.
Farley gargalhou, três latidos roucos, depois enfiou os dedos compridos de artista na bolsa de tintas. Quando emergiram, seguravam a coronha de algum implemento de aparência estranha, em formato de F, com um fino fio de luz apontando do cano.
Riley reconheceu aquilo de suas aventuras pela fenda de Smart.
Submetralhadora. Submetralhadora.
— Ah, eu tenho mais balas — disse Farley, e puxou o gatilho, espirrando morte supersônica pelo palco e pela plateia do teatro Orient.
CLIQUE, E NÃO BUM
Tentar rastrear as consequências da viagem no tempo é como um macaco sem polegares tentando remontar uma bomba explodida, à noite, usando luvas de palhaço.
— Professor Charles Smart
Londres. Nova Albion. 115 CB
Chevie Savano flagrou-se acordando pela segunda vez na mesma manhã, desta vez sofrendo uma dor de cabeça que parecia grande demais para ser contida pelo cérebro.
Um choque de pânico atravessou seus membros, mas ela lutou para impedir que eles entrassem em espasmo.
Finja que está morta, disse a si. Ganhe tempo.
Dedos fortes apertaram seus ombros e ela reconheceu o aperto sem nem precisar olhar.
Thundercats.
A Traidora fez isso, pensou, odiando aquele apertozinho maligno de carne. A traidora me assassinou.
Era verdade que Chevie não estava morta no momento, mas não poderia haver dúvida de que esse status teria vida curta.
Vida curta. Rá.
Você precisará atualizar seu status para Solteira e Falecida.
A Traidora de novo. Mais falas sem sentido. Atualizar o status? O que isso significava?
Chevie ficou sentada, imóvel feito um cadáver, contendo-se, tentando romper a coroa de dor em volta da cabeça com dedos mentais.
— Charles Smart — escutou uma voz dizer.
É a voz do hobbit.
O diretor Gunn.
— Ela fala sobre Charles Smart, e cá está ele na carta do coronel: professor Charles Smart. Você pode explicar isso?
Professor Smart. Era uma das pessoas de suas visões. A velha com cabelo de ninho de passarinho dissera que Smart a aguardava. Será que Smart era uma pessoa de verdade?
Alguém grunhiu uma negativa. Uma negativa do léxico de grunhidos de Clover Vallicose.
— É um mistério, diretor — disse Lunka Witmeyer, de trás de Chevie. — Mas uma ordem nos foi passada ao decorrer dos anos. Estava lacrada com o selo sagrado até esta manhã.
Vallicose interveio com a voz latejando como um fervor religioso.
— Uma ordem vinda do Abençoado Coronel em pessoa. Seria uma honra cumpri-la imediatamente.
— Não, irmã. Tem algo acontecendo aqui — disse o diretor. — Algo fora do âmbito de meu conhecimento e de minha influência. — Gunn remexeu nos objetos de sua mesa. — E não gosto de coisas fora desse círculo. Gosto de trazê-las para dentro antes de cuidar delas.
Vallicose arrastou os pés.
— Vai ignorar a ordem do Abençoado Coronel, diretor?
Houve um momento de silêncio tenso em que Chevie acreditou totalmente que Vallicose atiraria no próprio superior caso a próxima frase dele fosse uma blasfêmia.
— Claro que não, irmã. E não gosto do seu tom. Eu simplesmente preferiria ter mais informações antes de as... sanções... serem implementadas. Esse tal de Smart pode ter confederados.
— A ordem é bem específica, diretor. Tem de ser hoje.
— Sei disso, Vallicose. Sei ler. Não se esqueça de quem chamou você aqui.
Waldo Gunn era um homem poderoso, mas até mesmo ele precisaria pisar com cuidado nesta situação especial. Uma ordem com especificação de tempo dada pelo coronel não poderia ser ignorada, nem mesmo sofrer o mínimo desvio. Seus adversários políticos poderiam pendurá-lo na Praça do Carrasco ao amanhecer. Waldo Gunn poderia terminar como uma instalação homodérmica no próprio corredor da fama.
Chevie escutou os dedos de Gunn tamborilando no tampo da mesa.
— Muito bem. Vamos usar a garota para confrontar esse tal de Smart. Ver como ele reage. Deve haver alguma ligação entre os dois. Então, quando vocês tiverem estabelecido essa conexão, tirem uns dez minutos para interrogá-lo no local. Preciso saber se há algum perigo para o império do coronel.
Isto era astuto: plantar a ideia de que talvez o império estivesse correndo risco. Sem dúvida ninguém poderia questionar seu patriotismo.
Vallicose resmungou outra vez, mas foi um grunhido respeitoso, afirmativo. O plano estava estabelecido.
Uma das mãos nos ombros de Chevie se moveu para seu pescoço e apertou com força.
— Estazinha está fingindo — disse Lunka Witmeyer. — Está acordada e xeretando.
Chevie sentiu o olhar do diretor Gunn girando em sua direção. Sentiu o olhar dele queimando em sua testa, provocando um rubor nas bochechas.
— Abra os olhos, cadete Savano — disse Waldo Gunn —, e talvez você termine o dia viva.
Chevie obedeceu e se viu algemada a uma cadeira diante da mesa do diretor Gunn. Aparentemente as Thundercats não iriam se arriscar mais com sua habilidade de combate recém-descoberta.
Na mesa havia uma fotocópia de uma carteira de identidade civil. O homem da foto tinha 70 e poucos anos, cabelo grisalho revolto e expressão surpresa. Usava um jaleco branco e uma variedade de canetas presas nas lapelas, várias das quais vazavam padrões de tinta no jaleco.
Ele é real, pensou Chevie.
— Professor Charles Smart — disse o diretor Gunn, confirmando o que Chevie de algum modo já sabia. — Que trabalha na pesquisa de armas da instalação de Mayfair. Considerávamos Smart um de nossos cientistas mais brilhantes, mas agora temos fortes evidências de que ele na verdade é um espião jax.
Chevie manteve o rosto imóvel. A emoção só serviria para condená-la.
— Talvez vocês estejam trabalhando juntos — sugeriu Gunn.
— Não, diretor — disse Chevie. — Nunca me encontrei com esse homem, nem me comuniquei com ele.
Pelo menos é o que acho.
— Então você não é uma espiã jax?
Chevie ajeitou os ombros, apesar da pressão das mãos fortes segurando-os.
— Claro que não, diretor. Sou uma cidadã leal. Amo a Deus e ao império, senhor.
Gunn assentiu, avaliando as palavras.
— Há um modo de você se redimir, provar para mim que não é espiã, e talvez até mesmo receber aprovação para um exame cerebral.
— Qualquer coisa, diretor — disse Chevie, séria. — Farei qualquer coisa.
Gunn fez que sim com a cabeça, aparentemente aprovando. Abriu uma gaveta e pegou uma pistola-padrão. Colocou-a na mesa, onde a peça se apresentou atarracada, feia e preta.
— Smart é um espião jax e precisa ser executado. Preciso de um verdadeiro patriota para puxar o gatilho. Você é patriota, cadete Savano?
Chevie sentiu o corpo se retesar. Queria se livrar das mãos que a agarravam e fugir da sala para algum tipo de mundo onde os adolescentes não precisassem responder àquele tipo de pergunta.
O diretor Waldo Gunn se inclinou para frente, de modo que sua barba roçou no tampo da mesa.
— E então, cadete Savano, você é patriota?
Chevie confirmou com a cabeça.
— Sim, diretor. Sou patriota. O espião jax deve ser executado.
Ela era patriota, não era?
Pelo menos a maior parte dela.
Mas não a Chevie Traidora.
A Chevie Traidora era uma anarquista. E qual das Chevron Savano estaria com o dedo no gatilho quando chegasse a hora?
De modo que agora a cadete Savano estava num automóvel Carruagem de Box que ronronava pelo centro de Londres. Dizia-se que a área central da cidade costumava ter um ar de parque de diversões, atulhada de turistas e gente se divertindo de um amanhecer a outro. Diziam que o Ministério da Defesa já havia sido um teatro onde as estrelas do palco realizavam seu ofício de fingimento. O Palácio das Sanções, um restaurante enorme que vendia carne a quem pudesse pagar; só era preciso a pessoa sentar-se e fazer um pedido. Até os estrangeiros eram bem-vindos, diziam, até os pagãos.
DeeDee Woollen contara a Chevie que o livro de seu avô mostrava fotos de gente jovem em salões de dança de Londres sem se preocupar com o toque de recolher ou vestimentas recatadas.
DeeDee ia acabar se encrencando mesmo, por espalhar histórias assim.
Baleada na cabeça por descrever as fotos do vovô, disse a Chevie Traidora. Parece justo.
Talvez Londres já tivesse sido o centro de comemorações frívolas, mas agora era o centro do império. O coronel Box havia saído das catacumbas para reivindicar a Nova Albion, portanto era justo que o lugar servisse como sistema nervoso central de todo o governo do império. As calçadas ainda estavam escorregadias da lavagem matinal e exércitos de drones do serviço público se apressavam, refletidos nas pedras reluzentes da pavimentação, ansiosos para chegar aos cubículos dos escritórios antes dos serviços da manhã.
Chevie costumava se perguntar como seria viver numa cidade feita de diversidade, onde tudo não tinha um tom cinza de mesmice.
Califórnia. Um dia vou ver o sol nascer na praia. Nem mesmo o partido pode controlar o oceano.
Não aposte nisso, garota. Era a Chevie Traidora outra vez. Eles controlam tudo o mais nesse mundo maluco. Até o que você está pensando.
Clover Vallicose estava no banco da frente, ao volante. Ela zapeou por uma lista de canções boxitas no aparelho de som até encontrar a música “Espião Zodety”, do músico autorizado D Bob Jones. A letra contava a história do espião boxita americano Woody Zodety, que resistiu a 48 horas de tortura jax antes de ser resgatado. A famosa canção antiga tinha um refrão de gritos, que eram os uivos verdadeiros de dor de Zodety, tirados de uma gravação do interrogatório.
Vallicose grunhia junto aos berros, batucando no volante com a mão enluvada.
— Adoro D Bob — disse ela com um tremor na voz. — Deus fala através dele — berrou ela, olhando para trás. — Já viu aquele vídeo, irmã Witmeyer? A sessão de 48 horas de tortura está na íntegra na Boxnet. Zodety não disse nadinha àqueles animais Jax.
— Vi, irmã Clover. É um negócio inspirador.
Chevie tinha a sensação de que talvez Witmeyer não fosse tão devota quanto a parceira, mas concordava em nome da política.
Witmeyer apertou um botão no braço da poltrona e as janelas escureceram até Chevie só enxergar o próprio reflexo preocupado espiando-a de volta com olhos castanhos arregalados.
— Só entre nous — disse Witmeyer —, onde você aprendeu aqueles movimentos de combate?
Chevie ficou surpresa ao ouvir a Thundercat usando uma expressão em francês. Vindas de qualquer outra boca, aquelas duas palavras poderiam ser consideradas uma traição. Uma de suas colegas de turma, uma garota arrogante de Londres, fora mandada para a fábrica de Dublin porque havia descrito a sopa grudenta da cantina como um apéritif.
Talvez a irmã Witmeyer estivesse colocando uma expressão jax na conversa como uma tentativa de fazê-la tropeçar.
Chevie respondeu:
— Aquilo não foram movimentos, irmã. Eu entrei em pânico e saí chutando.
— Acredite, pequenina, foram movimentos. Já estive em lutas suficientes para saber a diferença entre pânico e treinamento.
— Só posso pedir desculpas, irmã. Não vai acontecer de novo.
Witmeyer deu um risinho.
— Não vai mesmo, irmãzinha. Não vai.
Isso é meio sinistro, “irmãzinha”, disse a Chevie Traidora. Eu tomaria cuidado se fosse você. Espere um minuto, eu sou você, só que menos idiota.
Chevie mordeu o lábio para o caso de um gemido escapar.
A viagem até Mayfair demoraria geralmente uns trinta minutos na hora do rush matinal, mas os veículos de serviço saíam da frente da proa alta e curva do luxuoso sedã blindado assim que os motoristas o viam no retrovisor. Portanto, apenas dez minutos depois, a irmã Vallicose estava estacionando diante da casa de Charles Smart, uma construção ensanduichada entre dois prédios de apartamento monolíticos.
Sei como essa casa se sente, pensou Chevie.
— Veja só isso — disse Witmeyer. — Uma casa legítima. Esse tal de Smart deve ser especial para merecer uma casa no centro da cidade. Eu moro num armário, e esse cientista que provavelmente nunca matou uma única pessoa por Box está morando numa casa.
Um professor com uma casa era algo incomum, já que a maioria dos cidadãos se espremiam em megablocos compostos de apartamentos utilitários e idênticos onde mal havia espaço para se ter um gato — se a posse de um gato fosse legal dentro dos limites da Grande Londres.
— O cidadão Smart pode já ter saído para o trabalho — disse Chevie, esperando um adiamento da pena.
Witmeyer abriu a porta.
— Nós ligamos antes. Apesar de não saber disso, Smart está esperando que a gente chegue para executá-lo. — Ela entregou a arma-padrão a Chevie. — Ou será que devo dizer para você executá-lo, cadete?
Chevie pegou a pistola, que pareceu um bloco frio de culpa em sua mão.
Um bloco frio de culpa, disse a Chevie Traidora. Essa linha temporal é tão sorumbática!
Chevie ficou surpresa ao ver que suas pernas a haviam levado até a porta de Charles Smart, mas levaram — um pouco trêmulas, talvez, embora não tenham desabado. Fechou o punho para bater, mas, antes que conseguisse fazê-lo, a porta foi aberta e um velho apareceu.
— Apenas diga — pediu o velho com sotaque escocês. — Ele morreu?
Chevie ficou pasmada. Morreu? Quem morreu?
— Morreu? Não entendo, cidadão.
— Recebi um telefonema de uma Thundercat. Ela disse: “Fique em casa. Não vá trabalhar.” Então meu garoto morreu. Foi morto na França?
Félix, sussurrou a Chevie Traidora. O nome do filho dele é Félix.
— Félix — disse ela em voz alta, o que foi um erro.
O velho girou como se tivesse recebido um soco e apertou o crânio com as mãos.
— Eu sabia! — gritou ele. — Sabia. Vocês estão aqui por causa do Félix. Então o que é? Foi morto ou capturado?
Witmeyer se curvou, sussurrando ao ouvido de Chevie:
— Você sabe sobre o filho dele. Que curioso!
Eu não sei, quis protestar Chevie. A Traidora sabe.
Mas isso não fazia sentido. Como a Traidora podia saber de coisas que eram verdadeiras, porém alheias à sua experiência?
Talvez eu tenha o dom da segunda visão. Talvez eu seja paranormal.
Havia alguma esperança em tal pensamento. Chevie sabia que as Thundercats tinham uma divisão paranormal, e claro que isso significava que ela não estava morrendo.
— Não estamos aqui por causa do seu filho — disse Chevie, tocando o cotovelo do velho. — É outro assunto.
Charles Smart respirou fundo muitas vezes, acalmando-se, voltando à terra, vindo do inferno do sofrimento de pai.
— Félix está em segurança. Graças a Deus. Ah, graças a Deus. Outro assunto. Que outro assunto?
— Será que podemos entrar? Não seria problema?
Antes que Smart pudesse responder, Clover Vallicose rosnou e passou por Chevie e Smart, entrando no corredor.
— “Não seria problema?” — disse ela em tom de zombaria. — Não é assim que fazemos as coisas, Savano. Não pedimos permissão.
Estavam todos sentados na cozinha de Smart, atulhada de equipamentos de laboratório. Placas de circuito empilhadas na mesa e metros de fios encapados se entrecruzavam no piso e no teto. Fileiras de interruptores estavam aparafusados nas paredes e conduítes passavam por buracos no reboco. Lâmpadas coloridas piscavam na frigideira e um bloco de gel laranja e reluzente borbulhava preguiçosamente no fogão, como alguma criatura marinha sedada. Chaves de fenda, furadeiras manuais, cortadores e parafusos variados cobriam a bancada da pia que estava tomada por uma névoa esverdeada e que parecia relutante em sair da cuba. Chevie pensou ter visto uma barbatana rompendo a superfície da névoa momentaneamente, mas ninguém mais pareceu notar, por isso ela atribuiu a coisa à Traidora.
— Belo lugar este — disse Witmeyer, espanando alguns capacitores de cima da mesa. — Geek chique.
Nesse ponto, Charles Smart tinha recuperado a compostura e havia lhe ocorrido que, se não estavam ali por causa do seu filho, as Thundercats estavam ali por sua causa. Sentou-se virado para as visitantes, aparentemente calmo, mas por dentro mal conseguia controlar o pânico que borbulhava sob a pele. Uma visita do esquadrão de capangas nunca podia ser coisa boa.
— A Sra. Smart morreu há muito tempo, irmã — disse ele. — Sem ela, deixei o lugar ficar meio desarrumado.
— Que bagulhada é essa? — perguntou Witmeyer. — Você está construindo alguma coisa?
Pelo modo como Witmeyer disse construindo alguma coisa, ficou claro que Smart não deveria estar construindo nada.
Smart pensou antes de responder. Era prudente cogitar qualquer interpretação possível do que a pessoa ia dizer quando lidava com Thundercats. Um escorregão verbal podia ser o último erro cometido na vida.
— Estou trabalhando em vários projetos aprovados, no meu tempo livre. Instrumentos que economizam mão de obra, principalmente, para ajudar no esforço de guerra na França e aqui. Minha última invenção é um guincho que permite que pesos enormes sejam manipulados por apenas uma pessoa. Com meu guincho, um único Thundercat poderia liberar todo um engavetamento de estrada em minutos.
Witmeyer ficou impressionada.
— Isso tem claras aplicações militares. Já vi tanques atolados demorarem meio dia para serem tirados da lama.
Smart bateu palmas.
— Exatamente! Exatamente o que eu disse ao meu supervisor, mas ele não quis aprovar mais verbas.
Witmeyer bateu na própria têmpora, fazendo uma anotação mental.
— Talvez eu possa dar uma palavrinha.
Chevie não sabia como Witmeyer conseguia dar falsas esperanças àquele pobre homem quando estavam a ponto de atirar nele. Quando ela estava a ponto de atirar nele. De repente a arma, que a essa altura sentia como um bloco de gelo no bolso do casaco, pareceu queimar sua pele.
Clover Vallicose não tinha paciência para conversa-fiada.
— A cadete Savano parece conhecer seu filho. O senhor pode explicar isso?
— Não — respondeu o professor Smart. — Eu estava esperando que ela explicasse. É verdade, cadete? Você conhece meu garoto? Se bem que ele não é mais garoto. Já tem mais de 40 anos e ainda não se casou. “Félix”, eu disse a ele. “Você precisa baixar o padrão. Você não é essa coisa toda, se é que você me entende...”
Vallicose bateu na mesa, espalhando fusíveis e placas de memória.
— Por que está falando bobagem, cidadão? Estamos aqui em nome do Abençoado Coronel e sinto que você não está nos levando a sério.
Smart empalideceu e Chevie sentiu uma afinidade com o velho. Os dois estavam afundando no mesmo barco.
— É, claro — disse Smart. — Vocês não querem saber dos problemas românticos do meu filho. Por que deveriam se preocupar com isso, irmãs?
— É verdade, não nos preocupamos.
Smart pigarreou.
— Nesse caso talvez pudéssemos ir ao motivo de sua visita. O que exatamente as trouxe aqui?
Vallicose assentiu para sua parceira e grunhiu.
O grunhido se traduziu como: Assuma, parceira. Explicar coisas é a sua área.
Witmeyer tirou uma lata de fumo de mascar do bolso e demorou-se apertando um chumaço e enfiando-o sob o lábio inferior.
— É o seguinte, cidadão. Temos uma ordem, passada pelo coronel Box em pessoa, para encerrar seu ciclo de vida. Ele foi muito específico em relação ao horário e à data, mas não quanto ao método. Isso foi deixado por nossa conta.
Eu sou o método, pensou Chevie. Vou me tornar instrumento da morte. Uma assassina que mata sob ordens.
Chevie sempre soubera que esse dia iria chegar. Afinal de contas, não era para isso que estava sendo treinada? Mas agora que o dia havia chegado, ela estava longe de ter certeza de sua capacidade de ser uma boxita leal e assassinar esse estranho que, de algum modo, lhe era familiar.
Witmeyer deu um tempo para a bomba ser absorvida, mastigando o fumo ruidosamente e cuspindo uma longa tira de sumo marrom na direção da pia de Smart.
— Você não deveria cuspir — disse Smart distraidamente. — Acredite ou não, este é um ambiente estéril.
O professor não parecia tão perplexo quanto deveria. Não havia uma incredulidade boquiaberta nem uma objeção furiosa. Smart simplesmente murmurou e passou a ponta do dedo no tampo da mesa, fazendo um ziguezague complexo.
— Então eu consegui — murmurou ele. — Devo ter conseguido. Incrível.
Witmeyer estalou os dedos.
— Ainda está conosco, professor? Poderia compartilhar o que o senhor deve ter conseguido?
Smart levantou a cabeça, mas seus olhos estavam desfocados.
— O único modo pelo qual o coronel Box poderia saber a meu respeito seria se tivéssemos nos conhecido, ou se ele conhecesse meu trabalho. — Um pensamento pareceu dar-lhe um tapa no rosto. — Ai, meu Deus. Ai, não. Todos aqueles mísseis, aqueles mísseis futuristas. A culpa é minha. Eu abri a fenda espacial. Só pode ter sido eu.
O minúsculo reservatório de paciência de Clover Vallicose estava se esvaindo.
— Cidadão, fale com clareza. Que mísseis? O senhor está construindo mísseis para os Jax?
Smart voltou para a cozinha.
— Jax? O quê? Não, claro que não. Você não vê? — Ele balançou os braços loucamente. — Isto. Tudo isto. Fui eu que fiz. Deve ter sido. O coronel só teria conseguido construir aquelas armas se eu tivesse aberto a fenda espacial para ele. Eu permiti este império abandonado por Deus.
Chevie sentiu o coração acelerar, batucando palpavelmente no peito.
É, disse a Chevie Traidora. É. É isso. Agora estamos chegando a algum lugar.
Smart estava de pé, passando as mãos pelos cabelos brancos e ralos, alisando os fios compridos para trás, por cima do crânio reluzente.
— Como teria acontecido? Eu construí a máquina em outra linha temporal e Box a acessou. Ele voltou com sua equipe e dominou o país. Com seu conhecimento, seria brincadeira de criança. Maluco? Se estou maluco? Não. Deve ser. — Smart abriu uma porta do armário e apertou uma série de botões escondidos lá dentro. — E daí? Box é imperador de tudo que ele supervisiona. A última coisa que Box deseja é alguém voltando e tirando tudo dele, por isso a ordem para eu ser morto. Mas não vai me executar na infância. Ele precisa esperar até que o mundo seja seu, além do tamanho da fenda especial, para o caso de ele precisar de uma rota de fuga.
Smart andou de um lado a outro na cozinha, virando interruptores em placas de circuito que tinham parecido descartadas. Seus olhos estavam loucos; o cabelo se projetava do crânio num halo elétrico, não importando o quanto ele tentasse abaixá-lo.
— Vocês não veem? — gritou. — Eu fiz isso. Tudo isso. E agora devo desfazer.
Vallicose sacou sua arma.
— Você fala através de charadas, espião. E charadas blasfemas, ainda por cima. Fique parado, seu maldito, e permita que nossa jovem cadete cumpra com as ordens.
Agora a cozinha zumbia feito uma geladeira gigantesca e Witmeyer sentia a situação escapando ao seu controle.
— Muito bem, cidadão. Você deu seu surto. É natural; as pessoas reagem de modos diferentes. Agora diga de forma clara e simples o que você está balbuciando, e depois a garota aqui vai matá-lo rapidinho. Não podemos ser mais justas do que isso.
Smart a ignorou.
— Ainda posso impedir Box. Sem aqueles mísseis, ele não é nada.
Vallicose ficou ofendida.
— Box? Você está falando do Abençoado Coronel como se fosse do mesmo nível que ele? — Ela se levantou de repente, empurrando a cadeira para trás. — De joelhos, cidadão. E reze a Deus pelo purgatório, em vez de o inferno.
Witmeyer revirou os olhos. Lá vinham o fogo e o enxofre.
— Cadete Savano, isso é ridículo. Cumpra seu dever e ponha um fim nesta loucura.
Não há fim para a loucura, pensou Chevie. Não há um fim.
— Você me ouviu, Savano. Mostre que é patriota.
Smart é a chave, disse a Chevie Traidora. Ele é a saída.
— Cale a boca! — disse Chevie, e sacou sua arma. — Cale a boca.
Smart se comportava como se estivesse sozinho, recitando equações compridas, virando interruptores e testando o vento com o dedo.
— Deve funcionar. Passei anos construindo isso. Os cálculos são bons.
Chevie apontou a arma para ele. Que opção havia?
— Parado — ordenou. — Pare de falar.
— Boa garota — disse Witmeyer. — Isso vai acabar logo.
— Atire! — gritou Vallicose. — Por Box e pelo império, atire!
Não, disse a Chevie Traidora. Você conhece este homem. Pense. Lembre.
Uma visão saltou na cabeça de Chevie. Smart, mas com um braço de macaco.
Agora não, implorou ela à Traidora. Só me deixe acabar com isso.
Ela acompanhou Smart com o cano da arma. Um alvo móvel.
— Por favor, professor.
Por favor, professor, o quê? Fique parado e leve o tiro como um bom amigo?
— A ponte está constante — disse Charles Smart, mexendo nos mostradores do fogão. — Devo chegar a tempo para impedir Box.
— Mate o pagão! — gritou Vallicose. — Mate-o!
Professor Charles Smart é o nome dele, e não pagão. E o filho dele, Félix. Agente Laranja. Lembre, Chevron.
Chevie apontou a arma para a própria cabeça.
— Saia de mim! Me deixe!
— Ora, ora — disse Witmeyer, adorando. — Isto é interessante.
Agora todo o cômodo vibrava. O que quer que Smart estivesse fazendo, era muito mais do que uma omelete.
Você conhece isso, disse a Chevie Traidora. Você sabe exatamente o que está acontecendo aqui.
— Mate o pagão! — berrou Clover Vallicose.
Não. Ela não podia. Chevie não podia acreditar que o Abençoado Coronel quisesse que ela assassinasse velhinhos.
Sua cabeça latejava. Marteladas por trás dos olhos. A Traidora estava explodindo.
— Não! — gritou ela. — Não vou matá-lo! Não!
Afastou o aço frio da têmpora e o virou para Witmeyer.
— Levante as mãos.
Vallicose apontou um dedo indignado para Chevie.
— Está vendo agora? Eu estava certa. Não estava, irmã?
— Estava, irmã, mas nós tínhamos ordens. E ela não passa de uma criança.
Witmeyer levantou as mãos, mas de um jeito zombeteiro, balançando os dedos como se estivesse aterrorizada, sendo que suas feições diziam que não estava nem um pouco.
— Não atire em mim, cadete. Sou sua amiga, de verdade.
As paredes começaram a se flexionar ligeiramente e Vallicose já tinha visto mais do que o bastante para se convencer de que algo traiçoeiro e possivelmente herético estava acontecendo ali.
— Vou matar o professor agora — declarou. — Podemos investigar depois.
— Como sempre — disse Witmeyer.
Chevie estava confusa. Elas não viam a arma? As Thundercats achavam que eram imortais?
— Fiquem onde estão! — pediu ela, meio desejando que a Traidora assumisse agora e ela se tornasse uma supersoldado. — Deixem o professor em paz.
Vallicose ignorou Chevie completamente, indo depressa até Smart, que tinha aberto a lavadora de pratos e estava rearrumando os pratos lá dentro. A cada prato mexido, a luz no interior da cozinha mudava de cor.
Witmeyer ficou parada, mantendo as mãos levantadas.
— Você não acha, cadete, que iríamos colocar uma arma carregada nas mãos de uma traidora, não é?
Elas estavam me testando, pensou Chevie. E eu fracassei.
Só para garantir, mirou a perna de Witmeyer e puxou o gatilho. Não houve estouro, só o estalo oco de um tambor numa câmara vazia.
Witmeyer suspirou.
— Clique, e não Bum. Isso quer dizer, cadete, que seu tempo acabou.
De repente as paredes começaram a se sacudir.
— Isso — disse o professor Smart. — Está funcionando.
O que quer que estivesse funcionando, Vallicose não gostou daquilo.
— Em nome do Abençoado Coronel, desligue esta balbúrdia.
Smart cruzou as pernas e sentou-se em posição de lótus.
— Não pode ser desligado. Agora, não. Todos vamos partir numa viagem, irmãs. Será mais fácil se relaxarem.
— Não haverá viagem para você, traidor — disse Clover Vallicose. Em seguida, tirou a arma de um coldre à cintura e disparou. Smart foi acertado no peito e tombou como se tivesse sido puxado para trás. Um sangue espumoso saiu do ferimento, saturando a parte superior do seu corpo em segundos. Na mente de Chevie, não houve dúvida de que aquilo só podia ser um ferimento fatal.
— Veja bem — disse Vallicose. — O Abençoado Coronel ordenou que duas pessoas fossem mortas hoje. Uma era o Smart.
E eu era a outra, percebeu Chevie. Elas iriam me matar de qualquer jeito.
Vallicose enfiou a arma no coldre.
— Atire na criança e acabe logo com isso, irmã Lunka. Tem algo de errado neste lugar.
— Só vou enfiar a mão no bolso — disse Witmeyer, cujas mãos continuavam acima da cabeça como se ela fosse uma prisioneira. — E sacar uma arma para atirar em você. Gostaria sinceramente que isso não fosse necessário. Mas ordens são ordens, como dizem.
Se já houve uma boa hora para uma casa entrar em convulsão, foi essa. A casa de Smart se sacudiu como se estivesse nas mãos de um gigante furioso, fazendo os ocupantes ricochetearem nas paredes. Chevie foi parar em cima do professor agonizante. O sangue dele parecia puxá-la, como tentáculos vermelhos.
— Desculpe — disse ela enquanto a cozinha se dissolvia ao redor, revelando que não estavam mais em Londres, e sim em outra dimensão composta de matéria que parecia sólida, líquida e gasosa, mas também consciente, de algum modo. Espaço Inteligente.
— Espaço Inteligente — disse Charles Smart, como se pudesse ouvir os pensamentos de Chevie. — E meu nome é Smart, que significa Inteligente. Sacou?
O professor deu um risinho, o sangue borbulhando pelos dentes.
Havia algo familiar naquela situação maluca, mas mesmo assim Chevie não entendia. Estava hipnoticamente perto, mas não o suficiente, e ela perseguia a ideia como uma pena de gaivota pela praia de Malibu numa manhã de ventania.
Relaxe, disse a Chevie Traidora. Estamos no túnel agora. Minha hora está chegando.
A Traidora está chegando. Fantástico.
Chevie se lembrou das Thundercats. Rolou de cima de Smart e olhou ao redor, procurando-as. Witmeyer estava praticamente dobrada ao meio, como um casaco descartado, enfiada num canto do teto que antes era chão, flutuando no espaço inteligente. Vallicose estava totalmente ereta, os braços acima da cabeça como uma mergulhadora. Havia lágrimas em seu rosto, mas eram lágrimas de júbilo fanático.
— Estou pronta, Senhor! — gritou ela. — Leve-me para os seus braços. Estou pronta.
Parecia que as Thundercats estavam ocupadas. Chevie deveria ver se havia algo que pudesse fazer pelo velho agonizante.
A respiração do professor estava entrecortada e irregular.
— A chave — disse ele, certamente suas últimas palavras.
Ele estava batendo nela debilmente. Não, não estava batendo, estava lhe entregando alguma coisa. Um plástico pendente.
— E a mesa — sussurrou Smart. — Deite-se na mesa. Ela vai ancorar você.
— Certo, professor. Vou me deitar na mesa. — Era maluquice, mas não era a ordem mais maluca que Chevie já havia recebido hoje, nem de longe.
Com a missão cumprida, os olhos de Smart se reviraram, um longo suspiro estremeceu em sua goela e ele se foi.
De novo, pensou a Chevie Traidora. Ele já morreu na fenda espacial antes. Lembra-se?
E ela se lembrava de alguma coisa. Parecia um déjà vu ou talvez um fragmento de sonho.
Não se preocupe, disse a Chevie Traidora. Vou chegar a qualquer segundo. Tudo será revelado.
Chevie apertou a chave com força e uma luz alaranjada reluziu através de sua pele, que tinha ficado translúcida.
Pele translúcida. Raramente é uma coisa positiva.
A mesa! Chevie se jogou com braços e pernas abertos sobre a mesa da cozinha e esperou que, qualquer que fosse o significado de ancorar naquela situação, fosse bom.
Não conseguia entender por que não estava apavorada.
Estou com medo, sim, mas não apavorada.
Coberta de sangue no meio de algum evento sobrenatural — e, no entanto, apesar de ter ficado abalada até o âmago um minuto antes, Chevie sentia-se como se estivesse descobrindo um cerne de aço.
Sou eu. Estou indo.
A voz da Traidora parecia mais alta, parte do mundo real.
Não, isso estava errado. Ela era parte do mundo da Traidora.
Leve-me, Deus. Leve-me para o seu seio.
Isso era Clover Vallicose pensando alto.
Você não se livrou de nós, Chevron Savano. Temos uma missão.
E ali estava Witmeyer — viva, então. Pensando no que desejava.
O brilho alaranjado se espalhou até preencher o espaço dentro e fora da cabeça de Chevie.
Talvez eu tenha encolhido.
Um vento uivou ao redor, jogando Chevie como um graveto num furacão, em seguida a luz alaranjada explodiu, erguendo Chevie e a mesa na cabeça de um gêiser gigantesco. Talvez líquido, talvez imaginário, mas não havia dor, só o bálsamo da impotência.
O que quer que esteja acontecendo vai acontecer, independentemente do que eu faça.
Ela viu Smart caindo ao longe, logo abaixo, e sentiu-se lançada para além de tudo que conhecia.
A Chevie Traidora fez tsc-tsc. Não há nada familiar em tudo isso? Você não sonhou com uma luz laranja?
Era verdade. Chevie tinha acordado várias vezes nas últimas semanas com uma sensação de laranjice rapidamente volátil, sobre o qual parecera idiota pensar, mas que agora talvez não fosse tão idiota.
De repente, o gêiser se exauriu e Chevie se flagrou suspensa por algo num mar de alguma coisa, e talvez essa fosse a melhor definição, já que ela jamais conseguiria descrever aquilo.
Essa coisa não tem como ficar mais esquisita, pensou. Uma ideia que permaneceu verdadeira por um ou dois instantes, até que uma segunda versão de si mesma apareceu à sua frente. Definitivamente era ela, só que diferente. Mais dura. Com mais quilometragem de combate.
Chevie Traidora, pensou, e o pensamento fugiu de sua cabeça.
Sua duplicata estendeu os braços, segurando o crânio de Chevie com as duas mãos.
— Vou abrir sua mente — disse ela. — Pode ser que não vá doer.
Mas provavelmente vai doer, pensou Chevie.
E estava certa.
ZAP, E ACABOU
A viagem no tempo causa o caos, e o caos não segue regras. Por isso é chamado de caos, seu panaca.
— Professor Charles Smart
Teatro Orient. Holborn. Londres. 1899
Anton Farley atirando contra seu senhor e benfeitor com algum tipo de arma futurística de múltiplos disparos? Bom, era mais do que um cérebro poderia compreender. O humilde e gentil Farley? Farley, o tatuador, que se dispunha a ser motivo de piadas? Farley, o complacente, que aceitava sem reclamar as provocações dos Aríetes, que frequentemente sabiam ser bem cruéis, em especial quando a birita assumia o controle de suas línguas?
Malarkey tinha uma vaga lembrança de uma noite de bebedeira na Toca dos Carneiros quando Pooley se referira a Anton Farley como aquele caduco simpolório com seu saco de cores.
Malarkey não tinha certeza se a palavra simpolório era um soldado no exército da língua da rainha, mas passava o recado. Farley mal piscara.
A coisa andou fervendo, pensava agora o rei dos Aríetes. Todas as desfeitas estavam virando pústulas em seu velho coração nodoso.
Mesmo assim, as desfeitas purulentas não eram capazes de explicar a demonstração súbita de boa pontaria, isso sem mencionar a arma fantástica que era brandida no momento com um efeito devastador por parte do tatuador ressentido.
Num piscar de olhos, desde que Farley havia feito sua arma cuspir balas, Jeeves e Noble foram derrubados pela saraivada mortífera. O pobre Noble foi praticamente cortado ao meio.
No entanto, a arma não fazia mais barulho do que um tuberculoso tossindo, pensava Malarkey agora, nas sombras do fosso da orquestra para onde havia se jogado, importando-se pouquíssimo com a profundidade do buraco.
Mesmo que fosse o poço do inferno, eu teria saltado, percebeu ele.
Na verdade, agora ele se importava com a profundidade do fosso. Otto preferiria um pouquinho mais de profundidade e um bocado a mais de sombra.
Estou preso feito um peixe num barril aqui embaixo. Um cego com uma catapulta conseguiria me acertar.
Malarkey sentiu uma lágrima crescer num olho. Imagine. O grande rei Otto recebendo os papéis de baixa das mãos de um tatuador de 60 anos. Não parece certo. Sempre imaginei que seria necessário uma legião de policiais para me arrastar para a cova, ou talvez um leão em fuga do zoológico. No mínimo um punhado de capangas traiçoeiros me apagando tal como os camaradas de Júlio César fizeram com ele. Mas não. Uma porcaria de um misturador de tintas.
Era um jeito ignóbil de morrer, e Malarkey sempre se preocupara com a posteridade de modo incomum.
Farley pode inventar qualquer lorota, percebeu. Pode jurar que morri choramingando feito um cachorrinho num saco. Pode dizer que Otto Malarkey sujou as calças.
O orgulho de Otto o incitou a gritar para Farley, oferecendo-se para aumentar a aposta, mas seu senso de soldado alertou para manter a matraca fechada, já que era possível que Farley não tivesse toda a certeza de para onde seu rei havia desaparecido.
Cadê meu irmão?, pensou Malarkey, nem por um segundo cogitando a morte de Barnabus. Certa vez, Desumano estivera no caminho de um bacamarte chinês, durante uma escaramuça atrás de um antro de ópio, e os tiros a esmo só fizeram deixá-lo com raiva.
A arma de Farley falou de novo, lançando um jato de projéteis sibilantes pelo quadrado de luz acima da cabeça de Malarkey.
Em quem o tatuador está mirando?
A pergunta muda foi respondida assim que se deu um estrondo enorme, seguido pelo surgimento de um antebraço gigantesco sobre a borda do fosso da orquestra. Sangue escorria ao longo do braço, acumulando na palma da mão do sujeito, e foi liberado em quatro pingos espiralando entre dedos outrora poderosos.
Malarkey viu o líquido viscoso empoçar entre suas botas e percebeu que qualquer homem que permitisse tamanho volume de sangue escapar do corpo já devia estar apertando as mãos de São Pedro.
Então Otto Malarkey soube que o invencível Barnabus Malarkey havia travado sua última batalha.
O rei Otto jogou a prudência ao vento e uivou para os deuses.
— Farley. Faaaarley!
Uma voz veio flutuando da primeira fila de poltronas. Trovejando e ecoando, descendo e condescendendo.
— Ah, Sua Majestade. Eu estava procurando por você, já que desejo aumentar sua última tatuagem. Alguns toques de carmim, talvez.
Um facho estreito de luz vermelha atravessou a boca do fosso. Transformou-se num ponto na parede do fosso, depois começou uma descida lenta e trêmula em direção ao canto onde Otto Malarkey estava sentado, em calafrios de fúria e sofrimento.
Apenas um minuto antes Riley tinha visto a situação se deteriorar, indo de agourenta para mortal. Tinha previsto que Farley seria obrigado a concentrar os esforços nos guerreiros Aríetes, e tal previsão seria provada imediatamente se Farley não fosse um oficial do serviço secreto com armas múltiplas, algumas do fim do século XX. Ele apontou sua submetralhadora Steyr contra os Aríetes ao mesmo tempo em que mantinha o revólver Colt apontado para Riley.
Inferno e danação, pensou Riley. Dois canos.
Ainda que a taxa de mortalidade fosse alta na Londres vitoriana, o assassinato era raro, e as armas eram incomuns entre os civis, até mesmo na Família. Um vilão em posse de várias armas era de fato excepcional. Albert Garrick, que fora adepto das facas durante toda a vida, dizia que as armas de fogo eram como cães vira-latas: aceitavam a comida e frequentemente não produziam os latidos quando necessário — os padrões pouco confiáveis de manufatura e o clima úmido de Londres garantiam isso, mas o brilho dos canos de Farley falavam de polimentos noturnos com amor e óleo, e Riley estaria propenso a apostar que elas latiam sob ordem.
Desta vez a previsão de Riley foi totalmente correta. A submetralhadora de Farley cuspiu um jato de balas no meio dos Aríetes, balas que rasgaram carne e despedaçaram ossos. Jeeves e Noble caíram numa névoa de sangue e ficou óbvio que nunca mais se levantariam de novo. Otto Malarkey e seu irmão, dois pugilistas veteranos, mergulharam para qualquer cobertura que imaginavam ser capaz de protegê-los contra aquela arma nova e arrasadora. Otto rolou para o fosso da orquestra com uma graça surpreendente para um sujeito tão imenso, e Desumano mergulhou no corredor, esperando atravessar uma parede; aquela não seria nem a primeira nem a segunda travessia de parede a salvar seu couro. Mas as paredes do Orient eram de tijolo sólido e estavam em boas condições. Não haveria como atravessar para o mundo lá fora, nem mesmo com uma cachola tão dura quanto a de Desumano Malarkey.
Riley mal teve uma folguinha antes de Farley, com fria deliberação, lhe lançar um olhar cheio de mira e então puxar o gatilho do Colt, acompanhando o tiro com um comentário falastrão:
— Por que não pega essa, garoto?
Estava se referindo ao famoso truque de pegar a bala, anunciado em giz na calçada do lado de fora.
Farley é mesmo um sujeito durão, pensou Riley, consegue desperdiçar tempo com provocações enquanto há matanças a fazer.
A bala chegou a ele e Riley girou dentro da capa, dobrando as camadas de cota de malha e aumentando as chances de sobrevivência. O projétil o acertou no peito e o impacto foi terrível, jogando-o vários passos para trás. Ele não sabia se estava morrendo ou sendo meramente ferido. De qualquer forma, era vital que aparentasse estar defunto, de modo que Farley apontasse os balaços para outro lugar. Riley se deixou cair contra a parede, permitindo que as dobras da capa se abrissem. Bateu a mão no peito como se sua palma fosse mágica e, de alguma maneira, pudesse impedir que o sangue vermelho se espalhasse na camisa branca.
— Rá! — disse Farley. — Grande Savano é o meu olho.
Riley tossiu uma vez, cambaleou adiante e depois tombou, e as dobras de veludo da capa o receberam no negrume.
Chevie Savano estava no túnel do tempo, ela percebia agora.
A fenda de Smart, pensou. Graças a Deus.
Qualquer criança que assistisse à televisão e tivesse mais de 10 anos tinha ouvido falar da famosa ponte Einstein-Rosen, ou fenda espacial, ou túnel do tempo, ou como quer que o último seriado de ficção científica tivesse optado por chamar, porém muito poucas pessoas tinham estado imersas de verdade em um deles, e, das poucas que haviam estado dentro do túnel, nenhuma ficara aliviada por tal vivência.
Até agora.
Chevie sentiu uma onda de alívio, espalhando um bálsamo sobre uma psique marcada por cicatrizes devido aos 17 anos vividos no Império Boxita.
Não precisa ser, percebeu ela. Nada disso.
A consciência antes conhecida como Chevie Traidora havia aberto caminho até a superfície, e de repente Chevie se lembrava de tudo. Riley, Garrick, a Londres vitoriana e, mais importante, o coronel Box.
Clayton Box.
O coronel das forças especiais que havia desaparecido com sua equipe. Então é para lá que eles foram.
Box tinha sido um dos que vinham pressionando pelo uso da fenda de Smart como um caminho direto para os avós dos terroristas.
Estancar a linhagem sanguínea, fora a recomendação de Box. Matá-los antes que se reproduzam.
O que impelira Charles Smart a desaparecer no passado e encerrar o programa.
Todo mundo pensava que Box tinha desaparecido em ação, mas na realidade o coronel e sua equipe haviam desaparecido no tempo. Tinham levado a tecnologia do futuro para o passado.
Agora parecia tão óbvio que Chevie se perguntava como ninguém tinha pensado nisso.
Será que as pessoas acreditam mesmo que as especificações dos mísseis balísticos intercontinentais tinham sido sonhadas pelo Divino Box?
Claro que acreditavam.
Por que não acreditariam?
Chevie acreditara nisso durante toda sua vida.
Na verdade, era muito mais fácil acreditar nisso do que na realidade.
Ridículo.
É bom voltar a ser a cética, pensou Chevie. Chega de me curvar e ralar. De agora em diante...
De agora em diante... o quê?
Chevie não sabia. Não sabia bem onde o casulo, o qual Smart havia ocultado disfarçando-o de cozinha, iria largá-la. E se ela terminasse na Londres vitoriana, será que as Thundercats teriam viajado com ela?
Thundercats. Agora ela sacava.
Box tinha batizado sua polícia de segurança com o nome de um antigo desenho animado infantil.
Que sujeito cafona!
Mas voltando ao ponto. Ela não tinha plano nem lugar para ir.
Encontrar Riley.
Era um bom começo.
O garoto tinha dito que seu teatro ficava em Holborn. Ela sabia onde era.
Claro que tudo isso dependia de ela não emergir em Marte sendo perseguida por símios.
E era provável que as Thundercats estivessem nessa espuma quântica com ela, mas pelo menos deveriam ficar desorientadas nos primeiros momentos, o que lhe daria uma oportunidade de dar no pé.
Encontrar Riley, e talvez sabotar a trama de Box.
Era um plano grandioso demais. Como ela poderia estragar a ascensão de toda uma ordem mundial?
Encontre Riley, e comece a partir daí.
Era um pensamento reconfortante: encontrar alguém que ficaria feliz em vê-la.
Um amigo.
Imagine só.
Farley viu Riley cair, o que foi uma infelicidade, pois Riley teria adorado um instante em particular para levantar um cotovelo e proteger o rosto do impacto contra o piso do palco. Com o olhar de Riley grudado nele, só sobrou tempo para colar o queixo no peito e receber a pancada na testa. Por sorte Garrick sempre valorizara tremendamente as cabeçadas, dizendo: Deus nos deu uma bela cunha de osso e os meios para usá-la. Sendo assim, Riley tinha anos de treinamento de cabeçadas quando sua cabeça bateu no alçapão. Se o alçapão não estivesse destrancado, ele poderia rachar a cuca. Tal como foi, a pancada se revelou séria o bastante para fazê-lo ver estrelas enquanto tombava pelo alçapão e caía no porão, deixando a capa embolada no palco acima.
O movimento fora realizado com suavidade suficiente para talvez enganar Farley e fazê-lo crer que a capa de Riley havia se tornado sua mortalha e que o garoto estava morto no meio das dobras. Afinal de contas, tinha havido sangue.
Sangue de porco saído de uma bexiga de borracha, mas mesmo assim era sangue.
A bexiga ficava presa na parte de trás de um anel no dedo médio do Grande Savano, e durante o número de pegar a bala deveria estourar para que uma pequena quantidade de sangue manchasse suas gengivas. Mas servira igualmente bem para fingir um tiro no peito; na verdade, a bala fora detida pelas dobras da cota de malha.
Riley caiu no reservatório do alçapão, batendo na plataforma presa a molas e contrapesos que serviam para lançá-lo para cima ao final da apresentação. Felizmente ele não bateu na alavanca. Deus sabe como Farley reagiria se Riley ressuscitasse diante de seus olhos.
Na verdade, até mesmo o imbecil mais tacanho poderia prever a reação de Farley. Ele mataria Riley de novo direitinho.
O barulho da queda de Riley foi encoberto pelo breve estardalhaço de um sujeito grandalhão se movimentando na primeira fileira de poltronas.
É o irmão de Malarkey fazendo uma tentativa, pensou Riley. Eis a minha deixa para dar no pé. Seguir pelo corredor até a porta dos fundos e sumir na cidade.
A arma futurista de Farley falou de novo: um staccato de tosses secas seguido por um estrondo tão grande que o teatro estremeceu.
Barnabus não existe mais, percebeu Riley. Os Aríetes haviam perdido seu guerreiro mais temível e o rei Otto havia perdido seu irmão.
Riley deveria estar disparando pelo corredor, uma viagem que ele conseguiria fazer de olhos vendados, mas em vez disso pensava em Otto, encolhido no fosso da orquestra, aguardando a bala que iria levá-lo para junto do irmão.
Vá, disse Riley a si mesmo. Fuja.
Otto nunca havia feito nada por ele. Nunca havia trazido nada além de sofrimento e ansiedade para sua vida.
Então por que você ainda está aqui, Riley? Vá para a cidade.
Mas o garoto foi golpeado por um sentimento súbito de compaixão.
Isso é culpa da Chevie, é mesmo. Nunca fui compassivo quando estava com Garrick. Ao pó, Garrick sempre dizia. A única preocupação que você precisa ter em relação à vida é preservar a sua e a do seu patrão.
Ele não podia mais seguir o caminho de Garrick. Deveria haver uma tentativa de salvar Otto.
— Chamas e danação — xingou Riley, e abriu a portinhola que ligava a sala do alçapão ao fosso da orquestra.
De algum modo, Chevie sabia que seu tempo na fenda de Smart estava chegando ao fim. Talvez tempo fosse a palavra errada para a viagem, já que não poderia ser medido em minutos ou segundos. Espaço também não funcionava, já que não havia sentido de movimento tradicional. No mínimo a experiência era mais próxima de um sonho febril que parecia ao mesmo tempo totalmente real e absolutamente impossível.
Chevie se lembrou, pelas experiências anteriores, de que quando a jornada terminava, seus sentidos estariam atrapalhados devido ao que o professor batizara de “Zen Ten”.
Tudo está bem e fora das vistas, havia citado Charles Smart na famosa aula na Universidade de Colúmbia durante sua turnê de palestras pelos Estados Unidos. Quando aquelas pequenas partículas virtuais se aniquilam, a pessoa é literalmente plugada ao universo.
Na época, esse período de atordoamento e confusão era apenas uma quantum-jectura, mas agora Chevie tinha certeza de que o “Zen Ten” existia e que poderia durar muito mais do que dez segundos. Na verdade, ela estaria disposta a apostar que Smart só havia escolhido o número dez porque Ten — “dez”, em inglês — rimava com Zen e criava uma expressão memorável.
Fique alerta, disse Chevie a si mesma. Permaneça concentrada.
Então ela foi expelida no mundo palpável e a sarabanda da espuma temporal abafou seus sentidos.
Chevie começou a dar risadinhas.
Estou de volta num porão vitoriano. Isso é histérico.
Do outro lado da sala, ela viu as Thundercats ganhando forma e se solidificando, e isso foi mais hilário ainda.
— Vocês duas estão ridículas — disse ela.
Vallicose e Witmeyer pareciam mesmo um tanto patéticas nesse momento, fuçando de quatro como dois porcos enormes com seus sobretudos cor de pele que iam até os joelhos.
Vallicose deu um sorriso largo, que não combinava com seu rosto.
— Vamos matar você lentamente, pagã — disse ela, frase que apagou boa parte do sorriso. — Você está mancomunada com Lúcifer.
Chevie sabia que deveria estar incomodada com a ideia de uma morte lenta, mas o “Zen Ten” a deixara alegrinha.
— Lúcifer? É o tal Lúcifer O’Malley, de Venice? Ele me deve dez pratas.
— Pronto, está vendo? — disse Vallicose, apontando e babando também. — Venice é o mesmo que Veneza, que fica na Itália, que é perto da França. Ela é uma espiã jax.
Witmeyer teve o bom senso de ficar preocupada, mas seu rosto ainda não demonstrava isso.
— Tenho uma ideia. Vamos matá-la depressa e depois tentar descobrir o que está acontecendo.
Vallicose deu um soco brincalhão no ombro da parceira.
— Agora não, Lunka. Morte lenta, eu disse.
Witmeyer riu.
— Para com isso, Clover. Você é uma bobona. Morte rápida.
Chevie pensou que fosse desmaiar com o choque do que veio a seguir.
Ai, meu Deus. Ninguém nunca vai acreditar nisso. Será que eu acredito?
Vallicose e Witmeyer começaram a fazer cócegas uma na outra.
— Morte lenta, Lunka.
— Não, morte rápida.
— Lenta, lenta. Mil cortes.
— Clover, um corte na garganta. Zap, e acabou. — Witmeyer imitou o sangue escorrendo com os dedos balançando junto ao pescoço.
— O que é isso?
— O sangue zunindo.
— Sangue não zune, Lunka.
— Se você fizer um furo na jugular. Só um furinho minúsculo.
— Espirra. O sangue espirra, e é impossível tirar do uniforme.
Eu poderia matá-las agora, pensou Chevie. Duas mortes rápidas. Estaria economizando um bocado de dor de cabeça, e o Abençoado Coronel sabe que os londrinos vitorianos não estão preparados para Thundercats que fazem cócegas.
Mas jamais poderia fazer uma coisa assim, não importando qual de suas personalidades fosse a dominante no momento. E Chevie se lembrou de que não havia isso de Abençoado Coronel por aqui. Só um coronel fugitivo que estava muito longe de ser considerado abençoado.
Não consegui matar Smart e não conseguiria matar essas duas, percebeu Chevie, e então acrescentou um adendo alarmante a tal pensamento: Mas elas certamente seriam capazes de me matar.
Ficou de pé, trêmula, e verificou o próprio corpo em busca de mutações causadas pela fenda espacial. Nada visível. Nenhuma cabeça de dinossauro nem pés de pato, mas examinaria cada centímetro mais tarde e também faria uma bela busca no próprio cérebro.
Às vezes a mudança não é física.
Com o “Zen Ten” atuando na mente, era difícil saber se seus neurônios estavam disparando ou não em todos os pistões.
Concentre-se em uma coisa, disse para si.
Encontrar Riley.
Na última aventura dos dois, ela havia assumido a liderança, guiando o garoto através de sua experiência no século XXI; agora ela era o peixe fora d’água, tropeçando num porão com chão de terra batida. Riley seria sua bússola.
Na última vez eu queria ir para casa. Agora, nem sei se minha casa ainda existe. E se existir, será que quero mesmo voltar para lá?
Chevie cambaleou em direção à porta, rindo o tempo todo, evitando deliberadamente olhar para as Thundercats, para o caso de explodir numa gargalhada e se incapacitar.
— Veja — ouviu Witmeyer dizer. — A criança está escapando. E Smart deu alguma coisa a ela. Eu vi. Uma chave. Ela poderia nos levar para casa.
Vallicose reagiu à notícia hilariante gargalhando até ficar rouca, depois disse em tom jovial:
— Não se preocupe. O Senhor vai nos guiar até ela, e então vamos matá-la devagar e tirar a chave de seu cadáver ímpio.
Chevie sentiu a chave quente de encontro à pele e usou a parede de tijolos úmida para se firmar enquanto escapava.
Encontrar Riley.
Cadáver ímpio?, pensou. Hilário.
Riley espiou pela portinhola do receptáculo do alçapão, e ali estava Malarkey, encolhido num canto, atrás de uma pilha de suportes de partitura que não ofereceriam mais proteção do que um leque de corista. O rei dos Aríetes tinha uma expressão estranha que, Riley percebeu, era uma mistureba de fúria primal e desespero absoluto.
Como o médico e o monstro ao mesmo tempo, pensou Riley, que era muito fã do escritor escocês Robert Louis Stevenson e considerava A ilha do tesouro a melhor história de aventura que já havia lido.
Era estranho ver sua Alteza Arietíssima assim. Tão humano. Sem qualquer dos ares ou arroubos costumeiros.
Este é o homem genuíno, pensou Riley. Este é Otto Malarkey, e não o rei dos Aríetes ou Golgoth.
Um facho estreito de luz vermelha desenhava tremeliques intrincados na parede negra, e, quando a voz de Farley veio de cima, Riley pensou momentaneamente: as palavras chegam bem, apesar da voz de taquara rachada do Farley. O Madame Orient tem uma bela acústica, isso tem.
— Ah, Vossa Majestade — disse o tatuador. — Eu estava procurando o senhor, já que desejo aumentar sua última tatuagem. Alguns toques de carmim, talvez.
Alguns toques de carmim. Poderia ser o título de um livro de terror barato. Assim que o ponto daquela mira a laser se acomodasse no Malarkey, ele estaria mortinho da Silva, como dizia o velho ditado. O ponto vermelho, que por acaso Riley sabia que se chamava laser, garantiria que uma bala chegasse bem no alvo. E as armas que tinham mira a laser não costumavam falhar nem explodir na mão com regularidade.
Resumindo, a batata de Malarkey não estava simplesmente assando, e sim servida numa bandeja de prata com todos os acompanhamentos.
Riley não conseguia evitar pensar que, se deixasse as coisas seguirem seu curso, uma das moscas em sua sopa seria retirada para ele. Mas esse era um pensamento cruel, e ele o descartou no momento em que lhe veio à cabeça.
Riley enfiou os braços pela portinhola.
— Malarkey! Rei Otto! Por aqui!
O Aríete pareceu não ouvi-lo, hipnotizado como estava pelo ponto vermelho, e assim Riley não teve escolha, a não ser se enfiar pela passagem e dar um tapa no braço de Malarkey.
— Por aqui — sussurrou. — A sobrevivência está aqui.
Malarkey moveu-se com a velocidade de um celerado veterano, agarrando os ombros de Riley e espremendo-o como se quisesse esmagá-lo.
— Não, rei Otto — grunhiu o garoto. — Sou eu, Riley. Precisamos fugir daqui. Farley está maluco.
Os olhos de Otto se lembraram de onde ele estava.
— Farley, aquela cobra.
Riley desvencilhou-se com uma sacudida.
— É. Farley. Agora vamos indo ou acabaremos comendo capim pela raiz. Vamos bater a caçuleta aqui embaixo.
Garrick havia frequentemente tentado fazer com que Riley abandonasse as gírias, mas em situações de estresse elas vinham à tona, e isso pareceu cortar a estupefação de Malarkey.
— Vamos bater a caçuleta mesmo — concordou ele. O ponto vermelho estava a um mero segundo de tremelicar para o alvo. — Vá na frente, Arietinho.
Riley não precisou ser mandado de novo, deu meia-volta e mergulhou pela portinhola para o receptáculo do alçapão, caindo nos braços acolhedores de sombras aveludadas. Malarkey empurrou os suportes de partituras para o lado e acompanhou seu súdito pela passagem, engatinhando no piso de terra para colocar alguma distância entre ele e o ponto infernal.
Um jorro de chumbo os acompanhou, abrindo um sulco no chão até que a linha de mira de Farley foi cortada pelo portal de ferro.
— E aí, Farley! — gritou Malarkey. — Não consegue aumentar os contornos da minha tatuagem?
Riley revirou os olhos. Por que sempre precisava haver provocações quando havia uma fuga a ser feita?
— Por aqui, Otto — disse com urgência. — Pode apostar que Farley não chegou ao fundo desse saco.
Otto bufou, desabotoando seu colete de seda, expondo diversas facas e ganchos escondidos.
— Eu ainda não abri o meu, essa é a diferença. Só preciso dar uma espiadinha nas fuças feias do Farley por aquela portinha, e vou mandar ele direitinho pra terra dos pés juntos, nem que tenha que montar a carroça para isso, então me ajude, mágico.
Ele não entende, percebeu Riley. Otto acha que as chances estão equiparadas, desconsiderando a arma de Farley. Acha que estamos com vantagem.
— Não, rei Otto. Precisamos sair daqui, depressinha.
Otto escolheu um gancho de enfardador e uma adaga curta em seu arsenal.
— Esquece, garoto. Corra até a Toca dos Carneiros e chame as tropas. Quero uma vingança sangrenta.
— Está se encolhendo feito um vira-lata medroso, Otto? — provocou Farley de cima. — O grande rei está com medo de seu tatuador?
O rosto de Malarkey pareceu ficar vermelho na escuridão.
— Escute como ele zomba de mim. O patife que assassinou o pobre Barnabus.
Riley sentiu a irritação crescendo.
— O senhor gostaria de bancar a Brigada Ligeira, não é? Matar-se por pura teimosia. Quem vai vingar o Desumano, então?
Mas Malarkey não tinha clima para a lógica simples. A névoa rubra estava em seus olhos e ele preferiria morrer a recuar.
— Barnabus está morto — disse ele, raspando o gancho na adaga até fagulhas marcarem o contato. — Barnabus está morto. Barnabus está morto.
Barnabus está morto, pensou Riley. Acho que o cérebro de Sua Majestade não está aberto para os negócios.
A situação deles, embora já dificultosa, piorou consideravelmente com um pequeno cilindro de metal que veio rolando-saltando-rolando pela portinhola. Ao chegar, o cilindro chiou e girou como se contivesse uma serpente frenética.
— Granada! — gritou Riley.
Mas se ele esperava que sua exclamação galvanizasse o rei, a esperança foi vã, porque Malarkey simplesmente olhou para a pequena bomba como se seu olhar por si só pudesse apagá-la.
— Que inferno! — disse Riley.
A salvação dos dois estava pousada em seus ombros. Ele iria salvá-los, ou não seriam salvos.
Preciso atacar meu rei, pensou, passando em seguida por baixo das armas de Malarkey, dando uma trombada em Otto, jogando-o de costas contra a plataforma do alçapão e permitindo-se cair em cima depois. Assim que os dois conjuntos de membros estavam mais ou menos dentro das bordas da plataforma, ele chutou a alavanca, ativando a força de quatro molas de compressão e um contrapeso de 150 quilos. Nos ensaios, a força resultante era suficiente para catapultar Riley 3 metros no ar lá em cima, onde ele pousaria na última cadeira de uma pilha, mas com Malarkey na plataforma eles teriam sorte se chegassem acima do palco, e isso se uma das pernas do rei dos Aríetes não atrapalhasse o dispositivo.
Talvez os membros carnudos de Malarkey fossem ficar presos no alçapão, mas Riley jamais viria a saber. A granada explodiu, sua força se aglomerando embaixo da plataforma como a mão de Deus e acelerando o Aríete e o Arietinho através do alçapão e lançando a ambos num giro sobre o palco, com a plataforma caindo em lascas em volta de seus ouvidos.
Otto recebeu o impacto maior, já que estava mais perto da explosão, mas seu tronco foi salvo dos estilhaços pela plataforma reforçada. As tábuas da plataforma, no entanto, provocaram uma destruição considerável na pele de Malarkey com seus estilhaços, arranhando suas costas mais amplamente do que qualquer saco de gatos aberto de repente.
Riley foi lançado de costas, as pernas pendendo na borda, incapaz de saber se estava coberto por sangue régio ou pelo próprio. Seu crânio retinia feito um campanário um minuto depois da hora cheia, e parecia que o coração tinha decidido explodir do peito.
Otto não está se mexendo, pensou, a cabeça virada na direção de Malarkey. O rei está morto.
Mas morto o rei não estava, o que foi evidenciado pelo jato de sangue que Otto tossiu nas tábuas.
A cabeça de Farley apareceu à esquerda do palco, junto à ribalta, espiando quase comicamente da primeira fila.
Ele parece um pássaro, pensou Riley, com a cabeça balançando daquele jeito.
— Ah, ambos ainda vivos — disse Farley. — Excelente. Excelente. Eu não tinha uma diversão vespertina assim há muito tempo. — E subiu os degraus. — O que vai acontecer é o seguinte, Malarkey. Assim que eu tiver dado um fim ao seu reinado, vou retornar com meu esquadrão à Toca dos Carneiros e fazer uma oferta de emprego aos Aríetes sem líder. Os que aceitarem o tostão, por assim dizer, irão fazer parte de uma nova ordem mundial. Os que não aceitarem vão se juntar a você no inferno reservado para criminosos assassinos. — Farley enfiou a mão na bolsa e tirou seis balas num prendedor redondo, o qual utilizou para encher as câmaras do revólver. — Carregador rápido — explicou. — Mandei nosso armeiro fabricar para mim. Gosta? Pequenas invenções como esta vão nos ajudar a dominar o país.
Farley se ajoelhou ao lado de Malarkey e encostou o cano do revólver na têmpora do rei.
— Eu gostaria de ter mais tempo, Malarkey, porque o que você merece de verdade é um enforcamento. Uma bala é algo bom demais para você. Você deveria ser pendurado na Trafalgar Square para toda a cidade ver. A boa e velha justiça britânica. — Ele suspirou. — Mas a explosão vai atrair os policiais, de modo que uma bala no cérebro terá de servir.
Para Riley, era como se seus olhos fossem a única parte do corpo funcionando normalmente. Ele conseguia enxergar o instrumento de sua morte, mas não conseguia fazer nada a respeito. Uma bala para Malarkey e a segunda para ele.
Tom, pensou, não encontrei você. Fracassei.
Farley engatilhou a arma, achando divertido o total desamparo de Malarkey.
— Veja só você, Otto. O poderoso Golgoth.
Certamente era o fim da fanfarronice. Adiar mais seria provocar o destino.
— Adeus, Sua Majestade — disse Farley.
Então algo veloz irrompeu das coxias à esquerda do palco. Uma figura ligada a um par de pernas que se movimentava tão depressa que elas pareciam leques azuis. Uma das pernas subiu e chutou a lateral da cabeça de Farley. Com força. O tatuador oscilou para trás nos calcanhares, como um cossaco bêbado, e o ímpeto o levou à borda do palco até cair no fosso da orquestra. A julgar pelo estardalhaço, Riley calculou que o pouso não foi dos mais macios.
Talvez ele tenha fraturado meia dúzia de ossos, pensou. Só nos resta ter esperança.
As pernas vestidas de azul ficaram de joelhos e a salvadora de Riley fez o mesmo, postando-se ao lado da figura. O choque do reconhecimento trouxe as cordas vocais do garoto de volta à vida.
— Srta. Chevron — disse ele. — É você mesma, em carne e osso, que veio me salvar mais uma vez.
O rosto de Chevie estava pálido de preocupação com o jovem amigo, mas sorriu para esconder isso.
— Isso mesmo, moleque — disse ela, passando as mãos pelo tronco e pelos membros dele em busca de fraturas. — Alguém precisa cuidar de você. Eu deixo você sozinho por cem anos e veja só o que acontece.
Ir embora rapidinho era um bom plano, todo mundo concordava. Isto é, todo mundo menos Farley, porque ninguém consultou o tatuador; mesmo se tivessem consultado, teria sido necessário uma vidente para interpretar a baba que se empoçava junto à bochecha dele.
Farley. O Carrasco. Ela havia lido a respeito dele durante toda a vida.
Não. Errado.
A velha Chevie, a Chevie pau-mandado, tinha lido sobre Farley durante toda sua vida.
Mas essa Chevie tinha ido embora. Agora ela era...
A Chevie Traidora?
A verdadeira Chevron Savano. E de fato, verdade seja dita, quando você dava uma boa olhada nesse tal Farley, ele era meio chinfrim.
— Este cara causou o dano? Este velho? Ele tem, sei lá, cem anos.
— Eu diria que uns sessenta — disse Riley na defensiva. — E é magrelo. Aposto que é fã de ginástica.
Chevie espiou no fosso da orquestra, onde Farley estava embolado num monte de suportes de partitura.
— E, de qualquer modo, eu achava que ele era seu amigo, Riley.
— Uma opinião que nós compartilhávamos até recentemente — disse Riley, inclinando a cabeça para um lado a fim de deslocar um zumbido agudo que ele desconfiava ser efeito secundário da explosão. — A gente deveria dar no pé, Chevie. Os policiais vão começar a apitar perto da porta, e talvez Farley não seja o único Zé Futuro nas vizinhanças.
— Deixe-me simplesmente ignorar o que você acabou de dizer e fazer isso — respondeu Chevie. Em seguida, desceu ao fosso e pegou a sacola de Farley e arrancou o revólver da mão dele. — Agora me sinto melhor — disse, sopesando a arma imensa. — Menos nua.
Riley apontou para a roupa dela.
— Você está mais ou menos nua, como sempre. Isto que você está usando não é muito mais do que uma roupa de banho.
Chevie parou um momento para verificar sua roupa, coisa que não tinha feito desde que saíra rolando da fenda de Smart. Assim como sua personalidade alternativa havia emergido do túnel do tempo, parecia que o mesmo acontecera à parte das roupas antigas. Agora ela usava uma estranha indumentária híbrida, com elementos dos dois futuros possíveis. Na essência ainda usava o macacão azul-marinho da Academia Juvenil, mas a lã pesada havia se transformado em malha elástica, e o símbolo dourado se transformara em FBI. Tinha perdido o boné quando o diretor Gunn a acertara com o tablet.
Estou parecendo a SuperFederal, pensou.
Chevie percebeu que estava se sentindo inadequadamente à vontade, em vista dos cadáveres que atulhavam o corredor do teatro, do fedor de pólvora e do fato de que provavelmente havia encalhado na zona temporal errada.
Mas eu sou eu de novo, e talvez o futuro não precise acontecer. DeeDee não precisa morrer.
— Esta vestimenta é uma metáfora de como está o meu cérebro — disse ela, abrindo os braços. — Sou a antiga Chevie na maior parte, a que você conhece. Mas um pouquinho da nova ainda está aqui.
Riley resolveu que mais tarde interrogaria Chevie sobre os temas da indumentária e das metáforas, e Malarkey reagiu a toda aquela exposição com um breve meneio de cabeça, que, por naturalmente estar conectada ao tronco, fez muitos de seus ferimentos sagrarem um pouco.
— Chique — disse ele, mais longe da sepultura do que parecia. — Nada me agrada mais do que uma bela metáfora à tarde. Mas enquanto vocês dois ficam de conversa-fiada, estou derramando meus fluidos vitais neste palco. De modo que, se não se incomodarem...
Chevie jogou a bolsa de Farley no palco e subiu em seguida.
— Desculpe, Otto. Riley e eu não nos vemos há um tempo, então precisamos conversar fiado um pouco. E, de qualquer modo, na última vez em que nossos caminhos se cruzaram, seus dedos estavam enroscados no meu pescoço, portanto desculpe se o coloco no final da minha lista de prioridades.
Otto sacudiu o punho para ela.
— Por que está falando assim? Fale direito, garota.
Riley pegou sua capa, depois ajudou Otto a ficar de pé.
— Deixe-me interpretar, Majestade. Chevie está pouco se lixando pro seu bem-estar, já que o senhor é um ralé assassino.
Otto se inclinou, sentindo o peso de uma cabeça que subitamente parecia feita de chumbo.
— A índia falou isso, é?
— Mais ou menos — respondeu Riley, enfiando a cabeça embaixo da axila esquerda de Otto para sustentar o rei dos Aríetes.
Chevie segurou o lado direito de Malarkey.
— Mais tarde falamos de política e alianças, certo? Depois de colocarmos uma certa distância entre nós e este banho de sangue. Eu diria que há gente má atrás de todos nós.
Riley não comentou. Não observou, por exemplo, que era a própria Chevie que estava atrasando a fuga deles. Sabia por experiência que não havia nada que agradasse mais à sua amiga do futuro do que um bate-boca demorado, e quanto mais inoportuno o momento, mais alto ela discutia.
E essa não é a hora para um bafafá.
Os dois arrastaram, coagiram e carregaram o corpanzil gigantesco de Otto Malarkey até a porta de serviço e saíram ao mesmo tempo, exaustos pelo esforço de transportar um corpo do tamanho de um cavalo de carroça.
— Estou pondo os bofes para fora — declarou Riley, ofegando, com a bochecha escorregadia devido ao sangue de Malarkey. — Não podemos mais carregar esse salafrário.
Chevie se apoiou na parede.
— Não brinca. Qual é o segundo estágio do plano?
Riley pensou depressa.
— Precisamos nos encafuar. E depressinha. Um muquifo calmo, e não pode ser qualquer barraco. No momento as bactérias seriam a morte do rei Otto.
Chevie descobriu que sua mente estava começando a entender a linguagem de Riley.
— E algum lugar perto, já que estamos falando nisso. Este escroque grandalhão está sujando todo o meu super-uniforme do FBI.
Riley também estava recebendo uma bela garoa de sangue.
— É um bom plano, só é uma pena porque eu não conheço nenhum lugar assim.
Otto fez força com os pés e sustentou parte do próprio peso.
— Ache um engraxate e mande ele chamar uma carruagem de aluguel. Por acaso eu talvez conheça um lugar que seria supimpa.
— Algum lugar que não seja conhecido pelos seus colegas — disse Riley. — Os Aríetes tinham uma maçã podre no barril e isso pode ter sido contagioso, se é que você me entende.
Malarkey pigarreou e cuspiu uma bola de sangue na calçada suja.
— Ah, acredite, Arietinho, não tem ninguém que saiba sobre esse muquifo.
Riley firmou o rei Otto na parede de tijolos e correu pelo beco até Holborn propriamente dito, assobiando para algum engraxate.
Chevie e Malarkey foram deixados a sós. O rei Otto olhou para a garota através das pálpebras pesadas.
— Ralé assassino, é?
Chevie percebeu que estava numa posição bastante vulnerável, caso Malarkey resolvesse recuperar sua força prodigiosa.
— Bom, assassino, no mínimo.
Otto fechou os olhos.
— É justo — disse, e descansou um pouco, deixando Chevie ansiosa, observando o amigo que ia desaparecendo por toda a extensão do beco.
SOBRETUDO E VISEIRA ANTIRRESPINGO DE SANGUE
Ouroboros. A cobra que come a própria cauda — esse é o viajante do tempo. Andando em círculos, destruindo o próprio passado. Cagando todo um novo futuro. Desculpem. Defecando todo um novo futuro.
— Professor Charles Smart
A Londres Vitoriana não era gentil para com seus visitantes. Atraía-os para seu labirinto manchado de fuligem com uma vaga promessa de contos de fadas, de ruas pavimentadas com ouro, depois sugava suas moedas através das janelas entalhadas das casas de gim e dos antros de ópio. O Grande Forno pisava com força na alma dos que vinham de fora com uma vida de trabalho escravo ou privação, sem nada ao final da luta, a não ser uma morte ignóbil, amarrada a uma laje no ossuário. Todo ano, milhares de camponeses animados rolavam para Londres como se a terra estivesse inclinada, e todo ano milhares de outros eram rolados para sepulturas anônimas de indigentes, isso se tivessem sorte — e para cochos de porcos ou fornalhas se não tivessem. Embora o assassinato de fato fosse raro, não era classificado como assassinato se a cidade fosse a assassina. Se uma fábrica engolia uma dúzia de membros por semana, era apenas o preço de se ter um emprego. Se a mão de alguém era suficientemente veloz para agarrar uma moeda, deveria ser suficientemente rápida para se manter fora do moedor. Era lógico. E, de qualquer modo, que diferença faria se alguns pirralhos fossem para debaixo da terra antes do tempo? Sempre havia dezenas de outros arrastando os pés numa fileira diante da fábrica.
Para um estranho aos litorais ingleses que chegasse de navio à cidade, Londres representava uma série de riscos destinados a despir o Zé Estrangeiro e jogá-lo no monturo sem ao menos pensar em seu nome. O crescimento populacional se devia, em parte, ao fato de o pessoal da marinha não poder se dar ao luxo de sair do lugar até que um barco atracasse com o porão vazio, e havia uma longa fila para essas pranchas de embarque. O Zé Marujo pularia feliz em um convés destinado ao coração escuro de um país canibal, em vez de passar mais uma noite enfumaçada no Grande Forno, e frequentemente cometia algum crime deliberado para garantir 1 metro de chão numa das cadeias, casas de correção ou penitenciárias metropolitanas juntamente a quarenta mil de seus colegas moradores da metrópole a cada ano.
Na cidade de Londres, uma alma jamais estava a mais do que uma dezena de passos de uma fossa aberta ou de um lixão infestado por ratos. E se as ruas já tinham mesmo sido pavimentadas com ouro um dia, fazia muito tempo, já que haviam sido erodidas pelas torrentes da imundície ácida que escorria das sacadas altas que se projetavam sobre as ruas das favelas.
Resumindo, Londres era uma mancha imunda no solo da Inglaterra.
Clover Vallicose estava adorando.
Half Moon Street. Mayfair. Londres. 1899. Dez minutos atrás
As Thundercats haviam chafurdado no “Zen Ten” durante mais um minuto depois da partida de Chevie, e em seguida saíram da casa geminada, apoiando-se mutuamente com seus braços carnudos e ombros volumosos. O bom humor de Lunka Witmeyer foi truncado por um ataque de ânsias de vômito que a fez se abaixar sobre um barril d’água no quintal dos fundos da casa na Half Moon Street, nos limites do Soho e de Mayfair.
Witmeyer nunca ficava bem em viagens de trem, de modo que o túnel do tempo provocou um efeito violento em sua barriga.
Enquanto a parceira suportava as adagas das cólicas no abdômen, Clover Vallicose ajeitava o sobretudo e a viseira antirrespingo de sangue, pendurada abaixo do queixo, aventurando-se em seguida no beco que ia dos fundos da casa até a Half Moon Street propriamente dita. Tudo para além daquele quintal era esquisito para a Thundercat, mas ao mesmo tempo também era estranhamente familiar.
Conheço este lugar, pensou ela. Devo ter estudado este lugar.
E tinha mesmo, porque a Half Moon Street tinha uma importância especial na história boxita. Depois da Emersão das catacumbas de Londres, o Carrasco de Box, o major Anton Farley, estabelecera o quartel-general de suas operações nesta mesma rua. Na verdade, ele havia ocupado a suíte da cobertura de um hotel cujo antigo nome era Flemings, o qual dava vista para a casa de Smart. O primeiro gesto de Farley tinha sido enforcar meia dúzia de escritores e artistas que infestavam a área e colocar ali seu próprio pessoal temente a Box.
Clover Vallicose não tinha problemas no que dizia respeito a enforcar artistas, os quais prefeririam pegar a pena ou o pincel ao fuzil para apoiar um império que necessitava deles. Ela mesma havia atirado num mímico galês por causa de uma pantomima que poderia ser interpretada como dizendo que os Thundercats eram meio fanáticos por apertar gatilhos, ainda que o homem ferido tivesse jurado ter dito apenas que estava preso num poço.
Dias felizes.
E ali estava ela, na Half Moon Street, onde tudo começou. E aparentemente quando tudo começou.
Vallicose havia passado incontáveis horas examinando microfichas e fotos do período, fascinada pelas origens do império, lamentando amargamente não ter estado ali no nascimento do reino glorioso.
E agora estou aqui. Será possível que Deus concedeu meu desejo?
Havia muito mais coisas a se ponderar sobre o assunto, e muito mais informações a serem arrancadas de pessoas à força, mas isso precisaria esperar, porque Clover viu Chevron Savano correndo para longe. Maldita Jax fugitiva. E, não importando as circunstâncias, Clover tinha recebido uma ordem do Abençoado Coronel em pessoa.
Mate a espiã.
E ela não poderia se esquecer dessa ordem, assim como não poderia se esquecer da existência do próprio Box.
Sentiu, mais do que ouviu, a aproximação de sua parceira.
— O que está acontecendo, Clove?
Clove. Lunka raramente usava esse tratamento carinhoso. Sangue demais havia manchado a terra sob os pés de ambas para conseguirem ser amigas de verdade. O que não quer dizer que não morreriam uma pela outra. Mas isso era um dever.
— Mais tarde, irmã. A covarde Jax está fugindo do destino dela. Precisamos ir atrás.
— Espere — protestou Witmeyer, limpando mechas dos cabelos longos e escuros com o polegar e o indicador enluvados. — Eu preciso...
Mas sua parceira havia repetido seu hábito tremendamente irritante de sair no meio de uma discussão. E para tornar a partida ainda mais irritante, Vallicose soltou um comentário olhando para trás:
— É por isso que mantenho o cabelo curto. Nesta profissão a gente nunca sabe quando precisa vomitar.
Com Clover Vallicose, o dever vinha sempre em primeiro lugar. Em primeiro e em último. O dever era como aço em seu âmago, e ele reforçava a decisão de servir a Box em cada minuto de todos os dias. O dever ajudava Vallicose a dormir à noite, a envolvia em camadas de absolvição e espantava os sonhos sinistros trazidos pelas migalhas de consciência que restavam. Ela era uma daquelas adversárias mais perigosas: uma verdadeira crente.
Aos 6 anos fora arrancada do orfanato por um olheiro do exército que tinha visto um vídeo no qual ela espancava um garoto com o dobro da sua idade por não fazer o sinal de Box ao passar pelo retrato do Abençoado Coronel. No orfanato, Clover havia dividido um armário de dormir com outras oito crianças, ao passo que na academia ganhou o próprio cubículo e três refeições inteiras por dia. Como resultado, sua fé cresceu mais ainda.
Acreditava que o Abençoado Coronel a havia escolhido para alguma coisa grandiosa. E sua crença jamais vacilou ao longo dos anos na academia. Durante toda a década de serviço na França, a crença aumentou ainda mais, e ela foi promovida do exército regular para os Thundercats. A parte mais pública da polícia secreta.
Minha hora está chegando, pensava todo dia.
E neste dia talvez estivesse certa.
Se Vallicose era uma verdadeira crente, Witmeyer, por outro lado, era uma oportunista. Para Lunka, o distintivo de Thundercat era um passe livre para agir como quisesse. Ah, ela era capaz de citar as escrituras o dia inteiro caso isso se alinhasse ao seu curso de ação escolhido, mas com Witmeyer a ação vinha primeiro, e só então a escritura vinha para apoiá-la. Nenhuma das duas Thundercats era ingênua a ponto de achar que a outra compartilhava de suas crenças ou que carecia delas, mas ambas sabiam que podiam contar uma com a outra em uma situação de apuro, e cada qual sabia muito bem como transformar uma situação de apuro em vantagem pessoal.
O apuro em que se encontravam nesse dia específico de 1899 era mais complicado do que a maioria, mesmo para duas Thundercats experientes com cassetetes elétricos e pistolas automáticas. Normalmente otimista, Witmeyer estava achando difícil identificar o aspecto positivo da coisa toda. Mas Vallicose, geralmente a resmungona truculenta, estava nitidamente animada enquanto seguia no encalço de Chevie através de Londres.
— Ah, louvado seja — exclamou Vallicose. — Lá está a Victory Square, onde eles arrastaram a rainha Vitória em pessoa. Parece que ela xingou feito uma vendedora de peixe. Aquela cria do diabo governou Albion como um dragão agachado numa torre. Dizem que seu sangue ainda mancha as pedras do calçamento. — Ela deu uma cotovelada na parceira. — Talvez testemunhemos o dia feliz em que o pescoço dela foi esticado.
Witmeyer andava rigidamente, como um bêbado imitando um sóbrio.
— A máquina de Smart mandou a gente para o passado, Clove. É isso que você está dizendo?
À frente, Chevie agarrou um poste de luz, cambaleando numa curva em direção ao Piccadilly Circus. Vallicose estava em ritmo acelerado para manter a presa sob sua vista.
— Claro. Smart estava fazendo experiências ilegais, obviamente. Savano quase escapou, mas graças aos céus conseguimos vir atrás dela.
Witmeyer acompanhava o ritmo da parceira.
— Graças aos céus — disse debilmente.
A ruela se alargou para uma avenida e as Thundercats atraíram olhares chocados de um punhado de vagabundos que esquentavam os fundilhos perto de um braseiro.
Uma figura, um sujeito magricela e pálido, resolveu fazer um comentário:
— Olha só! — gritou ele. — Os bois se soltaram das cangas.
Witmeyer canalizou a ansiedade num soco de baixo para cima que jogou o sujeito contra o braseiro, atirando carvão e fagulhas na rua. Os vagabundos que permaneciam de pé ficaram chocados demais para ao menos pensar em represálias.
Vallicose grunhiu em aprovação, um som familiar que confortou Witmeyer um pouco.
Elas aceleraram o passo, Vallicose aparentemente mais deliciada do que perturbada pela estranheza absoluta da situação. Witmeyer descobriu que a melhor estratégia era morder os nós dos dedos e focar na presa. Assim que Savano estivesse morta, ela poderia lidar com a situação inesperada.
— Isto aqui é Piccadilly como era antigamente — ofegou Vallicose. — Já vi fotos.
Witmeyer não estava no clima para uma aula de história, já que se encontrava metida nela até o pescoço, por assim dizer, mas Clover parecia a ponto de desmaiar de tanta empolgação.
— Piccadilly — disse Witmeyer, sem se impressionar com toda a avenida e o cheiro de esterco de animais pairando na rua feito uma mortalha.
— Você não entende, irmã — retrucou Vallicose. — Depois da primeira fase do Golpe de Box, Farley usou estes postes de luz para enforcar qualquer pessoa da realeza ou político que tivesse sobrevivido aos mísseis. Esta é a Via dos Pendurados, mas antes era conhecida como Piccadilly.
Não acredito nisso, pensou Witmeyer, mordendo os nós dos dedos. Nada disso está acontecendo.
Elas seguiam Chevie à distância, as pernas vestidas com calças, os sobretudos cor de pele e as viseiras antirrespingo de sangue atraindo olhares curiosos das multidões de empregados de escritórios, moleques, vendedores de rua e adolescentes que jorravam pelas vielas até Piccadilly. Dezenas de comentários eram lançados para elas, mas as Thundercats eram obrigadas a tolerar os insultos ou correr o risco de perder Chevie.
Vallicose e Witmeyer eram rastreadoras experientes, tendo exercitado a habilidade nos campos de papoula da Normandia, caçando atiradores da notória divisão de guerrilha jax, Les Invisibles. Poderiam ter alcançado Chevie quando quisessem, mas se continham, adaptando o ritmo da busca para coincidir com uma brecha na multidão. Esta não era a Londres que conheciam, e atrair mais atenção era a última coisa que desejavam.
Não havia perigo de Savano escapar. Sua corrida era igual à de uma galinha sem cabeça. A garota já estava morta, mas não sabia.
E este teria sido o caso se um policial não tivesse aparecido diante delas na calçada, três esquinas mais tarde, bloqueando o caminho.
— Alto! — disse ele, levantando um cassetete. — Quero uma palavra com as... senhoras.
Como representante dos guardiões da lei na época, o sujeito era uma desgraça. Estava barbado e mal arrumado, com um uniforme que parecia guardar a sujeira de vários anos e um fedor de gim rançoso no hálito.
Vallicose odiou diminuir a velocidade, mas a única alternativa era incapacitar um policial em plena luz do dia numa avenida apinhada.
— Algum problema, irmão? — disse, irritada. — Porque por mais que eu respeite seu cargo, não tenho um momento de sobra nesta hora específica.
Witmeyer e Vallicose eram muito mais altas do que o policial desalinhado, mas ele não pareceu notar seu tamanho ameaçador.
— Nenhum problema, por assim dizer... é... senhoras. Só queria dar uma olhada mais de perto nas duas. Estrangeiras, é? Do outro lado do mar?
Jogo de palavras, falsidade e papo furado eram a especialidade de Lunka, de modo que uma pergunta assim geralmente seria respondida por ela, mas hoje ela estava mordendo o punho e revirando os olhos.
— Nunca vi nada igual a vocês desde que nasci — continuou o policial, agora girando o cassetete por uma corda presa ao cabo. — Botas de homem, passando dos joelhos. E digam por favor, o que é esse negócio em volta do pescoço? Talvez vocês sejam alguma classe de selvagens, ou europeias? Estou certo, senhoras?
Vallicose cutucou a parceira com um cotovelo.
Responda ao sujeito, dizia a cutucada. Fale alguma coisa acreditável.
Nada além de um sopro de ar saiu da boca de Witmeyer, e ela parecia estar acompanhando o voo de um pássaro invisível com os olhos.
— De qualquer modo, estrangeiras ou não — continuou o policial — estou intrigaaado, como dizem.
De repente os olhos do policial se fixaram na pistola de Vallicose.
— E será que essa coisa aí pendurada no seu cinto é alguma classe de arma, madame? Se for, é melhor eu confiscar e fazer uma revista detalhada na sua pessoa.
Vallicose se permitiu ficar brevemente surpresa por um homem que portava nada mais do que um pedaço de pau encarar duas adversárias enormes atulhadas de armas de fogo e ainda assim se considerar em vantagem. Então ela passou o braço pelo policial e o puxou para si, como alguém faria com um amigo, e então deu-lhe um soco firme no plexo solar.
— Nada de revista hoje, cidadão — disse ela baixinho, escoltando o policial ofegante para um canto na escuridão de um beco, onde o fez deslizar ao longo de uma parede molhada para o abraço da umidade e das sombras.
Era a derrota risivelmente simples de um inimigo que mal merecia ser chamado assim, mas ainda que a manobra não tivesse custado mais do que um grunhido de esforço por parte de Vallicose, ela havia pagado em outro sentido.
Quando voltou para a luz, Chevron Savano havia desaparecido.
Vallicose xingou e deu um soco no peito da parceira.
— Mas que danação, irmã. Palavras e coisas assim são seu elã.
A pancada reiniciou o cérebro de Witmeyer.
— Elã? — disse ela. — É francês, é? Está falando francês comigo?
Vallicose estava chocada consigo.
— Peço desculpas, irmã. Essa blasfêmia era desnecessária, mas a garota sumiu.
As engrenagens de Lunke Witmeyer estavam começando a se movimentar direito.
— Não sumiu, irmã. Só está fora de nossas vistas, e para desaparecer tão depressa ela deve ter entrado na encruzilhada seguinte.
Vallicose assentiu. Esta era a parceira que ela conhecia.
— É, é. Mas a questão é: esquerda ou direita?
Witmeyer começou a correr.
— Vamos decidir isso quando chegarmos lá.
Chegaram rapidamente à encruzilhada e estavam a ponto de se separar quando uma explosão provocou tremores ao longo da rua, uma nuvem de fumaça preta e densa saiu dos beirais de uma construção distante.
— Quais são as chances? — perguntou Witmeyer, o nariz apontando naquela direção.
— Louvado seja, é um sinal, irmã — disse Vallicose, já planejando como iria machucar Chevie Savano.
Havia uma multidão de curiosos boquiabertos junto às portas do teatro Orient e as Thundercats abriram caminho a cotoveladas na turba, como se sua autoridade fosse válida nesta época. Assim que passaram pela porta, entraram confortavelmente em sua rotina de combate. Vallicose indo na frente e abaixada, Witmeyer ereta atrás, de modo que qualquer oponente teria que enfrentar fogo duplo. Não havia iluminação no interior, mas vinha uma luz do saguão, lançando uma claridade pálida pelos corredores. Era óbvio que a explosão tinha causado a maior parte dos danos no palco, que havia inchado feito um cogumelo, formando um emaranhado de tábuas. Havia corpos na primeira fileira. Vítimas de tiros, jogados para trás pela força dos projéteis.
Witmeyer pôs os dedos numa fileira de buracos de balas num encosto de poltrona.
— Ou havia uma centena de atiradores...
— Ou temos armas automáticas — completou Vallicose.
Uma novidade atordoante para as Thundercats, já que se presumiam as únicas pessoas com armamentos desse tipo.
— Savano? — perguntou Vallicose.
— Não. Ela foi supervisionada desde que saiu da cama e estava desarmada. Mas isso deve estar ligado à máquina de Smart.
— À abominável máquina de Smart — disse Vallicose.
— Abominável, claro — murmurou Witmeyer, e o comentário era sinal de que seu raciocínio havia se reajustado. E pela primeira vez Vallicose sentiu-se reconfortada pela língua ferina da parceira.
Avançaram rápido, com todos os sentidos alertas para o perigo. Um corpo enorme na fila C mostrou-se ligeiramente menos morto do que se supunha e implorou por água em nome de Deus. Apesar de Deus ter sido invocado, Vallicose deu-lhe um tiro no peito.
— Clover — disse Witmeyer, com reprovação na voz.
— Ele estava usando o nome do Senhor em vão.
— Não me importo por você ter matado o brutamontes — disse Witmeyer. — Você poderia ter lhe dado uma porretada. Nosso suprimento de balas é limitado. Além disso, poderia ser uma boa ideia interrogar o sujeito. Ele pode ter visto Savano.
— Duas boas observações, irmã. De agora em diante vamos usar as mãos ou facas sempre que possível, e só depois de um interrogatório.
— Se não for problema demais.
Um gemido emanou do fosso da orquestra diante delas, ampliado pelo espaço. Ecoou nos caibros do teto, e outras pessoas teriam fugido horrorizadas, gritando fantasma, mas não as Thundercats, que tinham ouvido gritos de feridos em cenários mais sinistros do que este.
As parceiras deram risadinhas, sabendo que não se perturbavam numa situação em que outros ficariam abalados.
— Está lembrada, irmã, de quando aquele açougueiro jax nos atacou com um cutelo?
— Lembro que ele se arrependeu — disse Witmeyer. E as duas ficaram em silêncio por um breve instante, saboreando a lembrança.
Outro gemido veio do fosso da orquestra e as Thundercats se esgueiraram em silêncio até a borda e olharam. Havia um homem embolado em meio aos suportes de partituras, com sangue escorrendo de vários ferimentos pequenos e um dos braços estirado um pouco além do que parecia normal.
— É possível que ele sobreviva — disse Witmeyer.
— Possível, mas improvável — contrapôs Clover Vallicose.
O sujeito não havia cometido nenhum crime específico contra Box ou contra o império, pelo menos até onde Vallicose sabia, mas ela estava certa de que um pouquinho de interrogatório revelaria algum delito. E de qualquer modo, a primeira regra não oficial da polícia de segurança era que cadáveres eram o pior tipo de testemunha. Mortos não falam.
Vallicose saltou no fosso, pousando com as pernas dos dois lados do indivíduo azarado que estava para ser ferido gravemente, apenas um prelúdio para um ferimento fatal.
Se esse homem puder nos colocar no caminho da traidora eu poderia matá-lo sem tortura prolongada, pensou Vallicose caridosamente.
— Vamos pegar você, cidadão — disse ela, e virou o homem de barriga para cima, puxando seu ombro deslocado. A dor deve ter sido inimaginável. O sujeito confirmou isso soltando um berro alto e entrecortado.
Vallicose tinha um plano. Deveria fazer as perguntas com sua arma apontada bem para a cabeça do cidadão. Esta era uma das suas táticas de interrogatório prediletas, mas, como a aprendera numa manhã suja na sala B da delegacia de polícia, era melhor sempre garantir que a arma estivesse travada.
Vallicose verificou a trava e depois franziu a testa quando seu olhar captou as feições do sujeito.
Havia algo estranho no rosto dele.
Clover sentiu seu equilíbrio escapar e a pulsação martelar nos ouvidos.
O que há com esta pessoa? Alguma coisa familiar.
O homem tossiu e espirrou sangue no sobretudo de Vallicose. Um ato que normalmente lhe garantiria um tapa de mão aberta. Mas Clover não bateu.
Por quê?
Porque havia algo naquele rosto manchado de sangue. Era familiar, porém mais do que isso. Honrado? Seria possível?
Vallicose sentiu as mãos tremerem.
O que é isso? Quem é ele?
O sussurro de Witmeyer veio de cima.
— Problemas, irmã?
— N... não — gaguejou Vallicose.
Estou gaguejando?, pensou ela. Não gaguejo há décadas.
— Bom, então. A trilha está esfriando.
O nariz do sujeito era fino e adunco. Característico. E se encaixava num rosto guardado em sua memória.
Estava escuro demais ali. Como o próprio fosso do inferno.
— Uma luz, irmã — gritou para a parceira. — Acenda uma luz.
Witmeyer mudou de posição para um ângulo melhor e depois apertou o interruptor de uma lanterna de halogênio minúscula presa ao cano de sua arma. O rosto do sujeito foi totalmente iluminado e Vallicose sentiu o dela se afrouxar com o choque.
Farley. O Carrasco.
Era ele. Era. Quantas vezes ela vira o retrato acima da mesa do diretor Gunn?
Anton Farley.
Aqueles lábios finos e os cabelos grisalhos e escorridos.
É por isso que fui mandada para cá, pensou Vallicose. Deus tem um plano para sua serva fiel.
Vallicose sentiu a febre de décadas de devoção jorrando de volta para ela num jato concentrado. Dominando-a. Fragmentos de orações escorreram de seus lábios enquanto ela aninhava o ferido nos braços.
Farley, pensou. Estou segurando o Carrasco. O anjo da morte.
O anjo entreabriu os olhos e falou baixinho:
— O coronel. Leve-me ao coronel.
Vallicose desmoronou e chorou.
MÃOS AO ALTO, PRINCESA
Conheci um cara que gostava de discutir sobre viagens no tempo. Ele gostava de listar coisas, consequências e assim por diante. O imbecil achava que vencer a discussão o fazia estar certo. A fenda espacial não se importa com palavras. O que acontece, acontece.
— Professor Charles Smart
Grosvenor Square. Mayfair. Londres. 1899
Riley tinha conseguido atrair uma carruagem de aluguel com a isca de um soberano reluzente, e logo eles estavam se afastando de Holborn num coche coberto de lona, indo para o muquifo secreto de Malarkey, na Grosvenor Square. Chevie deitou Malarkey no banco, cobrindo-o com um cobertor pesado que havia puxado de debaixo do assento. Em segundos, flores de sangue brotaram na lã verde.
— Isso não está bom — disse ela a Riley, que estava puxando as cortinas para cobrir a janela lateral da carruagem.
Malarkey tentou sentar-se.
— O quê? Meu cabelo, é? Eles num queimaram meu lindo cabelo.
— Não dê chilique — disse Riley, gentilmente forçando Otto a se deitar. — Seu cabelo está supimpa. Rapunzel iria chorar de ciúme vendo uma cabeleira que nem a sua.
— Graças a Deus — ofegou Malarkey, fechando os olhos. — Ah, graças a Deus. Enquanto eu estiver decente, posso tolerar tudo o mais.
— Decente? — perguntou Chevie, olhando a vestimenta de Otto. — Isto é decente?
— Na verdade, Chevie, ele parece uma rameira que foi disparada de um canhão.
— Está caçoando de mim, garoto? — murmurou Otto. — Eu estou em repouso, e não falecido. E mais: sou seu regente. — Ele parecia a ponto de fazer mais comentários sobre a desfaçatez de Riley, quando uma sombra cruzou sua expressão. — Barnabus — suspirou. — Agora estou sozinho. Órfão. — Uma lágrima solitária riscou as rugas do rei, rolando pela bochecha, e ele se deitou sem mais protestos. Sua respiração desacelerou, um ritmo dificultoso.
Riley e Chevie ficaram observando-o em silêncio durante alguns segundos sacolejantes, depois viraram um para o outro.
— Não senti muita falta do calçamento de paralelepípedos — disse Chevie enquanto as rodas da carruagem balançavam num buraco. — Mas senti sua falta, mesmo que eu não tivesse noção disso.
Os dois se abraçaram calorosamente, até que Riley se afastou.
— O que traz você aqui, Chevie? Veio me salvar, é? E como um corpo pode não saber que sente falta de outro?
— É uma longa história, moleque. Digamos apenas que eu não vinha sendo eu ultimamente. Mas agora estou de volta.
Riley a abraçou de novo.
— E graças aos céus por isso, Chevie. Você salvou nosso lombo, sem dúvida. Farley apareceu com seus badulaques futuristas e já ia colocar todos nós na lama. Imagine só, logo o Farley! Ele sempre foi um fulaninho tão moderado.
Chevie presumiu que fulaninho moderado significasse sujeito maneiro e prosseguiu de acordo.
— É, bem, esse fulaninho moderado tem um lado negro daqueles. Ele é do futuro, como eu. Há toda uma equipe deles aqui, preparando-se para agir contra o governo e a família real.
Riley fez o sinal da cruz.
— Contra a rainha Vitória? Deus a proteja.
— Não entendo — disse Chevie, esfregando as têmporas. — Eles deveriam fracassar; tinham de fracassar. Esses caras estão todos com mais de 60 anos. Então por que o plano deles deu certo desta vez? — Ela segurou os ombros de Riley. — Farley disse alguma coisa antes de começar a atirar? Mencionou alguém?
Riley pensou.
— Ele mencionou você. Na hora achei estranho.
Chevie sentiu um aperto por dentro.
— Eu? O que ele disse, exatamente?
— Algo sobre como o FBI mandou você, de modo que poderiam mandar outra pessoa, e que era melhor adiantar a programação.
— Ai, não. Ai, meu Deus. — Chevie desabou no banco.
Eu. Fui eu.
Box havia adiantado seu plano por causa dela. Se ele não tivesse adiantado o plano, os boxitas teriam fracassado por algum motivo. E assim, por causa dela, todo o Império Boxita passara a existir. O culto a Box havia se espalhado como uma erva virulenta pela Europa e pela América. Quantos inocentes haviam morrido? Quantas vidas tinham sido destruídas pela tortura e pela opressão?
Chevie reviu em câmera lenta a cabeça de Deirdre Woollen tombando, afastando-se do cano de arma que soltava fumaça. Morrendo no concreto úmido porque virou uma esquina errada.
DeeDee. Executada. Era demais para suportar.
Tudo por minha causa.
Chevie sabia que era ridículo considerar-se responsável por acontecimentos mundiais. Ela era uma garota de 17 anos que jamais desejara entrar num túnel do tempo. Por que não culpar Charles Smart? Ou Albert Garrick? Ou o coronel Clayton Box e sua luxúria de poder? Na melhor das hipóteses, ela era uma pecinha da engrenagem, uma peça de baixo valor numa cadeia muito longa de um dominó.
Era ridículo considerar-se responsável, mas Chevie não conseguia evitar. E a culpa era avassaladora, lançava sua mente num redemoinho de tumulto. Sentiu-se subitamente nauseada e tonta e afundou no banco, ofegando, tentando não vomitar.
Riley deu-lhe um tapinha no ombro.
— Ora, Srta. Chevron. Nós já estivemos em águas mais turbulentas. Você só precisa de uma bebida forte. Uma coisa capaz de abrir buraco em metal, para acalmar seus nervos.
O olhar de Chevie estava fixo nas tábuas sob seus pés. Ela observava o rio de paralelepípedos verdes e amarronzados passando depressa através de um buraco na madeira.
Riley insistiu.
— Chevie, não precisa ficar assim. Caso você não tenha percebido, estamos bem no meio de uma crise. Anda. Vamos trazer a velha Chevron de volta, toda azedinha. Seria bom ter aquela Chevie, sem dúvida.
Chevie falou para as tábuas:
— Você não entende, moleque. O futuro do qual você se lembra: Londres cheia de turistas, o FBI, a rainha Elizabeth... tudo isso sumiu.
— Não tem Harry Potter também? — perguntou Riley, horrorizado.
— É, o Harry Potter. Tudo. Farley e os colegas dele lançaram mísseis contra a sede do parlamento, Portsmouth e o castelo de Windsor.
— A rainha Vitória levou bala?
— Não, foi enforcada em Piccadilly.
Riley olhou para as próprias mãos, que tinham começado a tremer.
— Os londrinos nunca vão aceitar o assassinato da rainha Vitória. Nós adoramos a velha viúva de Windsor.
— O povo não vai ter muita influência nisso. O coronel Box sai das catacumbas com sua legião armada até os dentes com esse tipo de arma. — Chevie cutucou a bolsa de Farley com a ponta do pé.
Riley estava perplexo.
— Mas você disse que é uma legião de velhos. Até o Farley já havia passado do auge. Como é que esses sujeitos de barba grisalha vão dominar um exército?
Eis um argumento muito bom, e Riley tinha uma resposta.
— Os Aríetes. Farley juntou os mais importantes no Orient para um assassinato limpo. O seu coronel Box está planejando alistar o restante para fazer o trabalho sujo, o bando de valentões perversos mais violento e durão de Londres.
Fazia todo o sentido.
— Farley assume o controle — disse Chevie, assentindo. — Então Box aparece com sua equipe e toma conta. Num instante está com um exército treinado, pronto para cumprir suas ordens.
Ficaram sentados em silêncio, contemplando o desastre iminente enquanto observavam o corpo caído de Otto Malarkey.
Nós formamos o trio mais improvável que existe, pensou Riley.
E estava certo. Os ingredientes daquela gororoba formavam um caldo esquisito: um garoto-mágico, uma policial do futuro e um rei dos Aríetes. Mas havia um outro trio em Londres, recém-formado e seguindo para o próprio porto seguro, e igualmente improvável.
Duas guerreiras Thundercats e um tatuador.
O silêncio tomou a carruagem coberta enquanto Riley e Chevie imaginavam futuros violentos, e a cacofonia de Londres do outro lado do compartimento ocultado pelas cortinas causava pouco impacto. Eles não notaram o refluxo gradual da maré humana, nem mesmo o ar ficando mais suave enquanto a carruagem ia de Holborn para os arredores mais amenos da Grosvenor Square. Pouca coisa foi registrada por seus cérebros perturbados, até que o cocheiro bateu numa tábua com o cabo do chicote.
— Grosvenor Square — gritou ele. — Desembarquem todos.
Grosvenor Square, pensou Chevie. Por que esse endereço parece familiar?
Saíram de uma carruagem, já fedorenta com os cheiros ácidos de sangue, suor e medo, para uma praça que parecia a pintura no tampo de uma caixa de chocolate, cercada de lindas casas geminadas ao redor de um parque particular. Não havia mendigos deitados transferindo sua imundície pessoal para as calçadas limpíssimas, nem grupos de moleques beligerantes cuspindo seu catarro de tabaco nas pedras lavadas do calçamento. Era uma região de modo geral mais elegante de Londres, e não era o tipo de endereço que geralmente abrigava um patife grosseiro como Otto Malarkey.
O rei dos Aríetes se apoiou pesadamente em seus salvadores e rosnou para o cocheiro ficar onde estava, maldição, até que eles entrassem em sua propriedade. O cocheiro, supondo corretamente que poderia pagar um preço infernal àquele animal ferido caso seus desejos não fossem cumpridos adequadamente, obedeceu e segurou com firmeza seus cavalos que sapateavam, esperando que Nobbie e Daisy não escolhessem esse momento para levantar as caudas, já que aquele não era o tipo de praça onde um sujeito poderia ir embora e largar dejetos no meio da rua.
Usando a carruagem como escudo contra os olhares dos vizinhos ou de policiais de patrulha, Malarkey levou o grupo em direção aos degraus da única casa do lado norte, cuja fachada parecia ter passado por uma guerra. O pórtico fora completamente obliterado, a não ser pelos cotocos de duas colunas que permaneciam como patas de elefante no degrau de cima. Não havia praticamente nenhum vidro nas janelas, lacradas com tábuas por causa da chuva londrina — que caía com a força de pregos em fevereiro —, e a alvenaria estava marcada com buracos provocados por estilhaços que se espalhavam a partir de uma porta novinha e brilhante, pintada em um tom sinistro de roxo. A fachada superior estava coberta por panos, sustentados por um andaime de madeira.
Riley esticou a cabeça por baixo da axila de Malarkey e atraiu o olhar de Chevie.
— É a casa de Charismo. A milícia explodiu tudo, lembra-se?
Chevie se lembrava. Em sua linha temporal atual — ou tempo de vida, ou o que quer que fosse —, os dois tinham sido mantidos presos na casa de Tibor Charismo — nesta casa — apenas alguns meses antes, no verão de 1898. Ela se perguntou brevemente se era mais provável que estivesse deitada numa ala psiquiátrica em algum lugar e que tudo isso fosse uma alucinação elaborada, ou se ela era mesmo uma agente federal viajante no tempo em parceria com um moleque mágico.
Não importa. Preciso jogar do melhor modo possível com as cartas que tenho na mão.
O que mais ela poderia fazer, além de se deitar e morrer?
Era tentador.
Lembrou-se de repente de seu pai, que a havia criado numa casinha nos penhascos de Malibu.
O que você vai fazer, garotinha? Desistir? Não restam muitos shawnees, e precisamos de alguém para nos proteger.
Isso lhe foi dito quando ela estava a ponto de abandonar as aulas de judô depois de uma luta ruim, que lhe custou um torneio.
A lembrança deu força e foco a Chevie. Ela se concentrou na tarefa e carregou Otto até o degrau de cima.
— Venha, moleque — disse. — Alguém precisa proteger os shawnee.
Não havia mãos livres no grupo para puxar a corda da sineta, por isso Otto chutou a porta espalhafatosa várias vezes, até que esta foi aberta por um homenzinho horrorizado, abotoado desde as botas polidas até o colarinho da camisa branca ofuscante.
— Com licença! — disse o sujeito diminuto, com a voz aguda, o rosto vermelhaço. — Esta é uma porta novíssima em folha, é sim. O comodoro Pierce fará um cinzeiro com seu pé se vocês não desistirem imediatamente dessas pancadas infernais e retirarem suas figuras pestilentas desta soleira respeitável. Onde vocês acham que estão? Num pardieiro de gim na beira do porto?
O homenzinho era um daqueles indivíduos singulares que inspiram um certo grau de contentamento sempre que aparecem, apesar da natureza cáustica da verborragia. Se houvesse algo como um medidor de felicidade, o grupo sofrido junto à porta veria seu nível de mercúrio coletivo subir diante da visão daquele baixinho corado. Seria difícil encontrar espécime mais magricelo num local que não fosse uma loja de ossos. Usava um terno estreito, de tweed cinza com vincos mais afiados do que seu nariz-foice. As sobrancelhas do sujeito se enrolavam imperiosamente, como se esse tipo de gesto fosse possível para meras sobrancelhas. Mas aquelas sobrancelhas não eram meras — eram esplêndidas e tremelicantes. O rosto era uma bela miniatura: feições de homem de tamanho infantil, que a princípio confundiam uma pessoa. E as mãos que se agitavam para Malarkey e companhia eram desproporcionalmente grandes e articuladas, parecendo tocar um piano invisível enquanto ele falava.
— Vocês são idiotas, é? — continuou o homenzinho furioso. — O complemento idiota de três povoados, congregados para se juntar diante da bela porta nova das pessoas. Bom, vocês idiotizaram diante da porta errada, idiotas. O comodoro Pierce pode ser um morador da praça, mas é um filho da marinha dos Estados Unidos, e irá lhes dar uma sonora sova, irá sim.
O irá sim grudado à frase do homenzinho revelava que ele era natural da Ilha Esmeralda, de modo que não era somente um homenzinho, e sim um homenzinho irlandês.
Leprechaun, pensou Chevie, e sentiu uma culpa imediata. Como nativa americana shawnee, ela fora vítima de estereótipos com frequência suficiente para não entrar nessa.
— Figary — disse o rei Otto, cansado.
— Não venha dizer meu nome, seu patife — retrucou Figary, com os dedos batucando uma polca no ar. — O comodoro Pierce vai... — Ele parou antes que a ameaça se materializasse e olhou para Malarkey. — Comodoro? É o senhor? Ou algum sósia medonho arrastado recentemente através do closet de uma meretriz? Que seja a segunda hipótese, por favor, diga que é a segunda hipótese! E vejo que trouxe a meretriz com o senhor. Ou talvez esta dama seja algum tipo de artista de circo?
Malarkey tossiu.
— Chega de conversa-fiada, seu comedor de batata. Eu tô... quero dizer, eu estou sangrando, Michael Figary. Ajude-nos a entrar e pegue as larvas.
Figary não demonstrou o mínimo de deferência.
— Pegar larvas, é? Para isso Mick Figary largou as pernas de sua mamãe. E onde está seu lindo sotaque de Boston, comodoro? O senhor está falando igual a um patife de beco inglês com uma adaga na bota e uma longa sombra de malfeitos a acompanhá-lo, está sim. — As sobrancelhas de Figary subiram a novas alturas e se arquearam como as asas de um pássaro em voo. — A casa é sua, senhor, portanto é claro que pode entrar, mas tente não sujar as paredes de sangue. Elas acabaram de ser pintadas, acabaram sim.
Figary os levou para dentro com uma reverência que fedia a falsidade.
Riley grunhiu um risinho.
— Nunca vi uma reverência tão sarcástica.
— Gosto dele — disse Chevie. — É engraçado.
— Ele se referiu a você como meretriz de circo — lembrou Malarkey.
— Foi um simples caso de confusão de identidade — disse Chevie. — Como quando ele o chamou de “comodoro”.
— Então não é comodoro — disse Figary. — E provavelmente não é muitas das outras coisas. — E com um estalar da língua desapontado, o irlandês desapareceu, descendo a escada para a copa, os sapatos duros fazendo um ritmo de sarabanda nos degraus.
Carregaram Malarkey para a cozinha — a mesma cozinha onde Chevie e Riley quase haviam sido desmembrados apenas seis meses antes a fim de facilitar a passagem até uma fornalha. Riley não se lembrava de nada do incidente, já que na ocasião estava enfiado até o talo em narcóticos venenosos. Mas as lembranças recém-recuperadas de Chevron Savano eram claríssimas, e ela sentiu uma mortalha de inquietação assim que pôs as botas no cômodo. Não tinha sido uma tarde agradável para os dois, e esta também não estava com cara de que iria se revelar um galão de gargalhadas.
Carregaram Otto até uma bancada de madeira e lhe arrancaram das costas os vestígios esfarrapados da camisa de ópera.
— Seda — gemeu Otto. — A seda mais fina. Mandei importar.
Figary chegou com os sapatos batucando, bem a tempo de ouvir o último comentário.
— Importar, é isso? — disse ele, depositando duas jarras na pia de louça. — De onde? Da Ilha dos Delírios, talvez? Ou da Península dos Pavões?
Malarkey gemeu.
— Michael Figary. Juro que você está mais insolente do que o normal. Está bêbado?
Figary abriu a primeira jarra, cheia de larvas brancas e gordas.
— Claro que estou bêbado. É fim de tarde, não é? O senhor quer que eu aplique larvas em sua repulsiva carne das costas estando em plena posse de minhas faculdades mentais?
— Seu maldito mamador de conhaque — disse Malarkey debilmente. — Pare com essa conversa-fiada e tome rumo.
Figary encharcou um pano em álcool da segunda jarra e começou a limpar as costas do rei Otto com habilidade.
— Sim, comodoro. Já vou calafetar seus ferimentos. E calafetar é um termo náutico, assim como tomar o rumo. Mas não preciso explicar termos navais para o senhor, já que o senhor é comodoro e tal.
Malarkey trincou os dentes.
— Me encha de éter, seu irlandês chatinho. Não posso aguentar mais sua voz.
Figary arregaçou as mangas da camisa, depois mergulhou o braço na jarra de larvas e pegou um punhado, as quais moldou num emplastro e depois aplicou nos ferimentos abertos do patrão.
— Parece uma coisa bárbara, não é? — comentou Michael Figary aos recém-chegados cheios de nojo. — Espalhar larvas nas feridas? Mas estas pestinhas vão devorar o tecido necrosado e esterilizar o saudável. O truque é tirá-las antes que colonizem a carne do comodoro; isso não seria bom porque, apesar de o título parecer falso, a moeda dele é genuína e paga o conhaque do filho da Sra. Figary. E em troca disso eu remendaria todos os endinheirados da cidade de Londres, remendaria sim.
— Agradeço vossa lealdade — disse Malarkey, encolhendo-se quando um novo emplastro de larvas bateu em suas costas. — E vou lançar luz sobre essa fala bizarra depois de recuperar a consciência, já que pretendo desmaiar feito morto e pensar no meu pobre irmão assassinado. — E sem mais uma palavra, Malarkey fechou os olhos e descendeu da tortura da consciência para a dor dos sonhos.
Figary trabalhou em silêncio e com eficiência enquanto seu patrão dormia, lacrando cada talho com larvas, depois mumificando as costas largas com bandagens de linho.
— Irmão assassinado — disse ele finalmente, derramando desinfetante com fartura nas mãos. — Parece que o comodoro e seus pregadores de peças juvenis passaram uma tarde animada, parece sim.
Riley deu um passo à frente.
— Talvez eu possa explicar, senhor.
Figary interrompeu o fluxo da fala erguendo uma das mãos.
— Ah, em nome dos céus, por favor, não precisa. As explicações dadas por crianças invariavelmente falham em explicar e, como sem dúvida serei obrigado a suportar a versão fornecida pelo comodoro sobre os acontecimentos do dia assim que ele acordar, prefiro passar o tempo intermediário numa ignorância abençoada, talvez fortificado por um gole de apaga-tristeza.
Riley sentiu que a declaração de Figary poderia sacrificar meia dúzia de palavras sem qualquer perda de significado.
— Entendo, senhor — disse ele, o que não era totalmente verdadeiro. — Talvez nós também possamos nos fortificar, não é?
Figary apontou vagamente.
— Despensa — disse ele. — Lavatório. Guarda-roupa. Aproveitem, jovens. — Ele olhou para Chevie, carrancudo. — Mais especialmente o guarda-roupa para você, mademoiselle. Parece que negligenciou o uso de roupas externas. A partir deste momento jamais conseguirei pensar nas letras F, B e I sem sentir um calafrio. — E, para ilustrar, Michael Figary estremeceu como se um trago de conhaque de alcatrão tivesse escorrido por sua goela, depois deixou os convidados de Malarkey cuidarem de seus afazeres.
— Ainda gosto dele — disse Chevie. — Está com fome?
— Estava — respondeu Riley. — Mas daí pensei nas pilhas de larvas se retorcendo, se refestelando na carne rançosa de Otto. E você?
— Estava — disse Chevie. — Daí me lembrei de quando fui enfiada naquele monta-carga na última vez em que estive aqui, ouvindo o canalha assassino chamado Barnum falar amorosamente com a faca que ele planejava usar para me desmembrar.
Riley fez uma careta.
— Talvez pudéssemos ir para a sala de estar. Talvez tomar um ou dois goles curativos de apaga-tristeza para os nervos e colocar a prosa em dia até que Otto volte à terra dos vivos.
Chevie passou o braço em volta de seu único amigo real.
— Colocar a prosa em dia, pelo menos. Gosto da sua capa. Grande Savano, é?
— Aprova o nome artístico?
— Fico lisonjeada, moleque.
— Eu estava pensando numa fantasia de índio selvagem.
— Estou menos lisonjeada.
— Um gim?
— Não.
— Tudo bem. Cerveja, então.
— Nada de bebidas, Riley. Precisamos estar afiados para Máley e Gagá.
Isso fez Riley parar.
— Máley e Gagá? Você não mencionou essa dupla antes.
Chevie guiou-o até a porta.
— Ah, a pessoa precisa estar sentada numa sala iluminada antes de eu falar sobre Máley e Gagá.
— Não existe período melhor do que o presente.
A observação casual fez Chevie gargalhar até lágrimas escorrerem por suas bochechas pálidas.
Séculos antes desses acontecimentos, em 1306, o rei Ned detestava tanto as névoas impenetráveis que se acomodavam regularmente sobre a cidade baixa que proibiu completamente os fogos a carvão. A interação da fumaça com a névoa das miríades de rios e córregos de Londres formava o infame nevoeiro amarelado que deixava o comércio do rio à mercê da cobrança de resgate com mais eficiência do que qualquer exército de bucaneiros poderia esperar.
Mas a mortalidade de Ned o fez tropeçar no ano seguinte, e seu decreto navegou rio abaixo sem passagem de volta. Com ele, a cidade perdeu a breve trégua do aperto úmido de sua névoa característica, que baixou vingativamente. Charles Dickens a descrevera como uma suave garoa negra, com lascas de fuligem grandes como flocos de neve totalmente maturados — de luto pela morte do sol, pode-se imaginar.
Clover Vallicose e Lunka Witmeyer estavam cercadas pela névoa agora, caminhando sombriamente para devolver Anton Farley ao seu salvador e líder espiritual: o abençoado Clayton Box, que planejava salvar o mundo dos pecados do homem.
Vallicose havia aceitado esse novo desafio de forma jubilosa. De fato, a Thundercat não conseguia se lembrar de já ter se sentido tão absolutamente honrada na execução de seu dever. Os vapores de todas as preocupações e confusões incômodas tinham se dissipado, revelando o instrumento do propósito de aço em que ela havia se transformado. Nada menos do que uma metamorfose. O passado não importava, nem o futuro. Tudo que importava era o propósito. Clover mal conseguia continuar se considerando humana.
Sou realmente um anjo para Box. Arrancada do meu universo para servir a Ele.
Porque ela era digna. Esse era o único motivo possível para ter sido escolhida.
Vallicose carregava Farley num dos ombros, aguentando seu peso com facilidade — na verdade, suportando o peso com júbilo. Esperançosa por desconforto para que pudesse oferecê-lo como sacrifício pessoal.
Witmeyer abria o caminho, avançando através da névoa que parecia esfregar as patas em seu rosto e nas mãos e, onde aquilo batia, ela podia jurar que sibilava e queimava feito ácido. Num aspecto ela ficara satisfeita com a névoa, porque reduzia todas as pessoas a formas fantasmagóricas. Todo mundo assomava, surgia bruscamente e parecia um monstro; por conseguinte, não havia monstros, e duas Thundercats conseguiam se movimentar tão livremente quanto quaisquer outros infelizes que não tivessem escolha a não ser atravessar a cidade num fim de tarde tão confuso. Mas ela esqueceu-se rapidamente de tal vantagem e começou a se ressentir do miasma sulfuroso do rio que fedia a esgoto e cobria a língua e as narinas com uma resina amarga.
A fé de Lunka não era tão forte quanto a de Clover Vallicose. Ela sempre havia acreditado que de fato existira um coronel Box, o qual tinha juntado um exército com o estandarte mais antigo do mundo — a guerra santa — e conquistado terras distantes do mesmo modo como os cruzados haviam feito séculos atrás. Boa sorte para ele, pensara Lunka, e a todos que navegavam com ele. Alguns homens dormem melhor tendo uma causa como travesseiro. Mas a causa de Witmeyer sempre fora seu bem-estar pessoal, e seu credo era tão curto quanto simples: Fique do lado vitorioso.
Durante toda a vida, tinha atuado com entusiasmo a favor desse lado, excedendo as expectativas dos mestres, disposta a pisar em qualquer um que atacasse seu regime escolhido. Witmeyer tinha viajado até os confins da terra, usando o símbolo de Box na lapela, indistinguível de seus colegas de equipe no lado de fora. Mas por trás da viseira antirrespingo de sangue, Witmeyer gostava de pensar que seus olhos estavam abertos. Enxergava a verdade. Via todos eles como os animais que eram.
Fique do lado vitorioso.
Mas aqui, agora, nesta época, o lado vitorioso ainda não tinha vencido.
Será que o fato de estarem ali mudava o resultado estabelecido?
Será que ele ainda era estabelecido?
Agora parecia que as arengas loucas da cadete Savano eram visões de um futuro alternativo.
Será que aqui, neste admirável mundo velho, havia algo diferente a ser encontrado? Algo pelo qual valesse a pena lutar?
— Para onde? — gritou Witmeyer para trás, torcendo a boca para não virar a cabeça, muito embora que diferença isso realmente poderia fazer no meio da bagunça daquele mar de gente?
Vallicose repetiu a pergunta a Farley, que estava mais ou menos consciente, e em algum momento acabou decifrando os murmúrios dele e passou-os adiante.
— Continue seguindo para oeste. Siga o canal.
As mesmas instruções durante a última hora. Bastante simples, poderíamos pensar, mas com a noite invernal chegando cedo e uma boa quantidade de névoa cinzenta nas margens, seguir o canal era possível mais por causa de sons e cheiros do que pela visão, já que nada podia ser enxergado além dos volumes opacos de barcaças e botes, os quais poderiam ser monstros marinhos não fosse o brilho dos faróis de milha pendurados nos mastros e amuradas. A água em si fedia como uma latrina de campanha, e as poucas pedras do calçamento chapinhavam ao serem pisoteadas, como se toda a bacia tivesse se transformado num esgoto a céu aberto.
Seguir o canal? Está mais para seguir o fedor.
Havia muitas coisas nessa versão de Londres que já irritavam Witmeyer, mas o fedor, com seus variados graus que iam do ruim ao odioso, estava no topo da lista.
Este não é o início glorioso sobre o qual lemos na academia.
Witmeyer pisou em algo que primeiro guinchou e depois esparramou líquido. Mesmo tendo estado em situações piores em muitas ocasiões, sentiu-se próxima de perder as estribeiras.
É a falta de controle, percebeu. Sempre entendi a situação em que me encontrava, até agora. Mas aqui, neste mundo fétido, sou tão ignorante e impotente quanto um recém-nascido.
Como uma simples soldado deveria saber a quem matar em meio àquela maldita névoa?
Seguiam lentamente ao longo da margem do canal, Witmeyer com seu braço da pistola estendido rigidamente adiante, e atrás Vallicose, que havia mudado Farley de posição para aninhá-lo carinhosamente nos braços, como um bebê. Estavam caminhando há horas, primeiro pelo beco atrás do teatro Orient e depois para o norte, afastando-se de Holborn, mantendo-se em vielas e labirintos de velhas casas de tijolos, longe das avenidas principais, e evitando qualquer contato desnecessário com os moradores, ainda que parecessem um grupo sinistro e difícil de inspirar qualquer tipo de atitude além de um riso de desprezo ou um insulto malformado. Não havia nada de bonito naquela região do Grande Forno. As mercadorias não eram expostas em vitrines, e sim colocadas em tábuas ou lajes. As ruas não eram de paralelepípedos lavados, mas de terra batida com um rio de sujeira correndo pelo centro. Os homens não usavam cartolas e casacas, e sim bonés chatos, roupas de um tecido grosseiro e tinham a boca com gengivas feridas ou cotocos de dentes enegrecidos. E as mulheres não eram damas da sociedade com corpetes abotoados e saias amplas, mas sim peixeiras com antebraços cheios de veias e cabelos embolados que jamais cheirariam a algo diferente de uma cavalinha.
A noite já estava baixando para encontrar o nevoeiro que subia, de modo que as Thundercats não atraíam tanta atenção como poderiam; mas mesmo assim Witmeyer foi obrigada a lutar contra alguns bêbados num cais de pesca. Apesar de não ter sido obrigada, talvez tenha ficado feliz com a distração. Certamente o estrondo do segundo homem contra uma torre de caixotes a fez sorrir pela primeira vez desde a viagem pelo túnel de Smart.
Viram o amontoado monolítico das estações de King’s Cross e St. Pancras, com as filas de carruagens de aluguel afastando-se das paredes de tijolos como formigas, e ouviram o caos infernal onde os vagões de primeira e segunda classe da cidade batiam os para-choques e as máquinas a vapor chuc-chucavam entrando nos terminais norte e sul, mais de quinhentas locomotivas por dia. Então, por entre os pátios da ferrovia, elas seguiam encolhidas como criminosos, passando pela teia de aranha de trilhos, todos penetrando no galpão de locomotivas antigas e seguindo pelas margens do Regent’s Canal, onde antigamente o ar ressoava com a música da atividade enquanto os marujos lidavam com suas talhas ou guindastes. Agora, porém, era lar apenas dos mais tenazes desse ramo, aqueles que conseguiam arrancar a subsistência apesar da competição esmagadora por parte da ferrovia. Famílias inteiras vivendo num cubículo, trabalhando por um único salário.
Para o oeste então, para Camden, sentindo o frio viajar rapidamente em fiapos de névoa de poluição, enfiando-se por baixo dos sobretudos e descendo pelos canos altos das botas. Witmeyer começou a se esquecer de problemas mais etéreos, como a própria perda de controle e a insatisfação geral com sua fé, e em vez disso passou a se preocupar com a possibilidade de morrer congelada. Nunca havia sentido um frio assim em Londres. Todo o cenário a fazia se lembrar de um inverno que havia enfrentado durante a reeducação de radicais em São Petersburgo, com sua névoa congelante e as locomotivas a vapor.
— Para o diabo — disse, parando junto da coberta de um barco de canal, com uma camada de geada. — Preciso de uma bebida ou uma briga. Ou sei lá o quê!
As formas alteradas de Vallicose e Farley se solidificaram ao seu lado.
— O que nos estorva, irmã? — perguntou Clover.
Witmeyer engoliu uma carranca. Clover estava ali havia cinco minutos e já estava usando palavras como estorva. Ela estava adorando isso. Adorando.
— Nos estorva, irmã? — reagiu Witmeyer rispidamente. — Nos estorva? Ah, umas coisinhas. Em primeiro lugar, o século em que estamos. Em segundo, nossa missão. O que aconteceu com a necessidade de eliminar Savano? Essa ordem veio de cima, afinal de contas.
Geralmente Vallicose tinha pouca paciência para perguntas quando sua objetividade estava focada numa tarefa, mas agora recebia o mau humor da parceira com um sorriso beatífico, o que só servira para enfurecer Witmeyer ainda mais.
— Isso não é piada, irmã. Nós estamos numa situação bem complexa, aqui. É, temos armas, mas não muitas balas. E, de qualquer modo, meus dedos estão tão frios e inchados que não sei nem se consigo puxar o gatilho. E não me sinto bem, Clove. Sério. Desde aquele maldito túnel do tempo sinto-me esquisita por dentro. Acho que aquela máquina reagiu com nossos esteroides.
Vallicose ajeitou o peso de Farley gentilmente.
— Você não vê, Lunka? Este é o Carrasco, antes de ascender à glória. Antes da Revolução do Carrasco. Nós fomos escolhidas para ficar do lado direito dele. E do lado direito do Abençoado Coronel em pessoa. Todas as outras missões estão abaixo dessa honra. Onde estamos, ou na verdade quando estamos, não importa. Só importa nossa missão sagrada, que é levar o Carrasco ao coronel, e ele está nas Catacumbas de Camden... Toda criança em idade escolar sabe disso. Estamos perto demais.
Witmeyer sabia desde muito tempo que não havia sentido em tentar se comunicar de modo honesto com sua parceira sobre qualquer coisa. Vallicose era simplesmente incapaz de improvisar. Para conseguir qualquer tipo de diálogo, Lunka Witmeyer sabia que era necessário construir uma argumentação que a parceira pudesse entender.
— Claro, irmã. Estamos honradas com esta nova missão, abençoadas, mas o Santo Carrasco está ferido e congelando. Precisamos buscar comida e abrigo ou poderemos ser lembradas para sempre como as Thundercats que permitiram que Anton Farley morresse por exposição ao tempo. Talvez nossa missão seja simplesmente salvar a vida dele.
Isso precisava ser cogitado e Vallicose flagrou o próprio olhar passeando pelas casas na margem oposta do canal, com as janelas iluminadas de modo caloroso e receptivo. Uma lareira seria de fato uma bênção. Até mesmo uma parada breve serviria para fortificar todos eles.
Vallicose olhou para Farley, que pendia frouxo em seus braços.
O dever é tão difícil!, pensou. Tantas oportunidades para cometer erros!
Desejou que Farley acordasse, para que pudesse perguntar a ele quais eram suas ordens exatas.
Talvez eu esteja sendo testada. Este é o meu vale das sombras pessoal.
Como se sentisse o olhar dela em sua testa, os olhos de Farley se abriram com um tremor.
— Auut — murmurou ele. — Aaaauuut.
— O que Meu Sr. Carrasco está dizendo? — perguntou Witmeyer, sabendo que o sarcasmo nem seria registrado pela parceira.
Vallicose aninhou o crânio de Farley gentilmente numa das mãos enormes e o puxou para perto do ouvido.
— Sim, major Farley. Dê-nos suas instruções. Nós existimos para servir.
Farley disse qual era a ordem, um comando simples que a própria Vallicose havia pronunciado incontáveis vezes.
— E aí? — perguntou Witmeyer, as palavras minúsculas fazendo uma nuvem de hálito gelado sair dos lábios. — Qual é a boa-nova?
Vallicose sorriu sem graça, perplexa.
— Ele disse, isto é, meu Sr. Carrasco disse: Mãos ao alto.
Witmeyer não retribuiu o sorriso, mas se pôs em guarda de pronto, girando a arma ao longo do canal. Viu-se na mira de uma sentinela parada no que tinha pensado ser uma barcaça coberta, mas que agora percebia ser um bote inflável rígido, com motor de popa. O homem propriamente dito era indistinto, devido ao uniforme preto e à mortalha de poluição, mas o cano do fuzil que saía da penumbra estava perfeitamente nítido.
— Mãos ao alto, princesa — disse o homem. — E baixe a arma.
Witmeyer mostrou os dentes. Eis uma situação que ela entendia.
— Do quê você me chamou, homenzinho?
Um clac ecoou sobre a água chapada enquanto o homem puxava o cursor de sua arma.
— Mãos ao alto, é só com isso que você precisa se preocupar.
Witmeyer se moveu lateralmente para longe de sua parceira, transformando-as em alvos independentes.
— Está pronta, irmã? — gritou para Vallicose. — Lembre-se do que eu disse sobre conservar balas.
Mas sua parceira ficou totalmente imóvel e disse ao Carrasco:
— Ponha as mãos em volta do meu pescoço, meu Senhor.
Quando ele o fez, Vallicose levantou as mãos conforme lhe fora ordenado. Witmeyer não conseguia se lembrar de já ter visto sua parceira em tal posição e, apesar de tudo que tinha vivenciado neste dia cheio de acontecimentos estranhos, foi a visão de Clover Vallicose naquela pose de súplica que deixou claro que sua parceira as havia colocado com toda a firmeza na estrada para a ruína.
— Agora você — disse a sentinela, e Witmeyer não teve opção além de obedecer, permitindo que sua pistola pendesse pela guarda do gatilho.
Os dentes do sujeito deviam ser excepcionalmente brancos, porque Witmeyer poderia jurar que eles relampejavam na penumbra.
— Está vendo, princesa? Não foi tão difícil.
Witmeyer sentiu sua fúria crescer como uma pressão física por trás dos olhos.
A não ser que esse homem seja o próprio coronel, pensou ela, vou machucá-lo antes que isto tudo acabe.
Entraram a bordo do barco inflável rígido — que só deveria existir dentro de mais meio século — e a sentinela pegou dois capuzes embaixo do banco.
Farley viu os capuzes e balançou a cabeça.
Por que se incomodar?, dizia o gesto, e Witmeyer entendeu as implicações. Elas seriam levadas ao centro nevrálgico das operações, e nesse ponto se juntariam ao esforço da revolução ou seriam executadas. De um modo ou de outro, os capuzes não seriam necessários.
PÉS-RAPADOS E MOSCAS DE SARJETA
Eu tenho um cachorro, um sujeitinho adorável, olhos iguais a botões de chocolate. Pois é, esse cachorro, Justin, fica sentado me olhando, concordando com a cabecinha, e poderia jurar que ele entende cada palavra que digo. Quase exatamente igual a vocês agora.
— Professor Charles Smart
As Catacumbas de Camden só eram catacumbas no nome, já que não havia criptas com teias de aranha embaixo de seus tetos abobadados. As supostas catacumbas tinham sido escavadas não como um local para o descanso eterno das almas dos falecidos, e sim como um caldeirão de trabalho árduo para os vivos. O Camden Market era desde muito tempo um centro de comércio, e a chegada da ferrovia só fez aumentar a confusão de homens e animais. Tanto que a companhia ferroviária construiu uma série de estábulos subterrâneos para seus cavalos de carga e até incluiu um tanque e uma doca para os barcos que saíam do Regent’s Canal. Tudo foi construído às pressas e com orçamento pequeno, por isso o lugar se inundava regularmente. Depois de uma chuva forte não era incomum que os casais que passeavam pelo canal tivessem sua paisagem romântica arruinada pela visão medonha de cavalos afogados e de olhos arregalados, largados aos montes na margem.
Esse problema com a água parecia insolúvel, por isso a companhia ferroviária ficou simplesmente empolgada quando, em 1884, um coronel americano aposentado, com mais dinheiro do que cérebro, fez uma oferta extremamente generosa em dinheiro vivo em troca de todo o labirinto subterrâneo. O pessoal da ferrovia não ligou a mínima para o que esse tal de coronel Box planejava fazer com as cavernas, já que sua pilha de dinheiro era suficientemente grande para que o projeto condenado tivesse um lucro milagroso.
Uma recepção com champanhe foi oferecida a Box no Savoy, e depois o pessoal da ferrovia mandou um funcionário depositar o pagamento no banco antes que ele se evaporasse. Como uma nota de rodapé para o caso, o funcionário despachado para a tarefa, juntamente a uma série de ameaças e insultos violentos do diretor Rolls-Jameson, tomou a decisão impulsiva de se esconder numa balsa para a Europa com uma mala cheia de notas de libras e jamais se ouviu falar dele outra vez, ainda que houvesse rumores de que ele comprara um pomar de oliveiras na Côte d’Azur e que tivera uma vida longa e feliz.
Independentemente desse detalhe, agora as catacumbas pertenciam ao coronel, e ele concedera ao engenheiro de sua equipe a tarefa de deixar toda a área subterrânea à prova de inundação, o que, contrariamente à regra universal das reformas, não se provou tão difícil como se supunha a princípio. De fato, todo o problema foi resolvido com a construção de uma única parede reforçada com aço entre as catacumbas e a rede de esgotos adjacente, a qual jamais estivera à altura da tarefa de mandar o esgoto e a água das chuvas de Camden para o distante Tâmisa.
Assim que a parede foi construída escrupulosamente segundo as especificações e testada durante um inverno de chuvas torrenciais, o coronel Box e sua equipe de forças especiais britânicas e americanas — tiradas da Força Delta, dos SEAL, a principal força de operações especiais da marinha dos Estados Unidos, e do Esquadrão Naval da SAS, o serviço aéreo especial do Reino Unido, dentre outros — transferiram o equipamento do futuro para o covil subterrâneo, satisfeitos por finalmente possuírem uma base de operações de onde avançar com seu plano mestre.
Durante a década e meia seguinte, Box e seus homens trabalharam no subterrâneo como castores diligentes, desmontando todas as armas do século XX trazidas pela fenda de Smart e fabricando outras iguais. Houve dificuldades, claro, inclusive a escassez comum de ferramentas adequadas, e uma extraordinária tentativa de tomada de poder por parte dos Fidalgos Fanfarrões, uma quadrilha que só poderia ser descrita como um grupo de piratas fluviais que, depois de ouvir uma lenda em terceira mão sobre uma caverna de Ali Babá cheia de riquezas embaixo do Mercado de Camden, levou suas operações do estuário do Tâmisa para o canal e atacou em duas frentes: por terra e por água. Os Fidalgos Fanfarrões eram pouco mais do que jovens que haviam abandonado Oxford sofrendo da síndrome de moleques mimados, e não eram páreo para Box e seus soldados idosos, embora o coronel tenha perdido dois homens bons, o que o fez perceber que em algum momento precisaria incrementar seus postos com povo local para que a operação tivesse sucesso. E assim o major Anton Farley foi despachado para se infiltrar na maior e mais bem-organizada instituição criminosa de Londres: os Aríetes. E quando chegasse a hora, quando todas as armas estivessem prontas, o conselho de guerra dos Aríetes seria executado e o restante da quadrilha receberia uma proposta.
Esse bendito dia finalmente havia chegado.
Catacumbas de Camden. Londres. 1899
O barqueiro deixou o motor escondido e habilmente levou o Zodiac inflável, com a ajuda de um varapau, em direção aos arcos da ponte de Camden, que pareciam bocas com dentes de tijolo. Ondulações escuras batiam nos flutuadores de borracha, levando o inflável para o meio da corrente, mas o remador compensou isso sem pressa, fazendo redemoinhos fundos na água com sua vara.
Mil vezes, pensou Witmeyer. Ele fez essa viagem mil vezes.
Ela olhou de soslaio para a parceira, que estava sentada ao lado, no meio do barco, e não ficou surpresa quando notou o rosto de Vallicose brilhando com uma expressão fanática.
Clove acha que está a caminho do paraíso.
O que era irônico, já que as águas escuras do canal poderiam facilmente ser o rio Estige e o barqueiro poderia ser o lendário Caronte, levando-os para o inferno.
Por que não? Tem alguma coisa impossível agora?
Witmeyer estremeceu, em parte para se esquentar, mas também para afastar a natureza filosófica de seus pensamentos. Quando era menina, ela se interessara bastante pelos grandes pensadores. Na época de cadete, ainda adolescente, até mesmo namorara um poeta durante uma missão à paisana, e ficou incomodada durante horas quando precisou denunciá-lo, mas a partir daí aprendeu que este não era um mundo para a filosofia. Os programas de história na Boxnet garantiam aos fiéis que a Londres Vitoriana era o maior esgoto de pecados humanos e corrupção que o planeta jamais vira. Aparentemente aquele período fazia Sodoma e Gomorra parecerem acampamentos de meninas escoteiras.
Sobrevivi com meus instintos até agora, e vou sobreviver a esta dificuldade também.
O bote inflável movia-se em avanços rítmicos, a água sibilando no costado, até que a ponte bocejou acima deles, com estalactites gordurosas pingando dos arcos. Elas poderiam estar navegando pela goela de uma baleia, pelo que as Thundercats podiam ver, mas a sentinela fazia força com o remo comprido e guiava o bote em direção a um banco indistinto de destroços flutuantes e lixo em decomposição. A proa atravessou com facilidade a barriga mole da margem e logo eles estavam escorregando através de um arco de acesso sombreado, por baixo da ponte em si.
Vallicose mal podia conter a empolgação.
A boca das catacumbas. Posso sentir a presença do Abençoado Coronel.
Claro, ela já estivera ali. Em passeios escolares. Para os boxitas, esse lugar era equivalente à Belém da Palestina. Era ali que o Império Boxita havia nascido, nesta série espartana de cavernas subterrâneas.
Um facho de lanterna atravessou a escuridão e prendeu o bote num círculo branco de água.
— O que você tem aí, Rosey? — perguntou um sotaque do norte da Inglaterra vindo da escuridão.
— Farley e duas desgarradas — respondeu o barqueiro.
Rosey?, pensou Vallicose, dando seu grunhido de surpresa. O sargento Woodrow Rosenbaum, nascido em Nova Jersey. O Evangelista. Tenho sua figurinha da Bíblia em meu armário.
— Sargento Rosenbaum — disse com uma reverência curta. — Que honra conhecer o Evangelista! Não o reconheci na névoa.
— Evangelista? — disse o segundo homem, saindo das sombras. — O que ela está falando, Rosey?
O segundo homem era um soldado completo, desde o cabelo à escovinha até as botas militares. O uniforme era um estranho híbrido de futurista e vitoriano. A jaqueta de aviador definitivamente não era deste século, mas o revólver volumoso no cinto e a cartola velha empoleirada na cabeça o ancoravam nesta época.
Vallicose o examinou.
— Você é Aldridge — disse. — Cabo Sonny Aldridge. Nascido em Newcastle.
Aldridge levantou o cano do fuzil que, como ele, parecia montado a partir de peças disparatadas.
— Isso parece uma informação de vigilância, moça. Não gosto de pessoas que sabem de coisas a meu respeito.
— Tenho sua figurinha na minha coleção — disse Vallicose. — Todo cidadão leal conhece esta informação. Está escrita no pedestal de sua taxidermia no Salão dos Heróis.
Aldridge não baixou a arma.
— Está escrito no quê da minha o quê no quê?
Farley tossiu e se apoiou num dos cotovelos. Seu rosto estava pálido à luz da lanterna, mas os olhos profundos brilhavam nos recessos.
— Cabo, estas pessoas são do futuro e salvaram minha vida. O coronel quererá vê-las imediatamente. Isso pode mudar tudo.
Sonny Aldridge fez uma careta.
— Tem certeza, major? O coronel não gosta de surpresas.
Farley estava inflexível.
— Isto é diferente, cabo Aldridge. A senha de hoje é rei lagarto, e agora leve-nos para dentro. É uma ordem.
Aldridge deu de ombros, absolvendo-se de qualquer responsabilidade. O que ele poderia fazer, senão cumprir ordens? Pegou um walkie-talkie no colete, mandou dois jatos de estática e depois apertou o botão de falar.
— Aqui é Aldridge. Rei lagarto. Repito, rei lagarto. Abra o portão. Quatro entrando.
Atrás dele, num pesado painel de aço, duas correntes grossas se retesaram, tilintando rígidas, e espirraram água no círculo iluminado. O painel subiu bruscamente, deixando um quadrado na parede acima, e de dentro das catacumbas veio uma cacofonia de atividade, inclusive o zumbido de lâmpadas de arco voltaico e fagulhas de solda. A impressão era de produção e objetividade.
— Ah — disse Vallicose. — Ah. Ah.
Aldridge sinalizou para eles passarem, usando a antena de seu walkie-talkie, e o sargento Rosenbaum guiou o Zodiac pelo portão do canal, entrando na barriga das catacumbas.
Witmeyer era uma mulher durona, difícil de se impressionar. Afinal de contas tinha visto mais maravilhas no decorrer de seus 15 anos como soldado para Box do que a maioria das pessoas veria em uma dezena de vidas. Já aos 18 anos ingressara na equipe das forças especiais que havia dinamitado a Torre Eiffel, possivelmente o maior golpe de propaganda jamais alcançado nas guerras contra os Jax. Antes de chegar à terceira década de vida, Lunka Witmeyer havia comandado a campanha para eliminar o elefante profano da África e da Ásia. Aos 23 era uma das comandantes do próprio ônibus espacial de busca e destruição em órbita baixa da terra, caçando satélites da resistência conectados à internet, de modo que Lunka Witmeyer havia literalmente visto o mundo. Mas as imagens que seus olhos arregalados receberam naquelas catacumbas a impressionaram tremendamente — tanto, se é que não mais, do que qualquer coisa que tinha visto em sua variada carreira. O coronel Box e seus homens estavam montando um exército no subterrâneo, preparando-se para a primeira etapa do Golpe de Box.
O portão dava para uma série de salas baixas interconectadas por arcos de tijolos e iluminadas por uma série de luzes de arco voltaico penduradas ao longo das paredes e alimentadas por vários geradores portáteis que rosnavam e estremeciam nos cantos, feito cães de guarda. Os arcos conferiam uma sensação de catedral ao espaço, e a impressão era de trabalho sagrado. Homens montavam e desmontavam armas. Witmeyer viu grandes quantidades de tubos de morteiros, veículos de assalto, lançadores de granadas, minas magnéticas, fuzis que lembravam vagamente os AK-47, espingardas de caça e caixas de munição. E um agrupamento de botes Zodiac balouçando em amarras presas numa escada de aço que levava a um pequeno cais.
— É uma tremenda operação — disse Witmeyer, pensando que talvez esse fosse o time ao qual deveria se juntar. A rainha Vitória podia ter a quantidade de recursos humanos ao seu lado, mas um mero morteiro daqueles seria capaz de destruir facilmente todo um alojamento, e um homem com um único AK-47 com balas ilimitadas conseguiria estraçalhar soldados de infantaria até o cano ficar superaquecido.
Os soldados trabalhando mal olharam para cima enquanto o barco passava e Witmeyer notou que muitos eram consideravelmente mais jovens do que Rosenbaum.
O coronel andou recrutando.
Fazia sentido. Não importava quantos canhões você possuísse se não houvesse soldados para dispará-los. O poder de fogo só funcionava com uma certa quantidade de força humana.
Uma pena o coronel tão ter esperado até que os drones de batalha fossem inventados, pensou Witmeyer. Ele poderia ter vencido a guerra santa sozinho.
Para Lunka, estava óbvio que se ela e Clover tinham retrocedido no tempo levando armas, o coronel Box e seus homens haviam feito o mesmo. Não existiam especificações divinas de armas, vindas do alto. Box e sua turma eram simplesmente viajantes do tempo. O Abençoado Coronel não era tão abençoado quanto sortudo.
Witmeyer se perguntou como essa revelação bombástica afetaria sua parceira, e seu lado cruel estava ansioso para testemunhar a reação de Clover.
Ela vai pirar completamente, pensou, não sem satisfação. Durante todo esse tempo, acreditou que seu precioso coronel era um deus entre os homens, e acontece que ele não é mais especial do que o restante de nós.
A não ser Charles Smart. Ele tinha sido especial, e Vallicose havia atirado nele.
Rosenbaum jogou uma corda para um colega soldado e o barco atracou junto a um poste de amarração. Com um movimento brusco do fuzil, ele instigou as passageiras a sair para o cais de aço. Vallicose se recusou a entregar Farley, por isso caminhou pela passarela, carregando no colo o Abençoado Carrasco.
— Posso andar — disse Farley, irritado. — Ponha-me no chão.
Vallicose não lhe deu ouvidos; talvez estivesse incapaz de ouvir. A Thundercat parecia ter alcançado um estado de semitranse. Suas pernas se moviam e seu coração batia, mas a mente estava capturada pelo arrebatamento.
Estou aqui, pensava incrédula. Nas catacumbas, durante a época da preparação, indo conhecer o Abençoado Coronel.
Como algo assim poderia ter acontecido se ela não fosse escolhida? Sua devoção tinha feito com que esse evento acontecesse. Box a havia observado, e esta era a recompensa.
Em algum lugar no fundo de sua mente, uma pequena voz guinchava dizendo que talvez o Abençoado Coronel tivesse todas essas armas futurísticas porque vinha do futuro, mas a fanática Clover Vallicose não sentia qualquer dificuldade em ignorar essa pequena voz da razão.
Agora cabeças estavam virando. Aquelas duas Thundercats em especial já atraíam atenção suficiente andando através de quartéis-generais de Thundercats na própria época, mas aqui na Londres Vitoriana, sob a claridade crua da luz elétrica, a maior parte dos soldados recém-contratados ficaria honestamente menos surpresa se visse dois carangorcos, o mítico monstro híbrido de caranguejo e porco que percorria a rede de esgotos. Até os homens que haviam saltado da década de 1980 jamais tinham visto espécimes como aqueles. Vallicose e Witmeyer tinham mais de 1,90 metro, e cada uma era impressionante ao seu modo. A pele de Vallicose era pálida como porcelana, seus olhos verdes eram grandes e cercados por cílios ruivos tão longos que quase se enroscavam em si mesmos. Witmeyer era mais morena, com dois malares proeminentes e uma cova funda no queixo. O cabelo caía em mechas escuras em volta dos ombros e ondulava enquanto ela andava. Acrescente a esses detalhes o fato de as duas terem se alimentado com esteroides e vários hormônios de crescimento desde que haviam nascido, e o resultado são duas mulheres lindas que não poderiam passar por um portal sem se abaixar e virar de lado.
— Olhem só isso, parlapatões — disse um soldado, nativo deste século. — Não sei se beijo ou se atiro nelas.
Vallicose, que costumava se ofender rapidamente, passou flutuando em uma nuvem santa, por isso Witmeyer teve de dar a cabeçada de castigo.
— Pense nisso por um tempo — disse ao soldado inconsciente do “beijo ou atiro”. Um coro de urros e aplausos cresceu ao redor delas, como corvos circulando, enquanto o castigo sumário de Witmeyer era recebido com aprovação.
Rosenbaum ignorou a miniconfusão e continuou passando pelo primeiro de muitos arcos, alguns dos quais tinham sido reforçados com andaimes de ferro, já que estavam perdendo integridade devido às vibrações das máquinas abaixo. O estranho grupo passou por várias salas grandes e desprovidas de janelas, com montinhos de soldados fazendo exercícios ou trabalhando sobre máquinas de guerra estripadas. As armas eram curiosas, no sentido de que faziam lembrar equipamentos do século XXI, mas uma inspeção mais atenta provou que o acabamento era um pouco menos refinado. Eles estavam construindo armas baseadas em protótipos futuristas.
Uma sala continha uma oficina de fundição que derramava metal incandescente de uma cuba gigantesca em vários moldes enquanto a fumaça era sugada pelo exaustor de uma chaminé enegrecida. Os homens que trabalhavam na cuba com ganchos de cabo comprido estavam despidos até a cintura, a pele enegrecida pelo enorme calor. Witmeyer achava impossível olhar para eles e não pensar em demônios nas fogueiras do inferno.
São imagens infernais em número suficiente para um dia, disse a si. Primeiro o rio Estige, e agora isto.
O calor esquentava as costas do grupo enquanto este passava ao largo da oficina de fundição rumo a um corredor comprido com uma fileira de arcos menores que levava a uma única porta de aço. Vallicose conhecia bem aqueles arcos, já que havia se demorado nesse corredor em suas visitas às Catacumbas de Camden. O Corredor do Poder era o nome que os guias dariam ao mesmo; Clover tinha encostado o rosto nos arcos de tijolos várias vezes, imaginado que sentia um latejar do poder boxita residual absorvido pela alvenaria.
Do outro lado daquela porta, pensou Vallicose, e inconscientemente apertou Farley com mais força.
— Ponha-me no chão, sua desgraçada! — disse Farley. — Você está me esmagando.
Vallicose piscou, recolocando o mundo em foco.
— Ah, peço desculpas, major Farley. Estou um pouco atarantada.
Farley desceu do colo dela.
— Não vou aparecer diante do meu oficial comandante como um bebê no colo.
— Claro, senhor. Desculpe. Será que devo consertar...? — Ela apontou para o ombro direito de Farley. — Ele está pendendo meio baixo. Quanto antes voltar ao lugar, melhor.
Farley olhou irritado para o ombro, como se ele o houvesse traído ao se permitir ficar deslocado após sua queda nos suportes de partituras.
— Temos um médico e dois paramédicos aqui. Não creio...
Enquanto ele falava, Witmeyer chegou por trás e o segurou pelos ombros. Antes que Farley pudesse protestar, ela o apertou como se ele fosse um acordeão, encaixando a junta do ombro.
— É uma coisinha que a gente faz — explicou. — Clover distrai e eu faço a cirurgia de campo. Uma vez amputei uma perna com uma machadinha, bem assim desse jeito.
Consertar o ombro deslocado de Farley de fato a animou um pouco, já que aquilo lhe trazia recordações de seus dias de glória percorrendo os povoados do norte da França. Mas Farley não ficou nem um pouquinho alegre. Seus joelhos tremeram e ele uivou de choque e dor.
— O que é isso, irmã? — gritou Vallicose, consternada.
— Achei que estivéssemos fazendo nosso show. Você distrai, eu curo. É isso que a gente sempre faz.
— Este é o Carrasco! — disse Clover. — Não devemos distrair o Carrasco.
Witmeyer soltou um muxoxo, o que em seu rosto era de fato uma expressão terrível, e depois de vê-la a maioria das pessoas sãs bateria em retirada e se esconderia atrás de uma grossa parede de concreto, mas Vallicose jamais.
— Deixe de lado a cara de guerra, irmã Witmeyer. Estamos em águas não mapeadas. Estamos em solo sagrado. Os velhos costumes estão mortos.
Que pena, pensou Witmeyer. Eu preferia quando o Abençoado Coronel e o Carrasco eram símbolos de uma história que retorcíamos para satisfazer nossos fins.
Nesse momento um confronto entre as Thundercats se tornou inevitável, e talvez tivesse acontecido ali mesmo caso a porta de aço não tivesse sido aberta com tamanha força que ressoou contra a parede, erguendo nuvens de pó de tijolo do portal. A porta girou, fechando-se uns três quartos, zumbindo como um diapasão e escondendo a abertura das vistas de Vallicose e Witmeyer.
— Que barulho infernal é esse? — perguntou uma voz masculina. — Quantas vezes pedi para os agonizantes serem mantidos fora do alcance da audição?
Farley segurava o ombro com força para conter a agonia.
— Desculpe, coronel. Temos pessoas recém-chegadas; elas não conhecem as regras.
— Novatos junto à minha porta? — disse o coronel, parecendo bem insatisfeito. — Há regras para os recém-chegados, mas há regras sobre os recém-chegados também, major.
— Perdão, senhor, mas isso é diferente. Na verdade é extraordinário. Tenho certeza de que o senhor iria gostar de entrevistar estas duas pessoalmente.
— Tem, é? — perguntou o coronel. — E por que isso?
— Elas são do futuro, coronel. Do novo futuro. Do futuro alterado.
A notícia foi recebida com uma breve tomada de fôlego e uma longa pausa antes de a porta ser completamente aberta, revelando o homem que Farley havia chamado de coronel.
Vallicose se ajoelhou, baixando a cabeça e pondo a mão esquerda no logo boxita bordado em seu sobretudo.
— Salve, coronel Box — disse ela, iniciando a Oração do Coronel. — Abençoado seja Clayton. Ele que labutou longamente nas trevas para que todos pudéssemos ver a Luz. Olhai por nós e perdoai nossa fragilidade humana. Livrai-nos dos desprovidos de deus e dos pecadores. O senhor é nosso pastor, nossa inspiração cotidiana e nossa estrada para o céu. Salve, Coronel Box. Amém.
Witmeyer não se ajoelhou nem baixou a cabeça. Queria dar uma boa olhada naquele homem, que havia deixado de mencionar no evangelho que suas armas vinham do futuro e que ele não era de fato um deus.
Assim, enquanto Box ficava imóvel, fascinado com a recitação de Vallicose, Witmeyer o avaliava da cabeça aos pés e guardava cada detalhe na memória.
O coronel Clayton era um homem alto. Um 1,92 ou 1,95 metro, talvez, com uma cunha lisa de cabelos dourados no topo do cocuruto, como um tijolo de ouro. As laterais da cabeça eram raspadas, o que devia agradar a Vallicose. Ele era bem parecido com seus retratos, mas havia nas feições uma intensidade que nenhum pincel ou câmera poderia jamais capturar. Os olhos pareciam estranhamente arregalados e escuros, um azul profundo com lascas de branco atravessando-os como relâmpagos. Aqueles olhos encaravam Vallicose sem piscar, não importando por quanto tempo Witmeyer olhasse, fazendo-a pensar que o coronel devia estar de algum modo coordenando os padrões de piscadas aos dela. Isso era impossível, claro. Era verdade que o rosto do sujeito era familiar a partir de um milhão de cartazes e faixas — familiar, mas não idêntico. Witmeyer considerou os artistas do partido um pouco generosos ao serem contratados para capturar as feições do coronel. Os pontos fortes eram bem-desenhados, mas as características mais fracas tinham sido levemente melhoradas. O queixo, por exemplo, era baixo e projetado, o que dava a Box um ar de orangotango; e os lábios eram estreitos, como as abas abertas de uma barriga de peixe, e se movimentavam enquanto Vallicose falava, como se o coronel estivesse lançando um feitiço nela. A pele de Box era lisa e pálida devido a muitos anos no subterrâneo, e o bigode, ainda que fosse mediamente impressionante, com certeza não estava à altura das expectativas. Especialmente quando se considerava que o poema infantil número um, ensinado nas creches de Albion, era “O bigode do coronel”, o qual dizia:
O bigode do coronel,
O bigode do coronel,
Que brotou num instantinho
É grosso que nem pincel.
Você pode viajar
Pela terra e pelo céu
Mas não verá nada igual
Ao bigode do coronel.
Todas as crianças do império conheciam a cantiga, escrita pelo laureado poeta Edderick Bulsara, que também escreveu obras-primas como “O quepe do coronel” e “O gatinho do coronel” — tão diferentes quanto água e vinho e muito semelhantes à água.
Se Witmeyer fosse ser dolorosamente honesta consigo mesma, teria de admitir que, com todos os esteroides que havia tomado, às vezes seu próprio bigode era igual ao do coronel.
Mas nada disso importava — nem o bigode, nem o queixo agressivo ou os lábios arrepiantes — considerando que o sujeito em pessoa estava ali a encarar. Quando aquelas órbitas azuis e profundas se voltavam para uma pessoa, parecia que uma alma estava sendo desnudada para todos. Essa pessoa sabia que, de algum modo, o coronel Clayton Box possuía uma espécie de segunda visão que enxergava através da máscara cotidiana que todo mundo usava, até chegar ao rosto secreto que havia embaixo. Era uma coisa aterrorizante, espantosa e parecia interminável.
Witmeyer descobriu isso quando Box a examinou durante dois segundos inteiros.
— Uma pergunta — disse ele num sotaque quase neutro, com apenas uma leve sugestão texana. — O que acham do meu bigode?
É uma armadilha, gritou a intuição de Witmeyer. Não importa o que faça, não responda com sinceridade.
— Lindo, coronel — disse ela. — Muito... frondoso.
Box semicerrou os olhos.
— Hummm — disse ele, depois se virou para Vallicose. — A mesma pergunta para você. O bigode. Alguma opinião?
Todo o rosto de Vallicose estremeceu, mas ela sabia que seria impossível mentir para o coronel.
— Gosto da ideia do seu bigode — respondeu lentamente.
— Mas? — instigou Clayton Box.
— Mas na realidade parece meio ralo. Dói-me dizer essas palavras, coronel, mas eu jamais poderia mentir para o senhor.
— Hummm — disse Box outra vez. — Respeito a verdade. — Ele apontou para Witmeyer. — Mas ela mentiu para mim. Não vou tolerar falsidades. Atire nela.
Aquilo era uma espécie de teste para os recém-chegados, apenas um cutucão psicológico para ver como eles reagiriam, mas as duas Thundercats já estavam agindo antes mesmo de o eco do comando se esvair. As duas partiram para cima de Rosenbaum. Witmeyer deixou-o sem fôlego com um soco no plexo solar, depois arrancou seu revólver do coldre. Vallicose deu um tapa na lateral da cabeça de Woodrow Rosenbaum, puxou uma faca do cinto dele e logo as Thundercats estavam em cima uma da outra, faca no pescoço e cano na têmpora.
— Somos parceiras, Clove — disse Witmeyer. — Há muito tempo.
Vallicose estava com os olhos lacrimosos.
— Sinto muito, Lunka, mas não tenho escolha.
Box concedeu um segundo à situação tremendamente interessante, depois interveio.
— Certo, esperem. Eu achava que só havia espaço para mais uma em minha operação, mas com habilidades assim acho que posso usar duas.
Vallicose piscou.
— O senhor a absolve, coronel?
Box franziu a testa, curioso com o nível de deferência, mas também gostando um bocado.
— Eu a absolvo. Baixem as armas, as duas.
Vallicose obedeceu instantaneamente. Witmeyer precisou pensar por um momento, depois baixou seu revólver também.
— Se o coronel perdoa você, irmã — disse Vallicose —, eu também posso perdoar.
Witmeyer não retribuiu o favor. Não estava no clima para perdão.
Box olhou para trás, para os planos e mapas que o chamavam. Programaria uma hora para interrogar aquelas duas mais tarde, mas por enquanto havia algumas táticas sobre a revolução que precisavam ser aprimoradas.
— Ponha estas duas sob guarda até de manhã cedo — disse a Farley. — Depois vá se remendar. Preciso de você em forma para amanhã. Temos um grande dia pela frente.
— Dia da Emersão — sussurrou Vallicose, e soube por que fora mandada para cá: para estar ao lado do Abençoado Coronel enquanto travavam a guerra santa.
O sangue vai jorrar, pensou. O sangue dos pecadores e dos incrédulos.
Grosvenor Square. Mayfair. Londres. 1899
Riley e Chevron dormiram num amplo divã na sala de estar, um virado para os pés do outro, enquanto as larvas se refestelavam com a carne de Otto Malarkey. Era possível que houvesse assuntos mais urgentes para se resolver do que a própria exaustão — na verdade, apenas algumas horas haviam se passado desde que Riley tirara um cochilo no teatro. Mesmo assim as mentes traumatizadas concluíram que os dois tinham absorvido informações suficientes para um dia e desligaram-se até o amanhecer. Quando acordaram se flagraram cobertos por um edredom de penas de ganso. Havia uma bandeja com o desjejum numa das mesinhas de centro terrivelmente ostentosas e um leve cheiro de conhaque no ar, o que os levou a crer que Figary tinha algo semelhante a um coração, afinal de contas.
Passaram uma hora limpando a bandeja do desjejum até a última migalha de bolinho e colocando em dia tudo que havia acontecido desde a última vez em que quase tinham morrido na companhia um do outro. Havia muita coisa a ser digerida dos dois lados, e no final ambos fizeram um resumo.
Riley foi o primeiro:
— Então o que você está dizendo, Chevron Savano, é que o futuro mudou só porque Farley pôs os olhos em você na última vez em que você visitou nossa pungente metrópole. E agora tudo que você estima desapareceu, juntamente a vários milhões de inocentes assassinados, e no lugar há um desgraçado império do mal que trava uma guerra santa contra qualquer um que não concorde com ele?
Chevron engoliu um último pedaço de salsicha que, como fanática pela boa forma, jamais comeria normalmente, porém naquela manhã ela elaborara uma nova regra de dieta: Qualquer coisa comida fora de sua zona temporal não conta.
— É isso aí, moleque. E o que você está me dizendo é que estava se preparando para abrir seu teatro com um show de magia onde você ia se apresentar como o Grande Savano, quando um punhado de bandidos chegou para dar um arrocho, só que um deles na verdade era um soldado do futuro que assassinou todos os outros?
Riley assentiu.
— É difícil de acreditar, não é? Mas não é só isso, é, Chevie? Lembro-me de que você falou de duas valentonas matreiras com o nome de Máley e Gagá?
Chevie ajudou a salsicha a descer com um gole de chocolate quente, já que tinha acabado de decidir que a regra de comida em outra zona temporal também se aplicava às bebidas.
— Máley e Gagá, também conhecidas como Clover Vallicose e Lunka Witmeyer. Duas guerreiras enviadas para me matar. Estão aqui agora, nesta época. Espero que Londres engula as duas, mas duvido.
— Mesmo assim, o que elas são, além de duas garotas com armas? Não deveriam ser uma dor de cabeça muito grande.
— Eu sou uma garota com uma arma — observou Chevie. — E aposto em qualquer uma daquelas duas contra o nosso rei adormecido lá embaixo.
Riley assobiou.
— Bom, isso é uma novidade completa. Espero que essas duas não engatem o vagão delas no expresso Farley, caso contrário podemos ficar encrencados de verdade.
— Pode contar com isso. Se o coronel Box está em algum lugar nesta época, Vallicose e Witmeyer vão encontrá-lo.
Riley tirou sua capa pesada e a deixou cair no chão, fazendo um ruído.
— Parece que nosso melhor plano é ficar fora dessa encrenca. Não podemos lutar contra um exército.
O rosto de Chevie ficou subitamente solene.
— Não posso fazer isso, Riley. Você se lembra de que contei que meu pai foi morto num acidente?
— Lembro, e é uma dor que esse sujeitinho aqui conhece bem demais.
— Nesta nova linha temporal papai não morre num acidente de motocicleta. Um vizinho o denuncia porque ele escrevia canções em seu tempo livre. Foi executado pelos Thundercats. Disseram que ele era um traidor.
— E era?
Chevie deu de ombros.
— Não sei. Espero que sim. Eles pegaram minha melhor amiga também, só porque virou uma esquina errada num corredor.
Riley mudou de posição no divã para poder passar o braço em volta da amiga.
— Ninguém deveria ter esse tipo de lembrança na cabeça. Precisamos tentar apagá-las, ou pelo menos fazer com que não sejam verdadeiras. Mas há uma coisa mais urgente que precisa ser resolvida.
Boa parte do guarda-roupa de hóspedes de Tibor Charismo havia sobrevivido ao canhão da milícia, de modo que Chevie e Riley também puderam trocar de roupa, já que as peças que usavam eram extremamente inadequadas para se aventurarem na Londres vitoriana. Os trajes de Riley tinham sido bastante retalhados, a não ser pela capa de mágico, que afora alguns rasgos e arranhões havia se mantido razoavelmente intacta. E a fusão de roupa de ginástica com macacão de cadete de Chevie equivalia a usar uma placa dizendo biscate lunática ou outras palavras com o mesmo sentido, muitas das quais Riley havia pronunciado até Chevie mandá-lo calar a boca ou então ela iria lhe dar um tiro.
— Estou meramente oferecendo a opinião de que outros papalvos, que não conhecem você como eu, poderiam presumir erroneamente que você era uma rebelde desavergonhada que escapou do hospício, já que estava usando colete e ceroulas.
— É? Bom, alguns papalvos que não conhecem você poderiam pensar que você escapou do necrotério, para onde vou mandá-lo agorinha mesmo — contrapôs Chevie debilmente.
Riley levantou um dedo.
— Esse não é um bom raciocínio, colega. Em primeiro lugar, ele não faz o menor sentido; e em segundo, seus passados e seus futuros estão todos misturados.
— É a história da minha vida — reagiu Chevie. — E da sua também.
Chevie cedeu à pressão e cobriu o corpo com um roupão de seda.
— Mais tarde pego alguma coisa para usar lá fora — disse. — Há muita coisa para escolher.
É legal ter opção, concluiu ela. Eu deveria tentar fazer mais isso no futuro.
Isso, pensou ela, dependeria do futuro.
Otto Malarkey acordou pouco depois e saiu caminhando pelo andar de baixo, gritando por suas botas, as quais Figary aparentemente tinha levado enquanto seu patrão dormia, já que o irlandês era pouco mais do que um maldito ladrão — assim como o restante de sua raça de incréus —, segundo Malarkey, que berrou esse insulto e outros semelhantes em tal volume que toda a praça ficou sabendo de suas opiniões sobre o empregado.
Por fim, Otto enfrentou a escada e foi até a sala de estar, com o rosto vermelho de tantos berros, mas afora isso em condições razoáveis.
— Onde estão as porcarias das minhas botas? — perguntou num sotaque americano passável.
Chevie deu de ombros.
— Não sou a encarregada das botas, Otto. Você deveria cuidar melhor das suas coisas.
Otto demorou um instante para analisar as próprias identidades e deduzir quem deveria ser no momento atual. Tinha bastante certeza de que estava na casa do comodoro. Mas então porque a princesa índia e o arietinho estavam sentados em sua sala de estar? Eles não faziam parte da vida de Otto Malarkey? E, para esfregar sal na ferida, por que a garota estava sendo mal-educada com ele? Será que ela acreditava mesmo que ele era o gentil comodoro Pierce, que cantava modinhas de marinheiro depois do jantar, fumando charutos, sempre deixando de fora os versos despudorados para não fazer as damas ruborizarem atrás dos leques?
— Não sô nenhum comodoro, mocinha — disse ele, abandonando o fingimento ianque. — Portanto seria sensato você não arrumar briga comigo.
Figary entrou pela segunda porta da sala de estar, uma porta espelhada, trazendo as botas de Malarkey. Imensas, de cano alto, elas tinham a metade do tamanho do diminuto mordomo irlandês.
— Ah, acho que Deus e o mundo sabem que o senhor não é nenhum comodoro. Apesar de sua não comodorice, o filhinho da Sra. Figary aqui resolveu engraxar suas preciosas botas, como um pequeno agrado, para quando o senhor acordasse. E esse é o agradecimento que recebo: invectivas e acusações.
Malarkey pegou as botas sem uma palavra de gratidão.
— Invectivas e acusações são o meu estilo, assim como o descaramento bêbado é o estilo do filho único da Sra. Figary, Michael.
Otto sentou-se numa cadeira de filigranas com almofada de veludo e pernas em formato de cornucópias, puxando as botas por cima dos joelhos e sorrindo para elas como se cada bota fosse um cão amado aos seus pés.
— Aqui vamos nós, rapazes — disse ele. — Tudo vai bem com o mundo, hein? Desde que a gente não se separe. — Assim que as botas estavam acomodadas, Otto olhou incisivamente para Michael Figary. — E agora ao que importa. Como está meu cabelo hoje? Dizem que a ansiedade afeta os folículos.
Figary revirou os olhos.
— O cabelo está magnífico, está sim, comodoro, de fato. E agora seria problema demais requisitar um pouco da verdade de Deus? O filhinho da Sra. Figary gostaria de saber quem é o patrão dele.
— Gostaria, sim — disse Riley, divertindo-se e ganhando em troca um olhar gélido de Figary.
— Acho que lhe devo isso, mas sei que você não terá um calafrio de prazer — respondeu Otto. — A verdade de Deus é que vou sentir falta de ser o comodoro. Foi um ótimo esporte bancar o grã-fino. — Malarkey coçou os flancos. — Deixe-me começar com as botas. Elas pertenceram ao meu mentor, o reverendo John Pine. Era o par predileto dele. Ele era o rei dos contrabandistas e me deu o primeiro gostinho do crime organizado. Deixou-me as botas e eu as usei para abrir um caminho a chutes para meus irmãos e eu chegarmos ao topo dos Aríetes. E agora sou o rei deles.
A mão de Figary subiu para cobrir a expressão horrorizada em sua boca.
— Ora, carreguem-me para fora e me enterrem com decência, estou trabalhando para o rei dos patifes: Otto Malarkey, é? O grande verdureiro ambulante em pessoa.
Otto sacudiu os cachos.
— Você me pegou, Figary. O que a Sra. Figary acharia de seu filhinho Michael agora? Trabalhando de mordomo para o grande rei da arraia-miúda?
Figary olhou para os céus como se pudesse sentir o olhar reprovador de sua falecida mãe adorada.
— Eu não sabia, mamãezinha. Não sabia — disse ele, depois voltou a atenção para Malarkey. — O senhor tem ideia de quantas novenas precisarei rezar pedindo perdão? Vou rezar até o natal.
O mordomo atravessou a sala até um carrinho de nogueira cheio de bebidas e serviu-se de um grande copo de conhaque, que ele pôs para dentro em dois goles.
— O senhor é um homem de sorte, pois em geral eu sou um covarde embriagado. Se algum dia eu o encarasse sóbrio e encontrasse minha coragem, o senhor levaria uma surra, levaria sim.
— Não tenho dúvida, Michael — disse Malarkey.
— Poderia nos dizer o que está acontecendo, Otto? — perguntou Chevie. — Por que o leprechaun fica chamando você de “comodoro”? Esse seria um bom lugar para começar.
— Leprechaun, é? — disse Figary, com pontos vermelhos de fúria surgindo nas bochechas. — Então esse é o tipo de visita que o senhor espera de agora em diante? Moleques e desmioladas? E estão pegando suas melhores becas, pelo que vejo. Talvez devêssemos mandar carruagens para os pardieiros das favelas. Trazer todos para arrancar tudo que temos.
— Eu permiti um pouco de frouxidão por causa das circunstâncias — rosnou Malarkey. — Mas você não vai insultar meus convidados, Sr. Figary. Entendido?
Figary revirou os bolsos de seu paletó de tweed até localizar um caderninho com capa de couro e um lápis na lombada. Pegou-o, lambeu o lápis e fez uma anotação.
— “Otto Malarkey, o ex-contrabandista e atual chefe do crime, é um apoiador entusiasta de assassinato e roubo, no entanto tem uma visão rígida quanto a insultarem seus hóspedes, tem sim.” — E fechou o caderno com um estalo desafiador. — Ah, eu compreendo o senhor. Pode ter certeza. E, se me dá licença, devo ir ao meu quarto para escrever minha carta de demissão. — Ele executou sua característica reverência sarcástica e foi em direção à porta.
— Não serei manipulado, senhor — gritou Malarkey para ele. — Esta troça só funciona uma vez com Otto Malarkey.
Figary não ofereceu tréplica. O único som vindo de fora foi o batucar dos sapatos duros do mordomo subindo a escadaria para o quarto.
Otto se levantou e berrou:
— Então vá embora, seu pavão emproado! Eu sou o rei Otto e não vou me ajoelhar para nenhuma esponja de gim irlandesa!
Mais sons de passos, agora sumindo.
— Ah, muito bem, vá se danar! — gritou Otto, esperneando como se houvesse um monte de formigas embaixo de seus pés. — O dobro. Eu pago o dobro para você ficar. Você pode comprar aquela sua aldeia. PODE SIM.
A cabeça de Figary apareceu junto à porta.
— Trato feito, senhor. E saiu barato ao dobro do preço, se é que posso dizer.
Só restou a Malarkey e Chevie ficar olhando, pasmados. Afinal de contas, apenas um instante atrás os passos de Figary haviam ecoado no último andar. Riley, por outro lado, aplaudiu; e usou as duas mãos para isso.
— Parabéns, senhor. Muito bem-feito.
Figary fez uma reverência, e desta vez foi sincera.
— Obrigado, jovem senhor Moleque de Rua. Nunca aposte contra Michael Figary quando há superfícies de madeira e solas duras envolvidas. Claro, eu posso tocar esta escada como se fosse um piano de cauda.
Malarkey balançou a cabeça, pesaroso.
— Você vai causar minha morte, Figary. Diga uma coisa, agora com sinceridade: você ignorava mesmo meu nome verdadeiro? Esse tempo todo?
Michael Figary gargalhou.
— Há alguém em Londres que não conheça o grande rei Otto? Eu o reconheci no instante em que entrei no corredor para minha primeira entrevista. Conheci pela sua silhueta, senhor. A Sra. Figary não criou nenhum idiota, não mesmo.
E essa foi uma declaração que ninguém na Grosvenor Square teve o desplante de questionar.
Malarkey insistiu em tomar o desjejum antes de continuar com a história do comodoro rico. E assim, aparentemente em questão de segundos, Figary conjurou uma montanha de peixe defumado com ovos, dos quais Riley aceitou uma porção, mesmo tendo se estufado até ficar rotundo menos de uma hora antes.
— Isso é pura ambrosia — declarou Riley. — O Sr. Figary merece o salário e mais ainda.
— Que moleque inteligente! — disse Figary, dando um tapinha na cabeça do garoto. — Podemos ficar com ele, comodoro?
— Não há necessidade de insistir com esse título — retrucou Otto. — Não precisa mentir a cada respiração.
Figary tocou seu piano invisível, descartando a negativa.
— O que é um título senão uma coleção de letras e tiras numa manga? E, de qualquer modo, acho sensato manter a ilusão se quisermos permanecer na Grosvenor Square. Os moradores não são conhecidos pela tolerância para com os criminosos. Peço que se lembre do Sr. Charismo, o residente anterior desta casa, peço sim.
Malarkey assentiu. Era um raciocínio sensato, e na verdade ele sempre gostara de como a palavra soava no sotaque irlandês de Figary.
— Muito bem, você pode me chamar de “comodoro”, em nome das aparências.
— O prazer é meu, comodoro.
Uma vez que o relacionamento entre patrão e empregado fora incrementado com dinheiro e títulos, as revelações da manhã podiam começar de verdade. Otto contou sua história do comodoro Pierce, reclamando o fato de que os reis dos Aríetes raramente sobreviviam para desfrutar de uma aposentadoria chafurdando em seus ganhos ilícitos, mas ele pretendia acabar com essa tendência. Assim, quando os bens de seu colega Tibor Charismo foram tomados e quando a casa destruída na Grosvenor Square foi leiloada por alguns tostões, Otto comprou-a usando o nome de comodoro Pierce, uma identidade secreta que ele havia estabelecido anos antes para esconder sua riqueza particular, principalmente diamantes roubados da ilha Saltee. Talvez a casa estivesse sob uma certa sombra na época da compra, mas, com uma fachada nova e a passagem do tempo, alguém pagaria altos guinéus por um endereço na Grosvenor Square, e isso serviria muito bem para financiar sua aposentadoria. O plano de Otto era abdicar da Toca dos Carneiros quando a casa estivesse habitável, assumir residência como o comodoro Pierce e vendê-la com lucro o mais cedo possível. Depois disso, o destino era uma cabine de primeira classe no Campania até a cidade de Nova York. Ele até mesmo tinha um passaporte americano feito pelo melhor fornecedor de documentos falsos de Londres.
Mas daí Otto começou a visitar as obras, vestido como comodoro e soltando americanismos do tipo: É melhor esses ralos estarem aí ao anoitecer ou vocês vão pagar o diabo, e estou preparado para pagar bons dólares em troca de mão de obra de primeira. Era divertido, e Malarkey adorou o papel. E quando contratou Figary como supervisor e mordomo, isso resolveu a situação. Malarkey adorava tudo no comodoro: seus maneirismos distintos, o jeito como as damas da alta lançavam olhares para ele por trás dos leques, as birras constantes com Figary. Adorava toda a experiência, e agora que a casa estava quase pronta flagrava-se odiando a ideia de abrir mão dela.
— Mas preciso abrir mão — concluiu. — Porque a Grosvenor Square fica a menos de um trote do Haymarket, e algum parangolé atacante de grã-finos ou ladrão de chumbo de telhado nas vizinhanças poderia butucar meu lindo cabelo, e aí o velho Golgoth iria parar na prisão de Highgate.
As mãos de pianista de Figary enlouqueceram.
— Desista, por favor, comodoro. Se quer ser residente de Grosvenor, essa gíria do subúrbio de Londres deve ser cortada pela raiz, deve sim. O que está dizendo, homem? Parangolé e butucar? Isso é algaravia maquinada por criminosos.
Riley e Chevie trocaram olhares divertidos. Era incrível para eles que o rei Otto reagisse à impertinência de seu mordomo com nada mais do que uma careta de resignação.
— A melhoria do eu é uma estrada difícil — disse Otto, lendo a expressão dos dois. — E às vezes um patife precisa engolir o que normalmente jogaria no chão e pisaria em cima. — Ele lançou um olhar sinistro para Figary, um que faria a maior parte dos homens sair da cidade sem se dar ao trabalho de arrumar as malas. — Mas tome cuidado, Michael Figary, porque todo homem tem seu ponto de ruptura, e quando o rei Otto quebra, ele quebra com uma violência incomum.
— Baboseira — disse Figary. — Baboseira, disparate e bagatela, comodoro. Os dias do rei Otto estão contados, mas graças a mim o comodoro Pierce vai desfrutar de uma longa aposentadoria na alta sociedade.
Chevie sentiu que, por mais divertido que fosse ver Otto Malarkey censurado por seu mordomo irlandês, provavelmente havia coisas mais importantes que eles deveriam discutir.
— Talvez devêssemos falar sobre os Aríetes, Otto. Acho que o chefe de Farley vai querer ocupar seu lugar.
— Foi o que o tatuador disse — observou Otto. — Disse que os Aríetes fariam parte de uma nova ordem mundial, os que aceitassem a grana dele.
Chevie estalou os nós dos dedos.
— Os Aríetes são a chave. Os soldados de infantaria de Box tomaram a cidade para ele; sem os Aríetes ele não é nada. Até onde vai a lealdade dos seus homens, Otto?
Malarkey cuspiu no tapete, o que fez Figary recuar para a jarra de conhaque.
— Lealdade entre ladrões, é? — disse Otto. — Isso só existe quando não há dinheiro envolvido. Assim que a coisa vira uma transação, é: “o rei morreu, longa vida ao novo rei”.
Chevie se levantou.
— Eu pretendo impedir Farley e todos os outros. E você, Malarkey?
— Farley matou meu irmão. E por isso vou colocar o patife e qualquer um que ficar do lado dele no fundo do Tâmisa.
— Então todos concordamos — disse Riley. — Mas como três indivíduos caçados vão derrotar um exército com armas iguais às que Farley estava usando?
— Precisamos examinar o território — murmurou Otto. — Descobrir para que lado os Aríetes estão tendendo. Meus rapazes são patifes gananciosos, sim, mas também são cheios de desconfiança e cautelosos. Meus Aríetes precisam ser abordados como carneiros de verdade. Com muito cuidado. Basta uma palavra errada e Farley ganha um buraco nas tripas.
— Precisamos de olhos lá dentro — disse Chevie. — Um de nós precisa entrar na Toca dos Carneiros. E tem de ser hoje. Hoje é o Dia da Emersão. Box ataca hoje.
— Mas quem? — perguntou Riley. — Chevie causou uma impressão espetacular na última vez em que esteve aqui. O próprio Farley fez minha tatuagem. E quanto a você, Majestade, até mesmo o imbecil mais tacanho de sua quadrilha conseguiria identificá-lo a 1 quilômetro de distância.
— Os Aríetes conhecem todos nós — disse Chevie.
Otto Malarkey acariciou mechas de seu cabelo desde as raízes até a ponta.
— Nem todos nós.
Demorou um segundo para a ficha cair, mas, quando caiu, o mordomo irlandês uivou de surpresa e derrubou um pouco de seu amado conhaque no tapete.
— Eu? O senhor quer que o único filho da Sra. Figary se aventure num antro de bandidos e piratas maníacos? Michael Figary, criado com leitinho e discursos eruditos, no meio de pés-rapados e moscas de sarjeta, é? Bom, pode tirar essa ideia da cabeça.
— Pode sim — acrescentou Chevie.
Ela não conseguiu evitar.
TRÊS NA MOSCA
Coisas que não deveriam acontecer acontecem. Coisas que deveriam acontecer não acontecem. É um labirinto num campo minado numa falha geológica.
— Professor Charles Smart
Coronel Clayton Box.
O Abençoado Coronel.
Um deus que andou na terra.
Mas nem sempre tinha sido assim. Numa época não ungida, simplesmente houvera Clayton Box, um garoto do Texas que cresceu cercado por homens com armamentos grandes e mulheres com armas menores enfiadas nas bolsas, pois nunca se sabia quando a Segunda Emenda precisaria ser reafirmada. O pai de Clay, Clayton Sênior, tinha ensinado o filho a disparar um fuzil calibre .22 aos 8 anos, e aos 12 anos o garoto atirava com um modelo profissional de competição. Papai Box ficou felicíssimo ao descobrir que o herdeiro tinha uma verdadeira paixão pelo tiro de elite. Não poderia estar mais errado. O jovem Clay não tinha paixão por atirar, nem por qualquer outra coisa, por sinal; o motivo para ser tão hábil ao meter balas na mosca de um alvo era porque tratava todo o procedimento como uma equação matemática. Era completamente desapaixonado, e quando atirava era quase como se estivesse observando-se de cima, avaliando o desafio, ajustando a mira telescópica, calculando a distância e a velocidade do vento. Para Clay, atirar não era diferente de esfolar um sapo na aula de biologia. O importante era a eficiência. Ganhar uma medalha significava pouco para o jovem Clay, mas perdê-la devido a um rendimento falho o deixava enfurecido além das palavras.
A única coisa ou pessoa que Clayton amava de verdade era sua mãe, Nancy. Frequentemente ele se perguntava por que nutria sentimentos tão fortes pela mãe e não pelo pai ou pela TV, mas jamais fora capaz de encontrar uma resposta que o satisfizesse. Talvez eu tenha vindo dela, de modo que ela é parte de mim, e o mais perto que posso chegar de me amar seja amá-la.
Clayton não tinha interesse em fazer amigos, mas aceitou como companheiro um jovem vizinho de origem hispânica, Luis Chavez, já que o garoto era desesperado por um colega e se dispunha a fazer qualquer coisa que Clayton sugerisse a fim de estreitar o laço entre os dois. Ele não tinha como saber que Clayton o valorizava quase tanto quanto valorizava os sapos da aula de biologia.
As sugestões de Clayton incluíam caminhar até a beira do deserto com suas espingardas e atirar em coelhos e urubus. Os tiros no mundo real lhe ajudavam a refinar a técnica e a se adaptar ao inesperado. Não sentia um fiapo de remorso por encher o terreno com cadáveres sangrentos de animais. Aquelas criaturas haviam servido ao seu propósito, e para Clayton não significavam mais do que um desenho.
Clayton pai estava acima do sétimo céu. Seu garoto — SEU GAROTO, que as pessoas diziam ser esquisito — vinha abocanhando torneios em todo o país. Ele arrasou aquele pestinha do exército, Jennings Kreuger, e aquele universitário de elite metido a besta, Holt Whitsun-Bang. A imprensa falou sem parar de Whitsun-Bang quando ele ganhou a medalha de prata no campeonato nacional; esperem até ver seu Clay. Na última seletiva, Clayton, de 14 anos, colocou três balas na mesma mosca, tão juntas que o buraco ficou parecendo uma porcaria de um trevo.
O garoto concedeu tal felicidade ao pai e treinou sorrir no espelho, para que assim sua mãe parasse de perguntar qual era o problema. E contanto que seus pais não interferissem em seu desenvolvimento, ele poderia deixá-los vivos.
Para Clayton, não era estranho cogitar seriamente matar pessoas. Pensava nisso todos os dias. E sem dúvida o objetivo final do treinamento com armas era matar seres humanos. E seu pai não tinha apoiado isso comprando-lhe uma arma, para começo de conversa?
Clayton disparou sua arma de competição com o máximo de frequência possível nos anos seguintes, e sempre que possível caminhava para lugares ermos à noite para atirar com Luis. Em pouco tempo as criaturas selvagens não representavam desafio e Clayton sentiu-se perdendo o pique. Depois de ficar em segundo lugar no prestigioso concurso de tiro de Green Creek, concluiu que as apostas precisavam ser mais altas.
Luis e Clay passaram algumas semanas matando bichos de estimação dos vizinhos, mas isso era cansativo porque os corpos precisavam ser removidos e enterrados, uma tarefa árdua que não beneficiava o desenvolvimento de Clay até onde ele via. Assim, certa noite, quando mandou Luis para um quintal para resgatar o corpo de Laddie, o labrador da velha Sra. Wang, Clay se flagrou apontando para o jovem amigo e se perguntando se atirar num ser humano iria afetá-lo como os livros e a TV diziam. Será que ele ficaria traumatizado, ou mesmo com uma marca permanente? Clay duvidava e, quase antes de se dar conta do que estava fazendo, pôs uma bala na câmara do fuzil, encostou um olho na mira noturna e atirou em Luis a 500 metros de distância.
Tremendo tiro, Clay, disse ele baixinho, imitando o pai. Tremendo tiro.
Sentou-se e esperou que algo acontecesse dentro do cérebro, esperançoso de que sentiria alguma coisa. Mas nada veio. Atirar em um ser humano era igual a atirar num alvo de papel. Agora sabia, por isso a experiência tinha valido a pena.
Quando a polícia chegou, Clayton estava sentado na pedra, acabando de comer um saco de biscoito recheado que tinha trazido.
A arma disparou sozinha, disse repetidamente, fazendo o rosto triste que tinha aprendido nos seriados policiais. A arma disparou sozinha.
E eles acreditaram, como ele sabia que acreditariam, porque era um aluno com notas máximas, e a alternativa era terrível demais.
Três meses depois, Clayton foi aceito na academia de West Point, no estado de Nova York. O exército era um lugar natural para um garoto como ele e, para dizer a verdade, os relacionamentos vinham se revelando mais tensos do que o normal na casa dos Box desde a morte de Luis, por isso seu pai ficou satisfeito ao vê-lo fazer as malas.
Daqui a dois anos esse rapaz vai fazer parte do time olímpico, disse o oficial de ingresso a Clayton Sênior e Nancy.
Nancy chorou porque sentiria uma saudade terrível do filho, mas também porque parte dela estava aliviada por ter Clay e sua sacola de truques mortais longe de casa. Talvez agora os boatos parassem.
Clay sentiu uma leveza incomum ao embarcar no ônibus para Nova York. Havia coisas grandiosas à sua espera. Tinha certeza.
Catacumbas de Camden. Londres. 1899
O sorriso fanático que estava grudado no rosto de Vallicose desde que conhecera Clayton Box foi um pouco abalado pelos aposentos do Abençoado Coronel. No futuro, esses aposentos seriam preservados para a posteridade, mas não teriam a mesma aparência. No passeio histórico que ela faria, esta sala não teria decoração, a não ser por uma pintura baseada na Pietà de Ticiano. Uma sala que deixava totalmente claro que o morador não ligava a mínima para as posses mundanas e, de fato, Vallicose havia deixado seu alojamento na ala dos oficiais da academia igual ao de Box. E agora Clover se via num palácio subterrâneo mais opulento até mesmo do que a residência do presidente jax, que, segundo diziam, tinha um tapete tão fofo que os cachorrinhos se perdiam nele, e tanta folha de ouro que o piso precisava ser reforçado por causa do peso. Vallicose tinha visto uma foto tirada com uma câmera de espionagem.
Era asquerosamente decadente.
Mas este aposento era ainda mais suntuoso do que o Palais de l’Élysée. Luxuoso além das palavras. As peças podiam ser descritas individualmente, mas o efeito da combinação deixava o visitante estupefato. As paredes eram forradas de tapeçarias com imagens das cruzadas medievais na Terra Santa. O piso era coberto, de modo desigual, com tapetes orientais cujos cantos eram presos com vasos filigranados em ouro. Vários lustres pendiam do teto, todos reluzentes com energia elétrica, os cristais lançando arco-íris nas paredes e na mobília. As cadeiras douradas eram esculpidas à mão e tinham almofadas de veludo. Incenso queimava em potes de ouro, fazendo a câmara gigantesca, com seus altos arcos, parecer uma espécie de templo.
Box acenou vagamente para a decoração.
— Tudo isto. A decoração. Estou brincando com ela. Não sei se é bom para mim. Funcionava para Khadafi. E para o velho Saddam. Saddam gastou milhões em suas casas. Bilhões. E, para muitas culturas, riqueza é poder. Elas não compreendem a modéstia, simplesmente não conseguem avaliá-la como conceito. — O coronel deu um peteleco numa das várias dezenas de borlas no aposento. — Mas se você quiser a lealdade dos militares, precisa apelar aos instintos básicos deles. Valores tradicionais: país, família, sacrifício pessoal. — Box derrubou com o pé uma estátua de um guerreiro de jade. — Isto nem de longe comunica autossacrifício, não é?
Witmeyer manteve o rosto inexpressivo, não querendo reagir de um jeito nem de outro.
— Não, senhor Coronel — disse Vallicose, os olhos respeitosamente baixos. — Não comunica.
Box sentou-se na borda de sua mesa.
— Não, não comunica. Acho que a humildade pode ser um meio para manter as aparências. Talvez como uma pintura sagrada.
— A pietà — disse Vallicose bruscamente.
Box voltou seus impressionantes olhos azuis para ela.
— Uma pietà. Sim. Filho e mãe juntos. Não é possível transmitir mais valores familiares do que isso. Muito bem, soldado.
— Obrigada, Senhor Deus — disse Vallicose.
Box projetou o maxilar inferior, depois o movimentou de um lado a outro, como se estivesse tentando liberar uma tensão. Aquela era sua cara de pensante.
— Senhor — disse finalmente. — Você me chamou de Senhor Deus. Interessante. Só posso supor que meu plano será mais bem-sucedido ainda do que eu previa.
— O Império Boxita cobre a maior parte do globo, Senhor.
— A maior?
— A França, Senhor. A França está de fora. E partes da América do Sul.
Box franziu a testa.
— Isso é... ineficiente. O Império Boxita, meu império, deveria ser mais eficiente.
— Os Thundercats estão tendo bons resultados na Normandia.
— Thundercats? — Box fez sua versão de sorriso, que mais parecia uma careta. — Ah, sim, meus amigos de desenho animado. Eu achava aquele desenho ligeiramente divertido. Por isso devo ter me apropriado do nome para minha polícia. De que ramo vocês são?
— A irmã Witmeyer e eu somos agentes especiais de segurança e contraespionagem — disse Vallicose.
Box contornou a mesa, baixou o corpo magro a uma cadeira e abriu um caderno sobre o tampo de couro.
— Muito bem, minhas futuras soldados Thundercats. Preciso que contem tudo, começando pela história desse símbolo impressionante no seu sobretudo.
Vallicose começou a falar, a princípio lentamente, mas logo os fatos futuros fluíram tão depressa que Box tinha dificuldade para anotá-los. Quando ela parou para respirar, Witmeyer assumiu. E à medida que as Thundercats davam os detalhes, Clayton Box experimentava um calor no peito que raramente sentia.
Estou feliz, percebeu. Estou satisfeito.
Quando Vallicose e Witmeyer terminaram de descrever suas imagens do futuro, Box examinou o que havia escrito.
— Sim — disse ele. — Sim, sim. Tudo isso parece muito eficiente. Muitíssimo eficiente.
Ainda que as Thundercats não tivessem se dado conta, aquele era o maior elogio que o coronel poderia conceder, e de um modo tortuoso ele estava dando-o a si mesmo.
Box chamou Rosenbaum e deu algumas ordens.
— Destrua a placa de desembarque na Half Moon Street. Quero que as coisas permaneçam como vão ser. Ninguém chega, ninguém parte.
— Sim, coronel. Vou mandar um esquadrão para lá imediatamente.
— E preciso que sejam redigidos mandados de morte, com data específica, para o professor Charles Smart, que vai morar na Half Moon Street. E para a cadete Chevron Savano, que será aluna da Academia Boxita, a qual fundarei depois da segunda etapa do Golpe de Box, aparentemente.
Rosenbaum anotou os detalhes num caderno.
— Método de execução? — perguntou ele.
Box acenou.
— Ah, isso fica a critério do executor, mas as duas mortes devem acontecer na casa de Smart.
— Sem restrições, coronel — disse Rosenbaum. — Anotado.
— Preciso de uma pietà para ser pendurada atrás da minha mesa, e comece a tirar todos estes bagulhos daqui.
Rosenbaum poderia ter observado que eles sairiam das catacumbas no dia seguinte, mas o coronel não gostava que questionassem suas ordens.
— Mande uma equipe de limpeza ao Orient. Quero todos aqueles corpos desovados, para que nada possa ser ligado a nós neste momento crucial.
— Imediatamente, coronel.
Box apontou para o sobretudo de Vallicose.
— E eu gostaria que este símbolo, o símbolo boxita, fosse bordado em todos os uniformes.
Rosenbaum assentiu.
— O simbolismo dual é bem inteligente.
— É eficiente — corrigiu Box. — Comunica nossa ética e nossas lealdades com o mínimo de traços. — Ele se curvou sobre o caderno onde estava desenhando o símbolo boxita quando Farley entrou na sala, parecendo um tanto arrasado, porém muito menos nas últimas do que quando as Thundercats o encontraram no fosso da orquestra.
— Coronel — disse ele. — O sinalizador de Malarkey está soltando bips altos e nítidos. Ele fugiu para o endereço na Grosvenor Square. Eu apostaria que Savano está com ele. Deixe-me levar um pequeno grupo de homens...
O coronel levantou a cabeça grande da brochura do caderno.
— Não, major. Preciso de você na Toca dos Carneiros, para fazer a oferta. Os Aríetes conhecem você. E a Grosvenor Square é uma região privilegiada; haverá muitos policiais por perto. Precisamos de alguém silencioso e mortal. Rosenbaum, você é o mais furtivo de nós. Acha que consegue matar Malarkey?
Woodrow clicou sua caneta. Estava cansado de ser secretário; não era o que fora treinado para fazer. Era treinado para matar pessoas sem atrair atenção, e fazia meses que não tinha missão nenhuma.
Ele poderia ter respondido: Posso matar Malarkey num piscar de olhos.
Ou:
Eu poderia acabar com a vida dele num átimo.
Ou sua fala predileta, tirada da série O Poderoso Chefão:
Malarkey vai dormir com os peixes.
Mas as imagens e metáforas simplesmente confundiriam o coronel, que valorizava diálogos simples acima de tudo.
Por isso disse:
— Sim, coronel, posso matar Malarkey.
— Ótimo — disse Box. — Faça isso amanhã de manhã.
SOU, SIM
A coisa que ninguém leva em conta é a personalidade. O tempo é como a água: quanto maior a pessoa, maior é o impacto em sua calmaria.
— Professor Charles Smart
Toca dos Carneiros. Alameda dos Patifes. Londres. 1899
O trajeto da Grosvenor Square até o Haymarket não chegava nem a 1,5 quilômetro, mas, se fosse medido com uma régua moral, a distância entre as duas residências de Otto Malarkey poderia ser considerada a de dois mundos. Enquanto a Grosvenor Square era o jardim elegante onde lordes e duques ficavam felizes em pagar mais de cinquenta mil guinéus de Sua Majestade por uma única moradia e gastar uma fortuna tão grande em boudoirs de brocado estilo Luís XVI a ponto de ser mais econômico forrar as paredes com notas de libra, a rua do Haymarket era uma coleção tão concentrada de vícios e crimes que suas redondezas eram religiosamente evitadas por todos, exceto pelos policiais mais corruptos que existiam. Se a Grosvenor Square podia ser descrita como a joia da capital, o Haymarket podia ser legitimamente chamado de diamante falso de Londres. Brilhava à distância, mas de perto ficava óbvio que o brilho não era de uma pedra preciosa, e sim da lâmina da adaga pronta para cortar a garganta do Zé Otário.
E é para cá que me mandaram, pensou Michael Figary enquanto descia de um coche na extremidade do Regent Circus. É aqui que o filho único da Sra. Figary precisa ir para seu patrão.
O Haymarket se desenrolava diante dele em toda sua glória de mau gosto. Mesmo nessa hora tardia da manhã, com o sol mal se alçando acima das chaminés, os pândegos já tinham começado a sacudir suas penas mofadas e a fazer a peregrinação ao mercado em busca de seus cachimbos de ópio, de jarras de gim e de salas de jogos. Amontoando-se em volta dessas pessoas folgazãs, ávidos por aliviar suas bolsas com ou sem consentimento, estavam os cardumes de patifes de rostos ardilosos, ladrões e trapaceiros.
Michael Figary apertou um lenço em cima do nariz enquanto abria caminho pela calçada, passando agilmente por soldados abatidos na guerra do álcool e contornando os respingos do esterco largado despreocupadamente pelos cavalos das carruagens. Mas como um mero quadrado de renda perfumada poderia competir contra o odor de cem anos de decadência incontida?
À primeira vista as instruções para Figary tinham parecido simples: ganhar acesso à Toca dos Carneiros e descobrir em que pé estavam as lealdades dos Aríetes, depois se esgueirar habilmente até a Grosvenor Square com qualquer informação obtida.
Parecia simples, mas tal simplicidade desmoronava ao ser examinada. Primeiro, como obter acesso à cidadela dos Aríetes? E como permanecer lá durante um conselho de guerra? Por fim, como sair incólume com um monte de informações para dar ao patrão?
Michael Figary pensava em todas essas questões enquanto se aproximava da porta dupla da Toca dos Carneiros, definitivamente o mais notório antro de vícios em toda Londres, e certamente um dos cinco principais da Europa. A resposta para todos os seus problemas foi tão simples quanto havia sido desde que ele chegara à Grosvenor Square: o dinheiro abriria as portas tanto para sua entrada casual quanto para a saída apressada. Soberanos reluzentes comprariam as pepitas de informações que ele buscava. Aqueles homens eram príncipes da corrupção, e os príncipes de todas as cortes tinham algo em comum: um desejo por moedas que pagassem seus alfaiates e agradassem suas damas. Não havia dinheiro suficiente neste mundo para satisfazer os príncipes.
Bom, talvez por uma noite, pensou Figary, sentindo o peso dos soberanos nos bolsos de uma segunda calça que ele usava por baixo da peça de tweed, respirando fundo para sentir o movimento das notas de libra amarradas ao peito. O comodoro tinha lhe dado mais de duzentas libras para gastar como quisesse nesta noite.
E se eu fosse menos leal, ou se estivesse menos sóbrio, compraria uma passagem de primeira classe num vapor para Dublin.
Mas Figary era leal e estava ligeiramente bêbado, e pretendia cumprir sua missão. Porque apesar de fingir uma inocência católica irlandesa, na verdade Michael Figary já tinha sido empregado pelo chefão do crime na Irlanda, Lorde Brass, como batedor de carteira numa região de Dublin denominada Monto, a qual guardava alguma semelhança com o Haymarket. Na verdade Michael Figary havia atuado como um dos melhores batedores de carteira da cidade, até economizar dinheiro suficiente para se mudar para Londres, onde se reinventou como o filho único da Sra. Figary e mordomo extraordinário. Sendo assim, talvez Figary não estivesse tão deslocado quanto fingia; de fato, era mais familiarizado com o que acontecia nesse tipo de lugar do que gostaria de admitir.
A Toca dos Carneiros estava aberta para negócios, e ainda que nunca tivesse estado nesse estabelecimento em particular, Figary subiu a escada com a confiança de um degenerado inveterado.
Havia duas verdadeiras beldades vigiando a porta — beldades no sentido irônico, já que nem mesmo as mães dos próprios poderiam se referir àquelas fuças como belas, ou até mesmo agradáveis. Sem graça seria forçar a barra. Feias estaria mais próximo da verdade, e horrendas seria acertar na mosca.
Acho que é por isso que eles estão junto à porta, pensou Figary.
Dirigiu-se aos homens como se respondesse à pergunta deles.
— Sim, de fato, este é um verdadeiro frescor de manhã, é sim.
— É sim o quê? — perguntou o capanga malévolo número um, que agora Figary notava possuir um olho de vidro — com uma caveira roxa em vez de uma íris — no lugar do olho direito.
— Um verdadeiro frescor de manhã vivaz, é sim.
— Hein?
Isso foi dito pelo capanga malévolo dois, que ainda tinha os dois olhos dados por Deus e pelos pais, mas era marcado como bandido pelo colete escarlate que usava sem camisa, apesar do muito mencionado frescor da manhã e das regras da decência comum. Numa rua mais elegante, um homem com as costas nuas acabaria no xilindró zás-trás.
Figary mudou de abordagem.
— É um bom dia para se ganhar dinheiro...
— É sim — disse o Caveira Roxa, que provavelmente estava demonstrando algum senso de humor.
— É sempre um bom dia para a bufunfa — acrescentou o Colete Escarlate.
Figary passou um soberano para cada um, o que era um ingresso extorsivo para qualquer antro de jogatina, mas garantiu que ele fizesse dois novos amigos, se não pelo resto da vida, pelo menos pela duração de sua visita à Toca dos Carneiros — a não ser que o turno deles acabasse, ou que ambos se embebedassem, ou que recebessem uma oferta melhor.
Devo ter pelo menos meia hora antes que eles me dedurem, pensou Figary. Doía ao mordomo abrir mão de dois soberanos agora que sua situação era honesta, e ele sabia exatamente quantas horas de labuta eram necessárias para ganhar tal quantia, por isso afanou um pequeno frasco de uísque que estava na faixa de cintura do Colete Escarlate para compensar um pouco e passou pela porta, entrando na barriga da fera.
E essa fera, claro, era um Aríete.
O interior da Toca dos Carneiros era um extraordinário feito arquitetônico. Extraordinário no sentido de que não desmoronava, muito embora a maior parte dos suportes, das estruturas, das chaminés e das paredes internas tinha sido pulverizada com o objetivo de abrir caminho para mesas de jogos, currais de animais, barracas de comida, um espeto de assar porco acima de um fogão de tijolos, toda uma taverna que podia ter saído da Strand, uma das maiores vias de Londres, dois ringues de boxe e um canhão enorme que, segundo a lenda dos Aríetes, tinha sido roubado da milícia numa farra bêbada e agora estava encalhado, com um eixo partido, numa ilha de tábuas entortadas pelo peso e balas de canhão espalhadas.
— Encantador — murmurou Figary sozinho, os olhos lacrimejando instantaneamente devido à combinação de fumaça e vapores alcoólicos.
Era quase meio-dia e os camaradas estavam emergindo de seus locais de dormida. Havia um grande fluxo de flatulências — quanto mais ruidosa a cerimônia, melhor — para deleite dos grupinhos de dançarinas e garçonetes que iam de mesa em mesa. Aríetes desciam ao nível térreo por escadas precárias, escadas de corda improvisadas ou até mesmo buracos feitos nas paredes para dar apoio aos pés. Até Figary, que não era o puritano que tinha fingido ser para seu patrão, ficou um pouco chocado.
Nunca testemunhei tamanha concentração de depravação, pensou. E isso, vindo de um homem que havia trabalhado no Monto, era uma percepção bem espantosa.
Ao porco, então!, tornou-se seu plano imediato. Porque nada conforta mais a alma de um celta ansioso quanto a voz de sua mãe e, na falta disto, um prato de toucinho.
Figary caminhou com passos fingidamente despreocupados até o garoto que cuidava do porco e contornou o bicho que estava sendo assado, avaliando a carne de todos os ângulos.
— Belo porco, é sim — disse ao jovem cozinheiro que derramava banha na carcaça.
— Não tenho permissão para falar sobre o porco — disse o rapaz entre os lábios que abrigavam apenas um par de dentes muito espaçados, postados na gengiva inferior como as colunas de alguma ponte desmoronada muito tempo atrás.
— Nada de falar do porco, é sim — disse Michael Figary. — Sirva-me um prato e não poupe a pururuca.
— Pururuca é extra — disse o rapaz carrancudo.
Figary supôs que o rapaz tivesse bons motivos para estar carrancudo, com a privação dentária e o emprego de assador de porcos para a classe criminosa. Bateu o nó de um dedo numa tábua com a lista de preços pregada num poste enfiado diretamente no chão.
— Sei ler, meu garoto, sei sim. Carne, por favor.
O garoto do porco começou a cortar com uma faca militar, e era hábil, largando fatias finas diretamente num prato de estanho.
— Quer banha?
— A banha é extra? — perguntou Figary com inocência.
O garoto sugou os dentes e lançou a Figary um olhar cheio de desconfiança.
— Está certo, homenzinho. Banha é extra.
— Então vamos querer um pouco — disse Figary, largando algumas moedas na jarra de dinheiro. Sua comida diária era mais refinada agora que dormia na Grosvenor Square, mas de vez em quando não havia nada melhor do que um bocado de porco com banha. — Diga, meu chapa. Por que é proibido falar do porco?
O jovem açougueiro só respondeu quando Figary acrescentou mais duas moedas no pote.
— Em algumas ocasiões o porco não é exatamente porco — confessou.
Figary farejou o pernil do animal.
— Mas não hoje?
— Não — respondeu o rapaz, entregando um prato cheio. — Hoje é porco legítimo. Eu mesmo roubei, especialmente para a reunião.
As orelhas de Figary se empertigaram.
— Que reunião? Não ouvi falar nada de reunião.
O rapaz deu de ombros.
— Claro que não. Você não é Aríete.
Figary pegou uma fatia de porco, e estava maravilhosamente suculenta e macia. Se fechasse os olhos por um momento, poderia estar na taverna Lorde Brass em Monto.
— Não, não sou Aríete. O que sou é um convidado vindo do Monto.
O suspiro do rapaz sibilou entre os dentes.
— Eu tô com meu dinheiro. Você tá com seu porco. Não tenho permissão de falar sobre uma reunião extraordinária para conhecer o novo rei.
— Entendo, entendo sim — disse Figary, e se afastou segurando o prato na altura do peito para todos verem. Porque havia descoberto uma verdade universal em qualquer grupo: um homem com sucesso em obter comida é considerado digno de confiança e jamais é questionado, a não ser com perguntas retóricas sobre a qualidade da refeição.
Uma reunião extraordinária sobre um novo rei, é?
Esta era de fato uma notícia importante. A nomeação de um novo rei dos Aríetes tinha consequências que afetariam todo mundo que morava na cidade, desde as favelas até o Parlamento, passando pelas docas e pelas estações de trem.
— Bela pilha de porco aí, hein? — disse um Aríete a Figary. Estava claro que esse sujeito era mesmo um Aríete, porque fora além do nível do dever e tinha o símbolo dos Aríetes tatuado no peito nu.
— É mesmo, é sim — respondeu Figary, estufando a boca com carne de porco para provar o argumento.
O salão estava se enchendo e Figary achou prudente encontrar um local sombreado para observar. Foi em direção a um banco de igreja perto da parede, sobre o qual havia uma pilha de alfanjes e baionetas digna de um exército, e então se espremeu na ponta. Não estava nem um pouco invisível atrás da pilha descuidada de lâminas reluzentes, mas também não se destacava como um gato numa briga de cachorros. A segunda vantagem desse posicionamento era a janela junto ao seu ombro, que poderia ser pulada caso a necessidade surgisse.
Agora, Michael Figary, fique na moita e veja o que puder, disse a si mesmo, limpando os dedos gordurosos no pano de vela pregado na janela como cortina improvisada.
Diferentemente da maioria dos serviços de espionagem, onde a paciência era a principal virtude exigida, já que os acontecimentos costumam se desenrolar lentamente mesmo na maior aventura, Figary descobriu que sua paciência não foi testada sequer por um momento. Porque nem bem havia tirado a última lasca de pururuca de entre os dentes — com um palito que ele carregava na carteira para essas ocasiões —, um acalorado burburinho concentrou-se junto à porta e se espalhou como vento num campo de cevada irlandês.
Ora, tem algo acontecendo, pensou Figary. Seja discreto, Michael.
Figary se encolheu atrás da torre de espadas, encontrando um triângulo de lâminas cruzadas através do qual espiar.
O salão que estivera acordando preguiçosamente para a diversão do dia, de súbito pareceu acelerar esse procedimento, com Aríetes se enfileirando para ter acesso às cordas, escadas de mão e degraus precários que vinham dos andares superiores. Um grupo compacto de Aríetes moveu-se com objetividade em direção ao centro da sala onde, num tablado alto, havia uma grande cadeira dourada. No encosto alto havia uma pele de carneiro com longos chifres enrolados. A coroa do rei dos Aríetes. A coroa de Otto Malarkey.
Figary sentiu a tensão aumentar juntamente à temperatura. Vozes se ergueram e socos foram dados. Ao redor da sala, grã-finos e almofadinhas foram tomados pelos cotovelos e escoltados para fora do estabelecimento, porque esse era um tipo de reunião só para sócios.
Figary sentiu que talvez fosse uma boa hora para sair, mas o momento passou rapidamente e o mordomo percebeu que agora estava comprometido à tarefa, quer com ou sem a aprovação de sua mãe.
Seja discreto, disse Figary a si. Você é um camundongo, é sim.
Farley estava à frente do grupo recém-chegado. Separou-se do aperto dos Aríetes que o pressionavam pedindo informações e subiu no tablado com um único salto. O gesto em si já foi um motim, visto que o quadrado do rei era somente para ele e para seus convidados. O tatuador estava tomando liberdades. Mas ainda que muitos homens pudessem ser espetados ou nocauteados com porretes antes de abrir a boca, os Aríetes tinham um afeto especial por Farley, já que ele havia pinicado a pele de muitos. Um bom tatuador era vital para qualquer quadrilha caso os homens preferissem não perder um braço para a infecção ou a gangrena, e a quantidade de braços que Farley havia perdido para alguma agulha suja podia ser contada em apenas uma das mãos. Assim o silencioso consenso geral era deixar o velho pateta falar; afinal de contas ele estivera ao lado de Malarkey quando aconteceu o que quer que havia acontecido.
Farley ergueu os braços pedindo silêncio.
— Aríetes. Camaradas. Sua atenção, por favor.
Em qualquer outro dia, algum piadista dispararia comentários nos intervalos entre as frases, mas quando Farley pediu silêncio foi isso que obteve, e sem a redução gradual de ruído de sempre. O salão ficou mudo instantaneamente, a não ser pelo canto insistente de um galo, que ganhou meio minuto para calar o bico antes de um Aríete apagá-lo com o cabo da faca. Em qualquer outra ocasião o guincho final e surpreso do galo teria provocado aplausos, mas não neste dia.
— Sei que todos vocês ouviram boatos sobre Otto — disse Farley. — E estou aqui para dizer que os bons são falsos e os ruins são verdadeiros.
Isso provocou um burburinho de murmúrios e muitas versões gritadas da mesma pergunta.
— O rei Otto foi assassinado, então?
— Foi — respondeu Farley, admitindo que isso já poderia ser verdade e, se não era, logo seria.
— Você o viu cair, Farley, com suas próprias butucas? — Quem perguntou isso foi o Colete Escarlate, que obviamente havia abandonado o posto junto à porta.
Farley confirmou com a cabeça.
— Eu vi... Eu vi Otto ser morto. E Desumano. Noble e Jeeves também.
Se o silêncio anterior fora de ansiedade, este novo tinha um ar de incredulidade.
Otto, Barnabus. Jeeves e Noble. Todos mortos. Era como perder toda a família real num único golpe.
— O conselho de guerra se foi. A chefia está morta. Como em nome do demo isso aconteceu, Farley? Seria necessário um exército. — Isso foi dito por um Aríete que, por algum motivo conhecido somente por ele próprio, usava uma coroa de papel com a palavra BAH rabiscada em carvão.
Farley engoliu em seco. Este era o momento crucial: adular os Aríetes. Comprar sua lealdade.
— Antes de responder às suas perguntas, deixem-me mostrar uma coisa. — Farley enfiou a mão no bolso de seu sobretudo puído e tirou uma bolsa pesada, e desta bolsa tirou um soberano de ouro, que ele jogou no ar. A moeda girou e lançou fachos lustrosos nos olhos dos Aríetes hipnotizados. A cada giro ela atraía os Aríetes de um modo que mais de mil súplicas não seriam capazes de fazer. Assim, quando o soberano caiu em dedos gananciosos, a turba estava a meio caminho de ser convertida à causa de Farley, mesmo não sabendo que causa seria essa.
— Só peço que ouçam o que tenho a dizer, e só por isso pagarei dez soberanos de ouro a cada homem aqui, tirados desta bolsa e de dezenas de outras iguais a ela. Assim que eu tiver terminado de falar, vocês podem se alistar e ganhar um pedaço do império, ou podem optar por fazer uma tentativa com o novo chefão. Vocês é que sabem.
Então ele ficou em silêncio, permitindo que o grupo pudesse digerir sua oferta. O soberano foi passado de mão em mão, mordido, cuspido e finalmente entregue a um velho galês conhecido como Duds, reconhecido como o maior falsário de dinheiro que já havia cunhado um xelim de chumbo.
Duds fez uma série de testes, dentre os quais bater na moeda com um diapasão, fazê-la girar na mesa e dar uma boa lambida.
— É boa — disse finalmente. — Tão certo quanto meu nome é almirante Nelson.
Isso provocou um risinho carinhoso por parte dos Aríetes, já que ninguém fazia a mínima ideia de qual era o verdadeiro nome de Duds. Cada apelido que ele usava era tão falso quanto o dinheiro que repassava.
Os Aríetes se viraram de volta para Farley com um movimento sincronizado de cabeça, digno de gaivotas famintas seguindo o deslizar carnudo de tripas de peixe numa laje.
Conte, diziam os olhares esfomeados. Conte como podemos ganhar o ouro.
Farley viu que eles estavam satisfeitos em deixá-lo prosseguir, por isso continuou com o roteiro preparado:
— Vocês me perguntaram se Malarkey está morto, e eu digo que está. E como cheguei a essa informação? Como tenho tanta certeza? Tenho certeza porque fui eu que puxei o gatilho.
— Deve ter sido um tremendo gatilho, meu velho — disse Colete Escarlate, que parecia ter se nomeado como porta-voz.
— Foi, e mais do que isso, porque ele fez o mesmo com o restante do conselho de guerra. Tudo com uma arma. E uma carga apenas.
Era uma confissão incrível. Ali estava um deles, reivindicando o assassinato do século.
— Epa, Jameson — disse Colete Escarlate, referindo-se à invasão do Dr. Jameson ao Transvaal. — Você está dizendo aos irmãos que o velhinho aí fez o grande serviço apagando todo o nosso conselho de guerra, sozinho, com um único berro?
Farley encarou Escarlate e sustentou o olhar do outro até o sujeito baixar a cabeça.
— É o que estou dizendo.
Os Aríetes não conseguiam mais manter o silêncio. Ora, se fosse verdade, era um dos golpes mais sangrentos da história da fraternidade. Jamais havia acontecido uma tomada de poder tão ousada desde que Franz Flowers — também conhecido como o Golem de Varsóvia — oferecera um funeral viking ao rei dos Aríetes, Albert Spade, e a seus três principais capangas pondo fogo no barco fluvial de Spade.
E tudo realizado pelo tatuador? Forçava demais a credibilidade.
Colete Escarlate falou em nome da casa:
— Eu gostaria de dar uma olhada nesse berro, Farley; é o que eu gostaria, para começo de conversa. E em segundo lugar, gostaria de prestar meus respeitos ao rei Otto, cara a cara. Porque não estou acreditando que você matou não somente um, mas dois Malarkeys.
Farley não se abalou. Estivera mesmo esperando algumas idas e vindas por parte dos Aríetes. Eles aprenderiam a disciplina em breve, quando o coronel estivesse no comando.
— Muito bem, rapazes. Gostariam de ver minha arma, é isso?
— Para começo de conversa — respondeu Colete Escarlate, todo emproado com suas novas responsabilidades de porta-voz.
Farley enfiou a mão na sacola de novo.
— Bom, tudo bem, vamos começar. — Ele sacou a submetralhadora, ligou a mira a laser e atirou em Colete Escarlate e em cada homem junto às laterais dele, diretamente. Três mortos em meio segundo, e nenhum Aríete reagiu até que a coisa terminou. Farley continuou a enfatizar seu argumento transcrevendo um semicírculo de buracos de balas no chão à sua frente.
— Eu recebo ordens de um homem — disse, depois apontou o cano fumegante para um Colete Escarlate caído. — E não é este aí.
Os Aríetes estavam um pouco ansiosos, mas não completamente atônitos, já que Escarlate e seus colegas eram conhecidos pés-rapados que roubariam até a própria mãe.
Farley deixou a arma pender ao lado do corpo, mas estava claro que ela poderia ser levantada facilmente.
— Agora ouçam, Aríetes. Há um novo exército em Londres: o exército do coronel Box, e temos grandes planos para esta cidade. Se estiverem conosco, juntos iremos nos vingar de todos os que nos prejudicaram no decorrer dos anos: a polícia, o exército, os carcereiros, os meirinhos, os políticos, a própria coroa. Meu chefe, o coronel, colocará estas armas mágicas nas mãos de vocês e irá torná-los invencíveis. Vocês pegarão os espólios da guerra e serão senhores no novo país. Os que recusarem jamais sairão vivos deste lugar. Vamos partir para cima deles e calar suas bocas para sempre. Portanto a escolha é de vocês: podem ficar ricos como reis ou ser mortos como mártires. O que vai ser?
O discurso de Farley foi seguido por gritos de comemoração entrecortados, que ganharam ímpeto e espiralaram no salão, acompanhados e reforçados por sapateios, palmas e até mesmo tiros de pistola. Não havia palavras nos berros, apenas um urro de apoio à ideia de finalmente irem à guerra por puro lucro. Chega de rainha e país, chega de livro abençoado e terra santa. Apenas luta justa por dinheiro justo.
Farley captou o clima da comemoração e sorriu, ainda que a visão daqueles homens revirasse seu estômago.
Assim que a cidade for nossa, vamos recrutar pessoas do exército e jogar cada um desses criminosos num buraco escuro e fundo.
Mas estava aliviado porque a aposta tinha dado certo. O coronel o havia aconselhado a levar um esquadrão para a Toca dos Carneiros, mas ele discordara respeitosamente.
Conheço aqueles homens, coronel. Só preciso de uma cenoura reluzente para atraí-los ao nosso antro, e eles serão nossos. O esquadrão fica de fora.
O coronel concordou, mas fez uma sugestão.
Posso sugerir alguns estalos de chicote, também, só para eles verem por conta própria do que somos capazes.
Farley olhou para os três cadáveres caídos diante dele como oferendas de sacrifício num altar.
O chicote foi estalado, coronel, pensou ele. O senhor tem seu exército. O Aríete está morto.
Porém Malarkey ainda vive, disse a voz do agouro em sua cabeça. E você matou o irmão dele.
O garoto do porco estava cansado de ser o garoto do porco. Havia lutado para entrar nos Aríetes com sonhos de andar emproado pelo Haymarket, junto a outros valentões bem de vida. Compraria um belo chapéu-coco azul, para destacar o colete azul-marinho e os anéis de safira que seriam afanados de um grã-fino em Mayfair ou algum lugar assim. Na noite de sua aprovação na irmandade, o garoto do porco aguentara a ardência das agulhas de Farley e vira o sangue escorrer da tatuagem dos Aríetes no ombro, dizendo a si mesmo: Agora. Agora enfim as coisas vão ser diferentes.
E estava certo. As coisas eram diferentes. Eram tremendamente piores. Antes de receber a tatuagem, ele ao menos podia esconder para si o que roubava. Agora, uma boa fatia devia ser entregue ao tesoureiro dos Aríetes, que era meticuloso com cada tostão.
E ele tinha virado o garoto do porco.
Numa noite havia feito a matança do bicho, só para demonstrar como era hábil com a faca. E quando se deu conta o rei Otto o nomeou açougueiro oficial. Esse não era o sonho do garoto do porco.
Seu nome é James, Jimmy ou até Jem, lembrou-se. Não uma porcaria de garoto do porco.
E agora. Agora. Até mesmo aquele minúsculo grau de benefício que merecera como açougueiro ia virando fumaça, já que, pelo que parecia, o rei Otto estava alimentando os vermes, e por acaso James Jimmy Jem sabia que Farley não era muito chegado a porco.
Enquanto derramava banha derretida sobre o suíno, o garoto do porco se perguntava como poderia cair nas graças do novo sujeito e garantir uma promoção, abandonando o cargo de açougueiro.
Informação é moeda, pensou. Então será que sei de alguma coisa digna de ser vendida?
Não sabia. Ali estava Farley oferecendo soberanos a todos os Aríetes presentes, e o garoto do porco sabia, com uma certeza soturna, que seria excluído do banquete. Afinal, o que um garoto do porco poderia levar à mesa, a não ser carne de porco?
Eu tô numa espécie de limbo de meio-Aríete, pensou. Preso no trabalho com o porco, sem nunca merecer respeito.
Todos os outros iriam embolsar ouro, tinha certeza. Até aquele sujeitinho irlandês escondido ali, atrás das lâminas, que nem mesmo era um Aríete.
O garoto do porco mastigou a cartilagem durante um tempo, então a inspiração bateu.
Isto aqui é uma reunião dos Aríetes. Todos os civis foram jogados porta afora, a não ser as dançarinas e as donas amigas, e no entanto o sujeitinho está ali sentado, palitando os dentes.
Será que essa informação valeria um tapinha nas costas?, pensou o garoto do porco.
Não tinha nada a perder oferecendo-a, concluiu, e levantou o braço, acenando a faca para que a lâmina reluzisse nos olhos do velho Farley.
— Aqui, meu lorde — gritou ele. — Tenho uma coisa a dizer.
Farley sempre havia desprezado a monarquia e tudo que ela representava, por isso chamá-lo de meu lorde certamente não era o modo de conquistar sua benevolência. Semicerrou os olhos para o outro lado do salão.
Quem era? Que o chamava de lorde?
O garoto do porco.
— Sim, garoto — disse irritado. — O que você precisa dizer?
É melhor que isso seja bom, pensou ele. Ou vou servir de exemplo.
O garoto do porco baixou a faca.
— Perdão, senhoria. Mas essa reunião extraordinária é só pros irmãos, num é?
— Isso mesmo, garoto — disse Farley, com os fiapos de paciência já se esgarçando.
— Bom — disse o garoto, apontando a faca para um canto. — Ele num é nenhum Aríete.
Farley arrastou os pés até a beira do tablado para ter uma visão mais nítida do homenzinho encolhido atrás da pilha de facas e espadas. Havia algo na silhueta dele. Algo familiar.
— Você aí — gritou ele. — Venha para a luz.
Figary estava lamentando por não ter dado o fora quando teve a oportunidade. Afinal de contas, dar o fora era uma habilidade na qual ele possuía anos de experiência. Os bons batedores de carteira sabiam que fugir era tão importante quanto a batida em si. Não fazia muito sentido pegar uma carteira gorda só para ficar à espera das algemas logo depois. Isso era especialmente verdadeiro no Monto em Dublin, onde o pessoal da área costumava exercer a justiça de rua e um sujeito podia se flagrar acalentando um cotoco onde outrora fora a mão só por ter surrupiado alguns tostões do bolso errado.
E agora Michael Figary desejava ter dado o fora quando os clientes estavam sendo retirados da Toca dos Carneiros, já que sua missão decididamente havia sofrido uma reviravolta sinistra, e o mordomo tinha passado a gostar muito de estar vivo e de não presenciar pessoas sendo assassinadas.
A querida e velha mãezinha de Michael fora abençoada com um toque da visão e era capaz de enxergar o perigo a dois condados de distância, e pela primeira vez Figary entendia esse sentimento de perigo iminente enquanto seu estômago se revirava com uma premonição da ruína.
Por acaso a ruína estava consideravelmente mais próxima do que dois condados enquanto Farley seguia para a lateral de seu palco e gritava diretamente para o mordomo.
— Você aí — disse ele. — Venha para a luz. Depressa, antes que eu atire primeiro e faça perguntas depois.
Figary não tinha opção além de obedecer e viu-se no foco de todos os Aríetes e dançarinas da Toca dos Carneiros. E, como antigo batedor de carteiras, estar no centro de tanta atenção hostil definitivamente o deixava nauseado.
— Quem é você? — perguntou Farley. — Por que não saiu junto com os outros?
— Estou bastante bêbado, estou sim — respondeu Figary com sinceridade. — Eu estava tirando um cochilo quando os tiros me acordaram. Mas não vi quem atirou. Alguém foi ferido?
O sotaque de Figary provocou uma lembrança em Farley.
— Eu conheço você, não conheço?
O sentimento de ruína de Figary se intensificou e ele ficou tonto.
Ou talvez esteja ficando sóbrio. Um pensamento horrível.
— O senhor não me conhece, mas eu já larguei uns bons maços de notas nas suas mesas ao longo dos anos. Costumo fazer apostas loucas depois de um trago ou dois.
Farley não estava engolindo essa história. Lembrava-se de ter seguido Malarkey até a Grosvenor Square certa noite, com a ideia de talvez assassiná-lo na cama. E quem havia aberto a porta naquela noite e falado exatamente com esse sotaque, que soava nitidamente por toda a rua?
— Não. Não. Eu conheço você. — Ele estalou os dedos. — Lembrei. É o empregado do comodoro. O mordomo de Malarkey.
No momento em que disse tais palavras, Farley soube que deveria tê-las segurado, porque se esse diabrete estava ali provavelmente havia sido enviado por Malarkey, o que significava que o rei Otto ainda vivia e estava estendendo seus tentáculos para tatear o território. Se os Aríetes pudessem interrogar esse homem seriam capazes de obter informações que Farley não desejava que fossem obtidas, afinal ele não havia jurado agora mesmo que o rei estava morto? E se estava mentindo em relação a esse fato importante, por extensão provavelmente estava mentindo sobre o ouro.
Eles vão me despedaçar, percebeu Farley, e subitamente desejou ter trazido uma equipe para dentro da Toca.
Não entre em pânico, major, ordenou a si. Você já esteve em apuros maiores, e seus homens o aguardam lá fora. É preciso apenas uma explosão de estática pelo rádio e em segundos você estará cercado pelas forças especiais.
Mas alguns segundos poderiam ser demais se esse tal mordomo dissesse que Malarkey estava vivo.
Preciso calar a boca dele imediata e permanentemente, percebeu Farley.
— Você é um espião! — disse, levantando a pistola.
— Espião, é? — rebateu Figary, tremendamente ofendido, mesmo sendo verdade. — Espião de quem?
Em vez de esperar uma resposta, Figary se enfiou atrás do monte de armas, e foi um gesto sensato, pois Farley esvaziou o resto do pente contra os aços reluzentes, fazendo baionetas e alfanjes voarem e ressoarem como sinos de igreja, demolindo aquela estrutura casual. No fim do pente, Figary se agachou, trêmulo e exposto, porém milagrosamente incólume, o que era mais do que poderia ser dito pelo garoto do porco que, num clarão de justiça poética, sofrera um ricochete no gluteus maximus, fato que dificultaria o ato de sentar durante semanas.
Quando Farley levou a mão ao cinto para pegar mais um pente, Figary puxou a cortina de lona improvisada, mas descobriu que a janela estava selada por tábuas pregadas, algo que ele talvez pudesse resolver se tivesse uma hora e um martelo. Mas não havia ferramentas nem tempo, e antes que pudesse ao menos mergulhar atrás do banco de igreja, Figary ouviu um estalo agourento que, de algum modo, soube ser o precursor de mais uma matraqueada de tiros.
É isso, é sim, pensou. Minha querida mãezinha sempre disse que toucinho fazia mal para a saúde.
Mas a salvação — ou pelo menos um adiamento temporário — estava ali perto, na forma de uma dançarina.
— Ei, você aí. Major Farley. Sr. Carrasco. Tem alguma coisa que você não está contando a estes excelentes cavalheiros íntegros?
O sotaque era americano e o tom continha descaramento até a borda, o que tornava impossível não procurar quem falava.
Era uma das dançarinas. De pele morena, bonita e destinada a ser uma verdadeira beldade se Londres não a esmagasse. Os olhos eram grandes e castanhos, e os braços nus eram bronzeados e musculosos. Um cotovelo dobrado repousava no canhão da milícia de um jeito selvagem e, de algum modo, ameaçador.
Farley ficou confuso. Ele conhecia aquela jovem? Ela o havia chamado de Carrasco, exatamente como Vallicose fizera.
Ele bateu o pé, empurrando as dúvidas e confusões para mais tarde, quando todo mundo que deveria estar morto já o estivesse e ele pudesse se dar ao luxo de ponderar e revirar as lembranças em busca de rostos meio esquecidos.
— Silêncio, garota. Você não tem direito de falar nesta casa.
— Isso não é muito moderno da sua parte — disse a jovem, raspando um pedaço de pau comprido e fino ao longo do canhão, o qual, Farley notava agora, estava apontado diretamente para o teto acima de sua cabeça. O pau fino era um grande palito de fósforo.
— Rá! — disse Farley. — Este canhão está aí há quase um ano. Você não acha que ele está carregado, acha, sua espevitada?
Espevitada não era mesmo uma palavra do século XX. Talvez nem fosse uma palavra do século XIX, por sinal, mas Farley gostava dela.
Uma chama amarelo-azulada brotou na ponta do palito de fósforo, e de repente todo o salão ficou interessado no desfecho da coisa toda. Realmente era como nos livros da carochinha: um bandido velho e mau contra uma rapariga bonita já seria interessante; mas junte a isso uma pistola de tiros múltiplos e um canhão e eis um sucesso fenomenal, sem dúvida.
— Não sei se está carregado ou não — disse a jovem, inclinando o palito para aumentar o tamanho da chama. — Fora do palácio, eu diria que não. Mas aqui, na companhia destes cães, eu apostaria que eles o mantêm carregado só por diabrura. E também acho que ele já foi disparado, o que explica por que o eixo quebrou.
Farley piscou. Isso era verdade. O canhão tinha sido disparado três vezes desde o natal. A última bala havia atravessado o teto e matado um cavalo do outro lado do rio.
Agora Figary estava esquecido.
Esquecido.
Ele poderia ter se despido até ficar de ceroulas e dançar uma sarabanda, e mesmo assim ninguém iria incomodá-lo com a atenção. O que ele era, comparado a uma jovem atrevida e um canhão?
— Acho que Bessie pode estar carregada — disse um Aríete, que tinha uma pele de raposa amarrada em volta da cintura.
— Não — disse outro. — Bessie não é carregada há semanas. E, de qualquer modo, a pólvora estaria mais melada do que um poema do dia dos namorados.
— Aplaudo sua metáfora, Sr. Oxendale — disse o Pele de Raposa.
— E eu aplaudo seu conhecimento dos instrumentos literários — retrucou Oxendale, fazendo uma reverência.
Farley perdeu a estribeira. Estivera segurando a raiva durante anos, mas agora que ela havia saído do saco, ele estava com sérias dificuldades para guardá-la de volta.
— Calem a boca, idiotas! Estou numa situação complicada, aqui.
— Baixe a arma, major — disse a jovem. — Eu tenho um bocado de palitos de fósforo. — E para provar seu argumento ela acendeu um segundo a partir da chama do primeiro.
Farley levantou sua arma e a garota se abaixou rapidamente atrás do cano grosso do canhão.
— Saia de perto do canhão — ordenou ele.
— E aí o quê? — perguntou a jovem, zombando. — Você não vai atirar em mim?
Quando a garota se abaixou sob o canhão, seu cabelo se moveu ligeiramente ao bater no cano.
Uma peruca!, pensou Farley. Claro.
— Savano — disse ele. — Eu conheço você.
Em reação, Chevron Savano acendeu um terceiro fósforo, segurando-o perigosamente perto do ouvido do canhão.
— Matem-na! — gritou Farley. — Cem soberanos para o homem que me trouxer a cabeça dela.
Os Aríetes pensaram no assunto. O juramento deles impedia certas atividades relacionadas às mulheres, especificamente o insulto à mãe de um membro e o assassinato de uma mulher sem provocação severa, mas ouro era ouro, e a tal dançarina estava brincando com um canhão, o que certamente poderia ser considerado provocação.
Houve um rugido entrecortado quando vários Aríetes resolveram mandar o juramento para o inferno e partiram para junto do canhão, deixando Chevie sem escolha, a não ser acender o pavio da arma. Os que estavam correndo recuaram, e os que não haviam corrido se abaixaram; o que foi ótimo porque, sem ao menos um instante de demora, o canhão provou que estava mesmo carregado, disparando seu projétil de 20 quilos num ângulo agudo em direção ao teto da Toca dos Carneiros, que considerou aquilo a última gota de abuso e desmoronou concentricamente, devido às várias fraturas aparentes.
A sequência de ruídos, apesar de esperada, foi espantosa. Começou com um vuuuuumppp metálico quando a bala viajou pela extensão do cano. A isso seguiu-se um rugido de concussão, como o quebrar de mil ondas numa praia feita de lata e vidro, enquanto o canhão cuspia a bala no ar. Boa parte do teto se transformou em poeira com o impacto, e a última trave de madeira que restava foi despedaçada pela bala, que depois de completar seu arco voltou assobiando para a terra, trazendo uma chuva de ardósia, madeira, aço e pedras em seu encalço.
Para quem se encontrava dentro da Toca dos Carneiros, a experiência foi semelhante a estar num vulcão em erupção. A devastação chovia enquanto as pessoas desmoronavam em círculos, apertando os ouvidos que sangravam.
Chevie pensou: Até agora eu nunca tinha respeitado as balas de canhão.
E:
Espero mesmo que Farley esteja morto, assim jamais poderá enforcar uma única alma.
E:
O caimento da peruca estava ótimo até ela ser soprada para longe.
Ela não teve sorte no que dizia respeito ao segundo pensamento, sobre Farley estar morto. Procurou no meio dos destroços e descobriu-o meramente inconsciente com um talho na testa provocado por algum estilhaço, e então pensou: Bom, pelo menos ele está tendo um dia ruim.
Ocorreu a Chevie que, se ela acabasse com Farley agora, possivelmente evitaria todos os enforcamentos públicos que ele aprontaria; mas ela era ela, afinal de contas, e não era uma assassina a sangue-frio, por isso se contentou em roubar a sacola de armas e o rádio.
— Hoje você está perdendo um monte de equipamento, major — disse ela, dando um tapinha no rosto dele. — Se continuar assim vai acabar travando sua grande revolução com palavras sérias e agulhas de tatuador.
Ainda que as zombarias fluíssem facilmente de sua boca, parte de Chevie estava surpresa por conseguir falar daquele jeito com o major Anton Farley, o Abençoado Carrasco.
Não pense assim, disse a si mesma. A rainha não vai ser enforcada, meu pai não vai ser executado, nem DeeDee.
Afinal de contas, agora eles eram quatro e tinham duas sacolas de armas.
O que poderia dar errado?
Do outro lado do salão, Figary estivera agachado e pensando: Perdão, mãezinha. Mas você não pode deixar maçãs carameladas numa jarra e esperar que uma criança não as coma.
O que era algo que vinha pesando em sua mente desde a infância.
Alguém agarrou suas lapelas e puxou-o de pé. Ele olhou, e era a Srta. Savano.
— Otto me mandou como apoio, para o caso de você precisar.
O coração de Figary inflou com um afeto súbito pelo patrão, esquecendo-se de que Malarkey era quem o havia mandado para a tarefa insana, para começo de conversa.
— O comodoro. Ele é um santo, é sim.
Chevie notou vários homens vestidos de preto entrando em silêncio pela porta da frente.
Forças especiais, pensou. O filho da Sra. Figary não é o único que tem apoio, não é não.
— Acho que deveríamos ir embora — disse ela.
Figary assentiu.
— Concordo. Eu adoraria uma bebida, adoraria sim.
Chevie entregou a sacola roubada a Figary.
— Segure isto. Preciso das mãos livres para o caso de alguém ficar no nosso caminho.
Figary pendurou a sacola no ombro.
— Vou guardá-la, se não com minha vida, pelo menos até que alguém ameace minha vida.
Por sorte, como o trecho de parede ao lado deles havia desaparecido, não havia nada para impedir sua saída apressada. Passaram por cima do entulho e encontraram coisas suficientes para impedi-los do outro lado da parede.
Inspecionando o buraco havia dois soldados usando capas pretas que cobriam tudo, menos os canos curtos de suas armas automáticas.
— Mãos ao alto — disse o primeiro soldado, e Chevie teve a impressão de que o sujeito já esperava que eles não obedecessem.
— Você precisa voltar à Grosvenor Square — sussurrou ela para Figary com o canto da boca. — Otto precisa saber do plano.
Figary sacou que a Srta. Chevie ia partir para cima daqueles soldados grandes e corpulentos, e cochichou para ela que era uma ideia muito ruim e que eles deveriam aguardar, mas acabou por sussurrar para o nada, porque Chevie já havia agido.
Os soldados foram apanhados de surpresa, com suas armas ainda escondidas embaixo das capas curtas. Havia um exercício que o coronel Box havia projetado, no qual os soldados treinavam para remover as abas das capas com eficiência máxima. Era um simples duo de movimentos. Primeiro as duas mãos eram impelidas para baixo e para fora, pôr as mangas para fora, como era conhecido; depois os cotovelos eram levantados rapidamente, como se fossem quebrar os narizes de atacantes altos, jogando assim as abas da capa para trás e deixando as mãos perfeitamente posicionadas para segurar a arma anteriormente escondida. Essa manobra demorava um segundo e meio, mas Chevie cobriu o terreno entre ela e os soldados em menos tempo que isso — e teria feito mais depressa se sua saia volumosa não atrapalhasse.
— Corra! — berrou para Figary, que estava congelado de surpresa. — Vá.
— Como ousa?! — gritou Figary, rompendo o congelamento. — A Sra. Figary não criou seu filho para abandonar mocinhas em perigo.
Então mais dois soldados surgiram pelo buraco e se juntaram à confusão, e Chevie desapareceu sob a pilha de homens tão rapidamente que sua peruca ficou no ar por um momento. A essa altura, Figary se lembrou de um ditado que sua mãe costumava recitar: A discrição vale mais do que tudo.
E qual é a boa qualidade de um mordomo, Michael Figary, senão a discrição?, perguntou ele a si mesmo
Apertou a sacola de Farley com força contra o peito e disparou pela avenida, em direção a uma fileira de carruagens de aluguel no Haymarket.
REVELADORAS BALAS FUTURISTAS
A velha máxima de que cada ação tem uma reação é verdadeira, mas, quando você começa a mexer com a viagem no tempo, essa reação pode acontecer num universo totalmente diferente.
— Professor Charles Smart
Grosvenor Square. Mayfair. Londres. 1899
Woodrow Rosenbaum era o soldado mais jovem da unidade original do coronel Box que havia saltado para trás no tempo, saindo da Londres do século XX. Na ocasião, Rosembaum se mostrara muito ansioso para dar o fora, pois estava no fundo do poço das dívidas com alguns agiotas de Londres, sem esperança razoável de sair, a não ser assaltando um banco. E agora se encontrava atolado de novo com corretores de apostas vitorianos, especificamente o rei dos Aríetes, Otto Malarkey. Sendo assim, essa tarefa lhe servia muito bem. Dois coelhos com uma cajadada só, por assim dizer. Estava cumprindo suas ordens e limpando a dívida. Não que isso importasse a longo prazo, porque Malarkey havia perdido a coroa, mas Rosenbaum não queria que os detalhes de seu problema com o jogo chegassem ao coronel, que considerava o jogo um uso horrivelmente ineficiente do dinheiro.
Rosenbaum era o braço direito do coronel quando se tratava de assassinatos à queima-roupa. Box ainda gostava de atirar de longe pessoalmente e mandar um faxineiro arrancar as balas, mas para o trabalho com faca não havia ninguém melhor do que Woodrow Rosenbaum. E o trabalho com faca não exigia uma equipe de limpeza, pois assim não restavam reveladoras balas futuristas no corpo, de modo que os cadáveres podiam ser deixados onde caíssem, caso necessário, embora em geral o coronel preferisse que eles fossem jogados no rio, só para evitar que algum inspetor zeloso os ligasse às catacumbas. Nesse caso isso não importava, já que haveria corpos suficientes surgindo por toda Londres e um a mais não faria muita diferença.
Dia da Emersão, foi como aquelas duas Thundercats chamaram. Hoje era o Dia da Emersão.
Desde que Farley conseguisse recrutar os Aríetes. Caso contrário, eles talvez ainda demorassem um bocado para emergir das catacumbas.
Nessa manhã a Grosvenor Square parecia uma pintura, com o sol num céu claro brilhando sobre pedras de calçamento limpas e um parque bem cuidado. Rosenbaum passou os dedos nas duas bainhas de faca no cinto e pensou: Não me importa o que dizem os ressentidos; um dia de sol deixa todo mundo com o humor melhor.
— Uma linda manhã, não é? — disse ele a uma bela vendedora de flores. — Um bom dia — disse a um policial que o saudou com um aceno do cassetete.
O policial não suspeitou de que ele tivesse alguma intenção execrável, e porque desconfiaria? Rosenbaum estava vestido como um trabalhador comum, e havia muitos desses nos andaimes presos ao esconderijo secreto de Malarkey.
Secreto, isto é, a não ser que um rastreador eletrônico tenha sido implantado nas botas preciosas que pertenceram ao seu mentor.
Rosenbaum deu uma risadinha. Você nunca saberá como o encontramos, Otto. Nunca terá tempo para se perguntar.
Havia uma pilha de equipamentos e material de construção junto aos degraus da frente. Abaixando-se atrás da pilha e depois se enfiando embaixo de uma lona, Rosenbaum foi perdido de vista em menos de um segundo. Vinte segundos depois havia sacado uma lâmina chata e estava trabalhando na lingueta de uma janela do andar de cima. Em mais cinco estava dentro da casa de Malarkey.
Foi andando pelos tapetes grossos, pensando: Toc toc, comodoro. Vim cancelar minha dívida.
Riley havia caído no sono no tapete diante da lareira da sala de estar, enrolado em sua pesada capa de mágico. Para ser justo, ele era um mero garoto de 14 anos, que já havia enfrentado uma boa quantidade de traumas no dia anterior, de modo que seu corpo certamente merecia um pouquinho de repouso. Mas na coluna dos contras era preciso dizer que ele havia se oferecido para montar guarda enquanto Malarkey dormia à custa de éter, por causa das lacerações dos ferimentos, assim como Chevie montava guarda a Michael Figary. Se Riley fosse alistado no exército, esse cochilo iria deixá-lo com as costas grudadas ao muro de fuzilamento. Ele não tinha pretendido dormir, mas o calor da lareira e o sol atravessando a janela se provaram demais para seus olhos cansados, por isso ele teve de fechá-los por um instantinho, rolando assim do ponto de vigia no parapeito da janela para o tapete macio e fofo.
Riley sorria em seu sono quando o mordomo irlandês entrou no sonho e murmurou as palavras: “Sou sim”. Mas então o corpinho de Figary se estirou como uma bala puxa-puxa e se transformou em alguém totalmente diferente. Alguém que Riley conhecia bem demais, já que sonhava com ele na maioria das noites.
Riley, meu garoto, disse Albert Garrick. Você me abandonou, filho. Você traiu seu patrão. E eu vou me vingar.
E Albert Garrick se assomou à figura do menino, erguendo a mesma lâmina que tinha usado para assassinar Jack, o Estripador, em pessoa, e em seguida disse: Vou fazer isso lentamente, garoto. Lentamente, para você sentir cada golpe.
Riley acordou com um susto, sobressaltando-se como se estivesse eletrificado, e ficou pasmado ao encontrar um homem com uma faca acima dele.
— G... Garrick? — gaguejou. — Você não é de verdade. Você não está aqui.
Foi esse despertar surpreso que salvou sua vida. Rosenbaum estava pairando ali, com a faca levantada para o assassinato, quando o garoto saltou e o assustou, fazendo-o recuar um ou dois passos.
Sem problema, pensou Rosenbaum. Um segundo de atraso, só isso.
Um segundo era tudo de que Riley precisava para acordar totalmente, já que estava acostumado a se orientar numa velocidade de relâmpago. Nunca sabia quando Garrick iria precisar dele ou quando começaria a espancá-lo sem motivo aparente. E Riley frequentemente fantasiava com a ocasião em que seria levado aos extremos e finalmente decidiria lutar. Tinha planejado esse momento tantas vezes que chegara a coreografar o ataque, e foi esta estratégia, ou kata, que ele deslanchou contra Rosenbaum.
O primeiro passo consistia em rodopiar em sua capa de mágico, de modo que ela se abrisse num leque formando um prato negro, escondendo sua posição exata. Quando o atacante deu o bote, Riley abaixou-se no chão, deixando Rosenbaum com o braço enroscado na capa e lhe dando a chance de rolar pela sala e ganhar um curto intervalo para respirar.
Em todas as brochuras baratas e romances de aventura que Riley adorava ler, chegava um ponto na história em que o herói enfrentava um assassino maligno. Eles trocavam farpas verbais enquanto lutavam, e frequentemente a batalha de ditos espirituosos parecia mais importante do que o choque das lâminas. Mas o combate verdadeiro não era assim. Os profissionais não falavam quando havia matança a ser feita. Eles executavam o serviço.
E assim foi essa luta. Rosenbaum não era um daqueles tipos espalhafatosos como Jack, o Estripador; era um lutador de faca que tinha sido informado sobre em quem enfiar sua faca.
Rosenbaum jogou a capa de lado e sacou a segunda faca do cinto, abrindo bem os braços para cobrir todas as saídas da sala. Era importante espetá-lo rapidamente, para que o garoto não alertasse Malarkey.
O erro de Rosenbaum foi supor que o garoto tentaria fugir. Daí mais uma vez, como ele poderia saber que Riley fora treinado em mais artes marciais do que Rosenbaum jamais ouvira falar?
Riley fingiu que ia para a esquerda e Rosenbaum atirou a faca número um. Ela não girou como se lançada por um atirador de circo; voou como uma risca de prata na direção do alvo, que não estava onde deveria, de modo que a faca cravou num retrato de Otto — uma cópia de São Jorge Matando o Dragão, de Martorell, em que a cabeça e a nuvem de cabelos sedosos de Malarkey substituíam o rosto e o elmo de São Jorge.
Rosenbaum considerou o desvio mero acaso. Afinal de contas, que garoto conseguia se movimentar tão depressa, se não por acidente? De qualquer modo ele tinha outra faca. O suficiente para o serviço.
O desvio de Riley não tinha sido acaso; era o segundo passo da kata durante uma luta com um atirador de facas: colocar ímpeto em uma finta, depois puxar o corpo para trás como se uma corda o controlasse.
O terceiro passo era atacar, e para isso o posicionamento dos pés era o elemento mais importante. Havia várias improvisações que poderiam ser feitas, dependendo do oponente, desde que os pés estivessem na posição correta e o equilíbrio fosse certo. Riley deu dois passos rápidos à frente, o esquerdo primeiro, abaixou-se e agarrou a carne da parte interna da coxa de Rosenbaum, daí apertou com o máximo de força possível, fazendo com que o soldado colocasse toda a energia na contenção de um grito esganiçado. Rosenbaum não foi totalmente bem-sucedido nisso, e um guincho agudo vazou; já que, afinal de contas, a parte interna da coxa é um centro favorito de dor em muitas disciplinas de ataque. Rosenbaum baixou a segunda lâmina direto para onde a cabeça de Riley deveria estar, mas claro que Riley recuou, e o ímpeto do soldado fez a ponta da faca atravessar o tapete e se cravar nas tábuas do piso.
Minha cabeça está medonhamente exposta aqui, pensou Rosenbaum, e com razão: o fato de estar lutando contra um garoto significava que Riley estava na altura perfeita para levantar o joelho e acertá-lo sob o queixo, coisa que ele fez com toda a força que conseguiu juntar — e, depois de anos imaginando exatamente aquela situação exata, foi uma tremenda quantidade de força.
Infelizmente, para Rosenbaum, sua língua estava ligeiramente para fora quando ele se abaixou, e assim, quando seus dentes se fecharam com um estalo, ele mordeu um bom naco de carne.
Agora as chances nessa luta em especial estavam se igualando, quando então Riley catou a segunda faca de Rosenbaum do chão e, a julgar pelo modo como ele a segurava entre as mãos, Rosenbaum calculou que o garoto desgraçado sabia manusear uma lâmina. Então percebeu que, caso fosse apostar nesta luta tal como havia apostado em tantas outras, seu dinheiro seria posto a favor do garoto.
Mas eu sei de uma coisa que ele não sabe, pensou Rosenbaum.
E essa coisa era que Rosenbaum sempre levava uma arma de fogo para o serviço. Isso ia contra as ordens, e ele nunca tivera de usá-la, mas sempre achara que, se fosse necessário, ele mesmo poderia recuperar a bala e queimar o corpo.
Vou queimar a porcaria dessa casa inteira, pensou, e levou a mão ao pequeno coldre na parte de trás do cinto. O coldre estava ali, e as balas extras, mas nenhuma arma.
Nenhuma arma. Será que ele havia deixado cair?
Rosenbaum girou e encontrou um homenzinho parado junto à porta, segurando a pistola entre o polegar e o indicador.
— Você, meu colega intruso — disse o sotaque cantarolado do sujeitinho —, foi afanado pelo melhor batedor de carteiras que já existiu. Você deveria sentir-se honrado, deveria sim.
— O quê? — gritou Rosenbaum, agora absolutamente confuso. Esse serviço, que tinha parecido tão simples, de algum modo havia se transformado num pesadelo tortuoso. — O quê?
Rosenbaum provavelmente teria gritado O quê? pelo menos mais uma vez, de tão absolutamente perplexo que estava, mas Riley pegou um dos atiçadores ao lado da lareira e o acertou com força bem atrás da orelha direita. E assim o soldado cambaleou até a janela por onde havia entrado e caiu direto lá fora.
— Muito bem-feito, garoto — disse Figary. — Um pouco de chá agora, acho.
Riley correu à janela bem a tempo de ver Rosenbaum se arrastando de uma pilha de tábuas e retirando-se, trêmulo.
— Você deveria evitar discursos durante uma crise — disse Riley a Figary. — Que conversa-fiada foi aquela sobre batedores de carteira e colegas intrusos?
— Aquilo foi o que nós chamamos de tagarelice — respondeu Figary. — É muito útil para distrair uma figura, de modo que outra pessoa possa lhe acertar os miolos.
— Por que você não podia simplesmente atirar no sujeito? — questionou Riley.
Figary entregou a arma.
— Atirar? Ah, não. O filhinho da Sra. Figary abomina cometer atos violentos.
— Mas não é avesso a assisti-los? — observou Riley.
— De fato, não. Neste caso em especial, as vantagens são duas. Primeiro, minha vida é salva, e muito obrigado, senhor. E segundo, o pecado não fica na minha consciência, não mesmo.
Riley achou que deveria mudar o tema da conversa antes que Figary desaparecesse por uma toca de coelho teológica.
— Quais as notícias dos Aríetes? — perguntou. — Viu seu anjo da guarda?
O rosto de Figary ficou consternado ao pensar na garota que ele havia abandonado à própria sorte.
— Acho que a gente deve acordar o comodoro — disse.
A PORCARIA DO TUBO DE FEDOR
Frequentemente acho que deveria simplesmente abandonar a coisa toda. Acho mesmo. A viagem no tempo poderia ser um presente para a raça humana. Aquele que pudesse controlá-la poderia fazer coisas boas pelos homens. Mas você precisa se perguntar: considerando a trajetória da humanidade, isso é provável?
— Professor Charles Smart
Esgotos de Londres. 1899
Um ditado aceito universalmente é que tirar água do joelho no lugar onde a pessoa bebe água costuma ser má ideia, já que as águas se misturam e a pessoa pode terminar bebendo a água que ela preparou antes, o que jamais é bom para a saúde. Apenas pergunte às dezenas de milhares de londrinos varridos pelo cólera.
Até o fim da década de 1860, os esgotos de Londres corriam diretamente para o Tâmisa, que também fornecia a água turva que a cidade bebia, fato que respondeu por mais fatalidades no decorrer dos anos do que a guerra ou os incêndios. Mas havia coisas piores do que estar morto, como dizia a cantiga:
Dei um passeio pela cidade de Londres
O cheiro dela me deixou num torpor
Não existe pílula nem chá, nem xarope
Que ajude a escapar desse grande fedor.
O Grande Fedor era o jeito como o mundo inteiro se referia ao cheiro de Londres, que subia dos esgotos e pairava numa nuvem sobre a cidade.
Até que a rainha Vitória ficou furiosa e ordenou que seus engenheiros consertassem a porcaria dos tubos de fedor, ou algo parecido, e assim trezentos milhões de tijolos foram cozidos para construir mais de 130 quilômetros de túneis e interceptar o eflúvio que corria para o Tâmisa.
— Os esgotos eficientes foram bons para a população em geral, meu Arietinho — disse Otto Malarkey a Riley. — Mas foi uma notícia ruim para nós, os garimpeiros de esgoto.
Riley ficou impressionado com seu regente.
— O senhor já foi garimpeiro de esgoto, rei Otto?
— Fui, meu rapaz. Os tempos eram difíceis para a família Malarkey, por isso meus irmãos e eu montamos uma equipe de três homens e descíamos para o grande submundo. Houve uma época em que dava para entrar nos túneis a partir da margem do Tâmisa, mas com os novos esgotos vieram novas seguranças, portões enormes na boca dos túneis. Se um sujeito fosse apanhado num jorro sem um bueiro para saída, ficaria achatado feito uma panqueca contra aqueles portões.
Eles estavam rodeando o Regent’s Park, indo para um bueiro específico através do qual o esconderijo do coronel poderia ser acessado, Malarkey tinha certeza disso.
— Há dinheiro no esgoto — disse ele, citando a máxima dos garimpeiros. — As pessoas jogam fora as coisas mais estranhas, ou perdem. De qualquer modo, elas vão parar na imundície, esperando que algum garimpeiro as resgate. Meus irmãos e eu tínhamos um belo negociozinho, criamos uma rede na área central de Londres, onde estão as colheitas mais gordas. Uma vez encontrei um candelabro de prata, e frequentemente me perguntei como aquilo tinha conseguido passar pelo vaso sanitário. Talvez fosse uma arma de assassinato, não?
Riley se obrigou a ouvir a história de Malarkey como um esforço para distrair sua mente da situação de Chevie. Sua querida colega estava nas garras do tal coronel Box, que se refestelava nas catacumbas sepulcrais abaixo de Camden, como algum tipo de professor Moriarty subterrâneo. Figary os havia deixado a par sobre o discurso de Farley aos Aríetes, por isso eles sabiam como sua missão era urgente. Box precisava ser impedido hoje, e Chevie precisava ser resgatada, isso se ela ainda estivesse...
Não. Nem vou pensar nisso.
Fora um incrível golpe de sorte o fato de Otto ter trabalhado nos esgotos de Camden anos antes como garimpeiro, ocupação também conhecida como catador da fedentina. Malarkey sabia bem demais que aqueles esgotos em especial inundavam regularmente e que sempre transbordavam para as catacumbas, até que um coronel americano as comprou e construiu uma parede à prova d’água capaz de suportar as inundações regulares e as fortes torrentes.
E se um sujeito pudesse demolir aquela parede na hora exata de uma torrente, dissera Malarkey a Riley e Figary, o coronel Box e seus belos soldados iriam se ver chafurdados até o peito em toletes flutuantes e ratos.
Na melhor das hipóteses era um plano frouxo, com um milhão de “e se” pairando ao redor, mas significava que talvez Chevie pudesse ser resgatada no meio do caos. E somente por esse motivo o coração e a alma de Riley ainda o apoiavam.
E eu?, questionara Figary. Eu também desejo servir, desejo sim.
Fique aqui, dissera Malarkey. Quando a coisa estiver concluída, vou mandar chamá-lo. Você é meus olhos na cidade de Londres, Michael. E precisarei saber como nossa sabotagem foi recebida pelos Aríetes.
Encontraram o bueiro e se demoraram nas imediações, bem inocentes e tal, até que o caminho ficou livre de todos que estavam fazendo sua caminhada diária. Malarkey pegou em sua sacola uma ferramenta estranha que fez Riley pensar numa garra metálica.
— Uma vez, no tribunal, um juiz disse que meu irmão era mole da cachola — disse Malarkey, inserindo as pontas da ferramenta em buracos correspondentes na tampa do bueiro. — E mesmo assim ele construiu este abridor de bueiros usando umas peças velhas. Nunca vi coisa melhor do que isso para levantar os biscoitos.
Malarkey fez força no cabo e abriu a tampa do bueiro como se fosse uma concha de marisco.
— Desça, garoto — disse ele.
Riley havia tolerado muitas dificuldades e sobrevivido a muitas tribulações, mas agora sentia um medo arrepiante ao pensar que desceria para a escuridão infernal, para o abraço de dedos úmidos e fétidos. O pavor postava-se como um peso morto em seus ombros. Uma capa de medo com cota de malha.
— Eu? Eu tenho de ir primeiro?
Malarkey falou entre dentes trincados:
— Fique esperto, garoto. Este biscoito não vai se manter aberto sozinho.
Eu deveria dar o fora. De que me importam os reis e reinos?, pensou Riley, e ficou com vergonha dos próprios instintos de sobrevivência. Chevie necessita que eu me enfie neste buraco. Se eu não fizer isso, todo o plano está condenado.
Riley reuniu a coragem e passou as pernas para dentro do bueiro. As pontas dos pés encontraram um degrau escorregadio e tatearam-no até se apoiar inteiramente.
— Benza deus, garoto — disse Malarkey, a voz tremendo ligeiramente devido à tensão. — Mexa-se. Não há o que temer no escuro.
Isso, conforme Riley já sabia, era nitidamente inverídico. Albert Garrick esperava por ele nas dobras de uma sombra, e algum dia Riley entraria involuntariamente na dobra errada. Era simplesmente uma questão de quando.
Hoje não. Por favor, hoje não.
Desceu, centímetro a centímetro, retinindo, os dedos envolvendo num aperto mortal os degraus metálicos suarentos e cheios de bolhas, os ombros raspando nos tijolos.
Apertado, pensou. Isto é apertado demais.
E o medo cresceu dentro dele outra vez, que o engoliu, pensando: Você é o Grande Savano. A escuridão é amiga dos mágicos.
Essa ideia ajudava, e logo Riley ouviu um som chapinhado assim que seus pés tocaram o piso do esgoto.
Não pense nesse barulho, disse a si. Ou no fedor insuportável. Apenas lembre-se de que Chevie necessita que você seja corajoso.
Na verdade não era justo se importar com o cheiro. Afinal de contas, ele havia descido voluntariamente por um túnel de esgoto, e aquele era o lar do fedor. Ali ele era o intruso.
Sentiu o espaço se abrindo ao redor e ouviu o gorgolejar se estender para além, uma fita invisível na escuridão.
Ainda estou respirando, pensou. Se bem que preferiria não estar.
Malarkey fez um estardalhaço enorme descendo. Resmungando e xingando a escada de pedaço de ferro inútil, dizendo que só servia para crianças e anões. Riley podia sentir o calor do outro enchendo a câmara e se pôs de lado assim que o rei Otto se aproximou, com um baque no chão.
— Não senti nenhuma falta disso — disse ele, remexendo na mochila em busca de uma lanterna e fósforos. — A pessoa não é humana aqui embaixo, ou talvez seja só humana mesmo. Não há espaço para presunção ou melindres no fundo do buraco.
Malarkey acendeu a lanterna, lançando um cone de luz fraco pelo túnel de esgoto. Coisas escuras e peludas guincharam, alarmadas, e fugiram da luz. Para Riley, pareciam grandes demais para serem ratos.
— O que está se mexendo, rei Otto? — perguntou. — O que está guinchando?
Otto gargalhou.
— São ratos, sem dúvida, mas parecem maiores. Você está sofrendo do que chamam de visão de túnel. Tudo que é ruim parece aumentado a proporções gargantuescas. — Otto semicerrou os olhos para enxergar no escuro. — A não ser aquele. Ele é mesmo um gigante.
Riley olhou para o túnel de paredes que choravam e estalactites que pingavam. Um rato monstruoso estava sentado nas patas traseiras, bem no centro da corrente de esgoto, os dentes parecendo chamas de velas.
Ele vai se mexer, pensou Riley. Sem dúvida ele vai abandonar o posto.
Mas não, o rei dos ratos se manteve firme, os bigodes estremecendo à luz da lanterna.
— Aquele é uma sentinela — sussurrou Otto. — Está nos dando um aviso.
Riley sussurrou de volta:
— Ele não tem medo?
— O quê? De gente como você e eu? Pergunte a você mesmo: quem de nós é mais adequado a este ambiente? Quem de nós pode chamar um milhão de colegas apenas com alguns guinchos?
— Então o que vamos fazer? Desistir?
Malarkey empurrou Riley adiante.
— Não, a gente passa por ele devagar e não olha nos olhos leitosos dele, e esperançosamente desta forma o Sr. Rato nos concederá passe livre. E, de qualquer modo, não é com os ratos que você precisa se preocupar no tubo de fedor.
Riley concluiu que daria atenção à última frase dali a pouco, mas por enquanto sua mente estava ligada à tarefa de não fazer o Passo de Hoxton, que recebeu esse nome por causa das gesticulações involuntárias de um interno particularmente enérgico do asilo de lunáticos Hoxton House.
Fique calmo, disse a si. Você está numa missão. Você já viu coisas piores do que um rato atrofiado.
Era verdade, mas pensar nessas coisas piores fazia Riley acreditar que elas poderiam estar escondidas nas sombras, deslocando-se para evitar o facho da lanterna.
Passaram pelos dois lados do rato, seguindo o caminho do esgoto que se dividia junto às patas dele, com a exceção das partes sólidas que se encalombavam e se empilhavam em volta de sua cintura numa imitação fantasmagórica de uma guarita. O rato coçou uma pulga enquanto eles passavam, mas afora isso não ligou para os dois.
— Ótimo — ofegou Malarkey. — O rei dos ratos não farejou ameaça.
O túnel de esgoto se curvava ligeiramente e a luz pálida captava bordas e reentrâncias na alvenaria. Várias áreas do teto haviam desmoronado, expondo a terra escura acima, retorcendo-se com raízes e minhocas. Em alguns lugares, uma luz abençoada penetrava de cima e Riley acolhia o calor no rosto, mesmo que sua presença significasse que o túnel não era seguro.
— Em frente, garoto — instigava Otto quando o menino se demorava. — Não temos tempo para admirar a lua. Temos destruição a fazer.
Mais cedo, na casa da Grosvenor Square, tinha parecido sensato formular um plano. Mapear os movimentos de modo lógico para que as ações tivessem resultados previsíveis. Mas agora, enterrado neste túnel de horrores, parecia impossível que qualquer plano pudesse dobrar essa imundície a favor deles.
Malarkey voltou a luz para o rosto de Riley.
— Você contraiu um surto de morbidez. Parece que o túnel está se apertando, não é? Parece que nada vai dar certo?
Riley confirmou com a cabeça. Não queria parecer um chorão completo diante de seu rei, de modo que era melhor assentir do que falar.
— É a morbidez — disse Otto. — Barnabus costumava ter um bocado disso aqui embaixo. Um sujeito grandão como ele com medo de alguns ratos. — Malarkey deu de ombros. — Nunca entendi isso.
Riley se lembrou de algo que havia considerado suficientemente urgente para se entrar na fala imediata:
— Alteza, o senhor disse que não era com os ratos que eu precisava me preocupar no tubo de fedor. O que é, então? Com o que eu deveria me preocupar?
— Ora, com tudo, Arietinho — exclamou o rei jovialmente. — Todas as porcarias conspiram contra um homem nesta escavação artificial. A lama embaixo de suas botas está cheia de cólera, os tijolos têm bordas capazes de cortar você mais depressa do que um cutelo de açougueiro, e se você não sangrar até a morte, uma pitada de argamassa contaminada na corrente sanguínea deixa você verde-garrafa no fim do dia. E há demônios invisíveis no túnel. Se por acaso dermos numa nuvem de gás sufocante, rei e súdito vão cair no grande sono juntos. E, claro, tem a casa da bomba.
Nesse ponto Riley ficou tão doente de medo que decidiu que seria bom ouvir sobre a casa da bomba.
— A casa da bomba?
— Bom, digamos que os engenheiros de Sua Majestade decidam soltar um jorro enquanto estivermos no subterrâneo. Não vamos ter aviso, já que não deveríamos estar aqui embaixo.
— Mas esse é o objetivo do nosso plano, não é, Majestade? Nós passamos a grana para o sujeito da casa da bomba, não foi? Nada de jorro até que o senhor mande.
— Nós passamos grana para um sujeito da casa da bomba — disse Malarkey. — Mas eu descobri que qualquer plano que envolva uma combinação de funcionários públicos, tempo e máquinas tem uma chance espetacular de fracasso.
Riley achou que, se não havia tido um ataque sério de morbidez antes, definitivamente estava tendo um agora.
Continuaram caminhando, chapinhando, ouvindo os próprios passos ecoando no túnel como se houvesse fantasmas andando à frente. O piso do esgoto era quase totalmente curvo de um modo uniforme, a não ser onde se dobrava como uma serpente gigantesca ou se dividia para permitir a entrada da natureza na forma de torrões de terra ou raízes de árvores. A lanterna de Malarkey soltava uma luz pálida nos tijolos fazendo-os parecer amarelos e ocre, e não o laranja-escuro que provavelmente eram. Alguns trechos pareciam mais gastos do que outros, com paredes desmoronadas e sobras de tijolos derretidos depois de algum grande dilúvio ácido da “hora do rush” ou de uma boa descarga pós-natalina.
— Ah — disse Malarkey, animado. — Esqueci totalmente de mencionar as criaturas que se arrastam, que parecem florescer neste tubo de fedor sepulcral.
Riley sentiu a morbidez se assentar em sua testa.
— Por favor, Majestade. Meu prato já está suficientemente cheio.
— Bom, você não vai querer nada no prato quando estiver com o ouvido cheio daquelas coisinhas medonhas.
Riley não questionou mais, já que era óbvio que as particularidades de tais criaturas seriam reveladas.
— Claro que existem os insectoides comuns, só que aumentados por uma dieta nutritiva à base de cocô, que é como caviar e champanhe para as baratas e os besouros. Uma vez vi um besouro aqui embaixo do tamanho de um rato, e o rato seria capaz de dar uma surra num cachorro.
Aquilo soou tão ridículo que Riley relaxou um pouco.
— É medonho — disse ele, mas de algum modo, talvez no afrouxamento dos ombros, ele deve ter revelado uma leve redução de sua ansiedade, o que instigou Sua Majestade a descrever horrores maiores.
— E talvez você note uma claridade surgir às vezes num canto escuro.
— Por favor, rei Otto, não me conte.
— Escorpiões — continuou Malarkey, adorando a palavra. — Escorpiões luminosos. Eles têm ácido na picada. Derretem um homem em um minuto ou três. Uma vez vi uma vaca ser morta por escorpiões do esgoto. Não restou nada além dos chifres e do rabo.
Riley engoliu em seco. Sem dúvida isso era o pior de tudo. Sem dúvida.
— Mas o absolutamente pior são os... carangorcos — disse Malarkey baixinho.
— Carangorcos! — exclamou Riley, ganhando de seu regente um cascudo atrás do ouvido.
— Nunca diga isso em voz alta... Os carangorcos... são como o diabo. Falar o nome em voz alta atrai a presença deles.
Riley murmurou o nome das criaturas, seguido por:
— O que eles são?
Malarkey sentiu um deleite enorme ao dizer:
— São criaturas sem deus, meio caranguejos, meio porcos.
Três metros acima, Riley teria se dobrado ao meio e gargalhado. Caranguejos-porcos? Isso não está nem nos limites do possível.
Mas ali embaixo.
Num túnel.
Riley tinha visto coisas estranhas num túnel, coisas que fariam os tais carangorcos parecerem a epítome do cotidiano.
Havia uma pergunta importante que precisava ser feita.
— Essas... criaturas. São do tamanho de porcos ou de caranguejos?
— De pôneis — respondeu Malarkey. — No mínimo.
Malarkey se orientava com confiança, e à medida que se aproximavam do Regent’s Canal, o fluxo subia até os joelhos de Riley, que precisava pisar com cuidado para não afundar. Malarkey o agarrou pelo colarinho uma vez, quando um tijolo se mexeu sob seu peso.
— Cuidado aí, Arietinho — disse ele. — Este é um lugar onde uma pequena queda leva à grande queda, por assim dizer. Se por acaso você afundar, feche a boca e solte o ar pelo nariz até se apoiar nos pés, para manter o cólera à distância.
— Essa é uma prevenção eficaz?
— Não sei bem — admitiu Otto. — Parece lógica, não é? — Ele olhou intensamente para Riley. — Não sou médico, você sabe. Cá estou, salvando sua vida e tal, e tudo que recebo em troca é conversa-fiada. Para com as pergunta, garoto, e mantenha a mente nos pé. — Malarkey deu um chute, levantando uma foice de água no poço de luz. — Agora olhe: você me fez esquecer a gramática. Olha só, eu falando “para com as pergunta” e “os pé” em vez de “as perguntas” e “os pés”. Dois erros de concordância numa frase só. Figary teria um ataque.
— Teria sim — disse Riley, ousando fazer uma piada na atual conjuntura. Foi um risco que deu resultado, e os dois compartilharam um risinho até a bifurcação seguinte, a qual os levou a um anteparo de pedras. Não era construído de tijolos, e sim de pedra clara e moldada reforçada com hastes de ferro.
— Eu ficaria ligeiramente confiante de que chegamos ao destino — disse Malarkey, batendo na represa. — Concreto reforçado sustentando o arco. Posto embaixo d’água, sabe. Engenhoso. Para a maioria das pessoas seria uma vergonha destruir uma coisa assim, mas para nossa sorte eu sempre senti um prazer perverso em derrubar estruturas erguidas meticulosamente por terceiros. Alguns chamam isso de falha de caráter. Eu chamo de qualidade de liderança. Afinal de contas, o que foram Alexandre, o Grande, ou Ricardo Coração de Leão, senão tremendos destruidores? — Ele ergueu uma das mãos para Riley. — Cinzel e marreta, por favor. Vou fazer a primeira rachadura nesta barricada.
Riley encontrou o cinzel em sua sacola, ao lado dos detonadores, os quais estavam lacrados com papel encerado.
— Sua Alteza Arietíssima — disse ele, entregando-os com alguma cerimônia, o que agradou a Malarkey.
Malarkey sorriu, estirando a barba e o bigode.
— Obrigado, leal súdito. Em breve o trono será meu outra vez. — Seu olhar pairou por um momento, sem dúvida pensando no trono coberto com a pele de carneiro, depois voltou à ação. Pousou a lanterna numa base de coluna meio desmoronada, deslocando um rato curioso, em seguida instruiu Riley a arrumar o conjunto de velas.
— Não num pentagrama, veja bem — alertou. — Já temos chances contrárias suficientes.
Riley encontrou nichos para as velas na parede oposta, tendo o cuidado de não ralar a pele nos tijolos suarentos. Enquanto ele protegia os palitos de fósforos contra a corrente de ar no túnel, Malarkey golpeava na parede de concreto com o cinzel, o qual havia coberto com um pano para evitar fagulhas e diminuir o barulho ao máximo.
— Barnabus! — grunhiu ele enquanto trabalhava. — Barnabus.
Riley percebeu que Malarkey havia se oferecido para fazer a primeira rachadura. Isso implicava que a segunda seria dele.
E não há truque de magia que eu possa empregar para pulverizar um concreto que eu não tive oportunidade de alterar.
— Uma luz, uma luz! — gritou Malarkey. — Meu reino por uma luz. Clareie aqui, Arietinho.
Riley pegou a lanterna e elevou-a até o limite de seu alcance. Malarkey já havia feito um buraco do tamanho de uma batata.
— Esta parede não é forte demais — disse ele. — Na verdade, está podre em alguns pontos. A Sra. Esgoto pode causar esse efeito até mesmo no coração de pedra mais duro. Acho que toda esta construção viraria barro sozinha depois de algumas torrentes.
— Maravilhoso! — exclamou Riley. — Mais um instantinho e o senhor a atravessa, daí poderemos subir por uma bela escada até o sol.
— Barnabus! — disse Malarkey numa estranha combinação de grunhido e fala.
Mas não é uma combinação tão estranha quanto os malditos carangorcos, pensou Riley, mantendo os olhos atentos às criaturas nas quais ele juraria não acreditar.
Malarkey fez um progresso tão bom com o ataque ao concreto, e tão concentrado estava no serviço, que de fato rompeu a parede num instantinho ou dois. No máximo dez.
Otto jogou a marreta e o cinzel longe.
— O que vós dizeis agora, Sra. Parede? Vós queríeis ficar entre Malarkey e sua vingança, é?
Isso é um bom punhado de “vós”, pensou Riley. Será que o filho da Sra. Figary aprovaria esse salto verbal para o passado? E depois disso, pensou: Estas ferramentas podem ficar onde estão, porque jamais minha mão irá remexer neste leito de rio fétido.
Malarkey pousou as palmas das mãos nos joelhos por um momento, depois cuspiu.
— Sua vez, garoto.
Mesmo sendo o mais inexperiente, Riley estava encarregado do trabalho com os explosivos. Afinal de contas ele era um mágico, treinado com o melhor do West End, versado no manuseio e na manipulação de poções e substâncias voláteis, bombas de pólvora, fogos de artifício e delicadezas do tipo. O que Chevie tinha lhe dado, tirado da bolsa de Farley, estava à frente de seu tempo em eficácia, mas os princípios eram os mesmos. Ela havia examinado o conteúdo com eles mais cedo naquele dia.
Tape o buraco com o plástico, enfie um detonador e depois se afaste. Quando chegar a hora, vamos acioná-lo por rádio.
Uma bomba acionada por rádio, pensou Riley. Provavelmente não era isso que o Sr. Marconi tivera em mente ao criar toda aquela agitação há um tempo com seu código Morse por rádio.
Riley pousou a lanterna e enfiou a mão na bolsa para pegar o pequeno bloco de explosivo plástico.
Mais poderoso do que uma barricada de dinamite e mais seguro para transportar do que nitroglicerina.
Rolou o plastique entre as palmas até formar uma salsicha de destruição mais ou menos do mesmo tamanho do buraco na parede.
A Salsicha da Destruição. Um bom nome para uma brochura policial.
O olho de Riley era bom, e a salsicha se encaixou direitinho no buraco aberto por Malarkey, fundindo-se perfeitamente ao concreto. Com alguma sorte aquilo não seria notado do lado oposto.
— Pronto! — disse, porém Malarkey não ficou impressionado.
— Não parece grande coisa — fungou ele. — Só um charuto para toda esta parede? Não parece possível.
— Você viu o que o velho Farley fez com uma arma do futuro — argumentou Riley.
— Hummm — murmurou Malarkey. — Eu vi alguma coisa, sem dúvida, mas não estou engolindo direito essa conversa mole de futuro.
— A prova está na salsicha, rei Otto — disse Riley, satisfeito com a piadinha.
Otto também gostou e sua gargalhada ecoou no túnel, esvaindo-se ao chegar à esquina. Mas outro ruído vinha cavalgando pelo túnel, uma série de chapinhados regulares.
Passos.
— Carangorcos! — gritou Riley.
— Ou canibais do esgoto — disse Malarkey.
— Canibais do esgoto! — sussurrou Riley. — Você não falou disso antes.
— Achei que seu prato já estivesse cheio com os carangorcos.
Ficaram imóveis feito estátuas, os dois esperançosos de que os sons seguiriam outra direção e passaria para além deles, mas aconteceu exatamente o oposto. Os sons chapinhados foram ficando mais altos e mais numerosos.
— Seis soldados — avaliou Malarkey. — E sabem aonde estão indo.
De novo, pensou Riley. Como eles nos encontram? Será que o coronel tem poderes como dizem?
— Bom — disse Otto. — Não vamos nos iluminar apenas com nossa boa educação. Velas, garoto.
Velas. Claro. Riley andou o mais silenciosamente que conseguiu na água imunda e derrubou cada vela de seu poleiro. Elas caíram no esgoto com um plop e um chiado. Malarkey apagou a lanterna.
— Agora, garoto, segure-se no meu cinto e ande com cuidado. Não agite estes pés, a não ser que sejamos vistos.
Riley obedeceu, enrolando os dedos no cinto de Otto e acompanhando seu regente, ambos arrastando as botas na lama, sentindo o movimento vagaroso do esgoto em volta dos tornozelos e a batida suave de semissólidos contra as canelas. E ainda que sua vida estivesse em perigo, ele achou um espacinho na mente para ficar enojado.
Nunca vou ter um cheiro normal outra vez, pensou.
Ele deve ter estremecido, porque Malarkey sussurrou:
— Você provavelmente está preocupado com o cabelo. Não fique. O ar fétido é surpreendentemente nutritivo para as madeixas da gente.
— Excelente notícia — sussurrou Riley de volta. — Fico reconfortado.
Riley sentiu Malarkey se retesar e calculou que seu sarcasmo fora percebido.
— Mais tarde vou dar um tapa nos seus ouvidos — disse o rei Otto.
Riley quase ficou ansioso por isso, pois levar um tapa nos ouvidos significaria sobreviver à aventura no esgoto, o que no momento estava longe de ser uma aposta garantida.
Malarkey o guiou junto ao fluxo corrente, afastando-se do grande anteparo de concreto e entrando num nicho de tijolos com teto abobadado mais baixo, que roçava o cocuruto de Riley enquanto ele acompanhava Malarkey. Os dois se amontoaram juntos no cantinho totalmente escuro, com um redemoinho de imundície descendo por um tubo menor entre os pés deles.
Malarkey foi obrigado a se abaixar tanto que sua barba roçava no ouvido de Riley.
— Já que você foi um sujeito decente comigo recentemente, garoto, quero que saiba — sussurrou ele — que não vai haver rendição se a coisa ficar feia. Otto Malarkey não vai sair correndo para o prazer de uma bala na cachola. Se formos achados, vou conceder a Ordem da Bota a esses sujeitinhos do futuro, se é que eles é. Você se misture com os toletes maiores e saia flutuando para longe.
Riley não pôde evitar uma certa indignação diante da simples ideia de se misturar aos toletes maiores.
— O quê?
— Desculpe — disse Malarkey, contrito. — Eu quis dizer “se é que eles são”. Não conte ao Figary.
— Mas...
— Quieto agora, garoto. Somos iguais aos mortos.
A escuridão pendia acima deles como um cobertor e, em consequência, os sons pareciam amplificados. Ouviam com clareza cristalina o gorgolejar e o sibilar da água passando pelo esconderijo. Ouviam os guinchos ocasionais enquanto bandos de ratos passavam com as garras estalando. E ouviam a aproximação inexorável de homens treinados. Não havia gritos nem som de água espadanando, apenas um gorgolejar rítmico do rio de imundície subterrânea.
Estão se aproximando das duas extremidades do túnel, pensou Riley. Um movimento de pinça.
Enquanto se encolhiam em seu canto, a luz ia se revelando devagar, clareando apenas um pouquinho a escuridão corrente acima. Talvez houvesse uma brecha nos arcos, ou talvez um bueiro tivesse sido deixado aberto. De qualquer modo, Riley ficou satisfeito com a luz, já que ela passara a simbolizar a vida para ele, muito embora ele soubesse que assim os dois estariam visíveis para os perseguidores caso eles procurassem no nicho.
A espera era quase insuportável. Mais de uma vez Riley teve a noção de que seria melhor abandonar a cautela e correr a toda velocidade até o bueiro. Pelo menos assim a maldita espera terminaria.
Achei que nunca mais sentiria tanto medo nessa vida quanto senti com Garrick, mas agora aquele pavor familiar voltou para minhas tripas.
E então aconteceu uma coisa curiosa naquele buraco úmido do inferno: o medo de Riley se evaporou.
Não vou conseguir sobreviver a mais um encontro com o velho Jack, o Estripador, percebeu. Logo vou estar no céu, com minha querida mamãe me esperando.
Tal ideia o fez sorrir, um sorriso que ele extinguiu rapidamente, para o caso de seus dentes reluzirem.
Só porque uma pessoa não tem mais medo de bater as botas, não quer dizer que ela queira isso.
Agora, em vez de o medo dominar seus pensamentos, a inteligência natural de Riley retornava à superfície.
Não vou me misturar com os toletes maiores, pensou. Vou lutar ao lado do meu rei.
E aqueles soldados poderiam ficar surpresos ao ver como ele sabia lutar bem; afinal de contas, Riley fora treinado nas artes marciais por seu antigo patrão: Albert Garrick.
Otto Malarkey vai perceber meu valor antes de eu morrer, prometeu em silêncio.
Os homens se aproximaram, vindos dos dois lados, até se congregarem num bolo escuro, bem na frente do nicho. Malarkey e Riley prenderam o fôlego, retesando-se para a batalha, mas por mais que o túnel fosse negro, a reentrância onde estavam era mais escura ainda. Sombras em cima de sombras, envolvidas em camadas de veludo. Até um morcego passaria direto por eles. Não podiam ser vistos a mais do que a distância de uma cuspida, e o primeiro a se aventurar dentro daquele raio pagaria um preço caro por isso.
Ou pelos menos seria o que uma pessoa racional acharia.
De repente, uma voz familiar brotou do meio do grupo.
— Vocês aí, agachados nesse recesso. Podemos ver vocês, claro como o dia.
Farley. O tatuador assassino.
Blefe. Devia ser.
Os dedos de Malarkey apertaram o ombro de Riley e ficou claro que ele pensava a mesma coisa.
Blefe. Eles não tinham nada além de fachada.
A voz falou de novo, chapada e zombeteira:
— É, isso mesmo, Otto. Vocês dois se abracem bem apertadinho e talvez nós simplesmente passemos direto.
Malarkey tirou a mão e Riley soube o que viria a seguir. O rei era um garimpeiro e avaliava suas chances num túnel.
A voz de Farley veio flutuando das sombras.
— Estou vendo você, Malarkey, enfiando a mão no bolso, todo ardiloso. O que você tem aí? Uma faca? Alguma arma velha de um tiro só? Ou até mesmo minha arma, que está quase sem balas?
Aquilo não era blefe. O traidor conseguia enxergar todos os movimentos deles.
— Vocês estão literalmente enfiados naquela coisa sobre a qual as pessoas falam. Gostariam de ver até onde estão enfiados?
Ele estalou os dedos, e de repente uma dúzia de fachos vermelhos concentrados brotaram da escuridão.
Os olhos do diabo, era como Malarkey havia chamado aquilo. Aonde eles iam, a morte ia atrás.
Os fachos buscaram o par escondido e tingiram seus rostos e peitos.
— Você sabe o que são os lasers, não sabe, Otto? — gritou Farley. — Você já viu um, quando eu derrubei seu irmão, aquele animal. Então saia e vamos conversar com o Abençoado Coronel. Só queremos conversar.
A massa sombria estremeceu com as gargalhadas dos homens. Ninguém acreditava naquilo.
— Muito bem, essa não é a verdade completa — confessou Farley. — Só queremos conversar... primeiro.
Riley sentiu Otto se agachar e soube que aquilo não era o joelho dobrado da rendição, e sim o agachar de um felino selvagem se preparando para o ataque.
Desculpe, Majestade, pensou Riley, enfiando a mão nos bolsos do colete em busca de alguns pedaços de papel retorcido com pólvora. Desta vez eu vou primeiro.
Riley pisou nas costas de Otto, que estava abaixado, e então se lançou, para o alto e além, bem no caminho de uma dúzia de fachos de laser entrecruzados.
RELÂMPAGO
O bom senso diz que um viajante do tempo não deveria tocar em nada nem interagir com ninguém, mas e se alguém tocar em você e interagir com você?
— Professor Charles Smart
Esgotos de Londres. 1899
Lunka Witmeyer parecia cem por cento preparada para a ação ao lado do major Farley na água do esgoto, mas por dentro experimentava uma espécie de crise profissional. Vários fatores contribuíam para isso, e o principal era a própria viagem no túnel do tempo. Esse era um tipo de experiência que ia bem além do chamado do dever, no entanto Clover Vallicose agia como se não tivessem feito nada mais excepcional do que tomar a saída errada na rodovia principal. Para Clover, tudo era como deveria ser. O destino as sugou de volta no tempo por cerca de um século e as abandonou nas catacumbas mofadas que deixavam as cavidades nasais de Witmeyer do tamanho da cabeça de um alfinete, rebaixando-a, como mulher, a uma cidadã de segunda classe. Witmeyer não gostava de ser cidadã de segunda classe e era inteligente o bastante para enxergar a ironia no fato de estar se ressentindo do tratamento que ela própria dedicara a outras pessoas durante tanto tempo.
O rastreador nas botas de Malarkey nos diz que ele está no esgoto adjacente, perto demais para o meu gosto.
— Você acha que consegue dar conta de um gângster local? — tinha perguntado Box.
Eis uma linguagem que Witmeyer entendia.
— E de mais cem como ele — respondeu confiante.
— Não precisa usar hipérbole, irmã Witmeyer. Responda com simplicidade e assim não haverá mal-entendidos. Na minha opinião, cantar vantagem e exagerar intrincam informações, o que é...
Deixe-me adivinhar, pensara Witmeyer. Ineficiente.
— Ineficiente — disse Clayton Box.
E pior ainda do que levar uma reprimenda de Box era ficar com a impressão de que Clover havia se tornado o braço direito de Box, ao passo que ela estava caminhando pelos esgotos, caçando gente desgarrada.
— Vá com o major Farley — dissera Clover (na verdade ordenara) trinta minutos atrás. — Não posso deixar o Abençoado Coronel neste momento delicado da operação.
Abençoado Coronel, claro.
Box era como qualquer outro homem. Gostava de ter o ego acariciado, e contanto que Clover continuasse a encher sua cabeça com histórias de como ele seria venerado no futuro, ela teria um lugar garantido ao lado do Abençoado Coronel.
E, ainda que Witmeyer estivesse obedecendo às ordens de Clover, seu coração não estava naquele serviço; só o estava executando devido à chance remota de poder pisar na cara do tal Malarkey e colocar um sorriso de volta na própria. Mas até mesmo essa esperança de uma leve diversão lhe foi arrancada pelo adendo de Box à ordem de Clover:
— Ah, Witmeyer, traga-o vivo, se possível. Otto Malarkey anda tramando contra mim e preciso saber o que ele pôs em movimento.
Em seu humor atual, Lunka Witmeyer sentia uma certa vontade de se juntar a Malarkey em sua trama, qualquer que ela fosse. Era provável que na verdade não houvesse trama misteriosa nenhuma e que o suposto rei Otto fosse simplesmente um bandido comum farejando a periferia do grupo que ele havia controlado, buscando um jeito de voltar. Toda essa missão era uma idiotice e o tempo de uma Thundercat não deveria ser desperdiçado com isso.
Não estou sendo estimada, percebia ela agora, enfiada até os joelhos em sujeira humana e animal. E posso muito bem nunca chegar a ser.
O ressentimento e a amargura que sufocavam o coração de Witmeyer eram emoções novas para ela. Em muitos aspectos, o desenvolvimento social de Witmeyer tinha sido drasticamente limitado por sua escolha de carreira, no sentido de que seu estilo de interação com os outros era geralmente violento e intimidador. Nas questões do coração ela era praticamente uma adolescente. Nesse exato momento, mais de um século fora de sua zona de conforto, parada numa torrente de imundície com pessoas que a desprezavam explicitamente, Witmeyer estava confusa e solitária, o que a tornava muito receptiva à emoção que estava para estourar em cima dela num maremoto de endorfinas.
Dos dois lados, os soldados do coronel estavam se divertindo observando Malarkey e o garoto, com seus óculos de visão noturna e salpicando-os com as miras a laser.
— Você sabe o que são os lasers, não sabe, Otto? — gritou Farley. — Você já viu um, quando derrubei seu irmão, aquele animal. Então saia e vamos conversar com o Abençoado Coronel. Só queremos conversar.
Os homens gargalharam e Witmeyer teve a sensação de que estavam rindo dela também, não só de Malarkey.
Paranoica. Estou ficando paranoica.
— Muito bem, essa não é a verdade completa — confessou Farley. — Só queremos conversar... primeiro.
Coisa mais sem graça, pensou Witmeyer. Toda essa pose idiota.
Eu também adorava fazer pose, percebeu. Mas o que era bom nisso não existe mais, sem Clover ao meu lado fazendo carão.
Então as coisas aconteceram depressa. Porém mais tarde, quando Witmeyer pensasse no episódio, ela poderia escolher momentos congelados daquela tarde e estudá-los durante horas.
O garoto saltou. Bem alto, como um animal. Um gato talvez, ou um pássaro, balançando as mãos à frente do corpo.
— Belo salto! — disse um soldado, provocando gritos zombeteiros de comemoração por parte dos colegas, no entanto logo os berros se transformaram em uivos de choque e dor, no momento em que uma luz brotou dos dedos do garoto. Duas bolas de fogo brancas preencheram toda a câmara, sobrecarregando os óculos de visão noturna, cegando os soldados momentaneamente... mas não Witmeyer, cuja viseira do capacete tinha trinta anos de tecnologia a mais, inclusive uma cobertura protetora contra clarões súbitos.
Rá, pensou ela. Menino esperto com seus truques de magia. Não é esperto o bastante, garoto.
O dedo dela já estava no gatilho quando o homem, Malarkey, se levantou do esconderijo, parecendo tomar todo seu campo de visão. Ele subiu mais e mais até parecer muito grande para aquele espaço.
De repente a arma de Witmeyer parecia um peso morto em sua mão.
Como sua arma patética poderia ter algum efeito sobre uma criatura tão magnífica.
Magnífica?
Ela havia mesmo acabado de pensar tal coisa?
Mas o sujeito era mesmo magnífico. Não havia outra palavra. Aqueles ombros como baluartes de ponte, o peito como uma porta de fornalha, um leque de cabelos que se espalhavam como um halo quando ele se movimentava, e olhos que fizeram Lunka sentir-se transparente quando a encararam.
— Ah — disse Witmeyer, sentindo pela primeira vez um espanto reverente diante do rosto de outro ser humano.
Isto é um homem, pensou ela. Isto é um espécime.
O tempo pareceu desacelerar quando Malarkey se lançou de um pedestal quebrado e voou por cima da cabeça dela, rumo ao amontoado de homens ofuscados. Eles caíram como soldadinhos de chumbo e Malarkey se meteu no meio alegremente, criando um enorme estrago com seus punhos de bigorna, dentes quadrados e testa larga, a qual quebrou o nariz de Farley com um estalo perturbador.
Eu deveria atirar nele, percebeu Witmeyer. Mas o pensamento pairou sem peso no torvelinho de emoções e foi varrido para longe.
Malarkey aproveitou a vantagem momentânea ao máximo, depois deu o fora no encalço de seu jovem companheiro, virando a curva do túnel.
Witmeyer ficou consternada de pronto.
Ele está indo embora. Meu homem magnífico.
— Atrás deles, seus idiotas! — ordenou aos soldados que gemiam, dando chutes para os lados. — E lembrem-se da ordem: peguem-nos vivos. Peguem os dois vivos. Mas especialmente o rei Otto.
Rei Otto.
Eis aí um homem digno do título.
Cada cultura tem um monte de poetas e dramaturgos que declaram em termos sinceros e variados que todo mundo tem um amor verdadeiro só esperando para ser encontrado. Milhões de versos foram escritos em milhares de idiomas para apoiar essa tese. Como acontece frequentemente, todos esses escritores românticos estão errados. Ainda que a maioria das pessoas tenha muitos amores verdadeiros em potencial, existem indivíduos que são tão únicos a ponto de não podermos esperar que alguém possa razoavelmente amá-los. Logo abaixo desse nível de superesquisitice há um pequeno grupo de indivíduos extremos que acha impossível se conectar a alguém que não esteja na mesma sintonia. Esses indivíduos raramente se encontram, e assim geralmente vivem sozinhos, mas às vezes esses alfas cruzam caminhos, e quando isso acontece a atração é instantânea, mútua e irresistível.
Os chineses têm um ditado: O amor em si é calmo; a turbulência vem de indivíduos extraordinários.
A turbulência está além do amor verdadeiro.
Os italianos chamam esse fenômeno de agarrar o relâmpago.
Quase incrivelmente, nas profundezas fétidas de um esgoto de Londres, durante a luz de magnésio das bombas de clarão de Riley, tanto Witmeyer quanto Malarkey agarraram o relâmpago bem entre os olhos.
Malarkey foi chapinhando pelo túnel, sentindo que fugia da coisa para a qual desejava correr.
Aquela mulher incrível.
Quem era ela?
De onde tinha vindo?
No segundo do clarão de magnésio a imagem dela fora pirogravada em suas retinas e permanecia ali, até mesmo agora.
Aqueles olhos altivos.
Os malares altos e retos.
O jeito como ela segurava a arma, com um conforto fácil.
E o cabelo. Santo Deus, o cabelo.
Malarkey tinha perfeita consciência de que o próprio cabelo era fabuloso, devido aos muitos e variados rituais de condicionamento, inclusive dormir em posição invertida e fazer imersões semanais em veneno de cobra. Até nas entranhas de um esgoto ela mostrava as madeixas escuras e fartas de uma princesa.
O que está acontecendo comigo? Eu não deveria estar consumido pelo desejo de vingança?, pensou ele enquanto suas mãos sondavam as paredes do túnel e os pés agitavam a água.
Será que ele finalmente estava experimentando uma das paixões mais sublimes que por tanto tempo lhe haviam sido negadas?
Aquela mulher tinha alguma coisa. Um brilho. Um fogo.
— Venha, senhor — ofegou Riley, meia dúzia de passos à frente. — Precisamos chegar à escada.
O garoto estava certo, era na escada que precisavam estar, mas precisavam estar lá agora. Qualquer coisa pós agora era tarde demais. A escada era uma subida de trinta degraus, com pés e mãos, e um macaco demoraria dez segundos para escalá-la.
Eles não tinham dez segundos, não eram macacos e o número de Riley com os clarões tinha rendido no máximo cinco segundos de vantagem. Os temidos fachos vermelhos já estavam tremulando nas paredes.
— Parem ou eu atiro — gritou alguém de lá de trás.
— Otto, seu desgraçado — disse outra voz. Era a de Farley, mas cheia de dor.
Nada da mulher. Malarkey estivera perversamente esperançoso de que ela fosse chamar seu nome antes de atirar.
Então veio, quatro palavras doces saindo da escuridão.
— Rei Otto, por favor.
Rei Otto. Por favor.
Malarkey sorriu enquanto avançava com esforço. Era estranho como aquela frase breve fora capaz de deliciá-lo tanto, mesmo num momento de tamanha crise.
O garoto afundou e Otto quase afundou atrás, mas se aprumou recostando-se na parede e suportando o impacto. Procurou embaixo d’água com uma das mãos até encontrar o colarinho de Riley e puxá-lo das profundezas imundas. Riley estava fungando furiosamente pelo nariz ao romper a superfície.
— Bom garoto — disse Malarkey. — Ótimo.
Mas os segundos que a queda havia custado eram segundos que os dois não possuíam, e agora era certo que não alcançariam a escada, isso sem mencionar a subida dos degraus.
— Ratos — disse Riley, fungando.
— Você disse, Arietinho — concordou Malarkey, avançando e puxando-o.
— Pare! — veio o grito de trás. — Último aviso!
Malarkey viu pontos vermelhos dançando uma sarabanda de vaga-lumes em seu braço.
— Ratos, maldição e danação — disse com veemência, mas seria possível que alguma pequena parte dele quisesse ser capturada, só para ver o que aconteceria?
A mesma coisa que aconteceu ao querido e velho Barnabus, exclamou seu lado sensato.
— Não — disse Riley, e apontou para a escada. — Ratos.
Malarkey era um veterano da fraternidade criminosa, por isso tinha construído o hábito de trabalhar nas sombras. Em consequência, sua visão noturna era excelente, então ele conseguia enxergar Riley apontando também como para o que ele estava apontando.
— Arrá — disse com alguma satisfação. Interessante. Hora de novos combatentes nessa guerra sombria.
Farley tem seus demônios de olhos vermelhos, Otto Malarkey também tem.
— Venha me pegar, princesa — gritou olhando para trás. — Não vou morder você.
Virou a cabeça para trás e gargalhou.
É tudo um jogo, percebeu. E eu sou o mestre desse jogo.
Otto Malarkey arrastou as coxas pelo esgoto, carregando Riley como se este não fosse mais pesado do que uma maleta.
Adiante, atrás de suas muralhas e ameias, estava o rei dos ratos, olhos brilhando, bigodes tremelicando com leve curiosidade.
— Você não vai gostar disso, Sua Rateza — disse Malarkey ao roedor, testando a parede do túnel com as pontas dos dedos e encontrando a vibração que esperava. E tal como todos os garimpeiros de esgoto dignos de seu cargo sabiam, as paredes vibratórias continham mais veneno do que a pele de uma bolha de peste negra; fique longe da vibração no mundo subterrâneo, já que nada de bom pode vir de um tremor.
Desta vez não vamos nos afastar, pensou Otto.
— Saiam, minhas beldades — gritou, e jogou todo seu peso e a força prodigiosa numa carga diretamente ao centro da parede vibratória, derrubando um pedaço de alvenaria e revelando uma escuridão densa por trás. E para incitar o frenesi necessário mandou a bota contra a barriga do rei dos ratos, atirando-o longe pela torrente de esgoto com chiados de indignação.
Estamos sob ataque, guinchou ele, sem dúvida. Às armas, camaradas. Às armas.
Os ratos irromperam do buraco numa onda de garras e dentes, seus guinchos de ultraje soando estranhamente como gritos de bebês humanos. Fluíram como um cardume de peixes num funil estreito que despencava sobre as cabeças e ombros dos homens de Box, provocando berros de horror até mesmo por parte do soldado mais endurecido.
— Vamos lá — disse Malarkey, o ímpeto levando-o para além da torrente de ratos e, como estava segurando Riley, o garoto também passou.
Riley estava suspenso de cabeça para baixo nas mãos de seu regente, observando enquanto os perseguidores faziam uma transição rapidíssima de caçadores a caçados. Começaram disparando as armas, fazendo as balas ricochetearem nas paredes e nos grilhões, mas os esforços foram inúteis. Era o mesmo que atirar no vento. Os ratos pareciam fluir em volta dos disparos e se agarrar aos inimigos presumidos com dentes e garras. Era uma visão que suplantava em horror tudo que Riley já vira, tornando-se ainda mais medonha por causa da penumbra e da escuridão, as quais deixavam o cérebro livre para pintar os próprios detalhes.
Os sons, pensou Riley. Os sons de pesadelo.
Carne sendo rasgada por dentes afiados e gritos abafados.
Eles não ousam abrir a boca, percebeu.
E de repente Riley estava arqueando para cima, balançando em direção à parte superior da escada até chegar a um bendito facho de luz.
— Agarre-se, garoto! — gritou Malarkey.
E Riley se agarrou, como se não somente sua vida, mas também o destino de sua alma dependessem disso. Passou os braços e as pernas pelos degraus, encostando o rosto no aço frio, demorando um segundo para recuperar as faculdades antes de tentar subir para a segurança.
Abaixo dele, no esgoto, um rio negro de bichos abomináveis passava contorcendo-se, levando as tropas de Box como troncos numa enchente. Agora eles gritavam, com a decisão de não abrir a boca sendo suplantada pelo pavor, e Riley sentiu um lampejo de pena em sua nuvem de repulsa. Aqueles eram homens, afinal de contas, e nenhum homem merecia morrer de modo tão horrível.
Otto Malarkey gargalhou enquanto eles evitavam ter a carne arrancada dos ossos por meros centímetros.
— Passei um tempo num circo, garoto — disse ele, o humor positivamente efervescente. — Como pegador no trapézio, eu ficava na maior parte do tempo estacionado. Observe.
Ancorado apenas pelas pontas dos pés, Malarkey balançou o tronco para baixo, enfiando os dois braços na maré mortal de olhos vermelhos e dentes malignos. Fechou um olho enquanto suas mãos remexiam entre as caudas e os pelos, como se procurasse um xelim reluzente numa caixa de areia.
— Peguei — grunhiu ele depois de um momento, e tirou as mãos do rio de ratos, cada uma segurando um prêmio. Farley e a mulher do futuro. A escada estalou com o peso extra e vários parafusos se soltaram dos buracos. Os músculos de Malarkey estavam retesados como cordas de piano e seus olhos saltavam devido ao esforço.
O nariz de Farley estava achatado no rosto, os olhos selvagens.
— Otto, por favor — disse ele em desespero, sabendo que certamente não poderia falar nada para arrancar o outro daquele círculo específico do inferno. — Eu posso ajudar você.
— Você pode me ajudar — retrucou Otto calmamente. — Pode me ajudar a conviver comigo mesmo, sabendo que vinguei o pobre Barnabus.
E como não era essencialmente um homem cruel, Malarkey não adiou mais a situação e simplesmente largou Farley no poço denso de morte certa, onde ele foi sugado instantaneamente pela ondulação de caudas e sombras.
Sem reservar mais uma olhadela ao assassino de seu irmão, Otto voltou a atenção para a dama.
Malarkey a segurava usando as duas mãos, pela gola do sobretudo esquisito, e ela por sua vez agarrava os antebraços dele. Os dois ficaram pendurados assim, sem palavras, durante um momento, e então a dama soltou uma das mãos e a levou à sua arma na cintura.
Valente, pensou Otto. Uma verdadeira dama dos revólveres.
— Não vou largá-la, senhora — disse ele enquanto a arma se voltava para sua direção. — Podemos rumar para a grande queda juntos.
A soldado do futuro apontou para a testa de Otto. A arma falava de morte, mas os olhos dela contavam outra história.
— Sou Otto, ao seu dispor — disse ele, tentando não externar a tensão por estar sustentando o peso daquela criatura magnífica.
— Rei Otto — respondeu ela, e depois balançou a cabeça ligeiramente, fazendo a luz do sol brilhar por toda a extensão do cabelo.
Não acredito, pensou Otto. Não acredito que ela não esteja com esse sentimento estranho também.
— Sou Lunka Witmeyer — disse a amazona. — Thundercat.
— Thundercat — repetiu Otto. — Não duvido.
Então Malarkey tomou a decisão de finalmente usar os músculos desenvolvidos durante seus anos no trapézio da França para trazer um momento de felicidade à sua vida turbulenta.
E assim, com o gás fétido, as bolhas do esgoto subindo, e a agitação e guinchos do estouro de ratos passando em volta das botas de Witmeyer, Otto fez força e bufou, levantando Lunka Witmeyer cada vez mais alto, trazendo-a para si, puxando-a para a luz.
Ela fica ainda mais linda, percebeu ele. Seus olhos parecem fazer buracos no meu coração.
Witmeyer sabia o que estava por vir. Por três vezes em sua vida homens tinham tentado beijá-la. Um estava morto por traumatismo, o outro por choque, e o terceiro sobreviveu mas ficou manco.
Sentiu-se retesar, mas não com a repulsa usual. Estava subitamente nervosa, ansiosa. Meio que desejava ser largada e meio que desejava nunca ser solta.
De sua parte, Malarkey, que havia beijado uma centena de jovens, imaginou subitamente se deveria primeiro treinar a mecânica da coisa com outra pessoa. E se sua técnica não impressionasse? E se ele beijasse essa mulher uma vez e nunca mais? Não deveria estar se refestelando em sua vingança justa? E será que essa nova obsessão era um desrespeito à memória de Barnabus?
Riley gritou de cima:
— Em nome do céu, vocês vão se beijar ou ficar discutindo? Quero sair desse maldito buraco do inferno.
Era um desrespeito, sim, mas deu resultado.
É agora ou nunca, pensou Otto.
Agora, agora!, pensou Witmeyer.
E assim o Aríete beijou a Thundercat, e de repente nem um canteiro de rosas nem uma encosta de montanha podia se comparar ao esgoto de Sua Majestade em termos de romance. Na verdade, a partir daquele momento, Otto Malarkey não conseguiria sequer sentir o cheiro de um penico sem que uma expressão distante se esgueirasse em seus olhos.
Beijaram-se para sempre — ou talvez meramente cinco segundos. De qualquer modo, os tendões nos braços grossos de Otto começaram a cantar e ele foi obrigado a depositar sua colheita do esgoto no piso do túnel, agora que a maré carnívora de roedores havia passado.
— Lembre-se de mim, Lunka — disse ele baixinho enquanto se alavancava e subia pela escada rapidamente.
Witmeyer ficou observando aquele homem desaparecer na luz, ou pelo menos foi o que pareceu de onde ela estava — e, muito tempo depois de ele ter ido embora, ela gritou:
— Vou me lembrar de você, rei Otto.
E jamais lhe ocorreu que, naquele momento ou mais tarde, deveria ter atirado nele.
Na rua, Otto se deitou de costas, com lágrimas de dor escorrendo pelas bochechas, segurando os bíceps agonizados.
— Você acha que o anjo viu?
Riley estava parado junto dele, perplexo.
— Viu o que, meu rei? As lágrimas de neném chorão ou a fraqueza de cachorrinho nos seus membros?
— As duas coisas.
— Ela não viu nenhuma das duas — disse Riley. — O anjo estava ofuscado por Sua... Majestade.
Malarkey sorriu e respirou fundo o ar fétido.
— Ótimo. Muito bom. Como está o meu cabelo?
Riley se lembrou de já ter ouvido Chevron Savano usar um adjetivo de modo tremendamente sarcástico.
— Espantoso — disse ele. — Totalmente espantoso.
— Excelente, Arietinho. Excelente. — Ele ergueu uma das mãos. — Agora ajude seu rei a ficar de pé. É o mínimo que pode fazer. E não pense que meu cérebro está confuso demais para ter registrado aquela coisa de bebê chorão. Fraqueza de cachorrinho, é? Quelle sauce, como diriam os franceses.
Riley estendeu a mão para ajudá-lo e praticamente já havia conseguido erguer seu regente quando lhe veio um pensamento e ele largou o rei Otto no chão.
Perdi minha bolsa.
Isso era importante não por causa da pequena bolsa em si, que era uma simples sacola de feira, mas por causa de seu conteúdo. Na bolsa de Riley estavam os detonadores, que agora sem dúvida se encontravam na goela de algum rato.
E sem os detonadores o plastique não passava de um bocado de material maleável.
Seu grande plano — inundar as Catacumbas de Camden e usar a água emergente como cobertura para resgatar Chevie — estava afundado.
E seu saco de problemas ainda não estava cheio.
Seis soldados de infantaria dos Aríetes apareceram de trás das árvores do Regent’s Park, onde eles tinham estado escondidos, e agora cercavam o ex-rei e seu pajem.
— Boa tarde, Otto — disse um deles, apontando o fuzil para a testa de Malarkey. — Somos o que você poderia chamar de retaguarda.
Otto fechou os olhos.
— Ratos — disse.
É tradicional que os antagonistas de ficção tenham um longo confronto perto do clímax de sua aventura. O vilão da peça invariavelmente revelará as nuances de seu plano, armando portanto os heróis com as informações necessárias para estragar a trama assim que inevitavelmente escaparem, meros segundos antes de serem executados de algum modo extremamente complexo.
Como isso era a vida real, Malarkey e Riley não foram levados para uma conversa cara a cara com o coronel Box; em vez disso, foram jogados grosseiramente numa cela nos fundos do labirinto das catacumbas, que mal passava de uma caverna com barras. O piso era de terra batida sobre pedra e as paredes eram escorregadias e irregulares.
Witmeyer, que geralmente gostava de incomodar os cativos, estava estranhamente calada. Ficou parada junto às barras, muda, simplesmente encarando Otto Malarkey, captando cada detalhe dele, da cabeça aos pés.
Parecia que iria dizer ou fazer alguma coisa. Na verdade ela deu um passo à frente e abriu a boca, mas o momento foi despedaçado quando o soldado Aldridge deu um tapinha no ombro dela.
— O coronel quer um relatório antes de sairmos — disse o cabo. — Ele está meio incomodado com a morte do Farley e coisa e tal. E você deve ir depressa ao ponto de reuniões principal, onde as tropas estão reunidas.
Witmeyer não respondeu; simplesmente ficou imóvel olhando para Otto. Estava fascinada, sob o feitiço de uma nova emoção que não conseguia avaliar, já que não tinha nada a que compará-la. Estava achando difícil formar pensamentos ou frases e não gostava dessa impotência, afinal o raciocínio rápido sempre fora um dos seus pontos fortes. No entanto não conseguia afastar esse sentimento caloroso que não tinha lugar no coração de uma Thundercat.
E aparentemente aquele homem magnífico sentia a mesma coisa. Ele se aproximou das barras e ficou parado, encolhido sob o teto baixo da cela, seus olhos encarando-a; e de algum modo também estavam em algum lugar distante.
— Lunka — disse ele baixinho. — Nós não nos separamos, afinal de contas.
— Não — respondeu ela. — Não nos separamos.
O que aconteceu em seguida foi culpa do próprio Aldridge. Porque assim como é verdade que um sonâmbulo jamais deve ser acordado devido à possibilidade de reagir violentamente, nenhuma das duas pessoas que estão na extremidade de um acontecimento inesperado deve ser perturbada no meio de um olhar.
— Você ouviu? — disse ele, dando um tapa no ombro de Witmeyer. — Vamos, dona. Depressinha.
A reação de Witmeyer foi puro instinto, e terminou antes que sua consciência tivesse tempo de se dar conta. Ela estendeu a mão e agarrou os dedos de Aldridge, torcendo-os até se partirem, depois o pegou pela axila e o ergueu, jogando-o contra as barras da cela. Isso provavelmente bastaria para deixar o pobre soldado inconsciente, mas, só para garantir, ela jogou Aldridge no chão e deu-lhe um soco na testa. Se ele não tinha apagado antes, agora tinha. Bem apagado.
— Notável — disse Malarkey. — Que visão sublime, hein, Arietinho?
— Muito — respondeu Riley, encolhendo-se em nome de Aldridge.
— Epa — disse Witmeyer quando seu cérebro percebeu o que ela havia feito. — Ah.
Malarkey envolveu as barras com os dedos.
— “Epa, ah.” Que poesia!
Riley achou que os dois adultos haviam enlouquecido, mas era suficientemente sábio para não expor essa ideia, já que não tinha vontade de acabar como o sujeito que estava todo quebrado no chão.
— A dama trocou de lado, então? — perguntou a um Malarkey extasiado. — Podemos tentar uma fuga?
Sua pergunta ficou sem resposta, e assim Riley resolveu arriscar, já que sem dúvida alguém logo viria verificar a cela. Arregaçou as pernas da calça e começou a puxar o que parecia a pele do tornozelo, mas não era carne — era uma camada de cola, que logo saiu da pele formando uma aba solta. Por baixo da cola, uma chave de arrombador estava grudada à pele.
— Vamos lá — disse, puxando fiapos de cola do único dente da chave. — Não deixe o velho Riley na mão hoje.
A chave era uma das prediletas de Riley. Uma gazua de tamanho médio capaz de abrir qualquer coisa, desde algemas até um cofre básico. Foram necessárias umas boas sacudidas, mas logo a porta da cela se abria diante deles. Otto parou para agarrar um bocado da camisa de Aldridge, depois o jogou casualmente no fundo da cela. Agora não havia nada entre Lunka e Otto.
Lunka, pensou Riley. Não vou verbalizar minha opinião sobre esse nome em especial.
Malarkey segurou a mão de Witmeyer, e as mãos de ambos eram praticamente do mesmo tamanho.
— Diga, mulher. Você está conosco agora?
Witmeyer sentia-se num sonho, e nesse sonho ela era uma pessoa totalmente diferente, que não partia crânios, a não ser que sentisse vontade — ou que os donos dos crânios atrapalhassem sua visão de Otto Malarkey.
— Estou com você, rei Otto — disse ela.
— Eu poderia ouvir você me chamar de rei para sempre — retrucou Otto. — E isso me dá vontade de ser rei de novo.
— Eu também quero isso — disse Witmeyer. — Você deveria recuperar o que é seu por direito. Vou lutar ao seu lado.
Otto puxou-a para si.
— Juntos poderíamos dominar o mundo.
— Juntos — concordou Lunka, e se beijaram mais uma vez.
Riley achou que fosse sufocar naquela nuvem de amor.
— Quando tiverem terminado de arrulhar — disse, pegando o chapéu-coco de Aldridge e arrancando o casaco de suas costas —, temos que sair desse lugar antes que o coronel patife mande a gente para a terra dos pés juntos.
Malarkey rompeu o contato por um momento.
— Só um segundo, garoto. Já, já estarei aí com você, mas quando você ficar mais velho vai entender que um homem precisa arrulhar enquanto pode. — Daí sacudiu o cabelo e se voltou para mais um beijo, deixando Riley plantado ali, remexendo-se como se estivesse num ataque de coceira provocada por vermes intestinais.
DIA DA EMERSÃO
Às vezes acho que as pessoas não estão me ouvindo. Passo noventa minutos aqui falando sobre os perigos da viagem no tempo, aconselhando-as a ficar o mais longe possível da viagem no tempo, e a primeira pergunta que recebo é: “O senhor acha que a viagem no tempo estará disponível comercialmente?” Daí mais uma vez passo todas as horas de vigília curvado sobre equações quânticas, de modo que acho que eu também não me dou ouvidos.
— Professor Charles Smart
O Salvador do Mundo.
Clay Júnior.
Coronel Box.
Mas ele nem sempre fora o coronel. Isso só aconteceu depois de sua gerência ao que costumava ser chamado, graciosamente, de equipe de “trabalho molhado”, como se o único fato desconcertante dessa unidade fosse andar com água nas botas.
No início da década de 1980, o sargento Clayton Box fazia parte da Operação Estrela Brilhante, treinando com forças egípcias no Sinai. Causou uma impressão tão positiva com sua previsão exata de ataques terroristas que foi convocado para uma nova equipe mista da CIA junto aos Boinas Verdes, encarregado da tarefa de contrainsurgência em El Salvador. Enquanto estava lá, Box projetou um modelo que diagramava os grupos terroristas e podia ser aplicado em qualquer local do mundo — a não ser na Escandinávia, onde as pessoas pensavam diferente. Esse modelo foi chamado de Paradigma de Box e foi o melhor padrão para entender os grupos terroristas durante décadas.
Na verdade, Box não conseguia entender por que tanta agitação. Ele simplesmente se colocava no lugar dos líderes insurgentes, imaginava-se um pouquinho menos inteligente do que era e depois comandava sua unidade da forma mais eficiente possível com seu QI diminuído. Os resultados eram espantosos. Box conseguia prever onde os rebeldes atacariam. Conseguia prever quem teria a probabilidade de ser recrutado e onde a pessoa seria abordada, e, mais importante, conseguia prever com precisão razoável quais soldados de infantaria chegariam ao topo. A CIA gostou dessa última parte. Gostou um bocado, e embarcou numa série de acertos aparentemente espantosos contra alvos de baixo nível, o que, segundo Box, era o equivalente a assassinatos viajantes do tempo.
Box também gostou disso. O sistema era eficiente.
Assassinatos viajantes do tempo. O Paradigma de Box lhe garantiu as divisas de coronel, e nos corredores do poder dizia-se que ele chegaria a brigadeiro antes de 40 anos. Isso era praticamente inédito.
A expressão de Box, assassinatos viajantes do tempo, era atraente e pairou pelo Quartel General do Comando. Quando o projeto de Charles Smart pareceu que poderia ser um fato científico em vez de ficção científica, Box foi chamado para uma conversa.
Diga, coronel, perguntou um homem com uniforme preto e simples. Como o Paradigma de Box poderia se tornar mais eficiente?
E ele respondeu: O único modo de tornar meu paradigma mais eficiente seria se minha equipe pudesse de fato viajar no tempo.
E assim, de uma hora para a outra, ele foi transferido para Londres, comandando o destacamento PRATA, e logo percebeu o potencial do túnel do tempo. Os superiores de Box acharam que o túnel poderia ser adequado para operações ilegais vez ou outra, mas o coronel Box estava pensando muito mais alto. A aliança entre os Estados Unidos e o Reino Unido poderia ser manipulada estrategicamente em pontos-chave através da história, de modo que se tornasse um império global.
Seria o uso mais eficiente da fenda espacial.
O ponto de virada chegou para Box quando ele voltou de uma missão de babá na Londres Vitoriana e descobriu que sua querida mãe tinha sido atropelada e morta por um motorista bêbado. Box ficou intensamente perturbado com isso e, depois de um rápido estudo na internet, percebeu que, se fizesse uma visita a um certo padeiro na Londres Vitoriana, o filho do padeiro jamais emigraria para a América e o bisneto do padeiro não atropelaria sua mãe no Texas.
E assim, em seu salto seguinte, Box planejava tirar um tempo para uma missão secundária. Mas para que os registros de seu rastreador fossem trocados, ele não tinha opção a não ser confiar num operador técnico, e este operador repassou o registro para o homem de uniforme preto. Box foi chamado para mais uma conversa e alertado sobre sua planejada operação secundária. Foi-lhe dito que o túnel quântico seria usado pelo alvo ocasional aprovado, e nada mais.
Box ficou consternado. Que ineficiência espantosa! Era equivalente a ter um AK-47 e usá-lo uma vez por ano para atirar em pombos.
Resolveu que sua mãe seria salva. E o túnel seria usado com eficiência máxima.
O coronel Box aplicou o próprio paradigma aos membros de seu esquadrão, e nas semanas seguintes recrutou tropas para sua causa. Eles retornariam ao passado; construiriam um império. Seria uma grande máquina, usada com eficiência total. E enquanto estivessem lá, Box visitaria um certo padeiro.
Ele e seus homens reuniram o máximo de tecnologia e informações passíveis de caber num Casulo Temporal e saltaram de volta para a Londres vitoriana, supostamente para trocar agentes. Quando eles não retornaram, o programa PRATA presumiu que Clayton Box e sua equipe tivessem sido expostos a algum perigo ou despedaçados pelo túnel, sendo que, na verdade, eles tinham se mudado para as catacumbas e começado a construir seu império.
Foi uma longa estrada, pensava Box agora, parado diante de seu exército reunido no grande salão, ansioso por sangue e batalha. Mas o tamanho da estrada é irrelevante. Meu império será o mais eficiente que este mundo já viu.
A única falha no plano se tornara aparente quando ele visitou a casa em Clapham, onde o tal padeiro supostamente vivia, e descobriu que os registros estavam errados. O homem não morava ali e nunca havia morado.
Não importa, pensou. Quando eu for imperador, os automóveis se tornarão coisa comum. Vou tornar a direção sob efeito de álcool punível com a morte. E desse modo mamãe acabará sendo salva.
Box examinou seus duzentos soldados. Estavam prontos, finalmente. Depois de anos para alguns e décadas para outros, suas armas estavam fabricadas, as balas estavam fundidas e carregadas. Como fuzis e canhões simples poderiam prevalecer contra soldados treinados, usando blindagem corporal e segurando armas automáticas, granadas e morteiros? E assim que o país fosse deles, as fábricas de munição receberiam especificações novas para mísseis balísticos intercontinentais. Os dias da Europa estavam contados.
O Golpe de Box.
Box gostava da expressão.
Na verdade, ele gostava de tudo que Vallicose havia contado sobre o futuro. Afinal, sempre havia planejado incorporar a religião até certo ponto, como todos os grandes ditadores haviam feito, mas Vallicose tinha mostrado como fazê-lo. Ele deveria ir além do que havia planejado e seguir o estilo dos faraós, tornando-se um deus.
Um novo evangelho está sendo escrito.
Se possuísse senso de humor, Box poderia ter sorrido, mas tinha consciência de que sua incursão ocasional na cordialidade costumava resultar num incômodo ao redor. Ele havia tentado fazer amizade com Farley, dando início a conversas casuais com ele conforme tinha visto outros homens fazerem, mas nunca funcionara. No mínimo servira para afastar os dois mais ainda.
E agora Farley está morto, o que é muito inconveniente, mas a programação está feita, e assim devemos prosseguir.
Aberto numa mesa à sua frente estava o mapa de operações demarcado com os locais de ataque e os pontos de acesso. Box dobrou os mapas e, com um passo das pernas compridas, subiu na mesa e levantou os braços pedindo silêncio. Ele era uma figura imponente em seu uniforme preto com o brasão boxita recém-bordado em dourado no peito, e o grupo de homens eriçados ficou instantaneamente em silêncio.
Box demorou um momento para examiná-los e pensou: Olhe só para eles, esperando o discurso tradicional, como se isso fosse aumentar ou diminuir suas chances de sobrevivência. É ridículo. As únicas três palavras que deveriam ser necessárias são Sigam o plano. No entanto, devo instigá-los à vitória. Devo apelar à sua humanidade básica de modo que possam fingir que lutam por uma causa e não simplesmente por dinheiro.
— Chegou o dia, meus guerreiros. — Começou falando através de um megafone futurista preso numa tira em volta do pescoço, a voz amplificada trovejando através dos arcos. — Hoje damos o primeiro passo em direção a um mundo melhor.
Parou, esperando os gritos guturais que seus estudos do comportamento lhe garantiram que viriam, e vieram.
Tão previsíveis, pensou. Tão maleáveis.
— Este país ficou sem rumo e sem deus. Um dia já fomos grandes, mas agora nos curvamos diante de qualquer estrangeiro com ouro na mão. Há pagãos andando em nossas ruas, tomando nossos empregos, conversando abertamente com nossas mulheres, e eu digo: Chega!
Agora eles vão dizer: “Chega!”, previu Box.
E disseram. Na verdade, gritaram. Ruidosamente.
— Para os Aríetes que se juntaram a nós, bem-vindos, irmãos! Sei que vocês têm muitas perguntas. De onde vêm nossos novos camaradas? Por sinal, de onde vêm essas armas fabulosas? Deixe-me responder. Nossas armas foram mandadas do céu. — Box abriu os braços como asas: tinha aprendido uma postura assistindo a vídeos de Stalin e Jim Morrison. E manteve a pose por um minuto inteiro antes de pegar o megafone de novo. — Somos anjos vingativos e pedimos que vocês peguem em armas conosco e garantam seu lugar no céu. Vocês vão se juntar a nós?
O rugido foi ensurdecedor e totalmente afirmativo. Box ficou um pouco aliviado, já que havia pensado que isso poderia ser um exagero, mas não, os homens engoliram a ladainha. E engoliriam muito mais, caso o que Vallicose dissera sobre o futuro fosse mesmo verdade. Parecia prematuro declarar-se deus para aqueles homens, já que muitos o conheciam durante décadas e sabiam como ele era humano, porém mais tarde, quando o país fosse seu, ele poderia começar a construir a lenda.
— Nossos inimigos nos esperam — continuou Box. — São homens corruptos, que ficaram gordos com os frutos do nosso trabalho, e chegou a hora de derrubá-los de seus poleiros.
Essa declaração tinha sido cuidadosamente pensada e continha cinco das quinze principais palavras calculadas para incitar a sede de sangue em insurgentes: inimigos, corruptos, gordos, trabalho e poleiro. A número um da lista era Deus e a segunda era vingança, a qual Box já havia ticado na lista.
— Depois de nossa Emersão, as coisas jamais serão as mesmas. Amanhã o sol nascerá num novo dia.
Mais palavras-chave, mais gritos de apoio. Na verdade, Box estava ficando meio entediado, por isso decidiu pular alguns parágrafos e ir diretamente para os fogos de artifício.
— Existem pessoas que ficarão no nosso caminho — disse. — Vocês, fiéis, querem ver o que acontecerá com esses incréus?
Seus soldados, confiavelmente sedentos de sangue, sacudiram os punhos no ar.
Box gritou, olhando para trás:
— Irmã Vallicose, traga a herege.
Vallicose emergiu de acordo com a deixa, arrastando uma Chevron Savano totalmente frouxa.
Box não tinha interesse em execuções públicas por si, mas reconhecia o potencial do sacrifício humano como forma de abençoar uma campanha ou mesmo uma estrutura. Havia lendas antigas do Japão sobre a hitobashira, ou a prática de sacrificar um pilar humano, em que inocentes eram enterrados vivos na base dos templos novos para proteger as construções contra a natureza ou os inimigos. E na lenda de Homero, Agamenon se revelara disposto a sacrificar a própria filha, Ifigênia, a fim de garantir que os deuses olhariam por seus exércitos durante a Guerra de Troia. Quanto aos Astecas, aqueles caras sacrificaram oitenta mil prisioneiros em quatro dias ao consagrar a Grande Pirâmide de Tenochtitlán. Oitenta mil em quatro dias! Isso é que era cerimônia trabalhosa!
Quando Savano fosse sacrificada, os homens não perceberiam que estavam vibrando por um ritual pagão de sacrifício, mas aquilo tocaria um nervo primal bem enterrado na memória da raça deles, o que os estimularia a maiores atos de valentia.
Idiotas, pensou Box. Peões previsíveis. Têm tão pouco controle sobre as próprias reações quanto os animais.
Savano fora drogada para não gemer de modo patético e talvez despertar compaixão nos recém-chegados. Sempre havia alguns fracotes melindrosos e sem estômago para o que precisava ser feito.
Neste dia vamos abrir as artérias vitais de todo o país, pensou Box. E nossos esforços devem ser batizados com sangue.
Apontou um dedo rígido para a frouxa Savano.
— Esta é nossa inimiga! — disse ele. — Um espírito do inferno que veio atrapalhar nossa missão sagrada.
Box permitiu que seus olhos chamejassem e sua voz tremesse de emoção.
— Ah, ela pode parecer inocente, irmãos. Mas não é assim que o diabo sempre parece? — Ele se virou para Chevron. — Você negaria, diaba? Negaria que o pai das mentiras em pessoa a enviou para estragar os planos de Deus?
Claro que, naquele estado, Chevie não era capaz de negar nada. Box poderia tê-la acusado de atirar em Abraham Lincoln sem medo de ser contradito.
Até uma criança poderia ver que a garota está drogada, pensou. No entanto, esses robôs estão preparados para acreditar que ela é um lacaio do diabo que se recusa a se defender.
— E aí está, irmãos. O silêncio dela a condena. Amarre a demônia, irmã Vallicose.
Vallicose arrastou Chevie por entre as fileiras de Aríetes e soldados, e a maioria se manteve afastada, porém alguns se inclinaram para cutucá-la com canos de armas, e outros cuspiram.
Porcos, pensou Box. São porcos necessários.
Mamãe iria odiá-los, percebeu, e de repente ficou feliz porque sua querida mãe jamais saberia sobre esse estágio de seu plano.
Isso certamente não será registrado nos livros de história, decidiu.
Vallicose chegou à outra extremidade da câmara gigantesca e subiu uma rampa íngreme que levava a uma estrutura de madeira. Atrás da estrutura, havia um bloco de explosivo plástico grudado à parede. Era bastante óbvio que ficar presa ali não seria uma situação segura para o caso de alguém detonar os explosivos. Vallicose algemou Chevie à estrutura, depois a largou pendurada ali. Chevie estava tão fora de si que provavelmente ficaria imóvel mesmo sem as algemas.
Agora havia alguns murmúrios entre os aríetes, já que todo o ritual estava começando a parecer desnecessariamente cruel, por isso Box decidiu incrementar a retórica:
— E agora, irmãos — disse —, um exemplo do meu poder. — Tirou um radiotransmissor do bolso. — Quando eu apertar este botão vermelho, a parede vai se desintegrar. Nenhuma bala de canhão é necessária, nem dinamite. Só um pouquinho de pasta santa. Não precisam ter medo, irmãos. Estamos perfeitamente seguros, já que a carga foi moldada para explodir para a frente. Se o céu deseja que esta jovem seja castigada, Deus permitirá que uma pequena porção do explosivo a consuma. Se ela for inocente, a força da explosão será contida pela estrutura. De qualquer modo, assim que esta parede cair, a guerra terá seu início. Vamos pegar nossos veículos, sair pelo buraco e varrer a cidade até o alvo designado. E nada ficará em nosso caminho.
Box tinha uma confiança razoável de que seu discurso de mais uma vez pela brecha seria eficaz, já que havia passado horas na frente do espelho ensaiando expressões e linguagem corporal que tinha copiado dos grandes ditadores da história.
— Aperte o botão! — gritou uma voz.
— Aperte! — disse outra, e logo o grito foi repetido como um cântico e reverberou no teto.
Havia outro som também, difícil de se distinguir a princípio, porque era só uma voz, mas era alta e persistente. E estava cantando. Uma estrofe sendo gritada repetidamente.
“A gente morde,
a gente luta
a gente aleija
a gente chuta.”
Os homens estavam olhando ao redor, procurando o cantor que queria estragar o momento poderoso. Box soube imediatamente quem devia ser, e também soube que tal interferência deveria ser manipulada com muita delicadeza. O canto continuou, e se Box não estava enganado, alguns homens começaram a cantar junto — talvez inconscientemente, mas, em todo o caso, outras vozes deram volume às palavras do sujeito. E assim, como um corredor fora aberto para Vallicose e Savano, agora um espaço se abria em volta de Malarkey, porque, claro, era ele quem ia na direção do tablado, com um passo presunçoso, como se fosse o regente do lugar. E cantava:
“Nossa turma não desata.
Você paga e a gente mata.
Se estiver numa futrica
Com gente pobre ou gente rica,
Faça uma visita, então
Somos os Aríetes, patrão.”
O último verso foi cantado em tom agudo, revelando a voz de tenor de Malarkey, muito melodiosa, e o sujeito teve o desplante de fazer uma reverência depois da apresentação, já que muitos de seus homens aplaudiram instintivamente. Otto jamais poderia montar o próprio musical no West End, mas sabia como ganhar uma plateia.
Malarkey se empertigou e sacudiu sua juba magnífica. Menos de carneiro e mais de leão. A maioria dos homens teria seguido seus instintos e atirado no suposto rei ali mesmo, porém Clayton Box não tinha instintos, por assim dizer. Havia cauterizado esses nervos na infância, já que as decisões impulsivas eram grosseiras por natureza e costumavam ser falhas. O que tinha era um processo mental muito eficiente que folheava as opções e possibilidades na velocidade de um raio, com o queixo se movendo para um lado e para o outro enquanto pensava.
Concluiu depressa que simplesmente matar Malarkey na frente de seus homens tornaria o rei Otto um mártir e plantaria as sementes da dissensão neste momento crucial. Não, agora que Malarkey havia comprado algum crédito com seus Aríetes, comportando-se com a fanfarronice pelo qual aquele tipo de bandidagem sentia um respeito inexplicável, o único jeito de limpar sua lousa era substituindo aquela imagem por outra igualmente forte, porém na coluna negativa. Malarkey deveria ser completamente humilhado. E depois morto.
O queixo de Box voltou ao centro enquanto ele decidia.
Tenho exatamente a pessoa certa para infligir essa humilhação.
O rosto de Otto Malarkey era uma máscara de decepção.
— É a esse ponto que chegamos, meus rapazes valentões? — perguntou. — Escondidos no esgoto?
— Ora! — disse um Aríete, que habitualmente usava uma peruca feita de pele de texugo. — Você só tá extrapolatizando, Malarkey. Isso aqui não é nenhum esgoto.
— Ah, Peeble, mas você está bem errado, velho amigo — disse Otto. — Eu sei que é um esgoto, e deixe-me dizer por quê.
Precisava ser dito: Otto possuía carisma, e os soldados se aproximaram em volta dele para ouvir sua argumentação.
— Eu sei que é um esgoto — disse Otto de novo — porque estou vendo um rato. — Ele apontou um polegar para o tal Peeble. — E estou vendo um cagalhão. — Agora seu polegar apontava para Box.
Era uma ótima piada, ninguém poderia negar. As gargalhadas ecoaram no salão, e nem mesmo Box, como antigo estudioso do comportamento humano, conseguiu evitar ficar fascinado, muito a contragosto, por aquele homem que parecia descartar o comportamento lógico a todo custo. Box precisou admitir, ainda que apenas para si, que a piada de Malarkey havia desinflado a tensão pré-batalha do modo mais eficaz. Uma tensão que ele próprio havia criado meticulosamente.
Mas o que ele poderia fazer agora? O sujeito estava condenado, sem dúvida.
O coronel notou alguns de seus homens se afastando de suas unidades e indo na direção de Malarkey, então atraiu os olhares deles e balançou a cabeça.
Fiquem para trás, dizia o balanço. Mas estejam preparados.
— E agora eu encontro meus belos garotos valentões se juntando àqueles que desejam assassinar a rainha Vitória, que Deus a abençoe. Àqueles que desejam pisotear todas as coisas pelas quais lutamos em pântanos e desertos estrangeiros.
Peeble, ainda irritado por ter sido chamado de rato, entrou na discussão.
— Isso é verdade, Otto; a gente lutamos no estrangeiro pelos ricos. Agora lutamos por nós e uns pelos outros. Os espólio vão ser só nossos.
— Isso é direito de vocês — disse Otto, magnânimo. — Tudo que vocês precisam é escolher um lutador. Vocês conhecem as regras. Os Aríetes lutam por quem usar a pele de carneiro. E este seria eu.
— A gente não somos mais Aríetes — disse Peeble, carrancudo.
Otto tirou a camisa por cima da cabeça e jogou-a na direção de Peeble, fazendo-a cair bem na cabeça do sujeito.
— Vocês são Aríetes até eu dizer que não são Aríetes, seu moleque. Agora saia da minha frente, Peeble, a não ser que você queira que eu o confunda com um desafiante. — Otto flexionou os músculos. — Então, seus patifes, vão honrar o juramento? Ou vão cair totalmente em desgraça?
Box desceu de sua plataforma.
— Sr. Malarkey, rei Otto. Sou eu quem você busca, mas suas próprias regras me impedem de desafiá-lo. Afinal de contas, não sou um Aríete.
Otto esfregou suas mãos grandes.
— Isso pode ser consertado facilmente, ianque. É prerrogativa do rei, não sabe? Eu ofereço um trato único. Todos os desafios serão aceitos. Todos os que vierem serão achatados sem preconceito.
Obrigado, Otto, pensou Box. Você acionou minha armadilha.
Ele ficou quase decepcionado com a facilidade, mesmo estando impaciente para explodir a parede e soltar seu exército de Deus sobre a rainha e o parlamento.
— Muito bem, Malarkey. Todos os que vierem, foi o que você disse? Então vai lutar com minha representante, a irmã Vallicose.
Um murmúrio empolgado se espalhou pelo salão. Malarkey lutaria contra uma mulher num desafio oficial? Não era certo. Mas como ele poderia recusar? Todos os que vierem, tinham sido suas palavras.
— Irmã Vallicose? Você mandaria uma dama travar suas batalhas por você, coronel?
Box desconsiderou as perguntas.
— Todos os que vierem significa todos os que vierem, rei Otto. O mais rápido que puder, irmã. Tenho um botão para apertar.
Vallicose entrou no círculo de luta e tirou o sobretudo, revelando um tronco quase tão musculoso quanto o de Otto. E ainda que Malarkey pudesse ter uma ligeira vantagem em termos de tamanho, Vallicose era criada para a guerra. Se Otto era um urso, Clover Vallicose era uma pantera. E ela tinha uma vantagem singular: acreditava genuinamente que estava lutando por Deus. Seus olhos brilhavam e as mãos tremiam, mas não de medo, e sim de arrebatamento.
— Você vai morrer porque o Abençoado Coronel deseja — disse ela calmamente a Otto.
— Não posso brigar com essa aí — questionou Malarkey. — Ela não bate bem da cachola. Esse não é o nosso estilo.
Box não se deu ao trabalho de responder, e não havia nenhum homem no salão tão nobre a ponto de não querer que aquelas duas feras se chocassem — a não ser Otto, claro. E agora sua opinião não importava, não quando havia diversão sangrenta pela frente.
E como bonificação, pensou Box, com a satisfação seca de um mestre de xadrez que suplantava um oponente ardiloso, que melhor modo de preparar meus homens para a guerra do que uma disputa de gladiadores seguida por uma execução?
Vallicose alongou o pescoço e estalou os nós dos dedos.
— Está preparado para o inferno, pagão?
Esta era uma pergunta retórica, mas se Malarkey fosse responder, confessaria que se encontrava longe de estar preparado. Subitamente entendeu as ramificações da disputa. Mesmo se derrotasse a tal guerreira, perderia moral junto aos Aríetes, pois lutar contra uma mulher pela coroa era um dos embargos que ele próprio havia apresentado (lutar contra mulheres em outras ocasiões nem sempre poderia ser evitado). E se ele perdesse para Vallicose, estaria morto de qualquer forma. Era uma situação sem saída.
Vallicose deu um soco direto e Malarkey mal conseguiu desviar.
Passou perto. Muito perto. Otto sentiu o sibilo do ataque quando o punho de Vallicose passou perto de seu ouvido.
— Uuuuuuh — disseram os soldados, e:
— Uau.
— Supimpa.
— Aposto um soberano na dona.
Talvez a situação não seja irremediável assim, afinal de contas, pensou ele. Talvez exista uma solução. Uma solução dolorosa.
Vallicose estava um pouco empolgada demais com o soco e teve um ligeiro desequilíbrio, por isso Malarkey cutucou o ombro dela com um único dedo, fazendo-a tropeçar para a frente.
— Cuidado, menina — disse. — Agora você está numa luta de verdade.
Vallicose bufou e se sacudiu feito um touro, depois recuou um cotovelo num gesto que quase teria decapitado Malarkey caso ele não o tivesse afastado com a palma da mão.
— Vou ceder essa para você também — disse Malarkey. — Outro homem iria castigá-la, mas eu sou um cavalheiro. Um comodoro, se quiser saber.
É, Malarkey estava falando demais, mas sabia que um homem tinha apenas uma certa quantidade de bloqueios e desvios com uma guerreira daquele calibre; a habilidade de Vallicose era nítida em sua velocidade e postura.
Se eu acordar amanhã, vou acordar rígido e dolorido, pensou Otto, pesaroso.
Malarkey evitou mais alguns golpes sem atacar nenhuma vez, mas a sorte acabou na quinta investida, quando Vallicose o acertou com uma cutilada maligna nos rins, usando os dedos retos. Não havia uma criatura no planeta capaz de ignorar aquilo com um risadinha. Só restou a Malarkey rezar para que suas entranhas não estivessem rompidas, e então caiu ajoelhado, o que deu a Vallicose a oportunidade perfeita de complementar o golpe com um soco poderoso no queixo. A maioria das almas teria abandonado o corpo nesse ponto, e até mesmo o grande Golgoth foi jogado de costas com um dente a menos. Ele se permitiu um longo momento para deixar as estrelinhas se afastarem da cachola, depois se levantou devagar.
— Um pequeno conselho, irmã — disse, com a cabeça pendendo junto ao peito e sangue pingando dos lábios. — Dê o soco com o movimento a partir da barriga. Sei que parece bobagem, mas é um bom conselho.
Vallicose dançou ao redor dele. Sentia o cheiro de vitória. Eis uma bela amostra da santa carnificina que viria naquele dia.
— Espero que você tenha feito as pazes com Deus, pagão — disse ela, dando um chute que Otto conseguiu desviar com o pulso.
O humor da multidão estava esquisito. Os Aríetes tinham querido que Malarkey fosse nobre, sem dúvida, mas agora, imaginem só, Otto estava se apegando aos seus princípios, apesar da criatura feroz que se lançava sobre sua pessoa. Ele não devolveria fogo contra uma mulher para defender a coroa.
Vallicose voltou a golpear sem parar, e Malarkey ou desviava do golpe ou não. E quando não desviava, a selvageria cobrava seu preço; estava claro que o rei dos Aríetes não conseguiria suportar muitos traumas mais.
— Nada mau — comentou depois que um soco acertou seu ouvido, que deve ter ardido feito o ferro incandescente do diabo. — A partir da barriga, viu?
Box estava perplexo. Por que o sujeito iria se sacrificar assim? Em geral os homens davam a vida por dois motivos: amor ou princípios. E Box achava difícil acreditar que aquele bandido famoso amasse alguém o suficiente para entregar a vida. E quanto a princípios? Os princípios eram uma ferramenta, algo útil para justificar o comportamento extremo, e era inconcebível que Malarkey permitisse o próprio assassinato em nome de um princípio. No entanto, isso estava acontecendo bem diante de seus olhos.
A não ser.
A não ser que ele não quisesse ser assassinado, mas apenas ferido.
Por quê? Por que ele faria isso?
Box bateu na própria testa.
Distração.
Box sentiu o tremor frio da compreensão atravessá-lo e seus olhos foram até a rampa; ficou aliviado quando não viu nada. Mas então houve um movimento.
Ali.
Ali estava o garoto, Riley, indo em direção a sua colega. Todo o episódio era um ardil.
— Peguem o garoto! — gritou ele para a massa de soldados ao redor da luta. — Detenham-no!
Mas ninguém reagiu. Um grito era como qualquer outro naquela câmara de violência e humanidade arfante.
Box pegou o megafone e apertou o interruptor.
— Peguem-no, seus idiotas! Detenham o garoto.
Demorou um momento para a mensagem chegar, e nesse ponto Riley já havia saído pela porta nos fundos da câmara, tendo abandonado o movimento furtivo em direção a Chevie.
Box revisou sua instrução rapidamente:
— Às armas! — gritou. — Em posição, todo mundo. A Revolução começa em um minuto. Esqueçam o garoto. Esqueçam Malarkey.
Talvez parte do ardil fosse dividir as tropas de Box, diluir sua eficácia. Não havia necessidade de pensar em estratégias para lidar com os intrusos. A eventual morte deles simplesmente seria absorvida no massacre geral.
No coração do tumulto, Malarkey riu.
— Rá — disse ele, e de sua posição dobrada deu um soco acima do joelho direito de Vallicose, o que transformou toda a perna dela em borracha e a fez desmoronar ali mesmo.
— Considere-se felizarda porque estou sem tempo — disse ele, depois enfiou-se na multidão, parando um segundo para chutar o tal Peeble bem nos fundilhos, erguendo-o nas pontas dos pés.
— Pronto, seu rato — disse, desejando tremendamente poder se demorar e observar aquele pateta falador se retorcendo na agonia particular provocada por um chute direto no traseiro, mas este dia ainda não estava ganho, nem de longe. Otto pegou no chão sua camisa pisoteada, suspirando por causa do amarrotado na seda, depois passou pela multidão tumultuosa, seguindo os passos de Riley em direção à doca subterrânea onde a querida Lunka esperava numa coisa chamada veículo anfíbio.
Box teve uma premonição súbita de que as engrenagens de sua maquinação meticulosamente afinada estavam se separando, e ficou surpreso ao ver que seu cérebro ordeiro ao menos acomodava coisas como premonições.
Uma premonição é simplesmente uma consequência cogitada. Uma consequência possível.
Nada havia mudado, concluiu. A Revolução era inevitável.
Será que ela pode fracassar?, perguntou-se, examinando a mente em busca de tropeços concretos.
Não, concluiu. Malarkey e Savano não passam de dois canhões desgarrados numa floresta de canos automáticos. Logo estarão mortos e eu vou me punir por tal ineficiência de pensamento.
Ele segurou o detonador por rádio bem no alto.
Vou esperar mais quarenta segundos até meus artilheiros embarcarem nos veículos, depois vou explodir a parede.
Primeiro a rainha iria morrer, depois os políticos.
Como o passado poderia prevalecer contra o futuro? Impossível.
Box fez a contagem regressiva, visualizando seus soldados carregando os veículos, verificando os equipamentos uns dos outros, e assim por diante. Imaginando um Malarkey desanimado com a perda de seus homens e com o fracasso absoluto de seu plano.
Alguém vai atirar casualmente nele ao passar, teve certeza.
Quarenta, disse a voz em sua cabeça.
Uma pena alguns de seus homens perderem a execução, mas às vezes alguns gestos deviam ser sacrificados pelo bem do plano maior.
Hora de mudar o mundo, pensou Box. E apertou o botão.
Algo explodiu, mas não foi a parede. Foi perto, onde quer que tivesse sido, mas definitivamente não era a parede, que permaneceu resolutamente intacta. A princípio a mente de Box não associou seu movimento de apertar o botão vermelho com a explosão ali perto.
É muito mais provável que o detonador esteja defeituoso e que tenha havido alguma falha coincidente nas armas em outra câmara.
Então escutou a água e percebeu.
Estamos sob ataque.
Se havia uma coisa que todos os bons mágicos sabiam: como ficar invisível. Ou, de modo mais preciso, praticamente invisível. Na verdade, Riley não estava usando uma capa no momento, mas mesmo se estivesse, ela seria tecida com tweed irlandês, e não com os fios mágicos e translúcidos da capa de invisibilidade de Atena. Riley podia ser visto nitidamente quando alguém o olhava. E quando não olhava — se houvesse uma distração, por exemplo — daí ele ficava praticamente invisível quando queria.
Quando Witmeyer levou Riley e Malarkey de sua cela para a doca subterrânea, eles passaram pelo arco que conduzia ao salão de reuniões e ouviram o discurso de Box para estimular as tropas, e também viram Chevie ser arrastada da sala dos fundos. Um plano improvisado fora montado rapidamente. Havia três rotas. Witmeyer roubaria um veículo anfíbio. Malarkey distrairia a multidão com um desafio. E Riley roubaria o detonador.
Sim. O alvo de Riley havia sido o detonador — e Chevie também, se conseguisse —, mas o detonador vinha primeiro, caso contrário ela viraria picadinho com a explosão.
Os três objetivos foram alcançados. Malarkey levou sua surra em nome da rainha e do país. Witmeyer nem precisou roubar o veículo anfíbio, já que as chaves foram jogadas para ela por um soldado. E Riley se esgueirou com paciência infinita pela parede dos fundos da câmara e subiu a rampa, fundindo-se às sombras, até conseguir tirar o receptor e o detonador da carga de explosivo moldado e enfiá-los no bolso. E, segundo a primeira regra da magia, que era o desvio da atenção, ele desceu pela rampa com o corpo numa postura de quem ia para a frente, de modo que, se fosse visto, ele poderia parecer estar indo na direção de Chevie, e não passando por ela.
Parado ali, a apenas alguns centímetros da amiga inconsciente, Riley percebeu que o animal do Box a havia apagado com éter, por isso seria impossível resgatá-la nesse momento. Só lhe restou enfiar a chave mestra na mão dela, para o caso de ela acordar. Vê-la numa situação tão desamparada fez Riley se encolher de choque, e foi esse movimento reflexo que atraiu o olhar de Box.
Riley percebeu que fora detectado e abandonou o movimento furtivo de pronto. Girou e correu para a porta, escutando a voz amplificada de Box se erguer acima da agitação geral:
— Peguem-no, seus idiotas! Detenham o garoto.
Riley correu, pensando: Chevron, ah, Chevie. Abandonei você. E também: Não. Eu adiei sua morte, porque se não fosse por mim Box iria explodir você e mandá-la para o inferno.
Continuou correndo, perguntando-se que horas seriam exatamente.
Com certeza são cinco horas. Com certeza.
E depois das cinco, quantos minutos de folga eles teriam antes de o suborno de Otto ao sujeito da casa de bombas descer pelo ralo?
Não adiantava pensar nisso agora, pois havia homens em seu encalço, homens com pernas mais compridas do que as dele.
Havia homens em seu caminho também. Adiante, havia todo um esquadrão em forma de cunha, correndo rapidamente em direção a um quadrado amarelo pintado no chão. O líder do esquadrão estava se ajoelhando para examinar o tubo de um morteiro, e ele registrou Riley meio segundo antes que o pé do garoto o acertasse nos dentes, espalhando-os como pinos de boliche. A boca escancarada do líder serviu como apoio, permitindo a Riley subir e depois se lançar por cima das cabeças de vários soldados confusos. Riley não conseguiu evitar gargalhar diante da improbabilidade daquilo tudo, além da empolgação por causa da adrenalina e do perigo que convergia de todos os lados.
Quantas estrelas precisariam se alinhar para que esse plano fantástico tivesse sucesso?
Uma galáxia de estrelas, sem dúvida.
Impossível, certamente.
Por um momento, Riley se viu como se olhasse de cima enquanto voava. Viu-se estendido da ponta dos dedos às pontas dos pés, a cabeça virada para trás, os lábios esticados num sorriso, os olhos reluzentes, e ele se perguntava se aquela era uma visão verdadeira ou apenas um devaneio. Então um choque abalou seu corpo assim que ele bateu no chão, e logo estava de volta dentro da própria cabeça, correndo como se o diabo estivesse em seu encalço. E se esse não era exatamente o caso, com certeza aqueles homens eram lacaios do diabo, já que sua intenção era colocar todo o país na estrada para o inferno.
— Para o inferno todos vocês — gritou ofegante, e então, como um ator numa farsa, estava se desviando entre fileiras de personagens, todos atulhados de músculos e blindagem corporal. — O diabo vai se voltar contra os seus.
Ocorreu a Riley que a maioria daqueles homens não estava fazendo qualquer tentativa de impedi-lo, não mais do que fariam para esmagar uma mosca que zumbisse em volta de sua cerveja. Suas missões estavam estabelecidas, entranhadas nos músculos a partir de exercícios cotidianos incontáveis, e eles as seguiam como se fossem um caminho bem conhecido.
Por que eles se importariam com um garoto correndo, percebeu Riley, quando logo toda a capital estaria fugindo de suas armas?
Mas não foi totalmente ignorado. Havia um grupo decidido perseguindo seus passos, e Riley podia imaginar o riso deles enquanto arrebanhavam a presa mais para o fundo das catacumbas, onde logo ele chegaria a um beco sem saída.
Talvez não, pensou. Talvez baste uma chance em um milhão.
Um tiro passou zumbindo junto de sua orelha e se enterrou na parede, lembrando-o que agora ele estava separado dos soldados e podia ser alvo de disparos, por isso virou à direita num túnel baixo com o teto curvo aberto na rocha, com água escorrendo pelas paredes.
Mais tiros quebraram a pedra junto aos seus pés e acima da cabeça, e Riley percebeu que os homens não estavam mirando nele. Estavam brincando de gato e rato com ele, por esporte. Sentiu a respiração ardendo no peito e as batidas do coração martelando nos ouvidos.
Devo estar perto, pensou. Por favor, Deus.
O túnel se abria numa câmara maior, meio tomada por caixotes abertos, com palha se derramando das entranhas. Três paredes eram de pedra escura, mas uma era branca e lisa.
Aqui, pensou Riley. Aqui.
A luz nessa câmara externa era fraca, com apenas uma bolha laranja no teto lançando uma claridade crepuscular na parede clara, mas isso era suficiente se a pessoa soubesse o que estava procurando, e Riley sabia.
Bem no centro havia um círculo descolorido com um revelador cone de poeira no piso abaixo.
Riley enfiou a mão no bolso, envolvendo os dedos no detonador e no receptor de rádio.
Talvez eu esteja longe demais, pensou, e fez uma oração breve pedindo para não estar.
Não havia tempo para meticulosidades, com os homens em seu encalço, por isso Riley enfiou o detonador no plastique e torceu uma vez.
Se não for, não é, e eu continuo correndo até que o destino me jogue alguma esmola.
Mas ele sabia que não haveria esmola do destino. Todas as suas esmolas já tinham sido jogadas.
— Isso já foi longe demais, garoto — disse o chefe do grupo dos perseguidores. — Tenho nobres para matar.
Riley não parou nem diminuiu a velocidade. Ou Box apertaria o botão ou não apertaria.
Enfiou-se no túnel que saía da outra extremidade da câmara e continuou correndo.
— Aperte! — gritou alto, como se tivesse litros de ar para desperdiçar berrando instruções inúteis. — Aperte, Box!
E na distante câmara de guerra Box apertou o botão vermelho, mandando um sinal de rádio não para sua carga moldada, como esperava, e sim para o cilindro de plastique que Riley e Malarkey haviam posto anteriormente pelo lado do esgoto. Os explosivos abriram um buraco do tamanho de uma carroça na parede reforçada, espetando os soldados que perseguiam Riley com hastes de aço ou nocauteando-os com pedaços de concreto. E seria apenas isso, caso Malarkey não tivesse largado uma pequena fortuna sobre o gerente da casa de bombas em Camden mais cedo, para abrir o esgoto exatamente às cinco horas. E não somente a torrente regular — o administrador deveria abrir as comportas até os limites e partir para a taverna Touro e Urso, para uma noite de bebedeira. O sujeito questionou, explicando que isso praticamente esvaziaria o canal, e Malarkey lhe garantiu que não aconteceria, e ainda acrescentou um punhado de soberanos ao preço que o outro havia pedido.
Acho que isso não vai acontecer, disse o administrador, enfiando as moedas no bolso. E agora, pensando bem, tenho uma premonição de que vou sentir uma tremenda sede mais ou menos na hora do chá.
E ainda que os relógios tivessem marcado as cinco horas uns cinco minutos antes, ainda havia um fluxo de água de esgoto suficiente para deixar as catacumbas de Box mais cheias do que o estômago do administrador de esgoto na hora de sair do serviço.
A parede reforçada havia desviado as torrentes resultantes de enchentes e jorros de esgoto até então, impedindo que invadissem as catacumbas, mas agora, com a parede rompida, as águas represadas durante tanto tempo tinham finalmente permissão de entrar, e rugiram para dentro com toda a ansiedade dos exércitos gregos penetrando Troia.
Riley continuou correndo, gargalhando. Era praticamente incrível que Box tivesse estragado o próprio plano, mas era isso. Primeiro o orgulho, depois a queda.
E se eu não botar meus pés para acelerar, a água também vai estragar meus planos de continuar respirando.
As bolhas de luzes acima racharam e estalaram quando a água invadiu os circuitos elétricos, e quando o ruído da explosão se dissipou de seu ouvido, Riley escutou gritos e rugidos de homens em pânico abandonando apressadamente os planos de carnificina e buscando salvar a pele.
Agora tudo será esquecido, a não ser a sobrevivência.
Riley adoraria ter o luxo de pensar na própria sobrevivência, mas as preocupações com o destino de Chevie o impediam de se concentrar somente em si.
Talvez ela tenha se livrado com a chave mestra.
Dependia da força do éter administrado por Box. Chevie já podia estar solta nas catacumbas.
Rezo por isso, pensou Riley. Tenho esperanças e rezo.
Riley tinha pés velozes, mas nem mesmo a juventude era capaz de correr mais depressa do que a torrente de água, especialmente quando havia pressão por trás. Logo havia água cobrindo seus tornozelos e depois borbulhando em volta dos joelhos, e junto à água vinha o fedor de esgoto que agora Riley conhecia bem demais, porém com o qual jamais se acostumaria. Riley começou a tossir enquanto corria, o que não era uma boa fusão de atividades, e logo sua corrida ficou mais lenta, até que a tosse parou, e ele teve a noção de que mais um ataque daqueles simplesmente faria com que afundasse.
Então, misericordiosamente, os níveis baixaram assim que o túnel claustrofóbico se abriu na área de carga e doca, apinhada de soldados tentando fugir. Tais tentativas eram atrapalhadas pelo fato de que todas as embarcações tinham sido arruinadas, menos uma, e Witmeyer estava na proa derrubando quem tentasse subir a bordo. Otto Malarkey estava atrás dela, balançando a cabeça com admiração, e com o Relâmpago controlando totalmente suas emoções.
— Otto — gritou Riley. — Chevie ainda está lá dentro. Precisamos encontrá-la.
Malarkey segurou a mão estendida de Riley e o puxou para o convés do veículo anfíbio.
— Arietinho. Que bom ver você! E como certamente sou cavalheiro, ficaria extremamente jubiloso em aumentar minha própria lenda e procurar a donzela indígena, mas...
Malarkey não concluiu a frase. Em vez disso, pôs a mão em concha sobre o ouvido e inclinou a cabeça para escutar. Riley fez o mesmo, e logo ouviu um som que cresceu o suficiente para abafar a movimentação dos homens. O ruído ficou gigantesco e avassalador, suplantando todos os outros sentidos, tornando-os insignificantes.
Era o som de uma torrente se aproximando em grande velocidade.
— A Srta. Chevron está acima, na corrente — gritou Malarkey por cima do barulho infernal. — E a não ser que sejamos peixes suicidas, não iremos contra a corrente.
Ao redor deles, os homens se jogavam no canal e nadavam em busca de segurança através da comporta da ponte. Armas futuristas que tinham sido tão fantásticas agora mal passavam de peso morto para arrastar os homens para o leito do canal, e por isso foram descartadas sem hesitação.
Era o fim da Revolução.
Homens nadavam para salvar a vida.
Witmeyer sorriu para o homem magnífico que havia surgido em sua vida.
— Devo zarpar, rei Otto?
Malarkey viu a parede de água se aproximando e sentiu os respingos no rosto, testemunhando a força daquilo enquanto caixotes e embarcações rolavam nas profundezas. Agora sabia como devia ter sido para os soldados do faraó quando viram o Mar Vermelho irrompendo.
— Sim, meu amor — disse. — É hora de partirmos.
Riley se ajoelhou no convés do veículo anfíbio.
Ah, Chevie, pensou, a culpa golpeando seu corpo como um chicote implacável. Abandonei você.
E então Witmeyer estava atrás do volante, fazendo um círculo fechado com o veículo anfíbio e apontando-o como uma flecha para a comporta da ponte.
Riley parou de se preocupar com Chevie por um momento para temer por si, já que atrás dele a água se espalhava pelo cais, varrendo colunas de sustentação como se fossem de palha e fazendo toda a estrutura desmoronar.
Eu não sabia que existia tanta água assim em Londres, pensou.
— Mais rápido! — gritou a plenos pulmões, como se pudesse ser ouvido no meio da inundação. — Mais rápido!
E então a água bateu com a força de um Titã lendário.
OBRIGADA, TECUMSEH
Acho que já falei com vocês sobre meu cachorro, Justin. Bom, de qualquer modo, é possível que Justin nem devesse ser um cachorro. Talvez devesse ser um híbrido de porco e caranguejo. Um porcanguejo ou carangorco, algo assim. O que quero dizer é que os viajantes do tempo podem bagunçar tudo, até o nível molecular. Coisas que consideramos óbvias, como borboletas ou bananas, podem parecer abominações para alguém de outra corrente temporal.
— Professor Charles Smart
A água estava subindo. Um dilúvio de proporções bíblicas tinha vindo para destruir uma nova arca tripulada por homens violentos, cujos corações eram avarentos e cujas intenções eram sangrentas, e ainda que a porta dos aposentos do coronel Box tivesse sido construída com um lacre, como precaução contra uma inundação normal, ela inevitavelmente cederia ao peso da água.
Com Vallicose logo atrás, Box entrou em seus aposentos, que não tinham sido totalmente liberados da decoração opulenta — e na mão de Vallicose estava um tufo de cabelos de Chevron Savano. Ligado a esse cabelo estava o couro cabeludo de Chevie, e ligado a esse couro cabeludo estava toda a cabeça, e assim por diante.
Vallicose jogou Chevie num canto, como um pacote de carne, e fez um círculo apertado em volta de um tapete árabe. A confusão retorcia suas feições, criando uma máscara de rugas profundas.
— Não entendo — disse ela, e de novo: — Não entendo.
Box puxou dois baús de viagem previamente arrumados, que estavam atrás de uma tapeçaria, e fez “mamãe mandou bater nesse daqui” com eles, concluindo qual deveria levar.
— Eu já pensei nisso — observou distraidamente. — O baú A é minha prioridade. Ouro e armas. Por que estou em dúvida agora? A indecisão é a ineficiência definitiva. — Ele arrastou um dos baús até a frente da mesa. — Irmã Vallicose, vamos carregar isto aqui juntos. Tenho um esconderijo onde, perdoe a expressão, podemos nos meter.
O queixo de Vallicose caiu como se fosse feito de cera derretida.
— Não entendo, Senhor. Este é o Dia da Emersão. E o Golpe de Box?
Box explicou com paciência:
— Esse plano em especial foi atrapalhado. Não adianta perder um tempo valioso reclamando do fracasso. Tenho outros planos que já foram postos em movimento. Planos de reserva, sem dúvida você já ouviu essa expressão. É lamentável que precisemos ir embora; acredite, estou tão frustrado quanto você porque essa tática não foi bem-sucedida, mas a água está subindo e precisamos partir.
Vallicose não podia abandonar tão facilmente as crenças de toda uma vida.
— Sim, estou vendo, Senhor, mas o Golpe de Box é mais do que uma ideia. É seu plano divino para salvar o mundo. — Ela retorceu os dedos. — Está na Bíblia. O Evangelho de Rosenbaum. Não podemos simplesmente nos afastar do evangelho.
Chevie estava recuperando os sentidos lentamente e notou que Vallicose estava perdendo a noção da realidade.
Esse é o problema de ser fanático, pensou. Em algum momento você precisa enfrentar a possibilidade de estar errado.
E em algum momento todo mundo está errado.
Chevie não tinha compaixão alguma por Vallicose. Pode parecer insensível, mas a Thundercat merecia cada fiapo de angústia que a destruição de seu sistema de crença estava lhe trazendo. Afinal de contas, ela havia usado este mesmo sistema para justificar toda a dor e o sofrimento que havia infligido em incontáveis outras pessoas durante vinte anos ou mais, e agora teria de enfrentar o fato de que era simplesmente um monstro, e não um agente de um novo deus.
Estava tudo muito bem, e Chevie podia se permitir uma leve satisfação, mas a água vinha minando por baixo da porta e borbulhando no piso. E ela estava longe de se sentir cem por cento.
Esses tapetes vão ficar arruinados, pensou. E eu também vou estar morta.
De modo que talvez fosse melhor deixar para mais tarde a satisfação em relação a Vallicose, quando um milhão de litros de água de esgoto não estivesse redemoinhando diante da porta.
E pode ser uma porta lacrada, pensou, mas não é uma escotilha submarina.
Aguardaria o momento certo, depois agiria, conforme fora ensinada em sua vida original como consultora do FBI. Em sua segunda vida, treinando como cadete boxita, não houvera tanta ênfase na sobrevivência. Só em matar.
Esperar a hora certa?, pensou Chevie, levantando-se devagar até sentar-se de cócoras. Acorda, garota. O momento é aqui e agora. Nunca haverá momento melhor.
Era verdade, Box estava ocupado com seu discurso e Vallicose estava mais ou menos choramingando de frustração. Não havia nenhum olhar voltado para ela.
Eles acham que ainda estou apagada, percebeu.
Chevie procurou uma arma e seu olhar pousou num vaso sobre uma almofada de veludo, a menos de 1 metro de distância. Não era a arma ideal, mas teria de servir. Estendeu a mão e correu as pontas dos dedos pela almofada, até o vaso. Eles se esgueiraram pela borda e entraram no vaso. Havia algo dentro, alguma coisa seca e granulosa.
Não é hora de ter nojinho. Isso aqui é vida ou morte.
Chevie formou uma ponta de lança com os dedos e os enfiou no vaso.
Agora. Aja agora.
Vallicose e Box ainda estavam falando. Box calmo e pragmático, mas Vallicose estava naquela linha tênue entre o emocional e o histérico.
Chevie já estava se levantando quando Vallicose se virou em sua direção.
— E Savano — disse ela. — Ela se lembra de outro futuro onde não existe o Império Boxita. Isso é...
Possível, ia dizer. Talvez, ou provável. De qualquer modo, não conseguiu terminar a pergunta porque a mão de Chevie a acertou no queixo. Talvez isso não fosse um problema sério para um soldado, levar um soco no queixo, mas a mão de Chevie estava vestida com um pesado vaso de cerâmica.
O vaso estalou com o impacto e depois se despedaçou, liberando nuvens de poeira cinzenta no ar, a qual caía da mão de Chevie em nacos.
— Mamãe! — gritou Box.
Mamãe?, pensou Chevie. Ah, meu Deus. As cinzas da mãe dele estavam naquele vaso.
Vallicose cambaleou para trás contra um divã forrado de seda, que a acertou desajeitadamente entre as pernas, fazendo-a se esparramar num grupo de colunas romanas. Chevie estava atrás dela feito um felino, golpeando Vallicose, deixando-a sem fôlego com uma joelhada no plexo solar. Num átimo havia soltado o cassetete elétrico e a pistola da Thundercat, e então, tendo certeza de que havia rompido o contato físico, encostou o cassetete no pulso nu de Vallicose, mandando cinquenta mil volts pelo corpo da mulher caída, deixando-a inconsciente.
Chevie girou, esperando que Box estivesse vindo para cima dela, mas não estava. O coronel Box estava sentado à sua mesa, onde o grosso da poeira havia caído, varrendo-a para formar uma pilha, e havia lágrimas em suas bochechas.
Isso foi uma surpresa tanto para Chevie quanto para Box, porque, mesmo que ela não tivesse como saber, era a primeira vez desde a infância que Box chorava, ou mesmo ficava remotamente triste — ou, por sinal, sentia qualquer tipo de emoção. As emoções eram simplesmente perda de tempo e o único sentimento que Box se permitira quando cada passo de seu plano grandioso estava sendo riscado da lista, fora uma leve satisfação presunçosa. Ele havia prometido a si sentir algum nível de felicidade genuína só quando o trono da Inglaterra fosse seu, mas agora, pelo jeito, isso precisaria ser adiado até que ele cuidasse de Savano e seu bando ridículo.
Mas ter as cinzas de sua mãe espalhadas assim... Usadas como arma contra ele. Como Box poderia ter previsto isso, mesmo com todos os seus cálculos? Um ato desses era tão aleatório, tão bárbaro!
Mas por que me importo?, perguntou a si. Esta pilha de cinzas não é minha mãe.
Mas ele se importava, sim, e as lágrimas rolavam pelo rosto, e Box jurou que mataria Savano usando só as mãos, com alegria selvagem.
O coronel arrumou as cinzas num quadrado, moldando as bordas com o indicador, juntando sua mãe, depois se levantou, esperando encontrar Savano pendurada na mão de Vallicose, à espera de seu destino, possivelmente com uma última fala despudorada nos lábios. Mas ficou desapontado (mais uma emoção nova) ao descobrir que, de algum modo, a garota havia derrotado sua nova guarda-costas e tinha uma pistola apontada para ele.
— Ah, pelo amor de Deus — disse ele, irritado. — Em absolutamente todos os cálculos que fiz desde sua chegada improvável, neste ponto você já estaria morta há muito tempo. As chances contra sua sobrevivência são tão avassaladoras que seria melhor para você, cadete Savano, simplesmente se deitar e morrer agora mesmo.
Chevie estava inclinada a discordar.
— Acho que minhas chances são bastante boas, Box. Melhores do que as suas. E outra coisa. Não me chame de “cadete”. Sou a Agente Especial Savano, do FBI. Lembra-se daquelas pessoas? Você já foi ligado a elas em certa época.
Box fungou.
— Uma época que nunca vai acontecer.
A porta tinha três painéis, e agora a seção de baixo perdia a integridade, totalmente estragada pela acidez e a força da corrente de esgoto. O nível da água subiu 30 centímetros em dez segundos, batendo nas pernas de Chevie. Ela precisava ir embora.
— Tenho de ir agora, Box. E você vai ficar aqui com sua cadelinha de estimação.
Box não parecia notar a arma.
— Errado. Você não sairá viva daqui, Savano. Você violou as cinzas da minha mãe.
— Pistola — disse Chevie, balançando o cano. — Está vendo? Pistola.
Box fez sua cara de pensador, projetando o queixo e elucubrando sobre o problema.
— Eu gostaria de mais tempo para pensar nessa situação — confessou. — Mas um líder deve ser adaptável, no sentido de que temos várias posições de reserva, várias opções alternativas, por assim dizer.
Isso é loucura, pensou Chevie. Não vou discutir contra a insanidade.
Um baque imenso veio pelo corredor e bateu contra a porta. O guincho agudo de metal torturado subiu num contraponto dissonante com os estrondos graves da alvenaria desabando. Era como se houvesse um dinossauro uivando agachado no teto, batendo nas paredes.
Talvez o túnel esteja amplificando o som, pensou Chevie, mas não acreditou.
Isso tudo está acontecendo. Não é um pesadelo.
De todas as situações incríveis que Chevie conseguia se lembrar de ter suportado nas duas linhas temporais, sem dúvida esta era a mais bizarra: estar presa com um santo do quinto evangelho num covil subterrâneo enquanto uma torrente de esgoto ameaçava engolfar a construção.
E havia outros fatores que ela não tinha tempo para listar mentalmente. Para lá de bizarro.
Chevie e Box chegaram a decisões simultâneas.
— Tire seu cinto — disse Chevie. — Só vou atirar na sua perna.
— Entregue-me a arma. Preciso matar você depressinha e fazer minha retirada tática.
— O quê? — reagiu Chevie, incrédula.
— Perdão? — disse Box.
— Certo. Tanto faz. Vou atirar na sua perna. Faça o que quiser. Dance uma sarabanda. Mas meu conselho é tirar o cinto para fazer um torniquete e ficar completamente imóvel.
O nível da água subiu, derrubando as colunas romanas, levantando o divã de pernas atarracadas.
Estamos falando demais, pensou Chevie. Preciso sair dessa ratoeira mortal. Riley pode estar encrencado.
Box pareceu um tanto entretido com a ameaça de Chevie.
— O que não entendo, cadete Savano, é por que você quereria me impedir? O que há de tão maravilhoso no nosso futuro compartilhado? O mundo inteiro era uma confusão ineficiente.
Chevie sentiu a raiva crescer dentro dela e permitiu que irrompesse através das palavras.
— E o seu mundo, Box? Eu estive lá. Eu vi. A maioria do planeta está escravizada. Você bombardeou metade da Europa. Sua polícia secreta assassinou milhões de pessoas, inclusive meu pai.
— Então atire em mim — disse Box. — Com uma bala você salvará o mundo do meu império, mas você vai condená-lo à Primeira Guerra Mundial e à Segunda. Bombas nucleares no Japão. E outras guerras na Coreia, no Vietnã, em Israel e na Palestina, na Irlanda do Norte, e tenho certeza de que houve muitos conflitos novos desde que saí do futuro. Isso é mesmo melhor do que o meu império? Você está disposta a fazer essa escolha? Especialmente porque nunca saberá o efeito de sua decisão, já que mandei destruir a placa temporal na Half Moon Street.
A água estava gelada contra as coxas de Chevie, e ela estremeceu com o frio e a percepção de que se encontrava presa no passado para sempre.
— Vallicose contou que no meu regime o apartheid na África do Sul nem mesmo chegou a acontecer — continuou Box, mexendo calmamente na água com os dedos.
Chevie estava incrédula.
— Porque você escravizou o país inteiro.
— Exato. Muito mais eficiente. Agora me dê a arma; você não pode atirar em mim.
— Não posso matar você — disse Chevie. — Mas posso atirar em você.
— E por que não atirou?
É. Por que ela não tinha atirado ainda? A água estava subindo. Riley precisava dela. Por que ela estava tendo aquela conversa?
— Porque você estava falando — disse debilmente, só para dar uma resposta.
— E você estava esperando que eu terminasse? Sério mesmo?
Ele estava certo. Isso parecia ridículo.
Os olhos de Box ficaram subitamente astutos.
— Você não pode atirar em mim, cadete, porque eu sou o seu salvador.
— Não me chame de “cadete”! — Mas assim como a Chevie Traidora um dia havia lutado para ficar livre dentro da cabeça da cadete Chevie, agora a cadete estava se remexendo em seu subconsciente.
— Você é uma cadete. Minha cadete. E eu sou o seu Abençoado Coronel. Durante toda a vida você rezou a mim. Ouviu meus discursos gravados. Vallicose contou tudo sobre nosso futuro juntos.
Chevie recuou um passo.
— Não. Esse futuro está morto. Olhe em volta.
Box deu um risinho frio; parecia o som de um fuzil engatilhando.
— Morto? Cadete, sério. Você acha que eu coloquei todas as minhas granadas-ovos num cesto só? Não. Isto aqui é um revés. O Golpe de Box está destinado a acontecer. Você meramente adiou minha emersão.
— Mais um motivo para eu atirar em você — disse Chevie, já sabendo o que Box iria dizer em seguida.
— Então por que não atira? — Box abriu os braços. — Ande. Puxe o gatilho e se condene ao inferno.
De repente a arma de Chevie pareceu pesada demais.
Ele é um homem. Um homem mau. Você sabe disso.
— Atire no seu salvador, na sua religião. Você não consegue.
Chevie puxou o gatilho, mas a bala passou longe, arrancando um naco de alvenaria. Box nem mesmo se encolheu.
— Sua própria fé me protege — disse ele, levantando os olhos para o céu. — Sou um novo deus. Atire!
Chevie sentiu uma oscilação no subconsciente enquanto a antiga Chevie, a cadete apavorada, encolhida, lutava para se libertar.
Não. Nunca mais serei aquela pessoa.
Disparou de novo. Desta vez acertando uma almofada que explodiu num sopro de penas. Box continuou incólume.
— É um sinal — disse ele, com olhos brilhantes. — Eu estou no seu sangue, cadete Savano, estou na sua alma. Você assassinaria seu próprio salvador? Você seria Judas?
Não, Senhor, dizia a voz na cabeça de Chevie. A voz dela.
— Dispare sua arma, cadete! — trovejou Box.
— Nunca mais vou ser aquela cadete! — gritou Chevie e puxou o gatilho pela terceira vez, a bala chiando inofensivamente na água em volta de suas coxas.
— Três vezes você me negou — disse Box, avançando através da torrente. — Mas não pode me negar mais. Eu sou Clayton Box. Seu senhor e salvador. O salvador do mundo.
Chevie recuou, usando as duas mãos para segurar a arma, que ainda assim parecia pesada demais.
— Seu corpo trai você, cadete. Ele não deixará que você atire em mim. Você não pode me fazer mal porque sou sua vida e a luz do mundo. Ninguém vai para o céu, a não ser por meio de mim. Fique de joelhos e peça perdão.
Chevie sentiu a água bater em sua lombar.
— Nunca vou me ajoelhar. Nunca.
Mas a velha Chevie arrastava seu coração. Ajoelhe-se. Ah, por favor, ajoelhe-se. Lembre-se de DeeDee.
DeeDee. Executada.
— Desgraçado! — gritou Chevie num último surto de resistência, e puxou o gatilho. O tiro passou a 1 quilômetro do alvo, despedaçando o vidro de um mapa-múndi emoldurado.
Não posso atirar no Abençoado Coronel, percebeu Chevie. Salvador do mundo. Não está em mim.
Em mim.
Em qual mim?
Quem eu sou agora?
Estou lutando contra mim mesma, percebeu Chevie. E uma de mim está perdendo. É a Traidora.
— De joelhos, pecadora! — gritou Box. Ele poderia ter pegado a arma com facilidade, mas nem tentou. — De joelhos. Minha vontade será feita.
Chevie sentiu os olhos ficando turvos. É o Abençoado Coronel. Estou em Sua presença. Eu pequei.
Box estava a poucos passos dela e parecia irradiar luz. Seu corpo alto preenchia a mente e a visão de Chevie.
Eu desafiei o coronel. Deus me perdoe.
Chevie sentiu os joelhos bambeando e lágrimas de frustração e tristeza escorreram por seu rosto.
Não se ajoelhe. Não. Se. Ajoelhe.
Atire. Mate-o.
Mas ela estava afundando, e a água fazia redemoinhos em volta de sua cintura, depois do peito, abraçando-a como uma mãe. Assim que ela se abaixou, a mão com a arma subiu num último desafio ofegante contra a cadete Savano, que agora estava no controle.
— Finalmente ela viu a luz — disse Box, levantando os olhos para o céu. — O Vaso do Senhor não será martirizado neste dia.
Ele encostou o peito no cano da arma.
— Pois os fiéis estão para sempre ligados a mim nesta ou em qualquer outra vida, e não me farão mal.
— Meu Senhor — murmurou Chevie. — Meu Senhor Coronel.
Box a encarou.
— Não existe amanhã além daquele que eu trago para o mundo. E os que conspirarem contra mim devem revelar seus segredos antes de entregar a vida.
Meu pai, percebeu Chevie. Ele está falando do meu pai.
Mas ela ainda não conseguia puxar o gatilho, e foi quase um alívio quando Box tomou a pistola de seus dedos trêmulos.
Agora está fora das minhas mãos, pensou ela. Vou simplesmente ficar ajoelhada aqui, e logo as águas vão se fechar sobre mim.
— Louvado seja Deus. Há júbilo no céu quando a filha pródiga retorna ao aprisco.
Aposto que não há júbilo na terra, disse a Chevie Traidora, que estava de volta em sua jaula.
— Infelizmente, aqui na terra — confirmou Box como se tivesse ouvido o pensamento —, neste vale de lágrimas, o filho pródigo ou a filha pródiga devem ser castigados severamente como exemplo para os outros.
É, disse a Chevie Traidora. Castigados severamente. É isso que você recebe por demonstrar misericórdia.
Box segurou a gola de Chevie e caminhou pelo aposento, arrastando o rosto dela pela água que subia. Ela não lutou nem se sacudiu, e provavelmente teria se permitido se afogar caso o coronel não a tivesse jogado sobre a mesa, que estivera flutuando até o peso de Chevie baixá-la. A cadete ficou deitada de costas, os pés balançando na água, tossindo a água imunda dos pulmões, com lágrimas salgadas nas bochechas.
Box segurou o revólver pendurado pela guarda do gatilho junto à lateral do corpo.
— Você. Despache esta pecadora para a recompensa justa. Preciso recolher minha mãe.
Estava falando com Vallicose, que tinha se levantado em meio às colunas e agora estava semiconsciente, recuperando-se do choque.
— Sim, Senhor. Claro, Senhor.
Vallicose pegou o revólver, mas não com o entusiasmo que geralmente exibia ao manusear armas.
— Desculpe, Senhor.
— Está se desculpando por ter se permitido a incapacitação, imagino, por colocar minha vida em perigo.
— Sim — disse Vallicose. — Mas principalmente por...
Box colocou punhados de cinzas na base quebrada da urna.
— Principalmente por que, soldado?
— Por perder a fé, Senhor. Eu estava começando a duvidar.
— Duvidar? Você duvidou de mim?
— Sim, Senhor. Nada é como nos contaram. Até mesmo esta sala é vulgar demais. Nunca vi o senhor ao menos rezar, por isso duvidei do senhor até agora, quando vi o espírito divino através do senhor. Foi ofuscante. Imploro o perdão.
Box limpou os últimos grãos de cinzas dos dedos. Estivera guardando esse momento de raiva para Savano, mas flagrou-se subitamente furioso com Vallicose, essa idiota insuportável. Tinha achado ligeiramente divertido que ela constantemente creditasse a Deus pelos estratagemas que ele próprio havia planejado em meses, e às vezes em anos.
— A divindade é uma ferramenta — disse rispidamente, aninhando as cinzas nos braços. — A religião é um tônico para as tropas.
Vallicose ficou confusa.
— Não, Senhor. Sem dúvida o Senhor é Deus.
Box se virou para a discípula.
— Clayton Box não é deus de ninguém. Eu sou o instrumento principal. Todos os grandes ditadores, com poucas exceções, armaram-se com a religião. É conveniente. Eu jamais falei com a voz de Deus. Simplesmente vim do futuro, como você. Você é tão fanática a ponto de não enxergar a prova? Não existe Deus nenhum, apenas ciência.
— Então o Senhor não acredita em si mesmo?
Box inclinou sua cabeçorra.
— Você acha mesmo, Vallicose, que, se existe um Deus, Ele deseja que meu plano tenha sucesso? Que Deus deseja que nós apaguemos toda uma classe de pessoas? Que Deus aprova nossa intenção de varrer cidades inteiras?
— Mas eles são estrangeiros. São pagãos.
— Jesus seria um estrangeiro aqui, Vallicose. E Moisés. Até São Paulo. Todos estrangeiros. As pessoas sempre seguirão um líder que tenha Deus ao seu lado, por isso resolvi ter Deus ao meu lado. E pelo que você diz, eu decidi ser Deus. Você é tão tapada que não consegue entender isso?
Vallicose estava desmoronando de dentro para fora. O ambiente ao redor fora totalmente esquecido.
— Eu o segui durante toda a vida. As coisas que fiz em seu nome...
— É exatamente o que quero dizer. As ovelhas pularão de um penhasco se acreditarem.
As pernas de Vallicose mal conseguiam sustentá-la.
— Eu estava cega.
Box assentiu olhando para a arma.
— Mas agora pode ver, soldado. Pode ver para atirar.
Vallicose olhou para a arma em sua mão, como se não soubesse o que era aquilo. Na verdade não tinha certeza do que sua mão era.
— Atirar?
— É. Atire na criança.
— Mas Deus...
As paredes estremeceram quanto torrentes sucessivas as golpearam, então vários pedaços desmoronaram para dentro, permitindo que a água da inundação entrasse pelo buraco. Cabeças de ratos passavam balouçando pela alvenaria arrebentada enquanto os roedores nadavam em busca de terreno seco.
Box percebeu que o tempo era perigosamente curto.
— Mas Deus? Mas Deus? — disse ele, vadeando em direção à porta. — Esqueça Deus, soldado. Deus é só a próxima patente, depois de general. — Ele removeu uma das mãos do resto do vaso e apontou o polegar para Chevie. — Agora atire na garota. Seu novo deus ordena. Vá até o hangar de aviação nas docas e leve o meu baú.
Duas palavras bateram no rosto de Vallicose como socos físicos. E não foram hangar e aviação, como poderia ter esperado na década de 1890, quando essas coisas eram raras.
Esqueça Deus?
— Esqueça Deus? — perguntou ela, levantando a arma. — Blasfêmia.
— A blasfêmia é uma ferramenta — disse Box, sem se virar de volta. — Assim como Deus é uma ferramenta.
— Deus é uma ferramenta? — perguntou Vallicose, reduzida a repetir o que ouvia. Parecia que seus membros pertenciam a outra pessoa e que seu crânio era pequeno demais para o cérebro. Ela sentia-se entorpecida e hipersensível ao mesmo tempo.
Tudo em que sempre acreditei é mentira. Tudo ao redor do qual construí minha vida.
Espere. Nem tudo.
Deus, não. Eu posso ter sido enganada, mas não por Deus. Por um homem. Talvez por isso eu tenha sido mandada para cá.
Box percebeu que não tinha ouvido um tiro e se virou de volta para Vallicose. Não havia raiva em suas feições quase simiescas, só uma leve decepção.
— Não seja infantil, soldado. Você esteve na guerra. A religião é apenas uma arma em nosso arsenal. Um porrete muito grande.
Vallicose atirou no coração dele e o coronel morreu tão depressa que nem conseguiu mudar a expressão. Tudo que seu corpo fez foi abandonar a tensão que viera carregando por décadas e tombar lentamente adiante, nas águas correntes que o levaram até os braços de Vallicose.
Ela chorou lágrimas de choque e confusão enquanto puxava-o para si.
— Coronel, ah, Senhor Coronel. Deus me mandou fazer isso. Deus não é uma ferramenta. Nós somos as ferramentas.
Box não ouviu. Não podia ouvir mais. Clayton Box estava simplesmente além, e seu grande império projetado jamais iria se materializar.
Vallicose chorou, o corpo inteiro tremendo, e a mente despedaçou sob o peso do que tinha feito. Apertou o coronel contra o peito, lançando olhares de alerta para os ratos que nadavam nos destroços.
— Vocês não vão ficar com Ele — gritou, usando a última bala contra os roedores. — Ele é meu. — Ela afastou mechas de cabelo da testa de Box. — Não se preocupe, Senhor. Estou aqui para protegê-lo. Nada vai acontecer.
Procurou uma ilha na sala e seu olhar pousou na mesa, que estava girando lentamente, meio flutuando e meio ancorada pelo peso de Savano.
Isso tudo é culpa dela, pensou Vallicose irracionalmente, e estendeu um braço, empurrando Chevie para a água da inundação. A corrente a recebeu em sua carga de detritos e ela foi arrastada rapidamente para a porta, onde sua cabeça bateu contra o painel remanescente.
Vallicose subiu na mesa, puxando o corpo de Box consigo, e o peso dos dois ancorou a mobília por mais um momento. Ela o acomodou nos joelhos e esperou, embaixo da pintura da pietà recém-instalada, que o dilúvio de Deus lavasse os dois, ansiosa para que o Senhor assegurasse que ela havia agido segundo Sua vontade.
Chevie escutou os disparos trovejando contra o teto abobadado, mas estava incapacitada de fazer qualquer gesto de autopreservação. Sua mente estava atulhada com a luta entre duas personalidades em guerra.
Quem ela era agora?
A cadete Chevron ou a agente especial Chevron? Justamente quando parecia possível que jamais emergisse do casulo dessa luta, foi jogada sem cerimônia na água, e o choque a deixou um pouco mais perto da consciência. Mas não foi suficiente: ela estava a um segundo de engolir um garrafão de água turva, o que representaria seu fim, até que sua testa bateu num obstáculo e a dor aguda provocou um reflexo automático por parte da consultora do FBI que havia nela.
Chevie afundou por um momento e depois voltou à tona num sobressalto, à beira do pânico, e então sugou um enorme hausto de ar. A água a puxava como uma enguia gorda enrolada em seu tronco, virando-a e arrastando suas pernas e o tronco para baixo da parte central da porta, que fora arrebentada. Apenas uma saliência do topo do crânio, presa no painel superior, a mantinha na câmara.
A última coisa que Chevie viu no apartamento de Box foi o coronel morto aninhado nos braços de Vallicose, num eco fantasmagórico da pietá pendurada atrás deles. Então a porta se desmoronou completamente e Chevron Savano foi puxada pelo corredor.
Ele está morto, pensou ela. Estou livre.
E sentiu as garras da cadete Savano se soltarem da mente. Continuava com as lembranças, mas eram menos poderosas.
De qualquer modo, mais tarde haveria tempo para se pensar em tudo isso, quando ela não estivesse se afogando numa catacumba e tal.
Havia apenas alguns centímetros de ar junto à curva do teto, e Chevie percorreu o espaço, com as pontinhas dos pés e os dedos das mãos roçando nos tijolos, respirando o máximo possível, estufando os pulmões para o fôlego final, que precisava vir logo e durar o bastante para que ela pudesse sair totalmente das catacumbas. Suas pernas eram golpeadas por mísseis subaquáticos trazidos pela torrente de esgoto. Centenas de ratos passavam nadando freneticamente, alguns se refugiando em sua cabeça até ela jogá-los para longe.
Mas nenhum cadáver, pensou Chevie. Não vi nenhum cadáver.
O que era um consolo porque, apesar do que tinham pretendido fazer com suas armas fantásticas, Chevie não queria ver aqueles homens assassinados. O jorro de esgoto provavelmente lhes dera tempo para nadar para longe.
Pelo menos a maioria deles.
Sua função agora era escapar daquele espaço claustrofóbico, encontrar o restante de sua equipe e certificar-se de que tinham saído em segurança.
O corredor se dividiu em dois e Chevie tomou o da esquerda — ou melhor, foi arrastada para o da esquerda. Não tinha qualquer escolha; uma pena, porque era o túnel errado a se tomar. O da direita levava ao cais subterrâneo e dali passava por baixo da ponte de Camden até chegar à terra seca. O da esquerda levava à sala da fornalha, que tinha teto baixo e já estava cheia.
Imagine o horror, o terror absoluto, de estar subitamente submersa por completo, com os únicos dados sensoriais sendo o movimento frenético de ratos e a pressão da água. Chevie deslizou para dentro da fundição e a corrente mudou de linear para um redemoinho, e coisas começaram a colidir contra ela.
Corpos, percebeu, a ponto de gritar embaixo d’água só para ter uma morte rápida, mas então abriu os olhos e viu um túnel de luz.
Um túnel de luz?
Mas não, não era a outra vida. Ao longe, um cilindro pálido de luz penetrava 2 metros na água antes de se esvair na escuridão.
Deve ser uma chaminé!, pensou Chevie, e procurou sair da corrente em que se encontrava, nadando com esforço em direção ao tubo de 2 metros que permitia que a fumaça das máquinas saísse das catacumbas.
Obrigou-se a não entrar em pânico, ainda que as chances de não sobreviver fossem tremendamente altas.
E ainda que eu sobreviva, como vai ser?
Espantosamente, esta era a primeira vez que o futuro de Chevie lhe ocorria, para além de cuidar de Clayton Box.
Não é o momento certo para tomar uma decisão digna de mudar a vida, pensou enquanto tentava enxergar na escuridão, fixando-se nas lâminas de luz que atravessavam a água.
Na verdade, era a hora perfeita para pensar em alguma coisa durante meio minuto, distrair-se da situação e manter o pânico trancado na mente.
O primeiro fato a aceitar era que jamais poderia voltar ao século XX. Podia sentir a Chave Temporal encostada em seu esterno, mas a placa de pouso tinha sido desmantelada e destruída, de modo que agora a chave não passava de um enfeite complexo.
Ficou surpresa ao descobrir que não se importava de verdade com o futuro. Só queria se deitar em algum lugar seco e dormir por muito tempo.
E uma medalha da rainha Vitória seria ótimo. E uma xícara de café decente.
Secura e sono eram as prioridades, pensou. A rainha Vitória teria de esperar alguns dias.
Alcançou a chaminé, enfiou-se dentro e ficou tremendamente aliviada ao encontrar um tubo de ar que subia uns 5 metros até a superfície. O tubo estava enegrecido de fuligem e subia íngreme, porém não verticalmente, de modo que havia uma chance de ela conseguir.
Chevie dividia a chaminé com centenas de ratos, que subiam facilmente pelo tubo. Em outra ocasião ficaria enojada e sentiria repulsa com os pelos espetados, molhados e as caudas cor-de-rosa, mas agora sentia quase alívio porque os ratos estavam usando a mesma rota.
Estes carinhas sabem o que estão fazendo.
Mesmo assim, Chevie não tinha desejo de ser mordiscada e pegar uma dose de peste vitoriana, por isso posicionava as mãos com cuidado e tentava não se encolher quando os ratos subiam em seus antebraços, descuidados em seu desespero.
Num bom dia, com sol e brisas, uma escalada de 5 metros com pontos de apoio suficientes não seria um problema para Chevie — na verdade, sua pulsação provavelmente não se aceleraria muito acima de sessenta batimentos por minuto —, mas agora, com o uniforme encharcado e morte por todos os lados, parecia que esse tubo inclinado poderia ser não somente a última gota que faria o copo transbordar, mas que também levaria sua vontade de sobreviver.
A superfície da chaminé era traiçoeira para uma escalada. Os tijolos estavam cobertos com fuligem e óleo, alisados pelas garras dos ratos correndo para a superfície. Chevie enfiava os dedos nos espaços entre os tijolos e se puxava para cima dolorosamente, centímetro a centímetro. Agora conseguia enxergar as próprias mãos e não ficou surpresa ao flagrar os dedos ensanguentados devido à escalada. Levantou o rosto para o céu e pensou que o pequeno círculo visível era a coisa mais linda que já tinha visto.
Vou sobreviver, pensou. Vou nadar de novo no oceano. Em água limpa, reluzente.
O que era uma tremenda ambição, de fato, considerando o ambiente atual.
Estava na metade do caminho agora e o mundo havia se reduzido a esta luta. O que vinha antes e depois da escalada não importava. Era muito simples: continuar ou morrer. Por isso, cravava os dedos das mãos e as pontas dos pés, alavancando-se, observando o sangue escorrer das fissuras na pele suja de fuligem.
Agora havia ratos demais — um tapete borbulhante de garras e dentes —, por isso Chevie começou a varrê-los com os antebraços, abrindo caminho. A chaminé se estreitava à medida que subia, e Chevie teve de lutar contra o pânico quando lhe ocorreu que talvez não conseguisse se espremer através da abertura.
Vou caber, concluiu. A cadete Chevie podia não ter a força moral para esta luta, mas agora ela se foi. Para sempre.
Agora sua mente era inteira da agente especial. A cadete viera perdendo a coerência desde o momento em que vira o corpo de Box. O Império Boxita jamais aconteceria.
Mas o que vai acontecer com o mundo?, perguntou-se Chevie, pensando o mais alto que podia para afastar os guinchos, os chiados e os estalares das garras dos ratos. Que novo horror vai surgir?
Seria como ela havia aprendido nas aulas de história? Ou pior?
Agora dava para notar que a abertura para o mundo exterior era pequena, mas não pequena demais para que ela passasse. Também percebeu pela primeira vez que havia uma grade na boca da chaminé.
Claro que há, pensou. Eu devia ter previsto isso e mergulhado em busca de uma ferramenta.
Mas jamais poderia ter mergulhado nas águas negras onde só Deus sabia o que estava à espera para agarrar seus membros pálidos.
Liberou uma das mãos e testou a grade. Estava trancada, naturalmente. Por que ao menos se incomodava em ter esperança, quando mais nada parecia acontecer a seu favor?
A não ser por todas aquelas vezes em que você sobreviveu a situações praticamente impossíveis.
Encolheu o ombro até encostá-lo no ouvido, depois bateu na grade, até que esta se ergueu o máximo que a trava de uma corrente permitiria. Havia uma abertura suficiente para alguns ratos, mas nem sequer para um braço humano.
— Olá! — gritou através das barras. — Tem alguém aí?
Ninguém respondeu e ninguém veio investigar. Estava sozinha.
Era enfurecedor demais estar tão perto da liberdade a ponto de literalmente sentir o gosto dela. Chevie envolveu a grade com os dedos e se achatou contra as pedras.
Só um instantinho para descansar e pensar.
Deixou os ratos fluírem por cima dela e invejou o tamanho deles, que lhes permitia se espremer entre as barras. A ponta de seu pé fez mexer um tijolo solto, e foi esse golpe de sorte que provavelmente salvou sua vida.
Encolheu-se para trás até que seus olhos estivessem no nível do tijolo solto. Afastou a argamassa solta com um dedo rígido, cavando o máximo que pôde, fazendo a poeira bater no rosto. Depois mexeu o tijolo de um lado para o outro, até que ele se soltou da parede e deslizou com um barulho semelhante a uma cripta se abrindo.
Segurou o tijolo numa das mãos, subiu pouco mais de 1 metro até conseguir enfiar o pé no novo buraco, em busca de estabilidade, e golpeou o cadeado que prendia a corrente. Colocou toda a força no golpe mas errou, nocauteando um rato infeliz e quebrando o tijolo ao meio, fazendo lascas afiadas caírem pelo tubo.
Mais uma vez, pensou, e: desculpe, ratinho.
Chevie recuou o braço, firmou-se por dentro, depois golpeou com o resto de energia em seu corpo sofrido, grunhindo como um viking brandindo o machado. Achatou o velho cadeado contra a parede. O mecanismo se esmagou e estalou, e o corpo se separou totalmente da alça, permitindo que os elos da ponta da corrente balançassem livres.
— Rá! — grasnou. — Obrigada, Tecumseh.
No momento em que o nome Tecumseh saiu de seus lábios, Chevie começou a chorar. Primeiro porque Obrigado, Tecumseh era uma das expressões que seu pai usava quando qualquer coisa boa acontecia.
O espírito do grande guerreiro Shawnee, Tecumseh, toma conta de nós, tinha explicado ele.
Quando a mente de Chevie conjurou a expressão, ela se lembrou da última vez em que seu pai usara tais palavras. Foi na manhã em que o tanque de gasolina de sua Harley explodiu na rodovia Pacific Coast. A moto havia relutado em dar a partida nas duas primeiras vezes. Quando o motor pegou, na terceira, ele olhou para o céu e gritou: Obrigado, Tecumseh, e os dois gargalharam.
Era melhor que ele morresse fazendo algo que amava do que amarrado numa cadeira dos Thundercats. Pelo menos ela lhe concedera isso.
Chevie largou o pedaço de tijolo no tubo da chaminé e abriu a grade com a cabeça e os ombros. De repente, todo o seu corpo parecia mais pesado do que uma estátua de pedra; sentia que, se o ar livre estivesse a 1 centímetro a mais de distância, não teria conseguido. Retorceu-se, saindo da boca da chaminé, e se deixou cair na bendita superfície.
— Obrigada, Tecumseh — murmurou, observando os últimos ratos descerem pela margem do canal. — Obrigada.
Ficaria contente em permanecer ali deitada no barro frio e duro, ignorando os olhares dos passantes e dos trabalhadores do cais. Mas, por um lado, ninguém estava olhando para ela — todos observavam o estranho veículo futurista que passava a toda velocidade pela ponte de Camden.
E, por outro, havia um estranho veículo futurista na ponte de Camden.
Parecia que o Golpe de Box ainda não tinha sido completamente evitado.
Clover Vallicose estava sentada à mesa de Box com o cadáver de seu Senhor encolhido sobre seus joelhos, aos prantos. Berrava pela perda de seu mestre e da fé, por ver como tinha sido idiota em acreditar em Clayton Box. Era assim que a coisa sempre acabava; toda vez em que confiava em alguém, esta pessoa acabava se revelando indigna. Seus pais escreviam poemas em segredo, o que a obrigara a denunciá-los. Sua parceira de confiança, Lunka Witmeyer, parecia ter libertado aquele gorila do Otto. O Carrasco tinha tido os ossos descarnados por ratos, e agora o Abençoado Coronel em pessoa havia se mostrado um invólucro vazio.
Era demais para sua mente processar que pudesse ter estado tão errada durante tanto tempo. Clover havia acreditado com todo o coração que fora escolhida para ficar ao lado do Abençoado Coronel durante a primeira etapa do Golpe de Box, mas pelo jeito morreria com ele nesta caverna. Não haveria Golpe de Box para regenerar o império britânico dos homens ambiciosos que se sentavam nos bancos polidos do parlamento. O homem continuaria a condenar o mundo a uma eternidade no inferno. A única chance real de salvação estava no colo dela, e ele não era digno. Nunca fora digno.
Nunca tinha sido.
Essa ideia golpeou Vallicose como um raio caído do céu.
Box nunca fora digno.
Ele jamais havia acreditado como ela, com cada átomo do corpo, com cada batida do coração.
Eu acredito.
Vallicose percebeu, com um calafrio, que ela própria era uma verdadeira crente.
Eu sou digna.
Mas isso era arrogância. Era o orgulho que iria condená-la.
Não. É por isso que fui escolhida. Para garantir que o Golpe de Box aconteça. Eu sou a espada de Deus. Eu sou o anjo da morte. Golpe de Deus!
Assim que a ideia lhe veio, pareceu correta. Ela sentiu a justeza daquilo, e sua cabeça girou com imagens gloriosas de si mesma à frente de um exército.
Um exército de Deus.
Não importava se vivesse ou morresse, porque ela viveria para sempre à vista de Deus e todos os seus pecados seriam perdoados.
Mas como continuar sem armas ou um exército?
Vallicose rolou o cadáver de Box do colo e ficou de pé na mesa.
Talvez não tivesse um exército, mas ainda havia uma arma que não tinha sido perdida na inundação. Uma arma bem grande.
Vallicose se virou para a pietà recém-pendurada e a arrancou da parede, revelando uma porta de aço. Em seguida, saltou na água e se abaixou para digitar o código no teclado mecânico submerso. Antes, naquele dia, Box havia lhe revelado a combinação.
Zero seis zero dois, tinha dito ele. Apocalipse, capítulo seis, versículo dois:
E olhei, e eis um cavalo branco; e o que estava assentado sobre ele tinha um arco; e foi-lhe dada uma coroa, e ele saiu vitorioso e para vencer.
Vallicose abriu a porta com um pouco mais de esforço do que fora necessário da parte de Box antes e nadou através da abertura. Dentro havia uma escada espiral que levava para cima, e ela subiu do mesmo jeito que tinha feito mais cedo, seguindo os passos do coronel.
Este é o meu cavalo branco, tinha dito ele. Um projeto secreto no qual dois dos meus engenheiros estiveram trabalhando durante dez anos.
Na última curva da escada havia um grande galpão com paredes reforçadas e sem porta.
Vou montar meu cavalo branco e ir até a sede do governo explodir aqueles ídolos entalhados de seu esconderijo, declarara ele, e você cavalgará junto de mim.
Exatamente como na primeira vez em que tinha visto, Vallicose encarou o cavalo branco de Box, abismada.
Não era cavalo nem branco, mas para explodir ídolos entalhados em seus esconderijos serviria tremendamente bem.
Ninguém poderia dizer que Chevie não acreditava no que estava vendo. Afinal de contas, tinha testemunhado algumas coisas estranhas em sua(s) vida(s) curta(s), inclusive um túnel composto de espuma quântica, um homem que conseguia mudar o rosto à vontade e um chefe de quadrilha usando peruca empoada e ruge. Mas, apesar de todas as experiências visuais, ainda estava chocada com a visão de um tanque blindado trovejando pela ponte de Camden, que mal conseguia suportar suas toneladas brutas.
Se Chevie estava pasmada, contudo, os londrinos compensavam o silêncio dela com um coro de gritos e uivos crescente, formando um corredor de pânico que seguia a rota trovejante do tanque, primeiro através da praça do mercado e depois atravessando a ponte que gemia. Chevie ouviu gritos de Dragão! e até de Marciano! enquanto as pessoas tentavam desesperadamente avaliar a monstruosidade de metal que havia rompido a parede de tijolos do depósito e agora esmagava as pedras do calçamento sob suas poderosas esteiras de metal.
A torreta girou num arco amplo, como a cabeça de um bêbado, e o canhão de 120 milímetros nocauteou um cavalo de carruagem e quase rasgou a carruagem ao meio. O tanque prosseguiu pela High Street, arrastando barracas em sua bocarra e cuspindo destroços pela traseira.
Os londrinos medianos são sujeitos resolutos, e vários atiraram no tanque frutas e legumes das barradas da feira. Um rapaz até pegou alguns bifes numa carrocinha de metal e jogou no mecanismo da esteira do tanque, tentando fazê-lo emperrar. Os efeitos dessa ação foram dois: um, o bife foi moído instantaneamente; e dois, o rapaz empreendedor levou um tapão no ouvido, dado pelo açougueiro.
(Como um detalhe extra, há evidências de que essa carne moída foi mais tarde recolhida e frita por um alemão que, segundo muitas pessoas, inventou o hambúrguer.)
Chevie sacudiu a cabeça numa tentativa de desalojar a névoa de exaustão que amortecia os pensamentos e solapava o cérebro, então partiu para perseguir o tanque, sem qualquer plano além de manter o monstro de aço à vista.
Acompanhou pelas margens do canal até a ponte, e de lá prosseguiu pela Camden High Street, que no espaço de cerca de um minuto desde o aparecimento do tanque havia se tornado uma cena de pânico e loucura. A população tinha abandonado qualquer esforço de conter o tanque ou de se comunicar com ele e estava totalmente resoluta a evacuar a área o mais rapidamente possível. Chevie lutava contra o fluxo do êxodo humano enquanto as pessoas vinham pela High Street, correndo ao longo da margem do Regent’s Canal e, em alguns casos mais histéricos, jogando-se da ponte baixa no próprio canal.
Chevie abandonou a calçada e correu pela rua, desviando-se de alguma carruagem de aluguel ocasional que partia a toda velocidade para os subúrbios. O pânico aumentou mais ainda quando o cano do tanque cuspiu chamas e aço contra uma carroça que fora abandonada, reduzindo-a a um conjunto de rodas encimadas por lascas. Espantosamente, o par de cavalos atrelado às rodas ficou quase totalmente incólume, a não ser pela cauda de um, que irrompeu em chamas como uma tocha de palha. O cavalo foi até um barril de água da chuva ali perto e apagou a cauda ali dentro.
Gostei daquele cavalo, pensou Chevie. Não se amedronta com facilidade.
Ela correu atrás do tanque, sabendo que não tinha esperanças de alcançar o veículo blindado, a não ser que este parasse, fato que lhe dava uma certa satisfação, já que não tinha ideia do que faria caso diminuísse a distância entre eles.
Não tenho armas, percebeu. E não creio que vão abrir a escotilha se eu bater com educação. De modo que provavelmente faz sentido ficar para trás até que me ocorra um plano.
Ficar para trás já era uma espécie de plano, mas até mesmo este se desmantelou assim que Chevie se flagrou voando pelos ares e se aproximando rapidamente da máquina de guerra.
Agora eu posso voar, pensou. Gostaria de ter sabido disso antes. Teria sido útil nas catacumbas.
Vallicose estava nas garras de um arrebatamento que jamais havia conhecido. Uma combinação potente de fé religiosa e o que os antigos guerreiros celtas chamavam de frenesi bélico, uma forma particularmente frenética de névoa rubra que, segundo se sabia, alterava características físicas. De fato, agora Clover Vallicose mal era reconhecível, pilotando o tanque de seis toneladas pela Gower Street. Suas feições estavam retorcidas numa expressão muito semelhante ao ódio, mas que na verdade era uma rara visão de pura bem-aventurança. Se Vallicose acordasse na manhã seguinte, descobriria quatro de seus músculos faciais rígidos pelo uso depois de anos de dormência. Não que os pensamentos sobre o dia seguinte tivessem a mínima importância para Vallicose. Ela não pensava em sobreviver à missão sagrada; de fato, grande parte dela preferiria morrer gloriosamente para reivindicar sua recompensa eterna o quanto antes.
Apesar da escotilha estreita, ela conseguia enxergar uma faixa cinza de rua. Claro, estava familiarizada com as engrenagens e pedais comuns de um veículo blindado, mas este tanque era feito para quatro tripulantes, e só o carregador automático pendurado à sua esquerda lhe permitia disparar enquanto pilotava. Porém, mirar estava fora de cogitação e só poderia ser conseguido quando o tanque estivesse parado. Por enquanto teria de se satisfazer disparando contra qualquer coisa que ficasse em seu caminho. Mas não por muito mais tempo. O mostrador do relógio Big Ben estava à vista e a torre lançava uma sombra sobre as Casas do Parlamento. Seu alvo final.
A temperatura interna aumentava rapidamente enquanto o motor conduzia calor por toda a estrutura, por isso Vallicose sentia-se num forno. Sorriu diante dessa adversidade, pois sua recompensa seria muito mais merecida. Em seu delírio escutava a voz de Deus dizendo para continuar lutando e, nas nuvens de chamas e fumaça dos projéteis explodindo, via o rosto d’Ele, sorrindo e incentivando-a a executar Sua obra.
— Estou indo, Senhor — disse com os dentes trincados. — Estou indo para casa.
Chevie percebeu quase imediatamente que não estava voando de verdade, e sim suspensa 1,5 metro acima do chão por garras de ferro presas em seu cinto. Já era suficientemente desconcertante chacoalhar ao longo da lateral de algum tipo de veículo, mas não saber se aquilo era uma tentativa de resgate ou assassinato tornava seu balanço impotente mais perturbador ainda.
Será que devo me soltar?, imaginou. Ou confiar no dono destas garras de ferro?
Soltar-se seria a melhor opção, decidiu, já que podia contar em apenas um dedo a quantidade de amigos verdadeiros que tinha nessa linha temporal.
Por isso firmou os pés contra o painel lateral verde-oliva do veículo e empurrou/se retorceu com toda a parca energia que lhe restava depois da expedição no esgoto.
Enquanto ela se contorcia, a coisa que a agarrava a puxou de volta, e a combinação de forças fez o corpo de Chevron transcrever um arco amplo, de modo que ela colidiu brevemente contra a cabeça do cavalo com antolhos e a cauda num barril de água antes de se puxada de volta para o leito plano do veículo, onde pousou sobre a Thundercat Lunka Witmeyer.
— Cavalo! — gritou Chevie. — Cavalo!
As duas caíram num emaranhado de membros, rolando na proa do veículo anfíbio, e a combinação de vibração e alarido a toda volta tornou impossível para Chevie avaliar a situação na qual se encontrava. Os únicos fiapos de informação que conseguia captar daquela cacofonia de dados sensoriais era que estava embolada com a odiada Witmeyer, que a havia aterrorizado com tanta eficiência na academia.
Não sou mais aquela pessoa, pensou, e disse em voz alta:
— Não sou mais aquela pessoa!
Acompanhou a exclamação com vários socos rapidíssimos, raciocinando que estava com pouca força, de modo que era melhor procurar os pontos fracos. Deu mais dois golpes contra o pescoço de Witmeyer e já ia dar o terceiro, fatal, quando alguém a puxou.
— Não! — gritou ela, chutando a Thundercat. — Deixe-me terminar!
Não teve permissão para tal. Em vez disso, um par de braços enormes veio por trás e a envolveu com firmeza, até que sua visão se acomodou e Riley apareceu à sua frente.
— Chevron, ah, Chevie — disse ele, lacrimoso. — Você tem jeito para sobreviver, tem sim.
Chevie ainda não estava preparada para baixar a guarda.
— “Tem sim”? Você está falando igual ao filho da Sra. Figary.
Riley abraçou a amiga do melhor jeito que conseguiu, envolvendo as garras gigantescas que ainda a estavam prendendo.
— Preciso incapacitar Witmeyer — sussurrou Chevie com urgência.
— Não — disse Riley. — Ela está dirigindo.
Riley colocou Chevie a par dos acontecimentos recentes enquanto Witmeyer se levantava tossindo e soltando perdigotos, para então retornar ao volante de seu transporte anacrônico.
— Ele anda na água e na terra — disse Riley, deliciado apesar de estarem, para todos os efeitos, numa zona de guerra. — Fomos jogados no canal pela inundação, mas Lunka conseguiu nos colocar na margem.
— Lunka? — perguntou Chevie. — Agora você a chama de Lunka?
— Você está com um cheiro celestial — disse Riley, todo feliz. — Andou garimpando no esgoto, é?
Chevie não ficou aplacada com a familiaridade.
— Talvez. Enquanto vocês se aconchegavam com minhas inimigas mortais.
— Ela é que se aconchegou com o rei Otto — explicou Riley.
Malarkey abriu os braços, porque eram estes que seguravam Chevie, e ele a empurrou num banco.
— Diga agora, indígena, vai remar com a gente ou querer uma rusga? Se for o número dois, vou nocautear você sem demora, mas se você garantir que estamos na mesma margem do rio, por assim dizer, vamos cuspir nas mãos, apertá-las e acabar com essa revolução de uma vez por todas.
Era um longo discurso, dadas as circunstâncias, mas Otto sempre fora um adorador explícito da própria voz, e Chevie entendeu o sentido geral da coisa toda, apesar dos termos esquisitos.
Cuspir nas mãos e apertá-las? Ela não gostou nadinha daquilo.
— Só apertar, está bem, Otto? Uma bocarra como a sua cospe um bocado de saliva e eu já aguentei líquidos nojentos suficientes por hoje.
Otto grunhiu e apertou a mão dela, e coincidentemente os dois pensaram em frases idênticas durante o gesto:
Quando isso acabar, nós dois precisamos conversar sobre respeito.
— Humpf — disse Otto.
— Falou — disse Chevie.
E então todas as mentes e os olhares estavam fixos no tanque, que ia a toda velocidade, cada vez mais perto de Westminster.
Num mundo de repetições gastas há muito poucas primeiras vezes, mas neste dia Londres estava testemunhando a viagem inaugural de um veículo blindado em suas avenidas, e como um posfácio havia uma carroça-barco sem cavalos na esteira de pedras e metal esmagado deixada pelo tanque.
Era a pior hora do dia para manobrar até mesmo a menor carroça na cidade, com os escritórios descarregando uma fartura de trabalhadores nas ruas, as tavernas absorvendo o que podiam e o restante se derramando nas calçadas, que já estavam atulhadas de professores dignos e de eruditos amalucados vindos das academias e universidades de Bloomsbury. Vendedores de rua marcavam seus pregões com rudes alôôôs e olááás, tentando ser ouvidos acima dos clangores e clamores de carroças, carruagens e caleças.
Box ainda deve estar vivo, percebeu Chevie.
— Mas aonde ele está indo? — pensou em voz alta. — Ele não pode escapar num tanque.
Witmeyer apontou para Westminster.
— Ele não está tentando escapar. Box tem uma missão.
Havia um rádio de ondas curtas no painel e seu alto-falante estalou.
— Lunka? É você que está atrás de mim?
Witmeyer agarrou o fone.
— Clove? Clover. Acabou. O exército foi destruído. Diga a Box para desistir.
O alto-falante estalou com o que poderia ter sido uma gargalhada amarga.
— O coronel era fraco e mortal. Muito mortal. Agora a missão é minha. O Senhor guia minha mão.
Witmeyer bateu no painel.
— Mentiram para nós, Clover. Todos aqueles anos... nós estávamos trabalhando para homens, e não para Deus. É hora de tomarmos nossas decisões por conta própria.
Por um momento Vallicose não falou, e depois:
— Você não está mais do lado dos anjos, Lunka Witmeyer. Você fala com a língua bifurcada do diabo e não vou ouvir mais nenhuma palavra.
O rádio ficou mudo e adiante o canhão de grosso calibre do tanque disparou uma carga explosiva contra as rodas de um agrupamento de carruagens, explodindo-as como se fossem gravetos, inundando a rua com uma onda de pânico. E, como o pânico jamais é organizado, logo a rua ficou totalmente impossível de ser transposta por causa de uma confusão de carruagens e arreios embolados.
Isto é, totalmente impossível de ser transposta por um veículo vitoriano, mas um tanque do século XX enfrentaria as obstruções com facilidade. Vallicose acelerou e partiu para a confusão, atropelando carruagens e animais, com o peso enorme forjando a própria rota elevada. Era uma visão incrível e que chocava até mesmo as pessoas vindas de outra época.
— Já vi muitas coisas estranhas, sendo um cavalheiro aventureiro — disse Malarkey. — Mas nunca vi nada assim. Podemos ir atrás?
— Não — respondeu Chevie. — Não podemos.
Witmeyer parecia decidida a perseguir sua parceira pela via elevada feita de veículos esmagados, mas no último segundo parou e fez uma curva fechada à direita, entrando na Strand, com seus toldos multicoloridos e seus arcos de pedra e colunatas característicos. No mínimo o tráfego era mais denso na Strand, deixando a pilota sem opção além de tomar a primeira saída, a qual levou o veículo anfíbio por uma rua íngreme até a margem do Tâmisa, com sua vastidão convidativa de rio preto e redemoinhos prateados de água do mar.
Convidativa no sentido de que, comparada à rua acima, não estava engarrafada por veículos.
Malarkey adivinhou o que sua amada estava pensando.
— Avante — citou ele. — Tu és minha Afrodite e eu serei teu Poseidon.
— Não faço ideia do que você está falando, meu rei — disse Witmeyer. — Mas adoro o modo como você diz.
— O dia inteiro — disse Riley a Chevie. — O dia inteiro tem sido assim.
As conversas, tanto a romântica quanto a zombeteira, cessaram assim que o veículo anfíbio mergulhou pelo aterro de Embankment, atravessou um parapeito, dizimou uma pilha de barris e disparou como uma flecha para dentro do Tâmisa. A proa mergulhou fundo antes que os pacotes de flutuação a forçassem de volta ao lugar de onde tinha vindo, com velocidade alarmante. Os passageiros foram jogados de um lado a outro, rolando feito bolas de gude numa tigela, daí foram parar num único montinho de membros múltiplos, no fundo do barco.
Otto foi o primeiro a falar.
— Ah, meu Deus — ofegou ele. — Ah, meu doce Jeová.
Porque um dos barris que estavam no aterro havia caído no convés, e as letras gravadas nele diziam “conhaque”.
Ele se soltou do bolo e engatinhou até a amurada, olhando por cima.
— Santo Deus — disse. — Está acontecendo de tudo hoje, sem dúvida.
Chevie foi a segunda a sair do bolinho.
— O que foi agora, Otto? Mais conhaque?
— Como eu gostaria! — disse Otto, apontando para um veículo a uns 15 metros da popa. — Não, não é conhaque, garota. É aquele barco.
— Estamos num rio, Malarkey. É de se esperar que haja barcos.
— Com isso eu concordo, garota insolente. É de se esperar que haja barcos neste que é o porto mais movimentado do mundo civilizado. Mas a maioria deles não tem HMVS Boadicea escrito nos flancos.
— “Boadicea”? — perguntou Chevie. — Por que esse nome é familiar?
— Boadicea, ou Budica — disse Riley, arrastando-se de debaixo da coxa carnuda de Witmeyer. — A rainha guerreira. Implacável e mortal.
— Tudo bem — retrucou Chevie. — Não somos os bandidos.
Uma bala de canhão assobiou acima, acertando o muro do cais atrás deles, lançando nacos giratórios de alvenaria no ar.
— Fale por você — disse Malarkey, depois ajudou Lunka Witmeyer a ficar de pé para que ela pudesse pilotar o barco e levá-los para longe da canhoneira com casco de aço que se aproximava.
“Canhões à minha frente”,
cantou ele em tom despreocupado.
“Canhões na retaguarda.
É melhor eu assobiar.
O medo não adianta nada.”
Witmeyer virou-se para Chevie e seus olhos estavam brilhantes.
— Ele não é maravilhoso? — perguntou à companheira de gênero. — Veja só o cabelo.
Vamos todos morrer, pensou Chevie. Daqui a pouquinho.
Vallicose estava do lado errado do rio. Um punhado de marinheiros bêbados havia montado um ataque contra o tanque e, incrivelmente, tinha conseguido atrapalhar a escotilha de visão com uma perna de pau, então, quando ela finalmente conseguiu tirar aquela coisa da fenda, flagrou-se atravessando violentamente as catracas da Ponte de Waterloo, que desde muito tempo era conhecida como Ponte dos Suspiros, por causa da sórdida associação de seu vão de granito aos saltos dados por amantes desolados. Era possível que, viajando àquela velocidade, o tanque não conseguisse fazer a curva, mas o para-choque dianteiro bateu num nicho de pedra, que recolocou o veículo no rumo.
Vallicose não ficou indevidamente preocupada por ter se afastado do alvo — afinal de contas, Deus estava do seu lado e o Big Ben se erguia como um farol, e ela simplesmente pegaria a primeira travessia de volta por cima do rio.
Um policial corria ao lado, batendo nas placas blindadas com seu cassetete e soprando o apito, provocando um alarme que já se espalhava por metade de Londres, e Vallicose teve de dar crédito ao sujeito.
Ele está lutando pela rainha e pelo país, pensou. O que é bastante valente, mas eu posso ser mais. Estou lutando pelas almas desta nação.
Acelerou pelo caminho que saía da ponte e seguiu pela margem do rio. Era verdade que Deus estava do seu lado, mas Ele esperaria que ela se provasse.
Deus fez chover enxofre em chamas sobre Sodoma e Gomorra, e agora eu farei o mesmo com Londres.
Viu um grupo da milícia logo adiante, tentando desesperadamente montar um posto de canhão bem no caminho.
Conveniente, pensou. Bem no meu caminho, é o único alvo que posso acertar agora.
Explodiu quase casualmente a peça de artilharia, lançando-a no rio junto aos seus operadores.
Restam dez granadas, notou. Mais do que o suficiente.
O veículo anfíbio estava sofrendo disparos por parte da canhoneira, mas não corria perigo sério porque a embarcação de ferro, assim como o tanque de Vallicose, estava restrita a atirar para a frente. Seu único canhão de doze polegadas podia ser elevado hidraulicamente, mas não tinha manobrabilidade para bombordo ou estibordo, o que significava que era necessário mirar com todo o barco para se mirar com a arma.
O rio estava salpicado de embarcações civis, no entanto os rapazes da marinha real estavam negligentes com o bombardeio, emborcando um iate de passeio e afundando uma barca de combustível.
— Ora! — disse Malarkey, passando o braço em volta da cintura da pilota. — Carvão para os peixinhos.
Chevie estava inclinada a enxergar as coisas de modo mais sério. Para Malarkey, o Império Boxita era um tanto hipotético, mas Chevie sabia que, mesmo com Box morto, seu plano para o mundo ainda poderia ser realizado. Bastava apenas uma louca com conhecimento futurista, e isso descrevia Vallicose de modo bastante exato.
— Me ajude — gritou para Riley, e os dois cambalearam até a popa, onde ficava o armário de armas junto à amurada. Puxaram a cobertura à prova d’água e refestelaram os olhos com as ferramentas guardadas ali.
— Um tubo de escoamento! — disse Riley, apontando para uma peça do kit. — De que serve uma porcaria de tubo de escoamento? Será que a gente devemos matar o inimigo com chuva?
Chevie levantou o tubo.
— Duas coisas, meu chapa. Um: não deixe Figary ouvir você dizer “a gente devemos”. O certo é “a gente deve”.
— E a outra coisa? — perguntou Riley.
— A outra é que este não é um tubo comum.
Vallicose virou para a ponte de Westminster e, tendo aprendido com o excesso de entusiasmo anterior, fez a curva suavemente, sem perder o controle sequer por um segundo. As lagartas do tanque morderam a pedra, jogando para cima duas esteiras de fagulhas e lascas. A rua plana se transformou numa espécie de pista de corrida enquanto carruagens, ciclistas, pedestres e até um automóvel aceleravam ao máximo para a margem de Westminster, numa tentativa de sair do caminho daquele dragão de metal que cuspia a morte e se movia numa nuvem de trovão.
Vallicose sentiu um jorro de satisfação familiar diante do pavor que as táticas de choque e espanto dos Thundercats costumavam inspirar. Pegou o microfone do rádio que iria conectá-la ao outro veículo de Box.
— Lunka, você se lembra do ataque a Cannes? Quando lançamos bombas incendiárias no festival de cinema? Aqueles artistas malditos nem viram o que os atacou.
Witmeyer respondeu imediatamente:
— Claro que lembro, Clove. E foi divertido, mas isso aqui é diferente. Precisamos viver aqui e agora. Box está morto, o exército dele foi dispersado.
— Box era uma fraude — reagiu Vallicose rispidamente. — Ele não era o homem que eu imaginava. O coronel Box só pensava nos próprios planos.
— Sai dessa, Clove. Simplesmente pule da ponte, e Otto pode pescar você.
Era uma sugestão tão absurda que Vallicose gargalhou.
— Otto vai me pescar? Otto é seu homem, acho. — Ela balançou a cabeça. — Deixe-me dizer, irmã Witmeyer. Esta é a última coisa que vou lhe falar: os homens são fracos e vão decepcionar você.
Muito abaixo de sua ex-parceira, no convés do veículo anfíbio, Witmeyer olhou para o rosto do rei Otto Malarkey e pensou: Este, não. E, se ele fizer isso, vou fazê-lo comer as próprias entranhas.
Malarkey captou o olhar e pensou: Veja como a dona ama você, Otto. Nunca, nem em um milhão de anos, ela vai lhe fazer mal.
As Casas do Parlamento estavam hipnoticamente próximas, na margem do Tâmisa em Middlesex.
Ao alcance de tiros?
Possivelmente.
Vallicose não tinha certeza, mas vendo como a ponte estava completamente engarrafada por civis em pânico, pelos veículos abandonados e pela milícia lutando com sua artilharia, era provável que ela teria de lançar seu ataque de mais longe do que gostaria. Ainda que o tanque não fosse uma peça transplantada do século XX, certamente tinha um alcance de 300 metros, o dobro do necessário.
A milícia lançou uma salva contra ela, usando uma metralhadora Gatling, e as balas retiniram no casco do tanque, fazendo pouco mais do que arranhar a pintura. Mesmo assim, Vallicose se ressentiu do retinir, já que estava tentando se concentrar. Subiu na torrinha e girou o canhão 45 graus à esquerda, 35 graus de elevação. Não havia tempo para mapas e gráficos; sua melhor suposição teria de bastar.
— Fogo no buraco — disse a ninguém em particular, e apertou o botão vermelho.
A torreta estremeceu, depois disparou seu primeiro projétil.
Vallicose viu o canhão errar o palácio onde ficava a Casa dos Comuns, ainda que não os políticos propriamente ditos, que sem dúvida estavam fugindo neste exato momento.
Não importa, pensou Vallicose. O negócio é o prédio. O símbolo do governo britânico.
Seu pensamento seguinte foi: Alto demais e muito, muito à direita. Mas revisou a opção quando o projétil acertou a Torre Elizabeth, vulgarmente conhecida como Big Ben, e arrancou o topo, do mostrador do relógio para cima.
Vallicose grasnou de prazer.
Cinco graus mais baixo.
Mais uma pancada surda, que fez toda a ponte estremecer, e esse disparo foi bem no alvo — passando em arco por cima da milícia e penetrando na barriga do saguão central, levantando uma nuvem de fumaça e chamas.
Vallicose imaginou ter ouvido gritos.
Isso não é nada, pensou. Espere até que os membros frouxos deles sejam lambidos pelas chamas do inferno.
Recarregou o canhão. Mais dois devem bastar, depois vou levar minha máquina para o coração das chamas.
Após o tiro seguinte, a ponte tremeu um pouco mais do que era esperado, e Vallicose descobriu que seu tanque estava inclinado para um dos lados.
Curioso, pensou. Isso não deveria acontecer.
A canhoneira de ferro tinha ficado embolada numa confusão de tráfego fluvial e até havia recolhido os marinheiros da barca de carvão, que começaram uma briga animada de socos com os rapazes que os haviam afundado.
— Bem-feito para aqueles patifes descuidados — disse Malarkey, que não conseguia se lembrar de ter se divertido tanto. — Disparando no rio desse jeito. Foram descaradamente irresponsáveis.
Witmeyer colocou o veículo em ponto morto, depois engatou a ré durante uma única pulsação, levando o veículo anfíbio para uma parada gradual, paralela à ponte de Westminster.
Chevie, uma agente treinada para proteger os inocentes, ficou horrorizada com o que viu.
— Ela está disparando contra civis — disse.
— Nem todos são civis — observou Witmeyer.
Em resposta, Chevie colocou um pequeno projétil no tubo de escoamento e mirou ao longo do cano.
— Você está parado atrás de mim? — perguntou a Riley.
— Estou — confirmou o garoto. — Em segurança atrás de você.
— Então saia — aconselhou Chevie. — Com esse tubo de escoamento específico, ficar atrás é quase tão perigoso quanto ficar à frente.
Chevie só havia disparado um lançador de granadas uma vez, num terreno de manobras perto de Quantico. E não teve chance de usar pela segunda vez — pelo menos não neste dia — porque uma bala disparada pelo Boadicea a acertou bem no ombro direito. A bala tinha pouca força e nem penetrou no osso, mas o dano foi mais do que adequado para derrubá-la no convés.
Riley se agachou ao seu lado.
— Chevie! — disse ele, o rosto subitamente branco de preocupação com a amiga. — Chevie, diga que você não está morta.
Chevie tossiu tanto que a bala saltou do buraco raso.
— Não estou morta — confirmou ela. — Mas também não vou disparar foguetes. Witmeyer, você precisa fazer isso.
Witmeyer não se virou de seu posto ao volante.
— Cheguei até onde deu — disse ela. — Não vou matar você, mas também não vou matar Clover. Ela me salvou muitas vezes.
— Então você precisa fazer isso, meu chapa — disse Chevie debilmente. — Você pode mirar ao longo do meu ombro.
— Eu? — perguntou Riley. — Nunca disparei nenhum canhão.
Os olhos de Chevie estavam apertados de dor.
— Por favor. Não posso deixar o império vencer. Não posso.
— Então eu também não posso — disse Riley. — Posso apontar um tubo, com certeza.
Enquanto falava, Riley puxou uma tira de lenços de mágico do colete e amarrou o ferimento de Chevie que, para seu alívio, não estava sangrando demais.
— Certo, bom — disse Chevie. — Eu vou orientando você.
Riley levantou a amiga do convés, apoiando-a suavemente por cima da amurada.
— Isso mesmo — continuou ela. — Agora coloque o lançador em cima do meu ombro. Meu ombro bom.
Agora tenho um ombro ruim, pensou. Sou jovem demais para ter um ombro ruim.
Riley pegou o lançador gentilmente, como se este pudesse explodir em suas mãos, e pousou o metal verde no ombro de Chevie.
— Chegue perto, meu chapa — disse ela. — Segure o máximo de tubo que você puder em cada extremidade.
Riley se ajoelhou atrás de Chevie, de modo que sua bochecha direita tocasse a orelha esquerda dela.
— Agora olhe pelas linhas cruzadas da mira. Está vendo?
Riley fechou um dos olhos e espiou pelo outro, inclinando o lançador até ficar satisfeito.
— Agora respire fundo, prenda o fôlego e aperte o gatilho.
Riley sentiu um suor nervoso cobrir seu rosto, transferindo-se para a orelha de Chevie. De repente notou a embarcação anfíbia se sacudir, e então veio um burburinho, uma gritaria e uma distração do ambiente ao redor.
“Apertar o gatilho” não é tão simples quanto parece.
— Não estou seguro disso, Chevie. E se eu for um incompetente nesse negócio?
— Só aperte — disse Chevie baixinho. — É a única coisa que você pode fazer.
Riley prendeu o fôlego e apertou o gatilho do lançador, mandando um míssil em direção à ponte de Westminster.
O que era uma pena, porque ele estava mirando no tanque.
O míssil abriu uma tremenda mossa na ponte; o tanque estremeceu e se acomodou na superfície rachada da pista. Mas ela ficou apenas rachada, e não rompida ou despedaçada. Na verdade, até que permaneceu bastante firme.
— Ora — disse Malarkey. — Você não estudou nada sobre explosivos, estudou? Vocês, jovens, acham que são tão supimpas, no entanto disparam um busca-pé em ângulo contra uma ponte de metal. Trajetória. Eis uma palavra nova para você, Arietinho.
— O barco está balançando — constatou Riley, e ninguém podia negar.
— Você não vai acertar aquele tanque daqui sem um morteiro. E mesmo com um morteiro, seria um disparo em um milhão, não é, querida?
— Acho que sim — respondeu Witmeyer, mas sem a fagulha usual de quando conversava com seu rei, algo que Otto captou imediatamente. Ele passou um braço pelos ombros dela, que ficaram tensos de súbito.
— Ah, desculpe, sou um palermão. É a sua parceira que está lá em cima, e cá estou eu, discutindo o desmembramento explosivo dela.
— Não podemos simplesmente ir embora, Otto? — perguntou Witmeyer.
Lá em cima, o canhão disparou mais um projétil contra a barriga de Westminster.
— Não, meu doce — respondeu Otto. — Eu posso ser o principal vilão desta cidade, mas não sou um homem mau. Em geral, quem está lá em cima são pessoas comuns, inocentes. E nós seremos de fato os figurões honoráveis no Grande Forno se formos os responsáveis por matar o grande dragão.
Witmeyer baixou a cabeça.
— Muito bem, Otto. Diga ao garoto.
Malarkey trocou do rosto carinhoso para o eficiente.
— Quantos bang-bangs ainda temos?
Riley olhou dentro do baú. Havia um único míssil acomodado na espuma.
— Só um — disse ele, enfiando-o no cano como tinha visto Chevie fazer. — Vai bastar?
Malarkey coçou a barba.
— Acho que vamos descobrir logo, não é?
Passou um minuto avaliando, depois deu as instruções como se fosse um decreto real.
— A ponte é de metal, a não ser pelos pilares, que são de pedra. Mire nesta ponta do pilar.
O tanque estava diretamente acima do sexto pilar, que na maré baixa se encontrava exposto como uma pata fina de cavalo que não conseguiria suportar o peso encarapitado em cima.
Esperemos que não, pensou Chevie.
— Atire, Riley — disse ela. — Confio em você.
Eu não confio nem em mim mesmo, pensou Riley. Para ele, se não derrubasse aquela fera de metal de seu poleiro, todo tipo de catástrofe baixaria sobre seu país amado, e a mais imediata era a destruição do Parlamento e de todas as figuras respeitáveis que debatiam lá dentro.
Se bem que, se estão debatendo com todo esse estardalhaço aqui fora, eles são mais imbecis do que eu achava.
— Atire, Riley — disse Chevie. — Depressa, antes que ela recarregue.
Dedos cruzados, pensou Riley, e puxou o gatilho pela segunda vez.
Vallicose sentiu o segundo míssil acertar e se perguntou. Será que é o meu fim?
Seria possível que Deus a tivesse abandonado no último instante?
Não. Não é possível.
Esta é a minha revolução, pensou de dentro do caldeirão de calor infernal do tanque. Abençoada Thundercat, é como vão me chamar. Os fiéis serão chamados de Clovitas. E meu símbolo será um trevo.
Talvez fosse um pouco prematuro pensar em símbolos; melhor esperar até que o serviço estivesse terminado.
O tanque estava se inclinando seriamente, de modo que era necessário recalcular um pouco para garantir o máximo de destruição do antigo regime.
Baixe o cano em 30 graus, pensou Vallicose toda feliz. Talvez um tiquinho à esquerda. Cinco graus.
Agora havia um belo incêndio grassando no Parlamento. Vallicose imaginava os honoráveis rezando subitamente a um deus que eles haviam ignorado durante décadas.
É tarde demais, meus coleguinhas, pensou, carregando o canhão. Começou a assobiar a melodia de “O bigode do coronel” antes de parar com uma gargalhada rouca.
Essa música está morta. As crianças nas escolas vão cantar canções a meu respeito.
Um pensamento lhe veio e ela ficou triste instantaneamente.
Ah. agora nunca poderei matar a rainha. Que pena!
Mesmo assim tinha uma certeza razoável de que os cidadãos emancipados linchariam Vitória na rua.
E isso teria de servir.
Malarkey protegeu os olhos contra a claridade inexistente enquanto examinava a fissura que o míssil havia causado no lado mais próximo da estrutura de pedra.
— Você estragou tudo, Arietinho. Você atirou como uma...
Chevie não estava no clima para estereótipos.
— Como o quê, Otto?
Witmeyer se flagrou exatamente no mesmo clima.
— É, ele atira como o quê, querido?
Malarkey não teria sido rei durante tanto tempo se fosse lento em captar as situações.
— Como uma pessoa novata, meu doce. Como um completo novato.
Chevie removeu o lançador do ombro e o baixou no Tâmisa para garantir que ninguém mais pudesse deduzir como utilizá-lo.
Riley estava frustrado.
— Bom, acreditem ou não, essas foram as minhas primeiras vezes disparando um foguete.
Malarkey deu-lhe um soco de brincadeira.
— Acredito, Arietinho, não tenho absolutamente nenhum problema em acreditar.
Riley estava olhando para a fissura, que era serrilhada e enorme, como se o troll que morava embaixo daquela ponte em especial tivesse dado uma mordida gigantesca na pedra. Mas ainda que a mordida tivesse penetrado quase até a superfície, aparentemente a estrutura de metal iria aguentar o golpe.
— Bom, então é isso — disse Witmeyer, parecendo meio aliviada. — Mesmo que a gente pudesse voar, seria tarde demais. Devemos sair daqui antes que todo o império despenque.
Malarkey assentiu.
— A milícia vai acabar com ela em algum momento.
— Em algum momento é tarde demais — disse Chevie com dentes trincados. — Estamos tão perto. Perto demais. Depois de tudo que passamos.
Chevie não conseguia afastar a sensação de que, de algum modo, ainda que os soldados tivessem sido dispersados e as armas jogadas no Tâmisa, a Revolução ainda poderia pegar fogo. Talvez a destruição do governo fosse bastar para inspirar os descontentes da cidade.
Se Vallicose pudesse disparar mais uma granada...
Como se tivesse ouvido a deixa, o tanque estremeceu, e de seu cano comprido saltou mais um projétil. Ele partiu em arco por cima da barricada de carruagens, canhões e pessoas espremidas e desapareceu no meio do palácio de Westminster, onde só Deus sabia quanto dano aquilo estava causando.
E enquanto Chevie observava o caminho do projétil, Riley olhava a ponte.
— Vejam — disse ele. — O troll está com fome.
Vallicose apertou o botão de disparo e sentiu a força do coice comprimir o tanque mais para dentro da fissura. Se o tanque estivesse bem acomodado nas esteiras, os amortecedores e a suspensão teriam absorvido a maior parte do impacto, mas este tanque estava inclinado e, verdade seja dita, o lubrificador que havia trabalhado na suspensão provavelmente não tinha tirado as melhores notas na escola de mecânica. O choque do coice foi transmitido do tanque para a ponte, forçando a fissura a se abrir uns 30 centímetros, o que bastou para arrancar o naco de ponte em que repousavam sessenta por cento do peso do tanque. Isso aconteceu tão lentamente que Vallicose teve tempo de trocar a marcha e tentar tirar o tanque da fissura, cada vez maior, mas aconteceu depressa demais para que ela tivesse sucesso. Uma pirâmide de pedra e ferro se soltou da ponte e mergulhou no rio. O tanque foi se inclinando por um longo momento, a esteira direita girando no ar, mas gravidade era gravidade e não admitiria ser atrapalhada. Dessa forma, com um tremor e um dar de ombros, o tanque tombou e despencou, gemendo e rangendo até embaixo.
Para Vallicose a queda pareceu interminável, e apesar das pancadas ferozes e dos gritos que saíam de sua boca, ela teve tempo para alguns últimos pensamentos.
Isso é um tremendo aperto, pensou. Será interessante ver como Deus vai me tirar dessa. O que quer que aconteça, será material para lendas. A irmã Vallicose, dirão, a fênix renascida.
Uma rima lhe ocorreu, na mesma melodia de “O bigode do coronel”:
Foi-se com barulho
Foi-se com barulho.
A ponte de Westminster
Não passou de entulho.
Mas Vallicose, a brava,
Desta vez não se acabou.
Saindo do meio das cinzas,
Como a fênix voou.
Vallicose não tinha certeza quanto à rima de barulho com entulho. Será que a palavra entulho era popular na Londres do século XIX?
A verdade era que Vallicose estava ocupando o cérebro com toda essa coisa de poemas e absurdos porque estava se distraindo de uma certeza que se pregara em sua mente de súbito.
E ainda que só lhe restassem alguns segundos para viver, o pensamento ficou mais barulhento e rugiu em seus ouvidos, até que ela não teve opção além de gritá-lo:
— Eu estava errada! — uivou enquanto o rio preto se aproximava, tão implacável quanto metal. — Eu estava erraaaaada!
Witmeyer acompanhou o rangido, a oscilação e a queda do tanque.
— São só uns 15 metros. Clover pode sobreviver.
Chevie, Riley e Malarkey formaram um triângulo de olhares que falava mais do que uma enciclopédia.
Ela não vai sobreviver a isso, diziam os olhares, e: 15 metros? Quem ensinou você a medir?
A sobrevivência de Vallicose estava no âmbito da possibilidade — se ela estivesse presa ao banco com o cinto de segurança e generosamente acolchoada com ursinhos de pelúcia. Infelizmente para ela, o enorme naco de alvenaria da ponte havia prendido um pouco de ar, e permaneceu flutuando por tempo suficiente para o tanque cair em cima dele e explodir em um milhão de pedaços de metal e estrutura.
A explosão foi espantosa no sentido bíblico, algo de que Vallicose poderia ter gostado se tivesse mantido a fé naquele momento final. Foi como se toda a Londres tivesse se encolhido com a detonação — desde a multidão na ponte até o rio em si. Chevie jurou ter visto o leito pálido do rio pouco antes de se abaixar para evitar estilhaços que incluíam lascas de granito, rebites retorcidos e o esqueleto de uma pequena criatura que parecia ser meio caranguejo e meio porco.
Riley também viu quando o esqueleto roçou a amurada, estalando as garras ao passar — um efeito causado pela velocidade, sem dúvida — e desapareceu a estibordo da proa.
Nunca vou falar sobre isso, resolveu ele.
Numa fileira cômica, o pessoal do veículo anfíbio espiou por cima da amurada para testemunhar um borbulhante cogumelo de fumaça com serpentes de chamas na haste gorda.
Por um longo momento, depois do terrível estardalhaço de granada, bala de canhão e explosão, pareceu haver um vácuo no qual até mesmo o canto dos pássaros e as ondulações do rio despencaram. A vida prosseguiu em silêncio, como se os ruídos cotidianos tivessem se reduzido à insignificância.
Então Lunka Witmeyer falou:
— Bom, acho que não faz sentido passar pente fino nos destroços.
E os sons do mundo voltaram num jorro. De cima, os berros e uivos dos feridos e as buzinas e sirenes das brigadas de bombeiros. E de trás, o chacoalhar dos motores e os gritos de vozes autoritárias através de trombetas acústicas.
— Alto! — diziam as vozes. E: — Parados aí. — E: — Preparem-se para ser abordados.
Malarkey virou-se e viu uma flotilha desarrumada, composta de embarcações da marinha de Sua Majestade, pequenos barcos a vapor e barcas vindo na direção deles.
— Isso é que é agradecimento. Eu estava esperando uma medalha.
Witmeyer cruzou os braços com ele.
— Assim é melhor, Otto. Assim é misterioso.
Malarkey sorriu.
— Você já me conhece bem demais.
Ele subiu em cima da casa do leme e atuou para os cidadãos pendurados nos corrimões.
— Não temei, meu povo. O perigo passou. Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos, porque o Carneiro matou o dragão. — Ele levantou um dedo rígido e projetou-o em direção ao céu. — Lembrem-se de que sua rainha não pôde salvá-los. Era necessário um rei.
Otto fez uma reverência profunda e falou baixinho, por baixo da axila, com Witmeyer, que estava junto ao volante.
— Esta é sua deixa para tirar a gente daqui, meu amor. Deixe-os sem fôlego.
De onde estava no convés, Chevie pensou que Malarkey provavelmente teria se alçado à condição de rei em qualquer era. E se não fosse rei, definitivamente seria um astro da TV.
Witmeyer engrenou o veículo, depois costurou facilmente em meio à frota de embarcações a vapor e a vela. Ainda que uma grande quantidade de olhos arregalados os espiassem e dezenas de queixos se escancarassem em sua direção, Witmeyer não validou nenhum deles ao passo que Otto fazia uma reverência depois da outra.
Riley se aconchegou ao lado de Chevie, tentando protegê-la das sacudidas mais bruscas do barco.
— Conseguimos, Chevie — disse ele. — Fizemos o mundo voltar ao que deveria ser.
Chevie bufou.
— Não totalmente, garoto. Há um buraco na ponte de Westminster que não deveria estar ali. E metade de Londres viu um tanque.
Riley a abraçou com força.
— Pelo menos Box se foi, não é?
O sorriso de Chevie não pareceria deslocado nem na cara de um lobo.
— É. Pelo menos Box se foi.
De modo que talvez seu pai vivesse, ou pelo menos morresse de um jeito mais justo. O mesmo valia para DeeDee.
Assim que o veículo anfíbio se afastou das outras embarcações e dos destroços da explosão, Witmeyer acelerou-o pelas ondas prateadas do Tâmisa. Em segundos tudo que podia ser visto do anfíbio a partir da ponte de Westminster eram os dois arcos de sua esteira na água.
LINDA E PERIGOSA
No final não existe fim, especialmente quando se trata de viagem no tempo. Assim que você começa a pensar que tudo foi resolvido, um bocado de ramificações já desceu pela fenda temporal. Por sinal, sei que vocês estão chamando minha fenda temporal de fenda de Smart. No lugar de onde eu vim isso não é muito lisonjeiro.
— Professor Charles Smart
Teatro Orient. Holborn. Londres. 1899
Otto Malarkey se acomodou numa poltrona do Teatro Orient, ficando em silêncio durante um período incomumente longo. O primeiro motivo para o silêncio era justo, já que na última vez em que estivera no Orient ele havia testemunhado a morte de seu irmão e de um bocado de seus colegas valentões. Além disso, tinha sofrido uma pancada considerável. Essas dores certamente mereciam um momento de ruminação. Mas o segundo motivo era um pouco grosseiro, considerando tudo que havia acontecido.
— Você precisava afundar o barco? — disse finalmente, lançando um olhar maligno para Chevie. — Aquela embarcação maravilhosa. Eu poderia ter sido o rei dos mares.
Chevie estava sentindo um bocado de dor, apesar do dedal de láudano que Riley havia prescrito antes de fechar o ferimento com um único ponto. Supôs corretamente que o garoto fora frequentemente obrigado a limpar os ferimentos de batalha de seu antigo patrão. E estando sob tamanha dor, ela não estava no clima para as reclamações de Malarkey.
— Você é rei da cidade, o que já deveria ser suficiente. E de qualquer modo, você viu o que aquelas armas são capazes de fazer, Otto. Viu de pertinho.
Chevie estava sentada na beira do palco, de costas para a cortina de veludo fechada, mordiscando o enorme sanduíche que Riley havia feito para ela.
Os carboidratos ainda não foram inventados, pensou, então isso aqui não conta. Além do mais, levei um tiro.
Mas tinha recusado a cerveja que Riley oferecera e em vez disso bebia uma caneca de água rançosa que duvidava ter sido filtrada nas Terras Altas da Escócia.
Mais provavelmente foi filtrada num tubo de drenagem imundo, e então: Não estou tendo muita sorte com a água neste século.
— Ora — disse Otto. — Você tem uma boca suja, garota. E está a um passo de sofrer o desfavor real. Mas vou ser condescendente por causa do arranhão no seu ombro.
Eles não se demoraram nem um pouco para despistar os barcos da marinha que os perseguiam, e Otto sugerira casualmente que conhecia um cais discreto em Limehouse, onde um sujeito poderia enfiar um barco que não quisesse ser investigado. Chevie pôde fazer pouco em relação ao cais em Limehouse, mas certamente pôde colocar duas granadas no armário de armas depois de desembarcarem, só para garantir que o veículo anfíbio não fosse adaptado pelos rapazes de Otto para a pirataria no rio. Malarkey ainda estava de mau humor por causa disso ou, mais exatamente, havia guardado o mau humor até Lunka Witmeyer sair de perto; e agora que a ex-Thundercat estava escolhendo alguma roupa nova na sala de figurinos do Orient, Malarkey soltava os cachorros contra Chevie.
— É um pecado destruir uma coisa de tamanha graça e beleza — proclamou — E aquele barco era lindo, sem dúvida. E perigoso.
Chevie engoliu um pedaço do sanduíche.
— Ah, é. Lindo e perigoso. Eles vão gravar isso na sua lápide. Aqui jaz Otto Malarkey, morto por uma coisa linda e perigosa.
E falando em linda e perigosa, a cortina se abriu numa série de farfalhares, revelando Lunka Witmeyer no centro do palco. Estava usando uma saia de montaria marrom, que a identificaria como possivelmente americana, porém nada mais fora do comum do que isso, e botas que se abotoavam até os joelhos. Um casaco de tapeçaria vermelho e uma blusa branca com gola de babado completavam a vestimenta. No todo, estava bem impressionante.
— O que acham? — perguntou.
Chevie olhou para trás.
— Acho que você deveria acender uma vela naquele camarim. Parece que escolheu sua roupa no escuro.
Estava óbvio que Chevie não perdoaria Witmeyer por suas transgressões do passado.
— É melhor calar essa boca ou eu posso esquecer que você está ferida — alertou Witmeyer.
Chevie gargalhou.
— Quando quiser, Thundercat.
Malarkey saltou no palco e pegou a mão de Witmeyer, fazendo-a rodopiar abaixo do seu braço.
— Senhor, ó Senhor — disse ele. — Você é uma obra de arte, sem dúvida.
Malarkey tinha mandado um garoto com uma lista de tarefas para Figary, e o mordomo irlandês, que havia escolhido esse momento para chegar ao teatro, ouviu o comentário de Malarkey sobre a obra de arte.
— Uma obra de arte, é? — disse ele, presumindo incorretamente que o comodoro estava provocando aquela guerreira amazona. Figary não era cruel, porém, como a maioria dos irlandeses, tinha dificuldade para conter uma pilhéria, por mais cortante que fosse.
— Uma obra feita por um macaco caolho e bêbado... — disse ele. Mas assim que as palavras rolaram de sua boca, Figary registrou os arrulhos e murmúrios trocados entre o comodoro e aquela dama desconhecida, e concluiu que deveria modificar a abordagem antes que sua boca o fizesse ser morto, como sua querida e velha mãe sempre previra que ocorreria.
— ... o que foi exatamente o que eu falei na semana passada para um homem que tem uma galeria na Strand — disse Figary, untuoso. — Isto aqui, por outro lado, é uma obra de perfeição física, é sim.
Nem precisava ter se incomodado. Witmeyer e Malarkey estavam surdos e cegos a qualquer coisa que não fosse eles próprios.
Riley emergiu das coxias com um prato de pão, queijo e carnes.
— Geralmente não deixo trazerem comida para o palco. Por um lado, dá azar, e por outro eu mesmo é que preciso varrer tudo depois. Astro e faxineiro, esse sou eu.
Malarkey voltou à superfície do mar de amor.
— Riley, meu garoto, você fez um belo trabalho com o guarda-roupa. A Srta. Witmeyer é estonteante, não é?
Riley assentiu, mas ficou de boca fechada. Chevie não conseguiu se manter calada.
— Ela certamente me deixou tonta algumas vezes.
Riley lhe ofereceu um pedaço de queijo.
— Por que não enfia isto na sua matraca? Seria saudável para nós dois.
Figary veio andando pelo corredor central.
— Comodoro, é tão bom vê-lo na vertical e respirando!
— É preciso mais do que um exército para me matar — disse Malarkey. — Agora, quanto à sua missão. É seguro sair? Os policiais estão no meu encalço? Qual é o assunto na cidade?
— Bom, o senhor é o assunto em toda a cidade — respondeu Figary. — Sua heroica batalha no rio. Estão dizendo que o rei Otto matou o dragão. Estão dizendo que o rei Otto mandou o demônio de volta para o inferno. Que o rei Otto salvou o império.
Otto assentiu, satisfeito.
— Isso não é nada mais do que a verdade, acho. Mais alguma coisa?
— Camisetas — disse Figary.
Chevie franziu a testa.
— Camisetas?
Riley sentou-se ao lado dela no palco.
— Camisetas. Dessas que a gente usa por baixo da roupa, e coisa e tal.
Figary continuou sua transmissão das notícias.
— Um sujeito está imprimindo seu retrato em camisetas, vendendo por todo o West End. E é um retrato lindo, comodoro; captura suas madeixas com perfeição, captura sim.
— Camisetas com retrato, é? — disse Malarkey. — Que ideia!
— Você merece, Otto — arrebatou-se Witmeyer, e provavelmente foi seu primeiro arrebatamento. — Você é um herói.
— Deveria haver uma camiseta com o retrato de Chevie — disse Riley. — Foi ela quem fez a ação, e não só o discurso.
Isso fez com que Figary se lembrasse do discurso.
— Sim, a famosa oração. Também foi impressa nas camisetas. — Ele tossiu dramaticamente. — “Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos.” Citando Shelley, comodoro. Belo uso da ironia.
— Ironia? — disse Malarkey. — Não foi nenhuma ironia, Figary. Eu queria que os patifes do governo dessem uma boa olhada e se lembrassem de quem salvou a cidade.
— De qualquer modo, comodoro, respondendo à sua primeira pergunta: o senhor não é fugitivo. Acho que se a lei pusesse um dedo no senhor, o povo se levantaria numa revolução.
Chevie se encolheu. Não gostava da palavra revolução.
— E os meus homens desencaminhados? — perguntou Malarkey. Esta era a pergunta importante. Os civis podiam chamá-lo de rei Otto até o dia do Juízo, mas, sem os Aríetes por trás, ele não era mais rei do que as dezenas de reis Henriques trancados nos asilos de Londres.
As mãos de Figary ficaram mais agitadas, batendo asas como pombos de mágico.
— Seus homens, comodoro. Aqueles idiotas... desculpe-me, mas aqueles idiotas viram como estavam errados. Prestei uma visita à Toca dos Carneiros e eles estavam lá, como um punhado de ratos pingando água das catacumbas. Estavam tocando a bainha da minha calça. Implorando pela minha generosidade. Minha generosidade, imagine, depois de os mesmos valentões terem tentado me expulsar do local por ocasião da minha visita anterior. O senhor precisa pegar uma carruagem e ir para lá imediatamente, comodoro. Eles estão polindo seu trono, estão sim.
Malarkey estufou o peito e ficou emproado.
— Bom, esta é de fato uma boa notícia, mas aqueles imbecis não me merecem.
Witmeyer tinha uma sugestão.
— Talvez devêssemos enforcar alguns, para dar exemplo.
— Ah, não, querida, mesmo me sentindo tentado, mas agora é hora da misericórdia. Eu não matei o dragão? Isso é exemplo suficiente. Vamos esquecer e perdoar as velhas disputas e pisar juntos no futuro.
— Muito bem dito, comodoro. E muito bem-colocado. Esta jovem dama está tendo uma influência positiva.
— Esta é a sua nova patroa, Figary, Mademoiselle Witmeyer, vinda do futuro. Leve-a à carruagem, está bem?
— O prazer é meu — respondeu Figary. Em seguida fez uma reverência para Witmeyer, depois ofereceu o cotovelo, para que ela lhe desse o braço. Witmeyer, que só era familiar com tal gesto na forma de um golpe ofensivo, presumiu que estava sendo atacada e prendeu o mordomo no chão antes que ele pudesse dizer é sim.
— Não o machuque, querida — disse Malarkey. — Ele faz um assado supimpa no Sabbath. E sabe tirar manchas de sangue de quase qualquer coisa.
Malarkey estendeu a mão para Riley apertar.
— Considerando todas as peripécias por que passamos juntos, Arietinho, estou inclinado a deixar você operar sem taxação, mas com proteção.
Riley apertou a pata gigantesca de Malarkey com um agradecimento sincero e alívio.
— Obrigado, Majestade. Sinto que eu poderia abraçá-lo.
Malarkey franziu a testa.
— Eu sou o rei dos Aríetes, rapaz. E só abraço minha rainha. Qualquer tentativa de me abraçar será rechaçada com firmeza.
Chevie piscou para o rei dos Aríetes.
— Ele já tem proteção. A melhor coisa que você pode fazer é nos deixar em paz.
— Vou ficar longe até que eu seja necessário — admitiu o rei dos Aríetes. — Mas se vocês precisarem, mandem um moleque de recados ao Figary, na Grosvenor Square, e virei voando para vocês. O rei Otto nunca está ocupado demais para os amigos.
Vinda de Malarkey, era de fato uma boa oferta, e até Chevie quase evitou uma carranca.
— Ainda não somos amigos, Otto — disse ela. — Mas estou menos inclinada a acabar com a sua raça.
— Está bem, garota. Só por um dia vou tolerar seu descaramento.
— Mantenha essa aí fora do meu caminho — acrescentou Chevie, assentindo para Witmeyer, que estava ajeitando o casaco de Figary. — E durma com um olho aberto.
Malarkey suspirou.
— Para que eu possa admirá-la?
— Não, para vigiar seu trono. Sua queridinha tem um passado sombrio.
— Isso vai ser no futuro, por assim dizer.
Figary estava se recuperando de seu breve sofrimento.
— Força bruta, é? O filhinho da Sra. Figary não arriscou a vida atravessando o canal para ser vítima de força bruta, não mesmo.
Lunka Witmeyer pediu desculpas sinceramente. Primeiro havia se arrebatado, agora estava se desculpando.
— Sinto muito, homenzinho gnomo esquisito. Agora vejo que você estava tentando ser cortês. Não estou acostumada com cortesia no meu ramo de trabalho.
Figary pensou corretamente que seria sensato aceitar o pedido de desculpas desajeitado.
— Não se preocupe. E qual ramo de trabalho seria, madame?
Witmeyer deu de ombros.
— Ah, o de sempre. Assassinato, intimidação, um pouco de tortura. Mas isso em geral eu delego.
— Entendo completamente, entendo sim — disse Figary com rosto impassível. — Tortura é cruel demais.
— Não: é a sujeira. Com a crueldade eu não me incomodo.
Então Figary soube que precisaria tatear com muito cuidado com esse novo amor de seu patrão, caso contrário o filhinho da Sra. Figary acordaria morto qualquer dia desses. Lembrou-se de uma cigana na feira de Puck que o alertou que ele encontraria uma mulher esquisita e sombria num momento não especificado; e ele rira disso.
Mas agora, pensando bem, uma coruja não piou na hora em que a Madame Folha de Chá fez a previsão?
Tinha mesmo havido uma coruja, e como qualquer devoto da paranormalidade sabia, o pio de uma coruja durante uma leitura da sorte era o selo de aprovação do mundo espiritual.
Esta é a mulher esquisita e sombria.
Ela não era sombria de fato, mas estava meio parada na sombra, e isso bastava.
— Madame — disse ele. — Vou oferecer meu cotovelo para que eu possa acompanhá-la até a carruagem que está em frente ao teatro.
— Ofereça — concordou Witmeyer, que achava aquele homenzinho divertido, como um cachorrinho ou um suspeito citando motivos imaginativos para não ser interrogado. Seu motivo predileto fora dado por um homem suspeito de ser poeta. Ele havia confessado que escrevia poemas, mas afirmou que as críticas que recebia pela internet eram tão ruins que tecnicamente ele não poderia ser chamado de poeta.
Mais um homenzinho engraçado, como este aqui.
Witmeyer pôs a mão no cotovelo oferecido e se permitiu ser acompanhada pelo corredor central. Não se despediu de Savano ou do garoto Riley. Só havia uma pessoa com quem se importava, e essa pessoa estaria ao seu lado até o dia em que morresse. De um modo ou de outro.
Malarkey olhou o teatro longamente, demorando-se no local em que seu irmão Barnabus havia caído. O fato de Farley ter morrido de modo horrível servia de algum consolo — mas não muito se ele fosse ser sincero.
— E aqui estou eu, me apaixonando na mesma semana em que meu irmão foi assassinado — disse, e depois pensativamente: — Contemplem minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos.
— Nenhum de nós controla o próprio coração, rei Otto — disse Riley.
Malarkey pensou nisso e concluiu que era mesmo verdade.
— Não controlamos, garoto. Mas devemos segui-lo. E eu devo seguir o meu.
Fez uma reverência profunda.
— Lembrem-se, amigos. Otto Malarkey está à distância de um assobio.
E foi andando rapidamente atrás de sua amada, de modo a segurar a porta da carruagem para ela — e garantir que ela não matasse Figary devido a algum movimento súbito.
Riley e Chevie estavam sentados no palco, terminando o resto da comida, taciturnos. O primeiro motivo para estarem taciturnos eles compartilhavam, mas no segundo, eram totalmente opostos. O primeiro era a depressão pós-traumática mútua, agora que os níveis de adrenalina estavam baixando. Quanto ao segundo, Riley acreditava que sua colega Chevie logo iria se bandear para casa, ao passo que Chevie sabia que isso era impossível, ainda que o verbo bandear-se não fizesse parte de seu vocabulário. Pelo menos ainda não.
Acho que vou aprender um bocado de palavras novas, pensou.
— Você vai embora — disse Riley por fim. — Entendo por que vai, colega, mas mesmo assim fico triste. Tenho espaço suficiente para você aqui. Seu próprio quarto, e assim por diante; além disso, estou fazendo pesquisas, ou seja, providenciando um vaso sanitário com descarga, algo que uma garota do futuro como você sem dúvida estimaria.
Chevie enfiou a mão embaixo da camisa e pegou a chave temporal que, espantosamente, ainda estava intacta.
— Levou uma surra, mas continua brilhando — disse. — No entanto, o local de embarque foi destruído. Não existe mais caminho de casa para mim. Acho que você vai ter de me aguentar.
— Lamento de verdade, Chevie, por um lado. Mas por outro fico feliz por ter minha amiga mais querida sob meu telhado. Nosso telhado, deveria dizer. Agora somos sócios.
Chevie enfiou a chave embaixo da roupa de novo.
— Agradeço, Riley. Mas se esta é a nossa casa, você precisa fazer alguém trabalhar nesse vaso com descarga. E dentro de casa, se você não se incomoda.
— Dentro de casa? Isso aqui não é o Savoy, Chevie. — Ele pensou durante um minuto. — Preciso de uma assistente linda. Como você se sentiria em relação a isso?
— Eu poderia fazer truques com armas, talvez. E cobrar o dinheiro de quem vier.
Riley se inclinou para perto, como se alguém pudesse ouvir.
— Não precisa. Temos dinheiro. É dinheiro sujo e não há como negar, mas talvez possamos lavá-lo de novo usando com um propósito decente, hein?
Chevie queria sorrir, garantir a Riley que ficaria com ele e ajudaria no teatro, que faria o necessário, mas não conseguia escapar de uma triste conclusão.
— Nunca vou saber com certeza como meu pai morreu, ou minha amiga DeeDee. Ou mesmo se eles morreram.
Esta era uma coisa que os dois não compartilhavam. Riley sabia exatamente como seus pais tinham morrido: com a garganta cortada por Albert Garrick.
— Às vezes, Chevie, saber das coisas não ajuda a ter paz de espírito. Saber das coisas não é vantagem nenhuma, se você quer saber.
Passos ecoaram no saguão aconchegante do Orient, e logo uma figura subiu os degraus e se revelou como Bob Winkle. Veio a toda velocidade pelo corredor, mal parando diante do fosso da orquestra.
— Rá! — disse ele, apontando para Chevie. — A princesa indígena, estão falando disso por toda a cidade, e eu sabia que era a Srta. Chevron que estava de volta. Bob, eu falei pra mim mesmo, só tem uma dona capaz de derrubar um dragão no Tâmisa sem passagem de volta: a Srta. Chevie Savano, eu disse. E tava certo.
O garoto estava ofegante e empolgado.
— Acabei de descer do trem de Brighton e encontrei a cidade inteira num tumulto. — Bob parou e farejou o ar. — O que é esse fedor demoníaco, chefe? Os ralos entupiram de novo?
Riley fez uma careta.
— Acho que somos nós dois. A gente andamos fazendo um pouco de garimpo no esgoto.
Isso não pareceu surpreender Bob nem um pouco.
— É, garimpar no esgoto faz isso com as pessoas. A única coisa que resolve é fenol, e é melhor queimarem as roupas.
Chevie não gostava nada daquilo. Sua estranha vestimenta híbrida era tudo que lhe restava do futuro. Até mesmo a havia utilizado por baixo do disfarce de dançarina. Queimar a roupa seria como uma aceitação da derrota.
— Vou deixar minha roupa de molho por alguns dias — disse. — Gosto dela.
— Vou pedir conselho ao Figary — observou Riley. — Aposto que ele consegue tirar o cheiro de qualquer coisa.
— Consegue sim — disse Chevie, e os dois sorriram, maravilhando-se ao pensar que Figary era um personagem tão fantástico que simplesmente repetir sua expressão característica já animava uma pessoa. Até Bob Winkle mostrou os dentes, apesar de não ter conhecido o filhinho da Sra. Figary.
— De qualquer modo — disse Bob assim que recuperou o fôlego —, não estou correndo por causa de tudo que aconteceu por aqui. Estou correndo porque tenho novidades.
— Novidades? — perguntou Riley, pulando da beira do palco e correndo para perto de Winkle. — Que novidades?
— Novidades do seu irmão, Tom.
Riley deu um passo atrás. Esta poderia ser a melhor notícia de todas, ou a pior, e ele pensou em sua declaração recente, de que saber das coisas não era vantagem nenhuma.
Mas preciso saber, pensou.
— Você encontrou o Tom em Brighton?
— Encontrei a pista do Tom em Brighton — corrigiu Bob. — Uma pista tão larga quanto a Blackfriars Road. O seu garoto Tom é uma tremenda figura.
O coração de Riley bateu forte no peito.
— É? É uma tremenda figura. Então ele está vivo, e morando em Brighton?
— Sim para a primeira e não para a segunda pergunta. Tom está vivo, mas suas desventuras o trouxeram aqui para Londres. Está a poucos quilômetros deste lugar.
Riley sentiu-se fraco, tonto.
— Londres. Precisamos sair daqui e ir visitá-lo. Mas primeiro roupas novas, Chevie. Não podemos deixar que meu irmão ponha os olhos em nós neste estado. Ou que ponha os narizes em nós, por sinal. Não acredito que meu nome de batismo pode ser revelado finalmente. Talvez eu seja um Albert, ou um George. Gosto de Oliver, gosto sim.
Chevie estava observando Bob, e viu no rosto dele que a notícia não tinha sido totalmente transmitida.
— O que mais, Bob? Tem mais, não é?
Bob engoliu em seco, um pouco tenso por dar uma notícia ruim, mas Riley era um bom patrão que sempre fora apenas gentil. Mesmo assim, às vezes o mensageiro era culpado pela mensagem.
— Tem mais, Riley. Visitar Tom não é um passeio no parque, como alguém poderia pensar.
Riley estava borbulhando de empolgação, de modo que o tom de Bob não penetrou em sua consciência.
— Claro que é. Sei que não estamos com a melhor aparência do mundo, mas meia hora na banheira e um bocado de sabão vai colocar a gente nos trinques outra vez.
— Não é isso, meu chapa. Tom não está num lugar qualquer.
— Londres. Você disse que ele está em Londres.
— Em Londres, certo. Na mais ultrajante pilha de pedras que a gente temos na cidade, inclinada de novo em seu ombro de sotavento: a própria casa da lei.
Riley sabia exatamente qual era a construção que Bob estava circundando e não queria citar.
— Newgate? — perguntou, o rubor de empolgação no rosto se desbotando rapidamente. — Tom está na prisão de Newgate?
— Numa cela de devedor.
Devedores. A espécie mais odiada em Londres. Mais baixa aos olhos da lei do que os contrabandistas ou os assaltantes de estrada.
— Ele não vai ser enforcado de manhã, vai? — perguntou Riley a Bob Winkle.
— Não, não vai ser enforcado de manhã. Só vão pendurá-lo na quinta-feira.
Essa era de fato uma notícia arrasadora, que dobrou Riley ao meio como um soco na barriga.
— Um advogado — disse ele quando se recuperou um pouco. — Precisamos do melhor advogado de Londres.
— Seria Sir James Maccabee, o homem que seu irmão fraudou. O caso está encerrado sem possibilidade de apelação, Riley. Odeio ser eu a entregar este pacote fedorento.
Os olhos de Riley estavam arregalados e ele sacudia os braços em volta do corpo, como alguém numa escuridão de breu tateando em busca de uma superfície familiar.
Chevie sentiu a depressão pós-traumática desaparecer. Agora tinha uma nova missão.
— Precisamos libertá-lo — disse. — Pegue sua sacola de truques e vamos indo. Preciso ver essa tal de Newgate antes de bolar um plano.
Riley olhou sua amiga do futuro no palco, com a luz por trás, uma verdadeira figura heroica, capaz de dar esperança a um sujeito.
— E você me ajudaria nisso?
— Claro. Somos uma equipe.
— Uma equipe. Claro.
Chevie pulou do palco.
— Já derrubamos um império nesta semana. Que chance tem uma prisão?
Riley achou que sua amiga estava subestimando o oponente, como sempre. A prisão de Newgate era uma verdadeira fortaleza que frustrava tentativas de fuga todos os dias e que engolia criminosos com tanta eficácia quanto uma fera monstruosa e faminta. Libertar Tom seria um trabalho demoníaco, mas Riley achou melhor não desanimar a parceira, afinal precisariam de qualquer ânimo que pudessem encontrar.
— Aquela prisão não tem nenhuma chance — disse ele, reforçando as palavras com uma força que não sentia de fato. — Newgate vai abrir as portas para nós dois, e o Tom vai ser devolvido a mim.
Bob Winkle não tinha intenção de ser deixado de fora.
— Conte comigo nesse número, Riley. Sem você eu ainda estaria fumando papel de parede na Old Nichol.
— Três então, somos três. Juntos não podemos fracassar.
— Não podemos fracassar — concordou Bob.
— O fracasso não é permitido — disse Chevie.
Pareceu a Chevie que todas essas repetições do verbo fracassar certamente garantiriam o fracasso, por isso ela tentou colocar algo positivo na situação, levantando a mão para um “toca aqui” coletivo.
Os outros dois simplesmente encararam a mão levantada, perplexos.
— Qual é, time — disse ela. — Não me deixem aqui pendurada.
Talvez uma escolha ruim de palavras, considerando as atuais circunstâncias, por isso Chevie tentou de novo:
— Vamos lá outra vez, pessoal. Para mais uma aventura. Desta vez vamos arrancar o irmão de Riley da prisão. Haverá perigo; haverá escorregões e emoções. Haverá facas, revólveres e pessoas falando coisas idiotas na pior hora possível.
— Provavelmente eu! — disse Bob, todo animado.
— Por isso precisamos de um lema, algo que nos mantenha animados quando a situação estiver contra nós.
— Como o vento sob nossas asas? — perguntou Riley.
— Não, assim não. E obrigada por colocar essa música na minha cabeça, por sinal.
Ela estendeu a mão para a frente e os outros souberam que deveriam cobri-la com a deles.
— Não vamos ser mortos — disse ela, e eles repetiram em coro:
— Não vamos ser mortos.
Era o melhor que poderiam esperar, dadas as circunstâncias.
Eoin Colfer
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